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Jefferson Rodrigues Barbosa
Oscar A. Piñera Hernández
(Organizadores)
EXTREMISMOS POLÍTICOS E DIREITAS:
Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias”
EXTREMISMOS POLÍTICOS E DIREITAS:
Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias”
Jefferson Rodrigues Barbosa
Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
O extremismo político de direita
e a agenda da direita radical têm obtido
grande repercussão no contexto de crise
das democracias representativas
contemporâneas. Muitas análises sobre
esses fenômenos políticos são
denominadas de forma generalizante pela
imprensa e trabalhos acadêmicos sob a
expressão extrema-direita. Formulação
limitada em termos científicos conceituais
(BARBOSA, 2015, p. 153), assim como o
termo extremismo político. Entretanto, são
operacionais para a identificação de ações
e concepções que evidenciam postulados
como violência, xenofobia, revisionismo
histórico e políticas antidemocráticas
daqueles que propalam formas de
nacionalismo de matriz chauvinista.
Pesquisas e debates
acadêmico contemporâneos sobre as
direitas têm destacado que entre formas de
legitimação de diferentes modelos
societais de autocracia burguesa, um
aspecto geral das direitas, estas podem ser
analisadas nos aspectos de suas
particularidades. Por exemplo, aqueles que
são explicitamente tributários do fascismo
e nazismo históricos e ditaduras (como as
Ditaduras Militares). Os neoconservadores
que defendem pautas de defesa de valores
morais e costumes e atuam nos debates
públicos, no campo da imprensa e dos
ofícios intelectuais de educação e cultura,
sob prerrogativas do apelo a tradição,
ordem e autoridade.
E, os políticos e partidos de
orientação antiestablishment, chamados
também nas ciências sociais na Europa de
“populistas de direita”. São aqueles que se
colocam retoricamente contra instituições
e pontos do sistema representativo e
pressupostos constitucionais, portando
concepções ultraliberais ou de
chauvinismo de bem-estar social, mas
disputando eleições. O critério conceitual
de direita radical tem estas três distinções
(MUDDE, 2007, 2106).
Estas organizações
têm obtido repercussão e algumas
vitórias eleitorais. Destaca-se o
exemplo da ascensão do
chauvinista Matteo Salvinni, d’a
Liga (antiga Liga Norte), que se
tornou Vice Primeiro-Ministro e
Ministro do Interior na Itália. Com
agendas políticas excludentes,
exemplos expressivos na Europa,
entre outros, podem ser
exemplificados no notório caso
francês do partido fundado por
Jean Marie Le Pen, a Frente
Nacional Francesa - FN, hoje
reorganizado sob a nova
denominação de “Rassemblent
National”. Outro caso, é o também
conhecido e polêmico partido
Alternativa para a Alemanha
(Alternative für Deutschland –
AfD). Além da situação atual da
Hungria, com Victor Orban, entre
outros exemplos de países que
atravessam conjunturas de
radicalização política à direita. No
contexto dessas expressões
políticas, temos hoje o caso do
Brasil sob a presidência de Jair
Bolsonaro.
Diferentes em suas particularidades históricas e
singularidades políticas e ideológicas, estes objetos aqui em
análise são entendidos como manifestação histórica concreta
da conjuntura de crise à direita, no contexto brasileiro com
Bolsonaro e internacional com diferentes especificidades
nacionais.
A partir do critério da valoração das
particularidades históricas e singularidades dos fenômenos
sociais, as expressões das direitas compõem diferenças em
seus axiomas. Entretanto, além das particularidades e
singularidades históricas e nacionais, essas manifestações do
extremismo político de direita apresentam um elemento em
comum que são formas de expressão política as quais
legitimam a autocracia burguesa como universalidade,
refletindo a lógica da conflitualidade de classes.
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
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(Organizadores)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2022, Faculdade de Filosoa e Ciências
E96 Extremismos políticos e direitas : Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias” / Jeferson
Rodrigues Barbosa, Oscar A. Piñera Hernández (organizadores). – Marília : Ocina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022.
254 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-226-0 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-227-7 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7
1. Ciência política. 2. Radicalismo. 3. Democracia. 4. Extremistas de direita. 5.Brasil.
Presidente (2019- : Bolsonaro). 6. Estados Unidos. Presidente (217-2021: Trump). 7.
Relações internacionais. I. Barbosa, Jeferson Rodrigues. II. Piñera Hernández, Oscar A.
CDD 320.53
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
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Prefácio
Extremismo políticos, direitas e a crise das democracias.
Jeerson Rodrigues BARBOSA ----------------------------------------------------- 07
caPítulo 1
A Direita Radical 'em Movimento' em tempos de crise: O caso italiano.
Manuela CAIANI ------------------------------------------------------------------- 15
caPítulo 2
Bolsonarismo, mitos e mitologias políticas: direita radical e a apologia a
intervenção militar.
Jeerson Rodrigues BARBOSA ------------------------------------------------------ 35
caPítulo 3
Crisis Políticas, ultraderecha y democracias en América Latina: las relaciones
Estados Unidos -Cuba, de los “Padres Fundadores” a Trump.
Oscar a. Piñera HERNÁNDEZ -------------------------------------------------- 69
caPítulo 4
Política Externa Brasileira na Era Ernesto Araújo: liberalismo econômico e a
extrema direita política.
Luiz FeLiPe OsÓriO --------------------------------------------------------------- 97
6 |
caPítulo 5
Conitos socioambientais no Brasil e o governo Bolsonaro: a trajetória da
política ambiental e suas repercussões internacionais.
Fernanda Mello SANT’ANNA ----------------------------------------------------- 121
caPítulo 6
A política externa em direitos humanos do governo Bolsonaro e a crise da
ONU: o backlash é também verde e amarelo.
Matheus de Carvalho HERNANDEZ --------------------------------------------- 149
caPítulo 7
Para entender o neofascismo no Brasil: um ensaio a partir das contribuições de
Nicos Poulantzas.
caiO BuGiaTO --------------------------------------------------------------------- 167
caPítulo 8
Imperialismo, sionismo e wahhabismo: as fontes da violência contra povos e
nações.
MarceLO BuzeTTO --------------------------------------------------------------- 181
caPítulo 9
Trump e relações de força: conjuntura ou longa duração?
Rodrigo Duarte Fernandes dos PASSOS ------------------------------------------- 211
caPítulo 10
A direita cristã e o voto religioso nas eleições presidenciais de 2020 nos Estados
Unidos.
Luiza rOdriGues MaTeO ---------------------------------------------------------- 237
| 7
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Dr. Jeerson Rodrigues BARBOSA
Coordenador da XVII Semana de Relações Internacionais da Unesp
1
O extremismo político de direita e a agenda da direita radical
têm obtido grande repercussão no contexto de crise das democracias
representativas contemporâneas. Muitas análises sobre esses fenômenos
políticos são denominadas de forma generalizante pela imprensa e trabalhos
acadêmicos sob a expressão extrema-direita. Formulação limitada em termos
cientícos conceituais (BARBOSA, 2015, p. 153), assim como o termo
extremismo político. Entretanto, são operacionais para a identicação de
ações e concepções que evidenciam postulados como violência, xenofobia,
revisionismo histórico e políticas antidemocráticas daqueles que propalam
formas de nacionalismo de matriz chauvinista.
Professor de Teoria Política Contemporânea do Departamento de Ciência Políticas e Econômicas (DCPE) da
Faculdade de Filosoa e Ciências (FFC) da Unesp. Campus Marília, SP. E-mail: jeerson.barbosa@unesp.br.
https://orcid.org/0000-0001-9168-8469.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p7-14
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
8 |
Pesquisas e debates acadêmico contemporâneos sobre as direitas têm
destacado que entre formas de legitimação de diferentes modelos societais
de autocracia burguesa, um aspecto geral das direitas, estas podem ser
analisadas nos aspectos de suas particularidades. Por exemplo, aqueles que
são explicitamente tributários do fascismo e nazismo históricos e ditaduras
(como as Ditaduras Militares). Os neoconservadores que defendem pautas
de defesa de valores morais e costumes e atuam nos debates públicos, no
campo da imprensa e dos ofícios intelectuais de educação e cultura, sob
prerrogativas do apelo a tradição, ordem e autoridade. E, os políticos e partidos
de orientação antiestablishment, chamados também nas ciências sociais na
Europa de “populistas de direita”. São aqueles que se colocam retoricamente
contra instituições e pontos do sistema representativo e pressupostos
constitucionais, portando concepções ultraliberais ou de chauvinismo de
bem-estar social, mas disputando eleições. O critério conceitual de direita
radical tem estas três distinções (MUDDE, 2007, 2106).
Estas organizações têm obtido repercussão e algumas vitórias eleitorais.
Destaca-se o exemplo da ascensão do chauvinista Matteo Salvinni, d’a Liga
(antiga Liga Norte), que se tornou Vice Primeiro-Ministro e Ministro do
Interior na Itália. Com agendas políticas excludentes, exemplos expressivos
na Europa, entre outros, podem ser exemplicados no notório caso francês
do partido fundado por Jean Marie Le Pen, a Frente Nacional Francesa -
FN, hoje reorganizado sob a nova denominação de “Rassemblent National”.
Outro caso, é o também conhecido e polêmico partido “Alternativa para
a Alemanha” (Alternative für Deutschland – AfD). Além da situação atual
da Hungria, com Victor Orban, entre outros exemplos de países que
atravessam conjunturas de radicalização política à direita. No contexto
dessas expressões políticas, temos hoje o caso do Brasil sob a presidência
de Jair Bolsonaro.
Cas Mudde, em “A extrema direita hoje” (MUDDE, 2019), arma
que as organizações da direita radical no século XXI diferem de seus
congêneres da segunda metade do século XX, porque estas organizações
foram, em muitos casos, “normalizadas”, tornando-se parte do sistema
político ocial de muitos países. Nesse sentido, o autor arma que
grupos e ideias extremistas, antes consideradas marginalizadas depois da
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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segunda guerra mundial, se inltraram com êxito nas correntes políticas
estabelecidas e no mainstream político.
Para o autor, que é referência internacional nos estudos do que ele
denomina de ‘direita radical’ (MUDDE, 2007, 2016), o que antes eram
manifestações políticas periféricas, agora, são manifestações políticas
estabelecidas no sistema político ocial de muitos países. Em alguns
países, estão no poder em cargos do executivo, nas instituições legislativas,
disputando o Parlamento da União Europeia, disputando eleições em
municípios e atuando nos meios de comunicação. Dessa forma, em diversos
países, inuenciam as agendas políticas, a opinião pública e as eleições.
Cas Mudde (2019) e outros pesquisadores, referenciados ao nal deste
trabalho, evidenciam com dados de diferentes organizações que, nesta nova
realidade contemporânea, o que antes eram manifestações periféricas e marginais
se tornaram parte do “novo normal”, argumentando através de evidências
atuais sobre a normalização do extremismo de direita em muitos países e
uma maior inuência de temas da agenda política de organizações da direita
radical. Apontando, sobretudo, a importância da política extraparlamentar
destes líderes e partidos, impulsionando um movimento social mais amplo de
apoiadores, ao invés do enfoque exclusivo da política partidária existe também
uma mobilização social, por exemplo, como os ativistas nos protestos e atos
públicos em plataformas digitais e associações civis.
Diferentes em suas particularidades históricas e singularidades
políticas e ideológicas, estes objetos aqui em análise são entendidos
como manifestação histórica concreta da conjuntura de crise à direita,
no contexto brasileiro com Bolsonaro e internacional com diferentes
especicidades nacionais.
A partir do critério da valoração das particularidades históricas e
singularidades dos fenômenos sociais, as expressões das direitas compõem
diferenças em seus axiomas. Entretanto, além das particularidades e
singularidades históricas e nacionais, essas manifestações do extremismo
político de direita apresentam um elemento em comum que são formas
de expressão política as quais legitimam a autocracia burguesa como
universalidade, reetindo a lógica da conitualidade de classes.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
10 |
Os estudos sobre as direitas cresceram nos últimos anos como reexo
também das crises políticas e econômicas na realidade social. Investigações
no campo das ciências políticas e outras áreas das ciências sociais têm
analisado movimentos, partidos e regimes políticos dessa referida cultura
política. Nesse sentido, a busca por critérios metodológicos adequados
motiva pesquisadores deste campo de estudos especíco: as direitas, suas
políticas e ideologias.
As análises aqui reunidas buscam contribuir neste debate.
No contexto de repercussão midiática e de pesquisas acadêmicas
sobre movimentos e partidos portadores de ideologias antidemocráticas,
em diferentes países, generalizadamente, denominados de extrema direita,
estes fenômenos estão articulados a contextos nacionais e internacionais
de desemprego, crises políticas e econômicas, crises migratórias, de
fundamentalismos religiosos e de austeridade scal. Potencializando
iniciativas regressivas, excludentes para países considerados não alinhados
às potências hegemônicas, ou de populações vitimadas por políticas
internacionais ou nacionais muitas vezes violentas, contra minorias étnicas,
grupos econômicos vulneráveis, como as agressões aos povos árabes dentro
e fora de suas regiões de origem. Assim como, a imposição de políticas
que buscam impor relações de força que intensicam sobre embargos
econômicos e políticas imperialistas, como no caso latinoamaricano e
caribenho exemplicado nas ações contra Cuba .
Visando contribuir para a discussão cientíca no campo da Ciência
Política e das Relações Internacionais os estudos aqui reunidos foram
sistematizadas para servirem como fundamento de análise histórica e
teórica sobre questões relacionadas às contradições e crises que marcam a
conjuntura contemporânea.
As pesquisas aqui reunidas são resultados das palestras realizadas
na XVII Semana de Relações Internacionais da Unesp, promovida em
2020 realizada pelo Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da
Universidade Estadual Paulista (Faculdade de Filosoa e Ciência, Campus
Marília). A Fapesp aprovou o nanciamento do evento para a vinda dos
palestrantes convidados para o campus da Unesp -FFC. Infelizmente não
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 11
foi possível devido ao inicio da pandemia um Congresso presencial e o
evento ocorreu de forma virtual.
O tema central do título: ‘’Extremismos políticos, direitas e crise das
democracias’ tem como objetivo sintetizar contribuições com discussões
cientícas orientadas para a análise do contexto internacional e brasileiro
de crise das instituições, e, de conitualidades inerentes às contradições
das dinâmicas sociais. Este livro resume as exposições do evento que foi
composta por um convidado internacional e pesquisadores brasileiros que
subsidiaram discussões de alto nível em palestras voltadas a formação de
acadêmicos e pesquisadores.
2
Em diferentes abordagens as palestras que resultam nos textos aqui
organizados contemplam diferentes enfoques orientados para a discussão
do tema geral do evento.
A respeito da conjuntura brasileira e internacional, foram abordados
enfoques a respeito do governo Bolsonaro e Trump, com temas relevantes
para a compreensão da conjuntura nacional e internacional (Brasil, Estados
Unidos, Itália, Cuba e Israel-Oriente Médio, abordados em dez capítulos)
e alguns aspectos das dinâmicas de conitualidades sociais que marcam
este período.
O primeiro capítulo é de autoria da doutora Manuela Caiani,
professora de Ciência Política da Universidade de Firenzi na Itália,
pesquisadora internacional sobre o tema direita radical e extremismo
político. Seu capítulo é intitulado; “A Direita Radical ‘em Movimento
em tempos de crise: O caso italiano”. A professora Caiani, especialista
renomada nos estudos sobre extremismo político, coordenando pesquisas
e publicando estudos em diferentes países. Foi convidada a contribuir com
o livro após a realização da Semana de Relações Internacionais da Unesp
e gentilmente elaborou e enviou seu texto no segundo semestre de 2021.
O segundo capítulo é de minha autoria e é resultado de pesquisa
realizada no Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp.
O título é “Bolsonarismo, mitos e mitologias políticas: direita radical e a
As oito palestras estão disponíveis no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/
UCmUfZ9L_X7t7B95EvFCINJA. Acesso em: 06 ago. 2021.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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apologia a intervenção militar. ”, e, aborda aspectos das mobilizações do
presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores, os bolsonaristas, e, alguns
conteúdos ideológicos por eles armados, relacionados a defesa de temas
como a defesa da intervenção militar, a crítica as instituições representativas
e posições antidemocráticas. Como é apontado na pesquisa dentro do
debate conceitual contemporâneo o conceito de direita radical é articulado
numa discussão sobre mitos políticos que são instrumentalizados pelo
atual presidente. Este capítulo também foi elaborado para o presente livro
após a Semana de RI da Unesp.
As preocupações e análises do tema dos capítulos deste livro são
expressão das incômodas angústias e insatisfações (desde as eleições de
2018) que motivaram a escolha do tema central da Semana de Relações
Internacionais da Unesp, orientando todos os temas e palestras das exposições
proferidas no referido evento e agora nos capítulos aqui organizados.
Em âmbito internacional, foram analisados diferentes enfoques
sobre o objeto sintetizado no título do livro – as formas de extremismo
político das direitas.
A questão do embargo estadunidense e a inuência da política
externa dos EUA sobre Cuba é abordada em; “Crisis políticas, ultraderecha
y democracias en América Latina: las relaciones Estados Unidos – Cuba,
de los “Padres Fundadores” a Trump.”, de autoria de Oscar Andrés Piñera
Hernández, professor Titular de Historia de Cuba y de História da América
da Universidad de Matanzas, em Cuba.
A política externa nacional, com a análise crítica do Ministério das
Relações Exteriores do Brasil, sob o comando Ernesto Araújo, é analisada
em; “Política Externa Brasileira na Era Ernesto Araújo: liberalismo
econômico e a extrema direita política”, de Luiz Felipe Osório, Professor
de Relações Internacionais da UFRRJ.
A crise ambiental com as políticas de Bolsonaro no Ministério do
Meio ambiente, foi discutida em; “Conitos socioambientais no Brasil:
a trajetória da política ambiental e suas repercussões internacionais” de
Fernanda Mello Sant’Anna, professora do Departamento de Relações
Internacionais da UNESP (campus de Franca-SP), do Programa de
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 13
Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP,
UNICAMP, PUC-SP).
A crise na política de Direitos Humanos no Brasil sob a inuência
bolsonaristas foi abordada em; “A política externa em direitos humanos do
governo Bolsonaro e a crise da ONU: o backlash é também verde e amarelo”,
de Matheus de Carvalho Hernandez, Professor de Relações Internacionais
e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD).
A questão da atualidade do debate do conceito de neofascismo
para a reexão da situação política nacional contemporânea foi o tema do
capítulo; “Para entender o neofascismo no Brasil: um ensaio a partir das
contribuições de Nicos Poulantzas”, de Caio Bugiato, professor do curso
de Relações Internacionais da UFFRJ.
O extremismo político sionista no Oriente Médio foi analisado em;
“Imperialismo, sionismo e wahhabismo: as fontes da violência contra
povos e nações” de Marcelo Buzetto, membro do Núcleo de Estudos de
Ideologias e Lutas Sociais NEILS/PUC-SP. Presidente do Instituto de
Estudos sobre Geopolítica do Oriente Médio (IGEOP) e integrante da
Secretaria de Relações Internacionais do Movimento Sem Terra (MST).
A análise sob as categorias de Antônio Gramsci das “relações de
força” do governo Trump em sua política externa foi contemplada em;
“Trump e relações de força: conjuntura ou longa duração?”
realizada por
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos, professor de Teoria das relações
Internacionais nos cursos de graduação em pós-graduação da Unesp.
O estudo da articulação entre extremismo político e grupos
fundamentalistas religiosos nos EUA foi apresentada no último capítulo;
A direita cristã e o voto religioso nas eleições presidenciais de 2020 nos
Estados Unidos”, de Luiza Rodrigues Mateo, professora no curso de
Relações Internacionais e no Mestrado Prossional em Governança Global e
Formulação de Políticas Internacionais da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP), pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
14 |
As palestras e as preocupações que reetem o tema escolhido para
a XVII Semana de Relações Internacionais da Unesp, realizada em 2020,
foram assim organizadas aqui em formato livro para que estes debates
sejam instrumento de reexões, e, estimulem novos estudos e abordagens,
visando sobretudo a compreensão destas conjunturas sob perspectiva
cientíca, crítica e estimulando novas intervenções sociais contra as atuais
condições de crise no Brasil.
A imagem utilizada como símbolo da XVII Semana de relações
Internacionais da Unesp e também na capa do presente livro era o
símbolo dos Arditi del Popolo na luta na Itália contra o regime autocrático
chauvinista dos fascistas.
Até hoje é uma bandeira internacional que simboliza a luta contra as
diferentes expressões do extremismo político de direita.
referências
BARBOSA, Jeerson Rodrigues. Chauvinismo e extrema direita: crítica aos herdeiros do
sigma. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no
Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.
MUDDE, Cas. Populist Radical Right Parties in Europe. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007.
MUDDE, Cas. e Far Right Today. Cambridge: Polity Press, 2019.
MUDDE, Cas. e study of populist radical right parties: towards a fourth wave. Oslo:
University of Oslo; C-REX Center of Research on Extremism, 2016. (C-REX Working
paper series, n.1).
| 15
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Manuela CAIANI
2
1. introdução
As eleições gerais de 2018 na Itália viram o surgimento do que foi
chamado de primeiro governo populista da Europa (GARZIA, 2019).
Dada a ausência de maioria parlamentar após as eleições, uma aliança entre
M5S e Lega levou ao chamado Governo da Mudança. A nova conguração
do governo de coalizão poderia ser considerada parte de um realinhamento
mais amplo que ocorre no sistema partidário italiano pós-2008, com as
Tradução de Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos, Professor Associado Livre-Docente da Faculdade de
Filosoa e Ciências da UNESP.
Drª Manuela Caiani é Professora Associada em Ciência Política na Scuola Normale Superiore de Pisa/
Florença e Research Fellow no Institute for Advanced Studies (IHS ) em Viena. Professora titular em Ciência
Política e em Sociologia Política. Desde 2019 ela é Coordenadora do Grupo Permanente ‘Participação Política
e Movimento Social’, Associação Italiana de Ciência Política (SISP). Os seus interesses de investigação
centram-se em: populismo (esquerda e direita); movimentos sociais e mobilização de extrema direita (oine e
online); movimentos sociais e Europa/europeização; transnacionalização da ação coletiva e das redes; métodos
qualitativos de pesquisa social (grupos focais; entrevistas; análise de enquadramento). Sobre sua produção e
pesquisas: https://www.ihs.ac.at/people/manuela-caiani/. Acesso em: 14 fev. 2022. https://orcid.org/0000-
0003-4849-4604.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p15-34
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
16 |
eleições gerais de 2013 constituindo um ponto de virada. Mesmo que eles
se separassem após o verão de 2019, a experiência de governo de Lega sob
a liderança de Salvini fez do partido o líder indiscutível da direita na Itália.
Neste capítulo, reconstruímos a história da direita radical italiana
desde a década de 1990 até sua forma populista atual, considerando os
elementos da estrutura de oportunidades políticas pós-2008 que facilitaram
seu crescimento e fornecem o contexto para seu crescimento em maior
relevância no sistema partidário em sua forma populista atual. Além disso,
este capítulo examinará a relação da direita radical com o populismo em
partidos como Lega e sua experiência no poder. Como será visto, ao longo
deste capítulo a direita radical italiana é uma galáxia heterogênea de atores
envolvendo uma pluralidade de agentes, do institucional ao não institucional,
do oine ao online. No que resta desta introdução, descreveremos os
conceitos norteadores empregados ao longo da visão geral empírica.
a direiTa radicaL cOMO uM MOviMenTO sOciaL
Embora os termos “extrema direita” e “direita radical populista
sejam frequentemente usados na literatura para se referir ao mesmo objeto
empírico, neste capítulo usamos “direita radical” para se referir aos grupos que
exibem em seu núcleo ideológico comum as características do nacionalismo,
da xenofobia (xenofobia etnonacionalista), das críticas antiestablishment e
do autoritarismo sociocultural (lei e ordem, valores familiares) (MUDDE,
2007). O termo extrema-direita inclui grupos muito além dos limites legais
da política democrática (por exemplo, ações diretas violentas ou mesmo
ataques terroristas). Por isso, preferimos usar o rótulo “direita radical” para
descrever os partidos que estão localizados em direção a um polo na escala
padrão ideológica esquerda-direita. Tentativas acadêmicas recentes de
denir a (nova) direita radical tentam mudar a atenção do “velho” fascismo
para o “novo populismo”. Se a “velha” direita radical fosse identicada com
o ultranacionalismo, os mitos da decadência e do renascimento, teorias
conspiratórias e posturas antidemocráticas (EATWELL, 2003), então os
atuais “partidos radicais de direita” (MUDDE, 2007) combinariam críticas
populistas antiestablishment com nacionalismo etnocultural (nativismo),
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 17
xenofobia e autoritarismo sociocultural (lei e ordem, valores familiares)
(LOCH; NOROCEL, 2015; MUDDE 2007, 2021; RYDGREN 2007).
O populismo e o nacionalismo etnocultural excludente são cada vez mais
indicados entre os estudiosos como distintivos partidos populistas radicais de
direita em relação aos partidos do mainstream (RYDGREN, 2006).
No entanto, para compreender e caracterizar plenamente o realinhamento
contínuo da paisagem italiana, precisamos olhar além da política institucional.
Isso implica numa análise não só dos partidos emergentes, mas também de
grupos radicais populares de direita e de movimentos sociais sem uma clara
ligação com a política institucional (CAIANI et al., 2012). Na última década,
vários grupos, como o CasaPound, não só se tornaram proeminentes como
estabeleceram laços com vários partidos políticos. Em relação a isto, pesquisas
recentes sobre a direita radical tentaram diminuir a distância entre abordagens
disciplinares que tendem a se concentrar tanto nos partidos políticos quanto
nos atores da sociedade civil/do movimento social. A adoção e a adaptação do
conceito de movimento-partido para caracterizar esses grupos e vincular os
dois espaços melhora nossa compreensão da dinâmica política atual (CAIANI;
CISAR, 2018; CASTELLI GATTINARA; PIRRO, 2018a, 2018b). Esses
grupos devem ser considerados não apenas por causa de sua conguração/
hibridização movimento-partido (CASTELLI GATTINARA; PIRRO,
2018b), mas também pela importância desses atores em trazer e enquadrar
questões que não só reetem um contexto particular (por exemplo, crise
de migrantes/refugiados), mas também inuenciam os discursos na esfera
pública que atinge um público mais amplo. De fato, a direita radical na Itália
compreende um espaço heterogêneo e diversicado que inclui uma variedade
de partidos políticos, movimentos sociais e grupos subculturais (contraculturais
e antissistêmicos) e nos últimos anos situa-se entre a política eleitoral e a política
de protesto.
2. a direita radical na itália antes da crise econômica
Como foi observado, a direita radical não é uma “família” homogênea
em qualquer país europeu, e isso é ainda mais verdadeiro na Itália, quando
a “galáxia da direita radical é extremamente fragmentada e inclui vários
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
18 |
tipos diferentes de grupos de atores institucionais, não institucionais e
subculturais (CAIANI; PARENTI, 2013). Além de vários partidos políticos,
sua rede de movimentos inclui associações “culturais”, grupos revisionistas
e “negacionistas”, mas também bandas de música e ultras do futebol. Essa
variedade de rótulos, partidos políticos, grupos e movimentos existe, muitas
vezes caracterizados pelo contato escasso entre eles e divididos por batalhas
ideológicas de longa data (CALDIRON, 2001).
Na década de 1990, à medida que os partidos tradicionais desaparecem,
a direita pós-1994 passa a ser dominada pelo magnata da mídia da Forza
Italia Silvio Berlusconi pelos próximos 15 anos (PASQUINO, 2019). Com
essa mudança, a Itália foi o primeiro país europeu nos últimos 50 anos em
que a direita radical alcançou pleno reconhecimento político e institucional,
com presença estável nos governos de centro-direita após 1994 (CALDIRON,
2001, p.15). Pode-se dizer que na década de 1990 a direita radical italiana tinha
duas almas. Por um lado, os herdeiros do Movimento Social Italiano (MSI) - o
partido neofascista do pós-guerra - eram fortes defensores do “nacionalismo
Estado-nação, políticas de lei e ordem e fortes valores familiares” (RUZZA,
2018, p. 506). Estes foram (1) a Aliança Nacional mais “moderada” (AN) e (2)
Movimento Sociale-Fiamma Tricolore (fundado em 1995 por alguns ex-membros
da AN que se recusaram a seguir o caminho de moderação e distanciamento
do passado fascista). Por outro lado, os partidos etnonacionalistas como o
Lega Nord, que defendem um programa independentista e autonomista que se
opunha ao “nação-Estado-nacionalismo, considerando o processo histórico de
unicação italiana fundamentalmente malsucedido e equivocado” (RUZZA,
2008, p. 507). [BALDINI, 2001, p. 2]).
Quadro 1 - Resultados de forças de direita desde 1994
1994 1996 2001 2006 2008 2013 2018
Forza Italia 21,01 20,57 29,43 23,72 14,43
Alleanza Nazionale 13,47 15,66 12,02 12,34
Liga (Nord) 8,36 10,07 3,94 4,58 8,3 4,08 17,61
PdL 37,39 21,53
FdI 1,95 4,26
Total 42,84 46,3 45,39 40,64 45,69 27,56 36,3
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 19
Nas eleições nacionais de 1994, a AN alcançou 13,5% dos votos e a
LN 8,4%, formando, juntamente com a Forza Italia, a coalizão de direita
de Silvio Berlusconi. Em 1996, tanto a AN quanto a LN conrmaram seu
sucesso eleitoral, ganhando, respectivamente, 15,7% e 10,1% dos votos.
Além disso, os neofascistas da MsFt obtiveram 0,9% (CARTER, 2005).
Tanto a AN quanto a LN ocuparam importantes cargos ministeriais
no governo Berlusconi após as eleições nacionais de 2001, entre elas o
Ministério do Interior e o Ministério da Defesa.
Essa situação também signicava que os grupos de direita radical
extraparlamentares poderiam ser considerados como um aliado político
potencialmente poderoso. Como um caso em questão, a direita radical não
inclui apenas partidos políticos voltados para eleições e cargos públicos,
mas também movimentos sociais ou “redes de redes” que visam mobilizar
o apoio público, e um conglomerado de grupos subculturais e grupúsculos
(CAIANI; PARENTI 2013; GATTINARA et al., 2018).
No que diz respeito à direita radical extraparlamentar durante este
período, podemos citar a Fronte Sociale Nazionale (fundada em 1997, após
uma divisão dentro do MSI-FT), Forza Nuova (originária da diáspora
da MSI na transição para a AN), Liberta’ di Azione (liderada pela neta
de Benito Mussolini, Alessandra), e alguns grupos muito recentes como,
por exemplo, a Rinascita Nazionale. Na categoria de grupos políticos,
encontramos uma série de organizações juvenis, ligadas a partidos políticos
e alguns jornais políticos. Ao lado desses partidos e movimentos políticos,
temos a categoria de organizações nostálgicas, revisionistas e “negacionistas”.
Estes são grupos que constantemente se referem aos 20 anos de governo
fascista na Itália e na República de Salo e que são apologistas de Benito
Mussolini.
Na Itália, a direita radical não é apenas altamente inuente na política
nacional, mas também é caracterizada por uma maior comunicação entre
partidos políticos estabelecidos e movimentos populares e pequenos grupos
contraculturais. Na Itália, de fato, os partidos de direita radicais populistas
gozam de muito apoio eleitoral e acesso à esfera pública, ao mesmo tempo
em que mantêm um canal privilegiado de comunicação com a arena do
movimento social. Na Itália, o envolvimento na extrema direita vai desde
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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o ativismo nos vários grupos juvenis associados ao partido fascista italiano,
o MSI, (como a ‘Azione Giovani’ e a ‘Azione Studentesca’) — que fazem
referências explícitas ao passado fascista (CALDIRON, 2002, p.80) —
até os centros sociais mais recentes (Di Tullio 2006). Uma ampla gama
de organizações de extrema direita “jovens” e subculturais inclui grupos
skinheads, hooligans politizados e grupos musicais, com numerosos
contatos entre eles (CAIANI; WAGEMAN, 2007).
3. a Galáxia online da direita radical
A comunidade virtual de extrema direita na Itália parece altamente
fragmentada, e não está focada em algumas organizações centrais que são
capazes de monopolizar o intercâmbio comunicativo dentro do setor.
Trabalhos anteriores (CAIANI; PARENTI, 2013) revelam que apenas
alguns partidos políticos (como, por exemplo, Movimento Sociale-Fiamma
Tricolore e Forza Nuova) ocupam posições centrais na rede; a maioria está
localizada em sua periferia (ver Fronte Sociale Nazionale, Azione Sociale
e Rinascita Nazionale). Organizações político-partidárias e movimentos
políticos emergem de forma dividida em diferentes aglomerados dentro
da rede; eles não são considerados como os principais pontos de referência
(parceiros) para contatos com as outras organizações de extrema direita
italianas. Ao invés disso, o núcleo da rede é composto por organizações
neofascistas/neonazistas e algumas organizações nostálgicas e revisionistas
que têm destaque na rede. Em segundo lugar, a rede global da extrema
direita italiana é caracterizada por uma corrente frouxa e uma “estrutura
polifacetada” (CAIANI; WAGEMANN, 2009; DIANI, 2003, p. 309) -
ou seja, ao mesmo tempo centralizada e segmentada. Embora a maioria
das organizações participe ativamente de intercâmbios dentro da rede,
muitas organizações da periferia não estão diretamente conectadas com
as centrais. Portanto, muitos atores só podem se comunicar uns com os
outros através de longos caminhos.
Embora nenhuma organização esteja completamente isolada da
rede geral, vale a pena notar a posição marginal das organizações juvenis
subculturais (por exemplo, os sites dos centros de invasores e dos grupos
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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musicais Casa Pound, Casa Montag, Lorien), que juntos formam um
conjunto. Esses tipos de organizações permanecem periféricas e são
integradas à rede apenas com um número muito baixo de vínculos. A
impressão de uma rede segmentada é conrmada pelo grau médio, que
é de 5,3, indicando que cada organização italiana tem, em média, cerca
de cinco vínculos com outras organizações. Finalmente, a rede online da
extrema direita italiana tem um nível moderado de centralização. O nível
de segmentação em uma rede reete o grau em que a comunicação entre
atores é dicultada por barreiras. Isso pode reetir diferenças ideológicas
entre vários atores ou pode ser devido a diferentes níveis de preocupação
com uma determinada política (DIANI, 2003, p. 306).
Outra categoria da galáxia da direita radical italiana contém grupos
neonazistas e sites. A principal diferença dos grupos neofascistas é que
esses sites não se referiam à intervenção política contemporânea (CAIANI;
PARENTI, 2013). Estes se referem à ideologia nacional-socialista alemã, ao
Terceiro Reich e a Hitler. Além disso, é possível identicar uma ampla gama
de sites “jovens” que incluem skinhead, hooligans e grupos musicais. Esses
grupos consideram a música e o esporte como seus principais interesses,
e seus locais foram caracterizados por símbolos fascistas ou nazistas ou
por símbolos tirados da mitologia celta. Contatos entre skinheads e alguns
grupos de hooligans de futebol foram frequentes (GNOSIS, 2006). Por
m, também existiam organizações que coletam e vendem souvenirs
militares (por exemplo, uniformes) (“militaria”).
As principais questões dos sites revisionistas e “negacionistas” são o
revisionismo histórico e a negação do holocausto; a proposta de reescrever a
história e a documentação dos crimes do comunismo. Além disso, existem
algumas organizações mais especicamente culturais que podem ser
divididas entre associações tradicionais e Nova Era e grupos “neomísticos”.
Acima de tudo, estes últimos são caracterizados por sua frequente referência
à mitologia celta ou uma espécie de um novo espiritualismo que desaa a
religião cristã ocial (CAIANI; KROEL, 2014).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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4. mudanças Pós-crise da direita radical na itália
Uma grande mudança aconteceu no sistema partidário italiano após
2008. Paralelamente a outros países do sul da Europa à sombra da crise da
Zona do Euro, décadas de corrupção, um governo tecnocrático apoiado pelos
principais partidos no parlamento, e o fracasso dos partidos governantes em
gerenciar a crise de várias crises (econômicas, de refugiados e de legitimidade
democrática), novos partidos políticos que defendem uma retórica populista
antiestablishment tornaram-se cada vez mais visíveis. Foi em 2013, nas eleições
mais voláteis até agora na Itália, que a reação contra os partidos tradicionais
e a transformação do sistema partidário começaram a ser mais claramente
identicáveis, com um sistema partidário anteriormente bipolar se tornando
tripolar (CHIARAMONTE et al., 2018; GARZIA, 2019; PASQUINO,
2019). Mesmo sem representação prévia no Parlamento italiano, o M5S
entrou no parlamento obtendo 25,6% e competindo diretamente com as
tradicionais coalizões de centro-direita e centro-esquerda. Este resultado
levou a um parlamento suspenso sem maiorias claras. A legislatura se
desdobrou com três governos diferentes liderados pelo PD (Letta, Renzi,
Gentiloni) apoiados por outros partidos. Renzi, que era uma gura popular,
promoveu reformas econômicas e políticas, mas mesmo assim perdeu o
referendo constitucional em dezembro de 2016 e renunciou. Essa situação
impulsionou a retórica antiestablishment dos partidos populistas e ajuda a
explicar o resultado das eleições de 2018 (CHIARAMONTE et al., 2018).
As eleições de 2018 se repetiram e reforçaram as tendências de 2013.
É importante notar que a centro-direita corre em uma coalizão unicada
que “representava os quatro ‘espíritos’ da centro-direita italiana, como
criado 25 anos antes por Berlusconi: a área pós-fascista agora representada
por Fratelli d’Italia (FDI, Irmãos da Itália); o pós-cristão Democrata Noi
con l’Italia-Unione di Centro (NCI-UDC, Nós com a Itália-União do
Centro); o pró-mercado livre FI — o próprio partido de Berlusconi; e o
Lega” (CHIARAMONTE et al., 2018).
Como em 2013, as eleições resultaram novamente em um parlamento
suspenso que, apesar do crescente destaque de novos partidos, de alguma
forma manteve os mesmos três polos a partir de 2013. No entanto, há uma
grande mudança em relação aos partidos populistas com uma distinção
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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entre “velha política” e “nova política”: enquanto os principais partidos
(PD e FI) perderam assentos, os dois partidos, com diferentes vertentes do
populismo, o M5S e o Lega melhoraram seus resultados. Além disso, novos
decotes parecem estar implícitos nos resultados: enquanto os resultados
de Lega parecem ser alimentados pelo populismo cultural (nativismo,
anti-imigrantes), os eleitores do M5S seguem um populismo político
(anticorrupção, antiestablishment, democracia) (CORBETTA et al., 2018).
Apesar das diferenças entre os dois partidos, após meses de negociações,
houve um acordo sobre a formação de um governo de coalizão.
É importante notar que os resultados da direita não melhoraram em
relação à década de 1990. A diferença é que há uma mudança no polo -
a Lega sob Salvini torna-se proeminente. No entanto, os dados parecem
sugerir que o realinhamento está longe de terminar e que Lega pode se
tornar o ator hegemônico (CHIARAMONTE et al., 2018).
Pode-se argumentar que a transformação do polo de direita na Itália
vai de liberal, sob Berlusconi, para “neofascista”. Essa virada é marcada
pela crescente relevância dos grupos de base e da hegemonia do Lega
em nível institucional (DE GIORGI; TRONCONI, 2018). Como dito
anteriormente, a direita radical na Itália é um espaço heterogêneo e após a
crise a crescente relevância de partidos políticos como FdL, Fratelli d’Italia
e Lega, mas também pelo ativismo popular como CasaPound (CAIANI et
al., 2012; GATTINARA et al., 2018).
Em 2007, uma nova federação de partidos políticos de direita (que
incluíam Forza Italia e Aliança Nacional) - Povo da Liberdade (PDL) -
foi criada com o objetivo de reforçar sua posição conjunta nas próximas
eleições de 2008. No ano seguinte, esta federação se fundiu em um novo
partido político, com todos os partidos se dissolvendo. No entanto, a
Forza Italia foi refundada em 2013 e a PDL tornou-se novamente uma
coalizão de centro-direita, enquanto os antigos membros da Aliança
Nacional formaram um novo partido chamado Fratelli d’Italia com claras
inclinações neofascistas. Até o m do governo de Berlusconi (devido a
escândalos de corrupção), esta coalizão de conservadores/fascistas à moda
antiga e liberais governou o país por 20 anos (RUZZA, 2018).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
24 |
Na última década, com a decadência de Berlusconi, a Lega tornou-
se o líder do polo de direita. Curiosamente, não só a Lega não é só um
novo partido, mas é também atualmente o partido mais antigo da Itália.
Criado na década de 1980 como um partido regional que defende a
independência da Padânia (norte da Itália), integrou os governos da Forza
Italia de Berlusconi desde a década de 1990. De fato, durante esse período,
mesmo defendendo uma posição etnonacionalista, convergiu com o ethos
neoliberal da Forza Italia (RUZZA, 2018).
No entanto, o Lega não teve um caminho fácil após o estouro da crise
de 2008. Em meio a um escândalo de corrupção, o partido desmorona nas
eleições de 2013: a partir de 2008, quando seus resultados somaram 8,3%
(60 cadeiras), eles enfrentam um declínio acentuado em 2013, onde tinham
4,09% (18 cadeiras). No entanto, Matteo Salvini, um membro de longa data
do partido, tornou-se líder da Lega em 2013 e redeniu a imagem do partido
no cenário político italiano: em vez de um partido regionalista, o partido se
concentra agora na Europa e na imigração à imagem da Frente Nacional na
França e deixa de lado suas credenciais do norte para atingir todo o país. Isso
poderia ser resumido como nacionalização e desterritorialização ao integrar
inuências “transnacionais” (CAIANI, 2018b).
Essa redenição de sua imagem foi iniciada com a criação de um
partido-irmão (Nós com Salvini – Noi con Salvini - NcS) no sul da
Itália, para dar a ideia de que o “inimigo” do partido não era mais o sul.
Além disso, em 2017 eles abandonaram a palavra norte de seu nome e
Salvini iniciou uma campanha para se tornar primeiro-ministro, enquanto
reforçava suas posições nativistas e de direita radical e de lei e de ordem.
Nas eleições gerais de 2018, depois de concorrer em uma coalizão
com outros partidos de direita (FI, FdL, Nós com a Itália), eles se tornam o
terceiro maior partido do Parlamento e o “líder” do polo de direita. A Lega
se torna a principal força dentro da coalizão destronando a liderança de
Berlusconi. Essa estratégia levou a um aumento na votação, com 17. 4% e
125 as cadeiras no Parlamento. Desde as eleições, e assumindo o poder, a
Lega tornou-se o principal partido nas pesquisas.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Mas a crise também levou a um ressurgimento e recriação da direita
neofascista, como CasaPound e Forza Nouva, que mantêm conexões com a
Lega e a FdL (DE GIORGI; TRONCONI, 2018; FROIO; GATTINARA,
2015; GATTINARA et al., 2018). Criada em 2003, mas que tem seu status
ocial de “associação de promoção social” apenas em 2008, a CasaPound é
um grupo político originário de partidos neofascistas pré-existentes (CAIANI;
PARENTI 2013) e conecta atividades subculturais (como a música), com
atividades populares e ações políticas. Assume-se como um movimento fascista
(rejeitando rótulos de esquerda-direita) e se opõe ao neoliberalismo, com seu
discurso sendo “amplamente inspirado pelas experiências da juventude do
neofascismo dos anos 1970, atraindo tanto neofascistas nostálgicos quanto
recrutas mais jovens”. (GATTINARA et al., 2018). É importante notar que
suas atividades e discursos não são apenas culturais ou nativistas de natureza,
mas, na verdade, seus membros armam que o grupo começou devido às
más condições de moradia para os italianos (ver tabela 1 abaixo). Além disso,
promovem uma posição antiliberal e anti-UE. Gattinara et al (2018) apontam
que sua ideologia é uma espécie de fascismo à la carte que capta aspectos
do fascismo que se encaixam no ambiente político atual, deixando de lado
propostas que poderiam colocar em risco a legitimidade do grupo. Eles se
situam entre o protesto e a política eleitoral (apesar do pouco sucesso neste
último) se encaixando na denição de movimento-partido dado na introdução.
É importante notar que a CPI (CasaPound) muitas vezes se alia à Lega
Nord: "A Lega Nord precisava da CasaPound e de sua rede de associações,
clubes esportivos e salas de concerto para estender sua inuência nas regiões
do sul da Itália, enquanto a CasaPound se beneciou da visibilidade nacional
oferecida pela joint-venture com um partido anteriormente governante. Para
a Lega Nord, isso signicava abandonar suas posições secessionistas originais
em favor de uma nova retórica nacionalista baseada no euroceticismo pleno.
Para a CasaPound, em vez disso, essa aliança permitiu abordar temas que –
até então – tinham sido abordados apenas marginalmente pelo grupo, mais
notavelmente a questão da imigração" (FROIO; GATTINARA, 2015).
Além disso, como Giorgi e Tronconi (2018) argumentam: "o ressurgimento
da direita radical representa uma nova realidade e uma possível fonte de
perigo, mas também de oportunidade, especialmente para a Liga e o FDI.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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A importância (apenas em termos de cobertura da mídia por enquanto)
de grupos políticos que até agora foram marginalizados sugere que há um
crescente pool eleitoral no qual os principais partidos podem ser capazes
de alcançar. No entanto, os novos concorrentes no cenário político podem
afastar o consenso dos partidos de centro-direita ou restringir seu espaço
para manobras. E tudo isso existe sem sequer considerar as questões sérias e
preocupações que a legitimação desses grupos políticos deve levantar sobre o
estado de saúde da democracia italiana".
virada naTivisTa e eurOPa
Desde 2008, a UE (União Europeia) desempenhou um papel cada vez
mais signicativo na política interna nos países do Sul da Europa. Três crises
desempenham um papel importante nas oportunidades discursivas tomadas
pelos partidos que agora dominam a política italiana: a zona do euro, a crise de
migrantes/refugiados e a legitimidade democrática (GATTINARA, 2017).
Além dessas crises sobrepostas que afetaram o país e estão ligadas à UE, no
contexto da crise da Zona do Euro, o país tinha um governo tecnocrático
implementando um programa diretamente ligado à UE.
Figura 1. Atitudes em relação à UE na Itália (1973-2011)
3
Fonte: Eurobarômetro 1973-2011
Nota do tradutor: as perguntas e frases acima do gráco são assim traduzidas na sequência: “Falando em termos
gerais, você acha (que o pertencimento do seu país) à União Europeia...”; : “Falando em termos gerais, você acha
(que o pertencimento do seu país) à União Europeia é...”; Itália (de 09/1973 a 05/2011). Na ordem, as expressões
abaixo do gráco são assim traduzidas: “Uma coisa boa”; “Uma coisa ruim”; “Nem boa nem má”; “Eu não sei”.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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A Figura 1 mostra que, desde o início dos anos 2000, cada vez
menos italianos consideram a adesão à UE uma coisa boa. Se até o início
do século os valores de aprovação giravam em torno de 70%, no auge da
crise em 2011 era de cerca de 40%. Este fato abre a estrutura discursiva
de oportunidades para o surgimento de posições eurocéticas em nível
nacional, uma questão que era consensual até muito recentemente.
Pirro e Kessel (2017) argumentam que atores populistas enquadram
essas crises como uma forma de “expressar a dissidência contra a UE”. O
discurso de Salvini é claramente soberano e nativista usando a expressão
“Italianos primeiro”. Ele critica a Europa por “se constituir de burocratas
e tecnocratas que trabalham contra os reais interesses do povo europeu
(PASQUINO, 2019). Nesse contexto, é importante mencionar que, no
processo contínuo de realinhamento, dada a estrutura de oportunidades,
o surgimento de tensões e conitos “também pode ter consequências que
vão além do contexto doméstico. Se os partidos eurocéticos continuarem a
prevalecer, a relação entre a Itália e a UE sofrerá tensões crescentes e poderá
até colocar em risco a própria existência da União na sua forma atual”
(CHIARAMONTE et al., 2018).
Seguindo Bressanelli e de Candia (2019), pode-se argumentar que as
posições tomadas na UE pela Lega reetem as estratégias e os eleitores em
nível nacional, o que se traduz diretamente em sua política atual de alianças
em nível europeu. Corbetta e colegas (2019), com base nos resultados
eleitorais da Lega de 2018, mostram que a Lega explora o populismo
cultural (nativismo) em suas alianças e críticas à UE fazendo alianças com
partidos nativistas em toda a Europa.
Sob a liderança de Salvini, a Lega passou de um partido regionalista,
que se concentra nos interesses do norte da Itália e exigindo independência
para a chamada região da Padânia, para se tornar um partido nacional. Essa
mudança de escala levou também a uma mudança e a uma transformação
dos quadros e discursos do partido: a desnacionalização partidária criou
um novo “inimigo”, já que o establishment é hoje considerado a UE que
age contra os interesses dos italianos em vez de Roma. No entanto, não foi
a crise que desencadeou a virada nativista e anti-Europa, pois sua posição
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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já estava mudando lentamente desde a década de 1990 de uma organização
otimista em relação à UE para um perl eurocético.
Na década de 1990, dadas as suas opiniões regionais, eles criticaram
o “super-Estado antidemocrático” que agiu contra os interesses do povo
europeu. No entanto, até a erupção da crise, o partido nunca pediu uma
saída da UE ou da Zona do Euro, pois “nem a UE nem suas políticas foram
consideradas diretamente responsáveis pela situação econômica do país
(PIRRO; KESSEL, 2017). A radicalização de seu discurso contra a UE vem
após 2013 com a eleição de Salvini como líder do partido. A austeridade e
as políticas europeias foram agora consideradas responsáveis pela crise em
nível nacional e o partido pediu a saída da UE e da Zona do Euro. Pirro
e Kessel sugerem que essa radicalização pode ser “lida através do contexto
político interno” à medida que a lealdade da UE entre os eleitores declinou
e abriu o caminho para que esses quadros se tornem proeminentes. Também
é importante notar que, devido à sua liação à coalizão de centro-direita,
durante o período eleitoral de 2018, eles tiveram que restringir suas opiniões
mais eurocéticas. No entanto, após as eleições e à medida que se tornam
o principal partido da coalizão e integram o governo, tornaram-se menos
contidos em suas críticas à UE e uso para ns eleitorais.
Em termos de sua liação no Parlamento Europeu, até o surgimento
da crise, a Lega Nord fez parte de vários grupos. Se inicialmente eram grupos
pró-europeus, o partido lentamente integra os congêneres eurocéticos.
Após as eleições europeias de 2009, o partido juntou-se à recém-criada
“Europa da Liberdade e da Democracia” integrada por partidos como
UKIP e e True Finns. Em 2015, o partido integra a Europa das Nações e
da Liberdade, uma aliança de direita radical liderada por Le Pen e Wilders.
Em consonância com isso, o manifesto eleitoral europeu da Lega ressaltou
o papel de suas raízes cristãs, a defesa da identidade nacional, sublinhando
a supremacia da constituição italiana sobre as diretivas europeias. Como
consequência, este manifesto se posicionou fortemente contra as políticas
de imigração, a integração da UE e a austeridade.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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5. a direita radical PoPulista no Governo
Como o Sul da Europa foi o mais atingido pela crise nanceira e pela
recessão de 2008, muitas pessoas viram os padrões de vida encolherem, os
partidos centristas que governaram até então – e os eurocratas em Bruxelas
com sua austeridade na prancheta – tornaram-se um alvo óbvio. Na Itália,
décadas de corrupção, má gestão e o impacto da crise dos refugiados de
2015 resultaram no Movimento Cinco Estrelas antiestablishment, anti-
impostos e antigastos, que tomou o poder no ano passado, em uma
improvável coalizão com a extrema-direita e anti-imigração Lega. Mais
especicamente, nas eleições gerais italianas de 2018, o outsider Movimento
Cinco Estrelas melhorou seu desempenho desde as eleições nacionais de
2013 (das quais já recebeu uma forte legitimação política como o terceiro
partido mais importante do país) obtendo 32% dos votos. Nas mesmas
eleições, o partido radical de direita populista Lega (para mais detalhes
ver Caiani, 2019) alcançou um inédito 17%. O M5S e o Lega, apesar
das longas negociações, nalmente uniram forças para implementar uma
agenda de governo compartilhada: um governo “totalmente populista
(PIRRO, 2018). Como tal, o atual governo italiano baseia-se em um frágil,
estratégico, conveniente, mas também conituoso compromisso entre
duas formas de populismo.
Em termos de políticas de imigração e integração, o programa de
coalizão, com o Ministro do Interior sob o comando de Salvini, mirou
essa questão diretamente, com uma virada nativista. A ação do Lega
sobre as políticas de imigração se estende entre i. ações e anúncios
sensacionalistas pontuais (ou propaganda), e ii. decretos de securitização
e criminalização que efetivamente reduzem os direitos dos migrantes. No
primeiro encontramos episódios repetidos, como o fechamento de portos
para barcos de refugiados ou anunciando um censo de pessoas decretado
por Roma (o que não aconteceu); neste último encontramos decretos
(como o chamado decreto de Salvini, no outono de 2018) que estreitam
os direitos de asilo, impedem o resgate no mar e punem sobreviventes e
socorristas. Em detalhes, o decreto levou a: (1) a restrição de “obter um
visto humanitário para permanecer na Itália” se não estivesse relacionado
com razões políticas ou guerra; (2) a limitação do acolhimento adequado
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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aos requerentes de asilo; (3) a duplicação do tempo que as pessoas
podem ser detidas antes da deportação (90 a 180 dias); e (4) a expansão
da lista de delitos pelos quais o status de refugiado pode ser revogado,
permitindo a negação de pedidos de asilo (o suciente para ser aplicado)
(SUNDERLAND, 2018). Além disso, o Ministro do Interior legitima
as medidas com um discurso que classica migrantes e requerentes de
asilo como criminosos, e conecta migrantes com a máa e os tracantes
de pessoas (ZAMPANO, 2018). No caso da Lega, radicaliza seu discurso
populista público sobre migração, ao mesmo tempo em que o materializa
a formulação de políticas como mostrado acima.
conclusão
Como aponta Ruzza: “a trajetória recente da direita radical italiana e
suas principais formações - FdL e LN - é marcada pela perda de relevância
do partido de Berlusconi após as eleições de 2013 e pela expulsão de
Berlusconi do Senado depois que ele foi considerado culpado de sonegação
scal” (Ruzza, 2018: 508). Juntamente com a crise da decadência de
Berlusconi, também deve ser levada em conta o processo de mudança de
imagem da Lega sob a liderança de Salvini, a Lega tornou-se o principal
partido de direita. Mesmo que atualmente a direita italiana tenha uma
parcela menor dos votos do que na década de 1990, houve uma ruptura
com a política liberal da Forza Italia e uma radicalização em direção a
posições radicais de direita, nativistas e eurocéticas, com uma visibilidade
crescente dos movimentos de base neofascistas e de colaboração com atores
institucionais que constituem uma importante força auxiliar no terreno
(DE GIORGI; TRONCONI, 2018).
Além disso, pode-se argumentar que o processo de realinhamento
ainda está em andamento, e mais mudanças serão vistas no futuro à medida
que o processo político em curso se desenrolar. Após as eleições europeias de
2019, a vitória marcante de Salvini (34%) nas eleições europeias, o “bloco
de direita se consolidou sob sua liderança. Até o colapso do Governo da
Mudança no verão de 2019, a mensagem de Salvini deu voz a um bloco
social que estava infundido com o medo e com a pobreza. A estratégia
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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de Salvini ocupou a mídia e construiu uma hegemonia política sobre a
centro-direita e o 5SM, com uma agenda libertário-populista que misturava
liberalismo com populismo nas políticas sociais, ou seja, enquanto tentava
liberalizar a economia, ele forneceria o apoio à classe média e aos perdedores
da globalização em meio à sua profusão de sua campanha de imigração.
Agora vamos precisar esperar para ver o que acontece.
Na Itália, quanto ao discurso público sobre temas sensíveis para os
populistas como a imigração, temos de considerar que a crise dos refugiados
teve um impacto forte e concreto sobre o país, alimentando um discurso
contra os imigrantes que está na base das posições da Lega (e, em parte,
do M5S). A Lega defende uma visão claramente nativista que coloca o
“italiano em primeiro lugar”, por mais que grande parte desse discurso
público já estivesse presente antes do governo de coalizão, alimentado
pelo surgimento de Salvini como líder da Lega. Em última análise, a
Lega faz uso da imigração para entrar em conito com a UE. Mantendo
suas credenciais eurocéticas no governo, o objetivo da Lega é mudar as
instituições europeias por dentro (JONES, 2018).
Finalmente, mesmo que na Itália, o populismo (direita radical)
não está tentando mudar e controlar as instituições do país. No entanto,
no relatório do índice Democracia 2018 da Unidade de Inteligência do
Economista, é demonstrada uma queda do país da 21ª para a 33ª posição,
uma vez que, como comentado, a Itália aparece caracterizada pelo “crescente
apoio a ‘homens fortes’ que ignoram as instituições políticas” (e Local,
2019). Além disso, o uso da retórica antimigrantes/estrangeiros revela um
desrespeito aos direitos civis e humanitários (THE LOCAL, 2019).
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Drº. Jeerson Rodrigues BARBOSA
1
introdução
O extremismo político de direita e a agenda da direita radical
têm obtido grande repercussão no contexto de crise das democracias
representativas contemporâneas. Muitas análises sobre esses fenômenos
políticos são denominadas de forma generalizante pela imprensa e trabalhos
acadêmicos sob a expressão extrema-direita. Formulação limitada em termos
cientícos conceituais (BARBOSA, 2015, p. 153), assim como o termo
extremismo político. Entretanto, são operacionais para a identicação de
ações e concepções que evidenciam postulados como violência, xenofobia,
revisionismo histórico e políticas antidemocráticas daqueles que propalam
formas de nacionalismo de matriz chauvinista.
Professor de Teoria Política Contemporânea do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE)
da Faculdade de Filosoa e Ciências (FFC) da Unesp. Campus Marília, SP. E-mail: jeerson.barbosa@unesp.br.
https://orcid.org/0000-0001-9168-8469.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p35-68
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
36 |
Pesquisas e debates acadêmico contemporâneos sobre as direitas têm
destacado que entre formas de legitimação de diferentes modelos societais
de autocracia burguesa, um aspecto geral das direitas, estas podem ser
analisadas nos aspectos de suas particularidades. Por exemplo, aqueles que
são explicitamente tributários do fascismo e nazismo históricos e ditaduras
(como as Ditaduras Militares). Os neoconservadores que defendem pautas
de de defesa de valores morais e costumes e atuam nos debates públicos,
no campo da imprensa e dos ofícios intelectuais de educação e cultura, sob
prerrogativas do apelo a tradição, ordem e autoridade. E, os políticos e partidos
de orientação antiestablishment, chamados também nas ciências sociais na
Europa de “populistas de direita”. São aqueles que se colocam retoricamente
contra instituições e pontos do sistema representativo e pressupostos
constitucionais, portando concepções ultraliberais ou de chauvinismo de
bem-estar social, mas disputando eleições. O critério conceitual de direita
radical tem estas três distinções (MUDDE, 2007, 2106).
Cas Mudde, em “A extrema direita hoje” (MUDDE, 2019), arma
que as organizações da direita radical no século XXI diferem de seus
congêneres da segunda metade do século XX, porque estas organizações
foram, em muitos casos, “normalizadas”, tornando-se parte do sistema
político ocial de muitos países. Nesse sentido, o autor arma que
grupos e ideias extremistas, antes consideradas marginalizadas depois da
segunda guerra mundial, se inltraram com êxito nas correntes políticas
estabelecidas e no mainstream político.
Para o autor, que é referência internacional nos estudos do que ele
denomina de ‘direita radical’ (MUDDE, 2007, 2016), o que antes eram
manifestações políticas periféricas, agora, são manifestações políticas
estabelecidas no sistema político ocial de muitos países. Em alguns
países, estão no poder em cargos do executivo, nas instituições legislativas,
disputando o Parlamento da União Europeia, disputando eleições em
municípios e atuando nos meios de comunicação. Dessa forma, em diversos
países, inuenciam as agendas políticas, a opinião pública e as eleições.
Cas Mudde (2019) e outros pesquisadores, referenciados ao nal deste
trabalho, evidenciam com dados de diferentes organizações que, nesta nova
realidade contemporânea, o que antes eram manifestações periféricas e marginais
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 37
se tornaram parte do “novo normal”, argumentando através de evidências
atuais sobre a normalização do extremismo de direita em muitos países e
uma maior inuência de temas da agenda política de organizações da direita
radical. Apontando, sobretudo, a importância da política extraparlamentar
destes líderes e partidos, impulsionando um movimento social mais amplo de
apoiadores, ao invés do enfoque exclusivo da política partidária existe também
uma mobilização social, por exemplo, como os ativistas nos protestos e atos
públicos em plataformas digitais e associações civis.
Diferentes em suas particularidades históricas e singularidades políticas
e ideológicas, estes objetos aqui em análise são entendidos como manifestação
histórica concreta da conjuntura de crise à direita, no contexto brasileiro
com Bolsonaro e internacional com diferentes especicidades nacionais.
A conjuntura brasileira marcada pelo bolsonarismo evidentemente
motivou a organização deste trabalho. Sendo a preocupação do autor
suplantar perspectivas generalizantes que aplicam o conceito de fascismo
como um adjetivo ou pleonasmo. Existe no debate cientíco conceitual e
rigoroso a interpretação da nomenclatura fascismo como uma categoria
transnacional mais ampla, com expressão no debate da bibliograa
especializada sobre o tema (PAXTON, 2007). Alguns estudos no Brasil
trazem também interpretações criteriosas e bem fundamentadas sobre
o Governo Bolsonaro e seus apoiadores sob o conceito de neofascismo
(BOITO JR., 2020; MATTOS, 2020). Não sendo possível aqui, por
espaço e objetivos, aprofundar essas diferentes interpretações.
A partir do critério da valoração das particularidades históricas e
singularidades dos fenômenos sociais, as expressões das direitas compõem
diferenças em seus axiomas. Entretanto, além das particularidades e
singularidades históricas e nacionais, essas manifestações do extremismo
político de direita apresentam um elemento em comum que são formas
de expressão política as quais legitimam a autocracia burguesa como
universalidade, reetindo a lógica da conitualidade de classes.
Os estudos sobre as direitas cresceram nos últimos anos como reexo
também das crises políticas e econômicas na realidade social. Investigações
no campo das ciências políticas e outras áreas das ciências sociais têm
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
38 |
analisado movimentos, partidos e regimes políticos dessa referida cultura
política. Nesse sentido, a busca por critérios metodológicos adequados
motiva pesquisadores deste campo de estudos especíco: as direitas, suas
políticas e ideologias.
Para Cas Mudde (2016, p. 07), o crescimento dos estudos do que
ele denomina como “direita radical” tem sido acompanhado de pouca
inovação teórica desde o início dos anos 1990, e isso ocorre, segundo ele,
porque grande parte dos estudos são quantitativos, baseados em hipóteses,
não em teorias. De acordo com o autor, “novos estudos devem ir além da
zona de conforto das eleições, de dados quantitativos eleitorais e estudos
históricos qualitativos descritivos” (MUDDE, 2016, p.09). Segundo
Mudde, para desenvolver novas ideias, precisamos de novos dados com
base em métodos, como entrevistas, observação participante e análise
qualitativa de conteúdo, através de fundamentos teóricos e conceituais
(MUDDE, 2016, p.09).
A conjuntura contemporânea internacional das últimas décadas
tem evidenciado a presença crescente de muitas lideranças políticas e
partidos disputando posições nos sistemas institucionais de democracias
representativas com armativas de defesa de pressupostos, agendas e
projetos de caráter antidemocrático. Colocando-se como antiestablishment,
entretanto sem romper com a participação e disputas eleitorais, esses
líderes e partidos têm sido denominados pela bibliograa especializada,
como expressões da direita radical (COMPARATO, 2014; DALMONTE;
DIBAI, 2019; MUDDE, 2021, 2019, 2016; NORRIS, 2005).
Participando do sistema político representativo, mesmo portando
valores e discursos em contradição com os princípios constitucionais,
representantes da direita radical se colocam como antissistema, ainda que
de forma retórica. Entretanto, a denominação conceitual direita radical é
propositiva pela vantagem de distinção destes movimentos e partidos da
atualidade, comparando aos tradicionais movimentos, partidos e líderes
de caráter chauvinista que marcaram a primeira metade do século XX,
chamados generalizadamente de extrema-direita ou fascistas.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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As pesquisas sobre o tema, através da análise do desempenho eleitoral
e de agendas políticas, destacam que o aumento dos partidos e candidatos
da direita radial nas disputas e desempenhos eleitorais vem exercendo
inuência não somente em temas e debates, mas obtendo aceitabilidade
por parte do eleitorado, além de inuenciar partidos convencionais de
direita e centro-direita, diante da necessidade de obtenção de votos, apoios
e alianças.
O diferencial principal é que a inuência de pontos da agenda
política da direita radical tem normalizado concepções antidemocráticas
e restritivas sem romper necessariamente com a ordem institucional ou
reproduzir mimetismos tributários a concepções ideológicas e organizativas
ou modelos de estéticas do fascismo histórico.
No Brasil, essas expressões extremistas de direita têm antecedentes
históricos desde a primeira metade do século XX (BARBOSA, 2015).
Porém, com a crise política desde 2013 e a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro
à presidência da República, a mobilização de uma direita radical dentro da
ordem institucional ganhou novas ressonâncias e posições.
Para Cas Mudde, um dos pontos característicos da direita radical
é a suplantação de discussões e programas em torno de problemas
socioeconômicos, priorizando temas socioculturais, e, principalmente,
polemizando em relação a contradições das democracias representativas,
em torno de três eixos principais: corrupção, segurança e imigração
(MUDDE, 2021, 2016).
O debate das ciências sociais contemporâneas na Europa, seguindo
os apontamentos de Cas Mudde e outros autores de referência sobre os
estudos recentes do radicalismo de direita, é oportuno para uma análise de
Jair Bolsonaro
2
e seus seguidores, denominados bolsonaristas, objeto aqui
em discussão.
“Jair Messias Bolsonaro nasceu em Campinas (SP), em 1955. Ingressou no Exército em 1977, tendo chegado
à patente de capitão. No entanto, com pouco mais de 10 anos de carreira, foi encaminhado à reserva por
atos indisciplinares, inclusive pelo plano ‘Operação beco sem saída’, no qual ameaçava explodir bombas de
baixa potência na Academia Militar das Agulhas Negras e em vários quartéis por reajuste salarial. Em 1988,
venceu sua primeira eleição, como vereador do Rio de Janeiro. A partir disso, foi deputado federal por sete
mandatos consecutivos, de 1990 até 2017. Embora tenha protagonizado atos infracionais contra as Forças
Armadas, é defensor da memória da ditadura civil-militar de 1964 e tem os militares como seu principal nicho
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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A crise das instituições e a instabilidade de ordem social e econômica
impulsionam o radicalismo político de direita no Brasil nos últimos anos,
principalmente a partir de 2016 e 2018, quando se aprofundou na conjuntura
nacional um processo antidemocrático que obteve novos impulsos e estímulos
com a vitória eleitoral de Bolsonaro e muitos de seus apoiadores.
O bolsonarismo, enquanto movimento social regressivo e enquanto
intento e ideologia regressiva, é uma manifestação deste período de crise.
Obviamente a expressão bolsonarismo é um produto dos estrategistas
políticos do atual presidente, mas tem capilaridade social, além de
inuenciadores que arquitetam diferentes formas de ativismo político nas
redes sociais. São ativistas políticos que mobilizam atos e protestos com
claro potencial fascistizante.
A construção de uma base de apoio el e acrítica ao atual presidente,
radical, muitas vezes violenta e ignorante, tem a nalidade de ser
instrumentalizada de acordo com os interesses de Jair Bolsonaro, e tem
sido utilizada como base de legitimação de seu governo. Ignóbeis, estes
são entendidos aqui como militantes de um movimento regressivo que
Bolsonaro e seus apoiadores buscam fortalecer e mobilizar, como grupo de
pressão em seu apoio e agenda política.
Em termos de conteúdos ideológicos, defendem um suposto
nacionalismo que na prática é um mero patriotismo retórico, composto
por três bases de sustentação: um postulado conservador como conteúdo
moral (pauta dos costumes); uma defesa intransigente do liberalismo
como orientação econômica (modelo ultraliberal) e a defesa de uma
ordem político-social em que a militarização do Estado e da sociedade
é um princípio importante (concepções de intervencionismo militar)
(MATTOS, 2020).
A correlação entre os princípios de ideologia, economia e política tem
conotações diferenciadas de acordo com os pers dos grupos de apoio ao
presidente. Mas a prerrogativa de uma nostalgia ao regime militar é destaque
de apoio, pelo menos até 2012, quando supomos que ele tenha ganhado mais visibilidade e representatividade,
conquistando simpatia/apoio de outros grupos, sobretudo evangélicos e parte da classe média ressentida com
a esquerda/PT. […] A maioria dos projetos apresentados no Parlamento está relacionada à segurança pública e
defesa da categoria militar. [...].” (DALMONTE; DIBAI, 2019, p. 5).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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para grande parte dos bolsonaristas. No entanto, nem todo bolsonarista
defende uma nova intervenção e ditadura civil-militar. Denominamos,
neste artigo, os que defendem essa referida ideia como ‘bolsonaristas
intervencionistas’. Esse é o grupo de apoio analisado nesta pesquisa.
Para sustentar a reexão sobre alguns dos elementos da ideologia
e movimento bolsonaristas, na apologia à defesa do intervencionismo
militar, são aqui apresentadas algumas exemplicações de situações de
mobilização destes apoiadores do presidente, assim como discursos de Jair
Bolsonaro no âmbito de apoio ao intervencionismo militar na sociedade e
administração do Estado Brasileiro.
Entre “mitos” e mitologias políticas no Brasil contemporâneo, desde
o projeto “Ponte para o Futuro”, slogan utilizado pelo governo federal com
Michel Temer depois do desenvolvimento, em 2016, do Golpe de Estado
(BIANCHI, 2016), observamos um rápido processo de crise das instituições
democráticas representativas no país, onde poderíamos tristemente ironizar
com o resgate - indevido - do lema de Juscelino Kubitschek: “cinquenta
anos em cinco”, só que com saltos para trás.
Os bolsonaristas, na acepção defendida nesta análise, são entendidos
como uma base de mobilização social que se faz presente em diversas cidades
brasileiras em atos de protesto, carreatas e manifestações. Seja em defesa
do atual presidente, defendendo o fechamento do Congresso Nacional, o
m do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) e a volta da Ditadura Militar. Obviamente esta última pauta, aqui
enfatizada, mobiliza com maior inuência a parte dos bolsonaristas que
denominamos de bolsonaristas intervencionistas militares.
Nesse sentido, as armativas de apologia à tendência intervencionista
militar são privilegiadas, nesta abordagem, através da análise de fontes
primárias, conteúdos de discursos e manifestações de Jair Bolsonaro como
presidente, e da mobilização de seus ativistas em entrevistas, protestos e
em ações de apoio ao governo. A discussão da ideia de mito político é aqui
também brevemente colocada e alguns fundamentos de teoria política são
instrumentalizados para a análise do bolsonarismo no debate sobre o que
pesquisadores denominam de direita radical.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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as três PrinciPais tendências entre os Bolsonaristas e o mito do
intervencionismo militar Para a ordem
A distinção dessas tendências de direita, que apoiam e formam o
bolsonarismo e pontos de sua agenda política, revela traços e nalidades
de sua função social e fundamentos ideológicos. Assim, são portadores da
defesa de uma concepção autocrática de governo.
Aqui são referenciadas algumas distinções acerca dos grupos ou
tendências que caracterizam os apoiadores do presidente e seu governo,
segundo dados retirados de importante pesquisa publicada no livro
“Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil
(MATTOS, 2020):
Em quase todas as análises sobre a composição e o primeiro ano
do governo Bolsonaro, foram destacados os diferentes grupos que
o integram. Um forte núcleo militar está presente do primeiro ao
quarto núcleo dos ministérios, secretarias, autarquias e fundações
federais. A ele se soma um núcleo dito “ideológico” (como se os
demais fossem “técnicos”), fortemente inuenciado por Olavo
de Carvalho, de um lado, e do fundamentalismo evangélico, de
outro, que teria ocupado os postos de comando nos ministérios da
Relações Exteriores, da Mulher e Família e da Educação. O terceiro
núcleo é o dos economistas ultraliberais, comandados por Paulo
Guedes. Aos três núcleos se somou a chancela da gura pública
de maior popularidade do governo entre os setores que foram às
ruas “contra a corrupção” e votaram em Bolsonaro: o ex-juiz Sergio
Moro, no ministério da Justiça. (MATTOS, 2020, p. 204-205).
A função social dos conteúdos ideológicos do bolsonarismo
(intervencionismo militar, pauta da moral e dos costumes e ultraliberamismo
na derfesa do Estado mínimo) é dar fundamento e sentido aos apoiadores
do governo sobre as políticas defendidas pelo presidente, servindo como
instrumento de orientação para seus apoiadores mais mobilizados e
proporcionando também aos simpatizantes elementos de justicativa acerca
da suposta ideia de uma superação da “velha política” (onde combate ao
petismo é fator de articulação entre estas três vertentes do bolsonarismo).
Na promessa retórica do início de uma “nova política” - moralmente
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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cristã, defensora das liberdades de mercado e da defesa da propriedade e
sustentada pelas autoridades e pela ordem, garantida pelos militares.
Portanto, trata-se de uma coalizão de segmentos sociais que
apoiam deliberadamente um regime de autocracia burguesa (MATTOS,
2020), por isso a desvalorização entre eles de pressupostos de uma
organização institucional regulada por instituições políticas de democracia
representativa ou popular. Assim, são aqui denominados de direita radical,
porque se colocam à direita da direita, desdenhando dos procedimentos
constitucionais, sem romper com o sistema político-eleitoral. Não sendo
necessariamente tributários do fascismo.
3
O dispositivo militar, no sentido de privilegiar recursos militarizados
para a manutenção de uma ordem social, é então um fundamento importante
que sustenta o modelo de sociedade defendido pelos bolsonaristas.
Sobre a dimensão da presença militar no governo, basta
mencionar que nenhum governo desde a ditadura militar (e
mesmo na maioria dos governos daquele período) teve tantos
militares em cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão
nomeados pelo presidente e seus ministros quanto o de
Bolsonaro. [...] (MATTOS, 2020, p. 205).
O bolsonarismo defende um modelo de regime político
antidemocrático, ou seja, um regime autocrático, onde as ações do seu líder
não encontrem entraves e limites constitucionais. Como são nostálgicos
das políticas iniciadas em 1964, defendem uma modalidade de regime
que é aqui entendido como apologia a formas de Estado de Exceção. A
apologia à militarização como critério para a ordem social é explicita nas
manifestações de Bolsonaro e dos bolsonaristas intervencionistas.
No entanto, a apologia à Ditadura Civil-Militar é um elemento
ideológico presente desde o início da trajetória política de Jair Bolsonaro.
Apesar de correlações ideológicas de claro tributo chauvinista. Por exemplo, o lema de Bolsonaro e de seu
governo é “Deus, Pátria e Família”, o tradicional lema apregoado pelos integralistas brasileiros desde 1932
ate hoje. Nesse sentido, chamá-los de neo-integralistas faria mais sentido do que atribuir o conceito de neo-
facismo a Bolsonaro e os bolsonaristas. Entretanto, nenhuma destas duas terminologias nos parecem adequadas
pensando o critério de particularidades e singularidades dos fenômenos históricos. Para não corremos o risco de
generalizações conceituais.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Como apontaram pesquisadores que analisaram seus discursos e entrevistas
desde o nal dos anos de 1980:
A exaltação do militarismo é percebida desde 1986 – quando
publicou seu primeiro artigo em meios de comunicação, cobrando
salários mais justos para o Exército – até 2017 – quando armou
que colocaria militares em metade dos ministérios, caso fosse
eleito presidente da República. No entanto, ao longo desse tempo,
os temas variaram de reivindicações salariais para defesas cada
vez mais contundentes da ditadura e seus atos, inclusive com a
prática de negacionismo histórico. No salvaguardo do regime, ele
adota linhas de argumento nem sempre retilíneas ou constantes
(DALMONTE; DIBAI, 2019, p. 6).
A gênese da trajetória de Jair Bolsonaro como militar de carreira e
as relações deste político durante mais de três décadas, inicialmente como
vereador na cidade do Rio de Janeiro e depois com consecutivos mandatos
como deputado federal, tendo em sua base eleitoral, principalmente,
agentes das forças de segurança pública, policiais e militares da ativa e da
reserva, além de agentes de empresas privadas de segurança, sustentando
suas campanhas com a defesa da pauta da ordem, segurança e melhores
salários para estas categorias prossionais, é pontuada também por outro
estudo importante lançado recentemente que analisa os vínculos diretos de
Bolsonaro com princípios de defesa de uma ordem a ser resguardada sob
uma concepção militarizada de política e sociedade.
Bruno Paes Manso, no livro “A República das Milícias”, argumenta:
O novo mandatário, durante sua carreira militar (curta e banal) e
política (inexpressiva), assumiu ideais herdados dos subterrâneos
do regime militar, nos quais autoridades planejavam conitos em
segredo, compartilhados apenas entre integrantes de uma espécie
de irmandade que acreditava agir em nome da salvação do Brasil.
Essa cultura de heróis invisíveis, guerreiros de uma batalha inglória,
surgiu nos anos sessenta e setenta nos porões da ditadura, nas
batalhas das polícias e das Forças Armadas contra a guerrilha urbana
e os opositores do regime. Durante o processo de redemocratização,
muitos militares que participaram dos confrontos se ressentiram
com as críticas de que foram alvo. Entendiam a volta da democracia
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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como um retrocesso, como um espaço para que esquerdistas
tomassem o poder, justamente os grupos que militares e policiais
haviam se dedicado tanto a combater. Bolsonaro tirou do armário
este ressentimento e faria dele o mote de sua carreira política, como
se fosse um inltrado com a missão de sabotar o sistema que se
formava com a Nova República […] (MANSO, 2020, p. 257-258).
Os mitos chauvinistas que marcam presença na história política
brasileira, hoje, são relembrados e justicados como fundamento
ideológico de discursos do presidente e de membros do governo, assim
como de apoiadores mais engajados. Eles estão reacendendo mitos e
mitologias políticas, como o “anticomunismo”, defesa da militarização da
sociedade para a “defesa da nação”, a concepção de uma “idade de ouro”,
de um Brasil sob a ordem, a exemplo do período da chamada “revolução
de 1964”, denominação dada pelos apoiadores da Ditadura Civil-Militar
brasileira, numa retórica marcada pela naturalização de concepções
conservadoras, no aspecto da política, e liberal, no campo da economia
(DOMBROWSKI, 2020).
O conceito de Mudde de “direita radical” (MUDDE, 2021,
2019, 2016) é válido para a análise e conceituação no campo da ciência
política para fundamentar o Bolsonarismo. Denominá-los de “direita
radical” pode parecer um pleonasmo, mas, nos estudos de Cas Mudde
sobre partidos políticos da direita radical, este conceito é empregado para
fazer distinção de partidos, movimentos e políticos que são chamados de
forma generalizante de extrema-direita. A direita radical não faz apologia
direta ao fascismo, nazismo ou ideologias congêneres que marcaram as
experiências clássicas. A direita radical também é diferente de partidos de
direita tradicionais ou de centro-direita. Na prática, são aqueles partidos
e organizações que se colocam como antiestablishment e têm proposições
denominadas antidemocráticas.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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defesa da militarização e moBilização dos aPoiadores do
Governo
Alguns casos de mobilizações e atos de protestos, impulsionados
por Bolsonaro e seguidos por seus apoiadores durante os últimos três
anos, são aqui exemplicados para destacar como as ações da direita
radical brasileira foram impulsionadas na conjuntura de crise política
nacional contemporânea. Assim como alguns pronunciamentos do
presidente e dados de entrevistas de seus apoiadores em que a apologia ao
intervencionismo e o ataque a instituições são claramente evidenciados.
Dessa forma, as armações do atual presidente e o ativismo político de seus
apoiadores são evidências inequívocas de posicionamentos de confronto e
ataques às instituições representativas. Elemento que colabora com a tese
do bolsonarismo como exemplo contemporâneo no Brasil do que o debate
acadêmico denomina como direita radical.
Entre o início de 2020 e 2021, Jair Bolsonaro e os bolsonaristas
obtiveram repercussão com muitas manifestações de atos de protesto
contra instituições públicas e em apoio ao governo. Destacam-se, no
período, as comemorações do “dia do soldado”, 19 de abril de 2020, no
qual, em muitas cidades brasileiras, ocorreram atos a favor do fechamento
do Congresso e do STF e de uma ditadura militar com a permanência do
atual presidente no cargo de comando do país. (G1, 2020).
No dia 31 de maio de 2020 (GARCIA; FALCÃO, 2020), ocorreram
mais manifestações em Brasília onde apoiadores do governo, vestidos
de verde e amarelo, realizaram carreatas e marchas até a esplanada dos
ministérios e se aglomeravam para ver e ouvir seu “mito”. Foram muitos os
cartazes e palavras de ordem contra o STF, o congresso e, tema constante,
a defesa por uma nova intervenção militar, com Bolsonaro na presidência,
conforme apontado acima.
Estas mobilizações públicas, previamente organizadas e esteticamente
articuladas, poderiam soar como um elemento isolado, já que numericamente
estão longe de serem consideradas “manifestações de massa”. Mas, no
contexto atual, são dados de evidências de uma conjuntura crítica.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Nos referidos atos e manifestações, um dos temas centrais do
pensamento do teórico nacional-socialista alemão Carl Schmitt obteve
vigor: a teoria amigo-inimigo. Nessa perspectiva, é necessário eliminar os
inimigos internos e externos para garantir ao poder soberano a manutenção
da ordem por meios discricionais. O poder soberano é maior do que a
constituição e a neutralização dos adversários conforme Carl Schmitt
dene o conceito político (SCHMITT, 1992).
Neste cenário, que poderia ser ilustrado com imagens do cineasta
Ingmar Bergman, no lme “O ovo da serpente”, os fatos de manifestações em
defesa de um novo intervencionismo militar, no atual contexto brasileiro, são
observados em diferentes atos e protestos dos apoiadores de Jair Bolsonaro.
A banalização do discurso intervencionista militar é popular hoje, a
ponto de o atual Presidente da República participar de um ato em Brasília
organizado em apoio ao retorno da Ditadura Civil-militar e do fechamento
do Congresso Nacional, no referido dia 19 e abril de 2020, dia do soldado.
Assim, foram também organizados atos semelhantes orquestrados nos dois
nais de semana seguintes, dias 26 de abril e 03 de maio, em Brasília e em
outras capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro.
O ato de protesto dos bolsonaristas do dia 19 de abril de 2020,
na capital federal, foi bastante repercutido pelos meios de comunicação
(G1, 2020), principalmente pelos telejornais. Contando com a presença
do atual presidente ovacionado sob a denominação de “mito” nos atos de
Brasília. Outros atos, com reproduções miméticas, assim como carreatas
de apoio ao presidente em diferentes cidades do país, foram realizados com
periodicidade entre 2020 e 2021.
Na ocasião do “dia do soldado”, negando apologia à ditadura e
armando respeito às Forças Armadas, Jair Bolsonaro armou que sua
presença na manifestação foi apenas uma homenagem aos militares. Na
manhã de 19 de abril, glomeradas em frente ao QG do Exército na capital
federal, algumas centenas de apoiadores ovacionaram o discurso do “mito”.
Os manifestantes ouviram seu “mito”, aglomerando-se e sem máscaras em
época de restrições devido à pandemia do coronavírus, discursando sob
gritos e manifestações de apoio, com dizeres dos manifestantes como “Fora
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Maia”, “Fecha o Congresso”, “A nossa bandeira jamais será vermelha” e
“Feche o STF”. Além de vários cartazes com frases como “Intervenção
militar já” e “A voz do povo é soberana. Somos todos bolsonaristas” (G1,
2020). No discurso, também divulgado na internet pelas redes sociais do
presidente, ele armava:
Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque
acreditam no Brasil. Nós não queremos negociar nada. Nós queremos
é ação pelo Brasil. O que tinha de velho cou para trás. Nós temos
um novo Brasil pela frente. Todos sem exceção no Brasil têm que ser
patriotas e acreditar e fazer a sua parte, para que possamos colocar o
Brasil no lugar que ele merece. Acabou a época da patifaria. Agora é
povo no poder. Mas do que um direito, vocês têm obrigação de lutar
pelo país de vocês. Contem com seu presidente para fazer tudo aquilo
que for necessário para que nós possamos manter a nossa democracia
e manter aquilo que é o mais sagrado para nós que é a nossa liberdade.
Todos no Brasil têm que entender que estão submissos à vontade do
povo brasileiro. Tenho certeza, todos nós juramos um dia dar a vida
pela pátria. E, vamos fazer o que for possível para mudar o destino do
Brasil. Chega da velha política agora. Agora é o Brasil acima de tudo
e deus acima de todos.
4
Nas semanas de abril e maio de 2020, que transcorreram de
forma atípica devido ao início da quarentena imposta pela pandemia de
COVID-19, ocorreram muitas manifestações e carreatas pela reabertura
do comércio em diversas cidades (fechado devido à pandemia), além de
atos e manifestações pelo fechamento do STF e do Congresso Nacional,
que proporcionaram novos holofotes para os camisas verde-amarela que
têm na palavra “mito” a expressão de sua crença e apoio ao presidente
(BORGES, 2020).
Outra iniciativa de mobilização na busca de projeção da imagem
atuante do presidente, criada pelos assessores e administradores de sua
campanha, são os encontros matinais com apoiadores e alguns jornalistas,
quando geralmente Jair Bolsonaro comenta temas polêmicos dos
4
FACEBOOK. Jair Messias Bolsonaro. Live. Disponível em: https://www.facebook.com/jairmessias.
bolsonaro/. Acesso em: 20 abr. 2020.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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acontecimentos nacionais e internacionais, testando sua popularidade e
limites diante das quebras de protocolo e afrontamento às regras e normas
institucionais e constitucionais que seu papel exige. (CORREIO DO
POVO, 2020).
A partir de 2021, as manifestações do atual presidente com apoiadores
em passeios com motocicletas em diferentes cidades foram motivos para
críticas e alusões a imagens de Mussolini utilizando-se dos mesmos artifícios
de propaganda em busca de popularidade (PALACIO, 2021).
Na pesquisa intitulada “Bolsonarismo em crise?”, as pesquisadoras
Camila Rocha e Esther Solano (2020), através de pesquisas qualitativas
com entrevistas realizadas com eleitores de Bolsonaro, registraram a
avaliação dos apoiadores do presidente. Os entrevistados foram divididos
em categorias, como “eleitores éis, críticos e arrependidos”.
O argumento central das pesquisadoras é que mesmo pesquisas
apontando a perda de apoio, Bolsonaro ainda mantém uma base estável na
defesa de seu governo. Entre os temas elencados nas entrevistas a questão
da intervenção militar foi destacada:
Finalmente, quando questionados sobre um possível fechamento
do Congresso, existem aqueles que se dizem contrários porque isso
signicaria uma ditadura: ‘Não, não, ditadura nunca. Eu já acho
ele um pouco ditador. Eu conheci gente que viveu na ditadura e
não quero isso de volta, isso nunca, por isso me preocupo com
tantos militares no governo.’ (Mulher, 59, apoiadora crítica).
Outros defendem a medida porque acreditam que o Congresso
seria apenas um antro de corrupção que atrapalharia o governo do
presidente e que, portanto, deveria ser alvo de uma “limpeza geral”.
E, nesse sentido, é interessante observar que enquanto alguns
falam abertamente da necessidade de uma intervenção militar,
outros não estabelecem uma relação direta entre o fechamento do
Congresso e o início de uma ditadura, mas sim com a possibilidade
de que a política no país pudesse recomeçar “do zero”. Chama a
atenção, inclusive, que mesmo aqueles que estão arrependidos de
terem votado em Jair Bolsonaro gostariam que o Congresso fosse
fechado, tamanha a insatisfação com seu desempenho. (ROCHA;
SOLANO, 2020, p.10).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Os dados colaboram com a interpretação aqui defendida de que o
componente do intervencionismo militar é um elemento importante entre
parte dos bolsonaristas, porém, os posicionamentos intervencionistas não
representam um posicionamento hegemônico entre os bolsonaristas:
‘Se toda a política fosse para o lado militar eu acho que o Brasil
iria pra frente. Sou a favor de fechar o Congresso e o STF. Com
o Bolsonaro no poder.’ (Homem, 36, bolsonarista el) ‘Eu sou a
favor também do fechamento. Acho que pra mim não são os lhos
que tão impedindo o Bolsonaro, pra mim é o Congresso mesmo,
porque nada se aprova.’ (Homem, 35, bolsonarista el) ‘Eu
também acho que deveria fechar sim, o cara não pode trabalhar,
não se respeita o presidente, não tem como, tem coisa por trás.’
(Homem, 32, bolsonarista el).
‘Eu acho que não é ditadura. Fecha o Congresso, mas não é para
sempre, aí arruma as coisas e depois volta, mas tem que ter uma
limpeza geral.’’ (Mulher, 45, bolsonarista el) ‘Democracia é o
direito de todos. Mas o problema é que o país está corrompido em
todos os seus pilares. Então, é como se você tivesse uma casa velha.
Você tem que derrubar, começar o alicerce de novo e fazer tudo de
novo. Isso demora tempo. Se zer isso logo, rápido, na próxima
eleição está tudo normalizado e você entrega o país novamente para
o povo e dá continuidade à vida.’ (Homem, 56, bolsonarista el)
‘Eu concordo com isso. Enquanto não tirar os caras vai continuar a
mesma coisa. Quando um cara chega lá e tenta fazer mudança, ele
vai ser barrado, então não vai ter governo. Pra mim o militarismo
devia sim intervir, devia prender os caras e devolver o país pro
Bolsonaro, aí ia estar bom’. (Homem, 34, apoiador crítico) Se os
militares escolherem um cara idôneo, integro, tudo bem fechar,
pra limpar nossas casas, dedetizar, tirar tudo o que tá arraigado
e começar do zero. Mas fechar pra largar um que tá defendendo
os lhos aí eu sou contra.’ (Homem, 45, arrependido) ‘Na minha
opinião tem que ser fechado, o Jair tem todos os seus defeitos,
mas é um cara que quer fazer algo e as pessoas impedem, e quem
faz isso é o Congresso. Então deveria fechar, deveria fazer alguma
coisa, porque do jeito que tá a situação vai piorar.’ (Homem, 41,
arrependido). (ROCHA; SOLANO, 2020, p.10).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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A relação à apologia ao regime militar e à valoração da ordem é
evidenciada na “live” realizada pelo presidente no dia 29 de julho de 2021. Nessa
ocasião, Bolsonaro alegou irregularidades e supostas fraudes nas últimas eleições
presidenciais defendendo o m do voto eletrônico para as eleições de 2022:
[...] Não tem preço narrar o que eu sinto quando eu desço em um
aeroporto e sou aclamado pelo povo que vai lá de graça, que vai
com a camiseta verde amarela. Nas andanças por aí eu vejo brilhar
os olhos do General Augusto Heleno de ver a sua pátria tomada
pelas cores verde e amarela [...]. Nós conseguimos trazer de volta o
patriotismo ao povo brasileiro. E tem gente incomodada com isso.
Quer destruir isso. Usando as armas da democracia. O povo não vai
permitir isso. E digo a vocês que meu exército é o povo brasileiro.
O exército verde oliva, é o exército do Brasil. Também nunca faltou
quando a nação assim chamou as Forças Armadas. A história viveu
momentos difíceis. Mas, a nossa liberdade foi preservada. Onde as
Forças Armadas não acolheram o chamamento do povo, o povo
perdeu sua liberdade. Orgulho de minha marinha, do meu exército
e da minha aeronáutica. Orgulho das forças de segurança nacional,
das polícias militares, polícias civis. [...] Está em nossas mãos o
futuro da nossa pátria. Nossa redenção está em nossas mãos. Sou o
messias”. Mas, quero jogar nas quatro linhas da constituição. [...].
5
Os ataques constantes às instituições e a crise da democracia
representativa no Brasil sob o governo Bolsonaro podem também ser
exemplicados em outros acontecimentos que impulsionaram grandes
expectativas de seus apoiadores mais diretos, como as mobilizações de
protestos no feriado nacional de Sete de setembro de 2021. O jornal BBC
Brasil, em reportagem publicada no dia das manifestações, fez uma síntese
das armações de Bolsonaro durante o ato de 7 de setembro, em Brasília:
O presidente Jair Bolsonaro fez uma série de ameaças ao Supremo
Tribunal Federal (STF) e à democracia nesta terça-feira (7/9) em
discurso na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para manifestantes
que se reuniram no 7 de Setembro para apoiar o governo.
YOUTUBE. Live da Semana - Presidente Jair Bolsonaro. 29 jul. 2021. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=C4sE3OAVpHY. Acesso em: 30 jul. 2021.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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“Não podemos continuar aceitando que uma pessoa especíca da
região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população.
Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil”, disse
Bolsonaro em referência ao ministro Alexandre de Moraes, do STF,
que determinou nesta segunda (5/9) a prisão de apoiadores do
presidente que publicaram ameaças ao tribunal e a seus membros.
“Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer
aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos
e sabemos o valor de cada Poder da República”, completou
Bolsonaro, conclamando o presidente do STF, Luiz Fux, a interferir
nas decisões de Moraes - algo que seria inconstitucional. […] (BBC
Brasil, 2021).
A cobertura da grande mídia dos atos de apoio a Bolsonaro e seu
governo repercutiu nos meios de comunicação como telejornais, canais
da internet e redes sociais, principalmente nas mídias controladas por
Bolsonaristas.
Foram organizadas carreatas até Brasília, acampamentos de
apoiadores na Esplanada dos Ministérios, se arquitetou uma paralisação
dos caminhoneiros, em parte cumprida, representantes do agronegócio
enviaram máquinas agrícolas para a capital federal para bloqueios, em
um teste de mobilização do Bolsonarismo em nível nacional. Pois, além
de uma grande manifestação no Distrito Federal, também atos de apoio
ao governo ocorreram nas principais cidades do país, como São Paulo,
na avenida Paulista, na cidade do Rio de Janeiro e dezenas de atos que
ocorreram em cidades do interior em diferentes estados.
Seguindo pontos de destaque da fala do presidente no ato de 7 de
setembro, em Brasília, ressalta-se o tom de ameaças e a busca de apoio por
parte dos setores militares dentro do governo:
“Não queremos ruptura, não queremos brigar com Poder algum,
mas não podemos admitir que uma pessoa coloque em risco a nossa
liberdade.
Em cima de um carro de som, diante de manifestantes que vestiam
verde e amarelo, Bolsonaro usou repetidas vezes o argumento de
que a Constituição Federal estaria sendo ferida por outro Poder.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Mas ele próprio fez ameaças que, se concretizadas, signicariam
violações graves da Constituição.
“Nós todos na Praça dos Três Poderes juramos respeitar a nossa
Constituição. Quem age fora dela se enquadra ou pede para sair”,
disse, acrescentando que as manifestações do 7 de Setembro são um
ultimato” aos Poderes da República.
“Peço a Deus coragem para decidir. Não são fáceis as decisões.
Não escolham o lado do conforto. Sempre estarei ao lado do povo
brasileiro. Esse retrato que estamos tendo nesse dia é de vocês. É um
ultimato para todos que estão na praça dos Três Poderes, inclusive
eu, presidente da República, para onde devemos ir”, declarou.
No carro de som, bem ao lado de Bolsonaro, presenciando as
ameaças do presidente, estava o ministro da Defesa, general Braga
Netto.
“Eu jurei um dia, juntamente com (o vice-presidente) Hamilton
Mourão, juntamente com Braga Netto, darmos nossa vida
pela pátria. Vocês, se não zeram esse juramento, zeram outro
igualmente importante: dar a sua vida pela sua liberdade”, declarou
Bolsonaro.
A partir de hoje uma nova história começa a ser escrita aqui no
Brasil. Peço a Deus mais que sabedoria, força e coragem para bem
presidir”, completou, sendo aplaudido por Braga Netto e demais
ministros. (BBC Brasil, 2021).
Os embates de Bolsonaro contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
também devem ser mencionados como exemplo de crise no Brasil. Pois,
depois de eleito, o presidente buscou deslegitimar o processo eleitoral,
os sistemas de votação eletrônica e o TSE numa postura que ertava
com formas de intervenção e suplantação dos pressupostos jurídicos
que respaldam as instituições representativas. Como no nal de mês de
julho de 2021, em que Bolsonaro realizou uma “live” em rede nacional
questionando o sistema eleitoral brasileiro fundamentando informações
falsas, as denominadas “Fake News”.
A repercussão foi grande e o próprio Senado se manifestou contra o
presidente em notícia divulgada pelo site ocial “Senado Notícias” com a
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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manchete: “Senadores classicam live de Bolsonaro sobre urna eletrônica
como ataque à democracia”.
Senadores criticaram, pelas redes sociais, live realizada pelo
presidente Jair Bolsonaro em que ele voltou a dizer, que houve
fraude nas eleições de 2018. Para eles, a transmissão ao vivo feita
na noite de quinta-feira (29) foi “constrangedora”. E a classicaram
como um “grave” ataque ao sistema democrático brasileiro.
(AGÊNCIA SENADO, 2021).
As referências aqui articuladas de discursos do presidente e a cobertura
da imprensa a acontecimentos importantes nesta conjuntura de crise que
marca as instituições e a sociedade brasileira visam dar subsídio, através
de fontes primárias, ao argumento central desta pesquisa de que a direita
radical, base do Bolsonarismo, é impulsionada pelas ações e armações
de Bolsonaro numa orientação antidemocrática, muito característica dessa
vertente política.
As armações do atual presidente buscam mobilizar seu grupo de
apoio principal, os bolsonaristas, em atos de protesto e mobilizações para
dar legitimidade e sustentação popular ao governo e ao chefe do executivo.
A função social dos mitos políticos como o apelo de retórica
nacionalista para o combate à ameaça dos inimigos internos, a suposta
ameaça comunista, a defesa das tradições, moral e costumes, a garantia
e a defesa da ordem, a conabilidade do papel do líder e de algumas
instituições, como as Forças Armadas, são, no Brasil contemporâneo,
instrumentalizadas de forma articulada pelo presidente e seus apoiadores
mais diretos, dentro e fora do governo, numa ameaça constante às
instituições democráticas representativas.
mitos e mitoloGias Políticas
A palavra mito ganhou conotação popular e é atributo repetido pelos
apoiadores do (Jair) “messias”, o qual prometeu salvar o Brasil em nome
de “deus” e da “nação”, vencer a guerra contra a esquerda, o denominado
marxismo cultural” e o chamado “globalismo”.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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A ideia da construção da imagem do “mito” é resultado e produto
de uma articulada campanha eleitoral e publicitária que busca enaltecer e
projetar a imagem do atual presidente, como manifestação de um homem
no combate, contra os “inimigos internos da nação”, através da construção
de uma mitologia marcada pelo patriotismo, tradição e ordem e segurança,
que é uma remasterização da “Doutrina de Segurança Nacional” com
valores liberais e conservadores.
Mitos e mitologias de “soldados” prontos para obedecer às ordens
do líder em direção à “defesa da nação”. Assim, os bolsonaristas militantes
se apresentam, no nível da retórica, como defensores da pátria, entendida
como ameaçada por seus inimigos, internos e externos.
Os bolsonaristas, entretanto, banalizam e desconhecem o sentido das
palavras. O signicado da palavra “mito”, advindo do latim mythos, tem
como origem a acepção de fábula, história. Em dicionário especializado,
é relacionada à ideia de uma narrativa de características fantásticas, é uma
crença sobre alguém dotado de capacidades extraordinárias, marcando a
ideia de um tempo heroico, uma idade de ouro, ou, no sentido pejorativo,
o mito também é entendido como a concepção de um conhecimento
incorreto ou incompleto sobre um fenômeno.
Narrativa de teor fantástico e simbólico, normalmente com
personagens ou seres que incorporam as forças da natureza e as
características humanas. Algo ou alguém cuja existência não é real
ou não pode ser comprovada. Crença construída sobre algo ou
alguém; mitologia [...]. Ocorrência ou ação extraordinária, fora
do comum, normalmente excessiva e deturpada pela imaginação
ou pela imprensa. [Pejorativo] Conhecimento inverídico e
sem fundamento [...] Relato sobre fatos e tempos heroicos que,
normalmente, carregam certo teor de verdade. Forma representativa
de fatos ou ícones históricos, idealizados pela literatura oral e escrita:
Expressão gurada, não real, de qualquer outra coisa; alegoria.
Modo idealizado de representar um momento, passado ou futuro,
da humanidade. Etimologia (origem da palavra mito). Do latim
mythos; mythus. “fábula, história”. (DICIONÁRIO AURELIO
(ONLINE), 2020).
6
MITO. Dicionário Aurelio (online). 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/aurelio-2/. Acesso em:
21 abr. 2020.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
56 |
O pesquisador Luis F. Miguel, no artigo “Em torno do conceito
de Mito Político”, argumenta que, na linguagem corrente e convencional,
a palavra mito designa uma “ideia falsa” ou uma “imagem simplicada
da realidade”. Segundo o autor, “o seu campo semântico é o da mentira
(MIGUEL, 1998, p. 01). Mas, tratando-se de mitos políticos, a reexão
e a explicação dos fatos ou das ideias é permeada por uma relação de
“julgamentos factuais” e “juízos de valor”. A interpretação e análise da
realidade social é sempre um campo de disputa entre tendências políticas.
Para o referido autor, também é necessário pontuar uma possível
interpretação contraposta à acepção do mito como “ideia falsa”, além da
perspectiva antropológica e histórica da categoria do mito, como uma
forma diferente do pensamento lógico e cientíco, a exemplo das relações
entre “sagrado e profano” e da funcionalidade dos mitos para a coesão
social. Mas a especicidade dos mitos e mitologias políticas pode ser
pensada também na dimensão de antagonismo, choque ou conitualidade
que exerce contra outras explicações que se quer contrapor.
Misticação é o processo de construção de uma lógica argumentativa
que busca falsear a realidade para a construção ou legitimação de um
ícone (uma ideia, um indivíduo, uma instituição), para exercer um fato
de mobilização social, para estimular antagonismos contra os inimigos.
Na conjuntura contemporânea, estas intencionalidades são efetivadas por
operações em que instrumentos da comunicação, marketing e publicidade
possibilitam novos potenciais para a construção de mitos políticos com
grande inuência através dos meios de comunicação de massa e das táticas
e estratégias no campo das disputas eleitorais. Segundo Miguel (1998, p.
2), “Ao eliminar a história, o mito despolitiza o objeto, não se pode deixar
de chamar a atenção o próprio contraste entre a função política do mito e
a forma despolitizada que ele se apresenta ostensivamente”.
O mito político é uma potente força para mobilização e ação política,
e, conforme Miguel (1998), um de seus elementos constitutivos é a recusa
da razão. O autor nos lembra que as disputas por juízos de valor não são
passíveis de resolução pela lógica (MIGUEL, 1998, p. 06).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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O mito do complô é um elemento caro numa reexão sobre os
fundamentos que sustentam mitos políticos, nesta dimensão, é a valoração
da ideia de uma suposta “unidade perdida” dentro de uma percepção
orgânica do corpo social” que deve ser protegida. Para o autor, estas retóricas
que sustentam a busca pela “unidade perdida” e a aversão ao conito ou
à alteridade marcam uma característica importante que sustenta os mitos
políticos: “ele é a forma política da rejeição a política.”. (MIGUEL, 1998,
p. 09). O mito utiliza esta rejeição aos procedimentos políticos como
arma dentro das próprias disputas políticas. O “mito Bolsonaro”, como
aparência “fenomênica”, sintetiza a regressividade de nossa sociedade e
cultura contemporâneas.
Para Chauí:
O que é um mito? Um mito é uma narrativa sobre a origem de
alguma coisa [...]. A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva
de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma
coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar,
nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado
ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a
narrativa, porque conam naquele que narra; é uma narrativa feita
em público, baseada, portanto, na autoridade e conabilidade
da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele
ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a
narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados. [...]
Sua palavra - o mito - é sagrada porque vem de uma revelação
divina. (CHAUÌ, 2000, p. 29).
As considerações no campo da história da losoa apresentadas por
Chauí (2000) nos são úteis, não para pensar e problematizar a tentativa
de construção da imagem “mito”, mas sugere, também, a ideia do “mito
como enviado, como redentor. Como aquele que vai, supostamente,
superar o que eles chamam de “velha política”. Para os militantes de matizes
da direita radical os pressupostos ideológicos da restauração da ordem e
a crença na autoridade redentora dos seus líderes é inquestionável. Uma
lógica binária e maniqueísta.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Os denominados bolsonaristas representam o grupo de maior
relevância para ações de apoio e mobilização, úteis para a divulgação de
pautas e agendas de interesse do atual governo e de seus nanciadores
(empresários e políticos prossionais que apoiam Bolsonaro por interesse
em cargos e obtenção de verbas orçamentares).
Os bolsonaristas, mesmo sendo um grupo heterogêneo
(conservadores, ultraliberais e intervencionistas militares), atuam como
grupo de pressão ao critério das pautas que o presidente busca armar e
defender. Pois suas posições, no campo de política e da economia, oscilam
na mesma proporção que oscilam os integrantes do atual governo.
Os bolsonaristas apenas obedecem. E a importância do grupo reside
na possibilidade de mobilização. Sua forma de ativismo, na busca por
projeção, é proporcionada por uma tática de ações de protesto em atos
públicos, numa luta midiática de compartilhamento de imagens, vídeos,
falsas notícias (fake news). Mas a condução por seus apoiadores em atos
orquestrados ao estilo ‘ash mob’ se destaca. São um grupo de mobilização
para defesa de pautas do governo e ações em atos de protesto, como
apontado.
Eles aprenderam com as experiências das manifestações das direitas,
desde 2014, que o ativismo se organiza em rede. E, suas forças de
mobilização são orientadas para formas de organização e ações diretas contra
seus antagonistas, através de mobilizações articuladas em redes, visando
inuenciar a opinião pública e se projetando também nas manifestações
em atos de protestos presenciais por todo o Brasil.
Para Chauí (2000, p. 30): “O mito é, pois, incontestável e
inquestionável.” Assim, Chauí (2000) arma que o mito usa a linguagem
da genealogia para explicar a origem das coisas. Dessa maneira, a explicação
dos fenômenos sociais e históricos são explicados por mitos fundantes.
No nosso caso contemporâneo, a explicação se tornou popular.
Estávamos, segundo a retórica bolsonarista, a caminho de uma “ditadura
totalitária”, em que o “Fórum de São Paulo” e o Partido dos Trabalhadores
representavam uma ameaça a ser combatida.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Como na época dos anos 1960, no contexto nacional contemporâneo,
as instituições públicas são acusadas de corrupção. O discurso era na década
de 1960 e é também hoje em torno do “eminente perigo comunista”, que
exige medidas excepcionais para a garantia da ordem a m de reestabelecer
a defesa da garantia da autoridade.
O argumento da falência dos partidos e da chamada “velha política
e da necessidade de um retorno a uma “época de ouro”, em que a ordem
era mantida e a “nação era forte”, subsidia a retórica deste “mito” do
Brasil da defesa da ordem e da segurança sob o governo Bolsonaro. E se a
ordem dos “anos de chumbo” da Ditadura civil-Militar, de 1960 a 1980, é
considerada por seus apoiadores como “ecaz”, é porque resgata, segundo
seus proselitistas, o “espírito” dos tempos “imemoriais de Caxias”, dos
militares do Brasil Império e do início da Primeira República. Os militares,
portanto, devem reocupar a posição de organizadores e defensores da
“Nação”, segundo a retórica do atual governo e seus apoiadores (G1, 2020).
Dessa forma, a cosmologia que sustenta uma explicação e uma visão
mítica do mundo, segundo Chauí (2000), como citado, é formado por
genealogias que explicam a “natureza’ e “origem” dos fenômenos:
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de
lutas, alianças e relações entre forças sobrenaturais que governam
o mundo e o destino dos homens. [...] Como os mitos sobre a
origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e
teogonias. A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo
gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo
genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia,
portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção
sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo
ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o
nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras
divinas. (CHAUI, 2000, p. 31-33).
A cosmogonia sustentada pelo slogan do atual governo federal;
“Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, ou, “Deus, Pátria e Família
representa a explicação sobre a genealogia da “nação” executada pela
propaganda política ocial do governo, evidencia a instrumentalização
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da retórica de um “Brasil grande” e “gigante por natureza”, que tem o
compromisso com as “democracias cristãs ocidentais”, contra o “perigo do
comunismo’ e dos “inimigos da nação”. A exaltação da expressão “Deus
acima de todos”, legitima-se em um ordenamento social baseado em
fundamentos ufanistas e teocráticos que são valorados como singularidade
frente à chamada “velha política” dos “partidos tradicionais”, à “crise dos
costumes”, assim como, à necessidade de “defesa das tradições”.
direita radical no Brasil
Os Bolsonaristas, enquanto grupo de mobilização do governo através
da articulação de apoiadores de diferentes cidades e regiões, exercem,
como uma força política de caráter conservador nos costumes e liberal na
economia, uma agenda política composta por temas e interesses de grupos
heterogêneos da direita radical brasileira. Defendem pautas e temas como:
luta contra o direito ao aborto, a defesa do Escola sem Partido, contra a
“ideologia de gênero”, a favor do revisionismo histórico, ao legitimar a
violência do período da Ditadura Civil-Militar, e o combate à corrupção.
A direita radical se coloca em discurso como antissistema, mas
não abre mão de adequações que permitem sua participação em disputas
eleitorais, e necessariamente não faz apologia ao fascismo histórico, apesar
de apresentarem agendas políticas antidemocráticas em torno de questões
políticas e culturais (COMPARATO, 2014; DALMONTE; DIBAI, 2019;
MUDDE, 2021, 2019, 2016; NORRIS, 2005).
O bolsonarismo é aqui interpretado a partir do conceito de direita
radical (MUDDE, 2021) ao reetirmos sobre ações de mobilização e
protestos, as formas de comunicação, vocábulos e ideias que fazem parte
dos valores que buscam defender, dessa maneira, considera-se que o termo
conceitual é adequado. A mobilização e a pauta do intervencionismo
militar são elementos de sustentação do conceito em questão, entre outros
temas e polêmicas em torno das ações do presidente Bolsonaro e de seus
apoiadores mais aguerridos e mobilizados - os bolsonaristas. Obviamente
o conceito de direita radical é uma tipologia conceitual, com limites
característicos dos debates acadêmicos, entretanto, nos parece útil para a
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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intenção de denominar o bolsonarismo nos marcos destes quadros teóricos
em voga nos estudos sobre as direitas, suas políticas e ideologias.
A nostalgia pelo Regime Civil-militar, as homenagens a militares
como Brilhante Ustra, a preferência por quadros técnicos no executivo
oriundos do meio militar e não civil, gerando uma militarização e
aparelhamento do Estado por militares da ativa e da reserva, do alto a baixo
escalão, proporcionam elementos para aplicação do elemento da defesa
do intervencionismo militar como componente importante da ideologia
bolsonarista. A defesa da militarização da sociedade e do Estado é um
ponto de destaque desta expressão e vertente da direita radical brasileira.
Portanto, o conceito de “direita radical” é pertinente para pensarmos
conceitualmente as armações feitas pelo atual presidente e seus seguidores,
saudosistas de 1964, com mitologias a respeito da segurança, defesa ordem
e costumes para um “Brasil acima de todos”.
Um elemento é fato comprovado: os protestos de apoio ao atual
presidente, em defesa do fechamento do Congresso Nacional e do STF,
além de uma nova intervenção militar, têm, entre seus organizadores
e patrocinadores, como bases de liderança, membros da cúpula do
governo, empresários e um forte apoio de militares da ativa e da reserva,
conforme apontam canais da imprensa e jornais de grande circulação
(BORGES, 2020).
Bolsonaro, enquanto político, tem retórica, discurso e propaganda
com princípios que visam sustentar uma imagem de um antiestablishment
(contra a democracia representativa e o respeito aos pressupostos
constitucionais) e revisionista (revisionismo histórico numa releitura
positiva e apologética ao Regime Civil-militar).
Em termos de opções políticas, o modelo preferencial de regime
político é exemplicado na sua nostalgia por Regimes de Estados de Exceção,
como o iniciado em 1964. Assim, ele pode ser considerado, segundo a
terminologia proposta por Cas Mudde, um “radical de direita”, pois erta
e apoia o período da Ditadura Civil-Militar, e, ainda hoje, manifesta apoio
e defesa a concepções intervencionistas militares. O Bolsonarismo aposta
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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num modelo de autocracia burguesa tutelada pelos policiais e militares
(MATTOS, 2021).
Em seus pronunciamentos e medidas nestes três primeiros anos de
mandato, deixou evidências claras de que o “mito” é antidemocrático e os
bolsonaristas, sua base de apoio, são um grupo de pressão instrumentalizado
para impulsionar a imagem do presidente e legitimar suas ações. Mas em
detrimento do país, através de uma apologia ao retorno de uma ordem
militarizada.
Para Cas Mudde (2021), na atualidade, políticos e partidos de
centro-direita e conservadores acabaram por aderir a pontos das agendas
políticas da direita radical. Diferente, segundo ele, da extrema-direita
tradicional da segunda metade do século XX que ocupava posição
marginal nos sistemas políticos:
A diferença não está tanto no que a direita radical oferece. Na raiz,
não se pode dizer que Trump seja menos radical e extremista que
Bolsonaro ou Le Pen. A diferença é o papel da extrema direita
dentro do contexto político mais amplo no que chamo de terceira
onda, da qual Jean-Marie Le Pen é um ótimo exemplo. Na época, a
extrema direita estava obtendo sucesso eleitoral com suas opiniões,
mas os atores políticos eram vistos como corpos estranhos, o que
é radicalmente diferente hoje. Não apenas as ideias da extrema
direita se tornaram a corrente principal, mas os próprios atores
radicais fazem parte do mainstream. Tanto Bolsonaro quanto
Trump são ou foram os presidentes. Isso faz com que eles mudem
as políticas diretamente. O ponto principal é que há países nos
quais a extrema direita não está no governo, mas suas ideias são
defendidas por partidos convencionais. É a transformação de
partidos conservadores em direita radical. Os conservadores
encamparam ideias da direita radical. (MUDDE, 2021).
A interpretação aqui sustentada é que existe hoje uma normalização
e uma integração maior nos sistemas representativos de vitórias eleitorais
de partidos ou políticos que se colocam numa posição abertamente
contrária a pressupostos constitucionais e a normas democráticas. É o
que Cas Mudde denomina de quarta onda dos partidos e políticos da
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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direita radical (MUDDE, 2016) que agora não são marginais no sistema e
ocupam posições de poder, normalizando pontos antidemocráticos de sua
agenda política.
A normalização de questões consideradas restritivas e regressivas
em relação a minorias étnicas ou políticas, o revisionismo de questões
históricas como a apologia a regimes ditatoriais, o nativismo e a xenofobia,
a pauta dos temas relativos à moral e aos costumes, são exemplos de pontos
das agendas políticas de líderes e partidos da direita radical, de acordo com
o quadro teórico e as fontes primárias aqui referenciadas sobre o assunto.
Segundo as considerações colocadas, a principal ação da direita radical é
trazer temas e pontos, outrora considerados inadequados, antidemocráticos
ou ilegais, para o debate público, inuenciando os partidos conservadores
tradicionais e de centro-direita que começaram a encampar as ideias da
direita radical em seu discurso convencional (MUDDE, 2021).
considerações
Nesta conjuntura no Brasil, iniciativas de mobilização em “defesa da
pátria”, com mitos e mitologias que buscam legitimar formas autocráticas
e Estados de Exceção, ocorrem de modo a normalizar pressupostos
autocráticos. Como no exemplo dos posicionamentos de defesa do
intervencionismo militar e as críticas a instituições representativas.
Os bolsonaristas permanecem éis ao seu presidente neste último
ano de sua desastrosa gestão, ainda sob a defesa de mitos como o perigo
comunista, defesa dos valores cristãos, defesa de um modelo ultraliberal,
apologia à manutenção da ordem social pelas Forças Armadas e a
infalibilidade do líder. Os temas da agenda política do grupo inuenciam
o debate político e os partidos tradicionais de direita.
Os apoiadores do presidente, os bolsonaristas, buscam se rmar
como grupo de pressão e de apoio para mobilização em defesa da agenda
política de Bolsonaro. São expressão da direita radical no Brasil, exercendo
ressonância, como em outros países, para a defesa de uma agenda política
antidemocrática, porém, não rompendo ou negando o sistema político.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Se colocam como antiestablishment, sem romper com o jogo eleitoral e a
disputa por cargos eletivos. Mas, como consequência, radicalizam debates
e protestos com a defesa de pressupostos inconstitucionais e fazendo
apologia a uma ordem de fundamentos autocráticos.
Bolsonaro e seus seguidores, os bolsonaristas, aqui são denominados
a partir do conceito de “direita radical”, conforme fundamentado, seguindo
referências conceituais em voga no debate acadêmico de alguns autores que se
debruçam sobre o tema extremismo político das direitas. O conceito é aplicado
para instrumentar a crítica de caráter cientíco ao objeto deste estudo: Bolsonaro
e os bolsonaristas intervencionistas. Além das guras do atual presidente e de
seus apoiadores mais entusiastas e acríticos, dentro de cargos importantes do
executivo e legislativo, existem também bolsonaristas éis, dentro de instituições
da administração pública do governo federal, no legislativo e nos governos
estaduais. Sendo o bolsonarismo a nomenclatura para a identicação do
intento de ideologia regressiva e do movimento social de mobilização e grupo
de pressão, em apoio à agenda do presidente e a determinadas ações pautadas
pelo atual governo. Dessa maneira, entendemos que o bolsonarismo como
uma possibilidade de denominação conceitual para atribuirmos a ideologia e ao
movimento social de apoiadores do atual presidente.
Para Bolsonaro, neste contexto de ano eleitoral de 2022 em que
se prepara para disputar a reeleição, com pesquisas apontando que não
é o favorito entre os eleitores, sua opção é adequar-se a acordos políticos
com os partidos tradicionais de centro. Entretanto, a discussão de uma
agenda e debates que serão marcados pelos pontos de concepções da direita
radical estará garantida se a candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro for
consolidada, inuenciando certamente o debate eleitoral e a mobilização
de seus apoiadores.
Bolsonaro, nesse sentido, congura-se como um político prossional
oportunista que instrumentaliza determinados mitos e mitologias políticas da
direita radical brasileira. Seus apoiadores mais mobilizados, os bolsonaristas,
são defensores das concepções da direita radical, evidenciando um potencial
fascistizante. Defendem soluções como uma nova intervenção militar, o
fechamento do TSE e do STF, a volta do voto impresso, conforme aqui apontado,
através das análises e referências das fontes primárias e secundárias utilizadas.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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A partir de 2021, observa-se a aproximação do governo com
os políticos de centro, o ‘centrão’, como denomina a grande imprensa.
Somado a esse contexto, conitos e mudanças entre a equipe governamental
e apoiadores importantes, ao que parece, alteraram a dinâmica e as
expectativas de uma reeleição certa, frustrando aqueles que eram, ou ainda
são, apoiadores mais radicalizados do ‘presidente’, aclamado por muitos
seguidores como ‘mito’.
Independente dos resultados eleitorais de 2022, Jair Bolsonaro e os
Bolsonaristas deixarão como legado o fortalecimento de tendências políticas
da direita radical, mobilizando extremistas de potencial fascistizante e
resgatando elementos trágicos da cultura e da política nacional, como a
defesa do Regime Civil-militar brasileiro como modelo para a restauração
da “ordem e autoridade contra os inimigos da nação”.
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68 |
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Dr. C. Oscar Andrés Piñera HERNÁNDEZ
1
una introducción necesaria
La cordial invitación realizada por la Coordinación de la XVII
Semana de Relaciones Internacionales de la UNESP, Campus Marilia,
fue muy bien recibida y agradecida. Dicha convocatoria estaba dirigida a
la presentación de una conferencia en la que se abordara las afectaciones
de las políticas de la ultraderecha norteamericana en sus relaciones con
Cuba. Este es un tema que sin dudas ha sido objeto de análisis desde la
tesis de grado defendida por el autor en la Universidad de La Habana en
1
Professor do Departamento de Marxismo e Leninismo. Titular de Historia de Cuba y de Historia de América.
Faculdad de Historia, Universidad de Matanzas (U.M) Cuba. E-mail: oscar.pinera@umcc.cu. https://orcid.
org/0000-0002-7940-167X.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p69-96
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
70 |
1994 hasta la actualidad, sobre todo, mediante la impartición de cursos de
postgrados y diplomados.
El tema de las relaciones Estados Unidos – Cuba es constantemente
revisitado por académicos, politólogos, sociólogos, historiadores, políticos
y hasta por los seres más comunes que se ven afectados por el carácter
conictual de estas relaciones. Numerosos artículos, libros y materiales
escolares se escriben constantemente sobre el tema, de ahí que la cuestión
no es un asunto cerrado y en el que nunca se tiene la verdad absoluta. En
ambas orillas se poseen visiones y se encuentran justicaciones para sostener
o levantar el “embargo” (para los Estados Unidos), y “bloqueo económico,
comercial y nanciero” (como es denido por el gobierno cubano).
A partir de 1992, anualmente en Asamblea General de Naciones
Unidas (ONU) se debate el tema del Bloqueo Económico, Comercial y
Financiero de Estados Unidos contra Cuba, y la condena que realizan los
países en contra de esta política ya roza la unanimidad, pues solamente
Estados Unidos, Israel e Islas Marshall, se han opuesto a la Resolución que
año tras año presenta Cuba. Sin dudas, el Bloqueo a Cuba es un acto de
genocidio y por ello recibe la condena internacional.
Este tema, a pesar de los elementos que demuestran sus afectaciones
contra Cuba, es constantemente cuestionado en la actualidad por medio
de una campaña bien dirigida a intentar desmontar la veracidad sobre las
implicaciones del bloqueo. Esta matriz de opinión ha cobrado fuerza sobre
todo en redes sociales, donde se establecen profundos y profusos debates
en los que se aprecia la manera en la que se trata de imponer el criterio de
que en Cuba realmente existe un bloqueo interno y no el bloqueo impuesto
por Estados Unidos. Este es uno de los objetivos fundamentales de este
trabajo, demostrar cómo se ha producido un recrudecimiento del bloqueo
económico de Estados Unidos contra Cuba en medio de toda una propaganda
que se maniesta en sentido contrario. Este bloqueo, recrudecido en la era
de Trump, es el resultado de la aplicación de políticas de la ultraderecha
norteamericana en su afán por destruir la Revolución Cubana.
Entre los más importantes autores que se han acercado al estudio de
las relaciones Estados Unidos – Cuba, se encuentran, entre otros, Rafael
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 71
Hernández, Esteban Morales, Ricardo Alarcón de Quesada, Carmelo Mesa
Lago, Arnold August, Jesús Arboleya, Ernesto Domínguez, Luis René
Fernández Tabío, y Elier Ramírez Cañedo quienes han publicado una
extensa bibliografía sobre el tema. Esta bibliografía se ha incrementado
a partir del triunfo de la Revolución Cubana en 1959, proceso en el que
se establecen relaciones de enfrentamiento que motivaron un mayor
acercamiento a las raíces del problema y a buscar desentrañar las perspectivas
y aristas del conicto.
Cada artículo o libro publicado, partía de comprender que el carácter
conictual del “embargo”, “bloqueo” o incluso “diferendo”, anclaba sus
raíces históricas aun antes de que Estados Unidos existiese como nación,
por el hecho de que Benjamín Franklin, ya desde 1767, se rerió a la
importancia estratégica de Cuba para la futura unión norteamericana.
Franklin expresó la necesidad de colonizar el valle del Mississippi para ser
usado contra Cuba.
A lo largo del siglo XIX muchos presidentes o guras relevantes
de las administraciones norteamericano, jaron sus políticas hacia Cuba
o expresaron su interés en relación con el dominio de la Isla. omas
Jeerson, presidente de Estados Unidos (1802 – 1809), llegó a confesarle a
James Madison que “…Cuba era la adición más interesante que pudieran
hacer a la Unión y consideró al intercambio mercantil un canal idóneo
para conseguirlo” (LIMIA, 2015, p. 59). Ya en esos momentos se había
tolerado” un importante comercio entre Estados Unidos y Cuba sobre la
base del intercambio de harinas, azúcar, mieles y esclavos
2
.
Las políticas diseñadas por Estados Unidos para evitar que las potencias
europeas incrementaran su control sobre las naciones Latinoamericanas
tuvieron un momento importante cuando en 1823 James Monroe
proclama lo que se conoce como la Doctrina Monroe, un posicionamiento
político que proclamaba que ninguna potencia extracontinental podía
buscar restablecer su dominio sobre las repúblicas hispanoamericanas.
Realmente la Doctrina Monroe es el fruto de las contradicciones anglo-
Luego de la Revolución de Haití (1791-1804), que arruinó la producción de azúcar y café que la colonia francesa
tenía, Estados Unidos comienza a comprar el azúcar cubano y llega a convertirse, a partir de 1815 en el primer
comprador y proveedor de Cuba, a su vez Cuba ocupa el tercer lugar en el comercio exterior de Estados Unidos.
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norteamericanas por el control de América Latina, pero Cuba constituía
una pieza clave en ese engranaje político.
En todo el contexto del siglo XIX, mientras Estados Unidos no
se encontró con las fuerzas sucientes para garantizar su dominio sobre
Cuba, prerió que esta se mantuviese bajo el dominio español. Es así como
se instrumentó la llamada “Política de la fruta madura”, también como
expresión de la política norteamericana de esperar pacientemente a que
estuvieran dadas las condiciones para que Cuba gravitara hacia la unión
norteamericana:
[…] pero hay leyes de gravitación política como las hay de
gravitación física, y así como una fruta separada de su árbol por
la fuerza del viento puede, aunque no quiera, dejar de caer en el
suelo, así Cuba, una vez separada de España y rota la conexión
articial que la liga con ella, es incapaz de sostenerse por sí sola,
tiene que gravitar necesariamente hacia la Unión Norteamericana,
y hacia ella exclusivamente, mientras que la Unión misma, en
virtud de la propia ley, le será imposible dejar de admitirla en su
seno. (FONER, 1973, p. 157).
Esa espera paciente concluyó a nales del siglo XIX, cuando en
medio de las luchas por la independencia nacional, La Revolución del
1895
3
, Estados Unidos halló prudente intervenir en la guerra que sostenían
los independentistas cubanos contra el colonialismo español y frustrar la
independencia del país.
Hubo mecanismos económicos, políticos, sociales e ideológicos que
fueron aplicados sobre Cuba y garantizaron la dominación norteamericana
en el país. Primero se estableció un período de ocupación militar que duró
entre 1899 y 1902. En ese período de ocupación militar el Congreso de
los Estados Unidos aprobó e impuso a Cuba la llamada Enmienda Platt,
un documento de ocho artículos en los cuales se establecía el carácter de
las relaciones que tendría la futura república de Cuba con los Estados
Entre 1895 y 1898 Cuba reinició sus luchas por la independencia del dominio colonial español. Dicha
independencia fue frustrada por la intervención de Estados Unidos en la guerra cuando Cuba tenía,
prácticamente, ganada la contienda.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 73
Unidos
4
3
. El documento asumiría el carácter de vinculante debido a que
en su artículo 8 planteaba que todos sus artículos formarían parte de un
tratado permanente de relaciones. De esta manera la República de Cuba
nació con un apéndice constitucional (Enmienda Platt), que luego se
convertiría en un Tratado Permanente de Relaciones en virtud del cual
Estados Unidos tendría el derecho de intervenir militarmente en Cuba
cuando lo estimase pertinente, disponer de parte del territorio nacional
para el establecimiento de bases navales, entre otros aspectos.
Entre 1902 y 1958 se desarrolló la etapa de la república burguesa
en Cuba con un predominio importante de relaciones de dependencia
económica, política, social e ideológica hacia los Estados Unidos. El desarrollo
de las inversiones de capital norteamericano, dirigidos fundamentalmente
a la industria azucarera, a la minería, ferrocarril, el tabaco y los servicios
públicos, convirtieron al país en una economía puesta al servicio del capital
estadounidense al que le rindió innumerables benecios.
Por otra parte, en Cuba lograron establecer una base militar, la
llamada Base Naval de Guantánamo, la que desempeñó un papel estratégico
fundamental en el dominio militar sobre el territorio caribeño y aún se
encuentra ocupando ilegalmente una parte del territorio nacional. La Base
Naval de Guantánamo es el resultado de la rma de convenios entre los
gobiernos de la República Neocolonial con Estados Unidos; luego del triunfo
de la Revolución Cubana, ha sido un reclamo permanente de los gobiernos
revolucionarios la devolución del territorio que ocupa la ilegal Base.
La primera mitad del siglo XX se erigió entonces como el período
durante el cual las administraciones norteamericanas pudieron gozar con
un aliado incondicional en El Caribe. Cuba fue ese aliado que defendió
las intervenciones norteamericanas en América Latina, que auspició el
desarrollo de las inversiones de capital norteamericano, y que apoyó a
Estados Unidos en múltiples batallas diplomáticas. A partir del 1 de enero
de 1959 esa historia cambió, Cuba inició el camino para la construcción
Los artículos de la Enmienda Platt concedían el derecho de intervención a los Estados Unidos en Cuba cuando
vieran amenazados sus intereses, propiedades, vidas, haciendas; estipulaban que Cuba concedería o arrendaría
partes de su territorio para el establecimiento de bases navales o carboneras; excluía a la Isla de Pinos (actual Isla
de la Juventud) del territorio nacional cubano; entre otros.
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de una sociedad diferente, incompatible con los intereses y aspiraciones
hegemónicas de Estados Unidos, se buscaba el rescate de la soberanía
nacional, la construcción de una sociedad más incluyente, pero con ello se
alteraba el cauce que hasta ese momento habían mantenido las relaciones
entre Cuba y Estados Unidos.
Las primeras medidas adoptadas por la revolución en Cuba estuvieron
dirigidas al castigo de los elementos corruptos y torturadores que habían
participado como miembros activos de la dictadura batistiana. En los primeros
momentos, el gobierno revolucionario buscaba cumplir con el programa de
medidas que había esbozado en 1953
5
4
el líder de la Revolución Fidel Castro.
Una de las primeras medidas tomadas por el Gobierno Revolucionario fue la
aprobación de la Primera Ley de Reforma Agraria, aprobada el 17 de mayo
de 1959. Si bien no fue una medida anticapitalista, ni socialista, sí lo fue
antiimperialista, puesto que prohibía que los extranjeros fueran propietarios
de la tierra en Cuba, y expropiaba los grandes latifundios. Esta ley fue la
más radical de los primeros momentos de la Revolución en el poder y puso
a los grandes propietarios latifundistas e imperialistas al lado de los intereses
de la gran burguesía norteamericana, eso propició que se arreciara la guerra
económica de Estados Unidos contra la Revolución Cubana y el inicio de
las políticas que condujeron al establecimiento del bloqueo económico,
comercial y nanciero contra Cuba.
Estos antecedentes permiten comprender el origen de las relaciones
conictuales entre Estados Unidos y Cuba, explica los ancestrales anhelos
de dominación que han tenido distintas administraciones norteamericanas
sobre Cuba y coloca en perspectiva cual ha sido el lugar que ocupa la
Revolución Cubana y el proceso de construcción del socialismo en Cuba
en todo este proceso.
El imperialismo había establecido su hegemonía sobre Cuba, había
impuesto su concepción de democracia, con ambos elementos rompió la
El 26 de julio de 1953 se produjo el asalto a los cuarteles militares “Moncada” en Santiago de Cuba y “Carlos
Manuel de Céspedes” en Bayamo, por las fuerzas organizadas en el movimiento revolucionario que dirigía Fidel
Castro. Como resultado de esas acciones fueron apresados un grupo de asaltantes, entre ellos el propio Fidel
quien en su alegato de autodefensa conocido como “La historia me absolverá”, expuso un programa de medidas
y leyes que serían tomadas una vez que triunfara el movimiento revolucionario, y se denunciaban los principales
problemas que serían resueltos: Tierra, educación, salud, vivienda, industrialización y empleo.
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revolución que triunfó el primero de enero. A partir de ese instante el
imperialismo y su eterna aliada, la bancada derechista, unieron fuerzas para
poner n el proceso revolucionario cubano.
triunfo de la revolución cuBana y la Guerra económica
contra cuBa.
Con el triunfo de la Revolución Cubana se iniciaron un conjunto
de transformaciones económicas, políticas y sociales. Metodológicamente,
para el período que transcurrió entre 1959 y 1961, pudiera agruparse las
medidas revolucionarias en tres momentos bien diferenciados. En primer
lugar, las medidas que estuvieron dirigidas a la consolidación del poder
político por parte del Gobierno Provisional Revolucionario, entre estas
medidas se destacan las que están relacionadas con la sustitución del aparato
represivo de la tiranía, la eliminación del Servicio de Inteligencia Militar
(SIM), y la eliminación del Buró de Represión de Actividades Comunistas
(BRAC), (CANTÓN; SILVA, 2009, p.8), entre otras. En segundo lugar,
se establecieron un grupo de medidas, tomadas a partir de que Fidel Castro
asumió el cargo de Primer Ministro en sustitución de José Miró Cardona,
que estuvieron dirigidas a profundizar el proceso revolucionario y tuvo como
elemento más radical la ya mencionada Primera Ley de Reforma Agraria,
la que cierra toda una primera etapa de transformaciones revolucionarias.
En tercer lugar, y como resultado de las acciones de enfrentamiento que
fueron sucediéndose entre los grupos de poder en Estados Unidos y Cuba,
se produjo el proceso de radicalización del proceso revolucionario cubano;
en este contexto se inicia el proceso de relaciones con la Unión Soviética y
la ruptura de relaciones diplomáticas entre Cuba y Estados Unidos. Aquí
se tomaron un grupo de medidas que situaron a la Revolución Cubana en
el proceso de construcción del socialismo, entre ellas, las nacionalizaciones
de empresas imperialistas y capitalistas que se realizaron entre los meses de
septiembre y octubre de 1960.
En todo este contexto Estados Unidos siempre mantuvo una posición
en contra de la toma del poder por parte de una organización revolucionaria.
Desde los primeros días de enero de 1959, el Estado norteño permitió
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la entrada y dio protección a criminales de guerra, malversadores y otros
personajes que le habían servido de instrumento de represión durante la
dictadura batistiana
6
5
(CANTÓN; SILVA, 2009, p. 23). Mucho de estos
emigrados se armaron y organizaron con la complicidad del Buró Federal de
Investigaciones (FBI), la Agencia Central de Inteligencia (CIA), así como otras
instituciones de poder en los Estados Unidos. Sus acciones fundamentales
estuvieron dirigidas a organizar atentados, sabotajes, falsa propaganda en
contra de la Revolución Cubana, con el objetivo de desestabilizar al Gobierno
Revolucionario establecido en Cuba y lograr su destrucción.
Diversos planes fueron organizados con el objetivo de quitarle la vida
a Fidel Castro y a otros líderes revolucionarios. Para estas acciones no se
escatimaron recursos y fueron utilizados desde ciudadanos norteamericanos
agentes de la CIA, hasta líderes de la maa, quienes se prestaron para
el desarrollo de distintos atentados. A la par desataron toda una guerra
económica contra la Revolución Cubana que los llevó a suspender la
compra de la cuota de azúcar cubano, en total Cuba dejaba de vender a
Estados Unidos, aproximadamente 750 mil toneladas de azúcar; por otra
parte, suspendieron el envío de combustibles a Cuba y la renación del
combustible que Cuba comenzó a negociar con la Unión Soviética.
Cada una de estas acciones, tuvo una respuesta de la dirección de la
Revolución Cubana, en ese sentido, fueron nacionalizados los 36 centrales
azucareros norteamericanos que existían en el país al triunfar la revolución;
se nacionalizaron las renerías de petróleo (Esso, Texaco, entre otras); y
luego el resto de las compañías norteamericanas, incluyendo la banca.
A principios de 1960 Dwigth Eisenhower aprobó una fuerza de
tarea con la misión de dirigir y ejecutar la guerra secreta contra Cuba. En
este programa se combinaban acciones de sabotajes, guerra psicológica,
espionaje, bloqueo económico y sanciones diplomáticas. Era la continuidad
de una escalada que se llevaría a cabo en todos los frentes, y que llevó a la
condena de Cuba en la Organización de Estados Americanos en 1960, y
a la invasión mercenaria por Playa Girón entre los días 16 y 19 de abril
6
El dictador Fulgencio Batista Saldívar llegó al poder por medio de un golpe de estado el día 10 de marzo
de 1952. Desde su llegada al poder recibió el apoyo del gobierno de Estados Unidos y otros sectores de la
burguesía nacional.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 77
de 1961. En la invasión por Bahía de Cochinos, como también se conoce
por el lugar donde desembarcaron en la costa sur de la actual provincia de
Matanzas, participaron bombarderos ligeros B-26, aviones de transporte,
seis batallones de infantería, una compañía de tanques, grupos de ingeniería,
comunicaciones, abastecimiento, entre otras fuerzas y medios preparadas
y organizadas por Estados Unidos. Como resultado de dicha invasión, en
menos de 72 horas las fuerzas revolucionarias cubanas obtuvieron una
contundente victoria, lo que ha sido denominado como la primera derrota
del imperialismo yanqui en América Latina.
Todos estos elementos demuestran las intenciones históricas
de dominación de Estados Unidos sobre Cuba. En este contexto surge
y se consolida el bloqueo de Estados Unidos contra Cuba. Luego de la
derrota que sufrieron las fuerzas mercenarias que habían sido preparadas
y organizadas por Estados Unidos contra la Revolución Cubana, se
incrementaron las acciones de sabotajes, los intentos de asesinatos de los
líderes revolucionarios, particularmente los atentados en contra de Fidel
Castro. El 25 de abril de 1962 Estados Unidos estableció el embargo a todo
tipo de mercancías destinadas a Cuba, incluyendo las que en esos momentos
se habían comprado y se encontraban ya en puertos norteamericanos, este
constituye la fecha del inicio ocial del bloqueo económico, comercial y
nanciero contra Cuba, aunque la guerra económica contra la Revolución
Cubana se había iniciado desde el mismo año de 1959.
El número de violaciones del espacio aéreo y marítimo cubano
creció exponencialmente, así como los atentados que se realizaban contra
distintos objetivos económicos y de prestaciones de servicios. En el área
internacional se produjo la expulsión de Cuba de la OEA con el beneplácito
de la mayoría de los países del área, solo México se opuso a tal decisión.
Unos días después se ocializó el llamado Embargo sobre el comercio con
Cuba, denominación engañosa que escondía las verdaderas intenciones
de la política económica establecida contra Cuba por parte de Estados
Unidos, o sea, el propósito de rendir por hambre, miseria y carencia de
todo tipo a la nación caribeña.
Toda la política de agresividad norteamericana contra Cuba se
agrupó en la llamada “operación mangosta”, que recogía un grupo de
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tareas conducentes a generar inseguridad, malestar e incertidumbre en la
población cubana, todo lo cual favorecería un estallido social y el rechazo a
la Revolución. Con esa pretensión fue que se incrementó la labor agresiva
y subversiva contra la nación cubana, la cual debería concurrir, de ser
posible, con una intervención directa.
Es en medio de ese contexto y con el incremento de las amenazas
de invasión de Estados Unidos que Cuba rmó con la Unión Soviética un
acuerdo secreto de ayuda y asistencia recíproca. El 29 de mayo de 1962, la
URSS propone a Cuba emplazar cohetes de alcance medio e intermedio
en la Isla, proposición que es aceptada, por lo que signicaba esta medida
como disuasión para un posible ataque de Estados Unidos contra Cuba. El
acuerdo militar rmado con la URSS debía hacerse público una vez que
fueran instalado los cohetes en Cuba, sin embargo, en medio de todo este
proceso, el presidente Kennedy recibió la noticación y las pruebas del
proceso de emplazamiento de cohetes soviéticos en la Isla y ello aceleró los
plantes que ya habían sido concebidos dentro de la “Operación Mangosta
para atacar a Cuba. A partir de ese momento se desató la llamada Crisis de
Octubre o Crisis de los Misiles.
Luego de nalizada la Crisis de Octubre, Cuba no pudo negociar la
eliminación del bloqueo económico, ni el cese de la política de hostilidad
de Estados Unidos contra Cuba, en relación con el bloqueo, Cantón y
Silva (2009), plantearon:
Reforzando el bloqueo económico, en diciembre de 1962 el
presidente Kennedy decide imponer sanciones a los barcos de países
capitalistas que toquen puerto cubano, y poco después anuncia
que no se embarcarán mercancías nanciadas por el gobierno
norteamericano en buques que sostengan comercio con Cuba.
El gobierno de los Estados Unidos confecciona una “lista negra
de esos países y amenaza con suprimirles la ayuda económica y
militar”. (CANTÓN; SILVA, 2009, p.67).
La cita anterior explica por sí sola como es que el bloqueo impuesto
por Estados Unidos buscaba establecer sus condiciones a otros países
capitalistas, es decir, ya no es solo la relación bilateral o el conicto entre
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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dos naciones, sino que se involucró a terceros países. Resulta evidente la
amenaza a otros países si comercian con Cuba, la famosa “lista negra”,
existe hasta nuestros días, el Departamento del Tesoro, continúa multando
y denunciando a las empresas y países que se aventuran a establecer algún
tipo de negociación con Cuba.
Con la llegada de James Carter a la presidencia de Estados Unidos,
20 de enero de 1977, se vivió un proceso de “acercamiento” en relación a
Cuba. Carter fue partidario de la aplicación de una política que incluyó
los elementos que ya habían sido esbozados en los informes conducidos
por Sol Linowitz que en esencia planteaba la posibilidad de establecer
una mayor incidencia sobre la política cubana a partir de un mayor
acercamiento y mediante el establecimiento de medidas que hicieran
evidente una distención, entre ellas la eliminación del bloqueo económico.
El Informe Linowitz fue revisado y readecuado, por lo que se conoció,
en los tiempos de Carter como Linowitz II, pero esencialmente con las
mismas consideraciones de su antecesor.
Entre las medidas que se aprobaron durante la administración de
Carter se encuentran la apertura de ocinas de intereses como una puerta
de entrada para el establecimiento de un diálogo entre ambas naciones. En
este sentido, se estableció la Ocina de Intereses de Cuba en Washington
y la Ocina de Intereses de Estados Unidos en La Habana. Así existieron
hasta el establecimiento de embajadas durante el gobierno de Barack
Obama. Otra medida interesante fue el inicio de la legalización de procesos
migratorios y el acuerdo para la entrega de miles de visas a los cubanos que
quisieran viajar a los Estados Unidos.
Este proceso de acercamiento y negociación culminó con la llegada
de Ronald Reagan a la presidencia de los Estados Unidos en enero 1981, y
por las condiciones que se le trataron de imponer a Cuba, entre ellas la de la
ruptura del pacto militar con la URSS. A partir de ese momento, se retornó
a los procesos de confrontación. Reagan se rigió por los planteamientos del
Comité de Santa Fé, elaborado por thinks tanks dedicados al estudio de las
relaciones Estados Unidos-Cuba. Dicho informe planteaba la necesidad de
restablecer una línea dura en contra de Cuba, con el objetivo de restar la
incidencia de esta nación en los movimientos de liberación nacional que
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se desarrollaban en América Latina, sobre todo en Nicaragua, El Salvador
y Guatemala.
Por otra parte, se buscaba la posibilidad de destruir la Revolución
Cubana por medio del apoyo a las organizaciones contrarrevolucionarias
que existían en los Estados Unidos, en este sentido, se creó la Fundación
Nacional Cubano Americana, dirigida por Jorge Mas Canosa, quien se
convirtió en el pivote principal en el desarrollo de las políticas contra la
Revolución Cubana.
En ese contexto Cuba tuvo que destinar grandes recursos a la
preparación militar contra una posible invasión norteamericana. Se cambió
la concepción defensiva y se estableció la defensa territorial y la llamada
guerra de todo pueblo, pues no se podía contar con la ayuda de otros
países del campo socialista en la defensa de Cuba. Es por eso que se crearon
las Milicias de Tropas Territoriales, como una organización destinada a
mantener la vitalidad de la defensa del país en todos los momentos ante
una posible guerra.
Durante el gobierno de Reagan se crearon emisoras radiales y
televisivas que transmiten constantemente programas dirigidos a propiciar
la subversión en el país, entre ellas se pueden mencionar a Radio Martí, y
TV Martí. Proyectos concebidos y puestos en práctica en la década del 80,
en este caso TV Martí, nunca ha sido visto en Cuba, pues existen recursos
destinados para imposibilitar su penetración en el país.
Finalizando la década de los 80, Cuba había consolidado crecimientos
económicos por encima de 4% anual, estaba insertada en el sistema de
relaciones económicas del campo socialista con el que efectuaba el 85% de
su comercio. En ese contexto se produjo la caída del campo socialista y la
desaparición de la URSS, por lo que Cuba se vio doblemente afectada. Por un
lado, perdía su área natural de inserción económica, comercial y nanciera;
y, por otra parte, fue el momento aprovechado por las administraciones de
Estados Unidos para recrudecer el bloqueo económico en contra del país.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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la década de los 90 y el recrudecimiento del Bloqueo a cuBa.
La década del 90 del siglo pasado signicó la entrada de Cuba en una
crisis económica sin precedentes en la etapa revolucionaria. La situación
generada a partir de la caída del campo socialista, se le denominó como
“Período Especial”, el término podía mover a cierta confusión, por lo de
especial”, pero el sentido que se le dio fue el de coyuntural, especíco,
por el hecho de que determinados factores externos y algunos también
internos, habían incidido en la tensa situación económica en la que se vería
inmerso el país.
Para afrontar esa situación en la que el Producto Interno Bruto (PIB),
caería en más de 35 % en solo unos años, se aplicaron un grupo de medidas
económicas. Entre ellas se habilitó el Trabajo por Cuenta Propia (TCP),
o sea, el establecimiento de pequeños negocios particulares que operarían
a partir de la oferta y la demanda; se despenalizó la tenencia de divisas
extranjeras, con el objetivo de lograr su posterior captación por medio de las
llamadas Tiendas Recaudadoras de Divisas (TRD) que se establecieron en
todo el país. Por otra parte, se aprobó una Ley para la Inversión Extranjera;
se estimuló el desarrollo de la industria turística, la que llegó a convertirse en
la principal locomotora de la economía cubana.
A partir de la tensa situación económica, incrementada por
la carencia de combustibles fósiles, la disminución de los niveles de
exportación e importación, Cuba vivió momentos en los que no había
como disponer de la energía eléctrica suciente para el funcionamiento
de las fábricas y la disponibilidad de los hogares. Todo ello generaba
malestares lógicos en la población.
Fue en ese contexto en que se produjo el recrudecimiento del bloqueo
económico contra Cuba. La nueva situación internacional existente, la no
existencia del campo socialista, es decir la consolidación de un mundo
unipolar bajo la hegemonía de Estados Unidos, sirvió para agravar la
relación conictual con Estados Unidos. Esto demuestra también que las
condiciones que trataban de imponer las administraciones norteamericanas
para el levantamiento del bloqueo económico, eran meras justicaciones
para mantener su política de acoso, el único objetivo era la eliminación
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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de la Revolución Cubana y con ella, su inuencia en América Latina. Es
por ello que, bajo estas condiciones, y en medio de la contienda por las
elecciones presidenciales, en 1992 se aprobó la llamada Ley Torricelli, su
nombre ocial era “Ley para la democracia de Cuba de 1992”.
La ley autorizaba al Presidente de Estados Unidos a sancionar
a los países que ayudasen a Cuba; prohibía a las subsidiarias de rmas
norteamericanas a comerciar con Cuba, este elemento era una pieza clave
en el recrudecimiento del bloqueo, pues en medio de las circunstancias que
Cuba estaba atravesando como resultado de la pérdida de sus relaciones
comerciales, dichas subsidiarias habían servido de paliativo para la
reinserción de Cuba en el comercio internacional, esta era la puerta que la
Ley Torricelli pretendía cerrar. Por otra parte, prohibía a las embarcaciones
de cualquier país que entren a puerto cubano, atracar en los Estados Unidos
en los 6 meses posteriores, sin dudas demuestra el carácter extraterritorial
que ya adquiría la Ley.
La Ley Torricelli debería propiciar la caída inmediata de la Revolución
Cubana, al menos esa era su aspiración inmediata. Se presumía que en
medio de las situaciones de carencia extrema que padecía el país, arreciar el
bloqueo con estas facultades que se le otorgaban al Presidente de Estados
Unidos, pues no habría forma de que Cuba resolviese esa situación. La
realidad fue bien distinta, con el programa de reformas económicas que
Cuba había implementado para salir del Período Especial, a partir de
1995 se comenzaron a apreciar síntomas de recuperación, el PIB había
comenzado a crecer discretamente, lo que demostraba la certeza de la
posibilidad de salir con esfuerzos propios de la crisis económica.
Ante la situación real presentada, en medio de la contienda electoral
de 1996, y las presiones por el fracaso evidente de la Ley Torricelli, se
comenzó a fraguar un nuevo plan con un proyecto de ley más agresivo
que el anterior. En este caso los republicanos Jesses Helms y Dan Burton,
elaboraron la llamada “Ley para la Libertad y Solidaridad Democrática
Cubanas”, más conocida en Cuba como Ley Helms-Burton.
La Helms-Burton tenía tres objetivos fundamentales, el primero de
ellos era lograr un proceso de codicación del bloqueo, entorpecer que un
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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cambio de Presidente propiciara la adopción de una medida que levantara el
bloqueo económico contra Cuba; por otra parte, desestimular el incremento
de las inversiones de capital hacia Cuba, como ya se había mencionado, el
estímulo a las inversiones de capital extranjero había sido una de las piedras
angulares del inicio de la recuperación económica de Cuba, y ese era uno de
las opciones que la Ley pretendía cortar; por otra parte, la idea era retrotraer
la Isla al carácter neocolonial que había tenido antes de 1959.
La Ley Helms-Burton, aprobada por el Congreso de Estados Unidos,
codicaba el bloqueo, le daba el carácter de Ley, por lo que se buscaba crear
la imagen de que el Presidente por sí solo no puede cambiarla. Profundizaba
en la internacionalización del bloqueo; plantea la anulación de créditos y
ayuda nanciera internacional por medio de sanciones a las organizaciones
nancieras internacionales y agencias de la ONU; realización de boicot a
todo proceso de negociación de inversión extranjera; limitar o torpedear
cualquier acercamiento de Cuba con países que habían sido socialistas;
obstaculizar la exportación de azúcar y sus derivados, sin dudas la principal
fuente de crecimiento económico del país; por otra parte, se presionaba
para que se lograra la entrada de la TV Martí a Cuba.
La Ley Helms-Burton cierra un período en el que se buscaba
recrudecer el bloqueo a toda costa por medio de las presiones desde el
Congreso de los Estados Unidos. Ahora los Presidentes tenían que contar
con esa variable para el establecimiento de cualquier política hacia Cuba, o
al menos, tenerlo en cuenta. No obstante, la economía cubana continuó,
en ese período, su proceso de recuperación económica, en ello tuvo un
papel fundamental, la reinserción económica de Cuba en América Latina,
el papel que desempeñó la industria turística y el amplio programa de
inversiones que se dedicó a esta, y, por otra parte, el papel de los servicios
profesionales, sobre todo en los sectores de salud y educación, quiénes
ayudaron a recolocar a Cuba en el mapa político a nivel internacional.
el siGlo xxi y las relaciones estados unidos cuBa.
Con el nuevo siglo llegó a la presidencia de los Estados Unidos George
W. Bush. Desde el punto de vista internacional encabezó la llamada guerra
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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contra el terrorismo a partir de los acontecimientos del 11 de septiembre
de 2001. El centro de la atención de la Seguridad Nacional de Estados
Unidos se centró ahora el llamado combate al terrorismo internacional.
Elaboraron listados en los que incluyeron a los países considerados por
ellos terroristas y prometieron su enfrentamiento en “cualquier oscuro
rincón del mundo”. Cuba fue incluida en esa falsa y oportunista lista y
con ello la ultraderecha de norteamericana intentaba justicar las medidas
que fueron aprobadas en el 2004 bajo la denominación de “Comisión para
asistir a una Cuba libre”, en Cuba fue conocido como el “Plan Bush”.
El Plan Bush se centró en continuar el ataque que sus antecesores
habían reiniciado contra Cuba. En este sentido, ha sido denido como
la combinación de la Ley Helms – Burton con la Enmienda Platt,
debido a los postulados que deendía. Sus principales líneas de acción
estuvieron dirigidas a afectar el envío de remesas desde Estados Unidos
hacia Cuba, pues se consideraba que estas constituían una fuente de
ingreso fundamental para la sostenibilidad económica de la Revolución
Cubana; por otra parte, se aprobaba la disminución de las visitas
de los cubanoamericanos a Cuba, las que tenían que estar plenamente
justicadas y solo ocurrir una vez en el año; y disminuía las posibilidades
de introducción de productos cubanos, sobre todo rones y tabacos, en los
Estados Unidos, su incumplimiento podría provocar sanciones judiciales
o elevadas multas.
La política de recrudecimiento de las sanciones comerciales, la
persecución económica internacional y el incremento de la confrontación
con Cuba constituyó el preámbulo para la llegada de Barack Obama a
la Presidencia. Obama desarrolló su campaña política alrededor de la
concepción de una época de “cambio”, y dentro de ese cambio incluyó las
relaciones con Cuba. Esta es una etapa fundamental en la comprensión
de las relaciones entre Estados Unidos y Cuba debido a lo que implicó
en política internacional, el acercamiento que se logró y las medidas
implementadas por el primer presidente negro en los Estados Unidos en
relación con Cuba.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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el camBio en la Política de Barack oBama hacia cuBa. nuevas
estrateGias de la derecha Política.
Obama dio pasos históricos para descongelar la hostil relación de la
era de la Guerra Fría con la Isla. Estos pasos formaron parte de su agenda
política, sobre todo durante su segundo mandato. Sin dudas se avecinaban
acontecimientos históricos trascendentales en la historia de las relaciones
entre Estados Unidos y Cuba. Los cambios que Obama propondría y
negociaría con Cuba, retomaban un camino que antes había intentado
recorrer la administración de James Carter, pero que no había concretar
más allá de un número reducido de medidas.
Según Ramírez (2016) se establecerían un grupo de acontecimientos
inéditos entre los que se podría apuntar, la llamada telefónica que Obama
realizó a Raúl Castro (entonces Presidente de los Consejos de Estado y de
Ministros en Cuba), en un tono cordial y respetuoso; además, se manifestó
en contra del bloqueo económico contra Cuba; se coordinó de manera
simultánea un mensaje televisivo por los líderes de ambas naciones donde
se anunció el restablecimiento de las relaciones diplomáticas y el inicio
de un proceso de normalización de las relaciones, con ese anuncio se
revertía la posición que habían mantenido las administraciones anteriores
norteamericanas, pues el establecimiento de las relaciones diplomáticas sería
el último paso en un proceso de acercamiento con Cuba; Obama mostró
su disposición de sentarse de igual a igual a conversar con la dirección de la
Revolución Cubana, y así lo hizo en la Cumbre de las América realizada en
Panamá y posteriormente lo hizo en La Habana. (RAMIREZ, 2016, p. 3).
A partir de aquí se iniciaron un conjunto de reuniones bilaterales
con agendas en las que se debatieron los problemas migratorios entre
Cuba y Estados Unidos, se debatió sobre el escabroso tema de los derechos
humanos, sobre la democracia, el terrorismo y el bloqueo económico,
entre otras cuestiones, por primera vez se creó una Comisión Bilateral, y
como derivación de ella se creó un mecanismo denominado como Diálogo
Económico Bilateral.
Dentro de todo este proceso se produjo la visita a la Habana de
Jhon Kerry en el mes de agosto de 2015 para participar en la apertura
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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de la embajada de Estados Unidos en La Habana, este sin dudas fue un
acontecimiento que estremeció a la comunidad internacional y sentó las
bases para el desarrollo de un proceso de intercambio más cercano entre
ambos países. Por la primera visita de un Secretario de Estado de los
Estados Unidos a Cuba en 70 años. Pero el acontecimiento culminante
de todo este proceso fue la visita de Obama a Cuba en el mes de marzo de
2016, desde la visita del Presidente Calvin Coolige a La Habana en 1928,
con motivo de la VI reunión Panamericana, no se producía la visita de
un presidente norteamericano a Cuba, ya habían transcurridos alrededor
de 90 años.
A partir de ese momento se rmaron un elevado número de acuerdos
entre Estados Unidos y Cuba. Acuerdos que llevaron al restablecimiento
de los vuelos regulares entre ambos países, la transportación marítima
de pasajeros que calicaban bajo 12 categorías permitidas por la ley
norteamericana y el establecimiento del correo postal directo, fueron de
los procesos que se beneciaron con estos acuerdos. Por otra parte, se logró
la renovación en los Estados Unidos del registro de la marca de ron cubano
Havana Club, este suceso cerraba el proceso de discusiones que se había
iniciado en la década del 90 alrededor de la famosa marca de ron cubano.
En materia de relaciones internacionales marcó un hito el hecho de
que, por primera vez, luego de 25 años, los Estados Unidos se abstuvieron
en la votación que se presenta en la sede de las naciones unidas en contra del
bloqueo. Este acontecimiento marcaba la seriedad con la que el gobierno
de Obama se había tomado el enfrentamiento contra esta criminal medida,
y el hecho de que su posición contraria al bloqueo económico no se
expresaba solamente en el discurso político.
A partir de las medidas aprobadas durante la administración de
Obama, se incrementaron los intercambios académicos, culturales,
cientícos y deportivos, los que superaron todos los realizados en anteriores
gobiernos estadounidenses. Los intercambios entre distintas universidades
de Cuba y universidades norteamericanas tuvieron un repunte durante
todo el 2016 y parte del 2017; igualmente el desarrollo entre centros de
investigación, religiosos, todos ellos bajo la sombrilla de lo que se denominó
como el intercambio “pueblo a pueblo”.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Sin dudas las medidas que tomó Obama tuvieron un impacto
importante en las relaciones entre Cuba y Estados Unidos. Sin embargo,
Obama terminaba su mandato y en Cuba se mantuvo el bloqueo económico,
y aún permanecía intocable la base naval de Guantánamo, entre otras
cuestiones relevantes en las relaciones bilaterales. Lo que sucede es que el
presidente norteamericano manejó con habilidad los hilos de la política
para siempre hacer ver que estaba al límite de lo que le permitía hacer su alto
cargo al frente de la administración norteamericana. Las medidas que tomó
a favor de las relaciones, no implicaba una eliminación de las ancestrales
aspiraciones de dominación de Cuba sobre Estados Unidos, no se alejaba
en lo más mínimo, en ese sentido, de la política imperialista hacia Cuba.
Se necesita comprender que Obama tomó un grupo de medidas basado en
el benecio de pequeñas empresas de particulares en Cuba, distanciándose
de aquellas medidas que podían representar un apoyo mayor al gobierno
cubano, siempre se cuidó de ello, por otra parte, trató de inuir en la
juventud cubana, buscando fomentar en ellos un interés de liderazgo y
emprendimiento, de manera independiente y alejado del Estado cubano.
¿Por qué el Presidente Obama solo promovió las inversiones en el
área de las telecomunicaciones y no en otros sectores, como por ejemplo
en la industria farmacéutica o biotecnológica? Aquí se encuentra una de
las claves fundamentales para comprender los objetivos de la política del
presidente estadounidense. En las telecomunicaciones existía un camino
para logar una comunicación más directa y una incidencia más expedita
con la población cubana. A través de las comunicaciones se podrían elaborar
mensajes y distribuirlos de forma tal que movilizaran a la población, sobre
todo los más jóvenes en contra del proceso revolucionario.
En su directiva presidencial del 14 de octubre de 2016, se ponían
de maniesto un grupo importante de ideas contradictorias, entre ellas las
relacionadas con la mantención de la base naval de Guantánamo bajo el
dominio estadounidense. El enfoque que le daba era el de que con dicha
base se mantenía el equilibrio y la seguridad regional, pero el elemento
contradictorio entonces está en cómo se puede hablar del respeto a la
soberanía y la autodeterminación de Cuba –elementos presentes en la propia
directiva- si al mismo tiempo plantea que va a seguir ocupando, en contra
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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de la voluntad del Estado y el pueblo cubanos, una parte de su territorio.
Por otra parte, plantea que no desean un cambio de régimen en Cuba, y
sin embargo, continuaron estimulando y nanciando el establecimiento de
fondos para apoyar a los llamados “activistas democráticos” en Cuba. Este
resulta un elemento totalmente contradictorio, no puedes plantear que
respetas la soberanía de un país, que no tienes intensiones de subvertir su
situación real y sin embargo promover actividades subversivas o contribuir
a su sostenimiento. Aquí se imponía la prepotencia imperialista y se
advertían las verdaderas intenciones del acercamiento: subvertir con mano
suave, inuir desde una posición no revanchista en un cambio de política
en Cuba.
En el 2016 se realizarían nuevas elecciones presidenciales en Estados
Unidos, y para sorpresa de muchos, el candidato republicano, Donald
Trump salió electo como el nuevo presidente de los Estados Unidos para
el período 2017-2020. Este suceso marcaría un rumbo de retroceso en las
relaciones Estados Unidos – Cuba.
la Política reaccionaria de donald trumP en contra del
estado cuBano: ejemPlo de contriBución a la Generación de
crisis Políticas.
Durante la campaña presidencial de Donald Trump se emitieron
informaciones contradictorias en relación con las pretensiones de su
política en relación con Cuba. No pocas veces manifestó la posibilidad
de continuar las evaluaciones bilaterales de la política tal y como estaba
sucediendo con el gobierno de Obama. Sin embargo, al acercarse los meses
previos a las elecciones, e incrementar sus relaciones con los que dirigen
la política hacia a Cuba desde el sur de la Florida, su posición cambió, en
la búsqueda de garantizar el voto anticubano en un Estado que representa
un elevado número de votos electorales. A partir de ese momento daría un
giro total a sus planteamientos en relación con Cuba y una vez presidente,
aplicó una política de ruptura y alejamiento con todo lo que había sido
establecido y aprobado por la administración anterior.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Con la asunción de Trump a la presidencia se produjo una
restauración ideológica conservadora de posiciones populistas,
nacionalistas y militaristas, que priorizó la aplicación de políticas
económicas proteccionistas, de recorte scal y el uso de la fuerza.
Durante su mandato se delinearon algunos elementos que constituyeron
las bases de la doctrina de política exterior y seguridad nacional. El hilo
conductor se correspondió con la plataforma electoral nacionalista de
primero Estados Unidos”, que combinó el aislacionismo diplomático y
el proteccionismo económico con el fortalecimiento militar y el rechazo
a la amenaza del cambio climático. Una “novedosa” fórmula para intentar
mantener la hegemonía global y otro “buen acuerdo” para el Complejo
Militar-Industrial. (GONZÁLEZ, 2020).
El 16 de junio de 2017, en el Teatro “Manuel Artime”, en la
Pequeña Habana, Miami, Florida - el nombre del teatro en alusión a uno
de los líderes de la invasión mercenaria por Playa Girón en abril de 1961-
Trump anunció la política de su gobierno hacia la Isla en un contexto
caracterizado por conictos y divisiones al interior de la clase política
del país. El momento en que se inicia el retroceso en relación con Cuba,
Trump buscaba cambiar la situación de descenso de su popularidad que
muy tempranamente se manifestó en las encuestas que constantemente se
aplicaban. Así rmó el titulado “Memorando Presidencial de Seguridad
Nacional sobre el Fortalecimiento de la Política de Estados Unidos hacia
Cuba”. Este documento expresaba el giro que tendría su política hacia
Cuba a partir de ese momento.
¿Qué provocó el rápido cambio de política de la administración de
Trump contra Cuba? Una respuesta a esta pregunta no puede hallarse en
otro sentido que no sea en la moneda de cambio que signicó Cuba en
el proceso electoral norteamericano, sobre todo en lo que respecta a la
Florida, pues allí el bastión anticubano de Miami le prometió total apoyo
a Trump si este se comprometía a retrotraer la política de Estados Unidos
hacia Cuba al estado que se encontraba previo a la llegada de Obama a
la presidencia. En este sentido, según Fernández y Pérez, (2018, p. 21):
“La situación en Cuba, América Latina y el mundo, así como en Estados
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Unidos, no experimentó cambios de magnitud y profundidad que aliente
el actual retroceso representado en el Memorándum emitido por Trump”.
Con la presentación del Memorando la administración de Trump
intentó destruir uno de los principales legados de Obama en América Latina
y el Caribe. En el documento se precisaba que dicho Memorando sustituía
y reemplazaba a la Directiva Presidencial de Política “Normalización entre
Estados Unidos y Cuba”, del 14 de octubre de 2016, la cual reconocía al
gobierno cubano como un interlocutor legítimo para trabajar de conjunto
en el proceso hacia la normalización de las relaciones entre ambos países.
A partir de ese momento se iniciaba la vuelta hacia atrás y un giro
de 180 grados en la política del gobierno de Donald Trump hacia Cuba
al compararlo con el de Obama. Las proyecciones injerencistas fueron
bien denidas en la “Hoja informativa de la política hacia Cuba”, que
publicaron ese mismo día en el sitio web de la Casa Blanca, que señalaba
que “el Presidente Donald Trump está cambiando la política de Estados
Unidos hacia Cuba para alcanzar cuatro objetivos”:
Mejorar el cumplimiento de la legislación de Estados Unidos, en
particular las disposiciones que rigen el embargo de Cuba y la
prohibición del turismo.
Mantener al régimen cubano como responsable de la opresión
y los abusos de los derechos humanos ignorados bajo la política
de Obama.
Mantener los intereses de seguridad nacional y de política
exterior de Estados Unidos y los del pueblo cubano.
Establecer las bases para empoderar al pueblo cubano
para desarrollar una mayor libertad económica y política.
(GONZÁLEZ, 2020).
Evidentemente Trump se asociaba con las posiciones ultraderechistas
en contra de Cuba, cuyo liderazgo fundamental radica en Miami. El
discurso de revancha estaba presente en el memorando que regiría su
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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política y la labor de tergiversación de la realidad cubana formaría parte de
la piedra angular de su accionar en contra del Estado cubano.
Toda la política de Trump en relación con Cuba se centró, en primer
lugar, en desmontar todo lo que había realizado la administración de
Barack Obama. Según González (2020):
El gobierno estadounidense manejó el tema Cuba como un asunto
de política interna y como pieza de negociación para recompensar
al electorado en la Florida y a los dos congresistas anticubanos,
aunque no pudo complacerlos en todos sus reclamos. Asumieron
el riesgo político del efecto negativo que tendría regresar a la
hostilidad contra la Isla, que se había convertido en un serio
obstáculo para sus relaciones con América Latina y el Caribe y era
rechazada casi unánimemente por la comunidad internacional.
(GONZÁLEZ, 2020, p.2).
Es decir, Trump colocó sus intereses en la Florida por encima de
los estratégicos con América Latina y el Caribe, lo que demuestra la
identicación de intereses con el bloque anticubano de Miami. Las
medidas que aprobó contra Cuba, abarcaron todas las dimensiones de la
vida económica y social del país, y se destacan por su esfuerzo sistemática
en la destrucción de los puentes que había trazado Obama. La política de
hostilidad del gobierno de Donald Trump contra Cuba registró medidas
y acciones sin precedentes, las cuales sobresalieron por su sistematicidad.
Todas las esferas de la sociedad y la vida cotidiana de los ciudadanos
cubanos sufrieron el impacto de este diseño, acentuado en el contexto de
la pandemia.
Como ya se planteó el esfuerzo del gobierno de Trump fue sistemático,
es por ellos que se ha llegado a plantear que, en los dos años nales de
su mandato, prácticamente, todas las semanas se aprobaba una medida o
acción en contra de Cuba, eso motivó que se han llegado a contabilizar más
de 240 medidas. En su mayoría, constituyeron acciones de recrudecimiento
del bloqueo con el objetivo de asxiar económicamente al país, subvertir
el orden interno, crear una situación de ingobernabilidad y derrocar a la
Revolución. Estas medidas han obstaculizado las principales fuentes de
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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ingresos del país, entorpecieron las relaciones comerciales y, sobre todo,
han tratado de incidir como desmotivación para la inversión de capitales
extranjeros en Cuba.
Una de las medidas de mayor impacto fue la de limitar, casi
totalmente, el derecho de los ciudadanos estadounidenses a viajar a la Isla,
los que tienen prohibido hacerlo como turistas. Esta sola medida generó
la disminución, casi a cero, de la llegada de visitantes norteamericanos al
país, pues a pesar de la existencia de un grupo de categorías y licencias que
debía entregarse para que pudieran viajar a Cuba, muchos norteamericanos
hicieron sus maletas y emprendieron sus viajes a la Isla bajo el amparo de
dichas licencias. Con la medida de Trump, todo ese proceso de acercamiento
y reconocimiento mutuo quedó varado.
Por otra parte, se eliminó la licencia general para los viajes individuales
dentro de la categoría de actividades educacionales, también identicadas
como “contactos pueblo a pueblo”, y solo se autorizarán viajes en grupo,
con una agenda preestablecida, un guía responsable de hacer cumplir
las regulaciones y mecanismos de auditoría, que obligaban a justicar
cada gasto y guardar la documentación durante cinco años. Realmente,
al aplicarse esta medida, disminuyeron abruptamente los intercambios
que se establecían entre universidades estadounidenses y cubanas. Estos
proyectos estaban cargados de un diálogo y un reconocimiento mutuos
que enriquecía culturalmente a los participantes, más allá de cualquier otro
benecio mutuo.
En 1996, como ya fue expuesto, se había aprobado la llamada
Ley Helms Burton, en su Título III esta ley enunciaba que todas las
propiedades que habían sido nacionalizadas por la Revolución Cubana,
podían ser reclamadas por los propietarios afectados y exigía su
devolución. Realmente constituía el aspecto más amenazante de la Ley y
el de menos probabilidades de ser aplicados, puesto que para ello tenían
que utilizar métodos coercitivos que propiciaran que Cuba devolviese
dichas propiedades. Realmente en 1960, cuando concluyó el proceso de
nacionalización, Cuba se dispuso y propuso las formas para indemnizar
a los propietarios a partir de las regulaciones que establecía el reglamento
internacional de la ONU. Sin embargo, aquellas condiciones no fueron
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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aceptadas por Estados Unidos, debido a que exigían una indemnización
pronta y efectiva y no en los plazos establecidos por la ley. En resumen,
no se indemnizó porque los propietarios no quisieron cobrar, realmente
calcularon que la Revolución no tendría la fuerza y la vitalidad suciente
para enfrentar a Estados Unidos y durar mucho tiempo en el poder, y por
eso se plegaron a los intereses del imperialismo norteamericano.
Ante estas dicultades, todos los presidentes norteamericanos,
partiendo del propio Bill Clinton que aprobó la Ley, suspendieron cada
seis meses la aplicación del Título III de a Helms-Burton. Sin embargo,
Donald Trump se convirtió en el primer presidente de Estados Unidos
en poner en vigor dicho Título, con el efecto de tener un “…impacto
indiscutible en las perspectivas de atracción de inversión extranjera, pues
constituye un desincentivo que se suma a las trabas ya existentes debido al
marco regulatorio del bloqueo…” (GONZÁLEZ, 2020), por otra parte,
una vez que se anunció la puesta en práctica de dicho engendro legal, se
iniciaron procesos legales y reclamaciones que han tenido lugar en Estados
Unidos, reclamando propiedades en Cuba.
El despliegue de las medidas del gobierno de Trump contra
Cuba tomaron más fuerzas a partir de las acusaciones realizadas por la
administración norteamericana en relación con el hecho de que se habían
presentado problemas de salud entre el personal de la embajada de Estados
Unidos en La Habana. Sobre este asunto se ha debatió fuertemente entre
cientícos norteamericanos y cubanos. Ante esta situación Cuba ordenó
la creación de una comisión multidisciplinaria, en la que intervinieron
cientícos de diversas especialidades, con el objetivo de dar una respuesta
coherente a las acusaciones realizadas.
A partir de dichas acusaciones, las autoridades norteamericanas
emitieron alertas de viajes hacia ciudadanos bajo el pretexto de los supuestos
incidentes de salud, y continuaron con la prohibición de viajes de cruceros,
la suspensión de la sub categoría de viajes educacionales “pueblo a pueblo” y
la modicación de dos de las licencias que permitían las visitas de ciudadanos
estadounidenses a Cuba. Por otra parte, se dieron los pasos iniciales para
la disminución del personal que atendía en las embajadas, por lo que los
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trámites migratorios y la obtención de visas se convirtieron en verdaderas
odiseas para todo aquel que necesitaba viajar entre ambos países.
Hasta hoy no existe una justicación desde el punto de vista cientíco
que demuestra la existencia de tales afectaciones de salud, sin embargo,
durante todo el gobierno de Trump se mantuvo el funcionamiento
limitado de las embajadas y continúan las investigaciones para esclarecer
lo sucedido. Todo parece indicar que con el paso del tiempo se demostrará
que todo no fue más que una justicación para poder implementar las
medidas restrictivas aplicadas.
Con la aplicación de la política de Trump contra Cuba, se retrocedió
a la época de Guerra Fría. Las medidas tomadas por Trump, superaron todas
las acciones que en otros tiempos realizó la ultraderecha norteamericana
con el n de rendir por hambre y miseria al pueblo cubano. Esta política
constituye una muestra de hasta donde pueden llegar los gobiernos
imperialistas con el objetivo de cumplir con su política.
Trump pasará a la historia como otro presidente que trató de imponer su
voluntad a Cuba y, aunque entorpeció el normal desenvolvimiento que debe tener
cualquier país, se estrelló, como tantas otras administraciones norteamericanas,
contra la voluntad y capacidad de resistencia del pueblo cubano.
Si bien el legado de Obama dejó una huella hasta cierto punto
positiva en el entorno de las relaciones entre Estados Unidos y Cuba,
Trump será el Presidente con recordación más triste entre los cubanos que
seguimos pagando el pecado de haber decidido construir un país socialista
a solo 90 millas de la potencia imperialista más grande de la historia.
Con la llegada de Joe Biden al poder se abren nuevas expectativas
en materia de relaciones bilaterales entre Cuba y Estados Unidos, pero
para que dichas expectativas se veriquen, habrá que esperar a que
avancen las proyecciones y se concreten los objetivos iniciales de la nueva
administración. Mientras, Cuba continuará defendiendo su derecho a la
libre autodeterminación y a la construcción de una sociedad soberana e
independiente.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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C 4
P E B 
E E A: 
    

Luiz Felipe OSÓRIO
1
introdução
A discussão sobre extremismos políticos, direitas e crise da democracia,
como a deste evento, ora inaugurado, acerta em cheio o cerne da questão
que vivenciamos hoje. Trazendo ainda um elemento fundamental do
Estado brasileiro que é a sua política externa. Neste trabalho tenta-se
relacionar tudo aquilo que envolve o Ministério das Relações Exteriores
à história das Relações Internacionais dentro do capitalismo. O intuito
é abordar as particularidades brasileiras, contudo sem deixar de inseri-
las nesse contexto mais amplo que é o sistema capitalista de Estados. Tal
análise sobre a política externa será feita partindo de pressupostos que
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Vice-Diretor
do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS/UFRRJ). Seropédica R.J. Brasil. E-mail: luizfelipe.osorio@
googlemail.com. https://orcid.org/0000-0003-4429-3645.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p97-120
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
98 |
alinhem tanto a perspectiva teórica do marxismo, quanto o olhar prático e
analítico sobre as Relações Internacionais.
Em princípio, cabe atentar que qualquer olhar que passe pelo
marxismo demanda necessariamente a compreensão desse modo de
produção tão estruturante e determinante nas nossas vidas quanto é o
modo de produção capitalista. Anal de contas, muitos já dão o marxismo
como vencido ou ultrapassado. No entanto, é fundamental considerar que
apesar de ser de fato uma teoria nita, enquanto houver capitalismo o
marxismo será sempre sua melhor ferramenta de análise (ALTHUSSER,
1998). Uma vez superado esse modo de produção, aí, sim, o marxismo
estará enterrado, mas enquanto isso não acontecer ele será sempre uma
ferramenta muito válida. Se não a mais adequada, aquela que vai conseguir
descortinar importantes horizontes da análise.
Aliás, a ideia aqui não é se somar ao coro de dizer que o Ministério
das Relações Exteriores na sua atual condição é uma vergonha, obra de
mirabolantes elucubrações mentais, reforçar estigmatizações ou coisa do
gênero. O objetivo é tentar fazer uma análise fria e responsável da situação
concreta daquilo que está acontecendo para que nós possamos justamente
colocar o dedo na ferida.
Pois bem, e de que interessa isso? Interessa perceber que entrelaçados
aos termos “Relações Internacionais”, “Política Externa” e “Capitalismo”,
precisamos entender quando se pode falar em Relações Internacionais
exatamente. Porque se formos desenrolar o o histórico com o objetivo
de buscar contexto, corremos o risco de retroceder ao innito. Contudo,
ao adotar uma análise que considere o materialismo histórico e dialético, é
possível determinar esse resgate de forma mais pontual, o que precisamos é
entender a história do mundo a partir da organização concreta da produção.
Ou seja, a partir do momento em que a sociedade vai se sedentarizando,
se xando em um lugar especíco e organizando socialmente o trabalho.
1. a Política externa Brasileira na trajetória do caPitalismo
mundial
Isso se percebe ao longo da história da humanidade numa trajetória
que envolve pelo menos três grandes modos de produção que se tornaram
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 99
predominantes. O primeiro é o escravismo, datando da Idade Antiga
e envolvendo por volta de dez séculos. Passando em seguida para o
feudalismo, que perdurou boa parte da Idade Média até chegar ao que
vivemos hoje, o capitalismo. E apesar de já demonstrar indícios do que viria
acontecer ao longo da Idade Moderna, que foi um período de transição, o
capitalismo só se constitui enquanto modo de produção predominante no
mundo a partir da Idade Contemporânea, que é o momento que marca
a chegada das burguesias ao poder político. Sendo também um momento
que marca a constituição daquilo que nós conhecemos hoje como Estado
Democrático de Direito. Algo que é importante de pontuar, porque vem a
reboque das grandes revoluções burguesas, sobretudo a estadunidense e a
francesa (WOOD, 2014).
Tal fato se torna marcante ao passo que o estudo moderno, aquele
que interessa às Relações Internacionais e que as constitui, ganha um
conteúdo próprio a partir da Idade Contemporânea. Ainda que as relações
internacionais possam ter elementos pretéritos, mas ganham especicidade
nesse período. Ou seja, a partir do nal do século XVIII e início do século
XIX, quando o capitalismo, a partir da Inglaterra, vai se alastrando pelo
resto da Europa e depois pelo mundo como um todo, esse é, portanto, um
momento determinante.
Nessa perspectiva, as relações internacionais se formam muito a
partir daí, sobretudo com a formação dos Estados-nação — essa forma
política que também é um produto do capitalismo (MASCARO, 2013).
Antes disso havia organizações políticas distintas, mas não na forma de
Estado como nós conhecemos hoje. Não com a burocracia atual e nem
com essa maneira de se estruturar. Maneira esta que é muito particular e
peculiar, própria do capitalismo.
1.1. momento Pioneiro: formação das fronteiras territoriais,
aGroexPortação e tratados desiGuais
Nessa lógica, a partir do século XIX o capitalismo vai se consolidando
e vai se espalhando por toda a Europa inicialmente. Mas ele se torna de
fato predominante nas sociedades europeias com a sua primeira grande
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
100 |
crise. Chamada de Grande Depressão foi a crise que se iniciou e perdurou
até o início do século XX, sendo um dos três momentos que nós podemos
narrar aqui como determinantes nas relações internacionais enquanto uma
forma do capitalismo (FRIEDEN, 2008).
Esse primeiro envolve uma geograa do capitalismo muito restrita à
Europa. Inclusive é essa geograa do capitalismo que faz com que ele saia
da Europa Ocidental e chegue à Europa Oriental. E não é coincidência
que aqueles autores considerados os fundadores das teorias de Relações
Internacionais, os conhecidos teóricos do Imperialismo, vão desenvolver
seu pensamento e sua militância exatamente nesse momento de transição
entre o século XIX e o século XX. Porque eles estão vivenciando e
acompanhando as mudanças que vão solidicar o capitalismo enquanto o
modo de produção dominante no mundo (OSÓRIO, 2018a).
Em nível global, são tempos de muita ebulição, porque é um período
em que as esquerdas vão se reconhecendo enquanto classe em si e buscando
seu lugar ao sol. Ou seja, buscando emplacar as suas reivindicações, lutando
por mais direitos, por mais espaço e também por poder político. Não à
toa, as esquerdas nesse momento são as esquerdas revolucionárias que
vericavam no Estado o problema central. Tendo em conta o Estado como
comitê executivo da burguesia, logo, a tomada do Estado seria o caminho
para a transformação, faria com que aquele Estado se direcionasse para os
trabalhadores. E aí, acabou que a História foi mostrando outros rumos.
Nesse sentido, a forma política do capitalismo de se estruturar
tem no Ministério das Relações Exteriores um de seus principais braços
de independência formal dos Estados. Cabe lembrar aqui que, no
caso brasileiro, por exemplo, o primeiro ministério criado a partir da
Independência do Brasil foi o Ministério dos Negócios Estrangeiros e da
Guerra, ilustrando aí desde já a importância dessa seara.
O Brasil nesse primeiro ciclo, o momento pioneiro da trajetória
do capitalismo em âmbito mundial, marcado pela Grande Depressão e a
Grande Guerra, ainda tinha uma estrutura econômica muito incipiente.
Era um país que tinha a sua velha grade exportadora muito forte, com
apenas alguns espasmos de tentativas de industrialização. Pode se apontar
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 101
um caso ou outro isolado, mas ainda não havia uma política disseminada
e sistemática de modernização. A política externa brasileira nesse primeiro
período defendia o café como principal produto de exportação nacional
e em alguma medida aprofundava essa postura de defesa de vantagens
comparativas do Brasil — ou seja, na especialização naquilo que o país
tem de melhor em produtos agrários. É também uma política externa que
foi exitosa do ponto de vista de manter a unicação territorial a partir
da articulação de tratados fronteiriços (CERVO; BUENO, 2015). Um
ganho bem considerável, e que só ocorreu em função da leitura inovadora
e transformadora da época do Barão do Rio Branco que apontou para
os Estados Unidos como o próximo poder hegemônico do mundo, já
vislumbrando aí uma ultrapassagem hegemônica, uma passagem de
bastão da Inglaterra para os Estados Unidos. E essa política americanista
naquele momento foi responsável por vitórias importantes do Brasil em
arbitragem, em negociações e em celebrações de tratados fronteiriços,
permitindo assim que o Brasil tivesse a conguração continental que tem
hoje (MONIZ BANDEIRA, 2014).
As esquerdas revolucionárias aqui no Brasil também zeram sentir
efeitos. Os movimentos importantes, como o Movimento Grevista de
1917, por exemplo, vêm dessa tradição. O país teve iniciativas importantes
de greve e movimentos sociais ao longo desse período, mostrando que ainda
que o capitalismo não estivesse inteiramente desenvolvido, havia uma
parte importante aqui dentro. Por outro lado, no que toca à democracia
e à questão de garantias das massas, o Brasil não chegou nem perto de
viver naquele momento qualquer arremedo de regime democrático. O país
passou por uma alternância de poder conhecida como “Café com Leite”, e
mesmo antes, durante o processo de Proclamação da República, não houve
um fenômeno liderado pelas massas, mas sim uma transformação pelo alto.
1.2. momento fordista: nacional-desenvolvimentismo e
Política externa indePendente (Pei)
Assim, esse primeiro momento é importante, mas é uma fase em que
o capitalismo não está plenamente disseminado no mundo inteiro, isso virá
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
102 |
com o segundo grande ciclo — que é o ciclo que se inaugura com a Crise
de 1929. Uma grande crise estrutural e com impactos no mundo como um
todo que foi seguida pela Segunda Guerra Mundial (HELLEINER, 1994).
Esse novo período faz com que o capitalismo se alastre pelo globo. Não é
coincidência que a partir daí se comece a falar de “centro” e “periferia”, e a
periferia comece a entrar como um elemento dos debates progressistas. É
um momento em que o capitalismo cede os anéis para não perder os dedos.
Visto que o capitalismo teve que lidar com a vitória da União Soviética na
Segunda Guerra Mundial fazendo concessões e se reestruturando de uma
maneira que muitos conhecem como fordista (HIRSCH, 2010).
Nesse pós-1945, toma forma o capitalismo do fordismo, aquele
que tem seu eixo de acumulação interno, ou seja, dentro dos territórios
nacionais, muito associado à indústria e tem o seu modo de regulação
altamente intervencionista. O Estado interferindo em várias searas,
inclusive nas searas socioeconômicas, mesmo o tempo livre do trabalhador
está regulamentado.
Vale relembrar que as esquerdas já venceram em algum momento
da história dentro dos marcos do capitalismo, foi justamente no pós-
1945. E as esquerdas chegaram ao poder quer pela via revolucionária
— como aconteceu na União Soviética, na China, no Vietnã, em Cuba
e países africanos importantes, como a Angola —, quer pela conciliação
no que veio a se tornar a socialdemocracia. Uma frente ampla de sua
época, conciliando interesses moderados da esquerda e da direita, que
fez com que a socialdemocracia chegasse ao poder em países da Europa
Ocidental, por exemplo.
É interessante pontuar que o que se considera parâmetro de
democracia hoje são os Estados de bem-estar social que vieram desse
momento de pós-guerra. Em outras palavras, são as concessões que a
burguesia liberal foi tendo que fazer para não perder o poder político como
um todo, dada a situação da Europa no pós-Segunda Guerra Mundial
de total destruição. Então, o que se percebe como ideal de democracia,
de capitalismo justo, uma democracia justa ou coisa que o valha, é esse
momento de um Estado de bem-estar social. É isso também que muitos
aqui na política nacional querem resgatar ou adaptar às condições atuais.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 103
Foi um momento que gerou certa prosperidade no centro do
capitalismo, considerados hoje os 25 anos gloriosos, de 1945 até 1970
(BRUNHOFF, 1978). Porém na periferia não foi bem assim. Na periferia foi
um período marcado por processos altamente violentos de descolonização,
sobretudo na África e Ásia. Processos muito traumáticos e que impactam
até hoje nessas sociedades. O que se acostumou a chamar de Guerra Fria, na
periferia foram guerras muito quentes, muito beligerantes, muito pesadas.
Destruindo tecidos sociais mundo afora. Mas foi uma fase em que apesar
de tudo, alguns países puderam ter uma descolonização de fato, se livrando
de toda aquela herança e todo aquele fardo do colonialismo.
O pós-Segunda Guerra Mundial para o Brasil foi o que permitiu a
industrialização e a mudança do eixo da economia brasileira, que saiu do
agrário-exportador para industrial. Muitos autores, em especial Celso
Furtado (2007) que consagrou esse tema, apontam que o Brasil na Era
Vargas conseguiu um desenvolvimento avant la lettre. Algo que só chegou
para o mundo depois da Segunda Guerra Mundial, já vinha sedimentando
suas bases no país desde o início da Era Vargas. E a partir daí, o Brasil foi
rumo a uma toada de defesa o nacional-desenvolvimentismo, ou pelo menos
a indústria nacional em maior ou menor medida (JAGUARIBE, 2006).
Então, o que acontece com as esquerdas no poder nessa vertente do
desenvolvimento nacional industrial, foi conseguir ganhar algum fôlego
e aqui no Brasil vai se perceber um movimento semelhante. Não é à toa
que muitos candidatos à presidência hoje gostariam de ressuscitar legados
desse momento, desse passado glorioso. Foi um momento que a política
externa brasileira se notabilizou por ser independente, ou seja, pragmática.
Não era uma política de alinhamento automático com os Estados Unidos,
a principal potência e sua vizinha regional. Era também a defesa de um
capitalismo à brasileira, um capitalismo com sua marca e autenticidade.
Entretanto, não signica que tenha sido uma política externa à esquerda,
nem mesmo que tenha sido algo próximo do movimento dos não alinhados
ou plenamente independentes. Essa orientação cou conhecida como PEI
(Política Externa Independente). Foi uma política pragmática que tentou
alcançar objetivos nacionais na medida do nacional-desenvolvimentismo,
seguindo a dinâmica do pensamento que existia na época e que em grande
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
104 |
medida acabou se destacando por vitórias relativas, conquistas signicativas
em um contexto mais amplo.
1.3. momento Pós-fordista: equilíBrio imPossível do
neoliBeralismo, aProximações e ruPturas
Contudo, esse período que teve o nacional-desenvolvimentismo
como a sua face mais evidente, muito em função desses acordos e dessas
conciliações, começa a ruir a partir dos anos 1970, quando esse modelo
fordista começa a ser questionado e gradativamente a entrar em crise. Tal
crise é aguçada e chega a um ápice na década de 90, marcado pelo m da
Guerra Fria e da dissolução da União Soviética. Essa dissolução do bloco
socialista do leste europeu e da União Soviética é um baque muito grande
para as esquerdas. Antes vitoriosas no pós-1945, esse é o momento que as
esquerdas vão para a lona e sofrem uma grande derrota, da qual elas ainda
não conseguiram se erguer. Muitas das alternativas progressistas passam a
colocar à mesa questões do neoliberalismo menos pesadas, de maneira não
tão socialmente impactante do ponto de vista negativo.
Por sua vez, um terceiro momento se dá a partir da década de 1990,
este é coroado com a Crise de 2008, cuja qual nós sentimos seus efeitos
até hoje. Uma crise que só tem parâmetros naquela de 1929, ou seja, é a
segunda maior, quiçá a maior crise econômica do mundo, cujos efeitos
ainda estão em rescaldo mais de uma década depois. Balançando por
completo as estruturas do mundo e levando a uma geograa muito distinta
daquela anterior.
Se antes a geograa do segundo momento era totalmente
mundializada, abarcando os quatro cantos do globo, nesse momento agora
a geograa vem através de espaços imateriais. Isto é, como o capitalismo já
chegou praticamente em todos os territórios do mundo, a fenda encontrada
para que se mantenha se dá agora a partir dos espaços imateriais, que
correspondem a abertura das economias aos capitais (HARVEY, 2005).
O que muita gente chama por aí de diminuição do Custo Brasil — o que
normalmente nada mais é que a diminuição do custo da mão de obra, se
fazendo por meio do governo brasileiro através da Reforma da Previdência
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 105
e Reforma Trabalhista, nas quais direitos são cada vez mais retirados dos
trabalhadores. Em outros termos, é a abertura de espaço de valorização do
valor, uma dinâmica muito própria de um capitalismo que se propõe como
oposto ao seu momento anterior (MASCARO, 2013).
Então se o seu momento anterior é chamado de fordista, esse
passa a ser entendido como pós-fordista. Em que sentido? Pós-fordista
porque se antes o eixo de acumulação era interno e muito identicado
no capitalismo industrial, agora esse eixo de acumulação é internacional e
muito identicado com o capitalismo nanceiro (JESSOP, 1991). O que
acontece no momento atual é que existe a intensicação de uma tendência
que é própria e estrutural do capitalismo: a internacionalização das relações
de produção. Verica-se hoje justamente isso e são evidentes seus impactos
em nossa vida como um todo. Uniformizando inclusive nossos gostos por
músicas, séries e demais expressões culturais. A cultura está cada vez mais
uniformizada de ponta a ponta dentro daquela lógica que é a dominante,
ou aquela que mais se propagandeia por aí.
Por exemplo, algo que é muito louvado como modelo de modernidade
é a União Europeia, sobretudo a partir da união econômica e monetária que
sacramentou o euro como moeda comum a alguns países daquele espaço.
A gestão monetária é um dos aspectos centrais da soberania de um Estado,
e foi transferida para um ente internacional burocratizado composto de
ditos especialistas técnicos apolíticos que vão gerir da melhor maneira a
política monetária. Uma falácia completa, a política monetária não pode
ser tratada dessa maneira sob pena de engessar a condição econômica dos
países — sendo esse o menor dos efeitos. Além de trazer mazelas por não
ter uma válvula de escape em meio às crises para as economias nacionais
(OSÓRIO, 2018b).
Não é fortuito que as organizações internacionais e o direito
internacional, a partir da década de 90, ganharam uma proeminência
tremenda. Por quê? Porque muitas das competências estatais foram
transferidas para essas organizações sob o pretexto de um tratamento mais
técnico, mais impessoal. Quando na verdade é a política que determina
isso. Ou ao menos a política da sociedade é que deveria determinar o
tratamento de questões sensíveis e importantes para o coletivo. Em suma,
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
106 |
esse é o momento que nós vivemos hoje, falar de democracia hoje é falar de
um histórico simulacro de democracia para muitos países da periferia, que
se deixam dominar no cenário atual pela submissão às dívidas nanceiras.
E cabe questionar, como a política externa brasileira vai se situando
nesse momento atual? Em tempos em que o eixo de acumulação está cada
vez mais internacionalizado — fenômeno conhecido como globalização —,
e o seu modo de regulação está também cada vez mais internacionalizado.
Retirando das democracias locais e do contexto político local o poder de
decisão sobre muitos assuntos importantes que impactam o indivíduo e a
sociedade como um todo.
Nesse contexto, a política brasileira vai se equilibrando, com governos
que vão se sucedendo, numa tentativa de resgate dos parâmetros de uma
pretensa socialdemocracia. Vão tentando resgatar e ao mesmo tempo gerindo
isso com medidas neoliberais de maior ou menor impacto societário. Ou
seja, é uma questão de neoliberalismo com determinados momentos de
algum apelo socialdemocrata e em outros de maior austeridade.
Por sua vez, a política externa no pós-década de 90 é também
marcada por essas alternâncias. Inicialmente, um breve período de realismo
periférico com o governo Collor. Em seguida, Itamar acabou mudando
um pouco a orientação para um retorno ao desenvolvimentismo da PEI.
Posteriormente, veio o Fernando Henrique Cardoso com um realismo
periférico fortíssimo orientado pelo liberalismo econômico. Depois os
governos Lula e Dilma, que tentam em alguma medida resgatar a política
externa independente e dar colorações socialdemocratas à política externa.
Já hoje, nós vericamos que a política externa praticada pelo Brasil é
de resgate das premissas liberais do governo Fernando Henrique Cardoso
e aprofundando ainda mais determinados laços. Ou seja, é a retomada
de algo que não é novo na política externa brasileira, é a retomada de
um alinhamento automático e de uma ideia de desenvolvimento associado
às grandes potências com certas particularidades do momento por conta
do espectro político que se situa o governo federal. Soma-se a isso todo
o ferramental da extrema direita mundial traduzido e representado mais
elmente na gura do ex-chanceler Ernesto Araújo e todo o aparato de
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 107
política internacional do atual governo, bem como com seu alinhamento
automático aos Estados Unidos. Para entender melhor essa composição,
cabe um olhar mais detalhado, a partir do quadro sinótico abaixo:
2. a Política externa Brasileira com ernesto araújo à frente
(2019-2021)
Ainda durante a campanha presidencial nas eleições de 2018,
Bolsonaro havia sinalizado poucas propostas em sua plataforma política,
uma das poucas demonstrações do que viria no futuro foi a da política
externa (única sinalização concreta ao lado da economia política liberal).
De sua posse em diante, com a montagem do ministério, Ernesto Araújo
é apontado para a pasta das Relações Exteriores. A escolha do chanceler
brasileiro rompeu com a tradição sucessória na condução do Ministério
das Relações Exteriores, mas, ao mesmo tempo, privilegiou um diplomata
de carreira (o que acabou acalmando os ânimos de uma repercussão ainda
pior no universo das relações internacionais). Içado da inexpressividade na
carreira, sua ascensão foi relacionada com suas oportunas demonstrações
de adesão ao ideário em voga. Ernesto Araújo demonstrou, ao longo de sua
carreira, ertes intelectuais com os mais variados espectros políticos, mas
ganhou os holofotes com a recente incorporação das noções da extrema
direita mundial, carreada pela supremacia branca ocidental.
Desde seu discurso de posse, Ernesto já demonstrou que romperia
com o tom de mínima sobriedade que sempre pesou sobre os ocupantes
do cargo. Em uma fala que chamou a atenção do público por uma
mistura de elementos místicos de um passado idílico ocidental com uma
mania de perseguição descolada da realidade e travestida de um pretenso
nacionalismo às avessas (BERRINGER et al., 2021), levando para a
política externa os ecos que surtiram efeitos positivos para Bolsonaro na
campanha presidencial (ARAÚJO, 2019). O que se percebia de maneira
clara, expressa e manifesta é que a gestão Araújo signicaria uma ruptura
completa, em todos os pontos, da política externa dos governos do Partido
dos Trabalhadores. Em outras palavras, não havia exatamente uma pauta,
mas, sim, a negação e desconstrução dos feitos anteriores. O que em
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
108 |
termos da história da política externa do Brasil conduz à retomada do
alinhamento automático às grandes potências e o abandono da política
externa independente. O Brasil, em sua história diplomática tem no
americanismo, que oscila entre o pragmático e o automático, uma vertente
cardial, inaugurada pelo Barão do Rio Branco (em ruptura ao europeísmo
de eras remotas) e mantida com maior ou menor intensidade. Todavia, o
arranjo de Araújo se aproxima do ineditismo em intensidade.
Logo, cou perceptível que a política externa contemporânea teria
dois grandes eixos. O econômico que seria a retomada de uma linha de
desenvolvimento associado da política externa brasileira, já colocada em
prática em outros governos, como os de Castelo Branco, Fernando Collor,
Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, porém, sem qualquer
mediação quanto a um mínimo de pragmatismo. Já o eixo ideológico
trouxe para os discursos e atos ociais do Itamaraty a retórica e prática da
extrema direita mundial, a qual se pautava, fundamentalmente, pela crítica
ao liberalismo político mundial, quer à direita quer, sobretudo, à esquerda,
ou seja, um repúdio às bases da socialdemocracia, consenso reinante no
Ocidente no pós-Segunda Guerra Mundial.
A junção das duas diretrizes ao invés de um realismo periférico,
próprio dessa orientação, transformou-se em um quase irrealismo ao assumir
um alinhamento automático extremo com o, então, governo Trump,
apostando todas suas chas em uma reeleição que não veio. A compra do
pacote completo da política estadunidense sem qualquer moderação levou
o país a entrar em brigas desnecessárias, que não pertenciam ao radar das
relações externas nacionais, e ao imobilismo em outras searas, como a da
tecnologia, em relação ao desenvolvimento do 5G na China e à articulação
para a compra ou obtenção de vacinas ou de suas matérias-primas em meio
à pandemia da COVID-19.
O intervalo de um pouco mais de 2 anos de atuação de Araújo
gerou desconforto até nas burguesias do país e nas alas militares
2
, as
O histórico de apoio ao americanismo nas Forças Armadas vem desde a Segunda Guerra Mundial, com a
participação ao lado dos aliados, o reequipamento militar advindo do programa de apoio estadunidense (que
resultou até na criação da Aeronáutica brasileira) e a fundação, em 1949, da Escola Superior de Guerra (liderada
por Golbery do Couto e Silva), pelo Exército, altamente inspirada na War College. E esse centro de pensamento
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 109
quais apoiaram determinante a chegada do governo Bolsonaro ao poder
e a guinada na política externa nacional. A queda de Araújo, em março
de 2021, tende a não gerar grandes mudanças na condução da política
exterior, a não ser em sua vertente ideológica, a qual deve ser eclipsada pela
econômica, ainda que reste presente.
2.1. a face ideolóGica: alinhamento automático com os estados
unidos e com a extrema direita mundial
Um misto de fé e geopolítica (FIORI, 2019). A atuação de Araújo
revelou-se anada com uma leitura de mundo que via em Donald Trump
um suposto messias que comandaria o retorno de valores tradicionais do
ocidente, vilipendiados pelo multiculturalismo e a globalização dos povos, o
que estaria levando a civilização ocidental à barbárie e ao desaparecimento.
Em artigo publicado, ele utiliza-se de Martin Heidegger e, principalmente,
de Oswald Spengler, mormente no livro A decadência do Ocidente, publicado
originalmente em 1919 (que busca na losoa grega de Ésquilo as raízes
dessa superioridade da cultura ocidental) (ARAÚJO, 2017). Os pilares
contemporâneos desse movimento seriam: uma política anti-imigração;
anti-multiculturalismo; e contrária ao marxismo político ou cultural
(grande balaio de gato que é composto por tudo que eles discordam, mas
que é basicamente o liberalismo político à direita e à esquerda próprio da
alternância de poder no consenso da socialdemocracia). As diretrizes acima
estão não apenas no plano das ideias, mas na prática da política externa.
Ernesto Araújo, ao lado do presidente da Comissão para Assuntos
Exteriores e Defesa da Câmara, o deputado Eduardo Bolsonaro (BENITES,
2020), que é para muitos o chanceler de fato (LOPES, 2020), e do assessor
da presidência da República para assuntos internacionais, Filipe Martins,
forma o que parece ser a trindade que movimentou o eixo ideológico
da política externa. O que deixa mais clara essa percepção é o liame que
une as três guras às ideias da extrema direita mundial, capitaneada pelo
estadunidense Steve Bannon e sua divulgação de ideias de supremacia
foi estreitando ainda mais os laços com os norte-americanos. Além, claro, do expurgo ao longo da ditadura
civil-militar de qualquer quadro que defendesse algo diferente de um maior ou menor alinhamento ao ocidente.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
110 |
branca ocidental por meio da articulação conhecida como e Movement
3
,
que possui alta capilaridade no subterrâneo do mundo virtual. Isso leva,
no caso brasileiro, à parceria com os Estados Unidos, a qual extrapola o
mero alinhamento automático, que já fora praticado em outras ocasiões na
história da política externa nacional
4
, mas é forjada em uma identicação
imediata pessoal (entre os dois governantes especicamente) e na assunção
de uma postura subserviente incondicional.
O movimento da extrema direita mundial ascende indisfarçavelmente
em todos os quadrantes do globo, mas, principalmente, em seu centro
de acumulação, encontrando brechas em meio à tolerância do liberalismo
econômico e à falta de alternativas políticas para a burguesia em vários países
no contexto de uma crise econômico brutal, com precedentes somente na
de 1929, acentuada ainda mais com a pandemia viral que veio desnudar
os efeitos deletérios do capitalismo, sobretudo, em sua vertente neoliberal.
Em um panorama radicalmente distinto daquele do pós-1945, quando a
socialdemocracia encontrou espaço fértil para orescer, as necessidades e
os problemas são outros. A tentativa de retomada de soluções de outrora,
como a socialdemocracia, vai demonstrando sua insuciência e falência
para lidar com as questões do cotidiano. Sem grandes alternativas políticas
reformistas, dentro da direita e da esquerda moderada, a extrema direita
ganha espaço e ocupa o palco principal da política internacional.
Várias manifestações políticas ociais, como eleição e ascensão
de partidos políticos extremistas, como também extraociais, como
atentados
5
e penetração social de seu ideário, comprovam esse fenômeno
(HOEVELER, 2020).
A articulação conhecida como e Movement, constitui as bases do pensamento da extrema direita e possui alta
capilaridade no subterrâneo do mundo virtual. O replicador (não tão el) dessa perspectiva mais conhecido no
Brasil é Olavo de Carvalho, responsável por costurar uma teia de extremista que inuencia aqueles que seguem
por esse caminho.
Em maior ou menor medida, o alinhamento automático fez-se presente na política externa brasileira dos
governos Castelo Branco, Café Filho e Fernando Henrique Cardoso, tendo como exemplos concretos ações
especícas (envio de tropas para a intervenção da OEA na República Dominicana) e o apoio político à ALCA.
Talvez, o mais signicativo deles, que estão cada vez mais frequentes, seja o de Anders Breivik, o ativista
extremista de direita que, na Noruega, em 2011, empreendeu um atentado terrorista contra estudantes da
juventude socialdemocrata do país nórdico, deixando um manifesto que serve de base para os movimentos de
extrema direita.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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As saídas à extrema direita a partir da crise econômica de 2008 têm
galgado espaço, desde o centro até a periferia. Basta dizer da eleição de
Trump, nos Estados Unidos, do Brexit, no Reino Unido, da ascensão da
Frente Nacional, na França, de Orban, na Hungria, da manutenção de
Netanyahu, em Israel, de Modi, na Índia, e da reversão parcial da onda
progressista na América Latina, mormente do governo Bolsonaro, dentre
outros exemplos.
Essa plataforma une em maior ou menor medida vários políticos
mundo afora. E eles identicavam no governo Trump, nos Estados Unidos,
a locomotiva da extrema direita mundial, em razão disso, o alinhamento
automático do Brasil aos Estados Unidos. Com a saída do republicano e o
retorno do Partido Democrata, com Joe Biden, a relação não será umbilical
como era, mas de maneira alguma será afetada, ou seja, não deixará o
alinhamento automático.
Apontar o cálculo político na postura e pensamento de Araújo não
signica, entretanto, considerá-lo um estrategista. Longe disso, ainda há
quem o veja como o pior chanceler do mundo por uma série de razões
nas movimentações da política externa brasileira (PAGLIARINI, 2019).
A análise do internacionalista não deve, todavia, ser eivada de apegos
excessivos ao subjetivismo. Não se pode menosprezar ou não levar a sério
aparentes delírios; não é uma questão de ridículo ou falta de cognição,
mas um cálculo político, que é altamente arriscado, tanto que levou
Araújo à queda pela própria pressão política interna (AMORIM, 2019;
GUIMARÃES, 2019).
O alinhamento automático não se justica no plano racional mais
elementar e leva o Brasil a tomar uma postura arriscada em várias searas.
No comércio exterior, o Brasil tem com os Estados Unidos, por
exemplo, uma relação muito mais concorrencial do que complementar.
A pauta exportadora brasileira é composta majoritariamente por
produtos agrícolas primários ou semimanufaturados, com incremento
de tecnologia próprio do agronegócio, com disputas comerciais acirradas
(e com vitórias importantes) com os Estados Unidos. Com a China a
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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relação comercial é mais complementar do que concorrencial, sobretudo
do ponto de vista do agronegócio.
Na política internacional, ao comprar o anticomunismo requentado
contra a China e os países socialistas, posicionando impreterivelmente
ao lado dos Estados em meio ao aumento de tensão entre os dois países
6
(ARAÚJO, 2020). Posicionamentos minoritários e controversos na
ONU
7
; críticas e rechaço público à atuação da OMS em meio ao combate
à pandemia por identicá-la com a China
8
; acordos econômicos e
estratégicos desfavoráveis; não reciprocidade cobrada em algumas medidas
governamentais; abandono da outrora exitosa política pendular ou de
equidistância pragmática para obter ganhos em meio às rusgas das duas
grandes potências
9
(JAGUARIBE, 2006).
No entorno regional, a correção de rumos envolve a intervenção em
assuntos internos de outros países, sob uma constante retórica militarista
e de ameaça, como em relação à Venezuela (MARINGONI, 2021),
rompimento da cooperação com Cuba e formação de um bloco de direita
para substituir as alianças regionais autônomas, como as coalizões políticas,
Grupo de Lima e ProSul, ainda incipientes, mas, em geral, com o foco de
viés conservador (OSÓRIO, 2020).
2.2. a face econômica: liBeralismo econômico aProfundado
Em meio à espiral de crise de 2008, o neoliberalismo busca manter-
se e retomar o espaço perdido à força, mesmo que para isso ele precise
estar na mesma cadência que a extrema direita, como vem acontecendo no
contexto atual. O Brasil é um exemplo desse movimento.
6
Um exemplo neste caso é a publicação de 21 de abril de 2020 de Ernesto Araújo em seu blog pessoal, chamando
o coronavírus de “comunavírus”, corroborando o discurso da extrema direita mundial capitaneada pelos Estados
Unidos.
Como a sinalização da mudança da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, o qual possui, mesmo uma
retórica, um efeito desagregador em relação aos laços comerciais e políticos com os países árabes.
Um sinal ainda maior de hostilidade à cooperação multilateral foi o recente voto contrário à resolução da
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) que propunha um acordo global para garantir o
acesso a medicamentos, vacinas e equipamentos de combate à pandemia a todos os povos.
Como zera Vargas, por exemplo, na barganha entre Estados Unidos e Alemanha, voltado para a industrialização
nacional de base durante os antecedentes da Segunda Guerra Mundial.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Na política externa atual, a pauta liberal é central, e não muda
com ou sem Araújo. Seu núcleo é claro, alicerçando no setor externo
as possibilidades de desenvolvimento interno e focando no mercado
internacional e não no interno, o que não é uma estratégia nova, já foi
aplicada em outros momentos da história nacional. Dois exemplos são
mais emblemáticos.
O pleito (subordinado) de entrada na Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), conhecida como clube dos
ricos, por ter uma história e uma atuação especícas, é um resgate, por
exemplo, da mesma ambição demonstrada pelo governo Fernando
Henrique Cardoso (AZZI, 2021). Ao juntar-se a países centrais, o Brasil
sinaliza querer viver de aparências, como já ocorre com México, Turquia
e Coreia do Sul. Em outras palavras, a entrada na OCDE obriga o país a
aceitar na Organização Mundial do Comércio (OMC) condições próprias
das potências desenvolvidas que são mais desvantajosas, se comparadas às
atribuídas aos países em desenvolvimento. Logo, como o Brasil não é um
país desenvolvido, ele perde poder de barganha e de negociação dentro do
sistema multilateral do comércio exterior, tendo que abrir mão de condições
que na prática lhe fazem falta para compensar certos atrasos concorrenciais
gerados em função de sua história e de sua projeção internacional. As
grandes potências pressionam os países periféricos para aderir à OMC
para poderem negociar em pé de igualdade, o que em meio à discrepância
material abissal da prática, lhes confere muito mais vantagens.
Outro elemento requentado do passado foi o resgate da inércia
de 20 anos em que estavam as negociações do acordo de livre comércio
entre Mercosul e União Europeia, iniciadas justamente durante o governo
Fernando Henrique Cardoso, em 1999. O período de incubação deveu-
se ao fato do acordo envolver condições questionáveis, nos moldes dos
tratados desiguais que permearam a relação da América Latina com a
Europa no século XIX, ou seja, direcionando o comércio interbloco
para a especialização das vantagens comparativas, legando aos países sul-
americanos, se muito, o destino agrário-exportador de outrora. Ainda que
o acordo em si seja de difícil concretização, pois demanda a raticação nos
parlamentos nacionais de todos os países envolvidos, tanto na América do
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114 |
Sul quanto na Europa, e ele enfrenta resistências de todos os lados, mesmo
pelo prisma dos europeus, os mais beneciados, o avanço nas negociações
simbolizou a retomada da lógica pretérita, que outrora já foi representada
pela ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas) (SCHUTTE,
2021). Essa estratégia de negociação em grandes blocos visa a anular os
setores com maior fôlego na concorrência dos países sul-americanos e a
proteger os setores mais frágeis dos países centrais. O movimento lembra
aquele feito pelo México, que deixou o histórico de integração latino-
americano para trás para assinar o acordo NAFTA, transformando-se em
um país de maquiladoras, perdendo pujança no desenvolvimento interno,
em tecnologia e ciência própria, o que faz índices sociais cair e aumentar
a pobreza e a violência, como ocorre no país norte-americano. A União
Europeia, por sua vez, quer garantir o mercado sul-americano para ela,
acotovelando-se na disputa com China e Estados Unidos.
Por m, a reorientação de um Mercosul mais voltado ao comércio
exterior e menos ao desenvolvimento interno, como se esboçou fazer
durante os governos de Temer e de Bolsonaro, pelo Brasil, e de Macri,
pela Argentina, logo encontrou entraves, com a queda do liberal e retorno
do desenvolvimento pelo lado dos argentinos. Logo, apesar de mudanças
importantes, o Mercosul, ainda que tenha sofrido as consequências da
guinada à direita, com o esvaziamento de suas instituições não comerciais,
ele ainda está em disputa para a denição de uma linha de atuação mais clara.
Em suma, o que importa ressaltar é a articulação extremista gerada
pela interação das duas linhas de força da política exterior atual. A saída
de Ernesto Araújo impacta apenas no alinhamento estreito às diretrizes da
extrema direita mundial, mas não signica, em absoluto, o rompimento
com a economia política liberal extremada, a qual foi retomada por Temer
e deve seguir adiante no cenário de predominância da direita nacional.
conclusões
A denúncia do Estado, das instituições políticas e da intervenção
na economia pela extrema direita daqui acerta o calcanhar de Aquiles da
esquerda institucionalista, forjada na socialdemocracia, a qual, dentro
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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do novo panorama internacional do pós-1990, não consegue encontrar
soluções com as mesmas receitas utilizadas em tempos passados.
Em maior ou menor medida, surfando na onda da crise, o
ressurgimento desses atores com pautas retrógradas e, aparentemente,
ultrapassadas, contou com a falência ou insuciência da política
socialdemocrata em conceder respostas ecientes para a depauperação do
mundo. O consenso socialdemocrata (próprio do fordismo, do capitalismo
industrial), que sobreviveu à crise do fordismo, e se equilibrou na corda
bamba, a partir dos anos 1990 (com a consolidação do pós-fordismo,
do capitalismo nanceiro/ctício), com a gestão do neoliberalismo e a
internacionalização do Estado junto com as necessidades de bem-estar
social, eclodida a bancarrota mundial, caiu em um labirinto, do qual
parece não conseguir sair. A extrema direita, que, de algum modo, é sócia e
coempreiteira da ordem vigente, ao criticar as mazelas da realidade, joga no
colo do consenso socialdemocrata (que reúne elementos políticos à direita
e à esquerda) o cadáver da institucionalidade e da normatividade (da qual
são oriundos grandes avanços pontuais, mas que estruturalmente avaliza a
miséria do cotidiano), que o abraça e com ele afunda.
Diferenciando-se da direita moderada pelos ataques às minorias e
munidas do sempre útil e amplo anticomunismo (que engloba qualquer
espectro de esquerda), miram a carcomida ordem capitalista, para mantê-la
ainda mais excludente, empurrando os moderados mais ao centro (à direita
e à esquerda) para a defesa da ordem estabelecida. No Brasil, internamente,
a estratégia foi exitosa nas eleições de 2018 e não cessou, a despeito da
chegada ao poder, a qual representou não apenas a manutenção das velhas
estruturas, como o seu agravamento no sentido da ruptura de um mínimo
de coesão social, decorrente do aprofundamento das políticas neoliberais.
No plano externo, a artimanha, usada por Trump contra a
OMS (Organização Mundial da Saúde), por exemplo, ecoa nas
palavras de Araújo, valendo-se o, agora, ex-chanceler da cartada
da ilusão institucional para fomentar o anticomunismo, elemento
real de polarização. A crítica à ordem institucional internacional,
construída com forte inuência dos Estados Unidos, a partir de 1945,
e sustentáculos de sua hegemonia mundial até hoje, segue o mesmo
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
116 |
caminho. Em meio à crise internacional, as instituições multilaterais
mostram suas fraturas e viram alvo de um falso debate que, mais do
que uma nova conguração, objetiva barrar, de fato, transformações
substanciais. Novamente o consenso socialdemocrata do pós-fordismo,
ou seja, que mescla elementos do liberalismo político e econômico com
demandas de bem-estar social, navega à deriva. Não restando nada mais
a agarrar a não ser o sistema ONU (como a própria ONU e a OMS),
cuja atuação é venal e altamente questionável, mas se apresenta como
um mínimo de cooperação multilateral antes da barbárie completa.
Essa estratégia extremista não apenas inviabiliza as correntes
progressistas, como coloca no mesmo balaio tudo aquilo que lhes confronta.
O processo de intensicação da internacionalização das relações de
produção, conhecido como globalização nanceira, foi altamente favorável
aos grandes capitais internacionais, mas gerou ainda mais concentração e
deterioração das condições socioeconômicas pelo mundo. Há toda uma
disputa política e teórica em relação a esse embate. A extrema direita coloca-
se à margem disso e associa um pretenso globalismo (de cunho liberal,
que reúne desde liberais extremados até o consenso socialdemocrata do
pós-fordismo) ao internacionalismo comunista, o que é um acinte (dado
que as experiências de socialismo real, como a da China, por exemplo,
representam, de fato, uma alternativa à ordem neoliberal vigente), mas que
encontra grande ressonância aos insatisfeitos e penitentes da globalização
nanceira e da institucionalidade internacional sob a hegemonia dos
Estados Unidos.
Ancorar-se no Estado e nas instituições políticas como um todo,
é ancorar seu barco em um castelo de areia e com o primeiro grande
movimento ele vai ruir. Por esse motivo, nós não podemos engrossar o
coro que a burguesia gosta, no seguinte sentido de “se a extrema-direita
critica o Estado e as instituições, então cabe à esquerda defendê-los”.
Não, muito pelo contrário. Muitas das mazelas estruturais da nossa
sociedade são postas e legitimadas no nosso dia-a-dia pelo Estado e pelas
instituições políticas, formas sociais dos capitais e, consequentemente,
do capitalismo. É preciso entender exatamente qual é o ponto para
que não sirvamos de massa de manobra ou engrossemos o coro dessa
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 117
direita moderada, que não quer largar o poder e acaba trazendo para si
parcela signicativa da esquerda que não entende ou não tem uma plena
compreensão do que é o Estado.
Por m, o que essa percepção ampla nos permite concluir? É que nós
não podemos nem subestimar, nem ridicularizar o que está acontecendo
hoje na política externa nacional, mas devemos compreender Entender
através de uma vertente ampla que nos impeça de comprar a primeira
solução liberal que é vendida em qualquer meio de comunicação que você
tenha acesso hoje em dia. Isto é, prestar muita atenção principalmente no
fato de que as Relações Internacionais são fundamentais para compreensão
da política como um todo.
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Fernanda Mello SANT’ANNA
1
introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas discussões a partir
do diálogo entre a Ecologia Política e as Relações Internacionais, sobre
as lutas por justiça ambiental e os conitos socioambientais, no caso do
Brasil, com impactos para as políticas ambientais e, em especial, as políticas
voltadas ao combate do desmatamento na Amazônia e suas repercussões
internacionais.
Num primeiro momento será discutida a relação e as contribuições da
Ecologia Política para as Relações Internacionais e em especial a produção
bibliográca da América Latina que analisa os conitos socioambientais.
Em seguida serão examinados esses conitos e a violência que está presente
 https://orcid.org/0000-0003-3381-2884
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p121-148
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
122 |
nas lutas sociais, ambientais e territoriais na América Latina, com ênfase
nos dados apresentados pelo Atlas de Justiça Ambiental, o Mapa de
Conitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil e também
da violência contra os povos indígenas no Brasil. Essas lutas ocorrem em
meio a trajetória e atual desmonte da política ambiental brasileira que
tem sofrido alterações na sua conguração de mecanismos de participação
social, scalização, orçamento, entre outros aspectos. E por último será
apresentado o caso da Amazônia brasileira e como as alterações dos últimos
anos do governo Bolsonaro impactaram a Política Externa Brasileira na área
ambiental, em especial em relação às mudanças climáticas e ao aumento do
desmatamento da Amazônia.
1. ecoloGia Política e relações internacionais
A história ambiental tem apontado as consequências e incertezas do
atual modelo de desenvolvimento capitalista que inaugurou uma nova era:
o Antropoceno. É importante ressaltar, no entanto, o caráter desigual da
contribuição dos povos para o atual estado de degradação socioambiental
em que nos encontramos. As diferenças no padrão de consumo, nas
emissões de gases de efeito estufa (GEE), e na qualidade de vida (como,
por exemplo, a falta de água potável para setores da população mundial)
são alguns elementos que permitem demonstrar essas desigualdades.
Esta nova era chamada de Antropoceno pode ser dividida em três
fases como aponta Pádua (2015a), começando pelo período de 1800 a
1945, caracterizado pela formação da era industrial (iniciada nos países
europeus) e que levou a expansão maciça do uso dos combustíveis fósseis
(considerados os grandes “culpados” pelas mudanças climáticas). A segunda
fase seria posterior a 1945 e denominada de “a grande aceleração”, que
seria a “enorme expansão quantitativa da produção e do consumo” em
escala global (ainda que de forma bastante desigual entre a humanidade).
A terceira fase seria a atual em que o autor se pergunta se poderia ser
chamada “Antropoceno consciente de si mesmo”? Muitos questionam a
verdadeira capacidade de autorreexão sobre o atual padrão de produção
e consumo, bem como das relações sociais marcadas por grande violência,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 123
desigualdade, racismo, ou seja, diversas formas de opressão e exploração de
grupos marginalizados (PALACIO et al., 2017).
As desigualdades socioambientais e a degradação ambiental,
agravadas pelo atual modelo de desenvolvimento capitalista, têm causado
diversos conitos socioambientais, estudados pela Ecologia Política. Como
já abordado por Sant’Anna e Moreira (2016) a Ecologia Política é uma
área que tem apresentado discussões importantes para uma abordagem
mais crítica da Política Ambiental Global para além das perspectivas dos
regimes ambientais internacionais e da governança ambiental global.
Trata-se de pensar a cisão entre a sociedade e a natureza na modernidade
Ocidental e como esta ontologia se baseou na hierarquia entre seres
humanos e não-humanos, além da hierarquia de classicação racial com a
colonização (QUIJANO, 1992). A modernidade também estabeleceu uma
hierarquia de saberes colocando a ciência moderna Ocidental como único
conhecimento válido, em sua pretensão de universalidade, e inferiorizando
outros conhecimentos e outras cosmologias (CASTRO-GOMES, 2005;
DUSSEL, 2005).
2. a natureza colonizada em aBya yala
A Ecologia Política desenvolvida na América Latina tem grande
relação com a perspectiva decolonial, começando com a própria discussão
sobre a invenção do nome “América Latina”, já que:
Até começos do século XVI, o continente não gurava nos mapas
porque não havia sido inventada a palavra nem havia nascido a
ideia de um quarto continente. O território existia e as populações
também, é claro, mas eles davam seu próprio nome ao lugar onde
viviam: Tawantisuyu a região andina, Anáhuac ao que na atualidade
é o vale do México e Abya-Yala a região que hoje em dia ocupa o
Panamá. Os povos originários não conheciam a extensão do que
logo se denominou “América”. [...] A confusão do assunto é que
uma vez que o continente recebeu o nome de América no século
XVI e que a América Latina foi denominada assim no século XIX,
foi como se esses nomes sempre tivessem existido. (MIGNOLO,
2007, p. 28, tradução nossa).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
124 |
A colonialidade do poder, do ser e do conhecimento que persiste no
mundo atual encontra-se na discussão sobre a colonialidade da natureza:
Ela, tanto como uma realidade biofísica (sua ora, sua fauna, seus
habitantes humanos, a biodiversidade de seus ecossistemas) e sua
conguração territorial (a dinâmica sociocultural que articula
signicativamente esses ecossistemas e paisagens) aparece diante
do pensamento hegemônico global e diante das elites dominantes
da região como um espaço subalterno, que pode ser explorado,
arrasado, recongurado, de acordo com as necessidades dos atuais
regimes de acumulação. (HÉCTOR ALIMONDA, 2011, p. 22,
tradução nossa).
A perspectiva da Ecologia Política latino-americana que parte
da abordagem decolonial tem analisado os conitos socioambientais e
territoriais que muitas vezes se confundem, ou melhor, também recebem
a denominação de lutas pela terra ou pelo território. Partindo de uma
abordagem em que o território abarca tanto o material quanto o simbólico
(HAESBAERT, 2006). Como apontado por Gonçalves (2017, p. 54,
tradução nossa):
a luta pela terra é muito mais do que a luta por um meio de
produção: é também a luta por um certo horizonte de sentido para
a vida com a terra, enm, como território. Além disso, é a luta
pela Terra cujo colapso ambiental manifesta, no fundo, a ruptura
metabólica a que a racionalidade tecnocientíca, subordinada à
incessante acumulação de capital e ao seu produtivismo, conduz a
humanidade e o planeta.
A aceleração da velocidade dos uxos de informações, pessoas,
produtos, capitais, resíduos, poluição, etc., do atual momento histórico
suscitou algumas abordagens que exaltam a imaterialidade com a
virtualização e pressupõe uma desterritorialização e desmaterialização
da economia. Todavia, as evidências têm mostrado o contrário, uma
utilização cada vez maior de recursos naturais, ocasionando um processo
de desterritorialização de grupos e povos que se veem expulsos de seus
territórios devido à exploração de minérios, construção de hidrelétricas,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 125
expansão do agronegócio, entre outras atividades econômicas e ao
crescimento urbano. Esta expulsão das comunidades de seus territórios
aprofunda a ruptura metabólica e deixa a terra livre para a acumulação
incessante de capital e rumo ao colapso ambiental (GONÇALVES, 2017;
HAESBAERT, 2004; MARTINEZ-ALIER, 2007).
Os estudos dos conitos ecológicos distributivos, ou melhor, das
lutas por justiça ambiental, tem sido uma das contribuições das discussões
da Ecologia Política latino-americana (SANT’ANNA; MOREIRA, 2016).
As desigualdades no acesso aos recursos naturais, bem como dos efeitos
da sua degradação e poluição são decorrentes das desigualdades históricas
das estruturas sociais que afetam as pessoas de acordo com classe social,
raça, gênero, etnia, entre outras formas de opressão. As resistências a essas
opressões e desigualdades tem gerado conitos, que precisam ser analisados
a partir da compreensão de que as sociedades se reproduzem por processos
socioecológicos, isto é, toda sociedade conforma o mundo material de
signicados. E diferentes grupos sociais terão uma relação própria com este
mundo material a partir dos signicados e valores culturais e históricos, e
que muitas vezes não pode ser traduzido na mesma lógica da sociedade
Ocidental moderna. Assim, diferentes projetos sociais de uso, valorização e
signicação da materialidade se confrontam, dotando a chamada “questão
ambiental” de um caráter conitivo (ACSERALD, 2004a, 2004b). Por isso
também a impossibilidade de tratar os problemas e conitos socioambientais
de forma “técnica” e despolitizada, como vem sendo apresentada em
alguns discursos contemporâneos (ACSERALD, 2004c; SANT’ANNA;
HONORATO; BORTOLETTO, 2020; SWYNGEDOUW, 2009).
Os chamados movimentos por justiça ambiental levaram a criação
de redes, como o caso da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) que
congrega diferentes iniciativas de diversas instituições pelo Brasil:
Menciono, na ordem de data de sua criação, mas atuando em
sinergia, o Programa de Cartograa Social desenvolvido sob a
liderança do professor Alfredo Wagner Breno de Almeida. Esse
programa dá visibilidade às comunidades e povos da Amazônia
e hoje se espalha por outras regiões do país; o Mapa de Conitos
Ambientais do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Pesquisa
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
126 |
e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ e FASE), antecedido pelo Mapa de
Racismo Ambiental; o Mapa de Conitos, que envolvem injustiça
ambiental e saúde (Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz, e FASE);
o Mapa de Conitos Ambientais de Minas Gerais (Grupo de
Estudos em Temáticas Ambientais, GESTA/UFMG), o Núcleo de
Investigação em Injustiças Socioambientais (NIISA/Unimontes). É
indispensável lembrar igualmente: a criação, nesses últimos anos,
de núcleos em diferentes universidades públicas – a maioria deles
inclusive convocou o seminário -, que dedicam boa parte de seu
trabalho acadêmico aos conitos sociais e ambientais e à promoção
da justiça ambiental; e as relatorias para o direito humano ao meio
ambiente, da Plataforma para os Direitos Humanos Econômicos,
Sociais, Culturais e Ambientais (DhESCAs) e o Dossiê Abrasco
sobre Agrotóxicos. (LEROY, 2014, p. 24-25).
Entre tantas outras iniciativas que surgiram dentro desta perspectiva
no Brasil e na América Latina, podemos citar ainda o Atlas do Uso dos
Agrotóxicos no Brasil (BOMBARDI, 2017), e o Observatório Latino-
Americano de Geopolítica, coordenado pela professora Ana Esther Ceceña
da Universidade Autônoma do México (UNAM).
3. conflitos socioamBientais e a violência
A constatação da violência relacionada aos conitos socioambientais
pode ser feita em diferentes pesquisas e bases de dados do Brasil, e de
outros países. Em uma tentativa de denunciar e ao mesmo tempo analisar
essa escalada da violência, Martinez-Alier e Navas (2017) a partir da base
de dados do Atlas de Justiça Ambiental (EJATLAS, 2021), apresentam
um panorama desta violência na América Latina e destacam que entre os
assassinatos de ecologistas no mundo e nesta nova fase de criminalização
dos protestos sociais, são as mulheres as protagonistas que têm sofrido
com a violência e morte. Dentre esses assassinatos com grande repercussão
internacional está o caso de Berta Cáceres que em 2016 foi morta em sua
casa em La Esperanza (Honduras):
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 127
Berta era uma ecologista de longa data, seu assassinato teve
ressonância mundial, especialmente na América Latina. Um marco
que não passou despercebido pela imprensa internacional, embora
não seja isolado. Todos os anos, defensores do meio ambiente, da
vida, são assassinados em todo o mundo. (MARTINEZ-ALIER;
NAVAS, 2017, p. 29, tradução nossa).
Ainda segundo os autores:
À medida que a economia cresce e o metabolismo social muda,
surgem conitos ecológico-distributivos que levam a protestos
ambientais que se expressam com várias linguagens de valoração
(Martínez-Alier, 2011) como valores sagrados da natureza,
demandas por compensação monetária ou territórios indígenas,
entre outros. E a repressão recai em graus variados contra aqueles
que protestam, como membros que são, embora não saibam disso,
do movimento global pela justiça ambiental (MARTINEZ-ALIER;
NAVAS, 2017, p. 30, tradução nossa).
O processo chamado de desenvolvimento e modernização, que se
representa como avanço social, é acompanhado por diversos conitos e
violência (ESCOBAR, 1995). Processo esse permeado pela colonialidade
do poder que se reete na subjulgação do Outro, no seu silenciamento e
na desqualicação de seu conhecimento. De certa forma, naturaliza-se a
violência nos conitos socioambientais
Há a violência dos jagunços, capangas, pistoleiros de aluguel e ans,
protagonistas funcionais da materialidade do desenvolvimento no
território. Mas também há o aviltamento do trabalho informal, na
cidade e no campo, da moradia precária nas beiradas insalubres
e improdutivas do que é visto como paisagem do “progresso
e das vãs buscas do subcidadão por uma oportunidade ngida
de sobrevivência em relação às quais, quando se manifesta
publicamente para reivindicar tratamento digno, colhe intolerância,
espancamentos, prisões arbitrárias. Disseminam-se as mortes e os
desaparecimentos em circunstâncias variadas envolvendo conitos
socioambientais, frente às quais as rotinas do Estado supõem que
possam ocorrer e manter-se por longo tempo sem explicação. A
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
128 |
violência física também corresponde à violência simbólica, na
transformação do outro em mera categoria administrativa, como
atingido, reduzindo o conito à abordagem de um economicismo
vulgar, cujas feições são predominantemente quanticáveis e
passíveis de contabilização, conito sobre o qual se pode colocar
um preço – por sinal, pío – à parte em desvantagem e assim,
supostamente, contê-lo, a despeito de direitos individuais e
coletivos inalienáveis e prescritos constitucionalmente. (ZHOURI;
VALENCIO, 2014, p. 11-12).
O Atlas de Justiça Ambiental (EJATLAS, 2021) apresenta 172 casos
de conitos no Brasil divididos em diferentes categorias: 1) nuclear; 2)
exploração mineral e de materiais de construção; 3) gestão de resíduos;
4) Biomassa e conitos agrários (orestas, agricultura, pesca e pecuária);
5) Combustíveis fósseis, justiça climática e energética; 6) Gestão da
água; 7) Infraestrutura e ambiente construído; 8) Turismo e lazer; 9)
Biodiversidade e conservação; 10) conitos industriais e utilitários. Trata-
se, é claro, de conitos com maior repercussão, seja dos protestos ou dos
efeitos devastadores como foi o caso dos rompimentos das barragens de
Brumadinho e Mariana.
Infelizmente o assassinato de lideranças de movimentos por
justiça ambiental no Brasil tem sido recorrente e alguns alcançaram mais
visibilidade internacional que outros. O assassinato do líder sindical e
seringueiro Chico Mendes apresentou grande repercussão e seu nome tem
sido lembrado em diferentes iniciativas como a Reserva Extrativista Chico
Mendes no estado do Acre, e até mesmo no nome da instituição responsável
pelas Unidades de Conservação no Brasil o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Martinez-Alier e Navas (2017)
ainda recordam de Nicinha, importante liderança do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB) em Rondônia que foi assassinada em
2016 (Mutum Paraná-RO) no conito em torno das hidrelétricas de
Santo Antônio e Jirau no rio Madeira. Lembram de Maria do Espírito
Santo e José Claudio Ribeiro da Silva (Zé Claudio) que foram assassinados
em 2011 em conito envolvendo o desmatamento no estado do Pará,
madeireiros, grilagem de terras e reservas extrativistas. A morte da ativista
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 129
Dorothy Stang em 2006, devido aos conitos agrários também no Pará,
ganhou grande projeção internacional. Eles apontam que dos 1.270 casos
de homicídios relacionados a questões agrárias reportados pela Comissão
Pastoral da Terra (CPT) entre 1985 e 2013, menos de 10% chegaram aos
tribunais, o que demonstra a grande impunidade que persiste nestes casos
(MARTINEZ-ALIER; NAVAS, 2017).
Outra importante iniciativa neste sentido é o Mapa de Conitos
envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (PORTO; PACHECO;
LEROY, 2013), que se refere aos conitos “claramente declarados” e
não apenas a denúncias de injustiças. Isto é, entende-se como conito
quando existe uma reação por parte da comunidade afetada que apresenta
resistência e mobilizações transformando-se em conito. Na última
atualização do mapa, este apresentava um total de 611 conitos em todo
o território nacional. Tais conitos podem ser analisados por grupos da
população (por exemplo: agricultores familiares, caiçaras, entre outros),
por atividades geradoras de conitos (tais como: agroindústria, barragens e
hidrelétricas, etc.), por danos à saúde (como contaminação química, doenças
respiratórias, violência-assassinatos, etc.), por impactos socioambientais
(exemplo: desmatamento, erosão do solo, falta de saneamento básico,
etc.), ou por Unidade da Federação (UF). No caso do estado de São Paulo,
por exemplo, foram relatados 52 casos.
Carlos Walter Porto Gonçalves (2017) aponta dois movimentos
diferentes que surgem por um lado fruto das identidades que estão
relacionadas a territorialidades ancestrais e históricas, como no caso dos
movimentos indígenas, quilombolas, de comunidades camponesas,
de seringueiros, ribeirinho, entre outros. E, por outro, a formação de
movimentos sociais cuja identidade é construída a partir das agressões que
sofrem, tal como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
Os povos indígenas de Abya Yala também tem sido alvo de inúmeras
violências desde a colonização e que persiste com a colonialidade do poder,
do saber e do ser. São povos que estão envolvidos em conitos territoriais
que reetem a incomensurabilidade dos valores e signicados dos recursos
materiais e dos seres vivos não-humanos para diferentes culturas. No
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
130 |
“Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de
2019”, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), demonstra como esta violência que nunca cessou, tem se agravado
nos últimos anos já no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na
presidência do Brasil. O que aponta para a “intensicação das expropriações
de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem e no loteamento
(CIMI, 2020). De acordo com o Relatório, em 2019, das 19 categorias
de violência sistematizadas nesta publicação, ocorreu um aumento em 16
delas. Na categoria “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e
danos ao patrimônio” houve um salto de casos registrados de 109 em 2018
para 256 casos em 2019 (CIMI, 2020).
Pode-se dizer que esta violência crescente ocorre junto com o
chamado genocídio doméstico:
[...]considerados os atos cometidos com a intenção de destruir, no
todo ou em parte, grupos étnicos, raciais ou religiosos, incluindo
formas de genocídio cultural. Nos tipos de genocídio doméstico
se encontra aquele praticado contra povos indígenas. Esta é
uma forma contemporânea dos massacres do período colonial,
atualmente perpetrada contra os pequenos grupos de caçadores
e coletores ameaçados de extinção, vítimas de uma economia de
desenvolvimento predatório, como no caso do povo indígenas
Awá-Guajá” (O’DWYER, 2014, p. 86).
Tal violência se perpetua nos governos com modelos neoliberais e,
também nos modelos neodesenvolvimentista e neoextrativista, que tem
se revelado mesmo em governos chamados de progressistas na América
Latina, o que permitiu a continuidade dos conitos socioambientais no
Brasil e da violência que os acompanha (ZHOURI; VALENCIO, 2014).
Lander (2017) evidencia como o debate sobre o extrativismo tem gerado
duas formas majoritárias de tratar esta temática dentro desses governos
progressistas latino-americanos das últimas décadas. Por um lado, estão
aqueles que defendem como prioridade lutar contra as políticas neoliberais
com a recuperação do Estado, da soberania nacional, e superar a pobreza
no curto prazo por meio do crescimento econômico. De forma que não
teria prioridade, ou seriam pouco problematizadas, questões relacionadas
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 131
ao patriarcado, interculturalidade, autonomias territoriais e impactos
ambientais do extrativismo. O Estado seria o grande protagonista das
transformações necessárias, colocando o controle sobre a exploração das
matérias-primas em mãos estatais. Do outro lado estão várias perspectivas
que defendem atuar igualmente e de forma simultânea contra o racismo,
o patriarcado, a colonialidade e o antropocentrismo característicos do
capitalismo. E as mudanças passariam necessariamente pelos movimentos
e organizações sociais, povos e comunidades. Desta forma, possuem “visões
radicalmente críticas em torno da possibilidade de que a acentuação
do modelo extrativista possa ser considerada uma forma de superar o
capitalismo” (LANDER, 2017, p. 80, tradução nossa).
Ainda que o modelo neoextrativista tenha obtido êxitos importantes
com programas sociais que possibilitaram tirar milhões de pessoas da linha
de pobreza, o crescimento se deu com um modelo de produção extrativista
e de reprimarização da economia. No entanto, “acelerou-se o fornecimento
dos insumos necessários para alimentar a lógica predatória global e
consolidou-se a ordem capitalista contra a qual vinha sendo combatida
(LANDER, 2017, p. 82, tradução nossa).
Esta tendência em governos progressistas, como foi o caso do Brasil
na segunda década do século XXI, pode ser vista na análise de Leroy
(2014) sobre a exibilização de normas ambientais e desregulação que
tem ameaçado os direitos humanos de muitas comunidades no Brasil. Ele
relata diferentes ações como Medidas Provisórias, Propostas de Emendas à
Constituição, Portarias, Leis, entre elas a Portaria 303 da Advocacia Geral
da União (AGU) que instituiu a tese do marco temporal que põe em xeque
as demarcações de Terras Indígenas, e o Novo Código Florestal alterado em
2012. Leroy naliza ainda apontando os efeitos perversos das alterações
propostas para a democracia, visto que em muitas delas estão presentes
mecanismos que dicultam o direito à informação, o direito à expressão,
entre outros que promovem a “relativização dos direitos humanos
(LEROY, 2014, p. 41). Ou seja, no momento em que a política ambiental
no Brasil parecia estar se consolidando, ocorrem diversas iniciativas de
exibilização das normas e desregulação para priorizar setores da economia
de modelo neoextrativista.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
132 |
4. trajetória da Política amBiental no Brasil
Este contexto de violência que caracteriza os conitos socioambientais
no Brasil, com a ênfase em um modelo neoextrativista que intensica as
disputas e os conitos, ocorre, portanto, em paralelo com o desmonte
da política ambiental no país. Para entender este processo é preciso
primeiramente revisar alguns marcos da formação desta política.
Moura (2016) considera que as primeiras normas estabelecidas entre
as décadas de 1930 e 1960 no Brasil sobre temas ambientais se referiam
a políticas setoriais que focavam na administração e controle sobre a
exploração dos recursos naturais. Nas décadas de 1960 e 1970 foram
instituídas algumas iniciativas importantes tais como a Política Nacional
de Saneamento (Lei 5.318 de 1967), o Plano Nacional de Saneamento
(PLANASA), a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA) ligada ao
Ministério do Interior, além de alguns órgãos ambientais estaduais que
surgiram no período (BURSZTYN; BURSZTYN, 2012).
Somente na década de 1980, no entanto, que se destacaram iniciativas
mais consistentes com uma política ambiental propriamente dita, como a
Política Nacional de Meio Ambiente e a criação do Conselho Nacional
de Meio Ambiente (CONAMA) (Lei 6.938/81). A partir de então o
CONAMA aprovou resoluções sobre o licenciamento ambiental, tais como
as “Resoluções n. 001/1986 e n° 009/1987, que tratam, respectivamente,
do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto
Ambiental (Rima) e das audiências públicas prévias ao licenciamento
(MOURA, 2016, p. 17). Ainda no nal da década, com a Constituição
de 1988 há uma tentativa de descentralização da política ambiental com a
criação e fortalecimento de órgãos estaduais e municipais ambientais. Além
do que, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA) é criado em 1989, concentrando diversas funções
que antes pertenciam a diferentes instituições. No entanto, a partir dos
anos 2000, o órgão começou a sofrer fragmentações com funções sendo
transferidas para outros órgãos como o Serviço Florestal Brasileiro (SFB),
o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF) e o ICMBio
(BURSZTYN; BURSZTYN, 2012).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 133
Na década de 1990 novas iniciativas contribuem para a continuidade
da institucionalização da política ambiental. Já em 1990 é criada a Secretaria
de Meio Ambiente da Presidência da República (Semam/PR), fato também
inuenciado pela organização da Rio-92 no Brasil, que se preparou com
a instituição da Comissão Interministerial de Meio Ambiente (CIMA).
Em 1992 a Semam/PR é extinta e substituída pelo Ministério de Meio
Ambiente (MMA). Neste período, a inuência de recursos externos para o
nanciamento da política ambiental no Brasil chama atenção:
O Programa Nacional de Meio Ambiente (PNMA) iniciou sua
atuação em 1991, como o primeiro grande investimento (com
empréstimo do Banco Mundial) realizado pelo governo federal
para investir na área ambiental. [...] Nesta década, o MMA operou
com poucos recursos humanos e nanceiros, a maior parte oriunda
de empréstimos via agências multilaterais (Banco Mundial,
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento – Pnud). Como estes
recursos eram de difícil utilização, em vista da necessidade de uma
contrapartida nacional e da rigidez das regras dos nanciadores,
havia uma morosidade na execução dos projetos que faziam parte
de programas como o PNMA e o Programa Piloto para Proteção
das Florestas Tropicais no Brasil (PP-G7). Neste período, o
ministério operou apenas com alguns poucos funcionários cedidos
de outros órgãos (como o IBAMA) e terceirizados com contratos
temporários intermediados pelo PNUD, agência que intermedia
recursos dos nanciadores externos nos empréstimos realizados
para os programas do órgão. (MOURA, 2016, p. 18).
Neste período se acentua o processo de descentralização da política
ambiental. Os estados da federação estabeleceram políticas estaduais de
meio ambiente e as instituições para sua implementação, ainda que com
características diferentes, processo que se completa em 1996. Embora a
participação social também seja um elemento importante destas políticas
ambientais em todos os entes federativos, este tema envolve uma grande
complexidade para ser tratado de forma supercial e merece um destaque a
parte que não é o foco deste artigo. No caso dos municípios a descentralização
enfrenta diversas diculdades para sua efetiva consolidação:
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
134 |
Ao longo dos anos, a descentralização, como parte da Política
Nacional de Meio Ambiente, tem ocorrido de forma fragmentada,
descontínua e seletiva. Nesse período, os estados e municípios
experimentaram diferentes graus de descentralização, tornando-
se necessárias ações coordenadas pelo governo central. Alguns
fatores podem explicar esse quadro: falta de técnicos nos órgãos
estaduais e municipais de meio ambiente, falta de capacitação
técnica e treinamento, salários defasados, quando comparados aos
praticados pela iniciativa privada; instituições despreparadas para
assumir atividades ambientais; carência de recursos nanceiros e
de infraestrutura; ausência de instrumentos de gestão ambiental,
dentre outros. (BURSZTYN; BURSZTYN, 2012, p. 498).
Na década seguinte, em especial no período de 2000 a 2012, diversas
leis são estabelecidas como a que institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação (SNUC), a Política Nacional sobre Mudança do Clima
(PNMC), a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), entre outras
(MOURA, 2016). Ao mesmo tempo em que são estabelecidas novas
normativas para a regulação de temáticas ambientais especícas, também
havia um movimento para a diminuição das regulações ambientais,
culminando no atual governo no desmantelamento da política ambiental
brasileira. Entre as últimas alterações realizadas destacaremos: o desmonte
do CONAMA e de outros órgãos colegiados vinculados ao MMA, com
restrição da participação da sociedade civil; liberação acelerada de agrotóxicos
e esvaziamento de políticas de segurança alimentar e nutricional; alterações
no Fundo Amazônia e na aplicação de seus recursos.
As ações do atual governo de Jair Bolsonaro na presidência do Brasil
têm sido acompanhadas e analisadas por diversas instituições e acadêmicos
(ASCEMA, 2020; FERRANTE; FEARNSIDE, 2019; SAUER; LEITE;
TUBINO, 2020; WERNECK et al., 2021). Isto levou, entre outros tipos
de denúncias, a ações na Justiça como aquelas realizadas por alguns partidos
políticos e outras instituições relacionadas ao congelamento do Fundo
Amazônia e do Fundo Nacional do Clima, bem como tem apontado
outras ações que visam o desmonte da política ambiental brasileira
(OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2021a, 2021b). Recentemente, a
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 135
própria Política Federal, por meio do superintendente da instituição no
Amazonas, apresentou uma denúncia-crime ao Supremo Tribunal Federal
(STF) contra o ministro de meio ambiente Ricardo Salles e o senador
Telmário Mota (Pros). Nesta denúncia são apresentadas evidências de
terem cometido três crimes: “atrapalhar a scalização ambiental, advocacia
administrativa e embaraçar investigação destinada a combater uma
organização criminosa” (SOUZA, 2021), referentes a uma operação de
apreensão de madeira ilegal na Amazônia.
Para Sauer, Leite e Tubino (2020, p. 289), o atual governo federal
pode ser caracterizado por uma “coalisão de conveniências”, pois envolve
setores conservadores católicos, mas especialmente de evangélicos
neopentecostais, forças armadas, concertação política do agronegócio,
direita “tradicional” e neoliberal, capital nanceiro e neofascistas”. Os
autores apontam ainda que este governo está implementando uma política
econômica neoliberal, além da política de “guerra cultural”, ou seja, de
combate aos inimigos do governo, e também uma política de “Estado
mínimo” por meio do desmonte e sucateamento de instituições estatais.
Além disso, ressaltam que as “alterações administrativas explicitam o caráter
autoritário do governo, especialmente na exclusão de espaços democráticos
de participação e acompanhamento de políticas públicas” (SAUER; LEITE;
TUBINO, 2020, p. 292). Apresentam como exemplo, entre outros, o caso
do CONAMA que foi alterado em sua composição diminuindo as vagas
para os membros da sociedade civil. Além do próprio IBAMA que tem
sofrido com demissões, cortes de orçamento, bem como com intervenções
e discursos que buscam denegrir e desautorizar as atividades de scalização
do órgão:
O presidente Bolsonaro armou repetidamente seu desejo de
enfraquecer o licenciamento ambiental (Fearnside 2018) e
prometeu remover a autoridade de licenciamento do IBAMA, a
agência ambiental federal que faz parte do Ministério do Meio
Ambiente (Soterroni et al. 2018). [...] O governo também destituiu
de seus cargos os superintendentes do Ibama em 21 dos 27 estados
brasileiros. O Ministério do Meio Ambiente planeja estabelecer um
núcleo’ dentro do ministério para revisar e modicar ou anular as
multas emitidas pelo IBAMA. No atual governo, o Ibama teve o
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
136 |
pior desempenho de sua história. O Ibama agora costuma avisar
com antecedência onde vai realizar as inspeções de desmatamento
ilegal, o que não resultou em punições para os infratores, apesar
de 95% do desmatamento ocorrido nos primeiros 3 meses da
administração presidencial ser ilegal (MapBiomas 2019). Taxas de
desmatamento dispararam, com a taxa de junho de 2019 (primeiro
mês de seca na nova presidência) subindo 88% em relação à taxa de
2018 no mesmo mês (INPE 2019). (FERRANTE; FEARNSIDE,
2019, p. 261).
Outras instituições da política ambiental que passaram por uma
reestruturação administrativa está a Agência Nacional de Águas que passou
do MMA para o Ministério do Desenvolvimento Regional, e o Serviço
Florestal Brasileiro que também era vinculado ao MMA e passou para o
Ministério de Agricultura, Pesca e Abastecimento (MAPA). Isto faz parte
da estratégia de esvaziamento do Ministério de Meio Ambiente que vem
sendo implementada desde o início do governo de Bolsonaro. A questão da
própria nomeação de Ricardo Salles para o MMA já indica essa estratégia
(SAUER; LEITE; TUBINO, 2020). Diversas ações, como as medidas
provisórias demonstram as intenções das políticas do governo, tal como a
chamada MP da grilagem:
[...] destaque para a edição de diversas Medidas Provisórias (MP)
e Projetos de Lei (PL), quase sempre, atendendo as demandas de
alguns grupos focais (em sua maioria empresariais), como foi o caso
da MP 910/19, endereçada aos políticos da Frente Parlamentar
da Agropecuária (FPA). [...] Essa MP tornou possível regularizar
áreas oriundas do patrimônio da União em todo o Brasil, não
importando a forma como a apropriação tivesse ocorrido (ou seja,
garantiu a regularização fundiária mesmo para quem se apropriou
da terra de forma violenta). (KLUCK, 2020, p. 684-685).
A política de aceleração e exibilização para a liberação de agrotóxicos
também tem gerado protestos e análises acadêmicas. Desde 2019 já haviam
sido aprovados 475 novos pesticidas pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA) acelerando o processo que levava em torno de 6 anos
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 137
(BRAGA et al., 2020). Muitos dos quais são banidos na União Europeia
(UE) e outras partes do mundo. Também foram encontrados em pesquisas
com legumes, frutas e outros alimentos, taxas de agrotóxicos superiores ao
permitido no Brasil, que ainda é maior do que na UE, por exemplo, além
do que é preciso levar em conta que esses produtos são exportados pelo
Brasil, o que pode e tem afetado a compra de determinados produtos por
clientes estrangeiros (BRAGA et al., 2020). Neste caso, chama atenção
a perseguição sofrida pela geógrafa e professora da Universidade de São
Paulo (USP) Larissa Bombardi, que realizou pesquisas sobre o uso de
agrotóxicos e o uxo de produtos para a UE (BOMBARDI, 2017; REDE
BRASIL ATUAL, 2021).
Essas ações e outras políticas ambientais especícas para os problemas
da degradação da maior oresta tropical contínua do mundo, a Amazônia,
são importantes para entender as consequências das estratégias empregadas
pelo governo Bolsonaro para o desmonte da política ambiental e seus
efeitos para a Política Externa Brasileira (PEB). Ainda que a Amazônia,
enquanto bacia hidrográca e também como um grande bioma, seja
transnacional, abarcando os territórios de sete países sul-americanos mais a
Guiana Francesa (SANT’ANNA, 2017), iremos tratar especicamente da
Amazônia brasileira.
5. amazônia Brasileira: consequências do desmonte da Política
amBiental Para a PeB
A aceleração da degradação ambiental da Amazônia se intensica
na década de 1970, quando se acentua também o desmatamento, entre
outros problemas socioambientais como os conitos territoriais e agrários
(PÁDUA, 2015b). É importante, no entanto, ressaltar que o planejamento
para a exploração e povoamento da Amazônia pelo Estado brasileiro começa
muito antes, como bem salienta Becker (2007). É principalmente no nal
dos anos 1980 que a mobilização transnacional de grupos sociais como os
povos indígenas, seringueiros, ribeirinhos e demais comunidades consegue
maior visibilidade nacional e internacional para suas lutas e outras formas
de viver e utilizar os recursos da oresta (BECKER, 2007).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
138 |
Com a consolidação da temática ambiental na agenda internacional,
em especial, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), os
chamados “povos da oresta” colocaram em xeque quem realmente
contribui para a preservação e sustentabilidade das orestas. A Rede
Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG)
desde 2014 publica mapas e estatísticas sobre as Áreas Naturais Protegidas
(ANP) e Territórios Indígenas (TI) na região amazônica, o que permitiu
uma análise sobre a criação destas áreas e sua relação com a dinâmica do
desmatamento (RAISG, 2016). Destaca-se:
No âmbito regional, uma primeira análise estatística nos mostra
que antes de 1970 havia sido criada menos de 3,3% da área total
das ANP aqui reportada, e que apenas entre 2000-2014, mais
da metade foi criada (50,8%) de toda aquela superfície regional
(869.319 km2) das ANP. [...] Uma análise anterior da mesma
RAISG relatou uma cobertura orestal original da Amazônia
estimada em 6,1 milhões de km2, dos quais 9,7% haviam sido
perdidos até o ano de 2000 (591.414 km2), sendo determinante o
peso das ANP e TI para impedir a perda de orestas amazônicas,
que historicamente se concentra fora desse tipo de unidades de
conservação, com pouco menos de 93% da área desmatada até o
ano 2000. (RAISG, 2016, tradução nossa).
Estes estudos revelam, portanto, a importância das ANP e TI
para conter o avanço do desmatamento, em especial no chamado “arco
do desmatamento” na Amazônia Brasileira (BEKCER, 2007). Além
destas políticas ambientais de criação de unidades de conservação, tem se
consolidado na governança ambiental global formas de mercantilização
da natureza como por exemplo o mercado de carbono e o pagamento
por serviços ambientais. Trata-se do paradigma predominante também
chamado de “modernização ecológica” ou “neoliberalismo verde” que
caracteriza o discurso sobre o desenvolvimento sustentável (MCCARTHY;
PRUDHAM, 2004).
A proteção da Amazônia brasileira teve muito apoio da cooperação
internacional, já que o governo brasileiro não dispunha (ou não quis
dispor) de recursos nanceiros para as iniciativas necessárias. Assim, o
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 139
Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras (PPG-
7) foi um programa que nanciou diversos projetos sustentáveis na região
desde o início dos anos 1990 e durou 17 anos, sendo substituído em 2003
por um Grupo Permanente de Trabalho Interministerial. Inaugurando
uma séria de programas e projetos para combater o desmatamento e a
degradação da oresta. Lembrando que nos anos 2000 foi criado o SNUC,
depois alterado em 2007 com a criação do ICMBio. Em 2003 teve início
o Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) e no ano seguinte
o Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia (PPCDAM), e o
DETER (Sistema de Detecção em Tempo Real), que permitiram avaliar
que a taxa de desmatamento na Amazônia Legal naquele momento era
de 27.772 km² (MMA, 2021). Já em 2008 foi criado o Fundo Amazônia
e o Plano Amazônia Sustentável (PAS), seguido pela Política Nacional de
Mudanças Climáticas (PNMC) em 2009.
O Marco de Varsóvia em 2013 instituiu as regras para o REDD+,
que permitiram a elaboração das políticas de REDD+ no Brasil. Em 2015
ocorre um aprimoramento do Sistema DETER e DETER B. E, durante a
Conferência das Partes (COP) da Convenção Quadro das Nações Unidas
sobre Mudanças Climáticas (CQNUMC) na qual os países assinam
o Acordo de Paris, em 2016, o Brasil apresentou suas “Contribuições
Nacionalmente Determinadas” (Nationally Determined Contributions –
NDC). Neste ano também é aprovada a 4ª. Fase do PPCDAM pelo GPTI.
Estas medidas possibilitaram “84% de redução da taxa de desmatamento
anual entre 2004 e 2014” (MMA, 2021).
A partir do governo Bolsonaro em 2019 várias mudanças ocorreram
nas políticas de scalização e combate ao desmatamento revelando
a militarização da proteção ambiental da Amazônia. A tentativa de
desacreditar e deslegitimar os dados produzidos pelo Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE), e a própria instituição, sobre o desmatamento
na Amazônia culminaram na exoneração do presidente do INPE, numa
estratégia de produção da ignorância sobre os dados do desmatamento
(BRANT; WATANABE, 2019). De acordo com o monitoramento feito
pelo Observatório do Clima durante o ano de 2020 do governo Bolsonaro:
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
140 |
[...] a receita para o desmonte ambiental, neste primeiro momento,
consiste em fazer todas as mudanças possíveis de forma infralegal,
sem precisar passar pelo Congresso, onde de fato o governo
amargou derrotas em 2020. Segundo dados do projeto Política por
Inteiro, de janeiro a dezembro de 2020 houve 593 canetadas do
governo federal relacionadas a meio ambiente. Na classicação por
impacto das normas, 57 determinavam reformas institucionais, 32
eram revisaços de regulamentos, 32 promoviam exibilização, 19
desregulação e 10 eram revogaços. (WERNECK et al., 2021, p. 4).
O relatório continua com as principais ações neste sentido (não
necessariamente em ordem de importância): a) exibilização do controle
da exportação de madeira ilegal; b) corte do orçamento do MMA e do
IBAMA, bem como a não utilização de orçamentos de alguns programas
especícos; c) nomeação de policiais militares sem conhecimento técnico
para cargos nos órgãos ambientais; d) proposta de extinção do ICMBio e
fusão com o IBAMA; e) terceirização da proteção ambiental da Amazônia
para os militares que culminou no “Plano Mourão”, com a recriação do
Conselho Nacional da Amazônia Legal, além do que as ações do IBAMA
de scalização na Amazônia passaram a ser coordenadas pelo Ministério
da Defesa; f) atropelo do CONAMA com a diminuição dos membros
e aumento da representação da União; g) órgãos colegiados extintos ou
redenidos com diminuição da participação da sociedade civil como foi
o caso da CONAREDD; h) censura aos funcionários do MMA e do
IBAMA, bem como intimidação e perda de transparência nas ações do
IBAMA; i) queda nas ações de scalização e aplicação de multas ambientais
(WERNECK et al., 2021). Estas ações convergiram para que o país casse:
[...] 180% acima da meta traçada na Política Nacional de Mudanças
Climáticas de limitar o desmatamento na Amazônia em 2020 a
3.925 km2 no máximo (redução de 80% em relação à média 1996-
2005). [...] Até dezembro, o número de focos de queimada no
bioma era 15% maior do que em 2019, ano em que o fogo colocou
o Brasil no centro de uma crise internacional (WERNECK et al.,
2021, p. 22).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 141
Cabe destacar a redução do orçamento do MMA e do IBAMA que
no caso da scalização ambiental e combate a incêndios orestais teve
redução de 34,5% em relação a 2019. No caso do ICMBio foi cortado
61,5% do orçamento previsto para à criação, implementação e gestão das
UCs, levando a promessa do governo de rever todas as UCs no território
nacional (WERNECK et al., 2021). Além disso, o “maior responsável pela
queda de 83% do desmatamento de 2004 a 2012, o PPCDAm na prática
está extinto, mas jamais chegou a ser revogado formalmente” (WERNECK
et al., 2021, p. 7).
Desde o início do governo Bolsonaro as ações de desgovernança
e desmonte da política ambiental repercutiram internacionalmente. As
mudanças no Fundo Amazônia e na PNMC tiveram um impacto negativo
na imagem do Brasil no exterior e, em alguns casos, geraram tensões com
alguns países, em especial com os países nanciadores do Fundo como
Noruega e Alemanha. Já que o Brasil paralisou as ações do Fundo desde
2019 e não usou os R$ 2,9 bilhões doados por eles. Inclusive o governo
está sendo processado no STF por este motivo (WERNECK et al., 2021).
Entre outros efeitos internacionais está a paralisação das negociações
do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, tendo alguns
eurodeputados demonstrado questionamentos sobre a política ambiental
no Brasil. Em 2020 um grupo de “30 fundos de investimento de oito países,
que juntos manejam ativos de US$ 4,1 trilhões, escreveu às embaixadas
brasileiras pedindo explicações sobre a crise ambiental” (WERNECK et al.,
2021, p. 12). Mais recentemente o governo Bolsonaro está em um impasse
com o governo do presidente Joe Biden dos EUA em relação ao combate
às mudanças climáticas e ao desmatamento. Em uma reunião deste ano de
2021 com o enviado especial para o clima John Kerry o ministro Ricardo
Salles teria condicionado ações neste sentido se houvesse uma “expectativa
de pagamentos”. Assim, “na reunião do dia 17 de março, por exemplo, o
ministro brasileiro pediu US$ 1 bilhão até 2021 para ajudar na preservação
da oresta” (DIAS, 2021). Em meio a esse contexto diversas iniciativas
da sociedade civil buscaram inuenciar o presidente Biden a não fazer
um acordo com o governo Bolsonaro, devido ao não cumprimento das
metas de redução de emissões bem como as ações de retrocesso e desmonte
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
142 |
da política ambiental, e de violência e desrespeito aos direitos dos povos
indígenas no Brasil (ALENCASTRO, 2021).
considerações finais
A degradação ambiental acompanhada por conitos socioambientais
no Brasil tem sido palco de grande violência e injustiça ambiental. A
abordagem crítica da Ecologia Política latino-americana permite analisar
a persistência da colonialidade do poder, do ser e do saber no modelo
neoextrativista da natureza colonizada. A dívida ecológica gerada por
séculos de colonização e depois inserção desigual na economia mundial dos
países latino-americanos prossegue com a desterritorialização e expulsão
de comunidades e povos de seus territórios. A resistência e mobilização
destes grupos marginalizados sinalizaram questionamentos sobre quem
estaria realmente protegendo os recursos naturais além de transformarem
as injustiças em conitos socioambientais.
A consolidação da temática ambiental na agenda internacional
contribui para a formação de redes transnacionais, intensicando a relação
entre as políticas ambientais domésticas e internacionais ou globais. Desse
modo, é possível demonstrar a relação estreita entre o desenvolvimento
da política ambiental brasileira e a política ambiental global. Muitos
programas, projetos, políticas e instituições ambientais no país foram
criados e implementados com recursos externos e também como forma de
reação a eventos internacionais.
A partir da década de 1980 diversas políticas são criadas no país
demonstrando uma tentativa de institucionalização e consolidação
da política ambiental brasileira. Entretanto, ao mesmo tempo que se
intensicava as ações de política ambiental, inclusive com políticas
especícas para combater o desmatamento ilegal na Amazônia, também
eram propostas iniciativas para a sua desregulação fomentada por setores
da sociedade ligados a determinadas atividades econômicas.
As estratégias de desmonte e desregulação da política ambiental no
Brasil atinge seu ápice no governo atual de Jair Bolsonaro com diversas
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 143
ações que tem promovido um esvaziamento do MMA e do IBAMA, entre
outras apontadas neste trabalho. Todavia, essas ações têm efeitos para além
do território nacional e tem gerado tensões e impactos negativos sobre a
imagem do país no exterior. Tais estratégias também geraram reações de
grupos opositores ao governo levando a uma judicialização dos conitos.
A violência também está presente neste cenário atual, particularmente,
intensicada em relação aos povos indígenas. A contestação das políticas
continuam em meio a um crescente autoritarismo.
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148 |
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Matheus de Carvalho HERNANDEZ
1
A política externa em direitos humanos do governo Bolsonaro e
a crise da ONU: o backlash é também verde e amarelo”. Antes de entrar
exatamente na discussão, como meu lugar de fala é dos estudos sobre a
ONU, gostaria de pontuar rapidamente quais são os fatores pelos quais a
ONU se faz importante na governança global e nas relações internacionais
para que possamos também entender o que signica dizer que a ONU está
em crise ou que o sistema de direitos humanos, que é o meu tema mais
especicamente, está em crise.
A ONU é importante por diversas características. Elenquei
alguns fatores, entre eles a promoção de normas como orientação de
Professor de Relações Internacionais e do Mestrado em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD) Dourados. M.S. e-mail: matheushernandez@ufgd.edu.br. https://orcid.
org/0000-0003-3384-4982.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p149-166
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
150 |
comportamento: não necessariamente são normas vinculantes a que os
Estados se obrigam a seguir juridicamente, no entanto, a ONU cria guias
de comportamento, ela cristaliza consensos mínimos a respeito de algumas
temáticas, orienta comportamentos com suas normas internacionais
formadas pelos próprios Estados. Além disso, a ONU com o passar do
tempo, foi se tornando um referencial de legitimidade, especialmente o
seu sistema de Direitos Humanos, ou seja, o país que é visto como mais
respeitador de direitos humanos tanto internamente tanto como na sua
promoção externa, é visto com maior legitimidade, tanto no sentido mais
normativo, mas até às vezes em disputas internas de políticas públicas.
Vemos no Brasil e em outros países muitas vezes os atores políticos e sociais,
para se validar um dado e para que ele carregue alguma aura de veracidade
ou de isenção, recorrerem aos dados produzidos pela ONU, seja para
tratar do Bolsa Família, do avanço do combate à fome e até questões de
investimentos. Assim, a ONU possui essa faceta de legitimidade, quando
a crise se instaura, também se instaura sobre isso.
A ONU é muito importante para institucionalizar práticas,
institucionalizar fóruns, agendas, ela cria espaços e ela também é formada
por um corpo burocrático. Ela não é apenas o encontro dos países, ela
também possui funcionários que também não são exatamente neutros.
Muitas vezes eles se valem dessa reivindicação de neutralidade ou de
isenção como capital político e se valem mesmo, mas eles possuem também
agendas, como bem já mostrou Finnemore e Barnett (2004). Especialmente
em órgãos de direitos humanos, via de regra, são funcionários que são,
digamos, pró direitos humanos. Então, quando é colocado que a ONU está
em crise também se está pensando em uma crise no nível organizacional.
E, por m, em sua faceta mais visível, a ONU é uma câmara, um eco
que ressoa o multilateralismo, hospedando o encontro coletivo dos atores
para negociações, para que essas negociações sejam feitas minimamente
mediante regras comuns. Assim, quando falamos em crise, no mínimo, esses
fatores estão sendo atingidos e questionados: normativa, organizacional/
institucional e multilateral.
A denição que o ex-embaixador Gelson Fonseca (2008) atribui
para a ONU é oportuna. Ele diz que a ONU trafega ou circula, tenta
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 151
se equilibrar entre o interesse e a regra, ela tenta se equilibrar na tensão
entre o egoísmo de base nacional (ou até de egoísmos de atores que não
necessariamente são nacionais, como corporações transnacionais, agentes
privados) e um certo ideal difuso da comunidade internacional. E, apesar
de seu lugar “articial”, esse lugar possui um capital político, esse lugar
político está sempre em disputa. Não é que necessariamente um país
queira ocupar esse lugar, mas muitas vezes um aglomerado de países ou
até não necessariamente países querem retirar a ONU desse lugar, desse
lugar entre o interesse e a regra. Então, a crise atual se dá também por
atingir esse âmago, esse lugar peculiar e o Brasil atual é um propagador
dessa crise, é um promotor dessa crise. Essa doutrina (que não sei nem se
podemos chamar exatamente de doutrina), que é seguida atualmente pelo
Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, de inspiração olavista e
anti-globalista”, contesta esse lugar da ONU, assim como se contesta o
lugar das agências da ONU, das organizações correlatas.
Podemos observar atualmente que a política externa brasileira vem
contestando esse lugar de fala da OMS, por exemplo, podemos ver que o
ataque se dá nesses ancos, na tentativa de deslegitimar, de tirar potência,
de algo que nem é muito potente, que possui várias contradições, em uma
leitura mais estrutural, poderíamos falar por várias horas das contradições,
das iniquidades ou das assimetrias que a ONU incorpora e cristaliza,
desde as mais visíveis, como o Conselho de Segurança com seus poderes
de veto, até um desequilíbrio orçamentário entre os pilares da ONU e por
aí vai. Não concordo que o Ernesto Araújo seja um louco, essa linhagem
de política externa não é baseada na insanidade, na loucura, na irrazão
total, na ausência de lógica. Nesse sentido, é preciso fazer um esforço
compreensivo, ainda que não concordemos e que a vejamos com muitos
problemas, em relação à política externa brasileira atual.
Na busca de tentar compreendê-la, eu diria que há uma dimensão
valorativa e há uma dimensão estratégica da atual política externa, elas
se alimentam, se relacionam, não são exatamente a mesma coisa, mas
elas estão muito articuladas nessa atuação do Brasil internacionalmente,
com um foco maior no sistema de direitos humanos da ONU, sendo essa
minha área. Não estou fazendo uma separação estanque entre a dimensão
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
152 |
valorativa e a dimensão estratégica, elas se relacionam dialeticamente, estou
fazendo apenas uma separação mais didática.
Mas, na dimensão que chamei de valorativa podemos observar uma
cruzada “antiglobalismo”. Fiz até uma brincadeira com um trocadilho
entre pátria livre e pária livre, pois recentemente em um evento de
formatura de novos diplomatas, o Ernesto Araújo criticou a atuação do
Itamaraty em governos anteriores e, ao fazer essa crítica, ela fala que se o
que estivermos fazendo atualmente for algo pária, que sejamos pária então
(CORREIO BRAZILIENSE, 2020). Isso não é uma armação trivial,
pois, na concepção valorativa do Ernesto Araújo, isso que o Brasil vem
fazendo é uma defesa da soberania brasileira. Ele lembra com convicção
dos discursos de abertura da Assembleia Geral da ONU de 2020, na qual,
segundo ele, só dois presidentes falaram em liberdade: Trump e Bolsonaro.
É uma política externa que pretende destruir aquilo que já foi feito
e, para se remeter a alguns elementos conservadores ou até retrógrados da
política externa brasileira, ele arma “Sim, o Brasil hoje fala de liberdade
através do mundo, se isso faz de nós pária internacional, então que sejamos
esse pária” (CORREIO BRAZILIENSE, 2020). Portanto, o chanceler,
que defendeu que é bom ser pária, tem realmente uma estratégia de
descolamento, de desengajamento ou de libertação, na nova língua do
Ernesto Araújo, daquilo que ele identica como globalismo, essas forças
de destruição de valores tradicionais da nação como família, isso tem e
terá sérias consequências para os direitos humanos, como veremos adiante.
Além disso, eles reivindicam que estão obtendo resultados, nem sempre é
visível, pois aos nossos olhos não estão obtendo resultados, mas é preciso
pensar, fazer o esforço de pensar quais são os resultados que ele está
vislumbrando, que ele vislumbra como um bom resultado.
Mas, além da dimensão valorativa, a política externa brasileira atual
também tem uma dimensão que, por falta de um nome melhor, chamei
de dimensão estratégica. Observando a atuação do Brasil nos fóruns
internacionais de direitos humanos desde a eleição do Bolsonaro, o que eu
observo é uma tentativa explícita, muito constante e muito pronunciada
de se valer da política externa e do seu peculiar insulamento (comparado
com outras políticas públicas de outros ministérios) para ns eleitorais,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 153
isto é, se valer dessa plataforma internacional que recebe pouca atenção
do legislativo brasileiro, comparado com outros países, para delizar o
eleitorado doméstico.
A atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU
atualmente representa delização do extrato doméstico que apoia o
governo Bolsonaro. Podemos ver nas notícias que eu trouxe nos slides para
ilustrar meus argumentos, são trechos sobre a Anajure – “Os superpoderes
da Anajure, a associação de juristas evangélicos que quer um Brasil
teocrático” (THE INTERCEPT, 2020). Todo o meu respeito à crença de
cada um, seu credo, a fé das pessoas, mas estou falando aqui do ponto
de vista institucional e político. A Anajure é a Associação Nacional dos
Juristas Evangélicos, é uma entidade fundada pela Ministra da Mulher,
Família e Direitos Humanos Damares Alves que, apesar de não ser ministra
das relações exteriores, possui uma atuação internacional destacada nas
posições brasileiras em matéria de direitos humanos
2
.
A Anajure vem tentando inuenciar dentro do governo de variadas
maneiras: na indicação de cargos para o judiciário, para o MEC (basta ver
o atual ministro), o próprio André Mendonça no Ministério da Justiça.
Assim, além de avançar nessa área jurídica, a Associação Nacional dos
Juristas Evangélicos vem exercendo uma forte inuência sobre o Itamaraty,
ela vem atuando para tentar usar o internacional, as instâncias internacionais
para defender o cristianismo que, segundo eles, é perseguido no Brasil e
no mundo. É assim que podemos entender a expressão “cristofobia” que
Bolsonaro usou no último discurso da Assembleia Geral da ONU (ONU
News). Com isso, a Anajure vem alçando lugares que antes eram “reservados
a ONGs pró direitos humanos, que não é exatamente o caso da Anajure.
Vale dizer que a Anajure goza atualmente de assento na Organização dos
Estados americanos - OEA, e agora com a ajuda do Itamaraty, que tem feito
um lobby diplomático junto ao Conselho Econômico e Social da ONU,
vem tentando conquistar o status consultivo junto à ONU, o que dará
direito de participar ativamente na produção de documentos e participar
de reuniões dos fóruns de direitos humanos da ONU. A Anajure ainda
não obteve êxito junto à ONU, especialmente porque a China acendeu
 Para mais detalhes: https://anajure.org.br.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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o alerta e vem barrando, questionando e dicultando a obtenção deste
credenciamento (ÉPOCA NEGÓCIOS, 2020).
Por isso, argumento que existe uma dimensão estratégica, existiu
uma parcela expressiva do voto religioso no Brasil que foi para o Bolsonaro
e ainda constitui sua base de apoio, lógico que não há um bloco político,
aqui eu me rero justamente ao bloco de apoio, não estou aqui tentando
simplicar de maneira nenhuma esse extrato que muitas vezes é chamado
de voto evangélico ou de voto religioso, mas o voto que é religioso e
que foi para o Bolsonaro e constitui a sua base de apoio se regozija, se
alegra, se anima com esse tipo de posicionamento que o Brasil vem tendo
internacionalmente nos fóruns de direitos humanos da ONU.
Trouxe aqui também um conceito que é muito discutido na literatura
sobre direitos humanos, que é a noção de backlash, que podemos chamar
de um processo de retrocesso. Essa literatura vai trabalhar e dizer que os
direitos humanos estão sofrendo um backlash (HOPGOOD; SNYDER;
VINJAMURI, 2017). E minha ideia é mostrar como o Brasil participa,
incentiva e é parte desse backlash, ou seja, como há uma resistência
deliberada e sistemática aos direitos humanos como projeto deliberado,
como uma linguagem conduzida por aqueles que se sentem ameaçados
pelas conquistas de direitos de outros grupos.
E, é preciso frisar as dimensões materiais, as dimensões de poder,
então não é apenas um “sentimento” de resistência aos direitos humanos,
mas é uma resistência deliberada por aqueles que se incomodam e possuem
poder para resistir a eles, que é o caso ao qual estamos assistindo agora no
Brasil. Aqueles que se ressentem dessa linguagem de direitos humanos, desse
projeto, estão no poder do ponto de vista simbólico e do ponto de vista
material. Mas então como os atores que animam, que operam esse backlash
fazem, quais são as táticas? Eles fortalecem bases domésticas por meio da
(i) mobilização de valores alternativos ou eles (ii) criam interpretações
que ignoram direitos humanos, ou eles (iii) reinterpretam demandas
por direitos de um modo que não conite com prerrogativas soberanas
(entendida aqui de forma bastante retrógrada, mas instrumental, e não
como soberania popular, de participação popular), e, por m, (iv) ainda
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 155
na criação de contra normas, de normas que conitam com os direitos
humanos em termos internacionais.
Então, qual é o backlash no sistema de direitos humanos da ONU?
Como ele vem se manifestando e como o Brasil participa de tal processo?
Para ns didáticos, eu destrinchei a crise em um tripé, uma crise
normativa, uma crise organizacional/institucional e uma crise que eu
chamei de multilateral. É uma divisão articial, claro, e nós poderemos
ver como tudo isso se relaciona com aquilo que apresentei sobre o backlash
e o fortalecimento de bases domésticas, a criação de interpretações que
ignoram os direitos humanos, a reinterpretação de demandas e, por m, a
criação de contra normas.
Sobre a crise normativa, eu trouxe um exemplo, em que se contesta
ou até se ressignica linguagem. Alguns governos de extrema direita de
orientação anti-democrática se juntaram, entre eles o Brasil
3
, os Estados
Unidos, o Egito, a Hungria, a Indonésia e Uganda, se articularam e criaram
aquilo que eles chamam de Declaração do Consenso de Genebra, que nada
mais é que uma declaração baseada em uma leitura bastante conservadora
de pautas que são caras à agenda de direitos humanos, como a saúde da
mulher e o fortalecimento da família. Podemos notar que o nome da
declaração não possui a expressão direitos humanos.
Estou falando de algo muito recente, o banner de lançamento da
declaração é de 22 de outubro de 2020, então a gente pode notar como
o Brasil está se articulando e, dessa forma, participando ativamente desse
backlash, incentivando, alimentando e colocando combustível nessa
resistência às normas de direitos humanos, que incluem direitos civis e
políticos, mas incluem direitos econômicos, sociais e trabalhistas, questões
que tocam dimensões sanitárias, saúde e educação, que mexem com o
bem-estar da população, inclusive, diretamente do ponto de vista material,
então podemos ver que o tipo de participação que o Brasil vem tendo é
obviamente contraproducente, mas condizente com a linhagem de uma
política externa que pretende de forma deliberada destruir aquilo que
Ver: https://www.gov.br/mre/en/contact-us/press-area/press-releases/the-geneva-consensus-declaration-
virtual-signing-cerimony-october-22nd-2020.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
156 |
vinha sendo anteriormente feito. Essa declaração, vale dizer, deriva de
uma iniciativa (que foi noticiada, mas acho que não com a visibilidade
que merecia) de Mike Pompeo, Secretário de Estado do governo Trump
4
.
Ele iniciou um projeto de uma Comissão de Direitos Inalienáveis que,
nada mais é em português claro, que uma ressignicação muito retrógrada
que se remete ao entendimento do direito natural do que são os direitos
humanos (COMMISSION ON UNALIENABLE RIGHTS, 2020).
Como podemos ver, então, eles dizem que estão formulando uma
nova visão de direitos humanos que priorize liberdade religiosa, direito
de propriedade e vida, um entendimento muito conservador de vida,
a propósito. Eles dizem que é preciso se xar apenas em direitos muito
mínimos que sejam consensuais para todo mundo (Commission on
Unalienable Rights, 2020). Ao m e ao cabo, eles estão tentando refrear
a característica expansiva da agenda de direitos humanos, pois, segundo
eles, quando se abre, se expande a agenda de direitos humanos, ocorrem os
dissensos. Assim, quando os grupos, por exemplo, LGBTQIA+ conquistam
a agenda de direitos humanos da ONU e fazem disso uma pauta legítima
(RODRIGUES; HERNANDEZ, 2020), na visão dessa comissão de
direitos inalienáveis e que inspira essa Declaração do Consenso de Genebra
da qual o Brasil é um dos principais promotores (especialmente após a
derrota de Trump), se “politiza” e se dissemina o dissenso. Então, a saída
deles para a construção do consenso não é como já muitas vezes foi prática
da diplomacia brasileira, isto é, a negociação a m de tentar encontrar zonas
de sobreposição a respeito de como expandir essa agenda e proteger mais
pessoas, promover mais direitos para que essas pessoas sejam humanizadas,
no melhor sentido do termo. Não é essa a solução proposta pelos Estados
Unidos (então de Trump) e pelo Brasil. A solução proposta é, ao contrário,
restringir a denição de direitos humanos, torná-la diminuta e enrijecê-
la e, com isso, obviamente, deixar para trás uma série de atores sociais,
individuais e coletivos, deixando-os não respaldados e não resguardados
pelas normas internacionais de direitos humanos.
Ver: https://www.hhs.gov/about/news/2020/10/22/trump-administration-marks-signing-geneva-consensus-
declaration.html.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Neste sentido, começamos a entender de onde vêm notícias como
as que o Jamil Chade vem veiculando
5
, como, por exemplo: “Com pé
no Brasil, lobby antiaborto dos EUA gastou R$ 1,6 bi pelo mundo”, o
que mostra como essas fontes de nanciamento vêm, como colocado pela
OpenDemocracy, de 28 entidades cristãs dos Estados Unidos com livre
acesso ao governo Trump e que se mantêm com extremo contato com
organizações brasileiras, até mesmo com Damares Alves e Ernesto Araújo
(CHADE; TREVISAN, 2020; OPENDEMOCRACY, 2020).
Estamos então falando de uma política externa que possui, sim, uma
estratégia. Não se trata de insanidade, se trata de estratégia, ainda que não
concordemos, existe, sim, uma estratégia, uma coalizão sendo formada.
Trago outra notícia aqui, não só pelo seu título “Aliança antiaborto proposta
pelos EUA com apoio do Brasil afronta direito das mulheres”, mas porque
as três autoras são de ONGs tradicionais de direitos humanos brasileiras
(ASANO; CORREA; KANE, 2020). Peço que guardem essa informação,
pois mais a frente veremos o que o Brasil vem fazendo em matéria de ONGs
de direitos humanos, aqui temos ONGs como Conectas, Ipas, Observatório
de Sexualidade e Política, que são ONGs historicamente ligadas aos direitos
humanos e pautas progressistas e, como tais, são opositoras dessa política
externa atual. Assim, veremos onde deságua a estratégia da política externa
brasileira atual para tentar enfraquecer também esse anco de atuação pró
direitos humanos.
Armo que não era apenas uma crise normativa, mas uma crise
institucional/organizacional, que tentei aqui dividir como uma
deslegitimação eminentemente política e um constrangimento orçamentário.
Para ilustrar brevemente a deslegitimação política, eu elenquei apenas
alguns episódios, sendo o primeiro quando a atual Alta Comissária da
ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, se pronunciou dizendo
que o Brasil vinha perdendo espaço democrático e encolhendo o espaço
para atuação da sociedade civil, o que é uma grande verdade, tendo em vista
que, desde o começo do governo Bolsonaro, se vislumbrou que o então
ministro General Santos Cruz iria de alguma maneira monitorar as ONGs
(HERNANDEZ, 2019; O GLOBO, 2019). Vimos isso acontecendo na
 Para vários exemplos: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
158 |
COP, com a ABIN monitorando ativistas que participavam da conferência
do clima (ESTADÃO, 2020a).
Os exemplos são muitos sobre o encolhimento do espaço para
atuação de organizações populares, da sociedade civil, movimentos sociais,
mas Bachelet fez essa observação de que havia esse encolhimento do espaço
para atuação da sociedade civil e a resposta que Bolsonaro deu ganhou
muita notoriedade, pois ele diz que “ela só esquece que o país não é Cuba
graças aos que tiveram coragem a dar um basta na esquerda em 63”, e,
como é o Bolsonaro, podemos ainda notar em sua fala sempre um toque de
crueldade, “entre esses comunistas o seu pai”, ele ainda complementa que
quando tem gente que não tem o que fazer vai lá pra cadeira de direitos
humanos da ONU”. O detalhe é que o pai de Bachelet foi torturado e
morto pela ditadura chilena, uma fala, portanto, que ultrapassa qualquer
limite de humanidade, qualquer limite diplomático. Mas ressalto ainda
esse trecho nal: “quando tem gente que não tem o que fazer vai lá pra
cadeira de direitos humanos da ONU”, o que Bolsonaro faz ao dizer isso é
deslegitimar politicamente esse sistema (HERNANDEZ, 2019).
Outro exemplo é quando observamos os aliados com os quais
o Brasil vem se juntando (Estados Unidos então de Trump e Hungria,
por exemplo). A Hungria fez grande pressão para que o Alto Comissário
anterior, Zeid Hussein, renunciasse, tendo em vista seus pronunciamentos
muito fortes contra as posições húngaras de Viktor Orbán a respeito de
migração, por exemplo (DEUSTCHE WELLE, 2018).
Trump tirou os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU
e avisou que faria isso (HERNANDEZ, 2017, 2018). Depois de sair,
relembrou sua audiência na Assembleia Geral da ONU que faria isso,
pelos mesmos motivos que Bush, em 2006, não entrou no Conselho de
Direitos Humanos em virtude de um foco visto como exagerado sobre
Israel (HERNANDEZ; ALBRES; MACEDO, 2013).
Outra notícia que evidencia a política externa brasileira atual é um
esforço desconstrutivo, ou seja, como uma desconstrução proposital, uma
desconstrução estratégica, deliberada; por isso o Brasil integra o backlash,
pois é uma resistência deliberada, não é uma mera discordância pontual ou
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 159
aleatória. O Valor Econômico (2019) noticiou que Bolsonaro se pronunciou
em um jantar em Washington, em 2019, dizendo explicitamente que ele
precisava desconstruir muita coisa, ele diz “que o sentido do seu governo
não é construir coisas para o povo brasileiro, mas sim desconstruir”, “O
Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para
nosso povo, desfazer muita coisa”. Assim, esse esforço que se observa não
apenas na política externa em direitos humanos (vemos também na política
ambiental, tanto externa, quanto interna) é de aumento de potencial de
exploração e de ganhos materiais mais altos, de lucros maiores que são
só possíveis graças aos esforços desconstrutivos ou destrutivos de direitos,
proteções e garantias. E esse esforço sistemática passa pela deslegitimação
política, mas também pelo constrangimento orçamentário.
Irei tratar apenas de algumas informações pontuais sobre
isso
6
. Quando armo, as assimetrias da própria ONU: aponto que a
ONU é organizada sob a égide da Paz e Segurança, um outro pilar é o
Desenvolvimento e um outro pilar é o de Direitos Humanos, mas o pilar
de direitos humanos é o que recebe apenas 3,7% do orçamento regular da
ONU. Pois, é o pilar que possui maior capacidade de constrangimento
aos Estados, que pode jogar luz sobre violações, que pode jogar luz em
como determinado governo trata sua própria população, então não é à toa
toda essa animosidade contra o sistema de direitos humanos pelo governo
Bolsonaro. E com o passar do tempo, cada vez mais o sistema de direitos
humanos passou a depender de orçamento voluntário/marcado.
Quando o orçamento é regular signica que o Estado doa e a ONU
lida com esse dinheiro da forma que for preciso. Quando o montante é
derivado de doação ele costuma vir marcado, ou seja, o Estado direciona,
estipula, “carimba” para onde ele quer que vá o dinheiro. Isso faz com que
haja projetos que recebem muito menos atenção que outros.
Em 2019, por exemplo, cerca de 63% das atividades de direitos
humanos vieram dessas doações voluntárias, isso não é um dado meramente
orçamentário ou contábil, uma maneira de conseguirmos olhar confrontos
políticos ou tendências políticas é olhar de onde vem o dinheiro e para
 Para informações completas: https://www.ohchr.org/en/aboutus/pages/fundingbudget.aspx.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
160 |
onde ele está indo e, nesse sentido, podemos observar que o Brasil não fez
nenhuma doação voluntária. Essa animosidade, que muitas vezes podemos
chamar de táticas diversionistas, não é apenas isso, existe uma real intenção
de estrangular materialmente o sistema.
Os Estados Unidos da América contribuíram, mas 100% das
doações foram carimbadas, sendo essa mais uma estratégia com intenção
material
7
. Eu trouxe mais uma notícia e nela podemos ver que o ministro
Rogério Marinho articulou no Congresso e cou com 1.2 bi do Itamaraty,
justamente a verba que era destinada a pagar contas do Brasil com os
organismos internacionais como a ONU e a OEA, ou seja, na hora da
disputa por recursos, o dinheiro que cai, aquele que se perde é justamente
aquele que nanciaria esse sistema (ONU) ou o sistema regional da OEA
(FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).
Tratei de uma crise normativa e de uma crise institucional e agora,
por m, tratarei da crise multilateral propriamente dita, isto é, aquela que
se relaciona com o espaço no qual os Estados efetivamente se encontram,
votam e fazem proposições, e aí podemos visualizar um desengajamento
multilateral em diferentes níveis. Nesse sentido, é incontornável fazer
alguma menção aos EUA. E por que eu estou fazendo menções constantes
aos Estados Unidos? Primeiro, porque a política externa brasileira estava
(tendo em vista a recente vitória de Biden) em um alinhamento automático
e nem é com os Estados Unidos, mas em um alinhamento automático com
o governo Trump.
Os Estados Unidos saem do Conselho de Direitos Humanos em
apoio a Israel em 2018, e a partir disso o Brasil se torna uma espécie de
preposto dos EUA dentro do Conselho. O Brasil não abandona o órgão,
mas começa a vocalizar e defender posições conservadoras, retrógradas e
até cruéis, ressoando visões da extrema-direita norte americana. Na época
de campanha no Brasil, em agosto de 2018, Bolsonaro disse que cometeu
um ato falho e que se fosse eleito ele sairia da ONU e, para se corrigir, ele
disse: “Em Resende eu não falei conselho, houve um ato falho meu aí já
se começou dizendo que eu sairia da ONU. Eu jamais pensaria em sair da
Ver a seção Funding no Relatório 2019 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos:
https://www2.ohchr.org/english/OHCHRreport2019/ .
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 161
ONU. É sair do Conselho de Direitos Humanos da ONU” (FOLHA DE
SÃO PAULO, 2018). Só que não saiu, não só não saiu, como se tornou,
como já dito, um preposto para veicular e para ressoar e vocalizar opiniões e
visões extremamente conservadoras dos Estados Unidos e dessa articulação
que incluem Hungria, Egito, Indonésia esse clube que o Brasil passou a
integrar no governo Bolsonaro.
Para ilustrar mais essa crise multilateral, eu poderia ainda mostrar como
o Brasil vem votando contra a saúde da mulher, contra questões LGBTQIA+,
e sempre privilegiando um entendimento de família tradicional de apenas
um homem e uma mulher. Eu poderia mostrar como o Brasil vem votando
nas últimas resoluções e declarações propostas, mas eu decidi iluminar uma
coisa que ainda é pouco iluminada em nosso debate.
O que o governo Bolsonaro está fazendo, além de se juntar a uma
coalizão de governos extremamente retrógrados, anti-democráticos e anti-
populares, além de ser um contraponto aos esforços pró-direitos humanos de
outros Estados ou da própria ONU, ele vem sistematicamente contestando o
lugar das organizações da sociedade civil. E a literatura de Direitos Humanos
durante muito tempo e, mesmo em um debate público quando a gente pensa
em uma ONG que atua nas instâncias de direitos humanos da ONU ou da
OEA, quase que intuitivamente a gente pensa que é uma ONG pró-direitos
humanos, claro. Entretanto, o que a gente vem observando, no caso do
Brasil (tal como ocorre em vários países não-democráticos, como o Egito), é
o uso do aparato do governo (inclusive o gabinete de segurança institucional
e a ABIN) para monitorar aqueles que são os ativistas brasileiros tradicionais
do campo ambiental e de direitos humanos.
O jornal Estadão (2020b), armou “Carta assinada por 162 entidades
civis cobra providências da ONU contra ação da ABIN”, ou seja, ativistas
que se viram vigiados e monitorados na sua atuação na cúpula do clima nas
Nações Unidas. De um lado, portanto, vemos que se diculta a atuação
das organizações tradicionais do campo de direitos humanos do Brasil (não
apenas de direitos humanos especicamente, mas de direitos de modo
mais amplo, como MST e MTST) e, de outro lado, vemos o governo
federal incentivando a atuação internacional de ONGs como a Anajure,
já mencionada anteriormente (THE INTERCEPT, 2020). A Anajure
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
162 |
já está na OEA e, ainda que não como ONG credenciada, já participa
também de reuniões do comitê da ONU em Genebra. Ela atualmente
peticiona junto à Corte Interamericana com a Amicus Curiae no caso
sobre ensino religioso, já submete relatórios sobre liberdade religiosa para
os procedimentos especiais da ONU
8
. Isso também integra a estratégia da
política externa brasileira atual.
Não se trata apenas, portanto, das posições internacionais que o
Brasil toma ou defende em matéria de direitos humanos, mas também
quais atores são privilegiados ou enfraquecidos, inclusive internamente.
Pois sabemos que esse campo de ativistas da área de direitos humanos
e de movimentos sociais são justamente uma das bases de oposição ao
governo Bolsonaro, não são a base de apoio. Nesse sentido, ele está usando
justamente o Araújo, o MRE está usando a política externa para fazer isso,
para enfraquecer a resistência interna e fortalecer a base eleitoral doméstica.
Um outro exemplo de alinhamento conservador no qual o Brasil está
inserido, especialmente quando vamos falar da questão da saúde da mulher
ou de direitos LGBTQIA+, tem integrantes como a Liga dos Estados Árabes,
a Organização da Conferência Islâmica, a Santa Sé, todos atores que baseiam
suas posições em postulados religiosos, que, muitas vezes, dialogam com as
preferências e valores da base eleitoral do governo Bolsonaro.
O Brasil vem se juntando a esses atores para contestar avanços,
inclusive dentro da OMS, dentro da UNESCO, e não apenas dentro
dos órgãos de direitos humanos especicamente. Mas também vem se
articulando com ONGs extremamente conservadoras da extrema-direita
norte-americana, como Family Watch International, que já conquistou
o status consultivo nas Nações Unidas, e que vem sempre ao Brasil. Em
2015 eles participaram de um seminário dentro da Câmara de Deputados
(GAZETA DO POVO, 2015). A Anajure, portanto, não está fazendo
isso de maneira errática, tem toda uma estratégia de inspiração em outras
organizações que já chegaram ali e que pretendem chegar disputando
o lugar discursivo também daquilo que convencionamos chamar de
organizações da sociedade civil, que historicamente era um lugar mais
 Para a atuação internacional da Anajure: https://anajure.org.br/categorias/anajure-internacional/.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 163
pró direitos humanos no Brasil, pelo menos nas instâncias organizadas do
ponto de vista internacional.
Então temos o human rights backlash na ONU com a cara do
Brasil: contestando e ressignicando a linguagem de direitos humanos;
deslegitimando politicamente as instâncias de direitos humanos;
uma política externa que trabalha para constranger do ponto de vista
orçamentário as instâncias de direitos humanos; que se desengaja das
instâncias multilaterais e, quando não se desengaja, serve de preposto para
o governo Trump. Assim, o meu principal argumento é que essa política
externa está a serviço de um processo de retrocesso das instâncias de direitos
humanos da ONU com sérias consequências internas tanto eleitorais, como
sociais e até econômicas na distribuição de recursos internos na garantia
de direitos como saúde e educação etc. Claro que tudo isso pode sofrer um
nível de modicação com essa mudança recente nos EUA, ainda que Biden
esteja muito longe de ser um líder de esquerda. Mas é uma mudança de
posição importante tendo em vista que o Brasil tomou uma opção de um
alinhamento automático ao governo Trump, que não se reelegeu.
O cenário que vem por aí não conseguimos saber e eu não consigo
fazer um exercício de futurologia aqui, mas pelo menos um pouco disso que
mostrei pode mudar justamente com a mudança de governo nos Estados
Unidos (Biden substituindo Trump). Mas os tempos atuais demandam
muita cautela com previsões...
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166 |
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C 
P   
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P
.
Caio BUGIATO
2
Quanto à atualidade da questão do fascismo, digamos simplesmente
que os fascismos – como, aliás, outros regimes de exceção – não
são fenômenos limitados no tempo. [...] O ressurgimento, pois,
do fascismo continua possível, sobretudo hoje – mesmo porque,
provavelmente não se revestiria agora exatamente das mesmas
formas históricas de que se revestiu no passado. (POULANTZAS,
1978, p. 10).
introdução
Esse ensaio pretende entender alguns elementos da atual conjuntura
política brasileira, em que um governo neofascista chega ao poder por
1
Artigo originalmente publicado na revista Actuel Marx/Intervenciones n.27, segundo semestre de 2019,
Santiago, Chile.
Professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Seropédica R.J. E-mail: bugiato@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-9378-4830.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p167-180
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
168 |
via eleitoral, à luz das contribuições de Nicos Poulantzas em seu livro
Fascismo e ditadura de 1970. Para tal, na primeira parte do texto buscamos
explicar algumas noções sobre o fenômeno do fascismo, com foco nesse
processo político em detrimento de outros, como a ditadura militar e o
bonapartismo. Trazemos à tona alguns elementos que podem ser úteis para
entender a conjuntura brasileira e assim optamos por não realçar outros,
como o imperialismo, o fascismo no campo, etc. Em geral, buscamos um
conceito de fascismo, a dinâmica política desse fenômeno e a possibilidade
de vericá-lo na atualidade. Na segunda parte do texto fazemos uma
breve análise de conjuntura baseada em autores e autoras brasileiros
que igualmente procuram entender a conjuntura política brasileira e
consideram a ascensão do (neo)fascismo como um traço marcante da
atualidade. Considerações nais encerram nosso ensaio.
1.Fascismo e DitaDura
A primeira explicação sobre a obra de Nicos Poulantzas que
precisamos fazer para entender o fenômeno do fascismo está relacionada
com a citação que abre esse ensaio. Poulantzas considera que o fascismo
não é um fenômeno político restrito a formações sociais europeias no
período entre as duas guerras mundiais, mas sim é possível vericá-lo em
outros períodos e espaços afora do que poderíamos denominar fascismo
original. Tal vericação é possível porque o fenômeno está atrelado ao
modo de produção capitalista e particularmente à luta de classes e ao
Estado capitalista. É deste, da teoria marxista do Estado, que Poulantzas
parte para chegar a um conceito de fascismo.
Segundo Poulantzas, o fascismo é um regime político especíco
da forma do Estado capitalista de exceção (POULANTZAS, 1978, p.
11). Essa armação traz algumas implicações
3
. Primeiro, existem tipos
Ressaltamos que tais implicações decorrem de indicações feitas por Poulantzas. Uma vez não estão denidos
nem aparecem de maneira clara as relações entre tipo de Estado e formas de Estado e forma de Estado e regimes
políticos. Assim como o conceito de Estado capitalista, muito bem trabalhado em seu livro anterior Poder
político e classes sociais, que aparece caracterizado quase que unicamente pelo item b arrolado. Armando Boito
Junior em seus textos sobre o neofascismo no Brasil chama atenção para essa pouca sistematização, bem como
para a relação entre de um lado formas de Estado e regimes políticos e de outro o bloco no poder e sua fração
hegemônica. O exemplo da burguesia nacional nesse texto é dele.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 169
de Estado que tiveram lugar na história: o tipo escravista, o tipo feudal
e o tipo capitalista, entre outros. Isto é, o Estado capitalista é um tipo
de Estado, cuja singularidade pode ser resumida, a partir de Fascismo e
ditadura: a) nas relações especícas entre de um lado a esfera econômica (as
forças produtivas e relações de produção) e de outro as esferas da política
e da ideologia (em que se situa o Estado enquanto centro da organização
política de uma formação social), relação esta em que o Estado garante
a reprodução da esfera econômica; e b) na autonomia relativa do Estado
frente à classe dominante, cujas frações não detêm diretamente o controle
do Estado, mas se mobilizam para governá-lo sob a hegemonia de uma
delas (o fenômeno do bloco no poder, do qual trataremos adiante).
O Estado capitalista assume formas: uma forma típica e formas de
exceção. A forma típica corresponde ao regime democrático-burguês e
as formas de exceção correspondem aos regimes fascista, bonapartista e
ditadura militar. Ou seja, a forma de Estado depende do regime instaurado.
Os regimes por sua vez são moldados pela luta de classes e frações de classe,
que reorganiza as relações entre os ramos do Estado. O ramo que ocupa
o papel dominante do Estado sob o regime fascista é a polícia política, no
bonapartismo a burocracia civil, e na ditadura militar a burocracia militar.
No regime fascista, acrescenta-se a existência de um partido de massa e a
perda da autonomia dos aparelhos ideológicos do Estado (no sentido de
Althusser). Ademais Poulantzas considera fascista a(s) força(s) social(ais) –
partido, movimento, classe e fração de classe – , e sua(s) ideologia(s), que
busca(m) instaurar tal regime.
O regime fascista no Estado capitalista de exceção, ou o Estado
fascista, apresenta – assim como todas as formas de Estado capitalista –
o fenômeno do bloco no poder: a unidade conituosa entre as frações
da classe dominante para governar o Estado, sob a hegemonia de uma
delas. Por hegemonia de uma fração no bloco no poder se entende que tal
fração é a grande beneciada pela política estatal, sobretudo pela política
econômica. Contudo, o que Poulantzas indica em Fascismo e ditadura é
que um mesmo regime político e uma forma de Estado podem apresentar
um bloco no poder com diferentes frações burguesas hegemônicas, ou seja,
não há uma determinação direta entre a fração que detém a hegemonia e
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
170 |
a forma de Estado e o regime político existentes. Exemplo: a burguesia
nacional era hegemônica durante a existência dos Estados fascistas alemão
e italiano e essa mesma fração era hegemônica nos Estados Unidos e na
Inglaterra durante longos períodos de regimes democrático-burgueses.
A armação de Poulantzas acima precisa ser complementada: o
fascismo é um regime político especíco da forma do Estado capitalista
de exceção que corresponde uma crise política (POULANTZAS, 1978,
p. 12). Uma crise política, que igualmente não é restrita no tempo e pode
surgir em períodos diferentes, corresponde a uma série de embates de
classes e frações de classe que desorganiza a estabilidade do bloco no poder
e a hegemonia e é acompanhada por rupturas profundas nos aparelhos
de Estado (sistema institucional). A crise é efeito da luta de classes que
modica os aparelhos de Estado; dessas modicações se institui o Estado
capitalista de exceção (POULANTZAS, 1978, p. 12, 57, 69)
4
.
A crise que caracteriza a conjuntura do fascismo corresponde a
uma estratégia ofensiva da burguesia e a uma etapa defensiva da classe
trabalhadora; corresponde à derrota dessa classe e das massas populares
após um período de lutas conta a burguesia; e corresponde ao início do que
Poulantzas de chamou de processo de fascisação. “O que se passou pois,
efetivamente, no caso do processo de fascização, foi a correspondência entre
uma crise política da burguesia e uma estratégia ofensiva” (POULANTZAS,
1978, p. 88). Com efeito, essa mesma crise, que dá origem ao Estado
fascista, é uma crise de hegemonia no bloco do poder: nenhuma fração
da burguesia é capaz de impor, seja por meios de organização próprios,
seja por meio do Estado democrático-burguês, sua direção a outras frações
burguesas e exercer a dominação política sobre o conjunto da formação
social. Consequentemente, a crise implica na reorganização do bloco e
o estabelecimento, por meio de uma força social fascista, da hegemonia
de uma nova fração de classe, oriunda do grande capital. De uma
instabilidade/incapacidade hegemônica, em que diversas frações ocupam
a hegemonia e/ou são incapazes para tal nos termos descritos acima, passa-
se por meio da ação política fascista a uma nova hegemonia. Poulantzas
acrescenta que tal crise de hegemonia é acompanhada de uma crise de
É possível entender em Fascismo e ditadura que crises políticas podem ter como base crises econômicas.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 171
representação partidária: “(...) ruptura da relação, simultaneamente na
ordem da representação – no sistema estatal – e na ordem da organização
entre as classes e as frações de classes dominantes e seus partidos políticos
(POULANTZAS, 1978, p. 79, grifos do autor). De mesma maneira, a
crise de representação partidária não se dá apenas na classe dominante, mas
se estende ao conjunto das classes e frações de classe da formação social.
A força social fascista que mencionamos anteriormente é oriunda
da pequena burguesia (pequenos produtores e proprietários, trabalhadores
assalariados não produtivos e funcionários do Estado; não fazem parte
nem da burguesia nem do proletariado). Um dos aspectos ideológicos
dessas frações de classe que a compõe é o mito da passarelle: medo da
proletarização, por baixo, e atração para a burguesia, por cima, aspirando-
se a tornar burguesa pelo empenho individual. Outro é a oscilação de sua
posição política: ora contra a ordem burguesa que privilegia os capitalistas,
ora contra a ascensão do proletariado que abala sua condição de classe.
Esse caráter de classe intermediária, segundo Poulantzas (1978, p. 258),
não lhe possibilita a ter interesses político próprios de longo prazo, porém
em determinadas situações pode entrar na conjuntura política de maneira
relativamente autônoma, com um peso especíco.
No caso das conjunturas de crises políticas das classes dominantes,
a pequena burguesia é diretamente afetada, sobretudo pela crise de
representatividade, pois a ruptura das frações de classe no bloco no poder
com os partidos afeta a respeitabilidade destes para ela. Assim ca aberto
o caminho para que partidos, movimentos, ideologias fascistas envolvam
a pequena burguesia, representando-a e inclusive formando partidos de
massa. Os partidos fascistas com base na pequena burguesia tendem a ser
em um primeiro momento um programa político de ressentimentos dessa
classe, entretanto em momentos posteriores abandonam esses interesses
e representam os do grande capital. A força social fascista tem o papel
histórico de realizar uma aliança entre a pequena burguesia e o grande
capital, em ofensiva contra a classe trabalhadora, e reorganizar o bloco no
poder sob a hegemonia de uma fração da grande burguesia.
Para nalizar a concepção de Poulantzas sobre o fascismo, vejamos
brevemente o que ele entende por processo de fascização, que compreende
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
172 |
os elementos arrolados até aqui. Na primeira etapa do processo, do
início ao ponto de irreversibilidade, o partido fascista se torna partido de
massa e o grande capital o apoia, mas ele não o representa. O ponto de
irreversibilidade ocorre quando o partido fascista estabelece uma ligação
de organização partidária com fração ou frações do bloco no poder, que
passaram para a ofensiva. Por outro lado, a ligação do partido com as massas
populares se mantem forte. Na segunda etapa, período que vai do ponto
de irreversibilidade ao estabelecimento do fascismo no poder, é o auge do
período anterior, em que se estabelece uma aliança efetiva entre o grande
capital e a pequena burguesia realizada por meio do partido fascista. A
ligação com as massas populares continua.
Na terceira etapa, o primeiro período do fascismo no poder, o partido
fascista representa os interesses de fração ou frações da grande burguesia no
bloco no poder, mas se vê obrigado a fazer concessões às massas populares,
contra a vontade daquelas. A pequena burguesia se torna a classe detentora
do Estado. Na quarta etapa, o período de estabilização do fascismo, uma
nova hegemonia de fração do grande capital já está estabilizada, o partido
fascista não representa mais os interesses da pequena burguesia, que se
mantem como classe detentora do Estado, e ligação com as massas se
afrouxa, mas não é inteiramente rompida. O partido fascista mantem certa
independência frente à fração hegemônica, não está às suas ordens, porém
tem agora seu programa político que corresponde aos interesses da fração
hegemônica em longo prazo.
2. a ascensão do neofascismo no Brasil.
O bloco no poder do Estado brasileiro durante os 13 anos de governo
do Partido dos Trabalhadores/PT (2003-2016) foi caracterizado pela
ascensão e hegemonia da grande burguesia interna brasileira, deslocando
a hegemonia da burguesia associada (exercida nos governos de Fernando
Henrique Cardoso do Partido da Social Democracia Brasileira/PSDB,
1994-2002) e colocando seus interesses e do imperialismo (sobretudo
estadunidense) em segundo plano (BERRINGER, 2015; BOITO JR.,
2018; BUGIATO, 2016; MARTUSCELLI, 2015). Os governos de Luiz
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 173
Inácio Lula da Silva (2003-2006/2007-2010) e Dilma Rousse (2011-
2014/2015-2016) articularam uma frente política neodesenvolvimentista,
sob hegemonia da burguesia interna e composta por frações das classes
proletárias – segmentos populares importantes passaram a ter protagonismo
político-social no interior dessa frente – , que sustentou os governos e
colheu os benefícios da política estatal.
O programa neodesenvolimentista, que atendia prioritariamente
os interesses da grande burguesia interna, consistia, entre outros aspectos,
em uso dos bancos públicos (BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica
Federal) para fomentar a industrialização e o crescimento econômico, uso
da Petrobrás como centro da construção da cadeia produtiva do petróleo,
política de fortalecimento do mercado interno (crédito, aumento real
do salário mínimo, Bolsa-Família e Previdência Social), política externa
autônoma, com ênfase nas relações com América Latina e África. O
programa neodesenvolvimentista foi o desenvolvimentismo possível
dentro do capitalismo neoliberal na periferia do sistema, que contornava
as políticas neoliberais, mas não as eliminava. Vários projetos do capital
estrangeiro e da burguesia associada foram contrariados e adiados, em
particular a descoberta e a forma estabelecida para a exploração do pré-sal
contrariou profundamente o imperialismo e a burguesia associada.
Contudo, a crise mundial do capitalismo iniciada em 2008 abalou
o programa neodesenvolvimentista, que passou a ter diculdades de
implementação. A desaceleração econômica começou no primeiro Governo
Dilma e foi reforçada por políticas econômicas de desonerações scais e pelo
ajuste scal no início do segundo governo, transformando-se em recessão
econômica (BASTOS, 2017). Nesse contexto nacional e internacional de
crise do capitalismo, a burguesia associada e o imperialismo recuperaram
o protagonismo político e voltaram ao ataque, incentivando, patrocinando
e redirecionando as manifestações populares de 2013 (originalmente
contrárias aos reajustes das tarifas do transporte público) contra o Governo
Dilma e o PT, tendo como mote central a denúncia da existência de
corrupção generalizada no governo.
Tanto o centro quanto a periferia do sistema capitalista foram
afetados pela crise mundial, o que promoveu maior concentração de renda
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
174 |
e de propriedade, aumento do desemprego estrutural e da precarização
do trabalho, crescimento da pobreza e grandes movimentos migratórios.
Como consequências se generalizaram incertezas e instabilidades, que
levaram a sentimentos de insegurança, medo e ódio e ressentimentos em
relação aos “outros”.
A História mostra que esse tipo de conjuntura econômico-social
e política é o ambiente em que prosperam e são difundidos ideologias,
movimentos políticos, líderes e governos de extrema direita, como o
fascismo. Esse movimento político-ideológico, como também nos monstra
a História, alimenta-se e se desenvolve especialmente em momentos de
crise do capitalismo (desemprego, queda da renda, precarização do
trabalho e pobreza, ou seja, piora das condições de vida do povo). Assim, a
ascensão de movimentos de extrema-direita mundo afora e a crise global do
capitalismo eclodida em 2008 não são fenômenos díspares, como apontam
estudos sobre a nova direita no Brasil e na América Latina e sobre os think
tanks neoliberais, como a Fundação Atlas (CHALOUB; PERLATTO,
2016; LOWY, 2015; PUGLIA, 2018; SOLANO, 2018; VELASCO E
CRUZ; KAYSEL; CODAS, 2015).
No Brasil, a crise criou as condições para a ruína do programa
neodesenvolvimentista e o consequente abandono da grande burguesia
interna como base de sustentação do governo. Assim, a grande maioria das
frações da burguesia se opôs ao governo Dilma, uma vez que este se mostrava
incapaz de superar a crise econômica. O golpe de Estado de 2016, apoiado
pela burguesia em seu conjunto, foi predominantemente uma ação do
imperialismo e da burguesia associada que voltaram ao ataque para eliminar
de vez o programa neodesenvolvimentista e restaurar as políticas neoliberais
a serem implementadas pelo Estado brasileiro, de modo a ir ao encontro
de seus interesses (BOITO JR, 2018)
5
. Esse foi o caráter do governo de
Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro/PMDB,
entre 2016 e 2018, junto com uma política de austeridade. Embora o
golpe de Estado tenha sido uma conuência de vários interesses, deu
5
Monteiro (2018) e Fuser (2018) apontam o patrocínio dos EUA em outros golpes de Estado recentes na
América Latina: Honduras em 2009 e Paraguai em 2012. Assim como Bandeira (2013) descreve histórica e
atualmente os procedimentos de regime change da política externa estadunidense em dezenas de países.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 175
voz, sobretudo, a uma nova direita no Brasil, e a crise econômica criou
as condições econômico-sociais para o seu desenvolvimento, em especial
parindo o que chamamos de neofascismo. A ascensão do neofascismo no
Brasil pode ser considerada então resultado em boa parte de uma ofensiva
da burguesia associada, como argumenta Poulantzas (1978).
O neofascismo no Brasil, paralelamente a sua articulação
internacional, é um movimento político originado na alta classe média
(o que Poulantzas consideraria a pequena burguesia), que esteve de fora
do programa neodesenvolvimentista, impactada pela crise econômica e
pela crise política, esta oriunda das denúncias de corrupção no governo
propagadas pela grande imprensa.
O movimento tomou corpo nas manifestações pela deposição do
governo Dilma a partir da vitória deste nas eleições de 2014, levando à
frente a palavra de ordem “Fora PT”. O neofascismo pode ser caracterizado
da seguinte forma. Em primeiro lugar, é uma retomada de programas e
ideologias de períodos passados (Itália fascista e Alemanha nazista), em
uma etapa histórica nova, o capitalismo neoliberal globalizado (BOITO
JR, 2019)
6
. Ademais é caracterizado por: deslegitimação da política e do
Estado democrático de direito; reacionarismo moral e cultural (culto às
tradições), associado a um messianismo político; valores individualistas
(neoliberais) resumidos no binômio empreendedorismo-meritocracia,
contrários às políticas sociais e aos direitos trabalhistas; anticomunismo
histérico, rememorando o período da Guerra Fria e forjando um clima
articial de “ameaça comunista” (identicada com o PT); e um nacionalismo
vazio, (retórico e abstrato), declarado apenas na valorização de símbolos
O neoliberalismo é um programa político e econômico surgido para eliminar o Estado de bem-estar social nos
países centrais e o desenvolvimentismo nos países periféricos, como forma de restaurar o poder da burguesia.
Após sucessivas perdas dessa classe desde o m da Segunda Guerra Mundial, frente à melhoria das condições de
vida do proletariado, as burguesias dos países centrais se aproveitaram das crises do capitalismo da década 1970
e impuseram tal programa aos Estados nacionais. Em muitos destes, a fração burguesa orientada pelo programa
neoliberal se tornou hegemônica. Uma das grandes consequências desse processo foi uma nova onda de
internacionalização/mundialização do capital, implementada a partir da extinção do Acordo de Bretton Woods,
e caracterizada por uma nova reestruturação produtiva global (tecnológica e organizacional) e de um processo
de nanceirização do grande capital – que se espraiou mundo a fora, recongurando os blocos no poder. Na
prática, o programa neoliberal signica desregulamentação nanceira, abertura comercial, privatizações, ataque
aos direitos trabalhistas e redução dos investimentos em política social. Nos países periféricos, o programa
neoliberal é o mais adequado para atender os interesses do imperialismo e da burguesia associada. (DUMÉNIL;
LÉVY, 2007; HARVEY, 2005).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
176 |
nacionais, como a bandeira e hino. O movimento ainda é conduzido
pela cruzada anticorrupção, política e seletivamente dirigida contra forças
de esquerda (e no limite a eliminação da esquerda) cujos agentes são as
instituições do próprio Estado (lawfare): o Judiciário (juízes, promotores
e procuradores), o Ministério Público (procuradores) e a Política Federal
(delegados e agentes), incutidos de uma missão (irrealizável no capitalismo)
autodelegada, moral e salvacionista: acabar com a corrupção no país. Pode-
se acrescentar ainda a mobilização política de massa, com a constituição
de um movimento ativo, agressivo e, no limite, violento (BOITO, 2019;
FILGUEIRAS; DRUCK, 2018, 2019).
Após a quarta vitória do PT nas eleições presidências de 2014 e a quarta
derrota do PSDB, tradicional aliado do imperialismo e representante da
burguesia associada, estes, ainda diante da possibilidade da candidatura de
Lula para 2018 e 2022, promoveram a aliança com o crescente movimento
neofascista, contra as políticas dos governos do PT. O capital internacional
e a grande burguesia brasileira associada conscaram esse movimento de
classe média para, no caso do capital estadunidense e dos segmentos da
grande burguesia brasileira a ele associados, perlar o Estado e a economia
brasileira ao lado dos Estados Unidos.
Dessa forma, desde o governo Temer, o conteúdo da política externa,
da política econômica e da política social do Estado brasileiro prioriza os
interesses do grande capital internacional, principalmente o estadunidense,
e dos segmentos da burguesia brasileira a ele associados, e atende também,
embora secundariamente, outros segmentos da burguesia brasileira,
dinâmica que continua no governo Bolsonaro, eleito em 2018. Portanto,
são o imperialismo e a burguesia brasileira associada principalmente que
ocupam o poder de Estado, a hegemonia do bloco no poder. A eleição
de Jair Bolsonaro para presidência da república solidica a aliança entre
a burguesia associada e o imperialismo com o movimento neofascista,
um movimento ativo que forma um governo cuja chea está entregue ao
principal representante desse movimento, o atual presidente da república
7
(BOITO JR, 2019).
7
Os principais motivos do emprego do prexo “neo” em neofascismo são: a retomada de programas e ideologias
de períodos anteriores na etapa histórica do capitalismo neoliberal globalizado e o fato que esse movimento,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 177
Assim, em 2019 existe uma nova hegemonia, a hegemonia do capital
internacional e dos segmentos da burguesia brasileira a ele associados. A
burguesia interna, que foi a fração hegemônica nos governos do PT, sofreu
derrotas e foi deslocada para uma posição subordinada no interior do bloco
no poder. Nesse caso brasileiro, histórica e atualmente, o central do processo
político são os conitos entre frações da burguesia – burguesia associada e
capital internacional versus a burguesia interna – e, na conjuntura hodierna,
ocorre intervenção política massiva de uma classe social intermediária – a
alta classe média.
Se há uma nova hegemonia no bloco no poder brasileiro, igualmente
parece haver uma nova forma de Estado, decorrente da ocupação do
movimento neofascista no aparelho de Estado, de caráter autoritário.
Pois a política de segurança pública do governo pretende suspender,
arbitrariamente, garantias constitucionais; o Ministério Público incorre
em ilegalidades no processo penal para a punição exemplar e espetacular da
corrupção – preferencialmente quando tal prática puder ser imputada às
empresas nacionais e à centro-esquerda representada pelo PT; e o executivo
denuncia como “a velha e corrupta política” a atividade praticada no
Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, condenando assim
a própria democracia burguesa; entre outros. A democracia burguesa
brasileira, então, vive dias de deterioração, em que brotam tendências à
ditadura fascista.
considerações finais
A partir das contribuições de Poulantzas sobre o fascismo podemos
fazer algumas considerações sobre a atual conjuntura política no Brasil.
A frente neodesenvolvimentista, hegemonizada pela burguesia interna e
organizada partidariamente pelo Partido dos Trabalhadores, representou
tanto o deslocamento da burguesia associada e do imperialismo para um
segundo plano no bloco no poder brasileiro quanto à ascensão de lutas da
classe trabalhadora que conquistou direitos e maior parte na distribuição
que ocupa o poder executivo, implementa uma política neoliberal, a favor dos interesses do imperialismo e da
burguesia associada.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
178 |
da riqueza. A ofensiva contra tal ascensão aconteceu em decorrência da
crise econômica e representou uma crise política, desencadeada em duas
frentes.
A primeira frente foi a ofensiva da grande burguesia associada e
do imperialismo para restaurar sua hegemonia e o programa neoliberal,
patrocinando partidos e movimentos de direita que militaram para a
deposição do governo Dilma via golpe de Estado. A outra frente foi a
ofensiva da classe média/pequena burguesia, cujos funcionários do Estado
– a operação Lava Jato do Ministério Público – apoiados pela grande
imprensa instrumentalizaram a bandeira de combate à corrupção para ns
políticos: derrotar os governos do PT e sobretudo a ascensão das lutas
populares.
O resultado disso foi a prisão do ex-presidente Lula, o que lhe tirou
da corrida eleitoral. Apesar de não constituir um partido de massa, essa
força social da classe média/pequena burguesia agiu massivamente nas
redes sociais para angariar milhões de correligionários, com uma campanha
baseada no perigo que o PT e a corrupção desse partido representavam
para a sociedade brasileira, para transformar o Partido Social Liberal (PSL)
no segundo maior partido da Câmara dos Deputados e por esse mesmo
partido eleger Bolsonaro. Ainda que não tomemos o processo de fascização
exatamente como Poulantzas o considera, uma vez que esse fenômeno
adquire novas formas históricas e novas roupagens, é possível argumentar
que a eleição de Bolsonaro signica a ação da força social fascista oriunda
da classe média/pequena burguesia para reorganizar o bloco no poder
sob hegemonia da burguesia associada e do imperialismo, sem perder
os vínculos com as massas populares que o elegeram. Entretanto, o
programa neofascista que Bolsonaro e seus correligionários representam
não agradam completamente os interesses do grande capital e atritos
entre eles já começam a ser notados. Por outro lado, forças democráticas
da direita e da esquerda brasileiras, diante do perigo do neofascismo para
diversos setores as sociedade, começam a se organizar em frente ampla
contra o governo. Parece-nos então que o ponto de irreversibilidade sobre
o qual escreve Poulantzas ainda não foi atingido e por essa razão é que não
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 179
estão descartadas ações mais impetuosas do próprio governo em direção a
medidas autoritárias e, de fato, ao Estado fascista.
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C 8
I,  
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Marcelo BUZETTO
1
introdução
Este artigo tem como objetivo principal analisar um conjunto de ideias
profundamente conservadoras e antidemocráticas que são responsáveis
por ações políticas e militares cujo resultado, ao longo dos séculos, foi a
criação de regimes e governos acusados de apartheid, de limpeza étnica e de
genocídio. Imperialismo, sionismo e wahhabismo atuam conjuntamente
na região conhecida como Oriente Médio (Ásia Ocidental), e o principal
exemplo de intolerância e extremismo dessas ideologias e doutrinas se
manifestou na operação planejada de destruição da República Árabe Síria.
Desde a origem da propriedade privada, do Estado e das classes
sociais, a violência tornou-se um método sempre utilizado pelas classes
Marcelo Buzetto é Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e realizou Pós-Doutorado em Ciência Política
na Faculdade de Filosoa e Ciências da Unesp. Membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais
NEILS/PUC-SP. Presidente do Instituto de Estudos sobre Geopolítica do Oriente Médio (IGEOP) e integrante da
Secretaria de Relações Internacionais do Movimento Sem Terra (MST). https://orcid.org/0000-0001-9796-484X.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p181-210
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dominantes para assegurar seus privilégios e seu poder econômico e político.
Os impérios ou potências regionais também se utilizaram da violência
através das guerras pela conquista de novos territórios. Com o surgimento
do modo de produção capitalista cria-se um verdadeiro mercado mundial,
e a internacionalização das relações de produção, dos conitos sociais e das
diferentes formas de luta pelo poder torna-se uma realidade.
Tal processo de expansão mundial sempre foi desigual e contraditório,
criando uma Divisão Internacional do Trabalho baseada na exploração
da maioria de povos e nações por um punhado de potências capitalistas
industrializadas. O capitalismo, desde sua origem, sempre teve como uma
característica intrínseca ao seu processo de expansão mundial a violência, a
intolerância, o genocídio de populações nativas. O capitalismo comercial
nasce criando o Sistema Colonial, e o colonialismo produziu milhões de
vítimas em todo o planeta. Todo tipo de colonialismo resultou nas mais
cruéis formas de dominação e opressão já conhecidas pela humanidade.
O capitalismo industrial vai aperfeiçoar esse método de uso da violência
extrema contra povos e nações que insistem em se rebelar diante da
imposição de relações sociais e econômicas que atendem aos interesses
do grande capital europeu ocidental. Com o capitalismo nanceiro em
expansão, entre o nal do século XIX e início do século XX, temos a
multiplicação de conitos, de guerras, de rebeliões e de revoluções, entre
elas as guerras interimperialistas, pela disputa dos mercados, dos territórios
considerados estratégicos e dos recursos naturais. Consolida-se, nesse
período, o neocolonialismo ou imperialismo.
Consideramos que o imperialismo, assim como o sionismo e o
wahhabismo, são três interpretações da realidade econômica, política,
social e cultural que serão transformadas em ação política e em referência
na análise e condução da política externa e da política internacional, tanto
por organizações, grupos e partidos políticos, como por governos de
determinadas nações. O que imperialismo, sionismo e wahhabismo tem em
comum? São um conjunto de ideias que se transformaram numa corrente
do pensamento contemporâneo que inuencia as relações internacionais.
Além disso, tornam-se aliados nos assuntos que tratam da política regional
no chamado “Oriente Médio” e entorno. Também seus métodos para a
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 183
conquista de territórios e resolução de conitos são os mesmos, e em muitos
casos, atuam de maneira conjunta e coordenada, visando enfraquecer,
desestabilizar ou eliminar aqueles indivíduos, organizações ou governos
considerados uma ameaça a seus interesses estratégicos numa determinada
região do planeta.
A atuação conjunta e coordenada de forças políticas e militares
imperialistas, sionistas e wahhabistas na República Árabe Síria, nos últimos
dez anos, podem conrmar essa contundente armação. A Síria tem sido
vítima da maior agressão externa já praticada nesse início de século. São
dez anos de ataques cotidianos de uma coalizão político-militar liderada
pelo governo dos Estados Unidos da América (EUA), com apoio de
seus aliados: Inglaterra, França, Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes
Unidos, Jordânia, Turquia e Israel (BUZETTO, 2019a, p. 13-14). Entre as
organizações internacionais que deram apoio à guerra contra a Síria temos:
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), União Européia,
Conselho de Cooperação do Golfo e Liga Árabe. Aliados a estes países
e organizações estão uma variedade de grupos terroristas, que atuaram
principalmente entre o Iraque e a Síria, recebendo armas e munições,
apoio nanceiro e logístico, informações estratégicas e apoio de exércitos
regulares, como a ação das Forças Armadas de Israel, EUA e Turquia. Todos
os países citados, de alguma maneira, contribuíram para o nascimento e
sustentação de organizações terroristas como o Estado Islâmico do Iraque
e Síria (ISIS), o Exército Livre da Síria (FSA) ou a Frente Al-Nusra (agora
chamada de Jabhat Fateh al-Sham), entre outras.
O pensamento imperialista, sionista ou wahhabista tem uma
interpretação da realidade muito inuenciada pela intolerância e pelo
racismo. O pensamento imperialista elaborou argumentos justicando a
escravização, o colonialismo e a violência contra povos que não aceitavam
ser oprimidos por determinada potência industrial-capitalista.
O pensamento sionista procura justicar o direito dos judeus
europeus-ocidentais de colonizar a Palestina, tendo como objetivo a
expulsão dos árabes dessa pátria ocupada, através da implantação de um
regime baseado no apartheid, na limpeza étnica, no racismo e no genocídio.
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O pensamento wahhabista faz parte do conservadorismo desenvolvido
no mundo árabe e no mundo islâmico, com uma interpretação muito
particular e equivocada dos fundamentos da religião criada pelo Profeta
Maomé. Sua inuência está presente na construção da Arábia Saudita e
outras monarquias árabes, bem como em organizações terroristas como
Al-Qaeda e ISIS.
Os wahhabistas sempre estiveram na vanguarda da luta contra o
comunismo e contra o nacionalismo árabe/nasserismo/pan-arabismo. E,
desde 1979, também estabelecem como um dos inimigos principais o
governo da República Islâmica do Irã, que adotou essa denominação após
um referendo popular com intensa participação de todos os segmentos
da sociedade. Governos e organizações wahhabistas se tornaram o aliado
ideal do imperialismo britânico, estadunidense e europeu-ocidental,
que sempre buscou cooptar lideranças da elite/burguesia em toda a Ásia
Ocidental (Oriente Médio). Nos últimos vinte anos se destacaram pela
desestabilização de países como Afeganistão, Iraque, Síria e Iêmen. Seus
alvos principais são muçulmanos xiitas, cristãos, curdos, yazidis, sus,
considerados “inéis” que impedem a constituição do “Califado Islâmico”.
Interessante notar que a atuação desses grupos e organizações terroristas
inuenciadas pelo wahhabismo sempre adquire projeção em nações cujos
governos entram em conito com os interesses estratégicos e geopolíticos
dos EUA, França, Inglaterra ou seus aliados regionais. Não temos atentados
terroristas wahhabistas ocorrendo na Turquia, na Arábia Saudita, no
Qatar, nos Emirados Árabes Unidos, em Omã ou em Israel, que poderia
ser um alvo prioritário, já que é a mais perfeita representação dos valores
ocidentais e anti-islâmicos na região da Ásia Ocidental, tendo ocupado
militarmente cidades onde estão locais sagrados do Islã, como é o caso de
Al-Quds (Jerusalém) e Al-Khalil (Hebrom), na Palestina.
Portanto, identicamos um vínculo muito forte entre essas três
expressões de um pensamento conservador, antidemocrático e racista,
que se utiliza do colonialismo, da guerra de conquista e do terrorismo
para impor seus interesses econômicos e políticos a um grande número de
povos e nações oprimidas.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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imPerialismo e relações internacionais: a Guerra de conquista
e a violência como instrumentos da acumulação de caPital
A guerra sempre fez parte da política expansionista dos países
imperialistas, pois o controle dos recursos naturais e de um determinado
território sempre teve um papel estratégico na luta de classes e na luta
entre as nações opressoras e as nações oprimidas. Desde o nal do século
XIX, o processo de desenvolvimento e expansão mundial do capital e do
capitalismo fez com que a guerra se transformasse numa das principais
formas de acumulação de capital para a classe dominante das potências
capitalistas centrais, principalmente para a classe dominante da potência
hegemônica do momento.
Além disso, as potências capitalistas da época precisavam de novos
mercados consumidores para seus produtos industrializados. A África, a
Ásia e a América Latina serão territórios disputados através de guerras de
conquista, guerras civis ou golpes militares com a participação direta ou
indireta do capital e dos exércitos imperialistas.
Preocupados em compreender as desigualdades do desenvolvimento
mundial do capitalismo, alguns autores marxistas, como Rosa Luxemburg,
Nicolai Bukhárin e Vladimir Lênin - vale lembrar que não eram os únicos
- procuraram dar mais consistência à explicação sobre a fase imperialista do
capitalismo. Os teóricos críticos do imperialismo também se esforçavam
para destacar o papel do militarismo e da guerra como formas de acelerar o
processo de acumulação de capital da classe dominante dos países centrais.
Um exemplo disto são os textos de Rosa Luxemburg, onde a mesma arma
que o militarismo
[...] desempenhou papel decisivo na conquista das colônias
modernas, na destruição das comunidades sociais das sociedades
primitivas e na apropriação de seus meios de produção, na
imposição violenta do comércio aos países cuja estrutura social
constituía um obstáculo à economia mercantil, na proletarização
forçada dos nativos e na instituição do trabalho assalariado nas
colônias, na formação e extensão de áreas de inuência do capital
europeu (europeu em regiões não-europeias), na imposição de
concessões de ferrovias a países atrasados, na execução das dívidas
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
186 |
resultantes de empréstimos internacionais do capital europeu e
nalmente como instrumento da concorrência entre os países
capitalistas visando a conquista de culturas não-capitalistas.
(LUXEMBURG, 1985, p. 311).
Será possível desconhecer que o militarismo tem realmente um papel
decisivo no processo de expansão mundial do capitalismo? Se observarmos
os séculos XX e XXI, com certeza diremos não, pois o militarismo e a
guerra sempre se zeram presentes. São vários os exemplos: Cuba,
Nicarágua, Panamá, Granada, Haiti, intervenções e golpes patrocinados
pelo governo dos EUA, ingleses e franceses disputando o Oriente Médio,
europeus partilhando a África, franceses na Indochina e na Argélia, ingleses
na China e na Índia, estadunidenses na Coreia e no Vietnã, guerras nos
Balcãs, duas Guerras Mundiais, criação do Estado de Israel e Guerra na
Palestina, guerra no Golfo Pérsico/Arábico, invasões dos EUA e OTAN
no Afeganistão, Iraque e Líbia, guerra total contra a Síria, novo ciclo de
golpes em Honduras, Paraguai, Brasil e Bolívia, etc. São todos exemplos
concretos de integração - através de intervenções militares - de regiões e
países à lógica do mercado mundial capitalista e das grandes potências
imperialistas. A política externa imperialista sempre foi acompanhada pela
violência, pelo extremismo, pela intolerância e pela realização, a qualquer
custo, dos objetivos estabelecidos.
Em A economia mundial e o imperialismo (1988), Bukhárin analisa o
papel das guerras no processo que ele qualica de “internacionalização do
capital”. Arma que “a guerra é um meio de reprodução de certas relações
de produção”, e “a guerra de conquista é um meio de reprodução ampliada
dessas relações”. (BUKHÁRIN, 1988, p. 05).
Outro autor que cou bastante conhecido por estabelecer relações
entre a política externa imperialista e a guerra foi Vladimir I. Lênin. Em
seu livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, ele destaca as principais
características desta fase do capitalismo: 1. a concentração e centralização
do capital, gerando com isso os monopólios e oligopólios; 2. fusão entre
o capital bancário e o capital industrial, resultando no surgimento do
capital nanceiro e de uma oligarquia nanceira; 3. além da exportação de
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 187
mercadorias, ganha importância a exportação de capitais; 4. formação de
uniões internacionais monopolistas de capitalistas que dividem o mercado
mundial entre si; 5. partilha territorial do planeta entre as maiores potências
capitalistas (LENIN, 1988, p. 88). Portanto, de acordo com Lênin:
[...] o imperialismo é o capitalismo chegando a uma fase de
desenvolvimento onde se arma a dominação dos monopólios
e do capital nanceiro, onde a exportação dos capitais adquiriu
uma importância de primeiro plano, onde começou a partilha do
mundo entre os trusts internacionais e onde se pôs termo à partilha
de todo o território do globo entre as maiores potências capitalistas.
(LENIN, 1988, p. 88).
Não pretendemos desconsiderar as inúmeras transformações que
ocorreram no mundo desde o nal do século XIX e início do século XX,
mas é bastante prudente reconhecer a capacidade destes e de outros teóricos
críticos do imperialismo em identicar as tendências do desenvolvimento
mundial capitalista. Anal de contas, Rosa Luxemburg publicou seu livro
em 1912, Bukhárin em 1915, e Lênin em 1916. Podemos perceber que
as características do imperialismo estão cada vez mais presentes na vida
econômica e nanceira atual, basta observar as constantes e quase diárias
crises nanceiras internacionais, ou então as várias fusões entre empresas e/
ou bancos, constituindo os já apontados monopólios e oligopólios.
Sem dúvida alguma, o século XX foi o século do imperialismo, o
século das guerras imperialistas, onde a população civil foi amplamente
impactada pelas consequências das batalhas e dos acordos que deram m
aos conitos. Decisões tomadas por governos inspirados numa política
externa imperialista causaram genocídios, destruição de casas, bairros, vilas
e cidades, campos de cultivo, hospitais, escolas, pontes, ferrovias e demais
infraestruturas existentes nas regiões atingidas. Milhões de refugiados
surgiram como resultado das novas congurações geográcas e geopolíticas
nas relações internacionais. Entre 1914 e 1991 foram contabilizadas 187
milhões de mortes como resultado das guerras do século XX. Como arma
Emir Sader, somente na Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
188 |
[...] morreram 8 milhões de soldados – o dobro do número de
mortos em guerras nos 125 anos anteriores-, 9 milhões de civis
e, logo depois da guerra, 6 milhões de pessoas morreram pela
epidemia da gripe espanhola. Além disso, 20 milhões de pessoas
caram inválidas, num quadro de vítimas em que, pela primeira
vez em uma guerra, houve mais mortos civis do que militares.
(SADER, 2000, p. 119-120).
O pensamento político imperialista busca justicar a dominação
colonial e neocolonial, através do imperialismo econômico, que controla
a economia das nações, da periferia e semiperiferia, consolida o poder
das grandes corporações transnacionais e envia grandes quantidades de
remessa de lucro para o exterior, para assegurar a acumulação ampliada de
capital para a burguesia dos países centrais, estimulando os monopólios
e oligopólios. Esse pensamento se torna orientação, uma recomendação
e ação, e tem sido muito inuente na denição da política externa, na
diplomacia e nas decisões sobre política internacional, dissimulando
ódio, instabilidade, extremismos de toda natureza e profunda intolerância
com opinião ou posição política que contrarie seus interesses imediatos
ou estratégicos. O imperialismo também tem sua face de dominação
nanceira. O imperialismo nanceiro, através da dívida externa, consegue
manter determinados países numa condição de submissão e subordinação,
impedindo seu livre desenvolvimento econômico e impondo uma política
de “ajuste estrutural” que retira recursos que poderiam ser utilizados em
políticas sociais para que sejam pagos os juros criminosos gerados pelo
processo de endividamento. O pensamento imperialista também leva
nações capitalistas centrais a intervir de maneira contundente nas lutas
políticas internas, interferindo em resultados eleitorais, patrocinando
golpes de Estado, nanciando candidatos e organizações da sociedade,
fazendo desses instrumentos de seus interesses particulares. Essas são ações
desse imperialismo político.
O imperialismo cultural tem sido outro campo de batalha de difusão
desse pensamento conservador e extremista, criando inúmeros meios de
comunicação e uma poderosa indústria do entretenimento, acompanhada
de uma indústria cultural de caráter global, que tem reunido pesquisadores,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 189
professores, escritores, atores, diretores de cinema, artistas de todas as
áreas, rádios, editoras, livrarias, jornais, revistas e as diferentes redes sociais.
Quantos lmes hollywoodianos não retratam de maneira desrespeitosa,
racista e preconceituosa os mexicanos, os povos originários da América do
Norte, os africanos, os chineses, os vietnamitas, os árabes (em especial os
palestinos), etc. Filmes transformados em instrumentos de propaganda das
ideias e valores explicita ou implicitamente pró-imperialistas.
Uma política externa inuenciada por ideias pró-imperialistas
sempre contribuirá para a manutenção de uma profunda desigualdade
entre as nações. Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, em seu
clássico As Veias Abertas da América Latina, arma que:
Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e
a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso.
Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que
ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do
subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse,
a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa
derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza
gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos
outros: os impérios e seus agentes nativos (...) A força do conjunto
do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das
partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada
vez mais dramáticas. (GALEANO, 1978, p. 14).
Essa desigualdade entre as nações é algo próprio da expansão mundial
capitalista em sua fase imperialista, agravada pela internacionalização do
capital a partir de 1991, quando os EUA se aproveitam da situação favorável
para desencadear novas guerras de conquista, aumentar o número de bases
militares e de tropas pelo mundo e, para dar sustentação a essa decisão,
aumentar seu orçamento militar. O Congresso e o Senado dos EUA, com
amplo e massivo apoio e entusiasmo dos parlamentares Democratas e
Republicanos, vão assegurar os recursos necessários para que suas tropas
regulares, a Central de Inteligência Americana (CIA) e outras agências do
governo possam atuar livremente na deposição de governos e destruição
de nações.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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imPerialismo e acordo sykes-Picot (1916): mais de cem anos de
extremismo e terror no oriente médio
Assistimos à continuação de inúmeros conitos e guerras na região
da Ásia Ocidental, também conhecida como “Oriente Médio”. Guerras
convencionais, onde os exércitos nacionais e suas articulações regionais/
internacionais movimentam-se em simultâneos campos de batalha; ou
guerras não-convencionais, guerras híbridas, com organizações político-
militares, milícias, diferentes expressões midiáticas com instrumentos
de propaganda e operações de guerra psicológica, e a crescente presença
dos serviços de inteligência. Um cenário mais complexo que as guerras,
rebeliões e revoluções do século XX (BUZETTO, 2016, p. 169).
Durante a construção do Acordo Sykes-Picot, em 1916, quando os
governos da França e Inglaterra pensavam o futuro diante da possível queda
do Império Turco-Otomano, o capitão William Reginald Hall (chefe da
Inteligência do Almirantado britânico) dizia ao diplomata Mark Sykes:
A força é a melhor propaganda entre os árabes” (HALL, 2008, apud
FROMKIN, 2008, p. 219). Era o contexto de discussão sobre as possíveis
concessões do governo britânico aos árabes, em especial às reivindicações
de Hussein Ibne Ali, Xerife e Emir de Meca entre 1908 e 1924. Era o
momento da construção de uma aliança entre ingleses e lideranças tribais
árabes. O capitão Hall anunciava sua posição de enviar tropas britânicas
para a Palestina e outras regiões, para assegurar os interesses de seu governo
contra as forças políticas e sociais que disputavam os territórios árabes
liberados da dominação turca.
Essa declaração revela uma tragédia anunciada, pois no século XX
e início do século XXI milhares de soldados europeus e estadunidenses
participaram de intervenções militares. Patrocinaram golpes de Estado,
assassinatos de lideranças políticas, de presidentes, estimularam e praticaram
atos terroristas contra a população civil e/ou membros de governos,
inltraram seus agentes em instituições governamentais, empresas e
organizações políticas, sociais, culturais e religiosas, apoiaram veículos de
comunicação. Aliaram seus interesses a grupos/ partidos subordinados a
uma estratégia política de consolidação do poder imperialista no Oriente
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 191
Médio, especialmente nos territórios árabes, e em países importantes para
a geopolítica regional, como a Turquia e o Irã (que não são árabes).
Com o Acordo Sykes-Picot, o imperialismo inglês e francês
inaugura uma era de violência e terror contra a classe trabalhadora e as
massas populares da Ásia Ocidental. Mark Sykes e François Georges-Picot
rmaram um acordo secreto entre Inglaterra e França no dia 16 de maio
de 1916.
Assim nasceu o mapa e a expressão Oriente Médio, fruto de uma
intervenção militar imperialista, com o apoio de setores dirigentes da classe
dominante árabe, lideranças tribais, iludidas pela ideia de uma futura
independência e soberania, e agraciadas pela ampliação de seu poder político
e econômico. Inglaterra assumia o controle da Palestina, Transjordânia e
Iraque, e França do Líbano e Síria. O sonho de independência dos árabes
era interrompido. Para:
[...] seus aliados da família Hussein, Londres ofereceria a Península
Arábica. Os árabes não sabiam disso, pois esperavam criar uma
grande nação, cujo centro seria justamente o Crescente Fértil,
sendo a península um apêndice (...) A Síria e Líbano passaram
a ser Mandato Francês em 1920 e os britânicos, através de seus
Mandatos, colocaram os irmãos Faiçal e Abdallah, lhos de Hussein,
nos tronos do Iraque e da Transjordânia, respectivamente. Na
Península Arábica, o Xerife Hussein de Meca, aliado dos ingleses,
foi derrotado militarmente por seu rival, Ibn Saud, da região e
Nedj. Saud uniu as duas regiões (Hedjaz e Nedj) e expandiu seus
domínios na península, criando, em 1932, um reino que mais tarde
seria denominado Arábia Saudita. (VISENTINI, 2014, p. 8-9).
Algumas lições do Acordo Sykes-Picot: 1. A guerra de conquista,
a violência e o terror são parte indispensável da política colonialista/
imperialista; 2. A força (política, social militar e cultural) é elemento
fundamental para a resolução de conitos na região. Forças políticas e
sociais com projeto estratégico de libertação nacional e/ou pelo socialismo
devem construir pontes e alianças entre partidos, movimentos e governos,
para fortalecer ideias e organizações populares, visando a alterar a
correlação de forças e se contrapor à política imperialista; 3. O pacismo
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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pequeno burguês e idealista não encontra terreno favorável no interior do
Oriente Médio. Mas a defesa da paz deve ter forma e conteúdo, não pode
ser a “paz dos cemitérios”, nem a paz da rendição e derrota das forças
progressistas e populares que lutam contra os interesses das empresas e
governos imperialistas e seus aliados. Muitos governantes falam de paz,
mas pronunciam mais a palavra guerra, como Barak Obama no discurso
do Nobel da Paz (BUZETTO, 2016, p. 170).
O pacismo expresso das resoluções da Organização das Nações
Unidas (ONU) será inecaz, se não existirem condições concretas de
resistência. Líbia e Síria, dois exemplos: para se construir uma nação de
paz, é necessário derrotar as forças que representam o imperialismo e sua
política militarista e intervencionista.
eua/união euroPéia/otan no iraque e no afeGanistão: uma
Política ProGramada de destruição e PilhaGem de nações e
Povos
Entre agosto de 1990 e fevereiro de 1991 explode a Guerra do
Golfo, após o governo de Saddam Hussein ordenar a invasão do Kwait
visando a “recuperar” território que historicamente pertencia ao Iraque.
Acusando a Inglaterra de ter criado um país articial após sua vitória contra
o Império Turco-Otomano (1918), Saddam decidiu resolver uma série de
conitos com a monarquia vizinha através da guerra. Mas, “o imprevisível
e o inesperado fazem parte do cotidiano das guerras e revoluções”, e toda
guerra é acompanhada por certo grau de “incerteza” e “insegurança
(BUZETTO, 2004, p. 56-58) quanto aos seus desdobramentos.
Saddam também acusava o Kwait de atender os interesses do
imperialismo estadunidense-britânico-francês, produzindo mais petróleo,
para derrubar os preços no mercado mundial e atingir economicamente o
Iraque. A invasão do Kwait mobilizou tropas dos EUA, Inglaterra, França,
Arábia Saudita e Kwait contra o Iraque, numa coalizão que promoveu o
maior bombardeio aéreo desde a Segunda Guerra Mundial. EUA, França e
Inglaterra tiveram o apoio do Conselho de Segurança da ONU para forçar
a retirada das tropas iraquianas. O início da batalha aérea demonstrava
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 193
que não bastava exigir a retirada do território do Kwait, mas destruir as
forças armadas iraquianas. O Iraque atacou renarias no Kwait e na Arábia
Saudita, e enviou mísseis Scud contra Israel. As tropas estadunidenses
iniciaram a contra-ofensiva também por terra. Entre 1991 e 2003 o Iraque
foi bombardeado semanalmente pelos EUA e Inglaterra. O bloqueio
econômico contra esta nação árabe e os bombardeios assassinaram cerca
de 1 milhão de habitantes, entre eles 500 mil crianças. Cerca de 100 mil
iraquianos morreram nos ataques de 1991 contra Bagdá. Nessa Guerra
do Golfo, observa-se que o Iraque foi o primeiro país árabe a atacar Israel
(desde 1973) e a supostamente inatingível monarquia pró-imperialista
da Arábia Saudita. O ato de atacar esse país árabe revelou, mais uma
vez, a natureza da política imperialista. Em vez de insistir numa solução
negociada para os conitos, com promoção de diálogos entre as partes
envolvidas, buscando uma paz justa, os sucessivos governos imperialistas
jamais permitem o desenvolvimento de uma saída política e diplomática
quando o que está em jogo são seus interesses econômicos, geralmente
disfarçados de “defesa da democracia” ou dos “direitos humanos”.
Entre 1991 e 1996 a guerra civil no Afeganistão levou ao poder os
Talibans, antigos aliados dos EUA, da Árabia Saudita e do Paquistão na
luta contra as tropas soviéticas, que chegaram ao país em 1978, através
de um acordo de cooperação com o governo do Partido Democrático e
Popular do Afeganistão. Com o m da URSS (1991) e a conquista do
poder em 1996, os Talebans foram reconhecidos pelos EUA. Fizeram
reuniões com o presidente Bill Clinton, que visava a obter aprovação
para um conglomerado de empresas liderado pela Union Oil Company
of California (UNOCAL) construir um conjunto de oleodutos/
gasodutos, entre Uzbequistão-Afeganistão-Paquistão-Mar da Arábia, entre
Afeganistão-Paquistão-Oceano Índico e outro a partir do Turcomenistão
(BANDEIRA, 2014, p. 82).
De 1996 a 2001 aumentam as tropas estadunidenses e da OTAN no
Grande Oriente Médio, e novos conitos desenvolveram-se no Afeganistão.
O misterioso atentado terrorista contra as torres gêmeas do World Trade
Center, em Nova Iorque, e contra a Casa Branca e Pentágono, criaram
as justicativas para mais uma operação militar cuja principal vítima foi
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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a população civil, ou seja, os não-combatentes. O governo dos EUA
criou acusações fantasiosas sobre uma articulação entre Osama Bin Laden
(conhecido aliado dos EUA na luta contra os soviéticos no Afeganistão)
e Saddam Hussein (antigo aliado dos EUA na Guerra Irã-Iraque 1980-
1988, mas desafeto político desde 1991). Outras falsicações foram
incorporadas como verdade absoluta pela mídia empresarial internacional
e até por setores considerados progressistas que queriam evitar “teorias
conspiratórias”. O fato é que “Bin Laden sempre expressou seu ódio por
Saddam Hussein” (FISK, 2007, p. 1410).
Duas impressionantes manipulações midiáticas da história da
comunicação mundial podem ser destacadas: 1. O impacto dos aviões não
derrubou as torres gêmeas. Segundo engenheiros envolvidos na construção
do World Trade Center, os prédios suportariam a colisão. Uma sucessão de
explosões destruiu as colunas de sustentação dos prédios, semelhante a uma
implosão, amplamente conhecida por especialistas da construção civil, e
testemunhada por bombeiros, policiais, trabalhadores do WTC e pessoas
nas ruas, em diversas publicações; 2. Nunca houve um Boing 757 contra
o Pentágono. As imagens das câmaras de segurança não foram divulgadas.
A imagem de um posto de gasolina mostra uma grande explosão, mas
nenhum avião. O mais provável é que tenha sido um míssel contra o
Pentágono. Três livros são fundamentais para se compreender os eventos
de 11 de setembro de 2001: A grande guerra pela civilização: a conquista do
Oriente Médio, de Robert Fisk (2007), Guerra e globalização: antes e depois
do 11 de setembro (2004), de Michel Chossudóvsky, e 11 de setembro de
2011: uma terrível farsa (2003), de ierry Meyssan (2003).
Em março de 2003, foi a invasão do Iraque, seguida do assassinato
do presidente Saddam Hussein. Os EUA tinham na região 225 mil
soldados, 5 porta--aviões, 990 aviões, 150 navios, 900 tanques e milhares
de bombas e mísseis. O Reino Unido contava com 45 mil soldados, 1
porta aviões, 30 navios e 510 tanques (BUZETTO, 2004, p. 56). Saddam
Hussein apresentava-se como uma liderança antiimperialista, mas sempre
foi um personagem repleto de contradições. Entre 1973 e 1980 rmou
acordos com a URSS, mas mesmo os comunistas pró-soviéticos no Iraque
eram perseguidos, presos e assassinados pelas forças do governo. E isso
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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aconteceu antes e após a integração do Partido Comunista Iraquiano à
Frente Nacional Progressista, uma união de partidos liderada pelo Partido
Nacionalista Socialista Árabe (Baath), cujo presidente era Saddam (ALI,
2003, p. 127). Curdos e xiitas também foram alvos da repressão.
As tropas da OTAN foram derrotadas no Afeganistão e no Iraque.
Fracassaram na tentativa de obter o controle da produção e comercialização
de gás e petróleo. Fracassaram também na conquista do território,
indispensável para a colonização/recolonização desses dois países pelas
forças imperialistas da OTAN.
Os povos do Afeganistão e Iraque pagaram um preço altíssimo. Os
dois países invadidos estão hoje mais próximos do Eixo Irã-Rússia-Síria
do que do Eixo EUA-Arábia Saudita-Paquistão. A OTAN promoveu
uma destruição econômica, social, política, militar e cultural, com
consequências humanitárias indescritíveis, sem qualquer disposição de
reparação pelos governos responsáveis por essa tragédia. A ONU sequer
se manifesta sobre algum julgamento por tortura, genocídio ou crimes de
guerra praticados pelas forças da OTAN, mesmo depois de contundentes e
numerosas provas, com fotos e lmagens de soldados praticando violações
de direitos contra prisioneiros e população civil. Nada disso foi suciente
para a ONU levar a OTAN para o Tribunal Penal Internacional.
A impunidade só estimulou a OTAN a reproduzir os mesmos crimes
na Líbia e na Síria. A destruição do Afeganistão e Iraque pelas forças da
OTAN criou as condições favoráveis para o surgimento e desenvolvimento
de grupos e organizações terroristas com os mais distintos interesses,
geralmente nanciados pelas forças da própria OTAN e seus aliados na
região, em especial Arábia Saudita e monarquias árabes, Turquia e Israel.
sionismo e imPerialismo na Palestina: a imPlantação de um
reGime Baseado no aPartheid, na limPeza étnica e no Genocídio
A Palestina é um território de 27.000 km2 que se localiza entre
o Egito, Líbano, Síria e Jordânia, tendo um vasto litoral com saída para
o Mar Mediterrâneo. Pelo sul da Palestina chega-se ao Golfo de Ácaba,
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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que levará qualquer navegante ao Mar Vermelho, Golfo de Áden, Mar da
Arábia, Golfo de Omã e Oceano Índico. Do ponto de vista econômico,
político e militar, sua localização é estratégica. Pelo mapa mundial
desenhado pelos europeus, a Palestina ca no centro do mundo, entre a
África e a Ásia, e bem próxima da Europa. A região também sempre foi
importante rota comercial terrestre e marítima. A Palestina adquire cada
vez mais importância estratégica para o colonialismo europeu à medida
que o capital comercial e industrial inglês e francês necessitam expandir
sua atuação para além das fronteiras nacionais (BUZETTO, 2019, p. 47).
A Palestina é incorporada/integrada pela força da violência
colonialista ao processo de internacionalização do capital, movimento que
se intensica durante o nal do século XIX e os primeiros quarenta anos
do século XX, período de pleno desenvolvimento da Segunda Revolução
Industrial nos países centrais do capitalismo. Importante destacar que,
assim como outros países da Ásia, África e América Latina, a Palestina será
integrada a este processo de maneira submissa, subordinada aos interesses
de potências regionais que passavam por um processo de transição para
o capitalismo (apesar da coexistência com formas pré-capitalistas de
exploração do trabalho e de organização da propriedade) e/ou potências
imperialistas em explícita ofensiva política e militar na região conhecida
como “Oriente Próximo” ou “Oriente Médio”.
Durante o nal do século XIX a Palestina estava sob o domínio
do Império Turco-Otomano. Na Europa e na Rússia cresce o número e
a força de grupos que perseguiam os judeus (“pogroms”). Também nesse
período surge um movimento nacionalista judaico chamado Sionismo,
que adota esse nome em referência a uma colina de Jerusalém (Sion)
onde havia sido construído o Templo de Salomão. Um dos fundadores
do movimento sionista foi eodor Herzl (1869-1904). Herzl nasceu
em Budapeste e estudou em Viena, duas cidades importantes do então
Império Austro-Húngaro. Vinha de uma família de banqueiros, e elaborou
sua concepção nacionalista judaica num livro chamado O Estado Judeu,
publicado em 1896. Em 1897, Herzl e outros adeptos do Sionismo se
reúnem no Io. Congresso Sionista, em Basiléia, na Suíça. Deste encontro
nasce a Organização Sionista Mundial. A resolução nal do Congresso
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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falava da criação de um “lar nacional para os judeus”, algo que já estava
presente no livro de Herzl, apontando a Argentina ou a Palestina como os
locais mais favoráveis para a realização de tal empreendimento. A partir
daí os sionistas correram o mundo para angariar recursos nanceiros e
apoio político para sua proposta. Herzl e seus seguidores vão estabelecer
contatos com os governos da Inglaterra, da Alemanha, com o Império
Turco-Otomano, com banqueiros, industriais e comerciantes judeus e
não-judeus, visando fortalecer a ideia da necessidade de um “lar nacional”.
A comunidade judaica europeia se divide, e nem todos apoiam a ideia
sionista, mas esse movimento consegue o apoio da burguesia judaica e de
setores importantes da burguesia não-judaica europeia.
Em seu livro Herzl já armava sua preferência pela Palestina, que
chamava de “pátria histórica” dos judeus, e dizia que o Estado Judeu seria,
para a Europa, um pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela
avançada da civilização contra a barbárie” (HERZL, 1988, p. 66). Tal
armação comprova o vínculo entre sionismo e imperialismo, pois o objetivo
de Herzl era obter o apoio das potências imperialistas que dominavam o
mundo e, em especial o Oriente Médio, para que a Palestina fosse entregue
a um setor da burguesia judaica e, assim, se transformasse numa fortaleza
militar contra o avanço do nacionalismo árabe e de possíveis movimentos
anti-imperialistas, que cresciam no período pós-Primeira Guerra Mundial,
especialmente como resultado da vitória da Revolução Russa de 1917. Para
uma melhor compreensão do contexto histórico da época, não podemos
menosprezar a inuência e o impacto da Revolução Russa e da construção
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) na política
internacional. Aliado a estes dois importantes acontecimentos históricos, o
surgimento da IIIa Internacional, também conhecida como Internacional
Comunista (1919-1943), contribuiu para alterar a correlação de forças
no mundo oriental. São de conhecimento público as preocupações do
imperialismo europeu-ocidental e estadunidense com o aparecimento dessa
nova força política, militar e cultural com apoio e inuência não só na Ásia,
mas em todo o planeta. A URSS reuniu 15 repúblicas: Rússia, Ucrânia,
Bielo-Rússia, Uzbequistão, Cazaquistão, Geórgia, Azerbaijão, Lituânia,
Moldávia, Letônia, Quirguistão, Tajiquistão, Armênia, Turcomenistão e
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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Estônia. Nas suas fronteiras estavam nações onde os interesses geopolíticos
da França, da Inglaterra e dos EUA se faziam presentes, seja através de
acordos militares, compra de armas e equipamentos da indústria bélica, ou
através de apoio diplomático e tratados comerciais. No entorno da URSS
estavam Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão, China, Mongólia, Coréia
e Japão. Além de países europeus como Finlândia, Noruega, Polônia,
Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária. Entre 1917 e 1921 Lenin
e a IIIa Internacional acreditavam que os povos do Oriente estavam vivendo
uma situação - em muitos casos - revolucionária, ou seja, favorável ao início
de um processo de luta eminentemente anti-imperialista e anticapitalista,
que se deslocava rapidamente dos países centrais para os chamados países
coloniais, semicoloniais e dependentes” (BUZETTO, 2003, p. 59).
É possível observar que a cada dia aumentava a necessidade dos
países centrais do capitalismo de dominar, pela força militar, política e/ou
econômica, essa parte do mundo. Esta expansão imperialista rumo aos povos
orientais aparece como exigência fundamental do processo de acumulação
ampliada do capital em escala mundial. O que ca evidente nesse debate
leniniano sobre a questão nacional (realizado no interior da Internacional
Comunista) é que, nas fronteiras da URSS, em especial na Ásia, palavras
como o “direito das nações à autodeterminação, independência nacional,
libertação nacional” assumem - ou melhor, poderiam assumir - um caráter
proletário e anticapitalista. A expansão do comunismo – “movimento
comunista internacional” - e a força cultural e política do islamismo
tornam-se o centro das preocupações de diplomatas, generais e estrategistas
imperialistas que se dedicavam ao estudo da conjuntura política na Ásia
Ocidental. Portanto, o sionismo é uma corrente política nacionalista
judaica que serviu como linha auxiliar do colonialismo/imperialismo
desde o seu nascimento até seu ápice, que ocorre com a criação do
Estado de Israel, cinquenta e um anos depois da fundação da Organização
Sionista Mundial. De 1948 até os dias atuais deixou de ser somente a linha
auxiliar do imperialismo no mundo árabe e no mundo muçulmano. O
sionismo tornou-se a vanguarda, a linha de frente, a tropa de choque
dos EUA, França e Inglaterra na confrontação com qualquer movimento
de caráter antiimperialista, seja de natureza comunista ou islâmica.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 199
Todo e qualquer pensamento sionista torna-se, inevitavelmente, nas lutas
políticas e sociais, uma posição pró-colonialista, pró-imperialista, que vai
buscar justicativas para a política racista de apatheid, genocídio e limpeza
étnica conduzida por todos os governos do “Estado de Israel” contra os
palestinos. O sionismo e sua entidade política vão manter uma aliança
estratégica com EUA, OTAN e União Europeia para vigiar/monitorar,
perseguir/reprimir, isolar ou mesmo eliminar/destruir qualquer partido,
movimento, liderança, organização ou governo que seja considerado uma
ameaça aos interesses desse conjunto de forças que tem dado sustentação
política, diplomática e militar a Israel desde a sua criação.
Com a derrota do Império Turco-Otomano na Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), França e Inglaterra invadem o Oriente Médio e
dividem entre si a região, cando a Palestina sob o domínio britânico de
1918 a 1948. Nesse período o movimento sionista está consolidado, e
sua ambição de construir um “lar nacional para os judeus” na Palestina
ganha ainda mais apoio, principalmente após o massacre de judeus pelos
nazistas na Europa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Criam-se,
então, as condições favoráveis para a realização da profecia que Herzl e
seus seguidores elaboraram em 1897: criar o “Estado Judeu” em cinquenta
anos (BUZETTO, 2019, p. 48). Durante vários séculos os judeus haviam
passado por um processo de assimilação, ou seja, haviam se integrado
na comunidade nacional de vários países. Trabalhavam, estudavam,
participavam da vida política, econômica, social e cultural de onde
viviam, e muitos também se envolviam nas lutas por justiça, democracia,
igualdade e em defesa dos trabalhadores contra a exploração do capital
e do capitalismo. O Movimento Sionista divide a comunidade judaica
e vai iniciar uma propaganda em defesa de um nacionalismo burguês
conservador e com um conteúdo racista e antidemocrático. Basta ver a
proposta de organização política do Estado Judeu defendida por Herzl. Diz
ele: “Considero a monarquia democrática e a república aristocrática como as
mais belas instituições políticas (...) Sou amigo convencido das instituições
monárquicas porque elas tornam possível uma política permanente e
representam o interesse ligado a conservação do Estado de uma família
historicamente ilustre, nascida e educada para reinar” (HERZL, 1998, p.
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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111-112). Sua posição elitista e antidemocrática considera “o referendum
como absurdo, pois, em política, não há questões simples que possamos
resolver por um sim ou por um não. Aliás, as massas são ainda piores do
que os parlamentos (grifo nosso) (...) Diante de um povo reunido, não
podemos fazer nem política exterior nem política interior (...) A política
deve ser feita do alto” (HERZL, 1998, p. 112).
Apesar de existirem diversas correntes políticas no interior do
próprio sionismo, as posições políticas que se tornaram hegemônicas ao
longo do século XX foram as mais conservadoras e pró-imperialistas. Essa
ideologia conservadora serviu de base para a instauração do “Estado de
Israel”. No interior do sionismo existiram expressões ideológicas de um
certo “socialismo étnico-utópico” (YANNI, 2019, apud BUZETTO,
2019, p. 22), mesmo esses acabaram ertando com o colonialismo/
imperialismo, criando partidos adeptos do Trabalhismo ou da Social-
Democracia europeia, muitos liados à Internacional Socialista (chamada,
pelos comunistas, de herdeira dos reformistas da IIo Internacional), que
sempre apoiou a criação do Estado de Israel. Ao chegar ao governo, essa
autointitulada “esquerda sionista” tornou-se mais um algoz do povo
palestino.
Em vários países do mundo (incluindo o Brasil), no interior da
comunidade judaica, essa força política que se autodenomina “esquerda
sionista” são uma minoria que se transformou na face simpática e
politicamente correta” do sionismo. Cumprem um papel importante
para o Estado colonialista israelense, pois são instrumentos voluntários de
propaganda da ideia de que “Israel é a única democracia no Oriente Médio”.
Compreender o conteúdo racista, colonialista e conservador do
sionismo é fundamental para que possamos explicar a posição atual
do governo de Israel em relação ao povo palestino. Três ideias foram
fundamentais para convencer milhares de judeus a emigrar para a
Palestina: 1) que a Palestina era uma “terra sem povo” e os judeus eram
um “povo sem terra”; 2) que a Palestina é a “pátria histórica” dos judeus;
3) que os judeus são o “povo eleito” por Deus. Esse fundamentalismo
judaico-sionista estimulou a utilização de métodos violentos para expulsar
as comunidades não-judaicas das terras da Palestina. Essas ideias zeram
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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com que banqueiros e grandes empresários judeus contribuíssem para a
criação da Companhia Judaica, empresa de colonização com o objetivo
de comprar terras para instalar colônias judaico-sionistas na Palestina.
Durante os anos 20 e 30 do século XX o crescimento dessas colônias deu
início a uma série de conitos entre judeus sionistas e árabes-palestinos.
Nos anos 40 o movimento sionista começa a organizar grupos terroristas
como o Irgun, Stern e Haganah, que fazem ações armadas e atentados
contra a população árabe-palestina, com a intenção de intimidá-los e fazer
com que abandonem seus lares, suas propriedades e suas aldeias.
O Sionismo se organiza de diversas maneiras: 1) politicamente: através
de várias organizações nacionais e internacionais que visam buscar apoio
político de governos para seu projeto colonialista; 2) economicamente:
buscando recursos nanceiros de empresários e banqueiros judeus e
não-judeus para a instalação de colônias na Palestina; 3) militarmente:
organizando grupos terroristas/paramilitares para espalhar o pânico entre a
população árabe-palestina, grupos que, depois de 1948, se transformam nas
Forças Armadas de Israel; 4) culturalmente: através da difusão, pela indústria
cultural, de ideias que buscam justicar a dominação territorial da Palestina e
o direito “histórico e sagrado dos judeus” de ocupar aquela região.
A grande vitória do sionismo foi a criação do Estado de Israel,
em 1948, e seu reconhecimento pela ONU, em 1949, apesar de vários
massacres cometidos pelo recém-criado Exército de Defesa de Israel contra
a população civil palestina, e a consequente destruição de suas vilas e
aldeias, o que causou a tragédia dos refugiados. Em dezembro de 1949 já
existiam 750 mil famílias de refugiados palestinos. O chamado “Estado de
Israel”, uma entidade política sionista, tem se destacado como o país que
mais violou as regras e tratados do direito internacional, desrespeitando
inúmeras resoluções da ONU e tornando como alvos de seus ataques a
população civil, seja em Gaza, em Jerusalém ou em qualquer outra parte
da Palestina ocupada. Se na história da constituição da entidade sionista
conhecida como “Israel” é evidente os vínculos desse colonialismo com o
imperialismo britânico, francês e estadunidense, a novidade desde os anos
setenta e oitenta do século XX é a aproximação e a consolidação de laços
de cooperação entre o sionismo e o governo wahhabista da Arábia Saudita,
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seja na luta contra a República Islâmica do Irã, após fevereiro de 1979, ou
na guerra contra a República Árabe Síria, desde 2011.
o WahhaBismo: uma doutrina estimuladora do ódio e da
intolerância
A mídia empresarial ocidental divulgou amplamente as imagens
da ocupação de territórios do Iraque e da Síria por milícias formadas por
membros do Estado Islâmico do Iraque e Síria (ISIS). Em cada vila ou
cidade dominada por essa organização terrorista tinha início uma intensa
perseguição contra cristãos, muçulmanos xiitas ou sustas, curdos, yazidis
(uma comunidade étnico-religiosa curda) e qualquer outra pessoa ou
comunidade considerada como “inel” ou “traidores do islã”. Também
autoridades locais e apoiadores dos governos sírio e iraquiano tornavam-
se, imediatamente, inimigos principais. Essa violência e essa intolerância
nas ações do ISIS tem um fundamento teórico, e se ampara numa doutrina
conhecida por muitos muçulmanos como salasmo ou wahabismo.
Salastas e wahhabistas são correntes de pensamento no interior do islã
sunita, com uma interpretação muito própria dos ensinamentos do Profeta
Maomé. Buscando um retorno àquilo que consideram as autênticas fontes
da fé muçulmana. São admiradores do comportamento das gerações
de muçulmanos que vieram logo depois da morte do profeta, onde se
estabeleciam regras, leis e normas que fortaleciam um compromisso moral
dos indivíduos com os princípios existentes no Alcorão, o livro sagrado.
O chamado wahhabismo está amplamente representado, nos últimos
noventa anos, pelo governo da Arábia Saudita, que patrocina a difusão
desse pensamento conservador no interior das comunidades muçulmanas
de todo o mundo. Sua origem está associada às concepções de Muhammad
ibn Abd al-Wahhab (1703-1792). Ele pregava
[...] um retorno ao islã primitivo do Profeta e repudiou
evoluções posteriores como o xiismo, o susmo, a falsafah
e a jurisprudência (qh), a que todos os outros ulemás
muçulmanos se subordinavam. Ele cava particularmente
aito com a veneração dos homens santos e de seus túmulos,
que condenava como idolatria. Mesmo assim, o wahabismo
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 203
não era inerentemente violento; na verdade, Ibn Abd al-
Wahhab se recusara a legitimar as guerras de seu patrono,
Ibn Saud de Najd, porque ele combatia simplesmente por
riqueza e glória. Foi só depois da aposentadoria de Ibn Abd
al-Wahhab que os wahhabis se tornaram mais agressivos,
chegando ao ponto de destruir o templo do Imã Hussein
na cidade de Karbala, em 1802, e monumentos na Arábia
ligados a Maomé e seus companheiros. Também nesse
período, a seita declarou que os muçulmanos que não
aceitassem as doutrinas deles eram inéis. (ARMSTRONG,
2016, p. 394-395).
Segundo Karen Armstrong, em seu livro Campos de sangue: religião
e a história da violência, a partir do início do século XIX os “wahhabi
incorporam os escritos de Ibn Taymiyyah a seu cânone, e a takr, ato de
declarar outro muçulmano como um descrente, que o próprio Ibn Abd
al-Wahhab rejeitara, se tornou central em sua prática” (ARMSTRONG,
2016, p. 395). Em muitos lugares os wahhabistas são chamados de “takri”,
pois são aqueles muçulmanos que criam alguma discórdia no interior da
comunidade, acusando outros de serem inéis ou apóstatas (que renegam a
sua fé). Para os wahhabistas a apostasia deve ser punida com a morte. Por isso
as organizações ou governos inuenciados por este pensamento encontram
justicativas para as atrocidades cometidas pelo ISIS ou outros grupos
terroristas wahhabistas, como a destruição de mesquistas, templos, locais
de adoração de santos populares para cristãos e muçulmanos do interior
do Iraque ou Síria. Ou ainda os castigos físicos, como chibatadas em praça
pública, amputação das mãos de pessoas acusadas de roubo, crucicação e
outras torturas aplicadas em cidades e vilas ocupadas por wahhabistas. Sem
esquecer da aplicação da pena de morte, por fuzilamento, enforcamento
ou cortando a cabeça do condenado. Essas cenas chocaram uma parte do
mundo, principalmente entre 2011 e 2014, quando da ofensiva do ISIS
no Iraque e Síria.
O wahhabismo tem sido amplamente difundido pelas madrassas
(escolas), nanciadas pela Arábia Saudita por todo o mundo. A Liga
Mundial Islâmica, com sede em Riad, tem patrocinado a construção de
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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mesquitas e centros islâmicos, e tem estimulado a participação de jovens
sauditas em guerras e conitos contra governos não-muçulmanos (caso da
luta contra a URSS no Afeganistão) ou contra governos considerados inéis
(caso da luta dos wahhabistas contra a Síria e Iraque). Essa propaganda
que a Arábia Saudita faz em “defesa dos muçulmanos de todo o mundo
também faz parte de uma tentativa do governo dessa monarquia petroleira
de desviar o olhar da população para os problemas internos do país, visando
obter apoio popular para o enfrentamento de um inimigo externo, através
de uma jihad internacional contra os inéis e apóstatas (ARMSTRONG,
2016, p. 396).
É importante salientar que, assim como no cristianismo existem
seitas neopentecostais conservadoras que deturpam as palavras e os
ensinamentos de Jesus Cristo, e que se associam a partidos e governos
de direita e extrema-direita, ou à milícias do crime organizado (como
ocorre aqui no Brasil, especialmente no Estado do Rio de Janeiro), o
wahhabismo é uma deturpação dos ensinamentos do Profeta Maomé.
Por exemplo, “embora o Alcorão de fato exija que os muçulmanos saiam
em defesa de seus irmãos, a lei da Charia proíbe a violência contra civis, o
uso do fogo na guerra e qualquer ataque a um país onde os muçulmanos
possam praticar livremente sua religião” (ARMSTRONG, 2016, p.
408). Enm, o wahhabismo quer a volta do islã da época dos Califas,
sem nenhuma das inovações ocorridas posteriormente, como o xiismo
(SALGADO, 1999, p. 257).
Certa vez o erudito islâmico fundador desta doutrina, Mohammad
Ibn Abd al-Wahhab, em seu vilarejo de Al-Uyaina, em Négede, região
central da Península Arábica (atual Arábia Saudita), surpreendeu a todos
ordenando a execução, em praça pública, de uma mulher adúltera, algo
incomum para os habitantes daquela localidade. Esta e outras atitudes
agressivas e em desacordo com os verdadeiros fundamentos do islamismo
levaram à sua expulsão e desterro. Mas o jovem teólogo encontrou apoio
no vilarejo vizinho, de Al-Diriyya, governado por Mohammad Ibn Saud.
Essa aliança seria fundamental para dar origem ao wahhabismo, que foi
esse encontro de um conjunto de ideias de um jovem teólogo muçulmano
com um membro da elite local em condições de dar abrigo e apoio
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 205
econômico e político para essa nova interpretação do Alcorão (ROGAN,
2010, p. 91). Tal cooperação foi decisiva, pois conseguiu transformar as
ideias em ações concretas, em leis, decretos e na formação de uma primeira
geração de seguidores e combatentes, que zeram da espada o instrumento
principal para impor sua concepção de mundo. Aqui está a raiz ideológica
de organizações terroristas como Al-Qaeda e ISIS. Interessante lembrar
que, no Ocidente, os meios de comunicação de massa e a industrial
cultural, em especial estadunidense, sempre apresentaram os muçulmanos
xiitas como sendo um exemplo de intolerância e extremismo, fazendo com
que, em países como o Brasil, a expressão “xiita” esteja associada a alguém
que não deseja o diálogo, alguém com quem é impossível conversar, pois
seria uma pessoa muito extremista e intransigente. Não vemos nenhuma
iniciativa ou disposição na mídia empresarial ocidental de explicar que o
wahhabismo tem origem no interior do islã sunita, e é a fonte de grande
parte da violência existente em países como Afeganistão, Iraque, Síria ou
Líbia, Também não iremos encontrar nenhuma referência sobre os laços
intrínsecos e umbelicais entre o governo da monarquia saudita e a difusão
do terrorismo pelo mundo.
Entre 1744 e 1765 o wahhabismo se concentrava nos oásis da região
central de Négede. Mas a partir de 1780 é possível perceber a expansão
dessa doutrina até as fronteiras otomanas do Iraque e Hejaz. O wahhabistas
[...] prossiguieron su cruzada de conquista, hasta que en el
año 1802 se adentraron por primera vez en territorio otomano
al atacar la ciudad sagrada de Kerbala, en el Irak meridional.
Kerbala ocupa una posición muy especial en el islam chiita, ya
que fue en esta población donde las fuerzas del califa omeya
dieran muerte a Hussein ben Ali, nieto del profeta Mahoma, en
680 d. C. Al martirizado Hussein se le tiene en gran veneración,
ya que es el terceiro de los doce dirigentes infalibles, o imanes,
del sistema chiita (...) El ataque que los wahabíes dirigieron
contra la ciudad de Kerbala fue de una brutalidade escalofriante.
(ROGAN, 2010, p. 94-95).
Os relatos dos sobreviventes falam de destruição do túmulo e da
mesquita principal, que possuía uma cúpula dourada. Todos os locais
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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de adoração ao martírio do Imã Hussein foram violados, e os objetos e
oferendas levados pelos milhares de peregrinos, que adornavam vários
locais foram destruídos ou saqueados pelos wahhabistas. Pessoas foram
assassinadas em suas casas e no mercado, e muitas foram degoladas. Ao
nal, cerca de dois mil mortos, entre homens, mulheres, idosos e crianças,
todos desarmados, pois se tratava de um local sagrado, de peregrinação,
onde se proibia, segundo o próprio Alcorão, fazer a guerra. Seu “fanatismo
llevó a los wahhabíes a destruir los lugares de veneración popular, por
ejemplo, árboles sagrados y mausoléus de personalidades musulmanes
tenidos por santos. Justicaban dichos comportamentos en la preservación
del monoteísmo puro contra la idolatria (TAMAYO, 2009, p. 277-278).
Em 1803 o comandante saudita Saud ibn Abdel-Aziz penetro em
Hejaz, depois em Meca. Entre 1803 e 1807 os wahhabistas vão conquistar
e estabelecer o controle de Meca e Medina, e irão adotar leis bastante
restritivas para seus habitantes, bem como interromper e proibir a entrada
de caravanas de peregrinos que vinham de todas as regiões onde prevalecia
o islamismo. A música, a decoração dos locais sagrados, as roupas dos
viajantes, tudo era motivo para que os wahhabistas se sentissem ofendidos
por aqueles que não seguiam, segundo essa doutrina deturpadora do islã,
o verdadeiro caminho da fé muçulmana (ROGAN, 2010, p. 94-95).
Imagens semelhantes à destruição de Kerbala, em 1802, foram vistas no
Iraque e Síria, quando da ofensiva do ISIS, entre 2011 e 2015. Como é
facilmente comprovado:
[...] ao longo dos séculos XIX e XX, os wahhabistas trabalharam
com a família de Saud para unicar os povos que viviam na
península Arábica sob uma única religião e autoridade política. O
esforço culminou na criação do atual Estado da Árabia Saudita e
os governos sauditas continuam a ter, até hoje, uma relação estreita
com as autoridades religiosas wahhabistas. (BERGER; STERN,
2015, p. 304).
Portanto, podemos concluir que não é o islã xiita o fator gerador de
instabilidade, extremismo ou violência na região conhecida como Oriente
Médio, Grande Oriente Médio ou Ásia Ocidental. Como bem salienta
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Patrick Cockburn, em seu livro A origem do Estado Islâmico: o fracasso
da “guerra ao terror” e a ascensão jihadista, não é só o poder econômico
e nanceiro da Arábia Saudita que explica o surgimento de organizações
terroristas na região, mas:
[...] seu papel na propagação do wahabismo, a versão
fundamentalista do Islã, nascida no século XVIII, que impõe a lei
da sharia, relega as mulheres o papel de cidadãs de segunda classe
e enxerga os xiitas e sustas como não muçulmanos, que devem
ser tão perseguidos quanto cristãos e judeus (...) Por exemplo, há
poucos anos, o saudita que montou um website em que clérigos
podiam ser criticados foi condenado a mil chibatadas e sete anos
de prisão. A ideologia da Al-Qaeda e do ISIS é em grande parte
originária do wahabismo (...). (COCKBURN, 2015, p. 46-47).
Infelizmente, “la maioria de la población saudí pertenece ala
corriente wahhabí” (TAMAYO, 2009, p. 278). O pensamento imperialista,
a ideologia sionista e a doutrina wahhabista são responsáveis pela situação
de instabilidade permanente na Ásia Ocidental/Oriente Médio e entorno.
Existem convicções e amplas provas que permitem armar que “foram os
EUA, a Europa e seus aliados regionais na Turquia, Arábia Saudita, Qatar,
Kwait e Emirados Árabes que criaram as condições para a ascensão do
ISIS. Eles sustentaram um levante sunita na Síria, que se espalhou para o
Iraque. Mantiveram a guerra na Síria, embora fosse óbvio, dede 2012, que
Assad não cairia” (COCKBURN, 2015, p. 49). Não é exagero incluir a
entidade sionista (“Estado de Israel”) nessa coalizão extremista e violenta,
pois a aviação israelense tem se destacado como a “Força Aérea do ISIS”.
É impressionante vericar que, em muitos momentos do conito na Síria,
quando as tropas e milícias do ISIS se encontravam encurraladas, com
diculdade de mobilidade ou para romper o cerco imposto pelo Exército
Sírio, Hezbollah ou a Guarda Revolucionária iraniana, aviões israelenses
atacavam as posições do Eixo da Resistência, destruíam blindados e
tanques sírios, e assim, ajudavam o ISIS a encontrar um caminho para
recuar e reagrupar suas unidades de combate. O ISIS retribuiu até agora
essa solidariedade israelense, não realizando nenhum atentado ou operação
contra aquele que é o principal aliado dos EUA na região.
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208 |
Concluímos nossa reexão desejando e acreditando que um dia
viveremos num mundo onde as relações internacionais sejam baseadas na
paz, na justiça, na cooperação e na solidariedade entre povos e nações,
pois já existirá uma sociedade sem colonialismo, sem imperialismo e onde
ideologias baseadas na intolerância e na violência não encontrem mais
respaldo de governos ou populações. Já não será mais o mundo do capital
e do capitalismo.
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C 9
T    :
   
Rodrigo Duarte Fernandes dos PASSOS
2
introdução
A análise da ascensão e eventual queda da direita nos últimos anos e,
em particular, de Donald Trump, se reveste, por vezes, de foco nas questões
eleitorais e conjunturais ou, como no caso especíco norte-americano, na
retomada ou enunciação da tese de uma reação ou nexo ligado ao declínio
da hegemonia dos Estados Unidos (EUA). Trata-se de uma abordagem
apegada demasiadamente às questões conjunturais da gestão do presidente
referido ou às dimensões do poder estatal reicando a análise ao abstrair
este aspecto de uma perspectiva mais holista, composta por vários outros
aspectos que não somente aqueles atinentes ao Estado, suas relações
políticas, elementos de seu poder e aspectos internacionais. Não chega a
ser diferente quando se confronta a questão da hegemonia dos EUA e uma
eventual futura hegemonia chinesa
3
.
 Esta reexão é um desenvolvimento e pequeno aprofundamento de uma análise anterior (PASSOS, 2020).
Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE) e curso de Relações Internacionais
Unesp, campus de Marília. Brasil. E-mail: rodrigo.passos@unesp.br. https://orcid.org/0000-0002-5542-2812.
A título de exemplicação de tal perspectiva, consulte-se MASTRO (2019) e MEARSHEIMER (2010).
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p211-236
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Até mesmo a literatura dita neogramsciana conforma algumas
destas tendências. Nesta linha de argumento, o ponto de partida remete
à enunciação de Robert W. Cox (1981, 2007) como o grande intérprete
de Gramsci para as Relações Internacionais. A análise coxiana, em boa
medida, focada em força e consenso e uma sobrevalorização das questões
interestatais, reduz assim o escopo da avaliação da hegemonia como
processo histórico mais amplo. Há um empobrecimento de tal categoria
reduzindo-a a uma perspectiva dualista com os pares hegemonia e ausência
de hegemonia, hegemonia e contra-hegemonia e a antinomia hegemonia e
sua ausência como uma revolução passiva.
De forma diversa, a elaboração de Gramsci sustenta que o confronto
entre posições em qualquer nível – local, regional, continental, nacional,
internacional – contempla direta ou indiretamente um choque de projetos
hegemônicos, de parte ou conjunto de concepções de mundo mais amplas,
mesmo que elas sejam apenas aspirantes a tal condição. A categoria de
hegemonia enuncia na sua forma histórica completa uma profunda e
radical transformação executada pelas massas, ilustrada na fase jacobina da
Revolução Francesa e no período inicial da Revolução Russa Soviética de
1917. Uma das hipóteses não desenvolvidas por Gramsci nos seus cadernos
carcerários foi a recorrência da sua forma incompleta como revolução passiva
na maioria dos processos históricos, vendo-a como chave para analisar tais
trajetórias. Ou seja, classes e suas frações promovem uma modernização
conservadora conduzida “por cima”, pelo Estado, cooptando parte das
classes e grupos subalternos e das suas demandas sem dar-lhes protagonismo
político. Portanto, ao contrário do que sustenta Cox, hegemonia e revolução
passiva não são excludentes entre si (GRAMSCI, 1975).
Alguns dos autores inspirados em Cox e leituras das antologias
temáticas de Gramsci em língua inglesa enunciam, a título de
exemplicação, uma crise da hegemonia neoliberal na conjuntura histórica
que abrange a gestão do presidente em questão e sua ênfase no slogan
America First”, também associada ao declínio hegemônico dos EUA
(BIEGON, 2020; HARRIS et al., 2017; LÖFFLMANN, 2019; ÖNER,
2018; PARNREITER, 2018).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Tais análises repetem os padrões hegemônicos da Ciência Política
no sentido de enfatizar os aspectos políticos, tornar outras dimensões
epifenômenos da política ou abstrair do todo os aspectos centrados na
política, perdendo de vista os processos históricos mais amplos e a amplitude
de determinações que lhes dizem respeito. No caso de outros exemplos e
análises, sobrevalorizam-se as questões conjunturais ou unidimensionais,
focadas em um ou pouco aspectos.
Com outras palavras e traduções (tomadas em sentido gramsciano
como ressignicações de totalidade histórica de uma elaboração original
sem perder completamente o sentido original), tal é a ressalva de uma das
mais relevantes formulações gramscianas do cárcere, a análise de situações
enquanto relações de força (GRAMSCI, 1975, p. 1578-1589). Com este
preâmbulo, enuncia-se que o objetivo deste texto é responder à seguinte
pergunta: à luz da análise de relações de força em termos gramscianos, como
contemplar uma breve avaliação do advento e da queda de Trump e o nexo
com a ascensão da China em termos da hegemonia dos Estados Unidos?
A hipótese a ser desenvolvida de forma breve remete ao seguinte
enunciado: a ascensão de Trump e a queda se relacionam, em parte, a
processos históricos de longa duração que não permitem apontar no médio
e curto prazo o declínio da hegemonia dos Estados Unidos, mesmo com
a crescente presença chinesa no cenário internacional. Neste sentido, o
conteúdo fordista da hegemonia norte-americana sugerido como hipótese
por Gramsci passou por traduções, ou seja, ressignicações, transformações
históricas que não colocaram em xeque a sua ideia mestra, a saber, o
consumo e a produção em massa. As forças sociais e históricas relacionadas
à ascensão da China não desencadearam uma transformação que possa
substituir tal quadro, mas apenas reposicionaram a Terra do Meio no
âmbito da hegemonia estadunidense e se relacionam à ascensão de Trump
nos EUA e, em parte, à sua queda.
O argumento a ser percorrido seguirá as seguintes etapas: uma breve
elucidação da metodologia histórica da análise das relações de força de
Gramsci e seu nexo com o fordismo enquanto conteúdo da hegemonia
norte-americana, uma sumária avaliação do processo histórico chinês
que envolve aspectos internos e externos de seu reposicionamento na
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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hegemonia dos EUA desde o m dos anos 70 e o nexo destes aspectos
com o advento de Trump à Casa Branca. A derrota eleitoral de Trump
suscitará mais um ponto a ser analisado. Por m, a conclusão resumirá os
argumentos apresentados.
a metodoloGia histórica da análise de relações de força e seu
nexo com o fordismo
As Relações Internacionais são um campo disciplinar
hegemonicamente pautado por aspectos permanentes, perenes e ahistóricos
nas suas categorias. A categoria canônica nesta linha de argumento é a
anarquia. Isto é, o entendimento de que a inexistência de um ente dotado
de soberania no plano internacional acima de todos os agentes leva os
Estados a competirem egoísticamente entre si de forma semelhante à
guerra de todos contra todos no estado de natureza descrito por omas
Hobbes (1985), em que há sempre o risco e a possibilidade da violência.
Qualquer que seja o período histórico, tal categoria permanece como o
pano de fundo mais relevante para a análise, incidindo sobre os agentes
mais relevantes (governantes, militares, diplomatas, Estados) em termos
de uma natureza única e antissocial em qualquer periodização cronológica.
Este recorte teórico com um claro viés de predomínio das questões
políticas é completado com a delimitação do ambiente internacional como
o único ou o mais relevante para análise acrescido das relações políticas
e das dimensões estatais de poder (militares, econômicas, culturais,
geográcas etc), sendo estas últimas também subsumidas, subordinadas e
transformadas em apêndices, epifenômenos da política.
Em uma palavra, uma perspectiva que Justin Rosenberg (2016)
chamou metaforicamente de Relações Internacionais “na prisão da
Ciência Política”.
A perspectiva gramsciana difere substantivamente destes referenciais.
Em primeiro lugar, o historicismo absoluto gramsciano não
admite repetição ou analogia histórica. Exemplar neste sentido é a
própria assimilação crítica ou tradução que Gramsci fez de Maquiavel,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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autor concorde com uma única natureza egoística na história humana
caracterizada de forma abstrata, xa e imutável. De forma diversa, Gramsci
formula que a natureza humana deve ser explicada, dentro de certos limites,
por métodos de lologia e crítica dentro do conjunto de relações sociais
historicamente determinadas (GRAMSCI, 1975, p. 1598-1599).
A menção à lologia dá ensejo a outra importante formulação
metodológica do comunista sardo, a saber, a tradutibilidade ou
traducibilidade ou ainda tradução (GRAMSCI, 1975, p. 469, 489,
1468, 2268). Um autor, categoria, conceito, formulação ou análise não é
transposta, aplicada mecanicamente. Passa por uma ressignicação, uma
reelaboração rica e complexa em consonância com especicidades históricas
no todo sem perder parte do seu sentido original, ponto viável somente no
âmbito do materialismo histórico. A assimilação crítica de Gramsci das
várias fontes que formaram seu pensamento está inserida em tal lógica.
Embora não haja menção direta a tais aspectos na formulação
gramsciana da análise das relações de força, elas se relacionam e são
contempladas indiretamente no ponto em questão.
Os princípios canônicos da análise das relações de forças, inspirados
em Marx, apontam para o entendimento de que nenhuma formação
econômico-social se esgota antes de desenvolver todas as suas potencialidades
e contradições na produção da vida e de que as sociedades só se põem
tarefas quando da concretude de condições necessárias e sucientes em vias
de aparecer e se desenvolver (GRAMSCI, 1975, p. 1578-1579).
Ainda conforme Gramsci, derivam-se destes cânones outros
princípios de metodologia histórica, a serem elucidados sumariamente
em termos do nexo orgânico entre estrutura e superestrutura. A distinção
do que é orgânico, permanente, daquilo que é imediato, conjuntural. O
cuidado necessário para se evitar a crítica política miúda, concentrada
nos pequenos grupos dirigentes e nas personalidades individuais criando
abordagens voluntaristas e individuais. A cautela para não se valer somente
de causalidades unidimensionais, ou unicamente aquelas somente de
ordem direta, imediata, mecânicas ou exclusivamente as congêneres de
índole mediata, intermediária.
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Alternativamente, Gramsci enuncia um laço dialético entre as duas
ordens de movimento, conjunturais e orgânicas. Perceber a articulação
dialética mencionada permite reelaborar as relações entre estrutura (a
produção da vida na base social) e superestrutura (a consciência social
e a base coercitiva e jurídica do Estado), de um lado. De outro lado,
permite entender o vínculo entre a trajetória do movimento orgânico e
do movimento de estrutura. Com o objetivo de compreender tal ligação,
Gramsci asserta três momentos ou graus.
O primeiro é a relação de forças sociais ligada à estrutura, à produção
da vida. Ela é mensurada objetivamente nos parâmetros das ciências exatas,
na quanticação precisa de empresas, operários, trabalhadores, cidades,
população etc. O seu exame permite o estudo sobre as condições necessárias
para a transformação de uma sociedade no tocante ao grau de realismo e
viabilidade das diversas ideologias, o seu desenvolvimento e contradições.
Em seguida, há o momento das relações de forças políticas entendido
como análise do grau de homogeneidade, de autoconsciência e organização
dos distintos grupamentos sociais. Este momento, por sua vez, é composto
por vários graus. O primeiro, de caráter econômico-corporativo. Como a
nomenclatura sugere, o caráter unitário homogêneo do grupo prossional
como imperativo de organizá-lo, sem ampliar para um grupo social mais
amplo. A ampliação em questão - o segundo momento - para o grupo
social mais amplo possui um caráter pura e simplesmente econômico,
colocando no horizonte o Estado em termos de se buscar uma igualdade
político-jurídica em relação aos grupos dominantes, objetivando legislar
e administrar neste âmbito dentro dos marcos existentes. A superação
do patamar corporativo e econômico é o terceiro momento, levando à
possibilidade de tornar-se os interesses de outros grupos subordinados,
quando se marca a passagem da estrutura para as superestruturas complexas.
É o momento em que as ideologias se irradiam e se impõem para toda
a sociedade com a unidade moral, intelectual e dos ns econômicos e
políticos. O Estado é visto como organismo de um grupo especíco cuja
nalidade é criar o terreno para sua expansão máxima, apresentada de uma
forma universal e englobadora de todas as energias de modo a se equilibrar
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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e formar o equilíbrio dos interesses do grupo fundamental e dos demais
grupos subordinados.
Os dois momentos se implicam, se traduzem, se transformam
reciprocamente ao longo da história em várias possibilidades econômicas e
políticas nas atividades sociais e nos territórios dos Estados com combinações
e cisões originais em diferentes tempos, velocidades envolvendo inclusive
o entrelaçamento com as relações internacionais entre países mais
desenvolvidos e menos desenvolvidos. O nexo entre o plano nacional e o
âmbito internacional se complexica em vista das várias seções territoriais
com diferentes estruturas e relações de forças em vários graus.
O terceiro momento diz respeito à relação as forças militares,
imediatamente relevante nas oportunidades concretas. Ele se relaciona
aos nexos entre política e guerra nas suas mais variadas combinações,
alcançando desde as lutas de nações oprimidas contra aquelas hegemônicas
e as lutas revolucionárias das multidões.
O desenvolvimento histórico oscila entre o primeiro e o terceiro
momento, tendo a mediação do segundo. Como efetuar uma breve
análise estabelecendo o nexo de tudo isto com a perspectiva gramsciana
da hegemonia de conteúdo fordista dos EUA, pautada pela produção e
consumo em massa?
A produção em massa almejada por Henry Ford na sua montadora
homônima há cem anos só faria sentido socialmente com todo um
conjunto de condições sociais que possibilitassem o consumo em massa.
Na direção de viabilizar tal quadro, Gramsci diagnostica um conjunto
de condições sociológicas e demográcas favoráveis nos Estados Unidos
comparativamente à Europa: a ausência de classes sociais e grupos
intermediários “parasitários” remanescentes das antigas nobrezas que
dicultassem a acumulação e a produção em massa, um contexto
proibicionista ao alcoolismo e adepto de uma rigidez moral, sexual e
nanceira para as classes subalternas, conjugado com uma visão de mundo
submissa, servil e coisicada da mulher como parte do conjunto de aspectos
adequados aos nervos e músculos para os operários e classes hegemonizadas
implementarem a produção massiva mencionada. Um relativo aumento
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salarial aos operários que se submetessem a tal disciplina seria uma
compensação e um elemento de passivização em relação à intensicação
da produção e da disciplina fabril, fortemente ampliada considerando-se
a pulverização e enfraquecimento dos sindicatos. De modo bem grosseiro,
esta é a avaliação na qual a lavra prisional de Gramsci situa o nascimento
da hegemonia norte-americana e de vários de seus componentes até os
anos 1930 como hipótese de revolução passiva (GRAMSCI, 1975, p.
2137-2181).
Um dos pontos mencionados rapidamente por Gramsci (1975, p.
2140) na sua análise sobre o fordismo sugere um aspecto orgânico, de longa
duração: o capital nanceiro e seus mecanismos de acumulação e distribuição
a partir da produção industrial. Ele se relaciona com uma temporalidade
histórica de longa duração (PASSOS; FRANCO, 2017), o capitalismo
imperialista inaugurado em 1870, segundo a periodização de Hilferding
(1981), que marcou a era imperialista não somente em termos da fusão
do capital bancário com o capital industrial, mas também em termos das
diversas sínteses do capital nanceiro com inúmeras atividades produtivas,
entre outras características. Chama a atenção em trecho provavelmente
escrito entre fevereiro e março de 1934 (FRANCIONI, 1984, p. 145), um
elemento histórico-conjuntural, uma menção à China (GRAMSCI, 1975, p.
2145) como parte de um conjunto de países estagnados e impotentes política
e militarmente na medida em que se registram neles o parasitismo das antigas
classes nobres que obstaculiza o desenvolvimento industrial. Evidentemente
que a conjuntura histórica chinesa mencionada difere completamente do
período que incide nesta análise.
A análise gramsciana sobre o fordismo se reveste dos limites
não somente de uma obra carcerária inacabada e passível de revisão e
reelaboração conforme sua própria manifestação em outros momentos,
como também a impossibilidade de vislumbrar no horizonte histórico
o alcance que a nascente hegemonia fordista alcançaria. Apesar disto,
elementos que apontariam para este caráter orgânico, durável já caram
evidenciados com a enorme repercussão dos métodos fordistas como
verdadeira concepção de mundo constatada imediata e inicialmente por
Gramsci e depois nas diferentes transformações, aparências e revestimentos
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que a produção e consumo em massa assumiram ao longo de mais de
cem anos, inclusive como stakhanovismo
4
na União Soviética, em que se
perdeu de vista a avaliação de que a técnica não é empreendimento neutro
e sim pertencente a uma concepção de mundo mais ampla de classes e suas
frações (DIAS, 2012).
Em termos de um balanço parcial do argumento, há alguns pontos
a destacar. O primeiro diz respeito ao caráter orgânico, de longa duração,
do capitalismo imperialista desde 1870, com a participação do capital
nanceiro de forma imbricada com a indústria e demais atividades
produtivas. O segundo concerne a outro aspecto de permanência histórica,
o fordismo com seu princípio de produção e consumo em massa como linha-
mestra de organização do capitalismo. O terceiro sublinha os elementos
de conjuntura histórica de transformação, tradução pelos quais passaram
o fordismo e o capitalismo imperialista ao longo de mais de cem anos,
aspectos que transcendem o escopo deste artigo. O quarto aspecto enuncia
a profunda transformação histórica pela qual passou a China em relação à
sumária análise de Gramsci, sendo a mesma uma das principais potências
do capitalismo global. O quinto e último, mas não menos importante,
remete ao processo histórico da hegemonia fordista norte-americana que se
apoia em temporalidade histórica longa e ainda não esgotada. Este ponto e
o nexo com a ascensão chinesa serão abordados a seguir.
uma Parte do Processo histórico chinês e seu rePosicionamento
na heGemonia norte-americana
A hegemonia fordista norte-americana de suas classes ligadas
ao capital nanceiro se consolidou com o choque interimperialista e
inter-hegemônico da Segunda Guerra Mundial. Os EUA saíram do
conito com seu território praticamente intacto, um menor número
relativamente em perdas de forças produtivas em comparação com outros
Referência a Alexei Stakhanov, operário soviético que em 1935 teria superado em muito a sua cota de extração
diária de carvão e foi tomado como exemplo e instrumento de propaganda e de coação pelo governo de Stalin.
Conforme o discurso ocial, o trabalho dos operários até a exaustão se justicaria porque não mais haveria
exploradores e os ganhos de produção excedentes seriam apropriados exclusivamente pela classe operária.
(PASSOS, 2019, p. 63).
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envolvidos no conito, fazendo valer, inclusive, a sua superioridade
de recursos e sua concepção de mundo fordista para superar algumas
lacunas tecnológicas em armamentos, devidamente compensadas com a
economia de escala que facilitava a produção de muito mais armas em
estreita conexão com a produção de bens e componentes para a vida civil.
A sua economia respondia por mais da metade do PIB mundial, posição
que foi enfraquecida gradativamente ao longo do século XX. Espasmos
conjunturais que sugeriam uma eventual superação de sua hegemonia pelo
capital nanceiro do Japão e da União Europeia liderada pela Alemanha
nos anos 90 não tiveram fôlego de longo prazo. A tradução do fordismo em
termos de totalidade histórica enquanto manutenção da sua hegemonia no
século XXI foi acompanhada de vários aspectos ideológicos, econômicos,
culturais, linguísticos relacionados organicamente entre si. Devem ser
destacados entre os aspectos econômicos a manutenção do dólar norte-
americano como o padrão para a ampla maioria das transações econômicas
internacionais, atual composição de 20% do PIB mundial pelos EUA,
bem como sua superioridade militar convencional e nuclear acompanhada
do maior orçamento militar do mundo, da ordem de US$ 700 bilhões
(PASSOS, 2019, p. 67).
A hegemonia estadunidense de seu capital nanceiro aceitou uma
lógica passivizadora de vultosos investimentos de reconstrução econômica,
direitos sociais e relativo bem-estar no Japão e na Europa Ocidental a m
de bloquear uma ampliação da hegemonia regional da União Soviética
(URSS). O m da Guerra Fria se desdobrou no m desta lógica desigual de
passivização que se manifestou em todo o globo, sendo substituída por uma
perspectiva bem lesiva às classes trabalhadoras no contexto mais amplo de
um conteúdo neoliberal que foi acrescido à hegemonia dos EUA
5
.
Uma das crises mais recentes de lucratividade do capital nanceiro
dos centros do capitalismo imperialista, como os EUA, remonta aos anos
1970. Desde tal período, o capitalismo nanceiro buscou várias alternativas
para extrair excedentes de mais valor nos Estados da periferia global. Este
Para um maior desenvolvimento do argumento de que a hegemonia dos Estados Unidos não encontra indícios
de uma crise terminal e de que provavelmente permanecerá como aspecto orgânico, de longa duração, consultar
PASSOS (2019).
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movimento alcançou também a República Popular da China (BIELER;
MORTON, 2018) e coincidiu com as reformas iniciadas em 1976 com a
morte de Mao Tsé-tung em 1976.
Antes do início da maior abertura chinesa no m dos anos 70 ao
capital nanceiro, é importante registrar historicamente um signicativo
distanciamento envolvendo algumas posições políticas e ideológicas entre
o Partido Comunista da China e o Partido Comunista da URSS (com
recomendações e formulações muito distantes da realidade chinesa) anterior
à Revolução Chinesa de 1949 e posterior a isto, ponto que não é o foco
deste texto. O distanciamento em questão culminou com a ruptura entre
ambos em 1960, chegando a haver escaramuças militares de fronteira no
nal da mesma década. A aproximação da China com os EUA conduzida
ao longo da década de 70 culminou com o reestabelecimento de relações
diplomáticas em 1979. A perspectiva de se aproximar da China como rival
e vizinha da URSS, o potencial econômico de um Estado dotado de um
enorme território e população eram algumas das justicativas mais factíveis
para tal aproximação naquela conjuntura histórica.
Portanto, nota-se que a competição inter-hegemônica e
interimperialista entre EUA e URSS foi um componente importante
nesta reaproximação e processo de reposicionamento chinês na hegemonia
norte-americana. Como explicar resumidamente o processo histórico mais
amplo que vai da retomada de relações diplomáticas até a competição inter-
hegemônica entre EUA e China? Parte do argumento pertinente à questão
proposta passa por perspectiva das diferentes temporalidades da produção
da vida e pela hipótese do processo chinês contemplar uma especicidade
enquanto revolução passiva.
No sentido dos diferentes tempos de transformação das dimensões
da vida, Gramsci assinalou em 1919 que o capitalismo é um fenômeno
histórico mundial, sendo seu desenvolvimento econômico compreendido
de forma que os Estados não podem ter o mesmo nível simultaneamente
(GRAMSCI, 1919 apud MORTON, 2007, p. 1). O ponto que importa
para a análise é exatamente a enorme disparidade econômica entre China
e EUA no momento desta aproximação política.
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A despeito da China ter passado por grandes transformações
para superar o quadro genericamente descrito por Gramsci de um país
de enorme pobreza e opressão, composto por 90% de camponeses e ter
alcançado importantes metas de expectativa de vida, produção de alimentos
e educação, seu crescimento anual se dava a taxas inferiores a Japão, Hong
Kong, Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura. Seu PIB era inferior ao congênere
do Canadá, Itália e apenas um quarto do Japão (HOBSBAWM, 1995, p.
449, 455, 456).
O processo de modernização que se seguiu, dentro das especicidades
chinesas, parece convergir para elementos da categoria gramsciana
de revolução passiva. Conforme já reiterado, a China era constituída
essencialmente de uma enorme população camponesa, base da revolução e
da vitória do Partido Comunista na breve guerra civil nalizada em 1949,
amparada em boa medida por uma doutrina militar de cerco da cidade
pelo campo. O seu perl demográco permaneceu essencialmente com tal
característica até a morte de Mao. Um processo de passivização nos termos
gramscianos teria que levar este dado objetivo em consideração. Em que
consistiu a modernização conservadora chinesa conduzida pelo Estado?
Uma maior inserção da China na economia capitalista internacional
coincide com o desenvolvimento acelerado experimentado desde as
reformas da era pós-Mao. A transformação da China no que hoje é a
“indústria do mundo” envolveu a descentralização da gestão das empresas
estatais, descoletivização da agricultura, abertura aos investimentos
estrangeiros, somente para citar algumas medidas.
A trajetória gradual de incremento da industrialização chinesa e de
entrada de investimentos estrangeiros se aproveitou da enorme massa de
camponeses desempregados, mas dotados de um perl de boa formação e
educação, testemunhado o maior êxodo rural da história:
Uma industrialização limitada precisava acontecer para garantir a
independência da China no futuro. Mas, dada a sua base social
rural, o PCCh
6
não seguiria a política de Stalin de uma urbanização
violenta do campesinato. Em vez disso, a propriedade privada foi
abolida e o campo foi coletivizado, permitindo nalmente ao
Partido Comunista da China.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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Estado extrair um excedente rural para investimento em novas
indústrias nas cidades. A população rural, enquanto isso, foi xada
nas comunas e impedida de migrar para as cidades. E essas estruturas
políticas se tornaram o veículo para a prestação de serviços - como
educação e saúde - em níveis nunca antes experimentados pela
maioria das áreas rurais da China [...].
Mais tarde, caria claro que esse “desenvolvimento combinado
peculiar de uma economia de comando stalinista com as fundações
amplamente ainda agrárias da sociedade chinesa produziram
um efeito não intencional de grande consequência: um enorme
reservatório de trabalho saudável e educado, represado no campo,
mas disponível para a rápida expansão da indústria quando a política
do Estado mudou. Quando as comportas foram abertas, o resultado
seria o maior processo de migração interna na história - cerca de
144 milhões em 2000 [...] - alimentando a demanda por mão-de-
obra barata impulsionado por níveis igualmente sem precedentes de
investimento estrangeiro vindo de países capitalistas mais avançados
(ROSENBERG; BOYLE, 2019, p. 40, tradução nossa).
Esta incorporação deste extrato subalterno ao mercado e na vida
assalariada na lógica de passivização de tal classe. Mas também em termos
de superexploração, com um preço médio de hora de trabalho de US$0,67
(ROSENBERG; BOYLE, 2019, p. e42). De uma certa forma, na lógica
da revolução passiva, uma incorporação de demandas das classes e grupos
hegemonizados ao inseri-los no mercado de trabalho de uma forma
muito precária e sem dar-lhes direção deste processo
7
. Evidente que este
custo baixo de mão de obra contribuiu enormemente para a atração de
investimentos do capital nanceiro originado de outros Estados.
Relacionado a isto, o contexto de relativa pobreza e de baixo
desenvolvimento (em comparação com os mais avançados centros
do capitalismo imperialista) da China no m dos anos 70 passou por
uma transformação bastante rápida, que “pulou etapas” para se chegar
ao quadro contemporâneo. O intercâmbio com o acesso de milhares
de estudantes chineses a universidades no exterior, os vários acordos e
7
Para uma avaliação mais profunda do processo histórico chinês enquanto revolução passiva, consultar GRAY (2010).
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convênios de cooperação técnica e cientíca com os EUA, com outros
Estados e com agências como o Banco Mundial contribuíram para esta
elevação de vários degraus. Como Gramsci já havia enunciado na sua
reexão sobre a análise da relação de forças, países desenvolvidos podem
ser imitados por Estados menos desenvolvidos na adoção de ideologias
(GRAMSCI, 1975, p. 1585). Neste caso, avalia-se que raciocínio
semelhante pode ser estendido a outras possibilidades de transformação
de dimensões da vida, como ocorreu no caso chinês.
Conforme já escrito, todo este processo, a despeito de credenciar a
China para uma competição inter-hegemônica e interimperialista com os
EUA, reposicionou a Terra do Meio na hegemonia fordista estadunidense.
Concorrem para isto a dependência em vários graus estabelecidas com
Washington, como o caráter exportador de manufaturas para um mercado
de maior capacidade aquisitiva e nanciadora, dotado de um capital
nanceiro mais robusto que deslocou boa parte de suas plantas industriais
para a China. Outro aspecto da maior relevância é a tradução do fordismo
para as especicidades chinesas, caracterizando um processo histórico em
que não se criou uma concepção de mundo alternativa ao fordismo. Ainda
que em termos conjunturais a ascensão chinesa tenha elementos de longa e
curta duração em termos de processo histórico que resultaram em PIB de
US$ 13 trilhões – o segundo maior do mundo - ante os US$20 trilhões doo
EUA como um dos principais elementos de um desao ao hegemon, esta
trajetória também proporcionou a emergência de uma distinta forma de
conceber a hegemonia dos Estados Unidos e sua inserção interimperialista
e inter-hegemônica, materializados na eleição de Trump.
Quais as consequências deste processo histórico no sentido de
contribuir para a conjuntura histórica de ascensão de Trump? Este é o
ponto derradeiro do texto, a ser abordado a seguir.
a ascensão de trumP
Alguns analistas enxergam a gestão Trump como o m de um
período de uma hegemonia liberal que se seguiu nas últimas gestões
presidenciais estadunidenses (LÖFFLMANN, 2019; MEARSHEIMER,
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
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2016; POSEN, 2018) e a ascensão de um projeto hegemônico de teor
contrário a isto. Neste sentido, a postura mais ofensiva e assertiva contra
o Irã e seu projeto nuclear, a guerra comercial com a China e a Europa, a
cobrança incisiva dos aliados da OTAN de uma maior parcela de gastos
e contribuições para a aliança militar, as políticas e visões xenófobas,
racistas associada a várias nacionalidades, estrangeiros e imigrantes na
política exterior e na política interna em várias das manifestações públicas
do presidente e de seu governo, o aumento de medidas protecionistas à
economia norte- americana, as medidas para buscar reverter a perda da
hegemonia estadunidense seriam a justicativa de tal avaliação.
As avaliações referidas, motivadas pelos referenciais tradicionais das
Relações Internacionais, privilegiam os Estados e seus projetos hegemônicos
no sistema internacional de forma monolítica, coesa, homogênea, de forma
separada dos demais aspectos da vida social.
Uma avaliação gramsciana difere substantivamente disto. De forma
diversa, o projeto hegemônico estadunidense se presta a contradições,
ssuras internas e conitos. Tudo isto se relaciona vários aspectos da vida
social, como a política interna. O processo histórico de ascensão chinesa
em diapasão de distintas temporalidades de produção da vida também
contribuiu para a conjuntura histórica que levou à eleição de Trump e uma
distinta perspectiva de conduzir o processo hegemônico estadunidense.
Resumindo os resultados da trajetória desigual dos tempos de
transformação da trajetória chinesa em comparação com a análise estrutural
das relações de forças dos EUA:
Esse “choque da China”, como cou conhecido [...], acelerou o
processo de desindustrialização que vinha ganhando ritmo desde a
década de 1980. Os setores expostos a importações de baixo custo
apresentaram taxas crescentes de fechamentos de fábricas e despejo
de mão-de-obra à medida que as empresas mudavam uma proporção
crescente de seu trabalho rotineiro de fabricação no exterior, ou
abandonou inteiramente setores menos competitivos [...]. O
resultado foi um declínio acentuado no emprego industrial. Entre
2000 e 2007, o número de empregos na indústria manufatureira
nos EUA diminuiu um quinto (3,6 milhões), enquanto o emprego
industrial na Grã-Bretanha caiu mais de um quarto, com uma
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
226 |
perda de quase um milhão de empregos [...]. A análise sugeriu
que o aumento das exportações da China foi responsável por um
quarto das perdas de empregos na área de manufatura nos EUA no
período de 1990 a 2007 e de um quinto a um terço do declínio na
Grã-Bretanha entre 2000 e 2015 [...].
Obviamente, a perda de empregos foi apenas um lado da moeda.
O outro lado foi o aumento da produtividade e lucratividade das
empresas que agora redirecionaram seus processos de produção
através da força de trabalho chinesa muito mais barata. E quando
a produção não competitiva foi abandonada, a fabricação nos
EUA se beneciou de um efeito duplo: maior concentração em
atividades produtoras de maior valor e, simultaneamente, preços
mais baixos para insumos importados [...]. Os benefícios das
exportações chinesas também não foram limitados à manufatura.
No enorme setor americano de serviços, a queda nos preços das
mercadorias de TIC
8
importados da China facilitou a adoção
rápida e generalizada de tecnologias digitais que aumentaram
a produtividade [...]. O resultado foi uma melhoria notável no
crescimento geral da produtividade, com os EUA (e até certo ponto
a Grã-Bretanha) avançando à frente da Europa e Japão na década
de 1995 a 2004 [...]. Aprofundando a interdependência entre uma
rápida industrialização da China e um país cada vez mais pós-
industrial - entre Shenzhen e o Vale do Silício – pareceu assim elevar
a economia americana a um novo caminho de maior crescimento.
(ROSENBERG; BOYLE; 2019, p. 46, tradução nossa).
Por m, como estabelecer o nexo de todos estas assertivas com a
eleição de Trump? O cerne da análise pode ser assim expresso de maneira
bastante relevante, justicando assim a longa citação:
Parcialmente tomado como resultado, quando (a partir de junho
de 2009) a economia dos EUA nalmente começou a sair da
recessão, a recuperação não incluiu um renascimento do emprego
industrial. Essa “recuperação” nos EUA e na Grã-Bretanha após
o ano de 2010 mostrou-se extremamente distorcida, gerando
relativamente poucos empregos rotineiros de renda média [...].
Em 2016, o emprego no setor manufatureiro dos EUA havia
Tecnologias da Informação.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 227
recuperado apenas um terço dos 2,3 milhões postos de trabalho
perdidos em 2008 e 2009, embora a produção tenha aumentado
em um quinto [...]. Como consequência, a maior parte do
crescimento do emprego nos EUA durante a recuperação ocorreu
em empregos não rotineiros de salários baixos, como hotelaria e
cuidados com saúde. Na Grã-Bretanha, a recuperação de empregos
foi mais em forma de ampulheta, com forte crescimento tanto
nos serviços de baixo salário quanto nos negócios de alta renda e
áreas prossionais de alto salário [...]. A manufatura, no entanto,
permaneceu moribunda: em 2015, o setor conseguiu recuperar
apenas 80.000 dos mais de 400.000 empregos de manufatura
perdidos em 2008-10 [...]. Ambos os países viram uma retomada
da tendência de aprofundamento da polarização do mercado de
trabalho que caracterizou o período anterior. [...]
Por sua vez, isso signicou que a recuperação assumiu uma forma
altamente regionalizada. Áreas metropolitanas como Londres e o
sudeste do Reino Unido ou os corredores costeiros de Nova York
e Los Angeles nos EUA se beneciaram de um forte serviço de
crescimento da indústria. Mas em áreas “não metropolitanas
historicamente mais dependentes do emprego industrial - as
Midlands na Grã-Bretanha e nos estados do Centro-Oeste dos EUA
- a recuperação nunca chegou. Até 2016, os níveis de emprego nas
áreas metropolitanas dos EUA não apenas reverteram sua queda
de 5% entre 2008 e 2009; eles estavam agora em 4,8% acima dos
níveis anteriores à crise. Nas áreas não metropolitanas, no entanto
- que já haviam suportado o peso das perdas de empregos décadas
anteriores - as taxas de emprego permaneceram 2,4% abaixo do que
haviam sido no início de 2008 [...]. Enquanto isso, em algumas
regiões industriais da Grã-Bretanha, como Yorkshire e Humberside,
o PIB per capita em 2015 denhava ainda cerca de 6% abaixo do
nível anterior à crise e 14% abaixo da média nacional [...].
E escusado será dizer que essas regiões também foram as mais
atingidas quando o governo central reduziu os gastos com assistência
social e emprego no setor público após 2010 [...]. Não é de admirar
que, em ambos os países, essas regiões tenham se tornado o epicentro
de uma polarização política nacional. A polarização em si não era
nova. Nos Estados Unidos, a eleição de Ronald Reagan em 1980
e o sucesso do “Contrato com a América” de Newt Gingrich nos
anos 90 havia reetido uma crescente divisão cultural entre grandes
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
228 |
cidades etnicamente mescladas, com economias diversicadas
baseadas em serviços e os mais subúrbios brancos da “classe média
da América”. Mas essa divisão se tornou mais aparente nos anos
2000, quando os americanos se tornaram menos moderados
politicamente, mudando seu apoio para candidatos mais extremos,
tanto da direita quanto da esquerda. E como David Autor e seus
colegas mostram, houve uma correlação entre o aumento do apoio
dos eleitores a republicanos mais conservadores no Congresso e
a exposição de uma economia manufatureira local para importar
a concorrência da China. Particularmente em comunidades
majoritariamente brancas, o aumento da exposição comercial ao
longo dos anos 2000 catalisou o apoio aos republicanos do “Tea
Party” - populistas de direita que se opõem à imigração e aos
acordos comerciais multilaterais. [...] automação (ROSENBERG;
BOYLE; 2019, p. 48-51, tradução nossa).
Segundo o mesmo autor:
Finalmente, a desigualdade regional da recuperação econômica
nos dois países (acentuada pelo impacto diferencial do choque
da China nas indústrias manufatureira e de serviços), acrescentou
uma dimensão cultural e racial à política polarização que precedeu
os votos de 2016. Nos EUA, onde os brancos representam 62%
da população total, áreas não metropolitanas são 78% brancas,
enquanto esse número cai para apenas 56% nas cem maiores áreas
urbanas onde estão concentradas minorias étnicas e imigrantes
recentes. Com trabalhadores brancos assim super-representados
em áreas em declínio e sub-representadas nas regiões em expansão,
uma “classicação racial desigual de empregos” [...] chegou a
caracterizar a recuperação: dos nove milhões de novos empregos
criados entre 2007 e 2016, a maioria foi para a minorias étnicas
urbanas, enquanto os brancos tiveram uma perda líquida de
700.000 empregos (embora, no geral, é claro, os trabalhadores
brancos mantivessem sua liderança econômica signicativa sobre
as minorias étnicas). [...]
O apoio nas primárias democratas ao candidato de esquerda anti-livre
comércio Bernie Sanders foi forte em os distritos norte e centro-oeste
mais expostos à competição econômica estrangeira [...]. Quando
Hillary Clinton recebeu a indicação, no entanto, estes distritos foram
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 229
deixados sem um candidato democrata preparado para desaar o
status quo da política comercial. Eles se voltaram, portanto, para
Donald Trump, produzindo uma mudança suciente nos principais
estados do pleito - Wisconsin, Pensilvânia e Michigan - para ganhar
o voto no colégio eleitoral. Essa mudança foi especialmente forte em
municípios com uma alta parcela de trabalhos de rotina vulneráveis
a terceirização ou automação (ROSENBERG; BOYLE; 2019, p. 48-
e51, tradução própria).
Em resumo, um longo processo histórico de desenvolvimento
desigual do capitalismo da China que atraiu investimentos, indústrias e
criou empregos em condições extremamente interessantes para extração de
mais-valia para o capital nanceiro dos centros capitalistas – e dos EUA em
particular -, situado em processo histórico de competição interimperialista
e inter-hegemônica entre ambos produziu importantes repercussões na
conjuntura que resultou na eleição de Donald Trump.
a queda de trumP
Conforme já reiterado, qualquer projeto hegemônico ou
processo histórico de tal teor não é um bloco coeso, homogêneo e
monolítico e se presta a ssuras internas e contradições. As distintas
visões sobre a hegemonia norte-americana no plano internacional que
se consubstanciaram nas diferenças entre republicanos e democratas no
processo eleitoral de 2020 no nal da gestão de Trump são apenas uma
pequena amostra do embate entre as distintas frações que buscaram a
liderança e a supremacia neste processo. Dentro deste confronto surgiu a
avaliação de que a postura mais isolacionista da gestão Trump gerou, tanto
na sua parca projeção internacional quanto nas instituições internacionais,
um espaço irremediavelmente ocupado pela República Popular da China
e demandaria uma mudança de rumo focada, ao menos no nível retórico,
de uma retomada de foco na democracia, nos direitos humanos, na defesa
ambiental e na ênfase diplomática e multilateral como meios e ns da
política externa estadunidense (SCAKE, 2020).
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
230 |
A derrota de Trump no pleito presidencial de novembro de 2020
gerou muitas análises precipitadas no mesmo tom descartado nesta análise,
qual seja, o de se tomar a conjuntura pela maior amplitude. Em outras
palavras, a hipótese preliminar que se enuncia é de que a derrota de Trump
não signica doravante a ausência de sua relevância tampouco a superação
de características históricas de longa duração e superestruturais que lhe
dizem respeito.
Em termos conjunturais, alguns aspectos são apontados para sua
derrota no âmbito do senso comum. Entre eles, a crise econômica de
mais longa duração para a qual não se apresentou alternativa, tendo sido
a mesma agravada pela pandemia do coronavírus. A condução interna da
crise sanitária, pautada pelo negacionismo cientíco e pela ausência de
medidas adequadas se constituiriam em outros fatores. O racismo e sua
perspectiva xenófoba seriam outros agravantes.
Alguns aspectos aparentes, conjunturais também dão o ensejo para
uma análise que talvez tangencie aspectos superestruturais.
A votação de Joe Biden, o oponente de Trump, cou bem abaixo
das expectativas em termos absolutos. Também neste tópico, a adesão do
eleitorado negro e de ascendência latino-americana cou muito abaixo do
esperado. A votação para o Partido Democrata que lhe atribuiu maioria
na Câmara dos Representantes cou abaixo do previsto, tendo perdido
várias cadeiras na mesma para o Partido Republicano de Trump em relação
à composição anterior. No Senado, a maioria democrata só foi possível
graças ao voto de desempate da vice-presidente, Kamala Harris, que tem
como prerrogativa presidir a Câmara Alta.
Algumas tendências foram constatadas no perl majoritário dos
eleitores dos dois partidos. Os mais pobres, os negros, os descendentes de
latinos e de outras origens, os eleitores dos centros urbanos e metrópoles
e as mulheres votaram majoritariamente em Biden. Brancos, homens, os
mais abastados e os habitantes das pequenas cidades e áreas rurais votaram
majoritariamente em Trump.
O início do governo de Joe Biden, a despeito de medidas imediatas
que buscaram reverter várias políticas de Trump, levará algum tempo
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 231
para fazer frente a várias delas, como as indignas condições expostas aos
imigrantes ilegais, se é que de fato isto ocorrerá. Neste caso, considera-
se o fato de que no governo Obama, no qual Biden era vice-presidente,
a deportação alcançou cifras crescentes e maiores em relação a governos
anteriores (WASHINGTON, 2020).
A referência de Trump como líder carismático é objeto de várias
dúvidas, se tomarmos o conjunto das análises. Se por um lado, análises mais
apressadas viram seu m na derrota eleitoral, por outro, outras sugeriram
tendências no sentido contrário. Dentre elas, Trump seria uma referência
que seria maior que o próprio Partido Republicano, ou mesmo que este
partido veria sua gura como inconveniente e de que teria ultrapassado todos
os limites de ideias e práticas conservadoras e autoritárias. Trump enunciou
também retórica com intenções de voltar se candidatar a ser presidente.
Nesta mesma direção, outros indícios recentes indicam a continuidade
da relevância do líder carismático referido. A invasão violenta do Capitólio,
sede do legislativo estadunidense, resultou em cinco mortes em 6 de
janeiro de 2021 e foi incitada pela presença de Trump em manifestação
ocorrida no mesmo dia nas proximidades e nas suas redes midiáticas. Todo
este processo teve como pano de fundo as acusações do ex-mandatário de
fraudes nas eleições, ponto enfatizado desde o processo antecedente ao
início das mesmas em novembro de 2020.
Completa este quadro a última absolvição do processo de impeachment
que Trump recebeu no Senado estadunidense em 13 de fevereiro de 2021.
Há indícios de que questões ideológicas de médio e longo prazo
vem incidindo sobre esse processo e não somente nos Estados Unidos. A
União Europeia tem apresentado vários processos associados, ao menos
em parte, com conteúdos nacionalistas, xenófobos e autoritários de
resistência ao aprofundamento de seu processo de integração. Isto é datado
aproximadamente desde, por exemplo, a consulta ao eleitorado francês
em 2005, que rejeitou a adesão à Constituição europeia. Obviamente, o
processo mais recente associado a tal tendência é o BREXIT, a decisão do
eleitorado britânico de saída da União Europeia.
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Tudo isto se soma à existência de fortes tendências nacionalistas,
racistas e xenófobas no mundo todo em meio ao contexto da duradoura
crise econômica global inaugurada em 2008. Isto se traduziu em governos
com tal orientação. Exemplicam isto, entre outros, Duterte, nas Filipinas,
Orban, na Hungria; Morawiecki, na Polônia; Kurz, na Áustria; Erdogan,
na Turquia; Modi, na Índia; Bolsonaro, no Brasil; Bukele, em El Salvador.
Trump é normalmente classicado como fascista e populista,
até mesmo pela literatura que o analisa inspirada pelo viés gramsciano
(CREHAN, 2018). Tais classicações suscitam o resgate de uma passagem
escrita por Gramsci (1975, p 1602-1603) sobre as relações de força e os
períodos de crise orgânica (muito provavelmente escrito a propósito do
ascenso do ditador fascista Benito Mussolini), assim traduzida por Carlos
Nelson Coutinho:
Em um certo ponto de sua vida histórica, os grupos sociais se
separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais
naquela forma organizativa, com aqueles determinados homens que
os constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos
como sua expressão por sua classe ou fração de classe. Quando se
vericam essas crises, a situação imediata torna-se delicada e perigosa,
pois abre-se o campo às soluções de força, à atividade de potências
ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismáticos.
Como se formam estas situações de contraste entre representantes e
representados, que, a partir do terreno dos partidos (organizações de
partido em sentido estrito, campo eleitoral-parlamentar, organização
jornalística), reete em todo o organismo estatal, reforçando a posição
relativa do poder da burocracia (civil e militar), da alta nança, da
Igreja e, em geral, de todos os organismos relativamente independentes
das utuações da opinião pública? O processo é diferente em cada
país, embora o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de
hegemonia da classe dirigente, que ocorre ou porque a classe dirigente
fracassou em algum empreendimento político para o qual pediu ou
impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra) ou
porque amplas massas (sobretudo de camponeses e de pequenos-
burgueses intelectuais) passaram subitamente da passividade política
para uma certa atividade e apresentam reivindicações que, em seu
conjunto desorganizado, constituem uma revolução. Fala-se de “crise
de autoridade”: e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise
do Estado em seu conjunto. (GRAMSCI, 2000, p. 60).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 233
A passagem suscita várias questões que incidem sobre a análise de
relação de forças do objeto em tela. A crise mundial em curso e as ideologias
que lhes dizem respeito são um período de crise orgânica? Existem crises de
hegemonia associadas aos adventos de governos autoritários, antiiluministas
e conservadores no mundo todo, como aquele de Donald Trump? Ele e os
mandatários de perl semelhantes podem ser classicados como fascistas
ou mesmo populistas? Em alguma medida, o quadro histórico e ideológico
atinente ao fascismo italiano comporta alguma forma de tradução no
sentido gramsciano, ou seja, de ressignicação histórica guardando algumas
de suas perspectivas originais.
Estas questões se constituem grandes desaos analíticos e requerem
cautela, sob pena de se perder de vista, inclusive, as especicidades históricas
que dizem respeito ao fascismo. Em vista disto, evita-se a aplicação de
fascismo e de populismo. Certamente, como uma perspectiva histórica de
longa duração, requer tempo e aprofundamento investigativo-analítico
que transcende o escopo desta reexão.
conclusão
Ao longo desta breve reexão, foram apresentados alguns argumentos
centrais.
A análise gramsciana de relações de força não se pauta pela
unidimensionalidade nem pelo apego somente a conjunturas. Ela parte
de processos históricos vistos em sua amplitude e totalidade a m de
diagnosticar todas as potencialidades desiguais de produção da vida e suas
contradições como parte da avaliação sobre a geração de uma signicativa
transformação histórica ou, de forma distinta, uma certa continuidade de
tal trajetória.
Os elementos iniciais aqui apresentados apontam para uma
perspectiva orgânica, de longa duração e contínua tradução, transformação
da hegemonia norte-americana fordista capitaneada pelas classes e frações
controladoras do capital nanceiro estadunidense. Sob a hipótese de uma
lógica e especicidade de um processo histórico de revolução passiva, o
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
234 |
fordismo em questão é recepcionado, traduzido e ressignicado em todo
o mundo em distintas temporalidades de produção da vida, como ocorreu
na China de forma mais intensa a partir do nal dos anos 70.
Ainda como hipótese, o processo desigual de desenvolvimento
econômico chinês com seus traços especícos de revolução passiva se
congurou como um curso histórico de longa duração insuciente para
reverter a hegemonia estadunidense. Mas ocorreu de forma suciente
para se associar à nova crise orgânica do capital inaugurada em 2008 e aos
efeitos mais duradouros da nova divisão internacional do trabalho em que
se coloca como dependente dos EUA, produzindo efeitos relevantes nas
classes – notadamente de brancos de grandes centros – que perderam seus
empregos de modo a direcioná-los para o voto em Trump.
A ascensão de Trump se relaciona também a processos de polarização
em que se reforçam as posições conservadoras, xenófobas, racistas de longo
prazo nos Estados Unidos e que se somam a fortes tendências de caráter
global que resultaram em decisões como o BREXIT e a ascensão de governos
de posições congêneres em distintos Estados. Muito provavelmente, sua
derrota na eleição estadunidense não implicará na perda de sua relevância
tampouco o apelo ideológico e material que lhe dá sustentação numa
perspectiva histórica de longo prazo.
A questão de longo prazo também suscita eventuais nexos ou
possibilidades de tradução (no sentido gramsciano) do período em curso
referente às ideias autoritárias de Trump e experiências semelhantes em
relação ao fascismo e sua classicação dentro de um populismo. Tais pontos
vão além do escopo desta análise e certamente demandam investigações
futuras mais aprofundadas.
Toda análise de conjuntura se expõe a riscos que somente a análise
do processo de longa duração pode dirimir. Portanto, coloca-se em aberto
esta reexão para o debate.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 235
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  2020 
E U
Luiza Rodrigues MATEO
1
As eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos foram
paradigmáticas em vários sentidos. Mesmo em meio à pandemia de
COVID-19, que teve neste país sua expressão mais severa em número
de casos e mortes, o comparecimento às urnas bateu seu recorde
histórico. O volume de americanos recorrendo ao voto antecipado por
correio e comparecimento à urna no dia três de novembro é reexo de
um país polarizado. Joe Biden e Donald Trump foram a representação
não somente da clássica competição bipartidária entre democratas e
republicanos, mas de visões muito distintas do que é e do que deveria
ser a “América”. O posicionamento antagônico dos candidatos quanto
Professora no curso de Relações Internacionais e no Mestrado Prossional em Governança Global e Formulação
de Políticas Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). E-mail: luizamateo@
hotmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1945-9853.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-227-7.p237-254
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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a tensões sociais advindas do racismo estrutural e da brutalidade
policial contra populações negras e latinas, ou a permissividade quanto
aos movimentos supremacistas brancos e a xenofobia escancarada, são
exemplos claros de uma nação dividida.
Após o lento e fragmentado processo de apuração de votos no sistema
indireto de colégio eleitoral, e em face do questionamento da própria
legitimidade das eleições, o resultado nal foi favorável ao democrata.
Biden venceu com 306 votos no colégio eleitoral, contra apenas 232
delegados de Trump, tendo sido o presidente que mais recebeu votos na
história dos Estados Unidos. No entanto, ao analisar os números absolutos
de votos registrados, nota-se que a diferença entre ambos foi de apenas sete
milhões de votos, numa proporção acirrada de 51,3% de votos para Biden
contra 46,9% de votos para Trump.
A pequena margem na vitória democrata de 2020 indica a
continuidade da importância política de Trump e do trumpismo, inclusive
para o futuro do Partido Republicano. As tendências recentes de adesão
popular ao Grand Old Party (GOP) se mantiveram e se aprofundaram:
Trump recebeu majoritariamente o voto de homens, idosos, brancos,
com menor nível de escolaridade e residentes no interior do país. As
divisões geográca, etária, racial, de gênero e educação formal se somam
a outra dinâmica também relevante, o chamado God Gap: o apoio dos
conservadores religiosos e principalmente daqueles que frequentam os
serviços religiosos com maior frequência.
A despeito de nítidas contradições entre a agenda moral dos
movimentos conservadores americanos com a vida pessoal Trump,
destaca-se a delidade da chamada direita cristã ao Partido Republicano,
e ao próprio trumpismo. Buscaremos nesse capítulo reetir sobre o papel
político-eleitoral da direita religiosa e do voto religioso nos Estados Unidos,
com ênfase na corrida presidencial de 2020. Nosso objetivo é lançar luz
sobre os padrões de mobilização, as principais pautas e comportamento
político desta que segue como força singular na mobilização ao voto, no
conservadorismo estadunidense, e no próprio Partido Republicano.
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 239
a direita cristã e a moBilização do voto reliGioso
A direita cristã pode ser considerada a conjunção de ativistas religiosos
dispostos a defender pautas conservadoras-morais, que começaram a atuar
na cena política estadunidense dos anos setenta. Na década anterior, grandes
mudanças sociais, como o fortalecimento de movimentos feminista,
de contracultura, antiguerra, a expressão da nova esquerda nos campi
universitários americanos, entre outros, mobilizaram uma contrarreação
pela “retomada dos valores tradicionais da família americana”.
Assim, não se trata de um partido, organização ou movimento com
liderança e pautas unicadas, mas da articulação tática entre evangélicos
conservadores, fundamentalistas protestantes, ou católicos de direita
dispostos a lutar contra o avanço liberal e progressista, defendendo
legislações e apoiando candidatos conservadores nos níveis local, estadual e
nacional. Seu amálgama é o receio de que os valores cristãos da sociedade
americana estejam sob ameaça do secularismo (HAYNES, 2021).
Algumas agendas aglutinaram a luta contra o “declínio moral
da América” ao longo da história: a revolução sexual, o direito ao
aborto e eutanásia, ou mesmo o crescimento da indústria pornográca.
Posteriormente, as pesquisas com células tronco, a conquistas de direitos
LGBTQ+ e, principalmente, o direito da oração nas escolas e manifestações
públicas da fé – enquadradas nas premissas da liberdade religiosa
(MARSDEN, 2008).
Dois marcos da articulação da direita cristã foram a oposição à
mudança constitucional que aboliu a discriminação de gênero, o Equal
Rights Amendment (de 1972), e o caso Roe vs. Wade julgado pela Suprema
Corte em 1973, garantindo o direito ao aborto. Ao nal da década de
setenta, surgem importantes iniciativas em defesa dos temas morais, como
a Christian Action Coalition, Religious Roundtable, Moral Majority, Christian
Voice, American Family Association, Focus on the Family, ou Concerned
Women for America, para citar as mais inuentes. Assim, atuam através
de “mobilização de base” e de campanhas de advocacy, do lobby articulado
em Washington DC (sobretudo junto ao Capitólio) e de think tanks (a
exemplo da Heritage Foundation). A capilaridade da direita cristã se deve
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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tanto aos elevados níveis de liação religiosa (sobretudo entre evangélicos),
como à grande presença midiática, originada com programas de rádio e
televisão como o Old Time Gospel Hour de Jerry Falwell ou o e 700 Club
de Pat Robertson.
A direita cristã continua sendo um ator central na chamada
guerra cultural” em que os polos liberal e conservador disputam pautas
sociais como políticas de controle de natalidade. Para além do interesse
dos conservadores cristãos pela política, também se consolida seu nível
de comprometimento partidário (WILLIAMS, 2010). Cresce a relação
profunda com o Partido Republicano, que colherá os primeiros frutos na
eleição de Ronald Reagan, em 1980.
A Moral Majority de Falwell teve um papel importante para a
mobilização dos conservadores religiosos em torno da candidatura de
Reagan, moldando uma visão para a direita cristã que permanece forte até
hoje (FEA, 2018). A conuência entre movimentos (neo)conservadores
distintos – nos campos moral, político e econômico – é a estrutura da
chamada nova direita americana (FINGUERUT, 2009). Também no plano
local, as lideranças da direita cristã operam dentro do partido Republicano,
pressionado congressistas a partir de suas bases eleitorais.
Nos ciclos eleitorais seguintes, a direita cristã manteve sua relevância.
Como o voto nos Estados Unidos é facultativo, um elemento crucial
para entender os padrões de comportamento político é a mobilização
para as urnas. E dentre as principais tendências do voto religioso, há
dois claros comportamentos eleitorais que se destacam pela estável
adesão aos candidatos republicanos: o voto dos evangélicos brancos
(white evangelical protestants) e o voto daqueles que frequentam a igreja
regularmente (church attendance).
No início do século XXI, 60 milhões de americanos (em torno de
20% da população) se identicaram como membros ou simpatizantes
da direita religiosa (MEAD, 2007, p.111-12). Recentemente, destaca-
se a composição dos votos para George W. Bush, que recebeu o aval de
68% dos evangélicos brancos em 2000 e 78% na sua reeleição, em 2004.
Cresceu de maneira signicativa, também, a bancada religiosa em ambas
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 241
as casas do Capitólio, que avançou de 10% dos congressistas em 1970 para
25% em 2004.
Nos ciclos posteriores, apesar das derrotas republicanas para Barack
Obama, o GOP ainda foi amplamente apoiado pelos evangélicos brancos,
que conferiram 73% dos votos para John McCain em 2008 (THE PEW
FORUM, 2010) e 79% dos votos para Mitt Romney em 2012 (THE PEW
FORUM, 2012). Ainda que a inuência da direita cristã tenha diminuído
durante o governo Obama, a vitória de Trump marcou seu retorno para o
palco político nacional (BETTIZA, 2019).
A corrida pela Casa Branca em 2016 foi amplamente inuenciada
pelo apoio da direita cristã à Trump, que recebeu apoio explícito de
líderes inuentes como James Dobson (Focus on the Family), Tony Perkins
(Family Research Council), Ralph Reed (Christian Coalition), Jerry Falwell
Jr. (Liberty University). Recebeu também 77% dos votos de evangélicos
brancos, enquanto apenas 16% votaram para Hillary Clinton. Segundo
pesquisa de opinião do Pew Forum, daqueles que frequentam a igreja
frequentemente (ao menos uma vez na semana) aproximadamente 58%
votaram para Trump, e apenas 38% para Hillary. No sentido inverso,
dentre os que armaram nunca participar de serviços religiosos, Hillary
Clinton recebeu 61% dos votos contra 30% para Trump (THE PEW
FORUM, 2018).
Nas eleições de 2020, o apoio do bloco religioso seguiu padrão
similar. Segundo levantamento do Gallup, Trump recebeu entre 76%
a 81% dos votos de evangélicos brancos, enquanto apenas 18% a 24%
votaram para o candidato democrata Joe Biden (NEWPORT, 2020).
O desempenho de Trump, no entanto, não foi tão expressivo dentre
outros grupos demográcos, sobretudo os protestantes negros e católicos
hispânicos, além de judeus, agnósticos e ateus que preferiram o Partido
Democrata por ampla margem (SMITH, 2020).
Cabe ressaltar que, as eleições indiretas no sistema de colégio eleitoral
acentuam a importância do voto de determinados grupos demográcos, em
função de sua concentração em alguns estados com maior peso relativo no
somatório dos 538 delegados. O bom desempenho de Trump nos estados
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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do Sun Belt foi alavancado, principalmente, pelo voto religioso: o apoio
de evangélicos brancos a Trump foi de 82% na Flórida, 89% na Geórgia,
86% na Carolina do Norte e 82% no Texas, por exemplo (RUBIN, 2020).
Biden, por outro lado, contou com a adesão do voto católico
em estados decisivos como Pennsylvania, Michigan e Wisconsin.
O desempenho do democrata junto ao eleitorado católico em 2020
(com 52% votando para Biden contra 47% para Trump), foi superior
em relação ao ciclo de 2016 (quando 46% dos católicos votaram para
Clinton, e 50% para Trump). As exceções foram o peso diferencial dos
votos de católicos latinos para Trump em estados como a Flórida, por
exemplo (RUBIN, 2020).
É importante mencionar, no entanto, que o voto religioso não é
totalmente homogêneo. Nas eleições de 2020, importantes movimentos
religiosos não apoiaram a candidatura republicana de Trump: é o caso da
National Association of Evangelicals, maior organização evangélica dos EUA
(HAYNES, 2021). Outros concederam, inclusive, apoio ao democrata,
como os movimentos como Jerushah Duford, autora gospel e neta de
Billy Graham que liderou o movimento Pro-Life Evangelicals for Biden,
e outros movimentos como Not Our Faith e Evangelicals for Biden. A
organização progressista Vote Common Good buscou arregimentar o voto
religioso cristão contra Trump. Em outubro de 2020, uma carta de apoio
ao democrata reuniu 1600 assinaturas de lideranças religiosas, sobretudo
entre católicos, evangélicos e protestantes tradicionais (MATEO, 2020).
O que podemos concluir, desta maneira, é que o eleitorado religioso e
sobretudo evangélico (amplamente mobilizado pela direita cristã) continua
relevante na composição do voto nos Estados Unidos. Nos últimos trinta
anos, os evangélicos ou renascidos cristãos (born-again christians) se
mantiveram na estável na casa dos 40% da população americana (SMITH,
2020). Aproximadamente 60% dos evangélicos costumam votar, e destes
três quartos votam constantemente no Partido Republicano. Em 2020,
totalizaram 44% dos americanos registrados para votar (número superior a
qualquer outro grupo demográco).
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 243
A identicação dos religiosos com o GOP, como vimos é histórica
e se deve às alianças forjadas no seio do conservadorismo americano.
Quase metade dos evangélicos se identicam com o Partido Republicano
(49%), enquanto um terço se considera independente (31%) e apenas
14% se identica como democrata (JONES; COX, 2017, p. 36-37). A
única denominação religiosa que se aproxima deste nível de identicação
partidária é o mormonismo, com 44% de éis autodeclarados republicanos,
mas que não têm a mesma expressividade demográca, compondo apenas
2% da população dos EUA.
Como ilustrado na gura abaixo, a polarização partidária em função
do perl religioso é clara, ainda que tenha se alterado na última década:
os cristãos tendem a votar em candidatos republicanos, enquanto os não-
religiosos tendem a votar nos democratas.
Figura 1: Perl de identicação religiosa e partidária
Fonte: PEW RESEARCH CENTER (2019, p.17).
Do ponto de vista da regularidade da prática religiosa, o nível de
adesão partidária é igualmente polarizado: os assíduos aos cultos religiosos
tendem a votar no Partido Republicano, enquanto aqueles que frequentam
raramente a igreja tendem a votar no Partido Democrata.
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Figura 2: Regularidade da prática religiosa e identicação partidária
Fonte: PEW RESEARCH CENTER (2019, p.17).
As transformações identicadas pelas guras acima sugerem reetir
sobre o futuro impacto do voto religioso. Destaca-se, neste sentido, a queda
signicativa na liação às dominações tradicionais nos EUA: ainda que a
maioria dos americanos continuem se identicando como cristãos (65%),
o volume representa uma queda de 12% em relação à última década. De
maneira semelhante, o volume de americanos que se identicam como
não-religiosos – entre ateus, agnósticos e os chamados “nones” (nothing
in particular) – cresceu de 17% para 26% entre 2009 e 2019 (PEW
RESEARCH CENTER, 2019, p.3).
As transformações ganham maior impacto quando cruzamos o perl
da religiosidade com as transformações demográcas nos Estados Unidos.
Isso porque o padrão de “adesão religiosa” declinou sobretudo entre os
mais novos: 38% dos americanos entre 18 e 29 anos se identicam como
nones” – em movimento decrescente conforme a faixa etária. Os dados
compilados pelo Public Religion Research Institute indicam 26% de “nones
na faixa dos 30 aos 49 anos, 18% entre 50 e 64 anos, e 12% dos americanos
acima dos 65 anos. No extremo oposto, a identicação como protestantes
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 245
evangélicos brancos é maior conforme a faixa etária, perlando 26% dos
idosos acima dos 65 anos, 21% daqueles entre 50 e 64 anos, 14% dos 30
aos 49 anos e apenas 8% dos jovens na xa dos 18 aos 29 anos (JONES;
COX, 2017, p.11).
A gura abaixo transcreve esta mudança geracional que tende a
impactar a relação entre a religião e os padrões de votação nos Estados
Unidos. A despeito da capacidade de mobilização política que a direita
cristã possa manter, a crise de identicação com as tradições cristãs, em
particular junto à população mais jovem americana, tenderá a alterar
efetivamente o espaço de ação do movimento conservador religioso.
Figura 3: A lacuna geracional na religiosidade americana
Fonte: PEW RESEARCH CENTER (2019, p.8).
trumP, a direita cristã e o nacionalismo reliGioso
O amplo apoio dos conservadores cristãos e da direita cristã a
Trump mantém o padrão histórico de delidade ao Partido Republicano.
Se diferencia, entretanto, na medida em que o magnata e showman,
diferentemente de seus antecessores, nunca foi um exemplar representante
da “moral e bons costumes”. Para além da vida pessoal de Trump, marcada
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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pelos divórcios e escândalos, ele nunca demonstrou publicamente ser um
“homem de fé” ou ter relações próximas com lideranças religiosas.
No entanto, a relação entre Trump e a direita cristã se consolidou
em mútua dependência desde a eleição de 2016 e durante seu mandato
presidencial. Trump foi considerado, assim, uma opção viável para defender
os valores da direita cristã, num contexto de polarização política nos EUA.
Nas palavras de James Dobson, importante líder evangélico e fundador
do Focus on the Family, deveríamos nos preocupar mais com o futuro da
América do que com o passado de Trump (MILLER, 2018, p.1).
Para Haynes (2021), esta relação se consolida na base da troca,
visível principalmente com a nomeação de juízes conservadores para
a Suprema Corte e com a defesa da liberdade religiosa. A recompensa
ao apoio da direita cristã teria vindo com as nomeações dos juízes Neil
Gorsuch, em fevereiro de 2017, Brett Kavanaugh, em outubro de 2018
e a polêmica nomeação de Amy Coney Barrett, já no m do mandato
presidencial em outubro de 2020. Com as três nomeações, a Suprema
Corte dos EUA teria uma “maioria conservadora” assegurada (com seis
juízes conservadores contra três considerados liberais). A expectativa em
torno dessa composição era, por exemplo, que a Suprema Corte pudesse
restringir o acesso ao aborto, revendo prerrogativas denidas nos anos
setenta a partir do caso Roe vs. Wade.
Outra compensação importante foi a indicação de conservadores
religiosos para cargos de alto escalão no governo trumpista, a exemplo do
próprio vice-presidente Mike Pence, que se descreve como “um cristão,
um conservador e um republicano – nessa ordem”. Destaca-se ainda a
nomeação, em maio de 2018, do ex-Secretário de Estado Mike Pompeo,
que arma ter uma bíblia aberta em sua mesa de trabalho para guiar suas
decisões. Além de William Barr, indicado para a Procuradoria Geral da
República em janeiro de 2019, dentre outros nomes ligados à direita cristã
em diversas posições da burocracia republicana (HAYNES, 2021, p.5).
Dos temas sociais que aglutinam esforços entre religiosos
conservadores nos Estados Unidos, é justamente a defesa da liberdade
religiosa que se torna a franca moeda de troca no governo Trump. Logo no
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 247
início do seu mandato, Trump lançou a ordem executiva Promoting Free
Speech and Religious Liberty (EXECUTIVE ORDER 13798, 2017). Na
prática, o decreto presidencial não altera os diretos previstos na Primeira
Emenda e na jurisprudência consolidada pela Suprema Corte em matéria de
liberdade religiosa, mas sinaliza positivamente para o avanço dos interesses
da direita cristã em Washington (MATEO, 2020). Mirando no apoio da
direita cristã para sua reeleição, Trump volta a publicamente defender a
bandeira da liberdade religiosa, anunciando em 16 de janeiro de 2020 a
instituição do National Religious Freedom Day.
Muitas dimensões sociais são impactadas por decisões federais em
matéria de liberdade religiosa, a exemplo da educação, através do lobby
articulado em defesa da oração ou do ensino religioso nas escolas públicas.
O apoio da Casa Branca a esta agenda central para a direita cristã veio
através da guidance letter do Departamento de Educação (de janeiro 2020),
que reforça o direito constitucional à livre expressão religiosa. A questão
do “school choice” – que garantiria incentivos scais para alunos que
frequentam escolas religiosas privadas e apoio ao homeschooling – contou
com o apoio de Trump, que se manifestou favoravelmente ao projeto de
lei Education Freedom Scholarships and Opportunities Act”, proposto pelo
senador republicano pelo Texas, Ted Cruz (MATEO, 2020).
No âmbito estadual e local, cabe mencionar o chamado Project
Blitz, que acumulou um “repertório de projetos de lei” para inspirarem
proposições dos legisladores locais nos avanços pela liberdade religiosa. A
iniciativa foi articulada pela Congressional Prayer Caucus Foundation, que
se propõe a defender o livre exercício da tradição e dos valores religiosos
judaico-cristãos no espaço público. O Project Blitz teria inspirado ao
menos 75 projetos de lei propostos em mais de 20 estados desde 2017
(TAYLOR, 2019).
As propostas legislativas, conhecidas como In God We Trust Bills,
acabam representando a instrumentalização da defesa da liberdade religiosa
ao garantir o direito a demonstrações religiosas em locais públicos, o
estudo religioso nas escolas, e a legitimação de medidas discriminatórias
justicadas por “crença particular”. Este é o caso da “liberdade religiosa
assegurada a comerciantes que se negam a atender a clientes LGBTQ+,
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
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ou trabalhadores da área da saúde que não fariam atendimentos visando a
interrupção de gravidez (TAYLOR, 2019).
No plano internacional, Trump também sinalizou esforços na defesa
da liberdade religiosa. A ordem executiva Advancing International Religious
Freedom identicou a questão como imperativo moral e interesse de
segurança nacional para os EUA, rearmando o compromisso da National
Security Strategy de 2017: “os fundadores da nação entendiam a liberdade
religiosa não como uma criação do Estado, mas um dom de Deus para
cada pessoa e um direito que é fundamental ao orescimento de nossa
sociedade” (EXECUTIVE ORDER 13926, 2020).
A inserção da liberdade religiosa internacional na política externa dos
EUA não é um feito de Trump, pois data do nal do governo Clinton. Em
grande medida a aprovação do International Religious Freedom Act (IRFA),
de outubro 1998, se deveu ao lobby da direita cristã, conjuntamente
com outros grupos de interesse de diretos humanos. O IRFA deu origem
a uma estrutura de monitoramento da perseguição a minorias religiosas
e de violações à liberdade religiosa no mundo. Foi constituída, então, a
uma comissão no Departamento de Estado, a United States Commission
on International Religious Freedom (USCIRF), com o objetivo de avançar
globalmente a norma da liberdade religiosa, por meio de relatórios anuais
sobre o status da perseguição a minorias (visando à estratégia naming and
shaming de constrangimento de violadores), instituindo condicionalidades
para elegibilidade de ajuda externa, além de recomendações diplomáticas
que incluiriam sanções (MATEO, 2011).
A USCIRF sempre teve em sua diretoria pessoas próximas à direita
cristã, sobretudo as nomeadas pela gestão W. Bush. Trump também indicou
para a USCIRF diversos ativistas conservadores ligados ao Family Research
Council, Focus on the Family, Patriot Voices, para citar os mais conhecidos.
Haynes (2020) avalia que a grande mudança na política de liberdade
religiosa internacional sob Trump foi o rompimento com uma abordagem
multi-religiosa das administrações anteriores, colocando foco mais claro
na perseguição de minorias cristãs. De Clinton a Obama, a linguagem
e atuação da USCIRF focou numa abordagem pluralista dos direitos
humanos. Na administração Trump, capitaneada por burocratas ligados à
Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias
| 249
direita cristã como Sam Brownback, Ambassador-at-large for International
Religious Freedom, e Tony Perkin, diretor da USCIRF, promoveram a
centralização em torno da liberdade e valores cristãos (HAYNES, 2020).
Mike Pompeo, que assumiu o Departamento de Estado no início de
2018, também avançou iniciativas para promoção da liberdade religiosa
internacional, notadamente a criação do Ministerial on Religious Freedom
(2018), da Commission on Unalienable Rights (2019), e do International
Religious Freedom Alliance (2020). Os discursos de Pompeo foram bastante
enfáticos na denúncia da perseguição de minorias cristãs no exterior, ou na
insuciência de políticas governamentais de garantia da liberdade religiosa
em países estratégicos, como Turquia, Rússia, Irã e principalmente a China
(MATEO, 2020).
Em visita diplomática ao Vaticano, em setembro de 2020, o
Secretário de Estado denunciou particularmente as minorias perseguidas
na China, entre mulçumanos uigures de Xinjiang, budistas do Tibete,
além de minorias protestantes e do Falun Gong. Nota-se, assim, que a
questão da liberdade religiosa também foi instrumental ao enfrentamento
colocado ao governo Pequim durante toda administração Trump. Em
diversas ocasiões, Pompeo também acusou a China de manter “campos
de concentração” com milhões de perseguidos religiosos. Nota-se, ainda,
que os relatórios anuais da USCIRF trouxeram condenações diplomáticas
sobretudo aos países de maioria mulçumana, assentando-se de reproches
aos aliados como Arábia Saudita e Índia. Destacam-se na lista dos “countries
of special concern” os países ex-soviéticos da Ásia Central – Azerbaijão,
Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão
(MATEO, 2020).
Para Miller (2018), não se trata apenas de uma associação estratégica
de quid pro quo, ou da identicação com uma narrativa de declínio e
salvação – o apoio dos evangélicos a Trump foi antes, de tudo resultado
da própria centralidade do conservadorismo e da lealdade ao GOP na
construção identitária do evangélico estadunidense. O apontamento vai
além da aliança simbiótica entre os universos da religião e política, para
sugerir que nos Estados Unidos contemporâneos, a ambas esferas estão
fundidas no plano identitário.
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É notória, nesse sentido, a importância da narrativa do “nacionalismo
cristão” empreendida por Trump, a m de dialogar diretamente com
aqueles que expressavam profundo receio quanto às rápidas transformações
culturais da sociedade americana. Em discurso durante a corrida
presidencial de 2020, Trump se colocou como única opção diante do
avanço da esquerda radical cujo objetivo seria “tirar nossas armas, destruir
a Segunda Emenda, nenhuma religião, nada, ferir a Bíblia, ferir a Deus
(apud MOLINE, 2020).
O discurso sobre o “declínio da América” ressoa entre os mais
religiosos (sobretudo evangélicos) como derivado da corrosão da identidade
americana enquanto nação cristã (e branca). Por consequência, o desejo de
retomar um “passado glorioso” resumido pelo slogan Make America great
again. Na narrativa do nacionalismo cristão, a moralidade nos Estados
Unidos estaria sob ameaça de forças tanto internas como externas (SCALA,
2020). Trata-se se uma identicação inclusive com a ansiedade diante
do aumento de “outsiders” culturais e étnico-religiosos, além do apreço
velado pelo discurso misógino e xenofóbico de Trump (BAKER; PERRY;
WHITEHEAD, 2020).
A instrumentalização da narrativa nacionalista-cristã não é
necessariamente uma inovação de Trump. No passado recente, foi
mobilizada como fator de unicação do país diante dos ataques terroristas
de 11 de setembro de 2001, e da deagração da guerra global ao terror,
por vezes enunciada como uma “cruzada entre o bem e o mal” por George
W. Bush. Durante o governo Obama, a narrativa também foi amplamente
utilizada pelo Tea Party, conferindo à Sara Palin grande adesão dos eleitores
evangélicos quando concorreu como vice na chapa presidencial de McCain
(MATEO, 2016).
De todo modo, Trump conseguiu mais uma vez utilizar o componente
nacionalista para ativar o apoio de religiosos conservadores, sinalizando
a defesa dos valores cristãos na esfera pública. Por outro, garantiu a
proximidade estratégica com a direita religiosa, dando à Suprema Corte
contornos permanentes que podem alterar o futuro de diversas políticas
sociais, inclusive a questão da liberdade religiosa.
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conclusões
O ponto de partida deste capítulo é o resultado das eleições
presidenciais de 2020, que deu a vitória a Biden e explicitou algumas
tendências demográcas do voto nos Estados Unidos. Abordamos, assim,
o papel do voto religioso conservador, especialmente do evangélico branco
americano, que nos últimos ciclos eleitorais se manteve como base de
apoio fundamental do Partido Republicano. Sem esgotar as especicidades
do comportamento desse heterogêneo grupo social, vericamos que ao
longo dos últimos anos houve uma forte predileção partidária, garantindo
porcentagem de votos signicativa aos republicanos, a despeito da derrota
de Trump nesta última eleição.
Um contraponto a esta lealdade histórica são as próprias mudanças
na paisagem religiosa americana. Ou seja, o encolhimento da parcela da
sociedade americana que se autodenomina cristã, e particularmente dos
adeptos de denominações tradicionais, vis a vis o aumento da parcela que não
se identica com alguma religião, os “nones”. A tendência é mais relevante
para as camadas mais jovens da população, indicando um encolhimento
progressivo do estrato que divide uma identidade conservadora tanto no
plano religioso quanto político.
Outro ponto de reexão foi a relação particular estabelecida entre
Trump e a própria direita cristã. Esta se consolidou, desde os anos 80,
como força política relevante na defesa de políticas públicas conservadoras
e na articulação dessa mesma base eleitoral religiosa. Parte integral da nova
direita americana, a direita cristã se aproximou de Trump, um outsider
político que se instalou na Casa Branca em 2017. Múltiplas são as hipóteses
levantadas para explicar esta associação nada previsível. De um lado, pode-
se reetir sobre como o conservadorismo político (e a delidade ao GOP)
é o próprio substrato da “experiência identitária” evangélica.
De outro, ca claro o sucesso de Trump na articulação de uma
narrativa em torno do nacionalismo cristão, dialogando diretamente com
a “ansiedade social” de uma parcela importante da população americana.
Ressentidos com as transformações culturais e os avanços políticos liberais,
Jeerson Rodrigues Barbosa e Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
252 |
os conservadores aderiram à promessa de “resgate” de uma América
gloriosa, construída a partir da moralidade cristã.
Por m, identica-se também a disposição de Trump, ao longo
do seu mandato presidencial, em “honrar as promessas” feitas à direita
cristã em 2016, viabilizando uma guinada conservadora na Suprema
Corte dos Estados Unidos. Como exemplo, destacou-se também o
comprometimento público com a defesa da liberdade religiosa (nos planos
doméstico e internacional), com desdobramentos para políticas públicas
como educação, dentre outras.
Ainda que as medidas adotadas pela Casa Branca não tenham
alterado antigos compromissos em matéria de liberdade religiosa, abriram
caminho para conquistas de lobistas e legisladores sobretudo nos planos
estadual e local. Aquelas adotadas pelo Departamento de Estado, por sua
vez, viabilizaram um recrudescimento das relações com países violadores
da liberdade religiosa (sobretudo de cristãos), assim como uma guinada
conservadora do posicionamento diplomático em fóruns multilaterais no
que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo.
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2022
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Jefferson Rodrigues Barbosa
Oscar A. Piñera Hernández
(Organizadores)
EXTREMISMOS POLÍTICOS E DIREITAS:
Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias”
EXTREMISMOS POLÍTICOS E DIREITAS:
Bolsonaro, Trump e a crise das “democracias”
Jefferson Rodrigues Barbosa
Oscar A. Piñera Hernández (Org.)
O extremismo político de direita
e a agenda da direita radical têm obtido
grande repercussão no contexto de crise
das democracias representativas
contemporâneas. Muitas análises sobre
esses fenômenos políticos são
denominadas de forma generalizante pela
imprensa e trabalhos acadêmicos sob a
expressão extrema-direita. Formulação
limitada em termos científicos conceituais
(BARBOSA, 2015, p. 153), assim como o
termo extremismo político. Entretanto, são
operacionais para a identificação de ações
e concepções que evidenciam postulados
como violência, xenofobia, revisionismo
histórico e políticas antidemocráticas
daqueles que propalam formas de
nacionalismo de matriz chauvinista.
Pesquisas e debates
acadêmico contemporâneos sobre as
direitas têm destacado que entre formas de
legitimação de diferentes modelos
societais de autocracia burguesa, um
aspecto geral das direitas, estas podem ser
analisadas nos aspectos de suas
particularidades. Por exemplo, aqueles que
são explicitamente tributários do fascismo
e nazismo históricos e ditaduras (como as
Ditaduras Militares). Os neoconservadores
que defendem pautas de defesa de valores
morais e costumes e atuam nos debates
públicos, no campo da imprensa e dos
ofícios intelectuais de educação e cultura,
sob prerrogativas do apelo a tradição,
ordem e autoridade.
E, os políticos e partidos de
orientação antiestablishment, chamados
também nas ciências sociais na Europa de
“populistas de direita”. São aqueles que se
colocam retoricamente contra instituições
e pontos do sistema representativo e
pressupostos constitucionais, portando
concepções ultraliberais ou de
chauvinismo de bem-estar social, mas
disputando eleições. O critério conceitual
de direita radical tem estas três distinções
(MUDDE, 2007, 2106).
Estas organizações
têm obtido repercussão e algumas
vitórias eleitorais. Destaca-se o
exemplo da ascensão do
chauvinista Matteo Salvinni, d’a
Liga (antiga Liga Norte), que se
tornou Vice Primeiro-Ministro e
Ministro do Interior na Itália. Com
agendas políticas excludentes,
exemplos expressivos na Europa,
entre outros, podem ser
exemplificados no notório caso
francês do partido fundado por
Jean Marie Le Pen, a Frente
Nacional Francesa - FN, hoje
reorganizado sob a nova
denominação de “Rassemblent
National”. Outro caso, é o também
conhecido e polêmico partido
Alternativa para a Alemanha”
(Alternative für Deutschland –
AfD). Além da situação atual da
Hungria, com Victor Orban, entre
outros exemplos de países que
atravessam conjunturas de
radicalização política à direita. No
contexto dessas expressões
políticas, temos hoje o caso do
Brasil sob a presidência de Jair
Bolsonaro.
Diferentes em suas particularidades históricas e
singularidades políticas e ideológicas, estes objetos aqui em
análise são entendidos como manifestação histórica concreta
da conjuntura de crise à direita, no contexto brasileiro com
Bolsonaro e internacional com diferentes especificidades
nacionais.
A partir do critério da valoração das
particularidades históricas e singularidades dos fenômenos
sociais, as expressões das direitas compõem diferenças em
seus axiomas. Entretanto, além das particularidades e
singularidades históricas e nacionais, essas manifestações do
extremismo político de direita apresentam um elemento em
comum que são formas de expressão política as quais
legitimam a autocracia burguesa como universalidade,
refletindo a lógica da conflitualidade de classes.
C
M
Y
CM
MY
CY
CMY
K