Bruna Carla de Carvalho Amaral
Bruna Carla de Carvalho Amaral
Retratos da
Inclusão Escolar
a biopolítica em
um caso ficcional
Retratos de Inclusão Escolar: a biopolítica em um caso ficcional







Te convido a aproximar-se dessa
obra com mente e corpo abertos
à diferença. A autora, mulher
historiadora que conheço desde
pequena criança do interior
paulista, em sua sagacidade
crítica e sensível, toma de frente
a ocupação da diferença no
ambiente escolar. Uma narrativa
que parte das observações e
incômodos da própria experiência
nos espaços educacionais, da
constrangedora medicalização dos
corpos e das escalas capacitistas
sobre as possibilidades e potências
de cada vida. Nos interpela e
denuncia o que escondemos de
nós mesmos: a ingovernabilidade
da vida e o desgoverno das gestões
que “inclui excluindo”.
A obra tem a perspicácia de colocar
em evidência a lógica normativa e
seu constrangimento com os que
desviam. Quais políticas, afetos,
éticas educacionais e do cuidado
estamos produzindo nesse campo
de forças? Quais relações de poder
estão em jogo? Quais novas
histórias do conviver podemos
criar? Uma política narrativa que
desaa o paradigma cientíco de
pesquisa das ciências humanas,
as problematizações se fazem
como experiência de investigação
que eu chamaria autoccional.
De modo literário e não menos
cientíco, compõe linhas de
consistência e interrogação em
uma personagem construída
com a densidade dos encontros
escolares que viveu.


 !!"#$"%
É com os corpos decientes e
não sobre eles.
As normativas da inclusão, que
legislam um controle corretivo
sobre os corpos e os processos
de produzir conhecimento,
reduzem as singularidades e as
oportunidades de radicalmente
superarmos um modelo
escolar que já não aguenta
mais. É costurando esses os
teórico-losócos, de legislação,
das experiências e paradigmas
escolares que a trama desta
obra nos convida a duvidar, a
interrogar, a produzir diferença
e também esperança, nos
lembrando que a nossa história é
a nossa força.
PRISCILA TAMIS
psicóloga, professora universitária
e escritora.
A obra ‘Retratos da inclusão escolar: problematização de
um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault’ é leitura
obrigatória para compreender a relevância dos estudos
foucaultianos à educação. A problematização das produções
de saberes nas práticas educativas possibilita a análise do
desao da política inclusiva na atualidade. Por meio de casos
ccionais, a autora, instrumentaliza conceitos foucaultianos,
na leitura da racionalidade inclusiva, tangenciando-os a
pontos fundamentais de práticas escolares. Apesar do alerta
acerca da ação da biopolítica, a autora reitera a possibilidade
de construções de práticas inclusivas em diálogo com
a diferença, rompendo com as políticas de formatação
de corpos decientes, pela categorização deles, para
tomá-los como corpo-potência de experiências formativas
de singularização. Essa política armativa da vida deciente
é sem dúvida ponto central da obra. O escrito se faz espaço
para outras potentes reexões educativas, pela força em
que apresenta a diferença doscorpos-decientes na escola,
e o rigor teórico-metodológico para a compreensão da
biopolítica em Michel Foucault e das ações de resistência.
PROFA. DRA. VANESSA REGINA DE OLIVEIRA MARTINS
Universidade Federal de São Carlos
RETRATOS DA INCLUSÃO ESCOLAR:
A BIOPOLÍTICA EM UM CASO FICCIONAL
Bruna Carla de Carvalho Amaral
BRUNA CARLA DE CARVALHO AMARAL
RETRATOS DA INCLUSÃO ESCOLAR:
A BIOPOLÍTICA EM UM CASO FICCIONAL
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIASFFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Célia Maria Giacheti
Claudia Regina Mosca Giroto
Edvaldo Soares
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio 0396/2021, Processo 23038,005686/2021-36, Programa PROEX/CAPES
Imagem da capa: Imagem de Gerd Altmann por Pixabay (uso livre)
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Amaral, Bruna Carla de Carvalho.
A485r Retratos da inclusão escolar: a biopolítica em um caso ficcional / Bruna Carla de Carvalho
Amaral. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022.
125 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-294-9 (Digital)
ISBN 978-65-5954-293-2 (Impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-294-9
1. Michel Foucault, 1926-1984. 2. Inclusão escolar. 3. Biopolítica. I. Título.
CDD 371.9
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Agradecimentos
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosofia e Ciências UNESP Campus de Marília. Ao corpo técnico-
administrativo da Seção Técnica de Pós-Graduação da FFC. A todos os
educadores com os quais tive a honra de conviver e compartilhar essa
jornada.
[...] como ter a força de estar à altura de sua
própria fraqueza, ao invés de permanecer na
fraqueza de cultivar apenas a força?
Peterl Pelbart
Sumário
Prefácio | Pedro Angelo Pagni 11
Introdução 15
Biopolítica, Governamentalidade e Racismo de Estado Para Foucalt 25
PNEEPEI, Seus Reflexos nas Práticas de Inclusão Escolar e Alguns
Retraros Empírico-Ficcionais 45
Por uma Futura Arqueo-Genealogia da Educação Especial no Brasil:
Retratos da Constituição de um Campo 67
Escola Enquanto Dispositivo de Governo da Infância e o (Não) Lugar
dos Corpos Deficientes: Por Outro Paradigma de Inclusão Escolar 91
Considerações Finais 113
Referências 117
Sobre a autora 123
10
11
Prefácio
O livro Retratos da inclusão escolar: a biopolítica em um caso ficcional
de Bruna Carla de Carvalho Amaral analisa os efeitos do biopoder em uma
escola de educação infantil fictícia, no que se refere a implementação da
chamada educação inclusiva, inspirada em um caso real observado no
interior paulista. O paradoxo enunciado no livro é o do caráter excludente
dos dispositivos de inclusão adotados nesse caso escolar particular uma vez
que perduram na instituição o convívio de uma política educacional
inclusiva em curso desde 2008, que regulamenta o direito ao acesso das
pessoas com deficiência à escola regular, com práticas, tecnologias e saberes
da Educação Especial, que ainda se pautam num paradigma corretivo-
normativo, como as relativas à manutenção das classes especiais. Sem
dúvida, a particularidade do caso é paradigmática na medida em que o
dilema retratado pela autora da implementação das políticas de educação
inclusiva, sem ter o acúmulo de uma discussão acerca da inclusão e
somente os saberes e tecnologias da Educação Especial foi e continua
sendo um desafio para os professores da educação infantil e do ensino
fundamental em todo o país, enfrentado em várias localidades e de
inúmeras formas, sem que se pensasse num outro paradigma de educação
inclusiva. Nesse sentido, as discussões contidas no livro são de extrema
relevância e atualidade tanto para a elaboração desse outro paradigma
quanto para a formação dos professores na medida em que apresenta as
contradições inerentes aos dispositivos de poder de seu paradigma
corretivo-normativo.
A autora optou nesse sentido por analisar o problema enunciado e
apresentar as contribuições para esse outro paradigma de inclusão
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-294-9.p11-14
12
recorrendo ao projeto filosófico de Michel Foucault e de seus
contemporâneos. Este é outro aspecto inovador da discussão contida no
livro, pois, ainda que haja uma literatura razoável retratando o tema da
inclusão escolar sob essa ótica, o livro se reporta ao retrato de uma situação,
de uma casuística por assim dizer, trazendo para o terreno das práticas
escolares uma discussão ainda inédita. Esse julgamento se deve ao fato não
somente da didática retomada das categorias foucaultianas utilizadas para
a análise dos documentos oficiais que legitimam às políticas de inclusão
educacional no qual se apoiam essas práticas, nos dois primeiros capítulos
do livro, que auxiliam a situar o leitor nesse terreno, como também as
interpelações advindas nos capítulos subsequentes que problematizam um
caminho habitual adotado por muitos professores que, mesmo assumindo
retoricamente a inclusão, reiterarem práticas excludentes. Nesse sentido,
tais interpelações poderiam concorrer tanto para a formação de futuros
professores de educação infantil e ensino fundamental quanto para a
formação continuada de educadores, produzindo um campo de reflexão
sobre esses aspectos conflitivos que compreendem os dispositivos de
inclusão escolar e, quiçá, um debate sobre a criação de outro paradigma
para tal propósito.
Destaco, nos dois últimos capítulos, ainda, a promessa contida
numa futura arqueo-genealogia da Educação Especial no Brasil e da
construção desse outro paradigma de inclusão escolar, com os olhares
voltados para o que falam, expressam e sinalizam a presença dos corpos das
pessoas com deficiência na escola. Afinal, é a esse público que, embora não
exclusivamente, se voltam tanto o atendimento educacional especializado
do primeiro campo quanto as chamadas políticas de inclusão educacional.
Mais dos que contribuir para a formação de professores, as discussões
apresentadas nesses capítulos do livro evocam um programa de pesquisa
comum, isto é, desenvolvido por uma equipe de pesquisadores,
13
provenientes de diversos campos disciplinares e, sobretudo, com
sensibilidade suficiente para não desejar falar por esse outro, como insistia
o projeto filosófico foucaultiano, sob o risco de ultrapassar um limiar ético
da pesquisa e estético de um terreno que só pode ser construído a muitas
mãos. Nesse caso, um terreno que deveria ser repensado na medida em
que as pessoas com deficiência, seus pais e cuidadores, não deixam de ter
um conjunto de experiências significativos para a construção de qualquer
saber novo para esse campo ou política para a educação, não podendo ser
ignorado nem invisibilizado, como o tem sido com alguma frequência em
nosso país. Isso significaria também admiti-los como atores dos jogos de
biopoder local e não somente elementos , uma vez que suas diferenças
se explicitam em cada lance, conclamando à revisão de suas regras, ao
mesmo tempo que questionando os saberes especializados ou universais
para darem conta de sua decodificação, as tecnologias corretivas e as
práticas de sua exclusão. São desses questionamentos e da visibilidade
àquelas diferenças que um paradigma de inclusão por vir emergirá, não
pela dispensa aos saberes e tecnologias acumuladas pelas práticas escolares,
mas com a integração e o diálogo delas com outras formas de decodificação
da vida, advindas dos corpos dessas pessoas ditas desviantes, deficientes,
heterotópicas.
Essa parece ser uma hipótese desenhada pela autora deste livro, que
funciona com espécie de provocação aos seus leitores e de convocação para
que pesquisadores e especialistas se mobilizem para a construção desse
outro paradigma de inclusão escolar. Espero que, efetivamente, os seus
leitores se sintam provocados com as discussões do livro e os demais
mobilizados para construção desse paradigma de inclusão em germe.
Pedro Angelo Pagni
Docente do PPGE FFC-UNESP
14
15
Introdução
Os caminhos percorridos nos processos de ensino e aprendizagem
inscrevem marcas nos sujeitos que os transpassam. Foi o anseio por
explorar alguns desses registros que encorajou a pesquisa de mestrado,
agora desdobrada nessa obra, que procurou problematizar as práticas de
inclusão escolar a partir de um diálogo com a biopolítica. Esta pesquisa foi
fruto de inquietações vivenciadas durante minha trajetória docente. A
primeira delas, talvez o elemento disparador para os primeiros
questionamentos acerca da inclusão escolar, ocorreu em 2008 em um
período de contrato temporário, numa escola estadual, ministrando aulas
de História. Na ocasião, ao assumir por um curto período algumas salas
do ensino fundamental, encontrava-se matriculada na sétima série uma
aluna surda. Não era novidade a implantação da Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008),
portanto, a presença de um aluno surdo em sala de aula não era motivo de
estranhamento. Mas esta experiência me instigou a uma problematização
a respeito da formação de professores e da política de inclusão. Como se
daria a comunicação em sala de aula com esta estudante? A formação em
licenciatura não ofereceu requisitos para tanto e a escola não possuía
tradutor e intérprete em Libras nota-se que após doze anos a realidade
da formação docente e da oferta de intérpretes pouco avançou. A aluna
participava das aulas e “compreendia” seus professores através de leitura
labial e do auxílio de uma colega que, com a convivência, aprendera um
pouco de Libras. Essa experiência deixou uma marca e fui à busca por
16
respostas dos questionamentos gerados por ela, o que me levou a cursar
uma especialização em Educação Especial e Inclusiva. Para a obtenção
desse título, foi necessária a realização de estágio de observação em alguma
escola e esse caminho trilhado em busca de respostas a antigas questões
resultou em mais indagações.
Durante o primeiro semestre de 2017, acompanhei as atividades
desenvolvidas pelas profissionais do Atendimento Educacional
EspecializadoAEE, tive acesso ao Projeto Político Pedagógico da escola
e vivenciei diversos diálogos espontâneos com as profissionais, enquanto
circulava por seus espaços. No decorrer dos encontros, foi possível obter
um breve diagnóstico, principalmente a partir de conversas com as
coordenadoras pedagógicas e com as duas professoras do AEE, à época. Os
alunos, caracterizados como pertencentes ao Atendimento Educacional
Especializado, dividiam-se em dois grupos: inclusão e Classe Especial. O
primeiro frequentava as turmas regulares e contava com o apoio de uma
professora especialista, que auxiliava e acompanhava cada criança uma vez
por semana nas aulas e desenvolvia com elas atividades específicas na sala
de recursos num segundo encontro semanal, no contra turno. O segundo
grupo, geralmente composto por crianças com limitações físicas mais
severas, frequentava a Classe Especial, sob a responsabilidade da outra
profissional de AEE que, por sua vez, desenvolvia com elas atividades em
consonância, com as temáticas trabalhadas pela escola ao longo do ano.
O trabalho de observação permitiu acompanhar as atividades da
equipe de cuidadoras, os momentos de integração com as demais crianças,
o desenvolvimento das atividades pedagógicas, os encontros com os pais
na chegada e saída e o processo de alimentação das crianças. Dessa
experiência, originou-se uma rie de questionamentos que serviram de
disparadores iniciais na construção dessa pesquisa, tais como: Quais
17
lacunas ou signos existem na formação do professor regular e do
especialista em Educação Especial e em que eles implicam nas práticas
educacionais inclusivas? O que levou essa escola a construir um modelo
híbrido de inclusão? Quais as contribuições da PNEEPEI para os avanços
e entraves no estabelecimento das práticas de inclusão escolar no Brasil?
Tais questionamentos tornaram-se ainda mais latentes, após
contato com a literatura acerca da História da Educação Especial no Brasil.
O aparente descaso do aparelho gestor estatal com as individualidades dos
sujeitos e a forte presença do poder do saber médico na constituição e
organização da escola direcionaram o curso inicial da referida pesquisa. Por
estas razões, os debates sobre inclusão e biopolítica formaram o caminho
teórico escolhido para esta análise. O processo de inclusão parece ter
encontrado um meio termo nessa instituição que, mesmo com a
implantação da PNEEPEI de 2008, manteve um modelo que mescla a
inclusão escolar com a permanência de uma Classe Especial, que inclui
excluindo. Os profissionais das turmas regulares demonstravam
insegurança para o trabalho com os alunos chamados “de inclusão”. Essas
professoras, em sua maioria, pareciam não se sentirem aptas a atuarem em
turmas com alunos cuja conduta desviasse da norma. Seus diálogos
demonstravam certa apologia da medicalização, com destaque para a busca
por laudos e diagnósticos das crianças, com a presença de inferências sobre
o uso de fármacos, suas dosagens e seus efeitos. Foi possível perceber, em
muitas falas, a busca constante por um elemento externo que solucionasse
o problema de não saber como agir com determinados alunos, fosse ele
uma medicação, um laudo, ou um professor especialista. Buscamos
investigar, genealogicamente, como essa contradição foi construída e de
que modo ela é exposta pela presença desses corpos ingovernáveis na escola.
18
A PNEEPEI abriu as portas das escolas para todas as crianças,
garantiu o direito ao acesso, rompeu com certo paradigma da Educação
Especial, mas a prática parece não atingir os objetivos propostos pelo
documento. Quais relutâncias são evidenciadas pela manutenção de uma
Classe Especial, dentro de uma escola, na perspectiva da educação
inclusiva? De que modo a Educação Especial e a educação inclusiva
fundem-se, ao ponto de levarem o professor regular a não se sentir apto a
governar os corpos deficientes? Como analisar essas questões sob a ótica da
biopolítica e das lutas transversas desses corpos como novos focos de
resistência emergentes na escola durante o período observado?
Ao responder a essas questões, compreendemos as eventuais causas
da relutância em admitir a implementação de dispositivos de inclusão em
uma escola de Educação Infantil em 2018; problematizamos, sob a ótica
da biopolítica, de que forma as políticas públicas inclusivas, em especial a
PNEEPEI de 2008, se relacionam com o campo da Educação Especial e
quais características desse campo do saber podem apontar para as causas
da contradição assinalada. Para tanto, recorremos a alguns conceitos
fundamentais de Foucault como: biopolítica, neoliberalismo,
governamentalidade do povo e da população, dispositivo, racismo de
Estado e, a partir deles, problematizamos essa política e as práticas
escolares. Por fim, examinamos como se materializou essa tensão durante
a tentativa de transição entre Educação Especial e inclusão, em algumas
escolas, tendo como exemplo um caso ficcional na Educação Infantil, de
um município do interior do Estado de São Paulo. Para resguardar os
atores da escola com os quais convivemos, optamos por utilizar essa
experiência apenas como orientação inspiradora para a construção de um
relato literário, com o propósito de ilustrar uma situação ficcional, mas
com elementos que tangenciam a realidade.
19
O caso retratado apresenta um paradigma: uma escola com sistema
híbrido de ensino, que nos trouxe, como hipótese de pesquisa, que essas
relutâncias em implementar práticas inclusivas estivessem ligadas aos
saberes da Educação Especial, os quais buscamos analisar, a partir de certa
genealogia desse campo de saber. Pudemos perceber que ele não se
desprendeu de suas heranças eugênicas, conservando traços de um
paradigma científico, que busca pela correção e homogeneização dos
corpos. Reconhecemos que o resultado desse problema repercutiu na
escola, gerando tensões e questionamentos. Compreendemos que ele se
desdobrou em alguns focos de relutância organizada e de recusa às políticas
inclusivas, mas também, demonstrou-se oriundo da dificuldade intrínseca
ao processo e tempo necessários para mudança no paradigma da Educação
Especial. Ainda assim, também pudemos observar alguns sinais de
resistência a esse modelo de inclusão normalizador, assinalando possíveis
caminhos para que se rompa com essas práticas cristalizadas nos ambientes
escolares. Acreditamos ter contribuído na construção de novos paradigmas
que possam auxiliar na renovação do campo de Educação Especial, de
modo a favorecer o processo de inclusão.
Partimos da análise de documentos voltados para a educação
inclusiva, que foram contrapostos aos focos de possíveis relutâncias
encontradas na escola, no processo de estabelecimento da inclusão escolar.
Para isso, elegemos a Política Nacional para Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Para contrastá-la,
utilizamos de modo ficcional as lembranças subjetivas das vivências,
obtidas na experiência de estágio de observação em uma escola de
Educação Infantil em 2017, que nos serviu como elemento disparador para
a construção de um retrato ficcional, propondo ilustrar um caso
paradigmático a ser problematizado. Serviram-nos de inspiração para a
20
construção desse relato literário, tanto as experiências vivenciadas através
de diálogos com profissionais da escola e as observações, quanto os registros
pessoais dessa experiência, baseados no Projeto Político Pedagógico da
instituição, nos prontuários dos alunos da Classe Especial e do semanário
dessa turma. As singularidades, presentes no caso esboçado tiveram papel
de guia e de fio condutor na busca pelas lacunas geradoras do problema. A
partir da descontinuidade, observada no processo de inclusão emergida na
resistência dos corpos na escola, de-se buscar perceber o lugar dos
sujeitos nas relações de poder estabelecidas, naquele momento histórico
retratado.
Sob essa perspectiva, buscamos compreender as barreiras existentes
na Educação Especial, que atuam como freio no desenvolvimento do
processo de inclusão. Paradigmas cristalizados como a busca pelos limites
entre normal e anormal e a consequente patologização e tentativa de
correção, de tudo que foge à norma foram observados como alguns dos
elementos formadores dessas barreiras. A genealogia busca permitir a
construção de uma oposição, de modo que seus saberes sejam usados nas
lutas atuais, possibilitando novas conduções e respostas ao problema
estudado (REVEL, 2005). Desse modo, partimos do retrato proposto, o
caso ficcional da escola com o modelo paradigmático que construiu de
inclusão, observando-a enquanto fragmento singular da sociedade.
O método genealógico não pretende encontrar as origens das
questões anunciadas. Ele busca traçar uma trajetória que traga elementos
que permitam compreender melhor o presente, o problema ou momento
estudado. Para tanto, retomamos alguns momentos da Educação Especial
no Brasil na busca de compreender o cenário político em que esse campo
de estudos se forjou e buscamos observar as transformações que sofreu ao
longo do século XX. Os anseios da sociedade, dos grupos minoritários, dos
21
dominantes e as legislações caminham paralelamente, nunca em total
sintonia, de modo que um impulsiona o outro a modificar-se, dependendo
da relação de forças do momento. O recorte do caso literário que buscamos
observar apresentou talvez um instante em que a legislação procurou
avançar e expandir as práticas de inclusão - momento em que a segregação
cristalizada do deficiente, em suas mais diversas categorias, precisou dar
lugar à sua inserção plena nos espaços comuns escolares.
Nesse contexto, a PNEEPEI de 2008 rompeu com a
responsabilidade exclusiva do professor especialista, pelos alunos vistos
como anormais e estendeu a todos os educadores esse papel. Vimos, no
caso retratado, a resistência de muitos professores em assumir essa tarefa e
a persistência de pais e equipe escolar na manutenção de um modelo, que
legalmente deveria estar abolido uma década. Esse é o aspecto que se
evidenciou como um paradigma que, embora circunscrito a uma escolha,
espelha uma inquietação, dificuldades e desafios comuns a instituições
escolares reais, tanto dessa cidade e estado quanto, provavelmente, de todo
o país. Nesse sentido, tentamos corresponder, metodologicamente, a uma
perspectiva que postula, com o caso esboçado e com seu recorte
genealógico, certa problematização.
A história do pensamento se interessa, portanto, por objetos, regras de
ação ou modos de relação de si, na medida em que ela os problematiza:
ela se interroga sobre sua forma historicamente singular e sobre a
maneira pela qual eles apresentaram numa dada época um certo tipo
de resposta a um certo tipo de problema (REVEL, 2005, p. 70).
Revel (2005) afirma que a genealogia de Foucault pode ser
chamada de anticiência. Ela busca pela singularidade dos acontecimentos,
22
a partir da diversidade, do acaso, dos começos e dos acidentes. Pretende
ativar saberes locais, desqualificados e não legitimados a fim de
desassujeitar os sujeitos históricos. Procuramos, portanto, partir do olhar
para a escola hipotética e seu modelo de inclusão híbrido para investigar o
que a singularidade desse caso podia nos dizer. De que modo a resistência
a uma legislação federal por toda uma equipe escolar e pelos pais foi vista
com tamanha naturalidade e aceitação? Apreendemos com a observação
dessas condutas inúmeros traços da sociedade em que estão imersos esses
sujeitos. O olhar para o caso retratado buscou focá-lo como uma
fotografia, figura estática, contextualizada historicamente, com seus atores,
fundos e a composição e filtros escolhidos por quem a fotografou. Desse
modo, a análise contou com as subjetividades advindas das percepções
vivenciadas nesse contato com a escola. A experiência da observação, da
interação com as crianças e das trocas com a equipe despertaram
questionamentos, sentimentos e reflexões na pesquisadora que se fizeram
presentes no texto. Esses retratos, apesar de inspirados na realidade, foram
descritos agregados a traços de ficção e à subjetividade da memória.
Buscamos retratar o caso vivenciado na escola e problematizá-lo a
partir de algumas ferramentas disponibilizadas por Michel Foucault. Esse
caso paradigmático observado apresentava, em 2017, a coexistência de
estudantes caracterizados como “de inclusão” nas salas regulares e de
crianças matriculadas na Classe Especial. A escola contava, à época, com
uma educadora especialista, responsável pela Classe Especial muitos
anos, e com uma segunda profissional da mesma área, que acompanhava
os alunos do AEE nas salas regulares, onde realizava com eles atividades no
contra turno, na sala de recursos.
Cabe-nos destacar que esse trabalho pretendeu problematizar uma
experiência vivenciada, que serviu como disparadora de questionamentos
23
que o originaram. Essa situação o caso observado nesta ocasião se a
reunião de vários casos que ficcionalmente se aglutinam para dar uma
sensação de que, ao vermos o singular, estamos diante do comum. Isso
significa dizer que esse caso representa concomitantemente uma
particularidade e inúmeros cenários que nela possivelmente se igualam ou
assemelham-se por todo o território nacional, corroborando o que está
prescrito em um dos marcos das políticas inclusivas na educação brasileira,
a PNEEPEI de 2008, assim como a contrariando, isto é, se apresentando
como a instauração de um conflito.
Assim, apresentamos no primeiro capítulo intitulado “Biopolítica,
governamentalidade e racismo de Estado para Foucault, conceitos
fundamentais de Michel Foucault utilizados nessa dissertação, a fim de
possibilitar que todo leitor tenha pleno acesso às discussões que realizamos.
No capítulo PNEEPEI, seus reflexos nas práticas de inclusão escolar e
alguns retratos empírico-ficcionais”, selecionamos alguns pontos que
destacamos da PNEEPEI de 2008, por se aproximarem dos debates de
inclusão que abordamos, para tanto, fizemos uso de um relato empírico-
ficcional e, através da construção de cenas, procuramos salientar os pontos
de diálogo entre essa política educacional, as práticas escolares de inclusão
e o paradigma científico impregnado na Educação Especial que nelas ainda
se faz presente. no capítulo “Por uma futura arqueo-genealogia da
Educação Especial no Brasil: retratos da constituição de um campo”,
nosso objetivo foi ensaiar uma genealogia da Educação Especial no Brasil.
Nessa trajetória percebemos alguns saberes que se fizeram fortemente
presentes na constituição desse campo, dos quais ainda encontramos
traços, com destaque para o higienismo e a eugenia, que implicam em
práticas educacionais com viés corretivo e homogeneizante. Por fim, no
capítulo Escola enquanto dispositivo de governo da infância e o (não)
24
lugar dos corpos deficientes: por outro paradigma de inclusão escolar”,
defendemos o papel majoritário que a escola cumpre de dispositivo de
governo da inncia, com práticas subservientes à governamentalidade do
Estado que operam, através de uma inclusão normativa, a exclusão no
interior dos espaços escolares, mas que também presenciam sinais de
resistência por parte dos atores escolares que nos alertam para a
(bio)potência dos corpos deficientes, como um caminho para outro
paradigma de inclusão.
Como enunciado, utilizamos parte do arsenal teórico fornecido
por Michel Foucault como ferramentas para interpretação de nosso objeto.
Por essa razão, fez-se necessária a apresentação de alguns conceitos que nos
são importantes, dentro do campo de análise escolhido, que foram
utilizados no decorrer do texto. A fim de simplificar sua compreensão e
apoiar o entendimento de todo o trabalho, procuramos condensar sua
definição ao longo do primeiro capítulo, dialogando, por vezes, com o caso
proposto e com exemplos do momento político atual. Os saltos
cronológicos que se fizeram presentes, remontando a um período anterior
ao caso, são provenientes do aproveitamento dos exemplos utilizados pelo
referido autor na descrição desses conceitos.
25
Biopolítica, Governamentalidade e
Racismo de Estado para Foucault
A passagem do século XVIII para o XIX é marcada por uma
transformação no poder do Estado, a construção de um novo modo de
governo denominada de biopolítica. Essa nova forma de
governamentalidade consiste em agregar ao poder a regulação da
população, da vida enquanto espécie. Para tanto, faz-se uso de tecnologias
e saberes que buscam a longevidade e o fortalecimento da população, no
anseio por índices como: redução das taxas de morbidade, aumento da
expectativa de vida e da natalidade. “A biopolítica age como uma
tecnologia de poder que atua sobre esse novo objeto chamado população”
(REVEL, 2005, p. 27).
“Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder
soberano fora o direito de vida e de morte” (FOUCAULT, 1999, p. 127).
O poder soberano para ser validado requeria essa exaltação, essa exposição
pública da execução da vontade do rei. O soberano detinha o direito ao
confisco da vida de cada um de seus súditos e era sobre o corpo do
indivíduo que ele aplicava sua força e legitimava seu poder aos olhos de
todos, fosse através do martírio, da execução ou da indulgência,
permitindo-o viver. Esse direito de morte começa a se deslocar para um
poder que gere a vida de modo positivo, não a vida jurídica, mas a vida
biológica. “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar
viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte”
(FOUCAULT, 1999, p. 130, grifo do autor). Foucault afirma que o poder
26
sobre a vida desenvolve-se a partir do culo XVII em duas vias que não
são antagônicas, mas complementares: o poder sobre o corpo ao vel de
organismo que, através de um poder disciplinar, busca otimizar suas
competências e docilizá-lo, tendo como principal ferramenta as
instituições e uma anátomo-política do corpo; e a segunda via, organizada
por volta da metade do século XVIII, refere-se ao poder sobre os processos
biológicos da população, centrado no corpo-espécie a partir de
mecanismos e intervenções de regulação centralizados principalmente no
Estado, uma biopolítica da população (FOUCAULT, 2005; 1999). A
potência da morte que prevalecia no poder soberano vai sendo sobreposta
pela gestão dos corpos por meio das disciplinas nas escolas, fábricas,
conventos, exército e pela administração das populações, baseada em
saberes científicos como a medicina, a higiene pública, a demografia e a
estatística.
O corpo-organismo deve ser docilizado e condicionado a agir
conforme as orientações da ciência médica. Como vivenciado no cenário
atual de combate à pandemia do coronavírus, no qual o indivíduo ao
pretender afastar-se do vírus, proteger a si e à sua família, ele precisa seguir
as orientações de higiene, distanciamento social e proteção - com o uso de
máscaras, por exemplo. Agindo desse modo, o corpo-organismo protege o
corpo-espécie e a população que, acatando as orientações centralizadas do
Estado, tem a perspectiva de reduzir as taxas de disseminação do vírus e de
óbitos. Os números coletados pelos serviços de saúde de cada município
alimentam um banco de dados centralizado e por meio deles elaboram-se
gráficos e mapas que orientam quando enrijecer e quando relaxar as
medidas de distanciamento social.
A constituição desse biopoder foi fundamental para a organização
e o estabelecimento do capitalismo, as grandes demandas de produção e
27
consumo que ele produz, juntamente à necessidade de gestão minuciosa
dos recursos financeiros e dos mecanismos reguladores de seus fluxos, que
requerem novas e sofisticadas técnicas de controle para o envolvimento de
todos os indivíduos nesse aparelho. Essas demandas são possíveis com o
desenvolvimento de tecnologias capazes de docilizar os corpos, otimizar
seu desempenho e de regular as populações. A inclusão escolar, tanto dos
corpos deficientes quanto dos excluídos sociais, atua como um dispositivo
da biopolítica, pois, a instituição escolar permite que esses corpos sejam
estudados, disciplinados, docilizados e ajustados às exigências do mercado.
O governo, adequado de suas condutas, leva uma maior eficácia e
abrangência do poder da biopolítica da população.
“Com efeito, o biopoder define o verdadeiro objeto do poder
moderno, isto é, a vida, biologicamente considerada” (CASTRO, 2016, p.
309). Biopolítica e biopoder são conceitos que Foucault traz no último
capítulo de História da Sexualidade I em seus cursos no Collège de France
em 1976, 77 e 79
1
, associados aos estudos das modificações nas estruturas
de poder estatal, estabelecidas após a Revolução Francesa. Com o advento
do capitalismo comercial e a necessidade de regulação criteriosa de bens e
condutas, o modelo de governo soberano, centrado em suas vontades -
cujo poder fazia morrer e deixava viver - não eram suficientes. É nesse
momento que começa a se organizar o aparelho de estado administrativo,
a ciência de estado, fazendo uso de tecnologias e saberes e centralizando
dados sobre a população dando origem ao que Foucault chama de
sociedade disciplinar. Nela, se estabelece toda uma rede de tecnologias
físicas, de saberes, de sistematizações e, principalmente, de arquitetura, que
1
“Direito de morte e poder sobre a vida”. História da sexualidade I: a vontade de saber
(FOUCAULT, 1999); cursos respectivamente nas obras: Em defesa da sociedade (FOUCAULT,
2005), Segurança, território, população (FOCAULT, 2008b) e Nascimento da biopolítica
(FOUCAULT, 2008c).
28
caracterizam um estado de vigilância permanente, “uma arquitetura que
seria um operador para a transformação dos indivíduos (FOUCAULT,
1987, p. 197). Inspirado pelo Panoptico de Bentham
2
, Foucault analisa os
modelos arquitetônicos das instituições disciplinares como: presídios,
hospitais, manicômios, escolas e fábricas pelos quais a possibilidade
constante de se estar sendo vigiado. Essas instituições disciplinares, sob tal
modelo, instituem a sensação permanente de vigilância da população por
parte de agentes de estado, de figuras-chave como o médico, o professor, o
padre, a polícia os pais e a própria comunidade.
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O
princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro,
uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face
interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção; elas m duas janelas, uma
para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que para
o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então
colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um
perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as
pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos
pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente
individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico
organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer
imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou
antes, de suas três funçõestrancar, privar de luz e esconder se
conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar
de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A
visibilidade é
uma armadilha. (FOUCAULT, 1987, p. 223-224).
2
Jeremy Bentham, Panopticon. Foucault traz a descrição do panóptico primeiramente no capítulo
III “O panoptismo” de Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1987) e ele é retomado no capítulo XIV “O
olho do poder” em Microfísica do Poder (FOUCAULT, 2008a).
29
A ideia da constante vigilância do olhar do outro permitiu a
construção de saberes por meio da observação dos indivíduos no interior
dessas instituições. Por esse conceito, aferia-se se os sujeitos estavam ou não
agindo de acordo com a norma e sua conduta era disciplinada, por meio
da punição ou da recompensa. A partir de meados do culo XVIII,
principalmente após o avanço das tecnologias de morte em massa nas
guerras, essa estrutura de controle é aprimorada e voltada para o controle
da vida em seu sentido biologizante, fisiológico, não mais em seu sentido
legal ou abstrato. O poder passa a ser minuciosamente exercido sobre o
corpo individual, e isso é o que Foucault chama de disciplinas, de
anátomo-política do corpo, que compõem o exercício amplo do Estado de
gerir o corpo vital: a população, denominado de biopolítica. Podemos
verificar na atualidade, que meses após a instalação da crise sanitária
mundial do coronavírus, recebemos com normalidade controles
minuciosos e, por vezes, invasivos sobre os corpos, medição de temperatura
na entrada de estabelecimentos, testagens obrigatórias antes de
determinadas atividades, uso disseminado de máscaras, controle de
circulação e de aglomerações a partir de dispositivos de localização em
aparelhos celulares. Nesse estágio avançado de governamentalidade, a
gestão da vida ocupa lugar de destaque, o objeto do poder do Estado volta-
se para a vida, no biopoder o objetivo do poder passa a ser “fazer viver e
deixar morrer” (FOUCAULT, 1999). Para tanto, faz-se uso de inúmeras
tecnologias que maximizam a saúde, o tempo de vida, de produção e de
consumo, por parte da população.
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente
pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.
Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu
30
a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A
medicina é uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2008a, p. 80).
A inserção dos corpos deficientes nos espaços comuns escolares,
decorrente das políticas de democratização dos últimos 20 anos,
aprimorou os saberes sobre seus modos de vida, potências e limitações, pois
inseriu-os nesses espaços que permitiram constante observação e vigilância
tornando-os incluídos nas redes de governamentalidade do Estado e nos
processos de produção e consumo, aproximando-os da normalidade
através da correção.
Governamentalidade
A sociedade moderna está estruturada num modelo cujo Estado
ocupa papel central no governo das condutas da população e dos
indivíduos. Podemos chamar essa estrutura de medicalizada, pois baseia-se
nos preceitos de medicina social através dos quais o estado moderno se
organizou, no momento em que percebeu a necessidade de gerir as
mercadorias, os lucros, a mão de obra e os consumidores. Essa necessidade
surgiu na organização da sociedade capitalista a partir do nascimento do
mercantilismo comercial enquanto base para o Estado Administrativo.
Em sua aula de de fevereiro de 1978, no curso Segurança,
Território, População, Michel Foucault (2008b, p. 277) abordou sua
investigação sobre a governamentalidade enquanto meio de solucionar o
problema de gerir a população. A questão do governo aparece no culo
XVI voltada a diversas questões: governo de si mesmo, governos das almas
e das condutas, governo das crianças, governo dos Estados pelos príncipes.
31
“Como se governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor
governante possível, etc.” (FOUCAULT, 2008a, p. 277-278). O século
XVI passava por dois grandes processos que justificavam a eclosão desses
problemas: a superação da sociedade feudal e organização dos Estados
Administrativos; e a Reforma Protestante, seguida da Contra Reforma
Católica. O primeiro, processo de concentração de poder político estatal e
o segundo, processo de dispersão do pensamento religioso e dos preceitos
de condução à salvação das almas. A teoria da arte de governar esteve
intimamente ligada à organização do aparelho administrativo durante a
construção dos Estados territoriais modernos. Essa técnica constrói-se a
partir da ciência do Estado formulando a Razão de Estado
3
. Portanto, a
arte de governar deve seguir a racionalidade no que tange as regras próprias
estatais.
Arte de governar busca responder a uma questão central: como
gerir adequadamente os indivíduos, bens e riquezas no interior da família?
Como introduzir nela esse modelo de gestão ao nível do Estado?
(FOUCAULT, 2008a, p. 281). Fez-se necessário organizar os mais
diversos mecanismos de gestão para permitir o controle de cada indivíduo
e dos comportamentos coletivos, estabelecer meios de vigilância tão
eficazes quanto os de um pai sobre seus filhos. A princípio a família era
vista enquanto modelo de núcleo de organização onde se pode exercer uma
gestão minuciosa dos indivíduos. Com o surgimento da problemática da
população a família torna-se um segmento interno e privilegiado da
população, um instrumento capaz de atingir o governo da população. É a
partir do culo XVIII que a família toma essa dimensão instrumental
fundamental na arte de governar a população, enquanto alvo de
3
Referimo-nos aqui ao uso que M. Foucault faz do termo Razão de Estado, trata-se de uma
racionalidade própria da governamentalidade do Estado.
32
campanhas contra a mortalidade, relativas à vacinação ou reguladoras dos
casamentos (FOUCAULT, 2008a, p. 289). Na arte de governo, a
população ocupa um papel de destaque, pois é, ao mesmo tempo, fim e
instrumento, sujeito de necessidades e objeto nas mãos do governo e geri-
la adequadamente requer minúcia. Para alcançar a profundidade de gestão
pretendida na arte de governar, a disciplina é uma peça essencial e os
instrumentos para obtê-la são os dispositivos de segurança. Nesse cenário,
destaca-se o papel da escola enquanto instituição capaz de disciplinar os
corpos e de disseminar saberes para o interior das famílias, atuando como
um dispositivo da biopolítica.
Desde o século XVIII vivemos num Estado que Foucault chama
de governamentalizado e foi esse fenômeno que permitiu sua
sobrevivência, através do aprimoramento de suas táticas. Assim, ele pode
determinar o que lhe cabe ou não, o que é público e o que é privado,
interior ou exterior a si (FOUCAULT, 2008a, p. 292). Contudo a
construção da razão do Estado não implica na superação das antigas regras
da soberania, mas atua como uma nova matriz de racionalidade (REVEL,
2005, p. 54).
A governamentalidade moderna coloca pela primeira vez o problema da
“população”, isto é, não a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de
sujeitos de direito ou a categoria geral da “espécie humana”, mas o objeto
construído pela gestão política global da vida dos indivíduos (biopolítica). Essa
biopolítica não implica, entretanto, não somente uma gestão da população,
mas um controle das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter
em relação a eles mesmos e uns em relação aos outros (REVEL, 2005, p. 55,
grifo do autor).
33
Por fim, podemos simplificadamente, afirmar que
governamentalidade é o conjunto de instituições, procedimentos, análises,
reflexões, cálculos e táticas que permitem ao Estado exercer essa forma
minuciosa, capilar e complexa de poder, que tem por alvo a população e
por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança
(FOUCAULT, 2008a, p. 291).
Populão
Quando enunciamos o surgimento do problema da população,
numa análise que faz uso de parte da trajetória conceitual de Foucault,
torna-se fundamental aprofundar seus significados. Enquanto novo objeto
principal sobre o qual o poder estatal se exerce, Revel afirma que:
A população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que
apresentam traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria
vida é suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão
da força de trabalho (REVEL, 2005, p. 27).
No entanto, seu conceito pode ser estendido a outros campos:
particularmente para, Foucault, interessa o binômio população-povo. Na
aula de 18 de janeiro de 1978, ele distingue população de povo
(FOUCAULT, 2008b, p. 56-58). O grupo de indivíduos cujos
comportamentos são os esperados pela gestão constituem a população.
Seus membros são, ao mesmo tempo, objeto sobre os quais os mecanismos
de poder são dirigidos e sujeitos que operam de modo pertinente. o povo
é composto por aqueles grupos que agem como se não pertencessem
34
realmente à população, suas reações não condizem com o esperado na
relação sujeito-objeto e, muitas vezes, elas suscitam revoltas, desajustando
o sistema. A população é o objetivo final de governo e todos os indivíduos
que a compõem devem comportar-se como membros desse conjunto que
se pretende administrar da melhor forma possível.
Por sua vez, o povo é constituído pelos indivíduos que deveriam
pertencer ao conjunto da população, mas colocam-se às margens do
sistema, recusam-se a ser população por seus atos desviantes, tornam-se
estrangeiros dentro de seu próprio país, resistindo à regulação. A
descoberta da população traz consigo ciências para operar sua regulação,
enquanto corpo coletivo e ocorre quando se descobre o indivíduo e o corpo
adestrável sobre o qual é possível minuciosamente exercer o biopoder
(FOUCAULT, 2006, p. 193). Assim, a busca pela inclusão dos corpos
deficientes nos espaços escolares, sociais e no mundo do trabalho
promovem meios para que esses sujeitos excluídos e/ou marginalizados
povo
4
passem a pertencer a população, garantindo-lhes direitos, alguma
segurança e participação, contanto que se sujeitem a serem enquadrados
na norma, submetendo-se à correção, talvez abrindo mão, para tanto, de
seus modos de existência.
Segundo Foucault (2008a) instituiu-se no período, da passagem do
século XVIII ao XIX, a noção de uma regra natural: a norma. Diferente da
sociedade medieval, jurídica, cuja regra era entendida como a aplicação da
vontade soberana; a regra disciplinar embasa-se em um arsenal teórico que
se afasta do domínio do direito e aproxima-se das ciências humanas e tem
como respaldo um saber clínico (REVEL, 2005, p. 65; FOUCAULT,
4
Pode-se utilizar também aqui, e talvez de modo mais apropriado, o conceito de multidão. Ver
Multidão: Guerra e Democracia na era do Império (HARDT; NEGRI, 2005).
35
2008a, p. 189). Pode-se dizer que de um modelo jurídico de sociedade
passou-se a ter, nesse período, um modelo médico, cujos saberes são
fundamentais para o exercício do biopoder através do estabelecimento da
normalização.
Norma
O estabelecimento de um aparelho de medicalização coletiva que gere
as “populações” por meio da instituição de mecanismos de
administração médica, de controle da saúde, da demografia, da higiene
ou da alimentação, permite aplicar à sociedade toda uma distinção
permanente entre o normal e o patológico e impor um sistema de
normalização dos comportamentos e das existências, dos trabalhos e
dos afetos (REVEL, 2005, p. 65, grifo do autor).
A gestão da vida nessa nova governamentalidade conta com um
aparelho apoiado na normalização. Por meio da medicina social, é possível
aplicar os biopoderes na existência dos indivíduos, ela enquanto ciência,
através da norma, define os padrões, as médias, a linha que diferencia o
normal do anormal em um sistema em que se busca mais a correção que a
punição, se comparado ao sistema jurídico da soberania, cuja distinção
ficava no campo do legal e do ilegal (REVEL, 2005, p. 66). Percebe-se,
com Foucault, que o poder no estado moderno é exercido no campo da
norma de modo tão capilarizado, que é tido como natural e torna-se capaz
de definir individualidades - podemos chamar esses corpos sociais de
sociedades de normalização. A norma tem por objetivo conduzir os
indivíduos aos padrões, homogeneizar; tudo que lhe é externo é visto como
anormal. Como ferramenta ela permanentemente classifica e hierarquiza
36
os indivíduos sendo a medicina seu principal aparato teórico. “O conceito
de normalização refere-se a esse processo de regulação da vida dos
indivíduos e das populações (CASTRO, 2016, p. 309). O poder é
exercido sobre o corpo pelo próprio indivíduo, pela família, pela mídia das
mais diversas formas, na medida em que essa sociedade medicalizada e
normalizadora traça as regras a serem seguidas, alcançadas ou almejadas. O
indivíduo, na busca por ser aceito, por fazer parte, deseja seguir a norma e
é cobrado para tomar sobre sua vida e sobre seu corpo as decisões mais
acertadas no campo da saúde, da higiene, do sexo ou da segurança.
Nas escolas, os estudantes que hoje têm acesso ao ensino regular
graças às políticas de inclusão, em regra não fogem desse modelo. Essa foi
uma das questões que nos intrigou na experiência anteriormente relatada,
no caso observado, que provocou esta pesquisa. Não obstante estarmos,
em termos político-educacionais, sendo regidos por Plano Nacional de
Educação Especial, deliberadamente numa Perspectiva da Educação
Inclusiva, publicado em 2008, a pergunta que fazia era: por que essa escola,
sua direção, professores, pais e especialistas, relutavam em implementar
práticas que não fossem aquelas ainda marcadas pela distribuição das
crianças com necessidades educacionais especiais em Classe Especial,
segregando-as parcialmente da convivência com os demais alunos e pelo
apoio a certa normalização, procedimentos de exame diagnóstico e
acompanhamento diferenciado, dentro das normas médicas?
Para responder a essa questão me parece ser necessário enfocar três
dimensões importantes. A primeira delas relacionadas à forma como a ótica
das políticas inclusivas se materializou em documentos, como a Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva,
publicada em 2008, que passou a regulamentar a obrigatoriedade da
37
matrícula e das práticas das pessoas com deficiência nas escolas.
5
A
segunda, relativa ao desenvolvimento desses saberes no Brasil e as práticas
que mesmo se designando inclusivas, apoiou-se num paradigma médico-
científico que aspirou corrigir o desvio, aproximando-o o máximo possível
da norma, com intuito de normalizar para incluir, mesmo reconhecendo,
por vezes, o seu princípio segregador. A terceira, relacionada à circulação
dessas práticas num modelo de escola, ainda marcada pela
homogeneização, disciplinarização e normalização, criando um dispositivo
de inclusão numa instituição excludente, voltada mais ao poder disciplinar,
à capacitação e à comunicação, antes do que a vida comum e a relação com
as diferenças. São esses três aspectos que iremos explorar nos capítulos
subsequentes, pois, de um modo geral, a nossa hipótese era a de que, os
saberes e técnicas dos médicos, terapeutas e professores ou mesmo uso de
fármacos ocorrem constantemente sob a influência de poderes que buscam
a regulação dos corpos e condutas para que se aproximem da normalidade
e componham um grupo o mais homogêneo que forem capazes. Quanto
mais próximas desse modelo de agrupamento dócil e uniforme as
populações forem, mais facilmente elas podem ser governadas e quanto
maior o número de indivíduos incluídos no âmbito regulável da
população, mais eficaz se torna a governamentalidade neoliberal.
Não obstante sua presença no neoliberalismo, ela nos remete
genealogicamente a um efeito do que se denominou do vocábulo
5
Embora essa pesquisa detenha-se a um período anterior, cabe-nos destacar que desde setembro de
2020 encontra-se em vigor nova Política Nacional de Educação Especial, cujo texto é considerado
por muitos especialistas, e por esta pesquisa, um retrocesso se comparado a PNEEPEI de 2008. O
Decreto nº 10.502 que Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com
Aprendizado ao Longo da Vida reverte as iniciativas mais recentes que almejavam uma inclusão total,
o documento autoriza a existência de classes e escolas especializadas. E sua publicação fomenta o
debate entre especialistas e reações do corpo social que demonstram não haver consenso por parte
de pais, professores e pesquisadores acerca da oferta dessas modalidades de ensino (BRASIL, 2020).
38
foucaultiano de racismo de Estado”, com destaque particular para a
racionalidade que o constitui, no âmbito da biopolítica da população. Se,
por um lado, essa forma de racionalidade governamental se encontra,
genealogicamente, na base da governamentalidade neoliberal, por outro, o
desdobramento da anátomo-política do corpo tem seu apoio na
medicalização, como veremos a seguir. Esses dois polos sustentam a
hipótese de nossa dissertação.
Racismo de Estado
Uma consequência do desenvolvimento do biopoder foi a
crescente importância do papel da norma e uma ferramenta essencial a ser
regulada por essa tecnologia é o sexo. Tanto no que diz respeito ao
desenvolvimento das disciplinas do corpo, quanto à regulação da
população, governar o sexo é um mecanismo central na gestão da vida nos
limites do corpo e da espécie. Normalizar o sexo atua na gestão das
descendências, regula a saúde coletiva, o corpo da mulher, a saúde dos
filhos, a família, operando no direcionamento do modelo biológico que se
deseja de sociedade (FOUCAULT, 1999).
Na organização do corpo social moderno, o dispositivo da
sexualidade torna-se fundamental na medida em que consegue agir tanto
no controle dos corpos, quanto na regulação das populações,
principalmente estabelecendo normas para casamentos, para a constituição
de famílias, de vigor e aperfeiçoamento da espécie, de controle da saúde
coletiva, da virilidade do corpo social, de melhoria da raça. Nesse cenário,
estabelecem-se os primeiros eugenistas e, junto a eles, ideias de
aperfeiçoamento da espécie baseadas na boa gestão do sexo. Nesse sentido,
“o corpo das mulheres, a vida das crianças, e as relações familiares e toda
39
uma ampla rede de relações sociais foram sexualizadas” (FOUCAULT,
1999, p. 141). O controle da sexualidade, para Foucault, atua como um
dispositivo de governamentalidade da população; através da regulação dos
casamentos, do sexo, da procriação, das medidas de higiene dos corpos,
busca-se melhorar a espécie, selecionar os indivíduos e aprimorar a
população que está por vir. Em suas análises das relações de poder, ele
percebe um anseio recorrente por justificar as dominações, a princípio
através de narrativas históricas e mitos de origem, posteriormente buscou-
se na ciência a validação da superioridade de um grupo sobre outro. Esse
jogo incessante de dominação e submissão sancionado provoca uma
divisão binária da sociedade e dos homens “os injustos e os justos, os
senhores e aqueles que lhe são submissos, os ricos e os pobres” a isso se
pode chamar de guerra ou luta de raças (FOUCAULT, 2005, p. 86). A
partir da segunda metade do século XIX destaca-se o uso da ciência - da
biologia e do evolucionismo - na tentativa de atestar a superioridade de
uma raça sobre a outra e de justificar a defesa da busca pela pureza da raça,
“quando o tema da pureza da raça toma o lugar da luta das raças, eu acho
que nasce o racismo”. A transformação sofrida por esse discurso atua na
conservação da soberania do poder do Estado, antes assegurado por “rituais
mágico-jurídicos” e agora por “técnicas médico-normalizadoras”
(FOUCAULT, 2005, p. 95-96).
O Estado tornar-se-ia dessa forma responsável pela proteção
biológica da raça, pela manutenção de sua superioridade, pelo seu
melhoramento, pela higiene da sociedade, é o chamado racismo de Estado
ou racismo biológico. Esse dispositivo tornou-se importante ao longo do
século XX na garantia da governamentalidade do Estado, através dele
justificaram-se guerras, marginalizações, segregações e o próprio biopoder.
Esse racismo de Estado hierarquiza as raças, define quais merecem viver e
40
quais devem morrer; aniquilar a raça inferior. O degenerado, o anormal
fazem parte de um mecanismo de fortalecimento da raça superior,
tornando-a mais saudável e mais pura (FOUCAULT, 2005).
Historicamente, a passagem do século XIX para o XX foi marcada
pelo cientificismo e pelo fortalecimento de movimentos eugênicos por
todo o ocidente. Para Negri (2007), a eugenia está presente por toda a
história do ocidente, tendo como apoio a ciência. Ela atuou justificando as
diversas relações de poder, legitimando os racismos e atuando como um
dispositivo do biopoder. “A eugenia deve impedir fundamentalmente que
a posição ordinária do poder seja colocada em discussão” (NEGRI, 2007,
p. 114). Através dela, o poder encontra respaldo em uma regressão
temporal infinita, que justifica as relações de dominação no presente. O
dispositivo eugenia amparou os genocídios da era dos colonialismos, as
guerras e extermínios do século XX, a segregação dos anormais e evidencia-
se nos dias atuais - a partir dos avanços na ciência e suas novas tecnologias
por meio da engenharia genética. Desse modo, o poder sobre a vida
atinge um refinamento excepcional, modificando corpos e manipulando-
os de modo a adequarem-se à norma, à ordem eugênica, ao controle do
poder, numa tentativa de dissolver o biopolítico em biológico (NEGRI,
2007).
Quando as políticas inclusivas estimulam modelos ambíguos que
promovem a exclusão de alguns indivíduos, justificada em suas
incapacidades inatas, apoiadas nas ineficiências de seu corpo biológico e
justificadas por paradigmas científicos, que comparam e hierarquizam
indivíduos - como demonstraremos subsequentemente - essas políticas
colocam em prática uma espécie de racismo de Estado, que reafirma a
inferioridade do sujeito classificado como anormal legitimando privilégios
e investimentos nos grupos mais promissores. Observamos hoje, muitas
41
vezes, o quanto esse princípio é devedor de preceitos eugênicos, travestidos
sob o verniz da meritocracia, que busca justificar resultados e desempenhos
de grupos sociais privilegiados através de esforços individuais. De outro
lado, oculta desses processos, uma série de obstáculos que outros grupos
marginalizados por vezes necessitam transpor antes de atingirem condições
competitivas de igualdade.
Medicalização
A sociedade, normalizada, organiza-se a partir do saber médico
definindo constantemente o que é normal do que é patológico. “O termo
‘medicalização’ faz referência a esse processo que se caracteriza pela função
política da medicina e pela extensão indefinida e sem limites da
intervenção do saber dico” (CASTRO, 2016, p. 299, grifo do autor).
Segundo Foucault, as necessidades de se atingir uma gestão mais
aperfeiçoada da população, motivadas pelo capitalismo, levaram à
passagem de uma medicina privadacaracterística do mundo medieval
para uma medicina coletiva, voltada tanto para o corpo individual quanto
para o corpo social (FOUCAULT, 2008a). O capitalismo socializou o
corpo enquanto objeto por ter em si a força de trabalho e de produção.
Países como Alemanha, França e Inglaterra desenvolveram entre os séculos
XVIII e XIX suas medicinas sociais de acordo com os processos históricos
que vivenciavam, atreladas ao desenvolvimento da ciência do Estado.
Como ferramenta de aplicação desse poder, desenvolveu-se a polícia
médica, um completo sistema de observação da morbidade através do
levantamento de dados de epidemias e endemias, de modo centralizado e
controlado pelo Estado, que também passa a controlar a prática do saber
42
médico, seus programas de ensino, emissão de diplomas, bem como a
própria atividade dos médicos. “A medicina e o médico são, portanto, o
primeiro objeto da normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao
doente, se começa por aplicá-la ao médico. O médico foi o primeiro
indivíduo normalizado na Alemanha(FOUCAULT, 2008a, p. 83).
Outra tecnologia desenvolvida pela medicina social foi a higiene
pública, responsável por analisar e gerir o meio e seus efeitos sobre os
organismos, forjando a noção de salubridade. A urbanização da
modernidade trouxe a necessidade de maior cuidado com os espaços por
promover diversas zonas de aglomeração como as fábricas e áreas propícias
à proliferação de infecções como cemitérios e esgotos (FOUCAULT,
2008a). A higiene pública era o campo da medicina responsável por ditar
as normas quanto a melhor localização desses espaços de risco e os padrões
adequados para a construção de edifícios, de modo que fossem o mais
salubre possível. Na medida em que a medicina preventiva torna-se regra
para população e, muitas vezes, ela é imposta de modo autoritário com
medidas de controle. O papel da higiene ganha destaque com o objetivo
de reduzir epidemias, baixar taxas de mortalidade e aumentar a duração
média da vida da população. Em decorrência desse processo, os médicos
adquirem cada vez mais espaços administrativos, ganhando maior voz na
sociedade. Passam a ser abundantemente consultados por prescrições sobre
saúde, comportamento, alimentação, sexualidade, maneira de vestir,
habitat. Esse excesso de poder leva à crescente presença do dico nas
academias
e sociedades científicas, enquanto conselheiros, representantes
de poder e peritos. O Estado, de modo centralizado, gerenciava através da
medicina e de práticas de vigilância os espaços públicos, os privados e as
condutas dos corpos.
43
Os indivíduos passaram a ter suas vidas esquadrinhadas; na busca
por garantir a prevenção de doenças, a manutenção da saúde e a
longevidade da população; o Estado concentrava cada vez mais
informações sobre os grupos sujeitados ao mesmo tempo em que
determinava as normas de condutas e fiscalizava sua aplicação. Esse
gerenciamento minucioso da população, na busca por garantir a obtenção
do melhor desempenho possível dos indivíduos, tinha como peça chave o
papel da família. Sua estrutura, além de permitir um sistema privilegiado
de vigilância de seus membros, também possuía o controle sobre as
crianças, indivíduos de fundamental importância na construção do futuro
da população.
Percebe-se que, para o bom gerenciamento da infância, pelo qual
argumentaremos, tem destaque a medicalização nesta etapa da vida, a fim
de garantir sua sobrevivência até a idade adulta, seu bom desenvolvimento
e saúde. Os principais agentes da medicalização da infância constituíam-se
na família, que passa a receber novos deveres e cuidados do Estado a serem
observados quanto à higiene das crianças, limpeza, amamentação,
vestuário, práticas de atividades físicas. Esse aspecto fomenta no culo
XIX uma vasta literatura voltada para as classes populares com o objetivo
de coordenar esse empreendimento (FOUCAULT, 2008a).
Enquanto sociedade de normalização medicalizada temos, no
presente, de modo ainda mais refinado, o saber médico na qualidade de
principal gestor de condutas e a infância como objeto crucial da
governamentalidade do Estado. Escola e família são as instituições
responsáveis por garantir que as crianças se ajustem à norma estabelecida.
A escola atua nos corpos infantis enquanto dispositivo disciplinar, o que
lhe confere atribuição fundamental dentro da organização da biopolítica
da população. Por essa razão, escolhemos essa matriz teórica para analisar
44
as práticas de inclusão disparadas pelo caso da escola, em tela nesta
pesquisa, uma vez que este caso pode nos auxiliar a compreender os
paradoxos desses dispositivos na educação infantil. Afinal, é como uma
espécie de governo da infância, com vistas a formar o cidadão adulto,
governado e autogovernado se possível, que a escola atua, mobilizando as
artes pedagógicas e outras tecnologias de si que, para além de disciplinar,
normalizam e, quanto aos anormais, tentam corrigir seus desvios
realinhando-os em direção ao mais próximo possível do normal.
Nesse caso, como veremos, muitas posturas por parte dos atores da
equipe escolar, que nos serviu de inspiração para esta dissertação, podem
ser compreendidas como reflexos da consolidação dessa forma de correção
no senso comum social, assim como um modo mais radical de sua
configuração presente marcada pela medicalização, antecedida por um
diagnóstico médico. Além disso, o aperfeiçoamento da
governamentalidade biopolítica gerencia essas tecnologias, as leis que
regulam e as políticas aplicadas ao ambiente escolar, determinantes no
desenho do quadro desse caso como objeto de nossa problematização.
45
PNEEPEI, Seus Reflexos nas Práticas de Inclusão
Escolar e Alguns Retratos Empírico-Ficcionais
A promulgação da PNEEPEI em 2008 marcou uma tentativa de
regulamentar práticas de inclusão escolar no Brasil, seguindo os moldes
dos debates mundiais mais recentes acerca da democratização da educação.
Este capítulo pretende analisar a Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva da Educação Inclusiva, conforme enunciado na introdução,
contrastando-a com os relatos do caso literário indicado anteriormente e
sob o olhar da biopolítica. Tal escolha deveu-se ao fato desse documento
representar um marco regulador das demais políticas nessa área e de sua
busca por nortear e reger a construção de um modelo de escola inclusiva
no Brasil. Essa opção também se justifica pelo período em que ocorreu a
experiência retratada ficcionalmente, nove anos após sua publicação.
Pretendemos observar quais as implicações que sua promulgação trouxe ou
deveriam ter gerado nas práticas escolares ilustradas. Para contrastá-las
utilizamos notas pessoais e memórias das vivências obtidas na experiência
de estágio em 2017, enunciada anteriormente, que foram retratadas de
modo ficcional. Essa vivência foi o elemento disparador dessa dissertação
e nos inspirou na construção do caso paradigmático, que se
problematizado.
46
Transversalidade
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da
Educação Inclusiva foi publicada em 2008 num contexto de intensos
debates e produções internacionais acerca da inclusão, o Brasil tentou
acompanhar esse movimento. Ela pretendia traçar diretrizes para a
construção de um sistema educacional que viabilizasse práticas escolares
inclusivas e que valorizasse a diferença e garantisse o acesso irrestrito à
educação por toda a população, independentemente de suas
particularidades físicas, sociais, étnicas ou de gênero. O Brasil vinha
seguindo, a exemplo de outros países e de convenções internacionais, um
caminho que almejava instituir a universalidade do acesso à educação na
perspectiva inclusiva. Os anos 2000 foram marcados por políticas públicas
na busca por esse ideal. O próprio documento publicado da PNEEPEI traz
uma breve síntese das principais características dos planos e leis que a
antecedem. Um ano antes da publicação dessa Política, o Plano de
Desenvolvimento da Educação: razões, princípios e programas de 2007, tinha
“como eixos a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, a
implantação de salas de recursos e a formação docente para o atendimento
educacional especializado” (BRASIL, 2008, p. 11) e apontava para a
importância de superar a oposição histórica existente entre Educação
Regular e Educação Especial.
47
Retrato ficcional 1
Propomos então, como retrato empírico-ficcional, a projeção do seguinte cenário: o ano
é 2018, o espaço uma escola de educação infantil tradicional e respeitada em seu município.
Essa escola, caracterizada como inclusiva, tem por hábito recepcionar inúmeros estagiários do
campo da Educação Especial, devido ao reconhecimento de seu trabalho e apresenta
simultaneamente estudantes incluídos em turmas regulares e matriculados em uma Classe
Especial. Em suas práticas internas de relações subjetivas de poder existe uma concentração de
responsabilidades, uma profissional especialista em Educação Especial forjou-se ao longo de
anos de trabalho como professora da referida classe nessa instituição enquanto referência
primeira dessa área. O restante do corpo docente a pergunta todo o tempo sobre condutas e
sugestões de ideais para desenvolver ações com seus estudantes e qualquer consulta relativa a
esse campo ou à inclusão é encaminhada a essa profissional. Mesmo sem possuir um cargo
específico que a intitule como responsável pela Educação Especial naquela escola, ela parece
possuir um posto simbólico de poder que evidencia uma organização paralela, um subsistema
interno de ensino sob sua tutela.
Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora.
Diante dessa cena, que aponta uma responsável específica para os
assuntos de Educação Especial, percebemos a nítida separação entre
Educação Especial e regular, como se dois sistemas coexistissem nesse lócus.
De uma escola inclusiva ideal, esperamos que respire diferença e que todos
os seus atores convivam com ela e estejam aptos a apresentá-la e a descrever
seu funcionamento a um visitante. No espaço narrado, as categorias são
distintas, as crianças público alvo da Educação Especial tem o direito ao
acesso, encontram acessibilidade arquitetônica, mobiliário adaptado,
cuidadoras, profissionais especializados, mas situam-se em meio a dois
sistemas educacionais funcionando paralelamente no mesmo espaço-
tempo.
Sob este aspecto é notável a contradição. A PNEEPEI “tem como
objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência [...]
48
orientando os sistemas de ensino para garantir [...] transversalidade da
modalidade de educação especial desde a educação infantil até a educação
superior [...]” (BRASIL, 2008, p. 14). Por sua vez, a prática que narramos
nessa cena apresenta um paradigma anterior aos debates sobre educação
inclusiva, que tomaram corpo após a Constituição de 1988, um paradigma
que distingue os aptos a receberem Educação Regular dos não aptos que
necessitam de correção, do uso de outros recursos, do intermédio de um
profissional especializado, de um outro sistema de ensino. Algo que pode
se justificar historicamente, mas que parece encarnar nas escolas um
paradoxo que refrata as próprias ambiguidades de um Plano Nacional de
Educação Especial que, não obstante a Perspectiva Inclusiva, reflete os
embates desse campo.
O modelo especializado orientou a Educação Especial no Brasil
desde meados do século XX quando a LDB
6
de 1961 (BRASIL, 1961)
introduziu o direito a educação dos deficientes, sempre que possível na sala
regular, desde que os indivíduos fossem capazes de acompanhar o
desenvolvimento do restante da turma, buscando a homogeneidade dos
sujeitos, excluindo o diferente, o inapto, o anormal para um espaço
apropriado onde se pretendia corrigi-lo e se possível, aproximá-lo da
média. “A educação de excepcionais, deve, no que for possível, enquadrar-
se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade”
(BRASIL, 1961, Art. 88). Esse modelo chamado integracionista trouxe
avanços ao paradigma que o antecedeu, segregativo, que excluía por
completo do ensino regular os corpos deficientes, pois eram vistos como
incapazes de aprender nesse espaço devido às suas características
intrínsecas, esse paradigma foi predominante desde o fim do Período
Imperial, nas primeiras experiências com educação dos deficientes no
6
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
49
Brasil. Porém, nesse avanço obtido s LDB de 1961, foram mantidas
certas formas de exclusão dentro dos muros da escola. O paradigma da
integração, que perdurou por toda a segunda metade do século XX na
descrição das políticas para Educação Especial, permanece ainda hoje com
seus resquícios em muitas práticas escolares, mesmo após a tentativa da
PNEEPEI de abolir esse modelo. Se, de um lado, aquele documento
garantiu o acesso às escolas regulares, de outro, como no caso narrado, os
sujeitos estão submetidos a um sistema à parte, que se integra à Educação
Regular em alguns momentos, mas possui um gerenciamento próprio.
Os efeitos da PNEEPEI numa escola de Educação infantil:
um caso paradigmático
Em seu texto de apresentação, a PNEEPEI aponta a existência de
dificuldades nos sistemas de ensino que evidenciam a necessidade de
enfrentamento às práticas discriminatórias. A formulação da educação
inclusiva ampara-se no paradigma proveniente dos direitos humanos pelo
qual diferença e igualdade são valores indissociáveis. O documento aponta
para o papel central da escola na superação da lógica da exclusão. Para a
construção de sistemas educacionais inclusivos, ele afirma a necessidade de
se repensar a existência das classes especiais e a necessidade da promoção
de uma mudança estrutural e cultural na escola (BRASIL, 2008, p. 5).
Por muito tempo perdurou o entendimento de que a educação especial
organizada de forma paralela à educação comum seria mais apropriada
para a aprendizagem dos alunos que apresentavam deficiência,
problemas de saúde, ou qualquer inadequação com relação à estrutura
organizada pelos sistemas de ensino. Essa concepção exerceu impacto
50
duradouro na história da educação especial, resultando em práticas que
enfatizavam os aspectos relacionados à deficiência, em contraposição à
dimensão pedagógica (BRASIL, 2008, p. 14).
Retomando o caso que pretendemos esboçar, destacamos nele a
remanescência de uma Classe Especial no interior de uma instituição
escolar, dez anos após a promulgação da PNEEPEI. Além disso, essa escola
que ilustramos, permitiu a matricula de estudantes Público Alvo da
Educação Especial em turmas regulares somente 8 anos após a
implementação dessa política. Desse modo, no espaço-tempo que
propomos, essa instituição oferecia simultaneamente a opção por
matrículas em turmas regulares, na categoria inclusão, assim como na
Classe Especial. Seus atores conduzem com naturalidade essa estrutura
anacrônica e híbrida, tanto pais quanto educadores não questionam seu
modo de organização e demonstram considerar adequada essa distinção.
Além disso, a existência dessa opção é reforçada pela postura dos pais que,
por vezes, procuram essa escola justamente no intuito de matricularem seus
filhos na referida classe. Ademais o principal critério que regulamenta a
definição do público da Classe Especial se faz pela vontade dos pais.
Nos chama atenção na PNEEPEI em seu capítulo Diagnóstico da
Educação Especial, alguns números que apontam a evolução da inclusão
formal a partir do censo escolar no intervalo de 1998 a 2006. Nesse
período podemos observar uma expressiva taxa de crescimento no número
de matrículas na Educação Especial na modalidade inclusão, pois 640%
ocorriam em escolas comuns e somente 28% dessas matrículas davam-se
em escolas ou classes especiais. O capítulo também demonstra que:
51
No âmbito da educação infantil, as matrículas concentram-se nas
escolas/classes especiais que registram 89.083 alunos, enquanto apenas
24.005 estão matriculados em turmas comuns, contrariando os estudos
nesta área que afirmam os benefícios da convivência e aprendizagem
entre crianças com e sem deficiência desde os primeiros anos de vida
para o seu desenvolvimento (BRASIL, 2008, p. 13).
Além disso, esse registro aponta a evolução das matrículas em
Educação Especial no âmbito dos municípios. Enquanto em 1996
somente 49,7% dos municípios registravam matrículas nessa modalidade
de ensino, em 2006 esse número atinge 89% dos municípios. Quanto às
escolas o censo demonstra que no período estudado houve um crescimento
de 730% no número de escolas que apresentavam matrículas de alunos na
Educação Especial. “Destas escolas com matrícula em 2006, 2.724 são
escolas especiais, 4.325 são escolas comuns com Classe Especial e 50.259
são escolas comuns com inclusão nas turmas de ensino regular” (BRASIL,
2008, p. 13).
Nosso caso ilustra uma experiência que aparenta, por sua vez,
repetir um comportamento que antecede a promulgação da PNEEPEI, ao
menos em escolas de educação infantil havia uma tendência em priorizar
as classes ou escolas especiais, ainda que houvesse um movimento oposto
nas demais instituições de ensino. Ademais, destaca-se que o
estabelecimento de ensino concebido não aderiu à educação inclusiva até
o ano de 2015. Talvez a existência da Classe Especial, a tradição dessa
instituição e o conservadorismo dos pais que a procuravam tenham
propiciado esse comportamento. Contudo, devemos nos atentar ao fato de
que essa conduta representativa não seria tão atípica para educação infantil.
Mesmo após a PNEEPEI em 2008 determinando as matrículas no ensino
regular, a estrutura dessa instituição manteve-se inalterada. Talvez os
52
atores, habituados a um sistema que a seu ver funcionava, além de satisfazer
aos anseios dos pais, decidiram por conservá-lo. Decerto a experiência da
docente responsável pela Classe Especial oferecesse confiança a toda equipe
para prorrogar esse modelo, ao mesmo tempo em que despertava
insegurança na implementação de mudanças. O legado dessa Classe
Especial, sua capacidade de absorver um público com maior grau de
comprometimento e a autoridade conferida à educadora responsável, em
razão de sua experiência, podem ter contribuído para a adoção dessa
postura.
Em 2015, quando ela passou a ofertar vagas para esse blico nas
turmas regulares, abrindo-se para a inclusão, não conseguiu desprender-se
de suas heranças oriundas do contexto de integração, no qual o processo
de ensino e aprendizagem buscava constituir ambientes homogêneos.
Somam-se a esse cenário da escola algumas lacunas deixadas no texto da
referida política, uma vez que não se encontram explicitas em sua redação
estratégias para a educação do público com alto comprometimento. Isso,
sem contar que, à proposta publicada com o PNEEPEI se contrapuseram
também parte dos pesquisadores e professores da Educação Especial, assim
como algumas comunidades, especialmente, de pais de pessoas com
deficiência, que viam certa radicalidade nessa forma de inclusão de seus
filhos em Escolas Regulares.
Tais movimentos de enfrentamento à proposta denominada por
eles de “inclusão radical” foram comuns em quase todo o país e buscavam
garantir aos pais a manutenção do direito de escolha por classes ou escolas
especiais. Somaram-se a esses grupos categorias interessadas em manter em
funcionamento instituições tradicionais particulares e/ou filantrópicas
especializadas no atendimento desse público. Parece ter havido e não ter se
encerrado, uma certa disputa territorial pelo público-alvo da Educação
53
Especial e pela manutenção da autoridade adquirida por esse campo ao
longo da história
7
. Como podemos observar no debate abaixo que aponta
a existência de uma crise em torno da Educação Especial:
Sob o comando da Secadi, o risco de se tratar a inclusão escolar de
alunos com deficiência cada vez mais pelo viés da demagogia liberal e
da pedagogia “multiculturalista”; isso com o abandono das discussões
mais concretas sobre a educação especial, na medida em que se
priorizam os motes genéricos e homogeneizantes da diversidade e da
inclusão. Diante desse quadro político, a ênfase em princípios
inclusivistas põe em xeque a legitimidade da educação especial, posto
ficar secundarizada na pauta do ministério [...]. O fechamento da
Seesp, efetivado como uma decisão técnica da equipe de governo,
sugere a intensificação dessa crise em torno da educação especial, cada
vez mais negada enquanto campo de conhecimentos teórico-prático
fundamental para mediar os encaminhamentos da inclusão escolar
(BEZERRA 2013, p. 7, aspas do autor).
8
Portanto, manter um espaço exclusivo que receba esse público
simboliza uma ruptura a menos a ser implementada pelos atores da escola
de nossa narrativa. Estendendo esse raciocínio para a incidência que
movimentos nesse mesmo sentido possam ter em escolas reais,
esclarecemos que não pretendemos questionar as decisões tomadas pelas
equipes escolares bem como o caminho por elas traçado culpabilizando os
sujeitos, compreendemos que se encontram inseridos num universo social
e cultural que estimula determinadas condutas. Os debates e projetos que
7
(TINÔCO, 2018) Elabora nesta tese um levantamento dos consensos e dissensos entre os
pesquisadores brasileiros sobre políticas e práticas de inclusão.
8
Secadi - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - MEC.
Seesp Secretaria de Educação Especial MEC.
54
pretendem construir uma escola inclusiva estão sempre atrelados às
heranças da Educação Especial e aos saberes por ela constituídos, apesar de
buscarem em sua enunciação transformá-la de sistema paralelo para
sistema transversal, seu legado permanece presente. Por décadas a própria
legislação preconizava que o professor regular não estava apto a educar o
aluno deficiente, que essa tarefa requeria conhecimentos específicos. Esse
atributo perdurou e acentuou o poder do professor especialista, enquanto
coibiu nos demais educadores a perspectiva de sentirem-se aptos a educar
o indivíduo, independentemente de suas diferenças ou, simplesmente,
com elas.
O apoio em um paradigma científico
As primeiras instituições de educação voltadas para o público
deficiente distinguiam-se por categorias, institutos para cegos, surdos,
deficientes físicos ou mentais - como eram denominados - e foi nesse
sentido que se desenvolveram os estudos em Educação Especial,
aprofundando os conhecimentos específicos de cada tipo de deficiência,
categorizando e classificando-as. As ações oficiais nacionais e a criação de
órgãos centrais para gestão desse subsistema educacional possuíam forte
caráter técnico-científico, requeriam para a definição do público-alvo da
Educação Especial a avaliação clínica. Deparamo-nos hoje com esse legado
tanto na formação docente, quanto nas pesquisas em Educação Especial
que mantém, enquanto um de seus pilares, a classificação, descrição e
aprofundamento das particularidades de cada deficiência. A Educação
Especial segmenta os indivíduos de acordo com seu quadro clínico a fim
de homogeneizar e de aprofundar seus saberes, os planos de inclusão não
conseguem se distanciar dessas marcas.
55
A própria PNEEPEI que pretendia traçar os caminhos para a
construção da escola inclusiva que valorizasse as diferenças e a convivência
num meio heterogêneo, mantém sua redação apoiada nesse paradigma
científico ao redefinir o público-alvo do Atendimento Educacional
Especializado.
Consideram-se alunos com deficiência àqueles que têm impedimentos
de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que
em interação com diversas barreiras podem ter restringida sua
participação plena e efetiva na escola e na sociedade. Os alunos com
transtornos globais do desenvolvimento são aqueles que apresentam
alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na
comunicação, um repertório de interesses e atividades restrito,
estereotipado e repetitivo. Incluem-se nesse grupo alunos com autismo,
síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. Alunos com altas
habilidades/superdotação demonstram potencial elevado em qualquer
uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual,
acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Também apresentam
elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e
realização de tarefas em áreas de seu interesse. Dentre os transtornos
funcionais específicos estão: dislexia, disortografia, disgrafia,
discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade, entre outros
(BRASIL, 2008, p. 15).
Por outro lado, esse plano procurou relativizar tais conceitos
afirmando em seguida que essas definições não deveriam se esgotar em
mera categorização, reafirmando a positividade de ambientes heterogêneos
e o potencial de transformação mútua que a convivência com a diferença
pode proporcionar. Enquanto documento condutor, essa postura torna-o
ambíguo e reforça velhas práticas a nosso juízo.
56
Percebemos uma aparente dependência do diagnóstico e busca por
patologias para a orientação do trabalho pedagógico, uma clara dificuldade
de romper com o modelo médico-pedagógico e fortalecer o educacional-
escolar. Aquele modelo, escorado na ciência, pressupõe a definição do
sujeito a partir de seu diagnóstico, de uma patologia, resume o indivíduo
num laudo e acaba por priorizar condições distintivas e aceitas como
inerentes ao sujeito devido ao seu diagnóstico, em detrimento às suas
individualidades e potências singulares. Enquanto que esse sistema
educacional-escolar nos reporta às dificuldades da escola, nos seus
diferentes níveis, superar a um exercício de poder disciplinar e,
particularmente, a um modelo normativo em que a homogeneização de
todos pela média a tônica de suas práticas, mesmo quando se fala de um
eventual dispositivo de inclusão em seu seio.
Parece-nos que essa visão, herdada de certo limiar da Educação
Especial, atrelada aos signos específicos de cada deficiência, sobre a qual a
PNEEPEI foi elaborada, foi insuficiente para que essa atingisse seus
objetivos com a inclusão. Como afirmou Pagni (2019a) em sua análise
sobre o referido documento.
Durante o período de elaboração da PNEEPEI, a estratégia utilizada
foi a de filtrar esses demais signos para tratar a deficiência como parte
de um signo especializado, que se aplica a determinados sujeitos para
que possam ser tratados por tecnologias específicas de atendimento ou
de educação especial destinadas a esse público em torno do qual se
aglutinam. É possível ponderar ainda que, se considerarmos as
condições de sua elaboração e a composição da comissão de
especialistas, os signos que aglutinam esse público ainda são
demarcados pelas especialidades de cada deficiência, pelos saberes e
tecnologias produzidas e acumuladas pela Educação Especial,
destinadas ao atendimento de deficientes intelectuais, físicos, auditivos
57
e visuais, repartidos nessas modalidades. Por sua vez, tal repartição e,
algumas vezes, os cruzamentos dessas modalidades significaram sujeitos
específicos, filtrados seus demais signos e traços constitutivos, para
serem objetos de seu atendimento, durante a implementação da
PNEEEPEI, neutralizando sua eventual ameaça para torná-los
sujeitados socialmente a uma rie de dispositivos que, ao governarem-
nos, enquadra-os a determinadas condutas e comportamentos
(PAGNI, 2019a, p. 6).
Esse modelo científico, biológico e fragmentalizante, do qual nem
a PNEEPEI nem as práticas de inclusão conseguiram se desvencilhar,
pretendeu normalizar e corrigir os sujeitos a partir de sua organização em
subgrupos homogêneos, caracterizados por cada tipo de deficiência e seus
saberes acumulados. Tal estratégia atuou como um dispositivo de governo
desses corpos incorporando-os, desse modo, à rede de governamentalidade
estatal, permitindo-lhes, por estarem formalmente incluídos, que
pertencessem ao jogo de consumo e produção do mercado. Assim,
podemos afirmar que a inclusão que conhecemos encontra-se de algum
modo subordinada ao mercado, como uma exigência da biopolítica
neoliberal e a uma escola cujo bloco de poder, capacidades e comunicação
pende para o empresariamento da vida individual, para uma tentativa de
contemplar a diferença, atribuindo-lhes normas próprias, que no fundo
gera indiferença e relativiza tudo que emerge pela afirmação da diferença
(PAGNI, 2020).
O mesmo autor ainda argumenta que o preço cobrado desses
sujeitos em troca dessa participação, para que se encaixem, exige que se
deixem de fora algo de si “[...] para que sejam incluídas e, muitas vezes
dependendo do que fique de fora, alguns modos de existência acabam por
serem lançadas à deriva, à margem, deixadas à própria sorte” (PAGNI,
58
2019a, p. 9). E, a despeito da positividade promovida pela inclusão que foi
impulsionada pela PNEEPEI, graças a ela percebemos por meio da
observação das práticas, a existência de limitações nesse paradigma
científico da Educação Especial, no qual essa prática de inclusão se
fundamenta. Nesse esquadro, tal modelo conserva a busca pela
homogeneidade. Primeiro ele observa, identifica, nomeia e classifica os
sujeitos de acordo com seus diagnósticos. Depois, a partir dos saberes
reunidos sobre cada categoria de deficiência procura, através de protocolos
organizados por especialistas, aplicá-los em cada grupo ou em cada tipo de
sujeito, conforme sua identificação, a partir de seu laudo. Esse paradigma
também implica na defesa do uso de fármacos, sempre no sentido de
correção, de tornar esses sujeitos mais próximos ao retrato da normalidade.
Nesse trajeto por vezes, professores, pais e outros atores do processo
educacional impõem a esses corpos desviantes cobranças, expectativas,
técnicas e medicamentos que buscam aproximá-los da norma,
consequentemente afastando-os de sua natureza e, por vezes, de suas
potências. Não obstante, essa inclusão lhes traz elementos que permitem
sua participação no mercado, tornando-os mais facilmente aceitos e
adaptados às exigências do mundo do trabalho, mais facilmente
governáveis e mais próximos do que se convencionou considerar como
normal.
59
Retrato ficcional 2
Noutra cena, ilustramos um diálogo informal na escola no qual duas
professoras conversam durante o intervalo para o café. Uma delas relatava à
outra a evolução de sua aluna “de inclusão” (como ela dizia), afirmava sobre
a estudante que costumava ser tranquila, não dar trabalho algum além do
habitual para a turma, somente apresentava um ritmo próprio de aprendizado
ou mesmo de interesse pelas atividades propostas. Porém, nas últimas semanas,
essa aluna encontrava-se mais agitada, mais dispersa das atividades. A
professora então pretendia solicitar aos pais que revissem junto ao médico a
dose de sua medicação.
Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora.
Nesse cenário escolar que concebemos, no qual dois paradigmas de
inclusão parecem coexistir, o que remete ao modelo da integração
simbolizado pela existência da classe especial e o que se pretende alinhado
à inclusão total enunciada pela PNEEPEI, às práticas normalizadoras e as
referências a padrões corretivos herdados da Educação Especial,
encontram-se marcados em ambos os modelos. Observamos traços desse
modo de conceber e praticar a inclusão desses alunos tanto nas turmas
regulares, como o exemplo retratado acima, quanto na classe especial. Com
algumas exceções, esse parece ser o modo mais aceito de compreender a
inclusão por parte dos atores da escola, talvez como uma marca de suas
formações enquanto educadores e também de suas constituições enquanto
sujeitos. Não estamos isentos do meio cultural no qual somos formados.
Essas rupturas não são automatizadas por meio de marcos legais.
Socialmente não éramos adaptados a conviver rotineiramente com corpos
deficientes e, quando esses sujeitos eram vistos, carregavam sempre o
estigma da patologia, do assistencialismo e da incapacidade. Essas rupturas
60
que as regulamentações buscaram implementar precisam ser absorvidas
pelas subjetividades dos atores sociais. A convivência com esses corpos
anormais que tais políticas possibilitaram trazem avaos nesse sentido,
principalmente para as subjetividades infantis ainda em formação. Mas
professores, outros profissionais técnicos e o corpo social requerem tempo
de vivência nesse novo paradigma e, quem sabe, uma reavaliação constante
da experimentação dos dispositivos que produzem nas escolas, sendo esse
aspecto o epicentro de uma formação e educação continuada porvir dos
professores, que garantiria avanços no sentido de afastarmo-nos dessas
heranças da Educação Especial, corretivas e segregacionistas portanto, de
certa racionalidade engendrada pelo racismo de Estado nos termos
anteriormente retratados.
A nosso juízo o maior desafio a ser enfrentado por essa formação
porvir é a de se se desvencilhar de um dispositivo de correção dos desvios
inscritos no corpo, fazendo com que esses últimos se aproximem o mais
possível da norma geral ou da normalidade, ao mesmo tempo em que
problematizar o formato disciplinar e normativo em que a escola, nos seus
diferentes níveis, foi moldada desde a modernidade até essa configuração
neoliberal da biopolítica. Isso porque a manutenção de práticas alicerçadas
nos déficits dos corpos denominados deficientes na escola reforça sua
diversidade, obscurece sua diferença e gera uma indiferença em torno das
tecnologias que as governam, mas os mantém integrados àquilo que se
considera como geral, a saber, o mercado, como também o ajuste a uma
racionalidade estritamente econômica, que convive com certa mentalidade
segregacionista, que os seus investimentos ocorrem sobre os
considerados “mais capazes”.
É curioso que, no caso que disparou esse nosso trabalho reflexivo
aqui exposto, o atendimento especializado, a manutenção da Classe
61
Especial, parecia se manter muito alinhada a essa perspectiva corretiva e
normalizadora, pendendo muito mais para esse paradigma anterior do que
para o emergente das políticas inclusivas. Contudo, essa situação singular,
que parece sugerir a existência comum de um conflito enfrentado por
inúmeras escolas de Educação Infantil pelo Brasil afora, habita uma linha
de continuidade entre os dois paradigmas mencionados pela literatura da
Educação Especial ou, como argumentamos aqui, as duas faces de um
mesmo paradigma científico em que a inclusão é marcada por essa visão
corretiva e normalizadora proveniente de um campo de saberes cuja ligação
umbilical com a psiquiatria do culo XIX e meados do XX se faz a mostra,
mesmo quando tenta mascará-la.
Um retrato empírico do paradigma da inclusão adotado e
seus paradoxos
Esse paradigma de inclusão, visibilizado mediante a análise do
principal documento oficial sobre uma política de inclusão e o modo como
foi recebido numa situação escolar singular, como a que despertou a
reflexão esboçada, expressa um olhar estigmatizante sobre os sujeitos,
respaldado por um saber científico que privilegia o diagnóstico em
detrimento das potencialidades de cada corpo individual e sua existência
singular. Tais saberes e procedimentos técnicos se fazem recorrentes em
parte dos educadores e de outros profissionais, terapeutas, psicopedagogos,
enfim, especialistas, demonstrando sua preponderância no seio escolar e,
particularmente, no caso que produziu esta dissertação. Todavia, o campo
no qual eles fecundam, remonta às heranças eugênicas da Educação
Especial, como reconhecido pela própria literatura.
62
Ao longo das décadas, habituou-se a considerar que um estudante
caracterizado ou diagnosticado como público-alvo da Educação Especial -
ou excepcional como eram denominados entre o período do pós-guerra
(BUENO, 1993) até o início dos debates sobre inclusão na década de 1990
- não estava apto a aprender num ambiente educacional comum ou
regular. Como visto anteriormente, tanto pais quanto profissionais da
educação assentiram essa premissa, desde então até o presente, haja vista
determinadas situações em que se aventam oficialmente o retorno das
escolas e classes especiais com muitas manifestações de apoio a esses setores
e o retorno de debates que se arrastam décadas. Como consequência
observamos até hoje, como retratado nas cenas empírico-ficcionais a seguir
descritas
9
, que uma certa dependência do chamado diagnóstico
fechado, por meio do laudo do estudante, tanto para que ele se enquadre
legalmente enquanto blico-alvo do AEE quanto para se começar a
pensar em estratégias de ensino individualizadas.
Retrato ficcional 3
No cenário que supomos, algumas cenas ilustram a ligação a esse
modelo atado à ciência, que rastreia nos corpos a origem dos desvios. Nelas, os
sujeitos são distintos mais como pacientes que como educandos, destaca-se
primeiro, nesses indivíduos, a patologia que carregam, depois suas
individualidades ou potências. Por vezes, ao se apresentar uma criança, antes
de seu nome, é dito seu diagnóstico, ou mesmo o estigma da indefinição “ele
ainda não tem laudo”. Por outras sua apresentação acrescida de seu diagnóstico
lhes trazem toda a carga pressuposta “ele é autista, mas é bem tranquilo, faz
9
As cenas que utilizamos para ilustrar um caso paradigmático de inclusão, apesar de ficcionais,
contém traços empíricos, pois foram inspiradas pela experiência de estágio mencionada, por outras
vivências escolares e pela própria literatura dessa área, compondo um retrato que combina realidade
e ficção.
63
tudo”. Ou talvez, esse tão almejado laudo lhes imponha a marca de um estorvo
que segue paralelo a impotência aceita como intransponível pelo professor
regular. “Não posso fazer nada por eles, tenho 3 alunos de inclusão na minha
sala, e os outros 20?”.
Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora.
Também podemos depreender que essa distinção eugênica entre
educáveis pelo ensino regular e não educáveis suscitou numa quase
exclusividade por parte do professor especialista na condução dos
caminhos da Educação Especial nas escolas e, consequente, na aceitação
passiva dessa ideia pelos demais professores. Observamos tais
comportamentos nos primeiros debates que buscavam fomentar alguma
forma de organização da educação dos deficientes, bem como da própria
organização escolar comum no Brasil, como veremos no capítulo 3.
Invisibilidade e Exclusão
“O movimento mundial pela inclusão é uma ação política,
cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos
os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo
de discriminação” (BRASIL, 2008, p.5). Desse modo, inicia-se a
apresentação do texto da PNEEPEI. Os discursos atuais demonstram boa
aceitação por parte da sociedade dos ideais de inclusão por ela enunciados.
Todavia não podemos deixar de destacar que essa concepção é recente.
Inaugurada nos anos 1990 e que todos esses debates buscam romper
estruturas, comportamentos e preconceitos enraizados na sociedade. O
corpo deficiente, o indivíduo anormal, ou a criança excepcional como
64
foram denominados por boa parte do século XX não costumavam ser
vistos em sociedade. Seu lugar era nas instituições especializadas, nas
escolas especiais, ou em suas casas, longe do convívio social, excluídos do
universo escolar, do mundo do trabalho, muitas vezes escondidos e motivo
de vergonha para a família. Esse comportamento remete às marcas
históricas do lugar do deficiente na sociedade, por vezes invisível, é um
resquício emocional das práticas discriminatórias largamente presentes e
aceitas ao longo dos séculos.
Retrato ficcional 4
Noutra cena escolar que retratamos podemos observar o momento de
chegada das crianças. Como toda escola um horário definido para a sua
entrada que deve ser respeitado, a maioria dos pais empenha-se em cumpri-lo.
Ao observar a recepção das crianças da Classe Especial, percebemos uma
extensão dessa tolerância de horário. Esses pais m por hábito algum atraso,
justificam-se pela dificuldade no encontro de vagas de estacionamento no
entorno da escola em certos horários e pela lentidão do processo de transporte
das crianças, implicado por suas particularidades físicas. Alguns pais, atrasam-
se intencionalmente por sentirem vergonha dos olhares dos outros pais, para
evitarem seu próprio olhar comparativo ao notarem as outras crianças, por um
certo tipo de fuga da culpa que involuntariamente alimentam.
Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora.
A PNEEPEI permitiu a presença desses corpos na escola regular,
promoveu uma série de encontros que não tinham por hábito ocorrerem,
criando um território novo e ainda insondável. O espaço desses sujeitos
não era o lugar comum, eram as margens, os quartos dos fundos, as
instituições asilares, as escolas especiais, era o lugar da invisibilidade. O
65
recente movimento pela inclusão permitiu-nos essa convivência e
despertou consequentemente, por vezes, o estranhamento, o olhar curioso,
o desvio de olhar da vergonha. Um traço da sociedade que éramos e que
em partes ainda somos, é carregado por marcas higienistas e por
preconceitos. Mas essa presença também os trouxe à tona, propiciou o
convívio, promoveu encontros e os tornou visíveis com suas faltas, suas
potências e seus modos de vida que nos incitam a repensar nossas próprias
potências, fragilidades e modos seguros e normalizados de vida. Esses
parecem ser efeitos de poder dos saberes especializados e de suas conquistas
com as políticas de inclusão ainda pouco analisados e que mereceriam um
maior investimento por parte de pesquisas como esta.
Procuramos ilustrar, através de um relato literário inspirado na
realidade, de que modos a inserção dos alunos público-alvo da Educação
Especial pode se dar nas escolas sob a denominação de inclusão.
Circunscrevemos o caso a um contexto verossímil de uma escola de
educação infantil, no Brasil, uma década após a promulgação da PNEEPEI
de 2008, que conjuga inclusão e Classe Especial, que se acredita e
denomina inclusiva, mas que conserva práticas excludentes. Uma escola
que reflete em suas ações as contradições presentes nessa PNEEPEI que
por sua vez são herdadas das relutâncias em se compreender um paradigma
democrático de inclusão centrado na positividade da diferença. Uma escola
na qual o poder de gerenciar as práticas de inclusão é quase que exclusivo
do professor especialista, que por sua vez, encarna a partir de seus saberes
os poderes adquiridos pela Educação Especial no transcorrer de sua
formação. Um cenário com atores educacionais que abstêm-se de
participarem da formação de parte de seus alunos, pois sua própria
formação não lhes conferiu a segurança adequada para que assumissem esse
papel. Uma ficção que reflete condutas diárias reais nas quais as políticas
66
promovem o convívio constante com os corpos deficientes, sua inserção
no mercado de trabalho e de consumo ao mesmo tempo em que negam
sua positividade ao tentar corrigi-los, capturando assim parte de seus
modos de existência, como uma espécie de custo pelo benefício desse tipo
de inclusão que lhes é ofertado. Desse modo, após evidenciadas tais
características, recorrentes em cenários similares de inclusão, rastreamos
sua genealogia a partir de recortes da história da Educação Especial no
Brasil.
67
Por uma Estrutura Arqueo-Genealogia
da Educação Especial no Brasil:
Retratos da Constituão de um Campo
Este capítulo procura retomar brevemente uma trajetória da
Educação Especial no Brasil, inspirado na genealogia foucaultiana,
destacando para tanto os paradigmas adotados ao longo do culo XX e
início do XXI distinguindo as políticas públicas de segregação, integração
e inclusão dos corpos deficientes e contrapondo-as com os modelos
foucaultianos da lepra e da peste. Partindo do rastreamento desses
mecanismos, revelados pelas políticas, buscamos evidenciar a contradição
manifesta na PNEEPEI de 2008 na medida em que ela enuncia e pretende-
se inclusiva, mas margem a práticas escolares excludentes. Procuramos
distinguir dois momentos, o conjunto de signos que os marcam, bem
como a influência que eles mantêm nas práticas atuais de inclusão e na
PNEEPEI: o primeiro, marcado pelo paradigma da exclusão, apoiado no
cientificismo e na medicalização, normativo e higienista e o segundo,
definido pela construção do dispositivo de inclusão, sua submissão à
governamentalidade neoliberal e o papel do dispositivo escolar. A esses dois
momentos gostaríamos, porém, de salientar um princípio geral que
precede a todos eles e começa ser delineado, genealogicamente, segundo
nossa hipótese, com os movimentos eugênicos que explicitam a emergência
de um tipo de racismo de Estado à brasileira ou de uma racionalidade
responsável por certo dispositivo de segregação, atenuado em alguns
momentos dessa história e exasperado em outros.
68
A emergência de uma racionalidade
Durante sua constituição, o citado campo de saber encontrava-se
imerso num cenário ideológico marcado pela busca do melhoramento da
raça e pelos anseios de otimização da espécie humana. A ciência, por meio
de inúmeros estudos, dentre eles a genética e a seleção natural, acabava por
fundamentar movimentos em prol da seleção artificial de indivíduos.
Talvez o exemplo mais radical de suas consequências tenha sido a política
de extermínio praticada pela Alemanha Nazista durante a Guerra.
Embora não se tratarem de filosofias comparáveis e muito menos a
Educação Especial tenha em algum momento respaldado essas práticas
políticas, o seu desenvolvimento no Brasil flertou com um tipo de
racionalidade que tinha por uma de suas características a busca pela
correção daqueles sujeitos que não eram vistos como normais ou capazes
de aprender em uma escola regular. Desse modo, centravam-se em
classificar os indivíduos em educáveis e não educáveis, os primeiros
mantinham-se sob responsabilidade dos educadores, nas escolas regulares,
e os últimos eram encaminhados à reabilitação numa instituição
apropriada de acordo com seu diagnóstico, cujo caráter do atendimento
era mais clínico que educacional.
Com o advento da República, difundiu-se o desejo por modernizar
o país que levou a esforços como pela redução na taxa de analfabetismo e
pelo fomento à urbanização. A passagem de um modelo rural para o
contexto das cidades trouxe consigo a problemática resultante das grandes
aglomerações: a proliferação de epidemias. O campo capaz de manter a
salubridade da população sob controle era a medicina. Fundamentada na
ciência, a medicina social foi eleita responsável pela regulação da
população, tanto no controle do corpo dos indiduos quanto das suas
69
condutas. Dessa forma, o poder médico estabeleceu-se como poder
político e passou a se responsabilizar também pela organização estrutural
dos espaços das instituições, dentre elas, a escola (MACHADO, et al.,
1978).
A medicina também adentrou ao ambiente escolar abrindo portas
para uma vertente chamada médico-pedagógica que buscava respostas e
possíveis correções para as anomalias mais graves das crianças que não
apresentavam melhora com as técnicas convencionais. A medicina
consolidou ainda sua ligação ao campo dos saberes sobre a educação do
deficiente (JANNUZZI, 2012). Estabelecida essa parceria entre médicos e
professores, buscava-se regular os corpos e as condutas das crianças e das
famílias. Através do higienismo, a medicina definia padrões por meio de
alguns binômios, dentre eles o normal e o anormal ou as raças inferiores e
superiores, num processo em que após a definição poder-se-ia identificar
os indivíduos desviantes e consequentemente marginalizá-los, ou mesmo
excluí-los, caso não fosse possível corrigi-los (COLOMBANI; MARTINS,
2017).
Foi imersa nesses debates eugênicos e higienistas que a escola foi
pensada enquanto sistema de ensino. Podemos rastrear alguns desses traços
no relatório do Diretor Geral de Instrução Pública do Estado de São Paulo,
Oscar Thompson. Em seu texto, ele defendia em 1917, que seu objetivo
era o de traçar um diagnóstico dos alunos de modo a poder separá-los em
dois grandes grupos, o primeiro cujo desenvolvimento dependeria somente
do professor e o segundo, caracterizado pelo estado de saúde da criança
que requereria cuidados médicos.
Para ele dever-se-ia procurar o desenvolvimento de todas as
crianças, promover a correção e a cura dos desviantes, sempre que possível
e, para tanto, o primeiro passo seria essa seleção que permitiria a
70
reorganização dos alunos de maneira homogênea, fosse nas escolas
regulares ou especiais (THOMPSON, 1917). Esse anseio de produzir
mecanismos técnicos que promovessem tal separação de indivíduos em
categorias foi atendido por meio da Pedagogia Científica. Tal trajetória,
posteriormente, vai consolidar o estabelecimento da Educação Especial
enquanto campo de conhecimento e carregar consigo essas marcas que
distinguem normais de anormais, que segregam e marginalizam o diferente
e que buscam corrigi-lo ou aproximá-lo ao máximo que puderem do
modelo de normalidade. Nesse percurso, o caráter clínico e corretivo do
atendimento educacional oferecido aos deficientes abriu caminhos para
consolidar o professor especialista como detentor exclusivo dos saberes
capazes de conduzirem a Educação Especial.
O discurso higienista e eugênico é evidenciado na estruturação do
modelo de sistema escolar no início do século XX, Oscar Thompson,
enquanto Diretor Geral de Instrução Pública do Estado de São Paulo
salienta, em seu relatório de 1917 (THOMPSON, 1917), a necessidade
de o médico ocupar a posição de vigilante e da escola atuar ativamente na
educação e no cuidado relativos à saúde e higiene das crianças. O Diretor
afirma que para melhor compreensão das anormalidades e das causas dos
atrasos escolares é necessário um estudo individualizado da condição de
cada criança, observa que fatores hereditários, vícios ou doenças presentes
nos pais e ambientes insalubres podem ser as principais causas desses
desvios.
Thompson deixa explícita no Annuario do Ensino de 1917 uma de
suas intenções ao defender o investimento na educação dos deficientes
10
,
10
Em 1917 a Lei 1.579 de 19/12/1917 cria na capital paulista o Instituto dos Surdos-Mudos, o
Instituto dos Cegos e o Instituto dos Anormaes; no interior do estado estabelece uma escola para
crianças débeis e duas colônias de férias (SÃO PAULO, 1917).
71
ele aponta a necessidade de oferecer-lhes educação com a intenção de
corrigi-los, se possível, evitando desse modo que quando adultos tornem-
se dependentes do Estado, onerando-o por necessitarem ser recolhidos em
asilos, manicômios ou cadeias, para ele, a educação adequada pode retirá-
los da condição de parasitas e incorpo-los na atividade social
(THOMPSON, 1917).
A educação dos alumnos anormaes deve ser iniciada immediatamente,
não como uma mera questão de ensino, mas para solução de um
problema economico, quiçá ethnico, pois o alumno anormal, quando
homem feito, irá augmentar a despesa publica com a manutenção das
cadeias, dos manicomios e dos asylos, se não fôr, em tempo,
convenientemente educado. Soccorrido, porém, no momento
opportuno, transformado em normal, elle se intregará, como elemento
de ordem e de progresso, na communo social (THOMPSON, 1917,
p. 10).
Nesse cenário em que as elites do país buscavam por modernizá-lo,
sob forte influência liberal e cientificista, foram fomentados os estudos e a
organização da Educação no Brasil, bem como da Educação Especial.
Notadamente marcado pelo desejo de corrigir, de normalizar e de
homogeneizar as crianças. Percebe-se a preocupação de proporcionar, a
partir da correção, condições para a vida em sociedade e independência
financeira, afastando sempre que possível das instituições asilares ou
correcionais.
Nas primeiras décadas do culo XX, devido ao crescimento da
industrialização e da urbanização, cresce a procura por escolas e
alfabetização dos filhos dos trabalhadores, é o início do fenômeno de
educação em massa. Nesse período, ganham destaque as ideias da Escola
72
Nova, um movimento consolidado na Europa naquela época, que
enfatizava métodos ativos de ensino-aprendizagem que valorizavam a
criança e seus interesses e buscavam colocá-la como centro do processo
educacional. Essa corrente apoiava os estudos em psicologia experimental,
(GHIRALDELLI JÚNIOR, 1994) área em expansão caracterizada por
estudos de observação e testes de eficiência e classificação, tal movimento
apresentava entre seus membros forte influência dos movimentos
eugênicos que se disseminavam pelo país naquele momento. Em seus
estudos defendiam a aplicação de testes que classificavam os indivíduos a
fim de permitirem a construção de ambientes escolares homogêneos.
De tentativa em tentativa, a psicologia experimental logrou obter
meios práticos para as investigações necessárias à classificação dos
indivíduos, hoje possível sem longo ou penoso trabalho, por meios
objetivos relativamente simples. Esses meios são os testes psicológicos,
pequenas provas, sob condições bem definidas, e cujos valores
significativos são fixados depois de investigações bioestatísticas. Por
eles não se chega à organização racional de classes homogêneas, ao
ensino seletivo e diferenciado (ou “sob medida”, como lhe chamou
Claparède), mas ainda à classificação científica dos anormais de
inteligência, à organização de classes ou escolas para os supernormais,
à orientação e seleção profissional, à discriminação dos temperamentos
e aptidões especiais. (LOURENÇO FILHO, 1930, p. 19, apud in
MONARCHA, 2017, p. 11-12, grifos do autor).
Também era usual por parte desses estudiosos de uma reforma
educacional no Brasil, a aceitação da existência de indivíduos mais ou
menos capazes devido às suas condições biológicas inatas.
73
Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas
populares, os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o
vértice de uma pirâmide de base imensa. [...] Essa seleção que se deve
processar não “por diferenciação econômica”, mas “pela diferenciação
de todas as capacidades”, favorecida pela educação, mediante a ação
biológica e funcional, não pode, não diremos completar-se, mas nem
sequer realizar-se senão pela obra universitária que, elevando ao
máximo o desenvolvimento dos indivíduos dentro de suas aptidões
naturais e selecionando os mais capazes, lhes bastante força para
exercer influência efetiva na sociedade e afetar, dessa forma, a
consciência social (AZEVEDO et al., 2010, p. 58, grifos do autor).
Na busca pela construção de uma sociedade industrial era preciso
aprimorar as técnicas de normatização e de governo da população, a
principal ferramenta para esse objetivo é a escola que, baseada nos saberes
gerados pela observação sistemática e aliada às ciências, principalmente a
medicina, poderia encontrar meios de corrigir os desvios possíveis e de
conduzir satisfatoriamente a totalidade dos indivíduos. A escola constitui-
se enquanto dispositivo fundamental de governamento da população por
meio do governo da infância, propiciando que o Estado mantenha a
gerência tanto da informação quanto da economia. Entretanto, essas
ferramentas de controle têm sua eficácia reduzida quando segmentos da
população se encontram alheios ao seu poder, fora de seu controle. Desse
modo, vimos um crescente aumento no interesse do Estado por inserir no
interior das instituições escolares os indivíduos antes marginalizados,
dentre eles, os corpos deficientes. Mas esse tipo de inclusão que foi
construída, a qual podemos observar no caso retratado e em inúmeros
outros exemplos de práticas escolares reais, não se distancia do antigo
modelo excludente e não rompe com os velhos paradigmas, prossegue
buscando diagnosticar para depois corrigir os sujeitos, submetê-los à
74
norma através de técnicas específicas, e do uso de fármacos, no intuito de
obter grupos homogêneos de indivíduos a fim de governá-los mais
facilmente.
Esse movimento talvez justifique as dificuldades de se dispensar
esse tipo de saber especializado no qual se apoiou a Educação Especial, ao
mesmo tempo em que retrata um viés médico-clínico que fez com que
deixasse de abarcar as questões mais amplas, salvo nesse momento de
emergência, em relação a biopolítica da população. Dessa forma se dedicou
mais a uma anátomo-política do corpo cuja sincronia com a biopolítica da
população, advertidamente ou não, se deu por meio de uma racionalidade
que, apoiada no que se presumia técnico-científico, serviu para a partir dos
diagnósticos médicos separar o indivíduo normal do anormal, investir na
capacitação do primeiro e nas tentativas de corrigir os desvios do segundo
ou amenizá-los para tornar passível a sua diferença e factível o convívio
social com os demais.
Exclusão, medicalização e correção
As primeiras instituições do Brasil, destinadas exclusivamente à
educação dos deficientes, marcaram o início da história da Educação
Especial no país, não ainda como um campo de conhecimento ou como
um sistema educacional, mas suas instalações ofereceram base para essa
estruturação posterior. Elas datam do final do século XIX e têm por
característica serem fruto da iniciativa individual de figuras próximas ao
imperador, inspiradas em experiências similares ocorridas na Europa. Esses
estabelecimentos, em número pouco significativo, não almejavam atender
a toda a demanda existente de seu público-alvo, e distanciavam-se
75
consideravelmente de alcançá-la. Seu caráter era segregatício e
assistencialista, ao exemplo das experiências europeias (MANTOAN,
2011).
Antes delas, os corpos deficientes eram totalmente excluídos dos
estabelecimentos de ensino por serem considerados incapazes de
aprenderem por meio dos processos regulares de ensino devido as suas
características inatas (BUENO, 1993). Seguindo o exemplo europeu, o
Brasil inicia a primeira transição significativa nesse campo, pois a sociedade
começava a deixar de ignorar a existência de deficientes em seu território e
passava a pensar em meios de lhes conferir alguma participação social
através de cuidados, tratamentos, assistencialismo e tentativas de educação,
ainda que com um viés corretivo.
Esse período que prenuncia a organização da Educação Especial
brasileira destaca-se pelo caráter privado ou filantrópico-assistencialista dos
serviços pontuais que foram sendo criados pelo território nacional e
perdura até finais da década de 1950 quando tem início ações oficiais no
âmbito nacional, afastando a postura de omissão do discurso oficial em
relação a educação do deficiente. “A educação especial foi assumida pelo
poder público em 1957 com a criação das “Campanhas”, que eram
destinadas especificamente para atender a cada uma das deficiências”
(MANTOAN, 2011, p. 3). Nesse momento retratado, parece emergir
genealogicamente uma maior preocupação em articular os preceitos
tecnológicos de uma anátomo-política com uma biopolítica da população,
uma vez que o Estado assume a coordenação sobre a regulação e a
normalização dos corpos deficientes, ainda que seja para segregá-los em
instituições específicas, ou mesmo agrupá-los em classes especiais, ainda
que sem uma rede, apoiado pelas políticas públicas. De um viés clínico e
de uma racionalidade médica apoiada em certo dispositivo que define o
76
normal a partir do anormal, a outro que a assume como parte de políticas
públicas mais amplas, sob responsabilidade do Estado em parceria com
associações filantrópicas, que dão razão a esse corpo e o governam
racionalmente.
Não obstante essa possibilidade, segundo Mendes (2010), esse
período é marcado pelo fortalecimento do setor privado por meio de
estabelecimentos de caráter filantrópico pela omissão do serviço público
que forçou a mobilização de pais e figuras envolvidas nesse debate.
Posteriormente essas entidades passaram a receber recursos do governo
consolidando a escusa do Estado de sua responsabilidade sobre esse setor
da educação, bem como o poder e a influência de representantes desses
grupos nas decisões relativas às políticas desse campo.
O referido sistema em germinação tinha natureza segregacionista e
excludente, podemos caracterizá-lo como uma continuidade do cenário
anterior de invisibilidade, omissão e exclusão total do deficiente da vida
social, uma fase de transição que compreende somente os casos mais graves
e próximos às elites, mas ambos os momentos podem ser relacionados ao
modelo de exclusão dos leprosos enunciado por Foucault (2002b). Através
desse paradigma ocorre uma divisão binária dos indivíduos, nesse caso
distingue-se o normal do anormal, o aluno apto a aprender do deficiente,
após essa identificação, eles são separados e organizados de modo a criar
grupos homogêneos.
A exclusão da lepra era uma prática social que comportava primeiro
uma divisão rigorosa, um distanciamento, uma regra de o-contato
entre um indivíduo (ou um grupo de indivíduos) e outro. Era, de um
lado a rejeição desses indivíduos num mundo exterior, confuso, fora
dos muros da cidade, fora dos limites da comunidade. Constituição,
77
por conseguinte, de duas massas estranhas uma à outra. (...) Em suma,
eram de fato práticas de exclusão, práticas de rejeição, práticas de
“marginalização”, como diríamos hoje. Ora, é sob essa forma que se
descreve, e a meu ver ainda hoje, a maneira como o poder se exerce
sobre os loucos, sobre os doentes, sobre os criminosos, sobre os
desviantes, sobre as crianças, sobre os pobres. Descrevem-se em geral
os efeitos e os mecanismos de poder que se exercem sobre eles como
mecanismos e efeitos de exclusão, de desqualificação, de exílio, de
rejeição, de privação, de recusa, de desconhecimento; ou seja, todo o
arsenal dos conceitos e mecanismos negativos da exclusão”
(FOUCAULT, 2002b, p. 54).
Ao longo das primeiras décadas do século XX, tanto a Educação
Regular quanto essas instituições especializadas, chamadas à época de
Educação de Deficientes, iniciaram um processo lento de expansão, o
público-alvo também se ampliou, além dos estudantes cegos e surdos,
foram agregados os chamados deficientes físicos e mentais, sempre em
instituições específicas, de acordo com a categoria de deficiência do
indivíduo. Essa característica contribuiu para a construção de um
paradigma científico, de uma segmentação biológica das deficiências, que
perdura até os dias atuais, tanto na formação dos profissionais
especializados em Educação Especial, quanto na dos professores regulares
e consequentemente nas práticas escolares, na medida em que elas
continuam a almejar a construção de grupos homogêneos a partir da
normalização desses corpos desviantes. Esse é um registro que terá uma
linha de continuidade até o PNEEPEI de 2008, como visto no capítulo
anterior, reforçando esse olhar biológico e fragmentado em relação aos
corpos deficientes, por vezes, tornando-o mais ameno, mas sem abandoná-
lo e raramente evidenciando a sua potencialidade e a sua força
desreguladora para a biopolítica da população.
78
Outro aspecto que podemos destacar foi a expansão ocorrida, a
partir da década de 1950, no número de instituições voltadas para a
educação dos deficientes. Esse crescimento deveu-se à ampliação do
público-alvo com a introdução dos chamados distúrbios mentais leves.
Pouco a pouco, a deficiência mental foi assumindo a primazia da
educação especial, não pelo maior número de instituições a ela
dedicadas que foram sendo criadas, como pelo peso que ela foi
adquirindo com relação à saúde (a preocupação com a eugenia da raça)
e à educação (a preocupação com o fracasso escolar) (BUENO, 1994,
p. 87).
Graças aos anseios pela ampliação da escolarização da população
impulsionados pela necessidade de maior qualificação da mão de obra
devido às necessidades do mercado industrial emergente, as chamadas
deficiências leves passaram a se destacar a partir do aumento no índice de
repetência e evasão ocorrido após a inserção de camadas sociais mais pobres
nas escolas. Desse modo, tal processo levou a uma ampliação no número
de classes especiais nas escolas públicas regulares a fim de acolherem esse
público proveniente do fracasso escolar (MENDES, 2010).
Percebemos entre os anos 50 até a cada de 70, segundo essa
literatura, o predomínio de políticas públicas que reforçaram o caráter
segregacionista da racionalidade em curso, com forte apoio do campo da
Educação Especial. Tanto as instituições especializadas quanto às classes
especiais no interior das escolas regulares excluíam seus alunos do convívio
social e da oferta do ensino regular por meio da crença de que esses sujeitos
eram incapazes de aprender nesses ambientes comuns. Podemos verificar
que, na década de 1970, a Educação Especial instituiu-se no Brasil
79
enquanto “um verdadeiro subsistema educacional, com a proliferação de
instituições públicas e privadas de atendimento ao excepcional e com a
criação de órgãos normativos federal e estaduais” (BUENO, 1993, p. 37).
Destaca-se nesse período, conforme retratado pela literatura, a
criação do Centro Nacional de Educação Especial CENESP, em 1973,
órgão instituído especificamente para gerir a Educação Especial no Brasil.
Pela primeira vez, essa área passa a ser organizada de modo integrado
(BUENO, 1993 e MENDES, 2010, MANTOAN, 2011). Temos então a
busca pela regulamentação da Educação Especial como um sistema de
ensino paralelo e complementar ao regular e não integrado a ele. Esse
Centro, após realizar análise diagnóstica do atendimento educacional do
deficiente no país, “estabeleceu duas diretrizes básicas de ação: a integração
e a racionalização” (BRASIL, MEC/CENESP, 1974, apud in BUENO,
1993, p. 104). Tais metas pretendiam, em primeiro lugar, promover a
integração social e educacional do deficiente, sempre que possível e de
acordo com suas capacidades, em ambientes comuns e, em segundo,
reduzir as discrepâncias e lacunas existentes entre as gestões federais,
estaduais e municipais de educação.
A partir dessas ações, inaugurou-se um período no qual as políticas
públicas buscavam aproximar parte dos sujeitos, até então segregados em
instituições ou classes especiais do convívio e da oferta de Educação
Regular, desde que esses indivíduos tivessem capacidades individuais
suficientes para acompanharem o ensino regular, buscando, portanto,
selecionar dentre o blico da Educação Especial aqueles indivíduos mais
aptos a serem corrigidos e aproximados da norma.
Em 1985 o Cenesp a [sic] elevado a condição de Secretaria de
Educação Especial e é instituído um comitê nacional para traçar
80
política de ação conjunta, destinada a aprimorar a educação especial e
a integrar, na sociedade, as pessoas com deficiências, problemas de
conduta e superdotados (MENDES, 2010, p. 101).
Assim, as políticas públicas brasileiras buscavam nesse período
afastar o paradigma da segregação e dar início a uma tentativa de inclusão
através do que elas denominavam integração desses alunos ao sistema geral
de ensino. No entanto, essas regulamentações legais têm trazido
entendimentos conflituosos sobre a Educação Especial que acabam por
influenciar sua compreensão, as práticas escolares e, posteriormente os
debates acerca da inclusão.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 4.024/61,
garantiu o direito dos “alunos excepcionais” à educação, estabelecendo
em seu Artigo 88 que para integrá-los na comunidade esses alunos
deveriam enquadrar-se, dentro do possível, no sistema geral de
educação. Entende-se que nesse sistema geral estariam incluídos tanto
os serviços educacionais comuns como os especiais, mas pode-se
também compreender que, quando a educação de deficientes não se
enquadrasse no sistema geral, deveria constituir um especial, tornando-
se um sub sistema à margem. Esta e outras imprecisões acentuaram o
caráter dúbio da educação especial no sistema geral de educação. A
questão que se punha na época era: Enfim, diante da lei, trata-se de um
sistema comum ou especial de educação? O mesmo está acontecendo
atualmente com relação à inserção de alunos com deficiência no ensino
regular, mas este caso abordaremos posteriormente, no contexto da
discussão em torno da educação inclusiva (MANTOAN, 2011, p. 6-
7, grifo do autor).
81
Evidencia-se, nesse contexto, a busca por trazer parte desse público,
aquela identificada como a mais próxima da norma, para o modo de vida
comum. Com forte visão terapêutica e corretiva, esse modo de inclusão
apresentava pouca intenção educacional. Esse modelo pretendia fomentar
a democratização da educação, porém, seu caráter normativo, baseado no
cientificismo, com uso de testes de inteligência para classificar os
indivíduos e corrigi-los sempre que possível, promovia a discriminação e a
segregação do diferente, dos anormais ou incapazes de aprender no ensino
comum, no interior das próprias escolas ou encaminhando-os às
instituições especializadas.
Neste breve retrato da história da Educação Especial no Brasil
podemos apontar como alguns elementos foram se incorporando a esse
campo e constituindo seus saberes. Percebemos a presença desses seus
saberes materializados como um certo poder, tanto na redação da
PNEEPEI de 2008 e outras políticas quanto nas práticas educacionais
observadas, a exemplo do caso retratado. Compreendemos que as poticas
que se aspiram inclusivas não se desprendem dos princípios da Educação
Especial, o que atua de forma a fomentar a manutenção dos mesmos
modos de agir com o deficiente, dificultando a ruptura de antigos
paradigmas, tanto por parte dos atores da escola quanto das famílias e
sociedade.
Um desses aspectos é seu caráter assistencialista, adquirido desde as
primeiras instituições que se propunham a ofertar alguma forma de
educação às crianças anormais e principalmente tentativas de correção para
que elas, aproximando-se ao máximo da normalidade, tivessem alguma
sorte no convívio social ou nos meios de inserção no mundo do trabalho.
Com a omissão do poder público em relação à educação do deficiente, essa
marca perdurou por cadas visto que pais e comunidade buscaram
82
preencher essa lacuna liderando e organizando entidades filantrópicas-
assistenciais para acolherem esse público (MENDES, 2011). Esse fato
colaborou em partes para uma certa resistência às mudanças propostas pela
PNEEPEI de 2008 pois, quando ela determina a obrigatoriedade das
matrículas dos alunos público-alvo da Educação Especial (PAEE) em
escolas regulares, isso implica na extinção de instituições, com o referido
caráter, detentoras de prestígio e tradição por sua longa existência. Nas
práticas podemos perceber, por vezes, que o aluno caracterizado como de
inclusão é recebido com esse olhar assistencialista. Não como mais um
aluno com suas diferenças e particularidades assim como qualquer
indivíduo, mas como alguém que recentemente conquistou o direito de ali
estar e para tanto requer a atuação de um trabalho especializado e a
gentileza dos demais atores na construção de um espaço apto a acolhê-los.
Este campo, também marcado em sua formação pela distinção
entre normal e anormal, pela fragmentação dos indivíduos em categorias,
de modo a nortear a construção de seus saberes, também se apoia na busca
pela correção dos sujeitos anormais. Aliás, desde fins do culo XIX, os
saberes que posteriormente constituíram a Educação Especial foram
construídos a partir de instituições específicas para cada tipo de deficiência,
tendo início com os cegos e surdos, ampliando-se posteriormente para
outras deficiências físicas e mentais e mais recentemente para os chamados
transtornos globais do desenvolvimento e superdotação (BUENO, 1993).
Esse mecanismo cientificista permanece nos dias atuais como guia nos
cursos de especialização em Educação Especial, como um segmento
importante na construção de saberes por parte dos pesquisadores da área e
aparece marcado na PNEEPEI de 2008, quando seu texto redefine o
PAEE.
83
Nas práticas escolares ilustradas pelo caso ficcionado ao longo desta
dissertação, ele se evidencia a todo o momento em que os atores almejam
por um diagnóstico do estudante, a fim de que o mesmo lhes traga
respostas de qual conduta seguir na organização dos métodos de ensino
mais eficazes para aquele grupo específico de distúrbio. O que por vezes
distancia o educador do estudante, pois o esforço daquele por encaixar este
numa representação preconcebida para certo laudo em que o sujeito foi
enquadrado, na tentativa de obter uma espécie de protocolo de como
conduzi-lo, exclui suas particularidades, sua história, sua condição social e
suas subjetividades (PAGNI, 2019a, p. 6). Igualmente podemos
reconhecer as marcas do paradigma científico desse campo de saber pela
autoridade conferida ao professor especialista nas práticas escolares
retratadas, através das quais boa parte dos docentes regulares se abdicam
de serem protagonistas na formação de seus alunos PAAE. Assim, pais,
equipe escolar e políticas públicas reiteram um poder quase exclusivo desse
profissional na condução do processo educacional desses alunos e das
práticas de inclusão nas escolas, conforme exemplificado anteriormente no
caso retratado.
Por fim, também podemos observar outros signos da Educação
Especial expressivos para nossa análise, que se entrelaçam durante a
incorporação dos saberes e elaboração de poderes desse campo. A escola
enquanto instituição é organizada no Brasil sob influência do higienismo
e da eugenia, ideias abertamente vigentes no início do século XX. Numa
sociedade medicalizada na qual o poder político da medicina se
disseminava por diversos campos, os saberes que posteriormente
constituíram a Educação Especial apresentavam um viés mais corretivo que
educacional e tinham como prioridade a distinção entre o normal e o
anormal.
84
Enquanto instituição formadora, a escola atua como dispositivo
fundamental de poder disciplinar, governando a infância e sendo
instrumento indispensável do biopoder. Enquanto tecnologia, o
higienismo destaca-se na busca por reestruturar o núcleo familiar, a família
é capaz de atingir o controle do corpo minuciosamente de modo a ser
fundamental -la capturada como dispositivo disciplinar, por meio do
poder dico busca-se atingir seu controle suprindo a insuficiência da lei
na regulação de casamentos inter-raciais e na produção de cidadãos
domesticados, dóceis, governáveis e normatizados (COLOMBANI;
MARTINS, 2017).
O dispositivo de inclusão neoliberal
O despertar de políticas que buscam a inserção dos deficientes e de
outras categorias excluídas socialmente demonstram o emprego de outra
forma de governamentalidade que pretende agregar novos membros à
categoria da população regulável e constituir saberes sobre esses grupos.
Foucault caracterizou esse mecanismo como modelo de inclusão da peste.
Essa tecnologia de governo se aprimorou nos séculos XVI e XVII a partir
da experiência de gerenciar e controlar a disseminação da peste. Esse
modelo da quarentena, diferente da exclusão do leproso que bane os
indivíduos do convívio social, observa, controla, constrói saberes e
regulamenta as condutas e os corpos (FOUCAULT, 2002b).
(...) uma organização como essa é, de fato, absolutamente antitética,
oposta, em todo caso, a todas as práticas relativas aos leprosos.o se
trata de uma exclusão, trata-se de uma quarentena. o se trata de
expulsar, trata-se ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir um
85
lugar, de definir presenças, e presenças controladas. Não rejeição, mas
inclusão. Vocês estão vendo que não se trata tampouco de uma espécie
de demarcação maciça entre dois tipos, dois grupos de população: a
que é pura e a que é impura, a que tem lepra e a que não tem. Trata-se
ao contrário, de uma série de diferenças sutis, e constantemente
observadas, entre os indivíduos que estão doentes e os que não estão.
Individualização, por conseguinte divisão e subdivisão do poder, que
chega a atingir o grão fino da individualidade (FOUCAULT, 2002b,
p. 57).
Temos, portanto, com as ações mencionadas no capítulo anterior
e esboçadas pelos retratos históricos aqui relatados para uma
anarqueogenalogia porvir, muitos limites a serem vencidos para uma
inclusão social e educacional dos corpos com deficiência, quem sabe,
porém, uma sofisticação nos mecanismos de gerenciamento da população
por parte do Estado, que pretende de algum modo inseri-los num
maquinismo social que lhes ofereça meios para que consigam tornarem-se,
em alguma medida, produtores e consumidores. Tem-se o início de um
processo de inclusão subordinado aos anseios liberais, na medida em que
ele proporciona a incorporação desse grupo marginalizado nos
mecanismos do mercado, atuando assim como um dispositivo da
biopolítica neoliberal.
Esse debate se intensificou com um viés mais democrático em
meados dos anos 1990 quando, seguindo movimentos internacionais
como a Declaração de Salamanca em 1994 (UNESCO, 1994), em que se
começa a pensar as políticas de integração de modo a ampliá-las para
políticas de inclusão total. Como resultado desses debates, ainda que de
modo não consensual entre pesquisadores, comunidade e lideranças, é
promulgada a PNEEPEI em 2008, que defendia a exclusividade da
86
inclusão no ensino regular, com apoio do AEE nos casos em que se fizesse
necessário. Diante desse quadro, em que a incluo se destaca como
dispositivo do neoliberalismo biopolítico, conforme entenderemos
adiante, percebemos que a origem das contradições e das dificuldades
encontradas nas tentativas de implementação de práticas de inclusão na
escola, com destaque para o caso ilustrado, podem ser decorrentes das
políticas de inclusão que até hoje não se desprenderam dos saberes da
Educação Especial.
No Brasil, é a partir dos anos 1990 que o termo inclusão tornou-
se recorrente na formulação das políticas públicas, evidenciado pelos
discursos de democratização da educação oriundos das políticas
educacionais implementadas pelos governos Fernando Henrique Cardoso
e Lula. Essas políticas foram responsáveis por trazer o conceito de inclusão
em larga escala para os espaços educativos e por dissipá-lo por todo o corpo
social.
As políticas de inclusão pretendem oferecer o suporte necessário
para que se rompam barreiras de modo que todos tenham meios de
pertencer ou de participar dos espaços coletivos e de ter acesso a serviços
essenciais como educação e saúde. Enquanto política educacional, a
inclusão tem por objetivo valorizar a diferença e gerar um movimento de
inserir nos espaços escolares comuns todos os indivíduos,
independentemente de suas particularidades físicas, psicológicas ou sociais.
Sob um ponto de vista democrático, esse discurso torna-se bastante
sedutor, reproduzido e enraizado pelo slogan do compromisso mundial
“educação para todos” (UNESCO, 1990).
Entretanto, é preciso destacar a centralidade que a inclusão possui
como dispositivo da biopolítica neoliberal (SANTOS; KLAUS, 2013).
Esse modelo de gestão de mercado produz a necessidade de construção de
87
um sujeito aprendente ao impor ao profissional a condição de estar em
constante aprimoramento para enfrentar a competitividade do mercado,
explícitas pelas ideias de educação para a vida toda e de capital humano.
Com isso, a escola enquanto dispositivo da governamentalidade da
infância, procura forjar o protótipo ideal de futuro profissional: flexível,
adaptável, autocorrigível e autoavaliável. Para a manutenção de tal modelo
econômico, torna-se fundamental que todos façam parte dele, ainda que
em diferentes graus de participação, produzindo e consumindo (RECH,
2013). Por essa abordagem percebemos que as políticas de inclusão escolar,
englobando também as políticas voltadas para a Educação Especial, visam
prioritariamente alimentar esse sistema econômico.
Os governos Lula e FHC, conservando suas diferenças, investiram
na inserção do Brasil na lista de países desenvolvidos, para tanto, fez-se
necessáriadentre outras estatísticas - a elevação de índices educacionais.
Segundo Lopes e Rech (2013), ambos buscaram em seus governos, através
de políticas públicas, envolver toda a população no jogo econômico
neoliberal. Dentro de seus princípios destacam-se a mobilidade, a
possibilidade de ascender profissional e economicamente, a liberdade e a
autonomia do indivíduo, esse perfil de cidadão produtor-consumidor
sustenta as engrenagens da máquina neoliberal.
Oriundo do liberalismo clássico que repudia a intervenção do
Estado, sua nova versão defende o Estado mínimo, mas promovendo
condições para que saúde, educação e segurança garantam o livre curso do
capitalismo. No neoliberalismo o Estado tem o papel de oferecer meios
para que todos participem desse mecanismo mantendo ativo o
funcionamento do mercado. Por essa razão, é fundamental que o Estado
busque formas para que os excluídos passem a fazer parte do todo,
88
contribuindo, cada um em seu grau, com consumo e produção para a
manutenção dessa estrutura (LOPES; RECH, 2013).
Dentro desse modelo econômico, que também se configura como
modo de vida, a competitividade possui papel central nas relações e na
formação dos sujeitos. Desde a escola, as crianças são imersas nessa
racionalidade, para tornarem-se cidadãos enquadrados nos requisitos
exigidos pelo mercado de trabalho, todos devem buscar incessantemente
seu autoaprimoramento. Dessa forma, segundo Rech (2013), o indivíduo
é estimulado a ser um sujeito aprendente, num corpo social em que os
processos de ensino e aprendizagem devem ser permanentes, a escola ocupa
espaço de destaque na construção desse sujeito, moldando no aluno o
futuro profissional enquadrado nos anseios de população governável, o
trabalhador ideal do neoliberalismo: automonitorizado, autocorrigível,
autoavaliável e flexível (RECH, 2013).
O caráter de competitividade presente na formação dos sujeitos na
escola torna por vezes contraditória a presença dos corpos deficientes nessa
instituição, na visão de alguns pais, por exemplo, porque eles podem
atrasar o desenvolvimento do conteúdo na classe em que estão
matriculados, prejudicando o avanço do potencial de competitividade de
seus filhos. Por outro lado, na medida em que a escola toma para si o
paradigma da competitividade ela reforça o caráter assistencialista da
inclusão, excetuando somente os casos vistos como de superação oriundos
dos sujeitos capazes de extrapolarem as limitações impostas por suas
deficiências e se destacarem diante da competitividade do mercado e da
sociedade, tal como interpretado por Pagni (2019b).
O neoliberalismo é definido por Lopes (2009) como um jogo com
duas regras básicas. A regra 1 consiste em manter-se sempre em atividade,
ninguém pode parar ou estar de fora dos jogos do mercado. Nessa lógica,
89
Estado e mercado encontram-se cada vez mais articulados e dependentes
um do outro para educar e garantir que a população viva em condições de
sustentabilidade, empresariamento e autocontrole. Por sua vez, a regra 2
prescreve que todos devem estar incluídos, porém em diferentes níveis de
participação, não se admite que alguém perca tudo ou fique sem jogar.
Para tanto, as condições principais de participação são três: primeiro,
ser educado em direção a entrar no jogo; segundo, permanecer no jogo
(permanecer incluído); terceiro, desejar permanecer no jogo (LOPES,
2009, p. 155).
Esse jogo é gerido em certa medida pelo Estado que deve garantir,
mesmo aos indivíduos que não tem condições de gerar seu próprio
sustento, que possam participar, ainda que minimamente, da rede de
consumo. Citando Foucault, Lopes (2009) esclarece que a inclusão
possibilita, dentro da estrutura neoliberal, que todos se mantenham
pertencentes às redes do mercado. Desse modo, percebemos como o
dispositivo escola”, alinhado ao dispositivo inclusão”, são determinantes
para o bom funcionamento das engrenagens da biopolítica neoliberal.
Para os atores desse processo de inclusão um preço cobrado para
se fazer parte dessa rede e para se obter a segurança oferecida pelos
dispositivos do biopoder: submeter-se à norma pode significar abrir mão
da biopotência produzida pela diferença. Segundo Pagni (2019a) nas
fragilidades dos corpos desviantes, a possibilidade de afrontamento e de
resistência à biopolítica neoliberal e suas tecnologias de poder. Apesar dos
dispositivos de inclusão operarem na lógica do mercado e almejarem a
produtividade e a busca pela eficiência com objetivo final no consumo, a
presença desses corpos desviantes na escola mobiliza a reflexão sobre sua
formação ética e permite a formação de linhas de fuga e a construção de
90
novos paradigmas de inclusão. As redes de amizade e alianças formadas
pela convivência com esses corpos podem construir novos modelos
transversais de inclusão que extrapolam as forças descendentes da
governamentalidade que buscam enquadrar essas vidas e que deixam às
margens os restos e excessos. Temos, sob esse ponto de vista, na presença
desses corpos ingovernáveis na escola, a oportunidade do surgimento de
focos de resistência à governamentalidade da biopolítica neoliberal em
vigência.
O problema que se coloca, porém, diante desse diálogo com a
literatura de viés foucaultiano, é em que medida seria possível pensarmos
nesse outro paradigma de inclusão que revele a (bio)potência dos corpos
deficientes e os efeitos desreguladores de sua ingovernabilidade numa
instituição cuja proveniência reitera esse tipo de racionalidade
governamental biopolítica e as tecnologias de biopoder que incidem sobre
a anátomo-política do corpo com vistas a normalizá-lo? Para responder a
essa questão nos parece importante tanto uma análise crítica de como
ocorre essa racionalidade governamental à luz dos estudos foucaultianos
quanto uma discussão sobre a possibilidade de tentar expandir seus
limiares, caso desejemos pensar na possibilidade de outro paradigma de
inclusão no interior dessa instituição.
91
Escola Enquanto Dispositivo de Governo da Infância
e o (Não) Lugar dos Corpos Deficientes: Por Outro
Paradigma de Inclusão Escolar
No cenário que relatamos anteriormente, podemos perceber alguns
desconfortos gerados pela tentativa de promover uma inclusão mais ampla
dos deficientes nas escolas, evidenciados pela relutância em inserir esses
sujeitos de modo irrestrito no ensino regular e materializados pela
preservação de uma Classe Especial dez anos após a implementação da
PNEEPEI. Nesses retratos, focamos na insistência pela busca por grupos
homogêneos obtidos por meio de pequenas práticas segregacionistas, a
partir da distinção do grau de comprometimento dos sujeitos, e da
correção, seja por técnicas especializadas, seja pelo uso de fármacos. Esse
quadro nos expõe algumas questões. A primeira, uma certa resistência por
alguns segmentos de pais e profissionais da educação ao modelo de
inclusão proposto em 2008, evidenciada acima. A segunda, ligada à
sujeição do dispositivo de inclusão à governamentalidade neoliberal que
atua de modo a limitar a abrangência subjetiva dessas práticas às
necessidades do mercado. A terceira, e prioritária para nós, a necessidade
de servimo-nos desse caso e das inúmeras experiências vivenciadas nos
últimos anos para a construção de um novo paradigma de inclusão, onde
os deficientes possam ser protagonistas desse planejamento, e que implique
em sua real visibilidade e no aprendizado com seus modos próprios de
existência.
92
Dispositivo, tecnologias disciplinares e subjetivação
Através deste termo [dispositivo] tento demarcar, em primeiro lugar,
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer
entre estes elementos (FOUCAULT, 2008a, p. 244).
Quando pensamos como Foucault, a noção de dispositivo nos
remete a uma ação sobre o indivíduo com o objetivo de conduzi-lo,
acionada por instituições, práticas ou discursos que atuam como
operadores materiais do poder (REVEL, 2005). A escola ocupa lugar
privilegiado enquanto dispositivo responsável pelo governo da infância.
Pode ser caracterizada como instituição disciplinar e tem por principal
tarefa formar corpos dóceis, indivíduos e subjetividades disciplinadas de
acordo com os modelos de sujeito e de sociedade que interessem à
governamentalidade. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT,
1987, p. 163). A escola, enquanto instituição e dispositivo disciplinar da
infância, tem por uma de suas funções, preparar os indivíduos para a
permanência em outras instituições, como as fábricas, hospitais e, por
vezes, prisões. É importante ressaltar que essa sujeição ocorre
necessariamente com indivíduos livres, para Foucault as relações de poder
se constituem enquanto tal em situações de liberdade (FOUCAULT,
1995).
93
A escola moderna configura-se como uma farta fonte de
informações sistematizadas produzidas pela observação das crianças, pelos
registros gerados e pelas avaliações. Esses saberes tornam-se base para novas
ciências bem como do próprio estabelecimento da norma que será imposta
e verificada, posteriormente servirá de parâmetro para a classificação das
crianças. O final do século XVIII traz para o interior da escola certo
modelo fabril que otimiza o aprendizado e o tempo do professor, que
classifica e hierarquiza os alunos conforme suas capacidades e seus
rendimentos. Os estudantes são individualizados, organizados em fileiras e
seus lugares são demarcados em virtude de suas características como
desempenho, atenção, comportamento, higiene. As classes dividem os
alunos de modo a obterem-se grupos homogêneos (classificados por idade,
classe social, nível de aprendizado), na tentativa de facilitar e tornar mais
eficaz o processo de ensino (FOUCAULT, 1987).
A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição
de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou
perigosas em multiplicidades organizadas. A constituição de “quadros”
foi um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e
econômica do século XVIII; arrumar jardins de plantas e de animais, e
construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos;
observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da
moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como
princípio de enriquecimento; inspecionar os homens, constatar sua
presença e sua ausência, e constituir um registro geral e permanente das
forças armadas; repartir os doentes, dividir com cuidado e espaço
hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças: outras
tantas operações conjuntas em que os dois constituintes distribuição
e análise, controle e inteligibilidade são solidários. O quadro, no
século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo
de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento
94
para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma ordem”
(FOUCAULT, 1987, p. 174, grifos do autor).
Assim, até os dias atuais os indivíduos são, na escola e fora dela,
divididos, nomeados, classificados, hierarquizados e submetidos à norma,
à correção, aos padrões de desempenho, de normalidade, de corpo ideal,
às expectativas de sucesso profissional, acadêmico, escolar, aos modelos de
sucesso social, pessoal, familiar. O modelo de disciplinamento busca a
constante otimização do potencial produtivo de cada sujeito, não somente
para que realize o desejado, mas para que o faça de acordo com as técnicas
de rapidez e eficácia que se determina, de modo que os gestos e o tempo
para execução sejam minuciosamente controlados; paralelamente institui
um modo de dominação que busca reduzir ao máximo a capacidade de
reação política dos sujeitos. Um corpo analisável e manipulável, um corpo
dócil, que produz e não reage, que se autorregula, um autômato. Esse
modelo de escola disciplinadora de corpos é o que predomina em nossa
sociedade, é essa escola que recebe a massa de filhos de trabalhadores em
todo o território nacional, preparando-os para o mundo do trabalho,
exercendo sobre seus corpos um poder anátomo-político que os normatiza,
amparada pelo saber médico. Não afirmamos aqui que não existam
pontualmente modelos e instituições escolares capazes de formar para a
vida, de educar para a diferença, apenas nos detemos nesse exemplo
hegemônico por sua forte influência na constituição de nossa sociedade e
pelas suas marcas evidenciadas no caso retratado.
O dispositivo disciplinar na escola molda os corpos para as
exigências do mundo do trabalho e para a vida adulta em sociedade, os
ensina a controlar o tempo: hora de acordar, hora de entrar na escola, hora
de comer, de ir ao banheiro, de falar, de ficar em silêncio; os ensina a
95
obediência à hierarquia, às regras, às convenções de convívio social; impõe
um ritmo coletivo e obrigatório, o tempo penetra o corpo (FOUCAULT,
1987). Mais que o aprendizado dos conteúdos escolares, o
condicionamento e o disciplinamento dos indivíduos, na busca pelos
corpos dóceis, é papel essencial da instituição escolar enquanto ferramenta
da biopolítica. Na medida em que a escola coloca-se enquanto dispositivo
disciplinar, acatando as exigências do mercado na formação dos sujeitos,
ela é sufocada por essas práticas normalizadoras e corretivas e distancia-se
de seu objetivo inicial de formação do sujeito autônomo.
Os dispositivos disciplinares apresentam alguns mecanismos para
alcançar seus objetivos de produzir modelos de sujeitos eficazes, como a
vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, vejamos. A
vigilância hierárquica é, como Foucault define, a tecnologia usada pelas
disciplinas que faz uso de uma ampla e constante vigilância dos indivíduos
como instrumento para a ação do poder. Essa ferramenta atua a partir da
organização apropriada da arquitetura e das distribuições espaciais, de
modo a tornar visíveis os indivíduos a serem conduzidos e a operar
diretamente em sua transformação. Esse mecanismo de controle no
interior das instituições disciplinares atua a partir de observações de
comportamento, registros e centralização dessas informações. Voltando o
olhar para as escolas modernas, essa organização fez uso de uma relação de
fiscalização a partir da escolha, dentre os alunos que se destacavam, de
figuras com poderes hierárquicos sobre os colegas, como monitores ou
inspetores com tarefas específicas que permitiam a capilarização da
vigilância (FOUCAULT, 1987).
As novas tecnologias proporcionam hoje a disseminação da
sensação de vigilância e da possibilidade de observação irrestrita da vida.
As câmeras de segurança encontram-se disseminadas pelos espaços
96
públicos e privados, o amplo acesso a smartphones viabiliza que qualquer
ação seja captada e as redes sociais dão suporte para que, em segundos,
esses registros sejam compartilhados e viralizados. Nossa subjetividade está
incorporada a esse desejo de exposição, de tal modo que, o indivíduo torna-
se seu próprio vigilante, filmando e fotografando seus espaços privados e
promovendo sua ampla divulgação.
Outra ferramenta das disciplinas, a sanção normalizadora atua
como um pequeno mecanismo penal, o interior das disciplinas estabelece
um sistema próprio de leis, sanções e julgamentos que tem por objetivo
valorizar ou reprimir comportamentos que não estão inseridos nos sistemas
maiores de arbitragem. Partindo de nosso foco, que é a escola, observam-
se normas claras e específicas quanto ao controle do tempo, espaço,
condutas, produção, hierarquia; seu desvio é passível das mais variadas
penas de acordo com o que rege internamente cada instituição e com a
gravidade e reincidência das práticas. Violações com atrasos, ausências,
vestuários inadequados, descumprimento de prazos, uso de vocabulário
inapropriado; podem ser puníveis com privações, repreensões,
advertências, suspensões e até mesmo desligamentos.
Se direcionarmos essa análise para as instituições de educação
infantil, o funcionamento permanece, contudo muitas das punições são
aplicadas ou estendidas aos pais: atrasos, comportamentos indesejados,
vestuário inadequado; as crianças estão sujeitas pela própria fase de
desenvolvimento a repreensões verbais ou exaltações pelo bom
desempenho ou comportamento exemplar.
Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues
da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos
aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao
97
extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada
indivíduo se encontre preso numa universalidade punível-punidora
(FOUCAULT, 1987, p. 203).
Guardando as diferenças com modelo escolar ao qual Foucault se
refere, mais rígido, com penas mais duras, por vezes físicas, e padrões de
conduta descritos em manuais, o mecanismo permanece, adaptado ainda
que não o suficiente para os padrões aceitos socialmente na atualidade.
A punição atua na disciplina como parte de um sistema de gratificação-
sanção, este mecanismo permite qualificar no intuito de reforçar os
comportamentos desejáveis ao mesmo tempo em que inibe os
inapropriados. Ele opera de modo a construir um sistema de
hierarquização dos indivíduos e se alimenta, por meio dos dados coletados,
seu processo de acumulação de saberes.
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção
que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que
permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos
uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados.
É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é
altamente ritualizado. [...] A superposição das relações de poder e das
de saber assume no exame todo o seu brilho visível (FOUCAULT,
1987, p. 209).
A escola retrata singularmente a força da tecnologia do exame, ela
o aplica de modo ininterrupto por todas as etapas do processo de ensino.
Essa ferramenta não funciona somente como meio de averiguar a eficácia
da aprendizagem, ela também levanta dados e constrói saberes acerca do
processo educacional, tornando-se fonte para a elaboração da pedagogia
98
enquanto ciência, que corrobora o agenciamento técnico-científico
postulado pelo paradigma de inclusão anteriormente explicitado.
O exame produz um registro intenso dos resultados gerando vasta
documentação que possibilita a classificação dos indivíduos, na escola,
permite discriminar sua posição em relação à média na busca de orientar o
melhor lugar para encaixá-lo e as técnicas mais eficazes para conduzi-lo.
Essa técnica destaca o processo de individualização dos sujeitos. O
desenvolvimento desse aparelho de escrita permite o aperfeiçoamento das
disciplinas em duas frentes: a primeira possibilita o acesso imediato a
informações específicas de cada indivíduo, sempre que se fizer necessário;
a segunda acumula elementos para o estabelecimento de saberes que
constituirão a norma, os padrões, as dias que nortearão através de
campos comparativos e da criação de categorias as classificações, as
identificações de desvios, as análises no âmbito da população. As
disciplinas tornam acessíveis e relevantes todas as individualidades, o aluno
doente tem registrado em seu histórico, em seu prontuário, seus desvios,
suas médias, suas notas e inúmeros elementos que lhes destacam suas
singularidades. “O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de
formação de saber a uma certa forma de exercício do poder”
(FOUCAULT, 1987, p. 211).
Finalmente, o exame está no centro dos processos que constituem o
indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber.
É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora,
realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de
extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética
contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação
da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. Com ele
se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma
99
palavra dizendo que são uma modalidade de poder para o qual a
diferença individual é pertinente (FOUCAULT, 1987, p. 216).
Ao contrário da sociedade soberana, o regime disciplinar estabelece
uma individualização descendente, na qual se destacam os sujeitos
desviantes, crianças, anormais, delinquentes e quando se pretende
individualizar o adulto são e o normal, busca-se nele as características do
desvio. A norma então se estabelece a partir dos estudos e dados levantados
prioritariamente pela observação do que se julga anormal. Segundo
Foucault, as tecnologias obtidas na organização da sociedade disciplinar, o
poder que incide na anatomia do corpo e os saberes acumulados nessas
observações e registros, permitiram o surgimento das ciências do homem,
a pedagogia é uma delas.
Enquanto tal, o governo pedagógico da infância se nutre de outras
tecnologias como as que exploramos anteriormente, com uma finalidade
corretiva e normativa. Tanto uma quanto outra tecnologia de poder é
positiva, pois a partir delas os saberes, as verdades, os campos e os objetos
de conhecimento emergem e se desenvolvem, como visto no capítulo
anterior, com vistas a sujeitar o indivíduo, promover sua identidade e
escolhas, formá-los por meio de processos de subjetivação que o colocam
em sintonia com o biopoder, os seus jogos e capacitações vigentes.
Nesse minucioso sistema cada indivíduo ocupa um lugar específico,
professores, alunos, administradores, etc. e são, portanto, afetados de
diferentes maneiras, de modo que não se deve falar aqui de opressão,
tirania ou violência. Foucault mostra, não apenas em Vigiar e Punir,
mas em seus primeiros cursos no Collège de France como o poder
disciplinar e, mais tarde as artes de governar que lhe são correlatas, é
um substituto, por assim dizer, da simples violência e, é justamente por
100
isso, que esses dispositivos produzem os seus sujeitos, quer dizer,
subjetivam; são máquinas de governar mais do que simplesmente
aparelhos de dominação e violência.
Os indivíduos são sujeitados na escola de diversos modos, conforme
seu lugar relativo na rede e, conforme um jogo de verdade
(poder/saber) que lhes é imposto. Podem ser tomados como objeto de
investigação, mas também como produtores de verdade. São, pois,
subjetivados nesses exercícios em que são exortados a falarem de si,
contribuírem nas práticas institucionais, examinarem e serem
examinados. De fato, esse poder escolar recai muito mais sobre a
criança, ou melhor, na forma criança, ou dispositivo criança, que a
instituição escolar produz e dissemina. Ele, o poder escolar, procura
atingir todas elas (as crianças), na mesma forma, a mesma linha de
normalidade, isto é, não se produz um sujeito qualquer, mas um sujeito
calculado pelas práticas de disciplina e governamento (VALÉRIO,
2018, p. 28-29).
Enquanto dispositivo, a escola não somente conduz condutas e
governa os corpos infantis, como também produz subjetividades, constrói
modelos idealizados de sujeitos, individualidades.
Segundo Foucault, um dos processos de subjetivação possíveis, isto
é, “processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, ou, mais
exatamente, de uma subjetividade” (REVEL, 2005, p. 82), é o próprio
mecanismo da governamentalidade, mais especificamente as “práticas
divisoras” (FOUCAULT, 1995, p. 231) que concebem o sujeito enquanto
um objeto e o classificam a partir da comparação com o outro: normal
anormal, doente são, delinquente homem de bem. Desse modo, os
dispositivos disciplinares, enquanto ferramentas essenciais da
governamentalidade biopolítica, atuam diretamente nos indivíduos como
um dos mecanismos que conduzem o sujeito.
101
A educação é uma das formas privilegiadas desse dispositivo de
passagem antropogenético; nela conjugam-se, de modo exemplar, as
formas de produção de subjetividade, de sentido e de poder nos quais
se sustenta o humano (LOPEZ, 2012, p. 284).
Partindo dessa análise, não dificuldade em pensar o papel de
destaque em que se encontra o governo da infância numa sociedade que
pretende exercer o poder sobre os indivíduos de forma cada vez mais
capilarizada e minuciosa. E, analogamente, pode-se compreender também
o papel intransponível até o momento que os agenciamentos reguladores
da vida social e normalizadores dos corpos individuais ocorrem,
procurando corrigir aqueles que desviam da norma e governar as forças que
emergem como forças desreguladoras nesse indivíduo. A escola se
evidencia nas engrenagens desse mecanismo biopolítico e anátomo-
político como promotora dessa normalização e desse governo sobre a
infância, com vistas a formar uma população governável, e os indivíduos
como atores capazes de obedecerem e agirem na cena pública. Quanto aos
corpos deficientes, nessas engrenagens, são vistos como de menor
protagonismo, de engripamento ou de descarrilamento de uma linha que
não os aprisiona por completo, mas instiga aos demais que também não se
sintam cativos a esses seus mecanismos, inspirando certas sublevações,
heterotopias, resistindo a certa homogeneização (PAGNI, 2019b).
Governo da infância
O governo para Foucault se distancia do sentido atualmente
popularizado para o termo, que o relaciona exclusivamente ao Estado,
102
governo ou governamento diz respeito à condução de condutas, está ligado
às relações de poder que se dispersam pela sociedade em forma de rede. O
poder para ele não é uma entidade independente, existe enquanto ato e é
exercido exclusivamente entre sujeitos, sejam eles coletivos ou individuais
(REVEL, 2005, p. 68).
O poder se exerce em rede e, nessa rede, não os indivíduos circulam,
mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também
de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, o
sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos
indivíduos, não se aplica a eles (FOUCAULT, 2005, p. 35).
Se pensarmos na educação como um conjunto de ações em que
uns indivíduos conduzem os outros, logo, a escola se distingue enquanto
ferramenta da governamentalidade estatal, pois tem por papel a condução
por meio da correção dos corpos infantis que se tornarão os sujeitos
adultos, trabalhadores, produtores e cidadãos do amanhã. A infância, por
ser constituída por novos seres que acabam de chegar ao mundo, remete a
ideia do não-ser, o ser que ainda está por vir. A criança representa o novo,
o estrangeiro que acaba de desembarcar, que ainda não pertence a este
mundo, ela não possui a linguagem organizada, nem o pensamento lógico,
nem a prudência e nem a racionalidade do adulto moldado. Ela traz
consigo o potencial de renovação do mundo e de lhe configurar em novas,
desconhecidas e infinitas possibilidades. A infância pode vir a ser o que não
queremos, a desorganização da sociedade estável que possuímos, por isso,
ela se tornou um desafio.
Cabe à educação trazer respostas para esse problema. Para tanto, a
ciência pedagógica tem o papel de construir os saberes necessários ao
103
governo da infância e garantir que dela resultem adultos como nós, de lhes
passar nossa identidade, cultura, valores para que deixem de ser
estrangeiros e mantenham estável a estrutura em que vivemos
(DANELON, 2015). Segundo Ariès (2012), a infância é uma invenção
moderna, ganhou centralidade nessa sociedade, tornou-se núcleo de
estudos de diversas ciências, é na modernidade que a escola organiza seus
espaços e metodologias para acolher a infância e tornar-se palco principal
de seu processo formativo. A modernidade constrói técnicas específicas
para o governo da infância, a partir de estudos, investigações e teorias, essa
fase da vida torna-se um verdadeiro laboratório. Enquanto no mundo
medieval, as crianças eram consideradas adultos em miniatura, tendo seu
universo misturado ao dele, o advento da modernidade possibilitou que a
criança passasse a ser vista em suas particularidades: seu corpo considerado
frágil e sua racionalidade inapta para cuidar de si mesma. Por essa razão,
surge a necessidade de se construírem saberes capazes de proporcionar um
processo formativo adequado e capaz de compor um corpo adulto
disciplinado.
A escola que emerge na Modernidade conjuga em seu interior uma
série de saberes da Filosofia, da Medicina, da Biologia, do Direito,
da Psicologia sobre a infância, sobre o professor, sobre ensino e
aprendizagem, estabelecendo padrões desejáveis de formação, de
comportamento, de pensamento. São saberes sobre a infância e sobre a
educação que tornam possíveis exercícios de poder sobre o professor e
sobre a criança (DANELON, 2015, p. 221).
Esse período que, de acordo com Pagni (2010, p.103), podemos
compreender como de “descoberta da consciência da infância”, coincide
com o tempo histórico analisado por Foucault (2008a), no qual se
104
ampliam as formas de governamentalidade da população, agregando ao
modelo único de poder soberano, o “exercício da arte de governo pastoral”.
Dessa perspectiva de análise, a pedagogia parece ser uma das artes que
aspirou a governar especificamente a infância, com a finalidade de
transformar a resistência que os infantes lhes oferecem em um governo
de si, consciente, próprio do adulto e do cidadão, que obedece ao
instituído, a partir da consciência de sua particularidade. Por sua vez,
mediante as intermináveis resistências da infância a tal exercio de
governo, a arte pedagógica se reformula, desde então, no sentido de
produzir outros modos de governo de si, das relações com o mundo e
com os outros, na modernidade, entretecendo-se com outras formas de
governamentalidade (PAGNI, 2010, p.103).
A instituição escolar por meio do professor e embasada pelos
saberes da ciência almeja ser capaz de construir e aplicar um projeto de
educação universal, apto a formar todas as crianças de modo a torná-las
adequadas aos padrões ideais de sujeito moral, emancipado, racional e
dócil. Essas ciências, como pedagogia, medicina, psiquiatria, produzem
uma série de discursos baseados em seus saberes, que capturam a criança e
sua subjetividade, traçando muitas vezes um destino em potencial para os
sujeitos, em boa parte, assumidos por eles, tornando-se presságios do
indivíduo que está por vir. Esses discursos, oriundos da observação
sistemática das crianças no dispositivo escolar e registrados regularmente,
sustentam sistemas de classificação e de diagnóstico dos indivíduos,
orientam a constituição da norma e alimentam a formação desses saberes
de modo circular e contínuo. Esse sistema de diagnóstico e de classificação
é fundamental para o funcionamento da máquina de governamentalidade,
na medida em que tais discursos capturam as subjetividades, eles justificam
105
a existência de instituições de correção, como a escola (FOUCAULT,
2002b).
A correção, como vista anteriormente, é ferramenta fundamental
da biopolítica, pois o corpo social, pais, governantes, família e educadores
buscam ao máximo evitar o desenvolvimento de figuras indesejáveis
decorrentes do desvio da norma.
[...] as instituições disciplinares – a escola, entre elas encontraram um
campo de saber que justificasse sua existência: um comportamento
a ser corrigido; um caráter a ser formado; um sujeito a ser
governado. Os desvios de comportamento, psiquiatrizados no século
XIX, denotam uma deformidade na formação. [...] O sujeito do século
XIX deve ser disciplinado, corrigido e governado em todo o seu
processo de formação. Trata-se do governo da infância. [...] A escola
aparece como uma instituição poderosa de adestramento, de
disciplinamento e de governo das crianças. Uma poderosa engenharia
de formação de sujeitos normalizados, de sujeitos governados a fim de
produzir comportamentos desejáveis e assimiláveis ao padrão de
normalidade. Trata-se da escola enquanto um espaço de formação
(Bildung) de sujeitos civilizados (DANELON, 2015, p. 226).
Para Foucault (2002a) as disciplinas são uma modalidade de poder,
através delas se obtém um saber sobre os sujeitos ao mesmo tempo em que
produz discursos e o próprio sujeito que se torna ao mesmo tempo
produtor e produto do discurso. Esses saberes nascem das práticas de
controle e vigilância e o discurso, na sociedade disciplinar, busca produzir
a verdade sobre o sujeito, o que Foucault denomina de vontade da verdade.
Essa produção de verdades baseia-se nas instituições disciplinares, são elas
que “se apoderam dos discursos [...] para produzir verdades sobre o sujeito,
produzir normalidade e anormalidade. (DANELON, 2015, p. 231).
106
A sociedade moderna, enquanto sociedade disciplinar é atravessada
pela reestruturação do sistema penal e judiciário que abandona seus
padrões moralizantes medievais e passa a basear-se nos padrões de
legalidade na busca pela organização da sociedade. Para determinar o legal
e o ilegal a análise gira em torno do que traz mal para a sociedade. O
controle busca punir quem a danifica ou perturba, mas também pretende
agir sobre os riscos em potencial existentes nos indivíduos. No
ordenamento da sociedade disciplinar, a justiça não deve efetuar a punição
das ações que existem ainda como potência, esse controle específico é papel
das instituições de formação de pessoas, como escola, hospitais, prisões,
fábricas que por meio da vigilância sistemática atuam enquanto
ferramentas principais na educação dos indivíduos, moldando-os e
enquadrando-os na legalidade, produzindo pessoas e subjetivações, um
cenário que Foucault denomina como ortopedia social (2002a).
A escola se forja enquanto a principal instituição de formação da
população, cientificamente apoiada pela pedagogia, tornou-se importante
produtora de verdades sobre os indivíduos e sobre técnicas de ensino,
metodologias e aprendizagem, ferramenta fundamental na correção e no
governo da infância. Por meio do currículo a governamentalidade orienta
que tipo de cidadão a escola deve formar, esse dispositivo planeja e controla
as atividades pedagógicas e tem por objetivo político produzir um modelo
de cidadão. Essa prática implica na normalização do estudante, pois, a
partir do momento que busca construir o sujeito ideal, ela exclui os
desviantes (DANELON, 2015, p. 236).
Temos na escola a elaboração de um complexo mecanismo de
vigilância e controle que disciplina, molda e elabora os sujeitos desejáveis;
ela acolhe a infância e a captura na tentativa de tornar esses seres ainda
ingovernados, esses sujeitos estrangeiros, em corpos dóceis e disciplinados,
107
formar indivíduos que possam ser incluídos nas engrenagens da sociedade
e do mercado, devidamente adequados aos padrões de normalidade e aptos
para serem agentes de produção e de consumo. Na sociedade moderna, as
instituições disciplinares atuam como pilares da governamentalidade e a
escola se destaca pelo seu papel de responsável pelo governo da infância.
Os ingovernáveis, ora representados por grupos que se colocam à
margem dos mecanismos da governamentalidade neoliberal, ora pelos
corpos que escapam dos dispositivos que buscam incluí-los nessa máquina,
representam “certa impotência do pleno governo estatal” expondo alguma
fragilidade da biopolítica neoliberal (PAGNI, 2018, p. 206). O
funcionamento adequado dessa estrutura política e econômica do governo
neoliberal, que também se configura como modo de vida, requer a
participação de todos os indivíduos em sua dinâmica de produção e
consumo. Seu aperfeiçoamento procura sempre construir meios de agregar
novos segmentos para que nenhum escape de sua regulamentação. Os
grupos que demonstram resistência a se adequarem à norma e a
pertencerem ao jogo da governamentalidade neoliberal são expostos “a
viver uma vida sem regras e a existir num Estado de exceção” (PAGNI,
2018 p. 207).
Cenas e sinais de resisncia
O papel central desempenhado pela escola, enquanto dispositivo
fundamental de governamento da população, propicia ao Estado que
mantenha a gerência tanto da informação quanto da economia.
Entretanto, essas ferramentas de controle têm sua eficácia reduzida quando
segmentos da população se encontram alheios ao seu poder, fora de sua
108
regulação. Incluir, sob essa perspectiva, passa a ser fundamental na
expansão e no fortalecimento desse modelo de governamentalidade. Todos
os indivíduos precisam estar vigiados, sob controle do Estado, inseridos no
interior da estrutura e normalizados. Por essa razão, percebe-se que a
inclusão social se torna peça fundamental nos mecanismos da biopolítica
neoliberal. Contudo, no modo de funcionamento da escola, sobretudo
quando assume a sua feição neoliberal, se apoiando em uma racionalidade
governamental empresarial e promovendo a formação do capital humano
(PAGNI, 2019b), o que se é uma inclusão que ocorre de maneira
descendente, nem sempre com a participação dos demais atores da escola,
muito menos daqueles que trazem em seu corpo a inscrição “deficiente”.
Pensar numa outra forma de inclusão seria uma maneira de pensar
taticamente as lutas para que esses corpos e as comunidades que os reúnem
criem espaços para que sejam visibilizados, assumam seu lugar na
enunciação e em processos de subjetivação produzidos pela escola,
ampliando seus direitos como também o engajamento em lutas imediatas,
locais e transversas.
Ao que tudo indica, a observação desses focos de resistência se faz
urgente e deveria ser tomada como prioritária nesse terreno da inclusão
escolar. Para isso, também, a escola e os dispositivos de inclusão nela em
curso poderiam se rever, deixando de se fixar somente no currículo, na
adaptação curricular e nos AEEs, para expandir sua percepção às alianças
promovidas e aos acontecimentos produzidos pelos encontros desses
corpos deficientes nessa mesma instituição.
No caso disparador destas reflexões, ficcionalmente reconstituído
nessas páginas, encontramos não somente os paroxismos, as contradições
de dois paradigmas distintos de Educação Especial ou, mesmo, um
dispositivo que afirma uma racionalidade econômica e uma configuração
109
biopolítica neoliberal, como também indícios dessas resistências e desses
encontros.
Nota-se uma mostra desse tipo de resistência manifesta por tais
encontros numa cena composta por dois planos.
Retrato ficcional 5
No segundo plano, ao fundo, avistamos uma criança que caminha pelo
parque da escola de mãos dadas com a profissional de apoio. Seu diagnóstico e
seu estigma são o autismo e a saída natural para a inquietação que ele
demonstra pelas atividades da turma se num certo modo de exclusão, sempre
que se agita é levado para esses passeios que o agradam e tranquilizam, ao
mesmo tempo em que o afastam momentaneamente do convívio com as demais
crianças. no primeiro plano, avistamos uma turma, em atividade com sua
professora, sentados em roda no pátio, todos cantam. De música em música a
professora apresenta os animais para os seus alunos. Sua escolha não foi
aleatória, nessa turma também existe um aluno com diagnóstico de autismo,
ele também se incomoda com a rotina e inquieta-se facilmente com as
atividades propostas, mas a professora percebeu que o ato de cantar o acalma.
Assim, todo o seu planejamento é construído sobre esse eixo, com o uso constante
de músicas e do cantar coletivo ela o inclui, respeitando seu modo de existir e
permitindo o convívio integral a ele e às demais crianças de sua turma.
Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora.
Nessa cena contrapõem-se dois modos de pensar e de fazer a
inclusão, o primeiro como descrevemos anteriormente, procura grupos
homogêneos, normatiza os sujeitos e deixa de lado aqueles que não se
enquadram na norma, se o sujeito não atinge o esperado, não se encaixa
ou se de algum modo interfere nos resultados que se almeja para o restante
110
do grupo, ele é de alguma forma afastado dos demais, seja fora, ou mesmo
dentro da sala de aula, ao fundo, realizando alguma atividade qualquer, ou
mesmo nenhuma. Por outro lado, o segundo modo procura construir um
ambiente no qual todos possam aprender e participar, essa construção
inicia-se com a observação dos sujeitos, com a escuta subjetiva de seus
anseios e necessidades e com a consequente formação de contextos de
aprendizagem democráticos e inclusivos. Assim, essa professora resiste às
práticas normalizadoras e excludentes, disseminadas por tantas outras
escolas, e demonstra saídas que tangenciam esse modelo e permitem-nos
pensar além dele.
Ainda no cenário que propusemos, encontramos noutra cena a
exposição de uma resistência isolada, quase silenciada e vencida pela
racionalidade hegemônica que se apoia nos saberes medicalizados da
Educação Especial.
Retrato ficcional 6
Retratamos uma reunião na qual se discute a evolução do aprendizado
de cada criança, de acordo com o proposto para suas turmas e esperado de suas
idades. Nessa dinâmica, um caso nos chama a atenção. Um professor recém-
chegado questiona a caracterização de uma de suas alunas como público alvo
do AEE. Em vão ele argumenta não ver razões para que ela carregue esse
estigma, ou frequente as terapias ou mesmo venha a fazer uso de fármacos.
Afirma que, apesar de seu desenvolvimento não se enquadrar aos parâmetros
esperados para a faixa etária, ele percebe um ganho substancial com as
atividades propostas, no ritmo e momento próprios que ela possui, mas sem
algum comprometimento cognitivo evidente que a impeça de “acompanhar” a
turma. Suas falas são vencidas, ela tem um laudo e seu corpo se encontra
marcado por ele.
Fonte: Memórias e registros de vivências da pesquisadora.
111
Essa racionalidade corretiva que patologiza os corpos que desviam
da norma é um obstáculo difícil de ser combatido. Dissemina-se pelo
corpo social, pelas instituições e lares de modo o capilar que pais e
professores tornam-se verdadeiros aferidores de padrões. A criança, e
também os pais e professores, cobram e são cobrados para que ela apresente
o desenvolvimento adequado a cada fase de seu desenvolvimento,
conforme determinado pela literatura médica e pedagógica. Qualquer
desvio do padrão de desenvolvimento esperado é esmiuçado, sempre que
possível, por inúmeros testes, exames e os mais diversos especialistas em
busca de algum sinal no corpo que justifique esse atraso, por menor que
ele se apresente. Espera-se e exige-se dos sujeitos que atinjam determinados
resultados, caso contrário, podem vir a ser diagnosticados e rotulados por
uma enormidade de desvios classificados pela literatura da área, e
posteriormente tratados a fim de minimizar em seus corpos as
manifestações dos mesmos, tornando-os o mais próximo possível do que
se considera normal.
Os corpos deficientes apresentam, muitas vezes, modos de vida que
não se governam a partir dessas regras homogeneizadoras. Assim, práticas
inclusivas normalizadoras acabam por excluí-los dentro de sua inserção no
espaço físico das escolas, ou por agredir suas subjetividades na medida em
que elas tencionam esses sujeitos para que se enquadrem nos padrões
esperados. Ainda assim, pudemos perceber sinais de resistência que
apontam para a construção de práticas inclusivas nas quais esses sujeitos
tornem-se protagonistas. Para tanto, é preciso que pais e docentes
eduquem o olhar, percebam através do diálogo ou da observação, os
caminhos que esses sujeitos apontam e servem de entrada para seus padrões
próprios. Como a professora que canta envolvendo toda a turma nos temas
que pretende abordar e no universo musicalizado daquela criança que se
112
acalma e fixa sua atenção por meio das canções. Ela foge à regra das
condutas mais comuns que procuram por fórmulas a serem seguidas e
reinventa seu planejamento incluindo aquela criança sem forçá-la a ter um
comportamento para se encaixar e sem excluí-la. Além de reinventar as
práticas, é preciso ao educar os olhares, vigiar os julgamentos, como no
retrato do professor que discorda do diagnóstico de sua aluna. Esse
exemplo nos alerta para os excessos consequentes de nossas vidas
medicalizadas. O desenvolvimento da ciência, de testes, padrões e
diagnósticos precisos são de suma importância social, contudo, tendemos
a patologizar quaisquer comportamentos desviantes forçando, por vezes
através do uso de fármacos, para que crianças, e indivíduos de todas as
idades, atinjam os resultados esperados para aquela faixa etária. Olhar as
individualidades, os modos de vida, o tempo próprio de cada sujeito,
respeitando-o, sem buscar ligar essas características necessariamente a uma
patologia, é um caminho diverso que podemos aprender com esses
pequenos focos de resistência percebidos.
113
Considerações Finais
A partir de um caso empírico-ficcional, problematizamos as
práticas de inclusão escolar buscando tecer uma rede que rastreia na
PNEEPEI de 2008, suas aproximações com os signos e saberes da
Educação Especial. Para tanto, recorremos brevemente à historiografia
desse campo, observando alguns momentos chave da construção de seus
poderes e características fundamentais de seus saberes. Utilizamos parte do
arsenal teórico de Michel Foucault para orientar as análises elaboradas ao
longo dessa dissertação.
O caso proposto foi concebido num espaço-tempo que se
pretendia ser momento de passagem para uma concepção mais ampla de
inclusão. Apesar de apoiada em ideais de democratização da educação, e
de almejar construir espaços e práticas de uma “inclusão radical”, os
debates e regulamentações do período não conseguiram conceber uma
inclusão sustentada pelo processo de convívio com a diferença. Em sua
tentativa de transição de um paradigma excludente para um estritamente
inclusivo, marcada no Brasil pela promulgação da PNEEPEI, não
conseguimos afastarmo-nos do modelo científico-biológico no qual se
apoiam os saberes da Educação Especial. Assim, as práticas inclusivas
mantêm-se, em sua maioria, dentro de uma racionalidade corretiva que
procura ajustar os sujeitos à norma, sempre que possível, implicando num
processo pelo qual quem é incluído deve, para tanto, muitas vezes, abrir
mão de partes de seus modos de existência.
114
O cenário paradigmático que retratamos para ilustrar a realidade
demonstra a relutância dos atores em transpor esse paradigma normativo
manifesto pela conservação de uma Classe Especial. Esse caso demonstra
que as políticas que legislam sobre a inclusão não implicaram
suficientemente em alterações na racionalidade da formação de
professores. O corpo social também reluta nessa transição, podemos
observar isso na postura de muitos pais que optaram por essa modalidade
de ensino para seus filhos naquele momento, consideramos que essa recusa
esteja ligada à concepção de um modo de vida neoliberal que acaba por
conduzir e limitar as práticas de inclusão a atuarem como um dispositivo
de governamentalidade e normatização, a serviço dos interesses do
mercado e que, na prática, podem resultar numa espécie de racismo de
Estado. Percebemos que, durante essa tentativa de transição, não era
consenso entre professores e pesquisadores, o apoio ao modelo de inclusão
radical proposto. Essas discordâncias acabaram por se evidenciarem, mais
recentemente, no apoio de muitos segmentos, do corpo social e de
pesquisadores, a medidas legais que retrocedem os avanços obtidos durante
a trajetória das políticas inclusivas - conforme abordamos brevemente os
impactos do Decreto 10.502/2020, que restabelece as escolas e classes
especiais no território nacional (BRASIL, 2020).
Contudo, essas experiências vivenciadas nas últimas duas cadas
ensaiam, a partir de alguns focos de resistência a esse modelo neoliberal de
inclusão, possíveis fugas dessa racionalidade corretiva. Os encontros
promovidos pela presença e convivência com esses corpos deficientes
permitem uma certa ruptura na alienação que nos é imposta, permitindo-
nos refletir, a partir de seus modos de vida, na nossa própria existência,
potências e fragilidades, trazendo elementos disparadores para outras
reflexões e podendo abrir portas para a construção de resistências
115
organizadas ao modo de vida que nos é imposto e para a elaboração de
uma concepção de inclusão verdadeiramente apoiada na valorização da
diferença, no respeito às singularidades e que permita dar voz, visibilidade
e protagonismo a esses sujeitos que, até então, habitavam as margens.
116
117
Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Rio de
Janeiro: LTC, 2012.
AZEVEDO, Fernando de et al. Manifestos dos pioneiros da educação
nova (1932) e dos educadores 1959. Recife: Massangana, 2010.
BEZERRA, Giovani Ferreira. Tensões e contradições na política nacional
de inclusão escolar: sobre a SECADI. In: VIII Encontro da Associação
Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial, Londrina. 2013.
BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Plano Nacional de Educação
Especial na perspectiva da Educação InclusivaPNEEPEI/MEC.
Brasília: Secretaria de Educação Especial, 2008. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politica-educespecial.pdf>.
Acesso em: 17 maio 2019.
______. Lei 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Lex: Drio Oficial da União, Brasília, 27
dez. 1961, Seção 1, p. 11429. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-20-
dezembro-1961-353722-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 01
fev. 2021.
______. Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a
Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com
Aprendizado ao Longo da Vida. Lex: Diário Oficial da União, Brasília,
01 out.2020, Seção 1; p. 6. Disponível em:
<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.502-de-30-de-
setembro-de-2020-280529948>. Acesso em: 01 fev. 2021.
BUENO, José Geraldo Silveira. Educação especial brasileira:
118
integração/segregação do aluno diferente. São Paulo: EDUC, 1993.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus
temas, conceitos e autores. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2016.
COLOMBANI, Fabiola; MARTINS, Raul A. O Movimento Higienista
como Políticablica: Aspectos Históricos e atuais da Medicalização
Escolar no Brasil. RPGERevista on-line de Política e Gestão
Educacional. Araraquara, v. 21, n. 1, p. 278-295, 2017. Disponível em:
<https://periodicos.fclar.unesp.br/rpge/article/view/9788>. Acesso em:
19 fev. 2019.
DANELON, Márcio. A infância capturada: escola, governo e disciplina.
In: RESENDE, Haroldo (org.). Michel Foucault: o governo da infância.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro:
NAU, 2002a.
______. Os anormais: Curso no Collège de France (1974-1975). São
Paulo: Martins Fontes, 2002b.
______. O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul.; DREYFUS,
Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
______. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-
1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Estratégia, poder-saber. Ditos & Escritos IV. 2.ed. Rio de
Janeiro: Forense Universiria, 2006.
119
______. História da Sexualidade: a vontade de saber, vol.2.13. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1999.
______. Microfísica do poder. 26.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal.
2008a.
______. Segurança, território, população: Curso no Collège de France
(1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.
______. Nascimento da biopolítica: Curso no Collège de France (1978-
1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008c.
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20.ed. Petrópolis: Vozes,
1987.
GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da Educação. 2.ed. rev. São
Paulo: Cortez, 1994.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na
era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005.
JANNUZZI, Gilberta M. A educação do deficiente no Brasil: dos
primórdios ao início do século XXI. 3.ed.rev. Campinas: Autores
Associados, 2012.
LOPES, Maura C. Políticas de inclusão e governamentalidade. Educação
& Realidade. Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 153 – 169, maio/ago. 2009.
LOPES, Maura C.; RECH, Tatiana L. Inclusão, biopolítica e educação.
Educação. Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 210-219, maio/ago. 2013.
LÓPEZ, Maximiliano Valério. Estâncias: sobre a transmissão do
inapreensível. In: PAGNI, Pedro A.; BUENO, Sinésio F.; GÉLAMO,
120
Rodrigo P. (org.). Biopolítica, arte de viver e educação. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2012.
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: medicina social e
constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978.
MANTOAN, Maria Teresa Eglér A educação especial no Brasil: da
exclusão à inclusão escolar. Pedagogia ao da Letra in Educação,
Educação Especial, mar 2011. Disponível em:
<https://www.sinprodf.org.br/wp-
content/uploads/2012/01/mantoan.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2021.
MENDES, Enicéia Gonçalves. Breve histórico da educação especial no
Brasil. Revista Educación y Pedagogía, Medellín, v. 22, n. 57, p. 93-
109, mai/ago., 2010.
MONARCHA, Carlos. Testes ABC: Origem e desenvolvimento.
Boletim Academia Paulista de Psicologia, ano XXVIII, nº01/08, p. 07-
17, 2008.
NEGRI, Antonio. El monstruo político: vida desnuda y potencia. In:
GIORGI, Gabriel; RODRÍGUEZ, Fermín (comps.). Ensayos sobre
biopolítica: excesos de vida: Michel Foucault; Gilles Deleuze; Slavoj
Žižek. Buenos Aires: Paidós, 2007.
PAGNI, Pedro Angelo. Dez Anos da PNEEPEI: uma análise pela
perspectiva da biopolítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n.
1, e84849, 2019a. Disponível em:
<https://repositorio.unesp.br/handle/11449/183826>. Acesso em: 01
out. 2020.
______. Resistências ao cotidiano escolar de exceção: o ingovernável, a
121
desobediência e o julgar reflexivo. In: GALLO, Silvio e MENDONÇA,
Samuel. A escola: uma questão pública. São Paulo: Parábola Editorial,
2020.
______. Biopolítica, deficiência e educação: outros olhares sobre a
inclusão escolar. São Paulo: Editora Unesp, 2019b.
______. Infância, arte de governo pedagógica e cuidado de si. Educação
& Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 99-123, set/dez., 2010.
______. O ingovernável dos corpos e das multidões na escola: formação
ética, resistências e alteridade radical. In: RODRIGUES; Allan, C.;
BERLE, Simone e KOHAN, Walter O. (Org.). Filosofia e educação em
errância: inventar escola, infâncias do pensar. Rio de Janeiro: Nefi, 2018.
RECH, Tatiana L. A inclusão educacional como estratégia biopolítica.
In: FABRIS, Eli T. H.; KLEIN, Rejane R. (Org.). Inclusão e biopolítica.
Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos:
Claraluz, 2005.
SANTOS, Iolanda M.; KLAUS, Viviane. A inclusão e o sujeito
empresário de si. In: FABRIS, Eli T. H.; KLEIN, Rejane R. (org.).
Inclusão e biopolítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
SÃO PAULO (Estado). Lei 1.579, de 19 de dezembro de 1917.
Estabelece diversas disposições sobre a instrução blica do estado. Lex:
Diário Oficial, São Paulo, 28 dez.1917, p. 5856.
122
TINÔCO, Saimonton. Inclusão escolar: análise de consensos e
dissensos entre pesquisadores brasileiros da educação especial. Tese
(Doutorado em Educação Especial) – Universidade Estadual de São
Carlos, São Carlos, 2018.
THOMPSON, Oscar. Anuário do ensino do Estado de São Paulo. São
Paulo: DIRECTORIA GERAL DA INSTRUCÇÃO PUBLICA, v. 1,
1917.
UNESCO. Declaração de Salamanca: Sobre princípios, políticas e
práticas na área das necessidades educativas especiais. Espanha:
Salamanca, 1994.
______. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação
das necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO: Jomtien, 1990.
VALÉRIO, Raphael Guazzelli. A política é a produção da humanidade:
implicações à formação humana a partir do dispositivo da antropo
gênese e da vida nua. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências Marília, 2018.
123
Sobre a autora
Nascida em Santa Fé do Sul, interior de São Paulo, Bruna Carla
de Carvalho Amaral é mestre em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho UNESP - Campus de Marília (2021), e doutoranda em
Educação pelo mesmo programa na linha de pesquisa História e Filosofia
da Educação. Cursou Especialização em Educação Especial e Inclusiva
(2019) e possui licenciatura em História pela Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP (2007). Atualmente é membro do corpo técnico-
administrativo da UNESP de Marília e pesquisadora junto ao Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação e Filosofia - GEPEF coordenado pelo
Prof. Dr. Pedro Angelo Pagni.
124
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro BuenoCRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Bruna Carla de Carvalho Amaral
Bruna Carla de Carvalho Amaral
Retratos da
Inclusão Escolar
a biopolítica em
um caso ficcional
Retratos de Inclusão Escolar: a biopolítica em um caso ficcional







Te convido a aproximar-se dessa
obra com mente e corpo abertos
à diferença. A autora, mulher
historiadora que conheço desde
pequena criança do interior
paulista, em sua sagacidade
crítica e sensível, toma de frente
a ocupação da diferença no
ambiente escolar. Uma narrativa
que parte das observações e
incômodos da própria experiência
nos espaços educacionais, da
constrangedora medicalização dos
corpos e das escalas capacitistas
sobre as possibilidades e potências
de cada vida. Nos interpela e
denuncia o que escondemos de
nós mesmos: a ingovernabilidade
da vida e o desgoverno das gestões
que “inclui excluindo”.
A obra tem a perspicácia de colocar
em evidência a lógica normativa e
seu constrangimento com os que
desviam. Quais políticas, afetos,
éticas educacionais e do cuidado
estamos produzindo nesse campo
de forças? Quais relações de poder
estão em jogo? Quais novas
histórias do conviver podemos
criar? Uma política narrativa que
desaa o paradigma cientíco de
pesquisa das ciências humanas,
as problematizações se fazem
como experiência de investigação
que eu chamaria autoccional.
De modo literário e não menos
cientíco, compõe linhas de
consistência e interrogação em
uma personagem construída
com a densidade dos encontros
escolares que viveu.


 !!"#$"%
É com os corpos decientes e
não sobre eles.
As normativas da inclusão, que
legislam um controle corretivo
sobre os corpos e os processos
de produzir conhecimento,
reduzem as singularidades e as
oportunidades de radicalmente
superarmos um modelo
escolar que já não aguenta
mais. É costurando esses os
teórico-losócos, de legislação,
das experiências e paradigmas
escolares que a trama desta
obra nos convida a duvidar, a
interrogar, a produzir diferença
e também esperança, nos
lembrando que a nossa história é
a nossa força.
PRISCILA TAMIS
psicóloga, professora universitária
e escritora.
A obra ‘Retratos da inclusão escolar: problematização de
um caso a partir da biopolítica de Michel Foucault’ é leitura
obrigatória para compreender a relevância dos estudos
foucaultianos à educação. A problematização das produções
de saberes nas práticas educativas possibilita a análise do
desao da política inclusiva na atualidade. Por meio de casos
ccionais, a autora, instrumentaliza conceitos foucaultianos,
na leitura da racionalidade inclusiva, tangenciando-os a
pontos fundamentais de práticas escolares. Apesar do alerta
acerca da ação da biopolítica, a autora reitera a possibilidade
de construções de práticas inclusivas em diálogo com
a diferença, rompendo com as políticas de formatação
de corpos decientes, pela categorização deles, para
tomá-los como corpo-potência de experiências formativas
de singularização. Essa política armativa da vida deciente
é sem dúvida ponto central da obra. O escrito se faz espaço
para outras potentes reexões educativas, pela força em
que apresenta a diferença doscorpos-decientes’ na escola,
e o rigor teórico-metodológico para a compreensão da
biopolítica em Michel Foucault e das ações de resistência.
PROFA. DRA. VANESSA REGINA DE OLIVEIRA MARTINS
Universidade Federal de São Carlos