Este livro defende a ideia de que “o ensino da linguagem exige aceitar que
os sujeitos estão em contínua constituição à medida que interagem com
os outros, num processo contínuo de se completar pelo outro e completar
o outro, pois os conceitos que são internalizados por ambos são formas de
compreender o mundo.”
Revela-nos que “o ensino de atos de escrita por meio do desenvolvimento
de criações que tiveram como suportes o computador e o smartphone teve
um signicado especial para as crianças da pesquisa realizada, pois além de
elas aprenderem a elaborar atos de escrita inseridos na corrente enunciativa
foi possível proporcionar a elas um novo ambiente de aprendizagem – o
ambiente digital”. Mostra, ainda, que “trazer para a escola variedades tan-
to de suportes como de gêneros que circulam socialmente sempre causa
efeitos benécos, não para a aprendizagem de conhecimentos formais
da linguagem como também para a vivência de suas práticas sócio-enu-
ciativas”.
Este livro denominado A APREN-
DIZAGEM DA ESCRITA POR CRIAN-
ÇAS COM SUPORTES DIGITAIS re-
sulta de monograa de Mestrado de Érika
Christina Kohle, do Programa de Pós-
-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências, Universidade Estadu-
al Paulista – Unesp – Campus de Marília.
A pesquisa de que resultou este
livro teve como objetivo compreender
como o uso de determinadas estratégias
de ensino possibilitaria inserir, no mun-
do da escrita, crianças do sexto ano do
ensino fundamental II ainda não criado-
ras de textos escritos, auxiliando-as, por
meio dessas estratégias, em seu proces-
so de aprendizagem de atos de escrita.
Dentre os seis capítulos que o
compõem, o primeiro traz os conceitos-
-chave que conduziram as análises dos
dados gerados durante a pesquisa, con-
ceitos provenientes dos autores do cha-
mado Círculo de Bakhtin e da Teoria
Histórico-Cultural, bem como os con-
ceitos de suporte e de suporte digital.
O segundo capítulo é dedicado à ex-
plicitação das opções metodológicas feitas
para o desenvolvimento da pesquisa: pes-
quisa-ação e dialogia, em processo de cons-
tituição de uma forma dinâmica e subjetiva
de ver a pesquisa no âmbito educacional.
Para apresentar a escrita e seu en-
sino, o terceiro capítulo foi organizado
por meio de três subitens: o primeiro traz
um breve percurso sobre a valorização
da escrita, o segundo discute o seu en-
sino na atualidade e o trabalho com gê-
neros do enunciado como possibilidade
de ensino de atos de escrita e o terceiro
evidencia a formação do sujeito autor de
textos de diversos gêneros do enunciado.
O quarto capítulo apresenta a es-
crita por meio de gêneros do enunciado
no processo de apropriação da linguagem.
Subdivide-se em dois subitens: A esco-
lha dos gêneros do enunciado no processo
de apropriação da escrita e A importância
da escrita para o outro nos atos enuncia-
tivos.
Com foco no auxílio dos supor-
tes digitais para a criação dos gêneros
do enunciado, o quinto capítulo apre-
senta dois subitens, conforme os apare-
lhos digitais usados como suportes de
escrita: O auxílio dos recursos do compu-
tador na criação dos enunciados e O auxí-
lio dos recursos do smartphone na criação
dos gêneros do enunciado.
E, nalmente, o sexto capítulo
focaliza a questão central da pesquisa: a
interação dialógica entre pesquisadora
e pesquisados, que possibilitou ações,
atividades, análises e reexões para am-
bas as partes.
A aprendizagem da escrita

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Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
Érika Christina Kohle
Érika Christina Kohle
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A APRENDIZAGEM DA ESCRITA POR
CRIANÇAS COM SUPORTES DIGITAIS
Érika Christina Kohle
Érika Christina Kohle
A APRENDIZAGEM DA ESCRITA POR CRIANÇAS
COM SUPORTES DIGITAIS
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0396/2021, Processo Nº 23038,005686/2021-36, Programa PROEX/CAPES
Ilustração da Capa: Imagem de Phonlaphat Thongsriphong por Pixabay (gratuita)
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Köhle, Érika Christina.
K79a A aprendizagem da escrita por crianças com suportes digitais / Érika Christina Köhle.
Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022.
283 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-306-9 (Digital)
ISBN 978-65-5954-305-2 (Impresso)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-306-9
1. Comunicação escrita. 2. Aprendizagem. 3. Ensino fundamental. 4. Mídia digital. I.
Título.
CDD 372.6
Catalogação: André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Dedicatória
Dedico este livro às pessoas mais importantes para mim, meus pais
José Fernando Bertelli Martins
(in memoriam) e Alessandra Christina da
Silva Chiacchio Martins, com muito amor, pois eles nunca mediram
esforços para que eu chegasse а esta etapa da minha vida. Além disso, eles
iluminam meu percurso de forma tão especial que me dão motivos para
continuar sempre buscando dar o melhor de mim em tudo o que faço.
Dedico-a também às minhas irmãs, Patrícia Chiacchio Bertelli
Martins Okamoto e Fernanda Chiacchio Bertelli Martins, por nossos laços
eternos e por sempre entenderem as minhas ausências com muita
abnegação e carinho.
Agradeço também ао mеu esposo, Juliano Köhle, pelo
companheirismo e pela compreensão durante cada etapa desta pesquisa,
apoiando-me sempre com muita paciência.
E aos meus dois preciosos sobrinhos, Eduardo Martins Okamoto e
Fernando Martins Okamoto, quе embora о tivessem conhecimento
disto, fizeram-me esquecer das minhas angústias com seus sorrisos
fraternais a cada novo reencontro.
Sumário
Apresentação | Bruna Ramos Marinho...................................................11
Prefácio | Stela Miller............................................................................15
Introdução............................................................................................19
Metodologia.........................................................................................35
A escrita e seu ensino............................................................................93
A escrita de gêneros do enunciado para a apropriação da linguagem
...........................................................................................................127
O auxílio dos suportes digitais na criação dos gêneros do enunciado
...........................................................................................................165
Contribuições do professor para a aprendizagem de atos de escrita
...........................................................................................................195
Conclusão..........................................................................................263
Referências.........................................................................................269
“Não basta saber, é preciso também aplicar;
não basta querer, é preciso também fazer
(Johann Wolfgang von Goethe, 2006, p. 293)
“A seriedade aberta, sempre pronta a sujeitar-se à morte e à
renovação, a verdadeira seriedade aberta, não teme nem a paródia,
tampouco a ironia, sequer qualquer outra forma de riso contido,
pois ela é consciente de ser parte de um todo incompleto”
(Mikhail Mikhailovich Bakhtin, 2008, p. 360)
11
Apresentação
Um trabalho primoroso. Este é um livro há muito tempo esperado
pelos professores da educação básica e por aqueles que se dedicam à
formação docente. Trata-se dos resultados da pesquisa desenvolvida
durante o mestrado em educação por Érika Christina Köhle que, como
professora da educação básica, engajou-se na superação das suas -e das
nossas- inquietações acerca do ensino de linguagem escrita.
Graduada em Letras, nas suas salas de aula das escolas de ensino
fundamental - anos finais - e ensino médio, Érika se deparou com alunos
que não liam ou não escreviam de acordo com o que se espera nessa etapa
da educação escolar. Vale destacar que suas inquietações também se
mostravam sensíveis à autoestima fragilizada desses estudantes que já viam
a si mesmos como incapazes de aprender a escrever.
Assim, vendo que sua formação inicial não respondia àquelas
demandas específicas, a professora procurou enriquecer sua formação
ingressando no curso de Pedagogia. Essa formação foi a maneira que
encontrou de se apropriar dos conhecimentos necessários para um trabalho
voltado ao ensino da linguagem escrita para esses estudantes, os quais se
viam estigmatizados por se mostrarem em descompasso nos seus
conhecimentos relativos à leitura e à escrita que pareciam envolver
processos de alfabetização.
A criação da escrita foi um importante salto no desenvolvimento
da humanidade. A consciência quanto ao direito dessas crianças e
adolescentes de se humanizarem e de pertencerem à sociedade de seu
tempo, uma sociedade que exclui e explora a quem não domina,
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-306-9.p11-14
12
sobretudo, a linguagem escrita, trouxe a professora ao mestrado em
educação, verticalizando sua formação a partir de um referencial teórico e
metodológico comprometido com os estudos que oportunizariam o
pertencimento desses indivíduos à sua sociedade.
Ao responder às indagações em sua investigação com alunos da
educação básica, sujeitos de sua pesquisa, a pesquisadora organizou este
livro em seis capítulos, os quais se estruturam na seguinte sequência
temática: 1.Bases teóricas da pesquisa; 2.Metodologia; 3.Escrita e seu ensino;
4.Escrita de gêneros discursivos para apropriação da linguagem; 5.O auxílio
dos suportes digitais na produção dos gêneros do discurso; 6.Contribuições do
professor para aprendizagem de atos de escrita.
No capítulo 1, os fundamentos da pesquisa estão alicerçados na
Teoria Histórico-Cultural (THC) e nos pressupostos do Círculo de
Bakhtin em relação ao ensino da linguagem por meio dos gêneros do
discurso. Tal referencial permitiu-lhe desenvolver um trabalho em sala de
aula voltado ao processo de humanização dos estudantes participantes da
pesquisa. Isso na medida em que tal referencial se conectou com
consistente coerência à concepção de linguagem que perpassa os capítulos
2, 3, 4, 5 e 6, ao defender que é na interação com o outro que o sujeito se
constitui ao mesmo tempo que se apropria da cultura, o que permite
acolher e criar novas necessidades reais de comunicação dos estudantes.
De modo perspicaz, essa comunicação foi mediada pelos suportes digitais.
Pautada na THC, a autora mostra, na prática, que a apropriação
dos atos de escrita é sempre ativa do ponto de vista do sujeito. D
entende-se o auspicioso resultado dessa investigação como orientadora do
trabalho de todo docente da área de Linguagem, pois aponta-nos o
caminho para repensar as práticas pedagógicas na escola que têm levado os
estudantes a significarem a aprendizagem da linguagem escrita como algo
cansativo, monótono, mecânico e difícil.
13
A pergunta que todo professor faz e que a autora responde com
clareza e rigor teórico-metodológico é: como se ensina a linguagem escrita?
Todo o percurso metodológico realizado com os estudantes de uma escola
pública no interior de São Paulo que apresentavam dificuldades com a
apropriação da escrita partiu primeiramente da necessidade de
comunicação desses indivíduos. A autora desenvolveu uma atividade
mediadora que disponibilizou o conhecimento dos gêneros dos discursos
com o auxílio dos suportes digitais para atender às necessidades de
comunicação dos estudantes com o outro: a família, os colegas e amigos.
Para a Teoria Histórico-Cultural, a atividade é a forma de
existência humana, sendo movida por uma intencionalidade, isto é, pela
busca da satisfação de alguma necessidade (saciar a fome, aprender etc.)
Para isso, essa necessidade precisa encontrar um objeto, que é o motivo
que levará o indivíduo a agir. Nesta obra, a autora mostra como os gêneros
levaram os estudantes a agir, produzindo os atos de escrita, ao buscar a
satisfação da necessidade de comunicação com a sua comunidade. Toda
a realização da atividade exigiu a mobilização de processos externos e
internos, as ações, para que os alunos consiguissem chegar à satisfação da
necessidade. Para realizar cada ação, eles executaram operações, as quais são
definidas como modo como eles concretizaram cada ação na atividade de
se apropriar do conhecimento que envolvem os atos de escrita dos gêneros
discursivos.
Sobretudo nos capítulos 5 e 6, a obra expõe a materialização de
uma educação que contempla o igual protagonismo do professor ao
ensinar, dos conhecimentos como fonte das qualidades humanas e dos
alunos como ativos e sujeitos da aprendizagem. O papel de protagonistas
dos estudantes, alcançado nesta obra ao se buscar garantir a satisfação das
necessidades de aprender dos estudantes da educação básica, tornou
concretas as condições de conec-los com os processos em que são
14
desenvolvidas as suas funções psíquicas superiores. Isso implica afirmar que
temos em mãos uma obra que aponta para o professor possibilidades e
condições concretas de como pensar o ensino da linguagem escrita e, mais
que isso, a educação das novas gerações, voltado a um ensino que,
promovendo a aprendizagem, possibilita o desenvolvimento.
O bom ensino promove o desenvolvimento, e, como já temos visto
nos resultados das diversas avaliações externas pelas quais passam os
estudantes da educação básica brasileira, o contrário disso, obstaculiza-o.
Recomendo, pois, com entusiasmo, a todos os professores da educação
básica e aos que formam professores para a educação básica a leitura e o
estudo deste livro.
Palmas/PR, 2 de março de 2022.
Bruna Ramos Marinho
Docente do Curso de Letras e da Pós-Graduação em Linguagem
Híbridas e Educação do IFPR Campus Palmas
15
Precio
O ensino de língua materna é assunto que constantemente aparece
nas discussões sobre a eficiência dos processos educacionais do país,
principalmente quando se toca na questão da alfabetização. E, nesse
campo, as opiniões se dividem, grosso modo, em duas tendências: de um
lado os que defendem o ensino dos componentes técnicos do sistema de
representação da língua, focalizando as relações fonema-grafema, a
decodificação, a oralização, etc. e, de outro, os que defendem o ensino da
linguagem escrita como forma de interação entre as pessoas, por meio de
enunciados produzidos em situações específicas de trocas verbais.
Optar por um desses lados significa apostar ou em uma formação
mais restrita do aluno em termos do domínio dos processos de leitura e de
escrita, configurados, respectivamente, como decodificação e codificação
de palavras, frases e textos, ou em uma formação mais ampla e complexa
do leitor e do produtor de enunciados, em um contexto de trocas verbais
entre interlocutores reais que utilizam os recursos do sistema de
representação da língua como meio de constituição de seus enunciados.
Essas possibilidades levam-nos a refletir sobre o caminho que os
educadores elegem para a formação de crianças e jovens, que podem ou
não ter na escola um meio privilegiado de apropriação de conhecimentos,
de formação de atitudes e valores e de desenvolvimento de habilidades e
capacidades que permitem a eles compreenderem sua realidade e nela
atuarem de forma consequente, criativa, transformadora. Tudo depende
das escolhas que são feitas para o encaminhamento do processo de ensino-
aprendizagem dos diferentes conteúdos curriculares, mas principalmente
da linguagem escrita, que tem um papel relevante a desempenhar na
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-306-9.p15-18
16
trajetória dos estudantes em sua passagem pela escola, uma vez que a
compreensão leitora e a capacidade de produzir enunciados constituem-se
como base para a apropriação dos demais conteúdos que são objeto de
estudo dos escolares.
O fato é que temos visto muitos estudantes passarem pela escola
sem desenvolver de forma adequada a sua capacidade de ler e de escrever
enunciados e, muitas vezes sem conseguirem sequer minimamente
estabelecer uma compreensão para um escrito e produzir um enunciado,
por mais simples que ele seja. Os que conhecem a escola em sua dinâmica
de atuação na formação das crianças e jovens, sabem da existência de uma
parcela do contingente total que se enquadra nesta última possibilidade,
que acaba por ser rotulada como incapaz, como portadora de dislexia,
como desinteressada, dentre outros rótulos que lhe são atribuídos. E o pior,
que fica marginalizada, apartada do restante dos colegas de sala, sem
receber a atenção necessária à superação de seu problema, que acaba se
arrastando por anos a fio, sem que a escola dê a esses casos a solução que
deveria dar.
A questão não é simples; envolve uma teia complexa de fatores
ligados aos mais diversos campos de atuação profissional daqueles que
lidam com a educação: idealização e organização de políticas públicas para
a formação e atuação dos profissionais em educação, condições materiais e
humanas para o funcionamento das escolas, processos de formação
continuada dos profissionais que trabalham nas unidades escolares dos
sistemas de ensino, atuação da direção e da coordenação pedagógica,
relações entre os diversos profissionais que atuam nas escolas, em especial
as relações professor-aluno em sala de aula, material pedagógico disponível,
forma de utilização desses materiais, escolhas teóricas e metodológicas e
possibilidades de realização ou não dessas escolhas e também do conteúdo
por parte de professores e alunos que, muitas vezes, estão submetidos ao
uso obrigatório de materiais didáticos prontos que vêm dos órgãos de
17
escalões superiores da hierarquia administrativa do sistema de ensino.
Poderíamos citar outras variáveis, mas essas são suficientes para
entendermos a complexidade que envolve as tomadas de decisão do
professor em sala de aula quando tem em suas mãos a condução do
processo de formação de seus alunos.
As pesquisas na área da Educação, em especial aquelas ligadas às
questões teóricas e metodológicas relativas aos diferentes conteúdos
curriculares, têm analisado sob os mais diversos ângulos as problemáticas
que envolvem o processo de ensino-aprendizagem de modo geral e,
também, em suas especificidades relacionadas aos componentes
curriculares, sua forma de apropriação pelas crianças, problemas
enfrentados, soluções possíveis, compondo um acervo de rico material a
ser estudado e discutido pelos profissionais da educação responsáveis pelo
processo de formação das crianças e jovens de modo a iluminar a tomada
de decisões de forma mais adequada a essa sua tarefa.
O encontro desse material dependerá, obviamente, da busca ativa
dos profissionais envolvidos com o desenvolvimento do processo de
ensino-aprendizagem dos alunos, que poderão contar com a cooperação de
especialistas vinculados a universidades, para o encaminhamento de suas
atividades voltadas aos processos de educação continuada, essenciais para
a constante atualização do processo formativo desses profissionais,
ampliando a base recebida durante a formação inicial.
Nesses processos contínuos de formação, professores e demais
profissionais responsáveis pela organização e implementação do processo
de ensino-aprendizagem têm a oportunidade de refletir sobre o seu papel
na formação dos alunos. Não podemos nos esquecer que lidamos com
vidas humanas e não com números, e que essas vidas dependem em grande
parte daquilo que a educação pode ou não lhes proporcionar, não apenas
em termos quantitativos - do quanto cada aluno pode adquirir de
conhecimento, de quanto tempo ele permanece na escola -, mas também,
18
e prioritariamente, em termos qualitativos de que forma ele assimila os
conhecimentos, que capacidades pode desenvolver em sua história escolar,
se aprende a refletir sobre suas ações, a pensar teoricamente os conteúdos,
etc.
Enfim é possível, nesse processo, que os profissionais envolvidos na
condução do processo de ensino-aprendizagem reflitam sobre sua real
contribuição para o processo de humanização dos alunos, que lhes permite
enxergarem o mundo de forma mais perspicaz, pensada e refletida, que os
tornam capazes de saber lidar autonomamente com os problemas e
solucioná-los com criatividade, com sua ação consequente e
transformadora das suas condições de vida e de seu meio. A escola pode
chamar para si essa tarefa, essa função, e nós, profissionais da educação,
podemos cada vez mais dela nos acercar, conscientes de nosso papel
fundamental nesse processo.
Profa. Stela Miller
Programa de Pós-Graduação em Educação
Faculdade de Filosofia e Ciências Unesp Campus de Marília
19
Introdução
“Sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária.
(Vladimir Lênin, 1990, p. 33)
De acordo com a metodologia que sustenta este trabalho,
detalhada no segundo capítulo, a opção pela escrita ora em primeira pessoa
ora no modo impessoal foi eleita pela necessidade de diferenciar
informações referentes à trajetória da pesquisadora das informações
referentes ao percurso da pesquisa. Isto é, diferenciar estas, cujas vozes e
cujos sujeitos são diversos, compondo a heteroglossia necessária para o
gênero do enunciado em questão, daquelas, que pretenderam com o relato
de uma sucessão de atos responsáveis delinear seu pequeno memorial no
início desta exposição.
O interesse em pesquisar a questão da apropriação da linguagem
escrita surgiu durante minha experiência como professora de Língua
Portuguesa dos anos iniciais do ensino fundamental II em escolas estaduais
vinculadas à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, no momento
em que me deparei com crianças que ainda não conseguiam escrever.
A princípio, como professora da antiga quinta série, hoje chamada
de sexto ano, o primeiro ano do ciclo de ensino fundamental II,
angustiava-me diante da ideia que as crianças traziam sobre os atos de
escrita, vistos como algo monológico, monótono e mecânico, que se
resumia às atividades de cópias, destituídos da questão da autoria e sempre
marcados pela obrigatoriedade dos deveres de casa escolares. Inquietava-
me o fato de ainda encontrar crianças que chegavam a essa etapa da
escolarização sem conseguirem criar atos de escrita ou que se encontravam
ainda no início da apropriação da escrita. Desde aquela época sinto-me
20
movida a procurar estratégias que possam auxiliar as crianças que já
concluíram a primeira etapa do ensino fundamental, mas que ainda não
escrevem.
No entanto, vivenciei um problema comum entre os professores
especialistas: o ensinar crianças que ainda não escrevem e não ter a
formação adequada para lidar com esse fato. Por não ter cursado disciplinas
que me capacitassem para a alfabetização, no curso de Letras, não me sentia
capaz de ensinar a escrever ou auxiliar essas crianças em seus atos iniciais
de escrita. Por não conseguir saber o que fazer, como fazer, como tentar e
como começar a buscar respostas para esse problema, resolvi cursar
Pedagogia e, na disciplina de TCC, cursada em 2013 e concluída com a
defesa desse trabalho em 2014, desenvolvi um projeto de pesquisa sobre o
ensino da escrita para buscar algumas respostas para essa minha inquietante
dúvida.
Esse estudo possibilitou-me a reflexão crítica sobre o ensino
tradicional da escrita, alicerçado na transcrição da fala ou na
supervalorização da grafia de suas micropartículas. Ao longo dos estudos e
das experiências práticas, percebi que existem inúmeros caminhos de
apropriação da escrita.
Assim também, a conclusão dessa pesquisa trouxe um dado
relevante acerca das relações entre a aprendizagem da escrita e os suportes
digitais: a constatação de que os sujeitos exploraram os recursos e as
ferramentas de seus programas e aplicativos na elaboração de seus gêneros
do enunciado
1
.
Além disso, essa pesquisa revelou que os sujeitos conheciam as
funções da escrita e sentiam necessidade de escrever textos diferentes dos
1
Intencionalmente, não usamos o termo discurso nem o adjetivo discursivo, porque, por nos
alinharmos aos estudiosos de origem soviética, como Volochinov, Medvedev, Bakhtin, Vigotski e
a alguns de seus seguidores; observamos que melhor que discurso seria a escolha do termo enunciado,
para designar a manifestação concreta de um mediador das trocas humanas.
21
propostos na escola, textos que tivessem alguma razão para existir. Ou seja,
o resultado permitiu perceber que não há mudanças nas aprendizagens das
crianças, muito menos saltos significativos de aprendizagem, se não houver
mudanças nas práticas de seus professores.
Em seguida, no ano de 2015, tive a oportunidade de iniciar o curso
de Mestrado para tentar me aprofundar mais nesse mundo da “apropriação
da linguagem”, ainda muito obscuro para mim. Nesse sentido, tive muita
sorte ao encontrar nas disciplinas do Programa de Pós-graduação em
Educação da Unesp de Marília, mais especificamente na linha de Teoria e
Práticas Pedagógicas, professores que contribuíram muito com minha
formação e conteúdos norteadores para minha pesquisa, que me
impulsionaram para seguir em frente.
Durante o curso de Mestrado pude aprofundar meus estudos e
conhecer os referenciais sobre o ensino da escrita a partir dos gêneros do
enunciado, ampliar meus conhecimentos acerca dos fundamentos
metodológicos relativos ao ensino dos atos de escrita, assunto em que esta
pesquisa aqui relatada teve seu enfoque, por meio das disciplinas A Escrita
e a Constituição do Autor, ministrada pela Professora Stela Miller; Em torno
de Mikhail Bakhtin, ministrada pelo Professor Dagoberto Buim Arena,
ambas do Programa de Pós-graduação em Educação da Unesp de Marília
na linha de Teoria e Práticas Pedagógicas, e, também, por meio da
disciplina concentrada A formação docente sobre a criação escrita, ministrada
pelo Professor Joaquim Dolz da Universidade de Genebra, convidado pelo
Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Unesp de São José
do Rio Preto, na área de Linguística Aplicada, na Linha de Pesquisa Ensino
e Aprendizagem de Línguas.
Além disso, as disciplinas Leitura e Leitores: Conceitos e Práticas,
ministrada pelo Professor Dagoberto Buim Arena e Práticas de Leitura e de
Recepção, ministrada pelo Professor Juvenal Zanchetta Junior e pela
Professora Raquel Lazzari Leite Barbosa, ambas do Programa de Pós-
22
graduação em Educação da Unesp de Marília na linha de Teoria e Práticas
Pedagógicas, ajudaram a constituir meus estudos sobre a história da leitura
e da escrita para a compreensão de algumas práticas arraigadas ao ensino
de atos de escrita, que muitas vezes são atravancadoras desse processo; esses
estudos ajudaram-me na elaboração do terceiro capítulo deste livro,
intitulado A escrita e seu ensino.
E ainda, os estudos que contribuíram para o delineamento
metodológico desta pesquisa, bem como para as discussões apresentadas ao
longo deste livro, foram proporcionados pelas disciplinas Metodologia da
Pesquisa: Abordagens Quantitativas e Qualitativas, ministrada pela
Professora Neusa Maria Dal Ri e Tópicos Especiais: Contribuições da
Filosofia da Linguagem para a Construção do Método nas Pesquisas em
Educação, ministrada pelo Professor convidado Valdemir Miotello, pelo
professor Dagoberto Buim Arena, pela professora Sandra Eli Sartoreto
Martins e pela professora Cláudia Regina Mosca Giroto, ambas do
Programa de Pós-graduação em Educação da Unesp de Marília.
Também a participação em dois grupos de pesquisa do Programa
de s-Graduação em Educação da Unesp de Marília contribuiu para
nortear este trabalho, possibilitando orientações e trocas de experiências
semanalmente sobre os referenciais teóricos desta pesquisa,
respectivamente, os fundamentos metodológicos para o ensino da Teoria
Histórico-Cultural e os pressupostos do Círculo de Bakhtin em relação ao
estudos da linguagem. Os grupos que contribuíram consideravelmente
para essa pesquisa foram: Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-
Cultural, liderado pelas professoras Sueli Guadelupe de Lima Mendonça e
Suely Amaral Mello e Processos de leitura e de escrita: apropriação e
objetivação, liderado pelo Professor Dagoberto Buim Arena.
A partir desse percurso teórico-metodológico e da análise de um
contexto mais abrangente na área educacional, o contexto educacional
mundial, foi possível observar que não é de hoje que há o apelo incessante
23
para o desenvolvimento de sociedades democráticas nas quais as
desigualdades sociais, presentes em um sistema que se considera
culturalmente avançado, sejam reduzidas.
Nesse sentido, os meios de colaboração pedagógica podem
contribuir para o combate a essas discrepâncias, que visam ampliar a
autonomia dos sujeitos, proporcionado-lhes condições de apropriação dos
conhecimentos necessários para se humanizarem e compreenderem a vida
em sociedade, para poderem participar dela e, até mesmo, tentar
transformá-la.
É bastante evidenciado, atualmente, não apenas na vida social e no
trabalho, mas também nas relações interpessoais, como a apropriação de
conhecimentos se torna cada vez mais necessária, “[...] uma vez que
conhecimento é um dos determinantes de desigualdades sociais” (GATTI,
2013, p. 53). Por isso, a qualidade educativa deve propiciar “[...] que todos
os indivíduos de uma determinada sociedade histórica completem a sua
adequada formação humana, de modo a que se tornem um ente cultural,
defendendo que todos têm o direito de posse dos instrumentos necessários
à vida moderna” (GATTI, 2013, p. 54).
Assim, a preocupação com as crianças que estão ainda no início da
apropriação dos atos de escrita se insere como condição sine qua non para
a continuidade do ensino. Não apenas por possibilitar a aprendizagem da
língua materna, mas também de outros conteúdos para que os sujeitos
possam se inserir na vida social das comunidades das quais queiram
participar.
Portanto, além de ter uma atenção especial pela aprendizagem das
crianças, é importante ter em mente que um cuidado especial deve ser
tomado para que durante os processos de ensino e de aprendizagem as
crianças não se percam no caminho ou para que não se atrasem demais e
não consigam mais acompanhar a zona de desenvolvimento proximal,
conceito de Vigotski (2006), para a qual os conhecimentos são planejados.
24
Sobre essa questão Luria enfatiza que, além de ser abandonada pela turma
e por seus professores,
[...] a criança atrasada abandona a si mesma, não pode atingir
nenhuma forma evolucionada de pensamento abstrato e, precisamente
por isso, a tarefa concreta da escola consiste em fazer todos os esforços
para encaminhar a criança nessa direção, para desenvolver o que lhe
falta (LURIA, 2006a, p. 113).
Tal consequência da falta de atenção com as aprendizagens das
crianças, principalmente com as que se encontram em risco de fracasso,
ocasiona a desapropriação das crianças da possibilidade de serem agentes
participativos da sociedade no futuro. Desapropriando essas crianças da
aprendizagem dos atos de escrita, elas também são desapropriadas dos
outros conhecimentos que são desenvolvidos por meio dessa linguagem e
ficam destituídas de grande parte dos conhecimentos escolares, além de
ficarem sem a autonomia para se tornarem os autores de seus textos
escritos.
Deste modo, a escola não pode esquecer seu papel fundamental, de
levar as crianças a apropriarem-se dos conhecimentos criados e ao
mesmo tempo le-las a alcançar valores cada vez mais humanos.
Por conseguinte, é necessário “[...] desenvolver ações pedagógicas
que propiciem aprendizagens efetivas contribuindo para o
desenvolvimento humano-social das crianças e jovens. Essencialmente,
para a construção de uma civilização” (GATTI, 2013, p. 53).
Desse modo, é impreterível que se corrija o equívoco causado pelas
práticas tradicionais de ensino, que entendem o ensinar como restrito às
propostas de tarefas destinadas a preencher o tempo das crianças na escola,
sendo que para essas práticas os bons alunos o aqueles que executam
passivamente o que é proposto pela professora.
25
Em contrapartida, de acordo com a Teoria Histórico-Cultural, a
criança que realmente aprende precisa estar ativa em seu processo de
aprendizagem. E, nesse processo, precisa se relacionar com o mundo e com
os objetos que o compõem, para ser capaz de atribuir sentido ao que vê,
motivada pelo resultado daquilo que realiza, porque seu ensino não é
alienante.
Retomando a questão do ensino dos atos de escrita, Miller (1998,
p. 10) ressalta que a linguagem, por ser um poderoso meio de socialização
e de desenvolvimento do pensamento dos sujeitos, pode ser considerada o
mais importante sistema de representação criado pelo homem. E ainda,
[...] a escrita é um instrumento que permite a participação das pessoas
na cultura letrada e proporciona-lhes o acesso não só as informações
que facilitam o seu dia-a-dia, mas também ao conjunto do
conhecimento que foi escrito ao longo da história e que pode ser
utilizado por elas para melhorar suas vidas em qualquer lugar que
estejam (MILLER; MELLO, 2008, p. 4).
Assim também, a aprendizagem da escrita conduz a um salto de
qualidade no desenvolvimento cognitivo de quem a aprende, pois por ser
a escrita um instrumento cultural complexo, sua aprendizagem desenvolve
mecanismos cerebrais usados para pensar.
om base no que foi dito, é evidente que, ao longo da evolução,
homens e mulheres transformaram elementos da natureza em
instrumentos da cultura humana, uns mais fáceis de utilizar e outros bem
mais elaborados. Nesse bojo, estão os atos de escrita, que são considerados
parte desses últimos, pois exigem que se aprenda um conjunto de funções
intelectuais que os acompanham, uma vez que “[...] no caso da escrita, por
exemplo, é necessária a articulação da função simbólica da consciência, do
pensamento, da memória, da atenção, das percepções” (MILLER;
MELLO, 2008, p. 6).
26
Já que ficou comprovado que a aprendizagem dos atos de escrita é
importante para o desenvolvimento humano, ela precisa ser garantida para
todos e de forma adequada, ou seja, com toda qualidade que proporcione
aos sujeitos autonomia de fazer suas escolhas enunciativas e criar seus
textos.
É necessário lembrar que, no caso da escrita, além dessas funções
intelectuais, o sujeito precisa ter um objetivo com essa escrita para que ela
se torne um ato intencional, ou seja, deve ter vontade de escrever algo para
alguém, uma motivação, como acontece com a maior parte das coisas na
vida, de forma que ela não sirva apenas para cumprir propostas impostas
por seus professores.
Entretanto, no Brasil, os dados sobre o ensino da linguagem escrita
disponíveis no site do Inaf demonstram que apenas 62% das pessoas com
nível superior e 35% das pessoas com nível médio podem ser consideradas
plenamente alfabetizadas, segundo dados atualizados no ano de 2012, pela
pesquisa realizada pela ONG Ação Educativa e pelo Instituto Paulo
Montenegro que criaram o INAF (Índice de Alfabetismo Funcional).
Além desses números, o que torna esse quadro ainda mais alarmante é a
constatação de que os dados atuais têm proporção inferior aos observados
no início da pesquisa, que ocorreu há mais de uma década.
Essa inquietude pela aprendizagem da escrita também é
materializada na elaboração de métodos emergenciais de ensino adotados
pelas redes educacionais e na aplicação de avaliações externas, como, por
exemplo, o Programa “Ler e Escrever”, projeto emergencial da Secretaria
de Estado da Educação de São Paulo para garantir a alfabetização e a
aprendizagem da matemática, que, de acordo com dados de 2010, abrange
29.000 classes em todo o estado, e a Avaliação Nacional de Alfabetização
(ANA), avaliação externa para aferir os níveis de alfabetização (leitura e
escrita) e matemática, que avalia os conhecimentos das crianças de 3º ano
em todo o território nacional.
27
E, ainda, ter as capacidades escritoras como objeto de
aprendizagem justifica-se por razões que vão além do processo de ensino e
de aprendizagem, pois sua relevância social e o seu domínio permitem que
as classes excluídas usem esses instrumentos de participação social para
transpor os filtros sociais de exclusão, que se encontram, segundo Bakhtin
(2006), numa sociedade caracterizada pela divisão de classes. Para esse
intelectual soviético o domínio dos gêneros do enunciado é uma das
condições para a interação verbal nas diferentes instâncias sociais e
distingue-se como um instrumento ideológico das classes dominantes para
a manutenção do status quo social estabelecido.
Porque vivemos numa sociedade subordinada ao domínio da
linguagem escrita, que tem a apropriação dos seus atos como pressuposto
tanto para a participação social quanto para o desenvolvimento intelectual,
a aprendizagem de tais atos tornou-se uma preocupação constante e é um
tema muito discutido por educadores nas escolas do ensino fundamental I
e II.
Desde há muito tempo, nas salas de aula, nas salas de professores (onde
as há), nos corredores da escola, ouvidos atentos podem detectar
conversas informais entre professores ou entre professores e alunos, que
revelam uma insatisfação (em todas as áreas dos componentes
curriculares) com o desempenho dos alunos: não leem e não escrevem
bem; não interpretam adequadamente um problema; não extraem o
relevante de um texto de história ou de geografia; não utilizam com
precisão conceitos científicos, etc, etc (GERALDI, 2015, p. 33).
E, desse modo, as culpas são distribuídas entre os professores em
geral, entre as escolas, entre as aulas de língua portuguesa e entre os
professores alfabetizadores; ou passadas adiante até que outro se preocupe
e execute a tarefa de tentar buscar soluções e alternativas para esse
problema. Quando isso não ocorre, a culpa pela não aprendizagem na
28
escola é jogada para as famílias ou para o ambiente onde as crianças vivem,
como se elas o tivessem sido matriculadas na escola para aprender.
A linguagem é condição sine qua non na apreensão e formação de
conceitos que permitem aos sujeitos compreender o mundo e nele
agir; ela é ainda a mais usual forma de encontro, desencontro e
confronto de posições porque é através dela que essas posições se
tornam públicas. Por isso é crucial dar à linguagem o relevo que de fato
tem: não se trata evidentemente de confinar a questão educacional à
linguagem, mas trata-se da necessidade de pensá-la à luz da linguagem
(GERALDI, 2015, p. 34).
Por meio desse enfoque, o ensino da linguagem exige aceitar que
os sujeitos estão em contínua constituição à medida que interagem com os
outros, num processo contínuo de se completar pelo outro e completar
o outro, pois os conceitos que são internalizados por ambos são formas
de compreender o mundo. Pensando a aprendizagem dos atos de escrita
como um processo inserido na vida e em continuidade, fica constatado que
Não se trata, portanto, de “aprender a língua padrão” para ter acesso à
cidadania. Trata-se de construir a linguagem da cidadania não pelo
esquecimento da “cultura elaborada”, mas pela re-elaboração de uma
cultura (inclusive linguística) resultante do confronto dialógico entre
diferentes posições (GERALDI, 2015, p. 37).
Assim, o ensino dos atos de escrita passa a ser algo realmente
significativo, que evolui nas trocas verbais dos sujeitos em contínuas
relações de alteridade, em que mesmo o confronto é visto como algo
positivo por possibilitar novas formas de definir o mundo.
Porque a concepção de linguagem interfere na escolha dos
materiais e nas estratégias usadas no ensino, é necessário buscar coerência
entre a concepção de linguagem e a de mundo, pois as atitudes e as
29
concepções dos professores são decisivas no processo de aprendizagem,
uma vez que se refletem na qualidade das suas intervenções.
Outro fator ligado às condições externas histórico-culturais da
sociedade atual da pesquisa realizada foi a opção pelo trabalho com suportes
digitais, por ser o século XXI caracterizado pela presença dos frutos da
revolução digital, que trouxe modificações à sociedade, tornando presente
a informatização, que altera as relações entre os sujeitos, os modos de
lidarem com as informações e as escolhas dos gêneros do enunciado para o
estabelecimento das interações intersubjetivas nas diversas instâncias das
relações sociais que se dão em um dado meio.
Considerando todos esses aspectos acima delineados, este livro teve
como objetivo geral compreender como o uso de determinadas estratégias
de ensino possibilitaria inserir, no mundo da escrita, crianças do sexto ano
do ensino fundamental II ainda não criadoras de textos escritos,
auxiliando-as, por esse meio, em seu processo de aprendizagem de atos de
escrita. Uma estratégia foi propor a elaboração de atos de escrita por meio
de gêneros do enunciado, que cumprissem a função social para a qual
foram criados; outra estratégia foi deixar que esses gêneros do enunciado
fossem escolhidos pelas crianças, de acordo com suas necessidades
comunicativas, no momento das suas criações, e a última estratégia foi
usar suportes digitais nessas criações, pois eles ofereceriam recursos para
a escrita.
O assunto especificamente pesquisado foi a aprendizagem da
escrita por meio da elaboração de gêneros do enunciado com o auxílio de
suportes digitais. Dessa forma, os objetivos específicos foram avaliar a
adequação dessa estratégia para inserir as crianças na atividade de escrita e
analisar as contribuições dos suportes digitais para o ensino dos atos de
escrita, assim como analisar as contribuições do professor para a formação
do sujeito autônomo na aprendizagem dos atos de escrita.
30
A pesquisa aqui relatada foi materializada pela metodologia de
pesquisa-ação, que não só deu voz aos seus participantes, mas também
possibilitou interferências dos sujeitos no meio pesquisado, porque não se
limitou apenas aos aspectos teóricos e burocráticos que envolvem grande
parte das pesquisas educacionais, que fazem uma simples observação ou
descrição de fatos observados ou de estudos teóricos distanciados da
existência real humana. Essa metodologia, que une possibilidades de
diálogos teóricos e práticos, foi eleita como a melhor alternativa para
estabelecer uma relação participativa entre pesquisadora e as crianças
envolvidas, sempre à luz dos conhecimentos científicos sobre os assuntos
pesquisados.
Com o objetivo de desenvolver esta pesquisa, foram feitos vários
estudos sobre as teorias que abordam assuntos relacionados a ela. Tais
estudos, nacionais e internacionais, contemplaram desde a história,
definições e funções da escrita, até os métodos de ensino e de aprendizagem
dos atos de escrita. Dentre esses estudos foram contemplados o suporte
teórico e alguns princípios da Teoria Histórico-Cultural sobre
desenvolvimento e aprendizagem e os pressupostos do Círculo de
Bakhtin em relação ao ensino da linguagem por meio dos gêneros do
enunciado.
Apostando no desenvolvimento de cada criança pelo contato com
seu meio social, a análise dos dados produzidos durante a realização da
pesquisa aqui descrita apoia-se na Teoria Histórico-Cultural, porque para
essa teoria os sujeitos se apropriam dos objetos e valores construídos
socialmente.
Sobre a linguagem, definida como importante instrumento da
constituição dos sujeitos, Bakhtin e Volochínov (1990, 2006, 2010, 2012,
2015) trazem uma discussão teórica, incluindo os conceitos de gêneros do
enunciado, outro, alteridade, dialogia e ideologia, que sempre emergem
nos contextos de criação de atos de escrita. Em relação a esses conceitos, o
31
autor destaca que a linguagem é uma forma de interação humana que se
dá na relação com o outro. Os conceitos-chave desses dois arcabouços
teóricos serão mais bem apresentados ainda em subitens da Seção 1 deste
capítulo.
Diante do exposto, para que o leitor possa conhecer o
delineamento deste livro, o seu percurso e suas etapas serão enumerados e
esclarecidos nos parágrafos a seguir.
A introdução, conforme já foi enunciado, além de contextualizar e
justificar a discussão, esclarece o delineamento desta livro e problematiza o
tema abordado.
O primeiro capítulo traz os conceitos-chave provenientes dos
debates do Círculo de Bakhtin, os conceitos advindos da Teoria Histórico-
Cultural que foram utilizados ao longo deste livro e os conceitos de suporte
e de suporte digital, juntamente com uma breve discussão acerca deles.
Resumindo, os três pilares desta pesquisa serão expostos inicialmente e de
modo superficial por meio de conceitos-chave, que são aprofundados no
decorrer dos capítulos que trazem as discussões entre teoria e prática, que
são os capítulos 4, 5 e 6.
O segundo capítulo é dedicado a justificar as opções metodológicas
eleitas para o desenvolvimento desta pesquisa. Em oposição ao ideário das
pesquisas empíricas e descritivas, ainda hoje massivamente encontradas nas
esferas acadêmicas, uma opção contrária a ele foi feita para concretizar este
trabalho investigativo, apresentando uma forma dinâmica e subjetiva de
ver a pesquisa no âmbito educacional. Esse capítulo foi delineado de modo
que vai do universal ao evento único, que, nesse caso, seria este livro em
particular e, em seguida, estabeleceu-se um diálogo entre as metodologias
de pesquisa e de análise de dados aqui empregadas. Por isso, seus subitens
foram enumerados na seguinte ordem: Pesquisas na área de ciências
humanas: a questão do espaço e do tempo; Pesquisa-ação: alternativa para
pesquisas em ciências humanas; A pesquisa-ação educacional; A dialogia e a
32
pesquisa-ação educacional: um diálogo possível; A pesquisa-ação: diálogo entre
teoria e prática para aprendizagem da escrita; o Desenvolvimento da pesquisa.
O terceiro capítulo, já que a sociedade contemporânea se organiza
pela escrita, ela e seu ensino são enfocados em três subitens: o primeiro
subitem traz um breve percurso sobre a valorização da escrita, o segundo
discute o seu ensino na atualidade e o trabalho com gêneros do enunciado
como possibilidade de ensino de atos de escrita e, para finalizar, o subitem
final deste capítulo evidencia a formação do sujeito autor de textos de
diversos gêneros do enunciado. Em síntese, é apresentada uma concepção
de linguagem que entende a palavra como um signo verbal, no movimento
de trocas verbais, cujas significações se constroem a partir de processos
dialógicos. Somando-se a isso, são expostos os motivos pelos quais este
trabalho de investigação optou por seus referenciais teóricos.
O quarto capítulo apresenta a escrita por meio de gêneros do
enunciado no processo de apropriação da linguagem, que, a partir dos
critérios das necessidades iniciais das crianças, foi subdividido em dois
subitens: A escolha dos gêneros do enunciado no processo de apropriação da
escrita e A importância da escrita para o outro nos atos enunciativos, ou seja,
demonstra que a necessidade de escrita das crianças se deu pela vontade
enunciativa de criar determinado gênero. Esse dado foi desenvolvido no
primeiro subitem, mas como a existência de um outro, interlocutor real,
também criou a necessidade inicial de escrita nas crianças. Nesse caso, os
dados foram apresentados e analisados no segundo subitem desse capítulo.
O objetivo desse capítulo foi aliar a criação de uma necessidade de escrita
a sua materialização na escolha e na elaboração de gêneros do enunciado,
como opção para o ensino com função social para as crianças. Os dados
gerados, na maior parte dos casos, foram positivos, pois em sua geração foi
permitido que os sujeitos experienciassem a criação de atos que não tinham
sido vividos por eles até aquele momento, pelo menos na escola.
33
O quinto capítulo dispõe sobre o auxílio dos suportes digitais na
criação dos gêneros
do enunciado e é subdividido em dois subitens, de
acordo com os aparelhos digitais usados como suportes de escrita: O auxílio
dos recursos do computador na criação dos enunciados e O auxílio dos recursos
do smartphone na criação dos gêneros do enunciado. Nele são encontradas
situações em que os recursos dos programas presentes nos aparelhos
digitais auxiliaram as crianças na elaboração e revisão de seus atos de escrita.
Como foram utilizados dois tipos de aparelhos digitais, o computador
portátil e o smartphone, que contêm distintas possibilidades de recursos
para escrita, os subitens desse capítulo foram divididos de acordo com o
uso desses aparelhos.
Para finalizar, o sexto capítulo é dedicado ao dado mais importante
desta pesquisa: a interação dialógica entre pesquisadora e pesquisados, que
possibilitou ações, atividades, análises e reflexões para ambas as partes.
Foram ressaltadas também, nesse capítulo, sem importância menor, as
contribuições do professor para a formação do sujeito autônomo na
aprendizagem da escrita e as contribuições do estudo epilinguístico para a
apropriação da escrita. Destacou-se, ainda, o relato de um episódio de
preconceito linguístico ocorrido com uma criança participante desta
pesquisa. Os subitens desse capítulo descrevem as práticas pedagógicas
de familiarização das crianças com os atos de escrita, com os gêneros do
enunciado, com a prática de revisão de seus textos, seguidas de comentários
de análise e reflexão sobre a prática, a partir do cotejamento com textos
científicos, que serviram de suporte teórico para esta pesquisa. Além disso,
nele estão apresentados os dados finais, coletados seis meses depois da
participação dos sujeitos na pesquisa, com as crianças já frequentando o
ano do ensino fundamental II, em 2016. Esses dados presentes nessa etapa
final demonstram o nível de desenvolvimento real das crianças, meio ano
após a parte prática da pesquisa-ação, ajudando a evidenciar as suas
contribuições para os atos de escrita na vida de seus participantes.
34
A conclusão tem a função de elencar os resultados e as principais
constatações feitas no decorrer da pesquisa, bem como trazer, a partir
dessas constatações, novas discussões para prováveis problemas de outras a
serem desenvolvidas futuramente.
35
Metodologia
1 Bases teóricas da pesquisa
Como esta pesquisa teve o aporte teórico de alguns princípios da
Teoria Histórico-Cultural sobre desenvolvimento, ensino e aprendizagem
e os pressupostos de Bakhtin e de Volochínov em relação aos gêneros do
enunciado, é impreterível que se faça a apresentação de alguns conceitos
utilizados, sem os quais a compreensão deste trabalho ficaria prejudicada,
apesar de haver esclarecimentos sobre alguns deles ao longo do texto.
Para isso, os conceitos apresentados foram separados em três
tópicos, os dois primeiros de acordo com os pressupostos de cada um dos
grupos de intelectuais estudados, e um tópico final para fazer uma breve
introdução sobre o conceito de suportes para os atos de escrita.
Conceitos provenientes de Bakhtin e de Volochínov
A partir dos estudos de Bakhtin e de Volochínov foram trazidos os
conceitos de enunciado, gêneros do enunciado, outro, alteridade, dialogia
e ideologia, aqui explicitados por serem essenciais para a compreensão das
discussões e das ações desta pesquisa, ou mesmo por terem sido citados ao
longo de sua exposição. Além disso, o estudo dos enunciados e dos gêneros
do enunciado é, segundo nos parece, de importância fundamental para
superar as concepções simplificadas da vida do enunciado (BAKHTIN,
2006).
Nas concepções bakhtinianas, é por meio da interação com o
outro, que o sujeito se constitui e ao mesmo tempo se apropria do
conhecimento e dos costumes sociais. Bakhtin, no adendo que fala sobre
36
os gêneros do enunciado, presente na obra Estética da criação verbal (2006,
p. 274), define enunciado como a unidade real da comunicação verbal,
diferenciando-o de outras unidades da língua, como as palavras e as
orações. Os enunciados diferenciam-se das outras unidades da língua por
suas principais peculiaridades. Segundo Bakhtin, eles
[...] refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido
campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem,
ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos
estes três elementos o conteúdo temático, o estilo, a construção
composicional estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de
determinado campo da comunicação (BAKHTIN, 2006, p. 261).
Desse modo, o enunciado é compreendido como elemento das
trocas verbais em relação indissociável com a vida e, por isso, trata-se de
algo concreto, ou seja, de um evento único, de um ato de fala social, e não
pode ser reduzido a abstrações, que debilitariam suas relações com o campo
da existência da vida, já que todo enunciado participa de uma atividade
humana. Isso porque
[...] o desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente
com as peculiaridades das diversidades de gênero do discurso em
qualquer campo de investigação linguística redundam em formalismo
e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da
investigação, debilitam as relações da língua com a vida. Ora, a língua
passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam)
é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua
(BAKHTIN, 2006, p. 265).
37
Essa realização exterior da atividade mental deve ser regulada por
uma orientação social mais ampla e imediata na interação entre
interlocutores concretos.
E, ainda, durante a sua formação, a pessoa desenvolve seu
enunciado em contato constante com os enunciados dos outros, que são
plenos de palavras de outros, formados numa cadeia de enunciados
reelaborados, que dialogam ininterruptamente entre si, que todos os
enunciados estão ligados aos diversos campos da atividade humana, que,
por sua vez, estão ligados aos usos da linguagem.
Em consonância com o que foi dito, Marcuschi (2003), ao
compreender o enunciado como elemento indissociável do enunciado, que
o atualiza, no contexto de uma esfera onde a linguagem se manifesta,
esclarece que o enunciado diz respeito à própria materialização do texto,
ou seja, o texto em seu funcionamento sócio-histórico. Ele deve ser
considerado muito mais o resultado de um ato enunciativo do que uma
configuração morfológica de encadeamentos de elementos linguísticos;
embora se manifeste linguisticamente, relaciona-se muito mais ao sentido.
Portanto, na construção de sentidos, o projeto de dizer
possibilita o jogo de trocas verbais com o outro, que tem voz e que interage
com o locutor, porque toda compreensão é prenhe de resposta, que na
alternância entre enunciados, obriga o outro a tornar- se locutor, já que o
próprio locutor não espera uma compreensão passiva ao elaborar seus
enunciados.
Desse modo, por ser a interação um movimento dinâmico em que
estão em jogo posições que se enquadram num sistema de valores, os outros
são ativos na sua construção, por agirem como cocriadores dos enunciados
e têm a responsabilidade de responder já que não tem um álibi para sua
existência, não podem escapar da sua responsabilidade existencial que os
faz participar do diálogo da vida, pois só se pode existir como humano na
interação com o outro.
38
Na visão de Bakhtin, é por meio do outro que o sujeito se constitui
e se transforma, pois, no plano da vida, apenas um excedente de visão
permite que um sujeito se complete, já que não pode se completar pela
falta do horizonte por trás de si e de sua própria imagem externa.
Essa concepção do necessário deslocamento presente no ato de
trabalhar uma linguagem estando fora dela remete àquilo que Bakhtin
chama, em seu ensaio sobre o autor e o herói, de o princípio
esteticamente criativo..., qual seja, o princípio da exterioridade: é preciso
estar fora; é preciso olhar de fora; é preciso um excedente de visão e
conhecimento [...] (FARACO, 2014, p. 41)
Porque sua autocontemplação se realizaria de modo muito
subjetivo. Apenas exteriormente o acabamento pode ser dado ao sujeito
pelo seu outro, devido a posição que ele ocupa, distante o suficiente para
poder contemplá-lo.
Só o outro pode nos abraçar, envolver de todos os lados, apalpar todos
os seus limites: a frágil finitude, o acabamento do outro, sua existência-
aqui-e-agora são apreendidos por mim e parecem enformar- se com um
abraço; nesse ato o ser exterior começa um vida nova, adquire algum
sentido novo, nasce em um novo plano de existência. Só os lábios do
outro posso tocar com meus lábios, só no outro eu posso pousar as
mãos, erguer-me ativamente sobre ele, afagando-o todo por completo,
o corpo e a alma que há nele, em todos momentos de sua existência.
Nada disso é dado a vivenciar comigo [...] (BAKHTIN, 2006, p. 38-
39).
Por conseguinte, para quem produz os enunciados o papel do
outro é impreterível, pois ele não é visto como um ser passivo, mas como
participante ativo da comunicação verbal. Não se pode ignorar a existência
do outro, pois segundo Bakhtin (2006, p. 13) “[...] avaliamos a nós
mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos
39
compreender e levar em conta os momentos transgredientes a nossa
própria consciência...”.
Ao considerar a linguagem como um objeto social entende-se que
a troca verbal se estabelece por meio de enunciados passíveis de
entendimento, sempre numa determinada esfera enunciativa, e que
dependem de um relativo “acabamento”, no jogo de trocas verbais, que
daria a responsabilidade de resposta ao outro.
Todo enunciado da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano
ao grande tratado científicotem, por assim dizer, um princípio e um
fim absoluto: antes de seu início, há os enunciados dos outros, depois
de seu fim, há os enunciados responsivos dos outros (ao menos uma
compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro ou, por
último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). O locutor
termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar
à compreensão responsiva ativa do outro. O enunciado não é uma
unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada
pela alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a
transmissão da palavra ao outro (BAKHTIN, 2006, p. 275).
Conforme o que foi dito anteriormente, a alternância entre os
sujeitos do enunciado determina os limites dos enunciados, de sorte que,
a cada enunciado, em cada situação comunicativa, existe uma concepção
típica de outro. Os elementos que emolduram o enunciado, que o
configuram como uma massa firme, delimitando seu acabamento, que o
constituem como uma unidadede troca verbal e que o diferenciam de uma
unidade da língua, são a alternância entre os sujeitos e a conclusibilidade
do enunciado, que estão estritamente ligadas, porque
A conclusibilidade do enunciado é uma espécie de aspecto interno da
alternância dos sujeitos do discurso; essa alternância pode ocorrer
precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer
40
em dado momento ou sob dadas condições. Quando ouvimos ou
vemos, percebemos nitidamente um fim do enunciado, como se
ouvíssemos um “dixi” conclusivo do falante percebido pelo ouvinte,
como sinal de que o locutor terminou. O primeiro e mais importante
critério de conclusibilidade do enunciado é a possibilidade de responder
a ele (BAKHTIN, 2006, p. 280).
Assim, uma construção linguística é considerada um enunciado, se
estabelecer alguma conclusibilidade, e, para isso, não basta apenas que o
enunciado seja compreendido no sentido da gramática da língua, por
exemplo, como uma oração acabada; se ela não pode suscitar uma atitude
responsiva, não há de ser considerada enunciado.
Numa esfera mais abrangente, a alteridade é a marca da
constituição da humanidade; por meio da dialogia participa-se da vida, ou
seja, participa-se do grande diálogo ao interrogar, ouvir, refletir, refratar,
responder, concordar e discordar. Como o outro é um corpo que não
responde às vontades imediatas do eu, cada um se constitui nessa
alteridade, num ativismo amoroso distanciado, e como os atos éticos se
dão em sociedade, os acabamentos são provisórios até o encontro de outra
alteridade, que irá constituir os sujeitos e também alterá-los.
Ao associarem a noção de constitutividade à de interação, escolhendo
esta como o lugar de sua realização, as concepções bakhtinianas de
linguagem de sujeito trazem ao mesmo tempo, para o processo de
formação da subjetividade o outro, alteridade necessária, e o fluxo do
movimento, cuja energia não está nos extremos, mas no trabalho que
se faz cotidianamente, movido por interesses contraditórios, por lutas,
mas também por utopias, por sonhos (GERALDI, 2015, p. 32).
Sendo assim, o sujeito se relaciona com a linguagem por meio de
sua relação com o outro e, para constituir-se como tal, ele precisa
vivenciar essa alteridade, visto que o eu se torna o eu mesmo, apenas
41
quando se revela para um outro, se constitui por meio de um outro e com
a ajuda de um outro. Porque “Eu não posso me arranjar sem o outro, eu
não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu tenho de me encontrar
num outro para encontrar um outro em mim” (BAKHTIN, 2015, p. 287).
Desse modo, Bakhtin e Volchínov concebem como unidade de
estudo linguístico o enunciado, por fazer parte das atividades humanas,
pois vê o sujeito como produtor da linguagem, e isso não evidencia a
importância dos enunciados para estudos da linguagem, mas também
para a compreensão do homem, dos acontecimentos da sua vida e das
transformações que nela ocorrem. De modo mais aprofundado, Geraldi
esclarece que
[...] um discurso e seu texto não resultam da aplicação de regras, ao
contrário, não há um conjunto de regras que, uma vez seja seguido,
resulte num texto/discurso... Produzir um discurso (ou um texto) exige
muito mais do que conhecer as formas relativamente estáveis dos
gêneros discursivos: há que se construir como locutor, assumir o papel
de sujeito discursivo, o que impõe necessariamente uma relação com a
alteridade, com o outro. E uma relação com o outro não se constrói
sem sua participação, sem sua presença, sem que ambos saiam desta
relação modificados (GERALDI, 2008, p. 155).
Já que a inteireza do enunciado é também determinada pela
vontade (ou projeto) enunciativo do falante, em que a intenção verbal do
interlocutor determina o todo do enunciado, suas dimensões e fronteiras
também são determinadas pela própria escolha do gênero do enunciado no
qual se constituído o enunciado, que o vincula
[...] a uma situação concreta (singular) de comunicação discursiva, com
todas as suas circunstâncias individuais, com seus participantes
pessoais, com suas intervenções enunciados antecedentes. Por isso
os participantes imediatos da comunicação, que se orientam na
42
situação e nos enunciados antecedentes, abrangem fácil e rapidamente
a intenção discursiva, a vontade discursiva do falante, e desde o início
do discurso percebem o todo do enunciado em desdobramento
(BAKHTIN, 2006, p. 282).
Essa situação concreta estabelece-se com o ato ético, a partir da
necessidade de ocupar um lugar no mundo, que liga esse ato diretamente
à existência real. Uma responsabilidade de todo e qualquer humano, por
todo ato enunciativo ser responsável, exatamente por ser dialógico e
responder a outros enunciados do mundo.
Apesar de os enunciados serem particulares e individuais e se
configurarem de acordo com as especificidades de determinada situação
social de troca verbal, para que eles ocorram concretamente, são utilizados
os gêneros do enunciado; por isso o conceito de outro se liga diretamente
ao uso dos gêneros do enunciado, pois esse outro, ao compreender o
significado do que foi dito, de uma maneira simultânea, ocupa uma
posição responsiva. Sobre os gêneros do enunciado, Bakhtin esclarece que
[...] o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana [...] Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2006, p.262).
Dito de modo mais específico, as três particularidades dos gêneros
do enunciado são o tema, o estilo, e a estrutura, que possibilitam o processo
de dizer algo para o outro. Sua relativa estabilidade está
imprescindivelmente vinculada à memória de passado, ou seja, configura-
se como modo de usos atuais a partir de usos já feitos ao longo do acúmulo
histórico de seus empregos e configura-se como formas específicas, com
seus estilos específicos, sobre temas específicos, vinculados às esferas
43
específicas, e mantém vivas as significações socialmente consolidadas.
Sobre o que foi dito, Augusto Ponzio esclarece que
Entre a langue e a palavra, entre a competência gramatical e a
performance, insere-se o discurso, com seus gêneros, sua linguagens,
seus lugares argumentativos, lugares comuns, percursos obrigatórios da
ordem do discurso. O falante fala sempre como sujeito de um
determinado gênero do discurso (PONZIO, 2010b, p. 48)
Em síntese, é o enunciado que materializa a vida da linguagem, o
que a relaciona com a existência real e com os outros enunciados
produzidos.
LaCapra (2010, p. 164) aponta como um atributo notável do
pensamento de Bakhtin e de Volochínov o desvio da atenção para a visão
de linguagem como uma prática de significação na sociedade e, mais
especificamente, para os fenômenos coletivos tais como os gêneros.
o gênero é visto como uma instituição de troca que, ao
mesmo tempo, exerce coesão no modo de se escrever e oferece
oportunidades ao sujeito no processo de escrita.
[...] Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros que combina
estabilidade e mudança; reiteração medida que aspectos da atividade
recorrem) e abertura para o novo (à medida que aspectos da atividade
mudam) (FARACO, 2009, p. 128).
Assim, os gêneros do enunciado, por possuírem plasticidade
histórica de passado e de futuro, oferecem possibilidades infinitas de criação
de novos gêneros enunciativos, porque suas possibilidades são inesgotáveis,
de acordo com as inesgotáveis possibilidades de atividade humana nas
inúmeras esferas enunciativas existentes ou que poderão existir.
44
Nesse sentido, a linguagem verbal não é vista primordialmente como
sistema formal, mas como atividade, com um conjunto de práticas
socioculturais que tem formatos relativamente estáveis (concretizam-
se em diferentes gêneros do discurso) e estão atravessados por diferentes
posições avaliativas sociais (concretizam diferentes vozes sociais)
(FARACO, 2009, p. 120).
Uma vez que todo enunciado se relaciona a um tipo de atividade
humana, para se estudar qualquer troca verbal é preciso ocupar-se dos
gêneros do enunciado pertencentes àquela esfera de interação verbal, pois
é nela que ele nasce, transforma-se, evolui e estabiliza-se.
Não se pode esquecer de que todo enunciado é permeado de
caráter valorativo pelos sujeitos, que se encontram inseridos no mundo
da cultura, e a partir de sua história, ou seja, a partir do percurso das
relações dialógicas que estabeleceram ao longo de suas vidas, os sujeitos
veem o mundo de sua forma, com seus valores, sentidos e significados.
[...] Em correlação com o meu lugar particular que é o lugar do qual
parte a minha atividade no mundo, todas as relações espaciais e
temporais pensáveis adquirem um centro de valores, em volta do qual
se compõem num determinado conjunto arquitetônico concreto
estável, e a unidade possível se torna singularidade real (BAKHTIN,
2010, p. 118).
Portanto, viver exige que se assuma uma posição valorativa e
avaliativa diante das situações da vida. A questão da ideologia exige que se
leve em consideração a questão dos sentidos e dos valores para o sujeito.
Uma vez que “[...] o sentido da ideologia não está preso na esfera da
psicologia, porque tanto sua gênese quanto sua função deve considerar que
o sujeito em questão é um sujeito social” (PONZIO, 2010a).
Retomando o que foi dito, a ideologia comporta índices de valores
nas diferentes esferas enunciativas e se constrói em todas as esferas de
45
interação. Ela não deriva de consciências individuais, mas das relações
sociais; seu lugar é o material social, suas especificidades são de fazer com
que o signo se mantenha na história e seja transformado na interação
verbal, por situar-se no terreno interindividual. Sobre a ideologia nunca
ser neutra, entende-se que
Os aspectos elogiosos e injuriosos são evidentemente próprios de toda
linguagem, de toda língua viva. Não existem palavras neutras,
indiferentes; não pode haver na realidade, senão palavras
artificialmente neutralizadas. O que caracteriza os fenômenos mais
antigos da linguagem é a aparente função do elogio e da injúria, a dupla
tonalidade da palavra (BAKHTIN, 2008, p. 379).
Por estar sempre presente nas relações de trocas verbais, a
ideologia se dá como uma tomada de posição, marcada pelo horizonte
social de determinada época, de determinado grupo social. “Em outras
palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar
raízes senão aquilo que adquiriu um valor social” (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2010, p. 46).
Assim, a linguagem, vista como processo de constituição da
subjetividade, aponta e sinaliza as trajetórias individuais que se fazem
sociais também pela língua das esferas enunciativas que os sujeitos
compartilham de diferentes modos, de forma harmônica ou nos embates.
É na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se
constituem. É nesta atividade que se constrói a imagem enquanto
mediação sígnica necessária. Por isso a linguagem é trabalho e produto
do trabalho. Enquanto tal, carrega cada expressão a história de sua
construção e de seus usos. Nascidos nos universos de discursos que nos
precederam, internalizamos dos discursos de que precisamos
expressões/compreensões pré-construídas, num processo contínuo de
46
tornar intraindividual o que é interindividual (GERALDI, 2010, p.
108).
Portanto, todo enunciado é resultante da situação social mais
imediata e de sua inserção nesse horizonte social. que [...] os sujeitos
comparecem carregados de interpretantes, carregados de palavras,
carregados de contrapalavras, enfim, carregados de história (GERALDI,
2010).
Na primeira metade do século passado, Vigotski
1
, o mais
conhecido representante da Teoria Histórico-Cultural na área da
psicologia, postula que o intraindividual provém do interindividual por
meio de processos contínuos de interação entre sujeitos, objetos e
instrumentos culturais.
No próximo subitem, serão discutidos alguns conceitos e
pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, principalmente do quarteto
que mudou a história da psicologia soviética, formado por Vigotski,
Leontiev, Davidov e Luria.
1.1 Conceitos advindos da Teoria Histórico-Cultural
Nesse subitem do livro, são apresentados alguns conceitos
provenientes dos estudos de teóricos da Teoria Histórico-Cultural; nele
foram trazidos alguns pressupostos e os conceitos de atividade, ação,
operação, zona de desenvolvimento proximal e mediação. E, ainda, foi
trazida a compreensão de desenvolvimento e de aprendizagem, a partir
das considerações de Vigotski (2000a, 2000b2001, 2006, 20010, de
Luria (2006a, 2006b e 2006c), Davidov (1988) e de Leontiev (1978). Após
a chamada Revolução Russa de 1917, na União Soviética, começaram
a ser desenvolvidos estudos em várias áreas do conhecimento a partir do
viés marxista, teoria que melhor se adaptava aos ideais daquela
47
comunidade que almejava a constituição de uma sociedade que superasse
a divisão de classes sociais. Naquela época, Lev Semionovich Vigotski
(1896-1934), a partir dos estudos sobre as obras de Karl Marx e
Friedrich Engels, propôs a reorganização da psicologia, que teve início com
a sistematização da concepção histórico-cultural do desenvolvimento
humano, seguido por seus colaboradores Alexander Romanovich Luria
(1902 -1977), Vasily Vasilyevich Davidov (1930-1998), Alexis Leontiev
(1904-1979), entre outros, que deram continuidade ao seu trabalho,
principalmente após sua morte.
De acordo com os pressupostos de Vigotski (2009), a educação
tem que envolver o sujeito em sua plenitude; por conseguinte, não deve
ser artificial e nem desvinculada da existência,
A educação entendida correta e cientificamente, não significa infundir
de maneira artificial, de fora, ideias, sentimentos e ânimos totalmente
estranhos às crianças. A educação correta consiste em despertar na
criança aquilo que existe nela, ajudar para que isso se desenvolva e
orientar esse desenvolvimento para algum lado (VIGOTSKI, 2009, p.
72).
Nessa perspectiva, o sujeito necessita protagonizar suas
aprendizagens, que têm como condição impreterível que os
conhecimentos ensinados estejam inseridos no mundo social, histórico e
cultural.
Em consonância com os pensamentos de Leontiev (1978, p. 183-
184), que deixam claro que a partir desse modo de ver o mundo é pensada
a formação do sujeito em sua totalidade, tanto a instrução quanto a
educação devem considerar conhecimentos não só os processos que
permitem que a criança se desenvolva, mas também aspectos de sua
personalidade e de suas relações com a realidade.
48
Eis aqui por que um enfoque vital e sincero da educação é aquele que
encara as tarefas educativas, e até as instrutivas, partindo das exigências
que se formulam ao homem: como deve ser o homem na vida e o que
se deve ser fornecido para isso, quais devem ser seus conhecimentos,
seu modo de pensar, seus sentimentos, etc (LEONTIEV, 1978, p.
185).
Portanto, a formação do homem de maneira integral precisa
proporcionar a ele uma visão não alienada do que faz; desse modo, para
que realmente aprenda “[...] a criança precisa ser ativa no processo, precisa
ser sujeito e não um elemento passivo do processo de ensino... Só a criança
em atividade é capaz de atribuir sentido ao que realiza” (MILLER;
MELLO, 2008, p. 46).
Dessa maneira, num processo de apropriação e objetivação, o
sujeito aprende, e isso se torna possível apenas ao estar em atividade, pois
estando em atividade os sujeitos se apropriam dos novos conhecimentos,
aprendem a agir no mundo, participam de seu entorno; e, simultânea e
consequentemente, se transformam. Sobre esse processo,
Miller & Mello explicam que
[...] no processo por meio do qual as novas gerações aprendem a ser
como os seres humanos adultos [...] acontece um processo articulado
de apropriação e objetivação[...]. Em outras palavras, não
aprendizagem sem expressão da criança sobre aquilo que aprende. A
expressão precisa ser cultivada ao longo do processo de ensino e de
aprendizagem, pois ao estimular a expressão das crianças estaremos, ao
mesmo tempo, provocando a expressão daquilo que foi aprendido,
assimilado, apropriado e criando melhores condições para seu processo
de humanização. (MILLER; MELLO, 2008, p. 49-51).
Assim, já que o modo como se aprende é estando em atividade, o
seu conceito é tido como imprescindível para a compreensão dos dados e
49
análise desta pesquisa, pois ao se falar dos sujeitos será necessário ter claro
não apenas o conceito de atividade, mas também o de ação e de operação,
bem como as particularidades que os diferenciam, pois esses conceitos estão
estritamente ligados aos processos de ensino e de aprendizagem. Sobre o
conceito de atividade, Leontiev afirma que não são todos os processos que
podem ser chamados atividade,
Por esse termo designamos apenas aqueles processos que realizando as
relações do homem com o mundo, satisfazem uma necessidade especial
correspondente a ele... Por atividade, designamos os processos
psicologicamente caracterizados por aquilo a que o processo, como
um todo, se dirige (seu objeto), coincidindo sempre com o objetivo
que estimula o sujeito a executar esta atividade, isto é, o motivo
(LEONTIEV, 2010 p. 68).
Em ntese, ao experienciar o estar em atividade, a criança expõe
suas necessidades de conhecimento, traz elementos de sua história para
compor a atividade, realiza suas tarefas, busca ajuda do professor e
estabelece as bases de um ensino cooperativo.
Estar em atividade, segundo Miller & Mello (2008, p. 46) significa
que a criança sabe o que faz e se motiva a fazê-lo em busca de um resultado
para aquilo que realiza. Dito de outra maneira, “[...] significa que a criança
precisa ser envolvida no processo, fazer parte das decisões tomadas na sala,
estar envolvida nas tarefas propostas na sala e no que acontece na sala e na
vida da escola” (MILLER; MELLO, 2008, p. 47).
Dessa maneira, para encontrar-se em atividade é necessário que o
sujeito esteja consciente do conteúdo em enfoque; para isso deve ter um
motivo, que tenha vindo de uma necessidade, ligada ao fim imediato dessa
ação.
Vale lembrar que a inatividade é uma prática quase nunca
encontrada, seria um estado catatônico de prostração e sonho; para
50
Leontiev (1978, p. 197), mesmo quando o estudante escuta alguma
explicação, ele se encontra ativo interiormente, ainda que externamente
possa estar totalmente imóvel. Se estivesse interiormente inativo, não
compreenderia nada, pois nada chegaria a sua consciência. Porém não
basta ser ativo, a sua atividade deve estar voltada para o que se está
enfocando.
De acordo com Leontiev (1978, p. 189) a atividade tem uma
estrutura interna determinada. Um de seus processos é a ação. “A ação
é um processo orientado a um fim, que é impulsionado não por sua
própria finalidade, mas pelo motivo da atividade global que é realizada por
tal ação” (LEONTIEV, 1978, p. 189).
Dito de outro modo, para que o conteúdo seja percebido, é preciso
que ocupe na atividade do sujeito o lugar estrutural de um fim imediato da
ação e entre na relação correspondente ao motivo dessa atividade. Segundo
Leontiev (1978, p. 189) “[...] esse princípio é valido para a atividade
externa e interna, à prática e à teórica”. Por sua vez, o processo de tomada
de consciência não é uma forma, mas é rico em conteúdo e orienta-se a
uma finalidade vinculada a uma ação.
Entretanto, a falta do motivo ao qual se submete o conteúdo do
que se percebe é precisamente uma ação, porém não atividade. Seu motivo
não só não coincide com seu fim imediato, como também não se encontra
em uma relação complexa com ele. Já que foram conceituadas ão e
atividade, o conceito de operação, que será encontrado durante a discussão
dos dados gerados, para melhor compreensão do que será exposto, deve ser
diferenciado desses outros dois.
Por serem as operações os modos pelos quais se efetua a ação, elas
remetem às peculiaridades, que consistem e respondem não ao motivo nem
ao fim da ação, mas àquelas condições nas quais está dado esse fim. As
operações, ou seja, os modos da ação vão-se elaborando socialmente, por
51
dependerem dos meios e dos instrumentos materiais que promovem as
possibilidades de execução da ação.
Entretanto, de acordo com Vigotski (2006), essa aprendizagem
ocorre quando se atua na zona de desenvolvimento proximal da criança. Essa
área precisa ser conhecida pelo professor para dar continuidade à
aprendizagem das crianças, para que não se ensine o que elas já sabem, e
para não se proponha um ensino muito além das suas possibilidades.
Nesse ponto, é necessário dizer que Vigotski (2006) conceitua a
zona de desenvolvimento proximal, também chamada de área de
desenvolvimento potencial, como a distância entre o desenvolvimento real e
o desenvolvimento potencial em que a criança se encontra. Dito com
outras palavras, o intervalo entre o que a criança já consegue fazer e o que
ela poderá realizar; nessa área o professor deve atuar para que
primeiramente a criança consiga fazer com ajuda e em seguida
autonomamente.
[...] a zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível real
(da criança) de desenvolvimento determinado pela resolução de
problemas independentemente e o nível de desenvolvimento potencial
determinado pela resolução de problemas sob orientação de adultos ou
em colaboração com companheiros mais capacitados (VYGOTSKI,
2001, p. 125).
Por meio do conceito de zona de desenvolvimento proximal,
Vygotski (2001), durante os intensos debates sobre educação, desenvolveu,
do ponto de vista da instrução, os aspectos centrais da sua Teoria da
Cognição: a relação entre o processo interpessoal (social) e o processo
intrapessoal, os estágios de internalização e o papel dos mais avançados em
conhecimento nas relações com os aprendizes.
O ponto central dessa descoberta está na relação entre fala e
pensamento. A partir do estudo das raízes genéticas entre pensamento e
52
linguagem, Vigotski (2000a, 2000b, 2001, 2006, 2009, 2010) constatou
que na constituição do pensamento a fala é internalizada e provou isso pelo
fenômeno da fala egocêntrica,
[...] a fala egocêntrica emerge quando a criança transfere formas sociais
e cooperativas de comportamento para a esfera das funções psíquicas
interiores e pessoais... Segundo nossa concepção, o verdadeiro curso do
desenvolvimento do pensamento não vai do individual para o
socializado, mas do social para o individual (YAROCHEVSKY, 1989,
p. 123).
Desse modo, a fala exterior engendra a fala interior; essa fala
intrapsíquica tem por origem os contatos humanos reais, no diálogo, e nas
trocas verbais. Nesse processo,
Quando a internalização começa, o discurso egocêntrico diminui. A
criança passa a ser seu melhor interlocutor. Parte essencial desse
processo, no entanto, é a existência de um ambiente que seja
desafiador para a criança, tanto física como verbalmente. O
“monólogo” descritivo de que o discurso egocêntrico é composto pode
ser internalizado de forma criativa somente se for questionado e
desafiado por vozes externas. Só assim a inteligência é possível, a
“inteligência definida não como a “acumulação de habilidades
dominadas”, mas como o “diálogo de alguém com seu próprio futuro
e como discurso para o mundo exterior (EMERSON, 2010, p. 80).
Nessas ações enunciativas está representada a trama das relações do
indivíduo como o outro, ou seja, o sujeito é o que é porque no
processo de desenvolvimento galgou sempre níveis mais elevados e
complexos. Concretamente, para Leontiev (2004, p. 448), Vigotski “[...]
lançou a hipótese de que, durante seu processo evolutivo, a criança
interioriza as formas sociais de comportamento que os adultos utilizaram
com ela desde o começo de sua vida”.
53
A partir dessa mudança de paradigma, a figura do professor é
encarada como essencial para a aprendizagem, pois, por meio da
linguagem, opera mediações entre a criança, os comportamentos sociais e
o conhecimento. Por encarar a inteligência como uma categoria social,
Vygostki (2001 , p. 84-86) enfatiza que na zona de desenvolvimento
proximal ocorrem as verdadeiras contribuições, pois no momento em que
a criança recebe ajuda e é orientada para estabelecer relações com o mundo
ao seu redor, a aprendizagem acontece.
Os adultos, nesse estágio, são agentes externos servindo de mediadores
do contato da criança com o mundo. Mas à medida que as crianças
crescem, os processos que eram inicialmente partilhados com os adultos
acabam por ser executados pelas próprias crianças. Isto é, as respostas
mediadoras ao mundo transformam-se em um processo interpsíquico
(LURIA, 2006c, p. 21).
A partir disso, o conceito de mediação é outro conceito com o qual
este trabalho dialoga. Para Vigotskii (2006) esse conceito se refere à
natureza mediadora das ações do homem, por meio da linguagem, com as
quais os instrumentos inventados ao longo da história são aprendidos e os
processos psicológicos instrumentais mais complexos da cultura tomam
forma pelos sujeitos, por meio de constante interação com adultos ou
outros agentes de mediação, que acontece num determinado nível de
desenvolvimento da capacidade potencial de aprendizagem dos sujeitos.
Isso porque
[...] toda matéria de ensino exige mais do que a criança pode dar hoje,
ou seja, na escola a criança desenvolve uma atividade que a obriga a
colocar-se acima de si mesma. Isto sempre se refere a um sadio ensino
escolar. A criança começa a aprender a escrever quando ainda não
possui todas as funções que lhe assegurem a linguagem escrita. É
precisamente por isso que a aprendizagem da escrita desencadeia e
54
conduz o desenvolvimento dessas funções (VIGOTSKI, 2000a, p.
336).
Desse modo, pode ser considerado um bom ensino, aquele que se
adianta ao desenvolvimento. Em condições contrárias, seria
completamente estéril ensinar à criança o que ela não tem condições de
aprender ou ensinar o que ela já sabe. Para Vigotski, o caminho da criança
até o objeto se dá pela linguagem por meio das trocas verbais com seus
operadores de mediações; por isso, para ele a linguagem é constituinte dos
processos cognitivos, sociais e ideológicos, uma vez que
Todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no
decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades
coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a
segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do
pensamento das crianças, ou seja, como funções intrapsíquicas (LURIA,
2006a, p. 114, grifos do autor).
Desse modo se regula o processo de desenvolvimento das funções
psicointelectuais superiores, ou seja, a aprendizagem da criança, que
engendra a zona de desenvolvimento proximal, faz com que a criança ative
seus processos internos e estabeleça inter-relações com outros, para que
possa continuamente se manter desenvolvendo e convertendo as
aprendizagens em suas apropriações internas.
Desse modo, a aprendizagem não tem um fim em si mesma, mas
ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento; por isso, a
aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e universal para
que se desenvolvam, na criança, as características humanas constituídas
historicamente (LURIA, 2006a, p. 115).
Portanto, a aprendizagem é fonte de desenvolvimento que ativa os
inúmeros processos que não se desenvolveriam por si só. Isso porque, na
zona de desenvolvimento proximal, o papel da aprendizagem é o de fonte de
55
desenvolvimento que orienta e estimula os processos internos, já que “[...]
o processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o processo
de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a área de
desenvolvimento potencial” (LURIA, 2006a, p. 115, grifos do autor).
Por exemplo, o desenvolvimento da fala serve com parâmetro de
desenvolvimento de funções psicointelectuais superiores. A origem desse
desenvolvimento se dá nas relações que as crianças estabelecem com
aqueles que as rodeiam, o que, em seguida se converte em linguagem
interna, transforma-se em ação mental e a partir desse momento fornece
meios para o desenvolvimento do pensamento da criança.
Para finalizar este capítulo, pela sua importância no presente
trabalho, foi selecionado o conceito de atividade de estudo, também com
o objetivo de diferenciá-lo do conceito de atividade.
A atividade de estudo, de acordo com Davídov (1988), é
conceituada com uma atividade norteadora das crianças em idade escolar,
por ser a forma pela qual as crianças assimilam conceitos e conhecimentos
científicos, uma vez que, por sua estrutura, ela permite que os estudantes,
por meio do estudo e da compreensão teórica dos conceitos, se constituam
como sujeitos que compreendem o mundo em sua universalidade.
Desse modo, a atividade de estudo se estabelece como fonte de
desenvolvimento dos estudantes em idade escolar, que pode ser usada para
a superação das contradições de um sistema tão desigual, por ser uma das
vias pelas quais atravessam as possibilidades educacionais comprometidas
com o processo de humanização das novas gerações.
56
Conceitos de suporte e suporte digital
“Hoje, com as novas possibilidades oferecidas pelo texto eletrônico,
sempre maleável e aberto a reescrituras múltiplas, são os próprios
fundamentos da apropriação individual
dos textos que se veem em questão”
(Roger Chartier, 2009b, p. 49)
Inicialmente, os suportes de textos, se considerados como objetos
culturais, trazem possibilidades de transformação, tanto em sua relação
com os sujeitos, quanto a si mesmos.
Desse jeito, os homens, em interação com a natureza, mais
particularmente com o mundo que os rodeia, para atender as suas
necessidades de sobrevincia, têm que buscar instrumentos ou elaborá-
los para poder obter produtos para subsistir.
Indo ainda mais além, o uso de objetos e instrumentos culturais
amplia a gama de possibilidades de atividades humanas, em cujo interior
novas funções psicológicas surgem e operam. Assim, essas funções podem
emergir a partir do contato com esses elementos da cultura humana e
funcionarem com estímulos auxiliares usados no desenvolvimento e na
aprendizagem do sujeito em atividade.
Sobre o contato com os instrumentos culturais, Vigotski (2000a),
em seus estudos, declara que se os instrumentos forem modificados, o
modo de pensar dos sujeitos te sua estrutura radicalmente diferente.
Nesse modo de ver o mundo, o homem é visto como produto da sua
história e da cultura da qual faz parte, ou seja, os objetos, as formas de se
relacionar, os valores, a lógica, a linguagem, os sistemas de signos são frutos
da criação do próprio homem. Por sua vez, essas criações mudam seu
comportamento, seu modo de pensar e sua subjetividade.
57
A favor dessa perspectiva, Mello (2010 p. 196) argumenta que
basta olhar para nossos antepassados para aceitarmos a tese de que as
qualidades humanas foram sendo criadas ao longo da história e, no mesmo
processo, foram sendo criados os objetos da cultura. Porque precisam se
adaptar às novas condições que os objetos possibilitam para eles, os homens
modificam sua maneira de pensar e seu comportamento diante do uso de
tais objetos e instrumentos culturais.
Fazendo uma breve digressão, no sentido de desvio momentâneo
do assunto em enfoque, mas que é necessária para entender os conceitos
de objetos e instrumentos culturais acima, a sistematização da ideia de
cultura para Vigotski é enfocada a partir dos estudos de Beatón (2005,
p. 170), que considera cultura tudo que foi construído pelo ser humano
para poder se adaptar ao meio e para adaptar o meio às suas possibilidades.
Portanto, cultura, para a Teoria Histórico-Cultural, é o que foi
feito pelo homem em interação com o meio, para atender a suas
necessidades, a partir das adversidades e possibilidades presentes nesse
próprio meio, com materiais ou ideias que criam novas necessidades, num
processo ininterrupto de transformação em que os objetos e instrumentos
culturais do presente se relacionam com as criações passadas e geram
possibilidades de criações futuras. Isso porque
Todo objeto material atual da cultura, primeiro foi uma necessidade,
primeiro foi um ideia, uma imaginação que uma vez foi ou é, um
produto da síntese de algo já existente. É a união da fantasia e das
emoções que produz as necessidades formadas pelo complexo de
interações deste processo com os conteúdos da cultura já criados e por
criar, num momento dado na imaginação e no pensamento de um ser
humano ou de um grupo deles, num tempo e num espaço determinado
e nas condições concretas de vida, que produzem as necessidades
(BEATÓN, 2005, p. 115, tradução nossa).
58
Diante do que foi dito, sobre as novas tecnologias criadas pela
cultura humana, evidencia-se o fato de que elas surgem como
possibilidades de enfrentar necessidades, mas junto ao seu surgimento,
aparece a necessidade de se adaptar a elas.
E, ainda, essas experiências adaptativas são “[...] de natureza e
conteúdo afetivo, cognitivo, consciente e inconsciente, social e pessoal ou
individual e, como precisa Vigotski, têm uma orientação biossocial,
relacionando o meio com a personalidade” (BEATÓN, 2005, p. 116,
tradução nossa).
A necessidade de sobrevivência, como homem biológico, de se
adaptar às exigências do mundo, fez com que os homens desenvolvessem
os objetos e instrumentos culturais; no entanto, essa atividade criadora de
novas invenções fez com que ele modificasse sua própria essência criando
a cultura humana.
No que tange à relação entre os instrumentos de trabalho e os
sujeitos, John-Steiner & Souberman (2000, p. 179) declaram que Vigotski
parte do postulado de Engels (1990), em sua obra Dialética da Natureza,
que enfatiza o fato de que, ao longo da história, o homem modifica a
natureza e cria novas condições de existência.
Mais especificamente, Vigotski (2000a), ao analisar as questões
sobre a história do desenvolvimento da criança, ressalta que “O controle
da natureza e o controle do comportamento estão mutuamente ligados,
assim como a alteração provocada pelo homem sobre a natureza altera a
própria natureza do homem” (VIGOTSKI, 2000a, p. 73).
Em relação aos suportes de escrita, objeto cultural aqui
evidenciado, historicamente, é sabido que desde a antiguidade os suportes
textuais variaram, seguindo o percurso que foi das paredes dos interiores
das cavernas, à pedra, à tabua, ao pergaminho, ao papel. E, recentemente,
os dispositivos digitais tornaram-se mais uma opção de suporte de escrita.
59
Sobre os suportes de escrita, é importante saber que o suporte deve
ser algo real, ou seja, deve ter materialidade física ou pertencer à realidade
virtual. Eles sempre aparecem em algum formato específico, tal como
papel, madeira, tela, tecido, ferro, entre outros. Além disso, não significa
que ele foi produzido especificamente para portar textos; ele pode ser um
portador de textos eventual, como, por exemplo, a pele humana.Vale
ressaltar que o suporte não deve ser confundido com o contexto, nem com
a situação, nem com o canal de trocas verbais em si, nem com a natureza
do serviço prestado para a divulgação e distribuição dos textos. Segundo
Marcuschi (2003, p. 10) o suporte de um gênero pode ser entendido como
um lócus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou
ambiente de fixação dos gêneros do enunciado para torná- los acessíveis
para fins de troca verbal.
Diante de tudo o que foi dito, fica constatado que os suportes são
imprescindíveis para que o gênero circule na sociedade. Portanto, ao falar
em gêneros do enunciado os suportes não podem ser esquecidos, pois eles
possibilitam a sua materialização.
No que diz respeito à natureza do suporte do ponto de vista de sua
constituição verbal
Há suportes que foram elaborados tendo em vista a sua função de
portarem ou fixarem textos. São os que passo a chamar de suportes
convencionais. E outros que operam como suportes ocasionais ou
eventuais, que poderiam ser chamados de suportes incidentais, com
uma possibilidade ilimitada de realizações na relação com os textos
escritos. Em princípio, toda superfície física pode, em alguma
circunstância, funcionar como suporte. Vejam-se os troncos de árvores
em florestas com declarações de amor ou poemas em suas cascas
(MARCUSCHI, 2003, p. 16).
60
Por isso, são considerados suportes de textos escritos, nessa
pesquisa, tanto os suportes convencionais quanto suportes incidentais, os
instrumentos materiais em que os textos se inscrevem que se diferenciam
de seus instrumentos de veiculação, apesar de algumas vezes coincidirem
com eles, como no exemplo as cascas dos troncos de árvores citados
anteriormente. Para ilustrar diferenciação entre suporte de textos de seus
instrumentos de veiculação como exemplo tem-se o papel que é o suporte
de inscrição dos textos e o livro que é o seu instrumento de veiculação.
Atualmente, na fase da denominada cultura eletrônica, os suportes
digitais possibilitam uma explosão de novos gêneros do enunciado e novas
formas de trocas verbais. Esse fato revela que os gêneros do enunciado
surgem, desenvolvem-se e integram-se nas culturas muito mais ligados aos
seus aspectos funcionais e cognitivos que às suas especificidades
linguísticas, gramaticais e estruturais.
De acordo com Braga & Ricarte (2010, p. 20), com o surgimento
das invenções tecnológicas são gerados fortes impactos nas práticas
cotidianas e nos relacionamentos humanos. Hoje, os aparelhos digitais são
usados para busca de informações, para as trocas verbais e também para o
lazer. Considerando as possibilidades enunciativas, eles têm a vantagem de
integrar, em um único meio, vários tipos de informações aos recursos
audiovisuais.
Os aparelhos digitais podem ser entendidos como uma tecnologia
que se tornou necessária em uma sociedade marcada pelo acúmulo de
informação e pela necessidade de estabelecer cada vez mais trocas verbais à
distância; por essas razões, as novas práticas associadas ao uso de aparelhos
digitais estão se incorporando ao cotidiano das pessoas com uma
velocidade surpreendente. Isso é perceptível, se forem observadas as
mudanças que antes levavam décadas para se estabelecer e atualmente
acontecem em anos ou mesmo em meses. Isso ilustra o fato de que, hoje,
além de saber ler e escrever, os indivíduos precisam também estar
61
familiarizados com o uso dos aparelhos digitais e com as práticas sociais
mediadas por eles.
Chartier (1994) afirma que o texto na tela é uma revolução do
espaço da escrita que a altera fundamentalmente e modifica também a
relação dos sujeitos com os textos. Assim, novas e imensas possibilidades
são abertas pela representação eletrônica dos textos, porque ela substitui a
materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar específico; a
livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis se opõe às
relações de contiguidade estabelecidas no objeto impresso; a navegação
de longo curso pelos mais variados gêneros do enunciado sem margens
nem limites, ela opõe à captura imediata da totalidade da obra. Essas
mutações estabelecem novas maneiras, novas relações com a escrita e novas
possibilidades intelectuais. “Pode-se concluir que a tela como espaço de
escrita e de leitura traz não apenas novas formas de acesso à
informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de
conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever” (CHARTIER, 1994,
p. 100-101).
Nessa perspectiva, novas tecnologias, ensino e aprendizagem
passam a se imbricar de tal modo que as interferências mútuas levam à
ressignificação dos modos de produzir trocas verbais; porque a escrita em
suportes digitais constitui-se como necessidade dos sujeitos do século XXI
e é dever da escola garantir o desenvolvimento dessas capacidades, para que
os sujeitos possam criar gêneros do enunciado com autonomia, dentro dos
projetos a que se dedicam em determinado momento de suas vidas.
Exponho a seguir o caminho percorrido pela pesquisa que rendeu
muitos resultados positivos, que, além de possibilitar a compreensão acerca
do processo de inserção da criança do sexto ano do ensino fundamental no
mundo da escrita, contribuiu para a minha formação, pois cada momento
dedicado a essa pesquisa favoreceu infinitamente minha compreensão
sobre inúmeras e angustiantes dúvidas que tinha não só como
62
pesquisadora, mas também como professora, que procura estar sempre em
(trans)formação.
Metodologia
“Você não ama um ser humano porque é bonito, mas ele é bonito
porque você o ama”
(Mikhail M. Bakhtin, 2010, p. 125)
“[...] a inescapável calculabilidade científica exige o esquecimento da
questão do Ser”
(Carlos Alberto Faraco, 2009, p. 40)
“Que nos trazem os tempos atuais para além das dúvidas, incertezas e
desencantos? Fechado o pano, concluído o show da ciência moderna,
que nos resta?”
(João Wanderley Geraldi, 2003, p. 255)
Em respeito ao quadro teórico que fundamenta esse debate,
portador de uma visão das ciências humanas diferente da visão positivista,
uma metodologia de pesquisa que fosse dialógica poderia ter sido
escolhida para ser posta em questão.
Em convergência com essa visão de mundo, a escolha da
metodologia de pesquisa-ação para o desenvolvimento de pesquisas se
torna uma alternativa investigativa no campo das ciências sociais, pois a
investigação, quando é norteada pela abordagem qualitativa, interpreta os
dados a partir dos significados de determinados assuntos nas vidas dos
sujeitos da pesquisa situados em determinados contextos culturais.
Será apresentada a seguir uma reflexão sobre a pesquisa-ação
educacional como uma práxis dialógica, pois pretendeu-se pôr em
63
discussão alguns pontos que valorizassem essa prática sob a luz de conceitos
de Bakhtin, de Volochínov e de seus seguidores.
Não se pode esquecer que a prática aliada ao estudo da literatura
sobre os temas das pesquisas é de extrema importância, porque essa união
possibilita escolha de referenciais teóricos humanizadores, que
oportunizam reflexões sobre os atos de todos envolvidos na pesquisa e os
fundamentam numa base científica.
Para iniciar a discussão sobre metodologia, uma polêmica que
atravessa esse caminho é muito bem lembrada por Geraldi ao discutir a
questão das máscaras identitárias como exigências para a inserção no
mundo global. Em suas palavras: “[...] o mico é que nesta pós-
modernidade da diferença, nunca fomos socialmente tão cartesianos! Não
esqueçamos que um dos princípios desse método é: estabeleça uma
diferença. (GERALDI, 2010, p. 154). Isso se deu, “para tornar concreta
a promessa, explicar a vida pela ciência, também as ciências humanas foram
‘matematizando-se’, construindo seus objetos científicos e desligando-se
das interpretações dependentes do sujeito” (GERALDI, 2010, p. 40).
De acordo com a afirmação acima, deve-se tomar cuidado para que
tudo não seja colocado em planos cartesianos, prática ainda muito
recorrente na sociedade pós- moderna, já que, quando não se reconhece a
diferença, a própria noção de identidade se esvai, pois a igualdade
generalizadora colabora para o apagamento das singularidades e, portanto,
do que é subjetivo. Entretanto, vale lembrar que
Não se trata, obviamente, de uma recusa à teoria, mas da recusa de
reduzir o ato singular às simplificações de um modelo teórico fechado
em si mesmo. No fechamento do círculo teórico, não invadido pelo
mundo concreto da vida, a redução dos aspectos de fatualidade e
eventicidade de cada ato para reencontrar o modelo abstrato faz de cada
unicidade uma repetição do predeterminado, um exemplar descarnado
e exangue (GERALDI, 2010, p. 84).
64
Contra a visão generalizadora descrita na citação anterior, a
pesquisa na área das ciências humanas deveria ser considerada como evento
único, situado numa cultura e num momento histórico, irrepetível e
estritamente vinculado à existência real dos sujeitos.
Sobre os estudos na área das ciências humanas, Bakhtin (2006, p.
312) ressalta uma de suas particularidades, que é o exprimir-se a si mesmo
e deste modo criar o texto, em que se insere. Contudo, a partir do instante
em que o homem é estudado fora do texto e independente dele, já não se
trata mais do fazer das ciências humanas, pode ser que se trate do fazer das
áreas como anatomia ou da fisiologia humana.
Entretanto, as pesquisas em ciências humanas tornam-se possíveis
por meio de suas estratégias particulares: pelo tatear e pela sensibilidade
humanos, uma vez que se contrapõem ao fechamento metodológico, ao
sufocamento das vozes e à coisificação do homem pelos valores do
capitalismo, num panorama em que “[...] nas concepções oficiais das
classes dominantes, a dupla tonalidade da palavra é no conjunto
impossível, na medida em que fronteiras firmes e estáveis se traçam entre
todos os fenômenos (BAKHTIN, 2008, p. 380).
Sobre o que foi dito, é esclarecido que “ninguém aprende o ofício
de conhecedor ou diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras
preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo elementos
imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” (GINZBURG, 1989, p.
179).
Portanto, antes de tudo cada pesquisador precisará ter um
posicionamento político fortemente eleito e para isso terá que escolher
entre o alinhamento à tradição ou a sua radicalização, em defesa de outras
manifestações verbais tão importantes ou até mesmo mais importantes que
aquelas que a tradição canonizou. Desse modo, torna-se necessário um
ponto de intersecção, em que
65
Pesquisa e ética se reencontrem e, enfim, talvez, nos tornemos livres
para nos darmos uma lei, sabendo que nossa liberdade... implica em
que lei alguma é imutável porque outra lei pode ser elaborada nesta
história que não tem qualquer porto de chegada que não o próprio
percurso da caminhada (GERALDI, 2010, p. 61).
Mais especificamente, trata-se da uma busca por diálogos em que
a cada nova alteridade encontrada surgem novos pontos de vista e novas
possibilidades de ver o mundo. Já que o outro determina o eu, é impossível
sair de uma relação dialógica sem ter sofrido alteração alguma.
Sobre uma pesquisa eficaz na área de ciências humanas, Mello &
Miotello (2013) enfatizam que a partir do cotejamento de uma consciência
com outra, de um texto com outros, é desenvolvida a compreensão e o
alargamento da própria consciência.
Nesse sentido, Faraco (2009, p. 75) sintetiza que nessa busca pela
heteroglossia, a pluralidade dialogizada é o ideal presente nos textos de
Bakhtin, que requer resistência a qualquer processo centrípeto e
monologizador. Como uma alternativa para essa busca tem-se um olhar
para a concretude da vida; Geraldi esclarece-o a seguir:
[...] um caminho a percorrer é precisamente aquele que nos apontam
as relações atentas com a alteridade, porque elas nos permitem
também, como a arte, escutar o estranhamento. As ações do outro, os
dizeres do outro, prenhes de sua cultura, quando confrontamos com
objetivos e fenômenos que nos escondem as valorações que nós
mesmos lhes atribuímos, mostram-nos o que não mais conseguimos
enxergar (GERALDI, 2010, p. 89).
Trata-se da busca de outra palavra, fora do paradigma de oposição
binária, uma palavra diferente, mas não indiferente, que é singular,
insubstituível, responsável e responsiva por ser única na sua relação com o
outro. Ou seja, valoriza-se o eu de cada um em detrimento do eu-teórico,
66
“com vivo atestado do próprio não-álibi no existir, que não se dá em uma
relação reversível, simétrica com o outro” (PONZIO, 2010b, p. 33).
E assim, a linguagem científica das ciências humanas aproxima-se
da linguagem em uso, possibilitando que as afirmações e validações
científicas se restrinjam ao interior das teorias que permitiram suas
enunciações, pois o enunciado insere o sujeito na história e considera seus
elementos externos tanto os conhecidos pelos sujeitos quanto os que
permeiam o momento do seu ato. Pois
Escolher este novo caminho implica... aceitar a subjetividade e a
criação como terreno próprio da linguagem e seu movimento; enfim,
preferir o acontecimento à estrutura, apostar na instabilidade para nela
encontrar sentidos novos (GERALDI, 2010, p. 81).
Desta forma tem-se um envolvimento concreto e não indiferente
com a vida do outro, uma vez que cada enunciado está ligado
dialogicamente a outros e pode produzir infinitas respostas aos textos que
ainda serão criados ou aos que foram anteriormente criados, pois alude a
eles, replica-os, objetiva-os, apoia-os, retoma-os, imita-os, aprofunda-os
etc.
A palavra, enquanto célula viva do discurso, enquanto dizer, enquanto
enunciação recusa-se ao conhecimento indiferente que caracteriza a
linguística geral, como se recusa a qualquer interpretação que recorra
a conceitos e a normas gerais, a princípios universais (PONZIO,
2010b, p. 38).
Assim, é possível que se faça uma descrição participante que
confere espaço para a palavra outra que se manifesta até mesmo num
embate, mas que mantém sua singularidade e insubstitutibilidade.
Justamente porque não generaliza, mas encara a palavra outra como centro
organizador sem iguais, mostrando o outro não como homem abstrato,
67
nem como falante genérico, mas como sujeito singular. De modo que não
ocorra a relação sujeito-objeto como consequência do abuso do sujeito que
coisifica seu outro, porque “[...] procedendo conforme o método
geralmente denominado ‘hipotético- dedutivo’, não nos aproximamos da
palavra viva” (PONZIO, 2010, p. 47).
Já que nessa conduta o singular se torna desvio, as transformações
são erros, as mudanças não existem, a voz dita monologicamente o que
deve ser observável e o subjetivo é evitado, pois é almejado encontrar leis
universais. Além disso,
O tartamudear torna-se defeito da linguagem em relação a um grupo
hegemônico, a uma comunidade linguística, a uma agregação que
detém o saber, consolidado, esclerosado, através do exílio do fútil, da
matéria, em relação a um grupo competente, a um organismo que
administra e que controla cada corpo, apresentando-se como um corpo
hegemônico, corporação, corpo médico, corpo acadêmico (PONZIO,
2010b, p. 112).
Portanto, partindo de um viés que encara os acontecimentos
subjetivos como eventos únicos, as ciências humanas têm vozes para
materializar o que lhe é próprio, os conflitos, os debates, os embates e as
discussões humanas.
Pesquisas na área de ciências humanas:
a questão do espaço e do tempo
“A reflexão sobre as formas de vida humana, e, portanto, também sua
análise científica, segue sobretudo um caminho oposto ao seu
desenvolvimento real”.
(Karl Marx, 1996, p. 73)
68
De acordo com Medviédev (2012, p. 45) no início do século
XX, percebeu-se que o positivismo naturalista e o materialismo
mecanicista desconheciam as diferenças entre o signo ideológico e o corpo
natural e ao analisá-los buscavam leis naturais e generalizáveis.
E, assim, segundo Ponzio (2010b, p. 20), a todas as identidades
eram atribuídas pertencimentos, genealogias, hábitos generalizados
daquilo que era considerado geral, oficial e uniforme. E se desencadeava
uma crise em que toda a riqueza cultural estava a serviço do agir biológico,
que “deixa o ato à mercê de uma existência estúpida, exaure-o de todos os
componentes ideais e o submete a seu domínio autônomo [...]”
(BAKHTIN, 2010, p. 24).
A partir desse quadro, fica evidente a necessidade de uma nova
tendência de metodologia de pesquisa nas áreas de ciências humanas, pois,
A “vontade de tudo reduzir a um sistema” foi visivelmente substituída
pelo desejo de dominar o mundo concreto material dos objetos e dos
acontecimentos que são materialmente expressos, mas sem os
fundamentos positivistas e sem a perda da sua união viva e racional
(MEDVIÉDEV, 2012, p. 47).
Assim, esse modo de ver o mundo, de relações indiferentes entre
todos, em que cada um não faz diferença alguma, não estabelecia
nenhum tipo de relação dialógica. Por isso, o sujeito teórico deveria,
sempre que possível, “[...] encarnar-se em um ser humano real, efetivo,
pensante para incorporar-se, com o mundo todo do existir que lhe é
inerente enquanto objeto de seu conhecimento, no existir do evento
histórico real, simplesmente como seu momento” (BAKHTIN, 2010, p.
49).
E assim, tudo o que é geral passa a adquirir sentido de um lugar
único e singular, que segundo Bakhtin (2010) não encontra nenhum álibi
em seu existir, pela impossibilidade de ocupar outro lugar, pois é nesse
69
mundo de existência única que participam as singularidades que liga a vida
de um universo inteiro, já que, “[...] no momento do ato, o mundo se
reestrutura em um instante, a sua verdadeira arquitetura se restabelece, na
qual tudo o que é teoricamente concebível não é mais que um aspecto”
(BAKHTIN, 2010, p. 53).
Desse modo, as análises do mundo passam a considerar que a
criação ideológica e sua compreensão podem ser realizadas se vistas
inseridas em seu processo social, que compreende o objeto de estudo como
um todo. Sobre a análise da ideológica, Medviédev esclarece que
O sentido ideológico, abstraído do material concreto, é oposto, pela
ciência burguesa, à consciência individual do criador ou do intérprete.
As ligações sociais complexas, dentro dos limites do ambiente material,
são substituídas pela ligação inventada entre uma consciência
individual solitária e o sentido que a ela se opõe (MEDVIÉDEV, 2012,
p. 49).
Portanto, não há significado ideológico fora das relações sociais, ou
seja, o fenômeno ideológico adquire existência específica por meio das
trocas verbais, porque o ecletismo é perigoso somente no terreno do
positivismo, em que se busca a unidade, que é obtida à custa de toda sorte
de substituições.
Desse modo, de acordo com Bussoletti & Molon (2010) é
impossível dissociar a discussão metodológica de uma perspectiva teórica.
E enfatiza que nas obras de Vygotsky (2000a, 2000b, 2001, 2009, 2010),
permanece a insistência do autor em estudar a dimensão histórica, “[...] o
que não significa analisar simplesmente os eventos passados, mas
compreender o processo de transformação do presente implicado nas
condições passadas e futuras, como diz Bakhtin (2006) na memória do
futuro” (BUSSOLETTI; MOLON, 2010, p. 80).
70
Dessa maneira, os eventos únicos devem ser contemplados em
meio ao seu presente, passado e futuro, num diálogo constante entre o que
já ocorreu, o que ocorre, o que es ocorrendo e o que vem adiante.
Nessa discussão, Bakhtin também apresenta o problema da grande
temporalidade, enfocando o passado e o futuro como ilimitados,que
não existem limites para o contexto dialógico, uma vez que os sentidos
são inesgotavelmente renovados (BUSSOLETTI; MOLON, 2010, p.
82).
Portanto, a pesquisa em ciências humanas “propõe um exercício
constante de construção de compreensões apontando que o passado jamais
estará fechado porque sempre estará sujeito a novas compreensões pelo
presente” (GERALDI, 2010, p. 65), criando também, e ao mesmo tempo,
compreensões futuras.
Mesmo antes de se configurarem terrenos de criação de mensagens,
os eventos são elos de uma cadeia que não apenas os une, como também
dinamiza as relações entre pessoas e enunciados anteriores.
Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o
contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro
sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos do diálogo
dos culos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados
de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no
processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em
qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas
imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados
momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso,
tais sentidos serão relembrados em forma renovada (em novo
contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua
festa de renovação [...] (BAKHTIN, 2006, p. 410).
71
A partir desse momento, em que a interação verbal passa a ser
encarada como categoria básica da concepção de linguagem, todo
enunciado passa a fazer parte de um processo infinito de trocas verbais. Em
convergência com esse modo de pensar, os apontamentos de Vygotsky
constatam que
[...] nesse processo de produção de significação nas relações sociais
na/da história, as palavras mudam de sentido em contextos diferentes,
mas são materializadas, concretizáveis, visualizadas no processo de
comunicação entre os sujeitos, ou seja, o sentido é sempre uma
formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de
estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do
sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e,
ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata (VYGOTSKY,
2001, p. 465).
Por meio dessas articulações, a fidelidade ao princípio da alteridade
e do dialogismo é mantida e todas as vozes podem ser ouvidas, pois nas
relações dialógicas, os sentidos precisam ser enriquecidos e incorporados
aos contextos, nos quais as relações sociais são tecidas.
De acordo com Faraco (2009, p. 85) os enunciados são dialógicos,
porque
[...] emergem como respostas ativas que são no diálogo social da
multidão das vozes interiorizadas. Eles são, assim, heterogêneos. Desse
ponto de vista, nossos enunciados são sempre discurso citado, embora
nem sempre percebidos como tal, já que são tantas as vozes
incorporadas que muitas delas são ativas em nós sem que percebamos
sua alteridade (FARACO, 2009, p. 85).
Neste novo modo de ver a pesquisa em ciências humanas, as
questões e as práticas se inserem no reconhecimento de sua atualidade e da
72
necessidade de seu constante questionamento, como um exercício de ação
de uma profunda valorização dos atos únicos que definem a vida humana,
livre de resoluções definitivas ou de formulações conceituais acabadas.
Sobre esse novo viés metodológico, Góes esclarece que, talvez fosse
uma caracterização metodológica que corresponderia “[...] à condição de
‘transgressão metodológica’ ou ‘postura imetódica’ [...] que está emergindo
em oposição ao modelo de racionalidade do positivismo” (GÓES, 2000,
p. 22). Entretanto, é preciso salientar que a metodologia em questão, que
fala de novas configurações sobre os modos de conhecer e de investigar, de
acordo com Ginzburg (1989), apenas requer rigor e cientificidade a
definir.
Diante do que foi dito, fica constatado que nos atos únicos e
singulares é possível religar-se à cultura (consciência cultural) e à vida
(consciência viva), mas quando se tornam valores em si perdem sua função
de superação. que “[...] à absolutização dos valores culturais corresponde
à concepção de que o povo escolhe uma única vez, renunciando à própria
liberdade [...] e transformando-se daquele momento em diante, em escravo
de sua livre decisão” (BAKHTIN, 2010, p. 25).
Contra essa absolutização e dentro dessa nova forma de fazer
ciência surgem outras possibilidades, como, por exemplo, a metodologia
de pesquisa-ação que, conforme acrescenta Thiollent (2005), para os
pesquisadores que não querem limitar suas investigações apenas aos
aspectos acadêmicos e burocráticos, a pesquisa-ação encontra um contexto
favorável para acontecer, pois ela atende às necessidades de trabalhos de
pesquisa em que “[...] os pesquisadores pretendem desempenhar um papel
ativo na própria realidade dos fatos observados” (THIOLLENT, 2005, p.
18). Além disso, nesse tipo de pesquisa as hipóteses passam pelo êxito da
ação ou pela constatação dos efeitos diretos e indiretos na situação que se
objetiva transformar.
73
Pesquisa-ação: alternativa para pesquisas em ciências humanas
“Nenhuma nirvana é possível para uma consciência individual. Uma
consciência individual é uma contradição em termos. A consciência é
essencialmente múltipla”.
(Mikhail M. Bakhtin, 2006, p. 342)
“Pesquisa-ação[...] é o único dispositivo em que todas as variáveis
estão necessariamente em interação no decorrer do processo”.
(Jean Foucambert, 1998, p. 90-91)
Sobre a pesquisa-ação, Barbier (2002, p. 85) afirma que ela “[...]
não é uma nova disciplina em ciências sociais, mas uma maneira filosófica
de existir e de fazer pesquisa interdisciplinar para um pesquisador
implicado”.
Nessa vertente, a realidade social é investigada por referenciais
teórico- metodológicos flexíveis, para que se consiga explicar os conflitos e
contradições inerentes ao contexto sócio-histórico-cultural. “Trata-se do
paradigma científico de natureza qualitativa, que não nega as importantes
contribuições da perspectiva clássica, porém estabelece novos princípios
para a produção do conhecimento” (MIRANDA, 2012, p. 14).
Nesse sentido, a busca por métodos que superassem os limites das
abordagens quantitativas e respondessem às demandas sociais, emergentes
de uma realidade em transformação, fez com que se originassem novos
enfoques metodológicos. Consequentemente, novos pressupostos para a
produção científica são estabelecidos, pois, apesar da realidade
contextualizada dos fenômenos não ser generalizável, ela também constitui
possibilidades de conhecimento.
Embasada nos princípios da abordagem qualitativa, a pesquisa-
ação intenciona compreender situações e propor alternativas para resolver
dificuldades e problemas. Por conseguinte, de acordo com Schulz (2003),
74
ela deve estar sempre orientada em função do conhecimento com vistas às
transformações não apenas no ambiente onde ocorre, mas também na
postura e no modo de agir do pesquisador. Por isso se convive com
incertezas e imprevisões durante toda a ação, conforme afirma Miranda,
O pesquisador torna-se, portanto, um interventor, um agente de
mudança, que ao buscar referências para seu trabalho não exclui as
orientações ditas tradicionais, as quais são retomadas e reinventadas à
luz dos princípios epistemológicos oriundos do final do século XIX.
Superando a visão estática, aceita que os fatos podem ser mudados e
reconstruídos, conforme as características específicas de cada situação
[...] (MIRANDA, 2012, p. 16).
Entretanto, essa flexibilidade metodológica não pode ser
confundida com a falta de rigor científico, pois, como afirma Thiollent
(2005) a pesquisa-ação não perde legitimidade alguma por incorporar
raciocínios dialógicos e argumentativos sobre os problemas nos quais
trabalha. Em contrapartida, os resultados desse tipo de pesquisa podem
contribuir para a tomada de consciência ou até sugerir o início de um ciclo
de ação investigativa.
[...] Tendo em vista o princípio de que os resultados obtidos não são
verdades acabadas, mas sínteses possíveis e provisórias pertencentes a
um determinado contexto histórico e cultural, o desenvolvimento da
pesquisa-ação responde algumas demandas ao mesmo tempo em que
traz à tona novas questões, as quais podem desencadear outras
investigações (MIRANDA, 2012, p. 19).
Inusitadamente, a pesquisa-ação, por lidar com aspectos da vida,
pode suscitar novos olhares, novas dúvidas, hipóteses e problemas tanto
para a pesquisa em que se encontra quanto para pesquisas futuras.
75
Contudo, durante a procura pelas respostas, na tentativa de
confirmar a hipótese da pesquisa, é imprescindível que se interroguem as
referências sobre o objeto de investigação, para que se faça a categorização
dos conteúdos e a busca por indicadores que permitam chegar ao
conhecimento das condições de produção e de recepção do problema
discutido.
E, numa etapa seguinte, deve-se fazer uma crítica aprofundada
sobre os materiais coletados, para estabelecer um diálogo entre as teorias
que alicerçaram a prática ao longo da pesquisa com os dados gerados e para
que sua hipótese possa ou não ser verificada. Vale lembrar que “[...
] se
alguém opta por trabalhar com pesquisa-ação, por certo tem a convicção
de que pesquisa e ação podem e devem caminhar juntas quando se
pretende a transformação da prática” (FRANCO, 2005, p. 485).
Portanto, a pesquisa-ação é dialógica e participativa, pois o
pesquisador não se separa do objeto; em vez disso, ele interage com ele de
forma objetiva e subjetiva.
A pesquisa-ação educacional
Dispor de uma metodologia é dispor de princípios, que precisam ser
aliados à intrepidez, à astúcia, à argúcia e à perspicácia”.
(João Wanderlei Geraldi, 2012, p. 24)
De acordo com Franco (2005, p. 485), a partir da incorporação
dos fundamentos da Teoria Crítica de Habermas, a pesquisa-ação assume
como finalidade a melhoria da prática educativa. Essa forma de pesquisa-
ação permite a participação ativa dos pesquisadores que pretendem
elucidar as condições de ação; por isso, essa metodologia de pesquisa é
concebida como articuladora entre o conhecer e o agir em busca da
mudança da realidade social.
76
A pesquisa-ação educacional é principalmente uma estratégia para o
desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles
possam utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, em
decorrência, o aprendizado de seus alunos (TRIPP, 2005, p. 445).
Pelo exposto na citação, a pesquisa-ação educacional é ressaltada
como uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa
consagradas para informar a ação que se deve tomar para melhorar a
prática.
Assim, torna-se possível a realização e experimentações em
situações reais, nas quais o pesquisador coloca propostas e os participantes
as desenvolvem de modo ativo; e a partir dessas experiências será possível
buscar e analisar, na literatura existente, caminhos para a resolução de
problemas.
Deixando de lado a concepção vigente sobre “prática” e “teoria”,
que encara a prática educacional como simples receita, ou confunde-a com
tecnicismos modeladores. Gatti afirma que
A educação escolar é um processo comunicacional específico que, para
atingir suas finalidades, requer formas didáticas que possam dar
suporte adequado a aprendizagens efetivas a grupos diferenciados de
estudantes, em idades diferenciadas de seu desenvolvimento. Práticas
educacionais são processos da maior importância, têm seus
fundamentos teóricos e associam-se a uma filosofia educacional.
Práticas geram teorizações e teorizações geram práticas, em movimento
recursivo. Práticas são fatos culturais e assim precisam ser significadas.
Essa relação dialética é quebrada nas nossas estruturas universitárias e
curriculares, herdadas de uma concepção de ciência positivada, em que
as abstrações imperam como tópicos em vasos não comunicantes:
conhecimento da ciência isolado do conhecimento
pedagógico-
educacional, este sempre considerado como de menor valor (GATTI,
2013, p. 54).
77
Especificamente, a pesquisa-ação propõe uma alternativa para a
busca de uma perspectiva de produção de conhecimento no âmbito
escolar, comprometida com o desenvolvimento de uma ação implicada na
realidade escolar, para responder aos problemas coletivamente
identificados.
A pesquisa-ação, estruturada dentro de seus princípios geradores, é
uma pesquisa eminentemente pedagógica, dentro da perspectiva de ser
o exercício pedagógico, configurado como uma ação que cientificiza a
prática educativa, a partir de princípios éticos que visualizam a
contínua formação e emancipação de todos os sujeitos da prática
(FRANCO, 2005, p. 483).
Ademais, o método investigativo da pesquisa-ação educacional
dialoga com os estudos de Vigotski sobre mediação, porque considera
papel do professor o de ir além de ser o promotor da aprendizagem das
crianças nos domínios cognitivo, social, físico e afetivo, e, desse modo, cabe
a ele considerar seus outros papéis essenciais como a criação de novas
necessidades humanizadoras para as crianças, que possibilitam a elas uma
aprendizagem significativa.
Essa metodologia dialoga também com a dialogia, do círculo de
Bakhtin, pois ela concebe a linguagem como um objeto social e nesse
sentido a comunicação pode ser estabelecida por meio de enunciados
passíveis de entendimento, sempre num determinado contexto
enunciativo e que depende de um relativo “acabamento”, que seria a
possibilidade de resposta dos interlocutores.
A riqueza de seu conceitual está em nos obrigar a pensar não por
dicotomias (o individual X o social) ou pelo hiperdimensionamento de
um dos polos, mas por uma intrincada dinâmica em que todo falante,
sendo uma realidade sociossemiótica, é ao mesmo tempo único,
singular, e social de ponta a ponta (FARACO, 2009, p. 136).
78
Já que a realidade é vista de forma dialógica, o modo de fazer
ciência deve ser outro, em que as trocas verbais entre vida e conhecimento
científico sejam valorizadas.
A dialogia e a pesquisa-ação educacional: um diálogo possível
“A vida, por natureza, é dialógica. Viver significa participar do diálogo”.
(Mikhail M. Bakhtin, 2015, p. 293)
De acordo com Mello & Miotello (2013, p. 224), Bakhtin, ao
decretar o fim das grandes dicotomias filosóficas, aponta novas
possibilidades de relações, e ao inverter o polo da identidade para o polo
da alteridade, inverte também o polo do dever-ser para o polo do ato
responsável e o polo do sistema abstrato para o polo da interação concreta,
ou seja, o polo do mesmo desloca-se para o polo do diferente; assim, o polo
da monologia passa a ser o polo da relação dialógica. Porque para ele,
Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder,
concordar etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a
vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo,
os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido
dialógico da vida humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2015.
p. 328).
Em consonância com essa citação, a pesquisaação é uma opção de
metodologia de pesquisa dialógica; entretanto, exatamente por isso ela tem
recebido inúmeras críticas das metodologias tradicionais. Isso porque para
desenvolver pesquisa por meio do método de pesquisa-ação o pesquisador
deve agir e intervir na prática e tentar modificá-la; essa metodologia tem
regras diferentes dos métodos tradicionais positivistas.
Tal metodologia deve ser pensada como uma pesquisa específica
que, no dizer de Foucambert (1998, p. 91), “é o único dispositivo em que
79
todas as variáveis estão necessariamente em interação no decorrer do
processo”. Consequentemente, é necessária a manutenção das vozes e dos
diálogos entre textos e contextos para ser construído o sentido de modo
profundo.
Assim também, Barbier (2002) relata que por meio da pesquisa-
ação descobriu outra visão das ciências humanas, que possibilitava uma
abordagem polifônica da realidade. De acordo com Amorim (2004, p.
107) “o texto polifônico ou dialógico é um conceito bakhtiniano que
permite examinar a questão da alteridade enquanto presença de um outro
discurso no interior do discurso”.
Portanto, a heteroglossia é fundamental para o texto de pesquisa,
pois ao levar em consideração a pluralidade de vozes que o constituem,
considera todo enunciador um respondente de enunciados antecedentes
aos seus na corrente enunciativa, porque, de acordo com Bakhtin (2006),
não coube a ele ser o primeiro a violar o silêncio do universo.
Essa metodologia entende que, por meio da interação com o outro,
o sujeito se constitui e ao mesmo tempo se apropria do conhecimento e
dos costumes sociais, formados numa cadeia de enunciados
reelaborados, que dialogam ininterruptamente entre si.
[...] todos os nossos enunciados são plenos de palavras dos outros, de
um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário
de perceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem
consigo sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,
reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 2006, p. 295).
Essa reelaboração existe devido ao excedente de visão, que se
com um conjunto de ações que só o outro é capaz de enxergar em relação
ao emissor, pois contempla os elementos que ele não pode enxergar, por
não serem acessíveis do lugar que ele ocupa em si mesmo. Porque,
80
conforme Bakhtin (2006), se o eu se vê de dentro de si, não há dúvida de
que sua imagem externa não consegue compor o horizonte de sua visão.
Não se pode esquecer que o pensamento bakhitiniano em relação
à dialogia não seria a busca da geração de um consenso ou de fazer
apologias a algum entendimento, mas de dar conta das relações sociais,
num espaço de tensão entre enunciados, que não apontam apenas para
consonâncias, mas também para as dissonâncias e para as multissonâncias.
“Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a adesão, o mútuo
complemento, a fusão, quanto a divergência, o desacordo, o embate, o
questionamento, a recusa” (FARACO, 2009, p. 68).
Outra questão que surge é que, para a pesquisa-ão, tanto a
objetividade quanto a subjetividade são pontos de extrema importância,
porque a objetividade é encontrada na descrição dos fatos comprometida
com a verdade e que, simultaneamente, são observados a partir da visão
subjetiva dos sujeitos envolvidos, o pesquisador e os participantes da
pesquisa.
Apesar de sua importância, evidenciada anteriormente, explicitar
forças subjetivas não é uma tarefa fácil, pois implica superar divergências,
problematizar a realidade e sobrelevar os próprios hábitos e costumes.
Se a pesquisa-ação é por natureza interativa, comunicativa e dialógica
e seu potencial praxiológico depende da qualidade da interação, o
pesquisador não pode desconsiderar que ao entrar numa instituição
escolar está entrando em um espaço historicamente situado e
culturalmente determinado (MIRANDA, 2012, p. 19).
No entanto, o conflito é inerente à pesquisa-ação. Mas ele deve ser
visto como um conflito criador, necessário à vida, porque por meio da
alteridade os diálogos são estabelecidos, pois na interação entre os
interlocutores espera-se sempre uma resposta do outro.
81
Em relação ao que foi dito, para conseguir obter parcerias e lidar
com as divergências no processo de pesquisa-ação é necessário favorecer a
denominada escuta sensível, que “[...] reconhece a aceitação incondicional
do outro: não julga, não mede, não compara. Ela compreende sem,
entretanto aderir às opiniões [...]” (BARBIER, 2002, p. 94) e torna-se
possível por meio da abnegação. No entanto, para esse autor, a abnegação
não é algo semelhante à perda de si, mas “[...] na abnegação eu sou
maximamente ativo e realizo completamente a singularidade do meu lugar
no existir [...]: a abnegação é a realização que abraça o existir-evento”
(BAKHTIN, 2010, p. 63).
A escuta sensível relaciona-se com a dialogia, por ela ser uma
concepção de linguagem em que todo enunciado faz parte de um processo
interminável de trocas verbais, e em que a autoria das palavras não pertence
somente ao autor (falante), mas também ao ouvinte e a todas as vozes que
os antecederam e que ressoam nas palavras do autor. Isso se dá por meio
da alteridade que prevê a superação das barreiras do real e do racional e
busca o novo, e para isso é preciso enxergar que
Estranhar o familiar é retirar a representação de sua ancoragem no
terreno exclusivo do passado e buscar o novo, aquilo que reordenará,
mesmo que pela desordem, o familiar, não só pelo objeto, mas pelo
contexto da representação, permitindo uma aproximação mais ampla
tanto dos pensamentos como dos afetos, ultrapassando o real e o
racional na sua explicação (BUSSOLETTI; MOLON, 2010, p. 82).
A partir disso, uma questão, que se apresenta ao pesquisador que
escolhe esse caminho, indaga sobre em qual pessoa do discurso ocorrerá a
exposição e análise de dados obtidos. No entanto, para ser o mais fiel
possível à realidade dos fatos ocorridos, ele terá que apresentar suas ações
na 1ª pessoa do singular, nos momentos em que se referir a si mesmo, na
1ª pessoa do plural, no momento em que se referir às suas ações em grupo
82
ou em colaboração com seus parceiros e de modo indeterminado ou em
terceira pessoa ao referir-se às teorias e aos outros sujeitos envolvidos na
pesquisa.
Por meio dessas articulações, podemos manter a fidelidade ao
princípio da alteridade e do dialogismo, em que todas as vozes interessam
e devem aparecer e ser ouvidas; e dialogar não significa alterar ou justapor
locutores, mas interagir sem a imposição dogmática de uma única voz.
O desafio é como não perder toda essa complexidade e como não se
perder nela: não dar primazia ao local, mas não ignorá-lo; não recusar
o pré-dado cultural e historicamente construído, mas não invocá-
lo
deterministicamente; não ignorar o poder interveniente das
formações do inconsciente, mas não entregar-se a uma psicanálise
selvagem; não desconsiderar as teias do interdiscurso, mas não se
satisfazer com paráfrases ingênuas ou condenações inquisitórias
(FARACO, 2009, p. 150).
A partir daí, observa-se que o caminho para que as relações se
estabeleçam na pesquisa está traçado e seu desenvolvimento pode ser
reforçado por várias reflexões, desde que se tome cuidado para não
homogeneizar a realidade e para não monologizar a linguagem presente
nos enunciados.
Uma pesquisa-ação, com definições claras de objetivos em termos de
pesquisa e de ação, das formas de participação dos sujeitos pesquisados,
das interferências do pesquisador e do compromisso com a mudança,
gerará respostas científicas consistentes (PASTORELLO, 2005, p. 73).
Portanto, os pesquisadores em ciências humanas comprometidos
com a produção da compreensão responsiva por meio de suas pesquisas
devem responder aos anseios e interesses imbricados nas suas questões.
83
Pesquisa-ação:
diálogo entre teoria e prática para o aprendizagem da escrita
Segundo Geraldi (2012, p. 19) apesar de ser uma prática rejeitada
na sociedade de consumo, o ato de expor-se ao desconhecido deve estar
presente numa investigação que pretende revelar as várias vozes presentes
na realidade concreta.
E, além disso, a amorização deve ser o seu pressuposto para
reconhecer a alteridade e encarar o outro como uma realidade consolidada,
pois de acordo com Bakhtin (2010, p. 25) “somente o amor está em
posição de afirmar e consolidar, sem perder e sem desperdiçar a diversidade
e multiplicidade”.
Por isso, uma pesquisa na perspectiva dialógica concebe o sujeito
como socialmente participativo, que interage com o mundo e lhe é
permitido concordar, valorar, discordar e criticar aquilo com que se depara.
E assim,
Os vestígios, as minúcias aparentemente insignificantes e os
fragmentos da vida cotidiana são encarados como possibilidades de
estudos e de análises dos detalhes e das sutilezas das relações
intersubjetivas e das práticas sociais e pedagógicas sem perder a
dimensão histórica, uma vez que relaciona presente, passado e futuro
aos acontecimentos e permite a valorização do singular sem perder a
noção da totalidade; pois o indício não é visto como um elemento ou
objeto isolado, mas em um processo de interconexões de fenômenos e
situações, de características coletivas e de manifestações de
singularidade que expressam a totalidade (BUSSOLETTI; MOLON,
2010, p. 79).
Na pesquisa em ciências humanas, as discussões têm que ocorrer
na completude de seu fluxo. Essa interlocução entre os sujeitos ocorre pelos
enunciados por meio do processo de dialogia, em que no momento em
84
que entram em contato com as palavras do outro, oferecem a sua
contrapalavra em uma interatividade complexa e dinâmica.
Especificamente, o evento amoroso caracteriza-se por diferenciar-
se das ações corriqueiras pela possibilidade de compreender o outro de
forma empática, exigindo uma resposta consciente a partir do lugar
ocupado. Caso contrário, “[...] desamor, indiferença, nunca serão capazes
de gerar poder suficiente de demorar-se atentamente sobre um objeto,
segurar e esculpir cada detalhe e particularidade nele, por mínimos que
sejam” (BAKHTIN, 2010, p. 82).
Além disso, em convergência com os estudos de Bakhtin e de
Volochínov, se constata que um texto produz sua significação ao
relacionar-se com sentidos já construídos na memória da sociedade; chega-
se à conclusão de que todo o enunciado se encontra inserido numa
produção de sentidos que se relaciona com os enunciados já produzidos
numa sociedade e num determinado momento histórico.
Portanto, desenvolver uma pesquisa que não almejasse um modelo
abstrato de realidade foi a pretensão deste trabalho investigativo,
divergente da chamada por Bakhtin (2010) verdade-istina, ao conceituar a
verdade que busca abstrações. Aqui, buscou-se uma metodologia que
aspira a verdade-pravda, relativa ao acontecimento, que não exclui as
singularidades, contempla em si as percepções dos sujeitos envolvidos e
prevê a cada novo elemento uma soma no produto final de sua análise.
No entanto, deve ficar claro que essa crítica não nega a cognição
teórica, pelo contrário, por reconhecer sua validade que não quer
desvinculá-la do mundo da vida. O desejo de reconciliação com o mundo
da cognição teórica deve ser almejado porque
Todo o contexto infinito do conhecimento teórico humano possível
a ciência - deve se tornar alguma coisa responsivamente conhecida para
mim como um único participante, e isso em nada diminui ou distorce
85
a verdade [istina] autônoma do conhecimento teórico, mas, pelo
contrário, complementa-a até o ponto em que ela se torna uma verdade
[pravda] necessariamente válida (BAKHTIN, 2010, p. 49).
Fica visível a insistência de Bakhtin no trato do evento único, que
tem como base uma reflexão sobre a existência do ser humano concreto,
que ocupa um lugar único, jamais ocupado por nenhum outro. A partir
dessas considerações, esse autor se revela um crítico do pensamento que
valoriza o universal e nunca o singular, as leis gerais, e nunca os eventos.
O fato de não haver espaço para o irrepetível incomoda-o profundamente.
Isso tudo faz com que, segundo Faraco (2009, p. 36), Bakhtin
possa ser visto como um filósofo heideggeriano e esclarece que, para
Heidegger (2002 apud FARACO, 2009, p. 36), na ciência moderna, deve
ser feita uma distinção entre o pensamento de natureza filosófica
(besinnliches Denken) e o pensamento de natureza científica (rechenendes
Denken). O primeiro busca a compreensão do mundo em seus sentidos
mais amplos, já que o adjetivo besinnlich em alemão advém da palavra sinn,
que significa sentido, que se alia ao verbo besinnen (refletir, meditar). o
outro pensamento é aquele que calcula e compartimenta, relacionado ao
verbo rechnen (calcular) e traduzir-se-ia muito bem por pensamento
numérico.
Não nessa partição nenhuma negação da ciência; apenas uma
reflexão que destaca o fato de que o pensamento científico não é a única
forma rigorosa de exercício da razão. O besinnliches Denken não
tem lugar, como é indispensável, no sentido de que permite uma
reflexão mais livre das amarras dos modelos científicos, admitindo um
espectro mais amplo de interpretações, de correlações, de
problematizações (FARACO, 2009, p. 37).
Assim, para a racionalidade científica não se coloca essa questão
mais ampla, de estabelecer diálogos, pois para que ela funcione é
86
necessário apenas que veja o mundo com a objetividade calculável, para
que possa predeterminá-lo o tempo todo.
Em relação a isso, Faraco (2009) estreita ainda mais essa discussão
ao afirmar que a ciência instala-se no meio do domínio dos objetos para
alcançar seus resultados e basta apenas se submeter ao método. Assim, fazer
ciência resume-se a aplicar um método. E, dessa maneira o ser, por sua
amplitude, fica fora do alcance da ciência e exige outra racionalidade, um
pensamento que aceita a condição de ser inesgotável e questionável. “Em
outras palavras, nas ciências naturais um sujeito contempla e fala sobre
uma coisa muda; nas ciências humanas, ao contrário, há sempre, pelo
menos dois sujeitos: o que analisa e o analisado” (FARACO, 2009, p. 36).
A pesquisa em ciências humanas é o encontro de visões, ideologias e
orientações múltiplas, por isso situa-se numa dimensão de pluralidade.
O estudo dos dados gerados com a pesquisa considerou as
condições reais em que eles ocorreram, pois, de acordo com os
pressupostos da Teoria Histórico-Cultural, os processos psíquicos
podem ser estudados no seu desenvolvimento histórico, quando se
consideram as condições de criação dos enunciados, ou seja, seu contexto
sócio-histórico como aspectos de um texto.
Essa análise das particularidades condiz com os modos modernos
de fazer ciência. “Quem estuda a linguagem não está interessado nos
‘recortes’ do discurso, mas no enunciado completo, total, para cotejá-lo
com outros enunciados fazendo emergirem mais vozes para uma
penetração mais profunda no discurso” (GERALDI, 2012, p. 27-28).
Deste modo, foi proposta uma discussão por meio de comentários
que se compreendem como inacabados e passíveis de serem alterados ou
mesmo confirmados pelas vozes que dialogam com eles e pelas vozes que
ainda estão por vir.
87
Aceitar o comentário positivamente, com seus juízos de valor, é aceitar
a falibilidade de interpretação: é aceitar o momento correspondente de
resignação do cognoscente; a reverência” de quem sabe que o sentido é
inacabável. Esta é a verdade-pravda, a verdade que nos guia no
cotidiano (GERALDI, 2012, p. 29).
Além disso, a verdade-pravda também aparece nas narrativas, pois
do não desperdício da experiência pode ocorrer a extração de lições para o
futuro. Ou seja, a partir da ressignificação dos conhecimentos do passado,
por meio do diálogo entre experiências passadas e possibilidades de
acontecimentos futuros, a reflexão sobre os fatos pode possibilitar que as
barbáries ocorridas não se repitam.
Por exemplo, a investigação narrativa justifica-se em situações em
que os sujeitos possam estar vulneráveis a algum tipo de perseguição ou
quando os contrapontos se tornam insustentáveis, como numa instituição
de reprodução social do uso de cartilhas.
Vale lembrar, que neste tipo de pesquisa o pesquisador se relaciona
com os outros presentes em sua pesquisa: os sujeitos, os leitores e aqueles
que sobredeterminam o processo de pesquisa (seus pares do mundo da
pesquisa). Além disso, é preciso que o pesquisador tenha em mente as
características do gênero do enunciado no qual exporá suas análises e
considerações. Por isso, é necessário lembrar a heteroglossia como
concretização máxima da dialogia, em que se pretende não silenciar
nenhuma voz.
É importante ressaltar, ainda, o fato de que no desenrolar deste
livro, em alguns temas e enfoques mais precisos, as palavras alheias foram
tomadas como próprias pelo esquecimento de sua origem, pois, como
salientam vários textos de Bakhtin e de Volochínov, as palavras estão
sempre carregadas de vozes e de sentidos, por serem patrimônio comum
de uma comunidade linguística; o que ocorre é o seu rearranjo em cada
evento linguístico do qual participa.
88
Desenvolvimento da pesquisa
“O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não recusa o sério, ele
purifica-o e completa-o”.
(Mikhail M. Bakhtin, 2008, p. 76)
Para compreender como se dá a apropriação da linguagem escrita
pelas crianças que já passaram pelos anos iniciais de alfabetização, ensino
fundamental I, e para fundamentar a importância do trabalho com gêneros
do enunciado e com suportes digitais durante esse processo, foi realizada a
pesquisa bibliográfica, em diálogo com os referenciais teóricos em torno
da apropriação da linguagem. Nesse momento, foi feito o levantamento e
seleção da bibliografia referente ao tema investigado em livros, revistas
científicas, dissertações, teses etc., para que fossem feitas a leitura, a análise
dos textos encontrados e a sistematização dos dados coletados. Diante
disso, a investigação norteou-se pela abordagem qualitativa, que valoriza
os significados dos eventos únicos nas vidas dos sujeitos participantes da
pesquisa.
Além disso, a metodologia de pesquisa-ação propiciou o contato
direto da pesquisadora com as situações investigadas e a prática de
intervenções que puderam auxiliar os problemas de aprendizagem da
escrita, na tentativa de superar o apontado por Colomer & Camps
(2002), o fato de que a necessidade de propor atividades significativas
esbarra na transposição da teoria para a prática.
Esta pesquisa foi projetada em dois eixos: o teórico e o prático. Os
suportes teóricos orientadores do projeto foram os estudos de Bakhtin e de
Volochínov sobre a linguagem e os estudos da Teoria Histórico-Cultural
sobre desenvolvimento e aprendizagem. Eles embasaram o eixo prático
com estratégias de escrita de gêneros do enunciado significativos para as
crianças em diferentes suportes digitais.
89
No campo da prática, foi investigado até que ponto a proposição
de gêneros do enunciado, a partir do aporte teórico dos estudos de Bakhtin
e de Volochínov, supera a prática do ensino da escrita tradicional como
transcrição da fala ou do ensino que compartimenta os enunciados em suas
micropartículas. Daí o elencar propostas de criação de gêneros do
enunciado escolhidos pelas crianças no momento das criações escritas e,
por isso, imbuídos de função social.
Além disso, ainda no campo das proposições de atos de escrita para
as crianças, Bajard (1999, p. 107) aconselha que se faça o uso das novas
tecnologias e dos suportes digitais de textos para ajudar as crianças, pois,
como afirma o autor, “à medida que os instrumentos se modificam, as
funções da escrita evoluem, desencadeiam outras práticas, forjam outros
conceitos”.
Por isso, foi proposto um trabalho com gêneros do enunciado em
suportes digitais para as crianças, pois em contato com as formulações de
Bakhtin sobre os gêneros do enunciado e suas relações dialógicas observa-
se que as interações dentro de uma cultura dialogizada não se dão apenas
por palavras, “mas por linguagens da comunicação, seja dos ritos ou das
mediações tecnológicas” (MACHADO, 2014, p. 163).
Com isso, abriu caminho para as realizações que estão além dos
domínios da voz como, por exemplo, os meios de comunicação de
massa ou as mídias eletrônico-digitais. Meios, evidentemente não
estudados por ele. Graças a essa formulação, o campo conceitual do
dialogismo não foi simplesmente transportado, mas sim pode ser visto
como uma reivindicação de vários contextos e sistema de cultura
(MACHADO, 2014, p. 163).
Por tudo que foi dito, a metodologia da pesquisa-ação foi
concebida como mais adequada para a realização da pesquisa, por
possibilitar a experimentação em situações reais, nas quais o pesquisador
90
coloca propostas e os participantes as desenvolvem de modo ativo, e, a
partir dessas experiências, foi possível analisar e buscar, na literatura
existente, caminhos para a resolução de problemas.
Essa metodologia foi eleita para esta pesquisa, porque condições
aos pesquisadores de se tornarem seus sujeitos e proporem intervenções na
realidade dos outros sujeitos e, além disso, no caso desta pesquisa, foi
possível buscar estratégias de ensino e aplicá-las na prática, dando maior
ênfase ao processo de ensino-aprendizagem da escrita das crianças.
Os procedimentos adotados nesta pesquisa consistiram no contato
inicial com uma escola estadual de ensino fundamental, localizada na
região central da cidade de Marília, onde a pesquisadora trabalha há nove
anos. A pesquisa foi bem aceita pela direção da escola, uma vez que não há
trabalhos especificamente com alunos que ainda estão se apropriando da
escrita nessa escola. Devido a essa carência, o projeto foi aceito e visto com
bons olhos, principalmente pela coordenação pedagógica e pelos
professores de língua portuguesa das crianças que dele participaram.
Num segundo momento, foi realizada a seleção de dez crianças
para participarem do projeto. Para a seleção das que mais necessitavam de
auxílio em seus atos de escrita, foram utilizados dados de três avaliações.
Os primeiros dados analisados foram os gerados na avaliação diagnóstica de
Língua Portuguesa da Diretoria Regional de Ensino de Marília.
Em seguida, foram analisadas as avaliações de leitura e criação de
texto das professoras das crianças dos quatro sextos anos existentes na
escola e nessa fase foram selecionadas dezesseis crianças, que participaram
da avaliação elaborada para a participação na pesquisa.
A última avaliação, aplicada pela pesquisadora, consistiu na criação
de textos, no suporte digital, pelas crianças, dos gêneros do enunciado
escolhidos por elas no momento da criação escrita, para serem enviados a
interlocutores reais, assim como ocorreria posteriormente na pesquisa.
Dessa última etapa foram selecionados os dez participantes. Foram
91
escolhidos prioritariamente os que não conseguiram se manifestar
minimamente por escrito e em seguida os que apresentaram maiores
dificuldades na elaboração de atos de escrita nas avaliações supracitadas.
Depois da seleção, foram solicitadas permissões de participação aos
pais ou responsáveis, para a realização de estratégias de ensino com seus
filhos ou familiares. Em seguida, foi feito um diálogo com essas crianças
para esclarecer a proposta da pesquisa, como funcionariam os encontros
para a elaboração das criações escritas e para se certificar se elas realmente
se interessavam em participar.
Os dados coletados nessas três avaliações serviram também como
um panorama inicial do nível de desenvolvimento real dessas crianças e as
suas possibilidades em relação ao ensino de atos de escrita. Ainda, sobre os
participantes, foram perdidos dois sujeitos durante a geração de dados, por
dois motivos: a transferência de escola por mudança de cidade e a evasão
por ausências geradas por problemas familiares da criança.
Os encontros entre cada criança participante e a pesquisadora
foram realizados semanalmente com a duração de uma hora, e neles cada
uma dessas crianças escolhia entre os diversos gêneros do enunciado, para
criar seus textos nos suportes digitais, os que achassem mais adequados
para a esfera e situação enunciativa das quais participava naquele
momento.
Os dados gerados foram salvos com identificação de data, título do
texto escrito, número da versão e nome fictício das crianças. Essa
organização dos dados ocorreu no momento em que elaboravam suas
criações, para que seus atos de escrita durante o ato enunciativo pudessem
ser analisados posteriormente. Esses dados também foram anotados no
diário de bordo, os dados em áudio foram armazenados em arquivos no
gravador de voz do telefone celular e as etapas de elaboração dos textos
foram fotografadas pelo capturador de imagens de tela do computador e
do smartphone. As gravações dos diálogos entre pesquisadora e crianças em
92
áudio foram transcritas, analisadas e organizadas neste livro em unidades
temáticas.
Além disso, para fins práticos de gravação de informações do
smartphone, e para melhor interação verbal entre os participantes foi criado
um grupo no aplicativo WhatsApp em que todas as conversas foram
armazenadas e também foram gravados print screens (fotografias capturadas
da imagem) das telas do smartphone.
Os dados gerados com a pesquisa foram organizados em unidades
temáticas, pois, de acordo com Padilha (2006), tais unidades ajudam a
organizar os registros como uma espécie de classificação de prioridades, e
analisados com o intuito de abordar os temas trabalhados em seus
múltiplos aspectos e ainda em seu caráter teórico e prático.
Apesar de a análise estar presente em todas as fases da investigação,
ela foi sistematizada ao final da geração e da reunião dos dados, com a
leitura de todo o material e a configuração das unidades temáticas, que se
dividiram da seguinte maneira: A escrita de gêneros do enunciado no processo
de apropriação da linguagem, O auxílio dos suportes digitais na criação de
enunciados, Contribuições do professor para a formação do sujeito autônomo
na aprendizagem da escrita. Elas surgiram no decorrer da pesquisa e do
diálogo entre os dados gerados no campo da prática e da teoria estudada.
93
A escrita e seu ensino
“O que é acessível ao coração também não é nenhum segredo para o entendimento”.
(Ludwig Andreas von Feuerbach, 2008, p. 24)
Antes de iniciar a análise dos dados gerados pela pesquisa,
pretendeu-se aqui fazer um breve resgate do percurso histórico da escrita,
uma vez que, ao longo do texto, serão evidenciadas práticas pedagógicas de
ensino da língua escrita que têm sua origem em modos antigos e arcaicos
de agir e que se repetem séculos, permanecendo impregnadas no
cotidiano das escolas.
E ainda, nos subtópicos seguintes são explicitados os modos de ver
a escrita ao longo dos tempos e como houve modificações na forma de
encará-la, que a fez passar de um instrumento cultural desvalorizado para
uma linguagem altamente valorizada e às vezes até supervalorizada.
Além disso, foi elencada uma sugestão de como os atos de escrita
devem ser vistos na atualidade, por meio do trabalho com gêneros do
enunciado, como possibilidade para a formação do sujeito cada vez mais
autônomo na autoria de seus textos.
94
Breve percurso histórico da escrita
“Quando uma pessoa limita-se à instrução oficial, então, no fim,
torna-se um funcionário do saber.
(Mikhail M. Bakhtin, 2008, p. 39)
“Temos de fazer um grande esforço para não incorrer no erro milenar
dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa
morta, sem levar em consideração
as pessoas vivas que a falam”.
(Marcos Bagno, 1999, p. 12)
Historicamente, os sujeitos sempre buscaram se adaptar ao meio
em que viviam, criando recursos que lhes permitiram agir de forma mais
eficiente diante das necessidades e adversidades da vida. Isso acontece não
só no plano físico, mas também no plano simbólico, ou seja, na
constituição de sistemas de linguagens.
Por isso, a espécie humana tem a capacidade de representar
simbolicamente a realidade e de comunicar-se por meio do uso de signos:
[...] ao longo da história, vários grupos sociais ampliaram suas
possibilidades de comunicação com a invenção de sistemas de signos
gráficos. As características desses novos códigos, tais como a
estabilidade, a comunicação em um tempo e em um espaço não
imediatos ou a necessidade de uma aprendizagem específica para
dominá-los, permitiram alcançar objetivos bastante diversos, desde o
poder derivado da posse da palavra sagrada ou a segurança da
transmissão de leis e ordens a terras distantes até a difusão em massa de
conhecimentos [...] (COLOMER; CAMPS, 2002, p.11).
Especificamente, a escrita é um instrumento cultural importante
de comunicação não natural. Seu surgimento foi possível porque as
comunidades humanas encontraram maneiras eficientes de ir além de seus
95
limites naturais. “Ao criar ferramentas, os seres humanos conseguiram
dominar a natureza. Da mesma maneira, o uso de ferramentas permitiu
que o homem expandisse sua capacidade de comunicação, deixando de
depender somente da fala” (BRAGA; RICARTE, 2010, p. 7). Entretanto
é sabido que o processo da escrita até chegar ao que é hoje, nas suas várias
manifestações, foi longo, mas se observado em relação à história da espécie
humana pode ser considerado recente. Sobre isso, conforme Bagno (1999,
p. 56) conta, a espécie humana tem um milhão de anos, pelo menos. De
acordo com estudos históricos, as primeiras formas de escrita surgiram há
apenas nove mil anos. Portanto, a humanidade passou 990.000 anos
comunicando-se apenas por meio da linguagem oral, gestual e icônica.
Diferentemente do que acontece no mundo contemporâneo, de
acordo com os estudos de Svenbro (2002, p. 41-42), na Grécia Arcaica,
por volta do século VIII a. C., havia uma tradição estabelecida desde a
Grécia Antiga, que valorizava a linguagem oral, enquanto a escrita era
relegada apenas a contribuir com a criação dos sons na oralidade; essa
escrita que paradoxalmente chamava-se “escrita muda” tinha como
objetivo contribuir para assegurar a criação dos sons, e embora não tivesse
como finalidade proteger por meio do registro os elementos culturais da
tradição épica, acabava por fazê-lo.
Dessa forma, com a fala tão venerada pelos gregos, a escrita só
interessava se fosse empregada por meio da leitura oralizada, para distribuir
os conteúdos por meio de sons para as grandes plateias. Isso se dava até
mesmo e principalmente com os documentos legais, que usavam o registro
escrito apenas para a distribuição oral de seus conteúdos.
Por isso, a escrita era vista como algo incompleto, que necessitava
de sonorização, como algo meramente instrumental, tão desprezada, que
o ato de fazer sua distribuição era relegado a um escravo. A ausência de
intervalos da escrita contínua tornava impreterível a vocalização, que se
concretizava com a experiência sonora do leitor.
96
Desse modo, não havia intervalo entre as palavras e nem precisava
haver, porque o valor estava no que era ouvido. Sobre isso, afirma Svenbro
(2002), “[...] o texto não seria então um objeto estático, mas o nome da
relação dinâmica entre escrito e voz, entre escritor e leitor. O texto se
tornaria, assim, a realização sonora do escrito, o qual não poderia ser
distribuído ou dito sem a voz do leitor” (SVENBRO, 2002, p. 49).
Portanto, à escrita relegava-se apenas o papel de aprisionar o som,
pois a compreensão se dava somente pelos ouvidos. Na arte, a linguagem
de prestígio era a oral; na política, os debates sobre democracia ocorriam
oralmente; por meio da fala o homem poderia dominar o outro ou
defender-se. Ou seja, um escritor para ser lido necessitava de alguém ao
seu serviço para sua obra ser vocalizada, algo que para Svenbro (2002) não
condizia com os ideais democráticos de homem da época, que almejavam
formar o cidadão livre de coerções.
Contudo, segundo Saenger (2002), no século IX, a escrita em
palavras separadas já tinha se tornado padrão em quase todo o território
europeu e, como consequência disso, a necessidade de leitura em voz alta
para compreender os textos começou a diminuir. Nesse momento, surge a
possibilidade de relacionar o sistema da escrita à atribuição de sentidos, e
a escrita passa a atender aos olhos, possibilitando o surgimento da leitura
silenciosa, de maneira sufocada, desprestigiada e por isso clandestina.
Ainda assim, tem-se a oportunidade de fazer uma leitura que
condiz com o ritmo do cérebro, que não é prejudicada pela divisão da
atenção com a necessidade de se pronunciar os sons. Isso coloca a
atribuição de sentidos em primeiro plano e não mais de forma precária.
A comunicação, inicialmente, restringia-se à oralidade e à situação de
interação face a face [...] pouco a pouco passou a ocorrer em outros
meios (placas de pedra, papiros, pergaminhos, papel, tela de
computador). Como era de se esperar, tais mudanças vieram também
acompanhadas de adaptações da linguagem aos limites e aos recursos
97
oferecidos pelos diferentes meios de comunicação. Antes do
surgimento da escrita, o homem estava acostumado a se comunicar só
de forma oral. A oralidade, utilizada como meio de comunicação,
oferecia vários recursos expressivos: linguagem verbal (composta das
palavras e da gramática da língua), gestos (ou linguagem gestual) e
uma série de modulações na voz também usadas com fins
comunicativos. Por exemplo, o som pode marcar na fala, entre outras
coisas, a emoção do falante (raiva, carinho) (BRAGA; RICARTE,
2010, p. 25).
Em síntese, ao contrário do que acontece hoje, quando a escrita
começou a ser utilizada ela não ia além de um registro da fala. Sendo uma
mera transcrição da manifestação oral, não havia separação de palavras nem
de orações, ou seja, os textos eram construídos de forma contínua,
reproduzindo a fala. Essa forma de registro exigia que o texto, para ser
compreendido, fosse lido em voz alta. Cabia ao leitor, à medida que lia a
sequência de letras no texto, procurar dar sentido ao que estava registrado.
Após a separação das palavras, a linguagem escrita foi evoluindo
para explorar cada vez mais as possibilidades visuais e cognitivas de trocas
verbais. Para marcar esses limites, o espaço em branco e os sinais de
pontuação passaram a ser usados. Os textos escritos passaram a marcar não
só os limites das palavras, mas também dos enunciados. Esse conjunto de
orientações visuais mudou as práticas de leitura e reprodução de textos.
A partir dessa mudança, paulatinamente, foram sendo elaborados
os diferentes tipos de textos escritos. Diferentes formas de letra foram
utilizadas para registrar títulos e subtítulos, números de páginas; assim
também a separação em capítulos apareceu para orientar o leitor e facilitar
a localização de informações, principalmente em textos mais longos.
A separação de palavras, por exemplo, possibilitou que o texto
pudesse ser lido de forma silenciosa. Essa possibilidade trouxe mudanças
na escrita, que passou a ser voltada para a atividade cerebral, no processo
98
de reprodução textual, por permitir que a leitura fosse norteada pelo
aspecto visual do texto, sem depender mais de sua oralização.
Em resumo, a forma como os textos são lidos hoje é possível
porque historicamente houve mudanças significativas nas técnicas de
suporte textual e nas convenções que hoje norteiam a criação da escrita.
No entanto, no final do século XIX e início do século XX, os
estudos sobre linguagem ainda se restringiam à palavra como centro de
observação dos fenômenos linguísticos.
A gramática, em consequência de uma tradição de estudos greco-
latinos, seccionava a palavra e organizava suas partes em paradigmas de
flexão e declinação. A filologia, por sua vez, descrevia a evolução
histórico-fonética da palavra com a observação de documentos. A
linguística passava, naquele momento, por duas fases de observação
da palavra: numa delas, organizava as línguas em suas famílias e
respectivas ramificações de acordo com suas origens, estudando as
palavras em documentos e, na outra, percebendo o funcionamento
sistemático da linguagem, descrevia as relações estruturais em vários
níveis a partir da palavra (STELLA, 2014, p. 177).
Assim, o estudo linguístico era restrito à filologia das palavras ou
as palavras eram estudadas em suas partes à luz de um viés que atribuía
elementos fonéticos à linguagem escrita.
Nesse período de início da era moderna, a língua escrita tornou-se
tão valorizada, que foi encarada como a única forma de língua passível de
ser estudada; no entanto, sobre esse modo de ver a língua esclarece Geraldi:
O programa moderno, que se inaugura numa leitura de Saussure,
ofereceu-nos a possibilidade do estudo rigoroso de um objeto que se
fechou em si mesmo a língua. Em consequência, inspirada numa
vontade de verdade científica, a Linguística se associou às metodologias
próprias das ciências duras, especificamente a matemática e, mais
recentemente, à neurologia (GERALDI, 2010, p. 52).
99
Nesse momento, o estudo da língua encontra-se submetido às
regras e aos modelos, que são aplicados até mesmo à fala, assim como a
matemática às suas regras e fórmulas. E assim, o eixo de valorização é
invertido e a escrita, antes tão desvalorizada, passa a ditar as regras até
mesmo àquilo que seria dito.
No século XX, esses dois extremos foram reavaliados à luz das célebres
oposições binárias de Ferdinand de Saussure: sincronia/diacronia,
sintagmático/paradigmático, langue/parole. A linguagem moveu-se do
apenas nomear para estabelecer relações (EMERSON, 2010, p. 65).
A partir das dicotomias saussureanas, à escrita se agrega uma
função que não era sua: submeter a oralidade à sua ordem, ditar o que deve
ser falado e como se falar com caminhos bem trilhados.
Parece existir em nossa cultura uma regra fundante daquilo que é
requerido para a construção de novos enunciados, porque à fala se
aplica o princípio da disciplina gramatical: qualquer enunciado tem
sua própria forma submetida a outro juízo: o do certo ou errado
segundo uma regra gramatical específica elaborada não segundo os
falares, mas segundo a escrita de autores tomados como modelo
(GERALDI, 2010, p. 55).
Concretamente, esse processo produz uma barreira impenetrável
entre a língua escrita, canonizada e porta-voz de tudo o que é oficial, e
as línguas vernáculas faladas nas ruas, presentes na boca do povo. Sobre
isso, Azevedo (2008) afirma que, por meio da dicotomia parole/langue,
[...] a “palavra” é vista como parte de um processo plástico e mutante,
em constante criação, presente nas conversações e na linguagem
informal do no dia-a-dia. Já a “língua”, ao contrário, apresenta-se
como uma estrutura organizada, um sistema abstrato constituído por
um vocabulário limitado contido em dicionários, e por um conjunto
100
objetivo, preciso e coerente de noções e leis gramaticais (AZEVEDO,
2008, p. 3).
Assim, o modo de estudar a língua concebido por Saussure
relaciona a língua aos seus aspectos mecânicos a partir de pressupostos
teóricos que não consideravam as esferas e ambientes de sua ocorrência.
Fazendo uma digressão com Bagno (1999, p. 56), fica evidente que
o estudo da gramática, que surgiu na antiguidade clássica, teve como
objetivo declarado encontrar as regras da língua escrita para preservar suas
formas consideradas mais “corretas” e polidas”, precisamente as da língua
literária. “[...] Aliás, a palavra gramática, em grego, significa exatamente ‘a
arte de escrever’” (BAGNO, 1999, p. 56).
Portanto, retomando a discussão, fica evidente que, do ponto de
vista saussureano, somente a língua descontextualizada, abstraída e
generalizada seria possível de ser ensinada, sem a preocupação sobre o seu
objeto ser ou não factível na vida prática.
Sobre isso, Azevedo (2008) salienta que “é preciso reconhecer que
o pensamento teórico e descontextualizado costuma ser um recurso
poderoso, embora, por vezes, possa camuflar aspectos importantes da vida
cotidiana e até nos distrair da realidade” (AZEVEDO, 2008, p. 14).
Nesse momento histórico, a escola se volta para a formação de
indivíduos técnicos, acríticos e moldados para desempenhar papéis
alienados no mercado de trabalho, sem a capacidade de discutir sobre os
fundamentos da sociedade em que vivem e muito menos tentar
transformá-los. Nesse bojo encontra-se o ensino da língua que ressalta
apenas seus elementos gramaticais, em que o máximo de relação que ele
pode estabelecer é a dos elementos gramaticais entre si. No entanto, deve
ser evidenciado que
101
Sob o manto aparentemente neutro da gramática esconde-se um
procedimento de unificação e exclusão. À necessária estandardização
que a interlocução obriga, e que resulta de procedimentos de
negociação de sentidos, acrescentando-se outro viés: a correção! E
junto com a correção linguística vem todo o discurso hegemônico que,
essencialmente, luta pela fixação dos sentidos (GERALDI, 2010, p.
73).
A palavra, porque estava apegada a essa visão alienante da
linguagem, tradicionalmente foi tratada de forma abstrata, desvinculada
de sua existência real nas esferas sociais e posta como um centro de
significados empiricamente observáveis.
Desse modo, a língua escrita e o seu poder, ressaltado
anteriormente, “reservado a uma minoria estrita... permitiu a façanha da
seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um
mundo separado, amuralhado, impenetrável para o não convidado”
(GERALDI, 2010, p. 55).
[...] nenhum tempo de liberdade é admissível em matéria de língua: há
sempre que encontrar normas, fixar o movimento para garantir não se
sabe bem o quê, mas garantir a correção que somente tem existência
pela construção de seu outro, o erro. Aquilo que foi o ‘latim errado’
rapidamente se faz regra a ordenar o dizer e como dizer (GERALDI,
2015, p. 20).
Apesar de sempre existirem forças que tentam manter estável ou
tentam estabilizar as mudanças, as novas configurações entre o oficial e o
que está em liberdade são inscritas e as palavras liberadas da lógica de
hierarquia verbal. Essas
102
“[...] palavras colocam-se em relações numa vizinhança completamente
inusitada. Assim revelam-se a ambivalência e a multiplicidade das
significações internas como as possibilidades que contêm e que não se
exteriorizam nas condições habituais” (BAKHTIN, 2008, p. 372).
Em consonância com isso, na atualidade, outros pactos com os
estudos das humanidades estão sendo feitos em que são considerados os
enunciados como eventos únicos, imbuídos de caráter ideológico,
determinado por suas esferas enunciativas.
Em relação ao que foi dito, de acordo com Geraldi (2015, p. 20),
no começo da modernidade, a reflexão sobre a língua começa a se
potencializar a partir da inovação dos falares vulgares em relação ao
ordenamento de regras.
Isso acontece, pois não se pode sobreviver ao riso, à carnavalização,
às forças centrífugas, à desordem, ao empoderamento de outros modos de
falar, que na linguística são chamados de variações, uma vez que
[...] uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios
passados, que liberta do medo, aproxima ao máximo o mundo do
homem e o homem do homem (tudo é traduzido para a zona de
contato familiar livre), com o seu contentamento com as mudanças e
sua alegre relatividade, opõe-se somente à seriedade oficial unilateral
e sombria, gerada pelo medo, dogmática, hostil aos processos de
formação à mudança, tendente a absolutizar um dado estado da
existência e do sistema social. Era precisamente dessa seriedade que a
cosmovisão carnavalesca libertava. Mas nela não há qualquer vestígio
de niilismo, não há, evidentemente, nem sombra da levianidade vazia
nem do banal individualismo boêmio (BAKHTIN, 2008, p. 161).
Com efeito, essa cosmovisão é chamada pelo Círculo de Bakhtin
(2008) de carnavalização. Ela desconhece o ponto conclusivo, é hostil a
qualquer desfecho definitivo e encara todo aqui e todo o fim como apenas
103
um novo começo. Diante do pressuposto de que “[...] no mundo ainda
não ocorreu nada definitivo, a última palavra do mundo e sobre o mundo
ainda não foi pronunciada, o mundo é aberto e livre e sempre esta por
vir.” (BAKTHIN, 2008 p. 167).
Apesar dessa perspectiva libertadora no modo de ver a linguagem,
isso não significa que os elementos gramaticais não devam ser estudados.
Mas eles podem ser propostos de forma democrática, subvertendo sua
imposição hegemônica historicamente construída, sendo propostos nos
processos de trocas verbais em que o respeito à alteridade e à abnegação
sejam elementos sempre presentes.
De acordo com Faraco (2009), para ser democrático e seguir a
lógica da vida, o estudo dos elementos gramaticais deve situar-se como
ponto de chegada nos estudos linguísticos, ao invés de serem situados
como ponto de partida, seguindo na seguinte direção: (1) o estudo das
formas de interação verbal em conexão com as suas condições concretas
estudo dos aspectos linguísticos ; (2) o estudo dos tipos de interação
verbal relacionados às situações particulares dos enunciados estudo dos
elementos epilinguísticos –; (3) um reexame das formas da língua em sua
apresentação linguística usual estudo dos elementos metalinguísticos.
Dito de outro modo, o que fica evidente sobre o ensino dos
elementos gramaticais, em que não há a sobreposição da forma sobre o
conteúdo, é que ele recupera as manifestações verbais da vida, das quais ele
faz parte, ou seja, os elementos gramaticais passam a ser vistos como
colaboradores de um todo maior: o enunciado.
Nessa perspectiva, no século XX, por volta do ano de 1929,
Bakhtin/Volochínov publicaram em Leningrado a obra Marxismo e
Filosofia da Linguagem, com uma proposta de ver a língua com um material
ideológico, enfatizando o caráter social da linguagem e criticando as duas
vertentes linguísticas da época: o objetivismo abstrato e o subjetivismo
ideológico. Sobre esse modo de ver a linguagem, Geraldi acrescenta que
104
A linguagem não funciona nem sobre a permanência dos recursos
expressivos, nem sobre a criação ininterrupta que não produz história.
Por isso a linguagem é uma atividade constitutiva de si mesma, uma
sistematização em aberto, produto do passado e projeção do futuro.
Talvez possamos extrair desse modo de funcionamento uma primeira
lição: nenhuma sociedade é uma estrutura em cujo movimento temos
que nos inserir, mas uma arquitetura que demanda enunciações
singulares a cada momento histórico em que o que se repete, muda de
sentidos e o que se altera adquire sentidos no que se repete,
Indeterminação com história, movimento com futuro (GERALDI,
2007, p. 67).
Assim, a primeira vertente, o objetivismo abstrato, é criticada por
ter uma abordagem sincrônica da língua, sem considerar seu percurso
histórico, por ser considerada uma abstração que independe dos indivíduos
que a usam. Nessa perspectiva, a língua é vista como uma relação imanente
dos seus sistemas internos, em que o indivíduo ocupa um lugar passivo.
Nesse ponto de vista, ressaltam Bakhtin/Volochínov que “[...] não
há lugar, aqui, para quaisquer distinções ideológicas, de caráter apreciativo:
é melhor, é pior, belo ou repugnante etc. Na verdade existe um critério
linguístico: certo ou errado” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2010, p.
79).
Desse modo, destituída de vida social, desvinculada da prática
coletiva, ausente das relações sociais, prestando-se apenas para validar
hipóteses empíricas, essa vertente desconsidera os enunciados como
eventos únicos e irrepetíveis, conectados à existência real dos sujeitos, por
valorizar apenas o que se repete, numa busca constante por leis observáveis.
Contrariamente a essa postura, Bakhtin; Volochínov (2010)
enfatizam a realidade do enunciado, em que dois indivíduos socialmente
organizados interagem, ou seja, a palavra se destina a alguém e esse alguém
não pode ser abstrato. “É gritante nesse ponto a bronca de Bakhtin quanto
à concepção de língua abstrata, pois, para ele, a realidade da língua é
105
concreta, é situada (na interação verbal) em que a palavra é dirigida a
alguém” (TREVIZAN, 2012, p. 125).
a segunda vertente, o subjetivismo idealista, recebe a crítica
por ser pautada no enunciado monológico, encarado com um ato
puramente individual, que expressa os desejos subjetivos dos indivíduos.
Para essa corrente a função de objetivar percorre o caminho do interior
para o exterior e, nesse processo, o conteúdo se modifica ao se submeter às
condições do exterior. Desse ponto de vista, as teorias consideram a
expressão verbal como “uma deformação do pensamento interior”
(BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2010, p. 111). Assim, todo
entendimento dos atos ideológicos de linguagem percorreria seu caminho
inverso, pois partiria de um centro organizador que não se situa no
exterior, mas no interior dos indivíduos. Bakhtin/Volochínov
contrapõem-se a essa visão por meio do seguinte esclarecimento: “[...] não
é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a
expressão que organiza a atividade mental” (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2010, p. 112).
Em síntese, para essas teorias o mundo interior do indivíduo tem
um auditório social estabelecido, e a palavra é retirada do estoque social de
signos disponíveis.
Entretanto, os estudos de Vigotski (2000b) sobre a fala egocêntrica
comprovam que toda a linguagem interior é produto dos processos de
socialização. Em consonância com isso Stella diz que
Desde as primeiras décadas do século XX, nos trabalhos de M. Bakhtin
e seu Círculo não somente a palavra, mas também a linguagem em
geral, é concebida e tratada de uma outra forma, levando-se em conta
sua história, sua historicidade, ou seja, especialmente a linguagem em
uso. Isso significa que, no pensamento bakhtiniano, a palavra
reposiciona-se em relação às concepções tradicionais, passando a ser
106
encarada como um elemento concreto de feitura ideológica (STELLA,
2014, p. 179).
Fica deduzido, do que até agora foi dito, que Bakhtin e
Volvochínov, ao pontuarem o psiquismo como mundo de significações
produzidas socialmente, rechaçam a ideia de inconsciente, por este ter
como pressuposto uma consciência interior autônoma.
Nesse sentido, o pensamento de Vigotski, Bakhtin e Volvochínov
são semelhantes. Sobre isso, Ribeiro & Sacramento (2010, p. 18)
comentam que nos diálogos entre pensamento e linguagem uma
indiscutível semelhança de proposição entre suas teorias, pois os estudos
desses intelectuais rechaçaram a ideia de inconsciente como um mundo
interior autônomo. Bakhtin e Volvochínov formulam as noções de
consciência oficial (palavra externa) em oposição à consciência não oficial
(palavra interna), para esclarecer o psiquismo no mundo de significações
que são produzidas socialmente. E a “psicologia materialista” de Vigotski
conecta-se a essa ideia ao enxergar a linguagem dentro de um processo
concreto e produtivo de intercâmbios sociais. Nesse sentido, nas duas
perspectivas, toda linguagem interior é produzida nos processos de
socialização.
Desse modo, para que a evolução da língua seja compreendida deve
ser considerada a sua apreciação social, pois esse processo compreende
suas transformações semânticas, que se dão pela evolução do horizonte
social de um grupo numa determinada época.
Em relação a evolução dos estudos linguísticos, Foucault (2007)
relata a revolução ocorrida na linguística no século XIX que a fez ganhar
densidade própria e leis próprias, pelo fato de que as palavras passaram a
ser vistas não mais como um simples repositório de conhecimento. No
entanto, para esse autor, essa densidade da linguagem é uma proposição
complicada, pois esse debate se deu em torno de dois extremos: o de
107
transformar o estudo da linguagem em metalinguagem para que se
pudessem construir modelos mecânicos para enquadrá-la e classificá-la, ou,
por outro lado, ela poderia ser produto do psiquismo do indivíduo.
Nesse impasse, tanto os olhares relativistas quanto as visões
dogmáticas excluem, cada qual a sua maneira, qualquer discussão,
qualquer forma autêntica de diálogo, “tornando-os seja inúteis (o
relativismo) seja impossíveis (o dogmatismo)”, segundo Dostoievski
(1878, p. 93 apud BAKHTIN, 2006, p. 370).
Também Vigotski questionou-se sobre o embate entre as forças do
subjetivismo individualista e do objetivismo abstrato, chamando-os pelos
nomes do campo da psicologia: de psicologia idealista e psicologia
behaviorista, perguntando-se se esse conflito não poderia ser resolvido a
partir de uma síntese dinâmica focada nos próprios atos concretos de fala
e concluiu que em ambos os enfoques de extremos opostos o prejudicado
seria o tempo: “quer se inclinem para o naturalismo ou para o idealismo
extremo, todas essas teorias têm uma característica em comum sua
tendência anti-histórica” (VYGOTSKI, 2001, p. 132), porque, para esse
autor, o tempo foi mal aplicado e incompreendido nas ciências humanas,
sempre descrito em modelos empíricos que não condizem com a
capacidade humana de assimilação e de criação da linguagem.
Em relação à crítica aos experimentos das ciências convencionais
aplicados às ciências humanas e ao modelo clássico de estudar a linguística,
Emerson (2010, p. 76) traça um paralelo entre Vigotski e Bakhtin, ao dizer
que:
A descrença de Vigotski em relação ao experimento psicológico clássico
(que ele chamava ironicamente de “estrutura estímulo-resposta”),
realmente, nos remete à descrença de Bakhtin quanto ao modelo
linguístico clássico, com seu emissor ideal e um receptor ideal (ou não
existente) (EMERSON, 2010, p. 76).
108
Nesse modelo criticado pelos dois autores, a existência real não tem
vez, pois o enunciado é abstraído de seus elementos enunciativos, e,
assim, os laços que o ligam à vida são quebrados, a palavra é morta e
retorna à vida somente quando é reintroduzida na existência real.
Os integrantes do Círculo de Bakhtin se opunham especialmente a um
aspecto fundamental do esquema langue/parole, a saber, sua posição
entre o social e o individual. No lugar de oposição, eles falavam em
interação e aconselhavam cautela à compreensão desta interação de
modo puramente mecanicista e racional (EMERSON, 2010, p. 67).
Ainda presente nos dias atuais, essa visão é encontrada nas relações
de poder, demonstradas na sociedade através da imposição de normas, que
“vão muito além das necessárias fixações provisórias das formas. A
introdução do conceito de erro ou defesa de purismo linguístico, que às
vezes beira ao ridículo, não são inocentes. Revelam outras relações
sociais” (GERALDI, 2015, p. 10). Entretanto, a defesa do direito de
expressão significa não assumir de maneira alguma essa visão, já que, como
salienta Vygotski (2001), a palavra desprovida de significação transforma-
se num som vazio.
A partir dessa crítica, esse outro modo de se estudar a língua
começa a ser valorizado, e é dado um grande passo científico nessa área
para o pensamento contemporâneo, que vai ser proposto até mesmo nos
documentos oficiais como nos parâmetros para o ensino da Língua
Portuguesa.
Isso, especificamente, pode ser compreendido até mesmo nos
documentos norteadores da educação, uma vez que, para o ensino da
língua materna, atualmente, “[...] A perspectiva que subjaz a estes
documentos faz, pela primeira vez, se aproximarem democracia política e
democracia linguística” (GERALDI, 2015, p. 26).
109
Por isso, na sociedade contemporânea, o trabalho com enunciados
é aconselhado pelos próprios documentos oficiais que norteiam a educação,
porque esse modo é o que mais condiz com os ideais de ensino significativo
e inclusivo, por valorizar as mais variadas manifestações linguísticas
presentes em situações concretas de interação.
Ainda, em relação à democratização linguística, a valorização das
variedades linguísticas se dissemina para que o estudo da linguagem seja
cada vez mais democrático como se pretende ser em todas as esferas da
sociedade.
Além disso, no mundo atual, tanto a linguagem oral quanto a
linguagem escrita devem ser valorizadas e, dependendo da necessidade
extraverbal e do gênero textual eleito para efetivar a interação, uma delas
poderá ser eleita como a mais adequada para se estabelecerem as trocas
verbais. Ou seja, em alguns contextos a necessidade da fala torna-a mais
valorizada, em outros a necessidade da escrita elege-a como algo de maior
importância.
Portanto, ao longo da evolução histórica da humanidade, a
escrita surge por meio da atividade humana, ganha estatuto independente
da fala e se efetiva como um sistema.
O ensino da escrita com gêneros do enunciado
“Será que o mundo do texto existe quando não há ninguém para dele
se apossar, para dele fazer uso, para inscrevê-lo na memória ou
transformá-lo em experiência?”.
(Roger Chartier, 2009a, p. 154)
No século XX, muitas mudanças e conquistas aconteceram na área
da educação, como, por exemplo, a universalização do acesso ao ensino
110
fundamental e médio, mas até hoje, culo XXI, almeja-se proporcionar
para todos aprendizagens de boa qualidade.
Para isso, em relação à aprendizagem da linguagem, a necessidade
de apropriação da língua em situações que façam sentido para os sujeitos é
um princípio muito generalizado nos meios educativos, mas,
frequentemente, os professores não dispõem de instrumentos para traduzi-
lo na prática, sobretudo quando se avança nos ciclos escolares.
Para Colomer & Camps (2002, p. 27) a necessidade de propor tais
atividades às crianças já é objetivo da maioria dos professores; entretanto,
eles esbarram no problema da transposição da teoria para a prática.
Tal dificuldade é bem explicável, já que reflete um desafio central na
educação de hoje: a necessidade de reconciliar conteúdos que devem
ser cada vez mais descontextualizados no que se refere à experiência
concreta dos meninos e das meninas, com a desmotivação que tal
processo pode provocar, pois quanto mais se distanciam os conteúdos
dos interesses imediatos dos alunos, mais diminui seu envolvimento
afetivo e menos se mobiliza sua capacidade de processamento da
informação (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 27).
Essa dificuldade apontada acima se dá porque, por mais que se
tente, na hora de transpor para a prática, a língua é tomada como um
código e passa a ser vista como uma entidade abstrata, e passa a ser estudada
em suas propriedades autônomas e, na maioria dos casos, trabalham-se as
unidades de modo isolado: a fonologia, a morfologia, a sintaxe e a
semântica.
Isso ocorre devido à internalização de práticas tradicionais de
ensino da língua, disseminadas ao longo de um processo histórico que,
conforme mencionado, propõe o seu estudo com um fim em si mesmo
e, por isso, não serve para as situações da vida, uma vez que,
111
Os efeitos desse ensino são tragicamente evidentes, não apenas nos
índices de evasão e de repetência, mas nos resultados de uma
alfabetização sem sentido que produz uma atividade sem sentido que
produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis e
desprovida de sentido, a escrita se transforma num instrumento de
seleção, dominação e alienação (SMOLKA, 2014 p. 37-38).
No entanto, a perspectiva dos trabalhos com a escrita deve partir
do enunciado e de suas condições de criação para entender como se criam
os textos, sem ignorar a existência das formas. O problema está em pensar
que a língua se resume a isso.
Em relação a isso, Hirschkop (2010) argumenta que tanto o
sentido quanto o significado de um enunciado da vida real não coincidem
apenas com os componentes verbais da língua, uma vez que as palavras já
estão carregadas do que está implícito nelas e do que elas ainda não
disseram. Contudo, o ensino do atos de escrita na escola brasileira ainda se
apoia na concepção mecanicista e associativa, que se configura na
aprendizagem fragmentada dos atos caligráficos da escrita, que se dá a
partir do desenho de unidades descontextualizadas da língua.
Nessa perspectiva, há a crença de que uma criança se apropria da
linguagem no momento em que desenvolve as habilidades instrumentais,
ou seja, quando ela desenvolve a cópia, a memorização e a habilidade de
fazer correspondências entre sons e letras, no entanto, ainda não nem
criam enunciados escritos.
Assim, a escrita espontânea da criança só será permitida após
imenso treino dessas habilidades. A base para essa forma de pensar a escrita
infantil encontra-se nos estudos linguísticos. De acordo com Bakhtin;
Volochínov,
[...] as seduções do empirismo fonético superficial são muito fortes na
linguística. O estudo da face sonora do signo linguístico nela ocupa
112
um lugar proporcionalmente exagerado. Tal estudo muitas vezes
determina o tom nessa disciplina e, na maioria dos casos, é feito sem
nenhum vínculo com a natureza real da linguagem enquanto código
ideológico (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2010, p. 71).
Assim como nos estudos linguísticos, também no ensino da
linguagem escrita esse vínculo se perde, pois os traços das palavras são
supervalorizados e até mesmo confundidos com atos de escrita; entretanto,
não passam de treinamento do desenho das letras e treinamento
ortográfico e por meio deles não se ultrapassam os limites da tradicional
ortografia e caligrafia.
Vygotski (2000a, p. 183) aponta que o ensino da escrita tanto na
teoria quanto na prática era considerado pela psicologia como um hábito
motor, como o problema do desenvolvimento muscular das mãos, como
uma questão de traçado de linhas riscadas ou pautadas etc. Com isso, os
atos de escrita não eram ensinados, de forma que a
[...] aprendizagem não ultrapassa os limites da ortografia e caligrafia
tradicionais. Isso se explica, em primeiro lugar, por razões históricas,
pelo fato justamente de que a pedagogia prática, apesar da existência
de numerosos métodos de ensino da leitura e da escrita, não elaborou,
ainda, um sistema de ensino da linguagem escrita suficientemente
racional, fundamentado científica e praticamente (VYGOTSKY,
1995, p. 183).
Apesar dos inúmeros métodos de ensino da escrita, os problemas
em sua aprendizagem permanecem sem solução a hoje.
Sobre esses métodos de ensino, Bakhtin (1990, p. 99), ao traçar
um paralelo com a psicologia, afirma que estudar apenas o texto em si sem
relacioná-lo à situação externa ao qual ele pertence é tão absurdo quanto
estudar o sofrimento psíquico distante da realidade a partir da qual ele é
determinado.
113
Desse modo, os atos de criação verbal devem ser inseridos numa
situação enunciativa real ou o mais próximo possível dela, pois, na vida, os
enunciados ocorrem situados pelos sujeitos em espaços e tempos definidos
em conformidade com suas intenções.
Especificamente sobre o ensino, Foucambert (1998) enfatiza que
isso afeta a didática, que abandona as comprovações científicas do saber
especializado da área com a intenção de planejar suas transposições. Por
isso, as avaliações dos dados oficiais revelam que: “[...] mais da metade dos
alunos de quinta série apega-se ainda ao fonológico e dificilmente consegue
organizar uma mensagem [...]” (FOUCAMBERT, 1998, p. 121-122).
Contrariamente ao que é feito, poderia ser demonstrado aos
pedagogos, no que se refere a esses métodos tradicionais, que há no
decorrer do processo de aprendizagem uma via fonológica que não é
natural e muito menos necessária. Por meio dela, as crianças passam a ver
a escrita como cópia de algo que será oralizado e aprendem a traçar
caminhos intermediários para aprender os atos de escrita, como fazem com
a aprendizagem da leitura em que são levados a fazer a transcodificação de
um código escrito a um código oral.
Em vez de se preocuparem em desenvolver uma via artificial e
intermediária apegada historicamente ao ensino da escrita, que segundo
Vigotski (2000b, p. 184) significa para a criança dominar um sistema de
signos extremamente complexo, os psicólogos e pedagogos deveriam criar
as necessidades de escrita nas crianças, pois
[...] é evidente que o domínio deste sistema complexo de signos não
pode se realizar por uma via exclusivamente mecânica de fora, por meio
de uma simples pronunciação, de uma aprendizagem artificial [...] é
evidente que a língua escrita é, na realidade, o resultado de um longo
desenvolvimento das funções superiores do comportamento infantil
(VYGOTSKI, 2000b, p. 184).
114
Isso ocasiona o choque recebido pelas crianças que, ao chegarem à
escola, se deparam com uma escrita diferente daquela com a qual tiveram
contato durante toda a sua vida, porque encontram atividades motoras de
cópia, completamente estéreis, destituídas de sentido e uma linguagem sem
função social.
Sobre isso, Luria (2006b p. 143) afirma que antes mesmo de
atingir a idade escolar, a história da escrita na criança já teve início e ela já
assimilou técnicas que tornam mais fácil aprender o conceito e a prática da
escrita e, por isso, elas já fazem deduções sobre o que seria escrever.
Esses estudos linguísticos ignoram o movimento que vida à
língua: os elementos sociais, semânticos e históricos, e priorizam apenas os
elementos que podem ser controlados como os fonemas, as labas e as
micropartículas da língua.
Sobre isso, “O ato de escrever vai além do ensino de letras, palavras
ou frases soltas, porque está relacionado às construções de enunciados
repletos de sentido e com isso são estabelecidas as relações dialógicas, [...]”
(SANTOS, 2013, p. 16).
Quando se trata a escrita como uma técnica de memorizar sinais
gráficos e reproduzi-los, de acordo com Bakhtin (2010), as palavras são
reduzidas a um sinal, porque
[...] o sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode
substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um
instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e
imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e
imutável). O sinal não pertence ao domínio da ideologia; ele faz parte
do mundo dos objetos técnicos [...] Esses sinais, considerados em
relação ao organismo que os recebe, isto é, ao organismo sobre o qual
eles incidem, nada m a ver com as cnicas de produção (BAKHTIN;
VOLOCHINOV, 2010, p. 96-97).
115
Dessa forma, a palavra não terá valor linguístico se percebida pelo
interlocutor como apenas um sinal; ela só passará a ter significado para seus
interlocutores, quando for orientada por um contexto, que a constitui
como um signo, que possui mobilidade para ser compreendido no seu
sentido particular. Complementando essa ideia,Enquanto a enunciação,
em sua inteireza, continuar sendo terra incógnita para o linguista, será
impossível falar de uma compreensão genuína, concreta, não escolástica
das formas sintáticas(BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2010, p. 110).
Contudo, uma alternativa para esses tipos de métodos criticados
seria propor a escrita a partir dos gêneros do enunciado, formas de
enunciações, conforme esclarece Bakhtin (2006 p. 283)
Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas de
enunciações e justamente com essas formas. As formas da língua e as
formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam
à nossa experiência em conjunto e estritamente vinculadas. Aprender a
falar significa aprender a construirenunciados (porque falamos por
enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por
palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso
quase da mesma forma que organizam as formas gramaticais
(sintáticas). Nós aprendemos a moldar nosso discurso em formas de
gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já advínhamos o seu
gênero pelas primeiras palavras [...].
Por meio da elaboração de atos de escrita de gêneros do enunciado
pelas crianças, é dada a possibilidade a elas de experienciarem situações
autênticas de intercâmbio verbal e, assim, entenderem a verdadeira função
desse instrumento cultural. E, ainda, por estarem inseridas num processo
dialógico e ininterrupto poderão criar novas necessidades e novos motivos
para trocas verbais futuras. De acordo com esse ponto de vista, Vigotski
evidencia que
116
A relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o
pensamento nasce através das palavras. Uma palavra desprovida de
pensamento é uma coisa morta, e um pensamento não expresso por
palavras permanece uma sombra (VIGOTSKI, 2001, p. 107).
Numa esfera de intersecção entre a teoria de Bakhtin e de
Volochínov e os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural existe a
concordância de que o trabalho de apropriação da linguagem deve
considerar que a relação interacional é fundamental, pois é a partir da
interação entre a criança e seus interlocutores, por meio da linguagem, que
ela cresce intelectualmente e passa a desenvolver seus conhecimentos,
porque
O mundo interior é, então, uma espécie de microcosmos
heteroglóssico, construído a partir da internalização dinâmica e
ininterrupta da heteroglossia social. Em outros termos, o mundo
interior é uma arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas
relações de consonâncias e dissonâncias; em permanente movimento,
já que a interação socioideológica é um continuo devir (FARACO,
2009, p. 81).
Portanto, para manter essa interação em todas as esferas sociais,
cabe à escola levar as crianças a dominarem cada vez mais os gêneros do
enunciado para criarem textos cada vez mais elaborados, para que possam
fazer suas escolhas de acordo com as necessidades das situações em que se
encontrarem. Além disso, com o domínio dos neros do enunciado, as
crianças podem criar atos de escrita de forma cada vez mais autônoma, pois
como afirma Bakhtin,
Quanto melhor dominamos os gêneros, tanto mais livremente os
empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a
nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos
de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em
117
suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de
discurso (BAKHTIN, 2006 p. 285).
Desse modo, deve-se tomar cuidado para não propor atividades
destituídas de significado real às crianças, pois dessa forma se estaria
seguindo o caminho inverso em relação à criação de necessidades para
elaboração de atos autênticos de escrita.
Como a palavra, a oração é uma unidade significativa da língua. Por
isso, cada oração isolada, por exemplo “o sol saiu”, é absolutamente
compreensível, isto é, nós compreendemos o seu significado
linguístico, o seu papel possível no enunciado. Entretanto, não é
possível ocupar uma posição responsiva em relação a uma posição
isolada se não sabemos que o falante disse com essa oração tudo o que
quis dizer, que essa oração não é antecedida nem sucedida por outras
orações do mesmo falante. [...] (BAKHTIN, 200, p. 287).
Diante do exposto, percebe-se que a verdadeira compreensão do
enunciado se dá nas trocas verbais entre os interlocutores, especificamente,
na busca por uma unidade passível de resposta, não apenas no plano
linguístico, mas também, principalmente, no plano dos sentidos diante da
natureza dialógica da linguagem, ou seja, na relação entre os interlocutores
e entre os enunciados, por ser a linguagem uma construção social e
ideológica.
Diante disso, vale lembrar que essas relações não se dão de modo
equilibrado e ingênuo, por isso é necessário que se compreenda que
[...] as representações e os discursos se constroem nas relações de
dominação, como eles próprios dependem dos recursos desiguais e dos
interesses contrários que esperam daqueles cuja potência legitimam
daqueles ou daquelas cuja submissão asseguram (ou devem assegurar)
(CHARTIER, 2009b, p. 51).
118
Nas relações de ensino da escrita, é preciso combater a violência
simbólica legitimada nas representações sociais, manifestada nos
enunciados, que é própria das divisões do mundo social, que se transmite
de diferentes modalidades, situadas na tensão entre representações
historicamente institucionalizadas e as representações que se produzem
nas suas brechas.
Outro problema que se apresenta é a historicidade de linguagem;
por serem produtos históricos dos falantes as expressões linguísticas, as
estruturas sintáticas, as variedades linguísticas, os gêneros do enunciado
etc., “[...] não se pode inferir que a língua está de antemão pronta,
acabada, cabendo ao sujeito de hoje simplesmente se ‘apropriar’ do sistema
para usá-lo segundo suas necessidades linguísticas: o evento discursivo
singular constitui a linguagem” (GERALDI, 2015, p. 35).
Desse modo, o presente também faz parte da história e ao atuar
como fonte geradora de novas possibilidades, modifica a constituição da
língua, deixando-a sempre em movimento, sempre se construindo, por ser
sempre inacabada ou provisoriamente acabada.
Assim, a escolha dos gêneros do enunciado é determinada pelas
especificidades de cada situação de interação, que considera: a temática em
questão, a intenção comunicativa, a subjetividade de seus participantes, a
maneira pessoal de expressar-se dos seus interlocutores, sem deixar de fora
toda a sua individualidade e subjetividade, que estão presentes em cada
contexto de interação. Essas especificidades são aplicadas e adaptadas ao
gênero escolhido, que se constitui e se desenvolve de uma determinada
forma.
Os gêneros discursivos, assim considerados, podem ser pensados tanto
em função de sua ontogênese quanto de sua filogênese. Do ponto de
vista ontogenético, os gêneros discursivos são realizações das interações
produzidas na esfera da comunicação verbal; do ponto de vista
filogenético, é possível acompanhar a expansão para outras esferas da
119
comunicação realizada graças à dinâmica de outros códigos culturais
que se constituem, em relação à palavra, um ponto de vista extraposto.
Nesse sentido, as esferas de uso da linguagem podem ser
dialogicamente configuradas em função do sistema de signos que as
realizam (MACHADO, 2014, p. 165).
Desse modo, por sua plasticidade, os gêneros do enunciado são
eleitos como possibilidades de materialização linguística que se adéquam
ao momento, ao lugar e ao suporte onde estão inseridas, por meio de um
conjunto de características específicas.
Cada gênero do enunciado possui normas específicas convergentes
com a esfera social em que se encontram; no entanto, vale lembrar que,
embora os gêneros tenham uma estabilidade relativa, a variedade de
gêneros é infinita por consequência da atividade humana ser inesgotável.
Além disso, é importante enfatizar que se os gêneros do enunciado
não fossem dominados, precisariam ser criados a cada nova situação social
de troca verbal. “Toda uma série de gêneros sumamente difundidos no
cotidiano é de tal forma padronizada que a vontade discursiva individual
do falante se manifesta na escolha de um determinado gênero [...]”
(BAKHTIN, 2006, p. 283).
Os trabalhos de criação escrita adquirem mais sentido quando se
elege um determinado gênero do enunciado, do que quando realizados de
forma compartimentada e isolada, como nos exercícios com frases soltas,
artificiais e descontextualizadas. Ao escrever a partir dos gêneros do
enunciado os sujeitos têm um interlocutor real, que orienta suas escolhas.
Para conseguir se comunicar, os sujeitos necessitam dos gêneros do
enunciado e a cada novo gênero conhecido eles terão mais possibilidades
de estabelecer trocas verbais; por isso, a escola deve oferecer inúmeros
gêneros do enunciado às crianças, para que sejam cada vez mais capazes de
lidar com textos inseridos em situações contextualizadas, para que se
120
tornem autores de seus atos de escrita e cada vez mais autônomos nas suas
vidas.
Diante da modernidade dos estudos linguísticos em que o signo
ideológico, vivo e dinâmico, se torna um instrumento de refração,
deformação e transformação do ser, deve-se atentar para o seu
contraponto: “A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um
caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou
ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o
signo monovalente” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2010, p. 48).
Nesse embate de forças com a classe dominada, o discurso oficial
tende a querer apagar as diversas vozes pertencentes ao meio heterogêneo,
pois “[...] no jogo de poderes sociais, há um contínuo esforço centrípeto
(monologizante) dos discursos que ambicionam se impor como um centro,
buscando reduzir e submeter a heteroglossia (FARACO, 2009, p. 78).
O estudo da linguagem, com base nas considerações de Bakhtin
e de Volochínov, deve se orientar em uma linguagem em movimento que
compreenda a vida do homem que se desenvolve conforme a evolução da
vida social em suas condições reais, compreendendo o extra-verbal presente
em cada situação social de troca verbal. Sobre isso,
[...] é importante lembrar que, para o Círculo, a significação dos
enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um
posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é,
na concepção do Círculo, sempre ideológico para eles, não existe
enunciado não ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer
enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (no interior de uma
das áreas da atividade intelectual humana) e expressa sempre uma
posição avaliativa (não há enunciado neutro; a própria retórica da
neutralidade é também uma posição axiológica) (FARACO, 2009, p.
47).
121
Por isso, os enunciados são entendidos num contexto cultural
semântico- axiológico. Nesses contextos vivos, eles conseguem ser
compreensíveis: verdadeiros ou falsos, belos ou feios, sinceros ou
maliciosos, livres ou autoritários etc. Não enunciados neutros, nem
pode haver; mas a linguística vê neles somente o fenômeno da língua,
relaciona-os apenas com as unidades da língua, mas não com a unidade de
conceito, da vida prática de vida, da história, do caráter de um indivíduo”
(BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2010, p. 46).
No momento que é dito que a linguística o ultrapassou o limite
das orações, ela encara como essencial as partículas da língua, por isso o
todo significativo que deveria ser seu objeto de estudo é ignorado, sendo
que apenas com o estudo da língua por inteiro, de todos os lados, com
todos os seus elementos é possível entender as nuances de significado dos
enunciados.
Portanto, os enunciados são considerados uma unidade na cadeia
enunciativa; caracterizam-se por ter seus limites definidos pela alternância
de seus sujeitos, pela exauribilidade semântica e pela escolha do gênero.
Ou seja, trabalha-se com uma possível conclusibilidade, apesar do
inacabamento.
Uma proposta bakhtiniana para os estudos linguísticos na
atualidade seria analisar os enunciados concretos, tomados como
enunciação-ação, “[...] em que não se dissociam subjetividade, ética e
evento” (MENDONÇA, 2012, p. 111).
Além disso, os textos do Círculo enfatizam constantemente que
eles não apenas refletem o mundo, mas também o refratam, pois o processo
de transmutação do mundo em matéria significante se dá sempre por meio
de signos ideológicos pertencentes aos cenários axiológicos. Afinal,
nenhuma palavra reflete seu objeto de maneira tão apurada como uma
fotografia daquilo que ele significa, mas o refrata, condicionado pelas
relações sociais, para ser mais específico, pelas relações de classe.
122
A formação do autor de textos de diversos gêneros do enunciado.
“A grande nova aprendizagem talvez seja aquela de nos sabermos
livres: livres de determinações de um ser supremo e externo a nós
próprios, livres dos determinismos da física, da química ou outras
quaisquer leis que se pensam exatas”.
(João Wanderley Geraldi, 2003, p. 256)
“Queremos formar jovens, independentemente de classes sociais,
inquietos, criativos e questionadores que aprendam a utilizar sua
energia para seu próprio desenvolvimento e
também para aprimorar a sociedade em que vivem”.
(Ricardo Azevedo, 2008, p. 24)
O ensino e a aprendizagem da escrita são assuntos delicados, pois
se percebe que ensinar a escrever não é uma tarefa fácil; por isso, nas
escolas e no meio acadêmico uma preocupação muito grande com a
formação de sujeitos que consigam criar autonomamente seus textos
escritos nos diferentes gêneros do enunciado existentes.
Sobre isso, Miller acrescenta que
Escrever, particularmente, o é uma tarefa fácil; produzir textos
escritos, com coerência, de acordo com a estrutura global que os
caracteriza, com encadeamento coesivo e organização de parágrafos e
frases, tem sido um problema que atinge alunos dos distintos níveis de
ensino (MILLER, 1998 , p. 9).
Consequentemente, nas escolas da atualidade, é necessário ter
consciência de que os processos de escrita de textos devem envolver
criações significativas tanto para quem escreve como para quem vai lê-las.
Mais especificamente sobre os atos de escrita, de acordo com Miller
(2003, p. 9), “quando se escreve, está em jogo criar um texto que faça
sentido para o leitor: e, da mesma forma, quando o leitor se coloca diante
123
de um texto escrito, está em jogo interagir com os sentidos propostos pelo
autor”.
Por conseguinte, é preciso mudar as concepções sobre os processos
cognitivos dos sujeitos; de acordo com Yarochevsky (1989, p. 120), por
volta dos anos 60 do século passado, os cientistas ocidentais enxergaram
nas concepções de Vigotski uma alternativa para o behaviorismo. Vigotski
via a fraqueza dessa teoria em sua ênfase no desenvolvimento psíquico a
partir de fatores biológicos e privilegiava a socialização do indivíduo, cuja
aprendizagem possibilitaria o alcance de patamares novos de
desenvolvimento. De acordo com Leontiev:
A teoria histórico-cultural de Vigotski, com suas ideias sobre o caráter
mediado dos processos psíquicos com a ajuda de instrumentos
psicológicos (por analogia com a forma como os instrumentos
materiais de trabalho intervêm de forma mediada na atividade prática
do homem) foi a primeira formalização psicológica desse modelo
(LEONTIEV, 2004, p. 470).
Nesse sentido, nas ações enunciativas está representada a trama das
relações do indivíduo com o outro, ou seja, o sujeito é o que é, porque no
processo de desenvolvimento galgou sempre níveis mais elevados e
complexos com a ajuda de outros sujeitos mais experientes.
Concretamente, para Leontiev (2004, p. 448), Vigotski “[...] lançou a
hipótese de que, durante o processo de sua evolução, a criança interioriza
as formas sociais de comportamento que os adultos utilizaram com ela
desde o começo de sua vida”.
A partir dessa mudança de paradigma, a figura do professor é
encarada como essencial para a aprendizagem, pois exerce função de agente
de mediações, que por meio das trocas verbais com a criança, ensina os
comportamentos sociais e o conhecimento. Além disso, para Oliveira
(2006, p. 3-4), Vigotski entende a atividade humana como a categoria
124
central de sua fundamentação filosófica. É a partir dessa atividade que o
homem busca satisfazer não suas necessidades biológicas, mas também
as necessidades que ele cria ao longo de seu processo de desenvolvimento,
e
Para poder concretizar sua atividade, o homem precisa apropriar-se do
que outros já criaram [...] E esse fim posto é sempre um produto social,
mesmo quando enunciado por um indivíduo singular. Ao objetivar-se
cria sempre novas necessidades e, consequentemente, novos
instrumentos, novas técnicas e, de igual modo, novos conhecimentos
científicos, filosóficos e artísticos. Cria, assim, a cultura (OLIVEIRA,
2006, p. 8).
Para a autora, de um processo contínuo e ininterrupto de
apropriação e objetivação, gerador de novas necessidades, resulta a
universalização do homem. “Nesse processo, cada indivíduo contribui
com sua atividade para a construção da cultura humana” (OLIVEIRA,
2006, p. 11).
Em síntese, ao conceber a relação entre indivíduo e sociedade como
uma unidade indissolúvel, Vigotski muda o modo de ver a aprendizagem
e volta-se contra o ensino compartimentado, presente na sociedade de
classes, argumentando que ele decorre de condicionantes sociais advindas
das relações de produção que servem aos interesses de uma determinada
classe em detrimento das outras, impondo ao indivíduo uma atividade
humana alienada, que produz a cisão entre homem e sociedade.
Contra a alienação, as propostas que se consideram humanizadoras
têm como objetivo criar condições para a formação do sujeito
transformador, que constrói sua própria história e que atua em seu
contexto.
As observações e análises dos dados gerados, descritos a seguir,
pretenderam apresentar e discutir os resultados atingidos com a realização
da pesquisa, constatando se as estratégias propostas caracterizaram
125
mudanças ou não, por meio do retorno à escola e da investigação do nível
de desenvolvimento real das crianças seis meses após a sua participação na
pesquisa.
126
127
A escrita de gêneros do enunciado para a
apropriação da linguagem
“A conquista humana do domínio da técnica da escrita alarga
incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas
consciências. Uma tal ‘tecnologia’, a duras penas construída, não
poderia deixar de ser objeto de desejo e instrumento de dominação”.
(João Wanderley Geraldi, 1996, p. 138)
Por ser a escola um lugar de formação para a vida, na qual os
sujeitos deverão agir do modo mais autônomo possível diante das
limitações da sociedade do consumo, atos de escrita propostos por ela
deveriam ser, cada vez mais, semelhantes aos encontrados em suas situações
autênticas. Entretanto,
[...] a escola não ensina as crianças que se escreve o que se quer
comunicar a alguém ou que se quer lembrar mais tarde [...] o
problema é que depois de tanto esforço delas próprias e do professor,
quando elas se defrontarem com um texto e quiserem ler buscando no
texto as letras, não vão entender nada, porque um texto contém ideias
e informações. As letras e as sílabas constituem apenas um aspecto
técnico da escrita, mas não constituem sua essência. Depois de tanto
tempo gasto com o treino da escrita, percebemos que isso não serviu
para avançar o desenvolvimento cultural dessas crianças (MILLER;
MELLO, 2008, p. 07).
Isso nem seria possível, pois a linguagem escrita é muito mais
complexa que seus aspectos técnicos. Por isso, a atenção do professor, ao
128
propor práticas e desafios, deve estar voltada para propostas de escrita
como instrumento cultural complexo que, por fazer parte das atividades
humanas, possibilitando a constituição de sentidos, participa da
construção de sua subjetividade.
Uma alternativa para esse problema seria o que Bakhtin (2006)
destaca como possibilidade de concretização da vontade enunciativa que
se realiza antes de tudo na escolha de certo gênero do enunciado. Nesse
sentido, “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo
determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio
interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV,
2010, p. 113).
Assim, a reflexão sobre a linguagem é transposta do campo da
estrutura para o campo da sitação social de troca verbal, ou seja, para seu
contexto sociointerativo. Dessa maneira, o enunciado passa a ser a
unidade concreta e real da atividade, inserido em situações cio-
histórico-culturais e permeado por uma orientação que considera sua
evolução.
Presente nas esferas enunciativas “[...] um enunciado é, em seus
aspectos mais típicos e essenciais, determinado pelas inter-relações
constantes mais gerais dos falantes, como representantes de determinados
grupos [...]” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 20). Portanto, as crianças, ao
elegerem os gêneros do enunciado a serem escritos, passam a enxergar os
atos de escrita como necessários para a vida e não como viam em situações
de cópia ou de atividades descontextualizadas. Por isso, em relação aos
estudos de Bakhtin e de Volochínov, a pesquisa teve como foco central o
uso dos gêneros do enunciado, do entendimento da linguagem a partir de
suas relações com o outro, da sua instabilidade e das múltiplas
possibilidades de significação da palavra, vista como signo ideológico, em
suas esferas sociais, inseridas numa cultura e sempre em vias de
transformação.
129
Além disso, ao encarar o outro como ponto de suma importância
para o processo de trocas verbais, o processo enunciativo passa a ser
realmente compreendido como algo feito para o outro, a partir da ideia de
que sem essa figura a linguagem não teria função alguma.
Este capítulo apresenta a escrita por meio de gêneros do enunciado,
no processo de apropriação da linguagem, a partir das necessidades iniciais
das crianças: em 4.1 A escolha dos gêneros do enunciado no processo de
apropriação da escrita, são analisados os dados das criações feitas quando a
necessidade de escrita das crianças se deu pela vontade enunciativa de criar
determinado gênero do enunciado e, em 4.2 A importância da escrita para
o outro nos atos enunciativos, quando a existência de um outro, interlocutor
real, criou essa necessidade inicial de escrita nas crianças.
A escolha dos gêneros do enunciado no processo de apropriação da
escrita
“[...] o produzir escolhas educativas ou profissionais inéditas, revolve a
sociedade nas suas profundezas, pois permite êxitos anteriormente
impossíveis [...]”.
(Roger Chartier, 2002, p. 225)
Neste subitem encontram-se atos de escrita que se iniciaram pela
necessidade de escrita das crianças, gerada pela vontade enunciativa de
escolher o gênero do enunciado. Alguns eventos dessa prática foram
selecionados, descritos e analisados a seguir.
Essa escolha dos gêneros do enunciado fez parte de um dos
objetivos da pesquisa, ao propor que as crianças elegessem aqueles que
achassem significativos no momento de suas criações, já que, para Bakhtin
(2006), por meio dessa escolha a vontade enunciativa se manifesta.
130
No momento da criação de seu primeiro enunciado, a
necessidade enunciativa de Emerson (11 anos, ano) iniciou-se pela
escolha do gênero narrativa de aventura. O trecho do diário de bordo da
pesquisadora destaca a escolha do primeiro gênero do enunciado dessa
criança.
No início do segundo encontro, foi dito à criança que durante a
pesquisa seria feito como havia ocorrido no primeiro encontro (a
produção de seus enunciados, no momento da avaliação que visava
descobrir o nível de desenvolvimento real das crianças para selecionar
as que apresentassem maiores dificuldades na produção de atos de
escrita) e que ela poderia escolher o que quisesse escrever. Depois disso,
a criança disse que gostaria de escrever uma narrativa contando uma
aventura e em seguida escolheu os interlocutores para seu texto, após
ser indagado pela pesquisadora sobre isso. Perguntou se poderia
escrever para seus colegas e para sua professora e a resposta foi
afirmativa (DIÁRIO DE BORDO, 26/4/2015).
Em relação a isso, vale ressaltar que o conhecimento dos gêneros
do enunciado proporciona às crianças autonomia linguística, pois a partir
desse conhecimento a sua liberdade de escolha dos enunciados é ampliada
e, quanto mais gêneros conhecerem, terão mais possibilidades de escolher
entre uma gama de possibilidades enunciativas da qual já se apropriaram.
Por isso, um ensino que objetiva ser democrático deve ter como
condição primordial para seu planejamento o oferecimento dos mais
variados gêneros do enunciado possíveis presentes na sociedade, pois assim
estará lutando pela diminuição do cerceamento de conhecimentos para a
classe trabalhadora e oferecendo ferramentas de luta aos seus sujeitos em
busca de participação social.
A hipótese de o contato com diversas formas de narrativas no
ensino fundamental I e no ano inicial do ensino fundamental II ser a causa
da escolha desse gênero por essa criança foi investigada no seguinte diálogo.
131
Pesquisadora: - Vocêconhecia textos narrativos que contam
histórias de aventura?
Emerson: - Sim, eu já ouvi.
Pesquisadora: - Onde foi que ouviu?
Emerson: - Na outra escola.
Pesquisadora: - Na escola em que você estudava no ano passado?
Emerson: - É. A professora contava.
Pesquisadora: - Sempre? Quais?
Emerson: - Sim, às vezes de aventura, às vezes engraçadas, às vezes
tristes.
Pesquisadora: - Nos anos anteriores também teve contato com essas
narrativas?
Emerson: - Sim, desde pequeno.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 26/4/2015)
Por meio do diálogo acima, podem ser estabelecidos dois enfoques
de análise sobre o oferecimento dos textos narrativos para as crianças, pelas
escolas de ensino fundamental I e pelo ano inicial do ensino fundamental
II. Um deles seria o questionamento sobre até que ponto são variadas as
opções de gêneros do enunciado oferecidas pela escola nesses anos e o outro
seria a indagação sobre a possibilidade de uma variedade maior de gêneros
ser oferecida nesse nível de ensino, visto que, como já foi dito
anteriormente, para a formação de sujeitos cada vez mais autônomos, o
oferecimento de uma diversidade cada vez maior de gêneros do enunciado
possibilitaria a sua inclusão social.
E ainda, pode ser constatado também nas narrativas, apresentadas
pelas crianças aos seus familiares, que elas aprendem a contar histórias
muito cedo, muito antes de vivenciarem a alfabetização, apesar desse
processo não ser espontâneo, pois a aprendizagem depende das suas
interações familiares e das suas vivências sociais.
132
Quanto à necessidade se de oferecer uma variada gama de gêneros
do enunciado às crianças, afirmam os Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Fundamental (BRASIL, 1998, p. 23) que,
Nessa perspectiva, é necessário contemplar, nas atividades de ensino,
a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de sua
relevância social, mas também pelo fato de que textos pertencentes a
diferentes gêneros são organizados de diferentes formas.
Em busca da democratização do acesso à criação de atos de escrita,
esse documento oficial argumenta que a convivência com diversos gêneros
e as suas criações orais e escritas pressupõem o desenvolvimento de várias
capacidades que devem ser enfocadas no cotidiano das situações de ensino.
Para que tal democratização se efetive, “[...] é preciso abandonar a
crença na existência de um gênero prototípico que permitiria ensinar todos
os gêneros em circulação social” (BRASIL, 1998, p. 24). Isso porque, por
serem os gêneros do enunciado determinados por processos históricos e
culturais, eles possibilitam a prática de trocas verbais que contenham
funções determinadas pelo seu uso.
Ainda sobre o ensino dos atos de escrita, vale lembrar que, para
uma parte considerável das crianças brasileiras, a escola é o único espaço
de acesso a alguns gêneros escritos; sendo assim, as atividades escolares
devem lhes oferecer uma abundante convivência com a diversidade de
textos que caracterizam as inúmeras práticas sociais.
Para isso, é preciso estar ciente de que “boa parte dos materiais
didáticos disponíveis no mercado, ainda que venham incluindo textos de
diversos gêneros, ignoram a diversidade e submetem todos os textos a um
tratamento uniforme” (BRASIL, 1998, p. 70).
Isso se dá, não apenas nas propostas de criação enunciativa de atos
de escrita, mas também nas práticas de leitura em que, até hoje, a ideia de
que apenas a leitura dos gêneros considerados nobres deve ser valorizada
133
circunda os territórios escolares e o modo de pensar da sociedade em geral,
e a leitura de outros textos é sempre desmerecida, porque, na escola, tal
como ocorria antigamente, sempre os mesmos gêneros são oferecidos e a
leitura dos outros gêneros é vista com preconceito, como algo direcionado
aos menos capazes ou à classe trabalhadora.
Aqueles que são considerados não leitores leem, mas leem coisa
diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura
legítima. O problema não é tanto o de considerar como não leituras
estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca
legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas
incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola,
mas também sem dúvida por outras vias, a encontrar outras leituras
(CHARTIER, 2009a, p. 104).
Além disso, a leitura dos gêneros não eleitos, quando aceita, é vista
com entusiasmo apenas se tiver a função de trampolim para se chegar à
leitura dos gêneros considerados nobres. Sobre isso, Arena (2003, p. 58)
critica a afirmação de que “[...] o leitor que não lê, pelo menos, os escritos
considerados nobres não pode ser considerado leitor”. E esclarece:
[...] o problema de ser ou não leitor não deveria vincular-se ao que se
denomina leitor consumidor aquele que consegue consumir os
produtos considerados nobres produzidos pelo parque editorial do país
mas àquele que lê, porque suas relações com o mundo são mediadas
pelo escrito, seja de que natureza for, e para que essas relações
provoquem os comportamentos adequados às necessidades e às
finalidades que a sua ação exige (ARENA, 2003, p. 58-59).
Sob esse ponto de vista, por ser a escola um lugar de formação para
a vida, na qual os sujeitos deverão agir do modo mais autônomo possível,
as propostas de atos de leitura e de escrita deveriam estar cada vez mais
próximas das situações enunciativas autênticas.
134
Ainda sobre os gêneros eleitos pela escola, Bahloul (2002) salienta
que nos depoimentos das entrevistas de sua pesquisa as pessoas disseram
que a escola não contemplava os gêneros que elas haviam desejado ter
contato e que elas quase nunca tinham a chance de escolher o que queriam
ler.
Ao impor os gêneros, temas e títulos considerados nobres há a
pretensão de que as pessoas ao passarem por eles se habituem a essa leitura.
Entretanto Bahloul (2002), em seus estudos, exibe dados que comprovam
o contrário. Sua pesquisa constata a mudança na seleção de gêneros
efetuada pelos integrantes da classe trabalhadora ao saírem da escola. De
acordo com os relatos das entrevistas, os gêneros escolhidos após essa saída
passam de textos legitimados pela cultura dominante para os textos
práticos, obras de temas familiares, da comunicação, da mídia, de massa
ou revistas ilustradas.
Além disso, um movimento contrário a esse em relação à
qualidade de gêneros ofertados pela escola, mas que culmina no mesmo
problema: as poucas variedades enunciativas proporcionadas aos alunos, e
o do oferecimento de textos didatizados. Vale lembrar que os atos de
leitura são assolados por um problema milenar, na tentativa de popularizá-
los e de ensiná-los na escola e nas universidades, o de oferecer conteúdos
facilitados ao máximo por subestimar a capacidade dos sujeitos, que
culmina na falta de oportunidades de contato dos alunos com gêneros mais
elaborados e com conteúdos mais desafiadores.
Para Hamesse (2002, p. 130), essa arte de facilitar textos, que
surgiu para designar um procedimento específico de exposição de
conteúdos, intensificou-se no período escolástico, com gêneros que
compilavam os textos originais, tais como: os florilégios (coletâneas), as
sumas (resumos), os compêndios e as tabelas analíticas, que eram reduzidos
a um único volume manejável, mas em “cujo conteúdo não se representa
mais que um pálido reflexo da obra original”.
135
Inicialmente essas criações, por serem facilitadas, eram oferecidas
como uma iniciação às obras originais, mas paulatinamente foram se
incorporando ao dia a dia dos professores e dos alunos e o que introduziria
uma obra original passou a substituí-la. “[...] aos poucos, os professores as
foram utilizando como base de seu curso no lugar do texto original.
Constatamos, assim, um empobrecimento real do domínio do
conhecimento dos textos obrigatórios que deviam ser lidos’” (HAMESSE,
2002, p. 131).
Ainda hoje, oferece-se, muito frequentemente, um texto facilitado
e raso, mas que corre o risco de não desenvolver a capacidade de crítica de
seus leitores, pois como ocorria antigamente, ao passar pela seleção do
compilador/ facilitador, transforma-se o modo de ler. Assim,
A conclusão inevitável que resulta desse novo gênero literário é o fato
de a leitura não ser mais direta. Ela passa pela mediação de um
compilador, pelo filtro da seleção. A referência do livro muda. O
conteúdo não é mais estudado por ele mesmo e com o fim de adquirir
um certo conhecimento[...]. Daqui em diante o saber vem em primeiro
lugar, mesmo que fragmentário. A utilidade precede a meditação,
modificação profunda que altera completamente o próprio impacto da
leitura (HAMESSE, 2002, p. 130).
Assim como ocorria em tempos remotos, a escola muitas vezes
subestima a capacidade de suas crianças e oferece textos facilitados ou deixa
de oferecer leituras mais elaboradas a elas. [...] É preciso utilizar aquilo
que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na
sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de
transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e de pensar
(CHARTIER, 2009ª, p. 104).
Dessa maneira, um movimento contrário ao de seleção de gêneros
deveria ocorrer na escola, porque a cada situação de troca verbal os sujeitos
136
necessitam dos gêneros do enunciado para se exprimirem e a falta desse
conhecimento cria dificuldades de expressão e compreensão, também fora
da escola.
Coincidentemente ou por ter um repertório de gêneros estreito,
Francisco (11 anos, 6º ano) também optou por elaborar uma narrativa,
apesar de seguir outro caminho para a criação de seu texto, pois escolheu
primeiramente seus interlocutores e em seguida uma imagem que o
motivou a contar uma aventura. Mas o que chamou a atenção sobre a
escolha desse gênero foi a naturalidade com a qual o selecionou, que remete
a uma familiaridade com as narrativas ou ao fato de conhecer poucas
variedades de gêneros do enunciado. Esses dados encontram-se na
transcrição do trecho do diálogo a seguir.
Pesquisadora: - Agora que escolheu para quem vai escrever, já sabe o
que quer escrever?
Francisco: - Pode ser uma historinha.
Pesquisadora: - Uma narrativa? Por que quer escrever uma
narrativa?
Francisco: - Para falar do desenho.
Pesquisadora: - O que você quer contar?
Francisco: - Bastante coisa.
Pesquisadora: - Sobre as aventuras do Cebolinha?
Francisco: - Contar que aconteceu com ele. (afirmando com a cabeça)
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 28/4/2015).
Outra evidência da grande familiaridade da criança com as
narrativas está presente no diário de bordo da pesquisadora.
[...] quis escrever (a narrativa) a partir de uma imagem que achou
interessante e usa personagens das histórias em quadrinhos para
produzi-la (DIÁRIO DE BORDO, 26/4/2015).
137
Fica evidente que as narrativas são muito difundidas até o ano
inicial do ensino fundamental II, tanto para a criação de textos quanto para
os atos de leitura; sobre isso vale ressaltar que elas são bem aceitas pelas
crianças e suprem as suas necessidades de criação, de criação e de uso da
imaginação. Contudo, a escola não pode limitar sua oferta de gêneros do
enunciado apenas aos gêneros narrativos. Os gêneros eleitos para as
criações textuais e para os atos de leitura devem estar inseridos num
projeto maior, que é o projeto enunciativo das crianças. Esse projeto surge
por meio de seus interesses, de suas curiosidades, de suas angústias e, por
isso, integra-se ao projeto que se encontra em andamento naquele
determinado momento da vida das crianças.
Para a escola não destituir os atos enunciativos de seus papéis
sociais, deveria entendê-los a partir de suas funções, pois “A mais constante
de suas características é a intencionalidade, o fato de se integrarem num
projeto que esboça de antemão suas modalidades e seus objetivos [...]”
(FOUCAMBERT, 1998 p. 105). Portanto, se há uma finalidade em
todos os atos enunciativos, eles teriam que ser direcionados aos propósitos
inerentes aos múltiplos contextos em que se encontram.
Mais uma estratégia bastante ocorrente, relacionada à escolha dos
gêneros do enunciado durante as criações textuais, foi o uso de modelos.
As crianças, mesmo conhecendo as características do gênero do enunciado
escolhido para sua criação, quase sempre desejavam pesquisar seus modelos
para não esquecerem nenhuma delas. Nesse caso, os modelos foram
buscados, pois de acordo com o ponto de vista de Orlandi (1988, p. 91),
“A reprodução de modelos é previsível e até desejável em certas situações
de linguagem [...]”.
Além disso, durante a pesquisa, os outros casos em que os modelos
de gêneros do enunciado foram solicitados ocorreram no momento em
que as crianças tinham uma vaga ideia sobre as características do nero
do enunciado, entretanto conheciam suas funções sociais. Por exemplo,
138
esses casos se deram na elaboração de cartas, de e-mails, de bilhetes, de
convites e de histórias em quadrinhos.
Especificamente no episódio em que Emerson queria escrever para
seus amigos, foram pesquisados na internet vários modelos de narrativa de
aventura, entretanto, a criança não conseguia -los como possibilidades
enunciativas para a sua criação enquanto não fosse indicado um modelo
julgado com “correto” pela pesquisadora.
Emerson: - Estou em dúvida!
Pesquisadora: - Por quê?
Emerson: - De que jeito é mais certo?
Pesquisadora: - Todos estão certos.
Emerson: - Até aquele de trás pra frente?
Pesquisadora: - Sim, se quiser pode começar a contar a história pelo
final.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 26/4/2015).
Como um dos objetivos da pesquisa era deixar que as crianças
fizessem suas escolhas enunciativas de acordo com suas necessidades, a
pesquisadora absteve-se de escolher em lugar do aluno e tentou fazer com
que ele escolhesse um modelo para sua criação. Para isso, mais uma
tentativa foi feita, no trecho abaixo.
Emerson: - Qual você acha melhor?
Pesquisadora: - Todos são possibilidades de escrita para seu texto.
Emerson: - De qual você gosta?
Pesquisadora: - Gostei de quase todos os que lemos. E você?
Emerson: - Eu também.
Pesquisadora: - Vai ter que escolher o que mais combina com o que
quer escrever.
Emerson: - E se eu escolher fazer assim? (apontando para o modelo
de narrativa com cronologia linear).
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 26/4/2015).
139
Como visto, no momento das criações, apegadas às ordens dos
professores, as crianças são acostumadas a obede-las e a fazer conforme
os conselhos dos docentes; por isso, no momento em que têm a
oportunidade de fazer suas escolhas sentem inúmeras dificuldades.
Esse dado também se encontra presente no diário de bordo da
pesquisadora, algumas vezes ao longo da pesquisa e quase sempre se
referindo à maioria das crianças.
Superadas as dificuldades de fazer escolhas por quase todos os alunos,
as produções fluem, apesar das dificuldades que se apresentam neste
momento de apropriação da linguagem escrita em que as crianças se
encontram (DIÁRIO DE BORDO, 26/4/2015).
Nesse e em outros trechos do diário de bordo, estão relatados
momentos de muita dificuldade em convencer os alunos a fazerem suas
próprias escolhas tanto dos gêneros do enunciado quanto dos modelos para
esses gêneros, porque as crianças não estão acostumadas com a liberdade
e com a autonomia para criarem o que realmente querem e do modo como
acham melhor. Ainda sobre a apresentação de modelos às crianças,
Leontiev (1978) ressalta que eles lhes oferecem uma visão do todo e, por
isso, possibilitam uma aprendizagem não alienada, uma vez que, por meio
deles, desde o início se conhecerá o fim para o qual se colocam em
atividade.
Além disso, apenas conhecendo o fim para o que se propõe é
possível que se faça um planejamento para que esse fim se materialize. Ao
oferecer modelos para as crianças, torna-se possível que elas façam uso de
estratégias para planejarem de forma mais elaborada seus textos, pois “A
criança parte do conhecido, do já constituído, mas o manipula à sua
maneira essa manipulação permite novas descobertas e a reformulação do
sistema linguístico” (MAYRINK-SABINSON, 1997, p. 193).
140
Portanto, para proporcionar a criação não alienada dos atos de
escrita pelas crianças é preciso mostrar a elas como se materializa o produto
da finalidade com a qual elas escreverão. Sobre isso, Vigotski (2010) afirma
que a forma ideal dessa atividade “[...] deverá aparecer no final de seu
desenvolvimento”. Ele a define como ideal no “[...] sentido de que ela
consiste em um modelo daquilo que deve ser obtido ao final [...] é esta
a forma que ao final se alcançará” (VIGOTSKI, 2010, p. 693).
Por isso, é muito importante que em grande parte das atividades
de criação propostas pela escola os modelos estejam presentes, pois a partir
de sua materialização e análise as crianças passam a ter mais segurança para
criar seus textos. Entretanto, o cuidado de não limitar as possibilidades
criativas das crianças deve ser tomado. A elas precisa ser dito que existem
outras possibilidades e maior liberdade para a criação de cada gênero do
enunciado de acordo com suas esferas e eventos de troca verbal.
Em relação ao que foi dito, as amarras geradas pela apresentação de
modelos também estiveram presentes no percurso desta pesquisa. A partir
do momento em que foram apresentadas várias opções de modelos de
textos para a escrita de determinados gêneros, a insegurança para escolhê-
los era gerada e, para tentar saná-la, as crianças sempre pediam a opinião
da pesquisadora. Fica evidente que aos poucos elas vão se adaptando às
propostas fechadas presentes nas escolas, trazidas pelos materiais didáticos
e, quando se tenta modificar isso e trazer alguma liberdade ou
possibilidade, são gerados conflitos, pois essa prática destoa muito daquelas
a que estão habituadas.
De volta ao fato, mencionado anteriormente, de que a necessidade
de criação do ato de escrita por Francisco (11 anos,ano) foi gerada por
uma ilustração, percebeu-se, durante a pesquisa, que as crianças dessa faixa
etária se sentiam motivadas a escrever sempre que encontravam ilustrações
e imagens com as quais de identificavam, de certo modo por essas imagens
não estarem tão presentes quanto estiveram nos anos anteriores de sua
141
escolarização. Como constatação disso, tem-se a primeira versão da
narrativa de Francisco, criada a partir da imagem de Cebolinha gritando,
com o Sansão (coelhinho de pelúcia da Mônica) em sua mão direita, numa
caverna com um leão e um tigre olhando fixamente para ele com as garras
de fora.
Figura 1 Primeira versão da narrativa de Francisco para seus colegas
ERA UMA VEZ UM MENINO CHAMADO CEBOLINHA ELE FOI NA
CASA DE SEU AMIGO CASCÃO IELE FALOU VAMOS APRONTAR COM
AMONICA SIM ELES FORAM NA CASA DELA E
FALOU VAMOS
BRINCAR SIM ESPERA VOU PEGAR MEU COELINHO TABOM PROMTO
JAPEGEI DO QUE VAMOS BRINCAR DE LANÇA COELHO TA BOM
MAS QUE COELHO COM O SEU HORA TA BOM VAMOS ELES
COMEÇARAM AJOGAR UM PARA O OUTRO ETEVE UMA HORA
CEBOLINHA PEGOU O COELHO E SAIU CORRENO PARA UM LUGAR
ESCURO QUE ELE NÃO SABIA ONDI
Fonte: registros da pesquisadora em 26/04/2015.
A necessidade enunciativa foi gerada pela escolha de uma imagem
pela criança, corroborando a ideia de que quando há uma finalidade real
de escrita para o outro, a autoria é motivada e isso colabora para que a
versão final do texto se apresente de modo mais bem elaborado. Tendo em
vista que os processos intelectuais se relacionam diretamente à motivação
da criança para com a atividade, para que a aprendizagem realmente se
efetive é impreterível criar necessidades de escrita, porque “só sob a
condição de que apareçam motivos estritamente cognoscitivos é possível
chegar ao domínio verdadeiro, e não formal das operações do
pensamento teórico” (LEONTIEV, 1978, p. 225). Caso contrário, se essas
operações forem assimiladas de modo formal permanecerão apenas na
superfície da memória por algum tempo, por não terem sido assimiladas
142
pelos motivos concretos que impulsionam as crianças a estudar. Os
motivos são determinados pelo sentido que as tarefas têm para elas.
De acordo com Asbahr (2005) uma necessidade só pode ser
satisfeita quando encontra um objeto de desejo, que é chamado de
motivo, por impulsionar uma atividade, ao articular uma necessidade a
um objeto. Essa articulação é de extrema importância, pois objetos e
necessidades isolados o produzem atividades.
Durante a pesquisa, foi constatado que as necessidades nas crianças
são criadas de várias maneiras, tais como: por meio de elementos visuais,
por meio de problematizações do professor, por meio de necessidades
enunciativas que as crianças trazem de casa ou de outros lugares fora da
escola, por meio de escolha dos outros (interlocutores) no processo de
trocas verbais. No entanto, seus textos apenas se materializam com a
escolha de um gênero do enunciado. Por isso, foi muito enfatizada nesse
subitem a importância de oferecer os mais variados gêneros do enunciado
para as crianças conseguirem escrever de forma cada vez mais independente
tudo o que necessitam, tanto na escola quanto nas mais diversas situações
de suas vidas.
A importância da escrita para o outro nos atos enunciativos
“[...] quando eu me olho no espelho, em meus olhos olham olhos alheios; quando
me olho no espelho não vejo o mundo com meus próprios olhos e desde o meu
interior vejo a mim mesmo com os olhos do mundoestou possuído pelo outro”.
(Carlos Alberto Faraco, 2014 p. 43)
“Como sabemos, para que o diálogo se configure é necessário, em suma, que
haja um descontrole espontâneo, essencial e estruturador. A partir de dois que
dialogam surge uma terceira coisa, diferente da soma do que foi dito pelas duas
partes e, muitas vezes, essa coisa é inesperada, contraditória e impredizível”.
(Ricardo Azevedo, 2013, p. 8)
143
Em consonância com o que foi dito nas epígrafes acima, Geraldi
(2015) enfatiza que “a linguagem não se presta apenas à comunicação. É
nas interações com os outros que ela se materializa [...] fazendo que
sejamos o que somos sujeitos sociais, ideológicos, históricos, em processo
de constituição contínua” (GERALDI, 2015, p. 10). Ao encarar o outro
como ponto de suma importância para o processo de trocas verbais, o
objetivo da escrita passa a ser compreendido, que é feita para o outro, em
forma de diálogo. Assim, o sujeito se relaciona com a linguagem por meio
de sua relação com o outro, e precisa vivenciar essa alteridade, para se
constituir.
No início da primeira criação textual desenvolvida por Francisco,
sua preocupação inicial foi com a escolha dos interlocutores de sua criação:
alguns colegas da sua classe. De acordo com Bakhtin (2006), a cada
gênero do enunciado e a cada situação de trocas verbais existe uma
concepção típica de interlocutor. Esse trajeto pode ser observado no
diálogo a seguir:
Pesquisadora: - Você já sabe o que quer escrever?
Francisco: - Ainda não. Posso ver o que o José escreveu?
Pesquisadora: - Pode. Por que quer ver?
Francisco: - Ele estava com o papel na minha classe.
Pesquisadora: - Ahmm!
Francisco: - Vou escrever para meus amigos.
Pesquisadora: - De sua turma?
Francisco: - É!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 28/4/2015).
No momento do planejamento da escrita de seu texto, Francisco,
que havia tido contato com o texto escrito por José, assim como seu
colega, tinha como necessidade inicial escrever para alguns amigos de sua
turma; apenas depois da escolha de seus interlocutores preocupou-se em
escolher o gênero do enunciado e o seu conteúdo.
144
Sobre as redações escolares, Geraldi (1984) enfatiza que elas
recebem influência dos estudos gramaticais tradicionais em que não são
consideradas as suas condições de criação e, nesse sentido, a leitura não é
vista como parte do processo de escrita. Apaga-se a existência de processos
intertextuais, tornando a atuação sobre o texto algo restrito às atividades
de revisão formal de sua superfície.
Dessa forma, esquece-se que os sentidos socialmente construídos
são os verdadeiros objetos do processo do ensino e, em vez disso, tal
processo atém-se aos elementos estritamente linguísticos dos textos.
Substituir a “redação” por produção de textos implica admitir este
conjunto de correlações, que constitui as condições de produção de
cada texto, cuja materialização não se sem instrumentos de
produção”, no caso os recursos expressivos mobilizados em sua
construção (GERALDI, 1998, p. 22)
Sobre a falta de consideração dos instrumentos de criação das
redações escolares pela escola, Marcuschi (2008, p. 78) aponta
especificamente o problema de não se saber a quem a criança se dirige ao
escrever, pois escreve textos sempre para o mesmo interlocutor (o
professor) e nunca troca de auditório, de tal forma que não é levada a fazer
seleções lexicais diversas e nem a criar em diferentes níveis de formalidade.
Nesse processo, o objetivo dos atos de escrita na escola se tornam
artificiais e se perdem por se desprenderem da realidade, já que desde o
início o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas,
em prol das quais ele é criado. Desse modo, o enunciador aguarda a
resposta de seu outro. “É como se todo enunciado se construísse ao
encontro dessa resposta” (BAKHTIN, 2006, p. 301).
Sendo assim, para quem cria os enunciados, o papel do outro é
impreterível, pois ele não é visto como um ser passivo, mas como
participante ativo do enunciado. Como a linguagem se constitui por meio
145
da interação entre os interlocutores, espera-se sempre uma resposta do
outro. “O falante termina o seu enunciado ao passar a palavra para o outro
ou dar lugar à sua compreensão ativa e responsiva” (BAKHTIN, 2006, p.
275); por isso, não se pode ignorar a existência do outro, pois é ele quem
orienta a condição do “eu” num mundo de coexistência de infinitas
réplicas interligadas.
No momento de sua criação, Betânia (12 anos, 6º ano) já sabia
para quem queria escrever e foi logo dizendo:
Betânia: - Hoje, vou escrever para minha mãe.
Pesquisadora: - Por que quer escrever para a sua mãe?
Betânia: - Porque ela acabou de ter um bebê.
Pesquisadora: - O que você quer escrever para ela?
Betânia: - Um bilhete agradecendo.
Pesquisadora: - sabe o que vai dizer no bilhete?
Betânia: - Sei, sim! Eu te amo, mamãe!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 08/5/2015).
Nesse enunciado, encontra-se materializada a necessidade de
Betânia em se garantir como filha, apesar da garota ter assumido como
objetivo de seu bilhete a gratidão pelo nascimento da irmã, nota-se que o
sentimento que envolve esse objetivo, antes de qualquer outra questão,
seria a necessidade de garantir seu espaço e a criação de um enunciado
escrito; diante do histórico de dificuldades de Betânia ao criar atos de
escrita, ajudaria a mãe a valorizá-la, num momento de angústia para essa
criança por ter a atenção de sua mãe voltada para o bebê que acabara de
nascer.
A seguir, é apresentada a primeira etapa da escrita do bilhete de
Betânia para a sua mãe:
146
Figura 2 Primeira versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Nessa primeira versão do bilhete, é possível compreender que as
crianças têm muito para dizer ao escrever para interlocutores reais; é
perceptível os interesses, mesmo que implícitos, e as necessidades da
criança que a levaram a criar o bilhete para sua mãe.
Assim, pode ser percebido que a língua pode ser apropriada em
sua completude e em seu fluxo, numa interlocução entre os sujeitos, pela
qual, ao entrarem em contato com as palavras do outro, oferecem a sua
contrapalavra por meio do processo de dialogia, em uma interatividade
complexa e dinâmica.
Tendo isso em vista, a partir desse momento, a análise tem como
enfoque o processo de compenetração, conceito de Bakhtin para explicar
a tentativa que o sujeito faz de ocupar o lugar do outro em um processo
interativo. No caso em questão, a criança autora tentou se colocar no lugar
de sua interlocutora para fazer a revisão de seu enunciado. Mantendo esse
foco, são analisadas as partes da continuação do processo de escrita do
bilhete de Betânia a sua mãe.
Depois da escrita da primeira versão de seu bilhete para a mãe, foi
pedido a Betânia que lesse esse enunciado, anteriormente exposto na
Figura 3. Ao fazer isso, a criança apresentou algumas dificuldades e disse
que algumas palavras estavam escritas incorretamente e que faltavam
alguns pontos no seu texto.
147
Betânia: - Aqui, olha! (Aponta para a palavra ter)
Pesquisadora: - Estou vendo! O que tem aí?
Betânia: - Não é isso que quis dizer!
Pesquisadora: - O que está te incomodando aí?
Betânia: - Quis dizer “te” e não “ter”!
Pesquisadora: - Então, o que tem que fazer agora?
Betânia: - Vou apagar o “erre”.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 8/5/2015).
Depois de ter sido trabalhado o conteúdo do enunciado diante das
particularidades que o constituíam, ou seja, depois de ter sido feito o
estudo epilinguístico, para fazer o estudo metalinguístico dos elementos
gramaticais para que o enunciado seja possível de ser endereçado ao outro,
houve ocasiões em que o próprio aprendiz tentou se transformar em seu
outro no processo de elaboração dos textos escritos e, nesse momento, em
que almejou se colocar no papel de seu interlocutor, afastou-se de si e
contemplou o que escreveu do ponto de vista do outro.
Para Bakhtin (2006, p. 23), esse processo em que o eu deve
vivenciar o que o outro vivencia e procurar colocar-se no lugar dele, na
tentativa de coincidir com ele, é chamado de compenetração.
Considerações sobre esse processo são encontradas no diário de bordo.
Apenas no momento em que a criança atingiu uma relativa
compenetração, as alterações em seus atos de escrita para atender as
necessidades de compreensão da sua interlocutora passaram a ser feitas.
Essas alterações são de inúmeras ordens, de ordem ortográfica, de
ordem semântica, de ordem sintática, em busca da elaboração de um
texto coerente, assim como ocorre nas produções de atos de escrita da
vida (DIÁRIO DE BORDO, 8/5/2015).
Quando esse fenômeno ocorre no processo de escrita dos textos, os
ajustes coesivos em busca da sua coerência tornam-se naturais e
148
corriqueiros, porque, durante esse processo, no momento em que a criança
se coloca na posição do outro e passa a agir como o interlocutor do próprio
texto, começa a perceber a importância de promover atos de reescrita para
que ele seja compreendido.
A seguir, será apresentada outra ocorrência de escrita que teve sua
necessidade suscitada pelo desejo de agradar um outro, no caso a mãe. Será
também apresentado o processo de compenetração pela criança, que
possibilitou a revisão de seu texto, objetivando seu entendimento pelo
leitor, por meio da adequação dos seus elementos coesivos em busca da
elaboração de um enunciado coerente. Dessa forma, pode ser observado o
processo de criação de uma prece, por Yara, endereçada a Deus, para
agradar a sua mãe.
No momento de sua criação, Yara (11 anos, 6º ano) já sabia para
quem iria escrever para Deuscom o objetivo de agradar a sua mãe, e,
consequentemente, qual seria o gênero do enunciado escolhido uma
prece. Além disso, já sabia qual seria o tema de seu enunciado: fazer uma
homenagem e expressar um agradecimento pelo bem estar de sua família.
Nesse momento, foi perguntado a ela a quem entregaria esse texto.
Pesquisadora: - Para quem vai entregar a prece que pretende
escrever?
Yara: - Para minha mãe.
Pesquisadora: - Por quê?
Yara: - Ela gosta de me ver orando.
Pesquisadora:- para ela?
Yara: - Posso imprimir mais cópias?
Pesquisadora: - Pode sim. Para quem?
Yara: - Para minhas irmãs.
Pesquisadora:- Para mais alguém?
Yara: - Sim, para minhas amigas.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 2/6/2015).
149
Conforme o que já foi dito, cada necessidade de troca verbal exige
um gênero do enunciado, que traz consigo uma concepção típica do outro
nesse processo enunciativo. De acordo com Brait & Melo (2014), o
enunciado não é uma abstração linguística, já que ele nasce e vive no
processo de interação social de seus interlocutores; nesse processo, sua
forma é culturalmente estruturada. Assim, o enunciado é constituído de
natureza social, cultural e histórica, que se liga aos enunciados posteriores,
presentes na grande e infinita corrente de enunicados.
Nessa perspectiva, o enunciado e as particularidades de sua enunciação
configuram, necessariamente, o processo interativo, ou seja, o verbal e
o não verbal que integram a situação e, ao mesmo tempo, fazem parte
de um contexto maior histórico, tanto no que diz respeito aos aspectos
que antecedem esse enunciado específico quanto ao que ele projeta
adiante [...] (BRAIT; MELO, 2014, p. 67).
Ficou evidente que as orações faziam parte do cotidiano da aluna
que, pelas constatações tanto do relato anterior quanto do diálogo
transcrito, encontrava-se familiarizada às situações de trocas verbais,
possivelmente orais, que envolviam o sagrado, provavelmente presentes em
sua comunidade religiosa. Essa religiosidade ajudou a criar a necessidade
de criar seu enunciado, uma prece que teria como interlocutor sua mãe e
como tema a gratidão a Deus.
No caso de Yara, por querer agradar sua mãe por meio da criação
de uma prece, pretendeu endereçá-la a outras pessoas com as quais
estabelecia laços familiares e de amizade, a partir de sua percepção de que
esses outros interlocutores iriam gostar de receber seu enunciado; assim
obteria mais êxito com seu enunciado, pois agradaria ainda mais sua
interlocutora real a sua mãe. Nesse caso, a prece teria duas funções:
agradar a mãe e agradecer a Deus por meio de sua distribuição a inúmeras
pessoas, o que disseminaria sua gratidão.
150
Nessa e em outras situações da pesquisa realizada, é perceptível que
a criação de um texto o torna um acontecimento da vida, que sua
característica essencial está no seu desenvolvimento, localizado na fronteira
entre consciências, uma vez que o texto, quando se encontra incluído nas
relações enunciativas estabelece relações dialógicas.
Além disso, de acordo com Bakhtin (2006) cada texto pressupõe
um sistema universalmente aceito e, concomitantemente a isso, cada texto
é único, singular e individual, em consonância com a intenção pela qual
foi criado.
Nesse caso, a pretensão foi elaborar uma prece, gênero do
enunciado escolhido a partir da existência de um outro. Até esse ponto
temos um sistema universalmente aceito, que se estende desde sua
configuração até seus elementos cnicos; e o fato de ser criado por Yara,
com a intenção de agradar sua mãe por meio do agradecimento a Deus
pelas bênçãos que receberam, torna-o algo único e individual.
Em seguida, um diálogo entre a criança e a pesquisadora foi
instituído ainda sobre a questão do seu interlocutor:
Pesquisadora: - Então, você pretende escrever para Deus?
Yara: - Sim, para Jesus.
Pesquisadora: - Para Deus ou para Jesus?
Yara: - Para os dois, Jesus e Deus são a mesma pessoa! Entendeu?
Pesquisadora: - Entendi, e, além disso, você vai entregar para as
outras pessoas?
Yara: - Vou.
Pesquisadora:- Pode me explicar, por que vai fazer isso?
Yara: - É que ele vai saber quando elas estiverem lendo.
Pesquisadora: - Onde aprendeu isso?
Yara: - Na minha igreja.
Pesquisadora:- Como fazem?
Yara: - A gente que as orações para Deus.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 2/6/2015).
151
Pode ser percebido que Yara sentiu a necessidade de escrever seu
enunciado a partir de suas experiências com a oralidade, já que sabia a
função da prece e como se fazia para que ela chegasse até Deus (Jesus), por
meio da oralização da escrita por vários interlocutores, pela via oral. Por
isso ela desejou tirar várias cópias da prece para distribuí-las.
A importância da escrita revela-se por meio dos usos e dos valores
que ela adquire na sociedade. Para Mello (2010 p.190), utilizando a escrita
para cumprir a função social para a qual ela foi criada, a criança se apropria
verdadeiramente desse instrumento cultural, pois protagoniza esse
processo.
Particularmente, no caso em foco, a aluna já trazia seus desejos de
expressão a partir de sua necessidade de criação de uma prece que,
provavelmente, havia sido criada por sua mãe, anteriormente, em casa ou
na igreja.
Figura 3 – Primeira versão da prece de Yara
Fonte: registros da pesquisadora em 02/06/2015.
Portanto, nesse caso, a necessidade de Yara, que surgiu a partir da
vontade de interagir com seu outro, foi considerada na criação de seus
gêneros do enunciado e, dessa forma, sua escrita passou a ter uma função
social compreendida por ela.
A seguir são apresentados atos de reescrita de Yara a partir de sua
tentativa de ocupar o lugar de seus leitores nessa situação enunciativa.
Posteriormente a essa elaboração, ocorreu o seguinte diálogo.
152
Pesquisadora: - Você se lembra de quando fizemos aquela carta para
sua mãe?
Yara: - Mais ou menos.
Pesquisadora: - Gostaria de -la, agora?
Yara: - Sim.
Pesquisadora:- Como fez depois do nome de sua mãe? (Observando
a carta).
Yara: - Coloquei uma vírgula depois dele.
Pesquisadora: - O vocativo tem que ficar separado do resto do texto,
pois é um chamamento, ou anuncia para quem você quer falar.
Yara: - É mesmo! Agora, lembrei.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 2/6/2015).
Depois do diálogo, ao relembrar o uso da vírgula para separar o
vocativo na criação que havia feito para sua mãe, a aluna separou, na
prece, o vocativo (Jesus) com a vírgula.
Figura 4 – Segunda versão da prece de Yara
Fonte: registros da pesquisadora em 02/06/2015.
Nessa criação, por ter sido a sua terceira durante a pesquisa, o valor
da revisão do texto já era entendido e valorizado por ela. De acordo com
anotações do diário de bordo, ela havia percebido que um texto precisa ser
compreendido pelos leitores; por isso, percebeu que ele deveria ser reescrito
até que outros pudessem compreender o que podia ser dito por ele. Assim,
na tentativa de avaliar essa compreensão, a criança autora do texto se
colocou na posição de interlocutor de seu próprio enunciado e tentou se
transformar temporariamente em seu outro do processo enunciativo.
153
[...] todos os nossos enunciados são plenos de palavras dos outros, de
um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário
de perceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem
consigo sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,
reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 2006, p. 295).
Essa reelaboração existe devido ao excedente de visão, que se
com um conjunto de ações que só o outro é capaz de enxergar em relação
ao eu, pois contempla os elementos que ele não pode enxergar, por não
serem acessíveis do lugar que ele ocupa em si mesmo. Isso porque,
conforme Bakhtin (2006, p. 26), se me vejo de dentro de mim, não há
dúvida de que minha imagem externa não consegue compor o horizonte
de minha visão.
Quando se escreve, tem-se uma concepção típica de outro no
processo de interlocução e, a partir disso, são feitas tentativas de ocupar o
lugar do outro, com seus modos de ver o mundo, na tentativa de se fazer
entender, de experienciar a alteridade, de buscar um encontro, de
completar-se pelo outro.
No caso de Yara, sabendo que multiplicar sua gratidão a Deus
agradaria sua mãe, principal interlocutora da prece, objetivou elaborar a
prece e endereça-a ao maior número possível de interlocutores. Assim,
torna-se perceptível os valores da criança e os valores que essa criança
compartilha com seus interlocutores, presentes em seu enunciado, e nesse
caso os valores são os religiosos. Por isso, escolheu o gênero prece, por ter
um modelo oral presente em sua vivência familiar e na comunidade
religiosa da qual faz parte.
Desse modo, fica evidente que a atividade estética começa apenas
quando o eu consegue dar relativo acabamento material a essa
compenetração, que nunca ocorrerá por completo. Quanto a isso, Bakhtin
(2006, p. 24) afirma que se “devo adotar o horizonte vital concreto desse
indivíduo tal como ele o vivencia; faltará, nesse horizonte, toda uma série
154
de elementos que me são acessíveis a partir do meu lugar. O autor encara
a compenetração pura com algo quase impossível à medida que o eu, ao
compenetrar-se na essência do outro, só pode vivenciá-lo nessa categoria,
poisA vida conhece dois centros de valores que são fundamentalmente e
essencialmente diferentes, e ainda assim correlacionados um com o outro;
e é em torno desses centros que todos os momentos concretos do ser são
distribuídos e dispostos” (BAKHTIN, 2010, p. 21).
Já que existem sempre dois centros de valoração distintos, mesmo
que haja a tentativa de se colocar no lugar do outro, no caso, mãe e os
outros interlocutores que receberiam a prece, os amigos religiosos e
cristãos, nunca será possível compenetrar-se por completo. O máximo que
pode existir é a ideia de como esses outros pensam e veem o mundo.
Entretanto, para a escrita desse modelo oral compartilhado entre os
interlocutores, essa tentativa de compenetração impulsiona o desejo de
tornar os elementos coesivos dos textos cada vez mais adequados para sua
compreensão global. Essa preocupação se faz presente em grande parte dos
atos de escrita das pessoas; por isso, também deve estar presente na escola.
Além do uso do vocativo, evidenciado pela criança a partir da
presença de um outro no processo enunciativo, para que seu texto tivesse
um relativo acabamento ao ponto de poder ser entregue para o outro, a
criança teve necessidade de estudar elementos gramaticais, tais como: o uso
dos pessoais do caso oblíquo, o usos dos pronomes demonstrativos, o uso
dos “porquês” e as estratégias de colocação da vírgula. Alguns desses
momentos serão evidenciados no subitem 6.2 intitulado As contribuições
do estudo epilinguístico para a apropriação da escrita.
Esses estudos foram feitos por meio de análise de modelos de
criações textuais da internet e das criações dos colegas participantes da
pesquisa, da busca em gramáticas e em sites voltados para o estudo dos
aspectos gramaticais da ngua portuguesa. Além disso, estudou-se por
meio de explicações proporcionadas pela pesquisadora e de seu auxílio
155
durante os processos de revisão e reescrita dos enunciados criados pelas
crianças.
Observando a versão final da escrita da prece de Yara, que foi
entregue aos seus familiares e amigos é possível ver a necessidade de escrita
para o outro.
Figura 5 – Versão final da prece de Yara
Fonte: registros da pesquisadora em 02/06/2015.
A partir da distribuição das preces por Yara, houve uma resposta
de seu outro, Rosângela, amiga de sua mãe, que suscitou uma nova criação;
observe-se a resposta à prece a seguir.
Figura 6 – Resposta à prece de Yara
Minha querida Yara,
como você está? E a sua família? Como vai a sua irmã?
Gostei muito de receber o texto que você escreveu. É maravilhoso agradecer a
Deus pelas graças recebidas. Fiquei muito feliz com seu texto.
Que Deus abençoe a você e a toda a sua família. Um abraço bem forte.
Rosângela.
Fonte: registros da pesquisadora em 08/06/2015.
156
Nesse momento, ao demonstrar sua alegria ao receber a prece de
Yara e ao responder a sua prece com um bilhete de agradecimento, o seu
outro Rosângela , no processo de trocas verbais, gerou a necessidade de
criação de novo enunciado de Yara para sua interlocutora, pois ela fez
perguntas que a criança desejou responder.
Yara: - Tenho que responder esse bilhete.
Pesquisadora: - Então, esse é o texto que fará hoje?
Yara: - Sim
Pesquisadora: - sabe o que quer dizer?
Yara: - Sim, falar sobre minha família, minha irmã.
Pesquisadora: - Que estão todos bem?
Yara: - É. Também quero dizer “obrigada”.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 8/6/2015).
Em seguida foi criado um bilhete por Yara para Rosângela,
amiga de sua mãe.
Figura 7 – Versão final do bilhete de Yara para Rosângela
Minha amiga Rosângela,
Estamos bem, a minha irmã está fazendo o tratamento, mas está bem! Obrigada pelo
bilhete.
Fique com Deus, beijo!
Yara.
Fonte: registros da pesquisadora em 12/06/2015.
Impulsionada pela vontade de responder ao bilhete, trazida pelo
bilhete- resposta de sua interlocutora, que carregava consigo uma vivência
comum entre elas, advinda da situação extraverbal que compartilhavam,
diante do pressuposto existente nessa troca verbal, no caso, a doença da
irmã de Yara; a menina escreveu várias versões até chegar nessa versão final,
157
a partir de uma finalidade real indicar que todos estavam bem, até mesmo
sua irmã.
Ainda com relação à temática do outro no processo de trocas
verbais, houve uma situação dialógica em que Francisco (11 anos, 6º ano)
escrevia um bilhete para sua mãe e não havia colocado nenhum vocativo
para iniciar essa interlocução. Foi perguntado a ele o seguinte:
Pesquisadora: - O que falta no seu texto?
Francisco: - Está faltando escrever “mãe”.
Pesquisadora: - Sim, ou de algum outro jeito que vo queira cha-
la.
Francisco: - Não precisa.
Pesquisadora: - Por que você não quer escrever o vocativo de seu
bilhete?
Francisco: - Porque eu vou entregar para ela.
Pesquisadora: - Mesmo assim, se esse bilhete sumir como vão saber
que é pra ela?
Francisco: - No texto já tá escrito.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 25/5/2015).
Nesse caso é percebida a influência do outro sobre a construção do
enunciado. Traços de autoria podem ser compreendidos na composição
estilística dos enunciados por sofrerem influência do extraverbal; sobre isso
o diário de bordo registrou que
Nesse momento, a criança recusava-se a colocar o vocativo em seu
bilhete, mesmo sabendo que esse elemento faz parte das características
desse gênero discursivo, pois para ela o fato de entregar o bilhete à sua
mãe excluía a necessidade de invocá-la no início de sua enunciação,
mesmo que causasse a transgressão de uma das características mais
marcantes desse gênero do discurso (DIÁRIO DE BORDO,
25/5/2015).
158
Pelo relato da pesquisadora, a criança, ao excluir o vocativo de sua
criação, pensava em como se daria o contexto de recepção de seu bilhete,
muito mais do que em obedecer à estrutura desse tipo de texto. Por meio
desse ato, pode ser percebido que essa criança já estava escrevendo imersa
no contexto enunciativo e imaginava como seria a recepção de seu texto
por seu interlocutor no futuro; daí o impasse criado por esse ato entre
alteridades.
Figura 8 – Primeira versão do bilhete de Francisco para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 25/05/2015.
A ideia do outro no processo de trocas verbais, de acordo com Brait
& Melo (2014, p. 72), faz muita diferença no sentido de conceber os
enunciados. Ela aparece nas marcas enunciativas de um sujeito situado
num tempo e num lugar histórico escrevendo para alguém, “[...] de uma
posição discursiva que circula entre discursos e faz circular discursos”
(BRAIT; MELO, 2014, p. 72).
Além disso, a ideia do outro encontra-se estritamente vinculada às
circunstâncias, à posição social e ao relacionamento pessoal dos parceiros
que, no caso supracitado, se configura como de grande intimidade entre
os interlocutores. E isso possibilitou a abertura de margens para a ideia de
supressão do vocativo. “Se por um lado há o estilo elevado, estritamente
oficial, há também o estilo familiar que comporta vários graus de
familiaridade” (BRAIT, 2014, p. 89).
Para o pensamento bakhtiniano, o estilo é composto de pelo menos
duas pessoas ou de uma pessoa e de um grupo social que tenha um
159
representante autorizado, o outro, ou seja, o estilo depende de como o
autor compreende seu interlocutor.
[...] em qualquer fenômeno concreto da linguagem: se o examinarmos
apenas no sistema da língua estamos diante de um fenômeno
gramatical, mas se o examinarmos no conjunto de um enunciado
individual ou do gênero do discurso se trata de um fenômeno
estilístico. Porque a própria escolha de uma determinada forma
gramatical pelo falante é um ato estilístico (BAKHTIN, 2006, p.
269).
Por isso, de acordo com Bakhtin, para se englobar todos os aspectos
do estilo, deve-se obrigatoriamente analisar todo o enunciado e, ainda,
“[...] analisá-lo dentro da cadeia da comunicação verbal de que o
enunciado é apenas um elo inalienável” (BAKHTIN, 2008, p. 317), uma
vez que
A língua materna sua composição vocabular e sua estrutura
gramaticalnão chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários
e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos
e nós mesmos reproduzimos na composição discursiva viva com
pessoas que nos rodeiam (BAKHTIN, 2006, p. 283).
Como a compreensão se dá em forma de diálogo, na relação com
o outro, em que a linguagem é viva, por ser constituinte de uma situação
em determinada esfera social, o sujeito assume uma posição resultante de
um processo dialógico, em atitude sempre responsiva.
Ainda sobre o fato de Francisco ter se negado a usar o vocativo em
seu bilhete, pode ser trazida à baila a questão da plasticidade dos gêneros
do enunciado, que, de acordo com Bakhtin (2006), se evidencia, em sua
própria determinação, pelo predomínio da função sobre a forma. Dito de
outro modo, os gêneros do enunciado surgem, modificam-se, situam-se e
160
integram-se, funcionalmente, nas situações extraverbais e nas culturas das
quais fazem parte. Pelos usos de seus sujeitos, a língua modifica-se e o que
era considerado incorreto no passado já está inserido nas gramáticas e
dicionários do presente, porque
Da mesma forma como a cultura é atravessada por deslocamentos e
transformações, as formas discursivas também o suscetíveis de
modificações. Para Bakhtin, os gêneros discursivos sinalizam as
possibilidades combinatórias entre as formas de comunicação oral
imediata e as formas escritas (MACHADO, 2014, p. 161).
Isso acontece devido a um processo contínuo e interminável de luta
entre forças centrípetas que estabilizam e estandardizam os elementos
linguísticos e forças centrífugas que propulsionam as manifestações
linguísticas que estavam à margem para modificarem o modo de falar
oficial, por trazer em si a necessidade latente de subverter a ordem das
coisas e, consequentemente, dar vida e movimento às coisas do mundo.
Portanto, os gêneros do enunciado transformam-se por meio de
um movimento entre as forças centrípetas, que respondem pela
estabilidade e integridade dos gêneros, e as forças centrífugas, que atuam
para possibilitar a versatilidade e instabilidade desses gêneros do
enunciado, por meio de um processo transgressivo chamado
carnavalização, que, num contexto mais amplo da ambivalência, nos
desviariam do seu curso comum.
Sobre essa temática, segundo Marcuschi (2005, p. 25), os gêneros
devem ser vistos na relação com as práticas sociais, os aspectos cognitivos,
os interesses, as relações de poder, as tecnologias, as atividades enunciativas
no interior da cultura. Eles mudam, fundem-se, misturam-se, para manter
sua identidade funcional com inovação organizacional. Dessa forma, seria
quase impossível identificar, em dados numéricos, todos os gêneros
161
existentes, assim como é também pouco provável conhecê-los em sua
totalidade.
Assim, ao caracterizar o gênero por sua estabilidade relativa,
Bakhtin admite sua contínua mobilidade e mutabilidade e lança as bases de
uma teoria que abandona a visão tradicional de modelos bem demarcados,
que estabelecem uma estrutura rígida baseada em critérios formais
limitados ao tempo e ao espaço sincrônicos.
No que tange à criação textual, pretendeu-se ultrapassar as práticas
de redação escolar, proporcionando às crianças a possibilidade de
elaboração de enunciados com função social, direcionados aos outros
(interlocutores reais), pois
São conhecidas as condições de realização da redação clássica. A partir
de um tema trabalhado ou apenas sugerido os alunos escrevem
seguindo um modelo prévio de estrutura composicional e usando um
estilo de linguagem considerado adequado, para atender ao propósito
pedagógico de aprender a escrever (MARCUSCHI, 2008, p. 64).
Porque o gênero do enunciado redação escolar nasce e circula
apenas dentro da escola, sua relação é de interação endógena e ritualizada,
pois considera apenas as relações entre a função aluno e a função professor,
em situações que apenas imitam as funções dos gêneros do enunciado reais.
Sendo assim, a redação escolar não leva a criança a desenvolver-se como
sujeito autônomo, capaz de realizar-se como autor do gênero adequado às
situações de trocas verbais das quais participa, adaptando-se também às
circunstâncias enunciativas desses gêneros, entretanto sem abrir mão de
sua subjetividade. Na prática da redação escolar,
a comunicação desaparece quase totalmente em prol da objetivação e
o gênero torna-se uma pura forma linguística cujo objetivo é seu domínio.
Em razão desta inversão, o gênero, instrumento de comunicação,
162
transforma-se em forma de expressão do pensamento, da experiência
ou da percepção. O fato de o gênero continuar a ser uma forma
particular de comunicação entre alunos e professores não é,
absolutamente, tematizado; os gêneros tratados o, então, desprovidos
de qualquer relação com uma situação de comunicação autêntica.
Nessa tradição, os gêneros escolares são pontos de referência centrais
para a construção, através dos planos de estudo e dos manuais, da
progressão escolar, particularmente no âmbito da redação/
composição. Sequências relativamente estereotipadas balizam o
avanço através das séries escolares, sendo a mais conhecida e canônica,
que pode, entretanto, sofrer variações importantes, a “descrição
narraçãodissertação” [...] (DOLZ; SCHNEUWLY, 1999, p. 9).
Desse modo, na cena enunciativa escolar, não é possível ver
interlocutores empenhados em dizer alguma coisa para o outro ou em
compreender a palavra desse outro, tentando concretizar isso por meio da
escolha do gênero mais adequado para seu ato enunciativo, de modo a
cumprir as finalidades e os efeitos almejados nas situações reais de troca
verbal. Tal situação se observa porque,
Submetendo a escrita dos alunos a padrões formais inflexíveis e à
ausência de uma perspectiva discursiva, a redação escolar é um gênero
que só funciona na escola, para cumprir objetivos pedagógicos em geral
unilaterais: o professor manda, e o aluno escreve por obrigação
(COSTA VAL, 2016, p. 64).
Esse tipo de texto valoriza os padrões formais e não favorece a
formação de sujeitos que compreendam as especificidades do momento
das trocas verbais, nas enunciações que definem os gêneros a serem
elaborados. Todavia, não se deve esquecer que embora o que circule na
escola não sejam textos empíricos que circulam no espaço social, esses
gêneros não devem ser os únicos contemplados por ela.
163
Em contrapartida à ênfase dada nas redações escolares pela escola,
foi observado, durante a pesquisa, que as variedades linguísticas usadas
pelas crianças resultaram da adequação de suas formas de expressão às
finalidades específicas condicionadas pelas situações extraverbais nas quais
elas se encontravam inseridas. Essa adequação dava-se a partir de escolhas
que se tornaram cada vez mais conscientes e constitutivas do saber
linguístico individual de cada criança participante da pesquisa.
164
165
O auxílio dos suportes digitais na criação dos
gêneros do enunciado
“Talvez este também seja o grande desafio da escola contemporânea: formar
pessoas que tenham acesso aos recursos tecnológicos e, ao mesmo tempo e de
forma equivalente, uma sólida cultura humanista”.
(Ricardo Azevedo, 2013, p. 7)
Segundo Marx (1989), os instrumentos de pedra foram
encontrados nas cavernas humanas mais antigas. Ao lado de pedra,
madeira, osso e conchas trabalhados, o animal domesticado e, portanto, já
modificado por trabalho; tudo isso demonstra o início da história humana.
Ao apropriar-se da cultura já construída por outros homens, o homem se
objetiva e cria novas necessidades, que, na atividade humana, darão origem
a novos instrumentos e a novos processos cognitivos. Os resultados das
atividades humanas materializam-se nos objetos e instrumentos criados
pelo homem nas suas relações com a vida.
Para Vigotski (2000a, 2000b, 2001, 2006, 2009, 2010), por meio
dos objetos, dos instrumentos, da atividade humana, o homem se
desenvolve cognitivamente e se humaniza. Na relação do homem com a
cultura, o homem e a cultura são agentes na formação e desenvolvimento
da humanidade, dado que, no processo de interiorização do interpsíquico
para o intrapsíquico, a consciência humana, que é de natureza social, se
constitui.
Na atividade social, o sujeito histórico pertencente a uma cultura
apropria-se dos conhecimentos presentes em seu meio e assim desenvolve
cada vez mais suas capacidades, em um processo em que se torna humano
166
e crítico. Marx (1989) evidencia que o homem, no momento em que
conhece o processo que o aliena, tem a chance de transformar sua prática
em busca da superação dos antagonismos da sociedade de classes.
Dessa forma, duas vias de desenvolvimento cultural do homem,
que interagem e se unem. Uma via que se refere aos processos de domínio
dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento, como
o desenho, a linguagem, o cálculo. E outra via, de base biológica, que
constitui funções elementares com as quais ele nasce (memória, atenção
etc.).
No processo histórico de desenvolvimento humano ocorre a
complexificação das relações criativas, e, consequentemente, os processos
educativos seguem as necessidades que surgem nessa nova etapa do
desenvolvimento social e histórico da humanidade.
Ainda dentro das complexidades das relações criativas, com o
advento da escrita, desde o seu surgimento, o homem sempre desenvolveu
instrumentos que possibilitassem sua prática, elaborou tecnologias e
buscou suportes para a materialização de seus textos.
Além disso, o homem sempre teve a necessidade de adaptar suas
práticas aos instrumentos culturais, transformações como a invenção da
escrita “no mundo da oralidade, aparição do códice no mundo dos rolos
ou a difusão da imprensa no mundo do manuscrito obrigaram a
semelhantes, se não idênticas, reorganizações das práticas culturais”
(CHARTIER, 2009b, p. 9). O homem do século XXI reorganiza suas
práticas, mais uma vez na história da cultura humana, com os textos em
tela, cujos processos de leitura e de escrita não são necessariamente lineares,
com as possibilidades de ligações hipertextuais.
No século XXI, em que os atos de escrita ocorrem dos mais diversos
modos possíveis e em inúmeros suportes, por meio de diferentes
instrumentos, o que se põe como um grande desafio para a escola e para
estudiosos da área da educação é aproximar o domínio das tecnologias
167
digitais aos processos de ensino e aprendizagem, porque eles estão
presentes na vida das pessoas, que muito tempo os instrumentos
culturais digitais abandonaram suas características de meros suportes
tecnológicos e criaram suas lógicas próprias, suas formas de linguagem e
maneiras particulares de materializar as trocas verbais, relacionadas às
capacidades perceptivas, emocionais, cognitivas, intuitivas e enunciativas
dos sujeitos.
Com base nesse pensamento, Kenski (2004, p. 22) ressalta a
amplitude e a aplicabilidade dos recursos midiáticos na educação, por
proporcionarem aos docentes a construção de didáticas inovadoras,
facilitando o desenvolvimento de capacidades dos discentes, considerando
que muitos desses recursos fazem parte do seu meio sociocultural.
Essa constatação impõe que seja repensada a necessidade de
implantar as novas tecnologias no meio escolar, como uma ferramenta
didática interativa e significativa para o processo de ensino e aprendizagem.
Um novo tempo, um novo espaço e outras maneiras de pensar e fazer
educação são exigidos na sociedade da informação. O amplo acesso e o
amplo uso das novas tecnologias condicionam a reorganização dos
currículos, dos modos de gestão e das metodologias utilizadas na
prática educacional (KENSKI, 2004, p. 92).
Como os aparelhos digitais atendem às necessidades da sociedade
contemporânea, caracterizada pela pressa e necessidade de economia de
tempo, essas novas maneiras de ler e escrever que permeiam a
contemporaneidade fazem surgir novos gêneros do enunciado,
possibilitados pela presença de novas tecnologias aliadas ao universo
digital. Sobre essas possibilidades, Chartier (2002) aponta que “Numa
dada época, o cruzamento desses vários suportes dirige a maneira de pensar
e de sentir, que delineiam configurações intelectuais específicas”
(CHARTIER, 2002, p. 37).
168
Ao retomar o que foi dito, fica evidente que vários foram os
instrumentos e os suportes utilizados pela escola, ao longo da história, para
incentivar as crianças a aprenderem atos de leitura e de escrita de textos,
como “[...] pena de ganso, pluma metálica, lápis, lousa, cadernos, folhas
soltas, quadro-negro, borracha, entre outros” (FRADE, 2009, p. 61).
Esses instrumentos e suportes, que fazem parte das práticas sociais
internas e externas da escola, podem alterar o modo como se aprende e
como se tomam as decisões em torno do ensino da leitura e da escrita.
Entre essas práticas devem ser incluídas, atualmente, o uso do computador
como suporte de texto e como modo de inscrição da escrita (CHARTIER,
2002).
Na pesquisa relatada foi almejado explorar o potencial dos suportes
digitais de textos para a escrita como mais um instrumento de
alfabetização, entre tantos outros já utilizados e conhecidos pela escola,
colocando em evidência indícios sobre aspectos cognitivos e físicos
relacionados ao ato de escrever e ler nesses novos suportes.
Os aparelhos digitais podem ser considerados como possibilidades
de estabelecimento de trocas de imagens, sons, textos, de forma simultânea
e instantânea, não apenas como fonte de diversão e informação, mas como
possibilidade de emancipação do homem, sendo usados para ler e escrever
notícias, textos literários, textos científicos, poesias, filmes, obras de arte,
para buscar informações etc. Eles podem ter funções múltiplas como, por
exemplo, serem usados como uma máquina de escrever muito eficiente,
que facilita correções e permite revisões de texto.
Em relação ao uso dos aparelhos digitais na educação, de acordo
com Almeida & Silva (2011, p. 3), nas últimas décadas, pesquisas de
diferentes partes do mundo ocidental, que se dedicaram a esse tema,
afirmam que esse uso traz em seu bojo a pluralidade, inter-relação, abertura
e intercâmbio crítico de ideias, concepções, experiências e saberes advindos
de distintas áreas de conhecimento, que se integram às tecnologias e
169
interferem nos modos de pensar, fazer e se relacionar das pessoas. Assim,
a integração das tecnologias ao processo ensino e aprendizagem, com a
utilização dos meios de comunicação e interação, pode favorecer a
aprendizagem e o desenvolvimento das crianças.
A tecnologia aliada à educação deve ser enfocada por professores,
tendo em vista que essa integração permite o estabelecimento de conexões
entre ensino, aprendizagem e práticas sociais, como é o caso, por exemplo,
do uso de suportes digitais relacionados às possibilidades de criação de
textos, imagens, vídeos, áudios, hipertextos, representações
tridimensionais, entre outras. As tecnologias propiciam a escolha dos
elementos e dos caminhos pelos sujeitos. Esses caminhos de criação não
seguem mais os modos de organização cronológica e linear, caracterizando-
se pela inserção de imagens, de hiperlinks, de vídeos e de outros recursos
semióticos, e até mesmo pela própria organização mais flexível do texto no
espaço virtual, tudo contribuindo para a autoria das crianças criadoras de
textos nos suportes digitais. Apesar disso, convém tentar compreender o
motivo, a finalidade, o objetivo e a ideologia que estão relacionados a esse
uso. Por isso, é importante assumir uma posição crítica, questionadora e
reflexiva diante da tecnologia no processo de criação do ser humano, com
todas as suas ambiguidades e contradições, uma vez que
[...] o exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o
conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para
quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem
são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura
dos desafios do nosso tempo (FREIRE, 2000, p. 102).
Desse ponto de vista, distante da ideia ingênua de que os aparelhos
digitais, ao servir como instrumentos e suportes de escrita promoveriam
transformações milagrosas, de uma hora para outra, no modo de escrever
170
das crianças ainda em processo de apropriação da linguagem, a proposta
de uso de suportes digitais para a escrita de neros do enunciado foi eleita
como a tentativa de ajudá-las a resolver determinadas questões de
alfabetização por meio do empenho de vários recursos presentes nesses
suportes.
O auxílio dos recursos do computador na criação dos enunciados
“Não existem objetos históricos fora das práticas, móveis, que os
constituem, e por isso não zonas de discurso ou de realidade
definidas de uma vez por todas, delimitadas de
maneira fixa e detectáveis em cada situação histórica”.
(Roger Chartier, 2002, p. 78)
De acordo com Braga & Ricarte (2010, p. 20), ao levar em conta
os impactos dos avanços tecnológicos nas práticas comunicativas, deve-se
ter em mente que os aparelhos digitais são mais uma dessas muitas
invenções tecnológicas e, atualmente, ocupam cada vez mais lugar de
destaque nas práticas cotidianas. Com o surgimento dos computadores e
outros aparelhos digitais e com a popularização da publicação de textos no
meio digital, novas possibilidades para a construção textual se abriram.
Os atos de escrita ensinados em seus diversos suportes podem
desestabilizar a verdade única de se enxergar as coisas e favorecer a
multiplicidade de olhares para ver tanto o homem quanto a própria
humanidade. Além disso, esse ensino proporciona aprendizagens por meio
de uma postura metodológica que se insere na vida das crianças e as liga ao
contexto tecnológico.
Durante o processo de revisão de seu texto, Francisco foi
incentivado a utilizar os recursos do editor de texto Microsoft Word para
171
auxiliá-lo na grafia correta das palavras. Para isso, ele precisou aprender a
manipular tais recursos. Parte inicial desse processo é descrita a seguir.
Pesquisadora: - Por que você acha que tem palavras em seu texto que
estão com um traçado vermelho embaixo delas?
Francisco: - Elas estão erradas?
Pesquisadora: - Sim. Este editor de textos tem opções de palavras
corretas para elas, basta escolher a palavra correta.
Francisco: - Como faz isso?
Pesquisadora: - Aperte esse botão do lado direito do cursor do notebook
em cima da palavra sublinhada. Deste modo assim, olha. (apertando o
cursor do computador do lado direito sobre a palavra grifada pelo
corretor do editor de textos).
Francisco: - Vou tentar.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 2/5/2015).
Figura 9 - Quinta versão da narrativa de Francisco para seus colegas
Fonte: registros da pesquisadora em 02/05/2015.
172
Desse modo, pode ser percebido que a oportunidade de aprender
a lidar com esse outro formato da escrita certamente traz efeitos sociais e
culturais muito significativos para as crianças que estão na fase de
alfabetização, em processo de incorporação das várias formas materiais e
simbólicas de escrever e de ler textos em nossa sociedade, as quais podem
se concretizar não apenas no suporte papel como também nos suportes
digitais.
Nesse processo, fica evidente que a ferramenta corretor ortográfico
do editor de textos Microsoft Word, além de promover atos de leitura, com
a função de escolha da palavra correta, possibilita que as crianças conheçam
a ortografia das palavras necessárias para concretizar seus atos de escrita.
Em algumas ocasiões, o corretor ortográfico trouxe possibilidades
de uso adequado de concordância verbal e suscitou a necessidade na
criança de tentar entender esse fato linguístico. Nessas oportunidades a
pesquisadora esteve atenta para dar as explicações e demonstrar com
exemplos o emprego do conteúdo gramatical estudado. Na figura seguinte
aparece selecionado o trecho do enunciado em reescrita e na sequência o
diálogo entre a criança e a pesquisadora sobre o conteúdo em estudo.
173
Figura 10 - Nona versão da narrativa de Francisco para seus colegas
Fonte: registros da pesquisadora em 02/05/2015.
Pesquisadora: - Percebe esse sublinhado verde neste trecho de seu
texto?
Francisco: - Ele está errado?
Pesquisadora: - Sim. O sublinhado vermelho indica um erro no modo
de escrever as palavras, e o sublinhado verde indica um erro na
combinação entre elas. Vamos ver as opções do corretor?
Francisco: - Como faço agora?
Pesquisadora: - Como fez com as palavras com sublinhado vermelho,
basta pressionar esse botão do lado direito do cursor do notebook em
cima de alguma palavra da expressão sublinhada.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 2/5/2015).
Em seguida, conforme demonstrado na figura anterior, o corretor
ortográfico trouxe como única opção a forma correta de regência verbal e
foi explicado à criança que existem verbos que exigem alguns
complementos, palavras que completam o seu sentido, e que alguns deles
necessitam de uma preposição para completá-los junto à palavra que
completará o seu sentido, como por exemplo: ir a algum lugar, voltar de
174
algum lugar, gostar de algo etc. Foi dito à criança que essas palavras que
acompanham o verbo são chamadas de preposições e, nesse caso, ligam os
verbos aos seus complementos; assim, foram mostrados a ela exemplos
dessas construções gramaticais.
Diante do que foi exposto, a presença do computador pode ser
considerada benéfica no período de alfabetização, não somente como mais
um suporte para a criança ler e escrever na escola entre tantos materiais
que compõem a cultura de escrita escolar, mas também para criar
necessidades de estudo gramatical. Dessa forma, a ausência do computador
numa alfabetização contemporânea pode empobrecer as experiências
vivenciadas pelas crianças, tendo em vista que seu uso faz parte da
cultura escrita e que ele pode trazer colaborações ao suscitar possibilidades
de reflexão linguística. Assim,
[...] as crianças têm oportunidade de se apropriar de conteúdos
culturais dos quais necessitará para inserir-se no processo de
comunicação com outras pessoas. Isso inclui não só o saber qual a
função [...], mas também, quais os recursos de escrita necessários para
que esse veículo de comunicação se concretize, o que implica a
assimilação de certos conceitos envolvidos nesse processo (MILLER &
MELLO, 2008, p. 14).
No momento a seguir, é relatado um episódio em que a criança
não conseguia encontrar o erro ortográfico na palavra grafada e queria
saber o porquê de sua palavra estar sublinhada pelo corretor ortográfico do
programa editor de textos. Entretanto, com apenas um breve clique com
o dedo do lado direito do cursor do notebook, foi mostrada prontamente
como primeira opção a palavra escrita em sua forma correta e,
consequentemente, Francisco conseguiu lembrar a causa de seu equívoco
ortográfico.
175
Francisco: - Por que está com esse vermelho aqui?
Pesquisadora: - Que palavra?
Francisco: - “Peguei”.
Pesquisadora: - Vamos tentar usar o corretor ortográfico?
Francisco: - Será que aparece?
Pesquisadora: - Vamos ver.
Francisco: -Apareceu, faltava o “u” depois do “g”. Tinha esquecido!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 2/5/2015).
Esse episódio pode ser visualizado na Figura 11 a seguir.
Figura 11 Vigésima terceira versão da narrativa de Francisco para seus colegas.
Fonte: registros da pesquisadora em 02/05/2015.
Desse modo, dos exemplos apontados anteriormente, é possível
inferir que, ao longo das operações realizadas com o computador, houve a
diminuição da falta de coincidência entre o conteúdo estudado e a sua
existência real, que a criança não compreende, mas encontra sentido em
seu processo de aprendizagem. E, assim, nesse processo ocorreu
176
transformação de determinado conteúdo em conteúdo verdadeiramente
consciente, que se dá pela tomada de consciência do material de estudo,
em que a criança consegue aprender modos de agir e de operar para atingir
um resultado de forma não alienada. Entretanto, isso só acontece quando
determinado conteúdo se encontra numa ação com uma finalidade dentro
de uma atividade.
Vale lembrar o que foi dito, segundo as ideias de Leontiev (1978,
206), no trecho dos conceitos-chave da teoria histórico-cultural, que são
consideradas operações os modos como são efetuadas as ações.
Especificamente, nas operações, destaca-se a peculiaridade de não se
estabelecer um vínculo direto com o motivo ou com a finalidade dessa
ação. Esses modos de ação se materializam nos meios e instrumentos
materiais, pois [...] é através da interiorização de meios de operação das
informações, meios estes historicamente determinados e culturalmente
organizados, que a natureza social das pessoas tornou-se igualmente sua
natureza psicológica (LURIA, 2006c, p. 27).
Por isso, a maioria das operações que ocorrem na atividade do
homem é um resultado da aprendizagem, do domínio de modos e meios
de ação socialmente elaborados.
Para concluir este capítulo, vale ressaltar que, ao longo das
operações com esse instrumento tecnológico-cultural, pôde ser observado
que, além do computador disponibilizar as letras e os sinais gráficos dos
quais as crianças lançam mão ao escrever, a ferramenta corretor ortográfico
do editor de textos Microsoft Word possibilita que elas reflitam sobre a
ortografia das palavras, suas concordâncias e regências, que confirmam ou
não suas hipóteses de escrita.
Entretanto, essas opções inexistem no suporte papel, que por não
trazer as letras e os recursos gráficos como opções para a escrita, como faz
o teclado físico do computador ou digital do smartphone, deixa uma
sensação de vazio ao ser utilizado. Apesar disso, nas situações de ensino de
177
atos de escrita cabe ao professor fazer as intervenções necessárias para
auxiliá-las a utilizar esses recursos.
Além disso, o emprego das tecnologias na educação como
coadjuvantes nos processos de ensino e aprendizagem para apoio às
atividades ou, ainda, para motivação das crianças, promove a integração de
práticas sociais de crianças e professores, típicas da cultura digital. Por isso,
durante a pesquisa foi constatado que as crianças se sentiram motivadas a
escrever, pois puderam escolher: os gêneros do enunciado a serem
desenvolvidos, os suportes nos quais escreveriam e os interlocutores para
os quais enviariam as suas mensagens.
O auxílio dos recursos do
smartphone
na criação dos gêneros do
enunciado
“[...] a escrita deve ter significado para as crianças como uma forma
nova e complexa de linguagem [...] ensinada naturalmente”.
(Lev SemenovichVigotski, 2000a, p. 156)
Ainda sobre a temática dos instrumentos culturais, dentre as
invenções do século XXI são encontrados os aparelhos telefones celulares
multiplataforma, também chamados de smartphones, que apresentam
funções que vão além dos atos de fala, pois possuem ferramentas que
contribuem para inúmeras atividades enunciativas tanto orais quanto
escritas. Um dos aplicativos dos smartphones mais usados atualmente no
Brasil para trocas de mensagens de textos, além de vídeos, fotos e gravações
de áudio, através de uma conexão com a internet, de forma instantânea, é
o WhatsApp.
Esse aplicativo oferece um serviço pelo qual seus usuários podem
interagir em diferentes espaços com o envio recíproco de mensagens e com
o compartilhamento de informações por meio de diversos recursos.
178
Para Almeida & Silva (2011, p. 3) o uso dos aparelhos digitais não
se limita a determinado local e tempo. Isso foi percebido no momento em
que distintos artefatos tecnológicos começaram a entrar nos espaços
educativos trazidos pelas mãos dos alunos ou pelo seu modo de pensar e
agir como representantes da geração digital. Essas tecnologias passaram a
fazer parte da cultura, tomando lugar nas práticas sociais e ressignificando
as relações educativas ainda que nem sempre presentes fisicamente nas
escolas.
Dentre os artefatos tecnológicos típicos da atual cultura digital,
com os quais as crianças interagem mesmo fora dos espaços da escola,
estão, além dos referidos smartphones, os dispositivos móveis como
celulares, e computadores portáteis, que permitem o acesso aos ambientes
virtuais em diferentes espaços e tempos.
Ao disponibilizarem um arsenal de recursos que contribuem para
o processo de grafia da escrita convencional, o uso dos dispositivos móveis
para a aprendizagem da linguagem escrita modifica o modo de pensar das
crianças: a criança pode priorizar a construção de enunciados para o outro
e não se restringir, ao criar seu enunciado, aos elementos técnicos da
língua, pois sabe que o dispositivo permite-lhe, depois, checar os elementos
gráficos de sua escrita.
Os dados gerados pelas crianças durante as trocas de mensagens
pelo aplicativo móvel WhatsApp apresentam-se no percurso enunciativo de
Ketlen (12 anos, 6º ano) por meio de trocas verbais com a aluna Duda (7
anos, 2º ano). Os dois enunciados iniciais da interlocução estabelecida
entre as alunas foram criados por Duda, conforme se vê na figura 12.
179
Figura 12Primeira parte do diálogo entre Duda e Ketlen
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Ao receber as mensagens acima, a aluna Ketlen pretendeu criar o
seu primeiro enunciado “Oi, sou a Ketlen”, pois desejava cumprimentar
sua interlocutora e se apresentar. A sua interlocutora havia
cumprimentado-a duas vezes com a repetição da palavra “Oi” de duas
formas: “Oi” e “Oiiii”, por isso não encontrou dificuldade na escrita dessa
palavra. Em seguida, disse que escreveria seu nome fictício (escolhido
anteriormente) e perguntou se precisava ou não usar a vírgula para separar
o “Oi” da escrita de seu nome, como a sua interlocutora havia feito. A
resposta foi afirmativa, acompanhada de uma explicação:
180
Ketlen: - Precisa colocar a vírgula aqui?
Pesquisadora: - Onde?
Ketlen: - Depois do “Oi”.
Pesquisadora: - Para separar a o cumprimento do seu nome? Como
ela fez?
Ketlen: Sim.
Pesquisadora: Nesse caso, você tem duas informações numa mesma
mensagem, por isso deve separá-las por vírgula.
Ketlen: bom!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 11/05/2015).
Convencida pela explicação, Ketlen optou por inserir a vírgula
entre as duas partes que compunham seu enunciado. Entretanto, não sabia
como achar a vírgula no teclado. Foi explicado a ela que os pontos seriam
encontrados com um toque mais longo na tecla onde se encontra o ponto
final, destacado em amarelo na figura abaixo. Depois de algumas tentativas
foi possível selecionar a vírgula.
Figura 13Segunda parte do diálogo entre Duda e Ketlen.
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
181
Em seguida, ao escrever a palavra “sou”, Ketlen desconhecia a
possibilidade de uso do banco de palavras do aplicativo, formado pela
frequência das palavras usadas e pela frequência da sequência em que as
palavras são usadas umas após as outras e armazenadas em sua memória.
Foi preciso mostrar a ela essas possibilidades.
Sobre isso, foi esclarecido a ela que o acervo do aplicativo
disponibiliza alternativas de escrita, tanto para a palavra que estava sendo
escrita, quanto para a palavra que possivelmente viria em sua sequência.
Observe o diálogo a seguir:
Pesquisadora: - Você es vendo que quando vo escreve uma letra
aparecem três palavras aqui nesta linha preta?
Ketlen: - Sim.
Pesquisadora: - Quando você digitou o “s” o que apareceu?
Ketlen: - sou, “esse” e se.
Pesquisadora: - Tem a palavra que você precisa?
Ketlen: Sim, ela é a primeira que aparece. Como faz para escolher
essa palavra?
Pesquisadora: - Para selecionar essa palavra você deve tocar sobre
ela.
Ketlen: - Assim?
Pesquisadora: - Exatamente assim!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 11/05/2015).
O desfecho dessa troca verbal apresenta-se no seguinte trecho
do diário de bordo da pesquisadora:
Quando a palavra foi selecionada, ela apareceu imediatamente em sua
caixa de diálogo. Ketlen tocou sobre a palavra desejada e obteve o
resultado almejado, ou seja, a palavra escolhida imediatamente passou
a compor seu enunciado (DIÁRIO DE BORDO, 11/05/2015).
182
Figura 14Terceira parte do diálogo entre Duda e Ketlen
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Para a escrita da próxima palavra, o artigo “a”, foi esclarecido que
ele poderia vir na lista de palavras sempre usadas na sequência da última
palavra escrita, nesse caso “sou”.
Isso foi verificado pela aluna, mas a palavra “a” não apareceu entre as
três primeiras opções desse acervo, como havia ocorrido no processo da
escrita de palavra anterior, que equivale à parte visível das opções do
teclado (DIÁRIO DE BORDO, 11/05/2015).
Então, foi dito à aluna que com um toque na seta indicadora para
baixo, localizada no final das opções visíveis do acervo, apareceriam
mais seis opções de palavras para serem usadas na sequência da última
palavra escrita, e ao clicar na seta o artigo “a”, apareceu como a sexta opção
do acervo, que foi prontamente selecionada.
183
Pesquisadora: - Veja as opções na linha preta em cima do teclado.
Que palavras aparecem?
Ketlen: - De, um e uma.
Pesquisadora: - Tente clicar agora na seta para baixo, depois da
palavra “uma”.
Ketlen: - Nossa!
Pesquisadora: - O que houve?
Ketlen: - Agora, tem mais palavras.
Pesquisadora: - Quantas palavras novas apareceram?
Ketlen: - Seis.
Pesquisadora: - Entre essas palavras tem a palavra que você procura?
Ketlen: Sim, ela é a sexta.
Pesquisadora: - Como faz para escolhê-la?
Ketlen: - Tem que tocar em cima dela?
Pesquisadora: - É, isso mesmo!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 11/5/2015).
Figura 15Quarta parte do diálogo entre Duda e Ketlen
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Seta
selecionada
para mostrar as
outras seis
opções de
palavras.
184
Nesse momento, houve a atuação da pesquisadora na zona de
desenvolvimento proximal da criança, conceito desenvolvido por Vigotski
ao considerar o aprendizado como um processo social, que enfatiza o
diálogo e as funções da linguagem como colaboradores para o
desenvolvimento cognitivo mediado dos sujeitos. Em sua teoria, o ensino
representa o meio através do qual o desenvolvimento avança.
Além disso, esse é “o modo como a criança busca ajuda, como
utiliza o ambiente ao redor, como formula suas questões aos outros na
‘zona de desenvolvimento proximal da criança, onde a verdadeira
aprendizagem realmente acontece” (EMERSON, 2010, p. 80).
Depois disso, a aluna nem quis esperar a resposta de sua
interlocutora; fez a seguinte pergunta “Quem tá escrevendo?” e começou
a digitar. Digitou a letra “Q” e escolheu a sexta opção do acervo “Quem”,
usando as opões não aparentes do banco de palavras, por meio da seleção
da seta indicadora para encontrar o pronome interrogativo que buscava.
Figura 16 - Quinta parte do diálogo entre Duda e Ketlen
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Seta indicadora
185
No momento da escrita da palavra seguinte “tá” (ela quis escrever
desse modo, influenciada pelo uso social dessa palavra na linguagem oral.
Apesar de estar consciente de que o correto seria o uso do verbo sem a
abreviação “está”) a opção para essa palavra não estava armazenada no
teclado do smartphone. Por essa razão, escreveu a letra “t”, e foi alertada
sobre o acento agudo que deveria colocar sobre a vogal “a”. Nesse
momento, notou-se que a aluna precisava saber como se fazia para acentuar
essa vogal. Então, foi mostrado a ela que teria que tocar a letra “a” por um
período mais longo até que todas as opções de escrita dessa letra
aparecessem. Ao encontrar a opção buscada, que nesse caso foi a primeira
opção disponível, Ketlen selecionou-a imediatamente para compor seu
enunciado.
Figura 17Sexta parte do diálogo entre Duda e Ketlen
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
186
Em seguida, era preciso escrever a palavra “escrevendo” e Ketlen
conseguiu, sozinha, selecionar a sétima opção do teclado constituída por
essa palavra, encontrada após escrever as três letras iniciais “esc”. Além
disso, também sozinha, encontrou o ponto de interrogação, em meio
aos inúmeros pontos presentes conseguidos com um toque mais
alongado em cima do ponto final do teclado, para concluir sua pergunta.
Quadro 1Sétima e oitava parte do diálogo entre Duda e Ketlen
1.
2.
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Na criação desse segundo enunciado, Ketlen desenvolveu maior
autonomia para o uso do aplicativo. E se desprendia aos poucos dos
comandos da pesquisadora; estava eufórica por sua pergunta estar sendo
respondida. Sobre situações como essa, Leontiev (1978) assim discorre:
187
O aluno escreve. De que se conscientiza ao fazê-lo? Antes de tudo,
isso depende do que o impulsiona a escrever. Porém, por agora,
deixemos de lado este problema e suponhamos que em virtude de um
ou outro motivo foi proposto um fim: comunicar, expressar por escrito
seu pensamento. Então será objeto de sua consciência esse pensamento,
sua expressão em palavras (LEONTIEV, 1978, p. 193, tradução
nossa).
Os atos de escrita tornam-se significativos quando partem de
necessidades das crianças, por exemplo, de expressar o que pensam ou
sentem, e são endereçados para os outros, já que “a linguagem não se presta
apenas à comunicação. É nas interações com os outros que ela se
materializa... fazendo que sejamos o que somos sujeitos sociais,
ideológicos, históricos, em processo de constituição contínua”
(GERALDI, 2015, p. 10).
Nesse processo de trocas verbais, a mensagem de Ketlen foi
respondida. Na resposta sua interlocutora havia colocado o seu nome
“Duda”. Nesse momento, Ketlen estava muito envolvida com o diálogo;
isso era visível quando expressava sua alegria ao receber as respostas de suas
mensagens ou ao fazer novas perguntas a Duda.
Nesse episódio, pode ser observado que a criança encontrava-se
ativa em sua aprendizagem, porque “[...] hoje sabemos que, para aprender,
a criança precisa ser ativa, precisa ser sujeito e não um elemento passivo do
processo de ensino... Só a criança em atividade é capaz de atribuir sentido
ao que realiza (MILLER & MELLO, 2008, p. 46).
Em seguida, a intenção de perguntar a idade da colega se colocou
como a necessidade mais imediata da criança e, para satisfazer esse desejo,
escreveu rapidamente o enunciado “Qual a sua idade”. Para isso precisou
escrever apenas as duas letras iniciais do pronome interrogativo “Qual” e,
em seguida, foi selecionando as opções conforme aparecem nas telas do
quadro a seguir, demonstrando ainda mais autonomia que na escrita das
188
mensagens anteriores e usando os recursos que o aplicativo lhe
possibilitava.
Quadro 2 - Nona e décima parte do diálogo entre Duda e Ketlen
1.
2.
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Nesse processo, mergulhada no mundo digital, Ketlen se apropria
da linguagem escrita, da maneira como é utilizada pela sociedade. De
acordo com os pressupostos da teoria histórico-cultural, a escrita é um
instrumento cultural, instrumento aqui entendido como Leontiev o
define: “[...] um objeto social no qual estão incorporadas e fixadas as
operações de trabalho historicamente elaboradas” (LEONTIEV, 1978, p.
268, grifos do autor). E, como se pôde observar nos dados relatados, a
criança se apropria desse instrumento na relação com outras pessoas.
Segundo Leontiev,
189
Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e
de fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela se apropria das
riquezas deste mundo participando no trabalho, na produção e nas
diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as aptidões
especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse
mundo. Com efeito, mesmo a aptidão para usar a linguagem articulada
só se forma, em cada geração, pela aprendizagem da língua que se
desenvolveu num processo histórico, em função das características
objetivas desta língua (LEONTIEV, 1978, p. 267, tradução nossa).
Com ocorreu com Ketlen, o modo de utilização dos instrumentos
é transmitido por gerações anteriores, isto é, a função social é ensinada e
aprendida; isso quer dizer que não é aprendida naturalmente.
Após a escrita desse enunciado, ele foi enviado, apesar de estar sem
o ponto de interrogação. Em seguida a criança demonstrou certa tensão
e, em vez de escrevê-lo novamente e pontuá-lo de forma adequada,
resolveu mandar vários pontos de interrogação na sequência, antes que sua
pergunta fosse respondida. Depois disso, explicou a sua atitude e isso deu
margem para uma nova discussão, presente no diálogo a seguir.
Ketlen: - Não coloquei o ponto de interrogação!
Pesquisadora: - Onde?
Ketlen: - No final da pergunta, mas já enviei alguns depois.
Pesquisadora: - E se isso tivesse ocorrido em outra situação? Por
exemplo, na escrita de um email para alguém que você não tivesse tanta
intimidade. Como você faria?
Ketlen: Aí, tem que colocar o ponto no final, sem esquecer.
Pesquisadora: Quantos pontos?
Ketlen: Um só, né?
Pesquisadora: É!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 11/05/2015).
190
Essas interlocuções entre os sujeitos possibilitam saltos qualitativos
de aprendizagem às crianças, que ocorrem por meio do processo de
dialogia, em que os sujeitos, no momento em que entram em contanto
com as palavras do outro, aprendem a lidar com os instrumentos culturais
e ao mesmo tempo oferecem a sua contrapalavra.
Após esse contato inicial, os recursos e ferramentas
disponibilizados pelo aplicativo WhatsApp foram essenciais para a
construção dos enunciados, uma vez que os sujeitos os exploraram para
escrevê-los.
Quadro 3 - Recursos usados no diálogo entre Duda e Ketlen
1.
2.
Fonte: registros da pesquisadora em 11/05/2015.
Outros recursos dos aplicativos foram utilizados para manter o
diálogo, tais como envio de imagens, uso de emoticons e da ferramenta de
transcrição da fala, da mesma forma que o fazem todas as pessoas que
191
utilizam esses aplicativos. Em outros termos, o momento de aprender,
tanto a língua como o uso dos aplicativos, se configurou como um
momento real de trocas verbais, mesmo tendo sido um diálogo planejado
para fins de aprendizagem, uma vez que o mais importante nesse processo
é a busca pelo sentido, entendido por Leontiev (1978) como o significado
particular de algo numa determinada consciência.
Ainda ao falar de sentido, é trazida uma explicação de Hirschkop
(2010), que diz que sentido de um enunciado na vida real não coincide
com os componentes puramente verbais, mas é imbuído do que está
implícito e do que não foi dito. Especificamente em relação a este tema, é
importante expor em termos claros as diferenças entre sentido e
significado, pois é ocorrente no contexto escolar ouvir ou encontrar em
livros didáticos as palavras sentido ou significado indistintamente. Sobre
isso, à luz do legado de Vigotski,
O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do
pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um
fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra
sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério
da ¨palavra¨, seu componente indispensável. [...] Mas [...] o
significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E
como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de
pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do
pensamento (VIGOTSKII, 2006, p. 104)
Desse modo, o significado se liga à estabilização das ideias por um
determinado grupo, por isso possibilita à palavra a constituição de sentido
para o sujeito, tanto na sua manifestação verbal quanto na sua
manifestação intelectual.
Portanto, o significado possibilita a relação do indivíduo na ação
social e o sentido pode ser entendido como o instante, que não tem a
192
estabilidade de um significado, pois muda conforme mudarem os
interlocutores da situação de troca verbal, ou seja, o sentido de uma palavra
se apresenta nos eventos psíquicos de uma determinada consciência. Por
isso, o sentido se dá como algo que reflete diretamente as relações vitais do
homem.
Voltando à discussão sobre o uso de emoticons, Braga & Ricarte
(2010, p. 56) relatam que surgiu a partir da proximidade das salas de bate-
papo com situações de fala informal e fez com que os seus frequentadores
tentassem incorporar recursos de expressão corporal e de entonação,
típicos das trocas verbais realizadas face a face. E, assim, mesmo que
precariamente, foi buscada a representação gráfica das emoções ou das
expressões faciais, como, por exemplo, “:-)” para representar um sorriso ou
“8-b” para indicar uma pessoa de óculos pondo a língua para fora; no
entanto, para conseguir visualizar essas expressões é preciso virar a tela. No
caso da entonação, ainda, foi criado o recurso de representar o ato de gritar
com a grafia das letras em caixa alta.
Ao longo do tempo, os ajustes foram sendo feitos pelos usuários
para adequar a linguagem aos novos suportes, às novas tecnologias; isso
também fez surgir novos gêneros do enunciado, que, por sua vez,
possibilitaram trocas verbais escritas diferentes daquelas que existiam até o
momento, pois elas passaram a ocorrer de forma sincrônica, ou seja, de
modo imediato e simultâneo.
Isso ocorre devido à plasticidade e à fluidez dos gêneros do
enunciado que possibilitam a renovação e as mudanças históricas dos
estilos de linguagem indissociavelmente ligadas às mudanças dos gêneros
do discurso” (BAKHTIN, 2006, p. 267). Dito de outro modo, eles são,
concomitantemente, históricos e dinâmicos, ou seja, relacionam-se às
mudanças sociais.
Para concluir esta seção, pode-se afirmar que os gêneros do
enunciado podem ser apontados como resultados do trabalho coletivo
193
ininterrupto, que ordenam e estabilizam as atividades enunciativas. Por
isso, são entidades e formas de ação sociais maleáveis, dinâmicas e plásticas.
194
195
Contribuições do professor para a
aprendizagem de atos de escrita
“Não temos álibi para a existência porque não temos álibi para o
lugar único irrepetível que ocupamos”.
(João Wanderley Geraldi, 2010, p. 85)
Segundo Leontiev (1978), principalmente no começo da vida
escolar das crianças, o caminho para a aprendizagem é realizar as ações
conjuntamente, de modo que o agente de mediações da cultura assinale
para a criança algo especialmente essencial no objeto, omitindo o fortuito,
o casual, para em seguida elaborarem juntos uma reflexão e uma análise
para chegarem a conclusões. Dessa maneira, a criança deve ser levada a
participar ativamente de seu processo de aprendizagem, pois ele se
concretiza e tem verdadeira serventia para sua vida, quando ela tem a
chance de experienciá-lo como protagonista.
Em relação ao ensino da escrita, quando o exercício do dizer es
presente na elaboração de seus atos, as crianças vão ocupando posições
sociais diferentes: de escritoras, de narradoras, de protagonistas, de autoras
etc. Assim, o trabalho do professor não se restringe apenas à explicitação,
mas engloba “[...] a constituição do discurso social enquanto elaboração
individual que as crianças precisam (poder) realizar [...]” (SMOLKA,
2014, p. 154).
Além disso, a escrita só exerce a função para a qual foi criada se as
crianças sentirem a necessidade de u-la. Para isso, os professores, no papel
de operadores de mediações da cultura humana, devem aju-las a criar
196
essas necessidades, para proporcionar-lhes um ensino que contribua para
suas vidas.
Atuações do professor na zona de desenvolvimento
proximal das crianças
“[...] o acontecimento da vida do texto, isto é, a sua verdadeira essência,
sempre se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos”.
(Mikhail Mikhailovich Bakhtin; Valentin Nikolaievitch Volochinov,
2010, p. 311)
“A crença, a fé, a esperança na mudança, surgem ainda a magia, o
mito, o dogma, o milagre. Mas o conhecimento e a concepção
implicam, na práxis, a gênese, a geração do novo...”.
(Ana Luiza Bustamante Smolka, 2014, p. 113)
Conforme Miller & Mello (2008, p. 49-50) “[...] as necessidades
humanas assim como as habilidades, as capacidades ou as aptidões são
aprendidas na vida que cada um leva”. As crianças que fazem parte de uma
comunidade, onde a escrita é bastante utilizada, veem sempre os adultos
lendo e escrevendo, e isso gera a vontade de ler e de escrever. No entanto,
as crianças que vivem numa comunidade em que a escrita e a leitura não
são ou são pouco utilizadas, não têm oportunidades de sentir essa vontade
sozinhas. Nesse caso, essa necessidade deve ser criada nessas crianças pela
escola.
Por isso, é importante que os professores tenham em mente que,
nos episódios em que a criança tem a chance de escrever tal e qual observa
nos atos de escrita do mundo a sua volta - em casa, em lugares públicos ou
mesmo na escola, ela passa a sentir vontade de participar desses atos,
porque suas necessidades de fazer parte da cultura escrita começam a ser
criadas.
197
De acordo com Geraldi (2015), o que falta na escola é a
consciência de que, quando se escreve um texto, quem o elabora é um
sujeito, que está aprendendo, com interesses, entoações e história. Assim,
o professor precisa estar consciente de que, durante o ensino de atos de
escrita, é sua função auxiliar o desenvolvimento de qualidades humanas.
Por isso, de acordo com uma concepção de aprendizagem como um
processo colaborativo, ele deve propor situações de aprendizagem que
sejam significativas para as crianças, que atendam às suas necessidades ou
que as criem, permitindo-lhes conhecer a cultura e se apropriar das
capacidades escritoras.
Portanto, ele deve atuar na zona de desenvolvimento proximal das
crianças, área em que os processos internos emergem, os saberes são
estimulados e ativados nas crianças por meio das inter-relações com outros
e vão se convertendo em suas apropriações.
Essa zona, segundo Vigostki (2000a), é determinada por meio da
solução de problemas pelas crianças sob a orientação de um outro mais
experiente. Ela determina as possibilidades de ensino, não sobre os saberes
já alcançados pela criança, mas sobre as expectativas de desenvolvimento
existentes nessa área, uma vez que as funções psicointelectuais
[...] aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a
primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja,
como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais,
como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como
funções intrapsíquicas (VIGOTSKII, 2006, p. 114).
Assim, uma das funções do professor deve ser organizar suas
relações com as crianças e as relações das crianças entre si, estimulando as
trocas verbais, que são responsáveis não apenas por suas aquisições de
conhecimento, mas também pela abertura de novas possibilidades de
aprendizagens.
198
Além disso, para Miller & Mello (2008), respeitando-se a
possibilidade de aprender da criança, estimula-se sua aprendizagem, e com
isso, vários problemas são resolvidos ao mesmo tempo, tais como: (1) a
formação de uma imagem positiva de si mesma pela criança, pois pode se
expressar e ser ouvida ao participar das decisões de seu grupo, ou seja, ela
deixa de ser anônima e passa a ter identidade nesse grupo; (2) a formação
do sentimento de pertencimento, ao sentir-se parte da comunidade escolar,
ela s e sente em harmonia com todos e não sente necessidade de se indispor
com os outros integrantes da escola por estar insatisfeita; (3) o
desenvolvimento da linguagem oral que é central no processo de formação
cultural das crianças.
De modo contrário, o ensino baseado somente no nível de
desenvolvimento real da criança (determinado a partir das atividades que
realiza sozinha) não a leva a avançar, mas quando ela é orientada para o
futuro, suas possibilidades de aprendizagem se multiplicam. Para isso se
concretizar, é necessário que seja garantida a qualidade das trocas verbais
entre professor e crianças ou somente entre elas para que possam
compartilhar ideias inseridas em ambientes de solidariedade e colaboração.
Sobre isso Geraldi declara seu ponto de vista no seguinte trecho:
Defendo que o professor, como um outro dos alunos, torne-se deste
um co-enunciador, um co-autor de textos, aumentando a experiência
linguística dos alunos pelo convívio com a experiência do professor e
dos autores trazidos à roda de conversa que é cada aula de língua
materna (GERALDI, 2015, p. 10-11).
Assim, por ser a língua um instrumento de apropriação da cultura
humana, cabe ao professor apresentar os seus usos sociais, nos diferentes
contextos, às crianças. Uma vez que o professor, ao ensinar a escrita, lida
com seu movimento dialógico, para que a própria linguagem possa ser
199
apropriada e objetivada, ele participa dessa experiência por meio das
interações que estabelece com elas.
Em relação a isso, Vigostki (2006 estende o conceito de mediação
na interação do homem com o ambiente pelo uso dos signos. Assim, ao
internalizar o sistema de signos criados culturalmente, o homem, além
de transformar seu comportamento, engaja-se em operações mais
complexas, pois em colaboração é possível se fazer mais do que sozinho; o
que a criança consegue fazer hoje apenas com a ajuda, ela conseguirá fazer
sozinha amanhã.
Tanto Bakhtin quanto Vigotski consideram a relação interacional
fundamental para o crescimento intelectual e para o desenvolvimento da
linguagem. Por ser a interação um movimento dinâmico em que estão em
jogo posições que se enquadram num sistema de valores, os outros agem
como cocriadores dos enunciados e têm a responsabilidade de responder.
Já que não têm um álibi para sua existência, não podem escapar da sua
responsabilidade existencial que os faz participar do diálogo da vida, uma
vez que só se pode existir a partir do outro. Pois Se o pensamento
participativo é um pensamento que age e se concretiza e se expõe pela
linguagem, então o pensamento traz em si a alteridade que pela
linguagem internalizamos alteridades mediadoras de nossas relações
(GERALDI, 2010, p. 86).
Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a
forma de um processo evolutivo contínuo. As crianças não recebem a
língua pronta para ser usada; elas penetram na corrente enunciativa; ou
melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência
desperta e começa a operar. “[...] Os sujeitos não “adquirem” sua língua
materna; é nela e por meio dela que ocorre o seu primeiro despertar da
consciência” (BAKHTIN, 2006, p. 108).
Por isso, ao ensinar atos de escrita é impreterível que o
professor tenha em mente que ao fazer uso da escrita com sua função
200
social, quer dizer, ao usar a escrita junto às crianças em situações autênticas
de criação textual para uma determinada destinação, ele colabora para seu
desenvolvimento cognitivo, subjetivo e social. Nesse sentido a afirmação
de que “a atividade psíquica, portanto, não é um fenômeno interno e sim
fronteiriço” (EMERSON, 2010, p. 70).
Um exemplo disso pode ser observado no bilhete de Francisco
para sua mãe, cuja primeira versão encontra-se na figura 8, presente no
subitem 4.2 A importância da escrita para o outro nos atos enunciativos.
Houve uma situação em que a criança se recusara a usar o vocativo, pelo
fato de que a pessoa que seria referenciada por ela já se encontrava
mencionada num trecho de seu bilhete e, além disso, porque a
própria criança o entregaria a sua mãe (sua interlocutora). Apesar de ter
justificado sua transgressão por percebê-la como redundância,
protagonizou o seguinte diálogo com a pesquisadora.
Pesquisadora: - Acontece que a colocação do vocativo no início de
um bilhete é uma característica desse gênero do enunciado.
Francisco: - Então, não posso deixar sem?
Pesquisadora: - Você quer pesquisar exemplos na internet?
Francisco: - Pode ser. (digitou a palavra bilhete no site de
busca Google)
Pesquisadora: Clique no item imagens para podermos visualizá-los
melhor.
Francisco: - É, tem bastante com ele, mas tem uns sem.
Pesquisadora: - Percebeu que na maioria dos textos o vocativo está
sendo usado.
Francisco: - No amarelo não tem.
Pesquisadora: - O amarelo é um lembrete, um papelzinho pequeno
que colamos nos lugares fáceis de ver. É uma anotação que a pessoa faz
para si para não esquecer algo. Observe que o lembrete da imagem foi
colado na tela do computador.
Francisco: - Assim não precisa colocar?
201
Pesquisadora: - Não, porque a pessoa está escrevendo para ela mesma
se lembrar de algo no futuro.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 25/5/2015).
Mais uma vez, o que aqui se quer comprovar é o fato de que, além
dos componentes verbais, a situação extraverbal compõe o enunciado, que
se manifesta por meio da combinação de seus elementos, como: o estilo, o
tema, a composição. No caso citado anteriormente, a criança, por
encontrar-se inserida numa situação de troca verbal real, reflete sobre a
elaboração de seu bilhete, estabelecendo uma previsão de como se dará a
sua entrega no futuro. Dito de outro modo, por saber como o bilhete será
entregue a sua mãe, a criança tenta dispensar o uso do vocativo, pois sabe
que ela fará a entrega desse enunciado a sua interlocutora. Desse modo,
além dos atos de escrita, as crianças aprendem a agir diante de uma situação
de troca verbal genuína, podendo, ao refletir sobre as características do
gênero do enunciado eleito, tentar transgredi-las com o intuito de fazer
com que seu texto se adapte da melhor forma possível às particularidades
daquele evento único.
Entretanto, a criança foi convencida de outra maneira: ao cogitar-
se a hipótese de perda do bilhete, concluiu-se que seria mais fácil encontrar
a sua dona (interlocutora), se no bilhete tivesse o seu nome; além disso,
essa pessoa que o encontrasse não precisaria ler todo o conteúdo do bilhete
até a sua assinatura para poder direcioná-lo a sua mãe. Ainda, foi dito que
se essa outra pessoa, sem ter a noção de para quem teria sido endereçado
tal bilhete, poderia achar que um bilhete sem a identificação do
interlocutor poderia ser jogado no lixo. Nesse caso, ao pensar na hipótese
de perda desse enunciado, a criança disse que achava melhor colocar o
nome de sua mãe, pois assim ficaria fácil de identificar a sua dona
(interlocutora), no caso desse texto cair em outras mãos.
202
Figura 18 cima quarta versão do bilhete de Francisco para sua mãe
Mãe,
Você é a melhor mãe do mundo! Amo-te!
Agora toda quarta-feira vou escrever no computador e vou imprimir na impressora
da
escola.
Um beijo e um abraço do seu filho Francisco.
Fonte: registros da pesquisadora em 25/05/2015.
Fica evidente que os textos que as crianças criam, até mesmo as
suas primeiras tentativas, são gerados em momentos de trocas verbais que
também os geram, em momentos em que não só os atos de escrita são
trabalhados, mas também os atos de leitura, porque desse movimento
participam as vozes das crianças, dos professores, dos interlocutores para
quem os textos são direcionados, e, desse modo, a alfabetização se processa
e se constitui. Nesse movimento,
[...] os outros falam no meu texto, eu incorporo e articulo a fala dos
outros; eu falo o/no discurso de outros que, ao mesmo tempo,
ampliam o meu dizer [...]. É o próprio jogo da intersubjetividade
marcado no trabalho da escritura. Cada texto, um momento de
enunciação. Em cada momento, muitas vozes (SMOLKA, 2014, p.
147).
Pedagogicamente, nessas interlocuções, surgem espaços de
participação, de troca de ideias, de conhecimentos, geradores de uma
variedade de formulações possíveis para a criação dos textos pelas crianças.
É dessa diversidade de formulações que podem ser trabalhados o uso e
funcionamento da linguagem, num espaço em que se tornam possíveis as
propostas de mudança, a construção de acordos e o estabelecimento de
pactos. Portanto, os atos de linguagem se estabelecem por meio de
embates, nas fronteiras das subjetividades, por desenvolverem-se por meio
203
das negociações que se apresentam durante as relações de alteridade
presentes nas trocas verbais.
Outro episódio de criação de enunciados por meio das interações
entre criança e pesquisadora ocorreu quando Everton (11 anos, 6º ano)
demonstrou resistência ao começar a escrever, dizendo que não conseguia
fazer isso e que todos já sabiam de sua incapacidade, pois sempre
apresentou dificuldades de escrita.
Pesquisadora: - Você só vai conseguir se tentar.
Everton: - Nunca consegui escrever. Eu não consigo!
Pesquisadora: - Se quiser estarei aqui para ajudá-lo, e o computador
também poderá auxiliá-lo a corrigir as palavras.
Everton: - Já tentei e até agora nada! Sou muito devagar para isso!
Pesquisadora: - Tenho uma proposta. Você tenta apenas hoje e se não
conseguir eu te deixarei em paz. Topa?
Everton: - Sim, mas só hoje!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 28/5/2015).
Fica evidente, na situação enunciativa, que a criança aceita os
rótulos que lhe foram associados durante seu percurso na escola; apesar
disso, aceita o desafio proposto a ela. Entretanto, seu objetivo é perder esse
rótulo, pois o que realmente queria era conseguir criar algum enunciado
naquele dia. Isso fica constatado no diário de bordo da pesquisadora
nas anotações desse dia.
Tínhamos o mesmo objetivo e sabíamos disso, no entanto, havia um
desafio e a criança preferia perdê-lo, pois essa condição traria avanços
para seus atos de escrita (DIÁRIO DE BORDO, 28/5/2015).
Naquele dia, Everton conseguiu alguns avanços em seus atos de
escrita, que serão apresentados a seguir. E essa pode ter sido a razão para
ter continuado com suas participações na pesquisa, pois depois de tantos
204
fracassos em sua história de aprendizagem de atos de escrita, começava a
virar a página para um possível novo desfecho de conquistas na criação de
seus atos de escrita. Mas antes vale ressaltar que alguns dos motivos dessas
histórias de fracasso escolar, especificamente em relação à escrita, ainda
presentes no século XXI, são consequências do modo como essa
experiência é tratada em sala de aula. Como afirmam Miller & Mello,
Apresentada de forma equivocada na hora inadequada, a experiência
da escrita vai se tornando, desde cedo, uma experiência negativa do
ponto de vista emocional: a criança vai acumulando uma história de
fracasso (e de cansaço) em relação à escola e à escrita (MILLER;
MELLO, 2008, p. 2-3).
O equívoco se dá em apresentar os atos de escrita para a criança
por meio de seu caráter técnico, ao começar o ensino pelo reconhecimento
das letras, que o possibilita a escrita de nada, pois não expressa
informação alguma, quando, de fato, o modo de ensinar às crianças os
atos de escrita deveria direcioná-las a escrever ideias, desejos, dúvidas,
questionamentos, novas informações etc. Entretanto, sem a garantia de que
as crianças se expressem por meio da escrita, esse hábito torna-se
apenas um exercício, e acaba-se, então, ensinando as crianças que
escrever limita-se a conseguir desenhar as letras. E, nesse processo, o
universo da criação e da participação cede lugar e tempo para o treino
caligráfico, de grafia de letras ou de sílabas, presente nas cartilhas.
Todavia, os usos da linguagem são formas de agir socialmente e
esse agir social se manifesta por meio dos gêneros enunciativos; por isso
“[...] a produção de texto deve assumir o caráter de ‘ponto de partida’ e ‘de
chegada’ nos processos de ensino e de aprendizagem da língua”
(GERALDI, 1993, p. 135), porque a criação de texto é uma atividade
complexa, de acordo com Vigotski (2000a), por exigir concentração,
planejamento, seleção, hierarquização, comparação, abstração, síntese,
205
generalização, mobilizando as funções superiores da mente. Além disso,
esse processo exige a realização de atos que fazem parte da criação de textos,
tais como os atos de elaboração, de leitura, de compenetração, de revisão,
de reflexão, de reelaboração, de releitura etc. E isso requer grande
dedicação e esforço dos professores, que escolhem o que julgam mais fácil
para eles; daí o ensino da grafia do desenho das letras, para que, sem muito
esforço, possam dizer que ensinam atos de escrita.
Por isso Everton, ao queixar-se de suas dificuldades de
aprendizagem, dizia que não acompanhava o ritmo dos colegas de sua sala,
pois para ele os atos de escrita resumiam-se ao simples fato de copiar
mecanicamente algo da lousa ou de algum trecho do livro ou da apostila.
Essa criança aprendeu muito bem a concepção de que a escrita se resume
a uma prática destituída de criação, de participação, como haviam lhe
ensinado até aquele momento. “Essa abordagem tem como consequência
uma aprendizagem artificial, que exige tanto do professor como da criança
uma atenção e um esforço enormes...” (MILLER; MELLO, 2008, p. 04).
Nesse processo, o esforço da criança de atenção e de memória se concentra
em seguir ordens do professor, que se concentra em disciplinar as crianças.
Isso acarreta uma bipartição entre o ensino da grafia das palavras e do
processo enunciativo. Desse modo, o ensino da linguagem escrita fica
exonerado da vida, pois dá lugar a um trabalho enfadonho e sem espírito.
Retomando os avanços de Everton em seus atos de escrita,
apresenta-se em seguida o processo de sua primeira criação e as suas
interações com a pesquisadora.
A necessidade de escrita já existia, a criança sentia o desejo de fazer
perguntas a sua avó sobre o seu presente de aniversário. Faltava apenas
materializar esse objetivo. Então, foram pesquisados modelos de
bilhetes e lidos. Assim, a escrita desse gênero discursivo começou a ser
elaborada (DIÁRIO DE BORDO, 28/5/2015).
206
Nesse momento se fez necessária a condução das atividades pela
pesquisadora para garantir a aprendizagem da criança, permitindo que ela
incorporasse paulatinamente os saberes implicados na criação de atos de
escrita, possibilitando-lhe experienciar o processo que conduz à formação
de criadores de textos cada vez mais autônomos. Apenas desse modo a
aprendizagem da criança se seu fator de desenvolvimento, conduzindo-a
a atingir níveis cada vez mais elevados de elaboração de seus atos de escrita.
Quadro 4 - Primeira parte do processo de escrita do bilhete de
Everton para sua avó
1.
2.
3.
4.
Fonte: registros da pesquisadora em 28/05/2015.
Depois de criar esse trecho do bilhete, nas trocas verbais, a criança
foi aconselhada pela pesquisadora a usar o corretor ortográfico do editor
de textos Microsoft Word e, depois de algumas tentativas, conseguiu
manipular o cursor para mostrar as possibilidades ortográficas para a
palavra “vovo”.
207
Na zona de desenvolvimento proximal (VIGOTSKI, 2006), por
meio do processo interativo, as crianças apropriam-se de novas
aprendizagens, enquanto que se essas trocas se basearem somente no nível
de desenvolvimento real da criança, ela nunca será levada para além da
área em que se encontra, ou seja, não será conduzida para as possibilidades
de aprendizagens futuras.
Para que isso se concretize, “[...] é necessário que a escola e a sala
de aula sejam espaços nos quais os alunos possam compartilhar ideias,
vivenciar experiências num ambiente de solidariedade e colaboração”
(MILLER, 1998, p. 70). Nessa perspectiva, o ensino implica o processo de
colaboração não apenas do professor, ao orientar as aprendizagens das
crianças, mas também dos diálogos que as crianças estabelecem, porque
nesse processo as práticas sociais se alteram qualitativamente.
A seguir, aparece o momento em que Everton aprende a função do
corretor ortográfico, seleciona a palavra que procura e reflete sobre sua
grafia. Essa reflexão é apresentada num trecho do diálogo entre a criança e
a pesquisadora.
Pesquisadora: - Basta colocar a seta em cima da palavra sublinhada e
pressionar o lado direito do espaço em que mexe com o cursor, que as
alternativas de escrita para essa palavra aparecem.
Everton: - Assim? Olha! (no momento em que colocava a seta em cima
da palavra).
Pesquisadora: - Sim, agora aperte o lado direto que vai aparecer uma
caixa com a escrita correta da palavra e com uma barra de ferramentas.
bem?
Everton: - Estou tentando... olha aí, apareceu!
Pesquisadora: - E a palavra está aí?
Everton: Sim. Como faço agora?
Pesquisadora: - Tem que clicar em cima dela.
Everton: - Consegui!
208
Pesquisadora: - Encontrou a palavra que buscava?
Everton: - Ela está aqui e tem acento.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 28/5/2015).
No quadro 5, a seguir, esse processo é ilustrado.
Quadro 5 - Segunda parte do processo de escrita do bilhete de
Everton para sua a
1.
2.
Fonte: registros da pesquisadora em 28/05/2015.
Esse diálogo evidencia que além de serem ensinados os
procedimentos para o uso do corretor ortográfico, a criança é levada a
refletir sobre a grafia das palavras dentro de uma situação dialógica real,
cujo objetivo é ter seu enunciado compreendido pelo seu outro. Por isso,
a cada nova interação que estabelece com as crianças, o professor deve estar
pronto para aproveitar as oportunidades de fazer com que elas incorporem
as novas informações à sua atividade de criação textual, tendo em mente
que assim seus saberes são inseridos em processos de apropriação, de
209
objetivação e de usos, que complexificam cada vez mais os fazeres das
crianças.
Em seguida, é apresentada a próxima etapa da elaboração do texto,
mas, no próximo quadro, a caixa do corretor ortográfico apresentou
várias opções de grafias para a palavra “voc” (você), diferente da outra vez
que a criança fez uso desse recurso e foi apresentada apenas uma opção (a
opção correta). Assim, ela, além de tomar conhecimento de que poderiam
aparecer várias opções de grafia para a palavra buscada, foi levada a refletir
sobre a escolha que faria de acordo com o sentido que essa palavra deveria
ter em seu texto.
Quadro 6 - Terceira parte do processo de escrita do bilhete de
Everton para sua a
1.
2.
Fonte: registros da pesquisadora em 28/05/2015.
Essa etapa foi acompanhada do seguinte diálogo.
210
Pesquisadora: - Viu como aprendeu a usar o corretor?
Everton: - Sim, que agora tem muitas palavras.
Pesquisadora: - Precisa achar a que procura, para isso terá que ler e
ver qual se encaixa melhor em seu texto.
Everton: - Acho que é a segunda.
Pesquisadora: - Por quê?
Everton: - vi assim.
Pesquisadora: - E as outras palavras?
Everton: - São outras coisas.
Pesquisadora: - Significam outras coisas?
Everton: - Sim.
Pesquisadora: - Es certa a sua escolha, é a segunda palavra mesmo.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 28/5/2015).
Em relação a isso, Miller (1998) comprovou em sua pesquisa de
doutoramento que o trabalho conjunto entre reflexão e operação sobre a
linguagem pode ocasionar mudanças qualitativas nas formas pelas quais as
criações são escritas e reescritas.
Portanto, por ser a linguagem o meio pelo qual os sujeitos em
interação se constituem como seres sociais e desenvolvem suas funções
psíquicas superiores, cabe ao professor valorizar o trabalho pedagógico que
envolve as trocas verbais, o intercâmbio de ideias e a proposição de desafios
para conduzir as crianças às novas possibilidades de aprendizagem.
Em seguida, é exibida a versão final do texto de Everton para a sua
avó, depois de uma rie de trocas verbais com a pesquisadora e de uma
numerosa quantidade de uso dos recursos do corretor ortográfico do editor
de textos Microsoft Word.
211
Figura 19 - Quinquagésima primeira versão do bilhete de Everton para a sua avó
Oi, vovó!
O que você vai dar para mim no meu aniversário? Vai ser uma gaiola para os
passarinhos ou dinheiro?
Everton
Fonte: registros da pesquisadora em 09/06/2015.
No que se refere à importância das trocas verbais, o pensamento de
Bakhtin e de Volochínov dialoga com os estudos de Vigotski,
especificamente, sobre o caminho da criança até o objeto, que passa por
outra pessoa, tendo em vista o valor dialógico da linguagem como
constituinte dos processos cognitivos, sociais e ideológicos.
De acordo com os estudos de Vygotski (2001), é a partir da
interação que a criança cresce intelectualmente e passa a desenvolver sua
linguagem e as qualidades humanas. Sobre essas interações serem
importantes no começo da apropriação da linguagem, é possível afirmar
ainda que
[...] desde o início, a escrita precisa ser apresentada à criança como um
instrumento que tem uma função social: a função de expressar ou
comunicar informações, ideias, sentimentos. Ou seja, é um equívoco
pensar que o ensino dos aspectos técnicos da escrita para a criança
permite-lhe aprender a escrever e ler conforme requer o uso da escrita
nas diversas situações sociais em que é utilizada (MILLER; MELLO,
2008, p. 12).
Além disso, à medida que o homem se forma, os seus enunciados
vai organizando seu pensamento. Esses enunciados são adquiridos no
212
âmbito social, em que as palavras e ações são apropriadas e não se sabe mais
de quem nem de onde vieram. Sobre isso, é necessário esclarecer que
As influências extratextuais têm uma importância muito especial nas
primeiras etapas do desenvolvimento do homem. Essas influências
estão revestidas de palavras (ou outros signos), e estas palavras
pertencem a outras pessoas; antes de mais nada, trata-se das palavras da
mãe. Depois, estas “palavras alheias” se reelaboram dialogicamente em
palavras “próprias-alheias” com a ajuda de outras palavras alheias
(escutadas anteriormente) e logo se tornam palavras próprias (com a
perda das aspas, falando metaforicamente) que já possuem um caráter
criativo (BAKHTIN, 2006, p. 385.)
Uma vez que a mediação é uma seta indicadora de caminhos e o
papel do professor é elemento essencial na mediação entre a cultura e a
aprendizagem da criança, cabe a ele organizar o ensino intencionalmente
voltado para o processo de desenvolvimento cultural das crianças. Em
razão disso, os estudos do enunciado devem enfocar a maneira como a
linguagem é usada de fato, ao invés de depender de abstrações advindas
de pressuposições cartesianas em nome do desejo de tudo classificar.
Essa atuação ocasiona dois fatores: (1) que a aprendizagem seja
determinada pelo desenvolvimento, uma vez que as mediações culturais
atuam na zona em que as possibilidades de aprendizagem estão situadas
nas crianças, que estão aprendendo, ao realizar atividades as quais não
conseguem fazer sem colaboração; (2) que a aprendizagem determina o
desenvolvimento, solicitando conteúdos específicos para sua realização,
modos de condução do processo de apropriação dos saberes e usos dos
instrumentos sociais adequados para as diferentes atividades.
Retornando ao caso do sujeito Yara, exposto no subitem 4.2,
destaca-se o fato de que a estratégia de demonstrar as características do
gênero do enunciado para a criança, no texto que estava sendo respondido,
213
possibilitou a lembrança do uso do vocativo em seu bilhete-resposta. As
etapas desse processo são expostas a seguir.
Pesquisadora: - Você sabe quais são as partes que um bilhete deve ter?
Yara: - Acho que sei.
Pesquisadora: - Veja no bilhete que está aí na mesa. (presente na figura
7 do subitem 4.2 a importância da escrita para o outro nos atos
enunciativos)
Yara: - Tem meu nome, depois tem perguntas, a despedida e o nome
da amiga de minha mãe.
Pesquisadora: - Isso mesmo! Os bilhetes são gêneros simples, eles
devem ter um cumprimento que pode acompanhar uma palavra de
carinho, nesse caso, ela te chamou de querida, uma mensagem e o
nome de quem o escreveu.
Yara: - Entendi.
Pesquisadora:- Se você quiser colocar uma despedida também pode e
as perguntas fazem parte da mensagem.
Yara: - Vou colocar na minha.
Pesquisadora: - Escrevemos bilhetes para os familiares e pessoas mais
próximas. bom?
Yara: - Tá.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 8/6/2015).
Nesse caso, essas trocas verbais entre os interlocutores da pesquisa
promoveram contribuições para a criança, que ainda se apropriava das
características do gênero bilhete, apesar de já ter escrito dois textos (uma
carta e uma prece) cujas características se assemelham às do bilhete como:
vocativo, mensagem e uma despedida. A seguir é exibida a primeira versão
dessa criação (a última versão pode ser encontrada na figura 8 do subitem
4.2 A importância da escrita para o outro nos atos enunciativos).
214
Figura 20Primeira versão do bilhete de Yara para Rosângela
Fonte: registros da pesquisadora em 09/06/2015.
Durante a escrita, com o bilhete em mãos (presente na figura 7 do
subitem 4.2 A importância da escrita para o outro nos atos enunciativos), a
criança copiou algumas de suas palavras, tais como: minha (com a ausência
da letra n nessa cópia), Rosângela, irmã e Deus. Apesar disso, não houve
mudança no conteúdo planejado inicialmente para o bilhete, sobre o qual
a criança havia dito que escreveria. Assim, pode ser percebido que apesar
de ser mais fácil fazer cópias e isso ter se tornado um de seus hábitos
escolares, a criança copiou apenas as palavras de que realmente precisava,
não abrindo o de sua autoria em detrimento da substituição por outras
palavras presentes no bilhete sobre a mesa ao qual respondia. Como
assegura Smolka (2014),
As crianças aprendem a escrever escrevendo e, para isso lançam mão de
vários esquemas: perguntam, procuram, imitam, copiam, inventam,
combinam [...]. As crianças aprendem um modo de ser leitoras e
escritoras porque experimentam a escrita nos seus contextos de
utilização (SMOLKA, 2014, p. 150).
A partir desse pressuposto encontra-se algo em comum para as
inúmeras razões que movem as crianças a escrever: a intencionalidade. Se
há uma finalidade em todos os atos de escrita, eles teriam que ser vistos
215
como projetos daquele momento da vida da criança, em que se utilizariam
estratégias (aprendidas na escola) e táticas (modos que ela desenvolveu
para aprender) direcionadas aos propósitos inerentes aos múltiplos
contextos para os quais são elaboradas.
Outro fator que pode ser notado na escrita dessa primeira versão
do bilhete da criança é a presença de traços da oralidade na sua criação.
Por exemplo: “estamo”, “ta”, “fazeno”. Se a criança faz uso desse modo de
falar, pode trazer essa mesma forma para o seu registro escrito.
Por isso, nas trocas verbais em colaboração com o outro, a criança
deve ser levada a realizar sempre tarefas mais difíceis do que as que
consegue fazer por si própria, pois há uma distância entre os resultados
alcançados independentemente e os resultados obtidos por meio do
trabalho cooperativo. Nesse caso específico, o trabalho da pesquisadora foi
buscar a inserção do enunciado da criança, aos poucos, nas exigências da
variedade padrão da linguagem, por meio de atividades de estudo dessa
variedade a cada nova necessidade enunciativa que se apresentava.
Portanto, nesse processo houve a atuação na zona de
desenvolvimento proximal da criança, uma vez que essa área determina as
possibilidades de ensino. No caso em questão, os questionamentos, os
estudos, a utilização dos recursos da computação e as explicações em
relação à forma pela qual o enunciado foi criado, promoveram
estratégias de revisão e de reescrita no processo de criação dos atos de
escrita do sujeito da pesquisa. O quadro a seguir descreve esse processo.
216
Quadro 7 - Processo de escrita do bilhete de Yara para sua amiga
1.
2.
3.
4
5.
6.
217
7.
8.
9.
10.
Fonte: registros da pesquisadora em 09/06/2015.
Durante o processo de ensino e de aprendizagem dos atos de escrita
apresentados, o objetivo da pesquisadora foi proporcionar mediações com
elementos culturais para fazer as crianças avançarem em suas criações
escritas, auxiliando-as a incorporar informações às tarefas de criar textos,
pois é sabido que os saberes, para serem constituídos, devem ser conhecidos
inicialmente nos trabalhos em cooperação, para depois serem
internalizados pelas crianças. Dito de outra forma,
Confirma-se, com isso, a ideia de que todas as competências adquiridas
pelo aluno aparecem duas vezes no processo de seu desenvolvimento:
numa primeira vez, no plano interpessoal, interpsíquico (graças à
218
atividade social realizada nos momentos dos debates, questionamentos,
trocas de informações, confronto de ideias, buscas de soluções etc.) e,
depois, no plano pessoal, intrapsíquico (graças à atividade individual
do sujeito pela qual mobiliza os processos internos de seu
desenvolvimento) (MILLER, 1998, p. 175).
Desse modo, os professores, como operadores de mediações,
devem fazer incidir sua atividade de ensino nas possibilidades presentes na
zona de desenvolvimento proximal das crianças, que podem ser
convertidas em apropriações na convivência com as ações coletivas,
fazendo-as avançar nos seus patamares de conhecimento e,
consequentemente, de prática enunciativa.
No momento da criação textual presente na sexta parte do quadro
exposto anteriormente foi feita a proposta de atividade de estudo sobre as
diferenças entre “mas” e “mais” pela pesquisadora, que ajudou a criança a
buscar sites sobre esse tema e explicou o conteúdo por meio de exemplos
de situações de uso em gêneros do enunciado reais, evidenciando a
presença dessas palavras em notícias de jornais, em postagens de blogs e em
sites de anúncios indicados pelo dicionário on-line para cada palavra
estudada. Os diálogos sobre esse estudo são apresentados no subitem a
seguir, onde estão os trabalhos com a atividade epilinguística.
Sobre a importância de se trabalhar com a linguagem em
movimento por meio das atividades epilinguísticas, em que se conjugam a
reflexão e a ão sobre a linguagem no momento das criações textuais, o
capítulo subsequente apresenta dados que a comprovam, assim como a sua
eficiência.
219
As contribuições do estudo epilinguístico para a
apropriação de atos de escrita.
“A língua é como um rio que se renova, enquanto a gramática
normativa é como a água do igapó, que envelhece, não gera vida nova
a não ser que venham as inundações”.
(Marcos Bagno, 1999, p. 9)
O problema posto nas escolas pela educação tradicional, de ensino
da língua materna com traços muito fortes de uma visão racionalista de
língua convencional e arbitrária, pode ser caracterizado pelo
estabelecimento de um paralelo entre o código linguístico e o matemático,
como ressalta Bakhtin:
Ao espírito orientado para a matemática, dos
racionalistas, o que interessa não é a relação do signo
com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo
que o engendra, mas a relação de signo para o signo, no
interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e
integrado (BAKHTIN, 2010, p. 86).
Nesse enfoque, só interessa no máximo o estudo metalinguístico
das relações de lógica interna do próprio sistema de signos, se é que essa
pode ser considerada como uma lógica, já que independe por completo das
significações que a ele se ligam e se abstém das possibilidades de
transformação. Esse ensino não corresponde às exigências da escola atual,
que pode ser vista como um fruto da revolução científica, uma vez que está
pautado em práticas pedagógicas fundadas na hegemonia das organizações
das sociedades de classes.
Sob a influência desse ensino, um problema constante na escola é
a apresentação às crianças de conceitos desvinculados de sua própria
220
existência, pois desse modo a compreensão dos conceitos e a consciência
sobre os conhecimentos ficam no meio do percurso do processo de
objetivação, por se reduzirem à apropriação dos aspectos desvinculados da
prática e apenas transmitidos pela via verbal, que não supera o caráter
empírico e descritivo dos saberes. E, assim,
Tal formação ofertada pela escola tradicional é básica e necessária
para as relações de trabalho, mas insuficiente para apropriação dos
avanços científicos de nossa sociedade, e incapaz de possibilitar às
crianças avanços no processo criativo em relação com a realidade
(CLARINDO, 2015, p. 41)
Nesse processo, ao empregar essa concepção os conhecimentos são
separados não só de seu uso e da natureza histórica concreta das
possibilidades das crianças, mas também do verdadeiro papel da educação
no desenvolvimento. Nesses casos,
[...] sem a motivação imediata, a explicação de uma “instrução” dada
antes, isto é, antes da ação a realizar, e ainda que esta seja atraente, é
escutada pelas crianças, porém quase não “lhes chega”. Isto o ocorre
de modo algum porque não a compreendam; as crianças se
conscientizam plenamente dessa mesma explicação quando ela está
diretamente incluída na atividade externa que realizam, ou quando o
fim cognoscitivo correspondente se destaca diante das crianças criando
uma motivação especial (LEONTIEV, 1978, p. 198, tradução nossa).
Diante dessa situação, ao ensino se vincula a tarefa de possibilitar
o processo de transformação de determinado conteúdo em conteúdo
verdadeiramente consciente, ou seja, de modo que tal conteúdo ocupe o
lugar que lhe corresponde na atividade. Isso porque
Subentende-se que, nesse caso, não é o lugar estrutural que tal
conteúdo ocupa na atividade que depende de se ter consciência desse
221
conteúdo ou não, mas, pelo contrário, o fato de se ter consciência desse
conteúdo depende de seu lugar estrutural na atividade (LEONTIEV,
1978, p. 194, tradução nossa).
Essa afirmação pode ser comprovada pelo conhecido fato
psicológico de que o único modo de reter algum conteúdo como objeto da
própria consciência consiste em ter contato com o conteúdo por meio da
atividade, atuando sobre ele; caso contrário, ele deixa de ser enfocado do
campo da consciência dos sujeitos e não é aprendido.
Desse modo, no ensino da linguagem, o sujeito deve atuar sobre o
conteúdo ensinado e refletir sobre ele ao escrever para o outro, pois a
preocupação inicial se com o sentido, ou seja, com o conteúdo da
mensagem a qual se quer trocar, e, em seguida, se apresenta o desejo de
que essa mensagem seja compreendida e por isso são feitas as inúmeras
reescritas do texto.
Especificamente sobre isso, Miller (1998) constata haver um vazio
entre as atividades linguísticas e as metalinguísticas, presentes no ensino
dos atos de escrita, que pode ser preenchido com as atividades
epilinguísticas, que se constituem como “[...] atividade de reflexão sobre
a linguagem, realizada durante o processo de escrita de textos e voltada
para o uso que se faz dos conceitos linguísticos presentes na situação de
comunicação com que se está trabalhando”.
Portanto, as atividades epilinguísticas preenchem o somente esse
vazio entre o estudo das atividades linguísticas (processo de escrita de
textos) e metalinguísticas (processo de reflexão sobre elementos
linguísticos), mas também propiciam condições de a criança melhor gerir
o processo de elaboração de atos de escrita. Ou seja, esse enfoque
epilinguístico consegue unir reflexão e prática, fazendo com que a criança
entre em atividade e aprenda os conteúdos.
222
Vale ressaltar que as atividades de revisão e de reescrita textual são
fundamentais para que as crianças reconheçam não só as características dos
gêneros do enunciado como também os padrões e normas da variedade
linguística eleita para a escrita de seu texto. O professor deve auxiliar as
crianças nesses processos, pois esse trabalho conduzirá as crianças a fazerem
suas revisões textuais.
A seguir, com o enfoque no estudo epilinguístico, são analisadas as
etapas de revisão e as versões da escrita do bilhete de Betânia. Vale lembrar
que a primeira versão apresenta-se na Figura 3 já mostrada no subitem
intitulado: 4.2 A importância da escrita para o outro nos atos enunciativos.
Após ser esclarecido que o vocativo inicial geralmente se separa do
corpo do texto e depois de ver exemplos de bilhetes na internet, Betânia
separou-o da sua mensagem. Por meio do estudo epilinguístico reconhece-
se o uso social de elementos característicos dos gêneros do enunciado,
como ocorreu com o vocativo.
Em seguida, também impulsionada pelo estudo dos pronomes do
caso reto e do caso oblíquo para ser usado em um de seus textos anteriores,
retirou o “r” de “ter”, que tanto a incomodava, deixando apenas a palavra
“te”, por ter reconhecido que “ter” o se tratava de um pronome.
Uma vez que as práticas sociais de linguagem vão estabelecendo
modelos de gêneros do enunciado para serem usados em determinadas
situações de interação, presentes em esferas específicas da atividade
humana, torna-se válida a pesquisa de modelos não só para que a criança
aprenda ou retome as características dos gêneros do enunciado, mas
também para que possa aprender a pesquisar modelos de gêneros do
enunciado, como foi feito com o bilhete, para que consiga fazer isso com
autonomia sempre que for necessário diante de seu desejo ou de sua
necessidade enunciativa.
223
Figura 21Segunda versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Em seguida, foi dito a ela que o pronome “te” poderia ser
suprimido de seu texto, pois já havia a expressão “a você” que se referia
a sua mãe. E, que, além disso, se deixasse tal pronome se configuraria
um pleonasmo, ou seja, o excesso de palavras para emitir um mesmo
significado num enunciado. Imediatamente optou por retirar o
pronome “te”.
Figura 22Terceira versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Então, foi esclarecido que precisava separar as ideias presentes em
seu texto, para que sua interlocutora o compreendesse. A partir daí foram
buscadas alternativas para isso.
Pesquisadora: - E agora? O que pretende fazer?
Betânia: - Acho que vou separar aqui! (E aponta o espaço antes da
palavra “você”).
224
Pesquisadora: - Como vai sepa-las?
Betânia: - Com um ponto. Pode ser?
Pesquisadora: - Pode.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 08/05/2015).
Figura 23Quarta versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Nesse momento, Betânia já sabia que não se usa o pronome “te”
junto a palavra “você”, isso já havia sido explicado anteriormente. Então,
foi questionada em relação a esse uso e optou por retirá-lo desse trecho.
Para isso, posicionou o verbo no começo de sua oração pois contou que
conhecia a expressão “Amo você” de outras ocasiões.
Figura 24Quinta versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Separou a sentença seguinte com uma vírgula, e a ela foi explicado
que a expressão “pega ela” não estava de acordo com a norma padrão da
225
língua portuguesa, ou seja, da gramática normativa, que diz que apenas os
pronomes do caso oblíquo podem funcionar como objetos.
Por meio de exemplos e com a ajuda de quadro com os pronomes, suas
funções com exemplos, ela compreendeu que o correto seria: “pegá-la”
(DIÁRIO DE BORDO, 08/05/2015).
A criança percebia, assim, qual seria a melhor forma de se
expressar para garantir o entendimento do ato de escrita que criava.
Pesquisadora: - Então, de que forma fica correta?
Betânia: - Pegá-la.
Pesquisadora: - Achou complicado?
Betânia: - Um pouco, mas a professora vive falando assim.
Pesquisadora: - A professora de Língua Portuguesa da sua turma?
Betânia: - É.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 08/05/2015).
Figura 25Sexta versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Na sequência, foi retomado pela pesquisadora que o mesmo que
ocorreu com o verbo “pegar” e com o pronome do caso oblíquo “la”,
formando a expressão pegá-la, deveria ocorrer com o verbo “beijar”.
Pesquisadora: - Terá que fazer a mesma coisa que fez o verbo pegar,
“pegá-la”, mas agora com o verbo beijar. Então, como fica?
226
Betânia: - Beijá-la.
Pesquisadora: - Isso mesmo!
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 08/05/2015).
Figura 26Sétima versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
Como já estava se familiarizando com o processo de reescrita, essa
criança notou rapidamente que o pronome “ló” estava incorreto e
substituiu-o por “la”, pronome que havia usado duas vezes há pouco
tempo nas sentenças anteriores. Foi dito a ela que separasse a questão final
com um ponto e que pontuasse corretamente a questão que aparece na
última sentença do texto.
Betânia: - Aqui fica “la”, né? (Apontando para o “ló”)
Pesquisadora: - Sim, como pegá-la e como beijá-la.
Betânia: Separo aqui? (apontando para o espaço depois da palavra
“la”)
Pesquisadora: - Melhor separar com um ponto, pois nessa sentença já
têm vírgulas e “e” separando as informações.
Betânia: - Então, minha pergunta vai ficar separada?
Pesquisadora:- Sim, por falar nisso, como devemos pontuar uma
pergunta?
Betânia: - Com o ponto de interrogação.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 08/05/2015).
227
Figura 27Oitava versão do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 08/05/2015.
A criança aprende, nos momentos em que se encontra ativa em
seu processo de aprendizagem, “[...] hoje sabemos que, para aprender, a
criança precisa ser sujeito e não um elemento passivo do processo de
ensino... Só a criança em atividade é capaz de atribuir sentido ao que
realiza” (MILLER; MELLO, 2008, p. 46).
Outra ocorrência de contribuições do estudo epilinguístico para
apropriação de atos de escrita deu-se na criação da narrativa de Francisco,
que se encontra neste livro na Figura 1 do subitem intitulado 4.1 A escolha
dos gêneros do enunciado no processo de apropriação da escrita. Durante essa
criação, após terminar a primeira versão, Francisco mostrou-se
incomodado com as letras em caixa alta, e esse fato possibilitou a reflexão
sobre os usos da linguagem para incorporar, em sua própria criação, o uso
social, neste caso, da letra minúscula no corpo do texto.
Pesquisadora: - O que foi? O que está te incomodando?
Francisco: - Não sei como faz para tirar essas letras grandes.
Pesquisadora: - Observe nessa ferramenta aqui do editor de textos
que tem esses dois “as” um maiúsculo em seguida de um minúsculo.
Francisco: - Estou vendo!
Pesquisadora: - Olhe, aqui têm opções para mudar as letras. Clicando
aqui, você pode escolher letras minúsculas, a primeira letra
maiúscula e as outras minúsculas, alternar entre letras maiúsculas e
minúsculas etc.
Francisco: - Clico aí e escolho?
228
Pesquisadora: - Sim, qual vai ser sua opção?
Francisco: - Quero a primeira maiúscula.
Pesquisadora: - Então, selecione o texto todo clicando na seta à direita
da caixa de ferramentas daqui do editor de textos.
Francisco: - Desse jeito? (E clicou no local adequado)
Pesquisadora: - Sim. Agora escolha a opção que quer no botão que
tinha mostrado.
Francisco: - Esse aqui?
Pesquisadora: - Sim, se você quiser apenas a primeira letra maiúscula
e todas as outras minúsculas.
Francisco: - Pronto. Agora mudou tudo mesmo!
Pesquisadora: - E o que você achou disso? Ficou satisfeito?
Francisco: - Sim, é assim que sempre vejo!
Pesquisadora: - Quer dizer que é assim que encontra os textos por aí?
Francisco: - É.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 27/04/2015).
Assim, só após a mudança das letras, pelo modo como são
encontradas na maioria dos textos presentes na vida real, a criança
continuou com a escrita de sua narrativa. Durante as criações escritas que
fazem sentido para as crianças, elas desenvolvem de maneira reflexiva e
contextualizada as normas institucionalizadas da linguagem.
Figura 28 Terceira versão da narrativa de Francisco para seus amigos
Fonte: registros da pesquisadora em 27/04/2015.
229
A partir do momento em que é dada a possibilidade de refletirem
sobre a linguagem e, em seguida, de operarem sobre ela, as crianças passam
a entender como se dá funcionamento dos atos de escrita e, no decorrer do
seu processo de elaboração, melhoram paulatinamente o modo de
construir seus textos, incorporando os novos saberes provenientes das
atividades que realizaram.
Após a elaboração dessa versão acima mostrada, foram feitas outras
reflexões sobre a linguagem presente no texto e sobre as intenções
enunciativas da criança. Uma delas ocorreu na sexta versão do texto,
conforme mostra a figura abaixo, em que surgiu a necessidade de narrar o
que os personagens diziam com suas próprias palavras, trazendo à tona a
necessidade de discutir as questões relativas à organização do discurso
direto.
Figura 29Sexta versão da narrativa de Francisco para seus amigos
Fonte: registros da pesquisadora em 27/04/2015.
Pesquisadora: - Você sabia que existem outras formas de se escrever o
que os personagens querem falar?
Francisco: - Com o travessão?
230
Pesquisadora: - Sim, esta também é uma forma de se narrar a fala
exatamente como as personagens falaram.
Francisco: - Tem mais?
Pesquisadora: - Têm mais algumas. Você gostaria de fazer uma
pesquisa na internet sobre elas?
Francisco: - Eu quero.
Pesquisadora: - Aí, você poderá escolher uma delas para usar em seu
texto.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 27/04/2015).
Nessa situação, a reflexão sobre a linguagem foi necessária para
refletir sobre os tipos de discurso direto existentes. Essa era a necessidade
que o momento da narrativa impunha. Então, com a ajuda da
pesquisadora, uma pesquisa teórica sobre as formas de discurso direto foi
feita pela criança, que, após conhecer essas formas, elegeu os dois pontos
e as aspas como maneira de enunciar as falas das personagens, mas
percebeu que havia outras maneiras de fazer isso.
Figura 30 Sétima versão da narrativa de Francisco para seus amigos
Fonte: registros da pesquisadora em 27/04/2015.
231
A reflexão sobre os elementos linguísticos e metalinguísticos
realizada durante o processo de criação dos atos de escrita, de acordo com
Geraldi (2015, p. 9), pode ser mais ou menos aprofundada, dependendo
crucialmente dos objetivos mais imediatos da construção de compreensões
ou da elaboração de textos dentro das suas condições enunciativas de
criação.
No limite deste livro, as conclusões revelam que ao propiciar as
reflexões epilinguísticas às crianças, nos níveis de aprofundamento
inseridos em sua zona de desenvolvimento proximal, o professor consegue
conduzi-las a reescrever seus textos por meio das necessidades geradas por
essa reflexão, acrescentando a essa prática os conhecimentos adquiridos
nesse processo que impulsiona o estudo dos conhecimentos científicos
sobre os conteúdos que emergem ao longo do caminho.
Em outro momento da pesquisa-ão, houve a proposta de estudo
da diferenciação entre “mas” e “mais”, que apareceu na criação da criança,
pois na hora em que foi explicado o equívoco ortográfico de trocar “mais”
por “mas”, provavelmente devido às influências da linguagem oral, surgiu
essa necessidade de estudo. Esse processo está presente na figura e no
diálogo a seguir:
Figura 31Sexta versão do bilhete de Yara para sua amiga
Fonte: registros da pesquisadora em 08/06/2015.
Pesquisadora:- Nesse caso, você deve usar mas, sem o “i”, e o mais.
Yara: - Então, não está certo?
232
Pesquisadora: - o, usamos “mais” para indicar uma quantidade
maior ou intensidade, por exemplo: “- Você escreve mais agora que
antes.” ou para acrescentar alguma coisa, por exemplo: “- Em casa,
somos três filhas, eu mais duas irmãs.”
Yara: - Como faz aqui?
Pesquisadora: - Você precisa usar “mas” porque quer dizer uma ideia
oposta ao que foi dito na oração anterior. Não é?
Yara: - Acho que sim!
Pesquisadora: - Se sua irmã está fazendo tratamento imagina-se que
não esteja muito bem, no entanto, você afirma o contrário ao dizer que
ela está bem na sua segunda oração.
Yara: - Ahm!
Pesquisadora: Você quer ver mais exemplos?
Yara: - Quero.
Pesquisadora:- Então, pesquisaremos sobre isso, agora! Está bem?
Yara: - Tá.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 08/06/2015).
Em seguida, foram encontradas explicações sobre as diferenças
entre essas palavras, buscadas em sites de língua portuguesa e de dúvidas de
ortografia; apesar disso, os exemplos de seus usos em gêneros do enunciado
foram encontrados em um dicionário online.
A respeito das reflexões sobre a linguagem, por meio dos diálogos
entre a criança, a pesquisadora e os textos relacionados à atividade, vale
lembrar que, no momento em que ela reflete sobre o texto que está criando,
são mobilizados os seus conhecimentos adquiridos e novos conhecimentos
são apropriados por meio das reflexões sobre o fazer, pois a partir desse
momento a criança é levada a não somente tomar decisões sobre as
transformações e as alterações de seu texto, conforme as exigências para a
sua compreensão, mas, também, busca saber causas de seus equívocos. Ou
seja,
233
As reflexões que o aluno faz sobre os textos escritos (seus e alheios)
implicam um componente avaliativo importante que o auxilia a tornar-
se, paulatinamente, responsável pela tomada de decisões inerentes à
tarefa de escrever os próprios textos, consolidando a sua autonomia do
saber-fazer (MILLER, 1998, p. 176).
Assim, é imprescindível que a criança inicie esse processo de
dominação do epilinguístico para que consiga criar autonomamente seus
textos, perceba suas dificuldades linguísticas e metalinguísticas, reflita
sobre elas para tentar saná-las, pois nesse processo também estão
envolvidas a avaliação e a autoavaliação das criações dos atos de escrita, em
que ocorre a transformação da própria tarefa de escrever textos, pois ela
passa a ser vista como realmente é, ou seja, como algo que demanda
trabalho, atenção, esforço, reflexão, leitura, reescrita, num processo de
compenetração, até que o texto adquira um relativo acabamento e
contemple as características de seu gênero do enunciado para ser enviado
a seus interlocutores.
Análise do nível de desenvolvimento real das crianças
Para avaliar os resultados desta pesquisa, obtidos em longo prazo,
foram coletadas criações de três crianças, seis meses após o término dos
encontros das crianças com a pesquisadora. Serão expostas a seguir essas
criações, que foram geradas com o objetivo de verificar o nível de
desenvolvimento real dos participantes quanto a sua capacidade de criar
atos de escrita, isto é, para saber se houve realmente alguma contribuição
da pesquisa para a sua aprendizagem.
234
Quadro 8 Etapa inicial do processo de escrita do bilhete de
Betânia para sua mãe
1.
2.
3.
235
4.
5.
6.
236
7.
8.
Fonte: registros da pesquisadora em 21/06/2015.
Nessa primeira etapa da criação, pode ser observado que a criança
não se esqueceu de usar os recursos do corretor ortográfico do editor de
textos Microsoft Word e fez isso com bastante destreza e rapidez; adotou
inclusive este, como seu primeiro recurso de revisão textual. Também pode
ser observado que, em seguida, as palavras, corrigidas pelo corretor do
editor de textos, que se repetem, são copiadas pela criança.
Nesse caso, a atuação na zona de desenvolvimento proximal dessa
criança em relação à aprendizagem das correções ortográficas por meio do
recurso do corretor ortográfico alcançou resultados positivos.
237
Betânia: - Você viu como aprendi?
Pesquisadora: - Sim, está corrigindo as palavras rapidamente e com
facilidade.
Betânia: - Também só aparece uma opção.
Pesquisadora: - Assim fica mais fácil?
Betânia: - É, mas quando tem mais, fica mais demorado.
(DIÁLOGO COM OS SUJEITOS, 21/06/2016).
Aqui, aparece a valorização dos atos de reescrita pela criança, que
se lança como sua própria leitora, na tentativa de compenetração, em
respeito à compreensão da interlocutora de seu texto, para que ele se
configure como algo acabado e o mais inteligível possível para ser entregue
ao seu outro.
Assim como ocorria durante o projeto e continuou ocorrendo com
essa criança, o seu texto, desde as primeiras tentativas, é visto como
enunciado dentro da corrente enunciativa. E nesse espaço de interlocução
são trabalhados atos de leitura e escrita, já que “A alfabetização se processa
nesse movimento enunciativo. Nessa atividade, nesse trabalho, nem todo
dizer constitui a leitura e a escritura, mas toda leitura e toda escritura são
constitutivas do dizer(SMOLKA, 2014, p. 153).
Desse movimento de ocupar vários lugares no processo
enunciativo como escritoras, autoras, leitoras, revisoras as crianças
protagonizam esse processo de diferentes funções e constituem a
compreensão do enunciado social, redimensionando suas experiências
individuais e ampliando suas possibilidades de interlocução.
As etapas seguintes de elaboração são encontradas no quadro 9 em
que aparecem novas revisões e reflexões sobre a linguagem.
238
Quadro 9 Segunda etapa do processo de escrita do bilhete de
Betânia para sua mãe
1
2.
3.
239
4.
Fonte: registros da pesquisadora em 21/06/2015.
Além do uso do corretor ortográfico para acrescentar um til na
palavra mãe, a criança lembrou-se do vocativo e separou essa palavra do
restante de seu texto por meio de vírgula. Sobre o uso do vocativo, essa
criança havia conversado com a pesquisadora durante as duas criações
anteriores, realizadas durante a pesquisa. E, agora, conseguiu fazê-lo por
si só. Esse fato, além de outros já expostos anteriormente, comprova a tese
de Vigostki de que o que a criança consegue fazer hoje autonomamente,
já foi feito em cooperação no passado, pois é dessa forma que a cultura é
apropriada pelos sujeitos, e é assim que eles se humanizam.
Outro elemento que pode ser observado nas três últimas figuras do
quadro 11 é o uso da pontuação. Durante as criações realizadas durante a
pesquisa, essa criança, especificamente, usava a pontuação após a
elaboração de seus enunciados, nos momentos em que era questionada pela
pesquisadora sobre isso, e manteve esse hábito; entretanto, atualmente,
consegue fazer esse processo reflexivo sozinha.
Apesar de sempre ter sido alertada para tentar pontuar seu
enunciado durante sua escrita ao longo das criações do projeto, a criança
continuou relegando o ato de pontuar para a etapa de revisão. Em outros
240
termos, Betânia ainda não incorporou a pontuação simultânea aos atos de
escrita.
Um último elemento a ser destacado na criação de Betânia refere-
se ao fato de que, após as inúmeras correções ortográficas e de pontuação
feitas em seu texto, ela manteve os traços da oralidade presentes no trecho
final de seu enunciado, como sempre quis fazer durante as suas criações
realizadas na pesquisa.
De acordo com as discussões de Bakhtin e de Volochínov, na vida
e também no enunciado, da provocação até a subversão da ordem,
tentativas de forças que se processam para tentar legitimar diferentes
formas não institucionalizadas de agir.
Uma vez que
Estas formas de interação verbal acham-se muito estreitamente
vinculadas às condições de uma situação social dada e reagem de
maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social [...]
acumulam-se mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis que,
mais tarde encontram sua expressão nas produções ideológicas
acabadas (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2010, p. 43).
Isso remete à importância do componente hierárquico no processo
de trocas verbais e a poderosa influência que exerce essa organização nas
relações sociais sobre os enunciados. Pelo fato de estar conversando com
sua mãe, ela se deu a liberdade de escrever mais informalmente, mantendo
em seu texto os traços da oralidade, como se pode constatar na figura 32.
241
Figura 32Versão final do bilhete de Betânia para sua mãe
Fonte: registros da pesquisadora em 21/06/2015.
O uso desses traços de oralidade tem relação com as forças
subversivas, chamadas de centrífugas, por Bakhtin (2008), ao se referir às
forças descentralizadoras da linguagem que objetivam torná-la
heterogênea, e que atuam para possibilitar a versatilidade e a instabilidade
dos processos e leis instituídos.
Em suma, sobre a criação dessa criança, fica evidente que se tornou
um enunciado passível de entendimento e que apesar de manter alguns
erros ortográficos e marcas da oralidade pode ser enviado a sua
interlocutora e ser respondido, demonstrando a compreensão da
importância da revisão, da reescrita e do uso de estratégias para o processo
de elaboração de seus enunciados.
A seguir, será apresentado o processo de criação de um enunciado
de mais uma criança em seu nível de desenvolvimento real, que equivale à
área em que a criança consegue fazer as atividades individualmente,
também com o objetivo de analisar se houve contribuições da pesquisa
para seus atos de escrita.
242
Quadro 10 - Processo de escrita da carta de César para sua mãe
1.
2.
3.
243
4.
5.
6.
244
7.
Fonte: registros da pesquisadora em 23/06/2015.
Nessa criação, fica evidente que a primeira estratégia de revisão
usada pela criança foi o corretor ortográfico do editor de textos. No caso,
porém, do nome da mãe, embora “Orlandina” estivesse grifada em
vermelho, César não precisou consultar o corretor ortográfico, pois já tinha
certeza da escrita desse nome. Além disso, na quinta parte do quadro 10,
uma das opções do corretor foi observada e negada por ele no momento
em que não encontrou a opção ortográfica que buscava para corrigir a
escrita para “Desel” (de seu). Observa-se também que a criança grafou
dessa maneira orientada pela aprendizagem da linguagem escrita por meio
da oralidade, pois se tivesse aprendido por meio gráfico o resultado de sua
escrita seria outro, provavelmente mais próximo de seu modo de escrever,
uma vez que atos de escrita fazem parte de um sistema gráfico e devem ser
ensinados pelos aspectos gráficos que o compõem.
Diante do exposto, percebe-se a ideia de que há um processo de
constituição de enunciados escritos por uma palavra oral exterior ou
interior, que medeia os sinais gráficos e circunda a criação de atos de
escrita; no entanto, no ensino desses atos é necessário ter a consciência de
que a criação escrita “[...] trabalha sobre um simbolismo direto, é a tomada
imediata de um significado da escrita [...]” (FOUCAMBERT, 2008, p.
66).
245
Segundo Foucambert, necessita-se refletir sobre a legitimidade das
práticas de escrita do ensino hodierno, pois
[...] não se trata de identificar uma forma a fim de encontrar para ela
um correspondente oral, mas de atribuir diretamente um significado a
um elemento com base no conjunto em que ela atua: a procura de
índices visuais se insere de antemão numa antecipação do sentido
(FOUCAMBERT, 1998, p. 99).
Diante do que foi dito, conclui-se que as práticas de escrita
propostas pela escola deveriam enfatizar a escrita como uma linguagem para
o olho, e “a leitura como um processo grafo-semântico, uma troca direta e
recíproca entre as informações atrás e diante dos olhos” (FOUCAMBERT,
1998, p. 121). Esse paradoxo afeta a didática, que abandona as
comprovações científicas do saber especializado da área com a intenção de
planejar transposições.
Apesar da criação ainda conter alguns erros ortográficos, a criança
conseguiu se apropriar das características do gênero carta e das estratégias
de revisão do editor de textos. Demonstrou, também, que estava segura
quanto à necessidade de pontuação e de acentuação gráfica pontuou seu
texto e acentuou seu nome fictício, com o qual já tinha contato antes da
pesquisa por ser o nome de um de seus amigos.
Portanto, ao elaborar atos de escrita, essa criança já consegue
compreender a sua função social e se esforça para dar ao seu enunciado o
relativo acabamento para endereçá-lo a alguém. Isso demonstra que a
participação no projeto contribuiu para que a criança escrevesse cada vez
mais autonomamente.
Um terceiro exemplo de criação textual em busca do nível de
desenvolvimento real das crianças, para avaliar a qualidade das
intervenções da pesquisa, se encontra no próximo quadro.
246
Quadro 11 - Etapa inicial do processo de escrita da narrativa de Francisco para seus
irmãos
1.
2.
3.
4.
247
5.
6.
7.
8.
9.
10.
248
11.
Fonte: registros da pesquisadora em 24/06/2015.
Como se pode observar na parte 1 do quadro 11, apesar de
Francisco ainda não escrever ortograficamente seu texto, ele não se cansa
de tentar, pois sua preocupação inicial se dá com o sentido de seu escrito;
só depois, na revisão e na reescrita de seu texto, os aspectos ortográficos
passam a ser objeto de sua atenção, cumprindo a finalidade de colaborar
para o estabelecimento da coesão do todo do enunciado.
Da mesma forma que as outras crianças, Francisco, ao fazer a
revisão com a tentativa de compenetração, tentando se tornar o seu leitor,
e com o uso do corretor ortográfico, vai tornando seu texto inteligível e
com um determinado acabamento para que possa ser passível de resposta,
como se pode observar na figura que vem a seguir.
Figura 33 Versão final da narrativa de Francisco para seus irmãos
Fonte: registros da pesquisadora em 27/06/2015.
No entanto, por não fazer a separação das palavras em boa parte de
seu texto, teve que fazer as correções sem a ajuda do corretor ortográfico,
que nessa elaboração foi pouco utilizado. Por isso, seu esforço para fazer a
revisão e a reescrita de seu texto foi maior, e a reflexão sobre os elementos
linguísticos demandou mais tempo. Apesar disso, conseguiu criar um
enunciado inteligível para ser entregue aos seus irmãos.
249
Episódio de preconceito linguístico
“No fundo, o preconceito linguístico é um preconceito social. É uma
discriminação sem fundamento que atinge falantes inferiorizados por
alguma razão e por algum fato histórico”.
(Sírio Possenti, 2011, p. 4)
De acordo com essa epígrafe e por meio do episódio relatado a
seguir, pode ser observado como a falta do entendimento de que a
linguagem é viva e devido ao seu uso se transforma, e essa transformação é
sua fonte geradora de vida, pode gerar equívocos durante o processo de
ensino e aprendizagem de crianças que acabam sendo desfavorecidas por
uma visão de mundo hegemônica que tudo quer padronizar, e, assim,
acaba trabalhando a favor dos interesses de forças que, tempos, detêm o
poder.
Tanto no momento em que foi indicada pela professora de língua
portuguesa para participação na pesquisa, quanto no momento em que foi
levada a participar da avaliação, que foi a terceira forma de seleção dos
participantes, como também quando participou do encontro com a
pesquisadora, a aluna Joelma (nome fictício escolhido pela própria
criança) foi referida pelos seus professores como uma excelente aluna, pois
participava das aulas e se esforçava para fazer todas as atividades propostas,
mas por ter vindo de outro estado, mais especificamente do Piauí, falava de
um modo diferente e escrevia da mesma forma como falava, e isso
dificultava o entendimento por parte deles.
Durante os encontros da pesquisa, disse que tentava participar
oralmente das atividades escolares, pois apresentava dificuldades de se
expressar por meio de atos de escrita, entretanto os professores diziam que
não conseguiam compreendê-la e pediam a ela para mudar o seu modo de
falar para se adaptar à forma de falar deles.
250
Além disso, havia uma confusão por parte desses professores entre
a linguagem oral e a linguagem escrita; para eles, tratava-se da mesma coisa:
como a forma de escrever dessa aluna apresentava inúmeras inadequações,
pelo fato de ainda estar no processo de apropriação de atos de linguagem
escrita, e como seus professores consideravam que a escrita depende da
oralização, eles achavam que o seu modo de falar estaria prejudicando o
seu modo de escrever.
Entretanto, durante a pesquisa, foram encontradas várias crianças
que falavam exatamente do modo de falar que os professores exigiam de
Joelma, mas que apresentavam as mesmas dificuldades que ela.
O modo de falar dessa menina, por ser encarado como estrangeiro,
agravou o modo de os professores verem suas dificuldades de escrita.
Entretanto, suas dificuldades nas criações dos atos de escrita eram tão
numerosas quanto as dificuldades das outras crianças participantes da
pesquisa, que não apresentavam tal variedade linguística.
Em relação a isso, convém ao professor pensar criticamente sobre
esse problema e tentar aproximar o máximo possível seu conhecimento dos
conhecimentos científicos desenvolvidos até o momento sobre essa
temática; por isso, foram observados a seguir, alguns apontamentos
relacionados a esse modo de pensar que busca calar ao invés de dar voz.
Em relação a esse problema, Geraldi (2015, p. 49) afirma que a
educação linguística - e parte de sua política - deve lutar para melhor
compreender as diferenças e combater preconceitos linguísticos de
qualquer ordem, aprofundando seus estudos sobre as relações de
dominação linguística. “É nesse campo do político que se situa a razão de
ser do ensino da língua materna, muito mais do que na suposta
cientificidade da gramática que o sustentou no passado.”
Foi constatado, ainda, que a vontade de diminuir as diferenças
linguísticas desses professores está arraigada a uma constante no ensino da
251
linguagem que estima uma tradição abrigada até mesmo nos textos
sagrados,
Podemos retornar ao mito de Babel (Gênesis, capítulo 11, versículos 1
a 9) para encontrar nosso dilema. Antes de Babel, todos se
compreendiam? É o que a representação mitológica quer que
admitamos; depois do ‘pecado’ do orgulho de querer tocar a divindade
pelo engenho humano, o castigo: a diferença linguística aparece como
pena imposta e repete materialmente a expulsão do paraíso. A diferença
torna presente o pecado e o castigo. Buscar a unidade linguística seria
purgar o pecado e reencontrar a felicidade perdida. Se Babel introduz
as diferenças linguísticas, também introduz outro conceito: o de
estrangeiro, cujo sentido somente pode ser composto pelo seu inverso,
aquele que é natural, aquele que pertence ao grupo. Assim, a diferença
linguística diz também quem é o estrangeiro: aquele que fala diferente
(GERALDI, 2015, p. 117).
Nesse caso, podem ser observados dois movimentos paralelos e
opostos que acompanham o problema das diferenças linguísticas: o sonho
da unidade perdida e o convívio com a diferença. É impreterível tomar
cuidado com o primeiro, porque historicamente o aprendizado de uma
língua, mesmo sendo a língua materna, com a qual se fala, se dá por
meio do estudo da gramática, modelo didático herdado do estudo do
latim, que se sobrepõe a outras possibilidades ao estabelecer uma imagem
de como a língua deveria ser e enfatiza que criar essa unidade caberia à
escolarização, na ilusão de que todos se adaptem a um só modo de dizer e
a um padrão que não se altera no tempo e nem no espaço. Sobre isso,
esclarece Ponzio:
Na realidade, o monolinguismo, que é também o monologismo, não é
senão um aspecto da tendência totalitária que se exerce em relação ao
pluralismo e às diferenças, fazendo-se passar pela condição necessária
de convivência social (PONZIO, 2010a, p. 147).
252
De acordo com Gramsci (1985, p. 181 apud BRANDIST, 2010,
p. 194) as gramáticas normativas ambicionam abarcar todo o volume
linguístico de um idioma, a fim de criar um conformismo linguístico
uniforme. Apesar de afirmarem que o podem ignorar a história do
idioma, apontam um modelo único para se tornar a “linguagem comum”
de uma população. No entanto, esse modelo compete com outras
expressões já existentes (ligadas às forças que agem continuamente sobre as
gramáticas espontâneas da linguagem).
Segundo Brandist (2010, p. 195) essas gramáticas normativas
encontram-se ideologicamente saturadas, uma vez que são ligadas à língua
oficial dominante limitada aos centros locais e exerce a função de
monitoração. A carnavalização desse processo está na oposição da cultura
não oficial a esse folclore linguístico das concepções oficiais de mundo.
Os modos de operar dessa cultura não oficial são exatamente os
mesmos que Bakhtin caracterizou como cultura carnavalizada,
parodiando e esvaziando as pretensões à universalidade da língua e da
cultura oficiais que permanecem [...] fossilizadas e pretensiosas
(BRANDIST, 2010, p. 195).
Portanto, o estudo da linguagem por meio do seu uso aproxima-se
da sua realidade imediata e materializa-se mais informalmente, composto
de inúmeras refrações que esvaziam as pretensões de universalidade de seu
uso, tão almejadas pelas gramáticas normativas.
Em consonância com isso, de acordo com Lacapra (2010),
Bakhtin, ao se referir aos processos de carnavalização em relação ao
mundo, aponta que atitudes carnavalescas geram uma interação entre os
opostos básicos da linguagem e da vida, “[...] em que esses polos são
deslocados do seu puro binarismo e obrigados a tocar e reconhecer um ao
outro” (LACAPRA, 2010, p. 156). Por isso, estudar a linguagem por meio
253
de seus atos enunciativos, tanto orais quanto escritos, possibilita perceber
a linguagem viva e em transformação.
As discussões do Círculo de Bakhtin nomeiam os princípios
hegemônicos da gramática normativa como “palavra autoritária”, o que
seria encontrado, por exemplo, nas atividades de adequação linguística
propostas pelo “Caderno do aluno”, parte do material didático distribuído
pela rede pública de ensino paulista e usado pelas crianças participantes da
pesquisa.
A palavra autoritária exige de nós o reconhecimento e a assimilação, ela
se impõe a nós independentemente do grau de sua persuasão interior
no que nos diz respeito, nós a encontramos unida à autoridade. A
palavra autoritária, numa zona mais remota, é organicamente ligada ao
passado hierárquico. É por assim dizer a palavra dos pais. Ela já foi
reconhecida no passado. É uma palavra encontrada de antemão
(BAKHTIN, 1990, p. 143).
Nessa visão monológica do enunciado, é impossível aceitar as
variações que se encontram fora do padrão de perfeição linguística, pois o
que se recusa a cooperar com o padrão estabelecido é negado e excluído.
Outro princípio hegemônico apontado pelo Círculo de Bakhtin é
a antítese dessa palavra autoritária e encontra-se ligada à vida ideológica
independente e inspiradora, chamada de “palavra interiormente
persuasiva”. Sobre ela, Nikolai Bakhtin (1963, p. 345, apud BRANDIST,
2010, p. 201) o irmão mais velho de Mikhail Bakhtin, esclarece que esse
conceito é bastante entrelaçado à “palavra de cada um”. Sua criatividade e
produtividade consistem no fato de organizarem muitas outras novas
palavras e, consequentemente, novas formas de falar, independentes, que
por sua vez organizam muitas outras palavras que vêm de dentro de cada
um, que interagem intensamente, em uma verdadeira disputa com outros
enunciados persuasivos. Nessa luta intensa pela hegemonia entre vários
254
pontos de vista verbais e ideológicos formam-se as diferentes abordagens e
valores dentro de cada um de nós.
De acordo com Gramsci (1999, p. 327), esses princípios
hegemônicos coincidem com o exercício da hegemonia pela burguesia e
pelo proletariado. Na sociedade burguesa, o homem que faz parte da massa
deve ser submetido às ideias da classe dominante. Apenas quando o grupo
socialmente subordinado começar a agir com um grupo unido, começa
a surgir a elaboração da concepção de realidade não alienada.
Retomando as criações de Joelma, pode ser observada a sequência
de versões para a construção do primeiro texto, uma carta para sua irmã:
Quadro 12 - Carta de Joelma para sua irmã
255
256
Fonte: registros da pesquisadora em 01/04/2015.
Tendo em vista que a escrita da expressão as vesis estava ligada
à oralidade dessa criança, e não ao seu modo estrangeiro de falar, constatado
quando a participante externalizou essa expressão na hora da criação desse
trecho, foi observado que não havia diferença alguma entre o seu modo de
escrever e o das demais crianças, que em algumas situações sofreram
influência da oralidade em seus atos de escrita. Foi observado que outras
crianças não procedentes de outros estados apresentaram as mesmas
dificuldades que ela, ou seja, são comuns a elas as mesmas atribulações do
processo de apropriação dos atos de escrita, decorrentes do ensino a partir
do método nico como matriz de escrita, apesar de ter sua falta de eficácia
cientificamente comprovada, ainda é usado para tentar alfabetizar as
crianças. Isso pode ser observado, por exemplo, em um dos textos de sar.
Quadro 13 - Carta de César para seu pai
1.
2.
257
3.
4.
5.
6.
7.
8.
258
9.
10.
Fonte: registros da pesquisadora em 08/04/2015.
César também foi influenciado pela oralidade em dois momentos
de sua carta: na escrita de munto, ao tentar escrever a palavra muito, e de
de sa ao tentar escrever desta (preposição de + pronome demonstrativo
esta), assim como ocorreu em muitos casos com as outras crianças desta
pesquisa. Por isso, não se trata de ter mais dificuldades na escrita ou de não
conseguir se comunicar por possuir um sotaque diferente.
A pesquisadora nunca teve problemas de comunicação com
Joelma: ofereceu-lhe ajuda na projeção, na elaboração e na revisão de todos
os seus textos criados durante a pesquisa. No entanto, as perguntas de seus
professores e das coordenadoras pedagógicas à pesquisadora em relação ao
desempenho da oralidade dessa aluna eram frequentes. Foi apontado por
eles, inclusive, o fato de terem passado a entendê-la melhor, no decorrer
da investigação, mesmo que essa melhora não tenha sofrido influência da
participação dessa aluna na pesquisa, que não intencionava interferir na
fala de seus participantes, embora isso tenha ocorrido, algumas vezes, com
o intuito de revisar a escrita das crianças. Além disso, não houve, por parte
da pesquisadora, nenhuma pretensão de compactuar com qualquer tipo de
preconceito linguístico ou com alguma forma de exclusão.
O que pode ter ocorrido é que a aluna tenha passado a falar de uma
forma mais próxima do falar de seus professores, devido ao aumento de
259
tempo de convivência com pessoas da região, pois quando começou a ser
feito o trabalhado de pesquisa com ela, foi informado que estava na cidade
apenas há poucos meses e frequentando a escola menos de dois meses,
e os relatos sobre a substituição de sua variedade de fala anterior para a
variedade local foram proferidos quando se aproximava da metade no
segundo semestre do ano, em meados do quarto bimestre.
Com um breve passeio pela mitologia do preconceito linguístico,
conforme convida Bagno (1999), é possível refletir para encontrar os meios
de combate a essas formas de preconceito, que podem ser usadas não só
nas atividades pedagógicas dos professores, mas também em suas vidas,
principalmente pelos professores de língua portuguesa, que são os que mais
têm contato com os estudos sobre a linguagem e, por isso, devem ter mais
conhecimento sobre esse assunto, para poder combater atos
preconceituosos que possam suceder a suas crianças ou impedir que
aconteça por parte de suas crianças em relação a outras pessoas.
Nesse caso que está sendo relatado, foi percebido que o
comportamento de parte da equipe docente e da coordenação
pedagógica, provavelmente por falta de conhecimento sobre o assunto,
estava alicerçado no mito intitulado pelo professor Bagno de Mito n° 1
que diz que “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade
surpreendente”, visto por ele como o maior e o mais sério dos mitos que
acompanham o preconceito linguístico no Brasil, por estar arraigado a sua
cultura e por encontrar-se até mesmo nas obras de intelectuais renomados.
O autor enfatiza que até mesmo pessoas de visão crítica se deixam enganar
por ele. Apesar de ser o português a língua falada pela grande maioria da
população brasileira, ele apresenta grande diversidade, não apenas pela
grande extensão territorial do país, mas também pelas diferenças de falar
de acordo com o status social de seus falantes. As variedades não padrão do
português estão presentes na maioria da população brasileira.
260
Além disso, “[...] é preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir
a um único local ou a uma única comunidade de falantes o “melhor” ou o
“pior” português e passar a respeitar igualmente todas as variedades da
língua, que constituem seu tesouro cultural precioso” (BAGNO, 1999, p.
51), pois todas as variedades têm o seu valor e possibilitam plenamente a
interação entre seus falantes.
Existe também o preconceito contra as variedades linguísticas de
certas regiões. Bagno (1999, p. 43) relata, por exemplo, o modo de retratar
a linguagem dos nordestinos nas novelas de televisão, principalmente da
Rede Globo, e encara isso como uma verdadeira afronta aos direitos
humanos, pois, nesse contexto, “Todo personagem de origem nordestina
é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o
riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador”
(BAGNO, 1999, p. 44). Vale a pena lembrar que tal emissora contém
grande parte da audiência brasileira, principalmente, em suas novelas. Os
atores, que geralmente não são nordestinos, expressam-se num arremedo
de língua que não se configura em lugar nenhum do Brasil. É sabido que
essa é uma atitude extremamente excludente.
Conforme já visto, o sujeito se humaniza quando é posto em
contato com a cultura, e constrói sua identidade, desestabilizando sua
condição anterior em uma relação de alteridade com o que é estrangeiro a
ele no outro. Deste modo, o incentivo ao uso da norma culta, não pode ser
feito de modo absoluto, nem de modo preconceituoso. A presença das
regras variáveis presentes em todas as variedades da língua deve ser levada
em conta e até mesmo as da norma culta. Por isso, faz-se necessário “o
estudo dos fenômenos da linguagem humana e à proposição de novos
métodos de ensino, capazes de dar voz aos que, por força de tantas
estruturas sociais injustas, sempre foram mantidos no silêncio” (BAGNO,
1999, 183).
261
Se o caminho almejado for o da cidadania, a resposta deve ser
positiva em busca de um futuro em que o diálogo se torne constitutivo dos
sujeitos únicos e livres, pois num mundo onde as alteridades são aceitas, as
ações de exclusão e de intolerância são superadas.
Na vida, o uso da linguagem advém do intencional para o
convencional, apesar de na escola isso se proceder ao contrário, das
convenções linguísticas para as intenções enunciativas, quase sempre
artificiais, impostas ou sugeridas pelos professores. É necessário que, com
o tempo, a criança entenda que para cada situação enunciativa, uma
variedade linguística é requerida e, assim, sua compreensão do padrão culto
terá início, caso não o tenha trazido de casa.
262
263
Conclusão
“Não cessaremos de explorar
E ao fim de nossa exploração Voltaremos ao ponto de partida
Como se não o tivéssemos conhecido”.
(Thomas S. Eliot, 2004, p. 384)
Com a pesquisa aqui relatada foi pretendido que os sujeitos não só
escrevessem seus textos, mas também se apropriassem das funções da
escrita para criá-los de maneira cada vez mais autônoma. Além disso, foi
almejado, com a proposição de situações enunciativas reais com gêneros
escolhidos pelas crianças, que as dificuldades de escrita passassem a ficar
em segundo plano, já que a preocupação com sentido estaria em primeiro.
Entretanto, é sabido que na escola,
Via de regra, pouca ou nenhuma participação das crianças é permitida
nas decisões ou conhecimento daquilo que é preparado e planejado
para cada dia. A criança ainda é concebida como pouco capaz, e que,
por isso, não sabe tomar decisões, ter iniciativa, resolver conflitos ou
escolher atividades (MILLER; MELLO, 2008, p. 45).
Dessa maneira, a experiência na escola tem mostrado que esse
período de descoberta dos atos de leitura e de escrita parece ser substituído
por uma gama de atividades e tarefas mecânicas, sem sentido algum para
as crianças, “e é exatamente nesta fase em que ouvimos dos professores e
de alguns pais lamentações que já se tornaram uma espécie de jargão: meu
aluno (filho) não quer nada ou meu aluno (filho) não aprende nada
(RIBEIRO; ARAÚJO, 2007, p. 166). Contudo, o que os pais e os
264
professores precisam saber é que não há aprendizagem quando não há
sentido naquilo que é proposto. Assim, o
Apoderar-se da letra, e da escolaridade que ela demanda, resulta de uma
sábia decisão popular porque os excluídos cedo perceberam sua
significação e relevância. Mas na escola que temos e no estágio atual da
estrutura de sociedade, ainda é possível apostar em políticas de
construção do novo com base no instável, local, mutável e único,
elegendo os acontecimentos como alavanca da reflexão sobre o
múltiplo (GERALDI, 2010, p. 131).
A partir do que foi dito, mostra-se a necessidade e o desafio político
e pedagógico de alfabetizar, como uma prática cotidiana urgente, que
precisa ser pensada teoricamente, enquanto se realiza, pois não se pode
ficar parado esperando a elaboração de novas teorias. Portanto, é necessário
que sejam conhecidas formas de alfabetização condizentes com o momento
histórico atual, em que inúmeras transformações são operadas.
Geraldi (2010, p. 163) relata que nos estudos com professores foi
revelado que sua identidade profissional não é posta em crise quando o que
se ensina deixa de ser fixo. Quando o que é ensinável (o pronto, o acabado,
que caracteriza a profissão docente) se torna livre, o prazer do aprender
com o outro é comprovado e emergem possibilidades de construção de
identidades tanto do professor quanto das crianças.
Desse modo, é preciso mudar o enfoque da escola, pois ela precisa
ser vista não como uma instituição de ensino, mas como uma instituição
de aprendizagem, uma vez que, “Ter algo a dizer e saber que isso pode ser
escrito e lido é o primeiro passo do processo de aprender a ler e a escrever”
(MILLER; MELLO, 2008, p. 35). As necessidades de criar atos de escrita
começam com a vontade da criança de se expressar. De acordo com os
estudos de Vigotski (2000a, 2000b, 2001, 2010), o ensino da linguagem
deve considerar que a relação interacional é fundamental, pois é a partir
265
da interação entre a criança e um operador de ões culturais que ocorre o
seu crescimento intelectual e o desenvolvimento da sua linguagem.
Além disso, conforme Vigotski e Bakhtin defendem, o caminho da
criança até o objeto passa através dos signos, ressaltando-se, nesse processo,
o valor dialógico da linguagem como constituinte dos processos cognitivos,
sociais e ideológicos.
Ficou constatado, na pesquisa realizada, que nos momentos em
que ocorrem situações autênticas de escrita, em contextos interativos, por
meio dos signos, com esses operadores de ações culturais, as crianças
aprendem o valor social dos atos da escrita. E, assim, a apropriação da
escrita flui com mais facilidade, mesmo para aqueles que apresentam
dificuldades em se alfabetizar; ou seja, mesmo as crianças consideradas em
processo de exclusão, por ainda não terem aprendido a escrever com
fluência, conseguem se apropriar de seus atos em processo de uso.
Para que os atos de escrita não ocorressem de forma alienada, foram
propostas criações por meio do estudo dos gêneros do enunciado, pois ao
projetar um texto com a visão final do que se deseja elaborar, são buscadas
maneiras de concretizar essa criação por meio de etapas de elaboração
enunciativa. Nesse processo o enunciado toma forma para quem quer
escrever até que adquira o acabamento linguístico necessário para que ele
se torne passível de resposta.
Indo ainda mais além, ressalta-se que, para se desenvolver a
elaboração de atos de escrita cada vez mais autônomos e críticos, são
necessários conhecimentos de vários gêneros do enunciado e isso se dá por
meio de atos de leitura diversificados, que implicam a capacidade de escolha
dos sujeitos. Isso se torna muito difícil com o uso de poucos gêneros na
sala de aula.
Desse modo, o uso dos gêneros do enunciado escolhidos pelas
crianças foi essencial na geração dos dados, pois contribuiu para que seus
atos de escrita fossem realizados em um contexto significativo, uma vez
266
que desde o início os enunciados criados foram direcionados aos
interlocutores reais.
Apesar da escolha dos gêneros do enunciado pelas crianças nem
sempre ser possível no cotidiano escolar, em muitas ocasiões durante a
pesquisa, ela possibilitou o desbloqueio de um sentimento de incapacidade
que caracterizava as crianças do sexto ano que iriam iniciar o processo de
aquisição da escrita, uma vez que essa estratégia lhes deu um forte motivo
para escrever.
Além disso, nos momentos de tentativa de transgressão das
normas, que são características dos gêneros do enunciado, as crianças
constataram que a língua pode ser simultaneamente espaço de restrição
com suas estruturas, suas condições de usos e suas limitações das
possibilidades expressivas e espaço de liberdade com o conjunto de opções
lexicais e variedades linguísticas que podem ser aproveitadas para a
construção de um dizer mais particular e individualizado.
Vale ressaltar que a pesquisa aqui relatada teve enfoque na criação
dos atos de escrita nos suportes digitais, pois é sabido que os seus sujeitos,
de alguma forma (direta ou indiretamente), dentro e fora da escola, têm a
oportunidade de conviver com diversos materiais escritos em variados
suportes. Mesmo aquelas crianças cujos pais são menos escolarizados ou
têm menos condições financeiras, têm a chance de observar o uso do
computador e do smartphone nas esferas sociais nas quais circulam.
A esse respeito, Ribeiro & Araújo (2007, p. 167) comentam que,
se de um lado, para alguns adultos, ainda é difícil adaptar-se às novas
tecnologias, pois talvez em seu tempo de crianças ou mesmo de
adolescentes não puderam vivenciar e experimentar a escrita digital, por
outro lado, os jovens demonstram adaptar-se rapidamente a elas, pois
navegam pelas ondas da internet sem grandes dificuldades.
Entretanto, para uma parte considerável das crianças que
participaram da pesquisa, o uso dos aparelhos digitais representou o
267
primeiro contato e o manuseio de um instrumento da cultura digital
para criar atos de escrita. Mesmo para as que tinham o computador e
smartphones em casa e os utilizavam para jogos de entretenimento ou para
ver vídeos, essa foi a oportunidade de conhecer os programas e aplicativos
por meio dos quais poderiam elaborar seus enunciados escritos, embora já
tivessem observado os pais usarem o computador ou o smartphone para se
comunicar via correios eletrônicos, mensagens, trocas instantâneas, ou seja,
já tivessem tido o contato indireto com os textos que circulam nos meios
digitais.
Por isso, foi constatado que o ensino de atos de escrita por meio
do desenvolvimento de criações que tiveram como suportes o computador
e o smartphone teve um significado especial para as crianças da pesquisa
realizada, pois além de elas aprenderem a elaborar atos de escrita inseridos
na corrente enunciativa foi possível proporcionar a elas um novo ambiente
de aprendizagem o ambiente digital. Dessa forma, fica evidente que
trazer para a escola variedades tanto de suportes como de gêneros que
circulam socialmente sempre causa efeitos benéficos, não só para a
aprendizagem de conhecimentos formais da linguagem como também
para a vivência de suas práticas sócio-enuciativas.
Além disso, com o uso das ferramentas digitais, aspectos cognitivos
e físicos relacionados aos atos de leitura e de escrita são transformados,
possibilitando que as crianças voltem sua atenção para estruturas da escrita
ou para aspectos gráficos não percebidos quando operavam com outros
suportes de texto.
Ficou evidente que, durante o desenvolvimento da pesquisa, os
aparelhos digitais tornaram-se recursos que ajudaram na trajetória dos atos
de escrita dos sujeitos não apenas pelo corretor ortográfico ou pelo banco
de palavras que eles possuem, mas também por disponibilizarem em seus
teclados todas as letras e sinais gráficos como possibilidades para a
materialização dos enunciados das crianças.
268
Além disso, o acréscimo de novos fatores materiais, como o
notebook e o smartphone, na forma de registrar os atos de escrita,
potencializa os suportes digitais como instrumentos importantes de
alfabetização, por serem promotores do estudo epilinguístico dos aspectos
da linguagem e por causarem interferências qualitativas nos atos de escrita
das crianças que se encontram no processo de apropriação dessa linguagem
269
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SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Lívia Pereira Mendes
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Este livro defende a ideia de que “o ensino da linguagem exige aceitar que
os sujeitos estão em contínua constituição à medida que interagem com
os outros, num processo contínuo de se completar pelo outro e completar
o outro, pois os conceitos que são internalizados por ambos são formas de
compreender o mundo.”
Revela-nos que “o ensino de atos de escrita por meio do desenvolvimento
de criações que tiveram como suportes o computador e o smartphone teve
um signicado especial para as crianças da pesquisa realizada, pois além de
elas aprenderem a elaborar atos de escrita inseridos na corrente enunciativa
foi possível proporcionar a elas um novo ambiente de aprendizagem – o
ambiente digital”. Mostra, ainda, que “trazer para a escola variedades tan-
to de suportes como de gêneros que circulam socialmente sempre causa
efeitos benécos, não para a aprendizagem de conhecimentos formais
da linguagem como também para a vivência de suas práticas sócio-enu-
ciativas”.
Este livro denominado A APREN-
DIZAGEM DA ESCRITA POR CRIAN-
ÇAS COM SUPORTES DIGITAIS re-
sulta de monograa de Mestrado de Érika
Christina Kohle, do Programa de Pós-
-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências, Universidade Estadu-
al Paulista – Unesp Campus de Marília.
A pesquisa de que resultou este
livro teve como objetivo compreender
como o uso de determinadas estratégias
de ensino possibilitaria inserir, no mun-
do da escrita, crianças do sexto ano do
ensino fundamental II ainda não criado-
ras de textos escritos, auxiliando-as, por
meio dessas estratégias, em seu proces-
so de aprendizagem de atos de escrita.
Dentre os seis capítulos que o
compõem, o primeiro traz os conceitos-
-chave que conduziram as análises dos
dados gerados durante a pesquisa, con-
ceitos provenientes dos autores do cha-
mado Círculo de Bakhtin e da Teoria
Histórico-Cultural, bem como os con-
ceitos de suporte e de suporte digital.
O segundo capítulo é dedicado à ex-
plicitação das opções metodológicas feitas
para o desenvolvimento da pesquisa: pes-
quisa-ação e dialogia, em processo de cons-
tituição de uma forma dinâmica e subjetiva
de ver a pesquisa no âmbito educacional.
Para apresentar a escrita e seu en-
sino, o terceiro capítulo foi organizado
por meio de três subitens: o primeiro traz
um breve percurso sobre a valorização
da escrita, o segundo discute o seu en-
sino na atualidade e o trabalho com -
neros do enunciado como possibilidade
de ensino de atos de escrita e o terceiro
evidencia a formação do sujeito autor de
textos de diversos gêneros do enunciado.
O quarto capítulo apresenta a es-
crita por meio de gêneros do enunciado
no processo de aproprião da linguagem.
Subdivide-se em dois subitens: A esco-
lha dos gêneros do enunciado no processo
de apropriação da escrita e A importância
da escrita para o outro nos atos enuncia-
tivos.
Com foco no auxílio dos supor-
tes digitais para a criação dos gêneros
do enunciado, o quinto capítulo apre-
senta dois subitens, conforme os apare-
lhos digitais usados como suportes de
escrita: O auxílio dos recursos do compu-
tador na criação dos enunciados e O auxí-
lio dos recursos do smartphone na criação
dos gêneros do enunciado.
E, nalmente, o sexto capítulo
focaliza a questão central da pesquisa: a
interação dialógica entre pesquisadora
e pesquisados, que possibilitou ações,
atividades, análises e reexões para am-
bas as partes.
A aprendizagem da escrita

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Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 396/2021
Processo Nº 23038.005686/2021-36
Érika Christina Kohle
Érika Christina Kohle
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