Miriam Paula Manini [in memoriam]
Eliane Braga de Oliveira
Ana Lucia de Abreu Gomes
(Organizadoras)
Imagem, informação e memória:
abordagens acerca da
preservação do audiovisual, do
cinema e da fotografia
Imagem, informação e memória: abordagens acerca da
preservação do audiovisual, do cinema e da fotografia
Miriam Paula Manini [in memoriam];
Eliane Braga de Oliveira e Ana Lucia de Abreu Gomes (Org.)
“Em julho de 2018 eu tive um sonho:
estava reunida com muitas pessoas, em
local desconhecido; parecia uma festa,
uma celebração, e as roupas não combi-
navam muito com nosso tempo; havia
alegria, cumplicidade e um sentimento
de satisfação que poderia ser por algum
dever cumprido, realizado com prazer.
Mas o que isso tem a ver com nossas
relexões, com preocupações acadêmi-
cas ou com o fazer intelectual?! Ao acor-
dar e costurar o sonho com minha
memória, percebi que os personagens
do meu ilme particular eram todos(as)
colegas que trabalham com imagem.
Junto com as emoções de elaboração de
sentido do sonho surgiu imediatamente
a ideia de organizar um livro sobre o
tema.
Para nós, autores dos textos compilados
nesta publicação, este livro, além da
materialização do sonho de Miriam, é –
sobretudo - uma homenagem à Profes-
sora Miriam Paula Manini, idealizadora
e uma das organizadoras deste material.
Miriam Paula Manini, presente!
É presente o interesse da
comunidade de pesquisadores
em estudos de informação que
abordam os registros visuais
nos seus mais diversos recur-
sos de informação. Neste livro,
elegeu-se a discussão sobre a
dimensão das imagens no
âmbito das fotografias, das
obras cinematográficas e
demais documentos audiovi-
suais pelo viés da memória e
no que tange também à preser-
vação desses documentos. A
trajetória histórica e cultural
da humanidade, atrelada aos
registros visuais, impulsionou
o desenvolvimento de técnicas
e tecnologias que implicaram,
de uma forma ou de outra, nas
teorias e práticas relativas à
organização desses documen-
tos, mediante sua análise e
interpretação. Estas últimas
permitiram o seu tratamento
técnico, acondicionamento,
acesso e uso nos contextos das
unidades de memória-infor-
mação, sejam elas espaços
físicos ou digitais, além,
evidentemente, dos ambientes
de memória-informação que
se configuram na internet e
nas redes sociais.
Os capítulos deste livro
evidenciam a escolha nas abor-
dagens dos caminhos percorri-
dos por seus autores, cuja
distinção autoral determinante
se direcionou ou perpassou
nos enfoques quanto à comple-
xidade dos acervos fotográfi-
cos e audiovisuais nas institui-
ções custodiadoras e sua orga-
nização, memória como relato
e perspectiva cognitiva e
preservação audiovisual.
Com o objetivo de alocar os
assuntos abordados, a obra
está dividida em três blocos:
Audiovisual, Informação e
Memória (AIM), Cinema,
Informação e Memória (CIM) e
Fotografia, Informação e
Memória (FIM). Tal divisão é
puramente um exercício “ma-
níaco” de colocar em escani-
nhos tudo que se considera
classificável, catalogável. No
conjunto, somos todos mem-
bros de uma mesma festa da
imagem.
I,   :
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
M P M [ ]
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(Organizadoras)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Cláudia Vieira Cardoso
Ficha catalográca
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2022, Faculdade de Filosoa e Ciências
I31 Imagem, informação e memória : abordagens acerca da preservação do audiovisual, do cinema
e da fotograa / Miriam Paula Manini (in memoriam), Eliane Braga de Oliveira, Ana Lucia
de Abreu Gomes (organizadoras). – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2022.
258 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-270-3 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-271-0 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0
1. Ciência da informação. 2. Imagens, ilustrações, etc. como recursos de informação.
3. Recursos audiovisuais - Preservação. 4. Fotograa. 5. Cinema. 6. Memória na arte. 7.
Patrimônio cultural – Proteção. I. Manini, Miriam Paula. II. Oliveira, Eliane Braga de. III.
Gomes, Ana Lucia de Abreu.
CDD 025.84
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Claudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Imagem: Fotograa de óleo sobre tela de Ana
Claudia Henriques (2013).
Dimensões do original: 70 X 110 cm.
Telma Jaqueline Dias Silveira –Bibliotecária – CRB 8/7867
S
S () A() --------------------------------------------------------- 7
P ----------------------------------------------------------------------------- 15
A ----------------------------------------------------------------------- 21
H  M P M ----------------------------------------- 25
AudiovisuAl, informAção e memóriA
Audiovisual no contexto arquivístico: apontamentos sobre o modo de fazer
no Arquivo Nacional
Aline Camargo Torre e Antonio Laurindo Santos Neto --------------------------- 31
Qual memória o audiovisual preserva?
Johanna Wilhelmina Smit ----------------------------------------------------------- 43
Passando a bola ou Apertem os cintos, os arquivos estão sumindo!
Apontamentos e estratégias sobre preservação audiovisual de materiais
esportivos digitais
Mateus Nagime ----------------------------------------------------------------------- 53
CinemA, informAção e memóriA
Cinema e memória: 1968 e o “cinema de mulheres” no Brasil (1968-1976)
Alcilene Cavalcante de Oliveira ----------------------------------------------------- 69
6 |
Restauração, versões e a questão do original no cinema: dois estudos de caso
Eduardo Morettin, Daniela Giovana Siqueira e Debora Butruce --------------- 87
Lembrar e esquecer no cinema: vozes e imagens do passado presente
Maria Leandra Bizello -------------------------------------------------------------- 105
Persona: o rosto na ciência da informação
Solange Puntel Mostafa -------------------------------------------------------------- 117
fotogrAfiA, informAção e memóriA
Fotograa e memórias: inscrições coletivas e involuntárias
Ana Heloísa Molina e Claudia Prado Fortuna ------------------------------------ 133
A impermanência da memória
Marcus Galindo e Albertina Otávia Lacerda Malta ------------------------------ 147
Na bagagem de Dona Zezé: uma análise da professora em formação a partir
de fotograas
Gabriela Fiorin Rigotti -------------------------------------------------------------- 161
Desaos em arquivos fotográcos de Instituições de Ensino Superior
Neiva Pavezi e Cristina Strohschoen dos Santos ----------------------------------- 177
Considerações sobre a fotograa nas unidades informacionais: sua validação
como documento probatório
Telma Campanha de Carvalho Madio --------------------------------------------- 193
imAgem, memóriA e informAção – síntese de umA trAjetóriA
O estado da arte da análise da informação de imagens fotográcas e
fílmicas: referencial teórico e epistemológico da leitura de imagens com ns
documentários e de memória
Miriam Paula Manini -------------------------------------------------------------- 223
| 7
S () ()
AlbertinA otáviA lACerdA mAltA
Formada em História (Universidade Católica de Pernambuco). Mestra em
Ciência da Informação pela Universidade Federal de Pernambuco (2013).
Servidora da Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ. Membro da diretoria
da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) - biênio
2016-2018. Membro da Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais,
Iconográcos, Sonoros e Musicais - CTDAISM/Conarq. Membro da
Comissão Permanente de Segurança de Acervos e da Comissão de Acervos
Bibliográcos, Arquivísticos e Museológicos da Fundação Joaquim Nabuco.
AlCilene CAvAlCAntede oliveirA
Graduada em História (UFOP), especialista em Arte e Cultura Barroca
(UFOP), mestra em História (UNICAMP) e doutora em Letras: Estudos
Literários (UFMG). Estágio de Pós-doutorado em História, na UFF.
Formação técnica em audiovisual. Trabalha com gênero, cinema, cultura
política feminista, memória cultural, religião, direitos humanos, narrativas,
autoria feminina, biograas e metodologias de ensino, em particular o uso de
lmes em sala de aula. É autora de Uma escritora na “Periferia do Império”: vida
e obra de Emília Freitas e de A ação pastoral dos bispos da diocese de Mariana
(MG/Brasil): mudanças e permanências, alcilenecavalcante@gmail.com, UFG.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
8 |
Aline CAmArgo torres
Mestre em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV (2013),
especialização em História do Brasil (2009) e graduação em Ciências Sociais
(2002), pela UFF. Experiência no tratamento de arquivos permanentes.
Integra a Equipe de Imagens em Movimento, da Coordenação de
Documentos Audiovisuais e Cartográcos Equipe de Processamento
Técnico de Documentos Audiovisuais, Sonoros e Musicais do Arquivo
Nacional. Coautora do livro Darcy Ribeiro: o brasileiro, aline@an.gov.br,
Arquivo Nacional.
AnA HeloísA molinA
Graduação em História pela Faculdade Auxiliun Filosoa Ciências e
Letras de Lins (1987), mestrado em Educação pela Unesp/Marília (1995)
e doutorado em História pela UFPR (2004). Estágio pós-doutoral junto
ao programa de Pós-Graduação em História da UFF. Estágio pós-doutoral
junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios do IA/Unicamp
(2017). Atua com os seguintes temas: linguagens visuais no ensino de
História, imagens e conhecimento histórico e imagens e ensino de História.
Organizadora dos livros Museus e lugares de memória e O incrível universo
das histórias em quadrinhos, ahmolina@uel.br, UEL.
AnA lúCiA de Abreu gomes
Graduação em História pela UFF – licenciatura e bacharelado (1988),
Mestrado em História Social pela UFRJ (1999) e Doutorado em História
Cultural pela UnB (2008). Experiência na área de História com ênfase em
História Social e História Cultural, atuando principalmente nos seguintes
temas: imagens e história, Patrimônio Cultural, Patrimônio Imaterial,
História Oral, Brasil Império e Brasil República. Coautora dos livros
Inventários de Cenas: mapeamento de fontes sobre o teatro – DF e Memória
da Educação a Distância na Universidade de Brasília, anaabreu.68@gmail.
com, UnB.
Imagem, Informação e Memória
| 9
Antonio lAurindo dos sAntos neto
Graduação em Arquivologia (2003), especialização em História Moderna
(2007) e mestrado em Ciência da Informação (2014) pela UFF. Membro
fundador da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA),
integrante da Câmara Técnica de Documentos Audiovisuais, Iconográcos,
Sonoros e Musicais - CTDAIS (Conselho Nacional de Arquivos -
CONARQ) e Curador das edições 2015, 2016 e 2017 do Arquivo em
Cartaz - Festival Internacional de Cinema de Arquivo. Capítulos publicados
em livros: Os cinejornais da Agência Nacional e Repositórios audiovisuais na
internet, antoniolaurindo@an.gov.br, Arquivo Nacional.
betty mAltA – AlbertinA otáviA lACerdA mAltA
Historiadora pela Universidade Católica de Pernambuco (1977). Mestra em
Ciência da Informação pela UFP (2013). Coordenadora Geral do Centro
de Documentação e de Estudos da História Brasileira - Cehibra. Membro
da diretoria (biênio 2016-2018) da Associação Brasileira de Preservação
Audiovisual - ABPA. Membro da Câmara Técnica de Documentos
Audiovisuais, Iconográcos, Sonoros e Musicais - CTDAISM/Conarq.
Coautora do livro 1964: o Golpe passado a limpo e coorganizadora dos
livros Benicio Dias: fotograas e Alcir Lacerda: fotograa, albertina.malta@
fundaj.gov.br, Fundação Joaquim Nabuco.
CudiA reginA Alves PrAdo fortunA
Bacharel e licenciada em História pela Unicamp. Mestre em Conhecimento,
Linguagem e Arte e Doutora em Educação pela mesma Instituição. Estágio
pós-doutoral junto ao programa de Pós-Graduação em Educação da USP.
Áreas de atuação: Ensino de História e Educação das sensibilidades;
Imagens, Memórias a contrapelo e Arte Contemporânea; Educação
Política da Memória e Ensino da História; Cidade, Educação Patrimonial
e Memória. Coorganizadora do livro São Jerônimo da Serra, história local e
ensino: construindo histórias, claudiafortunauel@gmail.com, UEL.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
10 |
CristinA stroHsCHoen dos sAntos
Mestre em Patrimônio Cultural pela UFSM (2012); Especialista em Gestão
Universitária pela Unijuí (2007); Bacharel em Arquivologia pela UFSM
(1991). Capacitada em Preservação de Acervos pelo Arquivo Nacional
(300 horas). Agente disseminadora do Projeto Conservação Preventiva
em Bibliotecas e Arquivos (1997-2001). Experiência em coordenação
de projetos de extensão, difusão e preservação de acervos iconográcos,
sonoros, audiovisuais e musicais. Capítulos em livros: Acessibilidade em
acervos arquivísticos: uma experiência na UFSM e Memoria audiovisual: los
desafíos de la preservación de documentos archivísticos, crisarquivista@gmail.
com, UFSM.
dAnielA giovAnA siqueirA
Doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP. Mestre
em História e Culturas Políticas pela UFMG (2007). Bacharel em
Comunicação Social - Habilitação Jornalismo pelo Centro Universitário
de Belo Horizonte (2002). Artigos em periódicos: Representações espaciais,
crítica social e contracultura no lme brasileiro Sagrada família (1970); Sob
o signo do provisório: um diretor entre três cidades, danigiovana@yahoo.com.
br, Centro de Referência Audiovisual da Prefeitura de Belo Horizonte.
déborA lúCiA vieirA butruCe
Graduação e mestrado em Comunicação (UFF), doutoranda no Programa
de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP,
com doutorado sanduíche na New York University, no Programa de
Arquivamento e Preservação de Imagens em Movimento da Escola de Artes
Tisch. Prossional da área de preservação e restauração audiovisual desde
2001, com atuação no Brasil e no exterior. Especializações na Inglaterra,
Itália, Cuba e Espanha. Também atua na área de curadoria audiovisual.
Autora do livro A direção de arte no cinema brasileiro, de capítulos de livros
e artigos sobre restauração, cinema, e direção de arte, deborabutruce@
hotmail.com.
Imagem, Informação e Memória
| 11
eduArdo viCtório morettin
Graduado em História (1988), mestre em Artes (1994) e doutor em
Ciências da Comunicação (2001), pela USP. Pós-doutorado pela
Université Paris I (2012). Professor de História do Audiovisual da ECA/
USP. Professor visitante da Université Paris-Est Marne-la-Vallée (2010).
Bolsista produtividade em pesquisa CNPq, nível 2. Conselheiro e
diretor de instituições e associações cientícas (Museu Paulista, MAC/
USP, ANPUH, SOCINE, Compós). Autor e organizador de obras sobre
cinema, memória e representações audiovisuais, entre elas, Humberto
Mauro, Cinema, História. Coordenador de dossiês temáticos sobre cinema.
cunhamorettin@uol.com.br, ECA/USP.
eliAne brAgA de oliveirA
Socióloga, mestre em Biblioteconomia e Documentação e doutora em Ciência
da Informação (CI) pela UnB, com estágio de doutoramento na Universidade
do Porto, Portugal. Professora do curso de Arquivologia e do Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília. Atua
nos seguintes temas: memória e informação, acesso à informação, gestão
das informações arquivísticas, avaliação documental, memória e arquivos,
arquivos públicos, informação pública e ensino de Arquivologia. Organizadora
da coletânea Memória: interfaces no campo da informação, autora de artigos e
capítulos de livros na área. elianebo@unb.br, UnB.
gAbrielA fiorin rigotti
Doutora em Educação (2013), Mestre em Educação (2006) e Pedagoga
(2002), todos pela FE/Unicamp. Atualmente trabalha como Coordenadora
de Pós-Graduação em Arte-Educação e como formadora de professores
na FIMI-Mogi Guaçu/SP. Também trabalha com Comunicação, Arte e
Criatividade na Unianchieta-Jundiaí/SP e com Fotograa, Cinema e
Novas Tecnologias no IBFE. Organizadora de publicações e autora de
artigos, entre eles: Gênero na educação e educação de gênero: a invisibilidade
da mulher apesar de principal protagonista. gabi.frigotti@gmail.com,
Faculdades Integradas Maria Imaculada.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
12 |
joHAnnA WilHelminA smit
Graduação em Biblioteconomia e Documentação (USP, 1970), mestrado
em Documentação - École Pratique des Hautes Études (1973) e doutorado
pela Universidade de Paris - I (1977). Docente aposentada da ECA/USP,
com atuação na graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de
Ciência da Informação; foi adjunta do representante de área na CAPES por
dois mandatos. Autora de livros, capítulos de livros e artigos, entre eles, o
livroTemas de pesquisa em Ciência da Informação no Brasil. Pesquisa sobre os
temas: ciência da informação, arquivologia, arquivo fotográco, controle de
vocabulário e organização da informação. cbdjoke@usp.br, USP.
mArCos gAlindo limA
Graduado em Biblioteconomia (1984), mestre em História (UFPE,
1994) e doutor em História pelo Departamento de Línguas e Cultura da
América Latina da Leiden University - Países Baixos (2004). É Professor
do Departamento de Ciência da Informação da UFPE e do Programa
de Pós-graduação em Ciência da Informação. Coordenador cientíco do
Laboratório de Tecnologia do Conhecimento – Liber, onde desenvolve os
projetos Rede Memorial de Pernambuco; e Preservação da memória digital.
Autor de livros, capítulos de livros e artigos, entre eles: Identicação e análise
de risco em acervos audiovisuais da Universidade Federal de Pernambuco,
galyndo@gmail.com, UFPE.
mAriA leAndrA bizello
Graduação em História (1989), mestrado (1995) e doutorado (2008) em
Multimeios (1995) pela Unicamp; estágio doutoral na Sorbonne Nouvelle
- Paris III (2006); pós-doutora em Ciência da Informação (Universidade
do Porto). Professora do Curso de Arquivologia e do Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Informação na UNESP/Marília. Experiência na
área de História, Comunicação e Ciência da Informação, autora de artigos
e capítulos de livros sobre os temas: cinema, fotograa e memória cientíca,
entre eles: Documentos de ciência: produção documental em laboratórios de
pesquisa universitários, mleandra23@gmail.com, UNESP/Marília.
Imagem, Informação e Memória
| 13
mAteus nAgime
Mateus Nagime é pesquisador e arquivista audiovisual e esportivo, com
Mestrado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar), com dissertação sobre cinema queer brasileiro. É mestrando em
Estudos Olímpicos na Universidade de Peloponeso (Grécia), em parceria
com a Academia Olímpica Internacional. Através do portal Surto Olímpico
do qual foi Editor entre 2019 e 2021, para o qual participou da cobertura
dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Reúne textos sobre cinema, esportes e
viagens emwww.mateusnagime.tumblr.com.
miriAm PAulA mAnini
Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais (UNESP/Araraquara, 1987);
Mestrado em Multimeios (UNICAMP, 1993); Especialização em Conservação
e Preservação Fotográca (FUNARTE, 1994); Especialização em Organização
de Arquivos (IEB/USP, 1998); Doutorado em Ciências da Comunicação
(ECA/USP, 2002). Como professora, pesquisou e orientou os seguintes
temas: Memória e Informação, Cinema e Arquivo, Leitura e Indexação de
Imagens. Autora do livro Arquivologia & cinema: um olhar arquivístico sobre
narrativas fílmicas, e organizadora da coletânea Imagem, memória e informação.
mpmanini@uol.com.br, Professora aposentada da Universidade de Brasília.
neivA PAvezi
Bacharel em Arquivologia e Mestre em Patrimônio Cultural pela UFSM.
Professora do Curso de Arquivologia da UEL, em Londrina/PR (2001 a
2005). Tutora na Especialização à Distância Gestão em Arquivos UFSM/
UAB (2008 e 2009). Atua em pesquisa nas áreas de patrimônio cultural;
memória institucional; acervos audiovisuais, fotográcos e sonoros;
digitalização; preservação de documentos digitais. Produziu a exposição
de imagens O Passado em Construção. É autora do e-book Manual do
Usuário do ICA-AtoM para a Língua Portuguesa-BR. neivapavezi@gmail.
com, Arquivista da Universidade Federal de Santa Maria/RS.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
14 |
solAnge Puntel mostAfA
Graduada em Biblioteconomia e Documentação (UFSCar, 1972), Mestre
em Ciência da Informação (IBICT, 1981) e Doutora em Educação (PUC/
SP, 1985), com experiência de Pós-Doutorado na Inglaterra, PNL, Londres.
Professora livre-docente da Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto - USP. Atualmente se dedica à intercessão da Filosoa da
Diferença como as Linguagens Documentárias e a Ciência da Informação,
organizadora das obras Pensadores brasileiros da ciência da informação e
biblioteconomia e Deleuze vai ao cinema,além de autora de artigos sobre
imagens cinematográcas e fotográcas, smostafa@terra.com.br, USP.
telmA CAmPAnHA de CArvAlHo mAdio
Graduação em História (PUC/SP, 1985), especialização em Arquivo (IEB/
USP, 1988), mestrado em História (PUC/SP, 1999) e doutorado em
Ciências da Comunicação (USP, 2005). Livre docência em Documento
Fotográco (UNESP, 2016). Professora associada, atua no ensino e na
pesquisa com os temas: organização e identicação arquivística, fotograa,
acervos audiovisuais, conservação preventiva e história contemporânea do
Brasil, com capítulos de livros e artigos publicados, entre eles: Da câmera
escura aos pixels a importância do tratamento informacional imagético,
telmaccarvalho@marilia.unesp.br, UNESP - Campus Marília.
| 15
P
É presente o interesse da comunidade de pesquisadores em estudos
de informação que abordam os registros visuais nos seus mais diversos
recursos de informação. Neste livro, elegeu-se a discussão sobre a dimensão
das imagens no âmbito das fotograas, das obras cinematográcas e demais
documentos audiovisuais pelo viés da memória e no que tange também
à preservação desses documentos. A trajetória histórica e cultural da
humanidade, atrelada aos registros visuais, impulsionou o desenvolvimento
de técnicas e tecnologias que implicaram, de uma forma ou de outra, nas
teorias e práticas relativas à organização desses documentos, mediante sua
análise e interpretação. Estas últimas permitiram o seu tratamento técnico,
acondicionamento, acesso e uso nos contextos das unidades de memória-
informação, sejam elas espaços físicos ou digitais, além, evidentemente,
dos ambientes de memória-informação que se conguram na internet
e nas redes sociais. Cabe mencionar, aqui, a denominação de Foster
e Raerty (2016)
1
para esses registros, os quais são intitulados objetos
digitais culturais ou documentação digital cultural. Contudo, a proteção
ao patrimônio cultural e audiovisual, no que concerne particularmente
à sua memória e, em consequência, à preservação desses registros, nem
sempre foi alvo de preocupação de políticas públicas e não acompanhou o
desenvolvimento tecnológico de tais recursos de informação.
FOSTER, A.; RAFFERTY, P. (ed.). Managing digital cultural objects: analysis, discovery and retrieval.
London: Facet Publishing, 2016.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p15-20
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
16 |
Os capítulos deste livro, organizado pelas professoras Miriam
Paula Manini, Eliane Braga de Oliveira e Ana Lúcia de Abreu Gomes,
evidenciam a escolha nas abordagens dos caminhos percorridos por seus
autores, cuja distinção autoral determinante se direcionou ou perpassou
nos enfoques quanto à complexidade dos acervos fotográcos e audiovisuais
nas instituições custodiadoras e sua organização, memória como relato e
perspectiva cognitiva e preservação audiovisual. Também observamos a
pujança da topicalidade deste livro na expressividade do quadro referencial
usado pelos seus autores, ora pressupostos teóricos ou losócos, ora
pressupostos oriundos da experiência empírica, possibilitando ao leitor a
opção pela escolha dos traços referenciais quanto à natureza do estudo.
Neste momento, acreditamos que seja oportuno retomar, na
perspectiva desta obra, o que se objetiva atualmente na prática acadêmica
das Escolas de Informação, que poderíamos relacionar e expandir aos
Estudos em Informação aqui apresentados. Dillon (2013)
2
, sobre o tema
da “emergência da disciplina de informação” nas Escolas de Informação
(iSchools), acredita que a natureza dinâmica do campo da informação
é talvez a razão pela qual muitos de nós acabamos trabalhando nele.
Observa que, embora esteja em voga que as administrações universitárias
exponham de forma encorajadora os esforços interdisciplinares, do mesmo
modo acredita que, na realidade, poucas universidades ou departamentos
estão preparados para os enormes esforços envolvidos para transcender os
limites disciplinares. Contudo, o autor retoma o tom otimista de seu texto
apontando que estamos em uma época de novas Escolas de Informação
e talvez seja possível compreendermos melhor o nosso papel e propósito
como um esforço acadêmico. Na dimensão das características denidoras
dessas Escolas, indica três elementos, os quais vemos que tangenciam os
vários capítulos aqui desenvolvidos no universo da imagem, informação e
memória. São eles: o reconhecimento de que nenhuma disciplina existente
detém o monopólio da teoria e do método apropriados para o estudo
da informação e, portanto, pensa-se em intelectualidade diversicada e
participação coletiva de problemas compartilhados; a compreensão que o
DILLON, A. e emerging discipline of information. In: BAWDEN, D.; ROBINSON, L. Introduction to
information science. Chicago: Neal-Schuman, 2013. p. xvii-xix.
Imagem, Informação e Memória
| 17
tratamento da informação concebido é mediado por pessoas e tecnologia
em múltiplos ambientes, ao contrário de uma base restrita às práticas
convencionais de organização da informação (bibliotecas, arquivos, museus
etc.); e, por m, o compromisso com atividades de pesquisa que buscam
respostas a questões fundamentais e urgentes sobre a informação em todos
os empreendimentos humanos.
Nessa perspectiva de domínios do conhecimento de múltiplos
registros e acesso compartilhado, concebemos que os treze capítulos
possuem estruturas próprias e podem ser agrupados nos eixos “cine-
audiovisual e memória” e “fotograa e memória”.
Antes de apresentar os textos que compõem esta coletânea,
evidenciamos a atuação da professora Miriam Paula Manini na criação e
coordenação do grupo de pesquisa Imagem, Memória e Informação (IMI),
espaço que proporcionou frutíferas pesquisas e discussões sobre o tema
deste livro, resultando em diversos trabalhos de nal de curso, dissertações
e teses na Universidade de Brasília (UnB) e demais relevantes atividades da
vida acadêmica da professora.
Neste sentido, iniciamos a apresentação desta coletânea pelo último
capítulo, de autoria da mencionada professora, também pelo fato deste
não se congurar especicamente em um dos eixos citados, perpassando-
os, em função de sua natureza de estudo bibliográco. Realizado pela
autora no período de 2002 a 2017, este foi impulsionado pelo seu
interesse acadêmico no tema. Em consequência, foram sistematizadas
listas temáticas, assim denominadas pela autora, referentes aos seguintes
assuntos: análise da informação imagética, análise documentária de
imagens (ADI), análise documentária de lmes, análise documentária
de fotograas, imagem, memória e informação na ADI e tratamento da
informação de imagens digitais. A autora ainda vericou a contribuição
de seus estudos na formação acadêmica dos graduados e pós-graduados
na área. No capítulo 1, Aline Camargo Torre e Antonio Laurindo Santos
Neto expõem o panorama do acervo audiovisual custodiado pelo Arquivo
Nacional, no que tange aos desaos enfrentados e soluções propostas
quanto ao tratamento técnico dos documentos audiovisuais. Igualmente
alertam como grandes desaos o diagnóstico de conservação (síndrome do
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
18 |
vinagre) com vistas à aplicação de procedimentos urgentes de restauração
e/ou duplicação e a “reformatação dos suportes e formatos obsoletos”. O
enfoque do capítulo 2, realizado por Johanna Wilhelmina Smit, é a reexão
sobre os documentos audiovisuais a serem selecionados e preservados pelas
instituições-memória como representativos da memória e integrantes desses
acervos. Nesse desao, também aborda o que denomina de paradoxo entre
documentos textuais e audiovisuais, entre memória individual e memória
coletiva; e a distinção entre memória e reminiscência. A leitura do capítulo
3 apresenta as preocupações de Mateus Nagime em relação à preservação
dos materiais esportivos digitais, entre estes os audiovisuais. Acentua
sobre o estabelecimento desse material como integrante do patrimônio
audiovisual, “seja regional (do país, da cidade, ou mesmo do mundo) ou
esportivo (da história de um esporte especíco, ou de um clube, ou de
um atleta) ou ainda patrimônio simbólico pessoal do atleta, fã, cidadão”.
Descreve que, atualmente, dois arquivos são dedicados prioritariamente
a arquivar imagens esportivas: a Fundação Olímpica pela Cultura e
Patrimônio, em Lausanne, Suíça, e a Iconoteca (Iconothèque) do Instituto
Nacional do Esporte, Expertise e da Performance (INSEP), em Paris,
França. Contudo, o autor menciona as limitações fundamentais no escopo
desses arquivos.
No eixo Cinema, Informação e Memória, Alcilene Cavalcante de
Oliveira discute as inquietações provocadas pelos lmes realizados por
mulheres no Brasil na década de 1970, quando, então, é analisado o longa-
metragem Feminino plural (1976), de Vera de Figueiredo. Estão reunidos
também neste eixo o artigo de Eduardo Morettin, Daniela Giovana
Siqueira e Debora Butruce que atentam, no campo da preservação
audiovisual, para questões concernentes ao conceito de original em uma
obra audiovisual e suas implicações quanto ao signicado de restauração
ligado a esse universo. Relacionam as questões da preservação à análise de
dois lmes brasileiros realizados em contextos muito diversos: Os óculos
do vovô (1913), de Francisco Santos, e Crioulo doido (1970), de Carlos
Alberto Prates Correia. No capítulo 6, Maria Leandra Bizello estuda dois
lmes relativos à ditadura militar no período de 1964-1984: Hércules 56,
de Silvio Da-Rin (2006), e Trago comigo, de Tata Amaral (2016). Expõe que
Imagem, Informação e Memória
| 19
esses lmes tomam o relato, o testemunho como uma expressão histórica
de sujeitos que agiram, mas não foram reconhecidos em sua historicidade”.
No capítulo 7, Solange Puntel Mostafa analisa o lme Persona (1966),
de Ingmar Bergman, objetivando contemplar a análise das imagens numa
conjugação entre a losoa da diferença e a Ciência da Informação. Para
tal, recorre ao aporte da teoria de Deleuze no que tange em especial à
“imagem- afecção” para ns de nomeação de termos de indexação como
um exercício de reexão sobre esta possibilidade.
No eixo Fotograa, Informação e Memória, Ana Heloisa Molina e
Claudia Prado Fortuna abordam temas como fotograa e reminiscências, a
memória involuntária e a memória coletiva. Por meio de uma foto urbana de
Eugene Atget (1857-1927), as autoras exemplicam a questão dos “espaços
e os vazios de um local em transformação e a captura em seu registro de
uma memória da cidade que evoca e promove outras lembranças”. No
capítulo 8, Marcus Galindo e Albertina Otávia Lacerda Malta exploram a
interface fotográca resultante dos olhares entre o fotógrafo e o observador,
mediada pela tecnologia. “É um campo de conexão entre inteligências, área
compartilhada em que ocorrem as interações simbólicas complexas, sendo
um dispositivo lógico desenhado para viabilizar a troca de informação e
promover a ligação entre sistemas”. No item sobre a impermanência da
memória, os autores observam que coleções “possuem vida própria e
pedem tratamento em permanente evolução”. Ressaltam a preservação
digital como subcampo da curadoria digital, embora reconhecendo que
a preservação digital antecede à curadoria digital, “ela se acomoda mais
confortavelmente como um subcampo que propriamente uma área de
especialização”. Gabriela Fiorin Rigotti, no capítulo 9, dá continuidade à sua
proposta de pesquisa sobre a imagem da professora a partir das fotograas e
dos textos que as acompanham extraídos do livro fotorreportagem “Teia do
Saber: capacitação de professores da rede pública”, lançado pela Unicamp
em abril de 2006. Procura responder a indagações como: “Qual discurso
acerca da formação de professores – proferido pela academia, pelo Estado
e pelo grupo editorial responsável pelo livro analisado – estas fotograas
e textos ajudam a conrmar? Estas fotograas, analisadas a partir de seus
elementos constitutivos (cenários, gurinos, posições de câmera etc.) e com
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
20 |
o suporte dos textos, ajudam-nos a reconhecer as professoras conhecidas
pessoalmente durante as aulas do Teia do Saber? Será que a própria
professora fotografada se reconhece neste livro? Será que Dona Zezé se
reconheceria?”. No capítulo 11, Neiva Pavezi e Cristina Strohschoen dos
Santos descrevem sobre a produção fotográca da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM) e o desao do seu tratamento técnico arquivístico.
Assinalam as diculdades tocantes ao uso do código de classicação quanto
à especicidade da representação notacional desejada. A seguir, informam
os problemas que têm sido enfrentados na descrição e preservação
desses acervos fotográcos, assim como a incorporação de metadados
dos documentos fotográcos digitais no Sistema de Informações para o
Ensino da UFSM. Finalizando os textos deste eixo, Telma Campanha de
Carvalho Madio, no capítulo 12, examina a fotograa no seu contexto
histórico e a sua incorporação aos acervos das unidades de informação,
explorando o tratamento desses registros nos museus, nas bibliotecas e nos
arquivos. A autora reconhece a fotograa “como documento produzido
com intencionalidade e função denidas, destacando-se que não é possível
identicar e compreender somente os elementos visuais presentes, mas
contextos, objetivos/funções, procedimentos e técnicas necessárias para
o resultado da imagem”. Pondera que “arquivos, bibliotecas e os museus
deveriam considerar esse conjunto, séries ou sequências, como enunciados
de linguagem. Enunciados manifestos não unicamente na guarda de
fotograas, mas também na disposição, arranjo e apresentação”.
Ao encerrarmos este prefácio, gostaríamos de mencionar o desejo
de que este livro revele aos prossionais e pesquisadores em estudos
de informação dos registros visuais no campo da memória uma leitura
interessante e oportuna. Sem dúvida, um convite ao leitor.
Rosa Inês de Novais Cordeiro
| 21
A
A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um
instrumento para exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio
onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas
cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio
passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes
de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo
como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois
fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais
cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja,
as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas,
cam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso
entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador.
E certamente é útil avançar em escavações segundo planos. Mas
é igualmente indispensável a enxadada cautelosa e tateante na
terra escura. E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o
inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o
lugar no qual é conservado o velho. Assim, verdadeiras lembranças
devem proceder informativamente muito menos do que indicar o
lugar exato onde o investigador se apoderou delas. A rigor, épica
e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao
mesmo tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim
como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as
camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes
de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente.
(BENJAMIN, W. Escavando e recordando. Rua de mão única.
São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 239-240. (Obras Escolhidas, 2)).
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p21-28
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
22 |
Em julho de 2018 eu tive um sonho: estava reunida com muitas
pessoas, em local desconhecido; parecia uma festa, uma celebração, e as roupas
não combinavam muito com nosso tempo; havia alegria, cumplicidade e
um sentimento de satisfação que poderia ser por algum dever cumprido,
realizado com prazer. Mas o que isso tem a ver com nossas reexões, com
preocupações acadêmicas ou com o fazer intelectual?! Ao acordar e costurar
o sonho com minha memória, percebi que os personagens do meu lme
particular eram todos(as) colegas que trabalham com imagem.
Junto com as emoções de elaboração de sentido do sonho surgiu
imediatamente a ideia de organizar um livro sobre o tema. Uma lista inicial
somou 44 possíveis autores e logo percebi a necessidade de reduzir esse
número para tornar mais realista essa publicação. O cabalístico número 13
serviu para fecharmos os capítulos, escritos por 19 estudiosos. A vigésima
pessoa em meu sonho fecha a lista de convocados como prefaciadora.
É forçoso ressaltar os elos acadêmico-cientícos que inspiraram meu
subconsciente a fazer uma festa onírica desta magnitude. O Grupo de
Pesquisa Imagem, Memória e Informação (IMI)
1
, que em 2017 completou
10 anos de existência, está aqui representado por alguns de seus membros (e
ex-membros), que trazem, além de resultados quantitativos de pesquisas –
o estado da arte da análise da informação de imagens fotográcas e fílmicas
–, reexões acerca de fotograa e memória e reminiscências dessa relação;
os desaos dos arquivos fotográcos nas instituições de ensino superior; e
a análise das imagens numa conjugação entre a losoa da diferença e a
Ciência da Informação: o que é preciso entender nas imagens para que se
possa indexá-las?
Quatro projetos, em especial, desenvolvidos dentro do IMI são a base do
que se apresenta: Acervos Audiovisuais no Distrito Federal e em Goiás (2011-
2016); Documentos Audiovisuais, Informação e Memória: identicação
de acervos fotográcos e fílmicos no Distrito Federal - Fase 1 (2013-2017,
CNPq); Documentos Audiovisuais, Informação e Memória: identicação
de acervos fotográcos e fílmicos no Distrito Federal (2017, Capacitação); e
Documentos Audiovisuais, Informação e Memória: identicação de acervos
Disponível em: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3981. Acesso em: 1 ago. 2019.
Imagem, Informação e Memória
| 23
fotográcos e fílmicos no Distrito Federal - Fase 2 (2017-2018, FAP/DF).
Estes projetos movimentaram estudantes e professores da Universidade de
Brasília e acervos do Distrito Federal e região.
Alguns outros Grupos de Pesquisa e Laboratórios representados nesta
obra evidenciam interesses em comum, que se coadunam em reexões
presentes em artigos acadêmicos compartilhados, em mesas redondas e em
grupos de trabalho em eventos cientícos. São eles: Arquivos, educação
e práticas de memória: diálogos transversais (UFMG); Cinemídia –
Estudos sobre História e teoria das mídias audiovisuais (UFSCar); Estudos
audiovisuais – OLHO (UNICAMP); Formação e atuação prossional em
organização da informação (UNESP); História e audiovisual: circularidades
e formas de comunicação (USP); História, gênero e identidades em
artefatos audiovisuais (UFG); Iconograa e memória (UEL); Imagem,
fotograa e cinema (UNESP); Imaginário e informação: estudos culturais
e comparativos (UFF); Memória e sociedade (UFPE); e Representação
temática da informação (UNESP).
Além de alguns autores fazerem parte da bibliograa de muitos
pesquisadores do Grupo IMI – e, certamente, de muitos dos Grupos
acima citados –, eles também são interlocutores em eventos da Associação
Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) – que se reúne anualmente
na Mostra de Cinema de Ouro Preto (CINEOP) –, da Associação Nacional
de Pesquisa em Ciência da Informação (ANCIB) e da Associação Nacional
de História (ANPUH), três grandes fóruns de debate sobre imagem,
memória e informação.
Retomando o fato que originou esse encontro de autores – um
verdadeiro sonho realizado –, aponto para a já observada similaridade
entre a narrativa de cinema e a experiência onírica. Cinema e psicanálise,
além de serem contemporâneos – enquanto os irmãos Lumière faziam suas
primeiras exibições do cinematógrafo, Freud publicava seus Estudos sobre a
histeria –, aproximam-se, atualmente, em torno da conguração do sujeito.
O encadeamento de imagens, a logicidade temporal de princípio,
meio e m – mesmo com os ashbacks do cinema e as experimentações
mais recentes de deslocamento temporal narrativo – e a possibilidade
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
24 |
sempre presente de relacionar passagens do lme com nossa vida particular
fazem do cinema uma arte psicossocial por excelência.
Nesta vivência algumas vezes catártica, algo provoca interrogações:
por que nos emocionamos com a exibição de determinados lmes, chegando
mesmo a chorar? Por que, às vezes, muitas pessoas se emocionam com a
mesma cena ou sequência? A Neurociência explica, mas a atenção, aqui,
deve recair sobre o alcance do cinema enquanto elaboração, construção e
reconhecimento da memória pelo indivíduo.
Com o objetivo de alocar os assuntos abordados pelos autores, a
obra está dividida em três blocos: Audiovisual, Informação e Memória
(AIM), Cinema, Informação e Memória (CIM) e Fotograa, Informação
e Memória (FIM). Tal divisão é puramente um exercício “maníaco” de
colocar em escaninhos tudo que se considera classicável, catalogável. No
conjunto, somos todos membros de uma mesma festa da imagem.
Concluindo, tomo a liberdade de colocar como lema de encerramento
do nosso livro a escolha pela memória:
Eu escolho a memória. A desmemória assombra porque não a
nomeamos, respira em nossos porões como monstros sem palavras.
A memória, não. É uma escolha do que esquecer e do que lembrar
– e uma oportunidade de ressignicar o passado para ganhar
um futuro. Pela memória nos colocamos não só em movimento,
mas nos tornamos o próprio movimento. (BRUM, E. Meus
desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São
Paulo: LeYa, 2014. p. 83-84.)
AIM,
CIM,
FIM!
Miriam Paula Manini
| 25
H 
M P M
Para nós, autores dos artigos compilados nesta publicação, este livro
não é apenas a concretização de um projeto prossional, mas – sobretudo –
uma homenagem pessoal à Professora Miriam Paula Manini, idealizadora
e uma das organizadoras deste material.
Miriam, depois de anos em terapêuticas para o câncer, nos deixou
tempos antes de os trabalhos para esta coletânea de textos serem ndados.
Seu intento para que esta obra se materializasse, segundo ela própria,
transformou-se em um objetivo pessoal, um propósito que lhe dava gosto
e trazia um sopro de vida em meio aos desaos e limitações impostos pela
doença, tomando ainda maior importância depois de sua aposentadoria
no ano de 2019.
Formanda em Ciências Sociais pela UNESP/Araraquara, Especialista
em “Conservação e Preservação Fotográca” pelo Centro de Conservação
e Preservação Fotográca da FUNARTE e também em “Organização
de Arquivos” pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Mestra em
Multimeios pela UNICAMP e Doutora em Ciências da Comunicação
pela USP, Miriam foi Professora Associada da Faculdade de Ciência da
Informação da UnB, onde atuou no Curso de Arquivologia e no Programa
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
26 |
de Pós-Graduação em Ciência da Informação, lugares de gênese desta
obra que, no entanto, ultrapassa as fronteiras da Instituição – modo como
Miriam sempre gostou de trabalhar!
Na UnB, Miriam foi a criadora e a coordenadora do Grupo de
Pesquisa “Imagem, Memória e Informação” – IMI, em funcionamento
entre os anos de 2013 e 2019. O grupo teve como objetivo estudar questões
relacionadas às imagens fotográcas, fílmicas, pictóricas, conceituais
e iconográcas em geral e suas relações com a memória e o patrimônio
histórico na perspectiva da ciência da informação. Durante seu período
de atividade, o grupo contou com a participação de estudantes de vários
cursos de graduação e de pós-graduação da UnB, além de professores e
pesquisadores de várias universidades brasileiras.
No ensino de graduação, Miriam responsabilizava-se prioritariamente
pelas disciplinas de “Arquivo”, “Cinema”, “Informação e Memória” e
“Conservação e Restauração de Documentos”, espaços onde apresentava
reexões e provocações, conquistando estudantes para participação em
projetos de iniciação cientíca, especialização, mestrado e doutorado.
Entre os vários reconhecimentos por ela recebidos em vida, destacam-
se a menção honrosa por orientação em Projeto de Iniciação Cientíca,
conferida pelo Decanato de Pós-Graduação da UnB, e também o Prêmio
CAPES de Tese, concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – CAPES, ambos em 2015.
Cabe, ainda, ressaltar a atuação de Miriam junto ao projeto
de pesquisa “Documentos Audiovisuais, Informação e Memória:
identicação de acervos fotográcos e fílmicos do Distrito Federal”,
realizado entre 2013 e 2018 e que mapeou acervos de imagens xas e
em movimento da região, tendo em vista a necessidade e a importância
destas informações para pesquisadores, acadêmicos, cineastas, fotógrafos
e para o público em geral. Ao nal, os dados apontaram a escassez de
acervos fotográcos e fílmicos nas organizações visitadas, a ausência
signicativa de tratamento adequado à conservação dos acervos, além
de certo desconhecimento técnico dos responsáveis pelo manuseio
dos documentos. Observou-se a necessidade urgente de ações que
contribuíssem para a preservação do material, bem como para a criação
Imagem, Informação e Memória
| 27
de condições de acesso público aos acervos e, perante isso e consciente da
necessidade de preservar e dar acesso a esses registros, Miriam defendia a
criação de um Museu da Imagem e do Som na capital do país.
Fato é que, desde os idos como cursante do Mestrado, ainda entre os
anos de 1989 e 1993, Miriam se especializou no estudo da imagem e das
problemáticas concernentes à sua incorporação aos acervos documentais.
Nesse sentido e no intuito de fazer desta uma publicação que espelhe a
riqueza de sua contribuição ao ensino e à pesquisa não só do Distrito
Federal como do país, este livro procura evocar reexões suscitadas por
ela junto a seus parceiros de trabalho ao longo de toda a vida, sendo, para
tanto, ainda conveniente destacar sua atuante participação como membro
da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), cuja missão
é contribuir para o desenvolvimento e aperfeiçoamento técnico, cientíco
e cultural dos prossionais que atuam no campo da preservação, área de
natureza interdisciplinar.
Junto à ABPA, assim como ao IMI e em tantos outros lugares pelos
quais contribuiu, Miriam – logo chegando com seu Barthes
1
– buscava
auxiliar na interlocução entre diversos campos de saber, estimulando
o diálogo aberto, a conscientização sobre a importância da preservação
de nossas memórias e o interesse público pela salvaguarda e acesso ao
patrimônio cultural imagético brasileiro.
Sua atividade como prossional, assim como sua personalidade de
humor sagaz e acolhida carinhosa, permanecerá para nós, companheiras e
companheiros de trabalho, amigas e amigos de vida, não apenas na forma
como os artigos desta coletânea se apresentam, mas como exemplo de
competência e de generosidade!
Os autores
Março de 2020.
28 |
A,
I 
M
| 31
A  
: 
     
 
Ms. Aline Camargo Torres
1
Ms. Antonio Laurindo dos Santos Neto
2
O Arquivo Nacional (AN) tem sido ao longo de sua trajetória de 180
anos um farol no que se refere às boas práticas de organização, preservação e
difusão de documentos arquivísticos. Os procedimentos técnicos adotados
e desenvolvidos na Instituição costumam servir de inspiração e modelo
para pequenos e grandes arquivos brasileiros e do exterior. São constantes
os pedidos de orientação por meio de mensagens eletrônicas e de visitas
técnicas. Com o audiovisual não tem sido diferente, ainda mais por ser o
AN instituição arquivística que tem uma atuação de grande relevância na
gestão de acervos de cinejornais, lmes de cção, documentários, lmes de
família e programas de TV.
Mestre em História, Política e Bens Culturais; Técnica em Assuntos Culturais do Arquivo Nacional. E-mail:
aline@an.gov.br.
 Mestre em Ciência da Informação; arquivista do Arquivo Nacional. E-mail: antoniolaurindo@an.gov.br
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p31-42
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
32 |
Em virtude do acervo e da qualidade técnica desenvolvida,
mais precisamente nos últimos 30 anos, o AN possui participação em
importantes fóruns e entidades nacionais e internacionais, como a
Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), a Coordinadora
Latinoamericana de Archivos de Imágenes em Movimiento (CLAIM) e a
Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (APBA). Com isso, existe
a possibilidade de um permanente intercâmbio de conhecimento por meio
de encontros prossionais e acesso à literatura especíca da área.
Busca-se, aqui, apresentar um panorama do acervo audiovisual
custodiado pelo AN, destacando os desaos para seu tratamento técnico,
bem como as soluções encontradas pelos que se dedicam à tarefa, sempre
movidos no sentido de tornar esse valioso acervo cada vez mais visível e
disponível à consulta e para utilização pelos cidadãos.
os doCumentos AudiovisuAis no Arquivo nACionAl
O AN, a partir da década de 1980, começa a receber expressivos
conjuntos de documentos audiovisuais. São documentos que foram
recolhidos do poder executivo federal, doados por pessoas e entidades
privadas ou depositados em regime de comodato por grandes cineastas e
produtoras brasileiras. Pode-se destacar, na gênese da história do audiovisual
no AN, a chegada do acervo da Agência Nacional, de natureza pública, e
da TV Tupi, de natureza privada. Os documentos audiovisuais desses dois
acervos, juntamente com os das extintas TVE e Divisão de Censura de
Diversões Públicas, são os mais conhecidos, consultados e reproduzidos
por pesquisadores do Brasil e do exterior.
O acervo de lmes em regime de comodato no AN, composto
por mais de 100 conjuntos distintos, formou-se por uma modalidade
de aquisição sui generis. Difere, portanto, das formas mais usuais de
entrada de acervos – o recolhimento (no caso dos públicos) e a doação
(no caso dos privados) –, e sua acolhida pela Instituição é evidência do
reconhecimento da importância dessas obras para a história e a cultura
do país. Tratam-se, principalmente, de lmes que estavam depositados
na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.
Imagem, Informação e Memória
| 33
Uma situação bem circunscrita em determinado espaço de tempo (anos
2002 e 2003) e contexto especíco, qual seja, a iniciativa do MAM de
devolver os lmes para seus respectivos detentores legais. Essa devolução
colocava em risco um importante patrimônio audiovisual e poderia fazer
com que obras signicativas para os cariocas e uminenses migrassem
para a capital paulista. Cabe destacar que, após o recebimento dos lmes
que estavam na Cinemateca do MAM, o AN passou a ser uma alternativa
para outros cineastas e produtoras. Um exemplo foi o depósito de toda
a lmograa do cineasta Nelson Pereira dos Santos, que antes estava
depositada na Cinemateca Brasileira, na cidade de São Paulo. Nos últimos
anos a instituição deixou de receber mais lmes pela modalidade comodato
em virtude da falta de espaço para um armazenamento adequado e da
necessidade de rever e discutir mais amplamente uma política para
recebimento de acervos privados.
doCumentos AudiovisuAis no Contexto ArquivístiCo
Compreender o modo como se organizam os documentos
audiovisuais no AN pressupõe conhecer, ainda que de forma sumária,
a missão e a estrutura organizacional da Instituição. Cabe esclarecer,
portanto, em primeiro lugar, que não se guardam registros audiovisuais
no AN apenas pelo fato de conterem imagens em movimento, ainda
que se reconheça o fascínio e o poder de remissão ao passado que essas
imagens são capazes de despertar. Ao contrário do que ocorre em uma
cinemateca, por exemplo, onde se guardam lmes exatamente pelo fato
de serem lmes, em uma instituição arquivística esses registros, via de
regra, assumem outra dimensão.
Os documentos audiovisuais, no AN, estão intrinsecamente ligados
aos demais gêneros documentais custodiados pela Instituição (textual,
sonoro, musicográco, iconográco e cartográco). Fazem parte,
assim, de conjuntos documentais orgânicos, que reetem as atividades
do produtor de cada um desses conjuntos, sejam entidades coletivas
públicas ou privadas, pessoas físicas ou famílias. Falar em organicidade
– um conceito caro ao campo dos arquivos – signica destacar a relação
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
34 |
que guardam entre si os itens de um mesmo conjunto documental. É essa
relação que permite contextualizar e, portanto, compreender, a um só
tempo, o signicado de cada item, o lugar de cada um deles no conjunto
documental, o conjunto como um todo e também as ações que, no
passado, deram origem à documentação.
No campo dos arquivos, opera-se, portanto, com a ideia de que
um item documental só pode ser compreendido em seu contexto de
produção (ou seja, junto aos demais itens produzidos em função de um
determinado evento). Sem desconsiderar a força retórica da assertiva,
e sem ignorar o valor intrínseco de itens documentais avulsos, busca-
se destacar o quanto se ampliam as possibilidades de interpretação
do passado a partir da reunião de um maior número de vestígios. Os
documentos são assim melhor compreendidos e, por meio deles, também
as ações que no passado os originaram. As possibilidades interpretativas
de um lme ou de um programa de TV, por exemplo, certamente
serão ampliadas se, além do registro audiovisual, estiverem acessíveis as
diferentes versões do roteiro, a cha de gravação, a comunicação trocada
entre os responsáveis pela obra, fotograas do making o, notas e demais
documentos referentes a questões orçamentárias, material de divulgação
e críticas, entre outros.
Problematizando a noção de “documentos especiais”, o trabalho
de organização de documentos audiovisuais no AN é regido, portanto,
pelos mesmos princípios da organização de documentos arquivísticos
em geral, ou seja, pelo esforço em recuperar o contexto de produção
desses documentos, articulando-os de forma a permitir sua utilização e
o conhecimento do passado por parte dos usuários da Instituição. Não
se trata, portanto, de operar com recortes temáticos ou tipológicos que
atendam a esta ou àquela demanda de pesquisa. O trabalho arquivístico
consiste em recuperar a lógica de produção dos documentos, permitindo
assim que sejam dados a conhecer as ações e o funcionamento da
entidade produtora, sejam instituições ou indivíduos. A lembrança,
a produção cultural contemporânea, o conhecimento do passado e a
busca de provas na garantia de direitos – entre eles, o próprio direito
à identidade e à memória – são em geral os motores da busca dos
Imagem, Informação e Memória
| 35
arquivos por parte dos cidadãos. Organizar tais documentos de forma
arquivística, garantindo pleno acesso à potencialidade de seu conteúdo,
é a tarefa colocada aos técnicos da Instituição ao longo de gerações. E
não são poucos os desaos enfrentados.
desAfios PArA o trAtAmento téCniCo de doCumentos AudiovisuAis
De acordo com Saavedra Bendito (2011, p. 18), os documentos
audiovisuais são marcados pelas seguintes características: diversidade
de materiais, dependência tecnológica, fragilidade dos suportes,
obsolescência, volume de informação e complexidade para análise e
descrição. Tudo isso pode ser observado no dia a dia do processamento
técnico e dos procedimentos de conservação aos quais os documentos
audiovisuais são submetidos no AN. São características que possuem
relação de dependência. Conhecê-las e as dominar é fundamental para a
qualidade do processamento técnico. Um documento que não possui um
aparato tecnológico para ser visto e ouvido terá uma descrição deciente
e, consequentemente, o usuário não saberá ao certo qual conteúdo
encontrará caso haja a possibilidade de uma digitalização. É possível,
inclusive, que o usuário sequer consiga localizar o documento, pois não
encontrarão resposta os seus ltros de busca. O aspecto tecnológico,
limitador da análise e representação do conteúdo de documentos
audiovisuais, é um dos principais desaos enfrentados hoje pelos técnicos
no AN, para que o acesso possa ser plenamente concedido.
O trabalho de processamento técnico do acervo, por meio da descrição
arquivística, consiste, primordialmente, em criar instrumentos que sirvam
de ponte entre pesquisadores e acervo. Mas como descrever o conteúdo
de um documento, tornando-o acessível a pesquisas as mais diversas, se
o acesso dos próprios técnicos do AN a esse conteúdo é limitado? Como
descrever de forma satisfatória o conteúdo de uma película cinematográca
apenas com base no que se verica em mesa de revisão, desenrolando o lme
e, com auxílio de lâmpada e lupa, conferindo fotograma por fotograma,
sem audição do som quando este se encontra impresso na película? Como
descrever plenamente o conteúdo de uma ta videomagnética obsoleta
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
36 |
como a ta quadruplex (só no acervo da TV Tupi, são mais de 500 delas), se
a Instituição não dispõe de equipamento apropriado, nem de investimento
para contratação do serviço de reformatação dessas tas?
Nesse contexto, e sempre visando ao acesso, a diretriz tem sido
a de tornar pública, por meio do Sistema de Informações do Arquivo
Nacional (SIAN), todas as informações possíveis sobre os documentos
que compõem o acervo, por mais sumárias que possam parecer. São,
muitas vezes, informações como título, local e/ou data de produção, nem
sempre precisas, localizadas nas embalagens, nas pontas ou créditos de
lmes, entre outros, e que permitem ao pesquisador supor algum tipo
de vinculação entre o item documental e seu objeto de pesquisa
3
. Muitas
consultas ao acervo audiovisual são feitas a partir dessa suposição, no
intuito de conrmá-la. O usuário também verica películas em mesa
de revisão e, caso tenha interesse em acessar o conteúdo de formatos
magnéticos para os quais a Instituição não disponha de equipamentos,
solicita a reformatação do documento, arcando com os custos. É
estabelecida, dessa forma, uma parceria entre a Instituição e seus
usuários, como forma de minimizar os prejuízos advindos da ausência
de um programa institucional de reformatação, sem desconsiderar as
diculdades orçamentárias e tecnológicas para seu desenvolvimento.
Uma amostra das limitações para a análise e a descrição do
conteúdo de documentos audiovisuais, e da parceria profícua que tem se
estabelecido entre a Instituição e seus usuários, pode ser vericada a seguir.
Apresenta-se um recorte de pesquisa realizada no SIAN, onde aparecem
quatro dossiês (n° 105 a n° 108) do fundo TV Tupi (código NO), Série
Programas de Televisão (código PGV). Cada dossiê corresponde a uma
ta videomagnética em formato quadruplex, que não possui o respectivo
player de reprodução no AN.
 SIAN. Disponível em: <http://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp>. Acesso em: 12 mar. 2019.
Imagem, Informação e Memória
| 37
Figura 1: Títulos de dossiês da TV Tupi
Fonte: Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).
http://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp.
Os títulos dos documentos BR RJANRIO NO.0.PGV.105, BR
RJANRIO NO.0.PGV.106 e BR RJANRIO NO.0.PGV.108 foram baseados
nas informações constantes nos rótulos das embalagens das tas quadruplex
(Fundo TV Tupi). Como ainda não foi possível assistir às imagens nem
ouvir os registros sonoros, os documentos não possuem descrição do
conteúdo no SIAN.
Já o documento BR RJANRIO NO.0.PGV.107 passou pelo processo
digitalização, o que possibilitou a análise e descrição do conteúdo no
Sistema
4
Antes da digitalização e do acesso pleno ao conteúdo, constava no
SIAN apenas a informação “Programa Flávio Cavalcanti”. Essa descrição,
ainda que sumária, despertou o interesse do usuário, que forneceu ao
AN uma cópia do arquivo digital, permitindo a revisão da descrição por
parte da equipe de técnicos, a preservação da informação contida em um
suporte obsoleto e em deterioração e o acesso de outros pesquisadores ao
representante digital.
Algumas informações sobre o acervo audiovisual são encontradas
também em outros gêneros documentais. As chas de gravação dos
programas da TV Tupi, por exemplo, são documentos textuais do
conjunto documental fundamentais para a contextualização das tas e para
a descrição de seu conteúdo. E nos deparamos agora com mais um desao
colocado ao tratamento técnico dos documentos audiovisuais no Arquivo
 Digitalização realizada na TV Record, por solicitação de usuário.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
38 |
Nacional: a própria estrutura organizacional da Instituição, que separa as
equipes de trabalho, de maneira geral, por gênero documental.
Apresenta-se, a seguir, a estrutura da Coordenação Geral de
Processamento Técnico e Preservação do Acervo.
Figura 2: Estrutura da Coordenação Geral de Processamento Técnico e
Preservação do Acervo do Arquivo Nacional
Fonte: Organograma elaborado pelos autores.
Percebe-se que as equipes responsáveis pelo acervo são separadas
por gênero documental (o volume da documentação textual é tão
expressivo que as equipes são separadas, ainda, pela procedência da
documentação). A divisão das equipes de trabalho da maneira como se
apresenta pode ser facilmente compreendida quando se pensa no volume
da documentação custodiada por uma Instituição como o AN: são
dezenas de quilômetros de estantes de documentos textuais e milhares
de documentos iconográcos (fotograas, negativos, cartazes, charges,
cartões postais e ilustrações, entre outros), mapas, plantas, películas
cinematográcas, tas videomagnéticas (quadruplex, u-matic, betacam,
VHS, entre outras), documentos sonoros (discos, tas rolo, tas cassete)
Imagem, Informação e Memória
| 39
e partituras musicais. Os documentos remontam ao século XVI e exigem,
muitas vezes, a leitura por técnicos especializados. A experiência de longos
períodos no tratamento de um gênero documental especíco contribui
para a formação desses especialistas, extremamente importantes ao
desenvolvimento do trabalho: técnicos habituados à leitura paleográca,
ou ao reconhecimento de sionomias e localidades, ou ao manuseio e
identicação de materiais cinematográcos, por exemplo. A ramicação
por gênero documental contribui, assim, para a especialização dos técnicos
na leitura e análise dos documentos de diferentes linguagens. No caso dos
documentos audiovisuais, os aspectos imagéticos e sonoros precisam ser
compreendidos e representados na descrição e indexação.
Nesse sentido, é possível reconhecer que a estrutura organizacional do
AN favorece a distribuição das tarefas de tratamento do acervo e a formação
de especialistas. Por outro lado, no entanto, essa mesma estrutura diculta
a recuperação do contexto de produção dos documentos que integram
um determinado conjunto documental, visto que as equipes, em geral,
conhecem apenas a parcela da documentação que está sob sua custódia.
Como, de fato, recuperar o contexto de acumulação de um documento
audiovisual pela Censura, por exemplo, sem conhecer o processo
administrativo que reúne registros da submissão da obra e pareceres de
censores? Se o trabalho arquivístico consiste em recuperar o contexto de
produção dos documentos que integram um conjunto (independente de
gênero ou formato), como não reconhecer que a estrutura das equipes
se constitui em um entrave ao desenvolvimento do trabalho? E, questão
ainda mais complexa: como pensar uma estrutura ideal, capaz de conjugar
especicidade técnica e integração de gêneros documentais distintos?
Conscientes dessas questões, e no intuito de contorná-las, os
técnicos têm buscado cada vez mais o diálogo, o compartilhamento
de informações e a realização de trabalhos integrados. Observe-se o
exemplo a seguir, também composto por dossiês do fundo TV Tupi,
Série Programas de Televisão.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
40 |
Figura 3: Descrição do conteúdo de um programa da TV Tupi
Fonte: Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).
http://sian.an.gov.br/sianex/consulta/login.asp.
Pode-se vericar que a cha técnica de gravação (documento
textual), identicada nas quatro referências, compõe o mesmo dossiê da
ta quadruplex (documento audiovisual), ainda que as áreas de guarda
sejam sicamente distintas, em razão inclusive das condições climáticas
de preservação de cada suporte. Mais uma vez, verica-se que um dos
dossiês (o BR RJANRIO NO.0.PGV.27) foi digitalizado, permitindo uma
descrição mais completa que os demais, que não puderam ser acessados
pela equipe responsável.
Imagem, Informação e Memória
| 41
ConsiderAções finAis
Buscou-se apontar questões presentes no cotidiano daqueles que
se dedicam ao recebimento, conferência, identicação, denição de
arranjo, descrição nos sistemas de informação, indexação, elaboração
de instrumentos de pesquisa e realização do inventário topográco dos
documentos audiovisuais que integram o acervo do AN. O produto
nal desse trabalho, a despeito do interesse e da dedicação dos técnicos
que o desempenham, será inuenciado por fatores tais como estrutura
organizacional, estado de conservação dos documentos, obsolescência
e dependência tecnológica e limitação de pessoal disponível para
realização das tarefas.
Pode-se apontar como maiores desaos: o diagnóstico de conservação
para saber quais películas já estão com síndrome do vinagre
5
e precisam
com urgência passar por processos de restauração e/ou duplicação, além da
realização mesma desses processos; a reformatação dos suportes e formatos
obsoletos, como as tas de 1 polegada e quadruplex; e, ainda, a análise e
descrição de conteúdo, diante do expressivo volume de material e de todas
as limitações já mencionadas.
É recomendável que um programa institucional de digitalização
do acervo audiovisual seja desenvolvido e implantado, contemplando
a manutenção das matrizes originais, a restauração de documentos
deteriorados e a criação de padrões de preservação digital para que
a preservação e o acesso ao conteúdo desses documentos possam ser
integralmente efetivados.
Reconhecer a importância dos arquivos para o desenvolvimento
do país, garantindo investimentos que permitam a superação dos
desaos e o pleno acesso dos cidadãos ao acervo, constitui-se em tarefa
urgente e fundamental para a garantia de uma sociedade atuante e
consciente de sua história.
Síndrome do vinagre: processo irreversível de deterioração das películas de acetato, quando ocorre a
desplasticação e cristalização do suporte e a liberação de gases de ácido acético com cheiro de vinagre.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
42 |
referênCiAs
SAAVEDRA BENDITO. p. Los documentos audiovisuales: qué son y cómo se tratan.
Gijón: Ediciones Trea, 2011.5
| 43
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p43-52
Q   

Johanna Wilhelmina Smit
1
Uma resposta simples, quase automática, armaria que tudo o que
foi produzido em imagem e/ou som e é preservado pelas instituições-
memória representa uma memória.
Parece-me que a resposta simples enseja algumas considerações e
uma explicitação do lugar de fala adotado no texto que segue.
o lugAr de fAlA e um PArAdoxo
Começo pela explicitação do lugar de fala adotado: não se trata de
discutir a memória suscitada por todo e qualquer documento audiovisual
em todas as situações possíveis e imagináveis, mas inserir três delimitações
– essenciais – na discussão, a saber:
a) Para efeito da discussão a seguir, embora não ignore
diferenças importantes entre as instituições-memória ou os
lugares da memória (LE GOFF, 2003), que abrangem arquivos,
bibliotecas, museus, centros de memória, centros de informação
e documentação: tratarei delas de acordo com sua função maior,
Doutora em Análise do discurso; professora da Universidade de São Paulo. E-mail: cbdjoke@usp.br.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
44 |
qual seja, reunir, preservar e dar acesso a documentos audiovisuais,
como venho propondo desde os idos de 1993 (SMIT, 1993);
b) Suponho o documento audiovisual selecionado por uma
instituição-memória. A seleção, ao institucionalizar o documento,
confere-lhe um “selo de qualidade” e, idealmente, mas nem
sempre, agrega ao mesmo metadados sobre sua origem, autoria,
data de produção, conteúdo, dados técnicos etc.;
c) Suponho ainda uma denição que, embora genérica, aponte
para a distinção entre documentos representativos ou gurativos
em relação a outros, nos quais preponderam características
estéticas que se sobrepõem ao que é mostrado ou dado a ouvir:
o texto a seguir enfatiza os documentos representativos, que
representam” entidades ou acontecimentos, com múltiplas
consequências, como veremos a seguir.
Partindo, pois, do documento audiovisual selecionado por
uma instituição-memória, algumas considerações não podem ser
negligenciadas, iniciando pela distinção fundamental entre documentos
textuais e documentos audiovisuais. Sintetizando uma vasta bibliograa e
sem entrar em diferentes aspectos de discussões linguísticas e semióticas, é
necessário lembrar que os termos, escritos em qualquer língua, signicam
por convenção, já que a língua é produto de convenções sociais, ao passo
que a imagem e/ou som funcionam por projeção (SHATFORD, 1986.
p. 51): projeção de objetos ou atividades que nos são apresentados sob
forma de imagens e/ou sons. Diante de um texto, tenho consciência de
que estou diante de representantes: os termos representam coisas, ações,
conceitos abstratos. Se determinadas imagens e/ou sons podem adquirir
um sentido simbólico, com interpretações determinadas por convenções
sociais ou culturais, forçoso é lembrar que antes de se tornarem símbolos,
caso isto ocorra, a imagem e/ou som funcionam como imagem e/ou
som, representando algo (estado, ação) por projeção. A representação
por projeção está na origem da intromissão “indecorosa” do referente, “à
teimosia do referente”, que está sempre presente (BARTHES, 1989, p. 19)
Imagem, Informação e Memória
| 45
e do conceito da tese de existência, proposto por Schaeer (1996)
2
. Ao
contrário do texto, no qual o referente é entendido numa realidade externa
ao texto, no documento audiovisual pode se encontrar armações tais
como: “reconheço aquela fruta porque já a vi antes” ou “reconheço aquele
animal, embora não saiba seu nome, mas vejo que se trata de um animal”
ou, ainda, “reconheço a voz de fulano ou o canto de um passarinho, mesmo
que eu não consiga identicar o nome do passarinho”... sem que a presença
do documento que registra o som e/ou a imagem seja reportada.
A convivência social entre documentos textuais e audiovisuais,
desde tempos imemoriais, traz consigo um interessante paradoxo ao
atribuir uma maior importância ao documento textual (em virtude do
caráter convencional da língua?) mas ao mesmo tempo reconhecer que o
documento audiovisual é mais prazeroso, mais “fácil” de ser apreendido
(pelo seu caráter de projeção?), mais amigável e assim por diante. Apesar
do apelo exercido pelo documento audiovisual, continua válida a armação
de Guy, conde de Nevers, que em 1174 já dizia: “aquilo que queremos
reter e aprender de cor fazemos redigir por escrito, a m de que o que se
possa reter perpetuamente na sua memória frágil e falível seja conservado
por escrito e por meio de letras que duram sempre” (citado por LE GOFF,
2003, p. 445). Lógico, estas generalizações não se aplicam a todos os
documentos textuais (uma poesia pode ser extremamente prazerosa) ou a
todos os documentos audiovisuais (uma palestra de 3 horas, gravada, pode
ser percebida como extremamente enfadonha), mas no senso-comum o
paradoxo persiste: documento sério é documento textual, documento
agradável é audiovisual.
A distinção entre documentos textuais e audiovisuais repousa ainda
em outro fato, mais objetivo que a distinção descrita no parágrafo anterior:
a diversidade de suportes nos quais os documentos audiovisuais são
gravados, em comparação à diversidade muito menos expressiva no caso dos
documentos textuais, hoje associados quase que exclusivamente ao suporte
papel. Os suportes dos documentos textuais foram sendo paulatinamente
Schaeer (1996) trata a fotograa do ponto de vista da recepção, o que torna a obra muito pertinente aos
nossos propósitos. Diferentes conceitos por ele apresentados, como o da tese de existência, podem, a meu ver,
ser extrapolados para os outros documentos audiovisuais.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
46 |
alterados ao longo do tempo, mas a diversidade de suportes audiovisuais,
e sua rápida obsolescência, representa desaos – e maiores custos – para
sua preservação pelas instituições-memória. Comparado aos diferentes
suportes audiovisuais, o papel é menos frágil e mais estável, mesmo quando
esquecido” em algum sótão ou porão!
A generalização aqui proposta revela uma outra distinção entre
documentos textuais e audiovisuais, na medida em que, com exceção
da fotograa revelada e impressa, os demais documentos audiovisuais
pressupõem equipamentos para que se tenha acesso ao seu conteúdo
(projetor, gravador etc.). Estes equipamentos são também submetidos a
constantes atualizações tecnológicas, e equipamentos de algumas décadas
atrás não são mais fabricados, produzindo uma situação frequente em
arquivos audiovisuais quando o suporte foi preservado, mas não se tem
mais acesso ao seu conteúdo por falta do respectivo equipamento. A
digitalização reverteu esta distinção, pois agora, tanto documentos textuais
quanto audiovisuais, se produzidos em meio digital, são submetidos aos
mesmos desaos para serem preservados e terem seu acesso garantido.
O paradoxo entre documentos textuais e audiovisuais se revela ainda
por um outro ângulo, com grandes consequências para as instituições-
memória: no senso comum, é evidente que nem todo documento textual
é de guarda permanente e que, de tempo em tempo, impõe-se uma
avaliação para eliminar uma parte dos mesmos, ao passo que documentos
audiovisuais – em função de sua diversidade e fragilidade – são geralmente
associados a um caráter histórico ou permanente. Uma bibliograa sobre
critérios de seleção, visando à eliminação de documentos audiovisuais
ainda é bem restrita
3
.
Supondo o documento audiovisual selecionado e preservado, ainda é
necessário identicá-lo e organizá-lo para que o mesmo possa ser utilizado
no futuro e, portanto, justicar os desaos e custos envolvidos em sua
preservação.
Cito, a título de exemplo, um estudo elaborado por Leary (1985), a pedido da Unesco. Outros tantos estudos,
no mesmo sentido, seriam muito benvindos.
Imagem, Informação e Memória
| 47
A identifiCAção, desCrição e orgAnizAção do doCumento
AudiovisuAl
Os princípios que presidem a identicação, descrição e organização
de documentos audiovisuais nas diferentes instituições-memória diferem
em larga medida, pois as diferentes instituições atribuem funções
diferentes aos documentos, gerando representações (descrições) diferentes
e adotando critérios de organização igualmente distintos. No entanto,
se comparado ao documento textual, a representação e organização de
documentos audiovisuais insere diculdades especícas, em função de seu
caráter de projeção. Voltando à distinção entre o texto e o audiovisual (ou
seja, imagem e/ou som), o tratamento de documentos textuais relembra
o prossional, consciente ou inconscientemente, que ele está lidando
com termos de um código, que signicam por convenção. É como se um
anteparo separasse o documento do prossional, uma cortina que não
pode ser esquecida. O trabalho é desenvolvido através da compreensão de
termos da língua e executado através de termos. Este fato é de tal maneira
corriqueiro que acaba sendo naturalizado, mas não deixa de ser um fato.
No entanto, quando o prossional descreve e organiza documentos
audiovisuais, a gura da “cortina” desaparece, pois se está trabalhando
com imagens e/ou sons projetados por entidades ou ações e o referente
adere de tal maneira ao documento que passa a ser assimilado ao próprio
documento. O prossional sabe que está trabalhando com a gravação de
uma voz ou de um fenômeno (trovoada, erupção, acidente de carro) mas
é “como se” a fonte da voz ou do fenômeno estivessem presentes, diante
do prossional. Do mesmo modo, ao descrever e organizar imagens xas
ou em movimento, ele tenderá a esquecer que está diante de uma imagem
de determinado monumento ou de um documentário sobre os astecas ao
descrever o monumento ou os astecas. Ciente de que as armações acima
são excessivamente simplicadoras e generalizantes, ainda assim a distinção
entre o trabalho com conteúdos veiculados por um código – produto de
convenção – ou o resultado de projeções, parece-me permanecer pertinente.
A aparente “transparência” do documento audiovisual está na raiz
de muitas discussões relacionadas à descrição destes documentos e que
visam a separar o que é visto e/ou ouvido (o conteúdo do documento)
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
48 |
da identicação de seu signicado em determinada cultura e época.
Em outros termos, na ausência da “cortina” acima indicada, o ltro do
reconhecimento do código não está presente em nossas mentes, o que deve
ser constantemente relembrado para evitar que o prossional da instituição-
memória descreva o signicado do documento audiovisual, limitando
assim sua polissemia na medida em que cristaliza um signicado em
detrimento de potenciais outros signicados. A polissemia do documento
audiovisual
4
deve ser preservada, que seja para justicar e potencializar os
diferentes e múltiplos usos de documentos cuja preservação é mais cara do
que a preservação dos documentos em suporte papel.
A descrição do documento audiovisual insere uma distinção
complementar em relação ao documento textual, à qual não é dada, em
muitos casos, a devida importância. Rero-me à “forma” da expressão que,
no caso dos documentos textuais, é reconhecida e respeitada através da
identicação do tipo de documento, ou de seu gênero (trabalho cientíco,
poesia, cção, manual, dicionário etc.). Em diferentes instituições-
memória o documento audiovisual é identicado – manifestando
certo incômodo – como “documento especial” ou “multimeios”, duas
designações inapropriadas: o documento é “especial” em relação aos
documentos “normais”? E um documento sonoro é veiculado através de
um único meio – o som – e não de multimeios. A distinção de gêneros
dos documentos audiovisuais é complexa e, portanto, nem sempre
levada em conta. No entanto, levar em conta a “forma da expressão” do
documento audiovisual se congura como sendo a opção mais pertinente
para descrever o documento em sua especicidade audiovisual. A título
de exemplo, pode-se citar a menção ao enquadramento ou à posição da
câmera de uma imagem retratando um monumento: vejo o monumento
inteiro? Ou somente sua fachada? Trata-se de uma vista aérea ou de um
detalhe da escadaria? Em muitos casos, a descrição não chega a este tipo
de detalhe que, no entanto, mui provavelmente, constitui um critério
Nem todo documento audiovisual é polissêmico: a armação acima é generalizante ao extremo. Digamos
que a armação tem uma intenção didática, ao chamar a atenção para a distinção entre o que o conteúdo do
documento mostra e/ou dá a ouvir e os diferentes signicados que podem ser elaborados a partir do que é
mostrado ou dado a ouvir. Uma descrição que prioriza o signicado inibe outras interpretações, empobrecendo
o uso potencial destes documentos.
Imagem, Informação e Memória
| 49
frequentemente utilizado pelo usuário em sua pesquisa, em função de um
objetivo – audiovisual – perseguido!
o doCumento AudiovisuAl e A memóriA
Duas distinções são importantes:
a) A separação entre memória individual e memória coletiva;
b) A distinção entre memória e reminiscência.
A distinção entre memória individual e memória coletiva nos coloca
diante de mais um paradoxo, quando assumimos – sem ter como discordar
– que a memória audiovisual coletiva em certa medida determina a
memória individual, enquanto também somos obrigados a concordar com
diferentes escolas do pensamento, segundo as quais a memória individual
é distinta de um indivíduo ao outro, dependendo de acontecimentos
ocorridos e relações estabelecidas entre estes acontecimentos e fatos da
memória coletiva. Não é possível prever ou controlar (felizmente!) as
memórias individuais, mas é possível armar que as instituições-memória
organizam os acervos e sua representação de acordo com uma concepção
de memória coletiva, ao passo que cada indivíduo, ao acessar e pesquisar
por documentos audiovisuais nas instituições-memória, forçosamente
também leva em conta suas memórias individuais. Novamente, a excessiva
generalização tende a deixar na sombra situações particulares, tais como
o trabalho realizado por um prossional que deve encontrar imagens e/
ou sons para a produção de um documento audiovisual, ou, no outro
extremo, a pessoa que procura, na instituição-memória, por imagens que
documentem o passado de sua família.
Em relação à distinção entre memória e reminiscência, ou outra
terminologia que se queira adotar, forçoso é distinguir as informações
audiovisuais produzidas no passado e mantidas no passado, como que
congelando o passado (a memória), da capacidade do ser humano de
trazer ou evocar, voluntariamente, algumas informações do passado para o
presente (a reminiscência ou rememoração).
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
50 |
As instituições-memória preservam os documentos audiovisuais –
idealmente, contextualizando-os no momento de sua produção e, portanto,
no passado. Ao contextualizar (ou seja, identicar, descrever, analisar) os
documentos audiovisuais no passado, a instituição cria os meios pelos
quais a reminiscência pode ser realizada, pois esta supõe, forçosamente, a
organização da memória do passado. Encontramo-nos, desta feita, diante
de critérios organizativos de memória coletiva que presidem a organização
dos documentos, o contexto original dentro do qual os documentos foram
produzidos e a memória individual que forçosamente está presente na
mente do pesquisador que procura por documentos audiovisuais.
Isto dito, a memória custodiada e organizada pelas instituições-
memória é inerte (BARRETO, 1994), ela produz absolutamente nada, ela
diz nada, até o momento no qual um pesquisador, a partir de seus objetivos
particulares, busque pelas imagens e/ou sons e os faz falar: “[...] pois se um
chário é uma memória em sentido estrito, é contudo uma memória sem
meios próprios de rememoração e a sua animação requer a introdução no
campo operatório, visual e manual do investigador.” (LEROI-GOURHAN
apud LE GOFF, 2003. p. 461). Os documentos audiovisuais, produzidos
no passado, não falam, mas o pesquisador pode fazê-los falar: esta armação
leva a dois comentários, igualmente importantes:
a organização dada aos documentos audiovisuais, sua
representação através de palavras (classicação, resumo,
indexação, contextualização) tanto são imprescindíveis para
poder entender o documento no passado, como são essenciais
para detectá-lo, dentre tantos outros, como um documento
pertinente para o trabalho do pesquisador: a responsabilidade
envolvida no chamado “tratamento técnico” dos documentos
audiovisuais aparece assim em sua capital importância,
pois não é possível organizar um acervo audiovisual sem
nomear – nomeação exercida através do recurso a termos
(que signicam por convenção, certo?), sendo que o ato de
nomeação não deixa de ser um ato de poder no qual todos os
tipos de preconceitos podem ser embutidos (OLSON, 2002);
Imagem, Informação e Memória
| 51
o último comentário diz respeito ao pesquisador que, ao
procurar por documentos audiovisuais em uma instituição-
memória não consegue forçosamente se distanciar de suas
memórias individuais e fará a busca orientado por seu
repertório pessoal de imagens e/ou sons, repertório que lhe é
próprio e cuja extensão ele mui provavelmente ignora.
Voltemos à pergunta do início: qual memória audiovisual é
preservada pelas instituições-memória?
Como vimos, as instituições preservam uma memória
“institucionalizada”, produto de decisões conscientes (critérios de seleção
ou aquisição) ou inconscientes (acumulação sem critérios, ao sabor do
tempo). Os documentos audiovisuais, caros em sua preservação, desde que
organizados, transmitem informações sobre o momento de sua produção e
sobre o que mostram ou dão a ouvir, mas sua utilização dependerá em boa
medida tanto da organização feita, com respectivas nomeações, como dos
objetivos e repertórios particulares de quem busca por eles. Ou seja, estes
documentos, desde que organizados, podem provocar um processo pelo
qual eles são novamente trazidos ao presente, criando uma nova narrativa
no presente, assim como podem não provocar processo de rememoração
algum, à medida que mal ou não identicados.
referênCiAs
BARRETO, A. A. A questão da informação. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 8,
n. 4, 1994. p. 3-8.
BARTHES, R. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 1989.
LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
LEARY, W. H. Le tri des photographies en archivistique: étude du RAMP et príncipes
directeurs. Paris: Unesco, 1985. (PGI- 85/WS/10).
OLSON, H. A. e power to name: locating the limits of subject representation in
libraries. Dordrecht: Kluwer Academic Publications, 2002.
SCHAEFFER, J.-M. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográco. Campinas:
Papirus, 1996.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
52 |
SHATFORD, S. Analyzing the subject of a picture: a theoretical approach. Cataloging
& Classication Quarterly, New York, v. 6, n. 3. p. 39-62, 1986.
SMIT, J. W. O documento audiovisual ou a proximidade entre as 3 Marias. Revista
Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, Brasília, DF, v. 26, n. 1/2. p. 81-85,
1993.
| 53
P    A
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Ms. Mateus Nagime
1
os CAminHos dA PreservAção AudiovisuAl
Muito já foi dito sobre a história da preservação audiovisual, e, para
este trabalho, basta o seguinte resumo, um tanto rasteiro: a partir da década
de 1930, em várias partes do mundo e em vários formatos, cinematecas
foram criadas e arquivos audiovisuais foram incorporados a museus já
estabelecidos, promovendo o cinema como uma nova arte. Essa ideia do
cinema como arte” versus o “cinema como representação da sociedade”,
que acirra até hoje discussões enfadonhas do tipo Georges Méliès X irmãos
Lumiére, e a importância demasiada ao estatuto de arte zeram com que,
por muito tempo, não só essas instituições, mas a maior parte das pesquisas
Mestre em Imagem e Som; pesquisador e arquivista audiovisual e esportivo. E-mail: nagime.mateus@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p53-66
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
54 |
audiovisuais, focassem apenas no cinema narrativo ou em um cinema não-
narrativo que comportasse traços artísticos ou sociólogos.
O Congresso da Federação Internacional de Arquivos de Filmes
(FIAF), em Brighton, Reino Unido, em 1978, é considerado um marco
por trazer atenção ao chamado “primeiro cinema”, aquele realizado no m
do século XIX e nos primeiros anos do século XX. Além disso, um aspecto
importante foi ter reunido preservadores e pesquisadores, o que hoje
parece uma relação óbvia, prova da mudança de paradigmas provocada
por tal congresso.
Foi essa união que permitiu que muitos trabalhos acadêmicos e
literários fossem realizados sobre o primeiro cinema, acendendo o interesse
por esse tema, o que permanece até hoje
2
. Infelizmente, outros congressos
sobre lmes não-narrativos não tiveram o mesmo impacto, mas certamente
avançaram discussões sobre os temas escolhidos, como aquele de Mo i rana,
em 1992, que abordou “noticiários nos arquivos de lmes”, ou ainda o de
Cartagena, em 1997, que discutiu lmes amadores.
A nomenclatura é importante neste debate: uma geração atual
de pesquisadores e preservadores brasileiros começou a discutir
a diferença entre cinema e audiovisual. A Associação Brasileira de
Preservação Audiovisual - ABPA, entidade profissional composta de
preservadores e pesquisadores e surgida em 2010, define “obra ou
registro audiovisual” como:
[...] o produto da xação ou transmissão de imagens, com ou sem
som, que tenha a nalidade de criar a impressão de movimento,
independentemente dos processos de captação, do suporte
utilizado inicial ou posteriormente para xá-las ou transmiti-las, ou
dos meios utilizados para sua veiculação, reprodução, transmissão
ou difusão
3
.
No Brasil, naturalmente, temos o exemplo do livro O primeiro cinema, de Flávia Cesarino Costa, que traduziu
e cunhou a versão em português de early cinema. Os termos se opõem a “pré-cinema”, que traz em si uma ideia
teleológica da história do cinema e das imagens em movimento.
De acordo com o § 2° do Art 1º do Estatuto da ABPA. Disponível em: http://www.abpreservacaoaudiovisual.
org/site/images/ABPA_ESTATUTO.pdf. Acesso em: 29 mar. 2019..
Imagem, Informação e Memória
| 55
É um conceito simples, mas, ao mesmo tempo, revolucionário,
pois para a pesquisa e preservação audiovisual, o cinema não é algo
diferente do audiovisual, mas somente uma das várias especicidades
do audiovisual. Especica-se por ser um tipo de audiovisual que ou é
realizado com pressuposto a ser exibido em uma sala de cinema, ou
aquilo que é exibido em uma sala de cinema, distinção que entrou em
caráter mais teórico ainda com o início da pandemia de covid-19 em
2020 e o fechamento de salas de cinema.
Já o audiovisual, ou imagem em movimento como é mais conhecido
em inglês (moving images), engloba uma gama muito mais ampla: de vídeos
caseiros feitos com celular a memes, de papéis de parede de computador
a vídeos que acompanham apresentações musicais. Nem mesmo precisa
ter áudio e, às vezes, nem precisa ter imagem – basta lembrar dos lmes
de Walter Ruttmann
4
. Todas essas obras têm, ou deveriam ter, a mesma
importância de blockbusters e lmes premiados.
Atualmente, cada vez mais obras audiovisuais são realizadas e
difundidas. Mas elas realmente são preservadas? Para responder a essa
pergunta, precisamos lembrar o que é preservação. Novamente, de acordo
com a ABPA: “(...) se entenderá o conjunto dos procedimentos, princípios,
técnicas e práticas necessários para a manutenção da integridade do
documento audiovisual e garantia permanente da possibilidade de sua
experiência intelectual”.
A consolidação do Youtube e do Netix como repositórios de vídeos
– assim como outras ferramentas estão fazendo com música, fotograa,
etc. –, faz crer que tudo estará lá para sempre. Certamente é essa a ideia
que elas vendem para seus usuários ou, mais precisamente dizendo,
consumidores. O Youtube e outros serviços similares, como o DailyMotion
ou Youku-Tudou (优酷), por, a princípio, não possuírem uma linha
curatorial e/ou mercadológica, podem parecer um sonho anarquista, em
Walter Ruttmann foi um diretor experimental alemão que em Wochenende (Fim de Semana, 1930), trabalhou
apenas com som sobre uma sequência de fotogramas pretos. Foi tema da dissertação “Música Concreta e
Cinema: aproximações e diferenças entre Final De Semana (Walter Ruttmann, 1930) e Estudo para Ferrovias
(Pierre Schaeer, 1948)”, de Jonathan Marinho, defendida em 2016 na Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Outro caso emblemático é o de “Azul” (1993), em que uma tela azul é o pano de fundo para o último
longa-metragem de Derek Jarman
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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que todos podem colaborar subindo produtos audiovisuais de sua autoria
ou posse e podem encontrar vídeos similares, ainda que por vezes à custa
de vários vídeos publicitários.
É comum, de forma geral, as pessoas considerarem que tudo está
preservado, pela facilidade ou disponibilidade em encontrar tal material
na internet e por ser acessado em - praticamente - todo o mundo, pela
chamada nuvem. Isso afeta tanto a posse de produtos culturais (se está
no Netix ou Spotify, para que comprar um DVD ou um CD?) quanto
à posse de documentos e arquivos originais, tais como textos, fotos e
vídeos. Além de questões mais complexas, como direitos autorais ou a
exposição de conteúdo condencial para grandes empresas de tecnologia,
existem questões que parecem atualmente tão absurdas que nem levamos
em conta, como a possibilidade da internet, em maior ou menor grau,
não funcionar mais corretamente e/ou dados serem acidentalmente
deletados se tornarem impossíveis de ser lidos. Se essa possibilidade é
incerta e meramente especulativa, principalmente pela perda nanceira
gigantesca que acarretaria, os chamados apagões locais de internet são
comuns, especialmente em áreas que passam por turbulências políticas.
É igualmente incerto e especulativo que dados subidos por usuários
carão disponíveis por anos ou décadas. O m do Orkut, rede social
preferida dos brasileiros por anos, acende a luz para que casos similares
possam acontecer
5
.
Ainda a respeito do compartilhamento ou da disponibilização
de vídeos, é importante enfatizar que as principais redes sociais, como
Facebook, Instagram ou Twitter, e sites de compartilhamento de vídeos
populares, como o Youtube ou ainda o WhatsApp, carregam uma versão em
baixa qualidade dos arquivos, fáceis de serem transmitidos, que em geral
não correspondem à versão original do registro, o que pode deixar rastros
no futuro quando/se forem transmitidos com qualidade de imagem mais
elevada. É importante sempre ressaltar que essa baixa qualidade permanece
Esse caso foi o tema escolhido por Mariana Silveira em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de
Biblioteconomia e Gestão de Unidade na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulado “A
preservação da informação e construção de memória nas redes sociais: o caso do arquivo de comunidades do
orkut”. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/2613/1/TCC_Mariana_Silveira.pdf. Acesso
em: 28 mar. 2019.
Imagem, Informação e Memória
| 57
inerente e pode car clara no futuro, tal como vemos geralmente marcas de
VHS em cópias para mídias de melhor qualidade ou quando abrimos fotos
realizadas em celulares de 2006
6
. Alguns sites de compartilhamento,
como Flickr (fotos) e Vimeo (vídeo), permitem o upload em tamanho
original em alguns casos , mas, no caso de vídeos, isso pode por vezes
signicar dezenas de gigabytes, o que congura um duplo problema: é
pesado e lento para subir, e pesado e lento para acessar/baixar/recuperar o
material. Assim, não basta um cenário apocalíptico do “m da internet”
para brecar esses sites, mas, sim, apenas, o fechamento de um ou outro
site para destruir todo um “arquivo” ou um ligeiro problema na conexão
da internet para interromper o acesso a eles. Tal dilema faz com que o
acesso à internet por telefonia móvel ou serviços de banda larga passe
a ser considerado como serviço básico, gerando mais dinheiro para as
companhias que os gerenciam. Ainda que o prejuízo nanceiro deva ser
levado em consideração contra o fechamento desses sites, é viável pensar
que, em alguns anos, quando outras plataformas concorrentes permitirem
um maior lucro, que o Youtube, o Vimeo ou o Flickr decidam interromper
seus serviços, sem planejamento de salvaguarda a longo prazo dos materiais
lá depositados virtualmente.
Dito isso, torna-se claro que o arquivo virtual é uma possibilidade
que auxilia na difusão das imagens (em movimento) lá depositadas, mas
que não deve substituir o arquivamento físico convencional por parte dos
proprietários do material.
Por último, na hora do compartilhamento dos materiais nas redes,
dois efeitos são causados que devem, no melhor dos cenários, ser replicados
também pelos responsáveis pelo arquivamento dos materiais originais no
ato da preservação: em primeiro lugar, a publicação de uma foto ou vídeo,
seja em redes sociais ou em plataformas de compartilhamentos de vídeos,
permite a interação de usuários através de reações, curtidas, comentários
e compartilhamentos, que podem acontecer continuamente. Isso pode
exigir uma constante atualização, que não deve ser confundida com uma
substituição, já que pode ocorrer tanto eliminações quanto substituições
Isso se ignorarmos a diculdade cada vez menor, mas ainda existente, de transmitir arquivos de um aparelho
para o outro, especialmente se forem de marcas ou sistemas operacionais diferentes.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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ou edições. O fato é que mostra-se obrigatório a existência de alguma
metodologia clara e óbvia na hora de preservação desses materiais
correlato. Já o segundo efeito é que apresenta aos fãs a possibilidade de
realizarem um material original a partir do vídeo, seja em compilações
de “melhores momentos” ou de “cenas favoritas”, ou na reapropriação da
obra (a partir de dublagens ou interferências visuais e/ou sonoras), ou
ainda espécies de relmagens, em que fãs criam registros completamente
originais (ou a partir de materiais de terceiros) referenciando essas obras.
Tal conceito é a base do aplicativo Tiktok que convida os usuários a
repetirem um padrão de músicas, coreograa ou diálogo. A preservação
de um único vídeo deve levar em consideração toda a cadeia de videos, -
tanto os que serviram de inspiração quanto os que foram inspirados por
ele -, e os comentários e reações?
relAção entre esPorte e AudiovisuAl
Várias práticas esportivas, ainda que em geral apenas praticadas
pelas elites e nobrezas abastadas, começaram a ser ocializadas ao nal
do século XIX, tornando-se regras. Naquela mesma época, iniciou-se uma
mobilização em prol do resgate das tradições olímpicas, liderada pelo grego
Evangelis Zappas e pelo francês Barão Pierre de Coubertin. O movimento
fazia referência aos Jogos Olímpicos da Antiguidade, que ocorreram entre
os séculos VIII e V a.C. e formavam parte dos Jogos Pan-Helênicos, sendo
um dos quatro principais festivais esportivos da antiguidade grega
7
. Tal
resgate das tradições eventualmente levaria ao estabelecimento do Comitê
Olímpico Internacional (COI) em 1894 para a realização dos primeiros
Jogos Olímpicos da Era Moderna em Atenas, com forte apoio nanceiro
e logístico do governo grego, em 1896.
Na mesma época, o cinematógrafo estava sendo aperfeiçoado e
sendo exportado pelos irmãos Lumière, assim como formas concorrentes
do que conhecemos hoje como cinema. Apesar disso, não há qualquer
Os jogos aconteciam de quatro em quatro anos e o período quadrienal passou a ser chamado de “Olimpíada”.
Os Jogos Olímpicos, que aconteciam em Olímpia e premiavam os vencedores com uma coroa de oliveira.
Nos anos pares intermediários aconteciam os Jogos Píticos, e nos anos imediatamente posteriores e anteriores
aconteciam os Jogos Nemeus e Ístmicos, respectivamente.
Imagem, Informação e Memória
| 59
registro de que imagens em movimento tenham sido capturadas na
capital grega naquele ano. Essa dissonância duraria pouco. À medida que
o cinema foi se reinventando e descobrindo novas aptidões artísticas e
mercadológicas, os Jogos Olímpicos cada vez mais se estabeleceram como
uma forte marca de importância social e política. É inegável, portanto,
que cinema e esporte cresceram juntos no século XX. Em paralelo aos
Jogos Olímpicos, cada vez mais campeonatos mundiais e regionais foram
criados
8
, angariando fãs e tornando as lmagens desses eventos algo
natural. A partir dos Jogos de Verão e de Inverno de 1924 (em Paris e
Chamonix), lmes ociais já foram realizados.
É possível estabelecer algumas outras relações entre o cinema e
os Jogos Olímpicos, pontuais e mais especícas: Johnny Weissmuller,
por exemplo, ganhou cinco medalhas de ouro olímpicas como nadador
(e uma de bronze como jogador de pólo aquático), sendo catapultado
para uma bem-sucedida carreira cinematográca. Os Jogos Olímpicos
e outras competições eram, geralmente, lmados e exibidos como
noticiário nos cinemas.
O ano de 1936 foi marcante na relação entre cinema e audiovisual
por dois motivos: os Jogos Olímpicos foram os primeiros a serem
televisionados ao vivo em Berlim e em Potsdam, cidade vizinha e sede da
UFA, o grande estúdio alemão até a primeira metade do século XX. Ao
mesmo tempo, um projeto cinematográco concebido especicamente
para cobrir os Jogos Olímpicos era levado a cabo: câmeras eram
milimetricamente posicionadas para captar atletas, espectadores e líderes;
com a ajuda de cenas relmadas ou posadas, o documentário resultante
em duas partes, Olympia 1. Teil – Fest der Völker (Festival dos Povos) e
Olympia 2. Teil – Fest der Schönheit (Festival da Beleza), estabeleceu-se
como referência em domínio do cinema esportivo.
Durante os anos seguintes, não só lmes cinematográcos sobre
esportes continuaram a ser feitos em grande número, seja em cção ou
documentário, mas também competições esportivas continuavam a ser
transmitidas no cinema e, aos poucos, ingressaram também na televisão.
É possível fazermos um paralelo de tais eventos sem a mesma magnitude dos Jogos Olímpicos, mas ainda assim
importantes, com os Jogos Píticos, Nemeus e Ístmicos, mencionados na nota acima.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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Alguns lmes sobre os Jogos Olímpicos entraram para a história do
cinema, como aquele dedicado aos jogos de 1964, sediados em Tóquio:
Tokyo Olimpiad, de Kon Ichikawa, foi lançado em 1965 e em uma versão
truncada lançada comercialmente se tornou um dos maiores sucessos de
bilheteria no Japão. Chris Marker, Milos Forman e Carlos Saura estão entre
os diretores que já zeram lmes ociais dos Jogos Olímpicos. “La grande
olimpiade”, lme de Romolo Marcellini sobre Roma 1960, foi indicado ao
Oscar de melhor documentário em 1962.
Outros marcos tecnológicos do audiovisual também foram
alcançados em paralelo a competições esportivas: a televisão chegou à
Austrália em 1956, a tempo de transmitir ao vivo para o país os Jogos de
Melbourne daquele ano; e a tecnologia digital em 8K foi desenvolvida no
Japão para ser utilizada nos jogos de 2020, por exemplo.
AudiovisuAl, esPorte, PreservAção, memóriAs e um PouCo de
muito dinHeiro
Se os primeiros arquivos audiovisuais nasceram da tentativa de
preservar da destruição natural ou intencional lmes que não eram
mais vinculados ao mercado, hoje em dia o campo da preservação
audiovisual já entendeu a importância desse mercado cinematográco:
lançamento de lmes restaurados – ou meramente digitalizados, sob o
signo mercadológico de “restaurado” – seja em circuito cinematográco,
DVD, festivais ou em serviços pela internet – são comprovadamente uma
forma barata de rentabilizar um material antigo. Cada vez mais esse tem
sido o argumento que arquivos e preservadores trazem debaixo do braço
em reuniões com capitalistas, produtores e entidades governamentais ao
pleitear investimentos na área.
Ainda que devamos reconhecer e valorizar esses esforços e eventuais
méritos, é inegável que o norte principal da advocacia pela preservação
dessas imagens deva ser o mais básico: essas imagens audiovisuais fazem
parte do patrimônio audiovisual, seja regional (do país, da cidade, ou
mesmo do mundo) ou esportivo (da história de um esporte especíco, ou
Imagem, Informação e Memória
| 61
de um clube, ou de um atleta) ou ainda patrimônio simbólico pessoal do
atleta, fã, cidadão.
Atualmente, dois arquivos liados à Federação Internacional de
Arquivos de Filme (FIAF) são dedicados prioritariamente a arquivar
imagens esportivas: a Fundação Olímpica pela Cultura e Patrimônio, em
Lausanne, Suíça ; e a Iconoteca (Iconothèque) do Instituto Nacional do
Esporte, Expertise e da Performance (INSEP), em Paris, França. Ainda
assim, é importante ressaltar limitações fundamentais no escopo desses
arquivos: o primeiro trabalha apenas com material ligado aos Jogos
Olímpicos, enquanto o segundo é responsável pela salvaguarda de materiais
em película e em vídeo que tenham sido produzidos pelo INSEP ou que
tenham sido lá depositados. O material criado em digital pela própria
organização não é arquivado na Iconoteca do INSEP, mas, sim, em outro
órgão do Instituto.
O diretor do INSEP, Julien Faraut, tem aproveitado sua posição e
seu conhecimento dos materiais lá arquivados para dirigir regularmente
lmes não só sobre esportes, mas sobre a própria arquivologia esportiva.
Em "Un regard neuf sur Olympia 52”, de 2013, utiliza-se das imagens de
Chris Marker para pesquisar o método utilizado pelo cineasta em seu
longa de estreia, que não possui relação direta com o Comitê Olímpico
Internacional (COI), sobre os jogos de Helsinque 1952. Já em “L’empire de
la perfection”, de 2018, Faraut parte de um conjunto de rolos de película
que testemunharam o dia-a-dia e os jogos de John McEnroe no torneio de
tênis de Roland Garros de 1984 e foram depositados no INSEP.
Nos últimos anos, uma quantidade enorme de imagens em
movimento dedicadas ao esporte foi criada: não só virtualmente toda
competição nacional ou internacional é gravada e transmitida ao vivo pela
televisão ou por plataformas online, mas temos que nos lembrar que cada
competição possui uma quantidade enorme de câmeras lmando vários
ângulos ou várias pistas, quadras, tatames, raias, etc. ao mesmo tempo.
Restrições a público decorrentes da pandemia de covid-19 ampliaram ainda
mais tais iniciativas. Em dezembro de 2020, o Comitê Olímpico do
Brasil (COB), em parceria com a TV NSports, lançou o Canal Olímpico
do Brasil, no qual não apenas produz a transmissão local de eventos
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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brasileiros, como exibe torneios internacionais com grácos, narração e
comentários exclusivos.
Além disso, o vídeo é usado em muitas competições regionais
como recurso de arbitragem. A quantidade de câmeras a cada evento é
cada vez maior: não só o vídeo pode ser ocial e ser usado para auxiliar
imediatamente na dúvida dos juízes e atletas, mas muitas vezes é feito
de forma não-ocial, ou ao menos desvinculada da instituição esportiva
– ainda que, muitas vezes, por representantes dela em caráter pessoal –,
usada para registro semi-ocial ou apenas como uma forma de memória
para mostrar a amigos e familiares, postar em mídias sociais ou deixar
guardado. A pergunta que fazemos, então, é básica: eles estão realmente
sendo arquivados ou meramente largados em HDs ou sendo subidos no
Youtube ou na nuvem, onde supostamente carão para sempre?
Quem está cuidando deles, ou melhor, quem deverá cuidar deles?
Informações correlatas, sejam metadados ou não, estão sendo coletadas?
Aquelas que informam a data e local das gravações, quem gravou, o que e
quem está sendo gravado…
Todas essas gravações, que parecem tão banais e automáticas –
centenas de horas de material bruto provenientes de quatro câmeras estáticas
que gravam jogos e disputas, sem apresentação, narração ou nada mais
excitante: como saber o que isso é daqui a alguns meses ou anos? Partindo
das imagens inéditas encontradas por Faraut, não é de todo improvável que,
daqui a alguns anos, essas imagens que pensamos ser corriqueiras sejam
revestidas de novas plumas e renovadas importâncias. Nunca sabemos
quando uma imagem vai nalmente ser encontrada – nem por quem. Por
isso, é sempre importante a inclusão de dados associados a esses vídeos, o
que será de suma importância para os pesquisadores e preservadores do
futuro. Geralmente, essas informações são aquelas consideradas óbvias na
atualidade, e que talvez justamente por isso serão esquecidas em pouco
tempo. Uma informação que parece ser desnecessária e perdida no tempo,
mas que poderá ser valiosíssima para uma pesquisa futura.
Essas imagens e suas informações formam obviamente parte da
história do esporte, ou melhor dizendo, do Patrimônio Esportivo, em que
Imagem, Informação e Memória
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podem gravar os primeiros passos de um futuro campeão olímpico ou
mostram os hábitos de práticas esportivas, prossionais ou amadores, em
um determinado local em uma determinada época. Elas também fazem
parte do Patrimônio Audiovisual, já que “contêm os registros primários
da história”, armado pela Unesco
9
. Também não podemos nos esquecer
que essas imagens em movimento dizem respeito diretamente à vida de
pessoas, suas evoluções pessoais e atléticas. Elas são, portanto, gravações de
uma história mundial de forma geral, mas também de seus cidadãos, em
seu dia-a-dia e nos momentos de maiores conquistas – ou derrotas.
Entre os milhares de exemplos que poderíamos mencionar, a
tenista iugoslava naturalizada norte-americana Monica Seles revela o quão
chocante foi, durante uma interrupção por chuva do US Open de 2002,
assistir em seu quarto de hotel uma retransmissão da seminal do US Open
de 1991 contra Jennifer Capriati. Ela, então com 28 anos, estava vendo uma
versão de si mesma 11 anos mais nova, com apenas 17 anos, época em que
rivalizava com a alemã Ste Graf para ser a número 1 do mundo. Capriati
tinha apenas 15 anos em 1991. Duas crianças com futuros conturbados
à sua frente, revolucionando o jogo de tênis e que, em 2002, já estavam
curando suas feridas e voltando a jogar um tênis de alto nível, o que dava
um toque especial na escolha da rede de televisão norte-americana CBS em
reprisar a partida, na falta de um jogo ao vivo.
Em sua autobiograa, Seles conta que, no dia seguinte, “entrou no
estádio com uma determinação renovada”, depois de “aproveitar-me da
adrenalina que obtive ao assistir aquela partida”, onde a garota “era uma eu
mais nova e em melhor forma, e ela parecia feroz” (SELES, 2009. p. 239).
Essas imagens de arquivo mostram a evolução do esporte e da sociedade
durante os anos (e também da tecnologia de captura de imagens esportivas,
visto que é perceptível quando estamos diante de imagens antigas e que
parecem velhas…), mas também de seus indivíduos – atletas, equipe por
trás dos atletas e dos torneios e público – incluindo o comportamento
Encontrado na página dedicado ao Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual, em inglês, também disponível em
árabe, castelhano, francês, mandarim e russo. Disponível em: <https://www.un.org/en/events/audiovisualday/>.
Acesso em: 28 mar. 2019.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
64 |
dentro e fora das quadras, suas roupas, seus corpos, suas relações com a
mídia, publicidade, adversários, câmeras, etc.
A preservação desses materiais deveria ser a missão da já existente e
atuante Fundação Olímpica para Cultura e Patrimônio? Ou dever especíco
de Comitês Olímpicos Nacionais? Ou ainda de federações esportivas
especícas? Ou das cinematecas nacionais e/ou locais? Ou ainda de cada
clube e pessoa especíca? Neste caso, haveria alguma grande organização
que teria ao menos o desejo ou o impulso em reunir estes materiais e,
eventualmente, disponibilizá-los?
Lile e Ng enfatizam que “o arquivamento começa no momento da
criação (audiovisual)” (LILE; NG, 2017. p. 12). Assim, ainda que possamos
defender e lutar por um arquivamento em larga escala, devemos lembrar
sempre que, ainda que possam eventualmente defender o contrário, as
cinematecas e arquivos, por imposição, devem sempre fazer escolhas a
respeito de quais materiais arquivar em suas premissas… e quais valorizar.
Vivemos em uma época em que cada vez mais é possível que cada um
arquive suas próprias criações, mas não cou necessariamente mais fácil. É
necessário catalogar e preservar adequadamente para garantir a salvaguarda
a longo-prazo.
A Federação Internacional de Cinema e Televisão Esportivas
(FICTS), uma organização com sede em Milão, promove 16 festivais
cinematográcos pelo mundo, todos com enfoque em lmes e programas
de televisão com temáticas esportivas. Nota-se aqui a importância da
existência de arquivos televisivos que existem possibilitam a realização de
novas obras audiovisuais que partam de imagens antigas.
A maior parte das imagens audiovisuais esportivas, apesar de
estarem preservadas em seus arquivos televisivos, raramente são exibidas
nas programações dos canais, e, em geral, seguem à espera de um
acontecimento ou oportunidade para serem resgatadas
10
. Essas imagens
em movimento podem ser consideradas marginais, não por possuírem
menos valor que outras, mas por serem geralmente negligenciadas – e,
talvez, justamente por isso exigirem mais esforços em sua preservação.
10
Obviamente a exibição de VTs exige uma série de liberações da ordem de direitos de imagens.
Imagem, Informação e Memória
| 65
Por marginal digo tudo que não foi feito para ser exibido em uma sala de
cinema ou televisão, tal como câmeras de segurança, lmes pornôs, lmes
familiares e domésticos, tutoriais, vídeo-aulas, materiais de Youtube, e a
lista continua.
No caso especíco do audiovisual esportivo, é importante levarmos
em conta que, nos últimos anos, vários canais web foram criados com
a temática do esporte, para que os fãs tenham acesso a esses materiais:
desde o Sport Deutschland.tv, que exibe em tempo real várias competições
para a Alemanha, ao Tennis TV, que exibe constantemente jogos de tênis
e segue com seus arquivos, passando por várias federações que exibem
ao vivo através do Youtube suas principais competições, como as de
esgrima e judô, além é claro do Canal Olímpico Brasileiro, mencionado
acima. Não podemos esquecer de retransmissores de streaming, ainda
que estes estejam numa zona cinza da legalidade. A pergunta continua:
como preservar todos ou alguns desses materiais? Como escolher quais
materiais preservar?
Não só aspectos técnicos de como preservar adequadamente este
material são pouco debatidos, mas principalmente todas as decisões
teóricas e curatoriais que devem ser tomadas: como escolher a partir de
milhões de horas gravadas todo dia? O que preservar e como? Quem (ou
o quê) vai cuidar de tudo isso? A Biblioteca do Congresso dos Estados
Unidos da América (EUA) e a Biblioteca Nacional da França possuem
robôs que monitoram materiais da internet – incluindo vídeos, com
“.com” e “.fr” respectivamente, e mesmo materiais estrangeiros que têm
muitas visualizações. Mas materiais correlatos, como tags, identicações,
comentários e descrições, estão sendo propriamente armazenados? São
perguntas que continuam sem resposta e potencialmente levarão a
um apagão de todos materiais (incluindo aí imagens em movimento)
produzidos em nossa era. Ainda não existe uma certeza se esse é o melhor
método de coletar informações de larga escala. Por outro lado, os pequenos
clubes e organizações ainda não têm condições, em geral, de controlar
uma biblioteca audiovisual própria, o que acaba pondo em perigo e
colocando em xeque toda uma história audiovisual contemporânea.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
66 |
Talvez no futuro não teremos nada justamente por achar que tínhamos
tanto agora.
rerenfênCiAs
LILE, G.; NG, Y. Guia de arquivamento de vídeo para ativistas. São Paulo: Associação
Brasileira de Preservação Audiovisual, 2017.
SELES, M. Getting a grip. Londres: JR Books, 2009.
C,
I 
M
| 69
C  : 1968  
  
 B (1968-1976)
1
Prof.ª Dr.ª Alcilene Cavalcante de Oliveira
2
Diante da imagem, estamos sempre diante do tempo. Como o
pobre iletrado da narrativa de Kafka, estamos diante da imagem
como diante da Lei: como diante do vão de uma porta aberta.
Ela não nos esconde nada, bastaria entrar nela, sua luz quase nos
cega, ela nos impõe respeito. Sua própria abertura – não falo do
guardião – nos faz parar: olhá-la é desejar, é estar à espera, é estar
diante do tempo. Mas de que gênero de tempo? Que plasticidades
e que fraturas, que ritmos e que choques do tempo podem estar em
questão nesta abertura da imagem? (DIDI-HUBERMAN, 2011,
não paginado).
A epígrafe acima, de Didi-Huberman, traduz as inquietações
provocadas pelos lmes realizados por mulheres no Brasil nos anos 1970,
Este texto é uma versão modicada da conferência que realizei na mesa “1968-2018: insurreições e imagens
da história no cinema brasileiro”, realizada no âmbito da programação do XXII Encontro SOCINE, na
Universidade Federal de Goiás (UFG), em 25 de outubro de 2018.
Doutora em Letras: Estudos Literários; docente da Universidade Federal de Goiás. E-mail: alcilenecavalcante@
gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p69-86
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
70 |
nos quais se vericam reverberações de aspectos do ideário de 1968, dentre
outros
3
. Neste texto abordarei, especicamente, um desses lmes: o longa-
metragem, de cção, Feminino plural, de Vera de Figueiredo – lançado no
circuito brasileiro, em 1976.
Apresentarei, inicialmente, traços da relação entre cinema e memória
para, em seguida, abordar mais detidamente o lme, destacando uma
sequência que congura a chave de leitura da cineasta em relação à ditadura
civil-militar em curso (1964-1985), que permite entrelaçar cinema,
informação e memória. Tal sequência reitera uma das marcas signicativas
daquele “ano mítico”: a insurreição, o questionamento da ordem – o que
rendeu censura ao lme.
Passado meio século de 1968, faz-se necessário assinalar que rememorar
ou lembrar aquele ano é relevante não apenas pelos acontecimentos daquela
data, mas pelo que os eventos do período ensejavam
4
. Trata-se de um ano
que, de acordo com Marcelo Ridenti (2009. p. 81), simboliza uma época,
marcada por “visões de mundo rebeldes e revolucionárias”, baseadas no
sentimento” de “que transformações profundas estavam ao alcance das
mãos e de que o mundo caminhava para elas” (idem. p. 82). Naquele
tempo, intelectuais e artistas eram considerados agentes transformadores,
que “politizavam a estética e estetizavam a política” (idem, ibidem.).
A época de 1968 – um pouco antes, um pouco depois daquele ano –
abriu espaço para que irrompessem diferentes lutas especícas e transversais
como a das mulheres, dos negros, dos gays, das lésbicas e dos feminismos.
De acordo com as palavras de Margareth Rago,
Aqui miramos as longa-metragistas, de cção: Tereza Trautmam; Vera de Figueiredo; Maria do Rosário
Nascimento e Silva; e Ana Carolina. Note-se que a designação “Cinema de mulheres” é recorrente na crítica
de cinema dos anos 1970, não apenas no Brasil. Trata-se de uma expressão utilizada, no início daquela década,
pelas teóricas feministas do cinema como Laura Mulvey e Claire Johnston para indicar lmes realizados por
mulheres, que se aproximavam do ideário feminista ao problematizar a representação clássica de mulheres nas
cinematograas. É certo que, para Johnston, esse tipo de cinema deveria implicar, igualmente, a linguagem do
cinema, constituindo um contra-cinema.
Rero-me especicamente ao ano das insurreições de maio e não ao ano do Ato Institucional n. 5, de dezembro.
Imagem, Informação e Memória
| 71
[...] traz entre vários temas e discussão a crítica da moral sexual,
da caretice, dos padrões vitorianos da feminilidade e da família,
da heterossexualidade normativa, dos engessamentos das relações
amorosas, afetivas e sexuais e a busca de liberdade individual e de
novos discursos públicos e políticos (RAGO, conferência proferida
na Unicamp, maio de 2018).
Tais questões impregnaram também o cinema, como não poderia
deixar de ser. O modelo clássico hollywoodiano, com suas narrativas
lineares, protagonizadas por personagens masculinas, brancas e voltadas
para o prazer do espectador masculino, passa a ser questionado –
especialmente pelas mulheres cineastas e as teóricas feministas do cinema.
Em termos estéticos, diferentes projetos experimentais foram realizados,
congurando um certo boom de produções alternativas à indústria, em
diferentes cinematograas nacionais, denominado por Nicole Brenez
(2016, p. 10) como um verdadeiro vulcão estético.
O cinema constitui, então, memórias do período em que é realizado,
como já esquadrinhado por Pierre Nora (1972) e Michael Pollak (1989)
5
.
Todavia, Henry Rousso salienta que a memória é uma “experiência da
perda”. “Ela é uma presença do passado que nós revemos parcialmente
pelas lembranças, mas ela é também a consciência da ausência, de tempos
que passaram e de tempos que se alteram” (ROUSSO, 2016
a
, p. 32,
tradução nossa)
6
.
Voltar-se, portanto, para os lmes e suas relações com a memória, em
particular para Feminino plural, é adentrar as tensões de memórias diversas,
que suscitam dois níveis de discussão, caros aos estudos desse campo: a
relação entre História e memória; e os conitos de memórias, denominados
na literatura europeia como “guerras de memórias” (BLANCHARD;
VEYRAT-MASSON, 2008a) e, no Brasil, “embates de memórias” (REIS,
2014; FICO, 2004).
Trago para este texto parte da abordagem que desenvolvi sobre cinema e memória em Oliveira, 2017.
No original: La mémoire, sociale ou psychique, est d’abord une expérience de la perte. Elle est certes une présence
du passé que l’on revit en partie par les souvernirs, mais elle est aussi une conscience de l’absence, du temps révolu, du
temps qui altère (ROUSSO, 2016a, p. 32).
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
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A despeito de tais debates escaparem ao propósito deste texto, vale
destacar que para demarcar a diferença entre História e memória, de
maneira bastante sucinta, Rousso assinalou que “[...] a memória implica
diretamente o ‘eu’ do sujeito: sua razão, sua reexão, sua sensibilidade, sua
preocupação, sua relação com algo que está no passado e que, em geral, lhe
concerne (sic). Já a história introduz uma narrativa, uma construção, uma
tomada de distância.” (FILMER LE PASSÉ, 2003, p. 29, tradução nossa)
7
.
O historiador acrescenta que a abordagem do passado em
determinados objetos culturais permite caracterizá-los como memória, o
que corresponde à perspectiva de Michael Pollak, já mencionada, segundo
a qual um lme congura um suporte de memória, inserindo-se nas
disputas e ampliando o debate. De acordo com as palavras de Pollak,
Nas lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos
recordações pessoais, os pontos de referência geralmente são de
ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores… Ainda que seja
tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças
em objetos de memória confeccionados hoje, o lme é o melhor
suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e
reorganização, e, portanto, no enquadramento da memória. Ele se
dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções
[…]. O lme-testemunho e documentário tornou-se (sic) um
instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da memória
coletiva e, através da televisão, da memória nacional. (POLLAK,
1989, p. 12).
Essa relação entre cinema e memória vai ao encontro das observações
de Didi-Huberman sobre a possibilidade de sobrevivência das imagens,
em relação à efemeridade humana, o que acaba por imputar às imagens
elementos de futuro, a ponto de elas “terem mais memória e mais porvir
do que o ente que a olha” (DIDI-HUBERMAN, 2011, não paginado).
No original: Dans le Je me souviens, d’abord il y a un Je: un sujet qui se souvient. L’opération fondamentale qu’il
fait, c’est de parler au présent. Il dit: Voilà quel est, pour x raisons, l’état actuel de ma réexion, de ma sensibilité, de
mes préoccupations, par rapport à quelque chose qui est passé, qui en général me concerne. Ceci pose la question des
rapports entre l’individuel et le collectif. En revanche, dans Il était une fois, on introduit un récit, ce qui veut dire: une
construction, une argumentation, une prise de distance (FILMER LE PASSÉ, 2003, p. 29).
Imagem, Informação e Memória
| 73
Nessa perspectiva, certos estudos são categóricos em armar que não
há memória sem suportes técnicos e que dicilmente o passado sobreviveria
sem a materialidade inscrita em certas culturas e tradições. A memória não
prescinde, portanto, de artifícios de linguagem (FERREIRA; AMARAL,
2004, p. 137).
Almeida detalha que o cinema “é uma invenção moderna, no
sentido material-técnico, porém a forma como suas imagens são
produzidas é homóloga à produção da memória articial.” (ALMEIDA,
1999, p. 56). Para ele, o cinema simultaneamente cria cção e realidades
históricas como produz memória, sendo que o espectador, ao assistir a
um lme, envolve-se também em um processo de recriação da memória
(ALMEIDA, 1999, p. 56).
Esse aspecto articioso da memória, tão presente em objetos culturais
– já observado por Milton Almeida (1999, p. 67), como memória articial,
que resulta “da arte do método” – remete a outro nível de discussão: o
conito de memórias ou “guerras de memória”, nos quais um lme
desempenha papel relevante.
A disputa de memórias, especialmente em países europeus, gira em
torno de temas como “escravidão, nazismo, colonização, ns de ditaduras...
(BLANCHARD; VEYRAT-MASSON, 2008b, p. 15, tradução nossa). Já
no Brasil, esse debate guarda a proeminência de estudos sobre o período da
ditadura civil-militar (1964-1985).
Desde a última abertura política – “lenta, segura e gradual” – no
Brasil, em meados dos anos 1970, localiza-se um movimento típico de
transições para democracias, em que se procurou revisar o passado de
ditadura, por meio da profusão de publicações de relatos,
testemunhos, memórias, que construíam certas visões sobre o
período de governos militares no país. Sobre esse aspecto, Carlos Fico
assinalou que
[...] as primeiras revelações mais precisas, descrevendo os
subterrâneos do regime, provieram das memórias. Há a memória
da esquerda, de grande impacto editorial, sobretudo a dos
militantes que experimentaram os desacertos da ‘luta armada
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e, derrotados, compuseram pungente narrativa sobre a tortura.
Como em contraposição, a memória dos próprios militares, alguns
desgostosos por terem sido afastados do poder, outros tentando
defender supostas positividades do regime ou pretensas necessidades
inexoráveis de repressão. (FICO, 2002, p. 251).
Os estudos sobre essa produção de memórias, relativa ao último
período de ditadura no Brasil, têm esquadrinhado certa versão segundo
a qual a memória dos vencidos teria se sobreposto à dos vencedores, a
despeito dos militares terem esfacelado as organizações de esquerdas
revolucionárias e governado o país durante 21 anos. Em tais trabalhos,
investigam-se, entre outros aspectos, as condições de estabelecimento da
situação peculiar em que “[...] o vencido tornou-se o ‘dono’ da história
(ROLLEMBERG, 2006, p. 81).
Denise Rollemberg, na esteira dos apontamentos de Reis Filho
sobre o livro O que é isso companheiro?, de Fernando Gabeira, assinala que
“[...] entre os vencidos que venceram a memória houve uma pluralidade
de memórias esquecidas, publicadas sim, mas não conhecidas ou não
incorporadas na memória coletiva ou incorporadas como esquecimento.
(ROLLEMBERG, 2006, p. 84).
A historiadora acrescenta que a memória prevalecente do período, e em
especial a de Gabeira, desvela a curiosa contradição de se tratar do relato de um
personagem secundário na trama dos acontecimentos, daqueles duros anos de
repressão e de resistências. O êxito dessa memória reside no engendramento
de um tom conciliador tanto em relação aos militares quanto em relação à
sociedade. Anal, no contexto de publicação do referido livro, de acordo
com Rollemberg, “[...] parecia bem mais pertinente uma recuperação do
passado recente que não colocasse o dedo na ferida, não abordasse as relações
de identidade ou apoio ou omissão ou colaboração de parte expressiva da
sociedade com o regime.” (ROLLEMBERG, 2006, p. 85).
Ao considerar que o cinema entra nessa disputa, sustenta-se, também
neste texto, que diferentes lmes da transição democrática brasileira (1974-
1989) se inserem na perspectiva de revisão do passado de ditadura civil-
militar – marcado pela violência perpetrada pelo Estado – estabelecendo
Imagem, Informação e Memória
| 75
uma visão menos conciliadora, desvelando, isto sim, o autoritarismo, a
violência política do período ou mesmo encenando aspectos que seguiam
na contramão do projeto moral do regime (CAVALCANTE, 2014).
É inegável, pois, a relevância de lmes como veículos de constituição
de memórias, produzindo, difundindo discursos sobre o passado e entrando
nos embates desse campo (ROUSSO, 2016b; FERRO, 2004). De acordo
com as palavras de Henry Rousso, “[...] sente- se, claramente, hoje, que,
para o senso comum, um lme, uma obra de história, um programa de
televisão ou um artigo de jornal podem ter o mesmo escopo pedagógico
e que eles podem falar com uma capacidade equivalente sobre o passado.
(ROUSSO apud FILMER LE PASSÉ, 2003, p. 18, tradução nossa)
8
.
Nesses termos, reiteramos as considerações de Napolitano e
Seliprandy, segundo as quais o cinema não congura apenas um “vetor
de memória”, mas constitui “[...] um dos espaços privilegiados de sua
formatação e sistematização, obviamente em diálogo com outras fontes e
matrizes.” (NAPOLITANO; SELIPRANDY, 2018, p. 77). É nessa chave
que se toma, neste texto, o lme de Vera de Figueiredo para esquadrinhar
aspectos da memória de 1968 engendrada em Feminino plural.
No Brasil, antes dos acenos mais nítidos da contracultura, em meio
à ditadura civil-militar, Helena Solberg, ainda em 1966, desviou o olhar
da tendência predominante no cinema quanto ao “outro-popular” para
o “Outro-mulher”, conforme observou recentemente Fernão Ramos
(RAMOS, 2018, p. 63). O autor acrescenta que:
Como única mulher de sua geração, temos a impressão de que
Solberg se libera do contexto dos dilemas masculinos do Cinema
Novo sobre a questão do popular, que não são sentidos como
seus. Aponta então especicamente para a questão de gênero em
movimento singular. O quadro é mais marcante porque se dá em
1964-1966, antes do encontro com a contracultura no nal da
década, quando o retorno sobre si e as novas questões emergentes
de sexualidade passam a ter presença mais orgânica e natural.
(RAMOS, 2018, p. 64).
No original: On sent très nettement aujourd’hui que, pour le sens commun, un lm, un ouvrage d’histoire, une
émission de télévision ou un article de journal peuvent avoir la même portée pédagogique, et qu’ils peuvent parler avec
une capacité équivalente du passé (ROUSSO apud FILMER LE PASSÉ, 2008, p. 18).
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É nessa esteira que Tereza Trautman, em Os homens que eu tive (1973);
Maria do Rosário Nascimento e Silva, em Marcados para viver (1976); Vera
de Figueiredo, em Feminino plural (1976); e Ana Carolina, em Mar de
rosas (1978), perpassaram os anos 1970 realizando longas-metragens de
cção e enfrentando o cânone cinematográco vigente e a sociedade sob a
égide da ditadura civil-militar e da dominação masculina.
Essas cineastas atribuíram protagonismo às personagens femininas,
levando para as telas narrativas que implicaram questões caras às agendas
feministas estadunidense e europeia, denominadas políticas do corpo,
ensejadas nas movimentações de 1968, a saber: sexualidades, prazer,
aborto, gravidez (SOIHET, 2007). Acrescente-se: problematizaram os
laços afetivos, os institutos do casamento e da maternidade
9
. Tais cineastas
dialogavam com certo ideário de 1968 subvertendo o projeto político-
moral da ditadura civil-militar, em curso no país, que se ancorava nos
papeis desiguais de gênero, na subalternização das mulheres, no padrão
heterossexual normativo e na família nuclear.
O primeiro longa-metragem da arquiteta e cineasta carioca Vera
de Figueiredo, intitulado Feminino plural, irrompe a narrativa clássica,
apresentando elementos considerados modernistas: cenas documentais;
personagens não-atores; narrativa fragmentada e não linear; delirante; onírico;
aparência de improviso; e enquadramentos não convencionais. Utiliza
recursos da performance dos corpos e da dança para desenvolver diferentes
histórias paralelas e sem conexões aparentes, mas com a predominância de
temas relacionados ao feminino. Além disso, a música do lme é assinada
pelo pioneiro da arte conceitual e sonora, Guilherme Vaz.
O protagonismo feminino é ressaltado nas sequências do lme
em que sete mulheres de diferentes etnias, classes e gerações chegam de
motocicletas a uma cidade interiorana do Rio de Janeiro, e interagem
com a população local e com a natureza. É detalhada em sequências que
constroem a trajetória de vida da protagonista Vitória, da infância à vida
Ismail Xavier (2001, p. 83) já chamou atenção para a centralidade da temática da família nos lmes brasileiros
de diferentes cineastas homens, “a partir da atmosfera criada em 1968”. O tema do casamento, especicamente,
adquiriu relevância na cinematograa do período realizada por homens. Mas o ponto de vista das personagens
mulheres é enfatizado no Cinema de mulheres como, por exemplo, nos lmes de Vera de Figueiredo e de Ana
Carolina.
Imagem, Informação e Memória
| 77
adulta, e que encena a educação sexista e os problemas quanto ao casamento
e à dupla jornada de trabalho (CAVALCANTE; HOLANDA, 2013). O
lme traz também o tema da opressão racial às mulheres negras em uma
sequência em que a personagem de Léa Garcia sai de um baú e menciona
a discriminação e a coisicação sofridas ao longo dos tempos por ser uma
mulher negra (CAVALCANTE, 2017).
O questionamento implícito ao papel social atribuído às mulheres
e a opção por uma linguagem que irrompia as supostas convenções, em
Feminino plural, foram notadas tanto pela crítica dos principais suplementos
culturais do país, à época, quanto nos pareceres dos três técnicos de censura
que analisaram o lme de Vera de Figueiredo. A título de ilustração, seguem
trechos dos pareceres dos referidos técnicos, depositados no acervo da
Divisão de Censura de Diversões Públicas, Ministério da Justiça, Arquivo
Nacional, Distrito Federal (DCDP/MJ/AN/DF):
Parecer 1 – Filme feminista de difícil interpretação que, através
de simbolismos e conotações, faz alusões à educação e a (sic)
conduta passiva das mulheres, criticando a atitude submissa com
o acatamento das imposições que lhes delegam um destino de
dependentes, de objeto e de simples reprodutoras (Raymundo
Mesquita – Parecer nº 6921, de 21 de dezembro de 1976).
Parecer 2 – Filme brasileiro englobando símbolos, conotações e
cenas para sugerir a temática do condicionamento da mulher como
objeto do homem e da sociedade desde a mais tenra idade [...]
(Selia N. S. Rouver - Parecer nº 6922, de 22 de dezembro de 1976).
Parecer 3 – Filme em 35 mm, LM e colorido, de produção nacional,
sem enredo ou continuidade, focalizando um grupo de mulheres
em cenas des(co)nexas, teatrais e contestatórias.
A mensagem apresentada é nitidamente feminista, atacando
frontalmente o condicionamento que a sociedade impõe à mulher
[...] (Cleusa Maria Barros - Parecer nº 6923, de 22 de dezembro de
1976). (DCDP/MJ/AN/DF, 1976).
Constata-se, pois, que os censores estavam bem atentos quanto
aos supostos desvios do projeto moral e sexista da ditadura civil- militar,
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
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associando-os ao feminismo – movimento insurgente da época de 1968.
Além disso, observaram a peculiaridade da linguagem cinematográca de
Feminino plural sem compreender que se tratava de um novo cinema, de
experimentações. Tratava-se de insurgências política e estética.
Entretanto, não foram os traços feministas, nem os aspectos
estilísticos que geraram cortes no lme. A censura determinou cortes
na sequência em que Vera de Figueiredo estabeleceu diálogo com
interpretações gerais da macropolítica do período de realização do lme
sobre o regime militar no Brasil.
Em tal sequência, cinco personagens se encontram em uma sala,
encarnando, alegoricamente, o Poder (Carlos Kroeber) – que na sua
expressão mais abrangente signica o sistema –, o personagem Militar
(Nelson Xavier), o empresário do jogo do bicho (Joel Barcelos) e as
mulheres: a Odalisca (Tereza Rachel) e a Socialite (Maria Francisca)
10
.
A sequência apresenta elementos da performance, cuja estética em
elaboração desde o início do cinema não guarda uma denição estrita,
mas indica narrativas não-discursivas, centradas no “movimento dos
atores como geometria dentro do espaço cênico”, onde se vê corpos
atravessarem o quadro de uma ponta à outra, desenhando círculos no
seu perímetro ou caminhando em direção à câmera até preencher todo o
espaço visual. Segundo João Luiz Vieira, trata-se “[...] do resgate de uma
teatralidade que o cinema sempre vai buscar quando quer contestar ou
desviar-se (sic) do ilusionismo transparente. É uma volta ao corpo, ao
sentido de cena construída e, em última análise, ao primado da fantasia.
(VIEIRA, 1996, p. 339). Sublinhe-se que a economia de pistas verbais,
nesse procedimento, fortalece o deslocamento do olhar para apreciar a
cena via linguagem corporal.
A sequência inicia-se com um plano, no qual se apresenta os
personagens: o Poder, portando uma coroa de louro, sai do centro de uma
sala espaçosa em direção à câmera e diz: “Poder do mando e do comando”,
10
Nessa sequência, os papéis das personagens femininas são reduzidos a coadjuvantes, que procuram alegrar
os personagens masculinos. Não é à toa que a personagem de Tereza Rachel é a Odalisca – gura lendária do
mundo oriental, cuja função era dançar e proporcionar prazer ao Califa e seus convivas.
Imagem, Informação e Memória
| 79
enquanto os outros personagens entram em quadro
11
. Depois, o Poder
sai de quadro, pela esquerda, enquanto a Odalisca se afasta do carrinho
de bebidas, onde se serviu um drink, rindo exageradamente pelo meio da
sala, deixando atrás de si o Militar e o “bicheiro”, que se aproximam do
carrinho. O Poder entra novamente em quadro, em direção a eles e diz: o
poder do mundo em minhas mãos”. Ainda nesse plano, os personagens
caminham pela sala e o Poder diz: “o poder... do dinheiro”, até chegar
junto ao bicheiro e dizer “o poder... do jogo... do bicho...”.
Em quadro, o personagem Militar encontra-se fardado e portando
uma suástica – talvez para suscitar no espectador certo deslocamento
do tempo presente, no qual o lme fora realizado, e afastar, com isso, a
censura. Igualmente, pode sugerir a aproximação entre o regime civil-
militar brasileiro e o regime nazista.
Outro aspecto que se destaca nesta parte do lme implica a
representação da relação entre o Poder e o Militar: em um plano, o
personagem Poder enrosca-se eroticamente no Militar, que corresponde
ao movimento com um giro em torno dele. Há, em tal trecho, um corte
da imagem, e o expectador pode ver o Militar se recompor e pronunciar:
o chefe sou eu”. Todos caminham pela sala, sendo que o personagem
Militar se move naquele espaço, como um autômato, ao som das frases do
personagem Poder: “o poder... do mundo... em minhas mãos”. Em outro
plano, o Poder erta com cada um dos personagens em quadro, repetindo
incessantemente aquelas frases de onipotência.
Em outro plano, ainda, esse personagem se posiciona ao lado
do Militar, que lhe rende continência. Aproxima-se mais do Militar
e lhe segura nos braços. Há um corte na cena. A sugestão do beijo
entre os personagens Poder e Militar não se evidencia na imagem em
movimento, sendo que a cena é retomada no ponto em que os dois
personagens estão abraçados.
A sequência mostra de maneira performática as posições de gênero e
de poder e indica a conexão com um dos temas centrais do debate político
11
A coroa de louro remete à mitologia greco-romana e simboliza a vitória, as conquistas. No caso desse
personagem, indica a concentração do poder, de modo imperial, a quem tudo está submetido. Certamente, é
uma alusão à concepção de imperialismo vigente à época.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
80 |
dos anos 1970, no Brasil: o caráter subserviente da ditadura civil-militar
frente aos interesses do grande capital. Remete a um debate polarizado
entre aqueles segmentos que consideravam a ditadura como sendo de
caráter estrutural, isto é, um “traço constitutivo, estrutural da política do
país”, cuja instituição visava a garantir a dominação e os lucros do capital,
uma vez que as instituições liberal- burguesas do país eram ainda frágeis
(ARAÚJO, 2000, p. 95). Nesse sentido, o governo dos militares seria
subsidiado ou apoiado pelo sistema capitalista. De outra parte, outros
segmentos da esquerda negavam esse caráter estrutural e consideravam a
ditadura como sendo uma opção conjuntural – dentre outras formas de
dominação escolhidas pela burguesia –, “que poderia ser modicada por
questões internas ao bloco dominante ou por uma nova correlação de
forças na sociedade.” (ARAÚJO, 2000, p. 95).
O lme constitui, pois, uma memória de certa caracterização da
ditadura civil-militar, o que se evidencia na relação intrínseca entre os
personagens Militar e Poder – sendo este construído como a encarnação do
Capital – a ponto de, em certo trecho da sequência, a aproximação entre os
dois personagens ser tomada de erotismo. O Militar é encenado como um
autômato, como que programado para executar ordens.
Feminino plural insere-se, assim, na perspectiva dos lmes elencados
por Ismail Xavier que, nos anos 1970 e 1980, conguraram “resgate,
memória, emergência de outras vozes ou rearmação dos mesmos mitos”.
Para o autor, tais lmes “(...) são dados de um inventário que envolve a
política ocial de preservação e o movimento das oposições no sentido de
documentar e veicular a informação interditada” (XAVIER, 2001, p. 88).
Note-se que Xavier verica essa tendência do cinema brasileiro no período
em questão, inclusive em lmes de cção. De acordo com suas palavras,
Esse movimento mais amplo na área da reexão sobre a sociedade
incide não somente no lme histórico ou no documentário social,
mas também no lme de cção, nas estratégias do imaginário. Aqui,
essa postura dialógica se manifesta na maneira como aparecem,
no lme, as representações, os valores, as crenças presentes na
sociedade. (XAVIER, 2001, p. 89-90).
Imagem, Informação e Memória
| 81
Essa sequência que constitui a chave interpretativa de Vera de
Figueiredo sobre a ditadura civil-militar sofreu censura. A despeito das
questões de ordem moral e de comportamento serem conexas à política,
assinala-se que os cortes em Feminino plural implicaram o projeto moral
do regime. No documento ocial do Departamento de Censura e Diversão
Pública consta:
Cortes no 3º rolo:
Na seqüência em que cinco personagens (03 homens e duas (sic)
mulheres) caracterizam a sociedade, circulando pelo ambiente de
maneira independente, teatral e indiferente, cortar:
a) O beijo entre o personagem que simboliza o “poder” e o que
representa o “Militar”;
b) A parte em que o representante do “poder” agarra, por sobre a
roupa, o sexo do “militar”;
c) A cena em que o “militar” segura seu próprio sexo sobre a roupa.
(Pareceres. DCDP, 27/12/76).
A censura ao Feminino plural incidiu nas cenas do beijo entre o Poder
e o Militar e de suposto afago no órgão genital do Militar, seja pelo Poder,
seja por ele próprio. Para além de se considerar o possível propósito dos
censores de blindarem a imagem dos militares, procurando invisibilizar
representações pertinentes às suas sexualidades, é possível indagar se tais
cortes seriam determinados se se tratasse de afagos realizados por uma
personagem feminina, descartando, desta maneira, a sugestão homoafetiva.
Tal questão não cabe, evidentemente, ser desenvolvida aqui
– embora Antônio Moreno já tenha detalhado como o tema da
homossexualidade atravessou o cinema brasileiro e, ainda, os estudos de
James Green, Marisa Fernandes, Renan Quinalha e Rita Colaço, para citar
apenas alguns autores, já tenham mostrado que as homossexualidades
confrontavam o projeto político-moral do regime civil- militar brasileiro,
que, aliás, reprimiu com veemência tais expressões no cotidiano social do
país (CAVALCANTE, 2016).
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
82 |
A observação dos aspectos morais e de comportamento que motivaram
os cortes ao lme de Figueiredo permite conrmar apontamentos segundo
os quais setores moralmente conservadores da sociedade demandaram
maior recrudescimento da censura, pois se deparavam com a expressão
de certa “revolução dos costumes”, própria daqueles anos (FICO, 2002;
MARCELINO, 2011). De acordo com Marcelino,
[...] o que mais parecia incomodar esses segmentos era a chamada
‘revolução dos costumes’, consubstanciada em torno de certas
discussões morais que ganhavam mais espaço na sociedade: questões
relativas aos direitos de certas ‘minorias’ (mulheres, homossexuais
etc.), à adoção de novos métodos contraceptivos, à legalização do
divórcio, ao uso de drogas como forma de rebeldia e à liberalização
sexual […].
Das ‘novas discussões’, o sexo era um dos aspectos que mais
preocupava as pessoas que pediam uma atuação mais enérgica da
censura, muitas delas visualizando uma ascensão ameaçadora do
erotismo nos programas de tevê, nas publicações editadas no país
e em outros setores, como o cinema nacional [...] (MARCELINO,
2011, p. 32-33).
Enfatiza-se, assim, que as questões abertas no emblemático 1968
em relação aos papéis de gênero e às sexualidades, bem como relativas ao
experimental no fazer cinematográco, reverberaram em Feminino plural.
Isso a despeito do Brasil se encontrar em uma ditadura, que, em 13 de
dezembro daquele ano, há quase 50 anos, acarretou tempos ainda piores,
por meio do Ato Institucional nº 5 – cuja violência institucionalizada
imperou legalmente até o nal da década de 1970.
Naquela época de 1968, Vera de Figueiredo, com o seu primeiro
longa-metragem, lançou-se de maneira insubmissa naqueles tempos duros
brasileiros, correndo todos os riscos, inclusive, deixando propositalmente
os três cortes na edição de seu lme para marcar a censura e detalhar ainda
mais a memória da ditadura que engendrara
12
.
12
Entrevista cedida por Vera de Figueiredo, em 11/02/2011. Quanto à censura no Brasil, embora tenha havido
certo abrandamento com o processo de abertura “lenta e gradual” promovido pelos militares, ela persistiria até
o nal do regime militar. Ver: FICO, 2002; MARCELINO, 2011.
Imagem, Informação e Memória
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86 |
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R,    
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Eduardo Morettin
1
Daniela Giovana Siqueira
2
Debora Butruce
3
O campo da preservação audiovisual no Brasil vem passando, nos
últimos anos, por um processo de amadurecimento e transformação
4
que
pode ser observado, entre outros fatores, pelo signicativo aumento dos
estudos sobre a área
5
. Antes de mais nada, é necessário esclarecermos o que
se entende por preservação audiovisual.
Doutor em Ciências da Comunicação; professor de História do Audiovisual da ECA/USP. E-mail:
cunhamorettin@uol.com.br.
 Doutora em Meios e Processos Audiovisuais. E-mail: danigiovana@yahoo.com.br.
Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais; prossional da área de preservação e restauração audiovisual.
E-mail: deborabutruce@hotmail.com
P em Meios e Processos Audiovisuais odemos incluir a criação da disciplina Preservação, Restauração e Política
de Acervos Audiovisuais no curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2000, como um
dos momentos que auxiliaram no processo de consolidação da área de preservação audiovisual no Brasil.
Uma listagem abrangente pode ser encontrada em Costa (2013b, p. 120-121). Além destes trabalhos, podemos
citar Vasques (2012) e Costa (2013a).
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p87-104
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
88 |
Preservação audiovisual é o conjunto dos procedimentos, técnicas
e práticas necessários para a manutenção da integridade do documento
audiovisual, em seus variados suportes, e a garantia permanente da
possibilidade de sua experiência intelectual. A preservação engloba uma
série de atividades, dentre elas a prospecção e a coleta, a catalogação, a
conservação, a duplicação, a migração, a restauração, a reconstrução (quando
necessário), a recriação das condições de apresentação, a documentação, a
difusão e o acesso, além da pesquisa e a reunião de informações para realizar
adequadamente todas essas atividades
6
. A restauração audiovisual
7
é um
importante aspecto do conjunto de práticas que constituem a atividade
de preservação, tendo ganhado destaque nas pesquisas sobre a área. A
bibliograa estrangeira dedicada ao assunto também vem aumentando, e
tentativas no sentido de denir teoricamente o campo vêm sendo realizadas,
em especial por pesquisadores europeus.
Uma das questões principais é o conceito do que seria o original em
uma obra audiovisual. O manuseio de uma obra em película fotoquímica
acarreta danos inevitáveis e progressivos, o que gera a necessidade de
duplicação do seu conteúdo para um novo suporte. Já no universo digital,
é a obsolescência tecnológica dos formatos e de seus equipamentos de
reprodução que demandam a periódica migração dos conteúdos. Portanto,
quando se aplica o termo restauração aos artefatos
8
audiovisuais, deve-se
levar em conta sua especicidade em relação à maior parte das outras
artes, visto que ela necessariamente envolve a reprodução de um material
original. Mas o que seria este material original? Retomaremos essa questão,
de forma mais detida, adiante.
Esta denição é uma tradução/adaptação de algumas denições existentes em Edmondson (2013), Cherchi
Usai (2000) e Souza (2009).
Apesar dos estudos de caso aqui mobilizados versarem sobre lmes no suporte fotoquímico, ou seja, realizados
em película cinematográca, acreditamos que o termo audiovisual é mais abrangente e, portanto, mais adequado
atualmente, pois inclui campos distintos da produção e realização de imagens em movimento.
Artefato: forma individual de cultura material ou produto deliberado da mão de obra humana (Dicionário
Houaiss, 2009).
Imagem, Informação e Memória
| 89
o ConCeito de restAurAção AudiovisuAl
Para Paolo Cherchi Usai (2000), a restauração audiovisual é “o
conjunto de procedimentos técnicos, editoriais e intelectuais destinados
a compensar a perda ou degradação do artefato imagem em movimento,
e, desta forma, trazê-lo de volta ao estado mais próximo possível de sua
condição original.
9
(CHERCHI USAI, 2000, p. 66, tradução nossa).
Nesse sentido, a restauração já acarretaria alterações na situação
em que se encontra o objeto visando o restabelecimento de seu estado
original. O autor considera que a remoção de alterações ou manipulações
detectadas no artefato durante o processo de reprodução e a inclusão de
elementos faltantes (a partir de práticas de reconstrução), com a nalidade
de reverter os efeitos da manipulação (inapropriada ou não) ao longo
do tempo e o desgaste óptico e cromático dos suportes de imagens em
movimento são etapas integrantes do trabalho de restauração. Tomadas
individualmente, nenhuma delas é suciente para cumprir os requisitos
de uma restauração audiovisual.
Já Paul Read e Mark-Paul Meyer (2000) discorrem, principalmente,
sobre os aspectos técnicos e práticos da restauração audiovisual, armando
que a restauração consiste, essencialmente, de duplicação, sendo que esta
seria a única maneira de preservar as imagens em movimento. Entretanto,
as técnicas de duplicação no universo fotoquímico possuem limitações
inerentes e, desta forma, cada processo representa uma alteração em relação
aos materiais de origem.
Os autores deixam ainda mais clara a característica interventora da
restauração, explicitando que a natureza do próprio processo de reprodução
já acarreta inevitáveis alterações e que, por conta disso, determinados
princípios devem ser sempre observados, tanto em uma duplicação simples,
com o mínimo de intervenções, até nas mais complexas, com o máximo
de manipulações. Deve-se ter atenção, principalmente, no momento de
transferência de um material em película para outro suporte, como o
digital, por exemplo.
No original: “Restoration is the set of technical, editorial and intellectual procedures aimed at compensating for
the loss or degradation of the moving image artifact, thus bringing it back to a state as close as possible to its original
condition”.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
90 |
Por conseguinte, o retorno do material à sua condição original,
mesmo que de forma parcial, não seria possível. Ainda que as denições de
Read e Meyer se restrinjam aos procedimentos fotoquímicos da restauração
audiovisual, o conceito pode ser estendido ao universo digital, pois mesmo
que a reprodução de uma obra fílmica para um formato digital não
implique em perda de qualidade, a natureza da formação da imagem (e da
gravação dos sons) no digital é diferente do padrão analógico e, portanto,
a reformatação dos materiais é imprescindível. Ou seja, alterações são
sempre inevitáveis.
A denição de Julia Wallmüller (2007) considera que a restauração
pode ser compreendida como uma intervenção na parte física ou visual de
um lme, cuja nalidade é reduzir ou remover danos e erros ao mesmo
tempo em que preserva defeitos inerentes ao trabalho no momento da
produção. A autora reforça esse caráter interventor ao explicitar e diferenciar
conceitos importantes para o campo, como os de dano, erro e defeito.
Dano seria o vestígio das manipulações ocorridas ao longo do tempo,
a deterioração físico-química, além do uso ou mau uso do material, como
riscos, rasgos, impressões digitais, manchas, encolhimento e esmaecimento
da cor, entre outros. Erro refere-se às modicações na obra que não pertençam
ao seu conteúdo original, advindas do tratamento a que o trabalho foi
submetido. Uma duplicação malfeita que não respeitou a proporção de
tela original ocasiona, por exemplo, subtração de parte da imagem nas
laterais dos fotogramas. O defeito, por m, pode ser um dano ou um erro
que ocasiona um efeito visual (e/ou acústico) no artefato audiovisual, que
pode ser oriundo da produção da época e que passa, portanto, a fazer parte
de suas características originais, devendo ser encarado como integrante do
trabalho original
10
.
Como podemos observar, a partir dos exemplos acima mencionados,
a maioria das denições sobre restauração audiovisual inclui a ideia de
retorno à condição original do lme. A ideia subjacente é que existiria
10
Débora Butruce participou do projeto de restauração digital da obra do cineasta Joaquim Pedro de Andrade,
no qual se debateu intensamente a possibilidade de apagar do plano, por meio dos softwares de restauro, um
tubo de plástico por onde o sangue cenográco na cena nal de Macunaíma (1969) é expelido. Mesmo sendo
um dos aspectos do efeito especial que deveria, a princípio, ser imperceptível, o defeito foi considerado parte
integrante da condição original do lme e foi, portanto, mantido.
Imagem, Informação e Memória
| 91
um estado de origem ao qual seria possível retornar (ou ao menos se
aproximar) através da restauração. No entanto, o conceito de original é
bastante controverso no universo audiovisual. Segundo Cherchi Usai
(2000. p. 160, tradução nossa), “[...] a versão ‘original’ de um lme é um
objeto múltiplo, fragmentado em um número de diferentes entidades
equivalente ao número de materiais sobreviventes.
11
. O autor considera
que os artefatos fílmicos (negativo de imagem, negativo de som, máster,
internegativo, cópia etc.) são objetos que possuem uma evidência histórica,
uma vez que cada um deles teria características particulares que podem
ser determinantes nos resultados de um trabalho de restauração
12
. Logo,
cada artefato fílmico é merecedor de um tratamento peculiar, pois tanto
os negativos ou uma cópia de difusão podem ser considerados as matrizes
de uma restauração, já que detêm características originais intrínsecas à sua
própria materialidade.
Este valor de evidência histórica dos artefatos fílmicos, portanto,
deve ser reconhecido por parte dos prossionais de arquivos de lmes
e restauradores, uma vez que apresentam características semelhantes às
das obras de arte tradicionais, no sentido de que cada um deles possui
qualidades estéticas únicas que não podem ser reproduzidas sem perdas.
Ademais, um lme e, por conseguinte, seu processo de restauração,
estão intrinsecamente ligados à tecnologia e ao seu desenvolvimento.
Ou seja, a restauração sempre carrega as características do período em
que foi realizado.
Também no discurso em torno do original, a tensão entre os
artefatos materiais e os artefatos conceituais
13
se torna central. O original
pode realmente ser um dos possíveis artefatos materiais (por exemplo, o
negativo de câmera original ou o único fragmento existente recuperado
pelo arquivo) ou um dos possíveis artefatos conceituais (por exemplo, o
11
No original: “e ‘original’ version of a lm is a multiple object fragmented into a number of dierent entities equal
to the number of surviving copies”.
12
Cherchi Usai procura entender os artefatos fílmicos que compõem as imagens em movimento utilizando a
mesma referência da restauração nas artes plásticas, onde cada objeto é considerado como o original, como na
teoria desenvolvida por Brandi (2005), que inclusive serviu de base teórica para a reexão conceitual acerca da
restauração audiovisual.
13
Conceitos desenvolvidos por Fossati (2010). Para a autora, os artefatos conceituais são entendidos como as
diferentes versões de um lme.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
92 |
corte do diretor/produtor ou do lme, conforme exibido para o público)
(FOSSATI, 2010). Isto é, o original pode ser desde o lme como o cineasta
queria, o lme como efetivamente foi realizado, ou o lme como ele foi
recuperado pelo arquivo em um dado momento, carregando as marcas da
deterioração do material.
O conceito de original tem uma grande implicação na prática da
restauração, pois orienta as intenções pretendidas pelos prossionais de
restauro em um processo de trabalho. Desta forma, é fundamental discutir
e questionar a ideia tradicional de original para a denição do conceito de
restauração, e procurar uma acepção mais adequada ao contexto das artes
que se caracterizam por sua reprodutibilidade, como a audiovisual.
Em relação ao entendimento sobre o conceito de original no universo
audiovisual e, especialmente, em uma restauração, o ponto crucial diz
respeito à necessidade de se determinar qual versão está sendo manipulada
e ganhará o estatuto de matriz. As soluções serão diferentes para cada
lme, de acordo com as evidências que possam ser encontradas e com a
tecnologia e orçamentos disponíveis. A documentação de todo o processo é
absolutamente necessária e deve acompanhar todo o percurso do trabalho,
visto que cada decisão pode resultar em intervenções que se perpetuarão
e acompanharão as versões de um lme deste momento em diante, até
o seu (provável) desaparecimento. Questões acerca da autenticidade e
proveniência da materialidade física de um lme nunca se conguraram
como prioritárias em debates metodológicos e éticos desenvolvidos pela
crítica de cinema e pela área acadêmica como aconteceu com a maioria das
outras artes também baseadas em registros permanentes.
Essa discussão, portanto, além do interesse direto para o campo da
restauração audiovisual, é importante para os historiadores do cinema.
Se uma de suas preocupações fundamentais se relaciona com a origem
das fontes e sua integralidade, o ponto de partida da análise, dependendo
da versão, poderá ser frágil, suscitando explicações que não encontrarão
respaldo no cotejo com a historiograa sobre a obra e seu tempo
(MORETTIN, 2014)
14
. Tendo essas questões no horizonte, analisaremos
14
Essa questão se torna mais sensível no século XXI, dado que é possível encontrar na web todo e qualquer
título, sem a necessária indicação da fonte ou da versão disponível.
Imagem, Informação e Memória
| 93
dois lmes brasileiros realizados em contextos muito diversos: Os óculos
do vovô (1913), de Francisco Santos, e Crioulo doido (1970), de Carlos
Alberto Prates Correia.
Primeiro estudo de CAso: os óCulos do vovô (1913), de
frAnCisCo sAntos
15
Os óculos do vo (1913), de Francisco Santos, realizado na cidade
de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, é o mais antigo lme de cção
remanescente da história do cinema brasileiro
16
. Os “posados”, como se
chamavam no Brasil produções como a de Santos, eram exceção dentro do
quadro geral, sendo a “continuidade do cinema brasileiro assegurada quase
exclusivamente pelo documental”, como salientou Paulo Emilio Salles
Gomes (1986, p. 324).
Do lme sobreviveu menos de um terço de sua duração original de
15 minutos, mais precisamente quatro minutos e dezesseis segundos. Eis
a sinopse disponível na sua cha catalográca da Cinemateca Brasileira:
“O menino peralta pinta os óculos de seu avô enquanto este dorme. Ao
acordar, o avô leva um susto, diante da cegueira imaginada, criando uma
série de confusões dentro de casa
17
.
Maria Rita Galvão realizou, no início dos anos 1990, um meticuloso
estudo comparativo das cópias existentes na Cinemateca do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro e na Cinemateca Brasileira, esta oriunda da
antiga Empresa Brasileira de Filmes (Embralme), auxiliada pelo exame
de documentação textual e iconográca. Desse estudo foram originados
três materiais, depositados na Cinemateca Brasileira: “Os óculos do vovô
– Descrição plano-a-plano”, “Jogo de Armar – Decupagem” e um texto
15
Uma versão ampliada da reexão desse item será publicada por Eduardo Morettin em Revista Museologia
& Interdisciplinaridade com o título “Gênero e montagem em Os óculos do vovô (Francisco Santos, 1913):
anotações de um historiador”.
16
Para quem se debruça sobre a história do cinema silencioso brasileiro, uma constatação pesarosa: deste
período, menos de 10% dos lmes produzidos sobreviveu (SOUZA, 2011, p. 17).
17
Disponível em: http://bases.cinemateca.gov.br/cgi- bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.
xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=ID=001395&format=detailed.pft#1.
Acesso em: 28 nov. 2018.
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analítico sobre esse processo intitulado “Jogo de Armar: anotações de
catalogador”, texto que permaneceu durante muito tempo inacessível
18
.
A intenção maior da autora era demonstrar a importância: “[...]
para o desenvolvimento dos estudos universitários de História do
Cinema, (d)o trabalho de preservação, documentação e catalogação das
cinematecas” (2018
a
, p. 169). Trata-se provavelmente do primeiro texto
no Brasil a discutir de maneira detida o processo de restauração de um
lme e as escolhas nele implicadas. Não à toa, como Galvão faz questão
de frisar, seu estudo se intitula “Jogo de Armar”, e tem por subtítulo
Anotações de catalogador”.
Em “Jogo de Armar – decupagem” (2018b) temos, do lado direito
da folha, a disposição, em linha vertical, dos fotogramas do lme. Do lado
esquerdo, uma coluna indica a numeração das imagens. Ao seu lado estão
colados, em formato retangular, pequenos comentários datilografados,
recortados de “Jogo de Armar: anotações de catalogador”. Há setas e
observações escritas à caneta, indicando a sequência dos fotogramas, sua
numeração etc. A partir da folha nº 2, mais uma coluna é adicionada e
atribuídos dois nomes: “fotos MAM” e “fotos Embra”. Trata-se de roteiro
de trabalho, exaustivo, que procura demonstrar na disposição dos dois
lmes remanescentes as escolhas que devem ser tomadas em um eventual
processo de reordenação do lme a m de se chegar à versão mais próxima
da exibida em 1913. Nesse estudo, Galvão aponta a inexistência da cópia
original em nitrato, fato que impede a vericação de emendas, a falta de
planos soltos arquivados, as intervenções realizadas por cada instituição
(constata que os materiais não foram objeto de qualquer “reconstituição
editorial” etc.).
Como sabemos, até os anos 1970 o cinema produzido no nal do
século XIX e início do século XX era antes conhecido como pré-cinema
ou cinema primitivo, dada a percepção de que existia uma lacuna a ser
preenchida, uma ausência daquilo que se congurou mais à frente, nos
anos 1910, como cinema narrativo clássico. No que diz respeito ao cinema
brasileiro do mesmo período, as considerações de um historiador do porte
18
Os três materiais foram publicados pela revista Vivomatograas (2018a, 2018b, 2018c) com uma
apresentação de Eduardo Morettin (2018).
Imagem, Informação e Memória
| 95
de Paulo Emilio Salles Gomes, observa Maria Rita Galvão, iam no mesmo
sentido. A partir das informações textuais colhidas em jornais e revistas,
das fotograas remanescentes e do contato com Os óculos, Salles Gomes
generaliza: são “decalques canhestros do que se fazia nas metrópoles”, de
pouca habilidade com que era manuseado o instrumental estrangeiro
e “tecnicamente muito inferiores ao similar importado”. Enm, uma
situação medíocre” (apud GALVÃO, 2018a, p. 175-176).
Da comparação entre as versões existentes, Galvão interessou-se por
um plano intermediário, o de nº 22, com duração de 15 segundos. Nele,
vemos o vovô sentado junto com seu neto e lha em uma mesa posta
no espaço que corresponderia ao jardim de sua casa. A seguir, a mãe do
garoto deixa o plano, caminhando em direção ao fundo. O avô e a criança
permanecem sozinhos no plano. Esse plano está inserido no momento em
que o marido liga para o médico, pedindo-lhe que faça uma consulta em
casa, pois o avô reclama que não está enxergando bem.
A divisão em blocos narrativos – são três, de acordo com a análise de
Galvão – confere a esse plano uma função de continuidade, garantindo o
enquanto isso” típico da montagem paralela grithiana, em sintonia com
o que à época se fazia no cinema norte americano. Além do paralelismo,
o uso uído do campo e contracampo, um cenário menos estilizado, a
disposição da câmera em ângulo que sugere ao espectador um espaço para
além do visto e o controle pela montagem do tempo e deslocamentos das
personagens pelos espaços cênicos atestam o domínio da continuidade tal
como ela se congurou no cinema norte-americano do período.
Esse plano contestaria, assim, a suposição de que, conforme Galvão
(2018a, p. 174)
19
“[...] a estrutura dos lmes brasileiros era composta
por uma sucessão de quadros de ação completa, interligados por letreiros
que deveriam explicar os acontecimentos e estabelecer a concatenação
lógica entre eles.”. Ela observa que esses dados seriam “sucientes para
revolucionar a ideia corrente sobre a construção da linguagem no cinema
mudo brasileiro” (GALVÃO, 2018a, p. 186).
19
Um exemplo de lme pautado por essa estrutura seria, de acordo com a historiadora, o argentino La revolución
de mayo (1909), de Mario Gallo. Cuarterolo (2017) analisa essa cção e sua inserção no gênero lme histórico.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
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Galvão destaca também um elemento muito presente em Os óculos: o
que ela chama de “o tempo de espera”, que se evidencia em cada plano com
o registro de um antes e um depois da ação transcorrida. Não raro o plano
permanece vazio, no sentido de que a câmera capta o espaço cênico por
onde as personagens circularão, como se estivesse à sua espreita. Não há,
portanto, nessas imagens alguém à vista. Se há, trata-se de um envolvido
na história, no aguardo da chegada dos demais.
O percurso realizado por Galvão em seu estudo comparativo
estabeleceu a versão que hoje conhecemos. Em 2009 o lme integrou a
caixa de DVDs Resgate do cinema silencioso brasileiro, que, com outros
documentários do período, ganhou o título Vida cotidiana
20
. No livreto
organizado por Carlos Roberto de Souza não há referências ao estudo de
Maria Rita Galvão nem ao fato de que Os óculos do vovô é resultado da
ordenação elaborada pela historiadora. No mesmo ano, o lme foi um dos
164 títulos que se juntaram aos 330 da Programadora Brasil, ação cultural
do Ministério da Cultura destinada a fornecer material para programação
de pontos de exibição audiovisual não- comercial. Outro passo importante
para sua divulgação foi a criação, também em 2009, do Banco de Conteúdos
Culturais da Cinemateca Brasileira, plataforma que coloca à disposição do
consulente inúmeros conteúdos audiovisuais em formato digital. Dentre
esses conteúdos, Os óculos do vo, na versão consagrada por Galvão
21
.
Em suma, a publicação do estudo comparativo de Galvão em
2018 permitirá que novos olhares sejam lançados sobre esse material,
contribuindo também para que pensemos as relações entre História e os
processos de escolha implicados na restauração audiovisual.
20
São 27 lmes distribuídos em cinco DVDs com os seguintes títulos: 1. Riquezas paulistas; 2. Aspectos do
Brasil; 3. Ciências (mesmo ocultas) e riquezas; 4. Vida cotidiana; e 5. Cerimônias públicas. A caixa foi editada pela
Cinemateca Brasileira, Sociedade Amigos da Cinemateca e Caixa Econômica Federal.
21
Disponível em: http://bcc.org.br/lmes/443183. Acesso em: 28 nov. 2018. Em http://bcc.org.br/search/
node/oculos%20do%20vovo é possível conhecer também as fotograas do lme que serviram de base ao estudo
de Maria Rita Galvão.
Imagem, Informação e Memória
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segundo estudo de CAso: Crioulo doido (1970), de CArlos
Alberto PrAtes CorreiA
Em 1970, o diretor brasileiro Carlos Alberto Prates Correia lança
seu primeiro longa-metragem chamado Crioulo doido. Nele, o espectador
é levado a conhecer os anseios de Felisberto Ladeira, personagem principal
do lme, um alfaiate que se torna um dos homens mais ricos de uma
cidade do interior. Quando alcança a riqueza, enlouquece. O protagonista
é a única personagem negra em uma narrativa em que o diretor entrecruza
racismo e ascensão social, localizando a discussão em uma cidade do interior
de Minas Gerais. Se o discurso político brasileiro de então preconizava
as transformações socioeconômicas sob a chave de uma modernização
conservadora, a produção cinematográca elegia o drama social como
forma de tentar entender a presença do negro nesse contexto. Percebido
entre essas duas esferas, Crioulo doido desorganiza qualquer princípio linear
de lógica pelo uso que faz da farsa como estratégia narrativa. Essa estratégia
coloca a obra em uma posição singular dentro da discussão social proposta
pelo cinema brasileiro do período
22
. O pesquisador Antônio Paiva Filho
arma que uma das características presentes no lme será sentida ao longo
da carreira do diretor: “[...] a subversão da linguagem comum do cinema e
o humor corrosivo, irreverente, anti-hipócrita” (2004, p. 72)
23
.
Produzido por uma empresa mineira, fora do grande circuito cultural
formado pelo eixo Rio de Janeiro-São Paulo e com nanciamento obtido
por meio de empréstimo concedido por uma instituição nanceira, o Banco
de Desenvolvimento de Minas Gerais, Crioulo doido foi pouco distribuído
e exibido à época de seu lançamento, restando ao diretor uma dívida paga
durante anos, com juros e correção monetária. O pouco desempenho
alcançado pelo lme na segunda e terceira etapas da cadeia produtiva
22
Na lmograa brasileira, entre a década de 1950 até meados dos anos de 1960, o drama é o gênero que domina
a forma da representação e a presença do afrodescendente. Geralmente, pela eleição do universo do samba/
carnaval, sendo a favela carioca eleita como espaço simbólico central para o desenvolvimento da narrativa, como
vemos em – dentre outros – Rio zona norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, Orfeu do carnaval (1958),
de Marcel Camus, e Escola de samba alegria de viver, de Cacá Diegues, episódio de Cinco vezes favela (1962). A
perspectiva construída é a de pensar o negro como vítima de um processo mais amplo das mazelas brasileiras.
23
Prates Correia dirigiu lmes como Perdida (1975), Cabaret mineiro (1979), Noites do sertão (1983) e Minas-
Texas (1989), entre outros, em uma trajetória prossional que registra 60 prêmios em festivais no Brasil e no
exterior.
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do audiovisual (distribuição e exibição) é fator que contribuiu para seu
posterior esquecimento historiográco, reverberando consequências para a
última etapa da cadeia, a preservação audiovisual.
Um lme é, portanto, um ativo cultural que reage à passagem do
tempo de maneira física e histórica. Essa armação parte do princípio de
que a preservação audiovisual é um campo que não permite ser pensado
de forma restrita sob a esfera da conservação preventiva (cuidar para que
um lme dure o maior tempo possível). Pelo contrário, todo e qualquer
movimento ao qual o lme for submetido, após encerrada sua etapa de
exibição, compete, na cadeia produtiva, à etapa da preservação.
Crioulo doido foi produzido e nalizado em 1970, concebido como
um longa-metragem em película, bitola 35 mm, possuindo 76 minutos
de duração. Dessa versão se encontra preservado um único material, uma
cópia combinada
24
, composta por cinco rolos em película 35 mm, que
estão depositados no acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro.
Quarenta e oito anos depois também é possível encontrar em
circulação duas outras edições da obra, feitas pelo próprio diretor. Na
década de 1990
25
, a partir do apoio do Centro Cultural Banco do Brasil,
foi gerada uma cópia magnética em formato VHS, com duração de 66
minutos
26
. Além de mais reduzida, a nova versão apresenta modicações
que interferem de forma determinante no conteúdo narrativo da obra
original, apresentando: retirada de cenas inteiras; acréscimo de músicas
na trilha sonora; inversão de cenas na montagem; adição e alteração de
informações nos créditos do lme; acréscimo de ruídos e sons ambientes;
redução de sequências; e introdução de imagens a partir de trechos do lme
Cantos de trabalho (1955), de Humberto Mauro, produzido pelo Instituto
Nacional de Cinema Educativo (INCE), que assumem na segunda versão
24
Cópia combinada é o nome dado a materiais em película que possuem impressos em um mesmo rolo as
imagens e a banda sonora. São as cópias de exibição comercial de um lme.
25
A data foi conrmada a partir de carta do diretor endereçada ao professor Mateus Araújo (USP) em que atesta,
em 1997, a existência da nova versão em suporte magnético.
26
Essa versão, gerada a partir de matriz VHS cedida por Mateus Araújo, encontra-se depositada no acervo
fílmico da biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e pode ser acessada em
DVD.
Imagem, Informação e Memória
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o lugar de materiais de arquivo, criando uma liação histórica entre os
dois diretores. A introdução dessas imagens, feitas sobre um áudio em que
é exposto o pensamento do próprio Felisberto, insere o alfaiate em uma
tradição de superação da escravatura, ao invés de colocá-lo frente a um
projeto ascensional individual, como apresentado na primeira versão. As
imagens de arquivo intervêm no sentido originalmente dado à apresentação
da personagem, tendo sido acrescentadas à narrativa logo na sequência de
abertura do lme. O conjunto das modicações realizadas permite armar
que a segunda versão altera signicativamente vários sentidos propostos
para os personagens em relação ao lme lançado mais de vinte anos antes.
Nos anos 2000
27
, o diretor faz uma nova volta ao material,
operando alterações que geraram uma terceira versão, que, em relação
às modicações presentes na segunda, ainda possui adição de letreiros,
acréscimo e alteração de músicas na trilha sonora e nova diminuição
de duração, totalizando agora 62 minutos. Essa revisão implicou,
necessariamente, em nova reinterpretação de sentidos em relação às versões
anteriores, com modicações feitas nos elementos narrativos: letreiros,
sons ambientes, introdução de elementos sonoros e trilha musical, que, ao
serem acrescentados, terminam por vincular Crioulo doido de forma direta
ao contexto da Ditadura Militar, ligação inexistente na primeira versão.
O público hoje tem acesso apenas a esta versão, disponível no canal
YouTube
28
na internet. Até o nal de 2016, compôs a grade de programação
do Canal Brasil, em rede de televisão fechada.
Em entrevista concedida em 2008, o diretor armou:
Na versão antiga, de 80 minutos, ele foi exibido quase nada, por
diversos motivos. Neste século, uma vez, na TV Educativa. Reeditei
o lme em 63 minutos, o som agora está perfeitamente audível.
Sua exibição na retrospectiva [forumdoc.bh] é praticamente
o lançamento de um lme novo. (FONSECA; MESQUITA;
SABINO, 2008, p. 144).
27
Morettin não conseguiu documentação que comprovasse o ano exato da realização dessa terceira versão, mas a
suposição é a de que ela tenha sido feita em 2007, pouco antes da retrospectiva da obra do diretor no Forumdoc.
bh de 2008.
28
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HMdvgqIwP5Y. Acesso em: 30 nov. 2018.
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Sobre o fato de ter feito intervenções em sua lmograa, o diretor
armou, em 2013: “Aproveitei a oportunidade para fazer cortes e reeditar
o som de todos. Cortei planos deteriorados, tornei letreiros legíveis, dei
um acabamento aos lmes que eles nunca tiveram.” (FONSECA, 2013).
No caso analisado, o fato de existirem mesmo três versões – todas levadas
a cabo pelo próprio realizador – implica em se deparar com a revisão de
um caminho de escolhas anteriormente feitas há quase 50 anos, por Prates
Correia – e não por outras fontes, como um produtor, por exemplo –
gerando consequências para as informações que serão disponibilizadas
sobre a obra para o consulente.
Atualmente coabitam no tempo três obras, três “crioulos doidos”,
em materiais distintos, que nos permitem pensar as distintas formas
de circulação nesse percurso cinematográco do analógico ao digital.
A primeira versão em película 35 mm, praticamente não circula, assim
com a segunda versão em magnético, formato VHS. A terceira, por sua
vez, em formato digital, está disponível na internet, fazendo com que o
contato com a obra seja mediado pela leitura que Prates Correia faz de
seu próprio trabalho no nal dos anos 2000. Estas versões, em análise
comparativa, indicam o desdobramento de questões que o exercício da
análise fílmica traz para o presente em que cada versão foi realizada.
O método comparativo possibilita que vejamos a passagem do tempo a
partir das sucessivas modicações feitas sobre o conteúdo original, que
gerou diferenças substanciais na obra, fazendo com que cada versão seja
portadora de diferentes discursos históricos. A análise fílmica é, portanto,
ferramenta a ser considerada no tratamento da informação a ser dada a
cada uma das versões. Dessa forma, o esclarecimento sobre as etapas de
existência de uma obra do cinema brasileiro impacta a história produtiva
de uma cinematograa marcada pela diculdade de se fazer conhecida,
sob amplos aspectos, pela própria população do país.
O conjunto das alterações realizadas nas versões nos coloca diante
de produtos, registrados sob o mesmo título, diretor e ano de produção,
com resultados políticos e estéticos diferentes entre si, disponibilizados ao
Imagem, Informação e Memória
| 101
público por três diferentes instituições
29
. Assim, o caminho de reverberação
no tempo dessa obra encontra nas informações a serem reunidas na cha
do lme no banco de dados das instituições físicas, ou na descrição fílmica
que acompanha o arquivo digital disponibilizado no site YouTube, o espaço
privilegiado para deixar registrado na memória desse lme a sua própria
história de existência
30
.
As decorrências para o público são inúmeras. Uma crítica feita a
partir do visionamento da primeira versão será obrigatoriamente muito
diferente de um texto escrito a partir do visionamento da terceira versão
31
.
Além disso, as informações que se disponibilizam sobre a obra impactam
decisões de curadoria em mostras e festivais
32
, conteúdos para a geração de
conhecimentos acadêmicos e historiográcos
33
, e quantos forem os usos
a serem feitos pelo consulente da informação pesquisada. Por sua vez, o
uso dessas informações dene ou mesmo pode redenir o caminho da
obra no tempo futuro, quando esta é novamente introduzida no circuito
comercial pela área de distribuição com a fabricação de novos produtos
como DVDs, percurso que vimos completado no caso de Os óculos do vovô.
Esses desdobramentos colocam o trabalho de catalogação em uma posição
29
Nesse contexto é possível pensar o site YouTube como uma instituição, pois a internet se localiza hoje na
sociedade como um grande ponto de referência política, econômica e social trazendo nova conguração a
princípios históricos de acesso a informações e dos próprios objetos em si (fotos, lmes, textos etc.). As outras
duas instituições, como dissemos, são um arquivo fílmico e uma universidade.
30
As modicações que constituem as novas versões impactam campos como sinopse, cha técnica (inclusão
de funções decorrentes do novo trabalho efetuado sobre sons e imagens), outras informações como fonte de
nanciamento, formato, ano, categoria, termos descritores, distribuição, e dados de conteúdo relativos aos
acréscimos que o lme tenha sofrido, como adição de músicas, por exemplo.
31
As principais críticas encontradas na internet sobre o lme reetem nitidamente um visionamento da terceira
versão da obra, remetendo as análises ao contexto de produção original do lme, o ano de 1970, sem fazer
referência a modicações posteriores feitas à obra. Ver MIRANDA (2011) e CHAMY (2011).
32
A obra do diretor recebeu duas grandes retrospectivas. A primeira delas durante o 12º forumdoc.bh.2008 -
Festival do Filme Documentário e Etnográco. Fórum de Antropologia, cinema e vídeo. A segunda, em 2012,
no 14º BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independente.
33
Como o verbete sobre o lme disponibilizado pela Enciclopédia Itaú Cultural. Ver: Crioulo Doido.
Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67609/crioulo-doido?utm_source=literatura%20
infantil&utm_medium=/obra67609/crioulo- doido&utm_campaign=pagina_busca. Acesso em: 30 nov. 2018
e a base de dados de conteúdo Filmograa Brasileira, alimentada pela Cinemateca Brasileira. Disponível em:
http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=p.
Acesso em: 30 nov. 2018.
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central quando pensamos as implicações às quais estão sujeitas a existência
de versões de uma mesma obra
34
.
Se ampliarmos o horizonte de nossa análise, somos colocados diante
de um quadro mais amplo, capaz de referenciar um fato de maior alcance:
a passagem do tempo sobre um lme, quando pensada sobre o arcabouço
da preservação audiovisual, nunca é impune. Em Crioulo doido, a passagem
do tempo se desdobra nas modicações feitas sobre o conteúdo original,
identicadas pelo método da análise fílmica.
Fundador da Cinemateca Brasileira e grande responsável pela
sedimentação dos estudos do cinema como um campo no Brasil, Paulo
Emilio Salles Gomes desenvolveu nesse projeto político, como arma
Ismail Xavier (1994): “[...] visão totalizante da conjuntura que sempre
lhe permitiu pensar o cinema dentro da cultura, inserir a reexão sobre a
imagem nas questões maiores do século.” (1994, p. 298, grifo nosso).
Nesse sentido, os dois estudos de caso, sobre lmes tão diferentes,
apontam a necessidade de pensarmos as questões implicadas no conceito de
original tanto em restauração audiovisual quanto no universo audiovisual
em geral e, fundamentalmente, a história de sobrevivência da obra em sua
materialidade física.
referênCiAs
BRANDI, C. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
CHAMY, F. Crioulo doido. Revista Zingu, n. 54, 2011. Disponível em: https://
revistazingu.net/2011/08/21/crioulo-doido/. Acesso em: 30 nov. 2018.
CHERCHI USAI. p. Silent cinema: an introduction. London: British Film Institute,
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34
Para uma discussão mais ampliada sobre as muitas implicações decorrentes do trabalho de se preservar e dar
acesso a documentos fílmicos e audiovisuais ver EDMONDSON, 2013.
Imagem, Informação e Memória
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L    :
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
Prof.ª Dr.ª Maria Leandra Bizello
2
Memória e cinema: campos que me tocam intensamente, por afeto
e por curiosidade cientíca. Lanço-me, então, no estudo de dois lmes de
temática geral relativa à ditadura militar no período de 1964-1984: Hércules
56, de Silvio Da-Rin (2006), e Trago comigo, de Tata Amaral (2016). Ambos
os lmes abordam a temática e o período de maneiras absolutamente
diferentes e constituem junto a outros lmes visões do presente sobre
acontecimentos do passado recente do Brasil; por outro lado, podemos
pensá-los como interpretações cinematográcas da história recente do
Brasil. Desde os anos 1980, o cinema brasileiro tem se debruçado sobre
diversos aspectos da ditadura militar, como em Cabra marcado para morrer,
Na forma de comunicação, esse trabalho de análise foi apresentado no XIV Encontro Nacional de História
Oral, na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, de 02 a 04 de maio de 2018, com o título “Resistências
em palavras e imagens: reexões sobre o relato em lmes sobre a ditadura militar”. Aqui, demoro-me um pouco
mais nos aspectos do lembrar e esquecer impressos na forma do relato de cada um dos lmes, ampliando a
discussão.
Doutora em Multimeios; professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/
Marília). E-mail: mleandra23@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p105-116
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
106 |
de Eduardo Coutinho (1984), e Ação entre amigos, de Beto Brant (1998),
que já analisei em outros estudos, sempre na perspectiva da memória.
Outra questão, talvez a que mais se coloca em ambos os lmes,
a preocupação com a memória e com o relato, é substancialmente um
fator de legitimação e autenticidade e, de certa maneira, verdade, para o
que cada lme irá contar. Dessa forma, a análise do uso do relato para
lembrar e esquecer no lme documentário Hércules 56, e no lme cção
Trago comigo, mostra-nos muitos pontos de contato entre eles, apesar das
diferenças na linguagem cinematográca que são próprias a cada gênero.
Não empreendo uma análise do gênero e de linguagem
cinematográca. Não discuto esses aspectos, mas eles são considerados em
função de como o relato está em ambos os lmes. Ainda, o estudo não é
comparativo, mas no sentido de compreender a importância e a forma
dada ao relato como dispositivo de lembrar e esquecer.
o relAto em Trago Comigo
A cção começa com o lmar de um documentário: em Trago
comigo, o protagonista Telmo Marinicov (Carlos Alberto Riccelli), um
dramaturgo, participa das lmagens de um documentário sobre a ditadura
militar dando um relato sobre sua participação no período como militante
de esquerda. O entrevistador, fora do campo, faz perguntas sobre como
Telmo iniciou sua participação nos movimentos políticos de então. O
dramaturgo não parece confortável ao ser entrevistado, hesita nas respostas.
O entrevistador diz que na pesquisa para o documentário faltava a
história de uma mulher que foi “companheira” de Telmo na prisão. Daí
vem a pergunta: quem é Lia? Telmo silencia. A face tensa, procurando
lembrar, denota o esquecimento de algo e de alguém que parece ter sido
importante, e de história desconhecida.
O incômodo inicial do protagonista se aprofunda e é o que conduz
a narrativa do lme. Telmo, para responder à pergunta que lhe foi feita
e, ao mesmo tempo, sair do esquecimento, cria a peça teatral que será
Imagem, Informação e Memória
| 107
ensaiada durante o lme e encenada ao nal. Desse início aparentemente
documental é que se desenvolve a cção, um gênero no outro.
A narrativa clássica da cção é entremeada por relatos de militantes
que sobreviveram à ditadura militar. O real, representado pelos relatos, não
se contrapõe à cção. O relato inicial do protagonista também se insere no
movimento legitimador da fala dos militantes reais.
O relato é elemento fundamental em Trago comigo ao estabelecer a
relação de prova entre cção e não cção. Isso não signica que a história
ccional não tenha validade em si, mas que tal relação proporciona uma
força de verdade maior tanto ao personagem principal quanto à história
contada. Outro ponto convergente em relação ao relato é a sua forma: a do
testemunho da experiência. Nem Telmo e muito menos os militantes que
relatam no lme contam uma história qualquer, sem propósito, ou ainda
com um propósito justicador; eles dão testemunhos das experiências
vividas: o dramaturgo está sendo entrevistado assim como os militantes,
com objetivos especícos, recortados e em postura de resistência e denúncia.
Para reetir sobre essa questão do testemunho da experiência recorro
ao clássico escrito de Walter Benjamin, Experiência e pobreza (1994, p.
114-119). A partir de uma parábola, Benjamin trata do m da narrativa
tradicional e, mais especicamente nesse texto, da incomunicabilidade de
experiências; mas ele mesmo justica: “Porque nunca houve experiências
mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra
de trincheiras, a experiência econômica pela inação, a experiência do
corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (BENJAMIN,
1994, p. 115). Benjamin está aqui tratando do retorno dos soldados da
Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e do silêncio desses soldados ao
não conseguirem falar sobre suas experiências.
Os relatos de Trago comigo enveredam no sentido de expandir a fala
da experiência; trata-se de transmitir o “inenarrável” (GAGNEBIN, 2009,
p. 54) pela linguagem cinematográca, que entrelaça imagens e sons.
Portanto, não basta falar, mas há a necessidade de mostrar aquele ou aquela
que relata e o processo de lembrar que é próprio dele. Se em Benjamin
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Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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(1994) as experiências “desmoralizadas” eram as da Grande Guerra, em
Trago comigo as experiências estão em torno da tortura.
O lembrar a partir do relato perpassa o lme todo: a peça teatral não
está escrita quando os atores estão sendo selecionados e iniciam os ensaios.
Telmo sofre com o esquecimento e a peça é o dispositivo de lembrar. Aqui
temos a força do esquecimento como parte do trauma do protagonista,
que evoluiu para o apagamento de alguns acontecimentos vividos por ele.
Há, portanto, em Telmo, um conito psíquico relativo à memória,
que se desdobra em esquecimento e apagamento deliberado. No decorrer
do ensaio da peça ele se confronta com jovens atores que possuem um
conhecimento supercial e equivocado do contexto histórico no qual a
peça está inserida. O grupo de atores deve passar antes de tudo por uma
educação realizada pelo próprio dramaturgo: Telmo explica a nalidade
revolucionária dos assaltos aos bancos e sequestros de personalidades com
o objetivo de nanciamento da luta armada.
A educação centra-se mais uma vez na experiência: Telmo, ao
falar sobre o contexto histórico da ditadura militar, também fala sobre
sua militância, mas ele não nomeia, de início, os militantes. Isso faz com
que os jovens atores quem sem saber se os personagens que estavam
representando foram reais um dia, se estavam vivos ou se eram inventados.
Esse conito só foi superado quando o dramaturgo se lembrou de sua
experiência e do contexto de sua prisão e tortura, ao mesmo tempo em que
se lembra de Lia, saindo do esquecimento.
Dessa maneira, e durante todo o lme, Telmo relata. A peça teatral
é seu relato, ele testemunha no teatro, na narrativa teatral. O ensaio é
o processo doloroso no qual ele irá sair do esquecimento e, ao mesmo
tempo, restabelecer/estabelecer afetividades que no presente são atingidas
pelo trauma de uma juventude militante.
A esse relato ccional se entrelaçam relatos de homens e mulheres
que militaram em grupos da esquerda revolucionária, foram presos e
torturados pela polícia da Ditadura Militar. E sobreviveram; relatam, então,
suas experiências. Esses relatos estão colocados no lme, legitimando de
maneira pontual a cção.
Imagem, Informação e Memória
| 109
A legitimação a partir do relato segue em uma perspectiva histórica
tanto para as experiências individuais quanto para as experiências vividas
nos grupos a que pertenciam. São então memórias históricas: colocadas em
uma linha do tempo, cronológica, na qual cada um dos militantes relata
como se engajou nos movimentos políticos e sociais, interpretam o contexto
maior em que atuaram como sujeitos, isto é, a ditadura militar; relatam
suas experiências traumáticas de prisão e tortura e, nalmente, reivindicam
a reparação e justiça que, no caso brasileiro, ainda não aconteceu.
Nesse sentido, Trago comigo usa do testemunho em seu “valor de
verdade”; segundo Beatriz Sarlo, tal valor
[...] pretende se sustentar no imediatismo da experiência; e
sua capacidade de contribuir para a reparação do dano sofrido
(uma reparação jurídica indispensável no caso das ditaduras) a
localiza naquela dimensão redentora do passado que Benjamin
exigia como dever messiânico de uma história antipositivista.
(SARLO, 2007, p. 43).
Como sabemos, a reparação jurídica no Brasil dos assassinatos,
torturas e prisões durante a ditadura militar não se deu da maneira como
se reivindicava e é reivindicado até hoje. Podemos questionar a ideia de
Sarlo sobre o “imediatismo da experiência”, mas a “dimensão redentora do
passado” e o teor a uma evocação democrática da reparação estão presentes
nas falas que nalizam o lme.
Na cção, o lme mostra-nos a reconciliação de Telmo com sua
própria história, que, segundo ele mesmo, após a criação e encenação da
peça, pode ser contada. Entretanto, para isso foi necessário o processo
de rememorar, de lembrar a partir da arte, no caso o teatro, em uma
recuperação estética da dimensão biográca” (SARLO, 2007, p. 44). O
discurso do lme é o discurso da memória individual encenada na peça.
Podemos pensar então qual a verdade dessa memória. E, no entanto, não
podemos deixar de nos referir aos “ltros” (HALBWACHS, 2006) a que
o indivíduo é submetido em sua experiência no espaço temporal existente
entre o vivido e a narração desse vivido.
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Em Trago comigo, o protagonista, nesse intervalo de tempo, os anos
de juventude sob a ditadura e a maturidade no presente do lme, esqueceu-
se de sua experiência amorosa traumática e o processo de lembrança o fez
ter a vontade do relato. Entre a sequência inicial em que é perguntado
sobre a mulher, Lia, e a sua voluntariedade em contatar o diretor do lme
e anunciar sua disponibilidade em falar sobre o assunto no nal do lme,
está o processo de lembrar.
Esse processo não é apenas doloroso e íntimo, mas estabelece o
conito de gerações que é um dos “ltros” pelos quais Telmo passa ao
lembrar. A experiência é retomada e transmitida; permite ao grupo de jovens
atores sair de um estado equivocado de compreensão do período histórico
em questão. Ao contrário do movimento dos soldados europeus que
voltaram da primeira guerra mundial calados, segundo Benjamin (1994),
os militantes falam, relatam suas experiências em discursos testemunhais
“[...] de forte inexão autobiográca.” (SARLO, 2007, p. 56).
Essa mesma perspectiva, dos testemunhos autobiográcos, está nos
relatos dos militantes fora da narrativa ccional, não se contrapondo a ela,
mas, como já acentuamos, legitimando-a, reforçando a ideia de verdade. No
entanto, não de uma única verdade; não há, por outro lado, a pluralidade
de vozes: todos os relatos convergem para a história ccional.
HérCules 56: o relAto no PlurAl
O documentário Hercules 56 (2006), de Silvio Da-Rin, debruça-se
sobre um fato: o sequestro do embaixador norte americano Charles Burke
Elbrick, em 04 de setembro de 1969, por militantes da esquerda brasileira
mais combativa: a Ação Libertadora Nacional (ALN) e o Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). O contexto histórico brasileiro
desse documentário é o período da ditadura militar nos anos de 1964 a
1984. No entanto, esse contexto amplo é secundário; o que importa é o
fato e suas consequências, suscitando um espectro maior de discussões no
lme: o maior “endurecimento” da ditadura a partir do sequestro, ou seja,
os grupos políticos de esquerda e outros grupos de oposição e resistência
Imagem, Informação e Memória
| 111
ao regime instituído foram cada vez mais submetidos à repressão, por meio
de perseguições, prisões, torturas e assassinatos.
Para a reexão sobre o documentário há três conjuntos de imagens
que se entrecruzam e constituem a sua diegese: 1. Imagens de arquivos,
extratos de lmes e fotograas pesquisadas em vários lugares que os guardam
e conservam como, por exemplo, o Arquivo Nacional; 2. Entrevistas com
os militantes que, à época do sequestro, estavam presos; 3. Relatos dos
militantes reunidos em um estúdio: ao redor de uma mesa discutem o
acontecimento; eles formavam o grupo que concebeu e colocou em prática
o sequestro.
A forma como Silvio Da-Rin entrecruzou esse conjunto de imagens
congura uma estilística contemporânea do documentário na qual o
diretor utilizou uma série de recursos para contar o fato. Para Fernando
Seliprandy Fernandes, Hércules 56 é um “documentário convencional
de entrevistas”, uma “tendência”, “[...] nela o entrevistado é enquadrado
em ângulo mais ou menos frontal, o cineasta cando fora de quadro;
as vozes são fragmentadas em função da composição de uma narrativa
linear e coerente; predomina o uso ilustrativo das imagens de arquivo.
(FERNANDES, 2013, p. 60).
Os militantes idealizadores e operadores do sequestro (Cláudio
Torres, Daniel Aarão e Franklin Martins, do Movimento Revolucionário
8 de Outubro; Manoel Cyrillo e Paulo de Tarso Venceslau, da Ação
Libertadora Nacional) são provocados a falar pelo diretor que, inclusive,
está no estúdio durante o debate. Ele, por certo, suscita e participa, em um
exercício de reexividade no lme, mesmo que em um estúdio despido: há
apenas uma mesa lembrando um bar, os participantes ao redor debatem
o sequestro no passado. A iluminação incide unicamente sobre a mesa
e sobre os debatedores; vemos os microfones que captam as vozes. As
câmeras insistem nos rostos; no nal há planos de conjunto: vemos então
o diretor do lme.
Outro conjunto de entrevistas, no presente, com os militantes que
em 1969 estavam presos (Agonalto Pacheco, Flávio Tavares, José Dirceu,
José Ibrahim, Maria Augusta Carneiro, Mário Zoncato, Ricardo Vilas,
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Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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Ricardo Zarattini e Vladimir Palmeira), também é realizado pelo diretor,
que, no entanto, pouco aparece nos trechos mostrados no documentário.
Ainda aqui a tomada da câmera é no formato mais clássico das entrevistas:
os entrevistados estão sentados, a câmera mostra o rosto, privilegiando e
insistindo na emoção, dando intensidade ao relato. Importante sinalizar
os momentos de silêncio que alguns entrevistados fazem quando olham
fotograas do grupo de militantes soltos ao descerem do avião no México.
A câmera aproxima-se mais ainda elevando o clímax e tensionando o
lembrar de cada um deles.
Silvio Da-Rin combina a todo esse material testemunhal o material
de arquivo: jornais cinematográcos, lmes e fotograas. O fazer do
documentário implicou em uma pesquisa, um trabalho investigativo e
documental, principalmente na recolha de imagens em movimento em
diversos arquivos no Brasil e em outros países.
Até que ponto podemos entender Hércules 56 como um lme
polifônico, com muitas vozes? Se há muitas vozes, elas estão em uma
mesma tonalidade? São independentes? A locução/voz over é a tradicional,
fora de campo, porém não interfere na condução do documentário. Ela lê
o manifesto que o grupo de militantes envia ao governo com as razões do
sequestro e suas exigências: a liberdade de 15 militantes de diversos grupos
de esquerda em troca da libertação do embaixador e a publicação do
manifesto nos meios de comunicação. Não é a voz de nenhum testemunho;
é o narrador clássico, onipresente; é a voz assertiva.
As outras vozes, de entrevistas/relatos dos militantes libertados e a fala
do grupo dos ex-militantes na discussão realizada no estúdio, estruturam o
lme, inclusive a sequência das imagens de arquivo. A tomada dos relatos
é exposta no início do documentário quando vimos o diretor mostrando
imagens em movimento aos entrevistados como um estímulo à memória;
a partir daí os relatos seguem revelando a disposição dos ex-militantes em
falar sobre o que viveram sem qualquer diculdade.
A facilidade da fala também se dá no debate em estúdio; ca a impressão
que Da-Rin não encontrou obstáculos para o início e desenvolvimento da
discussão sobre o sequestro, suas causas e consequências. Os militantes
Imagem, Informação e Memória
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falaram com desembaraço sobre a experiência vivida; não há resistência
em lembrar; a narrativa fílmica reforça a uência no “processo subjetivo
(SARLO, 2007) da lembrança.
Outras vozes legitimam imagens de arquivos ou é parte dessas
imagens como os áudios e locuções de jornais de época. A polifonia que
indicamos acima no documentário não é de vozes que se contradizem,
nem se sobrepõem. São vozes que convergem, algumas explicam, outras
testemunham. Não há falas em oposição, não há a fala do Estado, dado
como repressor. Os testemunhos reavaliam e potencializam a importância
do acontecimento, são independentes, mas todas igualmente importantes.
em sumA...imAgens do relAto
Memória e relato estão juntos em ambos os lmes. A cção de Tata
Amaral nos parece mais contundente em revelar o processo de lembrar
como fundamental para sair de um profundo mal-estar consigo, como nos
mostra Telmo, o protagonista de Trago comigo. O dramaturgo, ao tomar
consciência do esquecimento, empreendeu ação contínua para lembrar,
movimento esse que fez a partir de seu presente. É desse presente que se
reconcilia com seu passado.
O relato dos acontecimentos implica, segundo Ricoeur (2007, p.
172-173) em “[...] autodesignação do sujeito que testemunha” e seu “[...]
triplo dêitico [...]: a primeira pessoa do singular, o tempo passado do verbo
e a menção ao lá em relação ao aqui.”. Ver quem relata é fundamental nos
lmes com temática centrada no período da ditadura militar. O relato é
uma representação do período, da pessoa que relata, de sua própria história
entrelaçada a outras histórias em um presente, lugar de onde fala.
Em Trago comigo, além dos relatos dos militantes, a fala de Telmo é
um relato construído em outra ordem: a da cção. E, nela, Tata Amaral
imprime a autodesignação do personagem principal e sua diculdade em
relatar encontrando na arte o caminho para tal. O choque de gerações que
apontamos faz surgir a névoa que permeia a relação de quem fala e quem
escuta: “[...] É por isso que a impressão afetiva de um acontecimento capaz
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
114 |
de tocar a testemunha com a força de um golpe não coincide necessariamente
com a importância que lhe atribui o receptor do testemunho.” (RICOEUR,
2007, p. 173). E consideramos aqui como receptores tanto os jovens que
encenam a peça de Telmo como os possíveis espectadores do lme.
Há a perspectiva “celebrativa” em Trago comigo, percebida por
Fernando Seliprandy Fernandes (2013) em Hércules 56, mas a celebração
acontece em uma esfera individual. O “teor monumental” que esse mesmo
autor analisa no documentário também está no lme cção. Nesse sentido,
os testemunhos imprimem legitimidade às imagens e uma dimensão de
monumento; ambos os lmes tomam a homenagem ao passado como
necessária e urgente. Os lmes são realizados no presente com o objetivo de
preencher uma “lacuna de justiça ainda existente na democracia brasileira
(FERNANDES, 2013, p. 68).
Esses lmes tomam o relato, o testemunho como uma expressão
histórica de sujeitos que agiram, mas não foram reconhecidos em sua
historicidade. O testemunho registrado em imagens evoca a necessidade
de documentar, uma vez que os documentos desapareceram ou estão
inacessíveis. Ambos os lmes demonstram a urgência de não deixar
que o esquecimento tome o lugar da lembrança e da memória, seja ela
celebrativa ou não.
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Imagem, Informação e Memória
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referênCiAs fílmiCAs
Hércules 56
Direção: Silvio Da-Rin
Produção: 2006 – Lançamento: 2007
Elenco: José Dirceu, Franklin Martins, Gregório Bezerra, José Ibrahim, Ivens Marchetti,
Agonalto Pacheco, Vladimir Palmeira, Onofre Pinto, Daniel Aarão Reis, Maria Augusta
Carneiro, Flávio Tavares, Cláudio Torres, Luiz Palma Travassos, Paulo de Tarso Venceslau,
Ricardo Vilas, Mário Zanconatto, Ricardo Zaranttini.
Trago Comigo
Direção: Tata Amaral
Produção: 2013 – Lançamento: 2016
Elenco: Carlos Alberto Riccelli, Selma Egrei, Emílio Di Biasi, Felipe Rocha, Georgina
Castro, Gustavo Brandão, Júlio Machado, Maria Helena Chira, Paula Pretta, Pedro Lemos
116 |
| 117
P:     

Prof.ª Dr.ª Solange Puntel Mostafa
1
introdução
O recente centenário do cineasta sueco Ingmar Bergman em 2018
renovou o entusiasmo por sua obra em teatro e cinema, com relançamentos
de cópias restauradas em digital, cursos, mostras e outras iniciativas que
muito contribuíram para alargar a divulgação da sua lmograa, desde os
anos cinquenta. Observemos uma lista de dez obras neste intervalo de trinta
anos: Monika e o desejo (Sommaren med Monika), 1953; O sétimo selo (Det
sjunde inseglet), 1957; Morangos silvestres (Smultronstallet), 1957; Através de
um espelho (Saasom i en spegel), 1961; Luz de inverno (Nattvardsgasterna),
1963; O silêncio (Tystnaden), 1963; Quando duas mulheres pecam (Persona),
1966; Gritos e sussurros (Viskningar och rop), 1972; Sonata de outono
(Hortssonat), 1978; e Fanny e Alexander (Fanny och Alexander), 1982.
Nosso objetivo é destacar o lme Persona (1966)
2
, considerado
um dos lmes mais enigmáticos do autor e, talvez por isto, um dos mais
analisados por variadas correntes de pensamento. Seguiremos alguns
Doutora em Educação; professora livre-docente da Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
- USP. E-mail: smostafa@terra.com.br.
 PERSONA. Direção e roteiro: Ingmar Bergman. Suécia, 1966. 82min. p&b.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p117-130
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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passos já experimentados em relação ao cineasta Michelangelo Antonioni
(MOSTAFA; MANINI, 2017a) em O Blow up da Ciência da Informação.
Nossa abordagem contempla a análise das imagens numa conjugação entre
a losoa da diferença e a Ciência da Informação. O que é preciso entender
nas imagens para que se possa indexá-las segundo a proposta de Deleuze
no livro Imagem-Movimento? O surgimento de novos termos é esperado,
uma vez que não se pode pensar o novo com termos já consagrados na
terminologia corrente de nossos conceitos. Nos últimos anos alguns
conceitos deleuzianos têm se tornado mais comuns e não raro vemos nas
publicações em Ciência da Informação termos como Afeto, Agenciamento,
Imanência, Multiplicidade, Rizoma ou Empirismo transcendental.
o filme Persona e suA fenomenologiA
Persona signica uma máscara no teatro grego antigo, no sentido em
que o ator representa um personagem. Assim, todo ator é uma persona.
Máscara e rosto são os temas envolvidos na criação de um personagem. O
rosto pode ser visto como espelho da alma, mas também algo que esconde
e mascara esta mesma alma. Daí o tema do duplo e da representação
envolvidos no lme Persona. O lme conta a estória de uma atriz de teatro
que, ao interpretar a peça Electra
3
, passa por um momento confuso em
que ri (talvez de si mesma, talvez do público) e a partir daí se cala em um
mutismo que a leva a ser internada no hospital.
Figura 1 – Atriz em cena
Fonte: SCHWARZ (2016, p. 44).
 SÓFOCLES. Electra. [entre 420 e 410 a.C.]
Imagem, Informação e Memória
| 119
Uma enfermeira lhe é designada e ambas são levadas a passar
um tempo em uma casa de praia. Inicia-se aí um jogo de interações, em
que a atriz (Elizabeth) e a enfermeira (Alma) tentam se comunicar entre
o mutismo de uma e o entusiasmo falante de outra. A dialética entre Eu
e o Outro estudada na losoa de Sartre e mesmo a fase do espelho da
psicanálise lacaniana servem bem ao propósito para analisar várias situações
na interação entre a atriz e a enfermeira. O simples fato de uma estar muda e
a outra ser uma falante – tal assimetria – fará o poder circular entre elas, uma
vez que o silêncio às vezes empodera e às vezes fragiliza. Da mesma forma
ocorre com a falante enfermeira; as estórias que conta às vezes alegram o
ambiente, às vezes expõem sua supercialidade até para si mesma. O que faz
Sontag (apud SCHWARZ, 2016, p. 151) armar: “[...] em Persona ambas
as mulheres usam máscaras. A de Elizabeth é sua mudez. A de Alma, sua
saúde, seu otimismo, sua vida normal (está entrosada, gosta de seu trabalho,
desempenha-o bem e fala de tudo isso etc.)”.
Signica então que, anal, todos usamos máscaras? Num certo sentido
sim, uma vez que só nos vemos no olhar do outro. O outro é um espelho
para nós. Portanto, sempre nos ajustamos a este olhar. Tudo indica que o
mutismo desencadeado em Elisabeth é uma forma de buscar a sinceridade
do seu Eu. Não quer mais mentir, não quer mais representar papéis. O
monólogo trazido pela doutora do hospital mostra isso. O que lhe diz a
psiquiatra, antes de Elizabeth sair do hospital? Que a atriz não sofre de
qualquer doença psiquiátrica, sendo mais um conito entre ser e parecer
ser. O seu silêncio foi a forma encontrada para não ngir mais e assim não
enganar mais ninguém. É como se a doutora desse permissão para Elizabeth
continuar em silêncio, até se cansar dele.
Na interação das duas mulheres na casa de praia há várias situações em
que uma ou outra se agram em seu duplo ou em suas máscaras, no dilema
moral de estarem sendo sinceras ou estarem no regime de representação,
todas situações assimiláveis a uma fenomenologia sartreana ou nas relações
especulares sugeridas por Lacan. Para Sartre, qualquer ação, mesmo que
individual, passa por uma relação intersubjetiva, isto é, entre Eu e o Outro.
A sociedade constitui-se de várias relações pessoais dentro de determinada
ordem social. A expressão ser-aí designa nossa condição de estarmos jogados
no mundo (dasein) e de termos que fazer escolhas já que somos livres para
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Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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agir. Assim Sartre traz conceitos como o ser-em-si e ser-para-si: o ser-em-
si é descrito como o fenômeno, ou seja, ele é aquilo que é; e o ser-para-
si corresponde à consciência, ou seja, sendo aquilo que não é e não sendo
aquilo que ele é (SARTRE, 1943 apud JACOBY; CARLOS, 2004).
Mas será mesmo possível ser o que se é? A questão é que não
conseguimos ser alguém sem a presença do outro, e já esta presença nos
modica e nos desloca daquele lugar em que pensávamos estar.
Enxergar-se no olhar do outro é o ganho da psicanálise lacaniana com a
fase do espelho. O espelho é o Outro que nos olha. Como exemplica Neves
(2015), se o espelho responde à rainha Má que Branca de Neve é a mais bela,
o que assusta a rainha é o fato dela não estar sendo vista. Perguntar quem é
a mais bela signica perguntar “quem vês tu”? O espelho coloca a rainha na
presença de si, do seu reexo. Neves prossegue dizendo que é o espelho da
rainha ou o seu reexo que faz nascer a Branca de Neve
4
. O lme Persona
mostra a relação Eu e o Outro entre uma atriz (Elisabeth, agora muda) e sua
enfermeira (Alma). Como Elizabeth está muda, Alma fala pelas duas e se
fragiliza quando percebe que a atriz a observa, falando dela (ao escrever uma
carta) e não por elas. Há entre elas um espelho, tal como no conto da Branca
de Neve. Da mesma maneira, o reexo de uma das mulheres faz nascer a
outra. As mulheres vivenciam momentos de ternura e compreensão mútua e
também muito ódio mútuo quando se sentem traídas em suas expectativas.
O cineasta do rosto vai fotografando-as em seus vários momentos.
Figura 2 – Conversa durante o café
Fonte: SCHWARZ (2016, p. 71).
 IRMÃOS GRIMM. Branca de Neve. [entre 1817 e 1822].
Imagem, Informação e Memória
| 121
Figura 3 – Conssões ao anoitecer
Fonte: SCHWARZ (2016, p. 74).
Figura 4 – Passeio nas pedras no exterior da casa
Fonte: SCHWARZ (2016, p. 79).
Após cenas de lmagem das faces de ambas com luz em apenas
metade do rosto, as atrizes têm seus rostos fundidos em um só. Esta e as
demais cenas de rostos impressionam Deleuze, inspirando-o para criar o
conceito losóco Imagem-Afecção (BOLDUC, 2012-2013).
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Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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Figura 5 – Rostos iluminados em uma das faces
Fonte: SCHWARZ (2016, p. 117-118).
Mas Deleuze fará uma reviravolta na interpretação deste lme em
rejeição à fenomenologia que é um de seus inimigos principais. Sairá,
portanto, do jogo entre o eu e o outro e trará uma interpretação inovadora
sobre o rosto e o primeiro plano, traduzidos na sua criação losóca
cinematográca, a Imagem-Afecção.
O cineasta experimenta a fusão dos dois rostos na imagem abaixo.
Figura 6 – Fusão dos dois rostos
Fonte: SCHWARZ (2016, p. 118).
Os comentários de Deleuze se referem à fenomenologia e à psicanálise,
pois ambas as correntes analisaram o lme Persona, com suas categorias
de projeção, transferência, espelho, má fé, ser-em-si, ser-para-si, eu-e-o-
Imagem, Informação e Memória
| 123
outro, o que faz o lósofo esclarecer que lhe ocorre algo propriamente
cinematográco, ausente em teorizações anteriores:
Em Persona, é inútil se perguntar se são duas pessoas que se
pareciam antes, ou que passam a se parecer, ou, ao contrário,
uma única pessoa que se desdobra. Não é nada disso. O primeiro
plano apenas impeliu o rosto até essas regiões onde o princípio de
individuação deixa de reinar... (DELEUZE, 2018, p. 159).
Junto com a perda da individuação se soma a perda da socialização
e da comunicação:
O primeiro plano não desdobra um indivíduo, assim como não
reúne dois indivíduos – ele suspende a individuação. Então o rosto
único e devastado une uma parte de um a uma parte de outro. A
esta altura, ele não reete nem sente mais nada, apenas experimenta
um medo surdo. (DELEUZE, 2018, p. 159).
Tratamos, em outra oportunidade, da informação-afeto (NOVA
CRUZ; MOSTAFA, 2014) e quisemos destacar no título uma de suas
propriedades: a informação-afeto é real sem ser atual, ideal sem ser abstrata.
Já em Mostafa e Manini (2017a. p. 73-75), ao analisarmos cenas do lme
Blow up, destacamos um rosto assustado para mostrar o campo do possível,
alertando que possível, em Deleuze, é bergsoniano, portanto, virtual; isto
é, não existe ainda de forma atualizada. É real, mas não atual. Deleuze
comenta que a imagem-afecção é precisamente isto: “[...] a qualidade ou a
potência, a potencialidade considerada por si mesma enquanto exprimida.
O signo correspondente é, portanto, a expressão, não a atualização.
(DELEUZE, 2018, p. 156-7).
o filme Persona nA teorizAção deleuziAnA
Já nas primeiras páginas do livro Imagem-Movimento Deleuze
comenta três teses sobre o movimento que ele intitula “comentário
a Bergson”. O leitor poderá encontrar em Mostafa & Manini (2017b)
explicações mais extensas sobre as teses desenvolvidas por Bergson entre
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matéria, imagem e memória. Resumidamente, Deleuze faz três comentários
a Bergson neste livro Imagem-Movimento: 1) “[...] o movimento não se
confunde com o espaço percorrido.” (DELEUZE, 2018, p. 13); 2) “[...]
o erro é sempre reconstituir o movimento com momentos ou posições.
(DELEUZE, 2018, p. 16); 3) “[...] não apenas o momento é um corte
imóvel de movimento, mas o movimento é um corte móvel da duração
(DELEUZE, 2018, p. 23).
Esses comentários serão retomados ao longo do livro, já tendo
estabelecido que a imagem-movimento tem a ver com uma imagem
indireta do tempo (em que o tempo está subordinado ao movimento).
Isto supõe ação e reação nas imagens, num esquema previsível e sintônico
com a nossa própria capacidade de agir e reagir. A imagem-movimento
supõe assim o universo como uma variação universal de imagens, supõe o
esquema sensório-motor da montagem e os três primeiros tipos de imagens
especicadas na análise do lósofo: a imagem-percepção, a imagem-afecção
e a imagem-ação.
Entre a percepção e a ação há o afeto ou a expressão, potências
que não se confundem com sentimentos ou emoções. Ao contrário,
são qualidades primárias, como as cores, os cheiros, as sensações. São
primeiridades na semiótica peirceana (MOSTAFA, 2012). Mas a Imagem-
Movimento comporta outros três tipos de imagens, que são a imagem-
relação, a imagem-pulsão e a imagem-reexão. O lme Persona é analisado,
entre outros, por Deleuze como exemplo de imagem-afecção. Sobre esta
imagem o lósofo escreverá dois capítulos no livro Imagem-movimento, o
sexto e o sétimo: “A imagem-afecção: rosto e primeiro plano” e “A imagem-
afecção: qualidades, potências, espaços quaisquer”.
imAgem-AfeCção
A aula proferida pelo professor Ulpiano em 1995 sobre a imagem-
afecção é muito agradável de ser lida (ULPIANO, 1995). Todos nós
temos um rosto, diz ele; e quando encontramos alguém, isto é, quando
encontramos um rosto, logo sabemos se é um rosto cordial ou agressivo,
simpático ou antipático. O rosto dene a presença de uma pessoa; por
Imagem, Informação e Memória
| 125
fazer parte de um campo social, o rosto comunica comportamentos e nos
faz únicos, faz-nos indivíduos, justamente por marcar nossa personalidade.
“Todos os rostos têm a função de manifestar comportamentos por
socialização, comunicação e individuação. São essas três características as
de um rosto num campo social.” (ULPIANO, 1995, não paginado).
Mas o rosto do cinema-afecção abstrai essas três características, afasta-
se do campo social e o rosto se torna expressivo. Fora do campo social,
restam os afetos no rosto. O ator não precisa se esforçar para representar
ou interpretar qualquer rosto especial. O primeiro plano com que o ator
será lmado, por si só, arrancaria deste rosto as três características. O rosto
passará a expressar apenas afetos.
Rostos expressivos, rostos intensivos, rostos expressão de afetos. O
afeto, portanto, é inumano, é impessoal, é uma entidade: comentando o
lme A paixão de Joana D’arc, de Dreyer
5
, Ulpiano tipica que é “[...] afeto
de dor, de mártir, de tristeza, de sofrimento, não importa qual – são afetos,
sem uma personalidade por trás!” (ULPIANO, 1995, não paginado).
Como diz Deleuze (2018. p. 142), não precisa ser apenas rosto
humano; o próprio relógio possui os dois polos da imagem-afecção, uma
placa reetora imóvel e os micromovimentos dos ponteiros.
E cada vez que descobrimos esses dois polos em algo – superfície
reetora e micromovimentos intensivos, podemos armar: essa
coisa foi tratada como um rosto, ela foi ‘encarada’, ou melhor,
‘rosticizada’ ... e por sua vez, nos xa (sic), nos olha (sic)... mesmo
se ela não se parece com um rosto.(DELEUZE, 2018, p. 142)
Várias vezes Deleuze arma que a imagem-afecção é o primeiro plano
e o primeiro plano é o rosto. Ele lembra Peirce, para quem a primeiridade
é também difícil de denir. O afeto é impessoal, é indivisível e sem partes,
e é independente de qualquer espaço-tempo determinado...; “[...] por isso
é o novo, e novos afetos estão sempre sendo criados, principalmente pela
obra de arte.” (DELEUZE, 2018, p. 157).
 A PAIXÃO de Joana d’Arc. Direção e roteiro: Carl eodor Dreyer. França, 1928. 1h50min. p&b.
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Pois bem, no capítulo sete do livro Imagem-Movimento, de
Deleuze, vamos encontrar no título a expressão “espaços quaisquer” como
parte da imagem-afecção: “A imagem-afecção: qualidades, potências,
espaços quaisquer”. As qualidades-potências ou os possíveis preparam o
acontecimento (a facada, a queda no precipício). “Mas em si mesma elas
já são o acontecimento, em sua parte eterna.” (DELEUZE, 2018, p. 163).
Quando perdemos as coordenadas espaço-temporais e entramos no
regime afetivo não temos mais o meio histórico, o que remete a um espaço
qualquer. O exemplo oferecido pelo lósofo é o da chuva, no lme A chuva,
de 1929, de Joris Ivens. O cineasta persegue a chuva independentemente
de onde ela estiver, sem a menor preocupação de contextualizá-la em
uma cidade, em um bairro. Interessa ao cineasta o modo como a chuva
aparece tal como ela é: ele persegue a chuva: no guarda-chuva, no reexo
do asfalto, no vidro do carro, na janela da casa; num espaço qualquer!
Deleuze acrescenta que também não é o conceito de chuva que interessa,
nem o estado de um tempo e de um lugar chuvoso: “É um conjunto de
singularidades que apresenta a chuva tal como ela é em si, pura potência ou
qualidade que conjuga sem abstração todas as chuvas possíveis, e compõe
o correspondente espaço qualquer. É a chuva como afeto...” (DELEUZE,
2018, p. 175).
os signos dA imAgem-AfeCção
Entremos nos signos sem demora: “O espaço qualquer seria o
elemento genético da imagem-afecção.” (DELEUZE, 2018, p. 174).
Usando a terminologia de Peirce, Deleuze movimenta-se dentro das
inovações que ele mesmo realiza na semiótica peirceana (MOSTAFA,
2012). A noção de signo para Deleuze é diferente da noção de signo para
Peirce: os signos têm, para Deleuze, a função de forçar o pensamento
a pensar as conexões que eles travam entre si no prolongamento das
imagens, como elucida La Salvia (2006. p. 34); e não apenas representar
ou ter a função de equivalência entre imagens, como quer Peirce, ao
denir o signo como “[...] uma imagem que vale por outra imagem
(seu objeto), com referência a uma terceira imagem que constitui o
Imagem, Informação e Memória
| 127
‘interpretante’ dele, sendo este (sic) por sua vez, um signo, ao innito.
(DELEUZE, 1990, p. 44).
Diz Deleuze: “[...] entendemos (sic) pois, o termo signo no sentido
bem diferente do de Peirce: é uma imagem particular, que remete a um
tipo de imagem, seja do ponto de vista de sua composição bipolar, seja
do ponto de vista de sua gênese” (DELEUZE, 1990, p. 46). A imagem-
afecção tem um signo de composição bipolar e outro signo genético ou
diferencial. Para Deleuze, existem dois tipos de signos: signos de formação,
ou gênese, e signos de composição. Os signos de formação se referem a um
tipo de signo que gera elementos prolongáveis nas imagens seguintes; os
signos de composição compõem situações entre imagens.
Usando a terminologia de Peirce, Deleuze identica os dois signos
da imagem-afecção: ícone, para a expressão, através de um rosto, de
uma qualidade-potência; qualisigno para a sua apresentação num espaço
qualquer. O modo como a chuva se apresenta no lme de 1929, silenciosa
e contínua, é um qualisigno.
O quadro apresentado por La Salvia (2006, p. 35) diz respeito a
todos os tipos de imagem-movimento identicadas em Deleuze: imagem-
percepção, imagem-afecção, imagem-pulsão, imagem-ação, imagem-
reexão, imagem-relação, mas destacamos apenas as considerações
referentes à Imagem-afecção.
Figura 7 – Imagem-afecção
Fonte: La Salvia (2006, p. 35)
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Vejamos como o lme Persona está indexado em duas bases de dados
americanas disponíveis na internet, ambas as indexações realizadas pelos
próprios usuários. São elas e movie DB
6
e IMDb
7
:
a) Termos assinalados pelos usuários na base de dados e Movie
DB: nurse, confession, dream, betrayal, patient, violence, silence,
psychiatry, submerged, institution, actress e medical drama;
b) Termos assinalados pela base de dados IMDb: silence, sex talk, sex
on beach, ton photograph, mute character, intercept letter, one word
title, sex, minimal cast, lesbian, monolog, boiling water, psychiatry
e nihilism.
A análise realizada nesta reexão permite acrescentar os seguintes
termos na indexação do lme Persona:
Quadro 1: Sugestão de palavras-chave
Imagem-afecção Imagem-movimento
Rosto Afetos
Rosticidade Afecção
Primeiro Plano Espaços Quaisquer
Ícones, Qualisignos, Dividuais Montagem afetiva
Cinema afetivo Cinema expressivo
Fonte: Elaborado pela autora.
Estes termos são conceitos losócos do cinema, mas podem
funcionar como termos para a indexação, especialmente numa biblioteca
ou base de dados especializada de cinema, voltada para públicos igualmente
especializados. Sempre que pensamos o novo é mister inventar termos
novos para não cairmos nas mesmas compreensões. É notável nas palavras-
chaves dos usuários das bases consultadas a nomeação de personagens
 Disponível em: https://www.themoviedb.org/. Acesso em: 27 mar. 2019.
 Disponível em: https://www.imdb.com/. Acesso em: 27 mar. 2019.
Imagem, Informação e Memória
| 129
(enfermeira), processos (conssão) ou saberes (psiquiatria) limitantes
em termos de recuperação da informação. Oferecemos termos-conceitos
losócos num exercício de experimentação da linguagem na composição
da Filosoa com a Ciência da Informação, os quais podem ser expandidos
à medida que houver maior compreensão das criações cinematográcas em
qualquer abordagem losóca.
referênCiAs
BOLDUC, C. L’expérience de Persona et la création du concept d’image-aection par
Gilles Deleuze. Études Scandinaves au Canada, Ottawa, n. 21, p. 58-78, 2012-2013.
DELEUZE, G. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: 34, 2018.
DELEUZE, G. Cinema 2: a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
JACOBY, M.; CARLOS, S. A. O eu e o outro em Jean Paul Sartre: pressupostos de
uma antropologia losóca na construção do ser social. Latin-American Journal of
Fundamental Psychopathology on Line, São Paulo, v. 1. p. 47-60, 2004.
LA SALVIA, A. L. Introdução ao estudo dos regimes de imagens nos livros “Cinema
de Gilles Deleuze. 2006. 91 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Filosoa e Ciências Humanas, Campinas, 2006.
MOSTAFA, S. P. Charles Peirce, Gilles Deleuze e a Ciência da Informação. Informação
& Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 22, n. 1. p. 27-37, jan./abr. 2012.
MOSTAFA, S. P.; MANINI, M. P. O Blow up da Ciência da Informação. Pesquisa
Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 12, n. 1. p.
68-83, 2017a.
MOSTAFA, S. P.; MANINI, M. P. Imagem, memória e informação: o bergsonismo na
Ciência da Informação. Conhecimento em Ação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, jan/jun.
2017b.
NEVES, A. B. Bergman do outro lado do espelho: Sartre e Persona.
Ars in Diálogo, v. 2, jan. 2015. Disponível em: http://media.wix.com/
ugd/1e6f2d_61c14135f9144c5c97c0f8204e80b4ba.pdf. Acesso em: 27 mar. 2019.
NOVA CRUZ, D. V.; MOSTAFA, S. P. Informação-afeto: real sem ser atual, ideal sem
ser abstrata. PerCursos, Florianópolis, v. 15, n. 29. p. 39-56. jul./dez. 2014.
SCHWARZ, P. M. (Des)construindo Persona. 2016. 162 f. Dissertação (Mestrado em
Imagem e Som) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
130 |
ULPIANO, C. Aula de 24.07.1995: a imagem-afeccão. Aula ministrada no Curso
Filosoa e Cinema, realizado no Castelinho do Flamengo: Imagem-Movimento em 24
de julho de 1995. Transcrição de aula. Disponível em: https://acervoclaudioulpiano.
com/2010/02/20/aula-de-24071995-a-imagem-afeccao-2/. Acesso em: 27 mar. 2019.
| 131
F,
I 
M
132 |
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F  :
  

Prof.ª Dr.ª Ana Heloísa Molina
1
Prof.ª Dr.ª Claudia Prado Fortuna
2
Palavras descrevem o que o olho poderia ver ou expressam o que
jamais verá, esclarecem ou obscurecem propositalmente uma idéia
(sic). Formas visíveis propõem uma signicação a ser compreendida
ou a subtraem. Um movimento de câmera antecipa um espetáculo e
descobre outro, um pianista inicia uma frase musical ‘atrás’ de uma
tela escura. Todas essas relações denem imagens. (RANCIÈRE,
2018, p. 15).
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só
se deixa xar como imagem que relampeja irreversivelmente, no
momento em que é reconhecido. (BENJAMIN, 1985, p. 224).
 Doutora em História; professora da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: ahmolina@uel.br.
Doutora em Educação; professora da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: claudiafortunauel@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p133-146
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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fotogrAfiA e reminisCênCiAs
Esse texto se propõe a reetir acerca da complexidade que os
mecanismos da memória instauram em seu constante processo de
lembrar/esquecer/evocar/ressignicar e como um desses medium, no caso a
fotograa, possibilitaria o acesso a reminiscências, em potências distintas,
de conservar (ou não) elementos considerados preciosos, próximos e
pertinentes aos seus proprietários ou leitores. Como exercício visual,
elegemos uma fotograa urbana produzida por Eugene Atget (1857-1927)
para pensar sobre os espaços e os vazios de um local em transformação e a
captura em seu registro de uma memória da cidade que evoca e promove
outras lembranças.
A fotograa, em seu nascimento no século XIX e desenvolvimento
no século XX, adota diversos procedimentos oriundos da pintura como o
enquadramento do tema, o jogo de claro/escuro e a perspectiva de janela,
entre outros. Em sua busca por autonomia, desvinculando- se das técnicas
artísticas da pintura, arroga-se como recorte de realidade, já que seu
registro é mediado pela máquina e o olho humano. Tal perspectiva como
espelho”, “reexo” e “realidade” foi aceita e vigorou por muito tempo, e
hoje se encontra em outras fronteiras de debates.
Compreender as particularidades da natureza da linguagem
fotográca signica eleger ferramentas teóricas próprias que abarcam um
sistema de símbolos, metáforas e estilos cognitivos que, por sua vez, dialogam
com o momento histórico de seu contexto, portador de um olhar criador,
desenvolvido e moldado ao seu tempo e espaço, no qual o fotográco é um
estado do olhar e um ato, lugar que promove uma negociação silenciosa da
imagem tanto como um produto dado para ser visto (construção do autor)
quanto para a leitura do espectador (desconstrução) (SAMAIN, 2005).
As fotograas necessitam de um tratamento próprio, pois, como
matéria do conhecimento histórico, propõem um novo tipo de ver e
dar a ver diversos olhares do e sobre o mundo moderno. “Dar a ver
é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre
uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta,
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agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado.” (DIDI-
HUBERMANN, 1998, p. 77).
As fotograas integram um sistema de signicação que não pode
ser reduzido ao nível das crenças formais e conscientes; elas pertencem
também à ordem do simbólico e da linguagem metafórica, pois, em vez
de representar, capta “[...] forças, movimentos, intensidades, densidades,
visíveis ou não; e não para representar o real, porém para produzir e
reproduzir o que é passível de ser visível (não o visível).” (ROUILLE,
2009, p. 36, grifos do autor).
Partimos do pressuposto de que a fotograa, enquanto documento,
auxilia-nos a tomar contato com a cultura de um determinado tempo e
lugar; e nos instiga a indagar como e por que a memória coletiva organiza
visualmente grupos sociais, paisagens e fatos de uma mesma sociedade;
como e por que esse imaginário social criado pela circulação de imagens
reforça certas visões de mundo em outros circuitos, como os educacionais
ou midiáticos, por exemplo. Temos também que as tomar enquanto
documento e registro, anotando autoria, ano, contexto histórico, técnicas
utilizadas, enquadramento, referências internas e externas, acervo e guarda,
entre outros dados.
Algumas premissas são necessárias de serem lembradas.
Por um lado, primeiro analisar a fotograa como artefato, o que
signica tomá-la como objeto que é produzido e circula entre grupos
sociais, sendo reapropriado, ressignicado, modicado materialmente,
considerando seus aspectos de produção, circulação e recepção (aí incluído
o próprio historiador que, como sujeito da interpretação, não escapa
aos mecanismos internos que regem a recepção das imagens, posto que
também é um receptor).
Em segundo lugar, considerar aspectos das falsas dicotomias
fotograa-documento e realidade em uma relação única de “aderência
direta”, pois fotografar consiste em transformar o real em um real
fotográco: “A fotograa reproduz menos do que produz, ou melhor, ela
não reproduz sem produzir, sem inventar, sem criar, artisticamente ou não,
uma parte do real – nunca o real em si.” (ROUILLE, 2009, p. 132).
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Acerca dos procedimentos interpretativos da fotograa, recorremos a
Mauad (1996), que alerta para a complexidade desse objeto, como também
a Samain (2012), que nos apresenta outras possibilidades de reexão.
Para Ana Maria Mauad, a fotograa é interpretada
[...] como resultado de um trabalho social de produção de sentido,
pautado sobre códigos convencionalizados culturalmente. É uma
mensagem que se processa através do tempo, cujas unidades
constituintes são culturais, mas assumem funções sígnicas
diferenciadas, de acordo tanto com o contexto no qual a mensagem
é veiculada, quanto com o local que ocupam no interior da própria
mensagem. Estabelecem-se, assim, não apenas uma relação
sintagmática, à medida em que veicula um signicado organizado,
segundo as regras da produção de sentido nas linguagens
não-verbais, mas também uma relação paradigmática, pois a
representação nal é sempre uma escolha realizada num conjunto
de escolhas possíveis. (MAUAD, 1996, p. 79).
Samain instiga-nos com outra problematização:
A imagem, em especial, (sic) a imagem xa, é complexa. Para se
dar conta disso, basta prolongar o tempo de um olhar posto sobre
ela, sobre sua face visível para, logo, descobrir que a imagem nos
leva em direção a outras profundidades, outras estraticações, ao
encontro de outras imagens. É necessário, pois, abrir a imagem,
desdobrar a imagem, ‘inquietar-se diante de cada imagem’. (DIDI-
HUBERMAN, 2006b). Furar e romper a superfície. (SAMAIN,
2012, p. 159).
Susan Sontag lembra-nos do quanto a fotograa produz presença/
ausências:
Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da
mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa
(ou coisa). Precisamente por cortar uma fatia deste momento e
congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo
(…). A fotograa é simultaneamente uma pseudo-presença e um
sinal de ausência. (SONTAG, 2004, p. 26).
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Ao recortar e congelar essa fatia de tempo, a fotograa impele-
nos a pensar acerca das transformações vivenciadas pelos espaços e pelas
pessoas que por eles circulam, o que está inscrito em sua pele e naquilo que
podemos inferir a partir de seus sinais.
O conceito de imagens-relicário proposto por Kossoy (2005, p. 42),
“[...] que preservam cristalizadas nossas memórias” e pelo qual a memória
fotográca exerce uma função de rememoração, incita-nos a pensar acerca da
matéria complexa e multifacetada das memórias presentes e invocadas pelas
pessoas. Kossoy sugere esse conceito para as fotos pessoais ou familiares, o
que nos remete a outra percepção: as imagens sintonizam duas dimensões, a
inteligível e a sensível, acionando reminiscências, afetos e signicados.
O Dicionário Aurélio informa-nos que relicário seria “recinto
especial ou urna, cofre, caixa, próprio para guardar as relíquias de um
santo”, “osculatório”, “espécie de bolsinha com relíquia que muitos éis
trazem ao seu pescoço”, “coisa preciosa, de grande preço e valor”, relíquia
como “coisa preciosa por ter valor material ou por ser objeto de estima e
apreço”, “pessoa ou coisa que no passado se respeitou ou admirou”.
Essa relíquia ou fragmento de memória guardada em imagens é norte
de referência afetiva e sua reminiscência nos remete involuntariamente a
estratos de tempos e espaços signicativos. Portanto, pensar uma imagem
como relicário nos coloca no campo da dimensão afetiva que emerge
involuntariamente do nosso passado. A memória involuntária permite
então alcançar tempos diversos e múltiplos, e uma outra dimensão das
experiências humanas que aproxima estética, sensibilidade e história.
memóriA involuntáriA e reminisCênCiAs
Podemos considerar que o saber sobre a memória vem se tecendo
por uma multiplicidade de sentidos e signicações construídos no mais
remoto da história ocidental, tempo em que a memória era entendida
como conhecimento e como arte. O poder de voltar ao passado, conservar
a memória, lutar contra o esquecimento, era um privilégio dado pela deusa
Mnemosyne aos aedos, tarefa essencial que a voz do poeta assumia numa
sociedade sem escrita como era a Grécia arcaica.
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Com Heródoto, conhecido pela tradição como o “pai da História”,
o discurso mítico dos deuses e dos heróis é delimitado pela necessidade
de mostrar o que se testemunhou, aquilo que se viu ou se ouviu falar por
outros. Como revela Gagnebin (1997), Heródoto retoma e transforma
a tarefa do poeta arcaico em uma narrativa histórica, mas sem perder o
discurso poético (agora escrito) de contar os acontecimentos passados,
conservar a memória e lutar contra o esquecimento.
Em Tucídides, em oposição a toda tradição anterior, a memória
poética, presente no texto escrito de Heródoto, passa a ser vista com
desconança e desconsiderada para dar maior delidade aos fatos.
Valorizam-se critérios racionais, a narrativa lógica e rigorosa. Perdem lugar
e espaço as emoções e digressões. Inaugura-se a valorização de uma narrativa
lógica a partir da razão, da austeridade e rigor, em oposição à emoção e ao
prazer. Tucídides funda um discurso racional e “a memória passa pertencer
ao Mythodes e ao engano” (GAGNEBIN, 1997, p. 29).
Neste olhar que se desdobra em outros múltiplos sentidos no
decorrer da história, pontuamos outro processo de forte desqualicação
da memória, agora no XVIII, em decorrência do ideário iluminista
de valorização da razão objetiva, da ciência neutra e da separação dos
historiadores prossionais daqueles considerados como cronistas, literatos
e memorialistas. Esta desqualicação da memória se consolida no século
XIX com a escola metódica, para a qual o historiador deveria ser capaz de
narrar o passado tal como ele realmente aconteceu. Portanto, conrmava-
se um ethos marcado pela hierarquização dos saberes e no prevalecimento
da História como ciência em detrimento da memória como engano.
É exatamente neste cenário de continuado desprestígio da memória
que Proust vai, através de sua obra literária, resignicá-las, ao distinguir
a memória da inteligência racional e voluntariamente dirigida, de outra
memória, que chamou de involuntária. De 1913 a 1927, Marcel Proust
escreve Em busca do tempo perdido, fazendo nascer uma nova memória
romanesca reveladora das sensibilidades burguesas da sua época com
preciosas reexões sobre a memória involuntária. Conforme destaca Seixas
(2001), Proust revela privilegiar a memória involuntária, espontânea e
carregada de afetividade que, por ser descontínua, recupera outra dimensão
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da vida dos homens que a memória intelectual e voluntária não consegue
atingir. Como nos mostra a autora, para Proust,
[...] a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da
inteligência e dos olhos, nos dá do passado apenas faces sem verdade:
mas quando um odor, um sabor encontrados em circunstâncias
muito diferentes, despertam em nós, apesar de nós, o passado,
sentimos o quanto este passado era diferente do que acreditamos
lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como fazem os
maus pintores, com cores sem verdade (SEIXAS, 2001, p. 46).
Ainda com Seixas, a memória involuntária é, para Proust, aquela
que rompe com toda a busca e captura intelectual do passado através da
inteligência e do gesto voluntário. Ela é espontânea e descontínua, é feita
de imagens, supõe lacunas e vem carregada de afetividade. A memória é
algo que emerge, que irrompe, sendo capaz de fundir instante e duração.
Como conrma a autora, é exatamente esta dimensão exilada da memória
que as Ciências Humanas têm procurado integrar aos seus estudos das
sensibilidades, do imaginário, dos mitos, entre outros. Portanto, não
se trata de transplantar as reexões sobre a memória realizadas pela
literatura proustiana para o terreno da História, mas de se colocar no
interior desses diálogos.
Neste sentido, podemos pensar a memória involuntária dentro do
eixo proustiano de uma memória que existe fora de nós, com seus próprios
movimentos descontínuos e atuais que ampliam o nosso olhar para além
dos critérios positivistas de construção do conhecimento e nos permite
chegar a outros lugares e a outras narrativas. Nas palavras de Seixas,
E se a memória existe ‘fora de nós’ como pretendem Bergson e
Proust, inscrita nos objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores,
nas imagens, nos monumentos, nos arquivos, nas comemorações,
nos artefatos e nos lugares mais variados, é preciso reconhecê-
la também em seu próprio movimento, ao mesmo tempo,
espontâneo e interessado, sempre descontínuo e atual, o que pode
conduzir a história a uma abertura em direção a outros lugares
ainda que desconcertantes e imprevisíveis ao estrito cálculo e razão
historiográcos (SEIXAS, 2001, p. 51-52).
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Sobre as possibilidades abertas pela memória involuntária proustiana,
Weinrich (2001) enfatiza o quanto esta memória resiste em invocar
lembranças através de um “esforço de vontade”. Para ele, é no esquecimento
mais profundo que a memória involuntária age para fazer emergir, sem
qualquer controle da razão, as lembranças mais “essencialmente humanas
e fundamentalmente poéticas” (WEINRICH, 2001, p. 212).
Neste campo, é possível perguntar como se dá este trabalho de
urdidura da lembrança. Que correspondências são estabelecidas? Será
possível tomar fotos antigas e perceber que, ao acaso, estas imagens operam
como a “madeleine” proustiana: trazendo de forma involuntária a presença
de uma lembrança?
Embora sabendo, como revela Sontag, que a valorização de Proust
dos outros sentidos em detrimento da visão o zesse considerar as fotos
como exemplo de uma relação supercial com o passado, marcadamente
visual e voluntária, isso não signica que as fotos não seriam capazes de
evocar memórias”. Nas palavras da autora,
Ao considerar as fotos apenas na medida em que podia usá-las,
como um instrumento da memória, Proust como que entende
de forma errada o que são fotos: não tanto um instrumento da
memória como uma invenção dela, ou um substituto. Não é a
realidade que as fotos tornam imediatamente acessível, mas sim
imagens. (SONTAG, 2004, p. 181).
Ou seja: ao considerarmos as fotos como um medium de imagens
que aparecem e desaparecem, permanecem válidas as reexões de Proust
e a busca pelo passado na memória involuntária. No seu ensaio A imagem
de Proust, Benjamin (1985) diz: “[...] um acontecimento vivido é nito ou
pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento
lembrado é sem limites porque é apenas uma chave para o que veio antes e
depois.” (BENJAMIN, 1985, p. 37).
Ao analisar a questão da memória em Walter Benjamin, Gagnebin
(1993, p. 61) chama-nos a atenção para a valorização da lembrança
proustiana nas suas reexões, lembrança que irrompe quando a memória
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involuntária faz coincidir uma sensação perdida do passado com uma
evidência do presente, permitindo, assim, a fusão entre estes dois tempos.
Da mesma forma, Borelli (1992) conrma que é no diálogo com Proust
que Benjamin aponta a memória involuntária como o lugar em que o
homem volta a ser sujeito da sua própria experiência e onde o passado
individual retorna marcado pelos elementos da história (?) coletiva.
memóriA ColetivA e reminisCênCiAs
Outro apontamento que consideramos importante é o conceito de
memória coletiva como explicitada por Carretero, Rosa e Gonzalez (2007):
Memória coletiva para nos referirmos a processos de lembranças
e esquecimento produzidos em coletividades, que se apóiam em
instrumentos de lembrança, sejam objetos materiais (monumentos
comemorativos, a toponímia urbana ou geográca, nomes de
prédios ou navios, imagens impressas em papel moeda), mediadores
literários (relatos, mitos, etc.), sejam rituais (comemorações,
efemérides). Eles atuam como material, como argumento e como
roteiro para a representação (sempre dramatúrgica) de algo já
desaparecido, mas, que tem utilidade, pelo menos para alguns
que participam, executam e dirigem os atos de lembrança que se
sustentam sobre esses artefatos culturais. (CARRETERO; ROSA;
GONZALEZ, 2007, p. 19).
Nesse sentido, os autores alertam ainda que “Os atos de lembrança
sempre estão a serviço das ações presentes, são recordados para que se possa
sentir, evocar, imaginar, desejar ou sentir-se (sic) impelido a fazer algo,
aqui e agora ou em um futuro mais ou menos próximo” (CARRETERO;
ROSA; GONZALEZ, 2007, p. 19).
Ponderamos que toda imagem é histórica e sua produção e execução
estão impressos em suas superfícies. Dessa forma, “A história embrenha
um conteúdo, compondo por meio dos signos, de natureza não verbal,
objetos de civilização, signicados e cultura.” (MAUAD, 1996, p. 98).
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Se tomarmos a imagem enquanto conhecimento, devemos considerar
que “[...] as formas possuem conteúdos históricos ou engendram lugares
da memória coletiva” (SALIBA, 1999, p. 33). Assim, a construção de um
conceito, ideia ou referência transpõe em imagens veiculadas em mídias
indícios que evocam uma memória (coletiva) e cristalizam uma dada
história. “As imagens são pistas para se chegar a outro tempo, revelam
aspectos da cultura material e imaterial das sociedades, compondo a relação
entre o real e o imaginário social.” (MAUAD, 2015, p. 85).
Utilizaremos como exemplo uma fotograa urbana do início do
século XX para pensarmos as lacunas memorialísticas produzidas naquele
período. Temos as fotograas realizadas por Eugene Atget (1857-1927) que
inauguraram a fotograa urbana e registraram uma Paris fantasmagórica
em suas ruas e periferias. Precursor da fotograa moderna em Paris, ele
fotografava o vazio das ruas parisienses, a privacidade em suas vistas e os
objetos inusitados. Especializou-se em vistas cotidianas e postais parisienses,
pois conhecia cada canto de sua cidade natal.
Didi-Huberman considera, a partir de Benjamin, a poder das
imagens de Atget em desmascarar o real quando dos registros, ou melhor,
da coleção de seus registros fotográcos, das reformas parisienses.
[Para Benjamin] Contra a fotograa de arte e seu lema: ‘O mundo
é belo’ a arte fotográca trabalha, se a entendemos bem, para
romper esse limite de toda representação, ainda que realista, e
cuja formulação Benjamin toma emprestada aqui a Bertold Brecht:
‘Menos que nunca, o simples fato de ‘devolver a realidade’ não
diz nada sobre esta realidade. Uma foto das fábricas Krupp ou a
de A.E.G. não revela quase nada sobre estas instituições.’ A isto a
obra de Atget – que é preciso tomar em seu conjunto, quer dizer
em sua sistemática de duas caras, puramente documental por um
lado, e proto-surrealista por outro – responderá com uma nova
capacidade para ‘desmascarar o real’. A idade da imagem de que
fala Benjamin, aqui, é aquela onde: ‘a fotograa não busca gostar
e sugerir, mas sim oferecer uma experiência e um ensinamento’.
(DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 216).
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A fotograa a seguir nos conta, nas curvas da rua e na simetria
das construções, a beleza de sua arquitetura; e o chamado de seu letreiro
invoca a sensação de melancolia desses equipamentos urbanos; oferece-
nos a experiência do vazio de pessoas circulando ou posando e da
monumentalidade e imponência per si de suas edicações. Seria uma Paris
fantasma, de passado e lembranças de ruas e calçadas com a perspectiva
de mudanças e reformas urbanas, transformando o espaço e seus trajetos?
Quais caminhos serão traçados e trançados nas memórias de seus habitantes
e em seus registros físicos ou afetivos-memorialísticos?
Figura 1. Fotograa. Rue de La Montagne. Sainte Genevieve. s.d.
Impressão de impressão em papel com impressão prateada em gelatina.
17 X 22,2 cm. Eugene Atget (1857-1927).
Fonte: MoMa. Coleção Abbott-Levy. Presente parcial de Shirley C. Burden.
Podemos considerar que a organização das referências que
compõem a identidade, individual ou coletiva, esteja vinculada à ideia
de pertencimento, seja esse político territorial, político ideológico ou
temporal. Entre outros autores, Ortiz (2000) arma que a modernidade
exerceu o papel de “desencaixe” das identidades, provocando a diluição
de fronteiras entre os sujeitos e seus espaços, tornando esse processo, ao
mesmo tempo, dinâmico e contraditório.
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A transformação do espaço físico em lugar afetivo recria, renova e
refunda as reminiscências, as memórias de indivíduos e de grupos de famílias,
reinventando as redes de relações sociais e os espaços de sociabilidade nas
periferias e no centro das cidades. A memória não é única; é composta por
meio de juízo de valor, separando o que deve ser lembrado e o que deve ser
esquecido, relacionando-se ao sentimento de pertencimento.
Para Michael Pollak (1989), as memórias, individuais ou coletivas,
são formadas a partir das conexões entre acontecimentos, personagens
e lugares. Esse processo envolve a busca por reminiscências vividas pela
própria pessoa ou emprestadas do grupo ao qual o indivíduo pertence. A
denição de um juízo de valor ao conjunto dessas memórias estabelece o
quanto ela será representativa para a compreensão do mundo ao seu redor.
A memória é uma forma de orientação que, por intermédio de
um juízo de valor adquirido, seleciona o que deve ser lembrado e o que
deve ser esquecido, o que foi importante e o que não foi. Esse mesmo
instrumento pode ser utilizado para o passado, mas também transpõe
essas preferências para o presente, ou seja, se um grupo foi relegado ao
esquecimento na memória do passado municipal (ou nacional, estadual,
entre outros), também não lhe é atribuída importância no presente. Assim,
os repositórios de uma parcela da memória estão dispersos em arquivos,
sejam escolares, familiares, ociais ou religiosos.
Por outro lado, pensar a memória coletiva a partir da fotograa
nos fornece um outro instrumento de averiguação: como se estabelece
uma rede de signicados em que os direitos dos autores de imagens e a
reprodutibilidade técnica, conforme Benjamin, massica uma ideia de
urbano e naturaliza uma cidade que permite/ou não e delimita/restringe
a circulação em determinados trechos e espaços de seus moradores; e
também como seus usuários rememoram seus caminhos e olham/xam as
transformações de seus lugares de trânsito e permanência.
Dessa forma, entendemos que as fotograas em seus fragmentos
visuais nos proporcionam montar um quebra-cabeças desses caminhos
que cruzam a cidade, em seus vislumbres de memórias e signicações,
oferecendo uma experiência e um ensinamento, coletivas, individuais e
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involuntárias, o que deixa escapar alguns lamentos de saudade/melancolia,
tristeza/ressentimento de um tempo e local marcantes e distantes, agora
somente retratos na parede ou dispersos em caixas de álbuns familiares e
arquivos diversos.
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A   
Prof. Dr. Marcus Galindo
1
Ms. Albertina Otávia Lacerda Malta
2
Antes mesmo de ser capaz de se expressar com a palavra, o homem
pré-histórico era capaz de produzir pensamento abstrato e o registrou
através das pinturas rupestres, concebidas não necessariamente com a
nalidade de se comunicar, mas de exprimir sentimentos e desejos. Nesse
particular, “[...] a intenção prática da sua pintura podia ser diversicada,
variando desde a magia ao desejo de historiar a vida do seu grupo [...]
(MARTIN, 2005, p. 240).
De fato, a memória da humanidade é primordialmente visual e
a comprovação dessa armação está nos desenhos pré-históricos que
representam o registro mais antigo que se preservou do seu universo
cosmogônico.
Esses desenhos atestam que a imagem é comunicação, é informação,
é representação simbólica e é documento. Ao tomar a palavra documento
no seu sentido mais amplo, torna-se imperativo considerar qualquer objeto
ou artefato portador de informação como documento (LE COADIC,
 Doutor em História; professor da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail:galyndo@gmail.com.
 Mestra em Ciência da Informação; servidora da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p147-160
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Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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1996). Assim, as palavras de Febvre devem ser consideradas, não só por
historiadores, mas pelos cientistas da informação. Febvre assevera:
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando
estes existem. Mas pode fazer-se (sic), deve fazer-se sem documentos
escritos, quando não existem. […] com tudo o que a habilidade do
historiador lhe permite utilizar para fabricar o mel, na falta de ores
habituais. Logo com palavras. Signos. Paisagens e telhas... Numa
palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do
homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença,
a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem. (FEBVRE,
1949 apud LE GOFF, 2003, p. 530).
Quando Louis Daguerre, na primeira metade do século XIX,
apresentou a fotograa ao público francês, muitas mentes fascinadas pela
sedução do tempo ainda enxergavam a nova técnica como uma forma de
sortilégio que exercia sobre as pessoas um especial tipo de encanto. De
fato, a fotograa revelou algo de mágico e uma nova estética para a era das
máquinas e da eletricidade.
Quase dois séculos depois nos perguntamos quanto de memória
há em um pedaço de papel emulsionado em sais de prata, sensibilizado
pelas lentes e pelo olhar de um fotógrafo? Nada! Não existe memória
em inanimados. O papel não sente, a celulose é inerte, não se expressa
verbalmente, não se emociona ao toque humano.
Na fotograa a memória é aquilo que resiste à entropia, capturada
na forma de luz e aprisionada no papel pelos sais de prata. A fotograa
representa uma realidade construída pela natureza, mas condicionada
pela escolha do autor de forma que produza ao olhar do observador uma
sensibilidade estética.
Com o advento da fotograa e do cinema as fronteiras espaços-
temporais se diluíam reicando uma tendência ubíqua iniciada com as
máquinas e com a eletricidade; o distante aproximou-se, havendo a
presença do ausente (GASSET, 2006). Tais ubiquidades eram desejadas
por todos em sua necessidade de posse de objetos, sobretudo através da
reprodutibilidade de sua imagem (BENJAMIN, 1994). Nessa perspectiva,
Imagem, Informação e Memória
| 149
as possibilidades iniciadas pela fotograa e pelo cinema se estenderam
sobretudo a partir dos anos 1990, através do computador e, a posteriori, da
virtualização que propicia passeios por salas de qualquer museu ou galeria,
numa combinação da informação em suas variadas dimensões: texto,
imagem e som (OLIVEIRA; MALTA; GOUVEIA JÚNIOR, 2011).
Nesse particular, é evidente também que o acesso livre ao patrimônio
cultural, aos acervos documentais e às obras de arte possibilita que a história
e a memória de uma sociedade sejam vistas e revistas e, por outro lado, faz
com que essas informações exerçam um papel de matéria-prima para a
produção de conhecimento (LAGOZE; VAN DE SOMPEL, 2001).
Nessa perspectiva, a fotograa é documento que porta múltiplas
signicações, é fonte de informação histórica, antropológica, etnográca,
jornalística; é registro do passado, é fragmento congelado de um instante
que se foi – ou que está em curso, se considerarmos sua natureza digital e
suas possibilidades de disseminação e de ressignicação a cada leitura feita
(SILVA, 2006).
o enContro dos olHAres
Do ponto de vista lógico, a memória produz-se na troca de olhares
entre o fotógrafo e o observador, mediada pela tecnologia do documento.
A imagem é capturada, enquanto a seta do tempo segue seu rumo levando
a mensagem marcada pelo ritmo das coisas tangíveis. O encontro da
mensagem com seu destino, contudo, só se dá assincronamente. Neste
momento, então, como registrou o poeta Vinícius de Moraes, “(...) quando
a luz dos olhos teus e a luz dos olhos meus resolvem se encontrar
3
, a magia
dos séculos se desfaz. Esta magia pode se repetir milhares de vezes, ser
escaneada por milhões de olhares, reproduzida igual número de vezes sem
corromper a integridade de sua mensagem
4
.
A emoção que pode ser evocada pela memória dos olhares é
inextinguível; a fotograa que porta a imagem, no entanto, é nita. O
 Verso da música Pela luz dos olhos teus, de Vinícius de Moraes (1977).
Princípios da Memória. Princípio 1. “Informação é a única matéria-prima da natureza que se multiplica
quando é distribuída”. (GALINDO, 2015, p. 222).
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mediador envelhece, enruga-se, perde o brilho e o frescor enquanto carrega
sua mensagem, na brevidade do caminho vai perdendo contraste, o viço
dos meios-tons e a condição vicária. Se perdemos o documento sem deixar
cópias, interrompemos o ciclo da memória e a magia dos olhares se desfaz,
inibindo a capacidade da troca de mensagens na máquina do tempo.
Por esta razão a natureza trabalha com redundância. Uma frutífera
lança milhares de sementes envolvidas em perfume, prazer e conteúdo
genético, na esperança que associados consumam – longe do circuito de
suas raízes – a massa perfumada de sua promessa, e dispensem o resto com
seu conteúdo genético em terreno apropriado, onde ele possa novamente
ser-vivo e se realizar em novo ciclo.
Para se lançar para além de nosso tempo – ao modo dos frutos da
natureza –, a fotograa carece de redundância. Sua tecnologia, nativamente,
prevê esta estratégia, seja na forma analógica, seja na forma digital. A
redundância, como fundamento da preservação e da boa curadoria, é um
instrumento complexo e garante que os espíritos se encontrem na interface
sem pejo do tempo.
Naturalmente, para além da redundância, a descrição nos acervos e a
atribuição de metadados – inclusive aqueles de preservação, que vão assegurar
a abilidade e a autenticidade, e permitirão, a seu turno, a acessibilidade do
arquivo – são requeridos para conservação da memória. Com este cuidado,
tanto os documentos analógicos quanto seus representantes digitais podem
usufruir das potencialidades deste ferramental descritivo. Coleções que
se servem de informações estruturadas e padronizadas em metadados se
tornam mais vivíveis em redes de alcance global, permitindo que seus
recursos informacionais sejam “[...] identicados, localizados, selecionados
por critérios de relevância e distinguidos por diferenças e similaridades
(NISO apud SAYÃO, 2007, p. 34).
Se aceitamos a condição de que, há mais de cem mil anos
(CHOMSKY, 2014, p. 31), a tecnologia da inteligência é o que nos
diferencia como seres animados e que a Tecnologia da Informação (TI)
é o que há de mais avançado entre os instrumentos de nossa cultura,
havemos de admitir, então, que a TI é uma das formas contemporâneas
Imagem, Informação e Memória
| 151
que melhor expressam o estado da arte entre os sapiens do gênero Homo.
Todavia, importa sempre lembrar que a tecnologia que utilizamos para
ressaltar nossa humanidade é apenas a ferramenta à espera da alma que
vai lhe fazer útil. Isto posto, entendemos por analogia que a fotograa
enquanto instrumento – tanto a analógica quanto a digital – porta a
memória, mas não é a memória. A memória está na condição humana
que lhes restitui a vida a cada novo acesso.
Os meios técnicos do Sistema de Informação, semelhante às redes
neurais do Sistema Nervoso Central, permitem a intercomunicação entre
diferentes agentes de informação e, com isso, possibilitam a reconstrução
da história e sua disponibilização à serviço da memória social. Por esse
motivo, Nora (1993) aponta uma tendência de considerar a memória como
sinônimo de História e, na Ciência da Informação, a memória denota “[...]
o estoque de informação, invocando a condição de registro memorial da
herança cultural humana.” (GALINDO, 2016, p. 222).
Em outras palavras, esses meios técnicos disponibilizaram as provas
com as quais a história foi e é construída. Despojaram os historiadores do
monopólio de tais informações e, portanto, de seu papel como intérpretes
únicos do passado. Com isso, a sociedade em geral pode “ler” o passado,
interpretá-lo e construir representações do presente e aspirações do futuro.
Assim sendo, o Sistema de Informação deu a cada cidadão a possibilidade
de gravar o passado em sua memória neurológica, associando-a à sua
história de vida. Daí decorre que o Sistema de Informação permeia a
ressignicação da memória neurológica, por lhe conferir a característica
social (NORA, 1993; CORNELSEN; MIRANDA, 2010).
As fotograas são instrumentos de memória, na medida em que são
ricas fontes de informações; transformam a memória coletiva em memória
histórica; registram signicativos aspectos da realidade histórica, social e
cultural de um povo e, como os entrelaçados de uma teia, são parte de uma
rede de memórias, quer se considere a memória da cidade ou a memória
enquanto faculdade neurológica de armazenamento de informações no
consciente ou no inconsciente (MALTA; LIMA, 2012).
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152 |
o PensAmento ComPlexofotogrAfiA e interfACe
Até onde se sabe, os humanos são os únicos seres da criação que
legam memória a seus descendentes; isto só é possível porque pensamos
simbolicamente. Nascemos com um algoritmo inato que viabiliza a
articulação lógica entre entidades de pensamento distintas para criar
soluções novas resultantes do confronto com novos problemas. Mas nem
sempre foi assim.
Antes da fala os humanos não tinham um organismo natural que
lhes permitisse exportar informação para fora do cérebro nem tão pouco
importar. A extrusão de construções lógicas desenvolvidas na dimensão
do pensamento para um plano físico material, que espelhasse a linguagem
falada de forma estruturada, linear e compreensível, era requerida.
O gesto e a palavra permitiram a interoperabilidade, primeiro entre
indivíduos, depois entre grupos sociais e nalmente entre sociedades.
Foi a escrita, entre os instrumentos criados pelo gênio humano,
aquela que mais ecientemente cumpriu a missão de fazer trafegar entre
as gerações os tesouros da cultura. A escrita efetivamente permitia que as
sociedades do passado se reportassem eloquentemente a seus sucessores,
emulando uma forma de máquina do tempo. Nunca foi um diálogo, mas
um monólogo prodigioso e seminal, uma conversa assíncrona, onde aqueles
que aprisionavam suas narrativas em interfaces preserváveis conseguiam
falar a espíritos do futuro, narrar suas experiências, entregar a sua versão da
observação do mundo.
Mais que em qualquer outro produto do conhecimento, a
complexidade manifesta-se no universo da racionalidade e da inteligência.
O pensamento complexo que caracteriza aquilo que muitos cientistas
chamam de revolução cognitiva, que, por sua vez, transformou os primatas
superiores do gênero Homo em uma espécie sapiens, é uma evolução recente
do ponto de vista paleontológico. Há um consenso entre os geneticistas
de que a emergência do pensamento simbólico se deu em consequência
de uma mutação genética havida entre 100 e 70 mil anos
5
na subfamília
A revolução cognitiva que se deu entre 100 e 80 mil anos atrás revelou o Homo sapiens, um primata com
capacidade de aprender autonomamente, armazenar e reutilizar memória e se comunicar ecientemente. Estes
Imagem, Informação e Memória
| 153
de gens FOXP, ligadas à evolução de “[...] mecanismos que promovem o
desenvolvimento da vocalização, fala e linguagem.” (CHOMSKY, 2014, p.
31; VISCARDI, 2015, p. 12).
Mesmo depois do evento FOXP2, os humanos não passaram a nascer
automaticamente com a habilidade comunicativa. Ainda era necessária
uma habilitação para o uso de uma ferramenta que levava anos até que uma
criança adquirisse competência comunicativa, até que estivesse preparada
para elaborar enunciados de modo autônomo, que estivesse pronta para
formular questões e fazer compreender ideias na forma discursiva. A
comunicação é um processo social que implica no aprendizado de um
complexo conjunto de símbolos fonéticos sintetizados na forma de língua,
regras linguísticas que regulam seu uso vernáculo.
Do ponto de vista semiótico, a comunicação refere-se ao processo
de materialização de pensamento elaborado, de sentimento ou emoção
na forma de signos partilhados socialmente, por pelo menos dois
comunicantes. Neste processo este conjunto simbólico é utilizado para
codicar e decodicar continuamente pensamentos trocados entre seres
humanos. É um processo articial, uma habilidade adquirida e transmitida
pelos humanos para difundir ideias.
As denominações utilizadas para nomear os instrumentos usados
pelos humanos para o efeito de interfacear são muitas; em nosso campo
especíco, chamamos, genericamente, de “documento” aqueles dispositivos
desenvolvidos com a nalidade de viabilizar a visualização e a conexão
entre inteligências.
Para o sapiens contemporâneo, a imagem como representação do
universo simbólico – fotograa, pintura, e.g. – parece tão natural que
acabamos esquecendo que, tal qual a escrita, a representação em interfaces
grácas é uma habilidade construída, resultado do uso de instrumentos
marcadores sinalizam uma revolução havida nas habilidades cognitivas dos símios do gênero Homo. Durante
o mapeamento do genoma humano, os geneticistas identicaram uma proteína codicada pelo gene FOXP2,
positivamente relacionada com o desenvolvimento da fala e da linguagem. Este era o gatilho que nos habilitava
a entender como símios da classe dos grandes primatas, ancestrais do sapiens, adquiriram capacidades como
falar, comunicar, escrever e se expressar artisticamente através de algoritmos simbólicos.
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lógicos “emergentes” na cultura, produto do domínio da linguagem
simbólica e do desenvolvimento da comunicação humana.
A interface fotográca é sempre uma fronteira que dene a forma
de comunicação entre duas entidades. É um campo de conexão entre
inteligências, área compartilhada onde se dão interações simbólicas
complexas. Pode ser visto ainda como um dispositivo lógico desenhado
para viabilizar a troca de informação, e promover a ligação entre sistemas.
É assim que Pierre Lévy enxerga as interfaces, como
[...] uma superfície de contato, de tradução, de articulação entre
dois espaços, duas espécies, duas ordens de realidades diferentes:
de um código para outro, do analógico para o digital, do mecânico
para o humano. [...] Tudo aquilo que é tradução, transformação,
passagem, é da ordem da interface. (LÉVY, 1993, p. 181).
Assim, a fotograa constitui-se em uma zona permanente de tradução
entre duas partes que não podem se conectar diretamente, tornando uma
sensível à outra. É também o ambiente de interação homem/imagem em
qualquer sistema de comunicação. Uma interface é o ponto em que dois
sistemas de características diferentes se interligam, sendo a informação a
transmitir convertida de acordo com um conjunto de pressupostos e regras
convencionadas por ambas as partes.
fotogrAfiA, informAção e memóriA
É mister que aqui que claro que nos referimos a duas dimensões
da memória. A primeira, aquela memória em estado de registro, que pode
ser sicamente custodiada, descrita, transportada e gerenciada ao modo
de commodities. A segunda dimensão, aquela que transcende o suporte e
que revela, para além do documento, a dimensão fenomênica que a noção
invoca; a memória como semântica provocada pelo ato do acesso e pela
visualização do objeto de memória.
A visão documentalista que nos aprisiona xa seu olhar no suporte
e acaba perdendo o sentido de que memória não é apenas o que você pode
Imagem, Informação e Memória
| 155
tocar (tangibilidade), mas também aquilo que toca você (complexidade).
Assim, quando o observador lança seu olhar sobre o tangível (documento),
dispara um processo mental de grande poder mobilizador. A Antropologia
descreveu este sentimento como pertencimento.
Dito de outro modo, aquela crença subjetiva que une através do
sentido de origem indivíduos distintos. A explicação antropológica
remete à necessidade presente nos indivíduos de se autodeterminarem
como participantes de uma coletividade, no seio da qual os símbolos
expressam valores e aspirações endêmicas. Esta tendência pode fazer
destacar características culturais muito especícas que tomamos aqui por
identidade.
Desta forma a memória se conecta com o sentido cultural,
circunstância que explica por que o sentimento de patrimônio toca apenas
os indivíduos que partilham identidade. Neste sentido nos socorremos com
Bauman, que defende a ideia de que memória é um sentimento evocado
pelo patrimônio, que, a seu turno, é formador daquilo que denimos
como identidade. Para este pensador, identidade não se herda; identidade é
desenvolvida por cada pessoa. Cada indivíduo tem que criar a sua própria.
O sentimento de pertencimento é a forma pela qual as pessoas
se percebem integrantes do mesmo ambiente, do mesmo lugar, na
dependência de sua necessidade e capacidade, associando componentes
cognitivos, sociais e psicológicos por meio da memória (MONTEIRO;
MAIA, 2009).
Considerando que a construção e a reconstrução dos fatos a serem
gravados na memória necessitam de lugares, o conceito expresso por Santos
(2003) é pertinente. Lugar é a extensão do acontecer solidário, ou seja, o locus
do viver junto, do coletivo, do intersubjetivo. Lugar é o depósito nal dos
eventos (SANTOS, 2003). Signica dizer que a generalização do conceito
de lugar é pertinente quando se considera o sentimento de pertencimento
que ele desperta (SMOLKA, 2000; MOREIRA; HESPANHOL, 2007).
Lugar é o espaço em que se viveu, em que se trabalhou, em que foram
compartilhadas experiências e relacionamentos interpessoais. É neste viver
junto que se constrói a memória individual, implícita ou explícita, imediata
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ou tardia, de aprendizagem, de facilitação, de procedimento, semântica ou
episódica. Também nele é construída a memória das cidades, conceituada
como as marcas deixadas pelos grupos sociais nos lugares em que viveram,
o que congura a memória coletiva, porque se desenvolve num quadro
espacial, portanto em lugares compartilhados (MALTA; LIMA, 2012).
Deste modo, também se entende por que as relações provocadas
pelos objetos de memória como a fotograa são quase sempre assíncronas,
conversas entre gerações, ao modo de corais que depositam suas novas
cepas sobre os esqueletos mortos das antigas gerações.
As fotograas, tal como outros objetos de memória, são gatilhos
que disparam as memórias e as sensações. Em última análise, são os
sentidos e não os suportes materiais que nos põem em movimento de
sinapse com o universo da memória. É o gatilho que desperta o velho e
permite a emergência de um novo como na rede de galos descrita pelo
poeta João Cabral
6
.
Esta visão do fenômeno social da memória nos permite observar como
a memória se relaciona com o conhecimento e qual o papel dela na construção
do patrimônio e das identidades locais. Longe de ser o esqueleto morto, a
memória é a cepa nova que se estabelece sorvendo o velho e preservando a
informação que ele porta e a que a ele importa. Assim, nada mais longe da
compreensão de memória que a ideia de “arquivo morto”; memória é vida
em complexidade, é informação em modo sistêmico e universal.
A imPermAnênCiA dA memóriA
Como dissemos antes, somos os únicos animais que preservam suas
memórias. Criamos no curso da história museus e outras instituições com
a função de preservar o conhecimento canonizado na forma de memória
7
.
Tecendo a manhã. “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que
apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a
outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os os de sol de seus gritos de galo, para que a
manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.”. (OLIVEIRA, 1994, p. 345)
Instituições de memória: “[...] instituições que organizam os registros culturais, intelectuais e memoriais dos
povos, comunidades, instituições e indivíduos, e o patrimônio cientíco e cultural.” (DEMPSEY, 2000). Veja
mais sobre este conceito em Galindo (2015).
Imagem, Informação e Memória
| 157
Nutrimos a sensação que estes agentes de custódia são imunes ao perigo.
Ledo engano! Como uma corrente, a rede que tece a memória é tão forte
quanto o mais fraco de seus elos, quando um de seus segmentos se rompe,
todo o sistema se torna vulnerável às ameaças.
É um erro enxergar a preservação como um ponto de checklist que
se verica ao nal de um determinado período. O espírito da conservação
da cultura deve ser uma característica da boa prática organizacional.
Esta é uma das razões da emergência da Curadoria Digital (CD). A CD
preocupa-se com o sistema, com a evolução permanente das coleções e
de suas ameaças. As coleções, todavia, possuem vida própria e pedem
tratamento em permanente evolução.
A fotograa é um recurso tecnológico que potencializa capacidades
humanas. Ela tanto pode ressaltar as boas qualidades, quanto acentuar
problemas. Por esta razão é que planejamento e discussão de políticas de
informação são cruciais para a boa evolução dos serviços de preservação.
Sem este debate, o uso de ferramentas de gestão de recursos de memória
pode se tornar um paliativo que potencializa sem cuidar – uso aqui o senso
curatorial –, enquanto transfere temporariamente o problema para outro
tempo e lugar.
O mundo digital descortinou uma gama inusitada de novas
aplicações para a fotograa, inclusive para a memória. A prática tem
mostrado, entretanto, que o trato da informação modulada em meio
digital não é uma mera extensão de procedimentos utilizados na gestão
de documentos analógicos.
Por um lado, a natureza e estrutura dos documentos digitais
demandam novas estratégias de organização e segurança e, por
outro lado, seu potencial tecnológico oferece novas possibilidades
no que tange à sua capacidade ubíqua de gestão, armazenamento e
veiculação de conteúdos. Esta circunstância impõe a consideração de
novas metodologias para o aproveitamento eciente e produtivo das
oportunidades oferecidas pela tecnologia.
A preservação digital vem se rmando como um subcampo da CD,
que emerge da conuência de variados vetores. Por um lado, dos avanços
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158 |
alcançados pela pesquisa em preservação digital e do trabalho aplicado de
prossionais – arquivistas, bibliotecários e museólogos, entre outros –; e,
por outro, da e-science data management e da disciplina de especicação
de sistemas (DALLAS, 2016. p. 4). A CD é um campo do conhecimento
e especialização prossional com crescente impacto na gestão de coleções
digitais e dados de pesquisa, e na especicação e auditoria de repositórios
conáveis. Apesar da prática da Preservação Digital preceder a CD, ela se
acomoda mais confortavelmente como um subcampo do que propriamente
como uma área de especialização.
A CD atua em duas dimensões muito especícas: a preservação atua
em uma dimensão onde os vícios intrínsecos
8
e a natureza do suporte são as
ameaças mais evidentes. Esta dimensão é de implicação entrópica, uma vez
que seus fatores de risco
9
são predominantemente atinentes à natureza dos
materiais de base atômica. A segunda dimensão, por sua vez, é de implicação
antrópica e diz respeito aos fatores de risco advindos da incúria humana.
O risco do sinistro nos assusta, mas não surpreende; o fato é que,
apesar de todos os esforços, nenhuma tecnologia é capaz de garantir a
permanência de outra. Pode-se minimizar os efeitos antrópicos; podemos
antecipar-nos aos efeitos entrópicos, mas a impermanência do registro
sempre será uma sombra que assombra a memória. Esta ameaça permanece
viva e ativa nos piores pesadelos dos pesquisadores, administradores e
curadores de coleções no mundo inteiro; todavia, o problema amplica-se
em uma realidade como a brasileira.
A situação dos sistemas de memória no Brasil evidencia a condição
de subdesenvolvimento como magnicadora das ameaças ao patrimônio.
A memória é um sistema periférico
10
que se move conforme a economia
Vício Intrínseco (Inherent Vice) é um termo utilizado para dar sentido a uma condição natural de certas coisas
que as torna mais suscetíveis a se destruir ou avariar, sem que seja necessária a intervenção de qualquer causa
externa.
No senso popular, o termo risco – além do sentido de possibilidade ou chance, oportunidade – porta o sentido
de perigo. Em Preservação Digital, pode-se denir Fator de Risco como qualquer situação que incremente a
probabilidade de ocorrência de sinistros e perda de conteúdos, a exemplo dos múltiplos fatores causais de perdas
de arquivos digitais.
10
Princípios da memória. “Princípio sétimo. São os excedentes da economia que remuneram a ação das
instituições de memória e viabilizam a circulação da memória; Princípio Oitavo: O senso de valor dos bens
da memória é variável e as organizações que se desdobram da tarefa da memória, paradoxalmente, podem ser
Imagem, Informação e Memória
| 159
e a urbana civilidade permitem. As sociedades subdesenvolvidas tendem
a ser mais sensíveis às ameaças ao seu patrimônio histórico, a utuações
da economia e mais complacentes com fatores de risco. A recente perda
do Museu Nacional (02/9/2018), com tudo o que ele representa em
termos de identidade, patrimônio e memória, denunciam a condição
de subdesenvolvimento que se esconde sob o manto de nossa sociedade.
Neste caso fomos lenientes e incapazes de entregar às gerações vindouras
o patrimônio legado por nossos antepassados. O que o futuro nos reserva?
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| 161
N   D Z:
    
    
Profa. Dra. Gabriela Fiorin Rigotti
1
Toda vez que me proponho a viajar é assim: no dia anterior à partida,
penso no destino, no propósito e na duração da viagem. Separo as roupas.
Dobro e redobro várias vezes até que caibam na mala. Escolho os sapatos
que combinam com as roupas. Pego algumas roupas de baixo, e tento não
esquecer o pijama e o chinelo. Um brinco para trocar já é suciente, mas
não dá pra abrir mão de dois batons. E ainda tem a escova de dente, a
escova de cabelos... Ai! Esqueci as meias!
Cada um de nós tem uma forma de fazer sua mala e coloca
em sua bagagem o que julga mais apropriado, ou o que se lembra de
pegar... Apesar dos inúmeros conselhos sobre como arrumar uma mala
leve e funcional, cada um escolhe o que levar e o que deixar – e sempre
esquecemos alguma coisa!
Maria José de Oliveira Dias tem muita bagagem: “dedicou 46
dos seus 64 anos ao magistério. Andou a cavalo, percorreu trilhas a pé,
Doutora em Educação Visual-Fotograa; gestora de Agência de Comunicação & Inovação do Centro
Universitário Padre Anchieta. E-mail: gabi.frigotti@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p161-176
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
162 |
recorreu a charretes. Tudo para chegar às escolas da zona rural de São
Bento do Sapucaí, onde construiu sua carreira. Criou dois lhos, mas não
os viu crescer por falta de tempo para os afazeres domésticos, tamanha
a entrega às coisas do ensino – costuma dizer que viveu em uma época
em que professor fazia as vezes de médico, farmacêutico, conselheiro. Os
lhos lhe deram quatro netos; a mãe, de 94 anos, está sob seus cuidados.
Mas Maria José, hoje professora da Escola Estadual Dr. Genésio Cândido
Pereira (pertencente à Diretoria de Ensino de Pindamonhangaba), está
muito longe de deixar o giz e a lousa de lado, mesmo aposentada desde
1989. Entre seus planos está a matrícula num curso de pós-graduação.
Não é por falta de diploma. Dona Zezé, como é conhecida em São
Bento do Sapucaí, cursou Pedagogia, Estudos Sociais (ambos na época
da ditadura), História (“na chegada da democracia”) e Geograa, este
último completado ano passado
2
.
Vestindo conjunto estampado com grandes ores vermelhas
em fundo branco, calça e blusa combinando entre si e também com as
sandálias abertas, ela espera pela condução, viaja, desce do ônibus, consulta
o computador. No intervalo das atividades, ouve o colega tocar o violão.
Enquanto conta ao entrevistador sobre sua experiência como aluna
do curso de formação continuada Teia do Saber
3
, olha ao longe e sorri
discretamente, como uma fresca or plantada no meio do gramado verde
– apesar das rugas e dos óculos pesando sobre o nariz denunciarem quantas
vezes toda sua bagagem já foi arrumada e desarrumada.
Por minha vez, tenho alguma bagagem também: dentre estes quase
quinze anos como professora e pesquisadora, atuei como docente contratada
da Unicamp no programa Teia do Saber entre os anos de 2003 e 2004,
ministrando aulas em diversas cidades (Apiaí, Avaré, Bragança Paulista,
Campinas, Itapetininga e Piraju) durante o módulo “Ler a Imagem para
Texto extraído do livro fotorreportagem “Teia do Saber: capacitação de professores da rede pública” (KASSAB,
2005, p. 145).
O programa Teia do Saber, lançado em 2003 pelo então governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin,
caracterizou-se por ministrar aulas, presenciais e/ou à distância, aos professores de escolas estaduais a partir das
necessidades de formação levantadas pelas Diretorias de Ensino de cada região. A Universidade Estadual de
Campinas - Unicamp atuou no curso entre os anos de 2003 e 2009.
Imagem, Informação e Memória
| 163
Apre(e)nder o Mundo” – constante do curso “Ler para Aprender”, sob
coordenação do Prof. Dr. Ezequiel eodoro da Silva.
Foi justamente esta a principal bagagem trazida para a realização
deste texto, já que as ideias aqui apresentadas fazem parte de uma proposta
4
de investigação sobre a imagem da professora
5
a partir das fotograas e dos
textos que as acompanham extraídos do livro fotorreportagem “Teia do
Saber: capacitação de professores da rede pública”, lançado pela Unicamp
em abril de 2006
6
.
Buscamos, neste estudo responder a questões como: Qual discurso
acerca da formação de professores – proferido pela academia, pelo Estado
e pelo grupo editorial responsável pelo livro analisado – estas fotograas
e textos ajudam a conrmar? Estas fotograas, analisadas a partir de
seus elementos constitutivos (cenários, gurinos, posições de câmera
etc.) e com o suporte dos textos, ajudam-nos a reconhecer as professoras
conhecidas pessoalmente durante as aulas do Teia do Saber? Será que a
própria professora fotografada se reconhece neste livro? Será que Dona
Zezé se reconheceria?
Para realizar uma análise como esta, dentre os muitos objetos da
cultura material aos quais o pesquisador poderia se reportar estão as
imagens. Estáticas (pinturas, fotograas) ou sequenciais (cinema e vídeo),
as imagens educam-nos por um processo que se estende continuamente por
toda a vida e se realiza através do contato imperativo, direto e adquirido
entre nós e as representações imagéticas – as quais seriam produzidas
justamente para serem recordadas e educarem nossas formas de olhar.
Os psicólogos da educação são unânimes em armar que a maioria
absoluta das informações que o homem moderno recebe lhe vem por
Necessário esclarecer que este artigo deriva de tese de Doutoramento defendida em novembro de 2013 pela
Faculdade de Educação, FE/Unicamp.
Como são as mulheres professoras a extensa maioria das retratadas fotogracamente pela publicação –
conforme podemos vericar ao longo dos capítulos seguintes –, preferimos pelo uso, desde o início do texto, do
substantivo em sua forma feminina.
A publicação comemorativa foi disponibilizada apenas aos participantes do curso, ou seja, tanto às Diretorias
de Ensino e suas professoras-cursistas quanto à Universidade e seus professores-regentes, a m de demarcar a
atuação da Universidade de forma presencial frente ao programa, dado que a partir do ano de 2006 a Unicamp
passa a ofertar ao Teia do Saber apenas cursos à distância.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
164 |
imagens. O homem de hoje é um ser predominantemente visual. Alguns
chegam à exatidão do número: oitenta por cento dos estímulos seriam
visuais. “[...] E qual é a atividade própria da contemplação? Lembrar. A
doutrina da anamnese funda-se na possibilidade de uma visão mental que
alcançará os reinos do pretérito, vencendo, neste seu ato, os limites do
presente, que é nito e mortal como todo tempo corpóreo.” (BOSI apud
NOVAES, 1988, p. 69-70).
No caso especíco da fotograa, as imagens aparecem, de acordo
com Barthes (2000), como um uma tentativa de capturar, paralisar e
imortalizar um instante, tornando-o permanente no tempo e persistente
na memória – fazendo esta representação participar substancialmente dos
entendimentos que formulamos sobre nós mesmos e sobre o mundo que
nos cerca.
A faceta da educação advinda da fotograa como elemento
constitutivo da identidade, ou seja, da forma como enxergamos a nós
mesmos e aos outros, torna-se ainda mais imponente quando pensamos
em retratos fotográcos, ou seja, em representações pessoais em forma
de fotograa.
Sobretudo quando colorido, o retrato fotográco espelha o
fotografado à sua própria imagem e semelhança e, de tão dedigno à
realidade, teria a capacidade de se confundir com o real e se tornar modelar,
estabelecendo-se como parâmetro, como exemplo para as leituras sobre o
fotografado – incluindo-se aí a leitura do outro sobre ele e a leitura dele
sobre si mesmo.
A foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários
aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deformam. “Diante da objetiva, sou ao
mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me
julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele que ele se serve para
exibir sua arte.” (BARTHES, 2000, p. 27).
Ao ser usado como representativo de um grupo social, o retrato
fotográco colorido tem substancial capacidade de descrever o fotografado
tal como seu conjunto é pensado, o que ajuda a reforçar a identidade visual
do grupo, em detrimento de identidades visuais mais singularizadas acerca
Imagem, Informação e Memória
| 165
de cada sujeito. Além disso, o fotografado traz aspectos característicos
de seus pares em sua gura, repetindo elementos típicos e reforçando,
principalmente pela suposta dedignidade da imagem, o repertório de
representações tradicionalmente associadas ao seu coletivo. De acordo com
Miranda, Coppola e Rigotti (2006), desta maneira a fotograa se torna
elemento constitutivo do grupo, ao seja, do conjunto de suas representações
guradas que enaltecem seu caráter educativo.
Raquel do Carmo Santos, jornalista da Assessoria de Imprensa
da Unicamp e coorganizadora da obra aqui analisada, conrmou em
entrevista ao Jornal da Unicamp quando do lançamento que, para a escrita
do livro fotorreportagem, não houve a preocupação em prever padrões de
enquadramento ou posições de câmera: “foi tudo muito espontâneo...”.
Certos de que, como armado por Machado (1994), a espontaneidade
não existe quando se trata de fotograas (e quem caria impassível frente a
uma câmera apontada para si?), ao escolhermos especicamente este livro-
reportagem como material de estudo – em detrimento de estudarmos as
outras quase 500 fotograas sacadas pela equipe de fotógrafos das Unicamp
e não publicadas neste livro, por exemplo – levamos em consideração
o fato de se tratar de uma compilação imagética publicada pela própria
instituição de ensino superior que organizou o curso.
O intuito foi o de, ao manusearmos este livro e lermos suas imagens
acompanhadas de seus textos, levantar indícios sobre como a gura da
professora vem sendo forma(ta)da pelos órgãos e instituições que se
responsabilizam pela política de formação continuada de professores em
nosso Estado, tentando compreender também se e como esta forma de
pensar estaria sinalizada nas imagens das professoras em formação.
Lembremos neste ponto que somos seres sociais e, como tais,
necessitamos de discursos comuns – não únicos, mas pré-acordados
coletivamente – para convivermos uns com os outros. Somos educados por
pedagogias, por intervenções sobre nosso pensamento advindas de discursos
diversos, entre eles o escrito e o imagético. Nossas formas de pensar estão
embasadas nos discursos, ou seja, em palavras e imagens encadeadas e
recheadas de sentidos, de mensagens com signicados sociais e ideológicos.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
166 |
Predominantes por terem a capacidade de permanência, a escrita
e a imagem não escolhem interlocutores, podendo ser violentadas,
travestidas, (re)signicadas a partir da ação/interpretação de seus leitores.
Lapidadas por abrasão, a comunicabilidade da escrita em letras ou luzes
ultrapassa os quereres do criador, tornando seu produto capaz de uma
intervenção proveniente daquele que com elas tem contato. Nossas
formas de pensar estão ancoradas em nossos discursos e também são
limitadas por eles. Estamos aprisionados pelas teias tecidas com o que
conseguimos captar do mundo através de nossos sentidos e com o que
conseguimos formular de acordo com as diferentes formas de linguagens
que historicamente desenvolvemos.
Veiculador de um discurso acerca da formação de professores, o livro
fotorreportagem aqui estudado traz por seus textos, além de outros sentidos
possíveis, a conrmação do pensamento da academia enquanto – ao lado
do Estado e do grupo editorial – responsável pela ação política de formação
continuada de professores que é o Teia do Saber. E é ao longo dos textos,
primeiramente, que uma imagem das professoras paulistas em formação
nos salta aos olhos: a de “heróis da resistência” (subtítulo, p. 141), as quais
encaram seu trabalho como uma “missão” (subtítulo, p. 168).
Ao longo da leitura dos textos, parece haver, se não uma contradição,
ao menos uma tensa concomitância entre os discursos tidos pelo Estado,
pela Universidade, pelos editores da obra e também pelas próprias
professoras – uma vez que são elas muitas das entrevistadas e também
as leitoras do material: a imagem da professora ultrapassaria a visão de
docente em formação para também a revelar como prossional abnegada:
O professor se sacrica muito para estar aqui. Deixa de lado o lazer e a
família (fala de Antônio Machado Pontes, coordenador da Associação de
Ensino de Itapetininga, p. 97).
Firmes e fortes em seus propósitos, seguidoras da pura vocação, as
professoras-cursistas são retratadas nestes textos como capazes de superar
toda sorte de diculdades para realizarem seu ofício.
O trabalho da professora Lúcia do Prado Souza difere muito daquele
desenvolvido por seus colegas. Lúcia dá aulas para 1° a 4° séries, durante 20
Imagem, Informação e Memória
| 167
horas por semana, para adolescentes internos de uma unidade da Febem
em Campinas, tarefa que ela considera graticante. Para exercer seu ofício,
a professora se transforma: desempenha o papel de psicóloga e de mãe dos
garotos, muitos deles abandonados por suas famílias. E não reclama de
trabalhar muitas vezes sob pressão (p. 70)
7
.
As professoras, conforme os textos publicados no referido livro, são
exemplos de superação. A professora de Matemática Adriana Aparecida
Dias aprendeu a lidar com as adversidades desde a infância. Superou
muitos obstáculos – desde a sua origem humilde até problemas físicos –
para chegar no magistério. [...] Até – e principalmente – por isso, Adriana
é vista por muitos estudantes como um exemplo de superação. (p. 116)
Nada lhes faz desistir de seu propósito enquanto educadoras: ‘Se
for pensar na remuneração, o professor abandona a prossão. Quando
entramos na sala de aula, porém, assumimos com anco nossa tarefa de
educador.” (fala de Edna Avanci Pagotto, gestora em Capivari, p. 82).
Se não único e totalmente legitimado, este discurso saliente nos textos
que acompanham as imagens desta fotorreportagem aparece ao menos
como aceitável tanto pelo Estado e pela Universidade que o produzem
quanto pelas professoras que o recebem e exaltam.
Tais propósitos de enaltecer o magistério como ideal parecem conter
um pedido reiterado para que estas professoras continuem a naturalizar
o fato de abnegarem de condições de trabalho mais justas e de uma
vida pessoal farta, com momentos de lazer e convivência com amigos e
familiares, em prol da vocação – problema já evidenciado por estudiosos
da prática docente como Nóvoa (1991).
Grande parte dos problemas e dos temas educativos conduzem a
uma implicação dos professores, exigindo-lhes determinadas atuações,
desenhando ou projetando sobre sua gura uma série de aspirações
que se assumem como uma condição para a melhoria da qualidade da
educação. Em termos gerais, o discurso pedagógico e social acentua o
papel dos professores, talvez devido a uma certa deformação prossional,
ou devido a um efeito de ocultação ideológica (consciente ou inconsciente)
Todas falas transcritas do livro Fotorreportagem em análise.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
168 |
dos condicionalismos reais dessa prática, ou ainda devido ao fato de esta
atitude encobrir o baixo estatuto social da prossão docente. O certo é
que existe no discurso pedagógico dominante uma hiper-responsabilização
dos professores em relação à prática pedagógica e à qualidade do ensino.
Como consequência desta excessiva dependência da prática relativamente
aos professores, o pensamento e a investigação acabam por contribuir para
a elaboração de imagens exigentes e atrativas de como deveriam ser os
professores nas suas múltiplas facetas. (NÓVOA, 1991, p. 63).
É realmente importante notar esta certa ambiguidade de discursos
acerca das políticas de formação continuada de professores, pois, se por um
lado se apregoa que “a esperada requalicação da escola pública depende
essencialmente de prossionais bem preparados intelectual, emocional e
afetivamente” – como armado pelos idealizadores do Teia do Saber no site
da CENP
8
–, os textos analisados não nos mostram uma real preocupação
com a qualidade de vida dessas professoras.
Se, a partir disto, pensarmos nos propósitos do Teia do Saber
enquanto formação continuada de professores, podemos compreender
que este discurso que enaltece a professora como docente e estudante
batalhadora, responsável pela educação e superadora de obstáculos, acaba
por evidenciar tanto a desqualicação da educação pública em nosso país
quanto a fragilidade da formação inicial destas professoras. Anal, caso a
formação inicial recebida para o exercício do magistério fosse capaz de bem
qualicá-las e caso o contexto da educação pública básica brasileira não se
apresentasse como uma batalha árdua e diária, talvez cursos planejados aos
moldes do Teia do Saber não fossem tão importantes e necessários.
Com isso em mente, e já que os textos aqui expostos, segundo a
tradição da fotorreportagem, devem servir de suporte, como legendas
ampliadas, às imagens fotográcas do livro em análise, talvez a análise das
fotograas – objeto primordial desta pesquisa – nos ajude a compreender
melhor esta tensa concomitância entre sentidos.
Extraído do site da CENP - Conselho Executivo de Normas Padrão/Rede do Saber. Disponível em: http://
www.cenp.com.br/. Acesso em: 19 nov. 2018.
Imagem, Informação e Memória
| 169
Para interpretar as fotograas deste livro fotorreportagem, dentre
as 504 fotograas constantes da obra, selecionamos como foco principal
destas análises/leituras as 112 que retratam as professoras no coletivo das
salas de aula, em posição discente; ou seja, em típicas aparições como
estudantes: em sala de aula ou similar e geralmente sentadas em cadeiras
escolares. Isso porque nosso intuito é compreender a imagem da professora
enquanto prossional em formação.
Pela observação simples destas fotograas, numa leitura inicial,
percebemos que tais imagens são capazes de evidenciar uma predileção dos
responsáveis pela publicação por imagens que apresentem as professoras
paulistas junto a seus pares, e não individualmente. Apesar de cerca de apenas
¼ do total de fotograas publicadas apresentar o coletivo de professoras
em salas de aula, pouquíssimas são as vezes em que uma professora-cursista
aparece em close ou mesmo em meio-plano
9
– em apenas 55 fotograas, ou
seja, em cerca de 10% das imagens isso acontece.
Podemos assim perceber a construção de uma narrativa imagética que
enaltece o coletivo, o pertencimento ao grupo prossional, em detrimento
a imagens mais individuais, pessoais, das professoras retratadas. Ademais,
pela falta de closes das professoras, ao contrário do que poderíamos supor pela
fala da organizadora do livro fotorreportagem, veiculada pela reportagem
ao Jornal da Unicamp em 2006, ca claro que houve, sim, escolhas quanto
aos enquadramentos usados para a produção das fotograas.
Mas, se pouco valor se deu à individualidade destas professoras ao
retratá-las, já que estão quase sempre junto a seus pares, serviria este livro
para análises sobre a imagem tida pela professora sobre ela mesma? Seria este
um material digno de análise perante o conceito de autorreconhecimento?
Por que a maioria ainda guarda seus livros?
As fotograas intervêm em nossas memórias. Aprendemos a ler as
fotograas e, a partir delas, memorizá-las ou esquecer um fato/pessoa.
Nossas identidades, individuais e coletivas, não são geradas apenas por
nossos retratos, mas contam com sua participação efetiva – o que talvez
Tomamos como denição para close quando a gura está enquadrada do peito para cima; já o meio-plano se
refere às imagens que enquadram a gura da cintura para cima.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
170 |
justique o fato de fotografarmos cada vez mais, como nos faz pensar
Calvino (1992):
O passo entre a realidade que é fotografada na medida em que nos
parece bonita e a realidade que nos parece bonita na medida em
que foi fotografada é curtíssimo. “[...] E já está no terreno de quem
pensa que tudo o que não é fotografado é perdido, que é como se
não tivesse existido, e que para viver de verdade é preciso fotografar
o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso
ou viver uma vida de um modo o mais fotografável possível, ou
então considerar fotografável todos os momentos da própria
vida. O primeiro caminho leva à estupidez, o segundo à loucura.
(CALVINO, 1992, p. 54).
Precisamos ter em mente, enm, que existe um movimento
de identicação na fotograa que ultrapassa a simples percepção.
Quando somos nós os retratados, essa identicação assume o caráter de
autovalorização por nos reconhecermos em um retrato – fato que nos faz
hoje, na era digital, apagar muitas das imagens que não nos retratam com
a perfeição narcísica que gostaríamos.
Ao relembrar o momento em que o livro foi distribuído aos
participantes do Teia do Saber, relembramos também o entusiasmo com que
aquelas mulheres se referiam às suas fotos, satisfeitas por se reconhecerem,
identicarem-se. Satisfeitas por terem sido retratadas e serem notadas, não
só como pessoas, mas, sobretudo, como membros de um grupo que elas já
assumiram: o de professoras.
As fotograas não são neutras, mas também não são deturpações
de um olhar errante e único. Como toda imagem, são mediadoras de
interpretações da realidade produzidas em um tempo e espaço denidos
e acordadas entre seus produtores e leitores. Apresentam, segundo Souza
(2004), concepções de homem, de mundo e de sociedade incorporadas
não apenas pelo fotojornalista por elas responsável, mas também pelos
sujeitos que as disseminam e, quiçá, pelos que as leem.
O fotógrafo-autor torna-se responsável pelas fotos que faz e pelos
pontos de vista que estas possam sugerir. Mas é igualmente verdadeiro
Imagem, Informação e Memória
| 171
que um órgão de comunicação se rege por normas, convenções e linhas
editoriais suscetíveis a muitos interesses. Portanto, não se pode interpretar
a fotograa jornalística apenas pela expressão individual do fotojornalista.
(SOUZA, 2004, p. 13).
Portanto, a imagem produzida sobre a professora em formação
parece, dentre outros sentidos possíveis, conformar um dos modos de
ver e compreender sua gura e seu papel perante as práticas escolares.
Abnegadas, porém compenetradas e sorridentes: como veremos, este
parece ser o sentido hegemônico das fotograas que retratam as professoras
paulistas nesta obra e que corrobora com um dos sentidos trazidos pelos
textos anteriormente aqui analisados.
Retratadas em sua maioria sorrindo ou concentradas em suas tarefas
durante aulas do Teia do Saber, as professoras fotografadas aparecem
como dóceis e dedicadas ao desempenharem seus papéis de prossionais
em formação. Por leituras assim, as fotograas de professoras são capazes
de nos apresentar seu assujeitamento, ou seja, sua valorização como
pertencente à sua classe prossional, em detrimento de sua imagem mais
pessoal, mais singular.
Além disso, conjugando as análises das fotograas com os textos
que as acompanham, podemos entender que não só os responsáveis pela
feitura deste livro mas, sobretudo, pelo oferecimento do Teia do Saber
enquanto curso de formação continuada, estão trabalhando em acordo
com uma política educacional que enaltece a professora como mediadora
de melhorias educativas e, consequentemente, socioeconômicas e culturais,
mas que desconsidera as muitas vezes sofríveis condições de trabalho que
estas mulheres possuem.
Articulada a esta política educacional, a Universidade Pública –
responsável pela publicação da obra estudada e também encarregada de
conceber e executar os projetos de formação continuada – parece trabalhar
hoje não mais como questionadora, mas em consonância com o Estado,
como apontado por Mortatti (2010), o que ajuda a apregoar esta imagem
da professora que lhe é preferível e a enaltecer o caráter educativo das
representações que veicula.
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Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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[...] a universidade pública, que nos anos de ditadura militar esteve
fortemente empenhada na denúncia dos efeitos sociais desastrosos
de políticas autoritárias em educação, passou a ser chamada a
participar do processo de construção da nova ordem social e
política, aceitando, porém, no cumprimento de seu compromisso
social, submeter a processo regulatório a atuação de sujeitos,
funcionários públicos na universidade, que são responsáveis
pela produção (individual-institucional) de conhecimento, do
qual dispõem como um bem privado, apreendido e construído
com nanciamento público e que, na condição de assessores ou
consultores de órgãos públicos, tornam-se responsáveis também
por sua divulgação, aplicação e avaliação, por meio da participação
direta na formulação, implementação e avaliação de políticas
públicas. Vem-se caracterizando, assim, a tendência a se congurar
um quase terceiro setor ou um quase mercado, constitutivos de
uma zona fronteiriça em que se dá a atuação desses sujeitos privados
de políticas públicas. (MORTATTI, 2010, p. 336).
Pela leitura das imagens em conjugação a dos textos, o que parece
importar não é a vida pessoal e individual da pessoa/mulher que,
prossionalmente, escolheu por seguir a docência. O importante é que
ela encare o magistério como um ideal, encontrando a felicidade em ser
responsável pela educação de nossos alunos – o já conhecido futuro da
Nação!
Imagem, Informação e Memória
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Figura 1 – Professora, a “Salvadora da Nação
Foto: Antonio Scarpinetti (2003).
Não querendo incrementar ainda mais esta leitura da imagem da
professora “vocacionada” por sua repetição, apenas apontamos concordar
com Costa, Silveira e Sommer (2003) quando dizem que:
A representação da docência como ‘vocação’ já foi largamente
utilizada, afetando as exigências que são feitas às mulheres – o
grande contingente supostamente vocacionado que se dedica ao
ensino –, e não é recomendável que continuemos a incrementá-la
nos meios educacionais. A manipulação da retórica de professoras
como ‘eleitas’, ‘escolhidas’, agentes perfeitas em um trabalho
marcado pela “doação”, já causou demasiados danos às docentes e
à educação escolar. Precisamos agora é de estratégias que valorizem
as características que as mulheres incorporam ao ensino por sua
repercussão positiva no trabalho com as/os estudantes e não pelo
que elas signicam como predisposição à exploração e ao controle.
(COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 236).
A passagem do Teia do Saber pela região reforçou suas convicções
sobre a busca do novo. Maria José não tem saudade nenhuma (sic)
das fórmulas impostas pelo andar de cima do ensino – sucessivos
governos que faziam do livro didático uma cartilha que devia ser
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
174 |
seguida à risca por anos. Cursos de atualização e liberdade de ação
eram artigos de luxo, lembra a professora, para quem os alunos das
décadas de [19]70 e [19]80 eram pouco questionadores.
Maria José sabe que os tempos são outros. Os estudantes estão
cada vez mais exigentes e bem-informados. Por isso, não deixou
escapar a oportunidade de colocar na bagagem de sua longa
trajetória os conhecimentos adquiridos na atualização. Os tempos
de cavalo caram para trás. Mas a vontade de dar uma ‘aula
bonita’ foi mantida
10
.
Mesmo tendo tanta bagagem, Dona Zezé certamente escolheu,
fazendo uso de sua salientada liberdade, o que colocar, dentre tantos
aprendizados obtidos através não só a partir do Teia do Saber como de
toda sua jornada prossional, dentro da pasta preta com o emblema da
Unicamp que carrega, pasta esta cada dia mais pesada...
Cansaço. Este mesmo que sinto é o que, imagino, Dona Zezé deve,
no íntimo, sentir: não por andar a cavalo, percorrer trilhas a pé, recorrer
a charretes para chegar às escolas; mas talvez por ter tido dois lhos e não
ter podido vê-los crescer por falta de tempo para os afazeres domésticos;
ou talvez também por fazer as vezes de médica, farmacêutica, conselheira,
para além das tarefas docentes; tudo em nome das aulas bonitas que pode
ministrar a partir dos aprendizados constantes e da liberdade de não mais
ser obrigada a usar cartilhas...
Uma exaustão pelas propostas de formação continuada de professores
embasadas em estereótipos que insistem em se xar, os quais tomam, como
observado por esta pesquisa, a professora como prossional abnegada,
sorridente e feliz, capaz de abrir mão de sua vida pessoal, social e afetiva em
prol da vocação. Prossionais que se predisporiam a estudar aos sábados,
durante todo o dia, depois de uma semana inteira de labuta, mas que ainda
assim se sentiriam gratas pela oportunidade de entrar em contato com uma
grande Universidade e teriam sua autoestima por isso enriquecida.
10
Continuidade do texto extraído do livro Fotorreportagem “Teia do Saber: capacitação de professores da rede
pública”, p. 145.
Imagem, Informação e Memória
| 175
Propostas de formação continuada que assim concebem os docentes
são formas de controle, demarcações identitárias que reforçam, conformam
e fazem persistir um olhar errante e único que, de tão repetido, pode passar
desapercebido por debaixo de uma suposta neutralidade da academia, do
Estado e dos grupos editoriais responsáveis por sua disseminação.
Há que se lembrar que, como já dissemos, este discurso que enaltece a
professora como docente e estudante batalhadora, responsável pela educação
e superadora de obstáculos, acaba por evidenciar tanto a desqualicação da
educação pública básica em nosso país quanto a fragilidade da formação
inicial destas professoras, pois, de outra forma, talvez cursos como o Teia
do Saber não fossem tão importantes e necessários.
Não que a formação continuada de professores seja desnecessária ou
inecaz por denição. É certo que os aprendizados, as trocas, as experiências
e reexões partilhadas entre professores-regentes e professores-cursistas
possibilitariam o enriquecimento de todos.
Acreditamos, sim, na formação continuada de professores, mas de
uma forma que não implique na forma(ta)ção do outro, que não embarreire
possíveis aberturas às singularidades na formação. Ao contrário, acreditamos
num processo de formação que, antes de mais nada, envolva o contato e a
escuta direta do educando para o planejamento das ações didáticas – e não
seu desenvolvimento a partir de indicadores de desempenho e orientações
curriculares padrão. Acreditamos em uma formação que parta do cursista,
de seu ambiente, de seus desejos e necessidades, sem o limitar a ser um
meeiro”, agente multiplicador e depositário de informações e novidades
e serem repassadas aos estudantes da educação básica. Acreditamos numa
formação que seja antes um espaço vazio, ou seja, um espaço e tempo não
recheados de conselhos metodológicos, mas um espaço e tempo de olhar
para si mesmo, para o se (re)pensar como professor e como pessoa, num
itinerário plural e criativo, nunca ndável.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
176 |
referênCiAs
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http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje. Acesso em: 19 nov. 2018.
| 177
D  
  I 
E S
Ms. Neiva Pavezi
1
Ms. Cristina Strohschoen dos Santos
2
A fotogrAfiA Como doCumento ArquivístiCo
A fotograa, em sua natureza intrínseca, é informação capturada
por meio da luz e que pode estar registrada em diferentes suportes. O
químico Sir Humphrey Davy, em 1802, publicou uma descrição do êxito
de omas Wedgewood na impressão de silhuetas de folhas e vegetais
sobre couro, porém sem realizar a sua xação. Foram os franceses Joseph
Nicéphore Niépce e Louis Jacques Mandé Daguerre que solucionam o
problema, com a utilização de uma chapa de metal como matriz sensível
à luz. Em 1833, o francês radicado no Brasil Hercules Florence realiza sua
primeira experiência fotográca. Porém, levado apenas pela curiosidade,
sem conseguir xar a imagem e sem pretensões comerciais ou de reivindicar
a sua autoria, decide não prosseguir suas pesquisas nessa área. Ao mesmo
Mestre em Patrimônio Cultural; professora do Curso de Arquivologia da UEL E-mail: neivapavezi@gmail.
com.
Mestre em Patrimônio Cultural; arquivista da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) E-mail:
crisarquivista@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p177-192
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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tempo, os avanços das pesquisas do francês Hippolyte Bayard e do inglês
William Henry Fox Talbot levam à produção de cópias sobre papel e,
em 1851, Frederick Scott Archer divulga o processo de colódio úmido
que permite obter um negativo de qualidade, mais nítido que o calótipo
e igualmente reprodutível, e tão preciso e detalhado quanto a imagem
do daguerreótipo. O desenvolvimento desses processos deu origem “à
película de rolo” de George Eastman, passando pelas pesadas chapas de
gelatina-bromuro de Burgess, Kennett e Bennett, pela película cortada
de celuloide de Carbutt, pela película de nitrocelulose de Goodwin.
Para resumir, é possível estabelecer que as fotograas possam existir em
bases (suportes) de metal (alumínio, cobre, ferro, outros), papel (sem
revestimento, revestido com sulfato de bário, revestido com plástico,
outros), plástico (acetato de celulose, diacetato de celulose, triacetato de
celulose, poliéster (pet), acrílico, cloreto de polivinil (pvc), entre outros)
e digital. Annateresa Fabris diz que:
[...] o século XIX foi um dos momentos da história das imagens
onde já se identicam as raízes do consumo fotográco [...] se a
litograa representa um ponto culminante na denição de um
novo estatuto da imagem, precedida pelo retrato em miniatura,
pela silhueta, pelo sionotraço – os dois últimos proporcionam
rapidez de execução, preço módico, produção em série –, não se
pode esquecer que também as pesquisas químicas tentam fornecer
soluções capazes de satisfazer o novo consumo icônico. (FABRIS,
1991, p. 21).
A contínua e crescente demanda pela fotograa e os avanços cientícos
e tecnológicos para a produção e difusão da fotograa culminam na atual era
da fotograa digital. Esta nova tecnologia dispensa o tradicional processo
de revelação das imagens capturadas, permite a visualização instantânea e
a manipulação é facilmente realizada com a ajuda de softwares especícos.
A fotograa digital caracteriza-se pela ausência de uma estrutura física da
imagem, tendo consequências em todas as fases da intervenção, das quais
a de conservação se torna a mais evidente. A questão da autenticidade,
acesso e originalidade, entre outros aspectos, torna-se um desao para os
estudos sobre a questão.
Imagem, Informação e Memória
| 179
Se pensarmos a fotograa como documento resultante das funções
e atividades humanas no decorrer da existência de uma pessoa, família
ou instituição, podemos inferir que os grandes acervos de informação e
documentação fotográcos estão reunidos e são preservados por fotógrafos,
famílias, empresas jornalísticas, emissoras de TV, agências de notícias,
instituições de pesquisa e centros de documentação. Este artigo destaca,
deste conjunto, acervos fotográcos de instituições de ensino superior. A
fotograa será aqui tratada na ótica de documento arquivístico institucional,
especicamente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Essa documentação com características tão peculiares quanto ao
suporte e à linguagem utilizados tradicionalmente cou à margem do
tratamento arquivístico. A m de compreender a importância e a forma
como se originou a documentação fotográca na UFSM, passaremos ao
próximo tópico.
A Produção fotográfiCA nA ufsm
A Universidade de Santa Maria (USM) foi criada pela Lei nº 3.834-
C, em 14 de dezembro de 1960, sendo a primeira universidade construída
fora do eixo das capitais brasileiras. A Lei nº 4.759, de 20 de agosto de
1965, denominou e qualicou as universidades federais e a Universidade
de Santa Maria passou a se denominar Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM).
A UFSM é uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES)
constituída como Autarquia Especial vinculada ao Ministério da Educação.
A atual estrutura (2018) estabelece a constituição de dez unidades
universitárias, oito pró-reitorias, oito órgãos executivos e doze órgãos
suplementares centrais. Atualmente, o acervo arquivístico da Universidade
é custodiado e gerido pelo Departamento de Arquivo Geral (DAG).
A estrutura administrativa da Universidade, logo na sua criação,
contava com o setor de Serviço Fotográco, que, juntamente com o
serviço de Rádio, da Imprensa Universitária e da Editora da Universidade,
formavam o Departamento de Divulgação. Pavezi (2010. p. 118- 119)
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
180 |
realizou uma pesquisa para identicar as rotinas e atividades a m de
denir as funções desempenhadas por esse órgão.
[...] a criação do Departamento tinha por objetivo promover
a universidade e também proporcionar campo de estágio para
os alunos. O período de 1960 a 1973 registrou um crescimento
acelerado da UFSM e constantemente o Reitor solicitava que fosse
fotografado [...] passo a passo tudo que estava sendo construído
no campus. [...] A rotina básica consistia na solicitação do serviço
de fotograa, vericação do fotógrafo disponível, comunicação
ao fotógrafo mediante ordem de serviço, captura e revelação da
imagem. O fotógrafo processava o negativo, fazia várias cópias
em papel, entregava-as no gabinete para despachar e guardava os
negativos em envelopes, em uma gaveta. Os principais eventos
que se solicitava fotografar eram [...] as aulas práticas, as atividades
didáticas (em sala de aula, nos laboratórios, nas aulas práticas de
educação física, engenharia, odontologia, medicina e veterinária),
visitas de políticos locais, estaduais e nacionais (Nelson Marchesan,
Ulysses Guimarães, Presidentes João Figueiredo e Castelo Branco),
visitas de personalidades nacionais e internacionais, dirigentes de
outras instituições, autoridades religiosas (Papa João Paulo II),
visitas de comissões técnicas, assinaturas de convênios, formaturas,
aulas inaugurais, defesas de tese, apresentação de trabalhos, eventos
do gabinete do reitor, e, dentre outras ainda, as obras, prédios e
instalações do campus, principalmente laboratórios. (PAVEZI,
2010, p. 118-119).
A respeito dos procedimentos de distribuição, de acordo com a
notícia que se pretendia divulgar,
[...] as cópias em papel eram encaminhadas aos jornais da cidade
na época: A Razão e O Expresso. Essas cópias permaneciam nesses
locais e não eram devolvidas. As Fotograas também ilustravam
as notícias divulgadas internamente, no Jornal Quero-Quero e
na Revista Quero - Quero, que eram distribuídos internamente
e também para os visitantes e comunidade externa. (PAVEZI,
2010, p. 119).
Imagem, Informação e Memória
| 181
Uma das atribuições do Serviço Fotográco era a confecção de
material didático, principalmente para os cursos da área de saúde humana
e animal. A produção de slides era prática constante e existia um servidor
designado e uma sala especíca para esse m.
Em 1987 houve a primeira iniciativa para a organização do acervo de
negativos que estava acumulado na sala do Serviço Fotográco, situado no
quarto andar do prédio da Administração Central, no campus da UFSM.
O setor de Serviço Fotográco foi extinto e o acervo fotográco
produzido foi recolhido ao Departamento de Arquivo Geral em 1994.
O acervo constitui-se de registros fotográcos das atividades de ensino,
pesquisa e extensão, bem como as atividades administrativas da UFSM –
85.000 imagens em negativos exíveis (de pequeno e médio formato, em
acetato, poli e monocromáticos), diapositivos e mais de 3.000 imagens
positivas em papel (de diferentes dimensões, poli e monocromáticas).
Segundo os relatórios de atividades, a primeira ação do DAG foi elaborar
um banco de dados para acesso e pesquisa dos mais de 8.800 registros
de eventos arquivados. Esse banco de dados servia para o atendimento
aos pesquisadores. Dezesseis anos após esse recolhimento foi elaborado
um projeto de extensão (com recursos do PROEXT 2010) visando à
digitalização, descrição e difusão deste conjunto documental utilizando
a ferramenta ICA-AtoM. Dessa forma, o DAG cumpre com seu papel
de custodiador e facilitador do acesso a seus documentos enquanto
promove iniciativas visando à preservação desse acervo original e dos seus
representantes digitais (SANTOS, 2016, p. 5)
O advento da fotograa digital e a atualização da estrutura
administrativa com a extinção do cargo de fotógrafo e dos laboratórios
de processamento técnico, foram fatores que contribuíram para que a
produção documental de negativos exíveis fosse diminuindo a cada ano
até cessar, denitivamente, em 2002. A função continuou a ser exercida
por servidores de diferentes cargos, que tinham por missão ilustrar as
reportagens e notícias produzidas pela e na UFSM. Atualmente o órgão
que gerencia essa atividade é a Coordenadoria de Comunicação Social,
especicamente o Núcleo de Agência de Notícias.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
182 |
Diante desse cenário, onde identicamos a função e as principais
características do acervo em questão, o desao inicial foi realizar a análise
do ponto de vista arquivístico para identicar o código de classicação,
que é a função matricial da Arquivologia. O detalhamento dessa operação
segue no próximo capítulo.
o Código de ClAssifiCAção PArA fotogrAfiAs
Em sua própria natureza, uma reportagem fotográca,
independentemente de conter apenas uma imagem ou a imagem
acompanhada de legenda, possui dois códigos informacionais de linguagem
que fornecem possibilidades múltiplas de construção de sentidos e
signicados junto ao seu público usuário. É importante compreender e
tratar de forma especíca e apropriada a variedade de códigos informacionais
e de linguagem (homogêneos, heterogêneos ou híbridos, interligados e
dialógicos). Esse é o primeiro fator para se pensar os processos de gestão e
organização dos documentos fotográcos.
Na Arquivologia tradicional os documentos audiovisuais foram
conados a prossionais não arquivistas, ou seja, a fotograa não recebe
o tratamento de acordo com os princípios arquivísticos necessários. A
falta do controle pleno dos documentos produzidos pelas instituições,
que envolve a gestão do documento desde sua criação até destinação nal,
tornam-nas suscetíveis a falhas decorrentes dessa má administração dos
arquivos, bem como diculta o acesso à informação, tornam o espaço
físico um amontoado de documentos sem qualquer critério para guarda
ou descarte e geram custos operacionais desnecessários. Uma iniciativa
visando a ajustar essa dissonância é a Resolução nº 41, do Conselho
Nacional de Arquivos (Conarq), de 09 de dezembro de 2014, que dispõe
sobre a inserção dos documentos audiovisuais, iconográcos, sonoros e
musicais em programas de gestão de documentos arquivísticos dos órgãos e
entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos (SINAR), visando
à sua preservação e acesso. Em primeira instância, a produção de fotograas
na UFSM foi considerada uma atividade meio, já que essa prática não
é atividade nalística de uma IFES. As fotograas estão inseridas nesse
Imagem, Informação e Memória
| 183
contexto e devem obedecer ao que está previsto na publicação do Arquivo
Nacional: Classicação, Temporalidade e Destinação de Documentos de
Arquivo Relativos às Atividades-meio da Administração Pública (Conarq,
2001). Ao analisarmos o Código de Classicação do Conarq, encontramos
diculdade para identicar um código que contemple a função de produzir
notícias e imagens para divulgação das práticas de ensino, pesquisa e
extensão executadas no âmbito de atuação da Universidade. Além disso,
não é facultado aos órgãos da administração pública federal a inclusão de
novos códigos. Apesar de parecer ideal, a opção por utilizar a classe 900
– Assuntos diversos (Quadro 1), foi descartada, pois as classes existentes
possuem uma lógica temática que não se aplica satisfatoriamente à realidade
que encontramos, onde se considera as funções e atividades do órgão,
conforme preconizado pelo Conselho Internacional de Arquivos (ICA).
Quadro 1 – Detalhamento da Classe 900 do Código de
Classicação do CONARQ
900 ASSUNTOS DIVERSOS
910 SOLENIDADES. COMEMORAÇÕES. HOMENAGENS
920 CONGRESSOS. CONFERÊNCIAS. SEMINÁRIOS. SIMPÓSIOS.
ENCONTROS. CONVENÇÕES. CICLOS DE PALESTRAS.
MESAS REDONDAS
930 FEIRAS. SALÕES. EXPOSIÇÕES. MOSTRAS. CONCURSOS. FESTAS
940 VISITAS E VISITANTES
Fonte: Conarq, 2001. p. 40.
Assim, após exaustivas considerações a respeito, denimos o
código 012.12 (Quadro 2) para representar a produção de documentos
fotográcos, cujo objetivo é a divulgação das atividades realizadas na e
pela Universidade. Esse código está congurado da seguinte forma na
publicação do Conarq (2001):
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
184 |
Quadro 2 – Subdivisões da Classe 000 do Código de Classicação do
CONARQ.
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Conarq, 2001. p. 22.
Ao estabelecermos o código de classicação 012.12, o próximo
passo foi denir os pontos de acesso - indexadores - da fotograa. Nesse
momento também foi incluído no rol de assuntos os termos constantes na
codicação 910 a 940. Para ilustrar essa ideia, tomamos um conjunto de
fotograas para exemplicar os pontos de acesso (Quadro 3).
Quadro 3 – Exemplo de pontos de acesso para cada fotograa de um
mesmo fato fotografado
Fonte: Elaborado pelas autoras.
*Fotograas da UFSM disponíveis em http://fonte.ufsm.br/
Não seria arquivisticamente correto tomar um conjunto de
fotograas cujas imagens foram capturadas em um único contexto, neste
caso no decorrer da estadia de um visitante, e codicar tematicamente o
conteúdo imagético de cada uma delas, de forma a contemplar as classes
910 a 940. Por outro lado, o código 012.12 ajusta-se bem ao caso se
considerarmos a função e o objetivo primordial de produzir reportagem
Imagem, Informação e Memória
| 185
e fotograas divulgando as atividades da UFSM no contexto das ações
realizadas pelo visitante.
Vencido este desao, deparamo-nos com as próximas funções
arquivísticas: descrição e preservação. Há que se considerar que todo o
acervo documental arquivístico, qualquer que seja seu suporte ou formato
e os recursos tecnológicos de hardware e software disponíveis, deve seguir o
mesmo padrão descritivo e ser preservado para acesso futuro.
A PlAtAformA de desCrição ArquivístiCA e A PreservAção A longo
PrAzo
A organização eciente de um arquivo fotográco tem como objetivo
a recuperação imediata de imagens fotográcas desejadas. Para isso, são
desenvolvidos sistemas e metodologias para a recuperação de informação
imagética, que terão papel decisivo no contexto da recepção das imagens
pelos usuários. Até hoje, as bases metodológicas para a organização
dos acervos fotográcos não têm sido enfocadas pela Arquivologia, e a
consequência é uma literatura praticamente inexistente nessa área e que
nos desaa a encontrar propostas coerentes entre as normativas existentes
e a diversidade institucional que encontramos.
A descrição é uma função básica no tratamento de arquivos,
e descrever uma fotograa, além de identicar a sua proveniência e
contextualização na instituição, é enumerar as suas características e
qualidades, tanto o conteúdo quanto a sua condição física. Num arquivo
de fotograas, é através da descrição que uma imagem se torna acessível
para os usuários. O tratamento documental de imagens, em particular o
tratamento documental de fotograas, exige uma especicidade própria. A
imagem em muitos casos surge sem informação escrita a ela associada e todo
o trabalho de leitura e identicação é da responsabilidade do arquivista. Na
visão de Manini (2008),
[...] essa leitura é uma reconstrução, que deve ser bem menos pessoal
que a construção de signicado do fotógrafo, e muito cuidadosa,
já que é essa leitura que dará acesso aos documentos. É por meio
da leitura (...) que serão elaborados o resumo e a indexação do
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
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186 |
documento fotográco. (...) o objetivo da leitura do prossional
da informação é tornar o conteúdo do documento acessível, é
socializar este documento; a leitura do usuário é guiada por objetivos
individuais, de pesquisa, ilustração etc. (MANINI, 2008, p. 132).
Entendemos a descrição e a preservação de acervos fotográcos
como funções essenciais na gestão desses acervos, bem como para todo
e qualquer documento em qualquer suporte em que esteja xado. Para
Costa e Caldas (2015),
[...] a gestão de arquivos e registros de ordem pública deve
ser realizada de forma eciente e ecaz para a promoção da
responsabilidade de uma transparência de atos a uma sociedade
que deve crescer em seus princípios históricos e de consciência
cidadã, auxiliando na formação de políticas públicas adequadas à
preservação de materiais que contribuem (sic) para a identidade
cultural das comunidades. (COSTA; CALDAS, 2015, p. 2).
A UFSM possui um sistema de informações próprio, o Sistema de
Informações para o Ensino (SIE), que possui um núcleo comum utilizado
por todos os sistemas de negócio da Universidade. O sistema de gestão
desenvolvido pela Universidade incorpora as funcionalidades de um
SIGAD (Sistema Informatizado de Gestão Arquivística de Documentos) e
interopera com um RDC-Arq (Repositório Arquivístico Digital Conável)
(CONARQ, 2014, 2015). Para realizar o arquivamento permanente dos
documentos arquivísticos da UFSM, foi adotado o Archivematica, um
software livre, código aberto e que está em conformidade com as normas e
requisitos internacionais para um RDC-Aq.
A presunção de autenticidade dos documentos arquivísticos digitais
deve se apoiar na evidência de que eles foram mantidos com uso de
tecnologias e procedimentos administrativos que garantiram a sua identidade
e integridade; ou que, pelo menos, minimizem os riscos de modicações dos
documentos a partir do momento em que foram salvos pela primeira vez e em
todos os acessos subsequentes (CONARQ, 2012). Para que os repositórios
possam preservar a capacidade de reprodução dos objetos digitais é necessária
Imagem, Informação e Memória
| 187
a utilização de metadados associados aos objetos digitais. Metadados, que são
dados estruturados que descrevem e ajudam a compreender os documentos
ao longo do tempo, são considerados fundamentais para identicar o
documento arquivístico de maneira única e mostrar sua relação com outros
documentos. O metadado do documento que será preservado é um dos
requisitos que precisa ser analisado, cuja adequação deve ser feita de acordo
com a missão e as necessidades de cada repositório (CONARQ, 2014).
Um modelo de metadados foi projetado para ser a origem das informações
enviadas pelo sistema de gestão da UFSM para o repositório. No modelo
proposto, os metadados são criados a partir das informações geradas por
eventos no sistema de gestão. Os metadados estão separados (logicamente)
dos dados de gestão e podem ser utilizados de forma independente.
Os metadados dos documentos fotográcos digitais podem
utilizar os padrões de descrição arquivística do Conselho Internacional
de Arquivos (CIA) General International Standard Archival Description,
ou Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística (ISAD-G),
descrições voltadas especicamente para documentos fotográcos, além de
novas necessidades de descrição que surgem frente aos rápidos avanços
tecnológicos (REZENDE; LOPEZ, 2014). A descrição arquivística das
fotograas na UFSM está sendo realizada no software ICA-AtoM. AtoM é
um acrônimo para “acesso à memória”. Trata-se de um aplicativo de código
aberto baseado na Web para descrição padronizada e acesso a arquivos. É
um ambiente multilíngue e que permite o uso compartilhado por vários
repositórios (instituições). O software traz por padrão as normas ociais do
CIA, tais como ISAD-(G), (International Standard for Describing Institutions
with Archival Holdings (ISDIAH) ou Norma Internacional para Descrição
de Instituições com Acervo Arquivístico), (International Standard Archival
Authority Record for Corporate Bodies, Persons and Families (ISAAR CPF)
ou - Norma Internacional de Registro de Autoridade Arquivística para
Entidades Coletivas, Pessoas e Famílias) e (International Standard for
Describing Functions (ISDF) ou Norma Internacional para Descrição de
Funções), além de suportar ainda outras normas internacionais.
A descrição dos negativos exíveis está sendo realizada no padrão
da norma ISAD-G e uma cópia digital ou representante digital é inserido
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
188 |
como um complemento da descrição. A cópia digital de cada fotograma
inserido no AtoM é produzida conforme as Recomendações para a
Digitalização de Acervos Permanentes, do CONARQ. E essa cópia digital
será armazenada no RDC-Arq da UFSM. Da mesma forma, as imagens
originalmente digitais (fotograas digitais) são inseridas e descritas no
sistema AtoM, porém com a sua conguração de captura, ou seja, serão
preservadas no RDC-Arq as imagens originais digitais.
O grande desao que surgiu na execução dessa função arquivística
foi criar uma metodologia operacional que atenda a todas as imagens
xas, qualquer que seja o seu suporte e suas características físicas. A
preservação dos suportes tradicionais que contém imagens e a preservação
dos metadados dos documentos imagéticos digitais deve ser considerada a
partir de suas especicidades e tecnologias disponíveis.
ConsiderAções finAis
São muitos os desaos encontrados na organização de um arquivo
fotográco de uma instituição de ensino superior. No caso da UFSM
podemos elencar alguns principais, os quais com certeza suscitam outros.
Encontrar um ponto de equilíbrio entre os padrões internacionais
de descrição arquivística, as normas nacionais – Nobrade e o Código de
Classicação das atividades meio (CONARQ) e o código de classicação
das atividades m (SIGA) – e as funcionalidades do software AtoM é um
desao que persiste desde os primeiros estudos sobre este acervo, realizados
durante a pesquisa que subsidiou a dissertação de uma das arquivistas do
Departamento de Arquivo Geral, em 2010.
Conhecer as necessidades do usuário real e potencial é uma
provocação suscitada por estes primeiros estudos realizados. A partir de
2016, com o desenvolvimento de projeto de difusão do acervo fotográco
3
,
o qual intensicou muito a pesquisa, pode-se iniciar o delineamento do
perl do pesquisador.
Projeto Retalhos da Memória de Santa Maria: Difusão e Acessibilidade. Disponível em: http://w3.ufsm.br/
dag/projetoretalhos/. Acesso em: 8 dez. 2018.
Imagem, Informação e Memória
| 189
Conhecer as especicidades da linguagem imagética se revelou ponto
nevrálgico para a descrição arquivística, se entendermos como linguagem
imagética a composição constituída tanto pela comunicação escrita da
notícia, bem como pela fotograa que a acompanha. Considerando que
houve um aumento expressivo de imagens, seja de mapas, desenhos,
mas principalmente de fotograas inseridas na composição dos textos
noticiados pela Universidade, cabe lembrar que tanto a intensidade de
luz como o ângulo de uma fotograa, dentre outros aspectos técnicos,
podem alterar de maneira signicativa o sentido que se quer dar à imagem,
tendo como resultado o interesse ou a indiferença em relação à fotograa e
consequentemente ao fato divulgado.
Preservar em longo prazo a fotograa digital considerando a
obsolescência de hardware e as constantes atualizações e inovações em
softwares para captura e tratamento de imagens é um desao permanente.
Os documentos arquivísticos, neste caso as fotograas nato digitais,
precisam ser conáveis, autênticos, acessíveis e compreensíveis, o que só é
possível por meio da implantação de um programa de gestão arquivística
de documentos, que permitirá a sua preservação.
Consolidar padrões de descrição e metadados é uma meta que
depende dos avanços da pesquisa cientíca na área de Arquivologia, Ciência
da Informação e Documentação e se pressupõe que cases de diversas IFES
irão convergir para esse objeto.
Diante da inexistência de estudos aprofundados envolvendo
vocabulários controlados e sendo a terminologia arquivística referente a
esses instrumentos de organização e representação do conhecimento ainda
incipiente, torna-se este mais um item a ser relacionado nos desaos.
As experiências e as práticas realizadas até o momento nos conduzem
a questões inquietantes, desde a instabilidade teórica no tratamento
arquivístico de imagens até a sua preservação em longo prazo visando a sua
disseminação para reuso. Torna-se evidente a necessidade de intensicar
estudos na área e discutir novas possibilidades e enfoques. Esperamos que
essa iniciativa possa subsidiar a continuidade de estudos e a formação de
uma base metodológica de abordagem arquivística na consolidação do que
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
190 |
preconiza a Resolução 41 do CONARQ, sem, contudo, desconsiderar as
particularidades e especicidades institucionais.
referênCiAs
ARQUIVO NACIONAL. Resolução n. 43, de 4 de setembro de 2015. Altera a redação
da Resolução do CONARQ nº 39, de 29 de abril de 2014, que estabelece diretrizes para
a implementação de repositórios digitais conáveis para a transferência e recolhimento
de documentos arquivísticos digitais para instituições arquivísticas dos órgãos e entidades
integrantes do Sistema Nacional de Arquivos - SINAR. Disponível em: http://conarq.
arquivonacional.gov.br/resolucoes-do-conarq/335-resolucao-n-43-de-04-de-setembro-
de-2015.html. Acesso em: 8 dez. 2018.
ARQUIVO NACIONAL. Resolução n. 41, de 9 de dezembro de 2014. Dispõe sobre a
inserção dos documentos audiovisuais, iconográcos, sonoros e musicais em programas
de gestão de documentos arquivísticos dos órgãos e entidades integrantes do Sistema
Nacional de Arquivos SINAR, visando a sua preservação e acesso. Disponível em: http://
conarq.arquivonacional.gov.br/resolucoes- do-conarq/283-resolucao-n-41,-de-9-de-
dezembro-de-2014.html. Acesso em: 8 dez. 2018.
ARQUIVO NACIONAL. Resolução n. 39, de 29 de abril de 2014. Estabelece
diretrizes para a implementação de repositórios arquivísticos digitais conáveis para o
arquivamento e manutenção de documentos arquivísticos digitais em suas fases corrente,
intermediária e permanente, dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de
Arquivos - SINAR. Disponível em: http://conarq.arquivonacional.gov.br/resolucoes-do-
conarq/281-resolucao-n-39-de-29-de-abril-de-2014.html. Acesso em: 8 dez. 2018.
ARQUIVO NACIONAL. Resolução n. 37, de 19 de dezembro de 2012. Aprova as
Diretrizes para a Presunção de Autenticidade de Documentos Arquivísticos Digitais.
Disponível em: http://conarq.arquivonacional.gov.br/resolucoes-do-conarq/279-
resolucao-n-37,-de-19-de-dezembro-de-2012.html. Acesso em: 8 dez. 2018.
ARQUIVO NACIONAL. Classicação, temporalidade e destinação de documentos
de arquivo; relativos às atividades- meio da administração pública. Arquivo Nacional.
Rio de Janeiro, 2001. Disponível em: http://conarq.arquivonacional.gov.br/images/
publicacoes_textos/Codigo_de_classicacao.pdf. Acesso em: 8 dez. 2018.
COSTA, M. B.; CALDAS, R. F. Gestão de arquivos audiovisuais no enfoque do
patrimônio cultural: o caso da TV Manchete. In: ENCONTRO DE NACIONAL DE
HISTÓRIA DA MÍDIA, 10., 2015, Porto Alegre. Anais Digitais […] Porto Alegre:
UFRGS, 2015. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/
encontros-nacionais/10o-encontro-2015/gt-historia-da-midia-audiovisual-e-visual/
gestao-de-arquivos-audiovisuais-no-enfoque-do-patrimonio-cultural-o-caso-da-tv-
manchete/view. Acesso em: 8 dez. 2018.
Imagem, Informação e Memória
| 191
REZENDE, D.; LOPEZ, A.. Descrição arquivística de documentos fotográcos: projeto
de implantação do software DigifotoWeb no Arquivo Central da UnB. Imagem em
unidades informacionais: textos completos / Grupo de Pesquisa Acervos Fotográcos
- 2015. In: ENCUENTRO DE LAS CIENCIAS HUMANAS Y TECNOLÓGICAS
PARA LA INTEGRACIÓN DE LA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE, 3., 2015,
Goiânia. Anais […] Goiânia: UFG, 2015. p. 94-109.
FABRIS, A. A invenção da fotograa: repercussões sociais. In: FABRIS, A. (org.).
Fotograa: usos e funções no século XIX. São Paulo: EDUSP, 1991. p. 11-37.
MANINI, M. P. A fotograa como registro e como documento de arquivo. In: BARTALO,
L.; MORENO, N. A. (org.). Gestão em Arquivologia: abordagens múltiplas. Londrina:
Editora da UEL, 2008. v. 1, p. 102-161.
PAVEZI, N. Arquivo fotográco: uma faceta do patrimônio cultural da UFSM. 2010.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria. 2010.
SANTOS, C. S. Projeto fotograa e gestão: o arquivo digital da Agência de Notícias da
UFSM. Santa Maria: UFSM, 2016.
192 |
| 193
C  
  
:  
  
1
Prof.ª DrTelma Campanha de Carvalho Madio
2
introdução
Esse trabalho ressalta a compreensão e a reexão acerca da fotograa
(analógica, onde há produção de negativo e positivo) como documento,
produzida com intencionalidade e função denidas, destacando-se que
não é possível identicar e compreender somente os elementos visuais
presentes, mas contextos, objetivos/funções, procedimentos e técnicas
necessárias para o resultado da imagem.
Podemos analisar registros e perceber o modo pelo qual as mais
variadas formas de organização, classicação e guarda de imagens
interferem e podem alterar o motivo que determinou sua produção
original. Desta maneira, um assunto retratado em determinado momento
 Excerto de MADIO (2016).
Doutora Ciências da Comunicação Professora da UNESP - Campus Marília. E-mail: telmaccarvalho@marilia.
unesp.br
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p193-220
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
194 |
como o principal da imagem pode se tornar secundário posteriormente ou,
até mesmo, perder sua referência iconográca, se esta informação não for
corretamente preservada.
Com essa preocupação, buscou-se evidenciar os aspectos diferenciais
da fotograa como documento; discutir como se deu sua inserção nos
Museus, Bibliotecas e Arquivos a m de inferir como essas assimilações
determinaram a compreensão e tratamento desse documento. Atualmente
passamos pelas inovações digitais em todas as áreas e temos ainda a
fotograa como um documento especial, com tratamento diferenciado
e controverso, cando ausentes diversas informações relevantes para a
compreensão do documento fotográco integralmente, ou seja, em sua
totalidade interna e externa.
Levantou-se autores referenciais de várias áreas, cotejando informações
relativas à introdução da fotograa nas unidades informacionais e como
esses documentos eram compreendidos e tratados em consonância com
as políticas e intencionalidades institucionais desses períodos. Também se
pesquisou referências sobre o desenvolvimento e uso da fotograa naquele
momento para compreensão da valoração desse documento.
Percebeu-se que o desconhecimento ou descaso das unidades
informacionais em manter e analisar as fotograas como um processo
amplo, com contextos originais de produção identicados e com formação
de séries fotográcas, determinou o tratamento individual e descritivo das
imagens, relegando ou negligenciando sua principal condição que é a de
documento; documento produzido, guardado e mantido em um contexto
histórico, com objetivos e nalidades especícas. A fotograa trabalhada
com esse caráter se torna um registro e uma maneira de expressar uma
ação humana carregada de intencionalidade e não somente um artefato
tridimensional, expressão pura e simples, produzida aleatoriamente por
sentimentalismo ou acaso.
Imagem, Informação e Memória
| 195
fotogrAfiA
Poderíamos elencar diversos usos e funções que a fotograa teve
neste curto espaço de tempo, de sua descoberta ocial em 1839 (França)
até nossos dias, transformando-se em um precioso registro de época,
maneiras, costumes e olhares, ao mesmo tempo em que o próprio objeto
e sua produção se tornaram elementos históricos, peculiares a uma
determinada época. Por essas características, preconiza-se ostensivamente
sua preservação, muitas vezes precipitada e desnecessariamente.
A fotograa é um processo de xar uma imagem em uma emulsão
fotossensível. No processo fotográco, basicamente, a luz incide e age
na superfície emulsionada, alterando quimicamente suas propriedades.
Para tanto, utilizamos uma câmera fechada, com uma pequena abertura
que permite a passagem da luz, que reage com os químicos do material
fotossensível, transformando-se em uma imagem latente. Com o processo
de revelação e ampliação é que conseguimos tornar a imagem visível:
produção do negativo e da fotograa ampliada.
Este processo já vinha sendo pesquisado e aperfeiçoado há
muito tempo e se salienta que seu desenvolvimento não foi linear nem
unipessoal. Pelo contrário, seu avanço foi escalonado de descobertas
pessoais, pesquisas e ensaios unidirecionados, muitas vezes entrecruzados
e simultâneos, mas, os autores Newhall (2006), Frizot (1998), Sougez
(2001), Kossoy (2001), e outros, apontam os experimentos de Nicéphore
Niépce (França 1765-1833) como os primeiros resultados positivos para
a efetivação do processo fotográco.
Assim, percebemos que a fotograa se torna um dispositivo técnico
3
no sentido de propiciar um tipo de produção de imagem peculiar. Não mais
pela mediação do lápis ou do pincel nem pelo olhar e pela representação
do artista, mas pela mediação de uma máquina, de uma tecnologia que se
propõe a fazer algo mais que a representação: a reprodução da realidade. É
desta forma que Rouillé apresenta o fazer da fotograa:
Segundo o conceito utilizado por Vilém Flusser (1998, p. 33): Trata-se da imagem produzida por aparelhos.
Os aparelhos são produtos da técnica, que, por sua vez, é um texto cientíco aplicado.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
196 |
Com a fotograa, a produção das imagens obedece a novos
protocolos. Enquanto o desenhista ou o pintor depositam
manualmente uma matéria bruta e inerte (os pigmentos) sobre um
suporte, sem que ocorra nenhuma (sic) reação química, enquanto
suas imagens surgem no decorrer de seu processo de fabricação, com
a fotograa acontece de maneira diferente. A imagem fotográca
surge de uma só vez, e ao nal de uma série de operações químicas,
no decorrer das quais as propriedades interferem com os dos sais
de prata. A imagem latente (invisível) torna-se visível somente
depois de ter sido tratada quimicamente, segundo um conjunto de
procedimentos precisos, que necessitam de um espaço adaptado: o
laboratório. (ROUILLÉ, 2009, p. 35).
A aparente facilidade em captar o visível que a fotograa apresenta
favorece as mais diferentes aplicabilidades e usos – um simples retrato,
paisagens, cenas urbanas –, passando assim a fazer parte de todos os
momentos e segmentos sociais e, mais ainda, a representar um grande
diferencial econômico e industrial capaz de alcançar um grande público,
inuenciando olhares e modos de viver (FREUND, 1995).
Toda essa expansão montou e reforçou, ao longo dos anos, o
suposto caráter de objetividade
4
. Essa suposta objetividade se dava pelo seu
constante uso como forma comprobatória dos acontecimentos, dos lugares
e das personalidades, seja por meio de livros, jornais, revistas, documentos
pessoais, identicações policiais ou por outros meios, responsáveis por
mostrar a imagem como cópia el do momento congelado e eternizado
pelas lentes do fotógrafo. Mais que reter o passado numa imagem, a
fotograa foi instituída como um ícone autêntico da realidade, capaz de
registrar verdadeiramente o seu referencial.
Essa objetividade era buscada em um tipo de representação o mais el possível da realidade, sedimentada
pela adoção da perspectiva linear. Tal perspectiva foi desenvolvida no Renascimento, estabelecendo um sistema
geométrico objetivo para projetar todo o espaço tridimensional no plano bidimensional, com a convergência
de todas as linhas de projeção para um único ponto xo. Essa forma de representação da realidade se tornou
a forma natural e todos os artistas ocidentais passaram a utilizar suas normas e regras na tentativa de copiar a
natureza o mais elmente possível. Esta proposta que vinha se desenvolvendo de acordo com os valores artístico-
sociais das sociedades ocidentais considerava que a obra gurativa deveria ser a representação mais el possível
das coisas existentes no universo e, principalmente, sem a intermediação humana (FRANCASTEL, 1993).
Imagem, Informação e Memória
| 197
Porém, a maior legitimação do caráter de realidade da fotograa
foi a aceitação e divulgação nos meios cientícos da época, tornando-se
não apenas uma descoberta cientíca em ótica e química, mas também
como um método de observação e conhecimento do mundo. Rouillé (grifo
nosso) ressalta esse uso, apontando que:
A fotograa – que reproduz mais rapidamente, mais
economicamente, mais elmente do que o desenho, que registra
sem omitir nada, que dissimula as imprecisões da mão, que, em
resumo, troca o homem pela máquina – impõe-se imediatamente
como a ferramenta por excelência, aquela que a ciência moderna
necessita. (ROUILLÉ, 2009, p. 109).
É importante ressaltar que, como cópia do real, a fotograa foi
incorporada por diversas instituições que a tomaram como registro para
controle, estudos, catalogação, divulgação das atividades consideradas
relevantes e importantes para a sociedade. Como observa Sontag:
A industrialização da fotograa permitiu sua rápida absorção
pelos meios racionais – ou seja (sic) burocráticos – de gerir a
sociedade. As fotos, não mais imagens de brinquedo, tornaram-
se pedras de toque e conrmações da redutora abordagem da
realidade que é tida por realista. As fotos foram arroladas a serviço
de importantes instituições de controle, em especial a família e a
polícia, como objetos simbólicos e como fontes de informação.
Assim, na catalogação burocrática do mundo, muitos documentos
importantes são válidos a menos que tenham, colada a eles, uma
foto comprobatória do rosto do cidadão. (SONTAG, 2006, p. 32).
Outro fator que corroborou esse caráter foi seu uso na imprensa.
As reproduções de imagens em jornais e revistas eram comuns, mas com
a fotograa atingiu tal simbiose entre texto e imagem, que até hoje é um
recurso indispensável aos meios de comunicação. Dessa forma, a fotograa
tornou-se um meio de comunicação vigoroso, rápido, barato e conável.
Para a imprensa em geral, a fotograa foi se tornando a forma mais eciente
e ágil de transmitir informações e verdades.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
198 |
O desenvolvimento da fotograa impressa revolucionou o uso das
imagens fotográcas, mudando a percepção e a visão das pessoas. Até então,
tínhamos a noção do nosso espaço de vida, ou seja, da rua, do bairro, da
cidade. Com a publicação das imagens impressas, o mundo, ou melhor,
um olhar sobre o mundo se torna acessível a todos. Retomando Freund:
A introdução da fotograa na imprensa é um fenômeno de
uma importância capital. Ela muda a visão das massas. [...]
Com a fotograa, abre-se uma janela para o mundo. Os rostos
das personagens políticas, os acontecimentos que têm lugar no
próprio país ou fora de fronteiras tornam-se (sic) familiares. Com
o alargamento do olhar o mundo encolhe-se (sic). A palavra escrita
é abstracta, mas a imagem é o reexo concreto do mundo no qual
cada um vive. (FREUND, 1995, p. 107).
A importância da fotograa nos meios de comunicação e o
estabelecimento de maneiras de olhar, perceber e compreender nossa
sociedade fez parte das preocupações de Walter Benjamin. Segundo o autor,
[...] se uma das funções econômicas da fotograa é alimentar
as massas com certos conteúdos que antes ela estava proibida
de consumir – a primavera, personalidades eminentes, países
estrangeiros – através de uma elaboração baseada na moda, uma de
suas funções políticas é a de renovar, de dentro, o mundo como ele é
– em outras palavras, segundo os critérios da moda. (BENJAMIN,
1994, p. 129).
Essa renovação e pretensa cienticidade da fotograa a introduziram
em diversos segmentos, tornando-a um recurso legal e com caráter
probatório, priorizando apenas o seu papel informativo e documental,
relegando e camuando as questões técnicas, autorais, ideológicas e, na
maioria das vezes, os motivos originais de sua produção.
Dessa forma, temos a fotograa imersa e utilizada em diversos
percursos – sociais, econômicos, políticos, culturais, cientícos, médicos –
que assumem por diversos interesses esse tipo de imagem como uma cópia
da realidade; porém, muito mais que a imagem, temos que considerar os
Imagem, Informação e Memória
| 199
circuitos que a produz, circula e guarda, já que são eles que determinaram
seus signicados e seu caráter probatório.
Nas palavras de Tagg (grifo nosso):
Estava aberta a uma ampla variedade de aplicações cientícas e
técnicas e proporcionava uma instrumentação preparada para
uma série de instituições reformadas ou emergentes, de natureza
médica, jurídica e municipal, nas quais as fotograas funcionavam
como um meio de arquivamento e como fonte de evidência.
Entender o papel da fotograa nas práticas documentais
dessas instituições equivale a rever a história de um conjunto
de crenças e enunciados, nada óbvios, sobre a natureza e a
posição da fotograa, e do signicado em geral, ou seja, que
se articularam em uma diversidade mais ampla de técnicas e
procedimentos para extrair e avaliar a ‘verdade’ no discurso.
Tais técnicas evoluíram por sua vez e se tornaram parte de práticas
institucionais essenciais à estratégia governamental dos estados
capitalistas, cuja consolidação exigiu o estabelecimento de um novo
regime de verdade” e um novo ‘regime de sentido’. (TAGG, 2005,
p. 81-82, tradução nossa).
5
Posto que a fotograa, enquanto documento, teve sua validação
a partir de sua inserção em circuitos denidos e estabelecidos pelos
contextos sócio-políticos, priorizou-se situá-la em três instituições clássicas
de estabilidade e permanência na manutenção de documentos, a saber, o
Museu, a Biblioteca e o Arquivo.
No original: “Estaba abierta también a una amplia variedad de aplicaciones cientícas y técnicas y
proporcionaba una instrumentación preparada para una serie de instituciones reformadas o emergentes, de
tipo médico, legal y municipal en las cuales la fotograas funcionaban como medio de archivo y como fuente
de prueba. Comprender el papel de la fotografía en las prácticas documentales de estas instituciones equivale a
repasar la historia de un conjunto de creencias y armaciones, nada evidentes por sí mismas, sobre la naturaleza
y la posición de la fotograa, y del signicado en general, que se articulaban en una diversidad más amplia de
técnicas y procedimientos con el n de extraer y evaluar la “verdad” en el discurso. Tales técnicas evolucionaron
a su vez y pasaron a formar parte de prácticas institucionales esenciales para la estrategia gubernamental de los
Estados capitalistas, cuya consolidación exigia el establecimiento de un nuevo ‘régimen de verdad’ y un nuevo
‘régimen de sentido’.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
200 |
unidAdes informACionAis
Essas instituições foram escolhidas por serem reconhecidamente
instituições de organização e guarda de documentos diversicados e
variados ao longo do tempo
6
. Como sinaliza Ortega,
Durante a Idade Antiga e a Idade Média, museus, arquivos e
bibliotecas constituíam praticamente a mesma entidade, pois
organizavam e armazenavam todos os tipos de documentos. Esta
entidade manteve-se (sic) inalterada até a Idade Moderna quando a
produção dos livros tipográcos, entre outros motivos, levou a que
as bibliotecas passassem a existir separadamente e a adquirir maior
relevância enquanto elemento social. (ORTEGA, 2004, p. 3).
Entender as principais instituições de guarda se torna fundamental
para a compreensão de como se deu a incorporação da fotograa e como isso
é primordial para a inferência dessa assimilação e consequente divulgação
desse documento.
Araújo destaca como se deu a transição das unidades informacionais,
tais como as conhecemos atualmente:
[...] se deu com a revolução francesa e as demais revoluções
burguesas na Europa, que marcam a transição do antigo regime
para a modernidade. Operou-se uma profunda transformação em
todas as dimensões da vida humana (na política, na economia,
no direito) e, dessa forma também os arquivos, as bibliotecas e os
museus foram drasticamente transformados [...]. São formadas
as grandes coleções, operam-se amplos processos de aquisição e
acumulação de acervos, o que reforçou a natureza custodial destas
instituições. (ARAÚJO, 2014, p. 12).
Importante ressaltar as fronteiras entre essas instituições, os documentos
que são trabalhados e a informação disponibilizada: não se caracterizam como
estanques, mas são denidas pelas funções e pelas políticas institucionais.
Sabemos, hoje, o quanto os suportes variaram e os conteúdos informacionais
 Destaca-se que não se pretende análises críticas e/ou teóricas sobre essas instituições, mas apenas reetir sobre
o momento da inserção de fotograas nas unidades informacionais.
Imagem, Informação e Memória
| 201
e documentais se alteraram e expandiram, principalmente com o advento
do digital. Percebe-se que essas instituições são decorrentes e resultantes de
transformações históricas e sociais que determinam suas atividades e funções
na interação com o público, direta ou indireta.
Murguia (grifo nosso) reforça que:
[...] os arquivos, bibliotecas e museus, da forma como chegam
hoje, obedecem a rupturas históricas. Rupturas não unicamente
no sentido de mudanças sociais e econômicas, mas mudanças
numa nova maneira de pensar. Considero que por maneira de
pensar deva ser entendida a vontade de verdade que prevalece ou
age em determinadas épocas, congurando diferentes mecanismos
de validação. (MURGUIA, 2010, p. 15).
Temos, então, três instituições determinantes para a compreensão da
sociedade ocidental, assim como a legitimação/formação de nossa história.
O patrimônio
7
depositado e arquivado nessas organizações determina
e dene em última instância os arcabouços constitutivos da formação
político-social. Suas transformações se deram no bojo das mudanças
históricas, assumindo novas concepções e ação junto ao público. Assim, a
autora Marques coloca a situação:
O século XIX foi o século da institucionalização pública dos
museus, bibliotecas e arquivos, determinada pela emergência de
um dos atributos do Estado-nação: a função administrativa e gestão
cultural. Assistiu-se então à implementação de grandes museus
um pouco por todo o mundo, que abarcavam uma pluralidade de
temáticas que iam desde a história natural à arte e cultura, assim
como o incremento de grandes bibliotecas públicas especializadas e
arquivos históricos e administrativos. (MARQUES, 2010, p. 19).
Patrimônio aqui entendido segundo denição da Unesco, como um conjunto de valores tangíveis e intangíveis,
e expressões que pessoas selecionam e identicam, independentemente do direito de propriedade, como reexo
e expressão de suas identidades, crenças, conhecimento e tradições, e ambientes que demandem proteção e
melhoramento pelas gerações contemporâneas e transmissão para as gerações futuras. O termo patrimônio
também se refere às denições de patrimônio cultural e natural, tangível e intangível, bens culturais e objetos
culturais, conforme incluídos nas Convenções de Cultura da UNESCO.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
202 |
É importante ter claro que a fotograa pode estar no Arquivo,
ou no Museu e, em outras ocasiões, na Biblioteca. Este fato não ocor-
re apenas por seu caráter de reprodutibilidade técnica, mas por sua
produção e/ou incorporação ao acervo da instituição, denindo seu
tratamento e recuperação.
Desde o seu surgimento, a fotograa, por ter essa relevância e
diversidade em seu uso, teve uma produção, acumulação e preservação
por diferentes instituições públicas, privadas e, grande parte, por pessoas
físicas, fotógrafos prossionais ou amadores.
O próprio anúncio da descoberta da fotograa pelo governo francês,
municiando-a de um caráter ocial, contribuiu para sua institucionalização
pelos organismos legais do novo Estado que se formava. Sua cienticidade
e neutralidade, além da suposta cópia da realidade, tornaram-na um
instrumento adequado para a tarefa de controle, prova e registro. O autor
Tagg destaca que a fotograa estava intrinsecamente ligada a essas novas
instituições e às novas práticas de observação, sendo fundamental e essencial
seu uso para a normalização dos preceitos recentes das sociedades industriais:
[...] para o desenvolvimento de uma rede de instituições
disciplinares – polícia, prisões, asilos, hospitais, departamentos de
saúde pública.
Escolas e até o próprio sistema de manufatura moderno. As novas
técnicas de vigilância e arquivamento contidas nessas instituições
exerceram inuência direta sobre o corpo social. (TAGG, 2005, p.
12, tradução nossa).
8
Os Museus foram uma das primeiras instituições beneciadas,
segundo o entendimento de cópia da fotograa, pois permitiu a identicação
visual das obras de arte e de todos os tipos de acervos, arrolando-os em um
grande catálogo de controle e registro.
8
No original: “[...] para el desarrollo de uma red de instituciones disciplinarias – polícia, prisiones, manicomios,
hospitales, departamentos de salud pública. Escuelas e incluso el próprio sistema fabril moderno.-. Las nuevas
técnicas de vigilância y archivo contenidas em essas instituiciones ejercían de otro modo una inuencia directa
sobre el cuerpo social.
Imagem, Informação e Memória
| 203
Durante séculos, a instituição Museu foi construída com um espírito
de posse e de ostentação, de amostra e sustentação do poder onde a primazia
se dava pelo colecionismo de objetos únicos, raros, artísticos e, portanto,
irreproduzíveis. Desse papel elitista, de baixa visibilidade e acesso, o Museu
transforma-se em uma peça-chave para divulgação da cultura e saber das
novas nações e governos, cujo objetivo era atingir o grande público e criar
uma identidade Nacional, mesmo que vários objetos não pertencessem
à cultura do local. As prioridades deixaram de ser apenas a guarda e a
conservação e se passou a buscar uma maior democratização, divulgação e
pesquisa dos objetos. Os acervos de Museus se transformam em um rico
e relevante material para estudos e passaram a ter uma função pedagógica
para a ciência e no entendimento das transformações das sociedades.
Em um primeiro momento, a fotograa foi muito utilizada pelo
Museu para auxiliar o serviço de conservação e restauro das obras, pois
se ampliava aspectos e locais onde era preciso intervenção. Sougez (2001)
aponta que em 1882 foi criado o primeiro laboratório de fotograa cientíca
em um Museu. Foi o Staatlischmuseum de Berlim. Ainda, segundo a
autora, “Na actualidade, a maioria dos grandes museus conta com um
laboratório dedicado à conservação e restauro das obras, utilizando para
isso técnicas em boa parte fotográcas.” (SOUGEZ, 2001, p. 204).
A fotograa foi utilizada e incorporada como complemento
aos estudos de diversos Museus, como os antropológicos, policiais, de
arquitetura, de história, pois:
Fotograas também podem fornecer contexto para um objeto. Em
museus cientícos, fotograas de campo, imagens de escavações
arqueológicas mostrando objetos in situ e registros fotográcos de
encontros antropológicos fornecem documentação valiosa de objetos
e pode ser considerada parte do próprio acesso a eles. Os museus
históricos, as condições de sua estrutura original ou o local, ou para
mostrar como foi usado. Coleções de arte podem ser mostradas dentro
do contexto da casa de um colecionador e em instalações anteriores.
Obras de arte podem ser documentadas durante o processo de
criação. (MUSEUM ARCHIVES, 2004, p. 124, tradução nossa).
9
No original: “Photographs can also provide context for an object. In scientic museums, eld photographs,
images of archaeological excavations showing objects in situ, and photographic records of anthropological
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
204 |
No controle e identicação das peças de Museu, a fotograa teve
um papel preponderante, pois permitia o registro desses objetos de uma
maneira mecânica e muito mais precisa que os desenhistas. Por isso esse
tipo de acervo nos Museus é rico e variado. Além disso, com o passar do
tempo, outros estudos e pesquisas foram incorporados e realizados sobre
esse acervo, como, por exemplo, história da fotograa, linguagens de
época, como se faziam os registros etc.
Nesse sentido, a fotograa tem um caráter auxiliar nessa instituição,
seja na catalogação do acervo, na reprodução das obras, objetos e/ou
coleções, nos estudos de arquitetura, das instalações do Museu ou da
cidade em que está localizado. Durante esse período a fotograa não era o
objeto principal do Museu, mas fornecia informações visuais importantes
para complementar os estudos da área de atuação da instituição, fosse qual
fosse, desde estudos relacionados a ciências naturais ou a estudos artísticos.
A preocupação não era com as possibilidades criativas da fotograa, mas
com o caráter de reprodução do real.
Durante muito tempo, as várias tentativas de trabalhar a fotograa
com possibilidades artísticas era um papel das galerias de arte e de alguns
clubes de fotograa amadora. Nas palavras de Dobranszky,
Grande parte desses fotógrafos citados foi exposta em galerias na
cidade de Nova York. A Julien Levy Gallery, de Julien Levy, a Na
American Place, de Stieglitz, e a Modern Photography, de Clarence
White são algumas delas. Mesmo que espaço de arte, as galerias não
possuíam o peso da legitimação institucional. E outros museus que
expunham fotograas em seus espaços relutavam em considerar
o meio uma expressão a altura da pintura ou da arquitetura.
(DOBRANSZKY, 2008, p. 3).
Nesse período, a fotograa foi utilizada para criar um grande
repertório do mundo, onde todas as coisas eram passíveis e possíveis de
registro e serviriam para enriquecer os acervos dos Museus, promovendo
exposições, pesquisas, entretenimento. Era a formação de uma grande
encounters provide valuable documentation of objects and may be considered part of the accession itself. History
Imagem, Informação e Memória
| 205
enciclopédia visual que iria consolidar as referências e a memória de
nossa sociedade.
Os Museus, portanto, já tinham exposto fotograas, mas estas ainda
não haviam sido incorporadas e legitimadas por essas instituições como
obras de arte. Esse quadro só iria se alterar em 1940, quando foi criado o
Departamento de Fotograa do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova
Iorque, Estados Unidos.
A primeira [estratégia] consistiu na institucionalização da chamada
fotograa direta pelo Departamento de Fotograa do Museu de
Arte Moderna de Nova York, criado em 1940. Sob a curadoria de
Beaumont Newhall (1940-1945) o Departamento iria estabelecer
os critérios denidores do que seria a fotograa artística. Segundo
Cristopher Phillips a transformação cultural que possibilitou
a assimilação da fotograa como arte pelo museu foi paradoxal:
o museu passou a valorizar a fotograa não enquanto imagem
reprodutível e versátil, mas enquanto objeto de coleção, pautado
por valores como raridade, autenticidade, expressão pessoal e
virtuosismo técnico. (COSTA, 2008. p. 133)
A partir desse momento, a fotograa, que anteriormente era restrita
a exposições em locais especícos e quando exposta em Museus a ênfase era
em seu caráter objetivo e cientíco, passa a ter um espaço próprio dentro
dessas instituições, alcançado seu local dentro das artes. A linguagem, as
experimentações, os limites e os recursos são explorados e valorizados.
Os prossionais passam a ter reconhecimento e o mercado se amplia
consideravelmente. A legitimação da fotograa com esse viés favoreceu
que os acervos, anteriormente constituídos pelos Museus com imagens
de caráter documental, fossem trabalhados e compreendidos também por
seus valores artísticos, já que o reconhecimento de um trabalho autoral e
estético dessas imagens foi validado nesse e por esse circuito.
Percebe-se, portanto, que a fotograa sempre teve uma inserção
dentro do Museu, trabalhada diferentemente de acordo com a política e
especialidade primordial de cada um. Porém, a legitimação nesse espaço
se deu em um primeiro momento, como uma busca de ter uma cópia el
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
206 |
da realidade e posteriormente o reconhecimento artístico e transformador.
A discussão acerca da fotograa ser arte ou documento está superada e
esse tema é tratado, hoje, corriqueiramente, por esses espaços, como muito
bem coloca Sontag:
A circunstância de todos os tipos de fotograa formarem uma
tradição contínua e interdependente exprime a premissa outrora
surpreendente, e hoje aparentemente óbvia, que se encontra
subjacente ao gosto fotográco contemporâneo e autoriza a
expansão indenida desse gosto. Essa premissa só se tornou plausível
quando a fotograa foi aceita por curadores e historiadores e passou
a ser exposta normalmente em museus e galerias de arte. A carreira
da fotograa no museu não contempla um estilo em particular; em
vez disso, apresenta a fotograa como uma coleção de intenções e
de estilos simultâneos que, por mais diferentes que se mostrem, não
são absolutamente entendidos como contraditórios. (SONTAG,
2006, p. 148).
Os primeiros registros de uma Biblioteca datam do terceiro milênio
a.C. e ao longo de todos esses séculos foi se transformando em um local
essencial para o conhecimento e para o saber. As atividades e tipos de
acervos trabalhados pelas Bibliotecas foram se alterando e se adaptando
aos momentos históricos, sociais e culturais, reetindo práticas e padrões
estabelecidos. Segundo Lemos:
Nesse processo evolutivo, as bibliotecas, (sic) foram se
diversicando, seja por causa do tipo de material que reúnem,
seja por causa do tipo de usuário a que atendem prioritariamente.
Quanto ao tipo de material, existem bibliotecas apenas de
periódicos (hemerotecas), de lmes (lmotecas ou cinematecas),
de partituras musicais, de textos em braile, de discos (discotecas),
de vídeos (videotecas), de materiais didáticos, de gibis (gibitecas)
etc. A idéia do acervo de coisas úteis e educativas amplia-se aos
brinquedos e jogos dando origem às brinquedotecas ou ludotecas.
Quanto aos usuários, há bibliotecas públicas (para estudantes
e professores), bibliotecas especializadas (para estudiosos e
pesquisadores) e bibliotecas especiais (para grupos especiais de
usuários). Em geral, porém, a tipologia da biblioteca refere-
Imagem, Informação e Memória
| 207
se a bibliotecas nacionais, públicas, escolares, universitárias,
especializadas e especiais. (LEMOS, 2008, p. 107).
O papel de agrupar e colecionar obras que são selecionadas de acordo
com a tipologia e políticas estabelecidas acarretam a existência de uma
diversidade e variedade de materiais trabalhados pelas Bibliotecas. Otlet
destaca esta variedade (grifo nosso):
A biblioteca contém as seguintes categorias de obras, muitas vezes
constituídas em divisões especiais: 1º livros; 2º folhetos; 3ª obras
de consulta; 4ª publicações ociais; 5ª boletins ociais (contendo
as mais recentes leis, tratados e atos legislativos); 6º documentos
ociais de governos, parlamentos e grandes administrações
(regulamento, anuários ociais, atas de debates parlamentares,
textos de projetos de lei e de orçamentos, relatórios apresentados
aos corpos legislativos dos diferentes ministérios, estatísticas
etc.); 7º manuscritos (gabinete de manuscrito, gabinete de mapas
e planos); 8º mapas de geograa e atlas (planos de edifício,
máquinas e equipamentos); 9ª impressões (gabinete de impressão);
10ª publicações periódicas (periodioteca); 11ª jornais diários
(hemeroteca); 12ª fotograa (fototeca); 13ª música. (OTLET,
2007, p. 343, tradução nossa).
10
Esse trecho do livro de Paul Otlet publicado originalmente em
1934 já indicava a fotograa como uma das categorias de obras existentes
nas Bibliotecas. A inserção dessa obra aconteceu praticamente ao mesmo
tempo de seu anúncio, pois, como falado anteriormente, a fotograa
tornou-se uma das melhores formas de representar o mundo, seus aspectos,
personalidades, curiosidades e atividades cientícas, transformando-se,
assim, em um objeto propício às pesquisas, consultas e lazer dos usuários da
10
No original: “La biblioteca contiene las seguintes categorias de obras, a menudo constituídas em divisiones
especiales: 1ª libros; 2ª folletos; 3ª obras de consulta; 4ª publicaciones ociales; 5ª boletines ociales (contienen
las leyes, tratados y actas legislativas más recientes); 6ª documentos ociales de los gobiernos, parlamentos y
grandes administraciones (reglamento, anuarios ociales, actas de debates parlamentários, textos de proyectos
ley y de presupuestos, informes presentados a los cuerpos legislativos de los diferentes ministérios, estadísticas,
etc.); 7ª manuscritos (gabinete de manuscritos, gabinete de mapas y planos); 8ª mapas de geograa y atlas
(planos de edifício, máquinas y aparatos); 9ª grabados (gabinete de estampas); 10ª publicaciones periódicas
(periodicoteca); 11ª periódicos diários (hemeroteca); 12ª fotograa (fototeca); 13ª música.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
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Biblioteca. Anal, a existência da Biblioteca está sedimentada no interesse
e objetivo de seu público, que são os mais diversos.
Na França, o recolhimento de fotograas por Bibliotecas, além de ser
um modelo, também era algo usual. Podemos comprovar tal fato quando:
Na mesma época em que o governo francês estabeleceu o
Depósito Legal para a fotograa em 1851, com sede na Biblioteca
Nacional, lançou o projeto Missão Heliográca com o objetivo de
fotografar o patrimônio histórico e artístico do país. A Comissão
de Monumentos Históricos encarregou cinco fotógrafos para as
reportagens: Edouard Baldus, Henrique Le Secq, Gustave Le Gary,
Mestral e Hipolite Bayard. Foram recolhidos e guardados 300
negativos em papel conservados nos Arquivos de Fotograas de
Paris e mostram o patrimônio danicado ou destruído na guerra
franco-prussiana e nas duas guerras mundiais. A missão foi a base
para a criação da Caisse Nationale des Monuments Historique
et des Sites, cuja função é conservar e divulgar os relatórios
fotográcos da Direcção do Património. (SALVADOR BENÍTEZ;
SANCHEZ-VIGIL, 2013, p. 29-30, tradução nossa).
11
Essas ações foram extremamente importantes e relevantes na
concretização do papel da fotograa nessa unidade informacional, mas
provocaram entendimento incorreto e dúvidas do correto processamento
técnico informacional.
Uma das formas mais comuns de entrada de fotograas na Biblioteca
se deu com a doação de várias coleções particulares, pois foi uma prática
entre os acionados da técnica e de fotógrafos amadores e prossionais. A
autora Isabel Ortega exemplica como tal ocorre:
11
No original: “Al tiempo que el Goberno francês establecía el Depósito Legal para la fotograa em 1851,
com sede en la Biblioteca Nacional, puso en marcha el proyecto Mission héliographique com el objetivo de
fotograar el patrimônio histórico y artístico del país. La Comisión de Monumentos Históricos encargo a
cinco fotógrafos los reportajes: Edouard Baldus, Henri Le Secq, Gustave Le Gary, Mestral y Hipolite Bayard. Se
recopilaron 300negativos en papel que se conservan en los Archivos Photographiques de París y se muestran el
patrimônio luego danado o destruído en la guerra franco-prusiana y en las dos mundiales. La mision fue base de
la creación de la Caisse Nationale des Monuments Historique et des Sites, cuya función es conservar y difundir
los reportajes fotográcos de la Dirección del Patrimonio.
Imagem, Informação e Memória
| 209
É uma coleção de formação acidental ou espontânea que não
responde a um trabalho de compilação sistemático ou programado.
Ao longo da existência da biblioteca, as fotograas foram
acumuladas de diferentes formas, algumas burocráticas jurídicas,
como as que vêm do Registro de Propriedade Intelectual, outras
foram adquiridas por seu interesse iconográco ou documental,
o que não exclui seu interesse fotográco, embora este não tenha
sido o primeiro motivo para sua aquisição. E muitos deles foram
segregados do material de interesse que foi doado à biblioteca ou
comprados, sendo este um dos principais motores na formação
deste bloco de material. (ORTEGA, 1991 apud SÁNCHEZ-
VIGIL, 2006, p. 250, tradução nossa).
12
Muitas vezes também a não existência de um Arquivo acarretava
o envio de materiais iconográcos para serem preservados na Biblioteca.
Schellenberg já alertava sobre essa transferência de documentos ociais
para as Bibliotecas, quando eram originalmente de Arquivo:
Embora as bibliotecas hajam, muitas vezes, recolhido arquivos
públicos, esta prática deve ser lamentada. É lógico que as bibliotecas
prestaram serviços de grande utilidade à cultura, pela preservação
de arquivos, quando não existiam instituições próprias para cuidar
dêsse material. Mas, uma vez que o govêrno crie uma biblioteca
e um arquivo, essas organizações não devem competir entre si na
aquisição dos documentos públicos. A biblioteca, neste caso, não
deve, de maneira alguma, recolher documentos ociais. Nem deve
guardar peças que hajam sido alienadas, indevidamente, de uma
administração, pois tais peças são parte constituintes de um corpo
de documentos correlatos. (SCHELLENBERG, 1974, p. 24).
John Tagg aborda como as fotograas que relatavam a grande
depressão norte americana de 1929, advinda da quebra da Bolsa de
12
No original: “Es una colección de formación acidental o espontânea que no responde a un labor recopiladora
sistemática o programada. A lo largo de la existencia de la biblioteca, las fotograas se han ido acumulando
procedentes de distintas vías, unas burocrático legales, como son las que proceden del Registro de la Propriedad
Intelectual, otras fueron compradas por su interés iconográco o documental, lo cual no excluye su interés
fotográco, aunque no fue esta la razón primera de su adquisición. Y muchas de ellas fueron segregadas del
material de interés que era donado a la biblioteca o comprado por esta, siendo este uno de los principales
motores en la formación de este bloque de material.
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
210 |
Valores de Nova Iorque e as consequências para os agricultores e
pequenos fazendeiros realizadas na década de 1930 nos Estados Unidos,
pela Farm Security Administration, órgão vinculado ao Governo Federal
Americano, acabaram sendo depositadas na Biblioteca do Congresso
(Library of Congress)
13
. Mostra que não foi um caso isolado e era prática
comum o envio de fotograas de departamentos governamentais para
a Biblioteca (TAGG, 2005, p. 217). O autor discutiu as questões do
realismo fotográco e as manipulações e usos que o governo fez com
esses documentos. Porém, o que se ressalta é o fato de que os documentos
não cavam no Arquivo do departamento responsável, mas eram
encaminhados para a Biblioteca do Congresso.
Outras Bibliotecas que também recebiam diversos materiais de
pesquisas e estudos são as denominadas cientícas, no que Briet já nos
alertava, em 1950, sobre a diversidade de materiais desse segmento:
A busca cientíca se estende a itens documentais de todos os tipos,
iconográcos, metálicos, monumentais, megalíticos, fotográcos, rádio-
televisivos.” (BRIET, 1951, p. 12, tradução nossa)
14
.
Fica claro, então, que a fotograa, por ser um documento
relativamente novo, era coletada e/ou doada e inserida nos diversos tipos
de Biblioteca existentes, cujo objetivo era colecionar e disponibilizar seu
acervo. Novamente seu caráter dedigno apregoado nos mais diversos
campos do saber deniu demandas para registro e tratamento.
Percebe-se, assim, que o uso da fotograa validava e legitimava a busca
de cienticidade e objetividade da sociedade desse momento histórico, que
se reetia nas instituições ociais e sociais do período. É também nessa
fase que a instituição Arquivo
15
se transforma radicalmente de depósito de
documentos ociais e legais dos governantes em local voltado para garantir
o direito do cidadão e o acesso à população em geral.
13
Mais informações: http://www.loc.gov/.
14
No original: “e scientic quest extends itself to documentary items of all types, iconographic, metallic,
monumental, megalithic, photographic, radio-televised.”
15
O surgimento do Arquivo acompanha o desenvolvimento da escrita e os primeiros registros de arquivos
apareceram no Oriente. Seu desenvolvimento foi tema de diversos autores, entre eles Rousseau & Couture;
Duchein; e Schellenberg, entre outros.
Imagem, Informação e Memória
| 211
Esta transformação foi desencadeada pela Revolução Francesa (1789)
e se tornou o grande marco do Arquivo moderno, que passa a ser aberto a
todos, garantindo a guarda e a consulta aos documentos. A partir da visão
de que o Arquivo é uma instituição não somente da administração pública,
mas de todos os segmentos que compõem a sociedade, descobre-se que o
documento, além de servir como prova, passa a ter o valor de testemunho
da história (GAGNON-ARGUIN, 1998, p. 31).
A vinculação entre Arquivo e fotograa foi imediata, pois respondia
a essa sociedade de uma forma cientíca e objetiva, sendo de acesso a todos
e não apenas a uma classe privilegiada. Schwartz destaca que não apenas
os avanços tecnológicos e o colecionar o mundo eram realizados com o
caráter de cópia da realidade pela fotograa para depósito no Arquivo, mas
também “Era uma maneira de comunicar fatos empíricos – “fatos brutais
– de forma visual, supostamente não mediada, no espaço e no tempo.
O testemunho fotográco tornou-se um substituto para o testemunho
ocular.” (SCHWARTZ, 2000, p. 11, tradução nossa)
16
.
Talvez o primeiro marco de denição do que é Arquivo, posterior
à Revolução Francesa, tenha sido a obra Handleiding Voor het Ordenen
em Beschrijven Van Archieven, um manual publicado pela Associação
Holandesa de Arquivistas no ano de 1898, escrito por S. Muller, J. A. Feith
e R. Fruin. Nesse texto, Arquivo é denido como:
[...] conjunto de documentos escritos, desenhos e material
impresso, recebidos ou produzidos ocialmente por um órgão
administrativo ou por um de seus funcionários, na medida em que
tais documentos se destinavam a permanecer sob custódia desse
órgão ou funcionário. (apud SCHELLENBERG, 2006, p. 14).
Essa denição de Arquivo é a mais próxima do anúncio da descoberta
da fotograa e se constata que não houve a incorporação desse novo formato
nem sua inserção nas recomendações da área. Segundo Lacerda (2008), um
dos primeiros teóricos a tratar da fotograa na denição dos documentos
16
No original: “It was a way of communicating empirical facts – ‘brutal facts’ – in visual, purportedly unmediated
form across space and time. Photographic witnessing became a substitute for eye witnessing.”
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
212 |
próprios do Arquivo foi Schellenberg, historiador norte americano que se
dedicou às questões arquivísticas administrativas (grifo nosso):
Todos os livros, papéis, mapas, fotograas ou outras espécies
documentárias, independentemente de sua apresentação física
ou características, expedidos ou recebidos por qualquer entidade
pública ou privada no exercício de seus encargos legais ou em função
de suas atividades e preservados ou depositados para preservação
por aquela entidade ou por seus legítimos sucessores como provas
de suas funções, sua política, decisões, métodos, operações ou
outras atividades, ou em virtude do valor informativo dos dados
neles contidos. (SCHELLENBERG, 1974, p. 18).
Porém, isso foi somente na década de 1950, muito posterior à
descoberta da fotograa. Vemos aqui um grande paradoxo, pois, ao mesmo
tempo, a fotograa foi e era cada vez mais utilizada por instituições que a
produziam, guardavam e mantinham, mas sua função e objetivo original,
na maioria das vezes, não eram preservados, cando consequentemente
somente os registros visíveis da imagem.
A autora Nancy Bartlett identica que existem referências ao uso da
fotograa desde 1840, como os arquivos de fugitivos criminais das polícias
da Bélgica, Suíça e do estado americano da Califórnia (BARTLETT, 1996).
Sánchez-Vigil enumera diversas instituições policiais, de Paris, Inglaterra e
Espanha que aplicaram a fotograa como identicação. Destaca o trabalho
do “[...] médico e antropólogo Alphonse Bertillon (Paris, 1853-1914) [que]
se entregou ao estudo de um novo método no qual combinou fotograa
e antropometria para conseguir uma identicação ável e localização
imediata dos tipos [...] (SÁNCHEZ-VIGIL, 2006, p. 40, tradução nossa).
17
As administrações públicas em geral incorporaram essa técnica em
suas rotinas, mas por ter esse caráter de prova e registro era acumulada
diferentemente do restante dos documentos. A assimilação da fotograa
com o discurso de objetividade e cienticidade teve sua consolidação
quando os tribunais começaram a aceitá-la como evidência e prova:
17
No original: “[...] médico y antropólogo Alphonse Bertillon (París, 1853-1914) se entregó al estudio de un nuevo
método en el que combinó fotografía y antropometría para conseguir una identicación able y localización inmediata
de los tipos [...].
Imagem, Informação e Memória
| 213
Isso não ocorreu até o nal da década de 1850 nos Estados Unidos,
no início da década de 1860 na Grã-Bretanha e no início do século
XX no Canadá, quando provas fotográcas foram mencionadas
em casos que foram contestados, e que relatos discutindo decisões
sobre fotograas começaram a aparecer em um caso de apelação,
registros e em periódicos legais contemporâneos. (CARTER, 2010,
p. 26-27, tradução nossa).
18
Esses usos, que tratavam os elementos visuais presentes na fotograa
como a realidade captada por uma técnica cientíca e sem a intervenção
humana, foram legitimados por instituições e assimilados pela sociedade
em geral. Essa compreensão, em grande parte, acarretou e atrasou durante
anos o tratamento arquivístico desses documentos.
Portanto, tem-se o uso da fotograa pelos Arquivos como o registro
da realidade praticamente desde o anúncio ocial de sua descoberta, mas
o tratamento dispensado a esses documentos era distinto dos demais.
Tornou-se documento probatório e, como tal, deveria ser acumulado e
tratado especicamente. Porém, esse trecho do autor Arlindo Machado
alerta que não podemos considerar essa realidade como tal, já que é própria
de uma representação:
A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e predestinada,
impressa de forma imutável nos objetos do mundo: é uma verdade
que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e produzida. Nós
seríamos incapazes de registrar uma realidade se não pudéssemos ao
mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la, modicá-la: a ação
humana é ativa e por isso as nossas representações tomam a forma
ao mesmo tempo de reexo e refração. A fotograa, portanto,
não pode ser o registro puro e simples de uma imanência do
objeto: como produto humano, ela cria também com esses dados
luminosos uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela,
mas precisamente nela. (MACHADO, 2015, p. 48).
18
No original: “It was not until the late 1850s in the United States, the early 1860s in Great Britain, and the early
twentieth century in Canada that photographic evidence was mentioned in cases that were challenged, and that reports
discussing rulings on photographs began appearing in appellate court case records and in contemporary legal journals.”
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
214 |
O entendimento da fotograa como representação não foi
incorporado ou compreendido e como documento de Arquivo, os registros
fotográcos, segundo Schwartz (2000, p. 34, tradução nossa), “foram
assumidos como precisos, conáveis, autênticos, objetivos, neutros, sem
mediação. Eles também venderam a permanência.
19
Esses documentos são reconhecidamente de Arquivo, mas, em
muitos casos, como abordado anteriormente, tinham uma função
institucional, porém eram encaminhados para a Biblioteca ou Museu, pela
primazia do visual. Naquela época, tinha-se a fotograa como a janela para
o mundo, sem a intermediação e/ou mediação humana, portanto neutra
e objetiva, com a percepção de estar observando diretamente o objeto ou
fato registrado. Ainda segundo Schwartz:
Essas crenças serviram para naturalizar o conteúdo da fotograa e
velar as escolhas humanas e os valores culturais envolvidos em sua
produção e consumo. As fotograas, por causa de sua transparência
e verdade, foram, assim, creditadas como sendo não apenas uma
maneira de ver através do espaço, mas também uma maneira de ver
essas coisas – qualidades, características, emoções, valores – que no
espaço não tinham manifestação visível. (SCHWARTZ, 2000, p.
16, tradução nossa).
20
Esse entendimento arraigado e naturalizado da fotograa como
prova se tornou senso comum; ela deveria ser guardada e trabalhada
diferentemente do textual, apartada dos demais documentos que a gerou,
contradizendo toda a lógica das relações institucionais, fundamentais para
a manutenção de sua procedência. A preservação desses vínculos orgânicos
é o ponto basilar de documentos de Arquivo. Contrariamente a esses
preceitos, a fotograa durante muitos anos foi tratada como documentação
especial, por seu caráter realista e de prova, além de sua fragilidade e tipo
de suporte.
19
No original: “[…] were assumed to be accurate, reliable, authentic, objective, neutral, unmediated. ey also
tracked in permanence.”
20
No original: “ese beliefs served to naturalize the content of the photograph, and veil the human choices and
cultural values involved in its production and consumption. Photographs, because of their transparency and truth,
were thus credited with being not only a way of seeing across space, but also a way of seeing those things – qualities,
characteristics, emotions, values – that, in space, had no observable manifestation.”
Imagem, Informação e Memória
| 215
Vários autores da área, posteriormente, destacaram a relevância de
se incorporar as fotograas nos procedimentos arquivísticos. Rousseau e
Couture (grifo nosso) sintetizaram assim essa questão:
Se é verdade que uma das primeiras tarefas do arquivista em matéria
de arquivos fotográcos foi a de salvaguardar o maior número
possível desses documentos durante muito tempo menosprezados,
o mesmo não acontece actualmente. Como qualquer outro suporte
informático, as fotograas devem efetivamente ser objecto de
uma avaliação e de uma seleção. (ROUSSEAU; COUTURE,
1998, p. 232).
ConsiderAções
Retomando o signicado de fotograa que, literalmente, signica
escrita com a luz, percebe-se que ela pode ser considerada escrita, no
sentido que expressa ideias em um suporte apresentado sintaticamente.
Compõe-se de processos e procedimentos que escrevem a partir de nossa
realidade tridimensional, em um documento bidimensional, que deverá
ser decodicado por uma leitura. Acostumou-se a leituras instantâneas e
superciais, tornando-se fácil esquecer as origens funcionais, a relação de
evento-documento incorporado na fotograa, sua guarda e os produtos
resultantes. A suposta verdade da fotograa é assim colocada por Rouillé:
Ora, contrariamente ao que se pode experimentar com a prática
fotográca a mais banal, a verdade, aliás, como a realidade,
jamais se desvenda diretamente, através de simples registro. A
verdade está sempre em segundo plano, indireta, enredada como
um segredo. Não se comprova e tampouco se registra. Não é
colhida à superfície das coisas e dos fenômenos. Ela se estabelece.
Aliás, é a função dos historiadores, dos policiais, dos juízes, dos
cientistas ou dos fotógrafos estabelecer, conforme procedimentos
sempre especícos, a versão da verdade e de atualizá-la em objetos
dotados de formas. Daí, (sic) resultam a verossimilhança e a
probabilidade, mais do que a verdade. A verdade dos fatos e das
coisas não coincide com a verossimilhança dos discursos e das
imagens. (ROUILLÉ, 2009, p. 67).
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
216 |
Deve-se pensar que a fotograa é mais um tipo de artefato da
linguagem visual que o homem desenvolveu para conseguir representar,
interpretar e expressar à sua maneira o mundo em que vive e suas
inquietações. São mensagens que precisam ser decodicadas e que só serão
compreendidas em sua totalidade se conseguir captar não só seus elementos
visuais, mas o contexto em que foram produzidas e em que estão inseridas.
Esse circuito institucional em que a fotograa se consolidou,
principalmente Museus, Bibliotecas e Arquivos, pode ser analisado como
a busca dessas instituições por trabalhar e apresentar documentos únicos,
dedignos e verdadeiros que exprimem a realidade concretamente e sem
interferência humana.
Percebe-se nas três Unidades Informacionais uma supervalorização
da imagem individual em detrimento da preservação da série ou conjunto,
assim como do processo de sua produção. As práticas nesses lugares se
caracterizam por uma variedade de rotinas prossionais e particulares;
seja por meio da espacialidade e/ou do determinismo institucionais, o
tratamento documental, através da organização e/ou arranjo, passará pelo
crivo dos conceitos de fundo ou coleção.
Seu uso como documento, portanto, não se dá apenas por ser uma
cópia da realidade, mas por ser constituída de contextos, representações e
intencionalidades de uma época. Para tanto, é imprescindível e fundamental
a preservação desse contexto original de produção, sendo necessária uma
guarda que assegure a integridade de todo esse sistema, procedimentos
e processos que resultaram nas imagens. Esse aspecto foi e ainda é
negligenciado quando se discute o tratamento documental de fotograas.
Porém, seja a chamada produção orgânica de documentos assumida
pela Arquivologia, seja a acumulação articial defendida no tratamento
bibliotecário e museológico, o cerne do problema reside no fato de que as
fotograas devam sempre ser consideradas nos seus sistemas, conjuntos e
sequências, e não isoladamente. Portanto, Arquivos, Bibliotecas e Museus
deveriam considerar esse conjunto, séries ou sequências, comoenunciados
de linguagem. Enunciados manifestos não unicamente na guarda de
fotograas, mas também na disposição, arranjo e apresentação.
Imagem, Informação e Memória
| 217
São nos procedimentos destas instituições onde devemos procurar
a fotograa, se quisermos entender o poder que começou a ser
concedido a ela no último quartel do século XIX. É também no
surgimento de novas instituições de conhecimento onde devemos
buscar o mecanismo que permitiu a fotograa funcionar, em certos
contextos, como uma espécie de prova [...]. (TAGG, 2005, p. 89,
tradução nossa).
21
referênCiAs
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Informação: o diálogo possível. Brasília, DF: Briquet Lemos Livros; São Paulo:
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21
No original: “Es en los procedimentos de estas instituciones donde debemos buscar la fotograa, si queremos
entender el poder que comenzó a otorgarse a la fotograa en el último cuarto del siglo XIX, Es también en
la aparición de nuevas instituciones de conocimiento donde debemos buscar el mecanismo que permitió a la
fotograa funcionar, em determinados contextos, como uma especie de prueba [...].
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
218 |
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I, M  I
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| 223
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  
1
Prof.ª Dr.ª Miriam Paula Manini
2
introdução
O projeto de capacitação a que remete este texto se propôs a vericar
o estado da arte da análise da informação de imagens fotográcas e fílmicas
no período de 2002 – data de defesa de tese de doutorado da autora sobre
o tema – a 2017, com relação ao referencial teórico e epistemológico da
leitura de imagens com ns documentários neste intervalo de 15 anos,
no Brasil, em especial, e no exterior, parcialmente. A este assunto, que
tem sido tema de aulas, pesquisas, projetos e orientações da pesquisadora,
junta-se outro: memória, no seu sentido histórico e patrimonial
Este texto é resultado de projeto de licença de capacitação usufruída durante os meses de maio, junho e julho
de 2017 na Universidade de Brasília.
Doutora em Ciências da Comunicação; professora da Universidade de Brasília.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-271-0.p223-258
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
224 |
O ponto de partida foi a tese Análise Documentária de Fotograas:
um referencial de leitura de imagens fotográcas para ns documentários
3
.
Ao revisitar a Análise Documentária de Imagens (ADI) foi
realizado um levantamento bibliográco sobre a Análise da Informação
de Imagens Fotográcas e Fílmicas: o documento fílmico foi incluído no
levantamento; os acervos digitais receberam atenção; e se acoplaram a esta
busca os temas imagem, memória e informação, desde que coadunados
com a ADI. Incluímos o documento fílmico no levantamento pois
nossas pesquisas no período de 2007 a 2017 estão englobando também
esta espécie documental; destacamos também – por motivos óbvios de
atualização – os acervos digitais; e acoplamos os temas imagem, memória
e informação por representar o tripé sobre o qual temos erigido nossas
investigações e orientações e supervisões (monograas, dissertações, teses
e estágios pós-doutorais).
Como resultados, percebe-se uma considerável evolução dos estudos
no Brasil e no exterior, e este desenvolvimento ganha signicado quando
se observa 282 referências no material chamado Listas Temáticas, não
só com relação ao documento fotográco, mas também com relação ao
documento fílmico, entre livros, artigos, monograas, dissertações, teses e
trabalhos apresentados em eventos cientícos.
listAs temátiCAs
O levantamento que resultou nas Listas Temáticas
4
foi realizado
naturalmente e arquivado domesticamente entre 2002 e 2017
5
. A busca
pelos links dos trabalhos publicados na internet levou também naturalmente
a pesquisas no Google, no Google Scholar, no Microsoft Acadêmico, na
Plataforma Lattes e no ResearchGate.
MANINI, M. P. Análise documentária de fotograas: um referencial de leitura de imagens fotográcas para
ns documentários. 2002. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2002.
Ver ao nal do capítulo.
 O levantamento continua desde 2017, e sua organização para ns de atualização está prevista para 2022.
Imagem, Informação e Memória
| 225
Além desta organização em listas, os artigos em meio digital foram
organizados em pastas. Trabalhos que utilizaram e/ou citaram a tese de
Manini (2002) e/ou trabalhos da autora resultantes de pesquisas sobre
Análise Documentária de Imagens (ADI) aparecem com a menção [CITA
MANINI] ao nal, com um total de 69 resultados, ressaltando-se que nem
todas as referências levantadas foram pesquisadas quanto a este quesito,
mas somente aquelas que apresentavam evidências no título, no resumo e
nas palavras-chaves.
Aparecem também nestas Listas algumas obras sobre ADI que são
fundamentais, publicadas antes de 2002, mas que não foram contempladas
em Manini (2002); da mesma forma, há obras/textos muito importantes
sobre análise fílmica que não quisemos deixar de fora, mesmo publicados
antes da tese (MANINI, 2002).
Durante a organização do material surgiu a necessidade de categorizar
e nomear as listas da seguinte forma:
ANÁLISE DA INFORMAÇÃO IMAGÉTICA trabalhos
que não tratam como documentária a análise feita das imagens,
mas que tratam como análise da informação contida na imagem:
01 item;
ANÁLISE DOCUMENTÁRIA DE IMAGENS trabalhos
mais anados com a tese Manini (2002) e/ou trabalhos que não
especicam se são imagens xas ou imagens em movimento o
objeto de interesse apresentado: 75 itens;
ANÁLISE DOCUMENTÁRIA DE FILMES trabalhos
exclusivamente sobre lmes: 37 itens;
ANÁLISE DOCUMENTÁRIA DE FOTOGRAFIAS
trabalhos exclusivamente sobre fotograas: 82 itens;
IMAGEM, MEMÓRIA E INFORMAÇÃO NA ADI
trabalhos onde os temas imagem e/ou memória e/ou informação
tangenciam a ADI: 44 itens;
Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
226 |
TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO DE IMAGENS
DIGITAIS abordagens voltadas para imagens já no meio
digital: 46 itens;
PUBLICAÇÕES DE MANINI APÓS 2002 nalizando,
apresentação das referências de tudo sobre ADI que foi publicado
pela autora com coautores no período de 2002 a 2017: 21
trabalhos (espalhados nas várias categorias das listas acima).
resultAdos AlCAnçAdos
Como primeiro resultado, esperávamos empreender uma revisão de
temas e pontos importantes desenvolvidos na tese de Manini (2002), que
completou 15 anos de defesa e publicação em 2017, mas esta expectativa
teve que ser adiada para momento posterior ao levantamento bibliográco
realizado, pois este se mostrou mais demorado, mais intenso e mais
abundante do que o esperado. Será necessário peneirar nas referências
encontradas – ainda sem critério denido – as citações mais importantes e
reveladoras de tal revisão.
O contingente de trabalhos encontrados sobre ANÁLISE
DOCUMENTÁRIA DE FOTOGRAFIAS foi o maior dos pesquisados
(82), sendo seguido pelos trabalhos sobre ANÁLISE DOCUMENTÁRIA
DE IMAGENS (75), que não especicam se são imagens xas ou
imagens em movimento, o que poderá aumentar o contingente anterior.
Não é de surpreender que os trabalhos sobre TRATAMENTO DA
INFORMAÇÃO DE IMAGENS DIGITAIS estejam em terceiro lugar
no levantamento, com 46 itens, congurando o grau de importância do
digital e seu estabelecimento denitivo em análises desta natureza. Os 37
trabalhos sobre ANÁLISE DOCUMENTÁRIA DE FILMES representam
o grau de importância do assunto e justicou plenamente sua inclusão no
levantamento, assim como os 44 trabalhos sobre IMAGEM, MEMÓRIA
E INFORMAÇÃO NA ADI, onde tais temas tangenciam a ADI. Já o
único trabalho sobre ANÁLISE DA INFORMAÇÃO IMAGÉTICA,
ou seja, trabalhos que não tratam como documentária a análise feita das
imagens, mas que tratam como análise da informação contida na imagem
Imagem, Informação e Memória
| 227
não justica a alteração de nomenclatura ou de abordagem, como se
poderia imaginar inicialmente. Sobre as referências de tudo sobre ADI da
lavra da própria autora e com coautores entre 2002 e 2017, foi satisfatório
perceber a publicação de 21 trabalhos, espalhados nas várias categorias
apontadas acima, representando 1,4 trabalhos por ano, um número que
não temos como comparar estatisticamente com outros pesquisadores,
mas que parece positivo, especialmente quando se destaca a diversicação
de temas sobre os quais a autora publicou, achando que se afastava da ADI;
estava enganada.
Mais satisfatório ainda foi perceber que, das 282 referências
levantadas, 69 citam trabalhos da autora, o que sinaliza para uma possível
conguração de uma “escola”, iniciada no Brasil por Johanna Smit
6
,
passando por Miriam P. Manini e com continuação promissora em Paulo
Pato
7
e Kátia Matos
8
.
Como resultado, certamente estas Listas representarão um poderoso
instrumento de referência para pesquisadores do Grupo de Pesquisa
Imagem, Memória e Informação (IMI)
9
e para outros pesquisadores, visto
sua ampla divulgação.
Como último resultado alcançado, não percebemos o estabelecimento
de relação com autores nacionais e internacionais visando a um futuro
intercâmbio com parceiros de investigação, mas uma ampliação de
conhecimento sobre estas possibilidades.
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Cenários da organização do conhecimento: linguagens documentárias em cena. Brasília, DF: esaurus,
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Miriam Paula Manini, Ana Lucia de Abreu Gomes
Eliane Braga de Oliveira (Org.)
228 |
ConsiderAções finAis
O objetivo geral deste projeto de capacitação foi vericar a evolução
e o estado da arte da análise da informação de imagens fotográcas e
fílmicas e o consequente referencial teórico e epistemológico da leitura
de imagens com ns documentários e de memória no Brasil e no exterior.
Pelos resultados alcançados apontados acima, acreditamos que este objetivo
foi atingido parcialmente pois não foi possível avaliar qualitativamente esta
evolução, mas apenas revelar a quantidade de produção da área, sendo,
então, demandado um momento futuro para esta avaliação.
Com relação aos objetivos especícos, vejamos em que medida cada
um foi atingido:
- Levantar material bibliográco não só com relação ao documento
fotográco, mas também com relação ao documento fílmico:
plenamente alcançado;
- Estabelecer um levantamento que englobe também os termos
imagem, memória e informação: alcançado, mas com certa
economia, visto que não usamos a metodologia de pesquisa por
termos (palavras) em repositórios de qualquer tipo, sendo que os
dados foram coletados em textos reunidos aleatoriamente entre
2002 e 2017;
- Oferecer a futuros pesquisadores uma bibliograa temática
que lhes facilite a trajetória inicial de investigação: plenamente
atingido, sendo que os pesquisadores do IMI poderão partir
deste material no início de seus trabalhos, sejam monograas,
dissertações ou teses.
Com relação a outras expectativas mais intuitivas, mostrou-se
desnecessária e exagerada uma busca em repositórios que, inicialmente,
pensávamos útil a m de enriquecer o material já acumulado.
Algo que também esperávamos encontrar era uma forte tendência
às poéticas da informação – representações estéticas e imagéticas –
especialmente quando do levantamento do tripé imagem-memória-
Imagem, Informação e Memória
| 229
informação. Contudo, este é um dado qualitativo que só será possível
avaliar com acurácia em momento futuro.
referênCiAs Por listAs temátiCAs
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CAtAlogAção nA PubliCAção (CiP)
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
normAlizAção
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Produção gráfiCA
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AssessoriA téCniCA
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ofiCinA universitáriA
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
formAto
16 x 23cm
tiPologiA
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tirAgem
100
imPressão e ACAbAmento
2022
sobre o livro
Miriam Paula Manini [in memoriam]
Eliane Braga de Oliveira
Ana Lucia de Abreu Gomes
(Organizadoras)
Imagem, informação e memória:
abordagens acerca da
preservação do audiovisual, do
cinema e da fotografia
Imagem, informação e memória: abordagens acerca da
preservação do audiovisual, do cinema e da fotografia
Miriam Paula Manini [in memoriam];
Eliane Braga de Oliveira e Ana Lucia de Abreu Gomes (Org.)
“Em julho de 2018 eu tive um sonho:
estava reunida com muitas pessoas, em
local desconhecido; parecia uma festa,
uma celebração, e as roupas não combi-
navam muito com nosso tempo; havia
alegria, cumplicidade e um sentimento
de satisfação que poderia ser por algum
dever cumprido, realizado com prazer.
Mas o que isso tem a ver com nossas
relexões, com preocupações acadêmi-
cas ou com o fazer intelectual?! Ao acor-
dar e costurar o sonho com minha
memória, percebi que os personagens
do meu ilme particular eram todos(as)
colegas que trabalham com imagem.
Junto com as emoções de elaboração de
sentido do sonho surgiu imediatamente
a ideia de organizar um livro sobre o
tema.
Para nós, autores dos textos compilados
nesta publicação, este livro, além da
materialização do sonho de Miriam, é –
sobretudo - uma homenagem à Profes-
sora Miriam Paula Manini, idealizadora
e uma das organizadoras deste material.
Miriam Paula Manini, presente!
É presente o interesse da
comunidade de pesquisadores
em estudos de informação que
abordam os registros visuais
nos seus mais diversos recur-
sos de informação. Neste livro,
elegeu-se a discussão sobre a
dimensão das imagens no
âmbito das fotografias, das
obras cinematográficas e
demais documentos audiovi-
suais pelo viés da memória e
no que tange também à preser-
vação desses documentos. A
trajetória histórica e cultural
da humanidade, atrelada aos
registros visuais, impulsionou
o desenvolvimento de técnicas
e tecnologias que implicaram,
de uma forma ou de outra, nas
teorias e práticas relativas à
organização desses documen-
tos, mediante sua análise e
interpretação. Estas últimas
permitiram o seu tratamento
técnico, acondicionamento,
acesso e uso nos contextos das
unidades de memória-infor-
mação, sejam elas espaços
físicos ou digitais, além,
evidentemente, dos ambientes
de memória-informação que
se configuram na internet e
nas redes sociais.
Os capítulos deste livro
evidenciam a escolha nas abor-
dagens dos caminhos percorri-
dos por seus autores, cuja
distinção autoral determinante
se direcionou ou perpassou
nos enfoques quanto à comple-
xidade dos acervos fotográfi-
cos e audiovisuais nas institui-
ções custodiadoras e sua orga-
nização, memória como relato
e perspectiva cognitiva e
preservação audiovisual.
Com o objetivo de alocar os
assuntos abordados, a obra
está dividida em três blocos:
Audiovisual, Informação e
Memória (AIM), Cinema,
Informação e Memória (CIM) e
Fotografia, Informação e
Memória (FIM). Tal divisão é
puramente um exercício “ma-
níaco” de colocar em escani-
nhos tudo que se considera
classificável, catalogável. No
conjunto, somos todos mem-
bros de uma mesma festa da
imagem.