E A FILOSOFIA DAS
NEUROCIÊNCIAS
O PROBLEMA DA LOCALIZAÇÃO DE FUNÇÕES CEREBRAIS
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Merleau-Ponty e a Filosofia das Neurociências: o problema da localização de funções cerebrais Edvaldo Soares
Edvaldo Soares
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o problema da localização de funções cerebrais
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
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o problema da localização de funções cerebrais
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Profa. Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Profa. Dra. Ana Cláudia Vieira Cardoso
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2022, Faculdade de Filosoa e Ciências
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
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Claudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Parecerista:
Prof. Dr. Alfredo Pereira Junior
Professor Associado do Departamento de Ciências Humanas e Ciências da Nutrição e Alimentação
do Instituto de Biociências, UNESP - campus de Botucatu.
Ficha catalográca
Soares, Edvaldo.
S676m Merleau-Ponty e a losoa das neurociências : o problema da localização de funções
cerebrais / Edvaldo Soares. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2022.
199 p.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-303-8 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-304-5 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-304-5
1. Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961. 2. Neurociências. 3. Psicosiologia.
4. Cérebro – Localização das funções. 5. Filosoa da mente. 6. Psicologia experimental.
I. Título.
CDD 612.8
Telma Jaqueline Dias Silveira –Bibliotecária – CRB 8/7867
Imagem capa: https://stock.adobe.com/br - Arquivo nº 266405553 Acesso em 19/10/2022
S
Prefácio ------------------------------------------------------------------------------- 7
Introdução --------------------------------------------------------------------------- 13
Capítulo I
o Contexto FIlosóFICo
Dualismo e Mecanicismo ---------------------------------------------------------- 18
A Retomada da Consciência ------------------------------------------------------- 22
Fenomenologia ---------------------------------------------------------------------- 25
Capítulo II
o Contexto CIentíFICo
Anatomia e Fisiologia --------------------------------------------------------------- 29
Psicologia Experimental ------------------------------------------------------------ 36
Localizacionismo de Funções Mentais ------------------------------------------- 55
Capítulo III
Merleau-ponty e a psICologIa experIMental
Análise do Comportamento ------------------------------------------------------- 75
Localizacionismo -------------------------------------------------------------------- 82
Corpo e Consciência ---------------------------------------------------------------- 102
Capítulo IV
neuroCIênCIas: loCalIzaCIonIsMo, plastICIdade e MeMórIa
Plasticidade e Memória ------------------------------------------------------------- 118
Localização de Funções Mentais -------------------------------------------------- 135
Capítulo V
Contexto atual da FIlosoFIa da Mente
Dualismos e Reducionismos ------------------------------------------------------- 148
O Resgate do Biológico ------------------------------------------------------------ 156
ConsIderações FInaIs -------------------------------------------------------------- 173
reFerênCIas -------------------------------------------------------------------------- 183
| 7
Dedico este livro aos grandes mestres da Universidade de São
Paulo, que, não só contribuíram para minha formação, mas
também para o desenvolvimento das neurociências no Brasil:
os professores Arno Engelmann e César Timo-Iaria (ambos in
memoriam) e, de forma muito especial, ao professor José Lino
Oliveira Bueno, meu ‘eterno’ orientador que, muito colaborou,
com seu conhecimento e generosidade, para com as discussões
levantadas e apresentadas nesta obra.
8 |
| 9
P
Alfredo Pereira Jr.
O lósofo Merleau-Ponty passou a ocupar posição de destaque
na losoa da mente e das neurociências na década de 1990, a
partir da publicação de dois livros, um mais conhecido do público
acadêmico (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1992) e outro voltado
para neurocientistas adeptos da abordagem de sistemas dinâmicos
(FREEMAN, 1994).
Neste livro, escrito pelo colega unespiano Edvaldo Soares, o primeiro
capítulo trata da história dos problemas do mecanicismo e localizacionismo
na história do pensamento losóco e cientíco, a partir de Descartes, e
de sua crítica por três lósofos idealistas, Bergson, Brunschvicq e Husserl.
Como a fenomenologia idealista de Husserl antecede a fenomenologia
existencial de Merleau-Ponty, temos aqui um preâmbulo relevante.
O segundo capítulo começa tratando do contexto cientíco e de
losoa da ciência da época em que Merleau-Ponty escreveu ‘A Estrutura
do Comportamento’. Em seguida, o autor trata do ‘localizacionismo’,
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-304-5.p-9-12
Edvaldo Soares
10 |
que remonta à Frenologia do Séc. XIX, sua crítica neurosiológica
por Karl Lashley e outros (inclusive psicólogos) no Séc. XX, chegando
enm ao trabalho de Kurt Goldstein, que inuenciou Merleau-Ponty. O
organicismo’ de Goldstein se opunha ao reducionismo mecanicista e não
propriamente ao ‘localizacionismo’, como evidenciado em sua análise do
efeito de lesões. O oposto do ‘localizacionismo’ seria então o ‘holismo’ da
Psicologia da Gestalt, em particular a teoria do campo eletromagnético
de W. Kohler (vide KOHLER; HELD, 1949) que corresponderia ao
campo perceptivo”.
O terceiro capítulo trata da abordagem de losoa da mente
expressa na ‘Fenomenologia da Percepção’, em que Merleau-Ponty adota
parte dos pensamentos gestaltista e goldsteiniano para elaborar sua teoria
da intencionalidade. Observemos que a adversária de Merleau-Ponty
aqui é a teoria do estímulo-resposta, que se encontra presente tanto em
Pavlov quanto no behaviorismo ocidental. A análise de Merleau-Ponty é
direcionada ora ao comportamento, ora à percepção, sugerindo – de modo
implícito - uma postura crítica em relação ao ‘localizacionismo’ adotado na
subárea da neurociência então intitulada Anatomia Funcional.
É na década de 1990, dedicada especialmente ao estudo do cérebro
(vide uma revisão da Filosoa da Neurociência desta época em Pereira
Jr., 2018) com as Imagens por Ressonância Magnética Funcional (termo
abreviado como fMRI, em inglês), que o ‘localizacionismo’ chega a seu
auge, se tornando a ‘Nova Frenologia’. A análise detalhada da losoa
de Merleau-Ponty aqui contida nos apresenta a hipótese losóca do
Paralelismo Estrutural, que possivelmente se anaria com abordagens mais
recentes, como o Monismo de Duplo Aspecto de Max Velmans (vide discussão
em Pereira Jr., 2013). Nestas abordagens, o funcionamento integrado da
mente, propiciando as vivências descritas fenomenologicamente, implica
em uma negação do ‘localizacionismo’ mais radical, pois aponta para a
existência de processos neurais/mentais que geram os estados intencionais,
os quais, por sua vez, propiciam um comportamento que faça sentido para
o agente e seja adaptativo frente ao ambiente.
A partir do Capítulo 4, o autor se preocupa em discutir os modelos
explicativos mais recentes à luz da losoa de Merleau-Ponty. Para isso,
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 11
faz uma revisão de discussões a respeito da localização de funções cerebrais
na década de 1990, e de trabalhos precursores como de Karl Lashley,
abordando vários autores relevantes. Embora não haja consenso a este
respeito, há uma aparente vantagem dos argumentos pela localização de
funções, em neurônios individuais em alguns casos, e em outros em regiões
associativas do cérebro, como o hipocampo ou o córtex pré-frontal; porém,
considerando-se a interconectividade destas com as demais, e não sua
atuação isolada. Na seção dedicada à Teoria da Consciência, defrontamo-
nos com o problema da integração da atividade cerebral na geração de
episódios vividos, o que sugere um processo global que retoma e supera
os processos localizados nas regiões e circuitos especializados do sistema
nervoso central.
O capítulo 5 é dedicado a uma revisão didática de correntes de
pensamento atuais a respeito do problema mente-cérebro. Destas, entendo
que o Monismo de Duplo Aspecto (ou de Triplo Aspecto, na minha versão –
Pereira Jr., 2013) seria a mais próxima ao Paralelismo Estrutural de Merleau-
Ponty. O autor deu especial ênfase à teoria da Autopoiese de Maturana e
Varela, que embasou trabalhos posteriores de Varela, pois seu Enativismo
incorpora em parte a Fenomenologia Existencial de Merleau-Ponty.
Nos Comentários Finais, o autor dá um fecho satisfatório às diversas
questões levantadas no livro, sem adentrar nas questões losócas mais
complexas, o que sugere que o livro seria uma ótima introdução ao assunto,
para o público leitor em língua portuguesa. Dentre as questões mais
complexas, podemos especular que nas obras posteriores à ‘Fenomenologia
da Percepção’, em que o conceito de ‘corpo vivo’ evolui para o conceito
de ‘carne’, se estabeleceria uma conexão mais forte com a ‘autopoiesis’.
Enquanto o conceito de “corpo” guarda ainda um resquício da linguagem
mecanicista – presente também na ‘autopoiese’, quando se refere a
máquinas’ - o conceito de ‘Embodied Mind’ de Varela e colaboradores
efetivamente corresponderia à ‘Mente Encarnada’ em Merleau-Ponty.
Edvaldo Soares
12 |
reFerênCIas
FREEMAN, W. Society of Brains: the neuroscience of love and hate. Hillsdale: Lawrence
Erlbaum, 1994.
KOHLER, W.; HELD, R. e Cortical Correlate of Pattern Vision. Science,
Washington, v. 110, p. 414-419, 1949.
PEREIRA JR., A. Triple-Aspect Monism: a framework for the science of consciousness.
In: PEREIRA JR., A.; LEHMANN, D. (ed.) e Unity of Mind, Brain and World:
current perspectives on a science of consciousness. Cambridge: Cambridge University
Press, 2013.
PEREIRA JR., A. Epistemological Issues in the Cognitive Neurosciences. Latvia:
Scholars’ Press, 2018. [Texto original de 1997]. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/317903581_Epistemological_Issues_in_the_Cognitive_
Neurosciences_1997. Acesso em: 25 ago. 2022.
VARELA, F.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. e Embodied Mind: Cognitive Science
and Human Experience. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.
| 13
I
A proposta deste trabalho é recolocar o pensamento de Merleau-
Ponty, em termos de críticas e soluções apresentadas pelo autor em suas duas
obras iniciais: Estrutura do Comportamento e Fenomenologia da Percepção,
frente aos avanços alcançados pelas Neurociências e, consequentemente às
reexões em losoa da mente. Nesse sentido duas questões propostas por
Bueno (1999) devem nortear a leitura desse trabalho:
1) As críticas elaboradas por Merleau-Ponty são ainda hoje pertinentes?
2) A solução de Merleau-Ponty em termos de uma analítica transcendental
é ainda uma solução viável?
O objeto para essa reexão se concentrará na questão do
localizacionismo entendido de forma geral como a teoria que concebe que
as diferentes funções mentais e motoras estariam ‘localizadas’ ou ‘contidas
em áreas especícas do encéfalo. Em outros termos, as funções mentais
estariam associadas às atividades de estrutura neurais especícas (DE
SOUZA; TEIXEIRA; DE OLIVEIRA et al., 2017; SBICIGO et al., 2016;
SOARES, 2003, 2004).
As respostas aos questionamentos serão desenvolvidas mais
especicamente a partir de estudos relacionados à memória e à plasticidade.
Em relação à ênfase dada neste trabalho, é importante salientar que
o envolvimento com a problemática merleau-pontyana, no que se refere
Edvaldo Soares
14 |
ao problema das localizações, pode conduzir a uma pesquisa com ênfases
diferentes, embora relacionadas: uma histórica e outra epistemológica.
Nossa opção é pela abordagem histórica, por meio da qual, em um
primeiro momento, procuraremos compreender e descrever a formação
do pensamento de Merleau-Ponty em um contexto losóco e cientíco.
No primeiro capítulo descreveremos o contexto losóco no
qual Merleau-Ponty (1908-1961) constrói sua crítica à psicosiologia,
especialmente à hipótese localizacionista de funções mentais. Em relação
ao contexto losóco, partiremos da questão da dicotomia sujeito - objeto,
iniciada com o pensamento cartesiano e, em seguida, o bergsonismo e a
fenomenologia, consideradas como escolas que inuenciaram na formação
da crítica merleau-pontyana.
No segundo capítulo abordaremos as principais posições em anatomia,
siologia e psicologia do período no qual se insere a obra de Merleau-
Ponty, dando destaque aos estudos do cérebro e da relação desse com as
funções mentais e com o comportamento. Ainda em termos do contexto
cientíco procuramos, em relação aos estudos em psicologia experimental,
anatomia e siologia, destacar a Escola Francesa; da Gestalt
1
a obras do
neurologista alemão Kurt Goldstein (1886-1965). É importante alertar
que, das escolas e autores trabalhados no primeiro capítulo, procuraremos
descrever e analisar os elementos mais importantes para a compreensão e
para a contextualização da crítica e do projeto de Merleau-Ponty.
No terceiro capítulo serão apresentadas a crítica e o projeto
de Merleau-Ponty contidos nas suas duas obras iniciais: Estrutura do
Comportamento e Fenomenologia da Percepção, considerando especialmente
os postulados da psicologia experimental ea crítica aos fundamentos do
localizacionismo. Apesar de usarmos como base essas duas obras, faremos
com frequência referência a outras obras do autor, sem as quais não é possível
entender, de forma objetiva, o projeto de Merleau-Ponty. Entre estas obras
destacamos: Primado da Percepção e suas Consequências Filosócas; Projeto
sobre a Natureza da Percepção; Natureza da Percepção; Resumo de Cursos:
Psicossociologia e Filosoa e A Natureza.
A ênfase maior será dada à Escola de Berlim, cujos principais representantes foram Max Wertheimer (1880-
1943), Kurt Koka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-1967).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 15
No quarto capítulo serão apresentados e discutidos alguns
desenvolvimentos em neurociências no que tange ao localizacionismo,
a partir do desenvolvimento de pesquisas que envolvem consciência,
plasticidade e memória, com o objetivo levantar subsídios para a discussão
acerca da pertinência da crítica de Merleau-Ponty frente ao desenvolvimento
das neurociências e da discussão losóca atual. Por m, no último capítulo
serão apresentadas algumas propostas em Filosoa da Mente.
Reiteramos que as descrições e análises aqui feitas têm por objetivo
apresentar subsídios para a reexão sobre a adequação da problemática de
Merleau-Ponty, bem como a atualidade de seu pensamento em relação à
ciência de sua época (psicosiologia) e o desenvolvimento das neurociências
até o nal do século XX. Cabe ressaltar que este livro é fruto de pesquisa
realizada entre os anos de 1998 e 2003. Portanto não inclui a discussão
ampla e profícua sobre o problema da localização de funções mentais
produzida especialmente nas duas primeiras décadas do século XXI. Entre
os autores contemporâneos que abordam o problema do mecanicismo,
especialmente na ciência cognitiva e na neurociência cognitiva, cabe
destacar os trabalhos de William Bechtel (BECHTEL, 2009, 2008) e, em
relação ao localizacionismo, por exemplo, as pesquisas de Duau, as quais
discutem os limites do que ele denomina ‘dogma do localizacionismo
(DUFFAU, 2018).
Nessa perspectiva, a partir da recuperação funcional após lesões
envolvendo áreas cerebrais não compensáveis, o autor aponta as
diculdades das abordagens anátomo-funcionais de caráter localizacionista
e reducionista “para explorar as bases neurais que mediam disfunções
cognitivas de ordem superior e multideterminadas em pacientes com lesão
cerebral (...)” (DUFFAU, 2021, p. 1100).
Considerando a importância do pensamento de Merleau-Ponty
para as neurociências e, para a losoa das neurociências contemporâneas,
apresentamos este estudo histórico-epistemológico, original e aprofundado.
Acreditamos que estudo desse autor e do contexto losóco e cientíco no
qual sua obra se insere, pode contribuir para uma melhor compreensão
acerca do desenvolvimento das neurociências, suas principais diculdades,
especialmente sobre o problema da localização de funções mentais.
16 |
| 17
Capítulo I
O C F
Para compreendermos o contexto losóco no qual se desenvolve
o pensamento de Merleau-Ponty, se faz necessária uma breve retomada
acerca de uma das grandes questões da losoa: a questão do conhecimento,
considerando, em última análise, boa parte da problemática merleau-
pontyana está calcada no problema da relação sujeito-objeto e a
consequência, para a ciência moderna, da separação deles promovida
pelo cartesianismo. Nessa perspectiva, Chauí (1980) observa que tanto a
Filosoa como as ciências modernas tiveram sua origem nessa separação,
da qual decorrem o dualismo, o mecanicismo e o determinismo.
Apesar de parecer simples em um primeiro momento, a relação
sujeito-objeto levanta algumas questões fundamentais para a história da
losoa e para as neurociências. Entre essas questões destacamos duas:
1) O conhecimento se apresenta como uma determinação do sujeito
pelo objeto ou do objeto pelo sujeito?
2) os objetos existem independentes da consciência de quem os
percebe ou conhece?
Em relação à primeira questão, uma corrente denominada de
Objetivismo defende que o objeto é determinante. Ou seja, o sujeito
Edvaldo Soares
18 |
apreende as características do objeto, os quais se põem ao sujeito como algo
pronto, determinado. Contrário a esta tendência, o Subjetivismo postula
que o sujeito é o elemento fundamental. Dessa forma, para o Subjetivismo,
a consciência assume um papel central.
Em relação à segunda questão, ou seja, se os objetos existem
independentemente da consciência, também surgem duas respostas: a
primeira é apresentada pelos Realistas, os quais armam que os objetos reais
existem independentemente da consciência e a segunda, pelos Idealistas, os
quais concebem que não existem realidades ou ‘coisas’ independentes da
consciência.
De acordo com o chamado idealismo subjetivo ou psicológico, as
coisas são conteúdos da consciência e, portanto, não existiriam objetos
reais fora dela
1
.
Das questões apresentadas, inevitavelmente surgiram outras
envolvendo não só a independência do real, mas também a mente em
si. Entre essas questões destacamos podemos destacar três: Onde está a
mente? Como a mente funciona? Existe uma mente separada do corpo?
Várias correntes losócas tentaram responder estas questões. Porém,
a que teve e, de carta forma ainda tem maior repercussão, foi o dualismo
mecanicista de origem cartesiano.
dualIsMo e MeCanICIsMo
O desenvolvimento das concepções mecanicistas e dualistas só pode
ser compreendido a partir do contexto do desenvolvimento da ciência
moderna e da superação da concepção aristotélica e tomista em relação
ao universo e à natureza animal e à natureza humana. Nos séculos XVI e
O chamado realismo ingênuo, por exemplo, não distingue ainda a percepção do objeto percebido, identicando
os conteúdos da consciência aos objetos, de forma a atribuir a eles as propriedades que estariam presentes na
consciência. Ainda dentro da perspectiva realista, temos o realismo natural, o qual não identica conteúdo
perceptivo e objeto, mas ainda sustenta que os objetos correspondem exatamente aos conteúdos perceptivos.
Por último, temos o realismo crítico, o qual arma que nem todas as propriedades presentes na consciência
pertencem aos objetos. Para o realismo crítico, algumas propriedades presentes na percepção, não se aplicam às
coisas, mas à minha consciência. O realismo crítico também faz uma distinção entre percepções e representações.
Enquanto as primeiras podem ser percebidas por diversos sujeitos, os conteúdos das representações só podem ser
percebidos por um só sujeito (HESSEN, 2000).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 19
XVII, a partir de Galileu Galilei (1564 - 1642), René Descartes (1596 -
1650) e mais tarde Isaac Newton (1642 - 1727), ocorreu uma mudança
radical nas concepções de homem e de mundo.
A concepção medieval de mundo, fundamentada no pensamento
aristotélico, perde sua importância em decorrência do que Henry (1998,
p. 10) denominou de “revolução cientíca” em relação à cosmologia
2
. O
mundo passou a ser concebido como algo cujo funcionamento é mecânico
3
.
Na obra Lê monde, que foi concluída em 1633, Descartes expôs
pela primeira vez suas ideias mecanicistas, as quais foram aprimoradas na
obra Principia Philosophiae (1644) (WESTFALL, 1997). É importante
salientar que a visão mecanicista de Descartes não se difundiu somente
no campo da física (GAUKROGER, 1980). Na siologia Descartes se
propôs a elaborar uma siologia especulativa em que os corpos animais e
humanos funcionavam como autômatos complexos baseados em sistemas
hidráulicos. Esta ideia foi expressa na obra De Homine, publicada em
1662, na qual também defendia que os espíritos animais transitam dentro
dos ‘tubos nervosos’, controlando os movimentos involuntários
4
. Esse
uxo seria controlado, de acordo com Descartes, pela glândula pineal
(CASTIGLIONI, 1947; DESCARTES, 1998, 1989; GAUKROGER,
1980, 1995).
Em decorrência da nova concepção de mundo e de corpo, também
surgiu uma nova concepção da relação entre corpo alma.
Na cosmologia medieval, o mundo (universo) era concebido como imutável e hierarquicamente organizado,
conforme a vontade divina. Concebia-se que os corpos celestes eram xos e giravam em movimento uniforme
em torno da Terra (Centro do Universo). A ideia de vácuo era inadmissível (GILSON, 1995; HENRY, 1998). A
base dessa concepção foi o chamado hilemorsmo, teoria presente no I Livro da Física e no tratado De Anima de
Aristóteles e que arma que os seres corpóreos são um todo natural, integrados por matéria e forma (BOHENER;
GILSON, 1991; CHAUÍ, 2002b).
A obra Philosophie Naturalis Principia Mathematica (1687), de Newton, pode ser vista como o ponto
culminante não só da concepção mecanicista de mundo, como também da matematização da representação do
mundo iniciada por Galileu (HENRY, 1998; OMNÉS, 1996).
 A concepção dos nervos como canais condutores é originária de Galeno (131-200) (SINGER, 1996). Porém,
Pessoti (1982) observa que Descartes não levou em consideração a maioria das conclusões de Galeno. Em
relação à circulação, Descartes se inspirou em Harvey (1578-1657), seguidor da doutrina galênica. Sobre
a origem do movimento, Descartes se aproxima da concepção aristotélica. De acordo com Pessoti (1982),
Descartes extrai da tradição galênica apenas os elementos que permitiam dar uma base anatômica e siológica
ao esquema mecanicista.
Edvaldo Soares
20 |
Se Aristóteles (384 - 322 a.C.) concebia, no tratado De Anima, que
o pensamento jamais pode se produzir sem o corpo, ou seja, que a alma
não estava separada do corpo e que todas as modicações da alma só têm
lugar em companhia do corpo e ainda que este experimenta também uma
modicação simultaneamente com todas suas alterações (ARISTÓTELES,
1950), Descartes (1998) adota, ao contrário de Aristóteles, uma concepção
dualista
5
, segundo a qual, existem duas substâncias distintas: res cogitans e
res extensa, ou seja, corpo e alma (mente). De acordo com essa perspectiva,
corpo e todos os seus órgãos, incluindo o cérebro, estariam na categoria de
extensos
6
.
Da concepção cartesiana que concebe duas substâncias surgiram
dois problemas:
1) Como pode uma ‘coisa’ incorpórea agir sobre uma corpórea e vice
versa?
7
2) Como se dá a união do corpóreo e do incorpóreo?
Em relação à primeira questão, Descartes não responde
satisfatoriamente, instigando até hoje a lósofos, e cientistas. No tocante
à segunda questão, Descartes (1998) armava que a união se dava na
glândula pineal:
[...] parece-me ter reconhecido com evidência que a parte do corpo em
que a alma exerce imediatamente suas funções não é de modo algum
o coração, nem o cérebro todo, mas somente a mais interior de suas
partes, que é certa glândula muito pequena, situada no meio de sua
substância. (DESCARTES, 1998, p. 229).
Esse dualismo moderno, originário Descartes pode ser denido como a concepção que defende a existência
de duas substâncias distintas e irredutíveis: corpo e mente (ENGELMANN, 1997a; GREGORY, 1987; HEIL,
1998). Conforme Granger (1955), o dualismo cartesiano se inscreve em sua concepção de ciência, dado que,
para Descartes, o principal obstáculo ao progresso da ciência seria a confusão da alma e do corpo.
Para Engelmann (2001, p. 215), “o que Descartes chamou principalmente de alma é hoje em dia conhecida
como consciência. Portanto, para Descartes, a consciência seria puramente humana”.
Esta questão foi primeiramente colocada ao próprio Descartes pela princesa Elizabeth da Boêmia, em uma
carta datada de 1643, antecipando o problema apresentado pelo lósofo Gilbert Ryle (1900 – 1976) em sua
crítica a Descartes (COTTINGHAM, 1999).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 21
Para o lósofo Paul Valéry (1871 – 1945) a solução da glândula
pineal era engenhosa. Segundo ele, Descartes:
[...] conseguiu mesmo separar a Psique do corpo e do espaço,
empenhando-se ao menos em lhe encontrar uma localização cerebral
e demonstrar que tal situação lhe é indispensável para sentir. Observa
que há no cérebro uma pequena glândula que lhe parece a sede da alma,
e a razão que alega para isso é que as demais partes do cérebro são todas
duplas como duplos são os olhos, as orelhas, e que é indispensável ‘que
haja algum lugar onde as duas imagens provenientes dos dois olhos se
possam reunir em uma só antes que alcancem a alma’ e não vê nenhum
outro lugar no corpo onde possam se reunir a não ser em tal glândula
(VALÉRI, 1952, p. 43-44).
De acordo com Cottingham (1995), para Descartes, apesar de ser
evidente que a alma estivesse unida ao corpo, seria necessário reconhecer
que existe uma parte do corpo em que ela exerce suas funções mais
particularmente do que nas outras. Em termos lógicos a alma seria
autônoma e independente de qualquer aspecto do mundo físico, podendo
habitar determinados corpos físicos.
Em situações especiais, como no caso de fome e sede, a alma estaria
unida ao corpo numa forma de ‘interacionismo’ (DESCARTES, 1998).
Ou seja, as duas substâncias (res cogitans e res extensa) se comunicavam,
apesar de existir um peso epistemológico maior sobre a res cogitans
(ENGELMANN, 1997a).
A partir do pensamento cartesiano, várias tentativas surgiram no
sentido de superar as dicotomias sujeito-objeto e mente e corpo. Por outro
lado, a maioria das tentativas de superação das dicotomias apresentava um
caráter reducionista.
Além do cartesianismo, o Positivismo foi outra corrente de pensamento
que muito contribuiu para a formação do pensamento cientíco moderno
(GRANGER, 1955). Segundo os postulados de Comte (1798-1857),
a ciência deveria caracterizar-se pela neutralidade e pela objetividade.
Essa posição epistemológica tinha por objetivo dar um status cientíco
às ciências humanas, a partir do que Löwy (1987, p. 23) denominou de
Edvaldo Soares
22 |
axioma da ‘homogeneidade epistemológica’ entre as ciências sociais e
as ciências naturais”. Para Ullmo (1967), o projeto positivista tinha por
nalidade expulsar da ciência as causas primárias ou as nais da metafísica,
com o objetivo de armar o primado da observação e a submissão aos
fatos. Instala-se assim, o divórcio entre a losoa, vista como subjetiva e a
ciência, concebida como objetiva.
a retoMada da ConsCIênCIa
Tentando superar os paradoxos criados a partir do pensamento
cartesiano, Bergson (1859-1941) defendeu a irredutibilidade da consciência
(espírito) contra as tentativas reducionistas e mecanicistas de cunho
positivista
8
(PRADO JR., 1988). Como herdeiro da tradição idealista,
Bergson deu primazia ao espírito. Porém, tal primazia não se caracterizava
por minimizar a presença do corpo e a existência da matéria. A relação entre
matéria (corpo) e espírito (mente) foi tratada por Bergson na obra Matéria
e Memória (1896), onde elaborou uma crítica ao paralelismo psicofísico e
o epifenomenismo; tendências por ele consideradas equivalentes.
O paralelismo propunha que os estados mentais e os estados cerebrais
eram dois modos diversos de falar do mesmo processo. Ou seja, não
havendo a ação recíproca do corpo e do espírito, admite-se que tudo se
passe como se houvesse correspondência entre a série de fatos psíquicos
e a série de fatos siológicos, sem que haja propriamente ação de uma
sobre a outra. Essa correspondência seria tal que a todo fenômeno psíquico
corresponde um fenômeno nervoso determinado e inversamente.
Por outro lado, o epifenomenismo, também chamado por Bergson
(1990) de evolucionismo materialista, armava que os estados mentais
constituem simples função do cérebro. Levando em consideração apenas
o fenômeno siológico, o epifenomenismo concebe que a inteligência e a
consciência não passam de funções do cérebro.
Nessa perspectiva, seriam reexos da função siológica. Assim, a
ação siológica não deixa de existir, ao passo que a consciência pode ou
 Para Bergson a consciência seria irredutível à matéria (SICHÈRE, 1982).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 23
não existir. Logo não é essência do fenômeno, mas um simples reexo.
Dessa forma, a atividade mental passa a ser considerada como um produto
desenvolvido pelo cérebro e intimamente dependente de condições
siológicas. Ainda segundo Bergson, o cérebro não explica o espírito.
Portanto, na consciência existiria, conforme a perspectiva bergsoniana,
muito mais que no cérebro. Assim, o processo de consciência transcende
o simples material.
A partir de tal perspectiva Bergson (1990) infere que, por exemplo,
uma lesão cerebral não atinge a consciência, mas sim a ligação dessa com
a realidade material, a qual é intermediada pelo corpo. Apesar de ter se
baseado em alguns dados da psicosiologia da época para chegar a tais
conclusões, Bergson se utiliza o que ele mesmo denominou de intuicionismo
que, segundo ele, é a visão direta do espírito pelo espírito; uma espécie de
consciência ampliada.
Em Bergson a predominância do ponto de vista subjetivo não
rejeita totalmente a observação exterior, mas dá maior destaque à
observação interior. Nesse sentido, é interessante observar uma distinção
feita por Bergson entre os dois aspectos do eu’ e sua consequente relação
com o mundo.
Concebendo o fenômeno da consciência como essencial, Bergson
distingue dois aspectos do ’eu: um claro e preciso, porém impessoal e
outro confuso, profundo, móvel, inexplicável e original. O primeiro
eu’ é formado a partir do esforço na aquisição de experiência e da
inteligência lógica. Ou seja, mediante as experiências adquirimos ideias
que permanecem como que ‘anexadas em nós’. É o que constitui, segundo
ele, a inteligência no sentido comum. Essas ‘ideias’ estariam voltadas ao
mundo exterior, auxiliando na adaptação às coisas desse mundo. Nesse
sentido, a consciência se apresentaria como instrumento de ação; se faz
inteligência, memória (PRADO JR., 1988).
De forma paralela ao eu claro e preciso, considerado como um ‘eu
articial’ criado ou formado a partir da experiência, Bergson reconhece um
eu profundo, o qual é caracterizado como um ‘eu obscuro’ e estaria abaixo
da consciência clara, ou seja, do eu claro e preciso. É apenas consciência,
Edvaldo Soares
24 |
mas é muito mais rico, vivo, que o eu articial. O eu profundo confunde-
se com a nossa própria existência, com o próprio cosmo universal. É essa
continuidade que se sente na vida; é esse sentir que somos o mesmo de
ontem e de anos passados; é a nossa vida, no seu constante uir.
Nessa perspectiva, para Bergson, a vida interior é uma duração que
não ocupa espaço, logo não pode ser medida. Dessa forma, só a podemos
conhecer a vida interior, o ‘eu profundo, pela intuição. É importante
lembrar que a posição bergsoniana suscitou muitas críticas, inclusive no
Brasil. Por exemplo, Penteado Jr. (1949, p. 26-7) apontou que:
Ora, isso não é cientíco. Na observação interior, não há possibilidade
de termos de comparação, o fato não pode ser observado por mais de
uma pessoa, como exige o método experimental ou empírico. Essa
psicologia, também chamada clássica, arma que o fato psíquico só
pode ser observado pelo sujeito; que o fato psíquico não se desenrola no
espaço, que não ocupa espaço; que não pode ser medido; que o primeiro
dado é uma síntese, isto é, a totalidade da consciência indivisível; que
a mobilidade da consciência é eterna, etc. Ora, nem tudo que essa
corrente psicológica arma pode ser aceito.
Outro lósofo que inuenciou o contexto do pensamento da
época foi Léon Brunschvicg (1869-1944) que, na denição de Bochenski
(1968), foi o idealista francês mais importante e o lósofo que, depois
de Bergson, maior inuência exerceu na França. Conforme Bochenski
(1968), a inuência de Brunschvicg culminou entre os anos de 1920 e
1939, principalmente quando foi professor na Sorbona, onde teve como
aluno Merleau-Ponty. Entre suas obras destaca-se L’ Experience Humaine et
la Causalité Physique (1921), a qual foi referenciada por Merleau-Ponty nas
obras Estrutura do Comportamento e na Fenomenologia da Percepção.
Com a intenção de mostrar a importância da relação entre Filosoa
e Ciência, Brunschvicg acreditava que a tarefa da losoa não é ampliar
a quantidade do saber, mas reetir sobre a sua qualidade; é tomar posse
consciente dos métodos e dos resultados do espírito humano na conquista
do saber positivo que constitui o verdadeiro tipo de conhecimento. D
a importância primordial que, nessa perspectiva, assume a história das
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 25
ciências, transformada em único ‘laboratório da losoa’ (FRANCA, 1955;
MESSAUT, 1938). Inuenciado pelo contexto da ciência do período,
Brunschvicg reconhecia que a causalidade estava na origem da ciência e nos
fundamentos do seu método (ULLMO, 1967) e ainda que, a matemática,
seria fundamental para a compreensão do mundo. Nesse sentido, mesmo
em relação às ciências da natureza, professava um matematismo e um
convencionalismo extremamente radicais (BOCHENSKI, 1968).
FenoMenologIa
A fenomenologia surgiu no nal do século XIX com Franz Brentano
(1838-1917) como uma tentativa de superar as tendências racionalistas
e empiristas. Para Brentano a psicologia deveria ser empírica, mas não
necessariamente experimental. Na sua perspectiva o melhor método seria
a observação
9
.
Contrariamente a Wilhelm Wundt (1832-1920), Brentano
acreditava que a Psicologia não poderia ser tomada como sendo puramente
siológica (WERTHEIMER, 1985). Brentano exerceu nítida inuência
sobre Carl Stumpf (1848-1936) e sobre Edmund Husserl (1859-1938).
Stumpf, um dos fundadores do Laboratório Psicológico de Berlim,
acreditava que a Psicologia devia ocupar-se das funções mentais
10
. Também
sustentou que os dados primários são ‘fenômenos’ e que “a fenomenologia,
o exame imparcial da experiência como ela se dá, é preliminar para
todas as ciências, tanto para a Psicologia como para as ciências físicas
(WERTHEIMER, 1985, p. 94).
Porém, os fundamentos da fenomenologia foram desenvolvidos
por Husserl. Dedicado à fundamentação cientíca da losoa, o esforço
losóco de Husserl surgiu da discussão apresentada pelo positivismo: a
crise da losoa e a crise das ciências humanas (GILES, 1975). Para Husserl
(1996), o positivismo, utilizando-se de parâmetros sicalistas, não dava
um sentido correto à existência humana, deixando de lado as investigações
 Para Hamlyn (1990), Brentano defendia uma forma de psicologia descritiva.
10
Stumpf foi professor de Husserl e de Köhler, Koka e Wertheimer em Berlim.
Edvaldo Soares
26 |
existenciais, as quais não se ajustavam ao modelo positivista de ciência. A
partir disso, tornava-se urgente repensar os fundamentos e a racionalidade
das ciências e mostrar que tanto a losoa como as ciências humanas são
viáveis. Nessa perspectiva, a fenomenologia propôs superar a dicotomia
razão-experiência no processo de conhecimento (GARCÍA, 1998).
Por outro lado, a fenomenologia não recusava o valor da ciência e nem
intervinha em seu trabalho (CAPALBO, 1992). O que a fenomenologia
questionava era o pressuposto da ciência enquanto um dado objetivo e
recebido pela subjetividade. Por outro lado é importante ressaltar que a
fenomenologia rejeita os métodos tradicionais de introspecção como forma
de acesso aos fenômenos da consciência, combatendo assim o subjetivismo
e o relativismo (BUENO, 1997b).
No projeto fenomenológico de Husserl, dois conceitos foram
retomados: consciência e intencionalidade. Segundo Husserl (1966),
a palavra intencionalidade não signica outra coisa senão uma
particularidade fundamental da consciência de ser ‘consciência de
alguma coisa’. Nessa perspectiva a intencionalidade é inerente ao ato
de conhecimento. Assim, o conhecimento implicaria uma consciência
intencional. Para Husserl a consciência é constituída por atos (noesis)
que visam algum componente desse mundo (noema) (CHAUÍ, 2002;
COELHO JR., 2002; GILES, 1979).
Partindo da concepção de que a consciência é intencional, a
fenomenologia se colocou em oposição ao racionalismo, ao empirismo e
ao positivismo. Contra o primeiro, defendia que não há pura consciência,
separada do mundo; contra os empiristas, armava que não há objeto em
si, já que o objeto só existe para um sujeito que lhe dá signicado e contra
o positivismo, procurava mostrar que não há fatos com a objetividade
pretendida, pois não percebemos o mundo como um dado bruto,
desprovido de signicados; o mundo que percebo é um mundo para mim.
Daí a importância dada ao sentido, à rede de signicados que envolvem
os objetos percebidos. Nesse sentido, a consciência ‘vive’ imediatamente
como doadora de sentido. Isso signica que deve ser desconsiderada
toda indagação a respeito de uma realidade em si, separada da relação
com o sujeito que a conhece, mesmo porque, segundo a concepção
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 27
fenomenológica, não há um puro ser escondido atrás das aparências ou
do fenômeno. É a consciência que desvela progressivamente o objeto por
meio de seguidos pers, de perspectivas as mais variadas. É por isso que
a fenomenologia arma que a consciência é doadora de sentido, fonte de
signicado para o mundo
11
.
Tendo como preocupação central a descrição da realidade, a
fenomenologia coloca como ponto de partida de sua reexão o próprio
homem, em um esforço de encontrar o que realmente é dado na
experiência, e descrevendo ‘o que se passa’ efetivamente do ponto de
vista daquele que vive uma determinada situação concreta (LYOTARD,
1967). A fenomenologia, mais do que uma ‘losoastricto sensu, é um
método que se desdobra em dois momentos: a redução fenomenológica e
a redução eidética. A redução fenomenológica consiste em por a realidade
ou irrealidade do mundo ‘entre parênteses, sem que haja pronunciamentos
sobre tal realidade (έποχή).
Aqui, έποχή signica suspensão de juízos. Assim, mediante a redução
fenomenológica, deve-se tentar fazer entrar no domínio da έποχή tudo que
nos apresenta como real; o que nos for impossível colocar ‘entre parênteses’,
constituirá a ‘evidência apodítica’ buscada.
Dessa forma, ao término da redução fenomenológica, só resta
a consciência, na qualidade de puro sujeito cognoscente e, sem nada
apresentar de objeto. Reduzir eideticamente signica determinar as
estruturas a priori de toda experiência, por exemplo, da percepção, da
imagem, do desejo, da emoção, etc. Trata-se de determinar as formas
gerais das coisas, de reduzir o dado ‘consciencial’ à sua forma essencial,
à sua ‘ideia’ (GARCÍA 1998; GILES, 1975, 1979; HUSSERL, 1950;
LYOTARD, 1967). Em outros termos, reduzir eideticamente é colocar
entre parênteses’ o mundo e o eu existente, concentrando-se sobre a
essência dos objetos e dos atos que os captam.
Em um segundo momento, mediante a redução fenomenológica,
deve-se lançar a consciência pura como região primitiva de constituição de
11
Conforme Gianotti (1995), a fenomenologia vê na coisa seus múltiplos pers (Abschattungen), cuja síntese é
dada pelos atos da consciência doadora de sentido.
Edvaldo Soares
28 |
sentido, ou seja, como doadora de sentido (GILES, 1975; HEINEMANN,
1993). É nesse ponto que devemos fazer uma distinção entre fenomenologia
como ‘sistema’ e fenomenologia como ‘método’ para compreendermos o
contexto da fenomenologia no pensamento de Merleau-Ponty.
Segundo Lalande (1996), enquanto método, a fenomenologia é um
esforço para apreender as essências por meio dos acontecimentos e dos fatos
empíricos, ou seja, apreender as signicações diretamente pela intuição
12
.
Enquanto sistema, a fenomenologia toma o sentido de fenomenologia
pura, a qual procura estabelecer o princípio último de toda a realidade.
Como esse princípio se situa no ponto de vista da signicação, será aquele
pelo qual tudo ganha um sentido, o ‘ego transcendental’, exterior ao
mundo, mas voltado para ele. A objetividade do mundo aparece assim
como uma intersubjetividade transcendental.
O reconhecimento do domínio transcendental e sua descrição
exigem que se adote uma atitude difícil de tomar e muito diferente da
atitude natural; o momento essencial é aquilo que Husserl (1950) designa
por redução fenomenológica transcendental.
A herança da fenomenologia idealista de Husserl é marcante no
pensamento de Merleau-Ponty, como se pode observar nas obras Estrutura
do Comportamento e na Fenomenologia da Percepção. Por outro lado, a
fenomenologia de Merleu-Ponty se mostra uma ‘fenomenologia existencial’.
Ou seja, em Merleau-Ponty a leitura da redução fenomenológica de Husserl
é existencialista e não idealista (PERIUS, 2012). Nessa perspectiva, a
‘reexão’ é retomada como ponto fundamental em Merleau-Ponty.
Distanciando-se de Husserl, Merleau-Ponty ainda considera
a impossibilidade da redução completa, tal como propõe Husserl,
minimizando o papel da consciência e destacando a relação corpo-sensível
e mundo sensível como doadores de signicado. Apesar dessas diferenças
ou ‘releituras’, a inuência da fenomenologia idealista de Husserl se mostra
fundamental no desenvolvimento do pensamento de Merlerlau-Ponty
(THÉVENAZ, 1966; MERLEAU-PONTY, 1989; PERIUS, 2012).
12
Wesenchau – literalmente visão ou contemplação das essências.
| 29
Capítulo II
O C C
No tocante ao contexto cientíco procuraremos descrever de forma
breve quais os principais pressupostos da siologia e da anatomia clássicas
e da siologia de Goldstein. No que se refere à Psicologia Experimental,
daremos especial destaque aos trabalhos de Henri Piéron (1881 – 1964) e
Paul Guillaume (1878 – 1962).
anatoMIa e FIsIologIa
Em termos epistemológicos e metodológicos pode-se dizer que as
pesquisas experimentais, principalmente na França, foram inuenciadas
em grande parte por Claude Bernard (1813-1878). Contrariamente à
posição bergsoniana, Bernard, adepto do positivismo de Auguste Comte,
defendia a tese de que as ciências da vida, a exemplo da física e da química,
deveriam submeter-se ao princípio do critério experimental, o qual estava
fundamentado, nesse período, no determinismo.
O determinismo cientíco fundamenta-se no princípio de que tudo
o que existe tem uma causa. As ciências da natureza (física, biologia, etc.)
teriam assim a função de identicar as constantes e, assim estabelecer leis, ou
seja, relações de causa – efeito. Assim, o mundo determinista é um mundo
da ‘necessidade’ no qual tudo é determinado, sem espaço à ‘liberdade’.
Edvaldo Soares
30 |
Hippolyte Taine (1828 – 1893), por exemplo, acreditava que o
comportamento humano era determinado por três fatores: raça, meio e
momento (NAGEL, 1960). Conforme esse critério, todo fenômeno se
segue de algum outro, conforme uma determinada lei. A partir disso, toda
a losoa natural deveria resumir-se em conhecer a lei dos fenômenos
(BERNARD 1984/1865; CAPONI, 2001; DUTRA, 1992; ULLMO,
1967, NAGEL, 1960).
No início do século XX, nos estudos anatômicos do sistema nervoso,
era largamente difundida a concepção de que o córtex cerebral seria
dividido em centros. Por exemplo, para os anatomistas Testut e Jacob,
considerando experiências anátomo-clínicas e experimentais, defendiam
que o córtex não era funcionalmente homogêneo, mas dividido em centros
(sensório-motor, sensoriais, inteligência e linguagem), os quais seriam
formados por grupamentos de neurônios e responsáveis por funções
especícas. Assim, uma lesão em um destes centros comprometeria a
função a ele relacionada (TESTUT; JACOB, 1905). Tal concepção não
era inédita na escola francesa.
Charles Richet (1850-1935), considerado um dos maiores nomes
da siologia e da psicologia experimental francesa, também defendia
a posição centralista e funcionalista, porém já visualizava diculdades
nas explicações sobre a relação entre função e cérebro. Segundo ele, ao
passo que os outros órgãos, tais como o fígado, o coração, os músculos
entre outros, apresentam funções cujas explicações funcionais podiam ser
reduzidas a fenômenos exteriores, químicos, dinâmicos ou morfológicos,
o cérebro teria função ou funções, como por exemplo, a consciência e a
inteligência, que certamente não poderiam ser reduzidas ou explicadas, por
exemplo, a partir dos tecidos cerebrais.
Além disso, Richet ressaltava que o cérebro, como órgão da memória,
podia modicar sua resposta a partir de experiências passadas, o que não
acontecia naturalmente com os outros órgãos (RICHET, 1898). Por isso,
segundo ele, seria necessário distinguir no cérebro, uma função psíquica
propriamente dita, que é a consciência, e uma função exclusivamente
siológica, como a dos outros órgãos, as quais podem ser reduzidas a
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 31
fenômenos químicos e dinâmicos. Por isso, há, para Richet, um profundo
fosso entre a siologia do cérebro e a dos outros órgãos (RICHET, 1898).
Por outro lado, mesmo distinguindo a função psíquica da função
física, Richet (1898) considerava indevida a separação entre siologia e
psicologia, pois, a psicologia se confunde com a siologia do cérebro, ainda
que os métodos da psicologia diram muitas vezes do método da siologia.
Alguns estudiosos da primeira metade do século XX, em especial
da década de 1930, optaram por uma visão mais positivista. Entre eles,
podemos citar Emmanuel Hédon (1863-1933), que foi professor de
siologia da Faculdade de Medicina de Montpellier e que publicou em
1933 uma obra geral de siologia intitulada Précis de Physiologie. Nessa
obra Hédon defendeu que ao siologista caberia somente determinar as
condições físico-químicas dos fenômenos vitais. Armava ainda que os
progressos da siologia são resultantes da aplicação dos métodos da física
e da química ao estudo do ser vivo. Ao defender a utilização dos métodos
adotados pela Física e pela Química, Hédon (1935) atacou o vitalismo
bergsoniano e aderiu ao macanicismo e ao reducionismo, característicos do
pensamento positivista. Segundo ele:
A hypothese de uma força vital (isto é, uma fôrça especial provocadora e
reguladora de phenomenos vitais), admitida por antigos physiologistas,
mostrou-se impotente e estéril. Ao contrário, a hypothese mechanica
foi fecunda em descobertas, e a tendência da physiologia actual é para
dar dos phenomenos vitais uma explicação puramente mechanica.
Entretanto, não é ainda possível, no estado dos nossos conhecimentos,
presentemente, reduzir todos os phenomenos vitais ás leis da physica e da
chimica, e isso nos obriga, em nossa imperfeita linguagem physiologica,
a usar certas expressões mal denidas.[...] (HÉDON, 1935, p. 7).
Apesar de reconhecer as limitações do conhecimento da época para
dar conta dos fenômenos vitais a partir das leis da física e da química,
Hédon (1935), para explicar os fenômenos siológicos, adota o modelo
pavloviano, em especial a teoria do reexo e consequentemente a noção de
Edvaldo Soares
32 |
arco-reexo, os quais serão amplamente discutidos por Merleau-Ponty na
obra Estrutura do Comportamento
1
.
De acordo com Hédon (1935), o arco ou ato reexo pode ser
denido como toda reação orgânica que sucede a uma impressão. Essa
reação, involuntária, sucede automaticamente em virtude de conexões
preestabelecidas no sistema nervoso, à excitação de um nervo sensitivo. Esse
ato’ supõe a colaboração de três fatores: a transmissão de uma impressão
periférica por um nervo centrípeto até um centro nervoso; a transformação
dessa impressão no centro nervoso e sua reexão para uma via centrífuga e,
por último, a transmissão do movimento para a periferia por um ou mais
nervos centrífugos.
Por exemplo:
Seja uma rã cuja medulla se corta abaixo do bulbo: após alguns
instantes, dissipado o abalo produzido pelo traumatismo, basta pinçar
ligeiramente a extremidade de uma das patas posteriores, para vê-la
ectir-se. Se a medulla for cortada sucientemente alto, o movimento
de retração pode ser provocado nos membros anteriores. Podemos suppor
a medulla dividida em tantos pedaços quantos quisermos; cada segmento
com tanto que seja provido de um nervo sensitivo e de um nervo motor,
será susceptível de engendrar a acção reexa; cada pedaço de uma enguia,
cortada em segmentos, apresenta contracções reexas desde que se o irrite.
Assim, a medulla, separada dos centros nervosos superiores, basta para
a producção d’esses movimentos, que se executam de modo puramente
mecânico, sem participação da vontade, nem da consciência; se
destruirmos a medulla com um estylete introduzido no canal rachidiano,
o poder reexo desaparece (HÉDON, 1935, p. 516).
É importante salientar que Richet (1898), anteriormente, fazia
a distinção entre ‘ato reexo simples e ‘ato reexo cerebral’. O primeiro é
uma resposta imediata e fatal, determinada pelas qualidades e quantidades
do excitante, ao passo que o segundo é irregular, dado que depende da
constituição do indivíduo e da sua idade. Todo ato cerebral intelectual
No campo da Fisiologia, Pavlov (1849-1936) elaborou a ‘teoria do reexo condicionado’, a qual se tornou
um dos principais modelos explicativos em Psicologia Cientíca. Conseqüentemente, aos poucos, o mental e
consequentemente a consciência não mais encontram lugar na agenda das preocupações de uma ciência do
comportamento objetivamente observável (CANGUILHEM, 1958).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 33
sofre uma variação que desaa a análise, não podendo ser rigorosamente
previsto
2
. Apesar disso, a resposta cerebral se faz exatamente conforme
as mesmas leis essenciais que a da resposta medular. De qualquer forma,
a ideia da existência de um conjunto de leis mecânicas que regiam o
fenômeno reexo era comum entre os siólogos, apesar de existirem
algumas exceções, como observou o neurosiologista e patologista Charles
Sherrington (1857 – 1952)
3
.
Entre essas ‘leis mecânicas’ podemos citar a que arma que “a
intensidade e a complexidade dos movimentos reexos estão em relação
com a intensidade e a natureza do excitante” (HÉDON, 1935, p. 517).
Desse princípio decorrem outras leis de caráter mecânico. Por exemplo,
dela decorre, conforme Hédon (1935), que uma excitação leve da pele,
de um membro inferior determina um movimento reexo localizado no
músculo da região excitada; se a excitação for um pouco mais forte, as
contrações se estendem a um número maior de músculos conservando-se
em todo caso, localizadas no membro correspondente (leis da localização e
da unilateralidade). Aumentando gradualmente a intensidade da excitação,
veem-se surgir contrações no membro oposto (lei da symetria), depois
nos membros superiores (lei da irradiação), enm em todos os músculos
do corpo (lei da generalização). Penteado Jr. (1949) denia essas leis da
seguinte forma: Lei da Localização (quando a excitação é fraca, a reação se
limita à região excitada); Lei da Irradiação (quando a excitação é intensa,
o movimento se irradia para outras partes)
4
; Lei do Movimento Prolongado
(a excitação pode ter terminado e a reação continuar, numa serie de
movimentos) e Lei da Coordenação (certos reexos se coordenam em busca
de um determinado m).
A siologia clássica considerava o reexo como dependente de
duas espécies de estrutura nervosa, uma via sensitiva e uma via motora,
coordenadas por um centro, mas funcionando com certa independência.
 Ver RICHET, C. Des réexes psychiques. Rev. Philosoph., p. 225-237, 387-422, 508-528, 1888.
A lei da localização, no caso dos reexos cruzados é falha, pois, segundo Sherrington, os modos de resposta
dependem dos modos especiais de locomoção das diferentes espécies de animais.
Se excitarmos, levemente, uma das patas de uma rã decapitada, move-se só a pata excitada, mas se a excitação
é forte, move-se a pata simétrica, e se é muito mais forte, movem-se as demais patas também, podendo mesmo
o movimento generalizar-se completamente em todo o organismo.
Edvaldo Soares
34 |
Mais tarde, com o desenvolvimento da siologia, a via sensitiva e a via
motora passam a ser consideradas como constituindo um ‘todo’, a ponto
de se conceber que a reação depende continuamente da sensação. Ou seja,
dada uma excitação, há um começo de reação, e antes de terminar a reação,
uma nova excitação inui na direção da reação em marcha. O sensório e o
motor formariam um só órgão, uma só unidade.
Assim sendo, vemos que o mecanismo da reação está na dependência
constante do mecanismo da sensação. Ambos funcionam como uma só
unidade. O reexo passa a ser considerado como um fenômeno menos
rígido, como queria a antiga siologia. Passa a depender mais do meio
exterior, do que se supunha (PENTEADO JR., 1949).
É interessante ainda observar que, em determinados momentos,
a siologia clássica se utiliza de ideias que se aproximam da posição
fenomenológica. Nesse sentido, podemos citar o próprio Hédon (1935)
que, em determinado momento, considerou que os movimentos reexos
podem apresentar, como os movimentos voluntários, notável caráter
intencional. Por exemplo, nos humanos, se utiliza na prática clínica, certo
número de reexos, os chamados reexos clínicos, na análise dos fenômenos
patológicos dos centros nervosos.
Um desses reexos é o reexo plantar, o qual consiste normalmente na
exão dos dedos pela excitação leve da pele da planta do pé, sobretudo na
sua metade interna; as contrações podem estender-se aos demais músculos
exores do membro e determinar a exão da perna sobre a coxa e da coxa sobre
a bacia. Patologicamente, esse reexo pode transformar-se em movimento de
extensão e de abdução dos dedos: esta inversão do sentido normal do reexo
plantar, que constitui o importante sinal clínico denominado de Reexo de
Babinski, pertence, em regra, às lesões das vias piramidais
5
.
Esse fenômeno aparece normalmente nos recém-nascidos cujos
feixes piramidais não estão ainda mielinizados
6
. A partir dessa observação o
 Movimento que afasta um membro ou segmento de um membro do plano médio do corpo.
Segundo Piéron (1969, p. 49), o ‘sinal de Babinki’ é “a designação [...] de um fenômeno que observado
nos artelhos e que constitui índice patológico de uma perturbação na via nervosa córtico-espinhal
(piramidal). Consiste numa extensão geralmente lenta, do grande artelho, em resposta a uma estimulação
plantar, de preferência para o lado externo. Na criança, até aproximadamente os três anos, este sinal, [...]
não é sinal de patologia”.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 35
autor deduz, de forma semelhante ao neurologista Kurt Goldstein (1886-
1965), que “uma excitação não depende somente dela, mas também do
estado de excitabilidade maior ou menor em que se encontra em um dado
momento, o sistema nervoso” (HÉDON, 1935, p. 521).
Outro exemplo dessa aproximação decorre da crítica, por parte de
Hedón, à concepção de especialização. Conforme Hédon (1935, p. 523),
[...] é verossímil que não existam vias especiais para os reexos, e
que os mesmos condutores centrípetos sirvam, ao mesmo tempo á
produção dos reexos e á das inervações conscientes. O fato nada tem
de surpreendente, pois que toda bra sensível, antes de subir aos centros
superiores, emite em seu trajeto um grande número de colaterais, que
entram em relação com os neurônios medulares a diferentes alturas.
Mesmo adotando uma postura positivista, Hédon não negou a
existência das funções mentais, em especial, da consciência. Por outro lado,
quando se trata de adotar um modelo para o estudo das funções mentais,
Hédon (1935) segue o modelo pavloviano como o meio mais objetivo de
se estudar os fenômenos psíquicos. Porém, o modelo mecanicista não é
abandonado, como podemos observar no texto abaixo:
Dissemos, anteriormente, como se deve interpretar o pretendido
automatismo dos centros nervosos, e observamos que os elementos
nervosos não possuem na realidade, qualquer espontaneidade de ação e
só entram em jogo sob a inuência de um excitante. Em outros termos,
toda ação é uma reação e as ações chamadas automáticas devem entrar
na categoria de atos reexos (HÉDON, 1935, p. 525).
Devemos reconhecer que alguns siólogos da época, tendo como
fundamento estudos experimentais, vislumbraram algumas exceções.
Porém, ainda dentro do seu quadro epistemológico, não conseguiram
interpretar essas exceções fora do modelo cientíco vigente. Somente
mais tarde, no século XX, é que surgiram as críticas mais contundentes
por meio dos estudos neurológicos de Kurt Goldstein, o qual se colocou
como adversário não só das posições localizacionistas, mas também do
dualismo e do mecanicismo, sugerindo um modelo de interpretação
Edvaldo Soares
36 |
coerente que procurava superar o modelo pavloviano, a partir de um
enfoque de caráter holista
7
.
Juntamente com Adhémar Gelb (1887-1936), Goldstein, no curso
de seus estudos sobre as lesões cerebrais sofridas por soldados durante a
I Grande Guerra (1914 – 1918), cou impressionado com as limitações
da biologia atomística e com a falácia do isolamento para compreender os
distúrbios e o ajustamento do organismo, entrando em conito com o
método essencialmente analítico, apesar de considerar a importância
desse método para as observações iniciais dos fenômenos patológicos
(SPIEGELBERG, 1984).
No início de seus estudos Goldstein (1995) assumiu uma postura
epistemológica semelhante à postura fenomenológica ao se recusar em
apoiar-se em uma ‘denição prévia do siológico’ sem antes abordar o
objeto de estudo. Nesse sentido acreditava que não se deve emitir qualquer
juízo prévio antes que o objeto se apresentasse. Dessa maneira rejeitava os
preconceitos de ‘como o corpo deve ser’.
Entre esses ‘preconceitos’ estava o preconceito mecanicista, o qual
confundiria objetividade com a análise em elementos simples. Essa visão
para ele era equivocada, pois não se pode saber o que é o organismo sem
antes tomar contato com ele. Assim, o siológico deve ser denido em
função do fenômeno tal como aparece.
Ao contrário dos pressupostos da siologia clássica, que concebia
o conhecimento direto e objetivo do organismo a partir da análise dos
fenômenos externos, Goldstein (1995) acreditava que o conhecimento
siológico é indireto, ou seja, não tem o privilégio de imediatez, pois,
mesmo estudando o organismo por diferentes ângulos, pelo estudo do
comportamento ou pelo estudo dos fenômenos físico-químicos, nunca o
estaremos abordando diretamente. Apesar disso, segundo ele, a siologia
continua legítima, mas deve ser recolocada na dialética entre o organismo
e o seu meio. É preciso perguntar o que faz o organismo em situações
diversas e, qual é o sentido da resposta.
A posição de Goldstein está contida principalmente na obra Der Aufbau des Organismus (1935), a qual foi,
cinco anos mais tarde, traduzida para o inglês com o título de e Organism.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 37
Até aqui a siologia clássica não havia perguntado sobre o sentido
que o organismo dá ao estímulo. Tal questionamento não aparece, pois
ela só tem sentido a partir do momento em que o organismo deixa de ser
tomado como um autômato, cujas ações e reações são predeterminadas e
passa a ser tomado como algo que tem intencionalidade, ou seja, quando
o organismo é concebido como o que dá sentido ao meio e desse tira o
sentido para seu comportamento (GOLDSTEIN, 1995).
Essa crítica de Goldstein (1995) se deu contra a teoria do reexo
e sua posição mecanicista e atomística e onde, segundo Goldstein,
a análise da relação entre estímulo e resposta é feita isoladamente de
forma analítica. Conforme Goldstein, os fenômenos observados não
correspondem à concepção da teoria clássica do reexo, pois segundo
evidências empíricas, não há constância das respostas a estímulos
especícos. Pelo contrário, podemos observar um número diverso de
reações a um mesmo tipo de estímulo.
Goldstein (1995) também observou que a ação do estímulo pode
variar conforme a situação do campo receptivo. A ação do estímulo depende
da situação do organismo momento a momento, de forma tal que a variação
do efeito dos estímulos não depende somente da condição morfológica de
reação orgânica. Ou seja, os estímulos não são determinados em virtude
de suas propriedades objetivas (físicas e químicas), mas em função de suas
propriedades de forma (ritmo, articulação, etc.) (GOLDSTEIN, 1995).
Goldstein (1995) também destacou que a existência ou presença
de um reexo inuencia o curso de vários outros, o que inviabiliza a
construção de uma teoria do comportamento a partir de dados isolados e,
também impossibilita observar diretamente a relação estímulo-resposta, tal
como é concebida pela teoria clássica do reexo.
As teses de Goldstein (1995) geraram um quadro epistemológico,
no qual a atividade do organismo não poderia ser compreendida com base
nos seus elementos isolados. Disso, pode-se inferir que as investigações
acerca do reexo não podem fornecer uma base consistente e coerente para
se obter um ‘retrato’ da estrutura do organismo. A crítica de Goldstein à
teoria clássica do reexo elaborada também se estendeu à sua análise do
Edvaldo Soares
38 |
sistema nervoso central. Para ele, o sistema nervoso é uma rede e, como tal,
não é possível conceber funcionamento isolado e muito menos mecânico,
dado que a distribuição da excitação depende da condição do organismo.
Nesse sentido, Finger (1994) arma que a visão de que as funções cerebrais
são organizadas como entidades dinâmicas foi uma grande contribuição de
Goldstein para a neurologia. Ainda segundo Finger (1994), talvez a maior
contribuição de Goldstein foi ter considerado que cada evento biológico
deve ser visto no contexto de todo o organismo em relação com o meio,
em seu processo de adaptação (FINGER, 1994).
psICologIa experIMental
A pesquisa experimental em relação aos processos superiores, em
especial à memória, teve início com Hermann Ebbinghaus (1850-1909).
A partir dessas pesquisas colaboraram para dar à Psicologia autonomia
como ciência natural, pesquisadores de diferentes correntes, entre os quais
se destacaram, em um primeiro momento, Wilhelm Wundt (1832-1920),
William James (1842-1910) e os teóricos da Gestalt da Escola de Berlim,
entre os quais Max Wertheimer (1880-1943), Kurt Koka (1886-1941) e
Wolfgang Köhler (1887-1967).
Wilhelm Wundt (1832-1920) foi autor da obra Psicologia Fisiológica
(1874). Nessa obra Wundt desprezou as denições que tratavam a psicologia
como a ‘ciência da mente’ ou da ‘alma’. Segundo ele, a Psicologia deveria ser
denida como ‘ciência da consciência
8
. A partir dessa perspectiva, o objeto
da Psicologia deveria ser a experiência imediata, ou seja, a experiência como
se dá diretamente ao observador, enquanto que o objeto da física e das
demais ciências naturais seria a experiência mediata, sujeita às inferências e
conceitos (WERTHEIMER, 1985).
Para Wundt os principais métodos da Psicologia seriam a
experimentação e a introspecção (observação sem experimentação). A
introspecção seria adequada à ‘análise sistemática dos conteúdos conscientes
De acordo com Wundt, a base da consciência é a estrutura do organismo animal; ela é condicionada pelo
cérebro, o qual possui órgãos separados para a linguagem, escrita, etc. (WERTHEIMER, 1985, p. 85).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 39
em seus elementos’. Já o método experimental seria conveniente à
investigação dos processos básicos, tais como a sensação e a associação.
William James (1842-1910), autor de Princípios de Psicologia (1890),
sem aderir ao dualismo cartesiano e sem reduzir o mental ao siológico,
denia a Psicologia como a ‘ciência da vida mental’. De acordo com
Bueno (2002), William James enfatizava os processos mentais ativos na sua
relação com o ambiente e concebia a consciência como um dos fenômenos
psicológicos de nível superior que inuencia e é inuenciada por processos
siológicos de nível inferior.
Porém, ainda no nal do século XIX e início do século XX, com a
difusão do ideal positivista, ocorreu uma cisão entre a Filosoa (vista pelos
psicólogos da época como introspectiva) e a Psicologia, que passa a ser
denida por alguns como ciência do comportamento. Essa nova posição,
que recebeu a denominação de Behaviorismo, o qual teve como fundador
John Broadus Watson (1878-1958).
Watson procurava, além de delimitar o campo da Filosoa e da
Psicologia, dar a essa última um status cientíco, eliminando a posição
ou proposta introspectiva. A Psicologia seria o ramo puramente objetivo
e experimental da ciência natural e a sua nalidade teórica seria a previsão
e o controle do comportamento, descartando qualquer referência à
consciência (WATSON, 1913). Nessa perspectiva, o condicionamento
seria a chave para a compreensão do comportamento (WERTHEIMER,
1985). Em relação a esse período, Bueno (2002) observa que, para se tornar
uma verdadeira ciência, a Psicologia cou centrada no comportamento
objetivamente observável, recusando qualquer ‘tratamento convencional’
da consciência.
Poucos anos depois da publicação da obra Psychology as the
Behaviorist Views It (1913) por Watson, Edward C. Tolman (1886-1959)
publicou, em 1932, a obra Purposive Behavior in Animals and Man na
qual, rejeitando o introspeccionismo e defendendo a utilização de métodos
objetivos, procurou caracterizar um ‘tipo diferente’ de Behaviorismo, no
qual a intenção, o propósito, seria fundamental para a compreensão do
comportamento. Incluindo propósitos cognitivos e explicações siológicas
Edvaldo Soares
40 |
do comportamento, Tolman defendeu a tese de que os organismos
elaboravam ‘mapas cognitivos’ por meio dos quais se orientavam em
direção a seus objetivos. Ou seja, o organismo, utilizando-se dos objetos
ambientais, desenvolveria uma capacidade de prontidão (mapa cognitivo),
o qual lhe permitiria interagir apropriadamente com o ambiente. Tolman
também deu atenção ao estudo da consciência, destacando a diferença
entre immediate experience e consciousness
9
(ENGELMANN, 2001).
Ainda na primeira metade do século XX, outro importante
pesquisador no campo da Psicologia que reforçou a visão objetivista, foi
Clark L. Hull (1884-1952), autor de Principles of Behavior (1943). Seguindo
a postura objetivista, Hull dedicou-se principalmente ao problema da
aprendizagem, contribuindo para explicitar as variáveis intervenientes no
estudo da aprendizagem (função de condições antecedentes, tais como o
número de ensaios de reforço, intensidade do estímulo e horas de duração)
(CARRARA, 1998).
No contexto do desenvolvimento das pesquisas em Psicologia, a
inuência da Física foi sensível. Destacam-se nesse campo os trabalhos
de Ernest Weber (1795-1878) e de eodor Fechner (1801-1887),
os quais também contribuíram com a ‘positivação da Psicologia’. A
Psicologia a partir da forte inuência desses autores e de suas pesquisas
passou a ser basicamente ‘Psicofísica’, ou seja, uma ‘ciência do sentido
externo’, a qual Fechner denia como ‘ciência exata das relações
funcionais ou de dependência entre o corpo e a alma e, em geral, entre
o mundo corporal e o espiritual, entre o mundo físico e o psíquico
(ABIB, 1996; PENNA, 1991).
Na França, a psicologia experimental surgiu com os estudos acerca
das patologias. A primeira obra publicada nessa perspectiva foi L’Inteligence,
em 1870, de autoria de Taine. Porém, segundo Piéron (1935), é na
Salpêtrière que o espírito experimental (ainda no domínio das patologias)
se desenvolveu, por intermédio de Jean-Martin Charcot (1825-1893) e de
seus discípulos Alfred Binet (1857-1911) e Pierre Janet (1859-1947). Na
França, a psicologia experimental destacou-se principalmente pelas análises
Segundo Engelmann (2002b), apesar de se qualicar como behaviorista, Tolman introduziu muitas concepções
gestaltistas em sua teoria.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 41
de grupos de fenômenos psíquicos, pelos estudos de psicologia patológica
e de psicologia coletiva. A psicologia analítica experimental francesa teve
como grande mestre éodule Ribot (1839-1916) que publicou entre
outras obras, La Psychologie Anglaise Contemporaine (1870). Para Piéron
(1935) Ribot foi o criador da psicologia cientíca na França.
O grande mérito de Ribot foi o de expor a posição da psicologia
como ciência. Ribot procurava mostrar que a psicologia deve constituir-
se como ciência puramente experimental, devendo tratar dos fenômenos
nervosos acompanhados de consciência. Nesse sentido, entre a psicologia
e a siologia deveria existir a mesma relação existente entre a Física e a
Química. Seguindo esses pressupostos, em 1888 Ribot fundou, no Collège
de France, a Cátedra de Psicologia Experimental. Contudo, foi somente
em 1920 que a psicologia experimental francesa se tornou uma disciplina
completamente independente.
Outro pesquisador importante para o desenvolvimento da psicologia
experimental francesa foi o siologista Charles Richet (1850-1935).
Preocupado com o estudo cientíco dos processos mentais, também
defendeu a posição da psicologia como ciência; porém, como uma ciência
ligada à siologia. Na introdução da obra Psychologie Générale (1887),
Richet armava que “a psicologia tende dia a dia a tornar-se uma ciência
cada vez mais precisa e é possível prever o momento em que ela será um
dos ramos mais interessantes da siologia” (RICHET apud PIÉRON,
1935, p. 21).
Henri Piéron (1881-1964) também aparece como um grande nome
da psicologia experimental francesa. Em 1926 Piéron publica Psychologie
Expérimentale, na época em que era professor do Collège de France, do
Instituto de Psicologia da Universidade de Paris e diretor do Laboratório
de Psicologia da Sorbona
10
. Já no prefácio da Psychologie Expérimentale ele
indica que a psicologia experimental está intimamente ligada à siologia, ao
armar que, “neste pequeno volume, que faz parte de uma seção losóca
em virtude das tradições universitárias, mas que trata realmente de um
ramo da biologia” (PIÉRON, 1935, p. 9).
10
Os principais autores utilizados por Piéron, na confecção desta obra foram: Ebbinghaus, W. James, Wundt,
Titchener e Vaissière.
Edvaldo Soares
42 |
Também nessa mesma introdução, procura deixar clara a cisão entre
a losoa e as ciências. Assim, nessa perspectiva, considera que a psicologia
experimental como ciência deveria apelar à vericação, à subordinação das
teorias aos fatos, ao passo que à losoa caberia os problemas que não
podem ser submetidos ao controle da experiência (PIÉRON, 1935).
A siologia, que era modelo objetivo para a psicologia experimental,
já no século XIX, a partir do interesse pelo estudo dos órgãos dos sentidos
e pelas funções do sistema nervoso, abordava o estudo dos processos
mentais por meio da experiência objetiva. Porém, segundo Piéron (1935),
a tentativa de relacionar processos mentais com processos físicos, ainda
levava a siologia a mover-se no terreno da losoa metafísica.
Em relação à psicologia experimental, Piéron (1935) admitia que
os estados puramente subjetivos, incapazes de favorecer manifestações
especícas que possam ser objetos de percepção, não podem ser objeto de
ciência. Para ele, só é possível a ciência do comportamento, da atividade,
das reações globais dos organismos encarados em seu conjunto. Essa
ciência seria, segundo ele, diversa da siologia, a qual estuda mecanismos
parciais, sistemas limitados de reação. Dessa maneira, para ele, a psicologia
cientíca não pode ter por objeto os fatos de consciência. Não há ciência,
com efeito, senão do geral, do comunicável, do vericável (FOULQUIÉ;
DELEDALLE, 1969; PIÉRON, 1935).
Seguindo esse modelo de ciência, na sua concepção de reação, por
exemplo, Piéron mantém a visão dualista e reducionista do homem. Segundo
ele, uma modicação súbita do meio, funciona como uma estimulação,
suscitando uma resposta, em uma modicação correspondente que se
traduz como uma atividade do organismo. Piéron (1935) lembra que a
estimulação sofrida acarreta modicações perduráveis, as quais continuarão
a se manifestar no comportamento ulterior. Nesse sentido, como inovação
em relação à concepção pavloviana, Piéron admite que:
As estimulações suscetíveis de produzir as respostas não são, porém,
necessariamente processos externos: há, nos organismos pluricelulares,
um meio interno, cujas modicações – conseqüências, freqüentemente,
de reação a estímulo externo – são passíveis de agir por sua vez como
fonte de estimulação (PIÉRON, 1935, p. 40).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 43
Em relação à atividade mental e ao comportamento global, admite
que o automatismo possa continuar indenidamente. Piéron supõe
o paralelismo rigoroso do siológico e do psíquico e põe seu ideal em
reduzir os fatos psíquicos aos mecanismos siológicos, negligenciando o
caráter subjetivo da consciência, ou melhor, defende a tese da exclusão da
consciência, como o fazem hoje os partidários da tese eliminativista.
11
, a
qual abordaremos no decorrer dessa obra.
A tendência cienticista de Piéron também inuenciou pensadores
brasileiros. Por exemplo, em 1949, Onofre de Arruda Penteado Júnior,
então professor da Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo, publicou a sua segunda edição do Compêndio de Psicologia
12
, o
qual, baseado em grande parte no pensamento francês, defende a vertente
cienticista que marca a psicologia experimental da época
13
. Penteado Jr.
acreditava que a psicologia deveria abandonar os pressupostos metafísicos,
assim como é preconizado pelo positivismo. Segundo ele, o modelo para a
psicologia seria a física.
A psicologia positiva, puramente cientíca, não se preocupa com
a essência da alma. Interessa-se tão somente, pelos fenômenos e pelo
modo de se manifestares. Estuda as atividades mentais, sem indagar
de sua natureza intrínseca. Não faz metafísica. Para que seja ciência,
há de assumir a posição seguida ou adotada pela física, que estuda os
fenômenos que se passam na matéria, sem cogitar da matéria e da sua
essência (PENTEADO JR., 1949, p. 10).
Nesse sentido, a psicologia seria, como concebe Cuvillier, “a ciência
positiva dos fatos psíquicos e de suas leis” (CUVILLIER, 1953)
14
. Esta
11
Mais tarde, Piéron recusa concentrar toda a vida psíquica no par estímulo-resposta e concebe a psicologia
como ‘ciência das reações globais dos organismos’, encarados em seu conjunto. Assim, Piéron se aproxima da
Gestalt, mas sem liar-se a tal corrente (FOLQUIÉ; DELEDALLE, 1969).
12
Esse compêndio era direcionado aos estudantes que se dedicavam à atividade pedagógica.
13
Granger (1955, p. 136) observa que o positivismo se propõe a fazer das ciências humanas “ciências de ‘fatos
com uma tendência de colocá-los no prolongamento das demais ciências, de que são como que a ‘coroação’. Esta
idéia, já presente em Descartes é vigorosamente desenvolvida por Comte”.
14
“O fato psíquico não é um produto, mas um processo, uma atividade que se realiza, um comportamento,
um modo de ser, como dizem muitos psicólogos. Nossas atividades, porém, possuem graus de maior ou menor
claridade para nós. Umas são perfeitamente inteligíveis, inteligentes, conscientes. Outras são semi-conscientes,
isto é, percebemos que se estão realizando, sem que delas tenhamos completa inteligência. Outras, ainda, são
Edvaldo Soares
44 |
denição se ajustava àquilo que os psicólogos chamam de ‘psicologia geral’
(PENTEADO JR., 1949).
A Psicologia da Gestalt foi outra importante tentativa de proporcionar
conabilidade e generalidades sucientes para que a Psicologia se tornasse
uma ciência natural. Os primeiros estudos da escola da Gestalt foram
realizados na organização da parte perceptiva consciente (ENGELMANN,
2002a). Entre os fundadores da Gestalt destacaram-se Max Wertheimer
(1880-1943), Kurt Koka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-1967).
A Gestalt foi inicialmente denominada Escola de Berlim; porém seus
antecedentes podem ser encontrados na Universidade de Graz, na Áustria,
a qual foi o centro da escola da Gestaltqualität e onde se destacaram Alexius
Meinong (1853-1920) e seu discípulo, Christian von Ehrenfels (1859-
1932), que em 1890 publicou um artigo no qual insistia que a psicologia
de Wundt desprezou um elemento muito importante: a ‘qualidade
da forma ou gestaltqualität, a qual seria um elemento acima dos outros
elementos que compõe o conjunto
15
(ENGELMANN, 2002a; FINGER,
1994; PENNA, 2000).
Apesar de não ser de origem francesa, a Gestaltheorie inuenciou de
sobremaneira a formação da psicologia francesa, tendo sido um exemplo de
aplicação da fenomenologia à psicologia. De acordo com Finger (1994), a
Gestalt foi uma reação ao reducionismo, à reexologia e aos diversos modelos
mecânicos da mente. Talvez, segundo ele, sua principal crítica tenha sido
em relação ao atomismo psicológico, segundo o qual os estados psíquicos se
reduzem, em última análise, à combinação de estados elementares simples
e anteriores às construções de que fazem parte. A psicologia, nesse quadro
reducionista, consistiria, primeiramente, em determinar, por análise,
quais os elementos simples; depois, os combinando por síntese mental,
reconstruir o edifício complexo do psiquismo (FOLQUIÉ; DELEDALLE,
1969; FINGER, 1994).
completamente automáticas e se confundem com atividades psicológicas. Não sabemos dizer, com segurança,
onde termina o fenômeno siológico e começa o fenômeno psicológico” (PENTEADO JR, 1949).
15
Engelmann (2002a) observa que, além das escolas de Berlim e de Graz, ainda podem ser citadas a segunda
escola de Leipzig (a primeira é constituída por Wundt e seus assistentes), bem como os gestaltistas italianos,
entre os quais Benussi, ligado às concepções de Meinong (da Escola de Graz) e seus discípulos Musatti, Metelli
e Kanisza, que mais tarde aderiram às concepções da escola de Berlim.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 45
Conforme Garret (1959), a Gestalt surgiu em oposição às tendências
de Edward Titchner (1867 – 1927), o qual procurava analisar a experiência
mental (a consciência) reduzindo-a a seus componentes mais simples e à
tendência de Watson em descrever esse segmento do comportamento em
termos de estímulos e resposta. Conforme os gestaltistas, seria incorreto
submeter dados sensoriais complexos à análise rigorosa, na esperança de
encontrar algum átomo psíquico, sobre o qual a experiência seria construída.
Os dados reais da experiência são todos extensos e organizados, nunca
mosaicos; não se encontram elementos especícos quer na consciência,
quer no comportamento. Dessa maneira, as percepções são consideradas
experiências totais diferentes da soma se suas partes
16
(KOFFKA, 1935;
KOHLER, 1929).
De acordo com a Gestalt, a experiência subjetiva não estaria
correlacionada às excitações neurais que trafegariam ao longo de vias
determinadas, tal como era concebido pela siologia clássica, mas sim
com “campos elétricos secundários e correntes que essas excitações criam
no tecido cerebral” (SPERRY, 1952, p. 294), os quais se espalhariam pelo
cérebro. Evidências em relação a essa concepção contrária aos pressupostos
do localizacionismo derivaram de experimentos que procuravam identicar
como a visão de padrões pode ser derivada do comportamento de uxo
cortical (KOHLER; WALLACH, 1944; KOHLER; HELD, 1949). Esses
padrões seriam unicados e contínuos e, portanto, mais parecidos com os
padrões da experiência subjetiva (KOHLER; HELD, 1949; SPERRY, 1952).
Fundamentais na Teoria da Gestalt são as noções de gura e fundo.
Segundo essas noções, toda gestalt (conguração) existe como gura que
se destaca sobre um fundo mais geral e, habitualmente mais vago. Na
percepção auditiva, por exemplo, uma melodia é ouvida sobre um fundo
de silêncio ou sobre uma vaga mistura de ruídos variados. Nesse contexto,
a gura se forma mais claramente que o fundo; ou seja, possui estrutura
mais perfeita e é mais resistente à mudança; é mais vívida; conserva melhor
a cor; é mais sólida e mais substancial (GARRET, 1959). De acordo com
Guillaume (1967, p. 159):
16
Köhler citou estudos de Gelb e Goldstein sobre a percepção visual.
Edvaldo Soares
46 |
Um objeto individualizado num conjunto forma, com ele, uma
oposição assimilável à que existe entre uma gura e o fundo do qual
se destaca. O fundo, ainda que apenas uma parte dele se apresente,
continua indenido, ilimitado. A gura é limitada, tem contorno;
nas imagens equívocas, as mesmas linhas se tornam, alternadamente,
contorno de ambas as guras. Muitas vezes, a gura parece destacar-
se do fundo como se tivesse relevo; parece de cor mais compacta, mais
homogênea e mais estável do que o fundo; pequenas diferenças de
intensidade ou de tonalidade são notadas mais facilmente [...]. Essas
noções de gura e de fundo não se aplicam somente no domínio visual;
devem estender-se a toda sorte de complexos sensíveis.
Assim, uma gura, do ponto de vista psicológico, não é, de acordo
com Guillaume (1967), uma justaposição de elementos determinados de
forma invariável pela excitação local. Ela tem uma unidade (estrutura), na
qual cada parte tem uma função.
Em oposição ao atomismo, a Gestalt concebia que na consciência
não há sensações nem sentimentos elementares, mas sim totalidades
de eventos psíquicos. Sob o ponto de vista genético, o conhecimento
vem da totalidade, sem retorno aos elementos. Sob o ponto de vista
do desenvolvimento temporal, o conhecimento depende também dos
conjuntos e não dos elementos. Impera, portanto, para os Gestaltistas, a
noção de totalidade, a partir da qual é impossível uma análise por partes
isoladas, como fazia a psicosiologia clássica em sua análise atômica do
comportamento do organismo.
Mas, toda psicologia experimental francesa seguirá à risca todos
os cânones da siologia clássica como exposta acima ou seguirá a escola
alemã da Gestalt em todos os seus pressupostos? A resposta é negativa,
pois encontraremos outras tendências que se diferenciarão da proposta da
siologia clássica e da Gestalt em maior ou menor grau.
Um exemplo de tendência que adota alguns elementos da Gestalt,
mas também assume alguns pressupostos da psicosiologia clássica pode
ser encontrado em Paul Guillaume (1878-1962). Entre as principais
preocupações de Guillaume, se destacaram a psicologia animal, a
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 47
epistemologia e a compreensão da psicologia humana. Guillaume tinha
como ideal, uma Psicologia mais aparentada à ciência do que à literatura
ou à metafísica.
Nesse sentido, conforme a tradição francesa da época, acreditava-se
que a psicologia é ou tende a tornar-se cada vez mais ‘ciência da observação’.
Em linhas gerais, podemos destacar, na reexão de Guillaume, dois
elementos centrais: a orientação experimental e objetiva em Psicologia e a
importância atribuída à psicologia animal. Como inuência da orientação
gestaltista no pensamento de Guillaume destacam-se dois aspectos: o
primado das estruturas e o privilégio da boa forma e o isomorsmo do
psíquico, do siológico e do físico.
Assim como os behavioristas, Guillaume considerava o estudo das
reações globais do organismo uma fase provisória, dado que esses estudos
tinham o objetivo de puricar o problema, preparando o terreno para a análise
mais aprofundada; análise esta que chegará a uma explicação siológica, e,
por m, a uma explicação física (FOULQUIÉ; DELEDALLE, 1969).
Guillaume, contrário ao dualismo de substância, considerava que
os fatos psíquicos não podem ser estudados isoladamente em relação aos
fatos orgânicos.
Quer se denam em termos de consciência (método subjetivo), quer
se denam em termos de comportamento (método objetivo), os fatos
psíquicos mantêm estreita relação com certas ‘modicações orgânicas’,
as quais, em geral, não se podem evidenciar senão por métodos de
investigação siológica (GUILLAUME, 1967, p. 13).
Contra a tese do arco reexo, Guillaume defendia a concepção,
igualmente defendida por Goldstein, de que a reação não pode ser denida
pontualmente, ou seja, de que não existem trajetos preestabelecidos.
Segundo ele:
A reação não só é extensa e complexa como é, também, variável. A
excitação pode seguir vários caminhos diferentes na rede nervosa
e rematar em atos diversos. Uma excitação proveniente do mesmo
ponto da planta do pé e levada à medula poderá, conforme o caso,
aí distribuir-se pelos neurônios motores dos exores ou dos extensores
Edvaldo Soares
48 |
da perna. Poderá, também, sobretudo, ao invés de consumir-se nesse
nível do sistema nervoso, remontar, pelas longas vias ascendentes, a
níveis superiores da medula ou do cérebro, e lá abrir, então, nova
variedade de caminhos. Essa variabilidade é devida à ação dos centros
(GUILLAUME, 1967, p. 18).
Ainda em relação às respostas reexas, Guillaume (1967) se opôs à
concepção clássica do papel dos centros
17
. Segundo ele, “o caminho seguido
não depende senão da própria forma do chamado e do estado sistema”.
Transportando essa ideia para o campo da siologia, arma que “o caminho
seguido depende não apenas da qualidade e da quantidade do excitante,
como também do estado momentâneo da rede nervosa” (GUILLAUME,
1967, p. 18-19). Disso conclui que
[...] a mesma excitação poderá dar origem a uma série complexa de
reações. Uma gota de ácido na pata de uma rã decapitada determina
exão reexa do membro irritado. Se êsse membro fôr imobilizado,
essa suspensão da reação primária modicará o estado dos centros;
produzir-se-á, então, um movimento muito mais complexo. [...]
(GUILLAUME, 1967, p. 19).
Porém, isso não signica que o organismo trabalha em desordem.
Pelo contrário, é regido por um estado de ‘equilíbrio dinâmico’, o qual é
modicado pela própria atividade. Assim, de acordo com Guillaume, “o
destino de uma excitação aplicada a um dos pontos do sistema depende
não só da estrutura anatômica da rede, como também de seu equilíbrio
dinâmico, das resistências variáveis devidas ao estado momentâneo do
sistema” (GUILLAUME, 1967, p. 19). Essa ‘dinamicidade’, atribuída ao
comportamento, decorre do simples fato de que o sistema nervoso é um
tecido vivo e não um mecanismo inerte, cujas propriedades se modicam
pelo próprio funcionamento.
A questão da percepção também é amplamente discutida nos estudos
de Guillaume. A importância desse tema decorre da consideração de que a
17
Os centros eram comparados a um quadro de distribuição de uma rede telefônica, onde os caminhos estariam
preestabelecidos.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 49
base do conhecimento do real é a percepção dos objetos e dos fatos, o que
para ele seria um problema que a siologia clássica não conseguiu resolver
ao decompor o fato psíquico da percepção em fatos elementares (sensações),
cada um dos quais correspondentes a cada condição parcial, e dos quais a
percepção seria a justaposição ou a soma (GUILLAUME, 1967).
Assim como o problema da relação entre sujeito-objeto da losoa,
o problema da percepção se resume em determinar as condições de que
ela depende. Como tentativa de dar conta desse problema, Guillaume
partirá de algumas ideias, concordes com a Psicologia da Gestalt, entra as
quais: em primeiro lugar, “jamais lidamos (ainda nas condições articiais
da experimentação) com um excitação sensorial local isolada, mas sempre
com complexos de excitações simultâneas e sucessivas de um ou de vários
campos sensoriais”, onde cada efeito parcial é função do conjunto; em
segundo lugar, deve-se levar em conta que as excitações ocorrem em um
organismo que possui experiências, ou seja, uma história. O organismo é
dinâmico, seu funcionamento não pode ser determinado pela simples ação
de excitantes. Pelo contrário, é o organismo que dá sentido aos excitantes
(GUILLAUME, 1967, p. 106).
Por esse motivo, seria difícil aceitar a tese da especialização, pois se
essa fosse realmente rigorosa, teríamos que conceber que a cada espécie
de excitação, para cada espécie de agente, haveria um órgão especializado.
Ora, sabemos que isso não ocorre. Conforme Guillaume (1967), o processo
siológico correspondente à sensação não está necessariamente ligado, de
maneira simples e unívoca, ao fato físico que é seu excitante ordinário.
Excepcionalmente, a relação normal entre a sensação e a causa
física pode ocorrer por causas físicas diferentes, ou seja, podem agir no
mesmo aparelho receptor, produzindo a mesma sensação (correspondente
ao fenômeno siológico próprio desse aparelho) ou ainda, a mesma causa
física pode agir em aparelhos receptores diferentes, ocasionando sensações
diferentes. Essas duas possibilidades “mostram que a qualidade sensível
depende diretamente, não da natureza da energia física que excita o aparelho
nervoso, mas de uma energia própria desse aparelho” (GUILLAUME,
1967, p. 131).
Edvaldo Soares
50 |
Outro tópico importante que se colocará contra as concepções
clássicas, se refere à adaptação do aparelho receptor ao excitante. Na visão
clássica, um determinado excitante sempre causará uma determinada
reação, se aplicado pontualmente. Para Guillaume, os fatos demonstram
o contrário:
[...] a sensação pode modicar-se sem que a causa física tenha
mudado: o órgão e sua função siológica é que foram modicados
por uma reação que tende a compensar os efeitos do excitante. Daí
resulta, do ponto de vista biológico, uma diminuição de importância
das excitações contínuas (às quais o ser, em geral, já está adaptado) em
proveito das excitações variáveis (que exigem, de sua parte, adaptação
nova). Mas resulta também daí que não podemos pedir, a nossos
sentidos avaliações absolutas nem comparações exatas. Do ponto de
vista cientíco, o que se exige de um instrumento é, sobretudo, que
forneça as mesmas indicações, quando submetido às mesmas ações
exteriores. As indicações de nossos sentidos, ao contrário, são relativas
ao estado momentâneo de nossos órgãos, modicado pelas excitações
que acabam de receber e às quais se adaptam por via de razões
biológicas. (GUILLAUME, 1967, p. 137).
Essa visão não determinista será levada a termo, na continuidade da
reexão sobre a percepção, concebida por ele como um todo organizado,
uma reação do conjunto do organismo a um complexo de excitações
simultâneas e sucessivas e também como a reação de uma pessoa, com
suas lembranças, seus hábitos, sua orientação intelectual ou afetiva
(GUILLAUME, 1967).
No que se refere à relação mente-cérebro, Guillaume (1967)
defendeu que, apesar de ser clara a estreita relação entre o fato psíquico
e o fato cerebral, cada um desses fatos deve ser descrito com a linguagem
conveniente. Ou seja, por serem conhecidos de maneira diferente, o fato
cerebral deve ser descrito em termos siológicos, ao passo que os fatos de
consciência deveriam ser descritos em linguagem psicológica:
O conhecimento que possuo de uma emoção interiormente
experimentada pode ser completo ainda que eu não saiba nada de
nada do que atualmente se passa em meu cérebro e até ainda que
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 51
eu nem sequer suspeite da existência e do papel de meu cérebro. Da
mesma forma, o conhecimento que adquiro das emoções dos outros,
ao observar, em determinadas situações, suas reações orgânicas e sua
conduta, pode já ser muito extenso e muito preciso, sem que minha
análise tenha atingido os fenômenos cerebrais que me explicariam a
conexão e o determinismo íntimo dos fatos que observo. No primeiro
caso, ignoro o concomitante orgânico do estado de consciência; no
segundo, ignoro os elos intermediários de uma cadeia de fatos objetivos,
cujos dois extremos conheço. Geralmente, é assim: conhecemos bem
melhor o fenômeno psíquico do que o processo cerebral. Não será inútil
enunciar rapidamente as diculdades excepcionais do estudo deste
último (GUILLAUME, 1967, p. 27).
Nesse ponto, observamos que Guillaume, inicialmente orientado em
direção a um ponto de partida gestaltista e fenomenológico, retorna, talvez
por preocupação metodológica, a uma concepção siológica e sicista.
Outro autor importante na difusão do pensamento psicológico
francês foi Armand Cuvillier (1887 – 1973). Cuvillier publicou em 1923
a obra ABC de Psychologie
18
na qual defendia que os estados de consciência
são reais e positivos como outros quaisquer e que são estados internos
subjetivos, ou seja, não conhecidos externamente, mas internamente e
apenas pelo indivíduo no qual se produzem.
Conforme Cuvillier (1953), nossos estados de consciência seriam a
única coisa que poderíamos conhecer diretamente, ao passo que os objetos
externos seriam conhecidos indiretamente, mediante a impressão que
produzem sobre nossos sentidos. Partindo desse princípio, a Psicologia
seria o estudo objetivo dos fatos de consciência. Porém, a Psicologia
contemporânea, aspirando ser cientíca, adota atitude semelhante à das
ciências naturais. Dessa forma, segundo ele:
A psicologia moderna [...] não mais toma como base a ideia de alma,
isto é, a ideia de um princípio espiritual que os ‘fatos de consciência
não seriam mais que a manifestação: deixa essa ideia aos lósofos e
metafísicos. Foi averbada de ‘Psicologia sem alma’: e essa fórmula, que
lhe tinha sido atirada como crítica e quase como opróbrio, ela a aceitou
18
A obra teve mais três edições: 1927, 1930 e 1933. A primeira edição brasileira data de 1934.
Edvaldo Soares
52 |
como lema, não porque tome deliberadamente atitude materialista,
mas, muito ao contrário, porque não quer envolver-se nas discussões
metafísicas sobre a natureza e o destino da alma, e apenas pretende
conhecer os fatos, nada mais que os fatos, para estabelecer-lhes as leis.
Será, pois uma ‘Psicologia sem alma’, como a Biologia contemporânea
é uma Biologia sem ‘princípio vital’. Seu objeto será o estudo dos ‘fatos
de consciência’, dos ‘fenômenos’ do espírito, como os que enumeramos no
início desta exposição. Seu m será a descoberta das leis que regem esses
fenômenos. (CUVILLIER, 1953, p. 15-16).
Conforme Cuvillier (1953), a expressão ‘psicologia sem alma’ seria
criação do lósofo dinarmaquês Harald Höding (1843 – 1931) que a
empregou para armar que a Psicologia Cientíca nada diz a respeito do
ser absoluto da vida psíquica ou sobre a questão de saber se há em geral um
ser absoluto dessa espécie. Para Cuvillier, a consciência é um instrumento
a serviço da vida, um recurso de adaptação do ser vivo ao meio e, dessa
forma, não pode ser concebida como uma simples função orgânica como
outra qualquer, o que também não signica que os ‘fatos de consciência
sejam separados das sensações, lembranças, ideias, sentimentos, etc.
É a partir desses princípios que Cuvillier (1953) postulou que
a Psicologia não deve ser entendida como uma espécie de ‘química
mental’, para a qual nossos estados de consciência seriam compostos de
átomos psíquicos’ imutáveis. Pelo contrário, a consciência é mutável,
sendo impossível dois estados de consciência perfeitamente idênticos. A
Psicologia, por sua vez, não pode ser vista como um capítulo da Fisiologia
ou ser reduzia a essa. Segundo ele, “se fosse certo que o pensamento não
passa de secreção do cérebro [...] não haveria, é claro, nenhuma razão para
consagrar ao pensamento um estudo especial” (CUVILLIER, 1953, p. 38).
Outro exemplo de uma concepção menos ortodoxa em termos de
psicosiologia, pode ser encontrado em um autor citado com grande
frequência e do qual temos pouquíssimos dados biográcos, o jesuíta J. de
La Vaissière que, em 1912, publicou a primeira edição da obra Éléments de
Psychologie Expérimentale. Esta obra, revisada em 1927, foi citada como
obra de referência por autores como Guillaume e Piéron. Nela, Vaissière
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 53
(1959), que admitia a introspecção como método, denia a psicologia
experimental como a ciência positiva dos fenômenos psíquicos. O objeto
formal da psicologia experimental seria, seguindo a mesma tendência
de Ribot, a determinação das leis positivas que regem os fenômenos
psíquicos. Para tanto, usaria como métodos a observação (subjetiva e
objetiva) e a experimentação. Contrariamente à tendência atomística do
modelo pavloviano, Vaissière defendia a tendência totalitária da psicologia
experimental. Segundo ele,
A Psicologia Experimental se compenetra cada vez mais dessa verdade:
há uma ruptura completa e denitiva a fazer-se entre os nossos
métodos e os das ciências físico-químicas; deve deixar de ser atomística
e elaborada à maneira de um mosaico (VAISSIÈRE, 1959, p. 319).
Conforme esta concepção, as sensações, imagens, estados afetivos,
volições, etc., já não deveriam ser estudados como tendo existência à parte.
Eles seriam diferentes aspectos do mesmo todo, de um único cognoscente.
Quando separados, perderiam seu verdadeiro sentido. Segundo ele, “apenas
o todo existe realmente; as partes só têm realidade nele, por ele e para ele.
É a primazia do conjunto” (VAISSIÈRE, 1959, p. 319). Essa exigência
de assegurar a prioridade do todo será, segundo ele, uma tendência dos
psicólogos contemporâneos’. Por exemplo, no Congresso Internacional
de Copenhague, em 1930, Charlotte Bühler, professora do Instituto
Psicológico de Viena, armou que:
A vida psíquica deve ser estudada em seu conjunto como um todo;
o próprio curso da vida psíquica é o grande problema psicológico; a
psicologia deve ser estudada não só em corte transversal no conjunto
da totalidade atual, mas também em corte longitudinal em tôda a
seqüência do passado.
19
(BÜHLER apud VAISSIÈRE, 1959, p.
319 -320).
Além de Bühler, outros autores insistiram nessa necessidade. O
principal argumento era inferido do estudo de algumas patologias,
entre as quais a ilusão dos amputados (membro fantasma), a qual será
19
Acta psychologica (G. Revesz), I, 1934, Haia, Nijho, p. 47-49.
Edvaldo Soares
54 |
contemporaneamente retomada por diversos autores, tais como Damásio
(1996, 2000) e Ramachandran (2002).
Vaissière (1959) acreditava que, no caso dos membros fantasmas, seria
impossível interpretar as situações psicológicas manifestamente envolvidas
sem conceber o organismo em sua totalidade, pois, em psicologia
experimental, essa patologia é interpretada como sendo uma imagem
ressuscitada, em virtude da reintegração livre de qualquer redutor. Para
compreender o alcance dessa explicação, que nada perdeu de seu valor, é
preciso considerar a imagem do corpo na totalidade de sua história. Assim,
segundo Vaissière:
Manifesta-se aqui o primado do todo: se uma circunstância vem
me atrair a cognição para o braço, êste não será percebido à parte,
mas sim na totalidade do corpo. Como se vê, a imagem cenestésica
do corpo dum adulto possui longo passado e sua história atravessou
inúmeras fases junto com o próprio corpo [...].Considerada, assim, no
todo presente e histórico, em corte transversal e longitudinal, explica-
se de modo muito claro a situação psicológica do indivíduo em tôdas
as observações mencionadas. Quando, pelo contrário, ela é encarada
à parte, isoladamente, apresenta o estranho aspecto duma exceção
misteriosa (VAISSIÈRE, 1959, p. 323).
Para Vaissière (1950), a visão de totalidade não é exclusividade da
Gestalt e muito menos novidade
20
. Segundo ele, o lósofo e biólogo Hans
Driesch (1867 - 1941), em conferências proferidas na Clark University
de 1925 a 1926 e no texto Some Modern Types of Psychology (Pedagogical
Seminary, XXXIV, 1927, p. 10-11), recusava-se a encarar a Gestalt como
um sistema especial. Segundo ele, todo psicólogo cientíco ou profano
é necessariamente ‘gestaltista’ no sentido pretensamente profundo da
palavra. Todo conhecimento, pelo próprio fato de ser psicológico, é
uma totalidade.
20
Dizia Vaissière (1959, p. 327): “Portanto, sob êste aspecto, deixando de lado os pontos de vista siológicos,
nada há de novo. Tampouco convém classicar a Gestalt entre os sistemas de psicologia profunda. Tudo o que
ela contém de verdadeiro e utilizável acha-se incluído nos sistema da união formal dos dinamismos sensitivo e
intelectual, de modo muito mais claro e que toca de mais perto os fatos concretos”.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 55
Portanto, apesar da força das concepções positivistas, podemos
claramente observar que, no início do século XX, é forte, especialmente
no pensamento francês e alemão, a defesa da necessidade de analisar o
organismo em sua totalidade e uma crítica, já bem formulada, em relação
às tendências atomistas, deterministas e reducionistas.
loCalIzaCIonIsMo de Funções MentaIs
Segundo Gregory (1987), o localizacionismo se caracteriza pela
tentativa de discriminar regiões responsáveis por determinadas funções
e subfunções (por exemplo, uma função que diz respeito à linguagem
e uma subfunção que processa verbos irregulares). Essa concepção era
corrente nas décadas de 1930 e 1940. Como uma vertente deste tipo de
pensamento, também era comum a concepção de que os estímulos agiam
pontualmente sobre o organismo. Ou seja, que o organismo possui órgãos
especializados para processar os diversos tipos de estímulos, sejam eles
físicos ou químicos. A origem dessas concepções é comumente atribuída
ao dualismo cartesiano e na sua explicação de que a união entre mente e
corpo se dava na glândula pineal.
Ainda nos séculos XVIII e XIX, siologistas e anatomistas,
inuenciados pela tradição cartesiana, procuravam os correlatos anatômicos
das funções mentais (linguagem, inteligência, memória, etc.). Muitos
desses estudiosos acabaram assumindo uma posição localizacionista em
relação às funções mentais, o que gerou algumas críticas no tocante a essa
concepção e, consequentemente às suas teorias.
Uma das primeiras tentativas de estabelecer a localização das funções
mentais ocorreu no nal do século XVIII, com o neuroanatomista alemão,
Franz Joseph Gall (1757-1828). Gall propunha que regiões distintas do córtex
cerebral humano controlariam funções especícas. De acordo com Gall, o
cérebro não agiria como um órgão unitário. Pelo contrário, seria formado
por cerca de 35 órgãos, cada um dos quais responsável por uma faculdade
mental especíca. A partir dessa ideia inicial, chegou a propor que, com o
desenvolvimento de uma determinada função mental, o respectivo centro
daquela função aumentaria de volume, de tal forma que também a região do
Edvaldo Soares
56 |
crânio correspondente àquele órgão caria mais proeminente. Assim sendo,
para Gall, a partir da análise do crânio, seria possível determinar quais as
funções mais desenvolvidas. Essa doutrina foi denominada mais tarde pelo
assistente de Gall, Johann Caspar Spurzheim (1776-1832), de frenologia.
(DAMÁSIO, 1996; FINGER, 1994; KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL,
1997; MEYER, 2002; STONE, 1999).
Apesar das denições e da metodologia hoje consideradas
inadequadas, a concepção localizacionista de Gall continuou
inuenciando boa parte do pensamento siológico de época (DAMÁSIO,
1996; FINGER; STEIN, 1982).
O primeiro grande crítico da concepção localizacionista de Gall foi
Jean Pierre-Marie Flourens (1794-1867). Ao contrário de Gall, que era
um teórico, Flourens apoiou-se no método experimental, em especial dos
procedimentos de ablação e estimulação em animais para questionar o
localizacionismo
21
.
O método experimental adotado por Flourens consistia em remover
mediante ablação os centros funcionais identicados por Gall e, assim
isolar as contribuições e relações de diferentes partes do sistema nervoso
ou ‘centros’ para o comportamento.
Feito isso, Flourens concluiu que regiões cerebrais especícas não
são as únicas responsáveis por comportamentos especícos, mas que todas
as regiões cerebrais, em especial os hemisférios cerebrais do telencéfalo,
participam de cada função mental. Assim, de acordo com Flourens,
qualquer parte do hemisfério cerebral seria capaz de desenvolver todas
as funções do hemisfério. Ou seja, uma lesão da área especíca de dado
hemisfério cerebral atingiria igualmente todas as funções superiores.
Em relação às funções mentais (inteligência, volição, etc.), Flourens
acreditava que elas ocupam o mesmo local no cérebro. Para ele, as
faculdades de perceber, de conhecer, de querer, constituem, em essência,
uma só (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 1997). Essa teoria recebeu
o nome de hipótese do campo agregado e representou na época uma reação
21
Finger e Stein (1982) observam que o método de ablação já era utilizado por Luigi Rolando (1773-1831), o
qual estudou os hemisférios cerebrais nos pássaros.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 57
contra a posição materialista estrita sobre a mente, ou seja, a ideia de que a
mente seria inteiramente biológica
22
.
De acordo com Finger e Stein (1982), Flourens foi o primeiro
experimentador a dar atenção ao fenômeno de recuperação de funções, pois
foi, de fato, o primeiro a demonstrar que o cérebro, o cerebelo e a medula
têm diferentes funções. Nesse sentido, a sua discussão sobre a recuperação
de funções após lesões corticais representa uma de suas maiores contribuições.
Apesar dos esforços de Flourens, na França, a teoria localizacionista
ganhou força com os estudos de François Magendie (1783-1855).
Considerado um dos fundadores da escola francesa de siologia e defensor
ferrenho do método experimental, Magendie cou famoso por suas
descobertas sobre as raízes da espinha (dorsal) em 1822. Segundo Finger
e Stein (1982), usando o método de ablação, Magendie concluiu que a
raízes anterior e posterior da medula espinhal têm diferentes funções: a
posterior, mais está particularmente relacionada à sensação e a anterior, ao
movimento. À semelhante conclusão chegou Charles Bell (1774-1842) em
1810. Esta constatação cou conhecida como Lei de Bell-Magendie e deu
origem à clássica diferenciação entre funções sensoriais e motoras (FINGER,
1994; FINGER, STEIN, 1982).
Outro golpe dado à teoria de Flourens foi desferido por Paul Broca
(1824-1880), considerado o iniciador da versão moderna da teoria das
localizações cerebrais e o primeiro a propor localizações no plano cortical.
Em 1861 Broca correlacionou o fenômeno clínico da afasia de
expressão com o achado patológico de lesão da porção posterior do giro
frontal interior, mostrando que a faculdade para articular a linguagem está
localizada no lado esquerdo do córtex cerebral. Suas observações sobre
a afasia popularizaram o conceito de que funções corticais especícas
22
Essa hipótese foi questionada mais tarde por John Hughlings Jackson (1835 – 1911) que, em seus estudos
sobre epilepsia focal (doença caracterizada por convulsões que começam em uma parte do corpo), demonstrou
que processos sensoriais e motores distintos cavam localizados em diferentes regiões do córtex cerebral. Esses
estudos posteriormente foram desenvolvidos por Carl Wernicke (1848 – 1905), Charles S. Sherrington (1857
– 1952) e Santiago Ramón Y Cajal (1852 – 1934) que elaboraram a chamada hipótese da conexidade celular
(cellular connectionism), segundo a qual os neurônios individuais são unidades sinalizadoras do cérebro; em
geral, estão dispostos em grupos funcionais e se interconectam de modo preciso. Nesse sentido, o trabalho de
Wernicke indicou que “os diferentes comportamentos são mediados por regiões cerebrais distintas e interligadas
por vias neurais especícas (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 1997).
Edvaldo Soares
58 |
poderiam ser localizadas na superfície do cérebro (GUSMÃO; SILVEIRA;
CABRAL FILHO, 2000, p. 1149). No mesmo período, o médico e
neuropatologista alemão, Carl Wernicke (1848 – 1905), descreveu
pacientes com lesões na parte posterior do lobo temporal na junção com
os lobos occipital e parietal (área de Wernicke) que apresentavam pouca
compreensão da linguagem, mas que podiam produzir frases completas.
Esses experimentos seriam, para alguns autores atuais, uma evidência da
chamada teoria modular (CAMPOS; SANTOS; XAVIER, 1997).
Porém, de acordo com Hédon (1935), os experimentos realizados
por Eduard Hitzig (1838-1907) e Gustav Fritsch (1838-1927) que
contribuíram para desacreditar os pressupostos da teoria de Flourens.
Hitzig e Fritsch, a partir de estudos experimentais com coelhos e
cães, demonstraram que o cérebro pode ser eletricamente estimulado, de
forma a possibilitar, por exemplo, a vericação de qual a área sensitiva ou
motora pode ser limitada a uma única parte do córtex.
Essa seria a primeira evidência experimental de localização cortical
da função motora, pois, mediante as estimulações elétricas, Hitzig e
Fritsch obtiveram diferentes movimentos em diferentes locais do córtex,
demonstrando assim que diferentes áreas do cérebro têm funções
especícas e diferentes. Em outros termos, os experimentos de Fritsch e
Hitzig demonstraram que a excitação de certos pontos do córtex cerebral
determinam diversos movimentos especiais. Dessa maneira, eles limitariam,
no território cortical, uma zona em relação com a motilidade. Além dos
experimentos eletrosiológicos, eles também utilizaram o método de
ablação, por meio do qual conrmaram a localização da zona motora no
cão
23
(FINGER; STEIN, 1982).
Alguns anos mais tarde, impressionado com a ideia de que o córtex
poderia ser eletricamente excitável, David Ferrier (1843-1928) procurou
comparar as armações de Hitzig e Fritch em relação aos macacos. Apesar
de não conseguir denir uma área motora nos primatas, ele descreveu,
mediante a técnica de estimulação, quinze diferentes subáreas. Finger e Stein
23
O isolamento do córtex motor por Fritch e Hitzig representou a primeira demonstração experimental da
localização da função na área cortical que foi amplamente aceita.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 59
(1982) consideram que Ferrier foi o primeiro entre os experimentalistas
a localizar funções superiores em discretas zonas do córtex cerebral. Em
1876, Ferrier publicou a obra e Functions of the Brain, na qual ressalta
a importância da teoria das localizações cerebrais e da topograa para o
tratamento cirúrgico das lesões encefálicas, ampliando assim a aplicação
dos conceitos de localizações cerebrais (FINGER, 1994; GUSMÃO;
SILVEIRA; CABRAL FILHO, 2000).
Conforme Hédon (1935), dos experimentos realizados por Fritsch e
Hitzig e por Ferrier foram tiradas algumas leis básicas para a siologia clássica:
1. Em todos os mamíferos, a zona motora ocupa a parte média
dos hemisférios e acha-se intercalada entre duas zonas latentes
inexcitáveis, uma que ocupa a parte anterior do lobo frontal e a
outra que ocupa a maior parte dos lobos parietal e temporal e lobo
occipital;
2. À medida que nos ‘elevamos’ na escala zoológica, e que o cérebro
se desenvolve e adquire maior importância nas funções psíquicas,
vê-se a zona motora estender-se e subdividir-se em centros mais
numerosos e mais especializados e,
3. Os movimentos provocados pela excitação dos centros motores
corticais de um hemisfério se realizam do lado oposto do corpo.
Na esteira desse movimento, Leonardo Bianchi (1848 - 1927),
igualmente interessado em funções localizadas no córtex, estudou as
funções intelectuais localizadas no lobo frontal e Korbinian Brodman
(1868 - 1918) descreveu 52 áreas no córtex humano (FINGER, 1994;
FINGER; STEIN, 1982).
Apesar das evidências apontadas pelos localizacionistas,
diculdades em relação à concepção eram constantemente apontadas.
Por exemplo, Richet (1898) não acreditava que fosse simples determinar
o local exato da resposta a partir do local da excitação, principalmente
quando se tratava da localização de excitações centrífugas (localisation
des excitations centrifugues.).
Edvaldo Soares
60 |
Da mesma maneira os anatomistas Testut e Jacob (1905) atestaram a
mesma diculdade. Por exemplo, quando se trata dos centros de inteligência,
ou melhor, do local ou órgão da inteligência, Testut e Jacob (1905) citavam
posições diferentes. Segundo eles, alguns autores apontam o lobo frontal
como local das funções intelectuais, enquanto outros autores armam que
as funções intelectuais não possuem centros particulares, mas resultam do
funcionamento próprio do cérebro. Interessante notar que, em seu estudo
sobre anatomia humana, Testut (1900) armava que à Anatomia cabia
o estudo das localizações motoras, sensitivas e sensoriais, ao passo que as
localizações corticais seriam de domínio da Fisiologia e da Clínica.
Limitações da teoria da localização também foram apontadas por
Antoine Pizon. Em sua obra Anatomie et Physiologie Humanines: suivies de
l’étude des principaux groupes zoologique, Pizon reforça a distinção entre as
áreas sensoriais e motoras. Em relação às localizações ‘psíquicas’, destaca
os centros de linguagem, de memória (verbal e escrita). Porém, citando
os trabalhos de Broca e Flourens, arma que “a localização dos centros de
linguagem, se elas existem, são mal denidas”. Pizon também acreditava
que o desenvolvimento intelectual está relacionado ao volume da substância
cortical (1925, p. 155).
Na década de 30, Karl S. Lashley (1890-1958) desenvolveu
pesquisas a partir de um método que consistia em comparar a capacidade
de aprendizagem revelada pelos animais antes e depois da destruição (por
meio de intervenções cirúrgicas - ablação) de determinadas áreas cerebrais
e também em comparar a capacidade de aprendizagem dos animais
operados’ com animais normais, com o objetivo de determinar quais
as regiões e qual a porção da massa total do cérebro que funcionam na
aprendizagem de atos especícos.
A partir desse procedimento Lashley demonstrou que o prejuízo de
desempenho em ratos, provocado pela retirada de massa cortical, dependia
mais da quantidade de massa retirada do que do local ou área cortical
(FINGER, 1994; GARRET, 1959).
Lashley seguindo a mesma trilha teórica de Flourens, concluiu que
quando o cérebro se encontra em condições patológicas, as complicações
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 61
oriundas das moléstias ou ferimentos corporais têm de ser tomadas
seriamente em consideração, pois essas podem ser tão graves que chegam
a tornar extremamente difícil uma conclusão segura quanto aos efeitos
especícos da lesão cerebral.
Esses dados entusiasmaram psicólogos e neurosiólogos que viam o
cérebro como um computador complexo e que, portanto, não podia ter
uma função totalmente aniquilada pela remoção de umas poucas peças
(GREGORY, 1987). Dos seus estudos, Lashley também observou que as
partes do cérebro apresentam potencial para executar as funções de outras
partes, se estas sofressem dano. Concebia, assim, que o cérebro atua como
um todo, como unidade integrada (Princípio de Eqüipotencialidade).
O que essas tendências apresentadas parecem indicar é a aplicação
de análises diferentes em relação à localização. Por exemplo, quando
alguns autores se referiam a funções superiores, acreditava-se que o cérebro
atuava como um todo, porém, com certo grau de especicidade; quando
se tratava de funções elementares, tais como experiências sensoriais básicas
e movimentos especícos, a tendência localizacionista predominava,
principalmente nos estudos siológicos. Também a distinção entre os
centros sensoriais e motores continuava vigorando nos estudos siológicos
24
.
Ainda em relação às interpretações dos resultados dos estudos
desenvolvidos no período, ainda se observa a predominância da visão
dualista, com algumas exceções, e mecanicista.
Em relação a isso é interessante observar uma descrição interessante
de Hédon (1935) acerca das funções mesencefálicas, a partir dos estudos
com animais privados dos hemisférios cerebrais. Segundo ele, após a
ablação dos hemisférios cerebrais, o animal ca desprovido de todas as
funções psíquicas; as sensações conscientes e os movimentos voluntários
são abolidos
25
. Os sinais de atividade que apresenta são variáveis segundo
o grau na escala zoológica a que ele pertence, isto é, segundo o grau de
desenvolvimento e de importância adquirida pelo cérebro:
24
Segundo Hédon (1935, p. 561), “hoje, as noções sôbre as localizações corticais aumentaram consideravelmente,
graças aos trabalhos de Ferrier, Munk, Charcot e Pitres, Grasset, etc., e sabemos que certas partes do córtex
presidem á motilidade, outras á sensibilidade”.
25
Aqui já encontramos a utilização direta do termo ‘consciência’ em relação aos animais.
Edvaldo Soares
62 |
Uma rã sem cérebro, assemelha-se a ponto de causar confusão, a uma
rã intacta; sua atitude é normal; collocada sôbre o dorso, ella volta-se
lentamente; se excita, salta; posta n’agua, nada e todos os seus movimentos
são perfeitamente coordenados. Evita os obstáculos e mantém o
equilíbrio de uma maneira muito precisa; colocada numa plancheta,
que se inclina gradualmente, sobe e passa de um lado para outro, sem
cahir (experiência de Goltz chamada dos exercícios acrobáticos). Se
lhe acaricia, suavemente, a pelle do dorso, ella coaxa como de prazer.
Todavia essa rã difere muito de uma rã normal; é de notar, antes de
mais, que, se nenhuma excitação excitá-la ao movimento, ella permanece
indenidamente immovel; todos os movimentos que executa são pois,
actos reexos condicionados immediatamente por impressões de origem
peripherica. Além d’isso, ella por si mesma não come [...]; deixa-se
morrer de fome no seio da abundancia: todo o desejo, toda a necessidade,
todo o instinto desapareceram (HÉDON, 1935, p. 537).
Conforme Hédon (1935), em outro experimento, Friedrich Goltz
(1834-1902) conseguiu manter com vida dois cães, após extirpação
de grande parte dos hemisférios cerebrais. Observou-se que os animais
apresentavam uma ‘sionomia sem expressão’; os movimentos eram-lhe
desajeitados e irregulares e se mostravam incapazes de servir-se das patas
para apreender um osso e roê-lo
26
.
Desse experimento Goltz conclui que o cão decerebrado perde todas
as manifestações ou expressões pelas quais inferimos a razão, a memória e
a inteligência. Entretanto acreditava Goltz que esses animais conservam as
sensações e não seriam assimiláveis à simples máquinas de produzir reexos.
Porém, Goltz encontrou fortes opositores, entre os quais, o professor de
Fisiologia da Universidade de Berlim, Hermann Munck (1839-1912), o
qual concebia que não somente as representações nascidas dos resíduos
de sensações, mas as próprias sensações elementares e sua percepção são
funções do córtex cerebral. Para Munk, o que Goltz tomou por sinais de
sensações eram apenas o resultado de reexos comuns de defesa e proteção
(FINGER, 1994; HÉDON, 1935).
26
Outro conceito interessante é utilizado pelo autor: “sionomia sem expressão”. Nesse sentido é interessante
vericar os casos clínicos estudados por Damásio (1996) em relação a lesões no lobo temporal direito.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 63
Conforme Hédon (1935), seja como for, verica-se que os animais
descerebrados são reduzidos ao estado de autômatos, conservando além das
funções orgânicas que permanecem intactas, diversas faculdades que foram
classicadas sob o título de equilíbrio, de coordenação dos movimentos e
de expressão emocional.
Um modelo de análise fundamental da psicosiologia clássica
para a explicação do funcionamento do organismo foi, como vimos, o
modelo dos centros. De acordo com esse modelo existem quatro centros:
os centros motores, os centros psíquicos, os centros de projeção e os centros
de associação. A existência de centros motores, segundo Hédon (1935) é
provada por meio do método das excitações e das destruições parciais e
pelo método anátomo-clínico
27
. Assim, combinados esses diversos meios
de investigação, conseguiu-se xar a situação desses centros nos animais e
no homem. No que se refere aos centros psíquicos, partia-se do princípio
de que o cérebro era o órgão da inteligência e que o lobo frontal estaria em
relação com as manifestações intelectuais.
Para fundamentar tal hipótese, apoiavam-se em estudos casos
patológicos, nos quais a destruição extensa dos lobos frontais, no homem,
foi seguida de distúrbios psíquicos.
Outra fonte de apoio na defesa da existência dos centros psíquicos
foram as experiências de David Ferrier (1843 – 1928) que, suprimindo os
lobos frontais no macaco, vericou, após essa mutilação, uma diminuição
muito grande da faculdade de atenção (YOUNG, 1968).
Ainda na perspectiva da existência de centros psíquicos, Hédon
(1935) observou que a representação de um objeto se liga intimamente
a uma inervação motora. Por exemplo, uma criança que vê um objeto,
tende a pegá-lo. Mais tarde, ela aprende a exprimir suas ideias por sinais
convencionais; aprende a falar e a escrever. Dessa maneira, forma-se no
córtex cerebral ‘centros de associação’ para os movimentos combinados
dos diversos músculos, que colaboram na palavra e na escrita. Esses centros
manteriam relações tanto com os centros psico-sensíveis como com os
centros psicomotores.
27
Esse método consiste no estudo das relações que existem entre a paralisia dos diferentes grupos musculares, no
homem, e as lesões localizadas no córtex, encontradas pela autopsia.
Edvaldo Soares
64 |
A denição dos centros de projeção e associação está apoiada na
concepção de que o córtex cerebral está dividido funcionalmente e
anatomicamente em duas zonas distintas: zona dos centros de projeção,
que compreende todos os centros ligados por ‘bras de projeção
(centrípetas ou centrífugas) aos centros nervosos situados mais abaixo,
no eixo nervoso, e a zona de centros de associação, que compreende todas
as partes do córtex que, desprovidas inteiramente de bras de projeção,
acham-se apenas em conexão entre si e com os centros precedentes por
intermédio de ‘bras de associação’.
Enquanto os centros de projeção compreenderiam as quatro esferas
ditas sensoriais: a esfera táctil, a esfera visual, a esfera auditiva e a esfera
olfativa, os centros de associação compreendem três grandes centros
distintos: o grande centro de associação posterior, formado de quase todo
o lobo parietal e de uma parte do lobo occipital; o centro de associação
média, que corresponde à insula de Reil (grupo de circunvoluções situadas
no fundo da ssura de Sylvius) e por último, o centro de associação anterior,
que compreende a maior parte das circunvoluções frontais, constituindo-
se assim em cerca de 2/3 de todo o córtex.
No tocante à relação desses centros com o restante do organismo,
considerava-se que os centros de projeção estavam ligados à todos os órgãos
periféricos por um duplo sistema de bras, centrípetas ou ascendentes e
centrífugas ou descendentes, enquanto que os centros de associação, ao
contrário, estariam em relação imediata com os órgãos periféricos. Ou seja,
essa relação se daria somente por meio de centros sensoriais a eles ligados
por um número incalculável de bras.
Em termos funcionais, considerava-se que os centros de projeção
seriam as regiões do córtex responsáveis pela vida animal (vegetativa),
enquanto que os de associação representariam o substractum da vida
intelectual, da atividade psíquica
28
. Com isso, além da divisão clássica
entre mente e corpo, temos também uma divisão funcional e anatômica
28
Grasset, por exemplo, propôs uma divisão entre os neurônios corticais, os quais seriam divididos em neurônios
de automatismo e neurônios da cerebralidade superior. Os primeiros estariam relacionados a uma série de atos
coordenados muito complexos, porém inferiores, tais como distração, sonhos, pesadelos, sonambulismo. O
segundo grupo estaria relacionado à atividade psíquica superior, seria a sede da personalidade plena e verdadeira,
da consciência inteira e moral, da liberdade e da responsabilidade (HÉDON, 1935, p. 579).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 65
no próprio organismo, onde uma parte é responsável pela vida vegetativa
e outra, pela vida mental.
Outros autores consideravam que não há experiências que nos
permitam armar que os atos intelectuais se exercem mediante uma parte
do sistema nervoso central, como postula a siologia. Por exemplo, Vaissière
(1959) considera que a Psicologia Experimental não deve reconhecer um
órgão intelectual, como o faz a siologia que reconhece, por exemplo, como
centros da inteligência, os lobos parietais e occipitais, a porção medular, os
lobos prefrontais, etc. Esta visão ultrapassada pode ser encontrada, segundo
Vaissière, nas conclusões dos experimentos de Léon Lhermitte (1844 –
1925) e Joseph Grasset (1849-1918). Esses autores, segundo Vaissière
(1959), utilizando-se do método anátomo-clínico, concluíram que a
porção medular é o órgão da unidade anatômica e funcional das metades
do cérebro, sendo um órgão psíquico por excelência, de tal forma que
todas as desordens se explicariam por anomalias no sistema das associações.
Para Vaissière (1959), os fatos relatados por esses autores nada
provaram efetivamente em relação aos centros. O que se observava,
segundo ele, é uma evidente perturbação na associação das imagens;
o exercício da inteligência revela-se entravado, mas não interrompido
em suas operações. Vaissière (1959) acreditava que a inteligência, para
agir, teria a necessidade do auxílio das imagens e só poderiam exercer
controle ecaz sobre as tendências sensitivas, por intermédio delas. Tal
conclusão funcionaria, segundo ele, mesmo para o caso de Phineas Gage,
retomado pelo neurologista português António Damásio na obra O Erro
de Descartes (1996)
29
.
Ainda em relação às lesões e sua relação com os centros localizados,
experiências feitas com animais, segundo Vaissière (1959), se mostraram
29
“Enquanto um indivíduo (25 anos) obstruía um buraco de mina mediante uma barra de ferro [...], a carga
repentinamente explodiu. A barra de ferro, lançada com a ponta para frente penetrou pelo ângulo esquerdo do
maxilar do paciente, atravessando, perfeitamente a calota craniana na região frontal [...]. O paciente sobreviveu
12 anos e meio. Todo o trajeto intracraniano do projétil está compreendido na região descrita sob o nome de
pré-frontal. Após a cura, seus patrões vericaram estar ele tão mudado que não puderam conar-lhe de novo seu
cargo anterior. O equilíbrio entre suas faculdades intelectuais e suas inclinações instintivas parece destruído. É
nervoso, irreverente e pragueja com freqüência com extrema grosseria, coisa que não fazia parte de seus hábitos
de antes [...]; faz planos para o futuro, abandonando-os em seguida para adotar outros que lhe parecem mais
viáveis. É uma criança quanto à inteligência e às manifestações intelectuais, mas é um homem quanto às paixões
e instintos” (VAISSIÈRE, 1959, p. 206).
Edvaldo Soares
66 |
contraditórias. É o caso, por exemplo, dos experimentos de Leonardo
Bianchi (1848 – 1927) e de Ezio Sciamanna (1850 – 1905). Bianchi, após
haver praticado a ablação de um ou dois lobos frontais de doze macacos
e seis cães, observou que lesões nessas áreas provam que a zona frontal é
a sede da síntese intelectual e emotiva da personalidade. Já Sciamanna,
contrariamente, apresentou, ao Congresso de Psicologia de Roma (1905),
macacos cuja atividade superior não fora atingida, apesar de uma
ablação dos lobos prefrontais, que, embora tenha sido reconhecida como
incompleta, por ocasião da autópsia, podia ser considerada praticamente
como perfeita (CASCIATO; RITACCIO, 2016; BONAVITA, 2011;
TRAYKOV; BOLLER, 1997; VAISSIÈRE, 1959).
Em síntese, nos estudos citados ainda transparecia uma confusão
constante entre o exercício da inteligência e a função da associação de
imagens e ainda, segundo Vaissière (1959), caso fosse admitida a duvidosa
possibilidade de determinar o centro de associação, ainda assim não caria
provada a existência de um órgão das operações intelectuais.
Guillaume (1967) também contribuiu com a reexão sobre o
localizacionismo ao analisar o fenômeno da memória. Ao estudar essa
função, Guillaume não abandonou sua visão dinâmica acerca do organismo.
Pelo contrário, continuou adotando posição contrária ao determinismo.
Segundo ele, o elemento central desse dinamismo é a memória:
Um ser (se pudesse existir um ser assim) cuja vida fosse inteiramente
regida pelo determinismo dos instintos, dependeria de maneira
absoluta dos estimulantes atuais, de origem orgânica ou exterior.
Viveria no presente. Colocado muitas vezes na mesma situação,
agiria do mesmo modo. Ao contrário, num ser dotado de memória,
isto é, um ser no qual o passado individual sobrevive sob uma forma
qualquer, nova adaptação se superpõe à dos instintos: é adquirida e
não, herdada, individual e não especíca, plástica e não rígida. O
resíduo das experiências anteriores é o ponto de apoio da modicação
da conduta em situações semelhantes. Estas não terão, necessariamente,
os mesmos efeitos, pois agem sobre o ser modicado por seu passado
(GUILLAUME, 1967, p. 180).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 67
A importância da memória também decorre do fato de que sem
ela não existiria vida psíquica propriamente dita. Ou seja, segundo
Guillhaume “o ser não adquiriria nem hábitos nem conhecimentos; não
teria imaginação, nem representação, nem vida interior, pois esses termos
designam modalidades da memória; não teria vontade, pois não poderia
pensar nos atos antes de executá-los” (1967, p. 180).
Porém, será que as representações formadas a partir da memória
estão localizadas em algum ponto do cérebro? De acordo com Guillaume,
não! O cérebro não poderia ser um depósito de lembranças. Se o fosse,
segundo ele,
[...] as lesões deveriam, segundo a localização, fazer desaparecer ora
tais lembranças, ora tais outras. Ora, não é o que se observa. As
perturbações localizadas têm por objetos hábitos: o que nota o clínico
é sempre um distúrbio da ação. O que é destruído não é a lembrança,
mas o mecanismo cerebral que a transforma em força motora; não é a
possibilidade de pensar, mas a de servir-se do pensamento para mover o
corpo (GUILLAUME, 1967, p. 215).
Dessa forma, podemos armar que as lesões afetam o substrato
do processamento da memória. Assim, os fatos clínicos nada provam
contra a ideia geral de um substrato siológico da lembrança, mas apenas
contra uma concepção exata das localizações cerebrais. Nesse sentido
arma Guillaume:
Uma lembrança não pode ter por base a modicação de alguns
elementos histológicos. A menor percepção visual de projeção cortical,
que compreende milhares de células. Outra percepção faz trabalhar de
outro modo os mesmos elementos: são como acordes diferentes, muito
complexos, executados no mesmo teclado; e a organização que os torna
possíveis interessa um extenso território. Se se acrescentar que toda
percepção repercute no domínio dos outros sentidos, possui um lado
afetivo e se traduz na linguagem, compreender-se-á que as lesões locais
degradem essa estrutura, sem destrui-la, suprimam-se as diferenças
mais delicadas, atingindo, sobretudo, as lembranças mais frágeis e mais
difíceis. Os efeitos podem ser muito variados; não é exato que tenham
por objeto unicamente o aspecto motor da lembrança (GUILLAUME,
1967, p. 216-217).
Edvaldo Soares
68 |
Inuenciado por Guillaume, Cuvillier (1953) acreditava que as
teorias de Gall estavam superadas. Porém, destacava que o princípio da
teoria, ou seja, a ideia das localizações cerebrais era correta. Tomando
como evidência os trabalhos de Broca, Cuvillier defendia que certas
funções mentais têm por sede certas partes do cérebro. As áreas do cérebro,
conforme Cuvillier (1953, p. 40) não seriam estáticas mas, em uma
linguagem mais atual, ‘plásticas’. Segundo ele, “a toda atividade psíquica
correspondem modicações locais no cérebro”. Por outro lado, no que se
referia à relação entre mente e cérebro mantinha a posição clássica:
O exercício das funções mentais está estreitamente ligado a condições
de ordem siológica: o pensamento é ‘condicionado’ pelo cérebro – eis
tudo quanto podemos armar cienticamente. Quanto a saber se o
pensamento é da ‘mesma natureza’ que o cérebro, se não é senão ‘produto
ou ‘função’ do cérebro, é [...] problema de ordem losóca, metafísica,
que a Psicologia, como ciência não deve cogitar. Confessamos, aliás,
que êsse poder de que o cérebro disporia de transformar em fatos de
consciência as impressões que os nervos lhe transmitem seria bem
dicilmente inteligível, por isso que não podemos conceber a ligação
entre consciência e o cérebro (CUVILLIER, 1953, p.42).
Cuvillier (1953) alertava que a teoria das localizações não deveria
ser interpretada erroneamente. Segundo ele, as funções mentais que foram
localizadas são as mais automáticas, ao passo que as funções superiores, que
se formam no decurso da evolução da espécie humana, parecem interessar,
a todo o cérebro. Por isso, no que se refere à memória, concebia que não se
deve representar o cérebro como um ‘armazém’ que alojariam as lembranças
nas suas células.
Um dos autores que mais contribuiu para o debate sobre a questão
do localizacionismo foi Kurt Goldstein que, a partir de um pressuposto
organicista’, elaborou uma crítica à visão localizacionista clássica. Segundo
ele, o organismo não pode ser dividido entre ‘órgãos’ e muito menos entre
mente e corpo, porque ele é um todo que reage ao ambiente, de tal forma
que nada é independente no organismo.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 69
Essa crítica, à concepção clássica foi construída, conforme já
destacamos, a partir de seus estudos sobre lesões cerebrais em soldados
durante a I Grande Guerra. Ao estudar tais pacientes, Goldstein observou
a incapacidade da siologia clássica em explicar o impacto de tais lesões no
comportamento, bem como o fenômeno do ajustamento dos pacientes à
nova situação.
Goldstein cou especialmente interessado no desordenamento da
organização e no fracasso dos controles centrais nos locais em que ocorriam
o que ele chamou de ‘respostas catastrócas’ para situações em que existiam
doenças físicas ou mentais. Seu grande objetivo passa a ser entender o
motivo pelo qual seus pacientes mostraram reações catastrócas depois
das lesões cerebrais’ (FINGER, 1994; GOLDSTEIN, 1995). A reação
ou resposta catastróca se daria, conforme Goldstein, quando, inclusive
durante o processo de tratamento, um organismo se desestrutura em
decorrência das mudanças ocorridas em função de lesão cerebral. Nessas
condições o organismo não é mais capaz de manter um comportamento
estável e ordenado. Quando isso ocorre, o organismo se apresenta limitado
quanto às suas possibilidades de adaptação ao meio (WINOGRAD, 2011;
GOLDSTEIN, 1961).
Para explicar tais fenômenos Goldstein abandonou as posições
reducionistas, as quais ele considerava insucientes para compreender tais
fenômenos. Também desaou o atomismo, a partir da ideia já exposta,
de que um organismo pode ser analisado em termos de totalidade do
seu comportamento e interação com seu meio. Um dos primeiros passos
para entender tais fenômenos, foi distinguir entre a função e a localização
dos sintomas. Ele aproximou os sintomas com as respostas dadas por
um organismo lutando para desaar as demandas do ambiente. Assim,
a doença passa a ser vista como uma manifestação de uma mudança do
estado de relação entre o organismo e seu ambiente (GOLDSTEIN,
1995, 1961).
Nesse sentido, Goldstein (1995) observa que um sintoma local não
é suciente para entender a ‘doença’. O comportamento do organismo
durante a doença é apenas explicado como a resposta ao sintoma especíco.
Assim, a ênfase está na habilidade do organismo em se ajustar a situações
Edvaldo Soares
70 |
catastrócas de suas mais vitais funções (mentais ou físicas). A reação
orgânica é freqüentemente uma redistribuição de suas faculdades físicas ou
mentais. Assim, a cura não viria por ‘reparo’ mas por adaptação.
Para Goldstein o organismo não pode simplesmente retornar ao
estado precedente ao evento que o modicou, mas tem que se adaptar às
condições que causaram o novo estado. A partir disso podemos questionar
se estas suposições não reforçam a posição localizacionista clássica? A
resposta é negativa, pois Goldstein, aproximando-se da teoria da Gestalt,
concebe que toda lesão do sistema nervoso central provoca perturbações
na estrutura da conduta, ou seja, as mesmas perturbações podem ser
provocadas por lesões bastante diferentes.
Para compreender isso há, segundo Goldstein, a necessidade de
se reconhecer que há diferenças entre localização da lesão e localização
da função. As regiões periféricas nunca funcionam sozinhas. É preciso,
segundo ele, colocar em evidência esse tipo duplo de organização de modo
a salvaguardar os diferentes níveis da conduta (GOLDSTEIN, 1995). Por
outro lado é importante ressaltar que o organicismo de Goldstein representa
mais uma crítica ao reducionismo mecanicista e não propriamente ao
localizacionismo, como evidenciado em sua análise do efeito de lesões.
Goldstein se utiliza das noções de gura e fundo para representar
o funcionamento do sistema nervoso. Segundo ele, o córtex seria a sede
de um processo gura-fundo. Nem todas as regiões trabalham do mesmo
modo; algumas trabalham trazendo a contribuição de uma forma, outras,
de um fundo; porém, o sistema nervoso funcionaria sempre na totalidade,
apesar de certas funções permanecem ligadas a certos territórios. Assim, o
fenômeno nervoso assume dois aspectos: um aspecto local (gura) e um
aspecto total (fundo) (GOLDSTEIN, 1995). Contudo, Goldstein não se
ligou totalmente às teses da Gestalt. Pelo contrário, contra elas levanta
interessantes e importantes objeções, no sentido de conceber as formas de
modo mais dinâmico e mais biológico que a teoria da forma.
| 71
Capítulo III
M-P   P
E
Merleau-Ponty
1
considera que a concepção cartesiana de mundo
inuenciou negativamente o desenvolvimento das ciências de forma geral
e da psicosiologia de modo especial.
Para Merleau-Ponty (1990a, 1999), Descartes (1998), ao separar a res
extensa e a res cogitans, como realidades diferentes, fez com que a consciência
passasse a ser denida pela interioridade absoluta e pela identidade consigo
mesma, enquanto que o objeto passa a ser denido pela exterioridade absoluta
e pela impossibilidade de deter em si e por si a identidade com o sujeito
cognoscente, a não ser que se converta em uma representação.
As ciências em geral passam a considerar que as coisas são dadas
em si mesmas, independentes do observador e seriam ligadas entre si pelo
 Maurice Merleau-Ponty nasceu em Rochefort-sur-Mer, França, em 1904. Realizou seus estudos superiores na
École Normale Supérieure, no período de 1926 a 1930, onde, mais tarde, foi admitido como professor agregado
(1935-1939), depois de ter ensinado nos liceus de Beauvais (1931-1933) e Chartres (1934-1935). De 1939 a
1940 serviu como ocial do 5
O
Regimento de Infantaria. Entre 1940 e 1944 foi professor de Filosoa no Liceu
Cornot e, nesse mesmo período, participou da Resistência francesa durante a ocupação nazista (GILES, 1979).
Também nesse mesmo período integrou, com Jean-Paul Sartre, o grupo Socialismo e Liberdade. Em 1945 foi
nomeado mestre de conferências da Universidade de Lyon, da qual viria a ser professor em 1948. Em 1949
obteve a cátedra de Psicologia e de Pedagogia na Sorbona, onde se manteve até a sua eleição como membro do
Collège de France em 1952, onde ocupou a cátedra de Filosoa. No dia 3 de maio de 1961, Merleau-Ponty
faleceu subitamente quando ainda desenvolvia sua atividade docente no Collège de France.
Edvaldo Soares
72 |
princípio de causalidade mecânica, o qual daria conta de explicar o mundo
físico. O objetivo da ciência seria, conforme essa perspectiva, buscar as
relações causais. Adotando o espírito analítico, as coisas poderiam mais
bem estudadas a partir da análise das suas partes constituintes, as quais
também estariam ligadas por relações de causalidade.
Essa concepção, fruto da dicotomia sujeito-objeto considerados
como realidades heterogêneas está, segundo Merleau-Ponty (1990a),
intimamente relacionada a três preconceitos: dualismo, mecanicismo e
reducionismo; correntes contra as quais ele dedicou boa parte das obras
Estrutura do Comportamento e da Fenomenologia da Percepção.
Além disso, Merleau-Ponty (1990d) arma que, da separação entre
sujeito-objeto, decorrem dois erros fundamentais: subjetivismo e objetivismo
e ainda a separação entre Filosoa (subjetiva, fundamentada no abstrato)
e Psicologia (objetiva, fundamentada na experiência concreta)
2
. Seguindo
esse preconceito, a Psicologia Experimental, principalmente em sua vertente
Psicofísica, recusa ser subjetiva e procura estudar apenas os fenômenos
externos e observáveis. A Psicologia, seguindo o modelo positivista, passa a
aplicar os métodos das ciências naturais; adota o modelo da siologia que
concebe o comportamento como coisas em si, como partes extra partes.
Essa proposta, como salientamos, marcou o pensamento de autores como
Ribot, Piéron e mesmo Guillaume na França e Penteado Jr. no Brasil.
A fundamentação dessa proposta decorria da concepção moderna de
que o Universo funciona como uma máquina. Sendo assim, os processos
naturais podem ser previstos e explicados mediante leis mecânicas. Partindo
desse pressuposto, o organismo, também concebido mecanicamente,
poderia ser compreendido por meio da análise dos seus elementos mais
simples (átomos ou moléculas), ou seja, mediante a análise real seria possível
determinar leis (mecânicas) em relação ao comportamento. Deixava-se
assim de lado o histórico em favor de um dogmatismo da lei, marcada
pelas relações de causa e efeito.
O subjetivismo, segundo Lalande (1996) reduz todo juízo de valor ou de realidade a atos ou estados de
consciência individuais, ao passo que o objetivismo coloca na percepção o meio pelo qual se conhece diretamente
uma realidade existente em si.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 73
Em relação ao aspecto histórico, pode-se observar que Merleau-
Ponty se utiliza principalmente do pensamento do lósofo francês Léon
Brunschvicg (1869 – 1944), o qual concebe que a ciência é um dado
histórico, não existindo ciências que alcancem leis eternas, as quais
estariam ligadas a circunstâncias particulares da história (MARCELO,
2019; OLGUÍN; DESCHOUX, 1951). Seguindo essa tendência,
Merleau-Ponty (1990c) arma a necessidade de criticar o dogmatismo
positivista da lei.
No contexto de uma ciência assim marcada, Merleau-Ponty
elaborou sua crítica, mostrando as conseqüências e limitações do projeto
cartesiano para o desenvolvimento de uma análise do comportamento.
As principais obras de Merleau-Ponty envolvidas nessa crítica foram
Estrutura do Comportamento (1938) e Fenomenologia da Percepção (1945).
Essas obras, segundo Lefort (1978), surgiram de questões advindas da
prática das ciências, abalaram o aparato conceitual construído sobre as
distinções clássicas de sujeito e objeto, de consciência e corpo, de atividade
e passividade.
Na Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty elabora sua crítica
às posições reducionistas e mecanicistas que marcavam a Psicosiologia
Clássica. A tônica central da obra é demonstrar as limitações da análise
real para explicar o comportamento. Ainda nessa obra Merleau-Ponty dá
início à solução para o problema do comportamento a partir da noção de
estrutura, tomada de empréstimo dos teóricos da Gestalt. Segundo o próprio
autor, a Estrutura do Comportamento pretende estabelecer uma ponte entre
natureza, organismo e psiquismo, que fosse além do objetivismo e do
mecanicismo e, além disso, recolocar o homem no mundo, restabelecendo
assim a relação homem-natureza.
Para dar contra desse objetivo, Merleau-Ponty se propõe a estudar o
comportamento, o qual se mostra como objeto comum tanto da siologia
como da psicologia. Seu estudo parte do mais simples (estímulo – reação) até
chegar, no último capítulo, ao mais complexo, ou seja, a relação entre alma
e corpo. Nesse percurso Merleau-Ponty procura mostrar que as relações
que marcam o comportamento são contaminadas pelo mecanicismo e que,
a análise das partes não dá conta de explicar o todo. A partir dessa crítica
Edvaldo Soares
74 |
chega à concepção de que para entender o complexo é necessária, além da
noção de intencionalidade, a noção de inerência.
A Estrutura do Comportamento prepara a Fenomenologia da Percepção,
obra na qual Merleau-Ponty concebe o conceito de campo pré-reexivo para
uma fundação perceptiva do mundo realizado pelo corpo próprio e no
corpo próprio enquanto corpo cognoscente ou princípio estruturante.
O que ambas as obras têm em comum é a crítica da explicação
cientíca e da análise reexiva
3
. Nessa perspectiva, as duas obras
se constituíram em uma crítica radical ao modelo cartesiano. Para
fundamentar sua crítica, Merleau-Ponty usa como instrumento a análise
criteriosa das teorias e métodos da psicosiologia da época, apontando suas
deciências e contribuições. Sua base teórica se concentrou em autores
ligados à fenomenologia e à Gestalt, entre os quais se destacam Goldstein,
Guillaume, Husserl, Koka e Köhler
4
. Mas por que a preferência de
Merleau-Ponty pela fenomenologia?
A resposta é dada no prefácio da Fenomenologia da Percepção, onde
Merleau-Ponty dene a Fenomenologia como uma losoa que não nega
a existência do mundo exterior, mas, ao contrário, diz que ele já está aí
antes de qualquer reexão. Por outro lado, é uma losoa que não nega o
mundo interior.
Sua proposta é a ‘volta às coisas mesmas
5
. Para Merleau-Ponty
(1999) se a fenomenologia pode ser descrita como ‘estudo das essências’,
As obras de Merleau-Ponty não se reduziram somente ao estudo do comportamento e da percepção. Também
se dedicou à losoa política, em especial ao marxismo. Em relação ao marxismo abordou principalmente as
chances e a legitimidade de uma empresa revolucionária, criticando as falsicações dos ‘pensadores liberais’ a
partir da experiência histórica. Em especial na obra Humanismo e Terror, criticou no marxismo a idéia de uma
linearidade do desenvolvimento histórico e a homogeneidade do corpo social.
Apesar de adotar as teorias da Gestalt, Merleau-Ponty as criticará em função da ‘positividade’ que as
caracterizava (ROVIELLO, 1992).
Segundo Coelho Jr. e Carmo (1991), o lema, de volta às coisas mesmas’, da fenomenologia de Husserl, ressoou em
um café da Rua Montparnasse, em Paris, na década de 30. Segundo eles, Simone de Beauvoir relatou que Sartre
cou entusiasmado quando Raymond Aron, retornando da Alemanha, mostrou-lhe que com a fenomenologia
era possível reaproximar a losoa do cotidiano concreto, o que era o principal anseio da geração dos anos 30.
Em 1934, Sartre regressa da Alemanha, onde se familiarizou com os escritos de Husserl e, indica a Merleau-
Ponty as Ideen como um trabalho que deveria ser estudado. A princípio Merleau-Ponty não mostrou interesse,
pois se tratava do ‘primeiro Husserl’ (o da primeira fase, da fenomenologia das essências), o das Investigações
Lógicas, ainda preso a uma losoa da consciência. Com a ascensão do nazismo e com a morte de Husserl em
1938, seus manuscritos inéditos foram levados para a Universidade de Louvain na Bélgica, constituindo os
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 75
por outro lado ela concebe essas essências como ‘essências existenciais’.
Nesse sentido, a fenomenologia se ocupa da ‘essência na existência’, ou,
mais simplesmente, das signicações existenciais. Ela busca, por exemplo,
a essência da percepção, da consciência; mas, contrariamente aos idealistas
ou intelectualistas, é também uma losoa que repõe as essências na
existência e pensa que não se pode compreender o mundo e o homem
senão com base na sua faticidade.
De acordo com Merleau-Ponty, a maior contribuição da fenomenologia
foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo, característico da losoa
idealista, com o extremo objetivismo das correntes experimentalistas.
Assim, a Fenomenologia se apresenta como uma forma de superação
dos paradigmas cartesianos
6
:
A novidade da fenomenologia não é negar a unidade da experiência
mas fundá-la de outra maneira que o racionalismo clássico. Pois os atos
objetivantes não são representações. O espaço natural e primordial não
é o espaço geométrico e, correlativamente, a unidade da experiência
não é garantida por um pensador universal que expropria diante de
mim os conteúdos da experiência e me asseguraria, em relação a eles,
toda a ciência e toda potência (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 340).
análIse do CoMportaMento
Ao analisar o comportamento, Merleau-Ponty elabora, especialmente
na Estrutura do Comportamento, uma crítica radical aos fundamentos
da psicosiologia de sua época, a qual concebia o organismo como um
Arquivos Husserl (LYOTARD, 1967).Conforme Capalbo (1988), só em 1939, Merleau-Ponty terá o primeiro
contato, em Louvain, com os textos não publicados da Krisis, das Ideen II e com o manuscrito D17 sobre a
constituição primordial’, ou seja, sobre a gênese da consciência das coisas. Estes textos, portanto, não entraram
na constituição da Estrutura do Comportamento, mas inegavelmente inuenciaram a Fenomenologia da Percepção
e todas as obras posteriores de Merleau-Ponty.
Chauí (2002a, p. 62) relata que Merleau-Ponty conservava de Husserl a idéia de que a fenomenologia é
descrição e não explicação ou análise. Porém, Merleau-Ponty não praticava a ‘epochê’. Sichére (1982) arma que
Merleau-Ponty abandonou o ideal de cienticidade husserliano, não aceitando o retorno à Descartes proposto
por Husserl e nem o apreço deste por Kant. Porém, não podemos perder de vista que a base da crítica de
Merleau-Ponty ao modelo clássico de ciência consiste em trazer à memória da ciência que o conhecimento
perceptivo é primeiro, e portanto, constituinte (REZENDE, 1975). Além disso, é importante destacar que a
obra de Merleau-Ponty se inscreve no projeto husserliano de ‘voltar às coisas mesmas’, criticando as ‘losoas da
consciência’ que assumem o paradigma objetivista (BARBARAS, 1998).
Edvaldo Soares
76 |
amontoado de células e pacotes de ossos que poderiam ser analisados
separadamente, independentes do todo, do conjunto orgânico ao qual
pertencem.
Merleau-Ponty inicia a análise acerca do comportamento descrevendo
os fundamentos da Psicosiologia e criticando o método de análise real e de
explicação causal que estão na base da concepção clássica de reexo. De
acordo com essa concepção, seria nas causas ou condições antecedentes
do movimento que se deve encontrar a razão suciente do reexo. As
causas (estímulos) devem ser, segundo a análise real, decompostas em
tantos processos parciais quanto elementos anatômicos distintos existem
no organismo.
A adaptação da resposta à situação, segundo Merleau-Ponty, se
explicaria por correlações preestabelecidas (normalmente concebidas
como dispositivos anatômicos), ou seja, determinadas entre os órgãos ou
aparelhos receptores e certos músculos efetores. Por sua vez, os excitantes
só poderiam agir por suas propriedades pontuais ou, em outros termos,
pode-se dizer que para cada excitante existe um circuito preestabelecido e
um reexo também preestabelecido (MERLEAU-PONTY, 1990a). Essa
postura era, por exemplo, encontrada em Claude Bernard (1865/1984),
o qual defendia uma posição determinista e em Hedón (1935) que adota
o modelo pavloviano em relação à descrição das relações entre estímulo e
resposta (BREATHNACH, 2014).
A partir dessa visão marcada pelo determinismo e pelo mecanicismo,
o reexo se apresenta como um fenômeno, denido como uma operação
de um agente físico ou químico denido sobre um receptor espacialmente
denido. Disso decorreria a possibilidade de predição dos fenômenos,
dado que tudo pode ser previamente determinado, mesmo antes da
ocorrência efetiva do fenômeno. Nessa sistemática, conforme Merleau-
Ponty (1990a), o organismo se apresenta como um ente passivo, limitado
à execução daquilo que lhe é determinado pelo lugar da excitação e pelos
circuitos nervosos que aí têm sua origem.
É importante lembrar que para a concepção clássica seria impossível a
um substrato orgânico preencher alternadamente funções diferentes, assim
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 77
como é impossível a reação mudar de natureza por uma simples diferença
no ritmo das excitações aplicadas sucessivamente aos mesmos aparelhos
(MERLEAU-PONTY, 1990a). Seguindo essas diretrizes emanadas da
siologia clássica, a Psicologia Cientíca do período não aceitava a noção de
intencionalidade, mesmo porque tal conceito não se enquadra no estatuto
de cienticidade da época.
Opondo-se a essa concepção, Merleau-Ponty acreditava que a ideia
clássica de reexo não correspondia à realidade, pois o reexo tal como era
concebido pela Teoria Clássica é “muito raramente observável”. Além disso,
as pesquisas demonstravam que o estímulo age mais pela sua distribuição
espacial e pelo seu ritmo do que pelas suas propriedades elementares.
A partir disso, Merleau-Ponty defende a posição de que o efeito de
um estímulo complexo não poderia ser previsível a partir dos elementos
que o compõem (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 8).
Essa descrição de Merleau-Ponty podia ser encontrada nos teóricos
da Gestalt e em especial em Guillaume (1937, 1967), que se opondo ao
atomismo e ao localizacionismo, armava a impossibilidade de uma análise
a partir de partes isoladas.
Como consequência decorre que, os reexos são, na realidade,
dependentes das propriedades formais ou globais do excitante e, ainda, que
os reexos nem sempre se deixam decompor em reações elementares. Estas
posições levam Merleau-Ponty (1990a, p. 38) a crer que “é no organismo
que teremos de buscar aquilo que faz de um estímulo complexo outra
coisa que a soma de seus elementos”. Considerando essa perspectiva,
Merleau-Ponty (2000, p. 283-284), alinhando-se com a concepção de
Goldstein (1995), segundo a qual a ação do estímulo depende da situação
do organismo e, que, não há nenhuma estimulação vinda de fora que não
tenha sido provocada pelo “próprio movimento do animal. Cada ação do
meio é condicionada pela ação do animal, a conduta do animal suscita
respostas por parte do meio”.
Na Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty já propunha, com a
nalidade de dar conta da relação estímulo e reação, a introdução da noção
de intencionalidade, dado que as estimulações recebidas pelo organismo
Edvaldo Soares
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só são possíveis por meio de movimentos precedentes, que expuseram o
organismo (receptor) às inuências externas, ou seja:
[...] o comportamento é a causa primeira de todas as estimulações.
Assim, a forma do excitante é criada pelo organismo, por sua maneira
própria de oferecer-se às ações de fora”; é ele, segundo a natureza
própria dos seus receptores, segundo os limites de seus centros nervosos e,
de acordo com os movimentos dos órgãos, que escolhe no mundo físico os
estímulos aos quais será sensível (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 11).
[...] o destino de uma excitação é determinado pela sua relação com
o conjunto do estado orgânico e com as excitações simultâneas ou
precedentes” e que, entre o organismo e seu meio as relações são, não
de causalidade linear, mas de causalidade circular (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p. 13).
Como consequência, temos que um estímulo não pode ser denido
independentemente do organismo, dado que ele não é uma realidade física,
mas sim uma realidade siológica ou biológica. Assim, o que desencadeia
uma resposta reexa não é um agente físico-químico, mas certa forma de
excitação, da qual o agente físico-químico é a ocasião. Nesse sentido, a
excitação já seria uma resposta primeira do organismo.
Assim, o organismo, conforme já havia concebido Goldstein (1995),
dá sentido ao excitante e não o contrário. Na realidade, os próprios reexos
nunca são processos cegos: eles se ajustam a um ‘sentido’ da situação,
exprimem nossa orientação para um ‘meio de comportamento’ tanto
quanto a ação do ‘meio geográco’ sobre nós. Eles desenham, à distância,
a estrutura do objeto, sem esperar suas estimulações pontuais. É uma
presença global da situação que dá sentido aos estímulos parciais e que
os faz contar, valer ou existir para o organismo (MERLEAU-PONTY,
1990a).
A base dessa armação é a constatação, também relatada por Goldstein
e por Guillaume, como já vimos, de que a excitação de um receptor pode
provocar reexos diferentes ou ainda que a excitação de dois pontos
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 79
distintos pode provocar o mesmo reexo
7
. Em outros termos, Merleau-
Ponty (1990a) arma que a mesma resposta motora pode, em alguns
casos, ser desencadeada por comandos repartidos em pontos diferentes do
organismo; fato esse que concederia ao funcionamento do organismo um
status dinâmico e intencional. É por isso que ele arma na Fenomenologia da
Percepção que o reexo não é o resultado de estímulos objetivos, mas que
reveste esses estímulos de sentido (MERLEAU-PONTY, 1999a).
Considerando que o comportamento do organismo não pode ser
determinado pontualmente, coloca-se em xeque a teoria do arco reexo,
segundo a qual, há um trajeto denido, um processo de condução isolada,
quando se vai da excitação à reação. Além disso, para Merleau-Ponty
(1990a), a resposta reexa em um organismo depende tanto de condições
externas (extereoceptivas) como de condições internas (introceptivas), o
que leva o autor a reforçar a ideia de que existem condições antecedentes,
as quais são interiores ao organismo
8
.
Para Merleau-Ponty (2000, p. 284), “o exterior e o interior, a situação
e o movimento, não estão numa relação de simples causalidade”. Assim,
se pode armar que não há trajeto denido, pelo menos de antemão, pois
se o aparelho reexo não é nem anatomicamente e nem funcionalmente
isolado, a permanência das condições interiores não pode ser tida como
dada por uma estrutura preestabelecida (MERLEAU-PONTY, 1990a).
Merleau-Ponty (1990a) também considerou limitadas as noções de
inibição, coordenação e integração. Segundo ele, o cérebro, ao contrário
da posição clássica, não possui poder geral de inibição em relação ao
reexo, mas de reorganização. No que se refere às noções de coordenação
e de integração, acreditava que essas noções serviam apenas para designar
associações de automatismos preestabelecidos.
As noções clássicas em psicologia e siologia também concebiam
uma estrutura hierárquica do sistema nervoso, o qual seria composto de
7
Guillaume também concebia que o organismo é um todo dinâmico que dá sentido ao excitante e que a reação
depende da situação do organismo, o que o levava a inferir que não há determinismo entre excitante e reação.
Segundo ele, a excitação se dá em conjunto em um organismo que possui uma história.
A Teoria do Reexo de Pavlov servia de modelo para a Fisiologia mecanicista do período, como tivemos a
oportunidade de mostrar na descrição das posições de Hedón.
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dois níveis: arcos reexos e centros coordenadores ou dispositivos inibidores,
encarregados de governar os automatismos. A existência de centros já era
comum na siologia; por exemplo Testut (1900) e Testut e Jacob (1905)
defendiam essa concepção, assim como Pizon (1925) fazia a distinção entre
as áreas sensoriais e motoras. Hedón (1935) também seguia esse modelo,
apresentando a distinção entre os centros motores, psíquicos, de projeção
e de associação.
Contrariamente a essa perspectiva clássica, Merleau-Ponty armava
que o cérebro não poderia ser concebido hierarquicamente, dado que a
atividade nervosa supõe uma auto-organização; ou seja, uma alteração
qualitativa em relação aos estímulos apresentados, assumindo assim um
papel positivo na própria constituição das respostas reexas. Dessa maneira,
a intervenção das inuências cerebrais teria por efeito reorganizar o
comportamento, elevá-lo a um nível superior de adaptação e de vida, e não
somente associar ou dissociar dispositivos preestabelecidos” (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p. 19-20).
Em relação à Teoria do Reexo, a crítica de Merleau-Ponty (1990a)
parte da questão de saber como um organismo pode entrar em relação
com um meio muito mais extenso e mais rico do que aquele que age
imediatamente sob a forma de estimulações físicas e químicas sobre suas
terminações sensoriais.
Para Pavlov (1976) essa relação seria possível por meio da
transferência do poder dos excitantes naturais aos novos estímulos.
Seguindo esse raciocínio, podemos inferir que, se o meio é mais extenso e
rico, bastaria multiplicar e agrupar em cadeia as reações automáticas dos
comandos. Dessa forma, o comportamento, segundo essa teoria, pode ser
compreendido pela soma dos estímulos proprioceptivos e extereoceptivos,
levando-se em conta os poderes que o condicionamento lhes delega. Nessa
perspectiva de análise real, o comportamento poderia ser decomponível
em partes reais, o que para Merleau-Ponty, não explicaria a complexidade
do comportamento (MERLEAU-PONTY, 1990a).
Inuenciado por Goldstein, Merleau-Ponty dene que o reexo
condicionado seria uma ‘reação patológica’ em função de ser uma resposta
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 81
a um estímulo isolado. Segundo ele, “o isolamento é característico de
uma conduta patológica; o sistema nervoso funciona, nessa perspectiva
de isolamento, como parte independente” (MERLEAU-PONTY, 1990b,
p. 209).
Contrariamente ao elementarismo da Teoria do Reexo, Merleau-
Ponty propõe que a análise do comportamento não deveria ser realizada
a partir da análise real dos excitantes, pois a reação provocada por um
conjunto de estímulos não poderia ser analisada a partir das propriedades
de cada estímulo em separado, dado que o verdadeiro excitante “não é
nem um som, nem um objeto, considerados como indivíduos, nem uma
reunião de sons ou de objetos considerados como conjuntos ao mesmo
tempo individuais e confusos, mas a distribuição dos sons no tempo,
sua seqüência melódica, as relações de grandeza dos objetos, em geral:
a estrutura precisa da situação” (MERLEAU-PONTU, 1990a, p. 59)
9
.
Nesse sentido Merleau-Ponty considera que:
[...] entre o estímulo e a resposta, intercala-se um campo de
comportamento no qual os vetores organizam-se e assumem um sentido.
O valor dos fenômenos locais é função da organização espacial, de uma
auto-organização do campo de conduta(MERLEAU-PONTY,
1990b, p. 188).
Para Merleau-Ponty (1990a), quando a siologia clássica considera
o excitante complexo como uma soma de excitantes simples, exclui da
siologia nervosa a noção de coordenação receptora ao buscar o modelo
da ação nervosa no processo elementar que associa uma reação simples a
um processo isolado. Nessa perspectiva, o substrato siológico da reação é
visto sob a forma de conexões ou de disjunções, de forma tal que no mapa
cerebral são marcados os pontos de chegada da excitação.
Considerando que existe uma grande distância entre o
comportamento observável e as hipóteses anátomo-siológicas pelas quais
Entendemos por estrutura um sistema auto-regulado de correspondências a - causais; totalidade auto regulada
de relações dotadas de nalidade imanente. Forma ou estrutura exprime um processo global e imanente das
forças e dos acontecimentos que constituem a ordem física, vital e simbólica, as quais não podem ser reduzidas
a um modelo explicativo único.
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se deseja dar conta dele, deve-se considerar que na natureza as reações são
variáveis; que podem se dissociar ou mesmo se inverter, o que sugere um
processo comportamental não linear. Partindo desse princípio, não se pode
considerar o paralelismo estrito entre o siológico e o comportamental.
Conforme Merleau-Ponty (1990a, p. 63), “se conhecêssemos de
uma maneira precisa os fenômenos siológicos dos quais o sistema nervoso
é sede, seria indicado guiar-se por eles na análise do comportamento”. Para
ele, sabemos pouca coisa sobre o sistema nervoso, mas, sabemos que uma
correspondência pontual em relação a estímulo e resposta parece difícil. É
nesse sentido que Merleau-Ponty destacou, de Goldstein, dois resultados
fundamentais para a compreensão do organismo:
1) O efeito (a resposta) não depende unicamente do ‘estímulo’, mas
é resultado de uma modicação orgânica que depende da condição
do órgão estimulado (receptor);
2) A relação entre estimulação e órgão estimulado é, ipso facto,
reversível, de forma que para produzir um efeito, é pré requisito
uma adequada graduação entre os dois elementos.
Ora se é assim que ocorre, uma teoria clássica das localizações
apresenta diculdades.
loCalIzaCIonIsMo
Merleau-Ponty (1990a) acreditava que a Teoria Clássica procurava
designar para cada elemento nervoso, uma parte do comportamento que
dependesse dele; dessa forma, como vimos, por exemplo, em Hédon
(1935), para cada movimento reexo haveria um dispositivo especializado,
determinado pontualmente e um trajeto preestabelecido.
Richet (1898) já havia apontado diculdades em relação a essa
concepção. Segundo ele não era simples determinar o local exato
da resposta a partir do local da excitação, principalmente quando se
tratava de localizações centrífugas. De forma semelhante Merleau-
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 83
Ponty considerava os limites de tal posição. Fundamentando sua crítica
nos trabalhos de Goldstein, Merleau-Ponty (1990a) apresentou cinco
proposições contra essa posição característica das teorias clássicas em
siologia e psicologia experimental:
1. Não se deve ater à análise real do comportamento de forma a
conceber fragmentos isoláveis;
2. As diferentes regiões nervosas não correspondem às partes reais
do comportamento, mas a certos tipos ou a certos níveis de
atividade;
3. A intervenção das inuências cerebrais teria por efeito
reorganizar o comportamento, elevá-lo a um nível superior de
adaptação e vida, e não somente associar ou dissociar dispositivos
preestabelecidos;
4. As funções do ‘sistema nervoso superior’ transformam as
partes do comportamento que dependem do ‘cérebro médio’,
consideradas as mais instintivas. Porém, não se pode conceber
um dualismo de simples subordinação;
5. As relações entre circuitos nervosos não se dão só de forma
longitudinal, mas também de forma transversal.
Dessa maneira, o sistema nervoso central seria o lugar onde se
elabora uma ‘imagem total do organismo’, onde o estado total de cada
parte se encontra expresso, de tal forma que seria essa imagem de conjunto
que comandaria a distribuição dos inuxos motores.
Essa noção, tomada a partir das interpretações de Goldstein e das
noções de gura e fundo utilizada pelos teóricos da Gestalt, daria, segundo
Merleau-Ponty (1990a), conta de explicar a dependência de cada reexo
com respeito àqueles que o precederam
10
.
10
Edgard Rubin (1886-1951) escreveu sua tese de doutorado a respeito da distinção entre gura e fundo. Essa
distinção viria a constituir para os psicólogos gestaltistas a parte principal do seu sistema teórico, embora o
estudo de Rubin tivesse sido realizado vários anos depois que o movimento da Gestalt estivesse estabelecido
(WERTHEIMER, 1985).
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84 |
Assim, o funcionamento nervoso seria fundado em um novo tipo de
ordem, diferente daquela marcada pela permanência de certos circuitos,
mas criada a cada momento pela atividade própria do sistema nervoso e
conforme as exigências vitais do organismo em relação com o meio.
A partir disso, Merleau-Ponty (1990a, p. 26-27) concebe que “se
é possível encontrar uma lei do comportamento, essa lei não saberia
religar diretamente as reações observadas em certos dispositivos locais; elas
dependem do estado total do sistema nervoso e das intervenções ativas
que são necessárias para a conservação do organismo”. Porém, como
compreender essa dependência?
De acordo com Merleau-Ponty (1990a), é inegável que um mesmo
estímulo pode provocar respostas diferentes em um mesmo organismo, como
também pode não provocar resposta alguma. A partir desse pressuposto,
concebe, de forma semelhante a Guillaume que, no organismo existe uma
relação dinâmica. Nessa perspectiva, a excitação é consequência de uma
série de fatores, tanto externos (do meio ambiente como internos (do
próprio organismo)
11
. Ou seja, o mesmo estímulo parcial pode provocar
efeitos variáveis e o mesmo elemento nervoso pode funcionar de maneira
qualitativamente diferente, conforme o que é prescrito pelo conjunto dos
estímulos que ele enseja para além das terminações sensoriais descontínuas.
Entretanto, essa elaboração, questiona o próprio autor, não poderia
ser concebida de tal forma que o esquema de reexo da Teoria Clássica
permanecesse válido?
A resposta é não, pois conforme Merleau-Ponty, a concepção clássica
só se mantém se a regulação é localizada em certos dispositivos comparáveis a
arcos reexos. Por outro lado, a regulação não parece exclusivamente ligada
à atividade cerebral e nem é explicável por dispositivos preestabelecidos de
associação ou de disjunção (inibição recíproca, indução sucessiva), dado
11
Merleau-Ponty (2000) toma o conceito de ‘Meio Ambiente’ como Umwelt, a partir da concepção de J. Von
Uexküll (Umwelt und Innernwelt der Tiere. Berlim: Springer, 1909). O Umwelt é o mundo implicado pelos
movimentos do animal e que regula seus movimentos por sua estrutura própria. A noção de Umwelt não
permite considerar o organismo em sua relação com o mundo exterior, como um efeito desse mundo exterior,
ou como causa. É interessante observar que Uexküll, denuncia a dicotomia cartesiana, que alia uma maneira de
pensar mecanicista a uma maneira de pensar subjetiva .
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 85
que, “conforme o caso, cada parte do sistema nervoso pode por sua vez
parecer inibidora e inibida” (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 31-32).
Se a Teoria Clássica é, conforme Merleau-Ponty, limitada em relação
à excitação, também o é em relação à reação. Partindo do princípio de que
mesmo se existissem estímulos, receptores, trajetos nervosos especícos,
eles não poderiam explicar, por si mesmos, a adaptação do reexo ao
estímulo, pois o movimento a executar em cada caso depende da posição
inicial dos membros, que é variável” (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 28).
Ou seja, a adaptação imediata dos reexos não ocorre somente
com relação ao espaço ocupado por nosso corpo. Na realidade, não se
compreende como um inuxo escolhe dentre as vias abertas aquela que
provocará o movimento conveniente na situação considerada. Muitos
autores, segundo Merleau-Ponty, têm explicado essa questão mediante
a introdução indevida da categoria de inteligência, o que para ele seria
desnecessário, pois, se, enquanto mostro um objetivo com a mão direita,
vendam-me os olhos e me pedem para apontá-lo com a mão esquerda ou
com a cabeça, consigo isso sem necessidade de fazer um juízo: a inteligência,
se ela interviesse, deveria realizar aqui um trabalho muito longo que
não chego nem a imaginar antes de ter reetido sobre ele (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p. 29).
Dessa forma, haveria, conforme Merleau-Ponty (1990a, p. 30), nas
respostas reexas “alguma coisa de geral” que permite a substituição de
efetores, de forma que, o que regularia nossas reações motoras de uma
maneira decisiva seria o fator geral, o qual não estaria ligado necessariamente
a nenhum dos materiais do comportamento
12
. Em relação a essa questão,
Merleau-Ponty ainda levantou contra a postura tradicional as seguintes
hipóteses e propostas:
12
Discutindo um estudo de 1929, feito por G. E. Coghill (Anatomy and the Problem of Behavior. Nova York/
Londres: Macmillan) sobre o axolotl (um tipo de lagarto de cerca de 15 cm que, no estado de girino, vive na
água, mas aque depois de desenvolver as quatro patas, passa a viver na terra), Merleau-Ponty conclui que: 1) as
reações locais estão envolvidas estreitamente no comportamento total; 2) a montagem do animal não se faz peça
por peça e, 3) as reações locais estão implicadas no interior do comportamento global (MERLEAU-PONTY,
2000, p. 229-232).
Edvaldo Soares
86 |
1. O animal e o homem reagem então de uma maneira adaptada
ao espaço, mesmo na ausência de estímulos atuais ou de estímulos
recentes que sejam adequados. Esse espaço é ligado com o corpo
próprio do animal como uma parte de sua carne. Quando o animal
se move nesse espaço ao qual ele é adaptado, uma melodia de
caracteres espaciais se desenrola de uma maneira contínua e atua
nos diferentes domínios sensoriais (MERLEAU-PONTY, 1990a,
p. 30).
2. É preciso que a ciência conceba uma representação siológica desta
‘intenção de movimento’ que é de inicio dada como um núcleo
a partir do qual a totalidade do movimento se diferencia [...]
(MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 30).
3. O corpo em seu funcionamento não pode se denir como um
mecanismo cego, um mosaico de seqüências causais independentes
(MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 30).
4. O estímulo adequado não pode se denir em si e independentemente
do organismo; não é uma realidade física; é uma realidade biológica
(MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 31).
5. A noção de estímulo remete à atividade original pela qual o
organismo recolhe excitações dispersas local e temporalmente sobre
seus receptores e dá uma existência corporal a esses seres de razão que
são o ritmo, a gura, as relações de intensidade, em uma palavra
a forma de conjunto dos estímulos locais (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 31).
6. Os estímulos não vêm sobre as superfícies sensoriais puxar, conforme
à comparação de Descartes, os os que comandam os músculos
interessados na resposta; não há “os” e a relação estímulo-resposta,
mesmo quando é estável, como o reexo de exão plantar no normal,
é mediatizada por interações complexas no interior do sistema nervoso
(MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 32).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 87
7. Assim também, os diferentes movimentos que compõem uma reação
não estão ligados juntos por uma conexão material, anterior a esta
reação (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 32).
Também na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (1999,
p. 94) tratou dessa questão armando que “o reexo não resulta de
estímulos objetivos, ele se volta para eles, investe-os de um sentido que
eles não receberam um a um e como agentes físicos, que eles têm apenas
enquanto situação”. Consideradas estas proposições Merleau-Ponty
propõe duas questões:
1. Se tudo depende de tudo no organismo, de onde vem, sendo dado
tal estímulo, a relativa estabilidade de suas respostas, de onde vem
que haja reações típicas, que baia mesmo “reações”, e não convulsões
inecazes?
2. Se a ordem não pode ser fundada sobre estruturas anatômicas
preestabelecidas, de onde vem a coerência de nossas reações e sua
adaptação ao estimulo? (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 32).
Para responder à essas questões, Merleau-Ponty (1990a) procurou
demonstrar que a Teoria Clássica do Reexo não dá conta, a partir das
suas categorias, de garantir a ordem e a estabilidade das respostas. Segundo
o autor, a obra de Sherrington demonstra que a adaptação da resposta
ao estímulo e a adaptação das partes da resposta entre si, não podem ser
explicadas pela autonomia de trajetos nervosos preestabelecidos, pois as
inibições e os dispositivos de controle que se superpõem aos arcos reexos
simples são, eles próprios, concebidos sob o tipo do arco reexo. Esses
novos circuitos não seriam mais autônomos que os primeiros e admitiriam
por sua vez toda espécie de interferências. O próprio controle deveria ser
submetido a uma regulação superior, e não é ainda nesse grau, que se
encontrará o reexo puro. Mas o mesmo raciocínio deveria ser recomeçado
indenidamente, e a solução será sempre diferida, jamais fornecida, até
o momento em que se terá introduzido no funcionamento nervoso
Edvaldo Soares
88 |
um princípio que constitui a ordem em lugar de sofrê-la. Por isso, seria
paradoxal conservar teoricamente a noção de arco reexo sem poder aplicá-
la em parte alguma (MERLEAU-PONTY, 1990a).
Mas, se a Teoria Clássica não dá conta da ordem, qual seria a
explicação?
Para responder a essa questão Merleau-Ponty recorreu à Teoria da
Forma, a qual daria conta, segundo ele, do paradoxo que surgiu entre
ordem e dinamismo (funcionamento global). Nessa perspectiva, Merleau-
Ponty (1990a) acredita que a ordem estava garantida, não a partir de
mecanismos preestabelecidos, mas a partir da ideia de que no processo de
reação, a inervação motora seria regulada a cada momento e em cada caso
conforme a particularidade da situação.
Essa autorregulação supõe um dinamismo, o qual está fundamentado
na concepção defendida por Koka, de que a parte receptora e a parte
motora do sistema nervoso não são aparelhos independentes, cujas
estruturas seriam estabelecidas de antemão, mas que, na realidade,
são partes de um só órgão (MERLEAU-PONTY, 1990a). Também
Guillaume concebia que o organismo não trabalha em desordem, mas é
regido por um estado de equilíbrio dinâmico, o qual é modicado pela
própria atividade. Este sentido de dinamicidade do organismo também é
destacado por Goldstein.
Nessa perspectiva, mesmo as estruturas anatômicas concebidas
como inatas, deveriam ser consideradas como as condições topográcas
do desenvolvimento funcional em sua origem, modicáveis pelo próprio
funcionamento, onde não caberia a ideia de aparelhos independentes.
Nesse esquema, os processos nervosos, em cada situação especíca,
restabelecem certos estados de equilíbrio privilegiados que representam os
valores objetivos do organismo’ (MERLEAU-PONTY, 1990a).
Nota-se, porém, que o fenômeno de reorganização funcional,
conforme mostram os experimentos relatados por Koka (Principles of
Gestalt Psychology) e Goldstein (Der Aüfbau des Organismus), ocorre no
caso de doentes hemianópsicos independentemente da vontade do doente,
desde que a função essencial é suprimida; fato este que não deve, segundo
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 89
Merleau-Ponty, ser interpretado a partir do dualismo entre atividade
inteligente e reexa ou a partir da concepção de automatismos cegos
(MERLEAU-PONTY, 1990a):
Uma vez que nossas reações, as menos conscientes, não são jamais
isoláveis no conjunto da atividade nervosa, que parecem guiadas em
cada caso pela própria situação interna e externa e capazes, até um
certo ponto, de se adaptar ao que ela tem de particular, não é mais
possível manter entre as atividades ‘reexas’ e as atividades ‘instintivas
ou ‘inteligentes’ a distinção categórica que as concepções clássicas
estabeleciam teoricamente (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 44).
De acordo com Merleau-Ponty (1990a), a Teoria Clássica errava
pelo fato de analisar as articulações naturais dos fenômenos como coisas,
ou seja, como conjuntos dotados de propriedades absolutas. Por exemplo,
o reexo, como é denido na Teoria Clássica, não representa, de acordo
com Merleau-Ponty (1990a), a atividade normal do animal, mas sim à
reação que se obtém de um organismo quando é obrigado a trabalhar, por
assim dizer, por peças destacadas; a responder, não a situações complexas,
mas a estímulos isolados. O organismo, nesse esquema, é submetido a
uma situação patológica, e os resultados obtidos mediante essa situação,
o qual Goldstein (1995) chamou de ‘comportamento de laboratório’ são
raramente encontrados na natureza e até mesmo no laboratório.
Também não é surpreendente o fato de que a siologia clássica,
quando procurava obter no laboratório reexos constantes, observava
algumas vezes reações inversas para um mesmo estímulo, ou a mesma
resposta para estímulos diferentes. Por exemplo, segundo Merleau-Ponty
(1990a, p. 46-47), o que se observa, sobretudo se colocamos o animal em
uma situação natural, é outra espécie de constância e uma outra espécie
de variações. Se, na caminhada, eu esbarro o pé numa raiz, os músculos
exores do pé se encontram bruscamente distendidos e o organismo
reage acentuando esta distensão que vai liberar meu pé. Se ao contrário,
descendo de uma montanha, erro meu passo e meu calcanhar toma
rudemente contato com o solo, antes da planta do pé, uma vez ainda os
Edvaldo Soares
90 |
músculos exores são bruscamente distendidos, mas o organismo reage
instantaneamente por uma contração.
A pseudo constância do reexo que a Teoria Clássica considerava
como normal e os caprichos que parecem em contradição a ela, são dois
aspectos diferentes de uma mesma anomalia do funcionamento. Isso
decorre, conforme Merleau-Ponty (1990a), do fato de que as reações
não estão solidamente ‘centradas’ na atividade de conjunto do organismo
que podem apresentar essa monotonia a despeito das modicações do
estímulo. Dessa forma, se “inversamente uma reação pode se substituir
a outra subitamente, permanecendo o estímulo constante, é porque nem
uma nem outra está inserida no conjunto dinâmico que o exigiria como
exclusividade” (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 46). Partindo dessas
premissas Merleau-Ponty infere que:
1. Não se poderia considerar como uma realidade biológica toda
reação obtida no laboratório interrogando um organismo enfermo
ou em condições articiais. O objeto da biologia é apreender o que
faz de um ser vivo um ser vivo, isto é, não - segundo o postulado
realista comum ao mecanicismo e ao vitalismo, - a superposição de
reexos elementares ou a intervenção de uma ‘força vital’, mas uma
estrutura indecomponível dos comportamentos (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p. 48).
2. É pelas reações ordenadas que podemos compreender, a título
de degradações, as reações automáticas. Assim como a anatomia
remete à siologia, a siologia remete à biologia (MERLEAU-
PONTY, 1990a , p. 48).
Partindo dessa crítica, dene-se, como o faz Goldstein e Guillaume,
o comportamento como uma estrutura indecomponível em partes
elementares; como uma resposta global do organismo.
Nesse esquema, a função do organismo na recepção dos estímulos
é de ‘conceber’ certa forma de excitação
13
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.
31). Daí, segundo Merleau-Ponty (1990a), a importância da introdução
13
Conforme Giles (1979, p. 11), “armar que o comportamento tem e é uma estrutura quer dizer que é lastrado
por intenções e signicações.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 91
da categoria de forma, pois ela daria conta da explicação do funcionamento
dinâmico do organismo, sem apelar para os preconceitos mecanicistas e
vitalistas. Diz ele na Fenomenologia da Percepção:
Na realidade, os próprios reexos nunca são processos cegos: eles se
ajustam a um ‘sentido’ da situação, exprimem nossa orientação para
um ‘meio de comportamento’ tanto quanto a ação do ‘meio geográco
sobre nós. Eles desenham, à distância, a estrutura do objeto, sem esperar
suas estimulações pontuais. É uma presença global da situação que
dá sentido aos estímulos parciais e que os faz contar, valer ou existir
para o organismo [...].O reexo, enquanto se abre ao sentido de uma
situação e a percepção, enquanto não põe primeiramente um objeto
de conhecimento e enquanto é uma intenção de nosso ser total, são
modalidades de uma visão ‘pré-objetiva’ que é aquilo que chamamos de
l’être au monde (MERLEAU-PONTY, 1999a, p. 94-95).
Contra a concepção clássica que defende o localizacionismo a
partir do postulado atomista, Merleau-Ponty invoca, a partir dos estudos
de Goldstein, três resultados admitidos em relação ao problema das
localizações:
1. Uma lesão mesmo localizada pode determinar perturbações
de estrutura que interessam ao conjunto do comportamento e
perturbações de estrutura análogas podem ser provocadas por lesões
situadas em diferentes regiões do córtex (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 66).
Dessa forma, a análise real não pode ser aplicada nem aos casos de
lesão e nem aos fenômenos patológicos, tais como a afasia e agnosia, dadas
as características desses fenômenos, agora não mais considerados como
simples subtração em relação ao comportamento normal, mas sim como
uma alteração qualitativa do organismo; ou seja, como uma signicação
nova do comportamento. Por isso, concebe o autor, que:
[...] não podemos simplesmente transferir para o normal aquilo que
falta ao doente. A doença, assim como a infância e o estado ‘primitivo
é uma forma de existência completa, e os procedimentos que ela
emprega para substituir as funções normais destruídas são também
Edvaldo Soares
92 |
fenômenos patológicos. Não se pode deduzir o normal do patológico,
as deciências das ‘faltas’ (suppléances), por uma simples mudança de
sinal (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 125).
Assim, uma perturbação especíca deverá ser sempre recolocada no
comportamento de conjunto, dado que ela não diz respeito diretamente ao
conteúdo do comportamento, mas à sua estrutura, conforme as conclusões
de Gelb e Goldstein
14
.
Assim, superada a análise real, deve aparecer um novo tipo de análise,
a qual Merleau-Ponty (1990a, p. 94) chamou de análise ideal, a qual não
consiste mais em isolar elementos, mas em compreender a sionomia de
um conjunto e sua lei imanente.
2. Não se pode tratar o funcionamento nervoso como um processo global
onde todas as partes do sistema interviriam igualmente. A função não
é jamais indiferente ao substrato pelo qual ela se realiza (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p. 76).
Merleau-Ponty leva em consideração, a partir dos estudos de Gelb
e Goldstein, que o reconhecimento de que o lugar das lesões determina
o ponto de aplicação principal das perturbações de estrutura e sua
distribuição preferencial
15
. Ou seja, o fato de negar a teoria clássica das
localizações não signica aceitar que o funcionamento nervoso se dá de
forma difusa e desordenada. Segundo Merleau-Ponty (1999), é claro que
lesões situadas em locais diferenciados não conduzem ao mesmo quadro
de sintomas, o que signica que o local da lesão tem uma signicação
essencial na constituição de um quadro determinado de sintomas.
14
As zonas especializadas do cérebro nunca funcionam isoladamente. Isso não impede que, segundo a região
onde estão situadas as lesões, o lado visual ou o lado auditivo predomine no quando da doença. (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 186)
15
Conforme Sichére (1982, p. 42), Merleau-Ponty aborda, sob inuência de Goldstein, o organismo como
uma “totalidade vivente”, com o objetivo de suprimir o pensamento causal. Nessa abordagem, segundo Rezende
(1975) a noção de forma tem um papel central na Estrutura do Comportamento. A obra de Gelb e Goldstein na
qual Merleau-Ponty se fundamenta em Estrutura do Comportamento é Psychologische Analysen Hirnpathologischer
Falle. Leipzig: J.A. Barth, 1920.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 93
Porém, admitir uma especialização das regiões cerebrais não eliminaria
a relação dessas regiões com o conjunto. Nesse sentido, Merleau-Ponty
acredita que se poderia admitir, como Gelb e Goldstein, que as regiões não
são especializadas na recepção de certos conteúdos, mas na sua estruturação.
Portanto, no contexto de uma analítica transcendental e
contrariamente à análise real, não se admite que o funcionamento total
do córtex é a soma dos funcionamentos locais e que as regiões do cérebro
não são a sede dos comportamentos correspondentes, mas antes as partes
privilegiadas onde esses comportamentos encontram os meios para a sua
realização (MERLEAU-PONTY, 1990a).
3. O lugar na substância nervosa tem, em consequência, uma signicação
equívoca. Só se pode admitir uma concepção mista das localizações e
uma concepção funcional do paralelismo (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 79).
Merleau-Ponty reconhece que alguns comportamentos dependem do
córtex, “não porque sejam feitos dos mesmos movimentos elementares que
aí teriam suas chas ou seus comandos”, mas porque são de mesma estrutura.
Por isso, o funcionamento do córtex não poderia ser compreendido como
a ativação de mecanismos especializados e sim como uma atividade global
capaz de conferir à movimentos materialmente diferentes uma mesma
forma típica, um mesmo predicado de valor, uma mesma signicação
(MERLEAU-PONTY, 1990a, p.79). A base para a compreensão desses
fenômenos está na concepção de dois tipos de localização: uma vertical e
outra horizontal, aceitas, segundo ele, por Piéron
16
. Em relação à primeira,
o autor assim a dene:
Uma lesão na região central do córtex produz os efeitos observados
não enquanto destrói tais ou tais células, tais ou tais conexões, mas
enquanto compromete tal tipo de funcionamento ou tal nível de
conduta. Qualquer que seja o local e o desenvolvimento das lesões,
observar-se-á então uma desintegração sistemática da função. Essas
localizações são aquelas que se designou sob o nome de ‘localizações
verticais (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 80).
16
As referências à Piéron feitas por Merleau-Ponty na Estrutura do Comportamento se referem à obra Le Cerveau
et la Pensée. Paris: Alcan, 1927.
Edvaldo Soares
94 |
A localização horizontal é caracterizada a partir da armação de que:
Por outro lado, é claro que, ao nível dos condutores que trazem ao
cérebro as mensagens recebidas pelos sentidos ou distribuem aos
diferentes músculos as excitações convenientes, cada parte do tecido
nervoso têm por papel assegurar ‘as relações entre o organismo e uma
parte determinada do mundo exterior’. A cada ponto da substância
nervosa e aos fenômenos que aí se produzem correspondem um ponto
das superfícies sensíveis ou dos músculos e um estímulo exterior ou um
movimento no espaço, em todo caso um componente do movimento
corporal. As lesões, a esse nível, terão por efeito subtrair o organismo
à inuência de certos estímulos, ou suprimir um certo estoque de
movimentos, sem que haja nada de sistemático na deciência sensorial
ou motora. A diferentes conteúdos percebidos ou a diferentes movimentos
executados corresponde aqui a ativação de diferentes regiões do substrato
(localizações ‘horizontais’)” (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 80).
Todavia, Merleau-Ponty observa que, no funcionamento normal
e, excluídos os casos das lesões periféricas, os condutores nervosos não
trazem ao comportamento total uma contribuição que seja isoladamente
assinalável, uma vez que eles estão em relação funcional com o centro
(MERLEAU-PONTY, 1990a). Mesmo em termos de lesões centrais,
Merleau-Ponty armou mais tarde na Fenomenologia da Percepção que:
Nas lesões centrais, assim como nas lesões periféricas, a perda de
substância nervosa tem como efeito não apenas um décit de certas
qualidades, mas a passagem a uma estrutura menos diferenciada
e mais primitiva. Inversamente, o funcionamento normal deve ser
compreendido como um processo de integração em que o texto do
mundo exterior não é recopiado, mas constituído (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 86).
Portanto, conforme Merleau-Ponty (1999), as lesões, quer sejam dos
centros ou da periferia, não se traduzem pela perda de certas qualidades
sensíveis ou de certos dados sensoriais, mas pela diferenciação de função.
Segundo ele:
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 95
Qualquer que seja a localização da lesão nas vias sensoriais, temos uma
decomposição da sensibilidade, de forma tal que o progresso da lesão
na substância nervosa não destrói os conteúdos sensíveis um a um, mas
torna incerta a diferenciação ativa das excitações, que aparece como
função essencial do sistema nervoso (MERLEAU-PONTY,1999, p.
87-88).
As pesquisas, especialmente de Gelb e Goldstein, apontam para
a conclusão de que as lesões centrais deixam as qualidades intactas, mas
modicam a organização espacial dos dados e a percepção dos objetos, de
forma que a excitação produz seus efeitos mais lentamente (MERLEAU-
PONTY, 1999).
Em relação ao paralelismo, aceito, por exemplo por Ribot e Pierón,
Merleau-Ponty (1990a) admitia que a antiga siologia não estava errada
ao colocar em paralelo a atividade nervosa e as operações da consciência,
mas, a limitação dessa teoria se encontrava no método de análise real que,
ao decompor o todo em uma soma de partes, dissociava o funcionamento
nervoso em um mosaico de processos justapostos, repartindo-os entre
centros autônomos e reduzindo os atos da consciência à associação de
conteúdos reais ou ao jogo combinado de faculdades abstratas, de forma
que o paralelismo obtido era ilusório
17
.
Essa crítica ao paralelismo clássico, apoiada em Goldstein,
para quem o sistema nervoso funciona na totalidade, apesar de certas
funções permanecerem ligadas a certos territórios, leva Merleau-Ponty
(1990a) a propor outro tipo de paralelismo, o qual ele denominará de
paralelismo estrutural:
17
Para Piéron (1969, p. 320), paralelismo é o “ponto de vista losóco adotado por diversos psicólogos, entre os
quais Claparède, referente às relações entre as pesquisas siológicas e psicológicas. De acordo com êsse ponto de
vista, para todos os fenômenos psíquicos (conscientes) pode haver, simultaneamente, um determinismo orgânico
e um determinismo psíquico, havendo paralelismo entre esses dois planos, suscetíveis de serem seguidos de
modo independente, sem interações causais”. Segundo Lalande (1996, p. 789), “chama-se paralelismo psicofísico
à hipótese segundo a qual o físico e o psíquico se correspondem termo a termo, de tal maneira que mantêm entre
si a mesma relação que um texto e uma tradução, ou que duas traduções de um mesmo texto”. Segundo ele, essa
expressão parece ter sua origem em Fechner.
Edvaldo Soares
96 |
O descrédito da análise real em psicologia como em siologia substitui
esse paralelismo dos elementos ou dos conteúdos por um paralelismo
funcional ou estrutural - Não se reúnem mais, dois a dois, ‘fatos
psíquicos’ e ‘fatos siológicos’ - Reconhece-se que a vida da consciência
e a vida do organismo não são feitas de uma poeira de acontecimentos
exteriores uns aos outros, que psicologia e siologia buscam uma e
outra os modos de organização do comportamento e os graus de sua
integração; a primeira para descrevê-los, a segunda para designar-lhe o
suporte corporal (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 83-84).
Porém, se os fenômenos analisados não podem ser pensados a partir
da teoria clássica, sob quais então poderiam ser positivamente pensados?
De acordo com Merleau-Ponty, a partir da ideia de forma, já
utilizada por Goldstein para representar o sistema nervoso. Para Merleau-
Ponty (1990a) essa noção parece capaz de explicar a ambiguidade do lugar
na substância nervosa, desde as localizações horizontais da periferia até as
localizações verticais do centro
18
.
Essas localizações incontestes representam os pontos do córtex onde
se desenrolam os processos essenciais, a gura do processo total, sem que
se possa jamais separá-las inteiramente de um fundo que é a atividade
do resto do córtex. Dessa maneira, a noção de forma pode dar conta de
explicar o comportamento complexo sem cair nos postulados clássicos da
psicosiologia. A partir da noção de estrutura, seria necessário, conforme
Merleau-Ponty (1990a), classicar os comportamentos não mais em
comportamentos elementares e complexos, mas conforme três modalidades
de formas, ou três dimensões do ser, segundo o tipo de comportamento, as
quais seriam as formas sincréticas, amovíveis e simbólicas .
18
Essa noção será denida por Merleau-Ponty como um processo do tipo ‘gura e fundo’, onde “todos os graus
existem na dependência das formas com relação a certas condições topográcas”. Esta noção é interessante
por ultrapassar a concepção atomista do funcionamento nervoso sem reduzi-lo a uma atividade difusa e
indiferenciada, rejeitando o empirismo psicológico, sem cair na antítese intelectualista. Desta forma, a análise
de percepção, por exemplo, levaria a restabelecer um corte, - não mais entre sensação e percepção, nem entre
sensibilidade e inteligência, nem mais geralmente, entre um caos de elementos e uma instância superior que os
organizaria, mas entre diferentes tipos ou níveis de organização” (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 101). Piéron
(1969, p. 186) dene forma como a organização “na qual as propriedades das partes ou dos processos parciais
dependem do todo”. Conforme Sichère (1982), a forma não é uma realidade física, mas um objeto de percepção.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 97
No nível das estruturas ou formas sincréticas o comportamento está
reduzido ao quadro das condições naturais. As novas situações guram
como alusões às situações vitais. Esse tipo de comportamento pode ser
classicado como instintivo na medida em que responde mais a um
complexo de estímulos do que a certas características essenciais da situação
‘inteligente’. Porém, não é em decorrência só do estímulo que ocorre a
reação; o estímulo é reexógeno somente na medida em que se assemelha
a um dos objetos de uma atividade natural de contornos denidos. Assim,
as reações que provoca são determinadas não pelas particularidades físicas
da situação, mas pelas leis biológicas do comportamento (MERLEAU-
PONTY, 1990a).
No nível das estruturas ou formas amovíveis, ocorre a capacidade de
estabelecer relações adaptativas a partir de um esquema que está entre uma
montagem instintiva e a capacidade de inventar em termos absolutos.
Porém, Merleau-Ponty adverte que o comportamento nesse nível
não pode ser analisado a partir de categorias antropomórcas, no sentido
de atribuir ao animal a faculdade de determinar as relações de tempo e
espaço, bem como de valor tal qual nós a entendemos. Nesse sentido, a
capacidade de resolver problemas, nada mais seria do que a capacidade
própria da espécie, segundo sua estrutura, de adaptar-se a situação dada
naquele momento. Assim, nesse nível, o comportamento depende do
campo perceptivo do animal, por meio do qual o organismo atribui um
sentido próprio à situação, sem, porém, abstrair-se de sua própria situação
material (MERLEAU-PONTY, 1990a).
As formas ou estruturas simbólicas são concebidas como um nível
de conduta mais elaborado. Nesse nível o comportamento não tem mais
apenas uma signicação; é ele próprio a signicação. Conforme Merleau-
Ponty (1990a), no comportamento animal é possível captar um primeiro
nível de reações respondentes às propriedades físicas e químicas e às quais
depois, mediante a transferência dos poderes reexógenos, acrescentaria
uma signicação. Estímulos e reações se ligariam interiormente por sua
participação comum a uma estrutura onde se exprime o modo de atividade
próprio do organismo.
Edvaldo Soares
98 |
Na perspectiva merleau-pontyana, a causa e o efeito ou o estímulo
e a resposta seriam dois momentos de um processo circular ou dialético.
Por isso, não se pode assinalar em termos de comportamento aquilo que
depende isoladamente de cada uma das condições internas ou externas,
dado que o comportamento por si mesmo é global e indivisível. Além disso,
seria necessário, acima do campo físico, reconhecer o caráter original de um
campo siológico, de ‘sistema de tensões e de correntes’ que determinaria o
comportamento efetivo. Além desse campo, poderia ainda introduzir um
terceiro, o mental, considerando o comportamento simbólico.
Daí, para Merleau-Ponty, a impossibilidade de aceitar, a partir dessa
concepção, um paralelismo estrito entre o físico e o psíquico ou mesmo
entre o siológico e o psíquico. Segundo ele,
[...] dizer que formas físicas dão conta em última análise do
comportamento humano, eqüivale a dizer que elas existem sozinhas.
Se não existem diferenças de estrutura entre o psíquico e o siológico
e o físico, não existe mais diferença alguma (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 146).
Na realidade, seria preciso compreender a matéria, a vida e o espírito
como três ordens de signicações diferentes, sem reduzir uma à outra
(MERLEAU-PONTY, 1990a), ou seja, Merleau-Ponty propõe que se
entenda o organismo e o comportamento a partir das três ordens
19
.
Dessa postura decorrem duas premissas básicas, as quais dão suporte
à concepção de comportamento:
1. Cada mudança local se traduziria em uma forma por uma
redistribuição das forças que asseguraria a constância de sua
relação.
2. Cada forma constituiria um campo de forças caracterizado
por uma lei que não tem sentido fora dos limites da estrutura
dinâmica considerada (MERLEAU-PONTY,1990a, p.148).
19
A concepção de ordem física em Merleau-Ponty está distante da concepção da física clássica de caráter
mecanicista, mas está fundamentada na noção de um conjunto de forças em estado de equilíbrio ou de mudança
constante, onde não se poderia formular uma lei para cada parte tomada isoladamente (SPIEGELBERG, 1984).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 99
Outro ponto importante em relação ao pensamento de Merleau-
Ponty (1990a) é o de que ele não concebe um universo onde ‘tudo depende
de tudo’ e onde ‘nenhuma divisão ou fragmentação seja possível’, o que
não signica que ele aceita a ideia de uma natureza onde processos seriam
cognoscíveis isoladamente.
[...] as leis físicas não fornecem, conforme vimos, uma explicação das
estruturas, representam uma explicação nas estruturas. Elas exprimem
as estruturas as menos integradas, aquelas em que relações simples de
função e variável podem ser estabelecidas. Já no domínio ‘acausal’
da física moderna elas se tornam inadequadas. No funcionamento
do organismo, a estruturação se faz segundo novas dimensões, - a
atividade típica da espécie ou do indivíduo, - e as formas privilegiadas
da ação e da percepção podem ainda bem menos ser tratadas corno
o resultado somatório de interações parciais (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 208).
Em relação à Ordem Fisiológica (Vital), Merleau-Ponty considera
que nas estruturas orgânicas o equilíbrio é obtido com relação a condições
que o próprio sistema leva à existência, ou seja, o equilíbrio é obtido pelas
relações interiores, ao contrário das formas físicas onde o equilíbrio é obtido
com relação a certas condições exteriores dadas
20
.
O organismo não seria uma máquina. Pelo contrário, “as reações
desencadeadas por um estímulo dependem da signicação que ele tem
para o organismo considerado não como um conjunto de forças que
tendem ao repouso pelas vias mais curtas, mas como um ser capaz de certos
tipos de ação“ (MERLEAU-PONTY, 1990a, p.159). Assim, segundo
o autor, somos conduzidos, a partir dos pressupostos de Goldstein, à
concepção de que:
[...] existe, para cada indivíduo, uma estrutura geral do comportamento
que se exprime por certas constantes das condutas, dos limiares sensíveis
e motores, da afetividade, da temperatura, da respiração, do pulso, da
pressão sangüínea [...] de tal maneira que é impossível encontrar nesse
conjunto causas e efeitos, cada fenômeno particular exprimindo tão
20
A concepção de ordem vital em Merleau-Ponty não é a mesma do vitalismo de Bergson (SPIEGELBERG,
1984).
Edvaldo Soares
100 |
bem o que se poderia chamar ‘a essência’ do indivíduo (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p.160).
Daí serem as relações entre o indivíduo orgânico concebidas
como dialéticas e, não como concebia a siologia clássica, marcadas
pelo determinismo. Mesmo as reações mais elementares não poderiam
ser classicadas a partir dos aparelhos nos quais elas se realizam, mas
segundo uma signicação. Isso ocorreria porque a regulação das reações
seria diferente da dos sistemas físicos. Para Merleau-Ponty, é o organismo
que coloca ele próprio as condições de seu equilíbrio (MERLEAU-
PONTY, 1990a).
Essa dialética própria entre organismo e meio poderia ser interrompida
somente por ‘comportamentos catastrócos’, quando o organismo passaria
momentaneamente a ser reduzido à condição de sistema físico. Porém,
esses são casos patológicos ou de fenômenos produzidos em laboratórios,
dos quais se deduz, ao contrário do que se pensa, que as reações perceptivas
não podem se explicar por modelos físicos, senão nestes casos.
Portanto, para Merleau-Ponty (1990a), seria impossível à inteligência
compor uma imagem do organismo a partir dos fenômenos físicos e
químicos isolados. As reações do organismo também, segundo ele, não
poderiam ser concebidas simplesmente como destituídas de causalidade.
Deve-se considerar que o próprio organismo modica seu meio segundo
a norma interior de sua atividade. Na realidade, ele é para Merleau-
Ponty (1990a), uma unidade de signicação, um conjunto signicativo
indecomponível em suas partes, que está para uma consciência que o
conhece e não uma coisa que repousa em si.
Mas, como essas conclusões podem ser consideradas ou aplicadas em
relação ao ‘mundo da consciência’?
Na perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty, o conceito de
consciência está intimamente relacionado ao conceito de percepção, de
modo que, segundo ele, não há oposição ou separação entre o sensível e
o racional no ato de apreensão das coisas. De acordo com Merleau-Ponty
(1990a), se a consciência é uma função, ela nunca pode ser indiferente ao
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 101
substrato pela qual ela se realiza. Porém, isso não signica que a consciência
se reduza ao orgânico ou, como queria Cuvillier (1923/1953), como uma
simples função orgânica. Merleau-Ponty (1990a) acredita que por falta de
uma noção suciente de consciência, construiu-se um conceito falho de
percepção. A partir dessa constatação, Merleau-Ponty propõe que a noção
de consciência leve em consideração dois pressupostos:
1. A percepção incipiente tem o duplo caráter de visar intenções
humanas antes que objetos de natureza ou que as qualidades
puras (calor, frio, branco, negro) de que eles são portadores, - e de
apreendê-los como realidades experimentadas antes de apreendê-
los como objetos verdadeiros.
2. A representação dos objetos de natureza e de suas qualidades, a
consciência de verdade, pertencem a uma dialética superior e
teremos de fazê-los aparecer na vida primitiva da consciência
que procuramos no momento descrever (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 179-180).
Assim, pode-se dizer que, a signicação humana é dada antes dos
pretensos sinais sensíveis. Com isso não se pretende negar a importância
do suporte sensível; pelo contrário, deve-se perguntar qual pode ser o
aspecto desse suporte (MERLEAU-PONTY, 1990a).
Nessa discussão acerca da consciência, Merleau-Ponty (1990a, p.
182) recorre novamente à noção de forma, a qual segundo ele, “é uma
conguração visual, sonora, ou mesmo anterior à distinção dos sentidos,
onde o valor sensorial de cada elemento é determinado por sua função no
conjunto e varia com ela”, e que permite descrever o modo de existência
dos objetos primitivos da percepção.
Tomando como base a percepção incipiente, Merleau-Ponty
(1990a) acredita que essa se apega à intenções humanas antes que à objetos
e que experimenta a realidade antes de conhecer a verdade. Assim, para
descrever a percepção incipiente, é necessária uma reformulação da noção
de consciência a partir de dois pressupostos:
1) “a simples presença de fato, [...] não pode explicar as formas da
percepção primitiva como uma causa explica seu efeito.
Edvaldo Soares
102 |
2) “a consciência não é comparável a uma matéria plástica que receberia
de fora suas estruturas privilegiadas pela ação de uma causalidade
sociológica ou siológica(MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 183-
184).
Dessa maneira, a consciência não poderia reduzir-se à ressonância de
um acompanhamento motor de nossos pensamentos. Conforme Merleau-
Ponty, o que dene o homem é antes “a capacidade de ultrapassar as
estruturas criadas para criar outras. E esse movimento já é visível em cada
um dos produtos particulares do trabalho humano” (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 189). A partir dessas considerações, Merleau-Ponty procurou
construir um quadro descritivo do comportamento humano, de forma a
fugir das limitações das teorias causais, deterministas e reducionistas.
Corpo e ConsCIênCIa
Para Merleau-Ponty, tanto o empirismo como o intelectualismo
representam dois momentos complementares na mutilação da experiência
perceptiva. Contra o empirismo seria necessário admitir que nossa
experiência direta das coisas está além de suas manifestações sensíveis. Já
contra o intelectualismo, que elas não são unidades da ordem do juízo e
sim que elas se encarnam em suas aparições (MERLEAU-PONTY, 1990a,
1999).
Os teórico da Gestalt, em quem Merleau-Ponty se apoia, como por
exemplo, Guillaume, acreditavam que a percepção era um problema que
a Fisiologia atomista não conseguia resolver ao decompor a percepção
em fatos elementares. Para Guillaume (1967), a percepção é um todo
organizado, uma reação de conjunto do organismo a um complexo de
excitações simultâneas e sucessivas.
Seguindo essa mesma linha de pensamento, Merleau-Ponty (1990a,
1999) acrescenta que a experiência perceptiva das coisas se dá por meio de
uma mediação corpórea, a qual não deforma as próprias coisas.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 103
Dessa forma, se pode considerar que o corpo e/ou as ‘representações
mentais’ não constituem uma barreira entre a consciência e a realidade.
Na relação entre o corpo e alma ou entre o corpo e a mente, o corpo está
presente à alma ou à mente como às coisas exteriores
21
. Essa relação não é
uma relação causal entre os dois termos, mas uma relação dialética.
Conforme Merleau-Ponty (1990a, 1999), o realismo, interpretando
a percepção por meio de um princípio de causalidade, postula que as coisas
agem sobre o corpo, o qual age sobre a alma / mente. Nessa perspectiva o
corpo próprio se tornaria uma massa material e, correlativamente o sujeito
se retira dele para contemplar em si mesmo suas representações.
Assim, em lugar de três ordens inseparáveis na unidade viva,
encontram-se três ordens de acontecimentos exteriores uns aos outros
22
.
As diculdades do realismo, segundo Merleau-Ponty (1990a), ocorrem
pelo fato desse tentar interpretar a percepção em termos de leis causais e de
considerá-la como uma função de certas variáveis siológicos e psíquicas.
Nesse mesmo erro também, segundo Merleau-Ponty (1990a), caíram os
teóricos da Gestalt, entre os quais Guillaume, ao acreditar no princípio
de explicação causal e mesmo física como possível
23
. Contra essa visão, a
concepção merleau-pontyana postula que não se pode reduzir a relação dos
aspectos perspectivos a nenhum dos aspectos que existem no interior da
natureza, considerando que não é nem a relação do efeito à causa, nem a
relação da função à variável correspondente.
Ainda sobre a relação entre consciência e percepção, Merleau-Ponty
(1990d, p. 42) arma que “toda consciência é consciência perceptiva”. É
por isso que, o conhecimento do organismo e do comportamento, não
pode se dar pela análise partes extra partes, mas por uma análise estrutural.
Conhecer seria sempre apreender um dado em uma função, sob uma
21
Na visão merleau-pontyana, a alma é coextensiva com a natureza.
22
As três ordens seriam: os acontecimentos da natureza, os acontecimentos orgânicos e os do pensamento. Essas
ordens se explicariam umas pelas outras.
23
Em síntese, Merleau-Ponty acredita que as diculdades do realismo decorrem do fato de procurar converter
em uma ação causal a relação original e inserir a percepção na natureza. Conforme Merleau-Ponty (1990a),
a percepção não pode ser concebida como o efeito da ação causal de uma coisa exterior, onde o corpo seria o
intermediário desta.
Edvaldo Soares
104 |
relação, enquanto signique ou apresente uma determinada estrutura.
Assim, de acordo com Merleau-Ponty:
Os momentos do conhecimento em que eu me apreendo como
determinado a perceber uma coisa por esta coisa mesma, deverão ser
considerados como modos de consciência derivados, fundados em última
análise sobre um modo de consciência mais originário (MERLEAU-
PONTY, 1990a, p.215)
A experiência de uma coisa real só pode ser explicada pela ação dessa
coisa sobre meu espírito quando ela lhe oferecer um sentido; quando ela
manifestar-se a ele, quando constituir-se diante dele em suas articulações
inteligíveis (MERLEAU-PONTY, 1990a). Ou seja:
Se o conhecimento, em lugar de ser a apresentação ao sujeito de um
quadro inerte, é a apreensão do sentido desse quadro; a distinção
entre o mundo objetivo e as aparências subjetivas não é mais a de
duas espécies de seres, mas a de duas signicações e, nessa perspectiva,
ela é irrecusável. É a própria coisa que atinjo na percepção, uma vez
que toda coisa na qual se possa pensar é uma “signicação de coisa”,
e chama-se justamente percepção ao ato no qual esta signicação se
revela a mim (MERLEAU-PONTY, 1990a, p. 215).
Assim, o corpo, integrado ao mundo objetivo, se torna um dos objetos
que se constituem diante da consciência. Nessa perspectiva, as relações
entre o sistema físico e as forças que agem sobre ele, as relações entre o ser
vivo e o seu meio não devem ser compreendidas como relações exteriores
entre realidades justapostas. Pelo contrário, devem ser concebidas como
relações dialéticas, nas quais “o efeito de cada ação parcial é determinado
por sua signicação em relação ao conjunto” (MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 218).
A partir dessa caracterização, a ordem humana da consciência não
aparece como uma terceira ordem superposta às duas outras, mas “como
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 105
sua condição de possibilidade e seu fundamento
24
(MERLEAU-PONTY,
1990a, p. 218).
Por isso, dizer que a alma age sobre o corpo é errado, considerando
que o corpo não é um mecanismo fechado sobre si, sobre o qual a alma
pode agir de fora como algo externo. O corpo, agora concebido como
objeto da consciência, não pode ser visto como um simples ‘intermediário
entre as coisas do mundo e a consciência
25
(MERLEAU-PONTY, 1990a).
Uma vez que o mundo físico e o organismo não podem ser pensados
senão como objetos de consciência ou signicações, o problema das relações
entre a consciência e suas ‘condições’ físicas ou orgânicas existiria apenas
ao nível de um pensamento confuso. Ele desapareceria no domínio da
verdade onde subsiste a relação entre o sujeito epistemológico e seu objeto.
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty continua sua
reexão, recordando que a ciência objetiva via o corpo como simples
objeto, contentando-se em analisá-lo objetivamente e que, na perspectiva
mecanicista, o ‘meu corpo’ deixava de ser a expressão visível de um ego
concreto, para se tornar um objeto entre todos os outros:
Correlativamente, o corpo do outro não podia aparecer-me como o
invólucro de um outro Ego. Ele não era mais do que uma máquina, e
a percepção do outro não podia ser verdadeiramente percepção do outro,
já que ela resultava de um inferência e só colocava atrás do autômato
uma consciência em geral, causa transcendente e não habitante de seus
movimentos. Portanto, não tínhamos mais uma constelação de Eus
coexistindo em um mundo. Todo o conteúdo concreto dos ‘psiquismos’,
resultando, segundo as leis da psicosiologia e da psicologia, de um
determinismo de universo, achava-se integrado ao em si. O único para
si verdadeiro é o pensamento do cientista que percebe esse sistema e é o
único a deixar de ali residir. Assim, enquanto o corpo vivo se tornava um
exterior sem inteiro, a subjetividade tornava-se um interior sem exterior,
um espectador imparcial (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 68).
24
Para desenvolver sua concepção de ‘consciência’, que está relacionada à historicidade, Merleau-Ponty se utiliza
de Brunschvicg (L’Éxpérience Humaine et la Causalité Physique. Paris: PUF, 1949) (DÉLIVOYATZIS, 1987).
25
Conforme De Waelhens (1951), o corpo para Merleau-Ponty é uma manifestação essencialmente signicativa
da alma, que é o sentido do corpo.
Edvaldo Soares
106 |
Continuando a reexão iniciada em especial na última parte da
Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty propõe, na Fenomenologia
da Percepção, abandonar a ideia de corpo-objeto, partes extra partes,
sugerindo que as partes do corpo não estão postas uma ao lado da
outra, mas estão “relacionadas, envolvidas umas nas outras” e que em
decorrência disso, segundo ele, “deve-se falar em sistema” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 114).
Ainda em relação ao corpo, Merleau-Ponty (1999, p. 162) nega a
posição de que o corpo está no espaço e no tempo. Para ele, o corpo “habita
o espaço e o tempo”. Essa perspectiva será importante para entender a
concepção de percepção em Merleau-Ponty, dado que só concebendo
assim a relação entre corpo e mundo é que se torna possível conceber a
percepção como ato primeiro, pré-objetivo e pré-reexivo independente
da categoria de representação.
Nesse sentido Merleau-Ponty (1999, p. 164) arma que “meu
corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo sem precisar passar
por ‘representações’, sem subordinar-se a uma ‘função simbólica’ ou
objetivante’.” Denido o corpo como espaço expressivo, como meio geral
de ter um mundo, segue que já não se pode falar em consciência em si,
separada desse espaço expressivo
26
.
A consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo. Um
movimento é aprendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer,
quando ele o incorporou ao seu ‘mundo’, e mover seu corpo é visar
as coisas através dele, é deixá-lo corresponder à sua solicitação, que se
exerce sobre ele sem nenhuma representação. Portanto, a motricidade
não é como uma serva da consciência, que transporta o corpo ao ponto
do espaço que nós previamente nos representamos (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 161).
26
A união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um objeto,
outro sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência. Foi a existência que encontramos no
corpo aproximando-nos dele por uma primeira via de acesso, a da siologia. É nos permitido então cotejar
e precisar este primeiro resultado interrogando agora a existência sobre ela mesma, que dizer, dirigindo-se à
psicologia” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 105).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 107
A consciência passa a ser denida como intencional. Nesse sentido,
Merleau-Ponty (1999, p. 201) concebe que para que haja consciência é
necessário algo do qual ela seja consciência, ou seja, um objeto intencional.
Porém, ela só pode dirigir-se a esse objeto enquanto se ‘irrealizada’ e se
lança nele, enquanto está inteira nessa referência a algo, enquanto é puro
ato de signicação
27
.
Portanto, na perspectiva de uma crítica às tendências objetivantes e
ao método de análise real, Merleau-Ponty contrário à concepção de corpo-
objeto e de consciência como um em si anterior à percepção, introduz a
ideia de corpo como espaço expressivo, como um sistema ‘no mundo’ e de
consciência como ser para a coisa por intermédio do corpo.
Por outro lado, se nessa perspectiva a análise real se mostra
insuciente, qual seria então a solução?
Merleau-Ponty busca principalmente nos estudos das patologias, em
especial do fenômeno do membro fantasma e da anosognose os elementos
de sua proposta de uma analítica transcendental.
Mostrando os limites de uma análise tradicional, Merleau-Ponty
lembra que a siologia clássica defende que, para haver uma sensação, deve
haver necessariamente um estímulo agindo pontualmente, precisamente
localizado e determinado pelas suas características físico-químicas. Sendo
assim, no caso de lesões, os siologistas admitiam que ao desligarmos as
terminações, os nervos aferentes não poderiam mais induzir no córtex
frontal a representação da localização dos estímulos.
A partir dessa postura, Merleau-Ponty (1999) questiona como
é possível explicar o fato do amputado continuar ‘sentindo’ o braço
amputado se as terminações nervosas não existem mais?
A siologia do período, para dar contra do fenômeno, se utilizava
da categoria de ‘representação’ ao explicar que o membro fantasma é uma
27
De acordo com Merleau-Ponty (1990d, p. 42), “toda consciência é consciência perceptiva”. Nesse sentido,
a percepção é um ato de consciência originário (DELIVOYATZIS, 1987), no sentido de que ela tem valor
constitutivo em relação ao mundo, pois é anterior à ciência; ela se faz dentro das coisas (DASTUR, 1992).
Porém, ela não é mera intelecção (BARBARAS, 1998). Ao nível da percepção, o corpo não é objeto, mas
corpo-sujeito, doador de predicados (REZENDE, 1975). Nesse sentido, consciência e corpo não são categorias
irreconciliáveis.
Edvaldo Soares
108 |
parte da representação do corpo que não deveria ser dada e, se é dada, é
em decorrência da sensibilidade dos nervos do coto, os quais ainda agem
junto ao córtex frontal.
Por sua vez, a anosognose, caracterizada como o não reconhecimento
reexo e motor de um membro que, apesar de paralisado, continua sensível,
era explicada como sendo uma recusa do esquema corporal. Nesse sentido
ela não poderia ser explicada do ponto de vista siológico, dado que se
tratava de um fenômeno psíquico (MERLEAU-PONTY, 1999).
Se a Fisiologia clássica via os fenômenos do membro fantasma e
da anosognose dessa forma, a Gestalt, por sua vez, segundo Merleau-
Ponty (1999), explicava o membro fantasma como a consequência de
uma recordação fraca do esquema corporal. Ou seja, o doente buscaria
em uma representação ou memória que ele tem do braço. Em relação
aos casos de anosognose, para a Gestalt, a explicação se daria em ordem
inversa, ou seja, ao invés de manter a representação passada, o doente a
omitiria ou reprimiria.
Em relação a essas explicações, Merleau-Ponty (1999) observa
que tanto os siologistas como os gestaltistas permaneceram presos ao
esquema objetivante, pressupondo um mundo de totalidades extra-partes,
espacialmente localizados. Para que tais explicações fossem válidas, tanto
a siologia clássica como a Gestalt deveriam levar em consideração a
necessidade de uma decisão do lesionado. Porém, para Merleau-Ponty não
é isso que ocorre. Ou seja, o fenômeno não ocorre em decorrência de uma
decisão deliberada. Para explicar os fenômenos, segundo Merleau-Ponty, se
faz necessário abandonar a análise real.
Em uma perspectiva de uma análise transcendental, o membro
fantasma seria explicado por uma relação de mútua fundação entre
as estimulações sofridas pelo coto e os elementos espaciais que o
comportamento do doente não pode mais atualizar, ou seja, é um horizonte
passado e não uma representação do braço.
Assim, induzido pelas estimulações originadas do coto e, convidado
pelo mundo a interagir com o braço, o doente se xa no passado, pois esta
é uma maneira de responder aos estímulos apresentados. Dessa forma, o
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 109
que faz do membro fantasma uma doença é o fato de o doente buscar
no passado aquilo que o passado não pode lhe oferecer. É por isso que o
membro fantasma não pode ser entendido fora do contexto de ‘inerência
ao mundo’ e de abertura às possibilidades. Nesse sentido Merleau-Ponty
(1999, p. 97) arma que:
Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deciência é um Eu engajado
em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se
para seu mundo a despeito de deciências ou de amputações, e que,
nessa medida, não as reconhece “de jure”. A recusa da deciência é
apenas o avesso de nossa inerência a um mundo, a negação implícita
daquilo que opõe ao movimento natural que nos lança a nossas tarefas,
a nossas preocupações, a nossa situação, a nossos horizontes familiares.
Ter um braço fantasma é permanecer aberto a todas as ações das quais
apenas o braço é capaz, é conservar o campo prático que se tinha antes
da mutilação. O corpo é o veículo do ser no mundo, e Ter um corpo é,
para o ser vivo, juntar-se a um meio denido, confundir-se com certos
projetos e empenhar-se continuamente neles.
Por sua vez, a anosognose também não seria uma recusa orientada
por representações, dado que, segundo Merleau-Ponty, o anosognósico
não ignora simplesmente o membro paralisado, mas vive o incômodo que
é ter um membro paralisado e, é essa vivência que, independente de uma
representação prévia, motiva uma recusa. Nessa perspectiva, a patologia
decorreria de uma incapacidade do doente de viver sua própria espacialidade.
Essa incapacidade, assim como no caso do membro fantasma, não seria
decorrência de uma decisão deliberada.
Assim, tanto a anosognose como o membro fantasma não admitem
nem uma explicação siológica, nem uma explicação psicológica, nem uma
explicação mista. Só podem ser entendidas, conforme Merleau-Ponty na
perspectiva do ser no mundo. É por isso que arma que “o braço fantasma
não é uma rememoração, ele é um quase presente” (1999, p. 101), o qual
não pode ser desligado da existência
28
.
28
Em relação ao fenômeno do membro fantasma, Vaissière (1912/1959) armava que o membro fantasma não
pode ser compreendido sem levar em conta a totalidade de sua história. Para Goldstein (1934/1995), a doença
deve ser entendida como uma manifestação de uma modicação do estado de relação entre o organismo e o
ambiente.
Edvaldo Soares
110 |
A partir disso, já não se pode falar em uma análise que dispense a
categoria de inerência e na qual o ‘siológico’ e o ‘psíquico’ são concebidas
como duas ordens objetivamente distintas
29
.
O que nos permite ligar o “siológico” e o “psíquico” um ao outro é o
fato de que reintegrados à existência, eles não se distinguem mais como
a ordem do em si e a ordem do para si, e de que são ambos orientados
para um pólo intencional ou para um mundo (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 103).
É a partir dessa concepção que Merleau-Ponty arma que “o homem
concretamente considerado não é um psiquismo unido a um organismo,
mas esse ‘vai e vem da existência’ que ora deixa de ser corporal e ora se
dirige aos atos pessoais
30
” (1999, p.104).
Assim, Merleau-Ponty, a partir da análise de fenômenos patológicos
introduz um novo modelo de análise, o qual ele denomina de “análise
existencial”, a qual tem por objetivo ultrapassar as alternativas clássicas
entre o empirismo e o intelectualismo, entre a explicação e a reexão. A
partir dela infere que a consciência não é uma soma de fatos psíquicos ou
uma função de representação.
Mais tarde, Merleau-Ponty (1999, p.169) tornará mais clara sua
proposta de uma analítica transcendental ao lembrar, a partir de uma
postura fenomenológica, que no estudo dos casos patológicos se deve
buscar “atrás dos fatos e dos sintomas dispersos, o ser total do sujeito, se se
trata de um normal, o distúrbio fundamental se se trata de um doente. É
nesse sentido que um novo tipo de análise se faz necessária:
[...] um único método ainda parece possível: ele consistiria em
reconstruir o distúrbio fundamental remontando a partir dos sintomas
não a uma causa ela mesma constatável, mas a uma razão ou a uma
condição de possibilidade inteligível – em tratar o sujeito humano
como uma consciência indecomponível e presente inteira em cada uma
de suas manifestações (MERLEAU-PONTY, 1999, p.169).
29
[...] não se pode referir a certos movimentos à mecânica corporal e outros à consciência, o corpo e a consciência
não se limitam um ao outro, eles só podem ser paralelos (MERLEAU-PONTY, 1999, p.144).
30
Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e
com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles (1999, p.113).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 111
Enquanto não se tiver encontrado o meio de unir a origem com a
essência ou com o sentido do distúrbio, enquanto não se tiver denido
uma essência concreta, uma estrutura da doença que exprima ao
mesmo tempo sua generalidade e sua particularidade, enquanto a
fenomenologia não se tiver tornado fenomenologia genética, os retornos
ofensivos do pensamento causal e do naturalismo permanecerão
justicados (MERLEAU-PONTY, 1999, p.177).
Finalizando, podemos armar, de forma sintética, que a obra de
Merleau-Ponty se inscreve, a partir de uma postura fenomenológica, em
um movimento de recusa dos postulados objetivantes que marcavam a
ciência positivista e que, ao mesmo tempo, procura resgatar o sentido de
inerência. É nesse sentido, conforme Barbaras (1992), que a evolução do
pensamento de Merleau-Ponty visa uma perspectiva ontológica e tem a
ambição de devolver o sentido de existir (ser) do mundo.
A crítica elaborada por Merleau-Ponty, segundo Chauí (2002a, p.
54), parte de sua recusa ao Naturalismo, que põe a natureza como um
absoluto em si’ (omminitudo realitatis) “de onde os seres são inferidos por
relações de gênero, espécie e diferença especíca”, tal como na tradição
aristotélico-tomista.
Porém, não é só contra o objetivismo que Merleau-Ponty se volta, mas
também contra as tradições da subjetividade, para as quais a consciência é
ponto de partida e à qual toda realidade pode ser reduzida.
Portanto, é nesse contexto, ou seja, no sentido de superar os
paradigmas objetivista e subjetivista que Merleau-Ponty, em A Estrutura
do Comportamento, critica as concepções siologistas e psicologistas
do comportamento. No contexto do surgimento da Estrutura do
Comportamento, tanto a siologia como a psicologia experimental do
período se dividia, em termos gerais, em duas correntes: mecanicistas
e não mecanicistas. Entre os autores que adotam posturas mecanicistas
citamos, por exemplo, Claude Bernard, Testut, Jacob, Ribot, Pizon,
Pavlov, Richet, Hédon, Pierón. Entre os não mecanicistas, Goldstein,
Guillaume, Vaissière, Cuvillier.
Edvaldo Soares
112 |
Entretanto, no que se refere à postura localizacionista, é interessante
observar que, ao passo que os não mecanicistas citados eram contrários
à postura localizacionista, o mesmo não ocorria com os mecanicistas,
especialmente com os da escola francesa. Por exemplo, vimos que Richet
(1898), mesmo defendendo a concepção de centros, visualizava diculdades
em relação aos centros de inteligência e não acreditava que fosse simples
determinar o local exato da resposta a partir do local da excitação; Hédon
era contra a ideia de especialização; Pizon acreditava as localizações
psíquicas eram mal denidas; Testut e Jacob atestavam a diculdade de se
encontrar localizações exatas para funções superiores.
Nesse contexto, muitas vezes confuso, Merleau-Ponty se apoia em
autores não mecanicistas e globalistas para, conforme Giles (1979, p. 10),
colocar-se em oposição ao Behaviorismo e à reexologia pavloviana por
considerar que essas teorias “tratam o comportamento como coisa para
submetê-lo ao controle do pensamento causal e de modelos mecânicos”.
Sua oposição a essas tendências ca clara já no início da Estrutura do
Comportamento, a qual, marcada pelo projeto fenomenológico, se propõe
tornar evidente que o comportamento deve ser compreendido como
possuidor de intenção e sentido e não como fruto exclusivo de um
processo mecanicista de causa e efeito, tal como foi proposto pela teoria
comportamentalista em psicologia e pela teoria do reexo (COELHO
JR.; CARMO, 1991), que, conforme Délivoyatzis (1987) exclui as
características existenciais, a interioridade, os predicados de valor e a
signicação imanente. Nesse sentido De Waelhens (1972, p. 26) acredita
que, a Estrutura do Comportamento,
[...] se apodera de nossa imagem esboçada – em cores nem sempre
harmônicas – pelas principais escolas de psicologia experimental da
época (sobretudo a Gestalt e o Behaviorismo) e se interessa em provar
que os fatos e os materiais reunidos por essa ciência são sucientes
para contradizer cada uma das doutrinas interpretativas às quais o
Behaviorismo e a Gestalt implícita ou explicitamente recorrem. A
Estrutura do Comportamento coloca-se no nível da experiência mesma
– isto é, o conjunto dos fatos que, trazidos à luz pela investigação
cientíca, constitui o comportamento – não é compreensível dentro das
perspectivas ontológicas que a ciência espontaneamente adota.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 113
Porém, muitos autores, segundo De Waelhens (1951, 1961),
consideram a obra negativa, no sentido de que ela se esforça somente em
mostrar a insuciência das respostas que a psicologia de laboratório oferece
ao problema do comportamento. Porém, tal visão é restritiva, dado que,
de acordo com o próprio Merleau-Ponty, o objetivo central da Estrutura
do Comportamento é compreender as relações entre a consciência e a
natureza orgânica, psicológica ou mesmo social e o ponto de partida para
tal compreensão é a análise da noção de comportamento.
Inscrita em um projeto que procura superar as limitações da ciência
objetiva, a noção de comportamento em Merleau-Ponty não designa
estados de consciência ou mecanismos siológicos preestabelecidos, mas
refere-se a organizações espontâneas, nas quais o corpo e o meio aparecem,
como concebiam Goldstein e Guillaume, integrados como totalidades
autorreguladoras de relações dotadas de nalidade, o que naturalmente
exclui a noção de comportamento como sendo uma rede de efeitos ou
reexos contidos ou representados no Sistema Nervos Central.
Conforme Müller (2001), ao descrever os diversos comportamentos
que caracterizam a existência, Merleau-Ponty introduz a ideia de que em
todos eles, os dispositivos anatômicos envolvidos apresentam-se investidos
de um poder de transcendência, por cujo meio ultrapassam os limites
empíricos em que foram iniciados, trazendo à tona mais do que está
materialmente dado. Isso signica que eles não se limitam às ocorrências
sensíveis atuais, como também anteciparam Goldstein, Guillaume e
outros, mas fazem emergir ocorrências estabelecidas em outros momentos
ou lugares, e por outros dispositivos anatômicos. Assim, mais do que dados
isolados, deve-se levar em consideração a relação de implicação entre as
diversas ocorrências sensíveis de nossa vida, revelando assim a totalidade que
essas ocorrências integram-se e por cujo meio xam-se como signicação,
objeto ou valor para nossa vida.
Nesse esquema, os dispositivos anatômicos não dependem de um ato
voluntário da consciência, como supunha, por exemplo o bergsonismo; não
estão orientados segundo um pensamento já formulado. “Pelo contrário,
eles o fazem de modo espontâneo, sem que eu necessite formulá-los ou
representá-los” (MÜLLER, 2001, p.149-150). Desta forma, segundo
Edvaldo Soares
114 |
Chauí (2002a), a noção de comportamento em Merleau-Ponty, liberada
dos pressupostos positivistas, apresenta-se estratégica, pois, não traz em si
a divisão entre psíquico e orgânico.
Porém, essa concepção de comportamento em Merleau-Ponty só
será possível a partir da utilização da categoria de forma, a qual segundo
Délivoyatzis (1987), contrariamente à concepção positivista clássica,
propõe uma historicidade, uma inerência. Ou seja, a noção de forma em
Merleau-Ponty tenta ultrapassar a própria noção de forma da Gestalt, que
ao colocar a gestalt como forma derivada de formas físicas detentoras de
realidade, impediu “uma revisão radical das relações entre o objetivo e o
subjetivo no nível da psicologia” (CHAUÍ, 2002a, p. 229).
Então qual seria o sentido de forma para Merleau-Ponty?
Para ele, a forma é uma signicação encarnada; possui um princípio
interno de organização e de auto regulação, ou seja, é uma estrutura. Esta
noção, segundo Chauí (2002a, p. 233), “nos afasta da tradição cientíca
fundada em explicações causais de tipo mecanicista” e permite Merleau-
Ponty combater o naturalismo e o intelectualismo, o qual, segundo ela, “
conseguem explicar o comportamento por redução”.
Assim, procurando superar o mecanicismo e o dualismo do
behaviorismo clássico, Merleau-Ponty apresenta a noção de forma como
solução nova, aplicável aos três campos, os quais seriam integrados como
três tipos de estrutura.
Porém, quando apresenta a noção de forma, Merleau-Ponty tenta,
como já vimos acima, ultrapassar a noção da gestalt, como por exemplo
a de Guillaume, fundamentada na noção de forma tal como é concebida
pela física e que procura fundar as estruturas biológicas e psíquicas sobre
estruturas físicas. De acordo com Merleau-Ponty, assim concebida, a
noção de forma não seria suciente para dar conta de explicar os campos
siológico e mental, dada a impossibilidade de conceber uma forma física
com as mesmas propriedades que uma forma siológica ou uma forma
siológica equivalente a uma forma psíquica, o que seria para Merleau-
Ponty um absurdo, pois estaria rearmando a hipótese de que as formas
físicas teriam todas as propriedades das relações biológicas e mentais às
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 115
quais elas servem de substrato (CHAUÍ, 2002a; DÉLIVOYATZIS, 1987;
REZENDE, 1975; SICHÈRE, 1982).
Segundo De Waelhens (1951), a análise de Merleau-Ponty,
diferentemente da análise real, mostra a necessidade de superar o
behaviorismo, o gestaltismo e suas concepções de comportamento e de
estrutura. Autores como Délivoyatzis (1987), interpretam que Merleau-
Ponty, com o objetivo de combater o intelectualismo e o empirismo,
se utiliza de um método quase indutivo. Porém, para De Waelhens
(1951), o método de Merleau-Ponty é um método de ‘ingenuidade e
de descobrimento’, fundamentado na proposta de Husserl de ‘volta às
coisas mesmas’.
Na Fenomenologia da Percepção, dando continuidade a seu projeto
de superação dos preconceitos empiristas e intelectualistas, Merleau-Ponty
examina a estrutura simbólica do corpo e sua relação com a consciência,
a partir de uma perspectiva fenomenológica, mediante a qual introduz o
conceito de expressão
31
.
Nessa perspectiva, já não tem lugar a visão de corpo como simples
objeto, formado por partes extra partes. O corpo passa a ser visto corpo
fenomenal, como expressivo, como doador de sentido:
[...] o corpo exprime a existência total, não que ele seja seu
acompanhamento exterior, mas porque a existência se realiza nele
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 193).
É por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu corpo
que percebo “coisas(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 216).
É nessa perspectiva que já não se pode mais falar em consciência
como separada desse corpo e muito menos de corpo como habitat da
consciência. A consciência já não é vista como um ‘em si’, mas é consciência
inerente à existência, é consciência de algo, é intencional.
31
Expressão é o nome que Merleau-Ponty dá a essa capacidade de transcendência inerente a cada um dos meus
dispositivos corporais, e por cujo meio alcanço, para além dos dados que cada dispositivo pode encerrar, a
totalidade que estes dados integram.
Edvaldo Soares
116 |
No estudo dessa relação, Merleau-Ponty apresenta um novo gênero
de análise, fundado sobre o senso (sentido) biológico do comportamento
que se impõe às crenças da psicologia e da siologia e se apresenta como
solução para os limites das mesmas
32
. O que Merleau-Ponty propõe é uma
analítica transcendental, que tem como objeto, não as partes isoladas,
mas as formas a priori na sua relação necessária com a experiência, na sua
inerência (BERNET, 1992; LALANDE, 1996; REZENDE, 1975).
32
Outros autores, como por exemplo Hayen (1952), acreditam que o trabalho de Merleau-Ponty se inscreve
em uma linha tradicional de inspiração aristotélico-tomista no que tange à união entre corpo e alma. Já para
Délivoyatzis (1987), a losoa de Merleau-Ponty não é sistemática, mas dialética, na medida em que permite
uma abertura como uma encarnação do fenômeno humano e mundano.
| 117
Capítulo IV
N:
L,
P  M
Poderíamos armar que as ‘Neurociências’ existem desde o século V
a.C quando por exemplo, Alcmeão de Crotona descreve os nervos ópticos
e levanta a hipótese de que o cérebro era o centro dos pensamentos. Ou,
podemos localizá-la até mesmo antes disso, a partir de crânios trepanados
no antigo Egito (FINGER, 1994; CLARK, 2018).
Porém, o evento que marcou o surgimento da ‘Neurociência
propriamente dita ocorreu, com incentivo do Massachusetts Institute of
Technology (MIT), o lançamento, em 1962, do Neuroscience Research
Program, o qual tinha como objetivo integrar pesquisadores dedicados às
áreas das ciências comportamentais e neurológicas. Logo em seguida, em
1969, foi fundada em Washington a Society for Neuroscience (FRIXIONE,
2014; SQUIRE, 2012; GLICKSTEIN, 2014).
Em 1989 o então presidente dos EUA, George Bush, em função dos
desenvolvimentos relativos às pesquisas sobre o cérebro; da integração entre
as disciplinas dedicadas à temática da relação cérebro e estados mentais e,
especialmente em resposta aos relatórios produzidos pelo National Institute
Edvaldo Soares
118 |
of Neurological Disorders and Stroke and the National Institute of Mental
Health, assinou uma declaração designando a década de 1990 como a
“Década do Cérebro”.
Anos mais tarde, em 2013, o então presidente dos EUA, Barack
Obama impulsionou o desenvolvimento de pesquisas em Neurociências
a partir do apoio ao desenvolvimento de Neurotecnologias Inovadoras.
No mesmo período, na Europa, foi lançado o projeto Human Brain
com o objetivo de implantar infraestrutura de pesquisa que permita que
pesquisadores produzam avanços nas áreas de neurociência, computação e
medicina relacionada ao cérebro. Esse projeto, iniciado em 2013 e que tem
previsão inicial de durar 10 anos, envolve aproximadamente 500 cientistas
de mais de 100 centros de pesquisa, universidades e hospitais europeus
(GLICKSTEIN, 2014; CLARK, 2018).
Em função dessas iniciativas, já em meados da década de 1990 já se
observava grande desenvolvimento das chamadas ‘Neurociências’, apesar
dos reduzidos apoio público e recursos de pesquisa (GOLDSTEIN M,
1994; SQUIRE, 2012). Entre esses desenvolvimentos podemos citar os
estudos acerca da plasticidade e da memória entre outros. Entretanto,
apesar dos avanços, duas questões ainda se apresentam:
1. As neurociências atuais superaram as críticas elaboradas por
Merleau-Ponty?
2. Há ainda a necessidade de retomar uma proposta de analítica
transcendental?
Para subsidiar as respostas a tais questões, a partir da questão da
localização de funções mentais, serão abordados estudos referentes a temas
como plasticidade, memória e consciência.
plastICIdade e MeMórIa
Plasticidade é denida como a capacidade de outras áreas do sistema
nervoso têm de assumir uma função quando uma outra região especíca
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 119
foi danicada. Ela seria uma propriedade própria que o sistema nervoso
tem em se reorganizar em função de fatores endógenos e exógenos (LENT,
2001; STILES, 2000; TOMAZ, 1993).
Uma das primeiras evidências experimentais em relação à
plasticidade datam dos anos 1930, quando Hamburger vericou que a
remoção da asa no embrião da galinha provocava atroa dos neurônios;
mais tarde, em 1949, Viktor Hamburger (1900 – 2001) e Rita Levi-
Montalcini (1909 – 2012) mostraram que muitos neurônios sensitivos
degeneram durante o desenvolvimento normal, e que a remoção de
um membro causa aumento na taxa de degeneração (COWAN, 2001;
PURVES, 2001; LINDEN, 1993).
Em relação aos estudos sobre a memória, Karl Lashley (1890-1958)
foi um dos autores que mais contribuíram. No início de suas pesquisas, que
datam da década de 20, Lashley procurou localizar os substratos neurais
ou processos subjacentes dos hábitos aprendidos (engramas). A partir de
experimentos com ratos submetidos a lesões corticais
1
de diferentes extensões
por meio da técnica de ablação, Lashley não conseguiu chegar a localizações
no que se refere a hábitos adquiridos, como as corridas pelo labirinto ou a
abertura de compartimentos travados (MILNER, 1978, FINGER, 1994;
WIDEMAN, 1999). Um outro problema observado por Lashley foi o
fato de que os animais poderiam se utilizar de diferentes estratégias (visão,
olfato, tato) nos experimentos em labirintos (WIDEMAN, 1999; BEAR;
CONNORS; PARADISO, 2002).
Mais tarde, Lashley concluiu que a localização dos traços de memória
era impossível e que a capacidade de aprender ou de reter uma determinada
tarefa no labirinto era tanto mais afetada quanto maior fosse a extensão
da lesão cortical. A partir desta constatação, defendeu que o córtex opera
seguindo o princípio de ‘ação de massas’, de modo que, quanto maior
for a lesão, o rendimento será mais pobre. Contrariando a perspectiva
localizacionista, Lashley formulou o princípio da eqüipotencialidade,
segundo o qual todas as partes do córtex cerebral contribuiriam da mesma
maneira no aprendizado e na memória. Na obra In Search of the Engram
 Ablações que impediam a comunicação transcortical entre as áreas sensoriais e motoras.
Edvaldo Soares
120 |
(1950), sustentou que a memória de curto prazo depende de operações
esquemáticas dos circuitos neuronais, ou seja, de engramas, que ocorreriam
em complexas vias reentrantes do córtex cerebral
2
(MCGAUGH, 2007;
MILNER, 1978).
Em relação à memória e à plasticidade, talvez as mais importantes
concepções tenham surgido a partir da obra Organization of Behavior (1949),
escrita pelo discípulo de Lashley, Donald Hebb (1904-1985). Nessa obra,
Hebb propôs que durante a aprendizagem um neurônio estimula outro,
fazendo com que a sinapse entre eles se torne mais fortalecida, produzindo
alterações estruturais (BROWN, 2020).
Com base nesta ideia, Hebb acreditava que o armazenamento da
informação estrutural poderia explicar o fenômeno da memória; ou seja,
durante a aprendizagem, dois neurônios previamente não associados
estariam ativos e essa atividade coincidente acabaria tendo um resultado
de longa duração, persistindo bem além dos períodos para os quais
cada célula esteve ativa, ou seja, quando uma célula incidente, X, estava
particularmente ativa e excitava uma célula-alvo, Y, então a sinapse entre
X e Y se tornaria reforçada, fazendo dessa sinapse mais ecaz na sinalização
química (BROWN, 2020; HEBB, 1949).
Os padrões comportamentais também obedeceriam a esse esquema
e seriam construídos gradativamente durante longos períodos de tempo,
mediante a conexão de conjuntos particulares de células denominadas por
ele de cell assemblies. Em síntese, a aprendizagem seria uma modicação
sináptica reforçada
3
(GREENFIELD, 2000; KOVÀCS, 1997).
Para Hebb, até esse ponto, comportamentos ou percepções
poderiam ser localizados em regiões especícas, talvez até mesmo em
Esse esquema não valeria para a memória de longo prazo dado que ela, segundo Lashley, seria retida mesmo
depois que toda a atividade neuronal no cérebro tivesse sido suprimida por estado de coma, anestesia profunda,
choque eletroconvulsivo. Portanto, para ele, haveria outro tipo de mecanismo para a memória de longo prazo
(ECCLES, 1979).
Como alternativa à proposta de Hebb em relação à formação de memória existe a hipótese de que o contato
reforçado não envolve diretamente a célula-alvo Y, mas sim uma terceira célula, Z. Essa terceira célula incidiria
sobre X antes que esta sinalizasse para Y. Esse reforço, então, seria pré-sináptico, e não pós-sináptico, como no
esquema de Hebb. Se Z e X estivessem coincididamente ativadas de modo tal que Z modulasse a atividade de X,
mais transmissores seriam liberados no alvo nal Y. Apenas quando X e Z estivessem ao mesmo tempo ativadas,
X consequentemente liberaria mais neurotransmissores para Y (GREENFIELD, 2000).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 121
células especícas do cérebro. Os comportamentos mais complexos seriam
formados a partir de conjuntos de reuniões de células que ele chamou
de phase sequences, as quais são menos localizadas e envolvem conjuntos
maiores de células provenientes de diferentes regiões do sistema nervoso.
Ou seja, quando o organismo atinge a maturidade e se mostra capaz de
realizar formas mais complexas de comportamento, se torna mais difícil
atribuir qualquer comportamento a um conjunto discreto de neurônios
de uma região determinada do cérebro
4
(BROWN, 2020; HEBB, 1949).
De acordo com Hebb (1949), uma seqüência de fases envolveria
alguma eqüipotencialidade, ou seja, incluiria caminhos alternativos de
forma que, se alguns fossem destruídos, uma função comportamental
poderia continuar a ser cumprida com maior ou menor ecácia por aqueles
que são poupados.
Além dos indícios obtidos por Lashley e Hebb, Wilder Peneld
(1891-1976) sugeriu, a partir de relatos de casos clínicos, que a
memória não é simplesmente armazenada, mas xada diretamente no
cérebro (PENFIELD, 1952). Peneld e Roberts (1959) enfatizaram a
importância do lobo temporal em relação à memória, armando que a
perda da memória recente seria decorrente de lesões no hipocampo, o
qual seria um componente crucial dos circuitos neuronais que participam
do aprendizado.
Para chegar a essas conclusões Peneld investigou o armazenamento
de memória em pacientes que estavam sendo submetidos à neurocirurgia
5
.
Sua técnica consistia em estimular eletricamente a superfície de diferentes
partes do córtex dos pacientes, os quais se encontravam plenamente
conscientes, enquanto documentava os relatos dos mesmos quanto ao
que estavam sentindo. Peneld notou que na maior parte das vezes eles
não relataram novas experiências e que, algumas vezes, armavam que
podiam se lembrar de cenas muito vívidas (LEBLANC, 2019; BRUST,
2000). Peneld ainda observou que se a mesma área fosse estimulada
Em relação a esta proposta, cabe relatar que, já em 1898, Richet defendia a tese de que o cérebro podia
modicar sua resposta a partir de experiências passadas.
Em 1888, John Hughlings Jackson (1835-1911) relacionou crises de convulsão com o lobo temporal, depois
de estudar um paciente que iniciava a sua crise com recordações.
Edvaldo Soares
122 |
em ocasiões diferentes, memórias diferentes eram despertadas e que, ao
contrário, as mesmas memórias poderiam ser geradas a partir do estímulo
de áreas diferentes.
Apesar dessa constatação, Peneld defendia que os processos de
memória têm localizações especícas no cérebro humano
6
(NITSCH;
STAHNISCH, 2018; LEBLANC, 2019).
Peter Milner (1978) também acreditava que havia evidências de que
a memória humana não é armazenada. Para ele, a informação, por meio do
processo de consolidação, vai se tornando mais fortemente estabelecida com
o passar do tempo, sendo capaz de suportar a adição de novas informações.
Nesse processo, o caráter distintivo de um evento teria inuência sobre
a facilidade com que ele é aprendido e sobre a durabilidade do traço de
memória resultante.
O processo de consolidação envolveria vários mecanismos e
circuitos neurais, o que não signica necessariamente, segundo ele, que
todos os neurônios estejam equipados para participar da aprendizagem
(MILNER, 1978).
Ainda segundo Milner (1978), parece provável que o tecido retirado
das proximidades do córtex sensorial contenha tanto as conexões inatamente
determinadas como as aprendidas. Dessa forma, segundo ele, é possível
que uma aptidão inicialmente inata possa ser readquirida mediante um
treinamento, mesmo depois de terem sido destruídas as conexões originais
e que, também os hábitos aprendidos podem ser readquiridos, após uma
lesão, mediante treinamento especíco.
Uma das principais fontes para o estudo dos mecanismos neurais
da memória e da aprendizagem têm sido os casos clínicos de pacientes
com lesões especícas no sistema nervoso central, especialmente no tálamo
medial e no sistema hipocampal
7
.
Segundo Kandel, Schwartz e Jessel (1997), os estudos de Peneld não são totalmente convincentes pelo fato de
que todos os pacientes estudados apresentavam focos epilépticos convulsivos no lobo temporal e, os locais onde
eram provocadas essas respostas experiências eram próximos a esses focos, de modo que, as respostas poderiam
ser resultado de atividade convulsiva localizada.
A formação ou sistema hipocampal compreende, além do hipocampo, mais duas estruturas a ele intimamente
associadas, o subiculum (que compreende o córtex que une o hipocampo ao giro parahipocampal) e o giro
denteado (o qual é separado do hipocampo pelo prolongamento do sulco do hipocampo). (PRIBRAM, 1991).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 123
De acordo com Martin (1996) a formação hipocampal é importante
para a aprendizagem e para a consolidação da memória de curto prazo,
memória de longo prazo e memória espacial. Conforme Brodal (1997),
a ‘crença’ de que o hipocampo está envolvido nas funções de memória é
baseada principalmente na experiência com pacientes portadores tanto de
doenças destrutivas do lobo temporal, em casos de pacientes que tiveram
partes deste lobo removidas cirurgicamente. Observou-se que na maior
parte dos casos estudados não houve perda da memória para eventos
passados ou deterioração da personalidade ou da inteligência em geral. Para
Scoville e Milner (1957), o grau do décit de memória varia na proporção
da extensão da remoção.
Vários pacientes que sofreram lesões bilaterais na região hipocampal
durante cirurgias para cura de epilepsia foram estudados por Brenda Milner
(1959, 1966) e Scoville e Milner (1957). Nesses estudos vericou-se que os
pacientes apresentavam diferentes graus de amnésia anterógrada.
Segundo P. Milner (1978), essa descoberta deu força à teoria de que
o hipocampo e não alguma estrutura vizinha constitui a região crucial
para a memória recente. Porém também se observou que certos tipos
de aprendizado cam relativamente inalterados pelas lesões bilaterais do
hipocampo e ainda que a redução da memória verbal estaria relacionada
com a quantidade do tecido hipocampal removido do hemisfério
dominante por ocasião da operação.
Fundamentalmente o hipocampo é constituído por substância cinzenta; no entanto sua face lateral (ventricular)
é coberta por uma na camada de substância branca, denominada alveus. Esse continua com a mbria, a qual
prossegue constituindo um feixe de bras, o fórnix. O fórnix constitui o principal sistema eferente hipocampal
(MARTIN, 1996). De acordo com Brodal (1997) o giro denteado acompanha o hipocampo como uma faixa
estreita de córtex. As áreas corticais mediais ao giro denteado são referidas coletivamente como o subiculum. No
giro denteado há uma densa camada de células granulares. Estas têm dendritos que se ramicam estendendo-se
dentro da chamada camada molecular onde penetram os feixes perfurantes e outros aferentes. Os axônios das
células granulares do giro denteado são as chamadas bras musgosas. Com base em diferenças arquitetônicas, o
hipocampo pode ser subdividido em diferentes campos ao longo de sua extensão. Estes são referidos comumente
como campos CA1, CA2, CA3 e CA4. O último é o campo mais próximo do giro denteado em parte fundido
com ele; CA1 é o campo adjacente ao subiculum. As características na organização anatômica do hipocampo
foram esclarecidas por Cajal e por estudos de Golgi e Lorente de Nó. O hipocampo não pode ser atingido sem
que algum dano seja infringido ao córtex cerebral ou outras partes da formação hipocampal. A degeneração de
bras, subsequente a lesões do hipocampo poderia, portanto, ser conseqüência do dano a bras de passagem de
estruturas não hipocampais.
Edvaldo Soares
124 |
Para P. Milner (1978) é possível que, nos seres humanos, o
hipocampo, ou alguma outra estrutura límbica do lobo temporal
desempenhe um papel direto na consolidação. Também os ratos com lesões
hipocampais apresentam prejuízos mistos. Certos tipos de aprendizado de
fuga ativa pareceram até mesmo aprimorados pelas lesões hipocampais,
embora a fuga passiva casse prejudicada. As discriminações simultâneas
de luminosidade não cavam diminuídas pelas lesões hipocampais, o
mesmo não acontecendo com as discriminações sucessivas. Em geral, o
aprendizado de um labirinto cava prejudicado por essas lesões. Também
em humanos parece que o aprendizado ca seriamente prejudicado por
uma lesão no hipocampo.
Aparentemente, não é nessa região que as informações cam
permanentemente ‘armazenadas’, pois as lembranças antigas sobrevivem
à lesão. Por outro lado são fortes os indícios de que ela contribua para o
estabelecimento de recordações em longo prazo (MILNER, 1978). Por
exemplo, Press, Amaral e Squire (1989) relataram incapacidade na retenção
de memória de longo prazo após lesão hipocampal.
Alguns autores postulam que as funções de memória podem ser
localizadas em regiões especícas do cérebro. Por exemplo, Kandel,
Schwartz e Jessell (1997) não acreditam que o armazenamento da memória
é amplamente distribuído por todo o cérebro. Segundo eles, estudos
recentes têm demonstrado que a memória depende realmente de muitas
regiões cerebrais, mas que determinadas regiões são mais importantes para
determinados tipos de memória e ainda que diferentes tipos de memória
são armazenados em sistemas neurais distintos.
A base para as armações de Kandel, Schwartz e Jessell (1997) está
nos estudos de Brenda Milner (1985), para a qual a memória humana
dependeria de múltiplos sistemas. Trabalhando com Hebb em colaboração
com Peneld, Milner descobriu a existência de múltiplos sistemas de
memória no cérebro, ao estudar pacientes com epilepsia que haviam sofrido
ablação bilateral do hipocampo
8
. Nesses estudos que datam da década de
50, observou-se que esses pacientes não tinham memória para determinadas
O objetivo era estudar os efeitos terapêuticos da ablação bilateral do lobo temporal em pacientes com epilepsia
temporal.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 125
tarefas que dependiam do conhecimento consciente de pessoas, lugares e
coisas, mas que conservavam boa memória para habilidades motoras que
eram aprendidas ‘subconscientemente’. Os estudos de Brenda Milner
apresentaram a evidência experimental para a distinção posterior entre
as memórias explicita e implícita
9
(KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL,
1997; CLARK, 2018; KOLB, 2022).
O mais famoso relato sobre os efeitos da remoção de partes dos lobos
temporais sobre a memória explícita foi o de Henry Gustav Molaison, mais
conhecido como H.M, um operário que sofria, por aproximadamente dez
anos, de graves crises epilépticas intratáveis.
10
As crises epilépticas de H.M
eram acompanhadas por perda de consciência, fato que o impossibilitou
levar uma vida normal. Com o objetivo de controlar essas crises, em 1953,
aos 27 anos, H.M. foi submetido a uma cirurgia para remoção bilateral de
parte do lobo temporal medial, estrutura que inclui o giro parahipocampal,
córtex entorrinal, amígdala cerebral e dois terços anteriores do hipocampo
(PRIBRAM, 1991; ANNESE et al., 2014).
Em relação aos ataques epilépticos, a cirurgia foi um sucesso. H.M.
era capaz de conversar normalmente desde que não fosse distraído; sua
atividade intelectual estava normal (SCOVILLE; MILNER, 1957;
SCOVILLE, 1968; PRIBRAM, 1986); sua memória de curta duração
estava preservada e seu desempenho em testes de percepção se mostrava
normal (MILNER; CORKIN; TEUBER, 1968). Por outro lado foi
constatado que H.M. podia lembrar apenas de eventos até mais ou
menos dois anos antes da cirurgia, o que signicava que a acuidade de sua
9
A memória explícita para eventos passados é um processo criativo, sintetizador e reconstrutor. A informação
armazenada como memória explícita é o produto do processamento por nosso aparelho perceptivo. É um
processo de transformação no qual a informação que chega é sintetizada e interpretada. A memória explícita
inclui o aprendizado sobre pessoas, lugares e coisas, passível de ser descrito verbalmente, um aprendizado que
exige conhecimento consciente. A memória implícita inclui as formas de aprendizado perceptivo e motor, que
não exigem conhecimento consciente; ela tem uma qualidade automática e reexiva. Sua formação e recordação
não dependem da capacidade de ter ou de tomar conhecimento ou de processos cognitivos. Ela se acumula
lentamente por repetição. Considera-se que a memória implícita para uma determinada tarefa esteja ligada à
atividade dos sistemas sensoriais e motores especícos participantes do aprendizado da tarefa, sendo conservada
por mecanismos inerentes a cada um desses sistemas (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 1997).
10
Conforme Milner (2002, p. 755), quando trabalhava com Peneld, foram contatados pelo neurocirurgião
William Scoville, que disse ter observado em um paciente um distúrbio de memória semelhante aos observados
por Peneld. “Este paciente era H.M. [...]. Peneld perguntou se eu gostaria de ir a Hartfort para estudar o
paciente, e foi assim que tudo começou”.
Edvaldo Soares
126 |
memória para eventos ocorridos pouco antes da cirurgia estava severamente
comprometida (CAMPOS; SANTOS; XAVIER, 1997).
De acordo com Scoville e Milner (1957), esse comprometimento se
tornou progressivamente menor para informações adquiridas até três anos
antes da cirurgia de tal modo que informações adquiridas anteriormente
a esse período eram lembradas normalmente. Como consequência, H.M.
só conseguia realizar ações simples no ‘aqui e agora’, tornando-se incapaz
de formar novas memórias. O que faltava a H.M. era a capacidade de
transferir a maior parte dos tipos de aprendizagem da memória de curto
prazo para a memória de longo prazo (SCOVILLE; MILNER, 1957;
SCOVILLE, 1968; ANNESE et al., 2014).
A manutenção das memórias passadas evidenciava que essas não
seriam dependentes da área cerebral removida e que elas talvez fossem
processadas em uma região, mas consolidadas em outro lugar
11
. Sugeriu-se,
a partir do caso de H.M., que o hipocampo teria um papel importante na
transferência de informações da memória de curto prazo para a memória
de longo prazo (MILNER; CORKIN; TEUBER, 1968). Porém, outro
fato ocorreu: H.M. reteve um tipo diferente de memória, a memória
implícita, dado que ele se saia bem em relação às habilidades motoras após
treinamento.
Essas tarefas relacionadas à memória implícita eram automáticas
e não exigiam o ‘recordar consciente’ e nem capacidades cognitivas
complexas, como as de comparação e avaliação, capacidades relacionadas à
memória explícita. Em outros termos, H.M. podia aprender normalmente
novas habilidades motoras, bem como melhorar seu desempenho em
determinadas tarefas perceptivas (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL,
1997). A partir dessas observações inferiu-se que a memória implícita não
era processada na mesma parte do cérebro que a memória explícita, ou
seja, podem depender de circuitos neuronais distintos.
Apesar de diversas estruturas terem sido removidas em HM, os efeitos
amnésicos relatados foram atribuídos à lesão hipocampal. Atualmente
11
Autores, como por exemplo, Greeneld (2000), concebem que a memória de longo prazo é acompanhada
por um aumento no número de terminais pré-sinápticos, e que, a memória envolve o estabelecimento de novas
associações .
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 127
constatou-se que pacientes com perdas celulares restritas às células
piramidais do campo CA1 do hipocampo, em decorrência de isquemia
cerebral transitória e pacientes com anomalias hipocampais decorrentes
de encefalite viral exibem uma síndrome amnésica similar (CAMPOS;
SANTOS; XAVIER, 1997).
Para Damásio (2000), uma lesão bilateral do hipocampo compromete
o aprendizado de fatos novos.
Outros estudos evidenciam que a memória de curto prazo (short-
term memory ou STM) não é necessária para a memória de longo prazo
12
(long-term memory ou LTM) (ZOLA-MORGAN; SQUIRE; AMARAL,
1986), ou seja, as lesões do lobo temporal medial só interferem com o
armazenamento a longo prazo de novas memórias, como ocorreu com
H.M. quando conservou memória relativamente boa de eventos passados.
Nesse sentido, o hipocampo parece ser apenas um depósito temporário
para a memória de longo prazo.
Alternativamente, concebeu-se que o hipocampo não funcionaria
com o armazenamento de longo prazo da informação, mas poderia atuar
como facilitador que ajuda a armazenar a informação que foi inicialmente
processada pelo córtex ínfero-temporal. Assim, o hipocampo poderia
atuar como uma estação intermediária para a memória de longo prazo ou
como um sistema facilitador que seria essencial para o armazenamento
das memórias em outras regiões cerebrais (KANDEL; SCHWARTZ;
JESSELL, 1997; RAMACHANDRAN; BLAKESLEE, 2002).
Para Mora (1994) as memórias de curta e de longa duração obedecem
a mecanismos neuronais diferentes, de forma que a consolidação não
estaria restrita a certa área cerebral, mas amplamente distribuída. Pode
presumir-se, por um lado, que um mesmo sistema poderia armazenar
diferentes informações e, por outro lado, que a mesma informação poderia
ser guardada em diferentes sistemas neuronais. Esse seria um dos motivos
pelos quais os estudos dos efeitos de lesões cerebrais no aprendizado não
12
A memória de curto prazo se desenvolve durante, ou imediatamente após o processamento da informação. Sua
duração é, geralmente, curta, pois vai de segundos a minutos. Esse tipo de memória possui capacidade limitada,
encontrando-se intacta nas situações de amnésia. Já a memória de longo prazo requer várias horas, ou dias, para
desenvolver-se completamente e dura toda a vida. É o tipo que mais se compromete na amnésia (MORA, 1994).
Edvaldo Soares
128 |
permitiram obter resultados positivos na procura da localização cerebral
dos traços de memória.
Atualmente sugere-se que a memória dos animais superiores
dependeria de vários sistemas cerebrais, que desempenhariam diferentes
papéis durante o aprendizado. Esses sistemas poderiam existir separadamente
ou agir em conjunto ou mesclados. Trata-se então de sistemas múltiplos.
De modo que uma lesão discreta poderia interromper só uma parte de
um ou mais sistemas, que poderiam continuar funcionando, embora não
perfeitamente.
Greeneld (2000) acredita que a memória de curto prazo e a de longo
prazo parecem não trabalhar independentemente; ou seja, em paralelo,
mas sim em série. Segundo ela, a memória de curto prazo opera para servir
à memória de longo prazo. Entretanto, as pesquisas acerca da relação entre
hipocampo e memória ainda não permitem descrever com precisão como
o hipocampo e o tálamo medial podem trabalhar durante um período de
anos, em conjunção com o córtex, para xar memórias que acabarão por
não depender mais da integridade dessas estruturas corticais.
Kandel, Schwartz e Jessell, (1997) acreditam que, para muitos
tipos distintos de aprendizado, a memória não ca localizada em uma
só estrutura cerebral. Porém, segundo eles, contrariamente a Greeneld
(2000), o processamento em paralelo poderia explicar, em parte, por que
uma lesão limitada muitas vezes não elimina o aprendizado especíco,
mesmo para uma simples tarefa implícita e, ainda que, mesmo após uma
lesão, alguns componentes da informação armazenada são conservados.
A partir de uma abordagem neuroquímica, Izquierdo (1993) tem
demonstrado que as benzodiazepinas são liberadas em situações que
induzem memória em ratos, ou seja, em situações de aprendizado. As
benzodiazepinas são liberadas pelo septo, amígdala e hipocampo. Ao injetar
umazenil, antagonista das benzodiazepinas, notou-se que a melhoria de
certas memórias dependia do local do cérebro onde se injetava a droga.
Por exemplo, no hipocampo esse antagonista melhorava certo tipo de
memória, o que não ocorria no septo e na amígdala. Dessa experiência
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 129
concluiu-se que há memórias formadas por uma só dessas estruturas e
outras que requerem ação coordenada das três
13
.
Ainda segundo Izquierdo (1993), os estímulos que formam a
memória são visuais, tácteis, auditivos e outros. Em algum momento,
os impulsos sensoriais chegam às células do septo, da amígdala, do
hipocampo e do córtex entorrinal, nas quais há células que respondem aos
estímulos visuais; outras; aos auditivos; e outras, aos tácteis. O interessante
é que não há duas células idênticas em cada uma dessas estruturas para
que respondam a estímulos sensoriais diferentes; porém, nessas regiões há
células capazes de responder a todos os estímulos sensoriais possíveis. A
hipótese é que a nossa memória seja formada por vários tipos de estímulos
sensoriais, que atuam nessas quatro estruturas e desencadeiam potenciais
de longa duração.
Além dos sistemas de memória de curto e de longo prazo, de memória
implícita e explícita, admite-se ainda outros sistemas de memória. Vários
autores, como por exemplo, Cohen (1984), Squire (1992) e Squire e Zola-
Morgan (1991) propõem a distinção entre memória declarativa (consciente
e explícita) e memória não declarativa (ou processual, ou ainda implícita)
14
. Ambas são consideradas sistemas de memória de longa duração (LTM).
Mais tarde, esse tipo de memória foi associada por Squire e Knowlton
(1995) a diferentes estruturas do sistema nervoso. A memória declarativa é
associada às estruturas do lobo temporal medial e diencéfalo, habilidades e
hábitos ao estriado, a pré-ativação ao neocórtex, condicionamento clássico
simples relacionado à amígdala nas respostas emocionais e ao cerebelo nas
13
Segundo Izquierdo (1993), a amígdala processa informação aversiva e/ou de alerta; o hipocampo, informação
espacial; o septo, dos dois tipos, além de outras memórias curtas; o córtex entorrinal, todas. O papel de cada
uma dessas estruturas na memória foi investigado pela injeção de agonistas e antagonistas de neurotransmissores.
14
Memória Declarativa: refere-se à retenção de experiências sobre fatos e eventos do passado. Ou seja, o
indivíduo tem acesso consciente ao conteúdo da informação, sendo adequada para o arquivamento de
associações arbitrárias após uma única experiência. Esta memória seria exível e prontamente aplicável a novos
contextos e é o tipo de memória prejudicada em pacientes amnésicos. A memória declarativa é dividida em :
memória para fatos (ou semântica); memória para eventos (ou episódica), sendo esta última autobiográca.
Memória Não-Declarativa: não há possibilidade de acesso consciente ao conteúdo desse tipo de memória, que
seria evidenciável apenas por meio do desempenho. As informações seria adquiridas gradualmente ao longo de
diversas experiências, estando fortemente ligada à situação de aquisição original – seria portanto, inexível e
pouco acessível a outros sistemas. A memória não-declarativa é dividida em: hábitos; habilidades; pré-ativação;
condicionamento clássico simples; aprendizagem não associativa (incluídos aqui habituação e sensibilização)
(CAMPOS; SANTOS; XAVIER, 1997).
Edvaldo Soares
130 |
respostas da musculatura esquelética, e aprendizagem não associativa das
vias reexas (CAMPOS; SANTOS; XAVIER, 1997).
Autores como Honig (1978), Olton, Becker e Handeman (1979)
trabalham com o conceito de memória operacional, que segundo eles
seria um tipo de memória que codica o contexto temporal especíco
da informação e que pode ser ‘apagada’ depois de ter sido utilizada. De
acordo com Fortaleza (1996), a memória operacional, que depende de um
contexto temporal especíco e é mantida sob processamento em função de
sua relevância, difere da memória de curto prazo, na qual o processamento
de informação decai com o tempo.
Alguns dados têm fundamentado a hipótese de que o hipocampo é
a estrutura principal envolvida no processo de aprendizagem de situações
complexas. Winocur (1980) sugeriu que animais com lesão hipocampal
são decientes tanto nas funções de aprendizagem como nas de memória
por perderem a habilidade de processar informações transmitidas por dicas
ambientais, em especial dicas ambíguas, que exigem maior demanda das
funções de processamento de informações.
O’Keefe e Nadel (1978) e Nadel e MacDonald (1980) acreditam
que o hipocampo esteja envolvido no mapeamento cognitivo, ou seja,
que é essencial para o aprendizado da localização espacial (PRIBRAM,
1991). Conforme O’Keefe e Nadel (1978) e Nadel e MacDonald (1978),
a formação de mapas cognitivos se daria pela identicação das relações
espaciais entre os estímulos dentro do contexto ambiental.
De acordo com essa teoria, a destruição do hipocampo eliminaria o
uso da informação contextual, forçando o animal a recorrer a estratégias
menos ecientes, envolvendo associações entre estímulos especícos e
respostas. Segundo Costa (1997), o conceito de mapa cognitivo refere-se à
capacidade que organismo tem para estabelecer representações, não apenas
das pistas associadas a um local, mas também, estabelecer representações
das posições relativas de locais (pontos) do meio ambiente e utilizar tais
representações para se orientar no ambiente.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 131
Contrariamente à teoria do mapa cognitivo, Winocur e Olds (1978)
realizaram experimentos que sugerem que os animais lesados no hipocampo
são mais inuenciados pelo contexto do que os animais normais.
Nesse estudo, observaram que lesões bilaterais no hipocampo por
meio de técnicas eletrolíticas acarretaram prejuízos em tarefas de reversão
de aprendizagem. Mais tarde, Winocur e Gilbert (1984), também por
meio de lesões no hipocampo bilateral e no córtex, sugeriram que houve
prejuízos na aprendizagem de discriminação visual, tátil e na reversão
de aprendizagem. De acordo com Winocur (1980), animais com lesões
hipocampais são decientes tanto nas funções de aprendizagem como nas
de memória, em decorrência da inabilidade em processar informações
transmitidas por dicas ambientais, em especial dicas ambíguas que exigem
maior processamento de informações.
Estudos sobre o papel do giro denteado do hipocampo, em especial
das células granulares, em relação à aprendizagem e memória têm sido
realizados buscando compreender como mudanças no sistema podem
causar mudanças funcionais. Entre esses estudos, podemos destacar os
de Madronal e colaboradores (2016); Kheirbek e colaboradores (2013) e,
no Brasil, os estudos de Moreira (1996), Fortaleza (1996), Costa (1997),
Fortaleza e Bueno (2002) e Costa, Xavier e Bueno (1995).
Existem, também, evidências de que mudanças no cérebro podem
ser induzidas por treinamento ou por experiência (FERRARI et al., 2001).
Changeux (1996) arma que nosso aparelho cerebral possui exibilidade
e capacidade de reorganização. Nesse sentido, Morton e Chiel (1994)
armam que a reorganização é uma propriedade fundamental de diferentes
arquiteturas neurais. Para Piaget (2000), o organismo possui uma estrutura
permanente, mas pode se modicar sob inuência do meio, porém sem
jamais destruir-se enquanto estrutura de conjunto. De acordo com Kovàcs
(1997), as mudanças adaptativas de comportamento, que genericamente
são referidas como plasticidade, reetem uma habilidade intrínseca do
sistema nervoso de se reorganizar, até certo ponto, com a nalidade de se
adaptar às necessidades impostas pelo ambiente.
Edvaldo Soares
132 |
Segundo Maturana e Varela (1997, p. 194), “o sistema nervoso
está em contínua mudança estrutural.”, a qual pode ser traduzida nos
seguintes termos:
O sistema nervoso, ao participar por meio dos órgãos sensoriais e
efetores dos domínios de interação do organismo que selecionam a
mudança estrutural deste, participa da deriva estrutural do organismo
com conservação de sua adaptação (MATURANA; VARELA, 1997,
p. 194).
Ainda em relação à plasticidade do sistema, Maturana e Varela
(1997, p. 196), advertem que esta só ocorre porque os neurônios não estão
interligados como se fossem “cabos com suas respectivas tomadas”.
Conforme Rosenzweig (1996), o conceito de plasticidade em relação
ao comportamento não é algo novo e tem aparecido de várias maneiras nos
últimos dois séculos. Porém, só mais tarde é que foi possível esclarecer e
replicar algumas evidências de que o treinamento e a experiência produzem
mudanças neuroquímicas e neuroanatômicas. Também surgiram evidências
de que as mudanças neurais são necessárias à consolidação das memórias
de longo prazo
15
. Rosenzweig, Krech e Bennett (1958) propuseram que
a busca de ‘mudanças’ fosse feita a partir de uma análise neuroquímica
de regiões especícas do cérebro. Tal aproximação poderia ser capaz de
permitir a mensuração de pequenas mudanças.
Mais tarde, Rosenzweig e seus colaboradores, realizando experimentos
com ratos, com a nalidade de examinar possíveis relações entre diferenças
químicas individuais no cérebro e habilidade para resolução de problemas,
descobriram correlações signicantes entre níveis de atividades, habilidade
para a resolução de problemas espaciais e a enzima acetilcolinesterase
(AchE) no córtex. Conclui-se que o treinamento pode alterar a atividade
da AchE no córtex e ainda aumentar o peso da região do neocórtex
(ROSENZWEIG, 1996).
15
Este estudo de Rosenzweig revisa seletivamente alguns estudos e aplicações, com especial interesse nos estudos
de Hebb.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 133
Também outros experimentos indicaram que: a) o treinamento
e experiências diferenciais podem produzir mudanças mensuráveis no
cérebro; b) a aprendizagem ou as experiências enriquecidas causaram
mudanças em regiões corticais especícas e não crescimento indiferenciado
e, c) experiências induziram mudanças no córtex occipital, sendo relatados
aumento na espessura cortical e na extensão e ramicação de dendritos.
(ROSENZWEIG, 1996; GLOBUS; ROSENZWEIG; BENNETT;
DIAMOND, 1973).
Conforme Rosenzweig (1996), inicialmente experimentos revelaram
que experiências induzem efeitos cerebrais signicantes somente em um
curto período da vida. Mais tarde, descobriu-se que estes efeitos poderiam
ser induzidos em ratos adultos em até 285 dias. Também cou demonstrado
que curtas sessões podem processar modicações, de modo a evidenciar
que a plasticidade do sistema nervoso desenvolve-se rapidamente durante
toda a vida. Mesmo em áreas consideradas mais determinadas, foram
identicadas algumas modicações. Por exemplo, Baer e Singer (1986)
relataram que a plasticidade do córtex visual adulto pode ser restaurada
mediante a infusão de acetilcolina e noradrenalina.
Renner e Rosenzweig (1987) demonstraram que condições
enriquecidas (EC) melhoram a habilidade para aprender e para resolver
problemas do que em condições isoladas (IC)
16
. Rosenzweig (1996)
acredita que experiências enriquecidas e o treinamento evocam uma cascata
de efeitos neuroquímicos que causam mudanças plásticas no cérebro. Isso
ocorreria porque as experiências enriquecidas aumentam a velocidade das
sínteses proteicas e a quantidade de proteínas no córtex. Também de acordo
com Rosenzweig (1996) existem evidências de que a aprendizagem pode
induzir processos neuroquímicos e plasticidade neural que são necessários
para a memória de longo prazo; ou seja, processos neuroquímicos e outros
processos são necessários para o armazenamento de memória de durações
variadas. A aprendizagem pode induzir plasticidade neuroanatômica
16
Condições Enriquecidas (EC): por exemplo, uma grade contendo um grupo de 10 ou 12 animais e uma
variedade de objetos estimuladores, os quais são mudados diariamente; Condição Social (SC): por exemplo, três
animais em gaiola padrão e Condição Isolada (IC): por exemplo, um animal em gaiola padrão.
Edvaldo Soares
134 |
necessária para o armazenamento de memória de longo prazo. Porém
outros fatores estariam envolvidos.
Por meio de outra abordagem, Held (1970) estudando a plasticidade
nos sistemas sensório-motores por meio de distorções visuais induzidas
experimentalmente, sugeriu a existência de um ajustamento do sistema
nervoso central ao crescimento corporal. A vantagem desse método foi o
de permitir o estudo do ajustamento do cérebro diante de modicações
controladas na estimulação sensorial, sem envolver uma danicação do
próprio sistema nervoso. Esses estudos mostraram que o comportamento
tem conseqüências sensoriais que reestimulam o cérebro e que o cérebro
necessita de realimentação sensorial, resultante de movimentos ativos (e
não passivos) para ajustar-se.
Para Berne e Levy (1990) o funcionamento integrativo do sistema
nervoso é baseado na conectividade entre os neurônios. Essas conexões
são em grande parte determinadas geneticamente e, uma vez estabelecidas,
permanecem estáveis. Porém em certas circunstâncias algumas conexões
sinápticas podem ser modicadas. Segundo eles são três as principais
classes de alterações plásticas: as modicações pós-natais da conectividade
que ocorrem em consequência de interações com o ambiente; as alterações
na conectividade que ocorrem em consequência de lesão cerebral e a
plasticidade durante o aprendizado ou experiência.
Kandel, Schwartz e Jessell (1997) concordam que as conexões
entre as células podem ser alteradas pela atividade e pelo aprendizado.
Ainda segundo eles, estudos mostraram que os mapas corticais diferem
sistematicamente entre indivíduos de uma maneira que reete seu uso,
de forma que a prática fortica e expande a representação cortical. O
uso intenso ou o desuso trazem alterações dramáticas dessas conexões.
De forma semelhante, Damásio (1996) arma que as representações
neurais são modicações biológicas criadas por aprendizagem em
circuitos de neurônios.
Alguns autores têm sugerido que o tecido nervoso tem capacidade
de desenvolver uma reação adaptativa em resposta a uma lesão. Isso decorre
do fato de que, potencialmente, as células nervosas têm a capacidade de
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 135
regenerar-se ou mesmo de desempenhar funções antes realizadas pelas
células lesadas (STEIN; BRAILOWSKY; WILL, 1995).
loCalIzação de Funções MentaIs
A questão da localização de funções mentais é colocada por Kandel,
Schwartz e Jessell (1997, p. 5) nos seguintes termos:
1) Será que os processos mentais estão localizados em regiões especícas
do cérebro, ou eles representam uma propriedade coletiva e emergente
de todo o cérebro?
2) Se diversos processos mentais forem localizados em diferentes regiões
cerebrais, quais as regras que relacionam a anatomia e a siologia de
uma região à sua participação especíca na percepção, no pensamento
ou no movimento?
3) Poderiam essas regras ser mais bem entendidas se se examinasse a
região como um todo, ou pelo estudo de suas células neurais individuais?
Apesar dos esforços dos globalistas ou holistas, observa-se que
a posição antilocalizacionista tem perdido força, mesmo encontrando
simpatizantes como Eccles e Koch
17
.
Na atualidade, alguns pesquisadores ainda defendem, a partir de
experimentações, o modelo frenológico, segundo o qual, cada região do
cérebro teria uma função especial e isolada. Entre esses autores destacamos
os integrantes do chamado Groupe d’Imagerie Neurofonctionnelle, o qual
defende, a partir de estudos com neuroimagem funcional, a tese de que as
funções cognitivas, independentemente de sua complexidade, são resultado
da atividade de regiões isoladas do cérebro, as quais podem relacionar-se em
rede
18
. Conforme os representantes desse grupo, uma área cerebral até pode
17
Eccles (1979) considera o sistema nervoso como um todo que se comunica eletricamente e quimicamente,
mediante o transporte de proteínas especícas e outras macromoléculas e Koch (1997), tem defendido
que o mental estaria representado de forma amplamente distribuída no sistema nervoso central e que não
se pode localizar o mental com precisão em determinadas regiões. Acredita que, de maneira geral, os dados
localizacionistas se referem a processos relativamente simples, enquanto as funções observadas para apoiar a
visão não-localizacionista se referem a processos mais complexos que envolvem sentidos.
18
O Groupe D’Imagerie Neurofonctionnelle tem sua sede na Universidade de Paris-V.
Edvaldo Soares
136 |
ter suas propriedades originais modicadas, levando-se em conta as regiões
com as quais interage, em função do estímulo recebido ou mesmo da tarefa
a ser realizada (MAZOYER; TZOURIO-MAZOYER; HOUDE, 2002).
Contrariamente a este tipo de concepção, Changeux (1996, p. 105),
acredita que, considerando uma análise da siologia celular, “seria absurdo
pensar que o cérebro se divide em compartimentos estanques”.
Para Brodal (1997) a concepção clássica de uma localização funcional
bem denida não pode ser apoiada. Por outro lado, determinadas áreas
corticais estão mais ou menos intimamente relacionadas a algumas
funções. Assim, segundo ele, considerando sob esse aspecto, e levando-se
em consideração as conotações diferentes da palavra ‘função’, parece não
haver real incompatibilidade entre a visão de que o córtex é um mosaico de
unidades, cada um com sua função especíca, e a visão holística do córtex e
funcionamento do cérebro como um todo. Já Lent (2001) considera que os
localizacionistas e os materialistas têm apresentado melhores argumentos.
Uma das teorias mais comentadas em relação ao localizacionismo é a
de Peneld que, na década de 40, elaborou um mapa da representação neural
do corpo no córtex. Esses ‘mapas’ mudariam com a experiência, mostrando
que a plasticidade do córtex permite o desenvolvimento de novas aptidões
(KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 1997; GATTAS, 1993).
Kandel, Schuartz e Jessell (1997) defendem que, por meio de técnicas
de imageamento, é possível visualizar a capacidade de certas estruturas em
desempenhar funções especícas, e por isso, pode-se aceitar a ideia de que
diferentes regiões são especializadas para diferentes funções. Também para
Damásio (1996), a especialização do cérebro é um fato incontestável.
Em relação a essa questão, deve-se salientar que os estudos de
lesões corticais ainda oferecem grande parte dos argumentos em prol do
localizacionismo. Atualmente uma das tendências mais difundidas é aquela
que arma que dentro de qualquer sistema cognitivo há muitos módulos
independentes de processamento de informações.
Essa teoria recebeu o nome de teoria da modularidade. O conceito
de modularidade foi primeiramente proposto por Fodor (1983) e concebe
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 137
que o sistema nervoso é composto por uma série de processadores de
informações, denominados de módulos, os quais funcionam de maneira
independente, o que não signica que não há integração entre a atividade
dos mesmos.
A tendência mais radical dessa corrente recebeu o nome de teoria
da modularidade total e é defendida por Dan Sperber (1994) que,
contrariamente a Fodor (2000), acredita que a mente é modular em toda
sua extensão
19
.
De acordo com Sperber, a modularidade, não apenas da mente, mas
de qualquer mecanismo biológico, pode ser visualizada em cinco níveis:
1) arquitetônico (morfológico); 2) de desenvolvimento (módulos são
abordados como expressões fenotípicas de genes em um meio ambiente);
3) neurológico (veem-se os módulos como dispositivos cerebrais dedicados
que são coadjuvantes de funções cognitivas domínio-especíco e que podem
ser seletivamente ativados e danicados); 4) genético e, 5) evolutivo. Meyer
(2002, p. 15) também defende que o cérebro está organizado em módulos,
que segundo ele “são regiões do córtex que têm uma capacidade funcional
particular, geneticamente transmitida, evidenciada por uma estimulação
do meio ou pela aprendizagem”.
Para Xavier (1993) e para Campos, Santos e Xavier (1997) o sistema
nervoso está organizado de forma modular, de tal forma que cada módulo
mantém conexões diferentes com os outros. O nível de independência no
funcionamento desses módulos parece variar. Por causa de sua organização
modular, lesões em módulos independentes eliminam as funções por
ele desempenhadas e lesões em módulos que cooperam resultam numa
alteração de desempenho dos módulos remanescentes, de modo a minimizar
as deciências. O funcionamento independente, porém cooperativo, entre
os diferentes módulos permite explicar uma experiência de memória única
em indivíduos normais.
Ramachandran e Blakeslee (2002) acreditam que os dois pontos de
vista (modularismo e holismo) não são mutuamente excludentes e que o
19
Fodor (1983) é antimodularista com respeito aos processos cognitivos superiores.
Edvaldo Soares
138 |
cérebro é uma estrutura dinâmica que emprega ambos os ‘modos’ numa
inuência recíproca e complexa. Porém, advertem que:
No estado atual das coisas, uma profusão de provas empíricas apoia
a ideia de que de fato existem partes ou módulos especializados do
cérebro para várias faculdades mentais. Mas o verdadeiro segredo para
entender o cérebro está não somente em deslindar a estrutura e função
de cada módulo, mas em descobrir como interagem uns com os outros
para gerar todo o espectro de habilidades que chamamos natureza
humana (RAMACHANDRAN: BLAKESLEE, 2002, p. 35).
Patologias cerebrais também têm servido de argumento para
demonstrar tanto a plasticidade (neural e comportamental) como
para defender teses localizacionistas. De acordo com Campos, Santos e
Xavier (1997) alguns fenômenos permitem evidenciar que prejuízos
no funcionamento de módulos do sistema nervoso que interferem no
direcionamento da atenção, prejudicam a percepção consciente e que
o sistema nervoso é capaz de gerar congruência a partir de informações
incompletas (ou contrastantes), indicando que o ambiente passa a ser
interpretado com base nas expectativas geradas e com base na memória de
regularidades passadas. Entres esses fenômenos destacam: o fenômeno do
membro fantasma, da visão cega e do cérebro dividido.
Em relação ao membro fantasma, atribuía-se que as sensações do
membro fantasma eram decorrentes de impulsos que entravam na medula
espinhal a partir da cicatriz de tecido nervoso no coto. A remoção da
cicatriz ou a secção dos nervos sensoriais imediatamente acima desta
poderia, segundo essa concepção, aliviar a dor. Porém, experimentos
recentes sugerem que vias aferentes que normalmente ocupam áreas em
torno da representação da mão (áreas que representam a face, o ombro e
o torso superior) se expandem para dentro da área anteriormente ocupada
pelas aferências a partir do membro amputado (RAMACHANDRAN;
BLAKESLEE, 2002). Esse fenômeno recebeu o nome de remapeamento
das sensações referidas.
Observou-se que em todos os pacientes examinados havia ocorrido
pelo menos um mapeamento da representação da mão perdida, e, às
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 139
vezes, até mesmo dois. Tocar uma área da face ou do braço produz uma
sensação tátil associada à mão perdida. Isso ocorre porque a área da
mão no córtex ca adjacente e está submetida ao controle das áreas que
inervam a face do braço.
Assim as sensações referidas seriam esperadas se as entradas a partir
da face e do braço prévias invadem o território cortical anteriormente
ocupado pelas entradas a partir da mão amputada. Em cada um desses
pacientes há uma correspondência precisa, direta, entre um ponto na face
ou no braço e um dedo individual. Também há uma topograa: pontos
adjacentes na face ou no braço que mapeiam em pontos adjacentes da mão
fantasma (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 1997).
Para Ramachandran e Blakeslee (2002), os fantasmas seriam gerados
pela reorganização da imagem corporal no córtex sensorial. Ainda segundo
eles, experimentos com pacientes com a síndrome do membro fantasma
contradizem a teoria de que o cérebro é formado por módulos autônomos.
Também o fenômeno do cérebro dividido é tomado como evidência
para a teoria modular. Pacientes vítimas de epilepsia multifocal intratável
foram submetidos por Roger Sperry a um tratamento cirúrgico que
envolvia a secção do corpo caloso e de outras comissuras cerebrais
20
. O
objetivo era desconectar os dois hemisférios cerebrais de forma a restringir
os ataques do hemisfério que continha o foco epiléptico, diminuindo
assim, o número de surtos (SPERRY, 1964).
O tratamento teve grande sucesso, mas apesar de, aparentemente,
os pacientes não apresentarem alterações detectáveis no temperamento,
personalidade ou inteligência, e fossem, quando em situações sociais
comuns, indistinguíveis de pessoas normais, testes mais especícos
demonstraram uma enorme especialização dos hemisférios cerebrais
(CAMPOS; SANTOS; XAVIER, 1997; KOVÀCS, 1997). Observou-se
20
O corpo caloso é um feixe de bras que conecta ambos os hemisférios cerebrais. Sua secção mostra a capacidade
de desempenhar ações altamente direcionadas, nem sempre dependentes da percepção consciente. A comissura
anterior e a do hipocampo conectam regiões mais antigas do córtex, e são bem menores que o corpo caloso.
São três as comissuras inter-hemisféricas: o corpo caloso, a comissura anterior e a comissura do hipocampo
(CAMPOS; SANTOS; XAVIER, 1997; LENT, 1993).
Edvaldo Soares
140 |
ainda que, nos indivíduos com o ‘cérebro dividido’, os hemisférios tinham
diculdade de comunicar-se.
De acordo com Sperry (1968, 1974) uma vez separados, os dois
hemisférios parecem capazes de funcionar fora do domínio consciente um
do outro. Assim, cada hemisfério poderia aprender, lembrar, ter emoções
e conduzir planos de atividades independentemente
21
. Gazzaniga (1967)
também observou, a princípio, que a separação dos hemisférios criava duas
esferas independentes de consciência dentro de um único organismo. Mais
tarde, porém, esse pressuposto foi modicado pelo próprio Gazzaniga
(1995) que passa a defender a ideia de que há módulos interpretadores
localizados no hemisfério esquerdo, responsável pela percepção consciente
e pela formação de opiniões.
Os dados obtidos a partir dos estudos de Sperry e de Gazzaniga
apontam também para a assimetria funcional dos hemisférios. Gazzaniga,
Bogen e Sperry (1965), estudando pacientes com uma transecção completa
das comissuras, concluíram que as atividades envolvidas com a fala e a
escrita foram bem preservadas, mas apenas na medida em que podiam ser
governadas pelo hemisfério esquerdo. Num estudo posterior, Gazzaniga
e Sperry (1967) encontraram evidência de que a informação sensitiva,
uma vez penetrada no hemisfério esquerdo, poderia ser manifestada, sem
diculdade, por meio da fala e da escrita. Porém, quando isso ocorria no
hemisfério direito, os pacientes eram totalmente incapazes de transmitir
relatos apurados, falados ou escritos, mesmo para os tipos mais simples
de informação sensitiva. Por exemplo, eram incapazes de citar o nome
dos objetos apalpados com a mão esquerda. Esses estudos conrmariam
conclusões obtidas mediante os métodos de estimulação e ablação do
lobo parietal, de que a expressão verbal é matéria quase exclusiva do
hemisfério esquerdo.
Apesar de haver acordo entre os estudiosos do assunto de que a secção
do corpo caloso não acarreta alterações no intelecto, comportamento, ou
nas emoções, vericou-se que pacientes submetidos a comissurotomia
21
De acordo com Engelmann (2001), Sperry queria introduzir uma consciência em interação com o cérebro. A
solução para a interação seria a emergência.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 141
pareciam demonstrar acentuadas e persistentes diculdades com a memória
a curto prazo (BRODAL, 1997).
Kandel e Schwartz e Jessell (1997) armam que estudos sobre a
afasia e agnosia têm demonstrado que a primeira pode ser induzida por
lesão no lobo parietal posterior dominante (geralmente o esquerdo) e que
a segunda geralmente decorre de lesões no lobo parietal posterior não
dominante (geralmente o direito). A agnosia se manifesta como um décit
da imagem corporal e da percepção das relações espaciais. Os pacientes
perdem a percepção consciente dos aspectos espaciais de todas as entradas
sensoriais a partir do lado esquerdo do corpo, bem como do espaço externo.
Apesar de estarem com suas sensações somáticas intactas, os pacientes
ignoram a metade do corpo, deixando de vestir, tirar a roupa, lavar o lado
afetado (síndrome de negligência). Os pacientes podem mesmo negar
ou desconhecer um braço ou uma perna afetados ou negar a existência
de qualquer paralisia nesse membro (BAUGH; DESANGHERE;
MAROTTA, 2016).
Em relação à afasia considera-se que a expressão da linguagem
estaria representada no lobo frontal do hemisfério esquerdo, enquanto a
compreensão da linguagem estaria representada na parte posterior do lobo
temporal desse mesmo hemisfério. Recentemente esse quadro se modicou,
pois se encontraram pacientes com alterações sutis da linguagem, como
a expressão de aspectos emocionais que a acompanham, relacionados à
expressão facial e à gesticulação que confere afetividade à fala. Os cérebros
desses pacientes apresentaram lesões restritas em regiões semelhantes as
descritas por Broca, só que no hemisfério direito (LENT, 2001).
Outros estudos têm revelado, conforme observam Kandel, Schwartz e
Jessell, (1997) que lesões em diferentes partes do córtex cerebral perturbam
funções especícas da linguagem. Por exemplo, alguns pacientes afásicos
têm diculdade de compreensão da fala e da escrita (afasia de Wernicke),
outros têm diculdade de expressar os pensamentos por meio da língua
escrita ou falada (afasia de Broca). Na prática os sintomas de um paciente
nem sempre caem exclusivamente em outra categoria, visto que a lesão
cortical nem sempre é restrita a uma região funcional.
Edvaldo Soares
142 |
Segundo Lent (2001), os estudos realizados sobre o efeito de lesões
sobre a linguagem permitiram concluir que os vários componentes dessa
função estão representados em regiões cerebrais circunscritas. Porém,
a lógica desses trabalhos admitia que o desaparecimento de uma região
cerebral produzisse um décit funcional, de tal forma que essa região
seria a ‘sede’ dessa função. Porém, de acordo com Lent (2001), essa lógica
deixava de considerar que após uma lesão o cérebro poderia se reorganizar
de algum modo, com outras regiões participando da função. Dessa forma,
o décit nal poderia não reetir exatamente a pura falta da região lesada,
mas sim o resultado da reorganização funcional do sistema.
Essa dúvida foi dirimida com o advento das técnicas de imagem
funcional computadorizada do sistema nervoso, as quais permitiram
concluir em favor da localização cerebral das funções neurais, mesmo as
mais complexas
22
.
[...] o sistema nervoso funciona como um mosaico de regiões, cada uma
encarregada de realizar uma determinada função. Isso não signica,
é claro, que essas regiões operem isoladamente. Ao contrário, o grau
de interação entre elas é altíssimo, pois o número e a variedade das
conexões neurais é muito grande. É natural que seja assim, pois não
há função mental pura, mas uma combinação muito complexa de
ações siológicas e psicológicas em cada ato que os indivíduos realizam
(LENT, 2001, p. 22).
No tocante ao fenômeno da visão cega (blindsight), é consenso que
pacientes com lesões em uma dada região do córtex visual estriado negam
a percepção de estímulos visuais como imagens de objetos ou luzes, sempre
que essas imagens são projetadas nas regiões da retina correspondentes à
porção lesada do córtex.
De acordo com Meyer (2002), a visão é ‘amputada’ pela metade por
uma mancha negra que recebeu a denominação de ‘escotoma’. Conforme
Campos, Santos e Xavier (1997) as projeções da retina para o córtex
visual primário são topogracamente organizadas de modo que uma
22
A localização funcional pode ser demonstrada em pessoas normais em vida, por meio da ressonância magnética
funcional. Essa técnica de imagem mostra as regiões mais ativas do cérebro, quando o indivíduo é estimulado ou
executa uma tarefa especíca (LENT, 2001, p. 22).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 143
determinada região da retina corresponde uma região do córtex estriado.
Porém, mais tarde observou-se que a cegueira não era absoluta e que os
pacientes mantinham a capacidade de discriminar algumas características
do estímulo apresentado. Segundo Meyer (2002), a metade cega do campo
visual não vê mais, mas permanece sensível à uma ‘luz branca e forte’, o
que poderia sugerir um mecanismo visual inconsciente. O interessante é
que quando o estímulo era apresentado em situações que incluíam escolhas
induzidas (ou seja, os pacientes eram instruídos a apresentar uma resposta),
esses apresentavam respostas adequadas para apontar o objeto real,
embora negassem a presença de qualquer objeto no campo de visão. Os
movimentos eram precisos e adequados ao objeto. Mais interessante ainda
é que tudo é realizado sem que o paciente tenha conhecimento consciente
de sua ocorrência e, quando informado de seu sucesso, atribuem o seu bom
desempenho à ‘sorte’.
Para Campos, Santos e Xavier (1997) esses resultados indicam que
a informação visual pode controlar o comportamento sem que o paciente
tenha sensação consciente desse controle. Conforme Meyer (2002, p. 77)
o fenômeno da visão cega sugere que “ao lado conhecimento explícito, há
lugar para um conhecimento implícito [...], uma tomada de consciência
não intencional do meio ambiente”.
No tocante à percepção, Kandel, Schwartz, Jessell (1997), têm
defendido que os diferentes modos de interação com o mundo são
processados em paralelo por diferentes sistemas sensoriais. Para eles, de
momento a momento, um uxo constante de informações é editado em um
contínuo aparentemente ininterrupto de percepções unicadas, de forma
tal que a aparência de nossas percepções como imagens diretas e precisas
do mundo é uma ilusão. De acordo com Meyer (2002, p. 78), “os objetos
não nos são dados como tais, são reconhecidos e reconstruídos por um
cérebro dotado de capacidades de análise, de síntese e de hierarquização.
Não é o olho, mas sim o cérebro que vê.
Para Ramachandran e Blakeslee (2002), a percepção envolve muito
mais do que a reprodução de uma imagem no cérebro. Todo ato de
percepção envolve um julgamento do cérebro. Ou seja, é o cérebro que
confere unidade às nossas diferentes percepções, impondo uma unidade
Edvaldo Soares
144 |
ao funcionamento de suas diferentes partes ou módulos. Também Piaget
(2000, p. 13) observou que “o fato essencial de que convém partir é que
nenhum conhecimento, mesmo perceptivo, constitui uma simples cópia
do real, porque contém um processo de assimilação a estruturas anteriores”.
Talvez uma evidência para essa conclusão possa ser encontrada no
fenômeno do chamado ponto cego
23
. Segundo Ramachandran (1992)
e Gattas (1993) há uma região da retina denominado disco óptico
(ponto cego) que não possui receptores sensoriais, sendo portanto um
ponto insensível à luz. Mesmo ao fecharmos os olhos não percebemos o
‘buraco’ ou descontinuidade na cena visual. Isso se deve ao ‘fenômeno de
completamento’ perceptual, mediante o qual o cérebro completa a imagem
a partir da informação proveniente das regiões retinianas próximas às
regiões cegas.
Esse processo de completamento, segundo Shallice (1990), seria feito
automaticamente pelo córtex durante a percepção. A percepção compara
a informação neural originária em nossa retina com representações neurais
previamente aprendidas, trazendo essas representações para um nível de
consciência. Nesse processo, as imagens parciais são reconstruídas e a
representação neural resultante é completa (GATTAS et al., 1990). Ou
seja, o sistema nervoso preenche o espaço com o padrão mais provável e
coerente, dadas as informações que está recebendo das células receptoras
que rodeiam a região insensível
24
. Similarmente, a representação de um
objeto é construída mesmo diante de uma imagem parcial ou deteriorada do
mesmo. Meyer (2002, p. 96) observa que, nesse processo, estão envolvidas
também as experiências anteriores. Nesse sentido, defende que as sensações
são “dados nais de percepção condicionados pelo aprendizado, pela
experiência anterior ou por uma nova inclinação”.
23
A existência do ‘ponto cego’ no campo visual foi demonstrada pelo físico Edme Mariotte em 1666.
Mariotte observou ao dissecar um olho humano que o disco óptico, ao contrário de outras partes da retina,
não era sensível à luz. Disso deduziu que o olho deveria ser cego em uma pequena porção do campo visual.
(RAMACHANDRAN; BLACKESLEE, 2002). Segundo Meyer (2002, p. 75), “um círculo de papel branco de
cerca de 11cm, colocado sobre um fundo preto, desaparece do campo visual quando, a uma distância de 3,25
m, tamos, fechando um olho, um ponto situado a cerca de 65 cm do lado nasal e um pouco acima da linha
horizontal.
24
Sobre este tema ver também os estudos de RAMACHANDRAN, 1992.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 145
Finalizando este capítulo podemos, a partir dos estudos e modelos
descritos, chegar a algumas conclusões. A primeira seria a de que a
função não é indiferente ao substrato. Ou seja, se mudarmos a função,
mudamos o substrato e vice versa. Essas mudanças não podem ser
entendidas independentemente da relação do organismo com o meio.
Em segundo lugar, há fortes indícios de que as funções decorrem do
funcionamento integrado de módulos; ou seja, a localização não pode ser
entendida a partir de um modelo frenológico, segundo o qual os ‘órgãos
funcionam isoladamente. Nesse sentido, o determinismo estrito parece
absurdo, considerando que o sistema nervoso parece funcionar de forma
dinâmica; ou seja, se autoregulando e se reorganizando em função de sua
relação com o meio.
A partir dessas conclusões, pode-se armar que esses dados
conrmam as críticas de Merleau-Ponty e a sua pertinência. Também
indicam que as neurociências, têm, com seu progresso, dado conta de
muitas questões colocadas por Merleau-Ponty. Porém, apesar dos avanços
nas neurociências, algumas questões e diculdades ainda se apresentam e
servem como ponto de partida para a reexão losóca.
146 |
| 147
Capítulo V
C  F  M
Apesar dos avanços nas neurociências, algumas questões ainda se
apresentam e servem como ponto de partida para a reexão losóca.
Entre as várias diculdades que ainda marcam as neurociências, Teixeira
(2000, p. 16) lembra que:
[...] o grande desao que a neurociência ainda enfrenta é a diculdade
(ou será uma impossibilidade?) de relacionar o que ocorre no cérebro
com aquilo que ocorre na mente, ou seja, de encontrar algum tipo de
tradução entre sinais elétricos das células cerebrais e aquilo que percebo
ou sinto como sendo meus pensamentos.
A Filosoa, em especial a chamada ‘Filosoa da Mente’, tem
acompanhado os avanços, questões e diculdades decorrentes do
desenvolvimento das neurociências
1
. Além das neurociências, conforme
Teixeira (1992, p. 116), a Inteligência Articial (IA) também tem levado
à abertura de um “leque de novas perspectivas para o tratamento de
problemas losócos tradicionais realizando uma espécie de triangulação
progressiva entre Filosoa, Psicologia e Ciência da Computação”.
Entre os várias diculdades que ainda marcam as neurociências, por exemplo, Teixeira (2000, p. 16) lembra
que: “o grande desao que a neurociência ainda enfrenta é a diculdade (ou será uma impossibilidade?) de
relacionar o que ocorre no cérebro com aquilo que ocorre na mente”.
Edvaldo Soares
148 |
Esses problemas, relacionados aos desenvolvimentos, tanto das
neurociências como da Inteligência Articial foram discutidos por vários
lósofos, como por exemplo Daniel Dennett, David Chalmers, John
Searle, Paul Churchland, Patrícia Churchland, omas Nagel, Humberto
Maturana e Francisco Varela. Nosso objetivo neste capítulo é apresentar
algumas das atuais propostas em Filosoa da Mente para que possamos,
mais tarde, avaliar até que ponto há um avanço em relação às críticas e à
solução apresentada por Merleau-Ponty.
dualIsMos e reduCIonIsMos
Em termos de Filosoa da Mente ainda hoje se destacam duas
tendências: o dualismo e o monismo. Já denimos na primeira parte desta
obra os dualistas como aqueles que acreditam na existência de duas espécies
diferentes de fenômenos no mundo: mentes e corpos. Porém, o problema
do dualismo não é só conceber duas substâncias distintas, mas também
procurar uma marca distintiva do mental que leve a acreditar que ele não
apenas é diferente, mas irreconciliável com o físico (TEIXEIRA, 2000). A
concepção dualista não é unívoca. Em relação a ela, existem duas posições
diferentes, as quais são denominadas de dualismo de substância e dualismo
de propriedade
2
. Porém, ambas as formas de dualismo compartilham a ideia
de que as duas propriedades, no caso do dualismo de propriedades ou, as
duas substâncias, no caso do dualismo de substância, são exclusivas.
Outra característica, encontrada anteriormente em pensadores como
Cuvillier (1923/1953) e Bergson (1939/1990), e comum às duas vertentes
decorre do fato de ambas insistem na irredutibilidade do mental ao físico.
O dualismo de substância é a concepção de que há realmente dois tipos diferentes de coisas no universo, ou
seja, os objetos materiais e os objetos mentais ou imateriais. Descartes foi o defensor mais famoso dessa posição
e, por isso, muitas vezes ela é denominada de ‘dualismo cartesiano’. Já o dualismo de propriedade concebe a
existência dois tipos de propriedades das coisas: propriedades físicas e propriedades mentais, ou seja, os termos
mental’ e ‘físico’ designam diferentes espécies de propriedades ou características de uma mesma substância
(SEARLE, 1998; 2000; SMITH, 1995). Para Teixeira (1992, p. 119), “a má história da Filosoa tende a ver o
cartesianismo como um sistema obsoleto – um mausoléu do dualismo que já teria cumprido seu papel histórico
e que agora precisa ir para o olvido, juntamente com o problema das relações mente-corpo. Infelizmente não é
o cartesianismo que é obsoleto ou equivocado e sim a interpretação que dele se fez como se de sua metafísica se
pudesse derivar a separação entre duas substâncias”.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 149
Para os atuais dualistas, o fato de o cérebro ser formado por bilhões
de neurônios designa uma propriedade física, ao passo que a capacidade
de se recordar de algo passado designa uma propriedade mental. Nesse
sentido, Nagel (1965), partindo do princípio de que os estados mentais são
uma propriedade especial, rejeita o sicalismo, ao armar que o mental não
pode ser descrito em termos físicos.
Muitas vezes os dualistas tentam explicar a interação entre corpo e
mente armando que é o cérebro que produz os estados subjetivos, mas
esses nunca poderiam ser integralmente mapeados em relação a estados
cerebrais. Porém, apesar de admitirem que alterações físicas no cérebro
poderiam resultar em alterações na mente, os dualistas de propriedade não
acreditam na possibilidade de se encontrar uma interpretação física dos
estados subjetivos e conscientes. Por exemplo, Nagel (1989), defendendo
o dualismo, argumenta que alguns estados mentais, por serem subjetivos,
não podem ser descritos a partir de um vocabulário sicalista, o qual é
intersubjetivo; ou seja, seriam irredutíveis à imagem cientíca do mundo.
Nesse sentido, os estados subjetivos não poderiam ser descritos, ou seja,
são inescrutáveis
3
.
Chalmers (1996a) também aceita o dualismo de propriedades. Ele
sugere que uma teoria da consciência deve tomar a noção de experiência
consciente como sendo um elemento básico; ou seja, consciência e experiência
subjetiva devem ser tomadas como elementos fundamentais de qualquer
teoria da mente; essas devem ser pontos de partida e não de chegada.
Para Chalmers (1996a), o termo consciência se refere a vários tipos
de fenômenos, tais como: discriminação, categorização e reação a estímulos
ambientais; integração de informações; capacidade de relatar a ocorrência
de estados mentais; habilidade de um sistema para acessar seus próprios
estados internos e controle deliberado do comportamento entre outros.
Esses fenômenos constituem, segundo Chalmers (1995), os aspectos
funcionais da experiência consciente. Isso signica que eles podem vir a ser
Teixeira (2000, p. 97) apresenta uma crítica interessante: se todas as experiências forem subjetivamente
intransponíveis e determinadas por um ponto de vista único, um médico seria incapaz de diagnosticar uma
hepatite sem ter anteriormente sofrido esta doença.
Edvaldo Soares
150 |
explicados cienticamente, como por exemplo, por meio de um modelo
computacional ou mediante a descoberta de mecanismos neurais
4
.
Contrariamente às teses dualistas apresenta-se o chamado monismo
materialista. Essa tendência sustenta que estados subjetivos nada mais são
do que um tipo de manifestação do mundo físico, de tal forma que o mental
pode ser reduzido ao físico (HEIL, 1998). Entre as tendências que seguem
o monismo materialista podemos citar o Fisicalismo e o Funcionalismo.
O Fisicalismo, a partir dos anos 1950, tornou-se uma das correntes
mais populares em losoa da mente. Para os sicalistas os estado mentais
5
são apenas estados do cérebro, ou seja, o mental nada mais é do que uma
grande variação dos estados químicos e físicos de nosso cérebro (AMARAL,
2001; TEIXEIRA, 1992; 2000).
Usualmente se distingue dois tipos de redução no projeto sicalista:
type-type identy (identidade entre tipos) e token-token identy (identidade
ponto a ponto). No primeiro caso (type-type) procura-se estabelecer uma
identidade entre tipos de estados mentais e tipos de estados cerebrais
6
;
no segundo caso (token-token) estabelece-se que um estado mental deve
corresponder a algum evento cerebral; ou seja, pode haver vários conjuntos
de neurônios que, quando ativados, produzem no indivíduo determinada
sensação
7
.
Os Funcionalistas, apresentando uma proposta diferente, acreditam
ser possível fazer abstração, no estudo dos processos cognitivos, de uma
particular ‘instanciação’ material (física, biológica) dos processos mentais.
Esses processos poderiam ser descritos exclusivamente em termos de
uma organização funcional da mente, em que, por exemplo, ‘módulos
desempenhariam funções especicadas por relações de processamento entre
Apesar do aparente avanço dessa posição, para Chalmers (1995), nada indica que estados conscientes
sejam necessariamente supervenientes em relação a estados físicos e nem mesmo a determinadas arquiteturas
funcionais.
Os chamados estados mentais são classicados como qualitativos (qualia) quando correspondem a sensações
de algum tipo e como atitudes proposicionais quando correspondem a crenças, desejos, medos, dúvidas, etc.
(TEIXEIRA, 2000).
Por exemplo, o fato de estar aborrecido com alguma coisa é um tipo de estado mental que deve corresponder a
um tipo de estado cerebral correspondente à ativação de um determinado conjunto de neurônios.
 Por exemplo, quando determinado grupo de neurônios são ativados, produzem a sensação de aborrecimento.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 151
a entrada (input) e a saída (output). Por exemplo, para os funcionalistas, o
sentir dor’ seria um estado provocado por determinados tipos de estímulos
às extremidades periféricas dos nervos, que por sua vez, provocam
determinados tipos de comportamento e determinados tipos de estados
funcionais diversos (TEIXEIRA, 1992).
Os estados mentais, na perspectiva funcionalista, são denidos por
suas relações causais e podem ser considerados como estados físicos, mas
são denidos como ‘mentais’ devido às suas relações causais e não devido a
sua constituição física (LYCAN, 1990). Assim, os estados mentais, sendo
caracterizados pelas suas inter-relações funcionais, podem ser instanciados
nos mais diversos materiais, seja em silício, seja em estruturas biológicas
como os cérebros de animais
8
. Porém, dizer que o funcionalismo é uma
corrente unicada seria um erro. Na verdade ele se apresenta em duas
vertentes interessadas na forma de organização dos sistemas cognitivos, as
quais são denominadas de Funcionalismo Lógico-Computacional (FLC) e
Funcionalismo Neurocomputacional (FNC). Essas versões, de acordo com
Gonzales (1994), são centrais nas chamadas Ciências Cognitivas e a partir
delas temos a distinção de duas tradições centrais: a Inteligência Articial
(IA) e o Conexionismo.
O Funcionalismo Lógico-Computacional (FLC), enfatizando o
aspecto lógico, admite que os estados cognitivos podem ser caracterizados
como entidades abstratas e devem ser estudados independentemente
do seu substrato físico. Assim, para os adeptos da FLC, os estados
mentais independem do substrato neurológico. Segundo a concepção
computacional de mente, haveria uma relação essencial entre pensamento
e computabilidade, entendida como manipulação de símbolos mediante
regras ou procedimentos afetos somente às propriedades formais destes
símbolos; ou seja, independentemente do signicado que possa estar
associado ou que seja atribuído a tais símbolos
9
.
Conforme Searle (1998),nesta perspectiva, não há motivo para acreditar que somente o cérebro humano é
capaz de ‘instanciar’ processos cognitivos, apontando-se para a possibilidade de que estruturas não biológicas –
como computadores – tenham ‘mentes’ de determinados tipos.
Esses procedimentos funcionam como algoritmos que controlam uma operação exclusivamente formal ou
sintática. É importante salientar que esta noção de computação serial ainda está subordinada às chamadas
lógicas clássicas. Por lógicas clássicas entendemos aquelas que, aceitando o princípio de não-contradição,
Edvaldo Soares
152 |
Para os teóricos da IA, a mente se reduz a programas de computador
implementados em cérebros. Por sua vez, o cérebro nada mais seria do que
um tipo de computador. Para Marvin Minsky, um dos teóricos da IA, a
consciência não existe. Ela signica, apenas, segundo ele, se lembrar do
que você fez recentemente, o que tornaria tola a discussão sobre a eventual
consciência de computadores. A cognição é tratada pela concepção da IA
tradicional como ‘computação sobre representações’ (FETZER, 2000;
HEIL, 1998). Segundo Penrose (1993, p. 10), um dos objetivos da IA
é “imitar por meio de máquina, normalmente máquinas eletrônicas,
o máximo possível da atividade mental e, talvez, no m, melhorar a
capacidade humana, sob esse aspecto”.
Uma das concepções ligadas à IA é a chamada conce
pção
representacionista, cujos principais representantes são Fodor e Pylyshyn (1988).
De acordo com essa concepção, as representações mentais desempenhariam
um papel mediador entre o meio ambiente e o sujeito, possibilitando a este
identicar os objetos ou padrões informacionais com os quais ele interage.
Essas representações são unidades abstratas que possuem uma estrutura. Os
elementos dessas unidades são regidos por regras de combinação entre os
elementos, as quais são hipoteticamente responsáveis pela estrutura sintática
e semântica das representações, permitindo assim a realização de inferências.
O Funcionalismo Neurocomputacional (FNC), enfatizando o
substrato físico, considera que a estrutura e a organização física dos sistemas
que processam informações, como, por exemplo, o cérebro e também a
interação desses sistemas com o meio ambiente, são importantes no estudo
da cognição. Ao passo que a IA tradicional tem seus modelos elaborados a
partir de elementos simbólicos e abstratos do sistema cognitivo, os modelos
conexionistas analisam as representações mentais por meio de recursos
inspirados na neurosiologia e na física.
Admitindo os elementos físicos, o FNC necessariamente reconhece
a importância do conhecimento cerebral para o estudo da mente
(GONZALES, 1994). As estruturas constitutivas dos modelos tradicionais
como processadores, memória, software deram lugar, principalmente
trabalham com dois valores proposicionais (1 e 0 ou Sim e Não), como por exemplo a lógica booleana, o cálculo
sentencial e o cálculo proposicional (HAACK, 2002).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 153
com as redes neurais a um processamento dinâmico, a uma memória
distribuída nas conexões entre as unidades. Por Rede Neural entende-se
um conjunto de métodos matemáticos e algoritmos computacionais
especialmente projetados para simular o processamento de informações e
aquisição de conhecimento do cérebro humano. (GABRIEL; MOORE,
1990; RUMELHART, 1989; TIERNEY, 1996).
Conforme Gonzales (1994), qualquer modelo conexionista das
representações mentais deve possuir um conjunto de unidades neuro-
símile, que são os seus elementos constitutivos básicos. Quando ativadas,
essas unidades, que guardam uma vaga semelhança com os neurônios reais,
formam redes constituídas por camadas estruturadas: uma de entrada
(input), uma de resposta (output) e, nalmente ‘zero’ ou mais camadas
intermediárias entre o input e o output, preservando a capacidade de
transmitir sinais às outras unidades em função de suas ‘conexões sinápticas
10
.
Uma vantagem das redes neurais decorre de sua capacidade de manipular
objetos complexos (cenários, padrões, etc.) a partir do reconhecimento de
regularidades. Isso permite, sem a necessidade de regras xas, como na IA
tradicional, e sem o conhecimento da totalidade do objeto, levar o sistema
a se estabilizar em determinadas soluções.
De acordo com Fetzer (2000), o conexionismo vê o cérebro como
uma rede neural de nodos numerosos que são capazes de ativação. Esses
nodos podem ser conectados a outros e, dependendo de seus níveis de
ativação, podem ocasionar aumentos ou diminuição nos níveis de ativação
daqueles outros nodos.
As redes neurais ou arquiteturas computacionais conexionistas, de
inspiração neurosiológica têm uma posição contrária ao funcionalismo
neuro-computacional na medida em que postulam que as funções cognitivas
humanas pressupõem um ‘instanciamento’ em arquiteturas capazes de
um processamento de tipo paralelo e distribuído (PDP), o que signica que
mais de uma sucessão de dados, informações ou conhecimento podem
ser processados ao mesmo tempo. Essa ideia, baseada em evidências da
10
Uma rede neural articial possui sempre uma camada de entrada e uma de saída, entre as quais existe um
número variável de camadas intermediárias. Essa disposição das camadas e o número de neurônios por camada
recebe o nome de arquitetura da rede neural. (CERQUEIRA; ANDRADE; POPPI; MELLO, 2001, p. 865).
Edvaldo Soares
154 |
neurosiologia, é um avanço das redes neurais em relação à IA tradicional
que trabalha com processamento serial.
Outra estratégia para contornar as diculdades colocadas pelo
problema das relações entre mente e cérebro foi apresentada pelo chamado
Materialismo Eliminativo, que tem entre os principais representantes
Francis Crick, Paul e Patrícia Churchland, Terrence Joseph Sejnowki
e Christof Koch. De acordo com Bueno (2002, p. 85), o materialismo
eliminativo “sustenta que os estados mentais não existem, mas que há
apenas estados neurobiológicos”. A estratégia dos eliminativistas consiste
em tentar desfazer nosso conceito habitual de mente, mostrando que este
se origina de algum tipo de ilusão conceitual.
O materialismo eliminativo considera os estados mentais como
sendo desprovidos de referentes e, portanto, úteis apenas na ‘psicologia do
senso comum’ e na comunicação, dada a impossibilidade de remetê-los a
estados naturais (HEIL, 1998; LYCAN, 1990). Conforme Teixeira (2000),
essa proposta tem sua raiz nos pressupostos epistemológicos tanto no
behaviorismo metodológico de Watson como no behaviorismo teleológico
de Skinner e Rachlin.
Um dos primeiros a defender a tese de que o conceito de mente seria
uma ilusão foi Wilfrid Stalker Sellars, com a publicação em 1963 da obra
Empirism and the philosophy of mind (SELLARS, 1963). O materialismo
eliminativo pode ser considerado uma radicalização do projeto reducionista
que marcou o funcionalismo e o sicalismo. Os mais radicais acreditam
que o apelo à noção de representação mental espelha o atual estado de
ignorância acerca do nosso aparato cognitivo. Para eles, à medida que a
ciência, em especial a neurosiologia, se desenvolver, ocorrerá a eliminação
natural do termo ‘representação mental’ do vocabulário das teorias
cientícas (McDOWELL, 2021).
Por exemplo, Patrícia Churchland (1990) e Paul Churchland
(1984) acreditam que o vocabulário psicológico cotidiano (psicologia
popular ou folk psychology
11
), seria inadequado para descrever, explicar e
11
Conforme Fetzer (2000, p. 33-36), esta seria o tipo de psicologia que a maioria das pessoas utilizam para
explicar ou predizer o comportamento. Seria, segundo ele, a psicologia das crenças e dos desejos.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 155
predizer o comportamento humano, além é claro, de ser incompatível
com o discurso cientíco. Portanto, a princípio a proposta não impõe
uma eliminação do mental, mas de uma linguagem mentalista. O
projeto eliminativo dos Churchland está ligado à teoria das redes neurais.
Conforme Paul Churchland (1984), o cérebro humano seria como um
sistema hierarquizado de redes neurais. Para Patrícia Churchland (1990),
o processamento cognitivo humano seria paralelo e se realizaria não sobre
representações atômicas localizadas, mas distribuídas.
Outra proposta em Filosoa da Mente é apresentada por Daniel
Dennett. Dennett (1997) defende que a melhor explicação para o
funcionamento da mente deve partir do pressuposto de que os seres
humanos são organismos biológicos sob pressões evolutivas.
Para tanto Dennett (1997) propõe um método por ele denominado
de heterofenomenologia. Esse método, em síntese, consiste em adotar
uma perspectiva em terceira pessoa. Nessa perspectiva, somente os dados
externos observáveis são objetos de investigação cientíca. Essa perspectiva
decorre da opção pelo Empirismo Lógico e, em particular, pela sua tese
vericacionista, segundo a qual uma proposição só é verdadeira se puder ser
vericada empiricamente, ou seja, por meios cientícos.
Uma versão mais radical desta teoria acredita que tudo aquilo que não
satisfaz essa exigência não existe. Dennett (1997) defende que não existem
experiências subjetivas; ou seja, fenômenos de ‘primeira pessoa’. Assim,
Dennett nega as chamadas qualia. Para Dennett, o cérebro é um tipo de
computador (hardware) que implementa um programa (software). Ainda
de acordo com ele, contrariamente à IA tradicional, todas as variedades
de atividade mental são realizadas no cérebro por processos paralelos
12
de
múltiplos caminhos, interpretação e elaboração de dados sensoriais.
Esse modelo proposto por Dennett (1997), denominado Modelo
de Rascunhos Múltiplos, supõe que toda informação que entra no sistema
12
É importante salientar que os ‘sistemas paralelos’ ou ‘computadores paralelos’ são diferentes dos computadores
seriais (computadores digitais comuns). São assim denominados porque são capazes de operar com vários canais
computacionais funcionando e interagindo ao mesmo tempo. Normalmente encontramos para essa corrente as
seguintes denominações: processamento distribuído paralelamente (PD), Modelagem Neuronal Inter-Relacionada
ou Conexionismo.
Edvaldo Soares
156 |
nervoso está em contínua revisão. Partindo dessa concepção, Dennett
concebe a consciência como uma ‘máquina virtual’, um ‘programa’ que
evolui e está evoluindo. Tal ‘programa’, segundo ele, molda as atividades
do cérebro
13
.
Outro ponto importante da reexão de Dennett é a sua aceitação de
que a teoria da evolução por meio de mudança constante e seleção é uma
ferramenta importante para explicar a emergência de fenômenos complexos,
como por exemplo a consciência, o que parece paradoxal, dado que ele elimina
a consciência ao transformá-la em um fenômeno em primeira pessoa. Não
é só a consciência que é reduzida em Dennett. Também a intencionalidade é
para ele uma cção e não uma propriedade real da consciência, ou seja, ela é
apenas um ‘modo de olhar’ (DAHLBOM, 1995).
o resgate do BIológICo
Como pudemos observar a partir das descrições acima, muitas vezes, o
biológico e o humano são negados. Porém, algumas tendências atuais procuram
conceber a mente como um fenômeno natural, biológico. Uma das tentativas
atuais de busca dos correlatos neurais da mente pode ser encontrada nos
autores que defendem um tipo de darwinismo. Entre os principais defensores
desta teoria estão Gerald Edelman e Jean-Pierre Changeux.
Edelman (1992a) procurando construir uma teoria global do cérebro
capaz de situar a neurociência em relação à física e à biologia evolucionista,
parte do princípio de que o cérebro é geneticamente equipado, desde o
nascimento, com uma quantidade excessiva de grupos neuronais e que, a
partir de um processo de seleção (semelhante à seleção natural de Darwin),
alguns grupos neuronais morrem, outros sobrevivem e são fortalecidos.
Esses grupos neuronais são concebidos como mapas, os quais seriam
feixes de neurônios no cérebro cujos pontos no feixe estão sistematicamente
relacionados a pontos correspondentes em um feixe de células receptoras.
Esses mapas podem ser relacionados com outros mapas. Porém, esse
relacionamento se daria por um processo de reentrada, ou seja, um processo
13
É justamente a partir deste ponto que Dennett expressa aquilo que Prado Jr. (1998) denomina de ‘viés
antibiológico’ e se mostra opositor à linha fenomenológica.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 157
por meio do qual sinais paralelos vão de um lado para o outro entre os
mapas
14
(EDELMAN, 1992a).
Partindo da concepção de reentrada, a base neural da mente
fundamentar-se-ia em um tipo de regulação homeostática, por meio da
qual a seleção se daria após diversos inputs, quando modelos especícos
de grupos neuronais seriam selecionados em mapas. Como resultado desse
processo o organismo elabora uma representação unicada de objetos no
mundo; representação essa que estaria distribuída por diversas áreas do
cérebro. Os novos mapas neuronais permitiriam a adaptação a situações
inéditas e a elaboração de novas formas perceptuais.
O problema central é ‘como chegamos às experiências conscientes a
partir do aparato descrito?
De acordo com Edelman (1992b), a consciência primária, além
dos mecanismos já descritos, necessita de outros mecanismos, tais como:
memória; sistema de aprendizagem; habilidade para discriminar o ‘eu
do ‘não-eu’; sistema para categorizar eventos sucessivos no tempo e para
formar conceitos; conjunto de conexões reentrantes e memória especial
para valores combinados entre o sistema de memória especial e os sistemas
anatômicos que estão dedicados às categorias perceptivas
15
. Essas seriam
as condições sucientes para o aparecimento da consciência primária
e, consequentemente, para a criação de ‘cenas integradas’ na mente
consciente
16
. Segundo Edelman (1992b, p. 72),
[...] a consciência primária resulta da interação, em tempo real, das
memórias responsáveis pelas correlações entre categorias valorativas
apreendidas no passado e inputs do mundo atual, tal como estes são
categorizados por mapeamentos globais (mas antes que os componentes
destes mapeamentos sejam alterados por estados internos). [...].
Colocado de outra forma, a consciência seria o resultado de uma
14
Por exemplo, o Mapa A dá um sinal para B. O Mapa B reentra em A. Observa-se ainda que o processo de
reentrada não seja apenas um feedback, dado que pode haver trilhas paralelas operando simultaneamente.
15
Edelman faz a distinção entre consciência primária e de ordem superior. Por consciência primária entende aquela
que está vinculada às sensações simples e experiências perceptivas; consciência de ordem superior é a que inclui
autoconsciência e linguagem.
16
Segundo Ramachandran e Blakeslee (2002), Edelman sugere que o uxo de informações do cérebro se
assemelha às imagens numa sala de parque de diversões cheia de espelhos, continuamente reetidos de um lado
para outro, e continuamente alterados pelo processo de reverberação.
Edvaldo Soares
158 |
memória comparativa na qual categorizações prévias do tipo ‘eu-não-
eu’ (self-non-self) estão constantemente relacionadas a categorizações
perceptivas atuais contínuas e suas sucessões a curto prazo, antes que
tais categorizações tenham se tornado parte daquela memória.
Changeux (1980, 1996)
17
, seguindo a mesma linha de Edelman,
parte do princípio de que as conexões entre as células nervosas, as sinapses,
não se formam de uma só vez, mas em decorrência de um longo e complexo
processo de desenvolvimento que prossegue no homem até a puberdade.
Esse processo encontra-se sujeito a uma evolução interna do
organismo em termos de número de conexões (darwinismo neural) e em
termos de evolução da ecácia dessas conexões e do seu estado de atividade
(darwinismo mental). A evolução do número de conexões é determinada
geneticamente; é uma evolução por epigênese, ocorrendo durante o
desenvolvimento embrionário e pós-natal da organização cerebral, quando
se manifesta uma considerável diversidade de conexões
18
.
A partir disso, conforme Changeux (1996), segue um processo de
anação’, que permite o aprimoramento por meio de estabilização de
certas conexões e da eliminação de outras. Nesse processo observa-se que
as regras de seleção levam em conta o organismo em seu conjunto, em
interação com o mundo exterior. Talvez seja por isso que o fenótipo neural
seja tão variável de indivíduo para indivíduo
19
.
Por sua vez, a evolução da ecácia das conexões
20
, já não mais é
gerada pela diversidade das conexões durante o desenvolvimento, mas
da entrada em atividade (espontânea e transitória) de assembléias de
neurônios, as quais já não são mais conexões, circuitos elementares. A
este fenômeno Changeux denomina de ‘pré-representações’. A partir
dessas pré-representações, desenvolve-se uma atividade combinatória, que
17
Para Changeux a imagem mental deve ser tomada como uma atividade concreta e bem denida. Para ele,
relacionar estrutura e função é o melhor caminho para o estudo da mente (CHANGEUX; CONNES, 1996).
18
Segundo Lalande (1996, p. 312), diz-se que existe epigênese quando, as diferenciações de órgãos e de
características, “aparecem no decurso do desenvolvimento dos seres e, particularmente, no decurso da sua
embriogenia, já formadas no germe”; caso contrário, diz-se que há pré-formação.
19
O mais intrigante é que independente do fenótipo neural, as funções são similares.
20
Nessa fase, a referência é feita ao cérebro adulto, tanto no nível do entendimento quanto da razão.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 159
antecipa a interação com o mundo exterior. A partir desse processo, duas
possibilidades podem ocorrer a estabilização do sistema (armazenamento
na rede ou memorização), quando há uma ressonância entre o estado
interno e o meio externo, ou, ocorre a não estabilização pelo fato de não
ocorrer ressonância. Segundo Changeux, essa estabilização do sistema
modica as ecácias sinápticas que irão armazenar uma certa conguração
do sistema (CHANGEUX; CONNES, 1996).
Em outros termos, para Changeux, nossas representações mentais
decorrem desse processo neuronal, no qual os ‘objetos mentais’ possuem
propriedades associativas que lhes permitem encadear-se, ligar-se de
maneira espontânea e autônoma.
Outro autor que procura questionar as teses reducionistas e
naturalizar a mente é o lósofo John Searle. Em termos de postura
epistemológica, Searle parte da tese que ele mesmo denomina de realismo
externo. Avesso ao perspectivismo, Searle (2000) concebe que as coisas
(universo) existem independentemente de nossas mentes e que, dentro dos
limites estabelecidos por nossas capacidades evolutivas, somos capazes de
compreender a sua natureza
21
.
No que se refere à losoa da mente, Searle (1997; 2000) resume sua
posição como naturalismo biológico. Segundo essa concepção, a consciência
consiste em estados e processos internos, qualitativos e subjetivos
22
. Pelo fato
de consistir em estados subjetivos, têm uma ontologia em primeira pessoa.
Em decorrência de ser um fenômeno subjetivo, a consciência não pode
ser reduzida a fenômenos da terceira pessoa da mesma maneira que outros
fenômenos naturais, como proposto por Daniel Dennett.
O ponto principal da proposta de Searle (1998, p. 35) é a concepção
de que a consciência e seus processos se constituem em fenômenos
21
Searle se coloca em oposição às correntes anti-realistas. Entre essas correntes cabe destacar: Etnometodologia,
Pragmatismo, Construtivismo Social e Desconstrução. Segundo ele, o .Perspectivismo é a concepção de que nosso
conhecimento da realidade nunca é “sem mediação”, ou seja, é sempre mediado por um ponto de vista, por um
conjunto de predileções ou ainda, por motivos políticos sinistros (SEARLE, 2000, p. 26-28).
22
São Internos porque acontecem dentro do organismo (cérebro); são qualitativos porque para cada um deles
há um modo de sentir (por exemplo, beber vinho é diferente de sentir dor) e são subjetivos porque são sempre
experimentados por um sujeito (por exemplo, a dor só existe quando experimentada por um sujeito) (SEARLE,
2000).
Edvaldo Soares
160 |
biológicos, no sentido de que ela não é uma entidade separada do cérebro,
mas uma propriedade emergente do mesmo.
23
Conforme Searle (1997,
1998, 2000), essa concepção não pode ser confundida com o materialismo
reducionista. Segundo ele:
A abordagem correta, que ainda estamos apenas tateando nas
ciências cognitivas, é esquecer as categorias cartesianas obsoletas e nos
lembrar que o cérebro é um órgão biológico, como qualquer outro,
e a consciência é um processo biológico tanto quanto a digestão e a
fotossíntese (SEARLE, 1998, p. 178).
Assim, a partir dessa concepção, a mente é novamente colocada ‘na
natureza’ e seu estudo e modo de existência passa novamente para o campo
do biológico, por oposição ao computável
24
. Para Bento Prado Júnior
(1998), um dos pontos fundamentais dessa proposta é o reconhecimento
de que a explicação causal da consciência não é nem redutiva e nem
eliminativa.
Segundo Searle (2000), o fato dos fenômenos mentais, terem
um modo de existência subjetivo não impede que haja uma ciência
objetiva da consciência, pois a objetividade epistemológica não exclui
necessariamente a subjetividade ontológica como campo de investigação.
O que ocorre para ele é que o acesso aos estados subjetivos é diferente do
acesso aos fenômenos físicos e esse acesso é diferente porque a estrutura
dos chamados estados mentais e em especial da consciência, mesmo que
considerados como fenômenos biológicos, é diferente da estrutura dos
objetos ontologicamente objetivos
25
.
23
Esta concepção se apresenta como uma solução de Searle tanto ao materialismo como ao dualismo. Muitos
autores na atualidade também são partidários da tese de que o cérebro causa consciência. Entre estes autores,
podemos destacar G. EDELMAN (e remembered present: a biological theory of consciousness); F. CRICK
(e astomishing hypothesis: the scientic search for the soul) e I. ROSENFIELD (e strange, familiar and
forgotte). De acordo com Searle (1998), uma propriedade emergente de um sistema é aquela que é casualmente
explicada pelo comportamento dos elementos do sistema; mas, não é uma propriedade de quaisquer elementos
individuais e não pode ser explicado simplesmente como uma soma das propriedades desses elementos.
24
É importante salientar que Searle não descarta a possibilidade de construção de um cérebro articial que seja
consciente. Segundo ele, uma das limitações do modelo computacional da mente decorre do fato de ser ‘anti-
biológico’ (SEARLE, 1998).
25
Isso não signica que Searle defenda uma volta ao introspeccionismo (SEARLE, 2000, p. 72).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 161
Ligada à questão da consciência está a questão da intencionalidade.
De acordo com Searle (2000), os seres conscientes têm a propriedade de
representar objetos e eventos e de agir com base nessas representações,
as quais seriam para os seres humanos o aspecto mais importante da
consciência, pois é por meio das representações que ocorrem as inuências
das crenças, desejos, opiniões, etc. O nome desse aspecto representacional
é intencionalidade, que é denida por Searle (2000, p. 66-67) como
característica da mente graças à qual os estados mentais são dirigidos a, ou
falam de, ou se referem a, ou apontam para estados de coisas no mundo”.
Não só os estados mentais são intencionais; também a ação é
sempre intencional; ou seja sempre se refere a um objeto. Conforme Searle
(2000), nem todos os estados conscientes são intencionais e nem todos
os estados intencionais são conscientes. Portanto, não há identicação
entre intencionalidade e consciência. Porém, só compreendemos a
intencionalidade em termos de consciência.
Sobre a questão de ‘como o cérebro produz consciência’, Searle admite
um hiato explicativo. De acordo com Searle (1998), o problema ou mistério
da consciência consiste em explicar como os processos neurobiológicos
podem causar estados mentais ou, em outros termos, como esses estados
são percebidos nas estruturas cerebrais; como a consciência ‘funciona’ na
economia global do cérebro e como ela funciona em nossas vidas em geral.
Esse problema, segundo ele, só será resolvido quando solucionarmos o
problema biológico da consciência
26
.
Outra importante proposta, não só no campo epistemológico, mas
também como alternativa ao reducionismo e ao mecanicismo é a chamada
Neurofenomenologia. A Neurofenomenologia propõe resgatar a mente como
fenômeno encarnado, não separado do corpo e, ao mesmo tempo, rejeitar a
hipótese de que a mente seria um ‘em si’, separada da experiência concreta.
Nesse sentido, cabe reintroduzir na agenda cientíca o fenomenológico
(sentimentos, emoções, contexto, etc.).
26
De maneira semelhante Fetzer (2000) defende que a descoberta de estados cerebrais subjacentes poderia
proporcionar uma base para o estabelecimento de leis que relacionam os estados cerebrais aos estados mentais.
Edvaldo Soares
162 |
Entre os principais proponentes desta teoria estão Humberto
Maturana e Francisco Varela, que procuram uma integração entre a
fenomenologia e as neurociências. A abordagem utilizada por esses autores
foi denominada de enativa e se constitui uma alternativa ao cognitivismo
e ao conexionismo clássico.
De acordo com a abordagem neurofenomenológica, a cognição não
constituiria em representações feitas pelo cérebro do observador acerca do
mundo predeterminado, mas sim uma construção dinâmica do mundo,
inseparável da história da vida (VARELA; MATURANA; URIBE, 1974).
Para fundamentar essa concepção, Varela evoca a questão da
percepção cromática. Segundo ele, nossa percepção das cores é diferente
da percepção que os pombos têm, dado que ela é pentacromática. Por sua
vez, as abelhas têm uma visão ultravioleta. Ora, tudo o que vemos são cores
percebidas segundo estruturas determinadas em interação com o meio.
Assim, a cognição é uma construção que resulta da interação do
ser vivo com o seu mundo; mundo esse que vai sendo por ele construído,
conforme uma relação de criação mútua de maneira espontânea
27
.
No processo de enação não há a necessidade da representação anterior
à percepção do observador, dado que se trata de um processo de construção,
onde o organismo interage momento a momento. Nesse sentido, os seres
vivos são vistos como estruturalmente determinados, isto é, percebem o
mundo conforme sua estrutura. Porém, a percepção depende da estrutura
naquele momento (MATURANA; VARELA, 1997).
Os seres vivos somos sistemas determinados na estrutura e, como tais,
tudo o que nos acontece surge em nós como uma mudança estrutural
determinada também a cada instante, segundo nossa estrutura do
momento (MATURANA; VARELA, 1997, p. 25).
Dessa forma, o que vem de fora apenas desencadeia potencialidades
que já estão determinadas na estrutura do sistema percebedor. A reexão
de Maturana e Varela (1997) está centrada no conceito de Autopoiesis, o
27
Segundo Maturana e Varela (1997), é difícil entender e aceitar a espontaneidade dos fenômenos biológicos,
em uma cultura como a nossa, orientada ao ‘explicar propositivo’ ou nalista de todo o relacionado com o vivo.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 163
qual foi criado com o objetivo de denir os sistemas vivos, de um modo
tal que apontasse e explicitasse o tipo de organização que eles possuem.
Auto, do grego: próprio, si mesmo, e poiesis: fazer, são termos que indicam
uma característica fundamental dos sistemas vivos, a de serem sistemas
dinâmicos, produtos de seu próprio funcionamento, e cuja organização
permanece invariante enquanto eles se autoproduzirem
28
.
[...] uma organização autopoiética constitui um domínio fechado de
relações especicadas somente em relação à organização autopoiética se
tal organização como sistema concreto, espaços cujas dimensões são as
relações de produção dos componentes que o constituem (MATURANA;
VARELA, 1997, P. 79).
Ainda, segundo Maturana e Varela, a teoria da autopoiese,
[...] mostra que o ser vivo é um ente sistêmico, mesmo que sua
realização seja de caráter molecular. Esta teoria mostra que nenhuma
molécula, ou classe de moléculas, determina, por si mesma, qualquer
aspecto ou característica do operar do ser vivo como tal, já que todas
as características do ser vivo se dão na dinâmica da sua autopoiese. De
fato, um fenômeno é sistêmico se acontece como resultado da atuação
dos componentes de um sistema enquanto realizam as relações que
denem o sistema como tal, e, no entanto, nenhum deles determina
por si só, ainda quando sua presença seja estritamente necessária
(MATURANA; VARELA, 1997, P. 24).
Como tentativa de indicar a natureza da organização dos sistemas
vivos, Maturana e Varela (1997) tomam como ponto de partida o
caráter unitário do sistema vivente. A hipótese central do projeto é a
28
Um sistema autopoiético pode ser descrito como de primeira, segunda ou terceira ordem. Um sistema
autopoiético de primeira ordem é um sistema vivo, unicelular, uma rede de transformações moleculares que
produz seus próprios componentes e que é a condição de possibilidade desse componentes, incluindo entre
eles a sua membrana. A membrana de uma célula é, por sua vez, a condição de possibilidade do operar da
rede de transformações moleculares que a produz. Um sistema autopoiético de segunda ordem é um sistema
vivo, metacelular, que se conserva enquanto tal na medida em que se mantém a autopoiese de suas células
componentes; assim como o organismo, enquanto totalidade, se conserva na medida em que se conserva a rede
de processos dinâmicos que ele mesmo é. Os sistemas autopoiéticos de terceira ordem são comunidades, ou
aglomerados de sistemas autopoiéticos de segunda ordem, cuja manutenção é fundamental para a manutenção
e realização da autopoiese dos seres que as constituem, como, por exemplo, um formigueiro (MATURANA;
VARELA, 1997).
Edvaldo Soares
164 |
de que existe uma organização comum a todos os seres vivos, qualquer
que seja a natureza de seus componentes. Essa organização estruturada é
semelhante à organização de máquinas. Porém, não no sentido clássico,
mas no sentido de máquinas autopoiéticas, caracterizadas como um sistema
auto-homeostático que tem sua própria organização como a variável que
mantêm constante e nas quais toda a retroalimentação é interior a elas.
Nessa perspectiva esclarecem:
Nossa proposta é que os seres vivos se caracterizam por, literalmente,
produzirem-se continuamente a si mesmos – o que indicamos ao
chamarmos a organização que o dene de organização autopoiética
(MATURANA; VARELA, 1995, p. 84-85)
Um sistema autopoiético não possui entradas nem saídas, assim, todas
as trocas que ele experimenta não faz com que ele perca sua identidade.
Como máquinas autopoiéticas, os sistemas vivos são considerados
autônomos, ou seja, impredizíveis. Segundo Maturana e Varela (1997, p.
29), essa autonomia e a consequente espontaneidade no surgimento dos
sistemas “nega qualquer dimensão de intencionalidade ou nalidade em sua
constituição ou em seu operar, o faz com que nalidade e espontaneidade
pertençam somente ao âmbito reexivo do observador como comentários
que ele ou ela faz ao comparar e explicar suas distinções e experiências em
diferentes momentos de seu observar”.
Em relação ao sistema nervoso, esse também é, segundo eles, um
sistema autopoiético tal como descrito acima. É concebido por Maturana
e Varela (1997, p. 122) como uma rede de neurônios ‘interatuantes’ e
fechada, vinculados ao organismo. Nesse sentido, os neurônios determinam
seus próprios limites por meio de sua autopoiese e sua organização muda
ao longo de sua história como resultado de sua determinação genética e das
circunstâncias de seu operar durante a ontogênese do organismo.
De acordo com essa perspectiva os neurônios não seriam entes
estáticos cujas propriedades permanecem inalteráveis; pelo contrário, elas
mudam continuamente. Ou seja, são uma rede lateral, paralela, sequencial
e recursiva de interações excitatórias e inibitórias, as quais determina
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 165
o domínio de possíveis estados dinâmicos do sistema nervoso. Essa
conectividade do sistema nervoso se encontra dinamicamente subordinada
à autoposição do organismo que integra (MATURANA; VARELA, 1997).
Operacionalmente, segundo a concepção de Maturana e Varela
(1997), o sistema nervoso é uma rede fechada de neurônios que interatuam.
Assim, uma mudança na atividade de um neurônio sempre leva a uma
mudança na atividade de outros neurônios de forma direta, por meio de
um efeito sináptico, ou de forma indireta, mediante a participação de
algum agente físico ou químico intermediário.
Portanto, o conceito de rede neural fechada, leva à concepção de que
as relações entre os neurônios são marcadas por relações de circularidade
nas interações neuronais gerais na rede. Assim concebido, o sistema
nervoso não possui entradas nem saídas, e não há relações intrínsecas em
sua organização que lhe permitam discriminar, através da dinâmica de suas
mudanças de estado, entre causas externas e internas para tais mudanças de
estados (MATURANA; VARELA, 1997).
Sendo assim, para Maturana, um sistema nervoso não consiste em
um sistema capaz de captar informações, e quem insiste em analisá-lo a
partir deste pressuposto comete equívocos. Disso decorre que:
[...] enquanto a rede neuronal se fecha sobre si mesma, sua fenomenologia
é a fenomenologia de um sistema fechado no qual a atividade neuronal
sempre leva à atividade neuronal. Isto é válido, ainda que o ambiente
possa perturbar o sistema nervoso e mudar seus estados, acoplando-se
como um agente independente em qualquer das superfícies receptoras
(MATURANA; VARELA, 1997, p. 126).
A atuação do meio externo sobre o organismo é, de antemão, denida
pela arquitetura do sistema nervoso e pela morfologia do organismo
como um todo. Ou seja, esses elementos denem o domínio no qual o
ambiente pode acoplar-se ao organismo como fonte de deformações, o
que não implica que o sistema seja um sistema aberto. Pelo contrário, ele
se comporta como um sistema auto-homeostático.
Edvaldo Soares
166 |
Operando como sistema auto-homeostático, o sistema nervoso
mantém invariável as relações que denem sua participação na autopoiese
do organismo (MATURANA; VARELA, 1997). Nesse sentido, o sistema
nervoso se apresenta como um sistema dentro de outro sistema, igualmente
autônomo e autodeterminado.
Porém, se o sistema é fechado e invariante, como explicar as alterações
funcionais causadas por lesões no sistema nervos central?
Segundo Maturana e Varela (1997, p. 128), “a organização do
sistema nervoso é essencialmente invariante sob mutilações”, ao passo que
os estados possíveis, que dependem da arquitetura, não o são. O que é
interessante, é que, após uma extirpação parcial, o que ca do sistema, opera
como um todo, mas com propriedades diferentes do original. Entretanto,
esse funcionamento não pode ser concebido como o funcionamento de
um sistema no qual algumas de suas propriedades tenham sido subtraídas.
Essa concepção decorre da visão de sistema nervoso como sistema fechado.
Nesse sentido, para Maturana e Varela (1997, p. 128), “intrinsecamente
qualquer possibilidade de uma localização operacional no sistema nervoso,
no sentido de que nenhuma parte dele pode considerar-se responsável por
seu operar como rede fechada”.
No entanto, em virtude do sistema nervoso possuir uma arquitetura
denida, é evidente que uma lesão localizada produz desconexão especíca
entre suas partes, ocasionando “mudança especíca em seu domínio de
estados possíveis
29
.
Por m, retornando à abordagem enativa, cabe ressaltar sobre o
sistema nervoso que:
1) A mente não é uma instância abstrata e separada do cérebro
2) O cérebro faz parte da existência.
3) O corpo e o meio ambiente vivem histórias que interagem
enquanto dura o processo vital de ambos.
29
O fato de o sistema nervoso possuir uma arquitetura denida não autoriza a concebê-lo como estático; pelo
contrário, ela é especicada ao longo da ontogenia do organismo ao qual pertence, e sua determinação, ainda
que sob controle genético, está ligada à morfogênese de todo o organismo (MATURANA; VARELA, 1997, p.
128).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 167
Em síntese, para Varela (1998), o cérebro existe no corpo, o corpo
existe no mundo e o organismo age, se mexe, caça, reproduz-se, sonha,
imagina. É dessa atividade permanente que emergem o sentido do seu
mundo e as coisas. Segundo Varela (1998), para que o organismo esteja
sucientemente encarnado no seu ambiente, para poder arranjar-se nele
apesar de não ter nenhuma representação de um mundo prévio, seu mundo
deve emergir com suas ações, precisa ser um mundo ‘enagido’.
Também a epistemologia tem sido um dos temas centrais na
reexão neurofenomenólogica de Maturana e Varela. Esses autores partem
do princípio de que “todo conhecer depende da estrutura daquele que
conhece” (MATURANA; VARELA, 1995, p. 76).
Maturana (2001) concebe a existência de dois modelos ou caminhos
explicativos: o caminho da objetividade ‘sem parênteses’ e o caminho da
objetividade ‘com parênteses’. No primeiro, concebe-se que a existência
independe do observador, de tal forma que as coisas são explicadas como
se fossem um ‘em si’. Nesse caminho, segundo Maturana (2001, p. 36),
uma armação cognitiva é válida porque faz referência a uma realidade
independente do observador”.
Sem querer reforçar o dualismo sujeito-objeto, Maturana (2001, p.
33) rejeita o caminho da objetividade ‘sem parênteses’ porque, segundo
ele, temos que considerar o aspecto biológico. Segundo ele, “se interro
na Biologia, interro no observador”. É por isso que no caminho da
objetividade ‘entre parênteses’, não é possível, para construir o caminho da
explicação, da ciência, fazer referência a coisas independentes do eu. Nesse
caminho, as armações acerca da realidade só são válidas pelas coerências
operacionais que a constituem. É por isso que arma que “uma explicação
é a reformulação da experiência com elementos da experiência, e se repito
as congurações operacionais que constituem minha explicação, obtenho
o fenômeno que quero explicar” (MATURANA, 2001, p. 36).
Em síntese, em relação à chamada Filosoa da Mente, temos
encontrado movimentos diversos. Alguns autores, ligados aos diversos
modelos em Ciência Cognitiva, têm adotado uma postura reducionista
em relação aos chamados estados mentais, como é o caso dos sicalistas e
Edvaldo Soares
168 |
funcionalistas. Outros têm radicalizado o projeto reducionista, optando
pelo eliminativismo. Outros ainda, procurando fugir do reducionismo
materialista adotam uma postura dualista, como é o caso de Nagel (1965)
e Chalmers (1996).
Há ainda aqueles, como Dennett (1997), simpatizante da IA, que
acreditam que somente os dados externos observáveis são objetos de
investigação cientíca. Diversas críticas têm surgido contra essas tendências.
Em relação ao dualismo que, segundo Teixeira (2000) foi praticamente
abandonado devido à sua incapacidade de explicar a interação entre mente
e corpo, Searle (2000) aponta que o principal erro desse foi recusar o
sistema de categorias que faz da consciência algo biológico. Por exemplo,
em relação a Chalmers, Searle (1998) considera a posição de Chalmers
como ambígua e se opõe a tudo o que se conhece hoje em termos de
neurociências. Segundo ele, apesar de ter sido amplamente aclamada, a
postura de Chalmers não fornece uma explicação aceitável de consciência,
dado que ele não acredita que as propriedades neurobiológicas especícas
dos cérebros têm qualquer papel causal especial na produção de fenômenos
conscientes, como por exemplo, a dor.
Contra o sicalismo e o funcionalismo Searle (1998, 2000) aponta
que essas correntes têm como projeto comum, mostrar que os fenômenos
mentais na realidade não existem. Para se livrar do mental e em especial
da consciência, adotam estratégias diferentes, que podem variar do
reducionismo até a eliminação pura e simples. Contra o projeto Searle
(1997) aponta que o grande problema dessa concepção é que parece
improvável que para cada tipo de estado mental haja somente um tipo de
estado neurosiológico ao qual seja idêntico.
Em relação à IA, Maciel (1998) considera que os modelos da IA
tradicional carecem de realismo neural, não levam em conta determinadas
características do funcionamento mental, como a relativa resistência que
processos como evocação de memória remota apresentam diante da perda
neuronal. Nesses modelos, a destruição de parte do programa acarretam
perda de parte do conhecimento.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 169
Penrose (1993, p. 442), contrariamente à I.A. acredita que “a
computação paralela clássica tem poucas probabilidades de encerrar a chave
do que acontece com o nosso pensamento consciente. Uma característica
do pensamento consciente (pelo menos quando estamos num estado
psicológico normal e não formos submetidos a uma operação de ‘separação
do cérebro’) é a ‘unicidade’ em oposição a um número muito grande de
atividades independentes ao mesmo tempo”.
Assim como a IA tradicional, o conexionismo também sofreu críticas,
especialmente por parte de Searle (2000). Criticando o materialismo de
forma geral, Searle (2000) assinala que o principal erro materialista é ignorar
a existência real da consciência, reduzindo-a ao comportamento do corpo,
a estados computáveis do cérebro, ao processamento de informações ou
a estados funcionais de um sistema físico. Para Fodor e Pylyshyn (1988),
os modelos conexionistas não podem dar conta do aspecto estrutural das
representações mentais, pois, eles operam essencialmente com relações
causais que atuam nas unidades da rede, cada vez que essa interage com
uma situação particular no mundo. Staddon e Bueno (1990), defendendo
a utilização de modelos dinâmicos, consideram que não é possível reduzir
a análise comportamental à análise funcional; o fenômeno psicobiológico
não pode ser reduzido ao neural.
No que se refere ao eliminativismo, Teixeira (2000) admite
que os eliminativistas mantêm a perspectiva reducionista, adotando
o eliminativismo apenas nos casos em que a teoria for inadequada.
Apesar da proposta, Paul Churchland, que prefere denominar sua
posição de Materialismo Revisionário, admite que o desenvolvimento das
neurociências não garante a eliminação de alguns conceitos da psicologia
popular (FETZER, 2000). Porém, conforme Searle (2000), não existe a
possibilidade de realizar uma redução eliminativa da consciência dado que
o padrão destas reduções é ingenuamente armar que o fenômeno é apenas
uma ilusão.
Em relação às propostas de Dennett, Fetzer (2000) observa que
a adoção de requisitos excessivos de objetividade arruinaria qualquer
proposta de estudo dos estados mentais internos, dado que estes não
são acessíveis à observação pública. Também criticando Dennett, Searle
Edvaldo Soares
170 |
(1998) acredita que a computação é relativa ao observador e não à natureza.
Assim, do fato de poder atribuir uma interpretação computacional ao
cérebro, não signica que o cérebro seja um computador, ao mesmo
tempo em que a simulação computacional de estados mentais não é um
estado mental. Para Searle o cérebro é de fato uma máquina, mas uma
máquina orgânica onde os processos, como as descargas neuronais, são
processos orgânicos mecânicos.
Além da alternativa de Searle em conceber que a consciência e
seus processos são fenômenos biológicos, no sentido de que ela não é
uma entidade separada do cérebro, mas uma propriedade emergente do
mesmo, outras propostas alternativas ao reducionismo surgiram. Entre
essas propostas alternativas se destacam as de Edelman (1992a, 1992b),
Changeux (1980, 1996) e dos teóricos da Neurfenomenologia.
Edelman (1992a, 1992b) defendendo que a base neural da mente
se fundamenta em um tipo de regulação homeostática, acredita que a
representação unicada de objetos estaria distribuída por diversas áreas do
cérebro. Changeux (1980, 1996), seguindo o mesmo modelo teórico de
Edelman contra do determinismo estrito arma que a formação do sistema
nervoso só pode ser entendia a partir da interação do organismo com o
mundo exterior e da dotação genética.
Já os neurofenomenólogos, no sentido de atualizar o pensamento de
Merleau-Ponty, procuram resgatar a mente como fenômeno encarnado,
buscando uma integração entre a fenomenologia e as neurociências como
uma alternativa ao cognitivismo e ao conexionismo. Para Maturana
e Varela (1997), a cognição não se constitui em representações feitas
pelo cérebro do observado acerca do mundo predeterminado, mas uma
construção dinâmica do mundo, inseparável da história de vida. Nesse
sentido, seguindo o postulado da Fenomenologia de Husserl, para eles, não
há necessidade de representação anterior à percepção do observado, dado
que se trata de um processo de construção, onde o organismo interage
momento a momento.
Nesse sentido destacam que o organismo percebe o mundo conforme
sua estrutura naquele momento; o que vem de fora apenas desencadeia
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 171
potencialidades próprias do organismo. Assim, o organismo é concebido
como um sistema dinâmico; fruto de seu próprio funcionamento e cuja
organização permanece invariável; ou seja, é segundo sua terminologia,
um sistema autopoiético. Concebido como sistema auto-homeostático,
o organismo para Maturana e Varela (1997) não possui entradas e nem
saídas. Com esse modelo, concebem que o Sistema Nervoso é uma rede de
neurônios interatuantes e fechada, estando subordinado a autoposição do
organismo que o integra.
172 |
| 173
C 
Inicialmente apresentamos o contexto no qual surgiram as críticas
e as propostas de Merleau-Ponty, especialmente no que se refere ao
mecanicismo e ao reducionismo, elaboradas nas suas duas obras iniciais:
Estrutura do Comportamento e Fenomenologia da Percepção.
A partir dessa descrição contextual observamos que essas obras
surgiram em um contexto de tentativa de construção de uma Psicologia
Cientíca, livre das inuências losócas e do subjetivismo introspeccionista
e mais próxima dos pressupostos da Fisiologia.
Porém, mesmo adotando o modelo da Fisiologia, a Psicologia
Experimental apresentava divergências teóricas em relação a determinadas
questões. Entre essas questões se colocava a localização de funções mentais.
No que se refere à essa questão, dois grupos se destacaram ao longo da
história: os localizacionistas, que defendiam que as funções mentais
poderiam ser localizadas em regiões estritas do cérebro e os chamados
holistas ou globalistas, que defendiam que as funções mentais não poderiam
ser localizadas, mas que dependiam de todo o cérebro.
De forma geral, a Psicologia Experimental se apresentava em
diferentes tendências. A primeira, e talvez preponderante no período,
adotava o modelo pavloviano e uma postura localizacionista; outra, como
por exemplo, a Teoria da Gestalt, adotava uma postura mais alinhada à
Física e anti-localizacionista em relação às funções mentais.
Edvaldo Soares
174 |
A Fisiologia e a Psicologia francesas não fugiram a esses modelos,
como pudemos vericar em autores de diferentes épocas como Bernard,
Testut, Jacob, Ribot, Richet, Hédon, Pierón, Guillaume, Vaissière e
Cuvillier.
Em termos de Filosoa se observou uma tentativa, com o
movimento fenomenológico de Husserl, de combater o subjetivismo e o
objetivismo de caráter positivista , restituindo à Filosoa uma base sólida
de racionalidade. Nesse sentido, no dizer de Giles (1975), Husserl se dedica
a uma fundamentação cientíca da losoa. Tendo como ponto de partida
o ‘retorno às coisas mesmas’, a fenomenologia de Husserl se preocupava
em dar uma descrição pura da realidade. Só a partir desse retorno às
coisas mesmas é que seria possível, segundo Husserl, a construção de uma
Filosoa rigorosa.
Inuenciadas pela fenomenologia por um lado e pelas concepções de
caráter globalista de outro, Estrutura do Comportamento e Fenomenologia
da Percepção foram obras que surgiram como tentativas se superar os
preconceitos empiristas e intelectualistas, bem como as dicotomias
originárias da separação entre sujeito e objeto.
Esses preconceitos, conforme Merleau-Ponty, marcaram a
psicosiologia de sua época, fazendo com que essa apresentasse uma
compreensão do organismo e do comportamento dentro dos limites
impostos por modelos reducionistas. Nesse esquema, o organismo era
concebido como um objeto mecânico que poderia ser analisado a partir de
suas partes constituintes.
Esse objeto ‘da ciência’ denominado ‘organismo’ perde então sua
inerência ao mundo. Ele não mais se relaciona dialeticamente; apenas é um
receptáculo de estímulos que reage em conformidade com as propriedades
dos mesmos. Dessa forma, sua relação com o mundo passa a ser marcada
por uma circularidade mecânica determinada por dois elementos: as
propriedades dos estímulos e os circuitos preestabelecidos, prontos para
receber e para responder a estes estímulos; circuitos esses pontualmente
localizados.
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 175
Contra esse modelo mecânico, reducionista e localizacionista,
Merleau-Ponty, fundamentando-se principalmente nos estudos
desenvolvidos por Goldstein e pelos teóricos da Gestalt, já na Estrutura
do Comportamento, começa a apresentar sua proposta. Porém, é na
Fenomenologia da Percepção, sob inuência da fenomenologia de Husserl,
que essa proposta é elaborada com maior profundidade, a partir da noção
de intencionalidade e com o desenvolvimento de noções como as de campo
fenomenal, corpo próprio entre outras.
Também, é na Fenomenologia da Percepção que Merleau-Ponty
desenvolve a concepção de analítica transcendental, a qual teria por objetivo
principal, superar a análise real que marcava tanto a Fisiologia como a
Psicologia Experimental da sua época.
Porém, observamos que, se em um primeiro momento as críticas
e propostas merleau-pontyanas são coerentes em relação ao contexto da
ciência de sua época e fundamentam-se em uma crítica rigorosa, por outro,
segundo alguns autores, elas apresentam algumas limitações quanto aos
conceitos adotados, especialmente na Fenomenologia da Percepção. Por
exemplo, Barbaras (1991) acredita que a concepção de esquema corporal é
equivocada e obscura, pois, segundo ele, mantém as concepções tradicionais
ao tentar superar o empirismo e o intelectualismo. Nesse mesmo sentido
Dias (1989) também considera que as concepções de ‘corpo-sujeito’ e
sujeito-encarnado’ são confusas.
Outra crítica semelhante foi elaborada por Hattois (1979, 1988).
Segundo ele, os conceitos de corpo-sujeito ou sujeito encarnado, propostos
por Merleau-Ponty, não têm referência; ou seja, simplesmente designam
relações entre conceitos. Müller (2001, p. 211) por sua vez, acredita que
as “inovações linguageiras” de Merleau-Ponty, em especial o conceito de
esquema corporal, não foram sucientes para romper com os prejuízos
clássicos a partir dos quais empiristas e intelectualistas julgavam a experiência
perceptiva. Para ele, os conceitos de Merleau-Ponty permanecem tributários
das distinções ontológicas quer deram origem àquelas teorias, em especial à
distinção entre sujeito e mundo.
Edvaldo Soares
176 |
Em relação às críticas às proposta de Merleau-Ponty, tivemos a
oportunidade de constatar a coerência das mesmas relação ao contexto
de sua época. Apesar de seu relativo impacto, logo após sua morte, no
desenvolvimento das neurociências, os pensamento de Merleau-Ponty,
especialmente após a publicação de e Embodied Mind (VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 1997), passou, por exemplo, a inspirar diversos
trabalhos sobre a ‘consciência’, tanto na Filosoa da Neurociência como
nas Neurociências Experimentais. Assim, o pensamento de Merleau-Ponty
ainda se mostra importante, enquanto crítica losóca – epistemológica,
para a discussão da questão da localização de funções mentais e, para a
compreensão de ‘como a mente se encontraria encarnada no corpo vivo’ e,
em última análise, para a abordagem do clássico problema MenteCorpo.
Destacamos, no que se refere a esse desenvolvimento posterior das
neurociências, ocorreram importantes descobertas que, independentemente
da crítica direta merleau-pontyana, contribuíram para a superação
de algumas limitações apontadas por Merleau-Ponty, tais como o
determinismo, o mecanicismo e, principalmente o localizacionismo estrito
ou pontual.
Entre essas descobertas destacamos aquelas relacionadas ao estudo
da plasticidade e memória. Por exemplo, estudos como os de Hebb
(1949), Held (1970) e Rosenzweig (1996) em relação à plasticidade levam
à conclusão de que não se pode analisar o desenvolvimento do organismo
e seu comportamento independente de sua relação com o ambiente e da
estrutura do próprio organismo. Os estudos sobre relação entre memória
e hipocampo, dos quais destacamos os de Milner (1959, 1985, 1996);
Milner, Corkin e Teuber (1968) e Scoville e Milner (1957) têm sugerido,
contrariamente ao localizacionismo estrito, que os diferentes tipos de
memória não são ‘localizados’ ou ‘armazenados’ em um determinado local
especíco do cérebro, mas dependem de diversas estruturas corticais e
subcorticais para a formação, consolidação e recuperação.
A concepção de centros defendida por autores como, por exemplo,
Testut (1900), Testut e Jacob (1905), Pizon (1925), Hedón (1935) e
criticada por Merleau-Ponty (1990a), também tem sido criticada do ponto
de vista das neurociências, por autores como Bindra (1976).
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 177
Contrariamente ao localizacionismo estrito, diversos autores, como
por exemplo, Bindra (1976), Fodor (1983), Xavier (1993) e Campos,
Santos e Xavier (1997), têm defendido que o sistema nervoso funciona
de forma modular. Ou seja, de que é formado por diferentes módulos
que agem de forma integrada, o que não se caracteriza em uma teoria
localizacionista no sentido clássico. Também Damásio (1996, 2000)
tem contribuído com a discussão em torno do localizacionismo e da
consciência, ao criticar a concepção localizacionista estrita e ao conceber
que a consciência é uma função biológica que emerge da integração da
atividade neural entre diferentes regiões do cérebro.
Em relação à teoria modular, Ramachandran e Blakeslee (2002)
tem defendido que o modularismo o e holismo não são mutuamente
excludentes, pois, segundo ele, o cérebro é uma estrutura dinâmica que
emprega ambos os ‘modos’ numa inuência recíproca e complexa. Além
disso, é importante destacar que esses estudos têm levado à concepção de
que a função não é independente do substrato.
Nesse sentido pode-se dizer que, talvez, a teoria modular se
aproxime da concepção de localização proposta por Merleau-Ponty, a qual
admite uma especialização das regiões cerebrais; porém, sem eliminar a
relação dessas com o conjunto. Segundo a concepção merleau-pontyana,
o funcionamento total do córtex não é a soma de funcionamentos locais;
para ele, regiões do cérebro não seriam sede de comportamentos, mas antes
as partes privilegiadas onde esses comportamentos encontram os meios
para a sua realização. Nessa perspectiva, admite que as regiões não são
especializadas na recepção de certos conteúdos, mas na sua estruturação.
Estudos de fenômenos como o do ponto cego e estudos de casos
patológicos, como, por exemplo, o fenômeno do membro fantasma e da
visão cega, têm se mostrado importantes para rever as posições da siologia
clássica. Por exemplo, Ramachandran (1992), Ramachandran e Blakeslee
(2002) e Meyer (2002), têm sugerido, contra o determinismo estrito
da siologia clássica, que o organismo se comporta de forma dinâmica,
adaptando-se momento a momento às novas situações.
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Em relação à dinamicidade do comportamento, autores, como por
exemplo, Staddon e Bueno (1990) têm sugerido a utilização de modelos
dinâmicos na análise do comportamento. Esses modelos em tempo
real, que consideram que a experiência, momento-a-momento muda o
estado do organismo, introduzem a noção de historicidade no estudo do
comportamento; concebem que o estado interno envolve componentes
neurais e cognitivos, mas não se reduz a eles, conrmando assim a
concepção de dinamicidade do organismo proposta por Merleau-Ponty,
bem como por Goldstein e Guillaume.
Bueno (1997b), ao apontar para a necessidade de se atribuir a
um sistema representacional a causa antecedente do comportamento,
mediando o que ocorre entre a entrada externa e a saída comportamental,
descreve avanços da psicologia que estão de acordo com as propostas
merleau-pontyanas, entre as quais podemos destacar: 1) o organismo dá
sentido ao estímulo; 2) a reação é regulada a cada momento e em cada caso
conforme a particularidade da situação e 3) o organismo é modicado pela
própria atividade.
Estudos, como por exemplo, de Xavier, Saito e Stein (1991), ao
sugerirem que a antecipação com base na identicação de regularidades
passadas, permite ao organismo reagir mais prontamente às estimulações
esperadas, - pois o organismo direciona sua atenção para os dados
ambientais mais relevantes, escolhendo a ação mais apropriada, o que
envolveria, segundo eles, intencionalidade e signicado -, também estão
de acordo com a proposta de Merleau-Ponty (1990a), segundo a qual,
as estimulações recebidas pelo organismo só são possíveis por meio de
movimentos precedentes, que expuseram o organismo (receptor) às
inuências externas, ou seja, que o comportamento é a causa primeira de
todas as estimulações.
No que se refere à teoria do reexo, Bueno (1997b) também tem
obtido resultados que apoiam a crítica merleau-pontyana à teoria clássica
do reexo, que arma que as reações provocadas pelos estímulos são
determinadas não pelas particularidades físicas da situação, mas pelas
leis biológicas do comportamento, ao propor que, para o organismo, o
estímulo não se reduz às características físicas externamente denidas. De
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 179
acordo com Bueno (1997b, p. 166), o estímulo “envolvido na ‘textura
causal’ da relação organismo-ambiente não é especicado simplesmente
por uma característica física externamente denida, mas como parte de
um processamento”.
Merleau-Ponty, ao descrever o que ele denominou de estruturas
amovíveis, armava que o comportamento depende do campo perceptivo
do animal, através do qual ele atribui um sentido próprio à situação.
Bueno (1997b), seguindo direção semelhante, acredita que os animais têm
capacidade de representar o tempo e o espaço. Eles se adaptam às variações
do ambiente, respondendo a relações temporais, espaciais e preditivas
1
.
Engelmann (1997a) também tem contribuído para a superação das
concepções dualistas ao conceber que não existe nem mente e nem matéria,
mas uma única substância.
Sem adotar uma posição reducionista, mas emergentista, Engelmann
(1997a, 1998, 2002a, 2002b), dene a consciência como sendo uma parte
dos seres humanos e de outros animais, localizada no nível de organismo. A
característica da consciência é ser subjetiva, é saber ‘parte’ do que acontece ao
redor dela e do que acontece no corpo; “é um conhecimento que freqüentemente
origina comportamentos” (2002a, p. 87). Ainda segundo ele:
É nesse animal ser humano adulto que encontramos, pelo menos, uma
parte do que hoje se chama consciência. Consciência é a parte do ser
vivo – ou pelo menos do animal ser humano adulto moderno – que o
próprio ser vivo conhece. Esse conhecimento pode visar ou pretende visar
informações sobre partes das coisas que ocorrem fora e/ou dentro desse
ser vivo, no presente ou no passado. Além disso, esse conhecimento pode
visar informar o próprio ser vivo de algumas de suas ações pretendidas
ou presentes, reais ou imaginárias. A natureza desse conhecimento
pode abarcar outras maneiras que não consegui captar. De qualquer
forma, a denição da consciência é o conhecimento pelo próprio ser
vivo (ENGELMANN, 2001, p. 214).
Para Bueno (1997b, p. 167), a noção de representação está ligada ao processamento de informação. Segundo
ele, “um animal possui uma representação se ele puder utilizar uma informação que não está disponível no seu
ambiente presente.
Edvaldo Soares
180 |
Em termos de reexão losóca, alguns autores contemporâneos
têm retomado, direta ou indiretamente, as críticas e as propostas merleau-
pontyanas, a partir dos desenvolvimentos atuais das neurociências.
Assim como as Neurociências, a chamada ‘Filosoa da Mente
também teve seu desenvolvimento próprio e tem apresentado posturas
diferentes e, não poucas vezes divergentes.
Por exemplo, ao passo que alguns autores, têm aderido ao
reducionismo ou até mesmo ao dualismo, outros, como por exemplo
Searle (1997, 1998, 2000), Edelman (1992a, 1992b), Changeux (1980,
1996), bem como os teóricos da Neurofenomenologia (MATURANA,
2001; MATURANA; VARELA, 1995; MATURANA ; VARELA, 1997;
VARELA, 1998; VARELA; MATURANA; URIBE, 1974; VARELA;
THOMPSON; ROSCH, 1997) têm procurado alternativas aos modelos
mecanicistas, reducionistas e dualistas, tanto em relação às Neurociências,
como em relação à Filosoa da Mente.
Por exemplo, os neurofenomenólogos, no sentido de atualizar
o pensamento de Merleau-Ponty, procuram resgatar a mente como
fenômeno encarnado, buscando uma integração entre a fenomenologia e
as neurociências como uma alternativa ao cognitivismo e ao conexionismo.
Para Maturana e Varela (1997), a cognição não se constitui
em representações feitas pelo cérebro do observado acerca do mundo
predeterminado, mas uma construção dinâmica do mundo, inseparável da
história de vida. Nesse sentido, seguindo o postulado da Fenomenologia
de Husserl, para eles, não há necessidade de representação anterior à
percepção do observado, dado que se trata de um processo de construção,
onde o organismo interage momento a momento. Nesse sentido destacam
que o organismo percebe o mundo conforme sua estrutura naquele
momento; o que vem de fora apenas desencadeia potencialidades próprias
do organismo.
Assim, o organismo é concebido como um sistema dinâmico, fruto
de seu próprio funcionamento e cuja organização permanece invariável;
ou seja, é segundo sua terminologia, um sistema autopoiético. Concebido
como sistema auto-homeostático, o organismo para Maturana e Varela
Merleau-Ponty e a Filosoa das Neurociências
| 181
(1997) não possui entradas e nem saídas. Com esse modelo, concebem
que o sistema nervoso é uma rede de neurônios interatuantes e fechada,
estando subordinado à autoposição do organismo que o integra.
Ao procurar atualizar algumas propostas de Merleau-Ponty a partir
dos desenvolvimentos atuais das neurociências e ao reforçar a importância de
se levar em consideração as características biológicas, a Neurofenomenologia
tem apresentado interessantes propostas em termos epistemológicos.
Porém, em relação às propostas e críticas elaboradas por Merleau-
Ponty, acreditamos que a Neurofenomenologia não tenha avançado; ela
apenas conrma essas propostas. Nesse sentido ela também apresenta
limitações em relação aos seus conceitos. Por exemplo, o conceito de
autopoiesis, que é essencial para a Neurofenomenologia, é obscuro e carece
de realismo, além de ser desnecessário, tendo em vista que essa concepção,
relacionada à ideia de autorregulação homeostática, já estava presente
no pensamento merleau-pontyano e está presente em algumas propostas
relacionadas aos modelos dinâmicos.
A partir de todos esses desenvolvimentos e críticas, podemos retornar
às questões propostas por Bueno (1999) apresentadas no início desta obra:
1) As neurociências deram conta das críticas de Merleau-Ponty?
2) Ainda há a necessidade da adoção de uma analítica transcendental?
Talvez, possamos dizer que o grande mérito de Merleau-Ponty foi
o de ter conseguido sistematizar em um único pensamento concepções
dispersas e muitas vezes contraditórias, em torno de uma proposta que
procura conceber o homem como uma unidade ‘no mundo’ e que ‘
sentido ao mundo’.
Se sua proposta esbarra em conceitos não muito claros, sua crítica
contra as concepções objetivantes eram pertinentes e sua proposta de uma
análise que fosse além da análise real era coerente com o contexto da época.
Por outro lado, se as neurociências avançaram, ainda existem controvérsias
em relação a seus modelos explicativos.
Edvaldo Soares
182 |
Também a chamada Filosoa da Mente tem acompanhado o
desenvolvimento das neurociências e tem apresentado alternativas
às propostas de Merleau-Ponty; porém, também tem apresentado
controvérsias. Talvez seja nesse cenário ainda marcado por diferentes
posturas que, ainda hoje, as propostas merleau-pontyanas se mostrem
como alternativas a serem reexaminadas.
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limited to eld CA1 of the hippocampus. Journal of Neuroscience, Washington, v. 6, n.
10, p. 2950-2967, 1986.
Catalogação na puBlICação (CIp)
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
norMalIzação
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
Capa e dIagraMação
Gláucio Rogério de Morais
produção gráFICa
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
assessorIa téCnICa
Renato Geraldi
oFICIna unIVersItárIa
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
ForMato
16 x 23cm
tIpologIa
Adobe Garamond Pro
papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tIrageM
100
IMpressão e aCaBaMento
2022
soBre o lIVro