"A necessidade de se pensar o
cinema do ponto de vista da filo-
sofia está vinculada à urgência
de reconquista do sentido mais
fundamental do filme na vida
contemporânea. Decorridos mais
de um século depois da invenção
do cinema, é possível dizer, sem
maiores rodeios, que o filme, de
um modo geral, caiu nos últimos
tempos em uma espécie de crise.
É como se, passados mais de cem
anos das primeiras experiências
cinematográficas, a pergunta
pela essência do cinema se fizes-
se mais urgente do que nunca."
ISBN 978-65-5954-221-5
Cinesofia
a sétima arte em devaneio
Ulisses Razzante Vaccari
Thiago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin
(Organizadores)
Cinesofia: a sétima arte em devaneio
Ulisses Razzante Vaccari; Thiago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
C:
    
C:
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
U R V
T K V
G D
(Organizadores)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2022, Faculdade de Filosoa e Ciências
C574 Cinesoa : a sétima arte em devaneio / Ulisses Razzante Vaccari, iago Kistenmacher Vieira,
Gabriel Debatin (organizadores). – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2022.
337 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-221-5 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-222-2 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2
1. Cinema - Filosoa. 2. Cinema e linguagem. 3. Cinema - Estética. 4. Arte e losoa. I.
Vaccari, Ulisses Razzante. II. Vieira, iago Kistenmache. III. Debatin, Gabriel.
CDD 791.4301
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Parecerista:
Prof.ª Dr.ª Yanet Aguilera Viruéz Franklin de Matos - Professora Adjunta do Departamento de
História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
S
Prefácio
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin -------------------------------------------------------------------- 7
A AurA e o cinemA, de BenjAmin A Adorno
Rodrigo Duarte; Willian Vasconcellos ------------------------------------------- 11
PolitizAção e desPolitizAção no cinemA BrAsileiro: entre estéticA
e cosméticA dA fome
Anderson Kaue Plebani ------------------------------------------------------------ 31
feBre do rAto: Por umA Poiesis mArginAl
Pedro Fernandes Galé -------------------------------------------------------------- 41
notAs soBre hermenêuticA, cinemA e documentário
Gustavo Silvano Batista ------------------------------------------------------------ 61
fAntAsiA e voyeurismo nArrAtivo em vertigo: os lAços entre cinemA e
ceticismo em stAnley cAvell
Andrea Cachel; Lunielle Bueno --------------------------------------------------- 73
cinemA e ABsurdo: umA leiturA cAmusiAnA do filme Melancolia
iago Kistenmacher Vieira ------------------------------------------------------- 101
6 |
A (des)montAgem do sentido: o cinemA entre Arte e técnicA
Gabriel Debatin --------------------------------------------------------------------- 129
o Prisioneiro e o PAjé: um oscAr e dois genocídios
Claudia Pellegrini Drucker -------------------------------------------------------- 157
cinemA cAnAdense e microPolíticA do desejo: um exercício cArtográfico
do filme luk’lukl, de WAyne WAPeemukWA (2018)
Abrahão Costa Andrade; Caio Felipe Varela Martins ------------------------- 189
o ProBlemA dA nAturezA éticA do gênero documentário
Henrique Franco Morita ----------------------------------------------------------- 211
umA nAve entre dois mundos: APontAmentos histórico-filosóficos soBre
e la nave va, de fellini
Márcio Benchimol Barros ---------------------------------------------------------- 227
contrA A PolitizAção do cinemA
Ulisses Razzante Vaccari ------------------------------------------------------------ 239
ensAio de orquestrA e o mAestro: comentário introdutório
Ubirajara Rancan de Azevedo Marques ------------------------------------------ 261
o APelo do negAtivo e A justiçA: A mostrAção elásticA dA hermenêuticA-
de-mundo Pelo o-fAzer cinemA
Rafael Teixeira Santos --------------------------------------------------------------- 281
A dinâmicA formAtivA de háBitos e crençAs: umA investigAção filosófico-
interdisciPlinAr A PArtir do filme ‘noites de cABíriA
Renata Silva Souza ------------------------------------------------------------------ 317
| 7
P
A necessidade de se pensar o cinema do ponto de vista da losoa
está vinculada à urgência de reconquista do sentido mais fundamental do
lme na vida contemporânea. Decorridos mais de um século depois da
invenção do cinema, é possível dizer, sem maiores rodeios, que o lme, de
um modo geral, caiu nos últimos tempos em uma espécie de crise. É como
se, passados mais de cem anos das primeiras experiências cinematográcas,
a pergunta pela essência do cinema se zesse mais urgente do que nunca.
Uma das questões muito levantada recentemente se refere à invenção
das chamadas plataformas de streaming, como Netix, Mubi e outras,
que, para além de simplesmente reproduzirem lmes no conforto das
residências burguesas, passaram também a produzir lmes. Diante deste
fato, perguntou-se efetivamente se essas novas produções não acarretariam
uma transformação na essência mesma do lme, já que seu lançamento
não necessitaria mais da sala de cinema, mas apenas do aparelho situado na
residência do espectador. Em última análise, é possível dizer que, a partir
dessa transformação, o cinema deixou para trás sua própria história, tendo
abandonado a projeção em grandes salas e em grandes telas, apinhadas de
espectadores sedentos pela projeção. Marco dessa transformação – da tela
para a TV – foi o lançamento de e Irishman [O Irlandês], de Martin
Scorsese, em 2019, exclusivamente por meio da plataforma Netix.
Longe de se referir apenas à forma do lme, tal transformação atinge
o cinema naquilo que ele possui de mais essencial: sua linguagem. O fato
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p7-10
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
8 |
de o lme não ser mais produzido para a sala de cinema e para a tela de
cinema altera consideravelmente seu modo próprio de comunicação. De
algum modo, o espectador das salas de cinema predispunha-se a dedicar
sua atenção ao lme durante toda a transmissão e, por mais que houvesse
aqui e acolá certas distrações, a obra de arte era apreendida e fruída pelo
público em sua totalidade. Com os lmes produzidos por plataformas
de streaming e reproduzidos nos aparelhos domésticos (televisores,
computadores, tablets e celulares), já não se pode dizer o mesmo. Detentor
do pequeno poder conferido pelo controle remoto, pelo mouse ou pela tela
de toque, o espectador defronta-se constantemente com a possibilidade
de interromper o curso da película que, muitas vezes, é assistida ao
longo de muitos intervalos de tempo, aprofundando e ao mesmo tempo
correspondendo a uma incapacidade de concentração, que muitos lósofos
atribuem à própria estrutura da vida moderna e pós-moderna.
Diante desse cenário, não é exagero supor que o cinema atual veja-se
aos poucos obrigado a satisfazer essa necessidade de uma nova linguagem
criada por essas plataformas. Mesmo os lmes que escapam à chamada
indústria cultural se verão aos poucos adaptados a esse novo formato, que
tende a se tornar denitivo em eras pandêmicas, como a nossa. Em vez da
concentração e do exercício da reexão, o novo formato tende a propiciar
narrativas fragmentárias, carentes de uma unidade mais profunda e mais
losóca. Nesse sentido, já não se distingue mais entre o cinema e a
chamada série, que se estende novelisticamente em episódios a perder de
vista, tendo como objetivo prender o espectador o maior tempo possível
diante da tela sem que lhe sobre tempo para pensar e reetir. Se o lme se
reduz aos poucos à tela doméstica e privada, ao formato da série e mesmo
ao hábito da rede social, como dizer que ainda há cinema, tal como ele
surgiu no nal do século XIX?
Para respondê-lo minimamente, cumpre antes colocar a questão: o
que é, anal, o cinema? Em que consiste anal sua linguagem e como ela
se relaciona com sua forma especíca, da montagem? O que a história
do cinema, passando pelos seus mais variados representantes, desde
seu surgimento até hoje, nos ensina? Eis as indagações que levaram à
organização do presente livro, constituído de ensaios das mais distintas
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 9
tendências, todas elas ligadas, no entanto, ao pano de fundo mais
abrangente da losoa. Mesmo que um ou outro ensaio proponha uma
análise mais empírica de um determinado lme, seus autores jamais traem
sua proveniência e sua formação losóca, buscando sempre transcender
a simples análise técnica dos elementos da película. É nesse sentido que se
optou pelo título Cinesoa: a sétima arte em devaneio (?), apontando assim
ironicamente para a tarefa do lósofo que – por que não? –, por vezes,
consiste em deslocar a lógica própria das coisas, conferindo-lhes um olhar,
digamos, às avessas.
É possível, e mesmo provável, que as questões acima tenham como
alvo não apenas o cinema e a obra de arte de forma geral, mas a própria
vida atual. Ao nos perguntarmos sobre os efeitos da tecnologia no cinema,
pressupomos que já esteja de algum modo respondida a questão dos
efeitos da tecnologia sobre nossas vidas. Caso seja possível de algum modo
identicar que a vida represada em redes sociais de fato tenha acarretado
mudanças consideráveis sobre nossa percepção, então invariavelmente
nossas formas de representação da realidade também deverão alterar-
se consideravelmente. Na verdade, é inevitável que assim o seja. Essa
inevitabilidade, porém, não implica que não se possa pensar sobre essas
transformações. A losoa, nesse sentido, propõe-se a realizar essa tarefa,
que consiste no questionamento de uma das principais formas de expressão
da humanidade, escolhida há algum tempo como a forma por excelência
de reexão sobre suas ações, decisões e características mais essenciais.
Nesse sentido, torna-se possível armar que, em certa medida,
o cinema, no seu auge, substituiu outras formas correntes de reexão e
representação, como a poesia, a literatura, o teatro e as artes plásticas, tendo
se tornado a forma de dramatização predominante das culturas ocidentais
pós-modernas. Mesmo o lósofo viu-se muitas vezes obrigado a recorrer ao
cinema em busca da compreensão universal de sua época e de seu tempo.
Não é, pois, exagero, supor que o cinema constituiu por muito tempo uma
ferramenta epistemológica de extrema importância para o lósofo (e mesmo
para o cientista), contrariando o antigo preconceito racionalista segundo
o qual a arte não produz episteme. Assim como as culturas ocidentais
aprenderam muito sobre si com os quadros renascentistas, por exemplo,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
10 |
também a humanidade dos grandes centros urbanos, impulsionada pelos
avanços da industrialização avançada, viu-se contemplada nos lmes os
mais diversos possíveis, desde Metropolis, de Fritz Lang, passando pelo
Grande Ditador de Charles Chaplin, até as produções hollywoodianas mais
recentes. Quando, porém, essa forma especíca de representação entra em
declínio, é novamente função do lósofo pensar não mais apenas com o
lme, mas sobre o lme; sobre suas especicidades, sua linguagem, sua
comunicabilidade, enm, sua essência. É também nesse sentido que se
deve entender a intenção de reunir os presentes textos deste volume em
torno de um questionamento propriamente losóco sobre o cinema,
naquilo que decidimos chamar por cinesoa.
Gostaríamos aqui, de agradecer imensamente aos autores e autoras
que gentilmente se dispuseram a devanear losocamente sobre a sétima
arte, seja contribuindo com reexões mais históricas, mais técnicas ou
mais autorais.
Ulisses Razzante Vaccari
iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin
| 11
A    , 
B  A
Rodrigo DUARTE
1
Willian VASCONCELLOS
2
A AurA e o cinemA em BenjAmin
Como é amplamente sabido, Walter Benjamin, em A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica, aponta para o caráter transitório da
arte frente aos mecanismos tecnológicos ascendentes à época.
3
Um de seus
intuitos era o de promover, partindo do materialismo histórico dialético,
uma análise no tocante às possibilidades de emancipação do proletariado
a partir de sua relação com a arte. Como sugere Renato Franco, Benjamin
buscou se aproximar da análise feita por Marx, “que foi capaz de estabelecer
minuciosamente a dinâmica do capitalismo e de até mesmo demonstrar
Professor do Departamento de Filosoa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG / Belo Horizonte
/ MG / Brasil. E-mail: rodrigoantonioduarte@gmail.com
 Professor na rede pública do estado de Minas Gerais. E-mail: willianvasconcellos@yahoo.com.br.
Utilizamos nesse artigo a segunda versão alemã do ensaio que foi a primeira considerada por Benjamin como
pronta para publicação e levava em conta alguns questionamentos levantados por Adorno e Horkheimer após
lerem a primeira versão. Essa versão foi traduzida para o francês por Pierre Klossowski e, após sofrer algumas
interferências de Max Horkheimer, foi publicada na revista do instituto de pesquisa social de Frankfurt que,
em virtude da ascensão de Hitler em 1933, encontrava-se, então, sediado em Nova York nos Estados Unidos.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p11-30
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
12 |
como o seu desenvolvimento implicaria na formação das condições materiais
que o levariam a sua própria destruição” (FRANCO, 2010, p. 18). A máxima
de Marx presente no Manifesto do partido comunista, para quem “a burguesia
produz, antes de mais nada, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do
proletariado são igualmente inevitáveis” (MARX; ENGELS, 2008, p. 29),
parece guiar toda a análise de Benjamin. Neste sentido, o ensaio é sobretudo
uma investigação acerca da relação entre a arte e a política no interior das
mudanças advindas dos meios de reprodução tecnológica.
O texto possuí uma divisão interna no que diz respeito às
especicidades estéticas das obras de arte: a arte tradicional e a arte
de reprodutibilidade técnica. Benjamin se reporta, em sua análise, à
reprodutibilidade de elementos imagéticos desde a Antiguidade, com
a cunhagem de moedas, na Lídia, por exemplo. Para ele, também o
aperfeiçoamento da técnica de litograa não deixou de ter um impacto
na recepção de imagens por parte de um público ampliado. Mas, com o
advento da fotograa, a relação entre o ser humano e os artefatos artísticos
mudou drasticamente, fator esse que foi determinante na divisão proposta
por Benjamin no tocante à percepção estética. O elemento indispensável às
artes anteriores à fotograa seria o hic et nunc, ou seja, o seu aqui e agora. Para
ser fruída, essa arte dependia da inserção dos indivíduos num determinado
lugar numa determinada temporalidade, fosse na interpretação orquestral
da nona sinfonia de Beethoven no Sidney Opera House, fosse frente ao
Juízo Final, de Michelangelo, na capela Sistina. Neste sentido, tais obras
de arte estariam ainda em estreita ligação com o ritual, tendo em vista a
superioridade de seu valor de culto frente ao seu valor de exposição.
Segundo Benjamin, a obra de reprodução técnica, ao contrário, não
depende do hic et nunc. Ela vai ao encontro das massas, de modo que
não existe uma relação de autoridade entre um artefato autêntico frente
às suas reproduções, até porque, nesse caso, não se pode falar nem de
original, nem de cópias, seja nas exposições simultâneas das fotograas
de Sebastião Salgado, seja nas várias exibições em todo o mundo de O
encouraçado Potemkin de Sergei Eisenstein. Dito de outro modo, não há
como existir uma sobrevalorização do lme ou da foto autêntica sobre suas
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 13
cópias: o caráter de exposição é a própria essência da obra na era de sua
reprodutibilidade técnica.
É sobre o fato de uma presumida autenticidade, presente nas obras
de arte tradicionais, que se ancora a tradição. O que, segundo Benjamin, é
abalado nas artes com o advento da reprodutibilidade técnica é a autoridade
da coisa, o seu peso enquanto tradição:
A técnica de reprodução, assim se pode formular de modo geral,
destaca o reproduzido da esfera da tradição. Na medida em que
multiplica a reprodução, coloca no lugar de sua ocorrência
única sua ocorrência em massa. E, na medida em que permite à
reprodução ir ao encontro daquele que a recebe em sua respectiva
situação, atualiza o que é reproduzido (BENJAMIN, 2014, p. 23).
Para Benjamin, a tradição seria o eixo da crise que a humanidade
vivia naquele momento. O abalo dessa estaria em estreita conexão com a
ascensão dos movimentos de massa da década de 30 e o principal medium
responsável por este abalo seria o cinema. Dito de outro modo, o cinema
seria o agente que minaria um dos fundamentos de uma profunda crise
social e cultural pautada na rearmação da tradição. A renovação da
humanidade, que deveria partir dos movimentos de massa, necessitaria da
liquidação do valor da tradição na herança cultural para dar prosseguimento
ao processo revolucionário.
Como é igualmente bem conhecido, pode-se entender essa relação
entre arte reprodutível e tradição a partir do conceito de aura, de modo que,
de acordo com Benjamin, “o que desaparece na época da reprodutibilidade
técnica da obra de arte é a sua aura” (BENJAMIN, 2014, p. 23). Que se
recorde que Benjamin designa aura do seguinte modo:
Um estranho tecido no de espaço e tempo: aparição única de
uma distância, por mais próxima que esteja. Em uma tarde de
verão, repousando, seguir os contornos de uma cordilheira no
horizonte ou um ramo, que lança sua sombra sobre aquele que
descansa – isso signica respirar a aura dessas montanhas, desse
ramo (BENJAMIN, 2014, p. 28-29).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
14 |
Partindo dessa designação, é possível perceber que a aura está em
estreita conexão com o ritual de fruição de um determinado momento
num determinado lugar. Benjamin entende que a arte de reprodução
técnica dessacraliza a arte, ou seja, desvincula-a dos contextos voltados ao
ritual — característicos da arte tradicional — e se torna cada vez mais
a reprodução de uma obra de arte voltada para a reprodutibilidade e,
consequentemente, para a recepção por parte de público massivo. No
instante de perda da aura na obra, a função social da arte se voltaria a
uma práxis política em detrimento da prática ritualística. Segundo Bruna
Della Torre, “a noção de aura está diretamente ligada à noção de mito
no pensamento benjaminiano e é análoga ao que Marx demonstra ser o
núcleo irracional do capitalismo” (DELLA TORRE, 2017, p. 42). Deste
modo, a aura é o resquício de uma experiência mágica frente a um mundo
cada vez mais racionalizado, semelhante àquilo que Marx formulou como
sendo o fetichismo da mercadoria, a experiência mística por excelência
do capitalismo. Nas palavras de Marx: “Uma mercadoria aparenta ser, à
primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Sua análise resulta em que ela é
uma coisa muito intrincada, plena de sutilezas metafísicas e melindres
teológicos” (MARX, 2017, p. 146).
A aura é, portanto, uma experiência mística que tem, no entanto,
a sua base na concretude material. O seu declínio estaria inserido na
superação dialética de um mundo misticado pelo capital. O cinema
seria, no pensamento benjaminiano, a arte não aurática por excelência
e, por extensão, o principal veículo de articulação da prática política das
massas. Vale ressaltar que o conceito de massas para Benjamin é diferente
daquele que Adorno utiliza no seu texto O fetichismo da música e a regressão
da audição (1938) e posteriormente na Dialética do Esclarecimento
(1947). Enquanto Benjamin parece se referir ao proletariado soviético
em seu devir histórico de dar o próximo passo da humanidade rumo ao
comunismo; Adorno parece chamar de massa o público característico da
cultura de massas, ou seja, o público submetido ao processo de reicação
pelas mercadorias estéticas que promovem uma falsa reconciliação da
humanidade com o mundo.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 15
Adorno e A críticA Ao meio tecnológico
Numa conhecida carta de 18 de março de 1936, Adorno discorda de
pontos cruciais do ensaio benjaminiano. Para ele, faltou dialética na análise
feita por Benjamin das obras anteriores às artes de reprodutibilidade técnica,
assim como, faltou ênfase na negatividade frente à análise do cinema.
Contudo, Adorno não descartou pura e simplesmente o conceito de aura,
usando-o em diversos momentos de sua obra
4
. Ele tampouco considerava
o teor aurático um elemento fundamental em certos contextos artísticos,
como, por exemplo, no âmbito da música e da arte pictórica. Vale lembrar
a armação enfática de Adorno na carta supracitada de que “a música
de Schönberg com certeza não é aurática” (ADORNO, 2012, p. 212).
Além de armar que sempre busca denunciar isso a partir do elemento
de idealismo nas obras, Adorno também reconhece nessa carta que a aura
está em declínio, tal como colocado por Benjamin. Sua posição muda na
medida em que ele tem contato com a cultura industrializada em seus anos
de exílio nos Estados Unidos: nesse contexto, o elemento aurático passa a
ser manipulado tecnicamente visando o engodo das massas.
Na Dialética do Esclarecimento, obra escrita em conjunto com Max
Horkheimer e lançada pela primeira vez em 1944, os autores procuram
mostrar como o esclarecimento, pensado inicialmente a partir de uma
noção genérica e primitiva, busca superar os mitos da antiguidade e
como, na contemporaneidade, este mesmo esclarecimento se torna
dialeticamente mito de si próprio. Segundo os autores, o esclarecimento
nunca teria se desvinculado do mito, assim como o mito sempre possuiu
o elemento de esclarecimento: “Do mesmo modo que os mitos já levam
a cabo o esclarecimento, assim também o esclarecimento ca cada vez
mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia. Todo conteúdo, ele o
recebe dos mitos, para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do mito
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 23).
Neste movimento, o esclarecimento é enm alcançado, mas o que ele
traz não é a emancipação da humanidade, e sim a barbárie dos campos de
concentração. Contudo, este movimento de miticação do esclarecimento
Cf. ADORNO (1986b, p. 104), ADORNO (2018, p. 62), ADORNO (2020a, passim), ADORNO (2006,
passim), dentre outras obras.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
16 |
não o torna supéruo. Pelo contrário, deve-se resguardar a “possibilidade
de ‘rememoração da natureza no sujeito’ como caminho para, pelo menos,
se iniciar um processo de reversão do esclarecimento unilateral, com o
objetivo de torná-lo ‘dialético’, consciente de sua relação com aquilo que
ele não é” (DUARTE, 2002, p. 33).
Nessa chave de leitura, a própria tese acerca da indústria cultural
é uma tese sobre como a cultura se tornou dialeticamente indústria
cultural e, consequentemente, um veículo de controle e dominação.
Tal como a inversão do esclarecimento em mito, a cultura sempre teve
um caráter mercadológico em seu bojo; mas, no capitalismo tardio, o
caráter mercadológico se torna seu componente mais essencial. Neste
sentido, concordamos com a armação de Della Torre (2017, p. 14):
a indústria cultural não é um adjetivo, um atributo de uma ou outra
mercadoria cultural. A ideia não é classicar os bens culturais segundo este
critério especíco”. Trata-se, sobretudo, de um sistema de mediação das
manifestações culturais que as coloca dentro da lógica mercadológica quase
como que um mito da sua própria essência artística e libertadora.
Dentro desse sistema, em que pesem importantes transformações
na sua base tecnológica desde o seu surgimento até hoje, o cinema é visto
como o carro-chefe da cultura de massas. E, enquanto sistema, a indústria
cultural só funciona integrando o indivíduo ao processo totalizante de
consumo. Por isso, não se deve tratar o cinema isoladamente em Adorno.
Como ele mesmo arma em Notas sobre o Filme de 1966, “não há estética
do lme, nem que seja puramente tecnológica, que não contenha em si
a sua própria sociologia” (ADORNO, 1986b, p. 104). Por um lado, o
cinema poderia ser crítico frente à violência de subjugar os indivíduos aos
processos de reicação e integração, por outro, não é difícil perceber esse
processo em lmes de super-heróis, ligados ao mesmo universo ctício que
insere as pessoas no âmbito de consumo não somente de todos os lmes
desse âmbito, mas também de artigos diversos como camisetas, action
gures, comic-books, etc.
Outro problema de procurar entender o cinema isoladamente
em trabalhos especícos de Adorno é que isso pode levar a conclusões
equivocadas, uma vez que, tanto na Dialética do Esclarecimento quanto
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 17
em Minima Moralia, o cinema é “remetido ao inferno” por Adorno, para
fazer uma referência a já citada carta de 1936. Contudo, em alguns textos
dos anos 60, ele reconhece o possível estatuto de arte deste meio, ainda
que com algumas ressalvas. Defendemos que ambos os momentos são
complementares na medida em que sejam compreendidos dentro de um
escopo mais amplo da obra de Adorno.
Um fato importante a ser mencionado é que, quando escreveu as obras
que condenam o cinema, Adorno se encontrava exiliado nos Estados Unidos,
justamente no coração da “fábrica de sonhos”. Comentadores como Miriam
Hansen (HANSEN, 2012) e Mateus Araújo Silva (ARAÚJO SILVA, 1999)
sugerem que este fator é decisivo para entender que as críticas feitas por
Adorno naquele momento podem ser compreendidas como críticas feitas
ao cinema hollywoodiano em especíco. Essa hipótese é bastante plausível,
visto que, a própria obra de Adorno sofre uma signicativa radicalização
nos seus anos de exílio, quando ele se depara com a comercialização da
cultura em seu estágio mais avançado. Outro fator bastante relevante (e
inusitado), como aponta David Jenemann (JENEMANN, 2007), é que
Adorno e Horkheimer tinham planos de apresentar um roteiro para Jack
Warner da Warner Brothers. O lme levaria o nome Below the Surface e
trataria da famosa Escala F presente no projeto de 1950 em que Adorno
participou, intitulado A Personalidade Autoritária (ADORNO, 2019).
Compreendemos que o problema de Adorno não era com o cinema em
geral, mas sim, com as potencialidades que ele trazia para submeter o
indivíduo ao sistema de manipulação e controle da indústria cultural. Na
própria carta supracitada, Adorno menciona que, numa passagem pelos
ateliês de Neubabelsberg
5
, ele cou impressionado com “quão pouco de
montagem e todas as técnicas avançadas que você [Benjamin] ressalta é
efetivamente utilizado; antes, a realidade sempre é construída com apego
infantil ao mimético e depois ‘fotografada’” (ADORNO, 2012, p. 212).
Seu incômodo foi o de perceber que tudo aquilo que poderia constituir
o cinema enquanto arte emancipatória, como descrito por Benjamin, era
renegado pelos próprios meios encarregados da produção cinematográca.
Em 1938 Neubabelsberg se tornou Babelsberg, o maior distríto de Potsdam, capital do estado alemão
Brandenburg. Adorno se refere ao Studio Babelsberg fundado em 1912, o estúdio de cinema em grande escala
mais antigo do mundo.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Como mencionado, o cinema aparece em alguns textos de Adorno
dos anos 60 enquanto possibilidade emancipatória dentro do escopo das
artes no plural. No texto Notas sobre o lme, Adorno retoma a discussão
com Benjamin:
Inseparável desse caráter de mercadoria é a essência reacionária de
qualquer realismo estético hoje, tendencialmente voltado para o
reforço armativo da superfície visível da sociedade e que repele
como romântico o querer ir além dessa fachada. Todo signicado que
se empreste ao lme através da câmera já violaria a lei dela e atentaria
contra o tabu de Benjamin, inventado com a expressa intenção de
radicalizar para além do radical Brecht e, talvez, secretamente para
libertar-se dele (ADORNO, 1986b, p. 104-105).
Trata-se de expor novamente o décit dialético, alegado por Adorno,
para com o tratamento da arte de reprodutibilidade técnica em Benjamin.
Contudo, aqui o problema não mais aparece sem uma proposição que
viabilizaria o cinema enquanto meio emancipatório às tendências de
reicação e integração. O signicado que se pudesse emprestar ao lme
estaria dependente do realismo estético que lhe é inerente, o que já seria
um atentando contra a autonomia da obra de arte. Nesse sentido, como
proceder sem cair no mero documentarismo? Tal como estabelecido pelos
formalistas soviéticos, a resposta para tal dilema, em Adorno, estaria
na montagem. Mas, não se trata de qualquer montagem, e sim de uma
montagem que não se imiscui, sem acréscimo de intenção, nos detalhes.
Os formalistas soviéticos acreditavam que a montagem possuía
a capacidade de criar signicações a partir da estrutura dialética do
pensamento. De duas imagens sempre surge uma terceira signicação
enquanto consequência de um monólogo interior. Adorno eleva essa
problemática ao nível de desistência da atribuição de sentido, propondo
o desenvolvimento de uma dialética com ênfase na não identidade, a qual
resguardaria o momento mimético a partir de uma montagem incerta
quanto ao seu efeito.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 19
Podemos pensar essa colocação de Adorno a partir de uma experiência
de Lev Kuleshov de 1919 conhecida como “efeito Kuleshov
6
. Trata-se de
um pequeno lme com seis planos: prato de comida/rosto de um homem;
criança brincando/rosto de um homem; caixão/rosto de um homem.
Quem viu o lme concordou que o ator Mosjukin interpretava com suas
expressões faciais, respectivamente: desejo, ternura e tristeza. Mas o plano
do rosto de Mosjukin usado nos três momentos era exatamente o mesmo.
Trata-se de conceber a relação entre imagens a partir de um movimento
dialético: de duas imagens sempre nasce uma terceira signicação. O Efeito
Kuleshov se tornou um dos fundamentos para a montagem invisível que
seria apropriada pelo naturalismo hollywoodiano na decupagem clássica.
Adorno defende que, diante dessas possibilidades abertas pela relação entre
imagens, a signicação deve ser incerta quanto ao seu efeito. Em outras
palavras, não se trata de manipular o espectador a sentir uma determinada
emoção, tal como desejo, ternura e tristeza exemplicados no experimento
de Kuleshov, mas sim, deixar em aberto a signicação que o confronto entre
as imagens pode sintetizar. Isso se dá a partir da desistência da intenção
em atribuir sentido, algo que, no nível da recepção, prioriza o monólogo
interior em relação às manipulações de emoções sempre idênticas.
No texto A arte e as artes, uma palestra proferida na Academia Berlinense
das Artes em 23 de julho de 1966, Adorno analisa a fronteira entre as artes e
sua relação com a arte, no singular. Neste texto, o autor arma:
Ela [a arte] não pode permanecer o que um dia foi. Tanto quanto
com isso também sua relação com seu gênero é dinamizada, pode-
se depreender do seu mais tardio gênero, o cinema. Não ajuda
a questão sobre se o cinema é ou não arte. De um lado, como
Benjamin foi o primeiro a reconhecer no seu trabalho sobre A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o cinema chega
mais perto de si próprio onde elimina irrevogavelmente o atributo
da aura que ocorria em toda a arte anterior a ele, a aparência de
uma transcendência incorporada por meio do nexo (ADORNO,
2018, p. 62-63).
 Disponível em: https://youtu.be/DwHzKS5NCRc. Acesso em: 16 abr. 2021.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Nessa citação ca novamente explícito que Adorno concorda com a
premissa de Benjamin de que o desenvolvimento do cinema se encontra
justamente no momento de declínio da aura. Adorno aponta que o cinema
não somente pode superar a sujeição em criar uma forma degenerada
de aura, como esse é seu princípio formal mais importante. De outro
lado, a recusa da aura já é por si só “um princípio de estilização estético
(ADORNO, 2018, p. 63). Numa argumentação muito próxima ao texto
de 1966, Adorno arma que os elementos extraestéticos do lme são, por si
só, doadores de sentido. Mas, diferentemente do que ele apontou naquele
texto, em que a solução para o problema estaria numa montagem que
não se imiscui nas coisas, aqui Adorno arma: “enquanto o cinema, em
função de sua legalidade imanente, gostaria de se ver livre de seu elemento
artístico – quase como se ele contradissesse seu princípio artístico – ele é,
ainda nessa rebelião, arte, e a amplia” (ADORNO, 2018, p. 63).
comPondo PArA os filmes
Um texto ainda pouco discutido no Brasil, talvez em virtude da falta
de uma tradução para o português, é o livro Composing For e Films ou
Compondo para os lmes, escrito juntamente com Hanns Eisler. O livro
foi escrito em 1944 e lançado pela primeira vez em 1947 nos Estados
Unidos, indicando a autoria apenas de Eisler. Adorno encontrava-se
exilado nos Estados Unidos à época, e devido ao movimento macartista,
optou por não reconhecer a coautoria naquele momento. A intuição de
Adorno não estava errada, pois Eisler foi obrigado a deixar os Estados
Unidos um ano após o lançamento do livro. O reconhecimento da
coautoria veio somente em 1969, na ocasião de lançamento da segunda
edição do livro na Alemanha ocidental.
Miriam Hansen (2012, p. 208-209) procura estabelecer uma
discussão pertinente à estética do lme em Adorno, sem com isso cair na
dicotomia entre cultura de massa e arte moderna. Para tal, ela admite que
as reexões sobre a estética do lme em Adorno são inseparáveis de suas
análises sobre a função social, econômica e ideológica do lme. A autora
compreende que essa discussão pode ser dividida em três fases distintas: a
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 21
primeira seria a partir de 1925, quando Adorno começou a escrever para
o jornal vienense Musikblätter des Anbruch, até o começo dos anos 30,
quando o partido nazista ganha força, até ser eleito em 1933. A segunda
fase diz respeito ao tempo de exílio de Adorno, tanto em Oxford, onde ele
cou até 1938, quanto nos Estados Unidos, onde permaneceu até 1949.
A terceira e última fase diz respeito ao retorno à Alemanha após a segunda
guerra mundial até sua morte em 1969. Para Hansen, o livro Composing
For e Films se enquadra na terceira fase pelo fato de que somente em
1969 Adorno reconheceu sua co-autoria.
Como indica Della Torre (2019, p. 479), Composing For e Films
não é um livro muito conhecido e raramente é associado à obra de Adorno”.
Nosso intuito aqui será o de demonstrar como o livro se enquadra na
obra mais ampla de Adorno de forma a complementar e enriquecer seus
escritos, principalmente em relação à terceira fase de Adorno, tal como
formulou Hansen.
Já na primeira introdução, os autores tratam de compreender o local
do cinema dentro do sistema da indústria cultural, o que por si só já é um
fator digno de nota, uma vez que, em 1944 quando a obra foi redigida,
o livro em que o conceito de indústria cultural se torna amplamente
conhecido ainda não tinha sido lançado ocialmente. A primeira vez que
o termo “indústria cultural” apareceu foi num ensaio de Horkheimer
intitulado Neue Kunst und Massenkultur (HORKHEIMER, 1988) ou
Nova arte e cultura de massa, mas é na Dialética do Esclarecimento, escrita
por Adorno e Max Horkheimer, que o termo se consolida: “os capítulos
sobre a indústria cultural e sobre o anti-semitismo, que não constavam no
planejamento ocial, foram incorporados ao longo da redação da obra, que
em 1944 circulou, em forma mimeografada, entre os colegas do instituto,
sob o título de ‘Fragmentos Filosócos’ até ser publicada em 1947, sob
o título denitivo de Dialética do Esclarecimento” (DUARTE, 2002, p.
25-26). Nesse sentido, tendo em vista que “indústria cultural” não era
ainda um conceito amplamente debatido, a mera constatação do uso desse
conceito já indica o seu profundo envolvimento em questões teóricas que
dizem respeito àquilo que ele estava desenvolvendo há época e que viria a
se desdobrar nas décadas seguintes.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Vale lembrar que, no tocante à intenção, pelo menos de Adorno,
o livro escrito a quatro mãos com Eisler apresenta uma atitude diferente
da de muitos dos seus textos que tratam do cinema, sendo que, segundo
o testemunho de Wiggershaus, Composing for the lms estaria no espírito
de um desenvolvimento posterior planejado no momento da redação
da Dialética do esclarecimento – que nunca chegou a ocorrer –, no qual
seriam ressaltados os possíveis aspectos positivos da indústria cultural.
Segundo Wiggershaus:
“Longas partes”, constava numa sentença na edição mimeografada
de 1944, deixada de lado na versão em livro, “desenvolvidas há
muito tempo, precisam ainda de uma última redação. Nelas virão
à tona também os aspectos positivos da cultura de massas”. (Sobre
aspectos positivos da cultura de massas e sobre o desenvolvimento
de formas positivas da cultura de massas era também a Composição
para o lme, que Adorno entre 1942 e 1945 escreveu juntamente
com Hanns Eisler, o qual obteve nos inícios dos anos 40, enquanto
docente da New School for Social Research, nanciamento da
Rockfeller Foundation para um projeto sobre música para o
cinema) (WIGGERHAUS, 1988, p. 360).
Em Composing For e Films, Adorno e Eisler introduzem brevemente
o conceito de indústria cultural, a partir de algumas das operações que
são amplamente discutidas na Dialética do Esclarecimento: “De todos os
media da indústria cultural, o lme, como o mais abrangente, mostra mais
claramente essa tendência ao amalgama. O desenvolvimento e a integração
de seus elementos técnicos – imagens, palavras, som, roteiro, atuação e
fotograa – têm paralelo com certas tendências sociais ao amalgama de
valores da cultura tradicional que se tornaram mercadorias
7
(ADORNO;
EISLER, 2007, p. xxxvi). Nessa mesma introdução, os autores também
indicam algo preponderante para a compreensão do cinema em torno de
conceitos tradicionais relacionados à arte:
Utilizamos para citações à edição em inglês referenciada na bibliograa, sendo que, todas as traduções são de
responsabilidade dos autores.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 23
A velha distinção entre arte séria e arte popular, entre arte inferior
e arte autônoma renada, não mais se aplica. Toda arte, como um
meio de preencher o tempo de lazer, se tornou entretenimento,
embora absorva materiais e formas da arte autônoma tradicional
como parte do chamado “patrimônio cultural” (ADORNO;
EISLER, 2007, p. xxxvi).
Tal armação encontra ecos numa passagem das Minima Moralia
de 1951. No aforismo intitulado “O lobo como vovozinha”, Adorno
arma que os “apologistas do lme” utilizam o argumento do consumo de
massa para proclamar o cinema enquanto arte popular. Esse argumento é
parcialmente falso e serve ao objetivo de se propor independente em relação
às normas da arte autônoma, dispensando o cinema de sua responsabilidade
estética. Certamente os lmes comerciais encontram traços da arte popular,
tal como da arte autônoma, mas o que é conservado por esses é justamente
o elemento de falsidade da arte popular. Adorno utiliza o exemplo de uma
mãe que, para acalmar uma criança, narra um conto ctício no qual os
bons são recompensados e os maus castigados. Esse exemplo seria análogo
à arte popular. O produto cinematográco, ao absorver a falsidade da arte
popular, também seria análogo a um conto infantil; contudo, um conto
que promove “a justiça de qualquer ordem e lugar para ensiná-los de novo,
e mais fundo, a temer” (ADORNO, 2008, p. 199-202). O exemplo serve
para mostrar que, além de promover o medo e a resignação, a indústria
cultural também fomenta a infantilização dos espectadores.
Podemos também compreender a supracitada passagem do
Composing For e Films a partir do texto “A Indústria Cultural”, baseado
em conferências radiofônicas de 1962. Nesse texto, Adorno arma
que, sobre a formulação do conceito de indústria cultural, se tratava do
problema da cultura de massa, mas, para excluir de antemão a interpretação
de que se trata de uma cultura surgida espontaneamente das massas, uma
forma contemporânea de cultura popular, ele e Horkheimer optaram por
usar o a expressão indústria cultural. Em comparação, sobre a cultura
popular, Adorno arma: “Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue
radicalmente” (ADORNO, 1986a, p. 92).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Em uma passagem de Notas sobre o lme, de 1966, Adorno arma
que um lme que almeja ser emancipado precisa “procurar seu potencial
mais fecundo em outros meios fortemente ans, como por certo a música
(ADORNO, 1986b, p. 105). Não é exagero armar que o livro escrito
com Eisler seria uma tentativa de jogar luz a essa questão de modo crítico.
Entre outras colocações, os autores fazem um elogio ao uso das formas
breves na composição musical para o cinema no livro. Pedro Aspahan nos
dá um exemplo contemporâneo desse uso de formas breves no cinema:
Em 2001, cineasta português Pedro Costa realizou um pequeno
curta sobre o casal Straub-Huillet a partir das sobras do material
do longa Onde jaz o seu sorriso (2001, 104’). O curta incorporou o
título da peça de Anton Webern, Seis Bagatelas, e utiliza também
sua música, adotando, de certa maneira, a sua forma, estruturando-
se em cenas breves do casal que trabalha na montagem do lme
Sicilia! (1998, 66’). As cenas são intercaladas por trechos da música
em tela branca. No trecho visto, Straub dialoga com Huillet,
fazendo uma crítica à ideia de que “qualquer leitura seja uma
tradução”, e defende que “o que há de difícil na leitura de um texto
é lê-lo realmente”. Talvez seja esse o trabalho que eles propõem na
relação com suas referências tanto textuais quanto musicais: lê-los
realmente (ASPAHAN, 2017, p. 84-85).
Quando critica os “maus hábitos” no uso de música nos lmes, em
especíco a discrição (unobtrusiveness), Adorno e Eisler atentam para o fato
de que raramente as músicas são levadas em conta no momento de escrita
do roteiro. Nesse sentido, a música não é tratada em sua potencialidade
especíca. Deixando ao diretor a escolha do que melhor pode sonorizar
aquilo que está sendo mostrado, a música torna-se apenas um elemento
discreto nos lmes. Diante disso, os autores indicam: “A inserção da música
deve ser planejada junto com o roteiro, e a questão de saber se o espectador
deve estar atento à música é uma questão para ser decidida em cada caso
de acordo com os requerimentos dramáticos do roteiro” (ADORNO;
EISLER, 2007, p. 6).
No capítulo “função e dramaturgia”, Adorno e Eisler mencionam
uma cena em que a música atua de forma planejada junto ao lme.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 25
Não sabemos se foi o caso de o roteirista tomar conhecimento prévio da
música, mas, certamente exemplica como a trilha sonora pode alterar
completamente o sentido da cena:
Uma cena de No man’s Land, um lme pacista de Victor Trivas,
datado de 1930: Um carpinteiro alemão recebe a ordem de
mobilização de 1914. Ele tranca seu armário de ferramentas, tira
sua mochila, e, acompanhado pela sua esposa e lho, cruza a rua
em direção ao quartel. Vários grupos semelhantes são mostrados.
A atmosfera é melancólica, o passo é vacilante, sem ritmo. A
música sugerindo uma marcha militar é introduzida suavemente.
Conforme ca mais alta, o andar dos homens torna-se mais rápido,
mais rítmico, mais coletivamente unicado. A mulher e a criança
também assumem uma atitude militar, e mesmo os bigodes dos
soldados começam a eriçar. Segue-se um triunfante crescendo.
Intoxicados pela música, os homens mobilizados, prontos para
matar e morrer, marcham para dentro dos quarteis. Então, a
imagem escurece (ADORNO; EISLER, 2007, p. 15).
Trata-se do lme Niemandsland
8
. A música, composta pelo próprio
Hanns Eisler, orienta a cena para o aspecto crítico, que poderia, sem
ela, sugerir chauvinismo ou adesão ao belicismo. A transformação de
indivíduos aparentemente inofensivos em bárbaros beligerantes só pode
ser efetivamente compreendida com o recurso à música.
Adorno e Eisler estão argumentando em prol da primazia do objeto,
ou seja, de que o uso dos materiais deve se dar de acordo com a exigência
interna da obra. Eles também defendem que os recursos tecnológicos
não devem ser usados nos lmes em todas as circunstâncias a bel-prazer,
pois a primazia deve ser do objeto e não do sujeito. A tecnologia precisa,
portanto, ser uma exigência intrínseca da obra. É importante ressaltar
que os autores reconhecem que a tecnologia possui a capacidade de abrir
espaços ilimitados para a arte no futuro.
Isso dialoga bastante com as discussões sobre o Novo Cinema
Alemão do Notas sobre o lme, em que Adorno critica os especialistas do
cinema de papai” que possuem atrás de si o poder do capital, a rotina
É possível assistir ao lme no Youtube. Disponível em: https://youtu.be/S-4XhNMWoyw. Acesso em: 16 abr. 2021.
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Gabriel Debatin (Org.)
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técnica e especialistas altamente treinados. Contrário a isso, em referência
ao Novo Cinema Alemão, Adorno arma que seria nos traços daquilo
que é comparativamente sem jeito, sem conhecimento, incerto quanto
ao seu efeito, que residem as possibilidades de um cinema emancipado
(ADORNO, 1986b, p. 100-101).
O desenvolvimento tecnológico dos media é usado pela indústria
cultural enquanto padrão para se excluir tudo o que não tenha sido
previamente apreendido e mastigado e “que atua analogamente ao ramo
dos cosméticos quando elimina rugas dos rostos, obras que não dominam
inteiramente sua técnica e que, por isso, deixam passar algo de incontrolado,
têm seu lado libertador” (ADORNO, 1986b, p. 101). A crítica de Adorno
se direciona a um modelo especíco de montagem cinematográca que
se convencionou chamar de decupagem clássica. Trata-se do padrão
utilizado por Hollywood, o qual busca produzir o ilusionismo e deagrar o
mecanismo de identicação. Segundo Ismail Xavier, a decupagem clássica
é caracterizada pelo seu “caráter de sistema cuidadosamente elaborado,
de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo
a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para
extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo
torná-la invisível” (XAVIER, 2018, p. 32). Esse procedimento busca
promover a identicação do espectador mediante a montagem lisa, que
não cria estranhamento, como se os eventos se desenvolvessem na tela tal
como se desenvolvem na vida real. A decupagem clássica é amplamente
utilizada para ns de lucratividade, por parte das grandes produtoras, e de
manipulação e controle, no nível da recepção.
Pode-se armar que o que está em jogo na decupagem clássica é a
criação de uma falsa aura, no sentido benjaminiano. Em Composing For
the Films, os autores estabelecem diversas críticas ao modo como o som é
apropriado pela imagem nesse sentido estritamente comercial, mas não se
limitam a isso. Destarte, salta aos olhos a referência a Walter Benjamin:
A fusão direta de dois media de origens históricas tão diferentes não
faria muito mais sentido do que os roteiros cinematográcos idiotas
nos quais um cantor perde a sua voz para em seguida recuperá-la de
modo a oferecer um pretexto para esgotar todas as possibilidades
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 27
do som fotografado. Tal síntese limitaria as imagens em movimento
aos casos acidentais nos quais ambos os meios de alguma maneira
coincidem, isto é, no domínio da sinestesia, a magia dos humores,
a semi-escuridão e a intoxicação. Em resumo, o cinema seria
connado aos conteúdos expressivos nos quais, conforme
mostrou Walter Benjamin, são basicamente incompatíveis com a
reprodutibilidade técnica. Os efeitos nos quais imagem e música
podem ser diretamente unidas são inevitavelmente do tipo
que Benjamin chamou ‘aurático’ - na verdade, eles são formas
degeneradas da ‘aura’, na qual o encantamento do aqui e agora é
tecnicamente manipulado (ADORNO; EISLER, 2007, p. 48).
Benjamin, ao tratar da montagem no cinema, arma que seu caráter
de constante aperfeiçoamento, sua perfectibilidade, signicaria renunciar
ao valor de eternidade, valor esse que pode ser exemplicado pelas obras
realizadas na Grécia antiga — algumas delas com reconhecimento que
perdura até hoje. A eternidade estaria ligada essencialmente à experiência
aurática. Adorno e Eisler armam que a união entre imagem e som
provocam o efeito de sinestesia, ou seja, a combinação de sensações
diferentes numa só impressão. Este efeito, diferentemente daquilo que
Benjamin indicou, aproxima o cinema muito mais de uma intoxicação
do que de uma emancipação frente à tradição. A decupagem clássica faz
o uso do feitiço da imagem e som integrados enquanto forma de criar
um aqui e agora manipulado tecnicamente. Ele, ao invés de renunciar à
aura, faz justamente o contrário, ele cria uma forma degenerada de aura.
Isso é feito, como armamos, intencionando a lucratividade e controle
pelos grandes estúdios.
Num texto datado de 26 de maio de 1969 intitulado “Resignação”,
Adorno questiona a separação entre teoria e práxis na política. Essa palestra
também dialoga com a famosa Tese 11 das teses sobre Feuerbach de Karl
Marx: “Os lósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras;
o que importa e transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 535). Essa
passagem foi interpretada por algumas tradições marxistas enquanto
um apelo para a valorização da práxis em detrimento da teoria. É dessa
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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interpretação que Adorno discorda: para ele, é o próprio pensamento que
conserva a possibilidade de mudança:
Nele o momento utópico é tão mais forte quanto menos se
objetualize em utopia – também esse um sintoma regressivo –,
sabotando com isso sua realização. O pensamento aberto aponta
para além de si mesmo. Sendo ao seu modo uma conduta, uma
conguração da práxis, ele é mais am à práxis transformadora
que um comportamento que simplesmente obedeça a práxis
(ADORNO, 2020b, p. 281).
Com a ressalva de que a escrita do texto supracitado foi movida por
um evento bastante especíco, a saber, o contexto político que levou à
interrupção de uma das aulas de Adorno por um grupo de manifestantes
na Universidade de Frankfurt onde Adorno lecionava em abril de
1969, em Composing For e Films, Adorno e Eisler já apontam para
a necessidade de valorização da teoria frente às possibilidades práticas
de um cinema emancipado: “criticismo teórico dos fundamentos não
deve ser mal usado como uma carta de indulgência em relação à prática
(ADORNO; EISLER, 2007, p. 79). A questão discutida se refere ao uso
de músicas nos lmes sem com isso criar o efeito de sinestesia, de ilusão
enganadora no espectador:
Ter uma visão clara da verdadeira natureza das causas do presente
mal e se recusar a indulgir na ilusão de que o sistema pode ser
mudado por correções graduais não signica necessariamente que
se deva desistir de todos os esforços para trazer à tona um melhor
estado de coisas. Esses esforços não são sucientes para emancipar
um lme musical, mas podem dar ideia de como um lme musical
se parece (ADORNO; EISLER, 2007, p. 79).
Tal como para Benjamin, não existe uma análise estética em Adorno
que se separe das análises políticas, econômicas e ideológicas. A própria
práxis não pode ser separada de seu elemento teórico crítico: a própria
reexão já é de algum modo práxis. A tarefa dessa reexão, no que diz
respeito às possibilidades de um cinema emancipado, reside na utopia, em
se ter uma ideia de como as composições fílmicas emancipadas se parecem.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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É no elemento crítico que se pode vislumbrar possibilidades que jogam luz
a um cinema mais humano e autônomo com relação aos imperativos de
integração no sistema da indústria cultural. Diante disso, a abertura para
aquilo que escapa aos ditames de integração da indústria cultural, sem
contudo renega-la, surge no interior da crítica e não à sua margem.
referênciAs
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.).
Theodor W. Adorno. Tradução de Amélia Cohn. São Paulo: Ática, 1986a. p. 92-
99. (Coleção Sociologia).
ADORNO, eodor W. Notas sobre o lme. In: COHN, Gabriel (org.) eodor W.
Adorno. Tradução de Flávio R. Kothe. São Paulo: Ática, 1986b. p. 100-107. (Coleção
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ADORNO, eodor W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2006.
ADORNO, eodor W. Minima Moralia: Reexões a partir de uma vida lesada.
Tradução de Gabriel Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
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José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
ADORNO, eodor W. A arte e as artes: primeira introdução à teoria estética. Tradução
Rodrigo Duarte. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018.
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P   
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Anderson Kaue PLEBANI
1
PolitizAção do cinemA e eztetyka da foMe
Duas diretrizes guiam Walter Benjamin em sua investigação sobre
o cinema no ensaio A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica.
Primeiro, em relação às artes em geral, cinema incluso, que elas devem
ser avaliadas por categorias estéticas impossíveis de serem apropriadas pelo
fascismo. Segundo, sendo o cinema um produto da era da reprodutibilidade
técnica, ele tem como “tarefa histórica” conciliar o descompasso trazido
pelo modo como a técnica se emancipou do humano (BENJAMIN,
1987, p. 174). O lme documentário Triunfo da vontade, de 1934, que
propagandeia o partido do Nacional Socialismo é um exemplo do que
Benjamin pensava pela estetização da política. Já os lmes de Charles
Chaplin são um exemplo de uma politização da arte. Pensado desde uma
preocupação política, o cinema brasileiro também possui exemplares dignos
Doutorando em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil.
E-mail: akplebani@hotmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p31-40
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
32 |
de conrmar uma estética que põe em curso a revolucionária politização da
arte cinematográca.
O cinema chega ao Brasil cedo. Desde o m do século XIX, lmagens
são rodadas nestas terras. Um cinema propriamente brasileiro, contudo, é
algo que tardou algumas décadas para se dar. Pois sendo a tecnologia e a
indústria cinematográca um produto estrangeiro, de expoente europeu
e estadunidense, era natural que as produções brasileiras se restringissem
a reproduzir tais modelos. No início, a originalidade do cinema brasileiro
consistia apenas nos cenários e costumes exóticos garantidos por estas terras.
Foi adiada assim a data em que se consegue armar maneira autêntica de
captar as terras, o povo e a voz brasileira. É apenas na década de 1950
que um dos mais famosos movimentos cinematográcos autenticamente
brasileiros surge: o Cinema Novo.
Esse movimento mostra ao público um Brasil com personagens
fortes enfrentando condições sociais fragilizadas.
2
As particularidades do
Brasil não são manifestadas nas matas exuberantes ou nas características
ímpares dos povos indígenas, mas nas contradições internas a um país
colonizado. Coloca-se o espectador nativo em exposição com sua própria
situação. “Exposição”, aliás, é um conceito caro à tentativa de reinvenção
das categorias estéticas feita por Benjamin em sua tentativa de formular
uma estética opositora ao fascismo.
Quando o lósofo se utiliza da distinção entre valor de culto e valor de
exposição para enfatizar a modicação na história da produção e percepção
da arte, o lósofo atribui ao valor de culto uma relação ritualística e de
perpetuação da tradição. Esse valor leva a uma produção e percepção de
arte estéril em potencial emancipatório (BENJAMIN, 1987, p. 173-174).
Já o valor expositivo da arte ganha todo um peso político e revolucionário
na tese benjaminiana. Isso porque a percepção voltada diretamente para
a arte exposta em sua materialidade imediata é a que melhor viabiliza o
caráter político de manifestação da realidade, atributo inclusive que estaria
Filmes icônicos do movimento: Agulha no Palheiro, rodado em 1953 e dirigido por Alex Viany; Rio 40 Graus,
de 1955, por Nelson Pereira dos Santos; Bahia de Todos os Santos, 1960, Trigueirinho Neto; Deus e o Diabo na
Terra do Sol, 1963, Glauber Rocha; Os Fuzis, 1963, Ruy Guerra; e Vidas Secas, 1963, adaptação dirigida por
Nelson Pereira dos Santos.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 33
garantido pela delidade da captação audiovisual.
3
Contudo, esse atributo
não impede que o cinema seja apropriado por uma postura ritualística.
No caso dos lmes do Cinema Novo, constata-se que são carregados,
estilística e tematicamente, por um valor de exposição. Um recurso textual
que facilita a sobreposição entre esse movimento cinematográco e o
motivo político e revolucionário é o manifesto Eztetyka da Fome, de Glauber
Rocha. O documento surge mais como expressão de um movimento em
curso do que, necessariamente, como um paneto ou protocolo.
A arte, o Brasil e a política são eixo central do manifesto e do próprio
Cinema Novo. Para escapar de uma “arte de mentiras”, o movimento
incorpora em sua própria estética, i.e., em seu modo de sensibilizar e de se
fazer compreender, as condições mundanas do brasileiro, a m de tornar
o espectador nativo consciente da contradição intrínseca a sua existência
particular. Escapar do “sonho frustrado da universalização” – ou como diria
Benjamin: admitir a impossibilidade de expor o todo em um – é “despertar
do ideal estético adolescente”, segundo Rocha (1981a, p. 29). Tem-se
assim uma estética comprometida com o choque provocado pela exposição
do imediato concreto a um espectador absorvido pela colonização. Aqui
é possível notar a inuência das teses benjaminianas sobre a categoria
estética do choque.
Segundo o lósofo, o choque no cinema se dá quando o lme
interrompe a associação de ideias do espectador, de modo a atentar para
o que se desenrola na película. Peguemos alguns exemplos. Ao lmar as
favelas cariocas em Rio 40 Graus, em 1955, Nelson Pereira dos Santos
não teme expor a situação precária das moradias do morro ou evidenciar a
segregação racista. O choque é sentido pelo público, ao ponto de o lme
ser censurado.
4
A entrada radical dos conteúdos sociopolíticos fornece
os primeiros impulsos para o Cinema Novo. Quando as lentes se voltam
“[...] um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao
procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade” (BENJAMIN, 1987, p. 187).
“[Foi] o coronel Geraldo de Meneses Cortes, chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, que
mandou proibir o lme em todo o território nacional. E justicou a censura: os termômetros ociais da cidade
nunca atingiram quarenta graus – no máximo, tinham marcado 30,7 graus – o diretor além de mentiroso era
comunista, e o lme, um achincalhe imperdoável com a imagem da capital federal” (SCHWARCZ, 2015, p.
419-420).
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para os sertões, como se dá por exemplo em Deus e o Diabo na Terra
do Sol, tal conteúdo guiado para o choque também organiza a própria
maneira de se lmar: a câmera deve tremer junto ao terreno acidentado;
deve perambular como o moribundo; deve sofrer de cortes abruptos
junto à violência captada. Mais do que um manifesto técnico em prol de
uma maneira cinematográca, Eztetyka da Fome também exprime uma
característica da identidade brasileira. O manifesto propõe uma postura
artística que assuma de partida a característica colonizada e explorada dos
povos da América Latina para propor então um modo de fazer cinema
que se valha dessa identidade. Nem no seu conteúdo nem na sua forma o
Cinema Novo vem para agradar o paladar colonizador. Bem pelo contrário,
tematizando a situação precária de parcelas do povo brasileiro, esse cinema
era ser incômodo para a indústria cinematográca predominante. Rocha
arma que “por esta denição”, de um cinema acasalado com a verdade
da situação pobre do Brasil, “o Cinema Novo se marginaliza da indústria
porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a
exploração” (ROCHA, 1981a, p. 32).
Ao pontuar a característica nevrálgica do Cinema Novo, fala da
importância da fome para esse cinema. “Aí reside a trágica originalidade do
Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome
e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida
(ROCHA, 1981a, p. 30).
Vale mencionar que o trágico típico desse cinema não é exclusivo ao
Brasil ou aos países da América Latina. Como o próprio autor relembra,
pertence a todo povo colonizado as condições precárias e a intrínseca
necessidade de elas mesmas serem denunciadas em maneira compreensível
(ROCHA, 1981a, p. 32).
A reinterpretação crítica que Rocha faz de sua própria Eztetyka
alguns anos após a leitura de seu manifesto, passa a reclamar um
abandono inclusive de qualquer estética comprometida com uma
razão preestabelecida. “As vanguardas do pensamento não podem mais
se dar ao sucesso inútil de responder à razão opressiva com a razão
revolucionária”, diz o cineasta em 1971, e continua: “[a] revolução é
a anti-razão que comunica as tensões e rebeliões do mais irracional de
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 35
todos os fenômenos que é a pobreza” (ROCHA, 1981b, p. 219-220). Se
foi um projeto racional que legou aos colonizados a sua fome, então uma
arte emancipatória deve evidenciar os limites da razão. Nesse sentido,
não é de surpreender que Rocha compreenda a arte revolucionária como
uma mágica que desencante a racionalidade europeia, “[...] uma mágica
capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver
nesta realidade absurda” (ROCHA, 1981b, p. 221).
Embora tenha um tom místico, o crucial aqui é sua potência crítica.
Peter Bürger oferece uma noção de crítica da qual as vanguardas artísticas
se fazem valer: “[a] crítica não é concebida como juízo, que contrapõe
abruptamente sua própria verdade à não verdade da ideologia”, ou seja,
uma razão contra outra, “mas como produção de conhecimentos. A crítica
procura separar a verdade e a não verdade da ideologia” (BÜRGER, 2012,
p. 31). Se a ideologia se cristaliza ao ponto de tornar a pobreza invisível,
esta invisibilidade se dissemina para a própria produção artística. A
necessidade de incorporar uma “anti-razão” na produção cinematográca
se dá justamente como ruptura a qualquer ideologia que possa se contrapor
à comunicação das tensões oriundas da pobreza, e tão logo ocultá-las no
processo de produção.
desPolitizAção do cinemA e cosméticA dA fome
Embora o Cinema Novo tenha obtido prestígio artístico no Brasil
e notoriedade internacional, o movimento cinematográco teve vida
breve.
5
Ao decorrer da década de 1970, o movimento passa a ser dissolvido
dentro do cinema brasileiro, de maneira que suas características centrais se
espalham por correntes diversas, cando menos perceptíveis e nalmente,
enquanto movimento centralizado, encontra seu m nessa mesma década
(VIEIRA, 2000). Curiosamente, o m do Cinema Novo coincide com o
advento do período pós-vanguardista. Momento marcado pela completa
No Brasil, um dos frutos mais prodigiosos do Cinema Novo foi a criação da produtora e distribuidora estatal
Embralme. No exterior, além de alguns de seus lmes receberem nomeações em festivais renomados, como
foi o caso de Cannes, teve ainda o poder de inuenciar a criação de movimentos, como por exemplo o Cinema
Novo Alemão, que tem como expoentes cineastas de prestígio, a exemplo de Werner Herzog, Edgar Reitz e
Alexander Kluge.
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assimilação da liberdade estilística reclamada durante os movimentos de
vanguarda, mas agora quase completamente esvaziado do seu valor político
ou revolucionário.
No m dos anos 1990 e no início dos anos 2000 se repara o retorno
de alguns temas e cenários caros ao Cinema Novo. É o caso de Central do
Brasil, rodado em 1998 por Walter Salles, que resgata o sertão; também de
Cidade de Deus, gravado em 2002, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia
Lund, que outra vez leva as câmeras às favelas do Rio de Janeiro. Contudo,
o sucesso de bilheteria desses lmes precisa ser contrastado com uma
perspicaz crítica feita por Ivana Bentes. A crítica identica um momento
no qual as produções cinematográcas que evocam temas relativos às
fragilidades sociopolíticas não emulam mais o potencial revolucionário
e emancipatório contido na estética do Cinema Novo. Agora, esses
lmes se dirigem muito mais para a satisfação dos gostos de uma fruição
contemplativa e politicamente neutralizante, do que para efetivamente
expor o espectador às contradições pertinentes àqueles cenários. Bentes
reconhece nesse fenômeno um processo de transformação do cinema, que
vai de uma estética politicamente comprometida com a realidade para uma
mera contemplação parasitária da “fome” desses cenários, esteticamente
distanciada do contexto captado e muito mais comprometida com os
estilos cinematográcos inaugurados no estrangeiro (BENTES, 2007).
Assim, porquanto as décadas de 1960 e 1970 foram ricas para as
vanguardas, as décadas sequentes justamente testemunharam a plena
decadência de seus propósitos e uma consequente reorganização da
instituição arte. “Passamos da ‘estética’ à ‘cosmética’ da fome, da ideia na
cabeça e da câmera na mão (um corpo-a-corpo com o real) ao steadcam,
a câmera que surfa sobre a realidade [...]” (BENTES, 2007, p. 245). É
verdade que o exemplicado cinema da década de 1990 e 2000 resgata
os mesmos ambientes antes expostos por um cinema pretensamente
revolucionário. Mas agora eles são produzidos novamente para uma
percepção que vê na arte o valor de culto. Já o estilo empregado promove
um desprendimento com o contexto retratado. O espectador parece residir
em um domínio superior à terra que ali se assenta em seca e acidentes, para
deslizar por cima dela (BENTES, 2007). É preciso dizer que esta postura
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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ritualística de fruição da arte pertence justamente ao espectador que, no
manifesto de Glauber Rocha, era denunciado como o colonizador, a saber,
a estética europeia clássica. Estética que, como Benjamin interpreta, se
sustenta porquanto é conservado o distanciamento entre o espectador e o
conteúdo da obra, porquanto a expressão artística se veste de um caráter
aurático e inacessível.
No modo de ser aurático da obra de arte, defende Benjamin, esta
nunca está destacada de sua função de culto, i.e., de ser parte de um
ritual. Esse caráter ritualístico não precisa estar necessariamente atrelado
a um comportamento religioso, como se pode observar com a noção
secularizada de culto ao belo. O movimento de teorizar a arte pela arte,
surge justamente em simultâneo à invenção da fotograa, que abala o
senso ritualístico que envolve as artes. É apenas com as condições materiais
advindas da reprodutibilidade técnica da obra de arte que, pela primeira
vez, a arte se emancipa de seu “caráter parasitário do ritual” (BENJAMIN,
1987, p. 171). Mas a potência que o cinema tem de exposição do real não
precisa ser necessariamente acatada pelas produções cinematográcas. Por
isso uma câmera desprendida da terra pode captar o cenário dos sertões,
por exemplo, de maneira cômoda para o espectador do século XXI.
Conforme Bentes, a entrada do sertão nessa estética cosmetizada
faz desse cenário “palco e museu a ser ‘resgatado’ na linha de um cinema
histórico-espetacular ou ‘folclore-mundo’ pronto para ser consumido por
qualquer audiência” (BENTES, 2007, p. 245). Voltamos àquela tipicação
da identidade brasileira como item de curiosidade, mas agora o exótico é
sua fome, sua violência, sua pobreza. Quando se refere ao lme Cidade de
Deus, e à temática da favela, o tom da crítica de Bentes não muda: “é um
lme-sintoma da reiteração de um prognóstico social sinistro: o espetáculo
consumível dos pobres se matando entre si” (BENTES, 2007, p. 252).
Retrata-se ali uma favela em território autônomo da cidade à qual está
inserida. “Em momento algum se pode supor que o tráco de drogas se
sustenta e desenvolve (arma, dinheiro, proteção policial) porque tem uma
base fora da favela. Esse fora não existe no lme” (BENTES, 2007, p.
252). Nessa favela espantalho, não há porosidade, nada escapa nem entra
nela. Sugere-se que a favela esteja encerrada em si mesma.
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É possível sobrepor aqui a distinção que Walter Benjamin faz entre
os conceitos de alegoria e símbolo. Grosso modo, a diferenciação entre
símbolo e alegoria diz da natureza da obra de arte e do modo como se
relaciona com ela tanto o produtor quanto contemplador da arte. No caso
do símbolo, temos uma noção de relação orgânica com a arte. “[O] belo
formaria com o divino um todo contínuo” (BENJAMIN, 2016, p. 170).
Símbolo é um conceito oriundo da teologia embora não necessariamente
ligado à religião, em todo caso, sempre aspira a integrar o plano sensível
a um suposto plano suprassensível (BENJAMIN, 2016, p. 169-170). A
obra simbólica, em sua condição material e sensorial, dá acesso a uma
ideia universal e perfeita, integrando coisa e ideia de maneira orgânica e
totalizante. E é precisamente assim que a favela retratada na Cidade de Deus
aparece: orgânica, encerrada em si mesma, ensejando uma contemplação
distanciada e exaustiva.
Já com o conceito de alegoria Benjamin tensiona um modo
fragmentário de se produzir e fruir obra de arte. “[P]ara resistir à queda na
contemplação absorta, o alegórico tem de encontrar formas sempre novas e
surpreendentes” (BENJAMIN, 2016, p. 195). Se tomarmos como exemplo
Rio 40 Graus, observa-se uma favela narrada desde vários depoimentos,
em uma construção quase documental, onde diversas características do
contexto são expostas, literalmente, em percepções fragmentadas. Não há
uma só narrativa que preencha por completo as lacunas deixadas entre
os cortes. Nesse modelo alegórico, cabe ao espectador o encargo de fazer
a junção dos depoimentos e de interpretá-los a cada vez de sua própria
maneira. Há um natural convite à reexão, há um cinema que provoca o
espectador ao exercício da interpretação.
Aquele aspecto partilhado pelo Cinema Novo, de provocar o
espectador à interpretação e reexão, volta a dar espaço no cinema brasileiro
contemporâneo a uma contemplação distanciada. Os lmes mencionados
na crítica da cosmetização da fome, ao mesmo tempo que se vendem
como conscientes da “realidade” que retratam, garantem ao espectador a
comodidade de uma contemplação meramente simbólica.
Essa falsa reexividade pertence de maneira genérica à arte da pós-
vanguarda, ou, como o teórico de cinema Robert Stam enuncia, à arte
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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pós-moderna”. Ela não deixa de abordar os temas caros a um pensamento
crítico e reexivo. Ela “tende a ser reexiva [...], porém cuja reexividade é,
quando muito, politicamente ambígua”; e, fazendo ressonância aos termos
de Bentes, continua Stam: “[o]s meios de comunicação de massas parecem
ter canibalizado a teoria da reexividade para os seus próprios propósitos
culinários’” (STAM, 2008, p. 218-219). Pensado em contraposição aos
motivos do Cinema Novo, agora o cinema brasileiro retorna aos critérios
estéticos do estrangeiro, critérios que já se encontram disseminados
também no gosto do próprio espectador brasileiro.
considerAções finAis
Em transcrição de conversa com guras importantes do cinema
mundial, Glauber Rocha arriscava um presságio: “[d]entro de cem anos
ninguém mais ouvirá falar de James Bond, e, no entanto, haverá las nos
museus para se ver Chaplin, da mesma forma que há las hoje para ver
Picasso no Museu de Barcelona” (ROCHA, 1981, p. 198). Quanto às
las para assistir Chaplin, no momento é algo pouco crível, mas pode ser
que venha a se tornar realidade dentro dos próximos cinquenta anos a
completar a profecia de Rocha; a respeito das últimas sequências de James
Bond, todavia, essas podemos armar que continuam atraindo multidões
e rendendo lucratividades milionárias.
É irrecusável que, em comparação às vanguardas dos anos
1960 e 1970, há uma diferença essencial na maneira como o cinema
contemporâneo de grande bilheteria se relaciona com a política. Aquelas
pensavam a política de modo completamente revolucionário e utópico,
tão logo, parece natural que a arte seja introduzida neste cenário como
uma alavanca para alcançar o estágio social desejado. Após a virada pós-
moderna, a crença em utopias cou abalada não só no escopo artístico,
mas no domínio político e intelectual também. Testemunhar o fracasso das
vanguardas alinhadas aos ideais revolucionárias não signica que a relação
entre cinema e política em geral tenha fracassado. Parece mais produtivo
pensar que se constata aí o m de um modo de operar o fator político
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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dentro do domínio cinematográco. Uma relação que agora ocorre ou
espera por novos modos de efetivação – e também de reexão.
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Febre do rato:
  poiesis 
Pedro Fernandes GALÉ
1
Tudo que sinto estia / a cidade (mesmo assim) / encharca / minha
vida de olhos / o pensamento ca / um soslaio defunto / neste
abrigo (Adriano Menezes, “Marquise”, Os dias, p. 23).
Esse texto é dedicado à memória do irmão Adriano Menezes, poeta. E dos bons!
Amigo do desbunde!
Quando, recebido o convite dos organizadores, uma proposta para
escrever sobre losoa e cinema, não foram poucos os apuros e reticências
diante da empresa. Não pudemos abandonar certa desconança dos
conectivos que se multiplicam diante da prosa losóca; um tipo muito
em voga de reexão estética parece cometer toda sorte de abusos em
relação às obras de arte diante da autorização supostamente concedida
por um aparentemente inofensivo “e”. Tentou-se organizar nessas linhas
Pós-doutorando em Filosoa pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar / São Carlos / SP / Brasil.
E-mail: pedrofgale@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p41-60
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um esforço de abarcar um regime lmográco que erta com um caráter
poético ou poetizante. Portanto, diante de uma cisma em relação ao abuso
das conexões ditas losócas, propomos ainda uma camada mais, a da
poesia. Sem esquecer que no mais das vezes, em sua vertente lírica, a poesia
se coloca de maneira transgressora em relação à prosa losóca e suas
apropriações. Se pensarmos com Wallace Stevens, isso se deve ao próprio
lugar ocupado pela poesia e sua relação com o lugar ocupado pela losoa:
Se denirmos poesia como uma visão extraocial do ser, isto
a coloca em contraste com a losoa [assumindo que a verdade
losóca pode ser dita a visada ocial] e, ao mesmo tempo,
estabelece uma relação entre ambas. Em losoa nós tentamos
abarcar a verdade através da razão. E isso é obviamente uma
armação de conveniência. Se dissermos que em poesia tentamos
abarcar a verdade pela imaginação, isso é, também, uma armação
de conveniência. (STEVENS, 1951, p. 41).
Tomaremos a via que se nos apresenta pela possibilidade de uma
abordagem extraocial, poética, daquilo que vamos tratar, ainda que sob o
risco constante que o conectivo “e” impõe à obtenção de um objeto. Quer
tratemos de cinema, quer tratemos de poesia, é natural que se tema diante
da feliz promessa de ocialidade losóca, ela traz em si uma ameaça, ainda
que a contragosto. A questão em torno do objeto (cinema ou poesia) e da
ferramenta (losoa) se repropôs diversas vezes, sem que encontrássemos
um equilíbrio possível, a saída, que pode ser considerada apenas uma
patifaria a mais, foi a de buscar as intersecções entre cinema e poesia em
uma obra cinematográca que se deixe observar dessa maneira. Buscando
mais do que pensar o cinema a partir da losoa, cabe-nos pensar o poeta,
como lugar, como tópica e como agente do pensamento a partir de uma
guração em cinema que é ao menos uma mera armação de conveniência.
Em tempos onde a falta de sensibilidade, e todo seu apelo sistemático,
pode servir de base para estruturas teoréticas que fazem com que toda sorte
de objeto, produto ou obra, se veja amparada por elementos que se não lhe
são estranhos, é necessário que se tome a via da sensibilidade, ainda que
também fadada ao equívoco, essa via permite que pensemos o nosso objeto
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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em sua dignidade, em sua singularidade. Tomar da história do pensamento
losóco elementos para que se possa abordar “losocamente” um lme
é tarefa inglória, pois a arte, ainda que sem grandes sacralidades, não
deixa de apresentar-se de modo refratário a tal jugo ocial e losóco.
A tangente adotada aqui, longe de ser isenta de problemas, é a de buscar
discursos poéticos ou de poetas que nos tragam à baila alguma sorte de
reexão que sirva, ainda que sem qualquer sorte de ocialidade, para que
localizemos lugares e tópicas cujo regime de conveniência seja mobilizado
por um lme. Isso se tentará fazer sem que nos forcemos a encaixes
forçados ou reduções da sorte obra = sistema. Respeitaremos os regimes de
conveniência fornecidos pela história da poesia, mais do que a verdade tida
por ocial e losóca.
Sem pensar nas consequências de tal jogo de aparência livre entre a
obra e o pensamento, e sua matriz poética, um texto, como este que aqui se
pretende desenvolver, seria um móvito, um natimorto que se apresentaria
ao mundo já arruinado e sem vida. O esforço que move essas linhas é
impreciso e pode até mesmo não passar de um clamor à imaginação de viés
anacrônico: o de que observemos uma obra do modo mais nu possível,
sem as lentes da crítica ou o aparato das estéticas. Essas linhas buscam a
insurgência do discurso artístico, ou ainda poético, em relação às grandes
arapucas armadas pela estética, losoa da arte e suas crias, como certa
vez escreveu a magníca Marina Tsvetáeva: Para o lósofo [o mundo real]
é motivo de pergunta, para o poeta, de resposta. (Nunca acreditem nas
perguntas dos poetas!...) (TSVETÁEVA, 2017, p. 42). É claro que nesse
esforço, retomamos a imagem do Poeta Torquato Tasso, ao nal da tragédia
de Goethe: “Assim se agarra / O barqueiro ao rochedo que será / o m de
sua vida, o seu destino” (GOETHE, 1999, p. 160).
Destinada e até mesmo agarrada ao seu próprio fracasso, a estratégia
que propomos aqui é a de abarcar um lme que já traz em si uma carga
desaadora a toda sorte de esquema: Febre do Rato, de Cláudio Assis.
A escolha, confessamos, não se deu de modo gratuito, mas totalmente
consciente. Nessa obra, para além de toda a insurgência que os lmes
do diretor pernambucano costumam apresentar, o tratamento central
repropõe ainda um problema a mais, o do elemento poético. Seria simples
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deslocar todo o esforço cinematográco para o ambiente da poesia, outra
arte por vezes insurgente em relação aos esquemas losócos. Febre do rato
se faz num registro que é poético, não apenas por sua personagem central
ser um poeta, ou assim chamado poeta, mas pelo jogo de imagens, por
sua temporalidade, pela ausência de cor e movimentos de seus quadros
diante de uma realidade dada que, se não busca subvertê-la, não a aceita. A
película indica reclamar para si uma poética que parece se afastar dos meios
já célebres de sua feitura e clamar para si uma abordagem imaginativa e
imagética do ser, da verdade e de seus movimentos.
Cafés literários, ocinas do saber e toda sorte de proposição da
poética ocial em seus regimes especícos, ainda que inconformada, não
aparecem como possibilidade de redenção ao poeta e em relação ao poético.
Em consonância com o lugar escolhido como locação ao elemento poético,
o próprio enredo do lme se coloca como que afastado de toda culpa e
comiseração, burguesa ou cristã, que parecem permear nossos lmes acerca
de tudo que é considerado marginal e periférico. Retomando uma tópica
muito antiga, o poeta de Claudio Assis, Zizo (Irandir Santos), é marginal,
é daqueles que, nas palavras de Horácio, Demócrito não expurgaria do
Hélicon, o monte consagrado a Apolo e às musas, ele não é são (Epístola aos
Pisões, versos 295-296). O poeta louco que encerra a arte poética de Horácio
é uma tópica reincidente no âmbito do pensar a poesia. A película nos traz
um poeta que marginal, brasileiro e do século XX (ou XXI?), não deixa de
remontar um lugar já conhecido entre os antigos, foi em torno da gura
do poeta louco e, digamos, marginalizado que se encerraram as linhas de
sua célebre carta aos Pisões, passagem que reproduzo na íntegra por ser das
mais saborosas:
Feito aquele que sofre de sarna ou de régia doença / ou de delírio
fanático ou de irascível Diana, / quem é sensato receia e evita tocar
o poeta / louco; crianças o atiçam e incautos o seguem. / Quando
versos sublimes arrota nas suas errâncias, / feito um passarinheiro
que atento aos melros um dia / cai num poço ou fosso, pode
esganar-se “Socorro, / concidadãos!”: ninguém se preocupa em
prestar uma ajuda. / Mas se alguém se preocupa em dar a mão ou
a corda, / “Quem é que sabe se não desceu ali por vontade, / sem
querer ser salvo?”, diria: assim é que narro / como enterrou-se o
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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poeta sículo. Empédolcles quis ser / tido por deus imortal e frio
pulou no fervente / Etna. Façam justiça! Que possam morrer os
poetas; / ao salvar quem recusa, você parece assassino. / Esta não
é a primeira vez, nem, se for retirado, / vira humano e deixa de
amor pela morte famosa. / Nem sabemos a causa de tantos versos,
quem sabe / se ele mijou nas cinzas paternas, pisou inda impuro /
num bidental funesto; por certo pirou e igual urso / quando rompe
a grade posta à frente da jaula / nosso recitador afugenta cultos e
incultos. Quem ele agarra, de fato prende e mata em leituras: /
sanguessuga só larga a pele se farto de sangue. (HORÁCIO, 2020,
p. 71-73).
O diretor parece tomar o lugar de Demócrito, seu poeta vai na
direção de suas musas de modo a não saber da causa de seus versos, arrota
versos; “Podem calar as bocas ocias, diz o poeta Zizo, mas nunca a poesia;
e minha boca é pura poesia, safada, mas poesia, entremelada, mas poesia,
arrotada, e mesmo assim poesia.” A tomada de partida nos coloca diante
de uma tópica, a do poeta intuitivo, ingênuo que faz seus versos como que
emanando de uma fonte trivial e ao mesmo tempo oculta. Mas no jogo de
imagens do diretor recifense, as questões se sobrepõem, o poema, de matriz
oral se apresenta diante de um mundo que não deixa de nos violentar
com sua beleza e perigo, regressivo ou progressivo, esse mundo se impõe
diante de uma poética das imagens que nos coloca em constante desarme
em relação a qualquer sorte de categorização. A tópica clássica se insere no
balançar tropical, no mangue, nos barracos, atestando, diante de toda a
distância, a efetividade desse topos romano.
O poeta, no Recife de 2010, se apaixona por Eneida (Nanda Costa).
Ama o poema e a mulher que o leva por nome. Sua Eneida, lha de
“Hippie fora de época”, e não de Vergílio, é o que inspira alguns versos.
O fora de época se atualiza, vira época em procedimento que, longe de
epifanias, parecia acenar para o que estava por vir. Mas o poeta louco e
apaixonado, de libido descontrolada, também é vitimado por uma busca de
um fazer poético envolto por lodo, ratos, bibocas e margens. Desnudando
o espectador de seus referenciais mais óbvios. É como se o lme de Claudio
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Assis chamasse para si uma visada que atuasse de modo análogo à proposta
de Waly Salomão diante das obras de Hélio Oiticica:
Para iniciar a corrida são necessários dois ou três pressupostos
básicos: tomar uma boa talagada de inconformismo cultural-ético-
político-cultural, evitar a arapuca armada do folclore e destravar
a armadilha preparada pelo esteticismo. Para poder penetrar
genuinamente – o genuíno não sendo nenhuma raiz encontrável
mas o resultado sintético das pedras de tropeços iniciáticas – no
Buraco quente e chegar até o lendário boteco Só Para Quem Pode.
(SALOMÃO, 2015, p. 11).
É claro que a paisagem de Zizo, personagem central de Febre do rato,
não é a dos morros cariocas, mas o mangue das periferias de Recife, aqui
retratado sem os traços de comiseração catártica que tanto parece agradar
uma corrente do engajamento inamovível tão caro a algumas “escolas” do
cinema brasileiro. A periferia que Claudio Assis nos apresenta em preto e
branco é um lugar onde ainda caberia certo desbunde, certo arrefecimento
de normas sociais já caducas em muitos dos circuitos libertários da zona
oeste paulista ou zona sul carioca, mas aquilo que se expressaria em verbo
e consumo na ladeira do baixo Augusta, ganha aqui ação e poesia sob
um visual inconstantemente iluminado. Longe do engajamento prosaico,
a Febre nos arrebata pelo seu esforço de poetização visual. O poeta Zizo
é a encarnação do elemento poético, caótico e marginal que se coloca
como que fora de lugar e ao mesmo tempo embutido para dentro de uma
paisagem que não faz mais que rearmar o elemento necessário e poético
da negação.
Pensar esse elemento marginal é pensar na relação dos poetas e
das poéticas com um mundo que não faz muito gritou em agonia. Para
que não entremos nessa caracterização desarmados, deitemos os olhos
no livro que introduziu os leitores mais genéricos no universo da dita
poesia marginal. No ano de 1975, Heloisa Buarque de Hollanda lançou a
coletânea 26 poetas hoje, aquela que seria uma grande coletânea de poesia à
época; em sua introdução, a organizadora nos deu certos critérios para que
compreendamos o que se entendeu como poesia marginal:
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Se agora a poesia se confunde com a vida, as possibilidades de
sua linguagem naturalmente se desdobram e se diversicam na
psicograa do absurdo cotidiano, na fragmentação de instantes
aparentemente banais, passando pela anotação do momento
político” (HOLLANDA, 1998, p. 11).
Febre do rato de 2010 parece ser uma espécie de canto nal de um
mundo que já não existe mais. Um mundo onde conjuravam os mangues
de recife, poetas marginais dos anos 60 e elementos musicais em nada
óbvios. O cartaz, à época do lançamento lme já bem anunciava: “Agora é
só poesia”. Mas que poesia? A poesia de edital e coletâneas que não fazem
mais que rearmar nossos vícios estéticos e pretensões grandiloquentes?
Não, como já gritava o grande poeta Waly Salomão, o esteticismo parece
estar longe do lme e da carga de poesia que dele emana. Aliás, perguntado
sobre o âmbito estético de sua arte, o diretor Claudio Assis, no site Revista
de cinema (2011), responde de modo a não sobrar dúvidas: “Não sou esteta
coisa nenhuma! Eu sou um guerreiro. Um guerreiro que se junta a outros
guerreiros, e, juntos, fazemos cinema. Não tem nada de esteta.” O diretor
é mais um a tentar “destravar a armadilha preparada pelo esteticismo”.
Sem as perversas e perseverantes chaves da estética, ou ainda, do
esteticismo, como abordar o lme em questão? Não faltaram à época de
lançamento do lme (meados de 2012) entrevistas onde o diretor rearmava
seu vínculo com a poesia marginal dos anos 60 em diante. Talvez, a chave
mais incisiva de tentativa de entender uma obra e não cair no esteticismo
ou no criticismo seja a de entendê-la diante de um chamamento de certo
universo poético que parece marcar esse lme-poema e seus ritmos. O
tempo do lme nos permite certas relações; o ontem a que o lme pertence
conjura temporalidades que reúnem quase meio século (dos anos 1960 à
primeira década do século XXI), um mundo no qual o Febre do rato ainda
era possível. Parece válido entender o lme com os olhos da poesia deste
ontem, pois se trata de algo que envolve a poesia de um momento anterior
e de difícil demarcação, onde nem éramos tão felizes, mas sabíamos.
A matriz poética dos versos desse poeta à margem, do mangue e da
cidade, permanece ligada a uma temporalidade difusa, dançam juntos os
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anos 70, o Manguebeat e as engenhocas de um tempo que se apresenta
em seus objetos, a ocina do poeta é o caos, algo informe e atravessado de
coisas propensas a gerar seus frutos.
Vejamos o poema de abertura, numa transcrição que pode ser
imprecisa:
O satélite à volta do mundo – abismo de coisas medonhas – pessoas
que ladram seu sono – enfeites de cores errantes – cálida e vizinha
e princesa – magra em sua sana loucura – grita de alegre subúrbio
– chora de medo planeta – metida em sais bem curtas – bonecas,
ladrões, pernetas. – Mundo abismo, grande mundo, – logo ali por
trás do mangue – descansa a insônia, a faca, – o serrote, o trabalho,
o sexo e o sangue – abismo mundo escuro – profundo buraco –
lateja o fardo de tuas ruas, – lateja o grito ruminante – gritos de
não! Mundo e abismo. Gritos de não para o meu abismo mundo!
Não cabe aqui julgar a qualidade dos versos, embora ela exista,
mas o registro poético sob a luz de uma imagem em preto e branco que
da cidade vai ao rio, do rio às barracas e palatas. Esses versos, de ritmo
inegável, fazem a vez de proêmio. Ainda que a forma de apresentar um
regime poético a partir de imagens seja intimamente ligada ao que a voz da
personagem nos faz ouvir, elas se apresentam como indicação do caráter do
que vamos ver, ca claro que as imagens não estão lá para que se ilustre os
versos, menos ainda podemos pensar que os versos são frutos das imagens.
A relação entre os dois regimes, o imagético e discursivo, se desdobra no
tempo e em suas sucessões e se avolumam mutuamente, sobrepondo-se um
ao outro num regime que parece indicar mais que a participação de um
no outro. Suas relações se colocam de modo indireto e pregnante. A cilada
posta, já nos primeiros momentos é a de submeter a imagem ao discurso e
o discurso à imagem.
O registro da imagem é aqui não o de apresentar, de mostrar, muito
menos o de ocultar, simular; ele se apresenta ligado a uma força rítmica,
com sua dinâmica e sua força imaginativa repropondo imaginativamente
a verdade de sua ambientação. O registro dos versos desse proemio não é
o da signicação positiva de algum lugar, algum regime de verdade social;
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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ele também é ritmo. O que conduz o espectador é um deslocamento
não somente do centro à margem, mas uma margem que se construiu
como a palata frente ao rio e como a poesia frente ao regime poético
estabelecido. Os versos de Zizo ao início já nos inserem numa poética
ligada ao que se convencionou chamar de poesia marginal, que poderia
ecoar como anacrônica hoje, mas que comunga de uma tonalidade em
comum com poetas do passado recente, também eles ditos malditos a
seu tempo. Não são versos que busquem qualquer sorte de autonomia ou
outra carga inerente a um objeto estético que serviria aos delírios de estetas
e cartorários do pensamento.
Já de saída o lme nos apresenta o seu poeta, em seu conteúdo: o
poema; e em sua forma: a imagem de Zizo em sua ocina. Nesse breve
proêmio já nos colocamos diante de uma imagem bem delimitada em
seus contornos. Ele parece escancarar uma gura do imaginário poético,
o poeta marginal, maldito. Um poeta que pode se espraiar por qualquer
momento de nossa história cultural, um poeta que já não se veria
amparado pela seleção canônica. Um dos caminhos possíveis, aqui, é o
de observar, à contraluz, o lugar dessa marginalidade diante do artigo de
Haroldo de Campos, Contexto de uma vanguarda, que buscava demarcar
certos territórios:
A poesia concreta fala a linguagem de hoje. Livra-se do
marginalismo artesanal, da elaborada linguagem discursiva e da
alienação metafórica que transformam a leitura de poesia em nosso
tempo [...] num anacronismo de salão, donde o abismo entre
poeta e público, tantas vezes deplorado em termos sentimentais
e pouco objetivos” (CAMPOS, A.; CAMPOS, H; PIGNATARI,
2006, p. 210).
Heloisa Buarque de Hollanda não foi surda a esse tipo de restrição
aplicada pelas vanguardas, notou a tensa relação entre a vanguarda
concretista e os poetas que pululavam à margem: “Faz-se clara a recusa
tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de
vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e
repressiva no nosso panorama literário” (HOLLANDA, 1998, p. 11).
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Gritos de insurgência contra as vanguardas já se faziam ouvir à época: “Se a
vanguarda de hoje, escrevia Torquato Neto em 1972, é sempre a retaguarda
de amanhã, o que será da retaguarda de hoje? Não é uma tristeza?” (NETO,
1982, p. 255).
Mas não é somente na chave de uma recusa diante das vanguardas
que podemos compreender a poesia dita marginal. Há uma postura de
ligação direta do poeta e sua localidade, seu lugar e seu público, se dá em
talagadas rápidas, “o ash cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem
no poema quase em estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração
da matéria vivenciada” (HOLLANDA, 1998, p. 10). Se pensarmos no
regime imaginativo em relação à verdade, em poesia não é sempre possível
tratar das exclusões de modo imperativo; não devemos buscar um regime
de exclusão que nos inclua. A imaginação poética, quando produtiva,
não nos permite a clara demarcação de territórios de dentro e de fora.
Demarcar a própria marginalidade é tarefa sempre inglória e infrutífera.
Ao ambiente da poesia não é dado excluir. Lembremos de Roberto Piva:
“Não devemos excluir autoritariamente, como censor barato, nem os que
se dizem marginais e não são e nem os que pensam ser marginais e são
escriturários” (PIVA, 2008, p. 188).
O lugar, a cidade é o ponto que nos dá a estabilidade diante de
uma temporalidade anacrônica ou difusa. Zizo tenta ocupar, a partir das
margens e dos dejetos nela depositados, os espaços disponíveis. Faz, com
um maquinário anacrônico, o seu jornal ou fanzine Febre do Rato, em sua
ocina antiga, sob a égide de um pôster de Bakunin, seu tempo é o das
máquinas desengonçadas, barulhentas e dotadas de beleza rítmica, como
os sons da prensa que nos apresentam os créditos iniciais. O poeta ocupa,
ou busca ocupar, seus espaços. O poeta, aqui retratado, é do tipo comum
num certo passado, que se manifesta em diversas frentes. Faz lambe-lambes,
lmes em superoito e gratos. Tudo emanando de uma mesma e impulsiva
imaginação. Tudo que emana dele é ou vem a ser poesia e ganha o mundo
em sua objeticação. Nas palavras de Torquato Neto: “Isso também tem a
ver com a poesia, mãe das artes & manhas em geral: antes ocupar o espaço
e logo em seguida poetar conforme for. Na gaveta, baratas e velharias.
Poesia não” (NETO, 1982, p. 180). Zizo parece encarnar esse apanágio e
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trazer à baila seus versos (compostos pelo roteirista Hilton Lacerda) e tudo
que se liga a eles. Há algo de errático em seus versos, que vão do poema
de ocasião a toda uma gama de assuntos poéticos dos mais usuais, como o
amor e a própria poesia.
Parece ser no marginalismo artesanal, cujos ruídos da prensa
aparentam materializar, que o diretor inseriu sua narrativa. Algo que na
demarcação de território do movimento concretista se colocava diante dos
problemas basilares da poesia e de sua ação no mundo. Longe de ser uma
gura tranquilamente incensada no imaginário literário e cultural brasileiro,
a gura a qual o lme se dedica não é isenta de problematizações. O que a
Febre do rato nos apresenta é também um poeta estorvo, que gostaríamos,
por vezes, de nos livrar. Marginal e indigesto, inconveniente e ingênuo, um
poeta artesanal traz à baila seus gritos de não.
Se quem decide acerca da marginalidade em poesia são aqueles que
formam, ano após ano, o cânone de nossa poesia, o lugar da marginalidade
se torna coisa mais complexa. A crítica incorporou em seu panteão autores
que, se pensarmos na questão do marginalismo artesanal, foram ou ainda
são considerados de margem, de fora, sem lugar no edifício da história da
poesia nacional. Roberto Piva, expoente também inconveniente (e ausente
da coletânea de Heloisa Buarque de Hollanda) e indigesto, ganha edições
no início de nosso século amparadas por textos de crítica oriundos da
academia que ele tanto desprezara; a poesia, por vezes hipervalorizada, de
Ana Cristina Cesar ganhou uma edição pela editora Cia das Letras. Talvez,
com o passar dos anos, foram os concretistas e suas lições que – mais por
incompreensão do que por uma leitura precisa que buscasse as ssuras
desse edifício e soubesse de algum modo apreciá-lo – foram lançados à
margem, ainda que longe do caráter artesanal que parecia marcar a assim
chamada produção marginal, geração do mimeógrafo.
Sob o signo de Hélio Oiticica, nossos heróis são os marginais e isso,
por vezes, ofusca o brilho mais próprio da poesia. Mas devemos lembrar as
palavras de Waly Salomão, ainda uma vez mais:
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É fácil o conservador dizer ‘romantismo’ pura e simplesmente e
descartar o contexto da época. Seja marginal, seja herói se reveste de
um caráter épico. Não era um romantismo inofensivo porque tinha
uma agressividade política oposta aos esquadrões da morte. Com a
malandragem do morro, Hélio Oiticica aprendeu da ambiguidade
sinuosa. Nada pode ser julgado de uma forma maniqueísta,
preto no branco. (...) Não era romantismo decorativo dizer Seja
marginal, seja herói; tinha um tremendo potencial ofensivo no
Brasil sob ditadura militar. Ácido corrosivo. (SALOMÃO, 2015,
p. 43-44, grifos do autor).
Não devemos ceder ao maniqueísmo e indicar um local desgarrado e
desgraçado à corrente concretista, muito atenta aos movimentos da poesia
nacional, e vaticinar qualquer sorte de erro da parte deles em não valorizar
os artesãos da palavra. O Paideuma concreto era outro. Mas ainda que nos
submetamos à tentação de sucumbir diante desse maniqueísmo, devemos
nos lembrar que são os concretistas que abrem o volume Os últimos dias de
Paupéria, de Torquato Neto, organizado por Waly Salomão. E na visão do
próprio Hélio Oiticica, a coisa se colocava, no ano de 1972, nos seguintes
termos: “Torquato, Waly, Ivan, Haroldo de Campos & conctretos, &tc. Assim
mesmo! Auência sadia: sarro legal. Sei que lutam para conseguir fazer-
produzir algo nesse país” (NETO, 1982, p. 273).
Ser marginal virou tópica entre alguns poetas, que longe de serem
romanticamente ingênuos, zeram seus versos diante de tal empresa. Há um
fundo comum entre eles, uma retomada do modernismo, convencionado
quase que a posteriori, paradoxalmente nos corredores e bibliotecas da
Universidade de São Paulo, que clamava, na voz de Oswald de Andrade,
contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas. A língua sem arcaísmos.
Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos
os erros” (ANDRADE, 2017, p. 32). É na expressão dessa “retomada da
contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação
poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso
nobre e acadêmico” (HOLLANDA, 1998, p. 11) que um novo vigor se
estabelece entre os versos de alguns dos poetas chamados marginais e a
oposição ao gabinete, à cátedra. Talvez o mais virulento deles tenha sido
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Roberto Piva, marginal entre os marginais, que de sua pena indócil deixou
o seguinte registro em A máquina de matar o tempo de 1962:
Aqui nós investimos contra a alma imortal dos gabinetes.
Procuramos amigos que não sejam sérios: os macumbeiros, os loucos
condentes, imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com
hemorroidas e todos que detestam os sonhos incolores da poesia
das Arcadas. Nós sabemos muito bem que a ternura dos lacinhos
é um luxo protozoário. Sede violentos como uma gastrite. Abaixo
as borboletas douradas. Olhai o cintilante conteúdo das latrinas
(PIVA, 2005, p. 139).
Nessa colagem que é Zizo, personagem na qual se sobrepõem o
próprio diretor do lme, Torquato Neto, Waly Salomão, Roberto Piva
entre outros, o que emana dessa multifacetada e coerente amálgama é
uma sorte de marginalidade que se faz partícipe de uma realidade da qual
não tenta fugir. À margem e sem qualquer sorte de reconhecimento dos
representantes da poesia ocial, ou dos lmes ociais e ligados ao bom gosto
imperativo, ele segue a vomitar seus versos e segue a se enterrar em seus
buracos. Não quer ser salvo! Quer apenas gritar não! Zizo não é idealizado,
não deixa de ser inconveniente, saliente e artesanal. Um poeta maldito ou
um maldito poeta? A resposta pouco importa, assim como a qualidade dos
versos que ele reproduz em cena. O lme mostra o poeta como condição,
como inconformado, como alguém que das beiradas aponta suas farpas
ao centro e que com isso só se faz perder. O poeta passa a ser incapaz de
ocupar outro lugar a não ser o de poeta. Lembremos das palavras de Marina
Tsvetáeva: “A arte não paga suas vítimas. Ela nem as conhece. É o patrão
quem paga os operários, não a máquina. Eles podem apenas deixá-la sem
mão. Quantos poetas mancos eu vi! Com mãos perdidas para qualquer
outro trabalho” (TSVETÁEVA, 2017, p. 183).
É no acompanhar calmo entre os becos, entre os barracos de uma
silhueta feminina, que somos apresentados à gura do poeta em ação,
sobre seu carro Zizo ecoa seus versos prosaicos e faz perceber sua verve
escandalosa, quase hiperbólica diante de um público, também ele marginal,
que parece se encantar com os dizeres daquele performático autor que
entrega suas folhas. A apresentação das imagens parece ela mesma indicar,
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Gabriel Debatin (Org.)
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no caminhar da moça entre os barracões, algo que não deixa de lembrar o
modo de persuasão de Waly Salomão:
Um estilo enviesado é o que vou abusar aqui, uma conversa
entrecortada igual ao labirinto das quebradas dos morros cariocas,
zigue-zague entre a escuridão e a claridade. Lama, foguete, saraivada
de balas, ricochete de bala, vala a céu aberto, prazer esplendor,
miséria. [...] (SALOMÃO, 2015, p. 11).
Não vamos aqui acompanhar os passos do poeta ctício no decorrer
do enredo, menos ainda acompanhar as outras personagens na sua
apresentação e interação com Zizo. O texto que aqui se apresenta não
possui em nenhum grau a pretensão de um esforço crítico. Em cinema,
segundo Torquato Neto, “se o espectador é um voyeur o crítico é um tarado
completo” (NETO, 1982, p. 36), nossa tara aqui é a poesia e seu lugar em
Febre do rato. Com suas imagens de beleza indiscutível, como o grupo de
jovens no meio do qual a atriz Mariana Nunes, como Rosângela, dança
ao som do teclado de seu amigo-amante entre amantes, de caráter poético
que conduz o voyeur e o tarado a uma série de regozijos, interessados e
desinteressados, que também nos fazem perceber o apelo plástico da dança,
da música, embora o registro seja ele também poético, uma poesia que se
estabelece no ritmo, no tempo da imagem. O silêncio de Pazinho (Matheus
Nachtergaele) por vezes ensurdecedor e o fogo contido, ainda que incisivo,
diante de seu amor e sua libido (que tem Vanessa [Tânia Granussi], mulher
trans, como objeto, não único, mas privilegiado) trazem ao espectador-
voyeur uma temporalidade imagética que é poética em sua armação.
Os marginais ou marginalizados são mostrados aqui sem a comiseração
tão usual ao nosso cinema. O elemento expiatório dá lugar ao elemento
poético, ainda que transposto à imagem. O registro pode ser considerado
poético, se pensarmos com Octavio Paz:
Ser ambivalente, a palavra poética é plenamente o que é – ritmo,
cor, signicado – e, ainda assim, é outra coisa: imagem. A poesia
converte a pedra, a cor, a palavra e o som em imagens. [...] O ser
imagens, e o estranho poder que têm para suscitar no ouvinte ou
no espectador constelações de imagens, torna poemas todas as
obras de arte (PAZ, 2003, p. 22-23).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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O lme se converte em poema por sua autêntica chave poetizante,
suas imagens se fazem valer poeticamente pelo caráter poético de abordagem
imaginativa da realidade. O lme se coloca como que um retrato, que
poderia à época de sua estreia, parecer inverossímil. O interessante é que
hoje, uma década diante, ele se mostra premonitório.
Longe de uma estética da fome, o lme se lança naquilo que é,
esteticamente, regressivo. O elemento à margem, enquanto lugar e prática
poética, é móbile de uma gama de imagens poéticas que vão da luz estourada
que aos poucos nos mostra o rio e suas pontes, ao escuro tanque de água no
quintal do poeta que serve de ambiente luxurioso nas relações sexuais de
plástica imagética de beleza ímpar. Os retratados no lme, marginais, num
sentido preciso, gozam sua existência desordenada. É gente que se diverte,
se une, parecendo trazer à imagem, uma vez mais o grito de Piva: “Só a
desordem nos une. Ceticamente, barbaramente, sexualmente” (2005, p.
141). Todas as personagens do lme de Claudio Assis são parte e obedecem
ao ritmo desse poema imagético chamado Febre do rato.
Há bastante sexo no lme, ele parece datado de um momento
distópico, anterior a certas mudanças, Zizo parece saber que “A poesia é a
mais fascinante orgia ao alcance do homem.” (PIVA, 2008, p. 188). Mas
sabe também que escreve em um momento em que “Os poetas deixaram
de ser bruxos / pra serem broxas. / Fantasmas-eunucos deste teatro / de
Sombras que é a / sociedade Industrial, / bibelôs de consumo devidamente
/ etiquetados & vacinados / contra a Raiva” (PIVA, 2008, p. 183). Os
gritos de não de Zizo e seus asseclas se dirigem a essa caretice, que à época
já mobilizava os arautos da culpa burguesa, do bom gosto, do esteticismo,
dos pentecostais e da direita xucra que hoje tomou o poder. O lme
gritou, passou para um regime poético e de verossimilhança que ganhou
ainda mais força depois de um fatídico 2018. “Qual é o signicado desse
milagre?” Perguntava Marina Tsvetáeva. “Que não existe atraso na arte,
que a própria arte é em si adiantamento, independente do que se alimenta
ou do que ressuscita” (TSVETÁEVA, 2017, p. 85).
O lme retoma, ressuscita e assim aponta para o futuro. Retomar
certo desbunde, em 2010, por exemplo, soa hoje como um grito de um
mundo que se fez deixar de se ouvir. A presença quase que hiperbólica
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de um poeta anárquico e sua ressonância entre seus pares parece coisa
distante e é a partir dessa distância adquirida que Febre do rato ganha
força, fala-se no lme de uma cheia que a tudo consumirá, brinda-se a
ela ao nal do lme. Hoje, de um triste 2021, podemos dizer que a cheia
chegou. O louvor aos hábitos condenáveis, o sexo inimputável de culpa,
o dançar das curvas femininas, nus frontais de toda sorte, à época pouco
transgressores, são hoje retratos de um ontem que se deixou morrer. Não
é coincidência que o arco temporal do lme, entre a Semana Santa e a
Semana da Pátria, apresente duas matrizes do nosso modo calhorda de
operar: a religião e o patriotismo. Ou ainda, como tão bem se congura
hoje nos dizeres incrustrados nos círculos de poder: “Brasil acima de
tudo, Deus acima de todos”.
O lugar à margem, reservado à desordem, é hoje mais amplo. Foi
aberta a caixa de Pandora (a imagem é de Leon Kossovitch), o mundo volta
a ser perigoso ao poeta, toda nudez será castigada. Já se apercebia indícios
dessa mudança, como nos apontou Jorge Coli, em 2017:
Ora, as mentalidades mudaram muito rapidamente e a exposição
[Histórias da Sexualidade, no MASP] começa no momento exato
em que o moralismo no Brasil vem animado por uma histeria sem
precedentes, vinculando-se a um futuro político de prognóstico
aterrador. (COLI, 2017).
Escrito já diante da realização desse prognóstico, o texto que aqui
se apresenta não pode deixar de revelar-se surpreso com o ganho de
verossimilhança que o lme de Claudio Assis ganhou nesse intervalo de
uma década. O poema se fez real. “Os versos são nossos lhos. Nossos
lhos mais velhos que nós, por que vivem mais, além de nós. Mais velhos
do que nós, pois vêm do futuro” (TSVETÀEVA, 2017, p. 102).
O poeta morre por agitar, num desle de 7 de setembro, seus
seguidores e seguidoras. Diante de armas, canhões, soldados, algo que à
época soava um pouco anos 70, Zizo começa por agitar bandeiras que
desbundam a bandeira nacional. Parecia anacrônico, tanto o desbunde,
quanto a gura macabra do exército nacional. Já não havia censura e
ressoávamos todos os versos de Chico Buarque “A gente agora já não tinha
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 57
medo / no tempo da maldade acho que a gente nem era nascido” (João e
Maria). Já dávamos como favas contadas o momento em que viveram os
poetas de fanzine e reproduzíamos, como Heloisa Buarque de Hollanda,
no posfácio à reedição dos 26 poetas hoje, o fato de que “com o tempo
a gente se esquece do que foi a convivência com um estado de exceção
(HOLLANDA, 1998, p. 261).
O poeta, sob os gritos de Vanessa, “ele é somente um poeta, larga
ele!”, é lançado por policiais truculentos, com indicativos de tortura,
desacordado, ao rio: “nu em sete de setembro, né, porra! Tu vai ver o que é
bom pra tosse!”, diz o meganha. Ratos tomam a cena.
É esse poeta que Febre do rato, em seu viés também poético e
premonitório, nos apresenta. Inofensivo diante da liberdade, caricato em
um mundo normal, volta ser estorvo nas exceções de nosso Estado. O
poeta retomava, a partir de imagens de petas e poemas do passado, em
2010, “o ethos de uma geração traumatizada pelos limites impostos à sua
experiência social e pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão
e informação” (HOLLANDA, 1988, p. 257). Voltamos, muitos, à
margem. O que nem sempre é uma escolha. O poeta de Claudio Assis
ganha hoje nova conotação: ele escreveu, ou ainda viveu no âmbito da
cção, para hoje.
Aquilo que o lme tinha de distópico, fruto de sobreposições
temporais das mais diversas, numa temporalidade difusa em seus
produtos, decalcou-se num hoje trágico que não deixa de ser, em seu
ethos, anacrônico e distópico. Daí o poder dessa poesia que vem não se
sabe de onde, daí a necessidade de mijar nas cinzas de nossos pais, como
o poeta louco de Horácio. O ontem se emplacou em nosso cenário de
modo a deixar a todos paralisados, nos faltam hoje os gritos de não, que
diante do anacronismo nosso de cada dia se faz ecoar em cada um de nós.
Um lme de ontem pra hoje, que já nasceu extemporâneo para tornar-se
de atualidade inconteste, como sói acontecer com a poesia, que por vezes
é contemporânea de seu futuro.
Esse Poeta passa a ser marginal de um tipo que não se quer ver, o louco
de Arte poética, passa a ser cada vez mais como os leprosos, “Feito aquele
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que sofre de sarna ou de régia doença” (sendo sarna um nome amplo para
doenças cutâneas, na língua de Horácio, que poderia incluir até mesmo a
lepra). Podemos saltar da Roma de Horácio para o modernismo Brasileiro
para compreendermos ainda uma camada mais dessa marginalidade. O
leproso lançado à margem não deixou de gurar em textos de nossos poetas
do começo do século XX.
Há uma “reportagem” de Raul Bopp, “Caminho de Pirapora”, uma
das mais impressionantes peças de nosso modernismo em que os leprosos,
esses marginais que ninguém quer ver, dizem ao poeta: “A polícia nos
persegue em toda parte. Trata de nós como de cão furioso. De carabina
embalada. A gente sai enxotado de uma cidade. Quando chega-se noutra,
é a mesma coisa. É a sina de sempre. Tudo tem medo de nós” (BOPP,
2013, p. 160). Hoje, num contexto onde todos podem ser marginalizados,
a partir de um centro cafona e retrógrado, anacrônico e inverossímil,
tememos que a realidade dos marginais de Raul Bopp se coloque diante de
nós: “Para eles só havia de real e positivo, sempre, onde quer que fossem,
aquele espantalho de farda: a polícia.” (BOPP, 2013, p. 161). De Bopp ao
BOPE muito se perdeu!
Outono de 2021.
referênciAs
ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropofágico e outros textos. São Paulo: Cia das
Letras, 2017.
ASSIS, Claudio. Claudio de Assis continua indomável. [Entrevista cedida a] Júlio Bezerra.
Revista de CINEMA, [s. l.], 15 dez. 2011. Disponível em: http://revistadecinema.com.
br/2011/12/claudio-assis-continua-indomavel/. Acesso: 10 set. 2021.
BOPP, Raul. Poesia completa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Teoria da poesia
concreta. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
COLI, Jorge. Mostra do Masp sobre sexualidade supõe que qualquer nu liga-se ao sexo.
Folha de São Paulo, São Paulo, 12 nov. 2017.
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GOETHE, Johann Wolfgang von. Torquato Tasso. João Barrento (trad.). Lisboa:
Relógio d’água, 1999.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.
HORÁCIO. Arte poética. Guilherme Gontijo Flores (trad.). Belo Horizonte:
Autêntica, 2020.
MENEZES, Adriano. Os dias. Belo Horizonte: Scriptum livros, 2004.
NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Lemonad, 1982.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. Cidade do México: Fondo de cultura económica, 2003.
PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião. São Paulo: Globo, 2005. (Obras reunidas, v. 1).
PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno. São Paulo: Globo, 2008. (Obras reunidas,
v. 3).
SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: Qual é o parangolé? São Paulo: Cia das letras, 2015.
STEVENS, Wallace. e necessary angel. Nova Iorque: Vintage books, 1951.
TSVETÁEVA, Marina. O poeta e o tempo. Aurora F. Bernardini (trad.). Belo Horizonte:
Âyné, 2017.
60 |
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N  ,
  
Gustavo Silvano BATISTA
1
A relevância losóca da experiência da obra de arte tem sido tema de
ampla discussão nas mais diversas orientações da losoa contemporânea.
Na tentativa de problematizar e situar a relação com as mais diversas
expressões artísticas contemporâneas, lósofos das mais diferentes
correntes lidam com as questões relacionadas às obras de artes, não mais
circunscritas a concepções estéticas ou ontológicas, ou ainda no horizonte
de elucidações históricas dos processos artísticos, mas antes partindo da
análise da própria natureza da obra de arte, considerando os próprios
processos que compõe e também estão circunscritos à obra como modo
de ser da própria obra, para além dos processos de criação, composição e
exposição, comumente considerados. Trata-se, portanto, da indicação das
próprias repercussões das obras como elementos losocamente relevantes,
para além daquilo que acontece no âmbito dos museus, academias e
galerias de arte. Tal posicionamento apresenta consequências relevantes
para a própria concepção de arte vinculada a objetos,
Professor de Filosoa da Universidade Federal do Piauí – UFPI / Teresina / PI. E-mail: gustavosilvano@ufpi.
edu.br
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p61-72
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Entre essas correntes, a hermenêutica losóca também se dedica a
pensar as obras de arte, situando-a no âmbito de discussões ontológicas.
Deste modo, mesmo inserindo a discussão sobre a arte no horizonte
das questões hermenêuticas, tal reexão também encontra repercussão
no âmbito da estética e da losoa da arte, oferecendo novas questões
e possibilidades de pensar a própria experiência enquanto linguístico-
interpretativa, ou seja, como hermenêutica.
Pensando especicamente no pensamento de Hans-Georg Gadamer,
tanto as observações da natureza das obras, quanto o exame das experiências
que perpassam o contato com as mesas, estão inseridos no processo
hermenêutico básico e mais amplo, no qual o questionamento-chave é
alcançado na pergunta sobre o compreender. Em outras palavras, Gadamer
também se ocupa do compreender tal como acontece efetivamente na
relação com a obra de arte, vislumbrando neste âmbito – da relação com
as artes – um momento fundamental tanto para a hermenêutica losóca
quanto para a losoa da arte.
Dizendo de outro modo, Gadamer reconhece, no horizonte da
própria experiência básica do ser humano no mundo, enquanto seres
históricos, situados e nitos, a experiência da obra de arte como um
horizonte no qual também podemos enxergar um caminho de discussão
do sentido das coisas em geral, mesmo que esse sentido seja tomado na
perspectiva hermenêutica, ou seja, como um componente efetivo e prático.
Assim sendo, é a experiência da obra de arte que promove, do ponto
de vista da losoa hermenêutica, um aspecto hermenêutico fundamental
tanto para os sujeitos quanto para a própria arte. Como arma o próprio
Gadamer,
é a arte que revela muito singularmente à experiência a questão
fundamental do ser humano; e de tal modo que não se levanta
contra ela nenhuma resistência ou objeção. Uma obra de arte é
como um modelo. Ela é, por assim dizer, irrefutável (GADAMER,
2002, p. 155).
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| 63
Nesta perspectiva, Gadamer lembra-nos que a experiência da obra
de arte se dá a cada encontro, mesmo que cada experiência seja única e,
por conseguinte, o compreender aconteça sempre de modo distinto. Tal
aspecto – ou seja, o encontro do sujeito com a arte – possibilita apontar a
experiência da arte como um evento único e efetivo, ou seja, interpretativo.
Diversos aspectos próprios das obras, tais como a história,
composição, recepção, representação, comercialização, entre outros,
são fundamentais para a compreensão da própria obra enquanto obra,
isto é, de sua condição processual, disseminada e comunicada a cada
encontro, seja de qual ordem for. Neste sentido, Gadamer identica como
hermenêutico o caráter performático da obra enquanto um processo no
qual a obra encontra novos sujeitos e novos caminhos, em suma, novas
repercussões. Tal caráter indica uma postura de recepção e repercussão das
obras, experimentada pelo autor, pelo público, pelos especialistas ou ainda
historiadores da arte, tendo em vista a performance da própria obra, em
sua condição histórico-efetiva-nita, sempre dialogando com a efetividade
das novas demandas de sentido.
Neste sentido, para Gadamer o que está em jogo não é tanto o
objeto artístico, mas antes a condição de imagem (Bild), tema relevante
e central da primeira parte de Verdade e Método,
2
ainda que presente em
diversos momentos da história da estética losóca. Deste modo, pensar
a obra de arte enquanto obra torna-se, para Gadamer, um caminho para
desedimentar o sentido comumente dado à própria natureza da obra,
muitas vezes pensada enquanto um objeto artístico. Gadamer busca
analisar a sua condição mais básica, pensada enquanto imagem (Bild),
mesmo tal imagem tenha uma composição material fundamental para
sua própria efetividade, independente do lugar onde está situada. Assim, a
hermenêutica de Gadamer compreende a questão da experiência da obra
de arte diretamente ligada à sua condição de imagem, e não mais à sua
condição de objeto. Este horizonte possibilita também pensarmos novas
formas de arte, como o cinema, no qual parece haver um descolamento
entre a condição de objeto e a imagem própria, advindo do objeto. O
Gadamer dedica-se a pensar, na segunda seção da primeira parte, intitulada A ontologia da obra de arte e seu
signicado hermenêutico, a valência ontológica da imagem (Bild). Cf. Gadamer (1997, p. 193-205).
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que signica dizer que a imagem cinematográca está ligada a certos
materiais ou digitais que compõem o lme, mas tais materiais não estão
diretamente vinculados à imagem, como acontece no quadro. A imagem
cinematográca passa por uma máquina que gera sua performance.
Deste modo, pensar hermeneuticamente a imagem cinematográca
signica também considerar a natureza da imagem e sua relação com o
desenvolvimento da ciência e tecnologia.
Assim, no surgimento do cinema, no nal do século 19, momento
que Flávia Cesarino Costa considera como o “primeiro cinema”, novas
questões surgem, imersas em um momento histórico reconhecido
como “uma era de predominância da imagem” (COSTA, 2005, p. 17).
Não se trata mais de considerar apenas o paradigma da imagem, tendo
em vista o quadro xo na parede. Os desenvolvimentos da técnica
moderna possibilitaram um outro tipo de arte, em grande medida
compatível com a sociedade industrial de massa, possibilitando assim
novas experiências de arte.
O ensaio decisivo de Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica, ocupa-se essencialmente da fotograa e do cinema
como modelos artísticos que trazem questões atuais não somente para a
estética, mas também sobre o próprio momento histórico no qual surgem:
a sobrevivência da obra de arte diante dos avanços da sociedade moderna
industrial e burguesa. Um novo passo é percebido na relação com a obra de
arte: a transformação técnica - e moderna - da própria atividade do artista
e da recepção do público, ao mesmo tempo prática e efetiva. Modicou-se
tanto a natureza das novas obras, não somente no âmbito da fotograa
e cinema, mas também as novas formas de arte e concepções artísticas
posteriores com suas repercussões, em um sentido mais abrangente, nas
salas de exibição, galerias e museus, expondo a própria natureza de sua
condição audiovisual. O que, por conseguinte, transformou também a
própria relação com as obras de artes anteriores à modernidade.
Neste horizonte, o cinema parece trazer uma experiência artística
que problematiza a própria estética moderna, à medida que evidencia
elementos losócos ainda não pensados sucientemente. Tal percepção,
notadamente vista em Benjamin, em sua teorização inaugural do cinema,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 65
acaba se desdobrando ao decorrer da história da losoa contemporânea,
onde podemos visualizar poucos momentos nos quais o cinema aparece
como uma questão.
3
O próprio Gadamer, em um dos raros momentos que
fala sobre Benjamin, questiona-se sobre essa condição nova que a fotograa
e o cinema proporcionam:
O que é que faz de uma imagem, de uma poesia, uma obra de arte,
de modo a ter uma presença absoluta? Seguramente, não se trata
do fragor estrepitante da constante maré de informações que nos
assolam e acompanham a época da reprodutibilidade. Para falar
com Benjamin (ou contra ele?), ameaça, pelo contrário, a aura da
obra de arte, ameaçando dissolvê-la (GADAMER, 2012, p. 320).
Em um certo sentido, Gadamer percebe uma estreita relação entre
uma obra fortemente marcada pelos desdobramentos da técnica moderna
e industrial como imagem (é o caso da fotograa e do cinema) e as obras
de arte mais convencionais, como por exemplo, o quadro. Ambas são
produzidas e reproduzidas tecnicamente. Contudo, segundo Benjamin,
a técnica moderna e seus aparatos reprodutivos questionam o caráter
aurático das obras, ou seja, o seu caráter único, produzido uma só vez
pela técnica manual do artista, concepção que aparece no texto de 1936
e que vai se modicando ao decorrer de outros textos benjaminianos.
De qualquer forma, a técnica moderna se coloca de modo denitivo nas
técnicas artísticas contemporâneas, não sendo mais possível ignorá-la. O
que signica lidar com novas questões no horizonte losóco do lidar com
as obras de arte.
No caso do cinema, assim como na fotograa, como nos lembra
Flusser, “trata-se de imagem produzida por aparelhos” (FLUSSER, 2011,
p. 23). A reprodução possibilita a não diferenciação das cópias materiais em
relação ao ‘original’, mas, ao contrário da experiência da imagem-quadro,
onde há um original a ser tomado como um objeto de apreciação e culto, a
imagem cinematográca também apresenta algum nível de aura. Ou seja,
parece que a relação entre imagem e aura também se coloca como uma
Cito especialmente como exemplos mais atuais de tematização do cinema como questão própria da losoa
os esforços teóricos dos lósofos Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Paul Virilio, Gianni Vattimo e Jacques
Rancière.
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questão para Benjamin, à medida que levamos a sério a própria condição
técnica das atuais obras.
Neste sentido, o cinema, mesmo não tendo seu caráter aurático
preservado como o que acontece em um quadro, possibilita, em termos
hermenêuticos, uma experiência de sentido efetivo, já que coloca em
questão não somente o produto nal, ou seja, o rolo de lme projetado em
uma máquina de uma sala de cinema, mas também sua própria constituição.
Trata-se de olhar também a natureza do próprio lme, dependente não
somente do aparato técnico, mas também de um trabalho de equipe que
opera e interagem com as máquinas, a saber, diretores, atores, produtores,
críticos, público, etc, ao contrário do trabalho do pintor, visto muitas
vezes como um trabalho solitário, manual e, por vezes, genial, reservado
ao ateliê, no desdobramento de uma técnica humana transgurada em
desenhos, tintas, telas, pincéis, etc.
Ao compararmos, por exemplo, o trabalho do artista plástico com o
trabalho do diretor de cinema e sua equipe, perceberemos uma mudança
signicativa não só no protagonismo de técnicas, instrumentos e aparelhos,
mas também na própria experiência da obra enquanto obra, repercutindo
de modo massivo.
Contudo, ainda que essa condição de reprodutibilidade técnica
transforme o estatuto da imagem, de um ponto de vista crítico, Gadamer
nos lembra que a estrutura representativa, própria da experiência da arte,
permanece atuante: há um profundo encontro entre sujeitos e obras, mesmo
que, em um primeiro momento, sejam mediadas por técnicas modernas.
Nestes encontros – pensados como experiências hermenêuticas – há uma
espécie de fusão dos horizontes dos sujeitos e objetos-obra, permitindo
uma difusão de sentidos diversos, diferentes dos moldes da arte clássica.
Cito Gadamer:
Ali não perguntamos tanto o que dela surge ou o que se mostra.
Dizemos, ao contrário, “vem” à fala. Tanto dizemos isso no caso
do quadro e da imagem, quanto no caso da linguagem e sua
copiosidade poética. Ali, fazemos uma experiência. Esse ‘fazer
não signica propriamente que fazemos alguma coisa, mas antes
que algo se nos abre quando conseguimos compreender retamente
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 67
alguma coisa. De modo algum signica, portanto, que pela leitura
ou pela ação introduzimos algo que não esteja ali dentro. Ao
contrário, pela leitura sacamos algo que está ali dentro e de tal
modo que isso vem para fora. É assim a experiência da arte. Não
é mera recepção de algo. Ao contrário, nós próprios adentramos e
nela nos fundimos (GADAMER, 2012, p. 335).
Ao pensarmos, junto com Gadamer, a relação entre hermenêutica e
cinema como uma experiência de sentido que nos preenche, mas nunca se
esgota. Já que acontecem diálogos efetivos e intermináveis em obras de arte
e sujeitos, em termos de uma fusão de horizontes, não poderíamos ignorar
um aspecto próprio do cinema, que pode ser entendido como a natureza
documental própria de toda e qualquer obra. Assim, a hermenêutica
losóca aponta para um aspecto – histórico-efetivo – do próprio cinema,
enquanto uma questão que se coloca no horizonte da realização e análise
dos documentários.
Mesmo considerando uma distinção técnica comum entre cinema
ccional e documentário, uma questão hermenêutica parece se colocar de
modo mais profundo. Há um horizonte de questionamento da própria
natureza do fazer cinematográco, como um momento no qual o sentido
é colocado como questão persistente: ou seja, pensa-se a produção de
sentido de um lme a partir de seu roteiro, argumento, imagens, edição,
produção, exibição e repercussão em diversos níveis: da crítica especializada
ao indivíduo que se desloca até uma sala de cinema e consome os lmes de
modo recreativo. O que signica dizer que os lmes, enquanto narrativas
cinematográcas, não são alheios ao seu momento histórico de produção
e exibição, mas, em alguma medida, estão profundamente marcados pela
natureza documental inerente às produções. Conforme arma Bill Nichols,
Todo lme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das
cções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência
das pessoas que fazem parte dela. Na verdade, poderíamos dizer
que existem dois tipos de lmes: 1. Documentários de satisfação
de desejos e 2. Documentários de representação social”. Os
documentários de satisfação de desejos são o que normalmente
chamamos de cção. Esses lmes expressam de forma tangível
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
68 |
nossos desejos e sonhos, nossos pesadelos e terrores. [...] Tais
lmes transmitem verdades, se assim quisermos. São lmes cujas
verdades, cujas ideias e pontos de vista podemos adotar como
nossos ou rejeitar. Oferecem-nos mundos a serem explorados e
contemplados. (NICHOLS, 2005, p. 26).
Por outro lado,
os documentários de representação social são o que normalmente
chamamos de não-cção. Esses lmes representam de forma
tangível aspectos de um mondo que já ocupamos e compartilhamos.
Tornam visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é
feita a realidade social, de acordo com a seleção e a organização
realizadas pelo cineasta. Expressam nossa compreensão sobre o
que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser (NICHOLS, 2005,
p. 26-27).
Mesmo havendo a distinção de tipos de documentários, há ainda
um vínculo profundo com a situação histórica, ou seja, todo lme faz
uma referência básica ao momento de realização. Ainda neste sentido, nas
palavras de Fernão Pessoa Ramos, “ao contrário da cção, o documentário
estabelece asserções ou proposições sobre o mundo histórico” (RAMOS,
2013, p. 22). Essa relação é um aspecto central e relevante para a
hermenêutica losóca, à medida que possibilita elucidar características
representativas que não se limitam à própria obra, mas que estão em jogo
em torno da obra, especialmente em sua repercussão histórico-efetiva.
Assim, a pergunta que se coloca, do ponto de vista da hermenêutica
losóca, é o quanto de documental está efetivamente presente nos lmes,
sejam estes ccionais ou documentários. Tal pergunta, em seu sentido
losóco, abre um horizonte de questionamento que não renuncia o
caráter situado da própria obra, especialmente seu caráter performático,
mas também não se limita aos aspectos estéticos circunscritos à obra e
sua constituição.
Poderíamos ainda pensar a questão do sentido a partir da própria
estrutura representativa presente nos lmes-obras, comum aos processos
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 69
comunicativos midiáticos tal como se apresentação da chamada cultura pós-
moderna.
4
Nesta perspectiva, Jay Ruby destaca a seguinte caracterização,
fortemente documental que, a nosso ver, marca fundamentalmente as
produções cinematográcas contemporâneas; e que surge como um
horizonte de questionamento hermenêutico:
Em um nível mais profundo, nós estamos nos afastando da
noção positivista de que o sentido reside no mundo e os seres
humanos devem se esforçar para descobrir a realidade inerente e
objetivamente verdadeira das coisas. Esta losoa positivista levou
muitos cientistas sociais, bem como documentaristas e jornalistas, a
esconderem-se e a esconder seus métodos a pretexto de objetividade
(...). Nós estamos começando a reconhecer que o ser humano
constrói e impõe sentido ao mundo. Nós criamos a ordem. Não
a descobrimos. Nós organizamos uma realidade que é signicante
para nós. É em torno destas organizações da realidade que cineastas
constroem lme (RUBY, 1977, p.5).
Deste modo, um novo sentido de representação, que não se limita
a relação de signicação entre um sujeito cognoscente e um objeto a ser
conhecido, é assumido, do ponto de vista da tematização hermenêutica
do cinema, especialmente o cinema documentário – de representação
social. O que se evidencia é o processo de produção de sentido que não
está somente na decifração ou análise do objeto, mas na relação do objeto
com o sujeito, sua performance
5
e seu entorno.
Em termos midiáticos, o sujeito contemporâneo não é um ente
meramente passivo, que recebe informações acerca do mundo que está
ao seu redor e que, ao mesmo tempo ele faz parte. Há, no seguimento
do domínio técnico das relações, uma interação cada vez mais presente
e especializada, proliferando novos sentidos, ou simplesmente sua
insuciência, em consonância ou conito com as mais diversas informações
 Cf. Vattimo (1996).
Gadamer nos recorda que a experiência da arte, seja qual for o tipo, sempre é marcada por um jogo (Spiel) no
qual o espectador, diante de uma obra, a compreende porque está em relação, ou seja, a obra é objeto do sujeito,
mas também o sujeito é afetado pela obra. Há, em um certo sentido, um encontro, uma fusão de horizontes
entre intérprete e obra. Cf. Gadamer (1985, p. 40).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
70 |
e experiências proporcionadas pela proliferação das imagens, especialmente
na relação com a internet. Por esse ângulo, como diz Vattimo,
[...] a intensicação dos fenômenos comunicativos – o aumento
de circulação das informações até a simultaneidade da reportagem
televisiva em direto não é apenas um aspecto entre outros da
modernização, mas seja de algum modo o centro e o próprio
sentido deste processo (VATTIMO, 1989, p. 22).
Tal momento é fundamental para entendermos não somente a
produção cinematográca recente – e em particular a produção documental
– mas a própria experiência losóca de nosso tempo nos lmes. É neste
sentido que se arma a necessidade de pensar o documentário, enquanto
imagem, vislumbrando a estrutura hermenêutico-representacional própria
de cada lme em sua relação não somente com os produtores e personagem,
mas com os espectadores em geral.
Do ponto de vista hermenêutico, o caráter documental do cinema
documentário remete a uma composição própria da imagem, munida de
muitas camadas de tempos, espaços, hiatos e sentidos gerais e particulares,
enquanto apreensão e repercussão de momentos de realidade registrados
no lme, o que, por conseguinte, como lme, torna-o estruturalmente
abertos a novas possibilidades de sentido, para além do processo de
produção, o qual considera como relevantes especialmente os signicados
fornecidos pela relação entre sujeitos, obra audiovisual e representações
sociais comunicadas no próprio lme.
Ao tomar como questão o documentário, em seus mais diversos
vínculos – espaços, tempos, histórias, narrativas, sujeitos, etc. –, podemos
pensá-lo como uma possibilidade de experiências de sentido em imagens
mediadas e comunicadas nos lmes e seus encontros com a comunidade
que ainda resiste na sociedade da comunicação de massa. É o que podemos,
em certo sentido, perceber quando um documentário repercute na esfera
da produção nacional, tanto no âmbito da crítica especializada, como na
experiência audiovisual dos espectadores, representando um determinado
aspecto do mundo real e social.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 71
Neste sentido, focar na experiência hermenêutica do cinema
documentário não signica apenas pensar nos efeitos provocados nos
sujeitos, mas na própria forma de realização dos lmes enquanto imagens
documentais, seus argumentos e situação histórica, tanto do ponto de vista
do processo de produção, quanto no processo de exibição e repercussão.
Tal perspectiva se desdobra na complexa relação com o real, seus sujeitos e
situações, provocando assim novas possibilidades de sentido para os lmes.
Por isso, toda relação com os lmes é, em um certo sentido,
hermenêutica pois sempre há um encontro entre sujeitos e imagens que,
por conseguinte, provoca efeitos diversos no horizonte histórico efetivo no
qual todos estamos desde já inseridos. Conforme arma Fernão Ramos,
existem documentários com os quais concordamos, documentários
dos quais discordamos, documentários que aplaudimos e documentário
que abominamos” (RAMOS, 2013, p. 29); independe da relação, há
performance e, por isso, somos de fato atingidos suas repercussões. Ou seja,
somos efetivamente afetados à medida que há algum nível de mediação de
sentido para além do próprio lme, no horizonte de suas imagens.
referênciAs
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de Janeiro: Azougue, 2005.
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| 73
F   
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C
Andrea CACHEL
1
Lunielle BUENO
2
introdução
A discussão acerca das relações entre imagem, linguagem e realidade
no campo da arte foi realizada em vários momentos da história da losoa,
comportando distintas nuances e perspectivas. O cinema, contudo, é uma
linguagem artística relativamente recente, sendo os debates referentes ao
seu estatuto e consequências ainda um vasto campo de possibilidades
a serem exploradas. Nesse sentido, um olhar mais detido acerca dessa
linguagem e, sobretudo, concernente ao modo como a imagem fílmica
Professora no Departamento de Filosoa da Universidade Estadual de Londrina - UEL / Londrina / PR /
Brasil. E-mail: andreacachel@gmail.com
Mestranda na Pós-Graduação de História Social da Universidade Estadual de Londrina – UEL / Londrina /
PR / Brasil. E-mail: luniellebueno@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p73-100
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74 |
relaciona-se com a realidade, na interface entre os meios que articula,
permite-nos ponderar também sobre algumas categorias fundamentais da
estética. Nesse contexto de debates, a obra de Stanley Cavell destaca-se por
conectar a discussão acerca da natureza do cinema com a tentativa humana
de escapar do solipsismo e do ceticismo em relação ao mundo exterior
resultantes da losoa da representação.
Autor de 53 longas-metragens ao longo de uma carreira de mais
de cinco décadas, iniciada no cinema mudo em 1922 e que seguiu até
seu falecimento em 1980, Alfred Hitchcock é um dos cineastas mais
explorados pela obra cavelliana. Presente na sua losoa em diversos artigos
e livros tais com o e World Viewed (1979), North by Northwest (1981a),
Falling in Love Again (2005), Pursuits of Hapiness (1981b), Ending the
waiting game: a reading of Becketts endgame (1976), Hitchcock aparece na
obra de Cavell muitas vezes como exemplo do modo pelo qual o cinema
diria respeito e abordaria as implicações do ceticismo moderno. Com
uma carreira caracterizada por lmes hoje bastante cultuados pela crítica
cinematográca
3
, Hitchcock tem um estilo marcado pelo movimento de
câmera-observadora, simulando o olhar de um espectador voyeur, e pelas
sequências que progressivamente maximizam o medo em seus espectadores.
Muitas dessas características são lidas por Cavell como uma forma de
explorar as questões relativas à oscilação entre a busca por conexão com a
realidade e a fuga dessa conexão.
Vertigo (Um Corpo que Cai), particularmente, é um dos lmes de
Hitchcock de maior destaque na obra cavelliana e aquele que permite que
É já desde o média metragem (68 min.) O Inquilino (e Lodger, de 1927) que Hitchcock abraça o gênero
do suspense, que o consagraria, mais tarde rendendo-lhe a alcunha de “mestre do suspense”. Sua carreira é
caracterizada por lmes hoje bastante cultuados pela crítica cinematográca, tais como Os 39 Degraus (e
39 Steps, de 1935), Rebecca, a Mulher Inesquecível (Rebecca, de 1940) e O Homem que Sabia Demais (e Man
Who Knew Too Much, ambas as versões, de 1934 e 1956). Merecem, ainda, destaque especial aquelas películas
que entraram para o cânone de verdadeiras obras primas, produzidas todos no período americano, como Festim
Diabólico (Rope, 1948), Pacto Sinistro (Strangers on a Train, 1951), Disque M para Matar (Dial M for Murder,
1954), este usando a tecnologia 3D que estava em voga na época, Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), Um
Corpo que Cai (Vertigo, 1958), Intriga Internacional (North by Northwest, 1959), Psicose (Psycho, 1960), este
um projeto pessoal que o diretor nanciou às suas próprias expensas, e Os Pássaros (e Birds, 1963). Não se
pode ignorar, também, a profunda inuência que Alfred Hitchcock passou a exercer no meio cinematográco
a partir do culto que lhe estabeleceram os críticos da revista Cahiers Du Cinéma, ligados ao movimento francês
da Nouvelle Vague, especialmente na pessoa de François Truaut, que com o “mestre do suspense” realizou
uma série de entrevistas durante as décadas de 1950 e 1960, resultantes no livro Hitchcock/Truaut: Entrevistas
(TRUFFAUT, 1986), cuja primeira edição é de 1967.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 75
o problema do isolamento do homem e da perda da sua presença para
o mundo, tal como compreendido por Cavell, seja explorado em várias
nuances. Trata-se do lme de Hitchcock que traz de modo muito evidente
a questão da relação entre o espectador e a câmera, retratando tanto a
privacidade como a vulnerabilidade do personagem, mas também desse
voyeur que é o expectador. Nesse contexto, nossa intenção aqui neste texto
é expor alguns debates que Cavell realiza sobre Vertigo, ampliando, quando
possível, a análise dos assuntos explorados por esse autor para além das
cenas mencionadas por ele, a m de tanto apresentarmos uma discussão
mais pormenorizada deste lme, como uma investigação acerca da própria
abordagem cavelliana sobre o cinema, em especial da relação que estabelece
entre cinema e ceticismo.
cinemA e ceticismo em stAnley cAvell: o mundo como
esPetáculo
Cavell faz um uso amplo de “ceticismo”, na medida em que, para o
americano, reconhecer traços céticos em determinado autor independe de
ser seu ceticismo antecedente ou consequente, tampouco diz respeito à sua
liação explícita à tradição cética propriamente dita. Como Conant observa,
a análise cavelliana identica o ceticismo como um espaço dialético, e não
(apenas) como uma posição no interior dele. O ceticismo, desse modo,
representaria um horizonte “com o qual os lósofos se engajariam mesmo
enquanto procuram uma maneira estável de responder à pergunta do cético
na armativa e não (como o próprio cético faz) na negativa” (CONANT,
2012, p. 3). E é tendo em vista esse âmbito amplo de compreensão – essa
leitura segundo a qual os implicados nessa esfera em que determinadas
problemáticas são estabelecidas consistem em lósofos que ilustram o
ceticismo moderno – que Cavell ressalta o atrelamento entre o percurso
da modernidade losóca e o surgimento da fotograa e do cinema como
linguagens artísticas. Mais que resultado de desenvolvimentos técnicos que
permitiram a captação mecânica da imagem e a projeção dessas imagens
em movimento, o advento dessas linguagens e a importância que adquirem
no cenário cultural diriam respeito a um problema que seria o escopo do
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76 |
ceticismo losóco, tanto do ponto de vista de sua armação como da
tentativa de sua superação:
A fotograa não poderia ter se imposto tão imediata e
universalmente à mentalidade Europeia (inclusive à Americana)
sem que essa mentalidade já não tivesse imediatamente reconhecido
na fotograa uma manifestação de algo que já lhe acontecera. O
que sucedeu à essa mentalidade foi sua queda no ceticismo junto
com seus esforços para se recuperar dessa queda, conforme os
eventos estão registrados na losoa de maneira muito variada, em
Descartes e Hume e Kant e Emerson e Nietzsche e Heidegger e
Wittgenstein (CAVELL, 2018, p. 141-142).
Assim, o que se expressa esteticamente e que culmina no desejo
de captação do instante e da presenticidade reproduziria um anseio
relacionado diretamente a uma perda e à melancolia a ela alusiva, as quais
explicariam também a importância adquirida pelo ceticismo na Idade
Moderna, e que dariam o sentido da procura por um novo meio, aquele
que pudesse garantir a presença-ausência do observador, enquanto síntese
da tentativa, por um lado, de recuperar aquilo que foi perdido, e, por
outro, de negar ilusoriamente a perda desse objeto. Em outras palavras,
o advento da fotograa e do cinema encontraria no ceticismo moderno a
sua condição de possibilidade, sendo o cinema uma forma de consolidar
o modo como o ceticismo entende o conhecimento, a saber, já como algo
que pressupõe o afastamento entre sujeito e mundo:
É como se a projeção do mundo explicasse nossas formas de
desconhecimento e nossa incapacidade de saber. A explicação
não é tanto que o mundo está passando por nós, mas que somos
deslocados de nossa habitação natural dentro dele, colocados
a uma certa distância dele. A tela supera nossa distância xa;
faz com que o deslocamento pareça nossa condição natural
(CAVELL, 1979, p. 41).
Em e Claim of Reason (1999), Cavell analisa com maior
profundidade os problemas abordados pelo ceticismo, ponderando tanto
os seus equívocos quanto o que ele revelaria de verdadeiro em relação ao
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 77
homem moderno. E, nesse contexto de abordagem, mobiliza sua leitura
não ortodoxa das Investigações Filosócas, de Wittgenstein, sobremaneira
sua compreensão peculiar acerca de noção de critério deste autor.
4
Indica,
a partir dessa perspectiva de discussão, como o foco excessivo na busca de
certeza – do ceticismo, como tendência dominante da losoa moderna,
com repercussões também em parte da losoa contemporânea – revela
uma perda de conexão entre sujeito e mundo que o lósofo tenta superar
postulando novas formas de fundamentar essa conexão, supondo ser possível
uma relação com o mundo e com o ordinário que possibilite a revelação de sua
estrutura, de suas condições de possibilidade (CAVELL, 1979, p. 101-102).
Tendo como inuência também a losoa de Heidegger
5
, Cavell destaca que
o advento da Modernidade teria resultado em uma vivência da subjetividade
que se estabelece como isolamento, e, do ponto de vista da relação entre esse
sujeito isolado e o mundo que o circunda, o ceticismo moderno evidenciaria
um percurso de busca de reconexão, por um lado, mas, por outro, de
evitação, de recusa de reconhecimento da nitude e da contingência da
vida humana (CAVELL, 1979, p. 165-166). Em virtude do isolamento, da
quebra da sua conexão com o mundo (uma conexão que não passaria pela
certeza, tampouco pela fundamentação de uma base inquestionável), restaria
ao homem recolocar sempre a questão da sua presença para o mundo. O
lósofo moderno materializaria essa necessidade verdadeira, mas recusaria
a aceitação dos laços instáveis pautados nas nossas formas de vida e nas
relações necessárias que estabelecemos na nossa linguagem (mas que não
se assentariam em algum fundamento lógico anterior), rejeitaria aceitar a
responsabilidade que o ato de armar algo comporta, a universalidade
que não se funda na certeza. Buscaria olhar o mundo de fora, como se as
limitações da linguagem e da condição humana fossem decorrentes apenas de
uma posição pragmática ou ordinária, à qual poderia se contrapor a situação
do lósofo, supostamente capaz ter “vistas do mundo”, relacionar-se com ele
sem estar imerso (CAVELL, 1979, p. 430-431).
Amálgama de uma série de inuências, a análise cavelliana sobre o
cinema pressupõe uma concepção da fotograa pensada a partir do seu
 Para um aprofundamento desse tema, Cf. Conant (2005); Hammer (2002); Mulhall (2003, 2006).
 Para uma melhor análise da inuência heideggeriana em Cavell, ver: TECHIO, 2020.
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automatismo, das possibilidades deste meio, tendo em vista a inexistência
de mediação subjetiva na transferência das marcas que presenticam o real,
além de sua capacidade de nos conferir uma independência da mediação
da nossa memória para o estabelecimento da nossa presença no mundo.
6
O automatismo mecânico da fotograa consolidaria um percurso mais
amplo nas artes visuais, em que, ao mesmo tempo que se evidencia a clara
destinação da obra para o observador, tenta-se superar, normalmente por
assimilação, a referência da imagem ao olhar desse espectador (CAVELL,
1979, p. 22). Um percurso existente na pintura desde a segunda metade
do século XVIII
7
, sendo o advento da fotograa decisiva não para que
os pintores abandonassem o realismo, mas tão somente para que eles
recusassem a semelhança, havendo a partir deste momento novas tentativas
de produção de automatismos. A fotograa, particularmente, teria o
potencial de assegurar nossa presença-ausência na imagem, representando,
nesse contexto, uma espécie de memória do presente, que assegura
decisivamente o que estaria em jogo no modernismo artístico, a busca por
reproduzir um olhar cândido, de não tornar a subjetividade do observador
um anteparo para a percepção do mundo (CAVELL, 1979, p. 42).
O cinema é entendido, nesse cenário, a partir de sua base fotográca
e do que ela implica, e tendo como pressuposto a ideia de que esse seu
meio é essencialmente realista. Por realismo, contudo, Cavell não concebe
uma referência direta aos fatos
8
, mas sim a ideia de que, em virtude da
natureza da fotograa, do seu automatismo, os fotogramas em movimento
Como Cavell reconhece, um dos pontos de partida das suas análises sobre o cinema é a obra de Bazin
Ontologia da Imagem Fotográca (BAZIN, 1991, p. 19-26). Vale ressaltar que outros comentadores e críticos
também apresentam análises importantes em relação ao tema, especialmente ponderando aspectos como a
inserção ou não da fotograa no âmbito das artes representativas, bem como o sentido do suposto automatismo
que comporta. Kendall Walton (1984), por exemplo, arma que a fotograa tem um poder de efetividade
propiciado pela sua transparência, a ausência da necessidade do domínio de uma convenção para que haja a
compreensão (p. 263). Scruton (1995), por outro lado, relativiza o papel da fotograa como arte justamente
por essa ausência de código.
7
A leitura do modernismo artístico como processo que decorreria de um percurso de desteatralização nas artes
visuais é proveniente da inuência decisiva que a obra de Fried exerce em Cavell. Nesse sentido, ver: FRIED
(1980, 1998, 2008).
Cavell reconhece a inuência de Bazin na ideia da realidade como meio do cinema, embora ressalte a sua
discordância em relação a alguns pontos da teoria do francês. Além do Ontologia da Imagem Fotográca, esse
assunto aparece na obra de Bazin em vários dos seus artigos, dentre os quais O Mito do Cinema Total (BAZIN,
1991, p. 27-32), Teatro e Cinema (1991, p. 123-165), A evolução da linguagem cinematográca (1991, p. 66-81),
bem como em O Realismo Cinematográco e a Escola Italiana da Libertação (1991, p. 233-257). Central também
para o desenvolvimento do pensamento cavelliano é a obra de Panofsky sobre a natureza do cinema (1997).
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expostos em uma tela criam uma imagem de mundo, que gera convicção.
Tal convicção não deriva de uma suposta essência documental do cinema,
mas sim daquilo que está em jogo em todo o processo que visa eliminar
os efeitos do observador na obra, garantindo a sua presença-ausência
e restituindo, assim, a conexão do sujeito com o real, quando a sua
subjetividade não é mais obstáculo para a percepção do instante, do caráter
de presente daquilo que se apresenta a nós. Ilusoriamente, o cinemático,
enquanto um aprofundamento das possibilidades do meio fotográco,
nos permitiria ter um acesso ao real, ao presente, ao instantâneo. E, dada
a própria natureza da nossa relação perdida com o real – o fato de que
também essa relação não se dá com base em um fundamento certo e
inquestionável – produziria “magicamente” uma convicção, minimizando
momentaneamente a melancolia que o ceticismo moderno encarnaria.
Ao mesmo tempo, o cinema seria a imagem em movimento do ceticismo
por realizar algo que o lósofo moderno anseia, conforme mencionamos,
a saber, além de restituir nossa conexão com o mundo, supor que essa
conexão possa se dar tomando-se o mundo de um ponto de vista exterior,
sem que seja preciso assumir a precariedade da nossa posição imersa nele, os
limites da nossa linguagem, da nossa própria condição humana (CAVELL,
1979, p. 188-189).
Um outro aspecto é bastante importante para a compreensão da
ideia de que o cinema seria uma imagem em movimento do ceticismo,
qual seja, a capacidade que ele possuiria, segundo o lósofo americano, de
ilusoriamente nos permiti*r vermos sem sermos vistos. Esse autor, no prefácio
do e World Viewed, reconhece, além das inuências de Bazin, Panofsky,
Heidegger e Michael Fried, a importância que teve em suas reexões a
leitura da Carta a d’Alembert, de Rousseau (1979, p. xxii-xxiii). Fruto de
uma disputa que envolveu Rousseau e D’Alembert, o texto diz respeito ao
verbete Genebra, do volume da Enciclopédia publicado em 1757, em que
o enciclopedista defende a importância do teatro e sua nalidade social,
a saber, o aperfeiçoamento dos costumes e dos gostos dos espectadores.
Rousseau, cidadão genebrino, posiciona-se contra os enciclopedistas e
contra o teatro na Carta (1993), negando que a linguagem teatral possa
ter a função de aperfeiçoamento moral dos cidadãos, mas indicando,
por outro lado, haver nela uma peculiar relação entre artista e público
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
80 |
propiciada pela invisibilidade daquele que observa, a qual permite a
identicação com a obra e a reexão sobre si mesmo. A partir desta leitura,
Cavell teria percebido que também no cinema há uma relação especular
do sujeito com o mundo e sobretudo consigo mesmo. Assim, essa
discussão mostraria como no teatro e no cinema vemos sem sermos vistos,
ponderando qual a atratividade desse mecanismo, o que ele representa do
ponto de vista de se permitir uma autoanálise isenta de culpa e vergonha.
Essa possibilidade de ver sem ser visto seria fundamental para o homem
moderno e estaria envolvida diretamente naquilo que o americano entende
como o ceticismo sobre as outras mentes.
9
Mais que o teatro, o cinema
seria uma linguagem capaz de sugerir a realização desse anseio. Isso porque
comportaria a promessa de termos acesso às condições da percepção
propriamente ditas, sem a necessidade de princípios intermediários entre
os domínios da subjetividade e o da realidade, desse modo, dando vazão
a uma dupla possibilidade: a da preservação da privacidade do indivíduo
e a da publicidade do mundo. No centro dessa capacidade estaria o seu
automatismo, não só compreendido a partir da autonomia em relação
à agência humana, viabilizada pelos aparatos técnicos implicados na
produção cinematográca, mas especialmente entendido como o potencial
de simular um mundo comum, apreensível imediatamente e com isenção
de dúvidas quanto à sua existência, algo que seria semelhante à tentativa
losóca de ter acesso às condições da visão e dos objetos:
Desejar ver o mundo em si mesmo é pretender ter acesso às condições
da visão. Nossa situação tornou-se tal que nosso modo natural de
percepção é ver, sentindo-se não visto. Não olhamos tanto para o
mundo, mas para um mundo além do “eu”. São as nossas fantasias,
agora quase totalmente frustradas e fora de controle, que não são
vistas e devem ser mantidas invisíveis. Como se não pudéssemos
mais esperar que alguém pudesse compartilhá-las no exato
momento em que elas estão chegando às ruas, menos privadas
que nunca. Portanto, estamos cada vez menos em posição de nos
enlaçar com o mundo (CAVELL, 1979, p. 101-102).
O debate em torno do ceticismo sobre as outras mentes é desenvolvido por Cavell na Parte IV, do e Claim of
Reason, em que está em jogo também mostrar que o não ser visto é parte fundamental da recusa do reconhecimento
e da fantasia da linguagem privada (1999, p. 329-496). E na sua análise da obra de Shakespeare, particularmente
da peça Rei Lear, esse autor aprofunda essa discussão sobre a culpa e a vergonha (CAVELL, 2003).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 81
Dado esse contexto de abordagem, o qual expusemos muito
rapidamente aqui tendo em vista os limites e o escopo deste texto, e que
diz respeito à ontologia do cinema cavelliana, sobremodo o entendimento
de que a relação do espectador com os lmes espelha de algum modo
certos aspectos da compreensão da losoa tradicional moderna sobre o
conhecimento e sobre a subjetividade, o lme Vertigo comporta elementos
que ilustram pontos essenciais da visão do americano sobre o cinemático
e sobre o escopo do modernismo artístico de modo geral. Como já
mencionamos, ao dramatizar o isolamento humano, a busca de conexão,
a diculdade desse contato, Vertigo espelha a própria dinâmica daquilo
que o ceticismo teria de verdadeiro, bem como a possibilidade de seus
descaminhos. Permite, além disso, uma auto-observação, na medida em que
insere o espectador de um ponto de vista invisível, porém completamente
mobilizado na produção de sentido do lme. Como veremos na próxima
seção, representa, para Cavell, uma discussão sobre os limites entre uma
subjetividade que busca a conrmação do seu eu para o mundo e aquela
que o perde e que resulta em solidão. Revela, especialmente, o voyeurismo
como meio do lme, meio esse que Hitchcock declara tão brilhantemente
nesse lme, seja a partir do seu conteúdo, seja de sua forma.
fAntAsiA e isolAmento em vertigo
Vertigo é ambientado em São Francisco, cidade californiana dos
Estados Unidos, e conta a história de John Ferguson ou Johnny/Scottie,
como o chamam seus amigos, interpretado por James Stewart. Scottie é
um detetive aposentado compulsoriamente por sofrer de acrofobia, fato
apresentado já na primeira sequência da obra: em uma perseguição policial
pelos telhados da cidade, escorrega e ca pendurado em uma calha, não
conseguindo salvar um amigo de trabalho da morte. Tal vertigem é testada
no lme a partir da interpelação de um antigo amigo e colega de faculdade
de Scottie, Gavin Elster (na interpretação de Tom Helmore), que, após
anos sem contato algum, pede ao detetive aposentado, em nome da
amizade de longa data, que investigue sua esposa, Madeleine, concebida
por Kim Novak. A suspeita de Gavin é de que uma mulher já morta,
Carlotta Valdés, está possuindo sua esposa e que tal possessão tem incutido
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
82 |
pensamentos suicidas nela. Acompanhamos uma narrativa de dissociações
psíquicas: a desse detetive, que no cumprimento de seu dever, tornar-se-á
obcecado pela mulher que segue, e a da própria Madeleine, que acredita
ser uma outra, a Carlotta Valdés já falecida. Como um detetive, ele segue a
mulher misteriosa e a observa apaixonadamente, até ser testemunha de sua
tentativa de suicídio na Baía de São Francisco. Scottie a salva e, pela primeira
vez, alcança o objeto de sua paixão, estabelecendo, a partir desse ponto, um
romance com Madeleine. Esta, porém, continua a perseguir a obsessão de
Carlotta Valdés, o suicídio – que nalmente realiza em uma cena marcante
na torre de uma pequena igreja situada em um vilarejo de estilo espanhol
próximo de São Francisco. Scottie testemunha parcialmente este suicídio,
pois está preso nas escadas da torre pela vertigem que o acomete, e apenas
observa impotente, por uma das janelas, o corpo da amada precipitado em
direção à morte. Após um breve julgamento, que o absolve, e um período
de convalescença psíquica que o deixa imóvel e mudo em uma cadeira,
Scottie retoma sua vida. Mas ainda obcecado por Madeleine, de um modo
comparável ao que ocorria entre esta e Carlotta, ele encontra na rua uma
mulher parecidíssima com a falecida amada. Tenta, por isso, reencarnar
Madeleine nessa outra mulher, Judy, comprando-lhe roupas iguais às
usadas por sua amante e, ainda não satisfeito, ajeitando-lhe o cabelo para
que assuma a mesma cor e penteado da amada. Scottie diz interessar-se
por Judy, mas seu comportamento é oposto: quer eliminar a mulher que
encontrou para nela moldar o objeto de sua obsessão – o que, nalmente,
apenas pode terminar em tragédia.
Segundo Cavell, trata-se de um lme que nos apresenta uma vertigem
em relação à nossa verticalidade, além de retratar o poder de uma fantasia
que rompe com a conexão como mundo externo:
Inicialmente, Vertigo aparenta ser [um lme] sobre a impotência de
um homem frente ao seu desejo ou imbuído da tarefa de sustentá-
lo. Talvez, em segundo plano, seja sobre a precariedade da própria
verticalidade de modo geral. Porém, acaba por ser sobre o poder
especíco da fantasia de um homem de não apenas renunciar à
realidade – consequência tão ampla quanto o mar –, mas de
despender cada instante de sua energia para uma alteração privada
da realidade (CAVELL, 1979, p. 86).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 83
A discussão acerca da impotência de Scottie para sustentar seu desejo
e do poder da fantasia, conectam-se, no contexto da losoa de Cavell,
com a relação entre losoa e ceticismo, além de evidenciar a capacidade
que tem o cinema de nos permitir vermos sem sermos vistos, ou seja, de
acompanharmos uma dramatização de uma incapacidade da subjetividade
de sair de si mesma e reconhecer a existência do outro e do próprio
mundo externo, o que no fundo diz respeito ao nosso próprio drama face
à objetividade. Em um texto apresentado no Fórum Sobre Psiquiatria e
Humanidades (CAVELL, 1987), em Washington, Cavell estabelece uma
análise a respeito da relação entre Filosoa e Psicanálise, segundo a qual o
diálogo entre ambas, no fundo, diz respeito à verdade do ceticismo. Após
abordar a questão da originalidade ou não da psicanálise e da capacidade
de que determinados anseios da losoa sejam assumidos exclusivamente
por esta, e, além disso, destacar as oposições de Heidegger e Wittgenstein à
losoa moderna, portanto, a capacidade de que a própria losoa assuma
a crítica ao ceticismo moderno, Cavell se pergunta acerca do que seria
perdido se a losoa ou a psicanálise fossem eliminadas do cenário cultural.
E diz que o que acabaria seria a questão quanto a se minha vida conrma
ou nega minha presença para o mundo e para os outros, isso representando,
em linhas gerais e em seu nome mais antigo, o ceticismo. Nesse sentido,
destaca que perder o conhecimento da possibilidade humana do ceticismo
é renunciar à questão do próprio humano, como teria sido analisado no
e Claim of Reason. Tendo a sociedade contemporânea entrado em um
caminho de ceticismo radical, desde Descartes e Shakespeare, de acordo
com Cavell o advento da psicanálise seria como o lugar, talvez o último,
em que a psiqué humana como tal é abordada. E, embora algumas de
suas questões – Até que ponto as histórias dos pacientes são fantasia ou
realidade? Serão somente fantasias ou fantasias vinculadas à realidade? – se
coloquem muitas vezes no âmbito restrito do sentido que a losoa da
representação deu ao problema da conexão entre homem e mundo, fato
é que esses temas explorariam aquilo que o ceticismo tem de verdadeiro:
essa busca de conexão, a própria possibilidade de que um olhar sobre a
subjetividade traga a saída para a conrmação da realidade.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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Vertigo, nesse contexto, teria como pano de fundo, ao abordar o
desejo e a própria incapacidade do homem de o sustentar, precisamente
essa discussão cética (e, claro, psicanalítica) por excelência. Estaria implícita
neste lme a dramatização da busca da conexão com o mundo e, por outro
lado, a própria possibilidade de uma desconexão completa com ele. Cavell
observa, no e World Viewed, que interpretar a fantasia como algo que diz
respeito necessariamente a um mundo fora da realidade seria ler de modo
incorreto a teoria de Freud. Também a psicanálise freudiana, como vimos
acima, embora recorrendo em alguns dos erros da losoa da representação,
estaria interessada na possibilidade de redirecionarmos o poder da fantasia
para o estabelecimento de uma relação com o mundo e com os outros
sujeitos. Cavell destaca, no âmbito desse debate, que renunciar à fantasia
seria abrir mão da nossa convicção no mundo e que, portanto, é antes
pontuar os limites entre a capacidade de estabelecermos o liame entre a
fantasia que revigora nossa conexão com o mundo e aquela que perde o
ponto chave de uma crítica ao isolamento do homem moderno. Vertigo
colocaria no centro do seu enredo justamente esse tema, explorando as
consequências do fechamento de uma mente em torno de uma fantasia
vigorosa, apresentando, assim, a dualidade resultante na mistura entre o
mundo do eu e o mundo externo, e, retratando, dessa forma, o poder que a
convicção tem de produzir uma apropriação privada do mundo (CAVELL,
1979, p. 85-86).
Logo na abertura do lme, o olho feminino, antes de encontrar a
câmera, emana formas espiraladas e coloridas. Além de lembrar as
experimentações da Optical Art, essas imagens apresentam a relação
Figura 1- Abertura de Saul Bass. Olho da atriz
Kim Novak.
Vertigo, 1958, 1m02s.
espectatorial do lme ao unir e brincar
com as noções de olhar e vertigem
(formas essas que se repetem ao longo do
lme no cabelo da mulher do quadro,
Carlotta Valdés; no coque de Madeleine
quando a imita; nas ores compradas
por Madeleine, que são as mesmas do
quadro, as quais os botões ainda estão
com suas pétalas espiraladas e unidas; e,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 85
não menos importante, na escada da torre da Igreja). A verticalidade,
somada ao espiral presente no lme todo, leva à perda do mundo e perda
de si no mundo. A ilusão e a realidade que estão sempre em jogo nas cenas
verticais, como a da queda do colega de trabalho, da amada Madeleine,
dele na cova em seu sonho e, por m, de Judy, são expressões do fechamento
de si no mundo fantasioso. A percepção do real e do imaginário é bastante
tênue e o espectador é induzido a ter a sensação de vertigem o tempo todo,
sem perceber se o que ocorre na tela diz respeito ao mundo exterior ou
apenas ao espaço interno dos personagens. Mais particularmente, Vertigo
faz um retrato da fantasia destrutiva associada à objeticação da mulher
pelo homem. Ao contrário do mito de Pigmaleão, que, apaixonado por
uma estátua, a transforma em mulher, James Stewart interpreta um
personagem que transforma sua companheira em pedra, como a leitura de
Cavell ressalta em e World Viewed (1979, p. 86). Vertigo dramatiza a
transformação da mulher real, enquanto idealizada, em pedra, o que se
reete na atuação propositadamente inexpressiva de Kim Novak. Vemos a
construção de uma estátua, de um objeto a ser adorado, independente da
vontade que a mulher possa expressar. A visita de Madeleine ao cemitério
da Misión Dolores, quando a personagem entra em uma espécie de transe,
quase que sonâmbula ao encarar o túmulo de Carlotta, explora a
inexibilidade cenográca (túmulos, roupas cinzas, olhar melancólico,
enquadramento distante) e ressalta sua beleza solitária, apresentada entre
lápides cinzentas e ores avermelhadas, construindo um tipo de fêmea
misteriosa e melancólica.
Por outro lado, na
sequência após
Scottie salvar
Madeleine da
tentativa de suicídio
na Baía de São
Francisco, mostra-se
uma exibilidade
em relação ao acesso
à mulher que se
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
86 |
moldou, na fantasia, ao seu desejo (enquadramento próximo, nudez,
cabelo despenteado, ambiente intimista). A personagem feminina acorda
enrolada num lençol, nua, na cama dele, segundo Cavell imbuída de uma
exibilidade “nunca vista ou interpretada por qualquer uma das heroínas
de Hitchcock” (CAVELL, 1979, p. 86). Percebemos que essa exibilidade
é um cenário articial e idealizado, construído por uma mente obsessiva na
realização de seus desejos íntimos. Scottie representa aqui o mito de
Pigmaleão ao contrário, como dito, tentando moldar o seu objeto de
desejo, o que exige a exibilidade da mulher amada no plano idealizado e,
ao mesmo tempo, sua objeticação e inexibilidade no plano real, ambas
perspectivas, no fundo, resultado da própria vertigem que o personagem
masculino tem em relação à realidade.
A abordagem da manipulação da imagem de Kim Novak pelos dois
principais personagens masculinos é outro ponto chave de tal objeticação.
Elster/Helmore e Scottie/Stewart manipulam as personagens de Kim
Novak a m de que elas sejam sempre outras. Tanto Elster quanto Scottie,
então, transformam Judy, por exemplo, no que eles querem que ela seja,
reduzindo-a a uma mera imagem, o que o diretor de Vertigo representa
através de espelhos.
10
Tal recurso, ao mostrar tanto o objeto quanto
seu reexo, reforça a ideia da existência de dois componentes. Logo na
primeira vez que Scottie vê Judy/Madeleine, um espelho mostra seu reexo
na saída do restaurante onde ela jantava com o seu esposo ctício, Elster.
Depois o mesmo acontece na porta da loja de ores, quando Madeleine
está comprando o buquê, e, depois, em seu quarto de hotel quando ela – já
como Judy – encontra Scottie novamente. Mais tarde no lme, o mesmo
recurso cenográco é usado na cena da loja de roupas, enquanto compram
o terno cinza idêntico ao de Madeleine, além de após a transformação de
Judy no banheiro de seu apartamento, quando Scottie percebe que Judy
e Madeleine são a mesma pessoa após colocar o colar para saírem para
jantar. Particularmente, na cena da loja de roupas, o espelho representa
todas as etapas dessa manipulação fantasiosa da mulher desejada. Quando
10
Esse desejo de Scottie por “recriar uma imagem sexual impossível” e “querer dormir com uma morta”, em
um caso de “pura necrolia”, como declarava Hitchcock (TRUFFAUT 1986, p. 246), é também parte desse
universo interno de Scottie que é mostrado o tempo todo entre a realidade e o imaginário do personagem e de
nós, espectadores.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 87
Judy percebe que Scottie pretende vesti-la com o mesmo terno cinza de
sua falecida amante, ela foge para o canto da sala, ao lado de um espelho.
Scottie vai atrás dela, e Judy, que está com o corpo voltado para o espelho,
parece ser esmagada por Scottie e pelo seu reexo.
Figura 2- Inexibilidade Cenográca. Madeleine.
Vertigo, 1958, 42m37s; 21m23s; 26m19s e 24m11s.
Figura 3- O jogo de espelhos com Judy.
Na cena, a mulher (Judy/Madeleine) está mais próxima do espelho
que o homem, criando a sequência homem-mulher e mulher-homem,
como se a mesma fosse prensada contra o espelho, encurralada pela
situação e, principalmente, pelo homem da relação. Scottie, naquele
momento, eliminou Judy, esmagou-a contra o espelho, ignora totalmente
sua personalidade e vontades, busca somente pelo reexo que ainda
não está presente no espelho e que corresponderia ao seu ideal. Tenta a
empurrar para dentro do espelho, para a imagem ideal e fantasiosa que
alimenta sua obsessão.
Mas é preciso destacar que, seguindo as observações do próprio Cavell
(1979, p. 86), Scottie não é, propriamente, um anti-herói. Sua questão
principal é a força da fantasia e do desguramento da identidade, ou
melhor, os efeitos que podem resultar da força mal direcionada da fantasia.
Sua vertigem diz respeito, portanto, a uma incapacidade de integrar mundo
interior e mundo exterior e sua manipulação das personagens de Kim
Novak aborda o poder da convicção, ou sua tentativa de sozinha, construir
um mundo coerente. Essa fantasia privada, que se isola do mundo real, a
aproxima do fundamentalismo e da idolatria religiosa, na medida em que
produz, pela força da convicção que dela resulta, um mundo apartado da
realidade. É nesse sentido que a análise cavelliana sustenta que Hitchcock
retratou algo que nem Freud abordou, a saber, a fantasia de um Deus
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
88 |
transcendente. Por isso Hitchcock colocaria freiras e igrejas nas zonas que
explora nos lmes, retratando, precisamente, essa proximidade entre os
poderes da fantasia e a superstição religiosa:
A queda nal de Kim Novak, na torre, é disparada pela aparição
súbita de uma freira. O mundo de Stewart desaba no ponto mais
alto de uma igreja, a partir da qual, na realização do seu desejo,
ele reverterá a direção de sua vertigem e mergulhará em direção ao
seu amor. A heroína de Hitchcock é, por assim dizer, uma freira
excomungada; de modo que, do jeito que ela está, já se vê mais dela
do que o normal. Quando, ao hábito de uma freira, Hitchcock
acrescenta saltos altos (como em A Dama Oculta), temos um
reconhecimento claro de voyeurismo, que não é apenas um de seus
assuntos especiais (explícito em Janela Indiscreta e Psicose), mas um
tom dominante de sua narrativa como um todo (mais agrante
nos lmes com Tippi Hedren, nos quais espionamos toda a sua
vida interior). O voyeurismo é uma borda retraída da fantasia; sua
exigência de privacidade mostra sua perversidade. A publicidade
moderna é sua herdeira; sua condição de publicidade oculta sua
perversidade. O voyeurismo narrativo é a maneira de Hitchcock
declarar o meio do lme, cuja condição é que seus personagens
sejam vistos de um estado invisível (CAVELL, 1979, p. 87).
A cena nal, a morte de Judy em virtude do movimento imprevisto
de uma freira, consistiria simbolicamente na representação dessa dinâmica,
dessa superstição em que consiste o amor idealizado de Scottie pela já
morta Madeleine. Não por outro motivo, Scottie a partir daí inverte
a direção de sua vertigem, que passa a apontar para o alto da torre da
Igreja, representando a mudança de uma vertigem relacionada ao mundo
exterior para a referente aos seus sentimentos. Além disso, representaria
simbolicamente o próprio voyeurismo narrativo enquanto meio do lme
em Hitchcock. Isso porque a direção deste cineasta privilegiaria uma
composição, também no âmbito formal, que ressalta a característica
do ceticismo moderno de exigir uma total privacidade e, diz Cavell na
passagem acima, por isso, perversa. Vertigo, como destacado, representa
uma fantasia que exige essa privacidade e, por isso, destrói a conexão
saudável com o mundo. Não apenas Scottie dá vazão a essa perversidade,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 89
mas é o próprio espectador que se encontra nessa posição de privacidade e
publicidade em relação ao lme construído por Hitchcock. Seu mundo é
público e privado, ele o vê sem ser visto.
ceticismo e o MediuM do filme em vertigo
Que o voyerismo narrativo seja uma expressão de Hitchcock sobre
o meio do lme, é algo relacionado à possibilidade do cinema, enquanto
também linguagem, de representar a própria ideia de um mundo total, a
possibilidade de ver sem ser visto, ou de ser visto de um estado invisível,
privado. Esse voyerismo narrativo determina também o modo pelo qual a
câmera se insere em Vertigo, bem como diz respeito a todo um conjunto de
intencionalidades expressadas por meio da produção de um mundo, como
veremos nesta seção.
No e World Viewed, Cavell destaca que quando fala a respeito da
câmera a dene pela sua causa nal, ou seja, envolve tudo que está entre o
mundo diante dela e a projeção na tela:
Frente à câmera, digamos, existe um prédio branco. Se o que aparece
na tela é um edifício branco instável, borrado ou deformado, ou
dois edifícios idênticos passando um pelo outro, isso não é prova
de uma projeção desfocada? A menos que, talvez, isso nos leve a
acreditar que o prédio está tremendo ou está sujeito à deformação,
como em um desenho animado, ou que é capaz de autolocomoção
e autoduplicação espontânea (CAVELL, 1979, p. 187).
Além disso, observa que há uma espécie de espera metafísica entre
o que foi produzido e o resultado propriamente dito (CAVELL, 1979,
p. 185).
11
Sendo assim, que haveria um mistério na própria relação de
causalidade entre ambos, entre aparência e realidade. Nesse contexto, arma
que Hitchcock é um cineasta conhecido por conseguir fazer uma espécie
de previsão metafísica dessa conexão. Isso porque, complementa, talvez
11
“O lme vira do avesso nossas convicções epistemológicas: a realidade é conhecida antes que suas aparições
sejam conhecidas. O mistério epistemológico é se, e como, você pode prever a existência da realidade a partir
do conhecimento da aparência. O mistério fotográco é que você pode conhecer tanto a aparência quanto a
realidade, mas que, no entanto, uma é imprevisível da outra” (CAVELL, 1979, p. 185-186).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
90 |
Hitchcock só produza o que possa ser previsível em termos de resultado,
ou seja, aquilo cujas consequências do seu estilo ele possa explorar. No
entanto, dentro dessa abertura metafísica, o mistério do cinema é a
construção de uma signicação de um mundo que misteriosamente, pelo
menos para o expectador, aparece. Nesse contexto, Cavell ressalta que a
câmera se mostra a partir de seus objetos, do mundo que projeta.
12
O
que deve se armar por meio das possibilidades técnicas comportadas pelo
cinema é, então, os objetos da lmagem, o mundo construído e projetado
na tela.
13
Hitchcock, mesmo diante de um controle do estilo, teria o
mérito justamente de manter a transparência da imagem, possibilitar que
o cinema seja um fazer-ver aquilo que está diante dos nossos olhos:
De um lado, o montante e o tipo de informação técnica que
poderiam ser considerados relevantes excedem o que qualquer
um de nós pode conhecer. De outro, as únicas questões técnicas
a que nos remetemos como relevantes à experiência de ver lmes
particulares, que é aquilo que nos interessa, estão diante de seus
olhos. É possível ver onde uma tomada começa e termina, se um
enquadramento é aberto, médio ou fechado. Saber se a câmera está
se movendo para trás ou para frente, ou para os lados, se uma gura
aproxima-se do campo de visão da câmera ou se esta move-se para
focalizar aquela. Podemos não saber como Hitchcock consegue o
efeito da escada distorcida em Vertigo, mas é possível ver que ele
conseguiu. Então, qual é a realidade por trás da ideia de que há
sempre algo técnico que não se conhece e forneceria a chave para a
experiência? (CAVELL, 1979, p. xxi -xxii).
Porém, Cavell explicita sua compreensão de que a projeção de um
mundo na tela, essa espécie de linguagem sempre em terceira pessoa,
não exclui os traços de subjetividade dos criadores do cinema. Como
os elementos sintáticos e lexicais de uma linguagem comportariam a
12
A câmera pode, é claro, tirar uma foto de si mesma, digamos, em um espelho. Mas isso não a faz adentrar
mais em si mesma do que eu quanto à minha subjetividade quando digo ‘eu estou falando essas palavras agora’.
Quero que as palavras aconteçam comigo, minha fala torna o seu signicado pessoal” (Ibidem, p. 127).
13
“Os longos e lentos vaivéns que Godard realiza na cena do diálogo em O Desprezo são claramente uma
declaração original e profunda da presença da câmera. Mas, por esse fato, eles também são um testemunho da
câmera sobre os personagens, sobre sua distância e conexão simultâneas, sobre o vasto deserto da familiaridade
fatigante” (Ibidem, p. 131).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 91
intencionalidade do falante, a forma de organização das “frases visuais”
seria a portadora das intenções do cineasta:
Digo, com efeito, que todo e qualquer gesto de câmera pode, ou
não, signicar algo, e todo corte e ritmo de cortes, [assim como]
todo enquadramento e modulações do mesmo – algo determinado
pela natureza do lme ou pelo contexto especíco na ocorrência
do gesto em um lme particular. Nomeio de automatismos tais
possibilidades do meio físico de um lme. Eles são os portadores
das intenções do cineasta – tais como os elementos sintáxicos e
lexicais de uma língua. Ao contrário dos falantes de um idioma,
os cineastas conseguem, não meramente, construir, por assim
dizer, novas sentenças, mas novos elementos de sentenças. Essa
intencionalidade dos automatismos fílmicos dita a perspectiva
a partir da qual uma compreensão razoável de um lme deve
proceder (CAVELL, 1979, p. 186-187).
Assim, o cineasta imprime sua subjetividade no modo como organiza
um mundo, por meio de cortes, do ritmo que imprime, etc., de forma que
por automatismo Cavell não entende a mera reprodução mecânica de uma
imagem a partir de um roteiro. Bons diretores, arma, signicam mais –
com mais completude, mais particularidade, mais sutileza – enquanto gestos
de maus diretores são vazios (CAVELL, 1979, p. 188). Há uma completa
responsabilidade do artista em relação às intenções que projeta, como devem
os humanos se responsabilizar pelas intenções que causam suas ações no
mundo. A realidade fotografada e projetada no fundo decorre dos arranjos
das sucessões pelas quais a realidade é projetada, exibida, destaca. No cinema,
em algum momento os vários graus de movimento nas sucessões projetadas
terão que ser minimizados, pelo menos os movimentos da câmera e dos
seus objetos. E o modo como deve haver essa constituição de uma unidade
na multiplicidade é a determinação de uma signicação, dentre outras
possíveis. Ou seja, é a constituição de um mundo contingente, que passará a
ser existente na tela (CAVELL, 1979, p. 202).
14
14
A vivacidade em si sugere que o que somos mostrados na tela é sempre apenas um dentre um número innito
de visões igualmente possíveis, que nada que a câmera faz pode sair do círculo de visualização. Estamos sempre
do lado de fora; não há visão perfeita ou mais signicativa” (Ibidem, p. 202).
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Gabriel Debatin (Org.)
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Segundo Cavell, “esse é um dos signicados do giro de 360 graus
que a câmera dá em torno do casal abraçado, em Vertigo (CAVELL, 1979,
p. 202), cuja signicação é determinável apenas a partir de uma análise
especíca e particular do lme. Para Cavell, esse é um automatismo e seu
sentido não pode ser dado de modo abstrato e geral. De algum modo,
embora qualicado como automatismo, trata-se do espaço de autonomia
do artista, a expressão do seu próprio estilo. Especicamente no caso do
uso da câmera, Cavell arma que, em Vertigo, esse giro coloca o casal
num casulo, o que representa a fantasia do homem, a qual não pode ser
compartilhada pela mulher. A sucessão das imagens do homem não é
realmente vista nem apenas imaginada, nem simplesmente lembrada por
ele. São projeções e sucessões da realidade que ele ordena, (organiza, decreta):
“Elas não procedem de uma posição fora do mundo cuja perspectiva é, em
princípio, compartilhável; elas não implicam o mundo como um todo, mas
selecionam fragmentos dele, cuja implicação é somente para o personagem
(CAVELL, 1979, p. 203). Embora tendo os personagens enlaçados e
encasulados pelo giro, a expressão da câmera representa a impossibilidade
de encontro. Vertigo seria uma declaração do m do romance e o modo
como Hitchcock pensou a determinação dos movimentos sucessivos nesse
giro completo da câmera visa tornar isso evidente.
15
Em outras palavras,
não é só na temática abordada que se expressa o tema cético presente no
lme, mas também na manipulação dos seus meios físicos, na exploração
das possibilidades do seu automatismo.
O chamado dolly zoom, inaugurado exatamente em Vertigo, em que a
câmera se desloca, para frente ou para trás, enquanto o zoom movimenta-
se na direção oposta, representa também a constituição de uma linguagem
própria e que no lme tem em vista a potencialização dos sintomas de
vertigem. O objeto focado pela câmera não se desloca e nem muda seu
15
Cavell (2005, p. 159), analisando o lme Aconteceu Naquela Noite, de Capra, observa que uma tomada
em que o personagem se afasta, de costas para a câmera (away from us), potencializa a signicação de uma
vulnerabilidade, privacidade, ou mesmo autorreexão no espectador. Este movimento fílmico, normalmente
localizado na cena nal, capturaria um isolamento, sentimento de esperança, um abandono do passado,
vulnerabilidade, privacidade e contemplação, encontrando seu ápice quando a tomada envolve um casal,
afastando-se de nós, nos deixando de fora do seguimento da trama do resgate matrimonial e indicando um
começo, um limite que foi ultrapassado. Ou seja, temos aqui um movimento de câmera que visa transmitir uma
mensagem de possibilidade de encontro e de reconhecimento do outro, mensagem essa oposta à transmitida
pelo giro completo da câmera em Vertigo.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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tamanho, porém o fundo tem seu enquadramento ampliado ou diminuído,
o que signica a impossibilidade de convergência entre o mundo interno
e externo de Scottie. Esse efeito aparece logo na cena de abertura, durante
a perseguição, e na escadaria da torre da igreja, antes da primeira morte
de Madeleine. Scottie olha para baixo e percebe o solo apertar-se no
quadro, como se este estivesse chegando mais perto. Em ambos os casos,
psicologicamente seu mundo está diminuindo, está cando mais estreito, e
será facilmente dominado pela obsessão. Na terceira vez em que a técnica é
aplicada, porém, o efeito é inverso: o solo parece ampliar-se, como se Scottie
estivesse cada vez mais longe dele. Isso acontece na segunda sequência da
escadaria da torre da igreja, quando Scottie arrasta Judy para o local a m
de revelar-lhe a farsa que descobriu. Por isso, o campo de visão, dessa vez,
amplia-se: ele está livre de sua obsessão e também de sua vertigem – tanto
que, momentos depois, aproxima-se da janela da torre do sino pela qual
Judy acabara de cair sem experimentar qualquer vertigem.
Vale lembrar também que Hitchcock é um dos grandes mestres
do travelling e Vertigo traz esse recurso associado principalmente às
personagens de Kim Novak no lme. A cada movimento de sua câmera
em torno dela, a sensação de desconhecimento acerca do que pensam e
sentem suas personagens é visível na composição cinematográca. Somada
aos travellings, temos a aproximação aparente da câmera, que também
é importante na construção emocional das personagens, diluindo ou
aumentando a carga psicológica em relação à sequência anterior. Isso é
visível nos close-ups em Kim Novak e, após a morte de Madeleine, nas
tomadas de plano aberto em mulheres que parecem com ela pelas roupas,
tipo físico e cor de cabelo. Esses movimentos de câmera têm a função de
ressaltar tanto a objeticação e o desejo de Scottie em relação a ela, quanto
o mistério que aumenta o desejo e a fantasia do personagem.
Ademais, Cavell observa (1979, p. 201), armando seguir Bazin
neste ponto, que a tela no cinema tem uma função muito diferente da
que ela tem na pintura, na medida em que no cinema ela se relaciona
tanto com o que ela inclui como com o que ela exclui, ou seja, com o seu
extracampo. O extracampo cumpre uma função narrativa, eis que ideias
apresentadas na tela serão trabalhadas fora das vistas do espectador – o que
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Gabriel Debatin (Org.)
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pode ser usado como uma técnica para criar suspense ou terror, deixando
que a imaginação do espectador crie aquilo que a câmera não mostra. Em
Vertigo, por exemplo, há um momento em que Madeleine retorna ao hotel
no qual Carlotta Valdés viveu. Scottie a segue, e pergunta à senhora que
trabalha na recepção quem é a ocupante do quarto de esquina, descobrindo
que se trata mesmo de Carlotta. Então, ele pede à senhora que não comente
ou revele sua presença ali, ao que a recepcionista replica dizendo que ela
não esteve ainda no hotel naquele dia. Nesse momento, tanto Scottie
quanto o espectador cam intrigados, pois Madeleine de fato entrou no
hotel. A senhora da recepção convida então o detetive a acompanhá-la até
o quarto de Carlotta, e é nesse momento que o extracampo opera: o que
encontraremos? Madeleine? Ou o fantasma de Carlotta? Pela manipulação
da linguagem Hichcock faz o espectador ver na tela o que não está lá, algo
que também evidencia o fato de que, embora o cinema tenha como base a
fotograa, não devemos compreendê-lo como realista no sentido de uma
mera reprodução da realidade, mas sim em relação à sua possibilidade de
signicar um mundo. No caso de Vertigo o mundo signicado é tanto
interno como externo e representa a própria questão, para Cavell, da
possibilidade ou não de que a vida interna reforce nossa conexão com
o mundo externo. Mais especicamente, Vertigo apresenta na tela uma
fantasia que responde negativamente a essa questão.
Outra forma de marcar através das inexões da linguagem
cinematográca as intenções do artista, sobre o qual Cavell tece alguns
comentários, especialmente em sua aplicação nos lmes de Hitchcock,
e mais particularmente em Vertigo, é o uso da cor e a sua relação com
uma temporalidade que resulta das imagens sucessivas unicadas. A forma
predominante de unicação do tempo na fotograa, para Cavell, consistiria
no passado, sendo o uso do preto e branco, no fundo, uma remissão a essa
forma de unicação. Pontuar o drama visual a partir de um contraste entre
preto e branco, por sua vez, seria uma herança da pintura para a fotograa,
uma forma de dar um signicado individual (não meramente simbólico) a
um gesto: Quando isso acontece, a teatralidade e o realismo não são, como
podemos supor agora, opostos; antes, a aceitação da teatralidade é, então,
uma condição de aceitarmos uma obra como representação da realidade
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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humana (CAVELL, 1979, p. 90). A sociedade moderna – fruto tanto
de Maquiavel como de Rousseau e Marx – institui o sujeito e, ao mesmo
tempo o isolamento (CAVELL, 1979, p. 93-101). Como contraponto, o
drama era a forma de superar esse isolamento, pelo reconhecimento. Com
a superação dos usos desse drama visual, a pintura e escultura tiveram que
abrir mão da guratividade para continuar a contemplar a abordagem das
questões humanas, agora sem o contraste dramático. O cinema, entretanto,
não podendo abrir mão da guratividade, experimenta novas formas de
trazer à tona o reconhecimento, seja pelo ponto de vista das temáticas que
usa, seja pela exploração dos limites de sua própria linguagem.
O uso de cores, de modo geral, segundo Cavell, é uma forma de não
teatrizar. Rompe-se a relação com o passado, na medida em que o mundo
composto no cinema pela cor é, no geral, o mundo do futuro imediato.
16
Vertigo, entretanto, é, para esse autor, um grande exemplo da combinação
de fantasia e simbolismo da cor, ou seja, parece comportar elementos de
expressão de uma temporalidade que não apenas a do futuro imediato,
além de recepcionar certos aspectos de uma dramatização da qual resulta o
reconhecimento e de comportar uma particularização da imagem capaz de
propiciar também seu realismo.
17
Como destaca Rothman (2012, p. 201-202), a cor que representa
a fantasia, os sonhos, a memória, para Hitchcock, é o verde, ao qual
se contrapõe à realidade do vermelho e marrom. Em Vertigo, segundo
Rothman, o verde representa o amor ideal.
18
Na cena já citada, em que
Scottie, após salvar Madeleine da sua tentativa de suicídio e consumar
16
Segundo Cavell (1979, p. 94-101), as cores podem ser usadas como elementos que unem o mundo da fantasia
com a projeção de um futuro. Bergman utiliza do preto e do branco para indicar que o futuro é antigo, datado.
Antonioni utiliza a cor e a perspectiva limpa, na esteira de uma estética surrealista, como artifício temporal e de
representação da prevenção da arbitrariedade ou desordem humana. O uso de cores leves por Godard, por sua
vez, reete nosso gosto e desejo de transformar nossas convicções amorosas em pornograa leve.
17
Ver MAKKAI (2013), um exemplo declarado de leitura de Vertigo na perspectiva de discussão de cor em
Cavell.
18
Para esse comentador, o exemplo mais marcante do uso do verde no sentido de evasão pode ser encontrado
em Os Pássaros, na cena em que a personagem da Jessica Tandy faz a sua mais terrível descoberta na fazenda do
Fawcett (ROTHMAN. 2012, p. 202). Nessa cena, o simbolismo abstrato dessa descoberta é representando pelo
verde: a pick-up que traz Jessica Tandy à fazenda é verde, estaciona na frente de um trator verde. Dentro do
quarto, destroçada pelos pássaros, está uma colcha verde, e Fawcett já no chão, morto, sem os olhos. Abalada,
a senhora vivida por Jessica Tandy sai da casa, entra novamente em seu veículo verde e atravessa o campo verde
que circunda a fazenda.
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seu amor idealizado, há uma clara troca entre as cores verde e vermelha.
O apartamento guarda algumas tonalidades terrosas, especialmente na
cortina marrom (que terá cado verde, mais à frente, quando Madeleine
visitar o apartamento pela segunda vez). Scottie, porém, já usa uma
blusa verde, coloração associada à idealidade, indicando que realizou
(ou está próximo de realizar) sua fantasia. Madeleine, de outro lado, foi
completamente despida, e o antrião oferece-lhe um robe vermelho para
que ela vista – isto é, ela passará a ser dominada pela cor característica
de Scottie. No mesmo sentido, quando encontra Judy, ela veste verde, o
que representa que estamos diante novamente da obsessão fantasiosa de
Scottie. Além disso, não por acaso, como também observa Rothman, na
cena em que Judy se transforma em Madeleine sob o olhar de Scottie, o
verde permeia o ambiente para representar a idealização desse amor, de
uma mulher fantasiada.
Figura 4- Azul-Amarelo: Mindy e Scott; Vermelho-Verde:
Madeleine/Judy e Scott. Vertigo, 1958, 5m13; 87m26s;
18m11s; 50m24s; 100m32s; 115m46s.
Ademais, é importante destacar
que outras cores também são
exploradas na película com
função simbólica. Em contraste
ao movimento pendular entre o
vermelho (cor associada à Scottie)
e o verde (associada à Madeleine e
Judy) de fantasia sexual e
realização do desejo, os tons
amarelos e azuis explorados no
lme são geralmente associados à
realidade, à sanidade e ao
equilíbrio mental e emocional e
aparecem, em grande parte das
cenas, associados à Midge, ex-
noiva de Scottie. Seu apartamento, suas vestes, seus objetos são amarelos e,
após a morte de Madeleine, a paleta de cores exploradas no cenário, roupas
de Midge e de Scottie no hospital psiquiátrico é o azul. Sinteticamente,
então, temos a exploração de dois pares de cores complementares, que
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 97
cambiam entre o sujeito que deseja e o objeto de desejo, vermelho e verde, e
a cor da mulher real e a sanidade, amarelo e azul.
Hitchcock revela-se no mundo que projeta. É nesse mundo
projetado que deve ser reconhecida a sua intencionalidade, implícita
em suas frases visuais. Seus movimentos de câmera, seu uso das cores, a
possibilidade que ele confere ao espectador de ser voyeur de uma fantasia
que também é a sua, são marcantes em Vertigo, como mostramos. Uso
de cor, posicionamentos de câmera, articulação da trama que constitui
a tela na sua relação com o extracampo, todos esses recursos são formas
de explorar os limites do automatismo, enquanto meio do lme. Embora
Cavell não pretenda discutir esse problema à luz do clássico debate entre
realismo e formalismo
19
, o que deixa estabelecido é o fato de compreender
que o cineasta projeta um mundo capaz de criar uma conexão (ainda que
momentânea, fantasiosa) entre o espectador e a realidade, em virtude do
próprio automatismo. Seguindo sua leitura, segundo a qual é um tema
cético que está indicado nesse lme, podemos dizer, ademais, que também
o medium de Vertigo revela esse ceticismo. Seus tons, seus ângulos, sua
perspectiva ressaltam, portanto, a discussão sobre o liame entre fantasia e
realidade e a busca da conrmação da nossa presença para o mundo.
considerAções finAis: fAntAsiA e voyeurisMo nArrAtivo em
vertigo
A análise cavelliana acerca de Vertigo converge com o modo como
compreende a relação entre lme e expectador. Se a modernidade nos
legou a subjetividade, também fez dela resultar o isolamento. A arte a
partir desse ponto assume a tarefa de buscar uma reconexão entre sujeito e
mundo. O cinema, nesse contexto, é uma linguagem artística privilegiada,
19
As categorias de sucessão e projeção estão entre as mais enfatizadas no que ouvi e li sobre a estética do
cinema. Em particular, elas envolvem o que muitos consideram ser a questão básica do assunto, ou seja, se é
a possibilidade de cortar de uma imagem para outra (um sentido de sucessão) ou a possibilidade de projeção
contínua de uma imagem diferente (alterada por profundidade de foco ou pelo movimento da câmera) que é a
essência do cinema. Não me obriguei a ponderar a experiência e a losoa que levaram, por exemplo, Eisenstein
a optar pela montagem e Bazin pela continuidade; nem pesquisei exemplos sucientes de um e de outro para
estabelecer minha opinião sobre o assunto. Minha desculpa para minha ignorância sobre essa questão é que
tenho uma hipótese sobre isso, a saber, que ela não é uma questão” (CAVELL, 1979, p. 73).
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na medida em que a base dessa arte é imbuída de um realismo peculiar,
dado seu automatismo. É assim, um mundo que se projeta na tela, e, tal
qual a nossa relação com o “mundo real”, é nas inexões da linguagem que
vemos a subjetividade do cineasta exposta. Vertigo, para Cavell, aborda
o percurso e as consequências de uma fantasia que resulta na perda do
mundo, na dúvida. E isso se expressa não apenas na temática abordada,
mas na forma como a narrativa é construída. A genialidade de Hitchcock
nesse caso é fazer do espectador um cúmplice de Scottie, já que com ele o
espectador compartilha essa fantasia de uma linguagem privada, ao mesmo
tempo supostamente pública. O espectador se vê privadamente, ao mesmo
tempo em que se conecta com um mundo público. O voyeurismo narrativo
é uma declaração de Hitchcock sobre o meio do lme, nos diz Cavell. No
caso de Vertigo, é também a nossa própria fantasia, a nossa questão cética
de nos validarmos para o mundo e talvez nos perdermos no percurso, que
está projetada na tela.
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| 101
C  :  
   Melancolia
iago Kistenmacher VIEIRA
1
“Le temps destruit tout”
(lme Irréversible)
A lmograa do diretor dinamarquês Lars von Trier inspira
profícuas discussões e, por isso, pode ser submetida à diversas análises.
Seus lmes versam sobre temas complexos e intrinsecamente humanos,
tais como a depressão, a angústia, o desespero, o vazio etc. Problemas
religiosos, psicológicos, sociológicos, artísticos e losócos encontram-se
presentes em sua obra. O diretor, em alguns momentos, chegou a declarar-
se leitor de Dostoiévski
2
, que, como se sabe, tratou, à sua maneira, de
questionamentos acerca do sentido da vida e, de certa forma, do absurdo.
O escritor russo e o absurdo com o qual se preocupou foram também
amplamente discutidos pelo lósofo argelino Albert Camus, também
leitor declarado de Dostoiévski. Nosso artigo, portanto, busca abordar o
1
Doutorando pela Universidade de São Paulo – USP / São Paulo / SP / Brasil. E-mail: tkv1986@gmail.com
 Cf. por exemplo: TRIER, 2015.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p101-128
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lme Melancolia (2011) e esmiuçá-lo apoiado em uma leitura camusiana,
especialmente a partir da obra losóca Le Mythe de Sisyphe (1942). A
justicativa desse caminho se impõe pelo fato de que o lme, a contar
com sua trama e personagens, em alguma medida, parece manifestar o
absurdo. E esse é o conceito-chave de Camus no supracitado livro. Mais do
que isso: os personagens, sobretudo Justine, em virtude de suas maneiras,
pode aventar uma aproximação com o Sísifo, ou seja, com o herói absurdo
exposto por Camus. Sendo assim, é possível indagar-nos: pode-se atinar,
ali, o absurdo e/ou o herói absurdo que o lósofo dene em sua obra?
Melancolia, neste lme, nomeia um planeta que, gradualmente, parece
se aproximar da Terra. A expectativa de uma colisão é o que desencadeia a
entropia existencial vivida pelos personagens. Mas, esse evento é o pano de
fundo da obra. Logo, é pertinente ressaltar que o longa-metragem não se
ocupa apenas com o m do mundo. Isso se dá, a nosso ver, por duas razões.
A primeira delas é porque algumas das cenas iniciais prenunciam o nal.
A segunda é devido ao desfecho sendo já revelado no começo da obra.
Parece claro, por esse ângulo, que o escopo é salientar o comportamento
dos personagens diante da iminência de um desfecho trágico. Nas palavras
do diretor: “Em Melancolia, é interessante ver como os personagens que
acompanhamos reagem conforme o planeta se aproxima da Terra” (TRIER,
2011, tradução nossa). Por conseguinte, o foco da narrativa dirige-se não
simplesmente ao choque entre os planetas, mas à forma com que cada
uma das pessoas se defronta com essa possibilidade. É precisamente à custa
disso que o referido lme pode levar-nos a uma reexão losóca partindo
do absurdo camusiano. Se esse absurdo nasce de uma relação existente
entre o ser humano, o mundo e a comparação desses dois (VICENTE;
CONTIJO, 2011, p. 2), ou, como o próprio Camus aponta, ao enfatizar
que o absurdo “Não é nem um nem outro dos elementos comparados.
Nasce de sua confrontação” (CAMUS, 1942, p. 50, tradução nossa), essa
é a situação apresentada em Melancolia. Nessa película, dispomos de um
confronto direto entre o ser humano e seu universo. Daí a conclusão de
que a ameaça do encontro entre os planetas, ou o absurdo, nada teria de
signicativo desde que não estivesse vinculada às reações humanas, que
percebem a absurdidade do que testemunham. “Para dizer que a vida é
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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absurda, a consciência precisa estar viva” (CAMUS, 1951, p. 19, tradução
nossa), adverte Camus em L’homme revolte (1951).
No que concerne à estrutura do lme, temos que, na primeira parte,
o diretor trata majoritariamente de Justine (Kirsten Dunst)
3
, uma mulher
notadamente melancólica e indiferente a tudo que a cerca. Na segunda,
é dada maior importância à Claire (Charlotte Gainsburg), uma mulher
que, de forma muito diversa da irmã Justine, é deveras apegada ao lho, ao
marido e à sua propriedade. Nota-se, então, uma explícita dissemelhança
entre elas. Há, contudo, um terceiro personagem marcante: John (Kiefer
Sutherland), o marido de Claire. Ele, a despeito de surgir quase como
coadjuvante, não é menos relevante, posto que, apresentando-se tanto na
primeira quanto na segunda parte, sugere suciente familiaridade com
algumas das considerações camusianas relativas ao absurdo. Pensando
nisso, o artigo será dividido em três partes, antes da conclusão. Nelas,
analisaremos cada um dos personagens e aquilo que expressam, em
correspondência a três exemplos da obra Le Mythe de Sisyphe, procurando
defender que Justine não representa o herói absurdo, mas sua antítese –
mesmo que, a princípio, possa gurar como o seu exato oposto –, que
Claire corresponde à irreconciliada, e John, ao suicida.
Mas, anal, o que é o absurdo em Camus? Para não nos debruçarmos
sobre as longas discussões que cercam este objeto, é válido dizer que o
absurdo, em sua losoa, é a tomada de consciência que o sujeito humano
tem da falta de sentido do mundo. Numa explicitação bastante sintética:
absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional
do mundo” (CAMUS, 1942, p. 46, tradução nossa). Esforçar-se para
interpretar a existência como um todo; buscar dar sentido a algo que, tudo
indica, não tem nenhum; ou, ainda, tentar saciar um “apetite de absoluto
e de unidade”, afora notar a “irredutibilidade deste mundo a um princípio
racional e razoável” (CAMUS, 1942, p. 75, tradução nossa), tendo ciência
de que não é factível conciliá-las. Por conseguinte, há uma “coisa apenas:
Justine é uma personagem de Marquês de Sade. Em sua obra, “Justine, então, é personicadora da virtude
ou dos princípios cristãos, tais como benevolência, castidade, solidariedade e justiça, mas ainda assim acaba
sempre envolvida, inocentemente, em delitos, homicídios e depravações” (SOUZA; DOURADO; BARRETO,
2011, p. 2). E, para Arielo, “O diretor [Lars von Trier] chegou a comentar numa entrevista em 2003, o desejo
de adaptar a Justine de Sade para o cinema, mas a ideia não se concretizou, pelo menos até o presente momento
(ARIELO, 2013, p. 23).
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essa espessura e essa estranheza do mundo, isto é o absurdo” (CAMUS,
1942, p. 31, tradução nossa), dene Camus.
Outra questão se coloca: quem é o herói absurdo? Ora, para o
pensador argelino, o herói absurdo é aquele que está consciente de sua
condição absurda. Para ele, ainda que nada tenha sentido claro, está tudo
bem. É a própria luta contra a rocha que empurra eternamente para o alto
do cume, e que volta a rolar para baixo – o mito de Sísifo – que basta para
formar seu mundo, ainda que absurdo. E isso é suciente para preencher
seu coração (CAMUS, 1942, p. 168).
Diante dessas considerações, façamos a seguinte pergunta: à luz
desses conceitos, quando é que, no lme, o absurdo pode – ou não – ser
captado? Ora, o absurdo pode ser notado exatamente no “silêncio irracional
do mundo”, que surge no instante em que Justine, Claire ou John buscam
decifrar o fenômeno que os amedronta; e/ou nos momentos em que os
três reparam possuir apenas explicações insucientes. Destarte, o drama do
trio ilustra a factibilidade da experiência absurda. Sendo assim, podemos
nos perguntar: há, nessa película, a presença do herói absurdo? Algum dos
personagens pode ser equiparado a ele?
Antes de partirmos para as análises dos personagens, é importante
salientar que, se em Le Mythe de Sisyphe, Camus tomou o absurdo
como ponto de partida, assim também o faremos no presente texto. É
isso, aliás, que os denirá. Anal, quando se descobre o absurdo, é essa
descoberta que “deve dirigir seus atos posteriores” (BARRETO, 1971,
p. 48). Para omas Nagel, quando alguém se depara ou acha-se numa
situação absurda, esse alguém “geralmente tentará mudá-la, modicando
suas aspirações ou tentando entrar em um acordo com a realidade ou
removendo-se inteiramente da situação” (NAGEL, 1971, p. 718, tradução
nossa). Vejamos como os personagens respondem a este evento.
justine: Antítese do herói ABsurdo (?)
Justine é a protagonista do lme que, em determinadas cenas,
aparenta constatar algum absurdo naquilo que a rodeia. Não podemos
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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denir precisamente quando isso realmente se dá. Nem é simplório
distinguir pontualmente quando o sentimento do absurdo bateu em seu
rosto, como diria Camus (1942, p. 26-27). No entanto, traços outros
são sucientemente cristalinos para que possamos compreender Justine
– partindo do pressuposto que ela se depara com o absurdo – como
identicada à antítese do herói absurdo estabelecido por Camus. A razão
de compreender-se Justine dessa forma está baseada na perspectiva de que a
personagem, a princípio, parece, como seria o caso do herói absurdo, mais
resistente à pena que a ela foi imposta. Sucede-se que, se o herói absurdo
enfrenta sua pena por afeição à vida, não é o que ocorre com Justine. Além
do que, no que tange aos exemplos oferecidos por Camus em sua obra – o
ator, o conquistador, Don Juan etc., Justine, a nosso ver, é a personagem
que, diferentemente de Claire e John, parece não se aproximar de nenhum
daqueles exemplos, salvo, de forma controversa, do herói absurdo.
Assim que o lme se inicia, deparamo-nos com uma cena de
aparência onírica: Justine está entre pássaros que caem mortos do céu,
um cavalo – Abraham – tomba, e ela, com seu vestido de noiva, caminha
sofregamente devido às raízes que a agarram. O que isso pode simbolizar?
É possível ler a cena da seguinte maneira: mesmo em face de um mundo
sem sentido, cruel e que não apresenta qualquer redenção, é inevitável que
ela permaneça presa a ele, pois é plausível que não exista outro melhor. Mas
caracteriza também a diculdade que a personagem tem para prosseguir
vivendo, “caminhando” normalmente no mundo. Ademais, não há
controle sobre a hora em que as cortinas desse espetáculo absurdo da vida
serão fechadas. Não somos nós que decidimos pelo m, salvo se cedermos
ao suicídio, que seria anular essa tensão absurda, a qual só se encerra com a
morte (CAMUS, 1942, p. 51). Mas, Justine não segue por esta via radical.
Aquelas raízes prendem-na à Terra e a impedem de se lançar no precipício
do não-ser. Sua conduta, por isso, é assaz trágica, todavia, em situação
nenhuma, objetivamente suicida. Entretanto, não é por não querer matar-
se que ela possui apreço pela existência.
Quando de sua chegada ao castelo no qual se realizará sua cerimônia
de casamento, Justine, antes de entrar, observa o céu e pergunta qual é a
estrela que se destaca entre as demais. John, como astrônomo, responde ser
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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Antares, a principal estrela na constelação de Escorpião. Apesar da réplica, ela
não se mostra convencida. Cabe-nos atentar para a aproximação que se pode
fazer com a gravura Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer. Nela, a ilustre
gura é feminina. Não há dúvidas, a julgar por sua postura, que se trata de
uma mulher melancólica – aliás, seu vestido nos lembra o de Justine, citado
acima. Ao fundo da gravura de Dürer, vê-se um astro que prenuncia alguma
aproximação – tendo, na dianteira, o título da gravura, Melencolia I. Isso, uma
vez mais, sinaliza alguma anidade entre a obra do artista alemão e o lme
de Lars von Trier. A gura, acrescido a isso, apresenta aquele astro como a
chegada de algo não passível de cálculo, previsão e controle pelo instrumento
que a sorumbática jovem conserva em sua mão direita – um compasso –,
nem pelas outras ferramentas que vemos aos seus pés – é o caso do poliedro,
dos pregos, do serrote, da ampulheta e da esfera. A placa com os números,
que se apresenta acima de sua cabeça, é mais um desses utensílios que, seja
dito de passagem, permitem alguma comparação com o espírito cientíco de
John, como veremos adiante. A despeito dos nexos teoricamente admissíveis
entre a obra de Dürer e a de Lars von Trier, como apontou Keith Moxey, “o
signicado de Melencolia I está, em última instância, e necessariamente, além
de nossa capacidade de denição (MOXEY, 1994, p. 93, tradução nossa).
Portanto, nossa aproximação com a película aqui examinada também se
baliza por esses limites.
No trecho do livro em que desenvolve aquilo que denominou muros
absurdos, Camus elabora raciocínios que nos remetem diretamente à cena
em que Justine, após abandonar por alguns minutos sua celebração de
casamento, se dirige até o pátio da mansão na qual realiza-se a festa e
contempla o céu. Ali, se depara novamente com as estrelas, com um céu
negro, belo e silencioso, que transmite a aura de mistérios indecifráveis
à compreensão humana. Eis um dos muros absurdos que desaam nossos
assaltos (CAMUS, 1942, p. 38) – aqui, presumivelmente, estamos
próximos a uma pista que nos indica o absurdo incipiente que passa a
surgir na percepção de Justine. Levando em consideração essa bela cena,
destaca-se o subsequente pensamento de Camus: “No fundo de toda beleza
jaz algo de desumano, e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos de
árvores, eis que nesse minuto perdem o sentido ilusório com os quais nos
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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revestimos, doravante mais distantes que um paraíso perdido” (CAMUS,
1942, tradução nossa). É assim que Justine se vê: distante, retirada do
mundo. Tendo em vista suas ações, suas maneiras, pressupomos que ela
sente “essa espessura e essa estranheza do mundo” (CAMUS, 1942, p.
31) visivelmente absurda. Há algo estranho no céu e Justine não pode
elucidar. Ou seja, essas barreiras zombam de todas as investidas humanas.
Lembrando o lósofo argelino: “viver sob esse céu sufocante ordena que
saiamos disso ou ali camos” (CAMUS, 1942, p. 48-49, tradução nossa).
Essa “estranheza”, que Justine revela melancolicamente, pode ser
reconhecida na parte em que, chorando, após conversar com o noivo e
com a irmã no escritório de seu cunhado, vê algumas obras de arte expostas
em uma estante, que contém livros e catálogos abertos exibindo pinturas.
Essa reexão nos importa porque as obras com as quais nos deparamos,
considerando seus temas, cores, formas, ilustram a percepção de mundo
da personagem. Porque, quando Justine percebe as obras ali dispostas,
em claro sinal de contrariedade, ela passa a substituir as obras de arte
expostas por outras que julga mais apropriadas. Anal, os melancólicos,
nos termos de Lars von Trier, “preferem música e arte que contenham um
toque de melancolia” (TRIER, 2011, tradução nossa). Assim, Justine troca
uma pintura suprematista de Kazimir Malevich – entre elas o trabalho
intitulado Suprematist Painting: Eight Red Rectangles – que exibe formas
geométricas em cores puras, pela tela Jagers in de Sneeuw, do renascentista
amengo Pieter Bruegel, a qual expõe caçadores afadigados regressando de
uma caçada, pelo visto, pouco frutífera – tal pintura, a propósito, brota
na tela após o primeiro minuto, na abertura do lme. As cores, que, em
Malevich, eram puras, vivas – vermelho, lilás, amarelo e preto contra um
fundo branco – cedem lugar ao cinza do céu, ao branco da neve espessa e ao
tom escuro das árvores despidas de folhas. Ato contínuo, ela afasta gravuras
menores difíceis de serem discernidas pelas obras de John Everett Millais.
À esquerda, deparamo-nos com a tela e Woodsman Daughter e, à direita,
com o quadro intitulado Ophelia. O primeiro, em que pese o colorido e
a representação de uma cena inocente – o menino Gerald, lho de um
escudeiro, oferece frutas à Maud, lha do lenhador ao fundo –, tem, em
conformidade com o catálogo da Tate Gallery (PARROT, 1984, p. 86), um
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m trágico. Isso porque, anos depois, ambos mantêm uma relação amorosa
impossível de resultar em casamento por causa da diferença de seus estratos
sociais e, como dessa relação proibida uma criança é concebida, Maud
afoga-a em uma piscina. Como consequência desse ato, enlouquece.
Justine, em seguida, recorre novamente às pinturas de Pieter Bruegel,
quando, em um local da estante agora vago, apresenta-nos a tela Het
Luilekkerland (1567) – a terra dos preguiçosos e glutões. O que se vê é um
soldado, um clérigo e um agricultor empanturrados. Pois, onde vivem,
tudo está disposto em abundância. Capões e galinhas voam já assados;
nos jardins, há salsichas e as casas estão abarrotadas de tortas. Porém, os
versos encontrados na gravura que inspirou a tela, como aponta o registro
do Metropolitan Museum of Art, tecem críticas ao vício e, assim, lê-se: “Ser
preguiçoso, comer muito, e fazer o que você quer, essas são três coisas que
estão erradas... Até agora esta terra não era conhecida por ninguém, exceto
pelos imprestáveis que a descobriram primeiro, e que podem ser encontrados
próximos à forca” (ORENSTEIN; SELLINK apud LEBEER, 1969, p. 256,
tradução nossa). Evoquemos a pompa da festa de casamento de Justine, os
comensais, as mesas dispostas, enm, a festividade que a circunda. E, como
o artista quem sabe estivesse se opondo arduamente ao vício da preguiça e
da gula (LEBEER, p. 257), Justine, por motivos muito seus, também se nos
agura como alguém que possui sérias reservas com relação àquele ambiente
no qual se encontra inserida. Um casamento, aponta Trier, é um ritual.
Perante isso, pergunta: “Mas há alguma coisa além do ritual?”. E responde
que, para Justine, não há (TRIER, 2011, tradução nossa). Isso, ainda de
acordo com as reexões do diretor, se dê “Talvez porque os melancólicos
apostem mais alto do que apenas em um pouco de cerveja e música. Isso
parece tão falso.
4
Portanto, se os rituais são falsos, e “de nada valem, isso
serve para todas as coisas (TRIER, 2011, tradução nossa). Justine, então,
encontra-se num profundo vácuo de sentido, a despeito de todo o regozijo
dos convidados e da opulenta celebração.
Interessa-nos mencionar que Gaby, mãe de Justine e Claire, pensa o mesmo. Nas palavras da experiente
senhora: “Eu não estava na igreja, não acredito em casamentos. Claire... a quem sempre considerei uma
garota sensata, organizou esta festa extraordinária! ‘Até que a morte os separe, para toda a eternidade’. Justine
e Michael... Só quero dizer uma coisa: desfrutem enquanto durar. Eu, particularmente, odeio casamentos”
(MELANCOLIA, 2011).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Ao lado da referida pintura de Bruegel, avista-se, em escala menor
do que as restantes, a gravura de William Blake – A Negro hung alive by
the Ribs (1792) –, que representa um homem negro que, até então vivo,
revela-se pendurado pelas costelas. E a agonia da personagem vai sendo
estampada em imagens.
A outra tela que Justine resolve expor é Davide com testa di Golia
(1610), de Caravaggio. Além da imagem sombria e dramática falar por
si só, como sublinha o historiador da arte Michael Kitson, a famosa tela
do pintor barroco sugere que o jovem David seria o próprio artista em
sua juventude e que, a cabeça que é mostrada decapitada por ele, a qual
segura em sua mão esquerda, representaria Caravaggio em sua maturidade
(KITSON, 1967, p. 100). Esse ponto nos interessa porque, bem como
Justine, essa interpretação da imagem se aproxima da personagem de Lars
von Trier da seguinte forma: Justine pode ser vista como algoz, porque “no
começo” – e as cenas ora exploradas encontram-se no início da primeira
parte da obra –, “ela está brincando com tudo de forma improvisada,
porque se sente tão acima das coisas que pode tirar sarro disso” (TRIER,
2011, tradução nossa), mas mostra-se também como vítima, porquanto
deseja pôr termo a toda estupidez, ansiedade e dúvida pelas quais é
acometida, mas que percebe não ser possível resolver (TRIET, 2011). É
o protagonismo da melancolia, quando toda esperança é vã e seu efeito é
representado pelas novas telas, agora lúgubres.
Em outra obra de arte, dispomos de um dos últimos trabalhos do
pintor sueco Carl Fredrik Hill, intitulada Brølende hjort. Nela, um cervo
ruge, e seus chifres assemelham-se aos galhos das árvores antes pintadas por
Hill. Essa pintura também nos surpreende porque a tela em questão foi
pintada durante os anos de sofrimento que Hill enfrentava. Acometido por
depressão e alucinações, sua obra passa a tomar um rumo completamente
diverso. Como resultado, as telas, que, no início de sua produção,
ostentavam paisagens um tanto coloridas, com árvores, perdem espaço
para uma criação deveras soturna, como no modelo do cervo rugindo.
5
O cervo, que vemos na pintura de Hill, à exceção todos os signicados de que está coberto ao longo da história,
pode também signicar melancolia, sensibilidade. Hans Baldung, que, vale destacar, estudou com Albrectht
Dürer, autor da gravura Melencolia I, antes mencionada, utilizou esse símbolo em sua pintura intitulada
Allegorische Frauengestalt, de 1529. Nela, uma mulher – representando a contrapartida da alegoria da música,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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Conforme aludido anteriormente, ainda na cena da primeira parte do
lme na qual Justine está no escritório, uma das obras a surgir é Ophelia, de
John Everett Millais (1851 – 1852), que, inspirado na obra shakespeariana
Hamlet, apresenta uma jovem cantando suavemente enquanto afunda nas
águas até anular-se por completo.
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A semelhança da tela com a cena em
que Justine sobressai disposta sobre as águas é evidente, como detectamos
na imagem abaixo.
Figura 5- Ophelia, de John Everett Millais, e Justine, deitadas sobre a água.
Fonte: https://avorwire.les.wordpress.com/ - http://interdigitized.com/
Vê-se que, é guiado pela obra de Millais que Trier concebeu a cena
na qual Justine, deitada da mesma maneira que Ophelia, esboça uma
tentativa de se unir àquilo que não compreende. É razoável apontá-la como
que empenhando-se para resolver, ainda que não deliberadamente, o que
Camus denominou “divórcio”. Justine deita-se passivamente sobre a água.
Com efeito, é válido admitir que ela, em duas cenas, irrompe como aquela
que, experimentando o divórcio existente entre ela e o mundo, se aplica
em anulá-lo, ou amainá-lo. Vimos isso na cena acima e em outra imagem
posterior, já na segunda parte do lme. Nela, a personagem está deitada
sobre as pedras, nua, e olhando sedutoramente para o planeta Melancolia.
Não estaria ela buscando algo como uma “união”, de modo a contrariar
também pintada por Baldung –, enquanto olha-se no espelho e mira uma caveira, pisa em uma cobra e, ao
fundo, dois cervos parecem observar a cena (Cf. DUBE, 1980. p. 103).
A cena é descrita no ato IV, cena VII, em Hamlet, de Shakespeare, em discurso da Rainha Gertrudes. Eis
o que enuncia a rainha: “Um salgueiro reete na ribeira / cristalina sua copa acinzentada. / Para aí foi Ofélia
sobraçando / grinaldas esquisitas de rainúnculas, / margaridas, urtigas e de ores / de púrpura, alongadas, a que
os nossos / campônios chamam nome bem grosseiro, / e as nossas jovens ‘dedos de defunto’ [...] / Seus vestidos
se abriram, sustentando-a / por algum tempo, a qual uma sereia, / enquanto ela cantava antigos trechos, /
sem revelar consciência da desgraça, / como criatura ali nascida e feita / para aquele momento. Muito tempo,
/ porém, não demorou, sem que os vestidos / se tornassem pesados de tanta água / e que de seus cantares
arrancassem / a infeliz para a morte lamacenta” (SHAKESPEARE, [197-?], IV, VII, p. 124-125).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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esse sentimento do divórcio, este subproduto da constatação do fenômeno
absurdo? É viável pressupor que sim. Jean-René Moret, ao comentar o
absurdo em Albert Camus, assinala que “o homem gostaria de se unir ao
mundo, à natureza, mas o simples fato de fazer um julgamento sobre este
ponto marca-o como distinto do mundo ao seu redor” (MORET, 2015, p.
2, grifos nossos, tradução nossa).
Esta questão se coloca porque o “absurdo essencialmente é um
divórcio”, e este desponta quando os elementos presentes entram em
confronto, em outros termos, o humano com seu mundo, vários detalhes
alvitram que Justine, com tal ação, empenha-se na busca do apaziguamento
desse combate que se dá entre ela e seu universo, ação cujo sucesso
eliminaria sua condição de “estrangeira”. Esta é a sensação que nos assalta
ao contemplarmos a cena pelas lentes camusianas. Donde ela se colocar em
uma posição oposta àquela do herói absurdo, dado que este, ao contrário,
sustenta o absurdo “constantemente com um esforço solitário, porque sabe
que nessa consciência e nessa revolta de cada dia ele testemunha sua única
verdade, que é o desao” (CAMUS, 1942, p. 80, tradução nossa). Este
desao, aliás, é o nó que aparentemente Justine anseia desfazer.
Se o herói absurdo é visceralmente um ser de armação, é sensato
classicar Justine como um personagem de negação. Essa constatação
está baseada em dois pontos basilares, sendo um deles intrínseco à sua
própria vida e outro voltado ao seu exterior. Primeiramente, ela enjeita
o casamento, a festa que se seguiu, o emprego, as propostas de Tim, o
estagiário – o jovem com quem tem uma egoística relação sexual no dia de
seu casamento –, e mesmo às exortações da irmã para que apresentasse um
comportamento digno de uma solenidade como aquela. Eis os pontos de
negação referentes à vida particular da jovem. Tudo isso é demasiadamente
sem valor porque absurdo. Em segundo lugar, Justine nega que exista vida
após a morte; rejeita a ideia de que a vida na Terra seja boa; e parece ter o
desejo de extinguir o divórcio entre ela e o universo, como vimos acima.
Mas, há outro fator a ser apreciado: Justine não recusa tudo isso porque
no fundo quer dizer “sim” à vida, ou porque se revolta com sua condição
insignicante (CAMUS, 1942, p. 166). Ela assim o faz porque, para além
de “apática diante do inexorável nal de todos nós” (ARIELO, 2013, p.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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35), Justine é alguém que, no fundo, o despreza. E, como enfatiza Camus,
“Não há destino que não possa ser superado com o desprezo” (CAMUS,
1942, p. 166, tradução nossa). Esse é o método de Justine.
Entretanto, ao contrário de Sísifo, ela despreza não apenas a sua
condenação a uma vida sem sentido, como também a existência em sua
totalidade. O próprio Trier, em entrevista, acentuou que os melancólicos,
como Justine, “não têm nada a perder” (TRIER, 2011, tradução nossa) e
que “esse foi o germe de Melancolia (TRIER, tradução nossa). Se Justine
deve ser reputada como a personagem da negação, é porque, mesmo que
tenha reconhecido o absurdo, ela, em alguma medida, consentiu com ele,
mas objetou à necessária confrontação empreendida e reconhecida pelo
herói absurdo (MORET, 2015, p. 2), tão essencial à sua condição de herói.
Apesar disso, no segundo capítulo do lme, as crises de Justine
podem ser entendidas como suas “noites de Getsêmani”, e que, em Camus
(1942, p. 166), são aqueles momentos em que a rocha venceu. Essas noites
instituem as ocasiões em que o indivíduo, antes lúcido, deixa-se levar aos
abismos escavados pelas tribulações que enfrenta, quando repara que a
pedra voltou à planície e que será preciso levá-la novamente até o cume
da montanha. Mas Justine é alguém que demonstra lucidez ante o fato.
Exemplo disso é que, próximo do nal da película, ela, ao dialogar com
Claire, busca responder aos tormentos de sua irmã e arremata: “Se você
acha que eu tenho medo desse planeta [Melancolia], você é muito estúpida
(MELANCOLIA, 2011). A resposta pode ser entendida nos seguintes
termos: Justine reconhece que a pedra voltou ao sopé da montanha e
decide que não vale a pena empurrá-la de volta.
Outrossim, ela tem ciência de que o absurdo se encerra com a
morte, conquanto, não comete suicídio, porque não crê em outra vida,
como enfatizado num dos diálogos que tem com Claire. Desse modo,
é-nos outorgada a razoabilidade de alegar que Justine é uma personagem
trágica no sentido que Camus atribui à Sísifo, pois que ela também dispõe
da consciência de sua condição (CAMUS, 1942, p. 166). Contudo, ela
não representa o herói absurdo, como pode-se concluir com base em uma
leitura mais apressada. Porque, se Justine não comete suicídio, ainda que
tenha plena ciência do absurdo que encara, age como se fosse uma suicida.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Essa posição ca mais límpida quando do contraste, mais uma vez, entre
ela e Claire. Se Justine carece de esperanças e, independentemente disso,
não se desespera (CAMUS, 1942, p. 91), Claire, por seu turno, faz o
oposto: entra em pânico e procura nutrir alguma esperança. Para Camus,
“O contrário do suicida é, precisamente, o condenado à morte” (CAMUS,
1942, p. 79, tradução nossa). Esse é o enunciado que nos permite dizer
que, diferentemente de Sísifo, Justine não se insurge contra a sua pena e,
por isso, age como uma suicida
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, ao passo que sua irmã Claire se mostra
apenas como uma condenada à morte.
Outro indicativo conveniente, e que ilustra a imagem de Justine
como antítese do herói absurdo, é o trecho do lme em que ela maldiz a
Terra. É oportuno frisar que, para o herói absurdo, na pele de Sísifo, a Terra
é preferível ao mundo dos mortos. Nada pode ser comparado a este mundo
do aqui e do agora. E foi por isso que Sísifo, quando pôde novamente
rever a face deste mundo, provar a água e o sol, as pedras aquecidas e o
mar, não quis mais retornar à sombra infernal” (CAMUS, 1942, p. 164,
tradução nossa). Justine, bem diferente disso, chega a armar que “A Terra
é má” e que “Ninguém sentirá falta dela”. Mas Sísifo não julgava ser a Terra
tão má assim e, contradizendo a armativa de Justine, sentiu falta dela.
Inicialmente, tem-se a impressão de que Justine se aproxima da gura
do herói absurdo
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, porque ela, talvez, indique possuir a lucidez de que o
m que se aproxima com o planeta Melancolia é parte de sua condenação.
Ocorre que, tal concepção é rapidamente rechaçada ao lembrarmos que,
antagonicamente ao herói absurdo, que despreza os deuses, odeia a morte
e tem paixão pela vida (CAMUS, 1942, p. 164), Justine se porta de outra
É legitimo estabelecer notar semelhanças, entre Justine e Mersault, o principal personagem do romance
L’Étranger (1942), também de Albert Camus, e que tratou da questão do absurdo a partir da literatura. No
entanto, há, entre ambos, uma disparidade substancial: ao passo que Justine aparenta divisar um alívio na
concussão entre os planetas e o consequente extermínio da vida na Terra, Mersault, por outro lado, ao se
aproximar de sua condenação à morte, reage furiosamente. Assim, Mersault é um personagem que se identica
ao herói absurdo, enquanto Justine, como estamos buscando demonstrar, é melhor compreendida como sua
antítese.
Aqui podemos lembrar de Mersault, o herói absurdo do livro L’Étranger, publicado no mesmo ano que Le
Mythe de Sisyphe. Anal, sua conduta, no que se refere à indiferença, se assemelha a de Justine. Entretanto, há
uma diferença signicativa entre Justine e Mersault. Ao passo que a primeira vê na existência um mal que pode
ser suprimido com o choque entre os planetas e não reage ante a aniquilação vindoura, o segundo se revolta
quando sabe que pagará com a vida pelo crime por ele perpetrado.
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forma. Malgrado sua indiferença aos deuses, ela não é apaixonada pela vida
e, por isso, não odeia a morte. Então, o que inferimos disso é que Justine
representa a antítese do herói absurdo.
Além disso, se Claire é diferente da irmã Justine, ela tampouco
representa o herói absurdo, já que se nos apresenta como a irreconciliada,
que não para de se interrogar ao mesmo tempo em que não vê sua condição
como suciente para preencher sua vida.
clAire, A irreconciliAdA
Se, em Justine, não podemos xar o ponto em que ela se depara
com o absurdo, no caso de Claire, suspeitamos que o absurdo lhe tenha
sido apresentado no instante em que ela decide pesquisar sobre a rota do
planeta Melancolia e se certica de que, em contraposição ao que enunciou
John, o planeta está, de fato, em rota de colisão com a Terra.
Mencionamos que Claire se distancia de Justine, ou que gura como
o oposto dela. Anal, se, para a segunda, a “Terra é má” e o seu ocaso
terá como efeito positivo erradicar suas angústias, a primeira tem como
aspiração prender-se à vida com todas as suas forças. Mesmo porque “Ela
tem algo a perder. Por exemplo, uma criança” (TRIER, 2011, tradução
nossa). É claro que isso não nos permite asseverar que Claire corresponda ao
herói absurdo. Ela morrerá irreconciliada, mas, não é por isso que devamos
aproximá-la de Sísifo. A razão dessa constatação é que, quando Claire,
hipoteticamente, distingue o absurdo, ao avesso do exemplar camusiano,
que tem no desao (CAMUS, 1942, p. 80) o signicado de sua vida, ela
investe naquilo que o lósofo denomina por “salto”.
É visível que Claire não se conforma com a ideia de que a vida
seja somente na Terra. Sendo uma personagem o tempo todo aita, e
profundamente consumida pela possibilidade do choque entre os planetas,
sua atitude é buscar um subterfúgio. Isso é ouvido em parte da amarga
conversa travada entre as duas irmãs. Ei-la:
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Justine: Tudo o que sei é... a vida na Terra é má.
Claire: Então talvez haja vida em outro lugar.
Justine: Mas não há.
Claire: Como sabe?
Justine: Porque eu sei das coisas.
Claire: Não estaria imaginando?
Justine: Eu sei que estamos sozinhos.
Claire: Não acho que você possa saber isso. (MELANCOLIA,
2011).
Neste trecho, há três pontos singulares a serem percebidos, além da
notória dissemelhança no que toca à reação de ambas ao mesmo episódio.
A primeira delas manifesta a miserável esperança de Claire, de que, quiçá,
possa haver vida em outro lugar. A perspectiva de que a vida seja apenas
aqui e agora é um fardo – como se vê em seu comportamento – quase
impossível de ser aturada. O problema adicional que podemos apreender
desta fala deriva do que Camus formula sobre os posicionamentos de
Chestov e Kierkegaard.
Com relação a Chestov, lê-se que, “ao cabo de suas análises
apaixonadas [...] ele [Chestov] não diz: ‘Eis o absurdo’, mas sim: ‘Eis
Deus: é a ele que convém nos remetermos, mesmo se ele não corresponde a
nenhuma das nossas categorias racionais” (CAMUS, 1942, p. 55, tradução
nossa). No que se refere à Kierkegaard, Camus cita o “salto na fé” que o
lósofo dinamarquês executa ao proclamar que “É na sua falha que o crente
encontra seu triunfo” (CAMUS, 1942, p. 59, tradução nossa). Mediante
tais alusões, podemos ver como elas estão diretamente unidas àquilo que
transcorre com Claire, pois ela, bem como ambos os pensadores analisados
pelo lósofo argelino, vê algo de metafísico ali onde racionalidade estanca
ao topar com o absurdo. Em razão disso, ela tenta “saltar” duas vezes. A
primeira tentativa se dá quando, face ao absurdo, Claire não declara “Eis
Deus
9
, como Chestov, mas pondera que “Então talvez haja vida em outro
lugar.” A segunda investida vem após Justine anunciar: “Eu sei que estamos
9
A palavra “Deus” é citada apenas quatro vezes ao longo de todo o lme. E não para se referir à entidade divina
em si ou para pedir sua intervenção, mas unicamente como força de expressão.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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sozinhos”. Então, tendo já frustrada sua primeira tentativa de “suicidar-
se losocamente”, para falarmos a linguagem de Camus, Claire tenta
de novo. E, face a inexibilidade da irmã melancólica, pondera: “Não
acho que você possa saber isso” (MELANCOLIA, 2011). Aqui, Claire
canaliza “sua inteligência para criar um mundo irreal onde o problema
do absurdo possa ser ignorado” (BARRETO, 1971, p. 50). Defronte ao
seu insucesso argumentativo, ela sente que seu triunfo decerto esteja nessa
última ponderação. Verica-se que ambos os esforços sofrem ataques da
irmã e é possível que, na ocasião em que Claire imaginava poder respirar
um pouco mais aliviada, Justine a tenha puxado de volta ao domínio dos
sufocantes muros absurdos. Sem resposta, Claire permanece irreconciliada
com o mundo e com os eventos que se lhe apresentam.
Somado ao que foi dito acima, nos é permitido enfatizar que Claire
é aquela que procura a esperança que Camus chama de “esquiva”. Escreve
ele que a “Esperança de uma outra vida que é preciso ‘merecer’, ou truque
daqueles que vivem não pela própria vida, mas por alguma grande ideia
que a ultrapassa, sublima, lhe dá um sentido e a trai” (CAMUS, 1942, p.
23, tradução nossa). Relativamente ao consolo pretendido por Claire, é
arriscado assegurar se, em seu íntimo, ela conservou ou não tal esperança.
Ela gostaria desse consolo, mas é obstada pela irmã e, assim, segue sua
saga irreconciliada, porque sujeitos como ela são os que, “sem concluir, se
interrogam sempre” (CAMUS, 1942, p, 21, tradução nossa).
É isso que se desempenha em Claire, porque apresenta-se de modo
diferente da irmã, que se comporta de outro modo, pois indica mesmo
desejar o m da existência na Terra; e de John, seu marido, que efetivamente
se mata. Se admitirmos que Claire não cessa suas interrogações, é
impraticável procurar saber se ela morre com ou sem esperança numa vida
posterior. Isso em virtude de ela não tecer nenhum comentário após as
considerações de Justine, que se empenhou em frustrar sua reconciliação.
Mas, suponhamos que Claire, em seu íntimo, tenha sido vencida
pelas assertivas da irmã e morre sem fé, o que, de certo modo, a reconciliaria
com a existência do aqui e do agora. Se assim ocorre, não é exagero dizer que
Claire foi inuenciada por Justine. Aqui, afora Justine ter testemunhado
que “a vida na Terra é má” e, por conseguinte, reforçar sua imagem de
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 117
antítese do herói absurdo, é ela quem impede – ou almeja impedir – que
sua irmã dê os saltos tratados anteriormente. O resultado inevitável dessa
avaliação é conceber que Claire teria tido mais forças para empurrar a rocha
novamente ao cume da montanha se, porventura, enxergasse lá em cima
a outra vida que indicou desejar. Decerto, só assim, para ela, esse desao
absurdo pudesse valer a pena ser enfrentado. Isso não é o que vemos em
tela quando assistimos as cenas nais do longa em questão. Nelas, Claire
está ainda inteiramente apegada à vida. A respeito disso, como nos lembra
Camus, “No apego de um homem à sua vida há algo mais forte que todas
as misérias do mundo. O juízo do corpo tem o mesmo valor que o do
espírito, e o copo recua diante do aniquilamento” (CAMUS, 1942, p. 22,
tradução nossa). Não é por menos que Claire, agarrada ao lho – e ao
instrumental da trágica ópera Tristan und Isolde, de Richard Wagner –,
tenha corrido para todos os lados
10
no intuito de encontrar um abrigo que
a protegesse do m iminente: é o corpo recuando diante do aniquilamento.
Em um diálogo estabelecido mais ao nal da película, na ocasião em
que Claire sente que não há saída, propõe à irmã que, na hora da colisão,
estejam todos juntos, talvez bebendo vinho. Nisso, Justine, ironicamente,
pergunta se Claire não desejaria também cantar. E, assim, recomenda que
cantem a Nona Sinfonia de Beethoven. A ironia aqui é bastante ácida,
visto que a magnum opus do músico alemão tem, entre suas inuências, o
poema An die Freude (1785), de Schiller, que, além de motivar o quarto
movimento da sinfonia, encerra uma visão de paz, esperança e irmandade
entre os seres humanos.
Se, como apontamos, Justine não representa o herói absurdo, Claire
tampouco. Ela morre irreconciliada, e não de bom grado (CAMUS, 1942,
p. 80) como sua irmã. De resto, existe, entre elas, outro contraste vital. De
maneira oposta a Justine, Claire busca dar dois “saltos” na fé. Ela anseia por
uma consolação, mas é tolhida por Justine. Acontece que o herói absurdo
proposto por Camus não buscaria isso. Não procuraria realizar nenhum
10
No campo de golfe sobre o qual corre Claire, com seu lho, vemos um buraco cuja bandeira exibe o número
19. No entanto, como se sabe, os buracos dos campos de golfe, conforme o padrão, somam 18 buracos. (Cf.
CRUZ; ALVIM, 2016, p. 9-10). Este é um pormenor realmente intrigante, até porque John, durante a festa
de casamento, salienta esse número quando conversa com Claire. E, algum tempo depois, ao conversar com
Justine, ele pergunta à cunhada sobre o número de buracos que há no campo de golfe, ao que Justine responde
corretamente, dizendo ter 18. No entanto, não será possível nos determos sobre essa estimulante particularidade.
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Gabriel Debatin (Org.)
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salto”, porque tal herói imediatamente catalogaria esse “salto” como aquilo
que Camus, fundamentado em Kierkegaard, nomeou “suicídio losóco”,
ou “razão humilhada” (CAMUS, 1942, p. 70, tradução nossa). Isto posto,
distintivamente do herói absurdo, Claire é uma irreconciliada apenas na
medida em que não consegue se reconciliar com o mundo através da fé
em outra vida. Anal, a fé numa vida suprassensível legitimaria qualquer
agrura mundana.
Outro aspecto importante de ser registrado é que, durante o longa-
metragem, acometida pelo desespero, Claire compra pílulas com as
quais poderia cometer suicídio e dar cabo de sua aição.
11
Isso acontece
porque, em que pese as manifestações positivas de seu marido John, Claire
suspeita de que elas não sejam autênticas. Teme que ele esteja escondendo
as verdadeiras informações quanto à possibilidade de colisão do planeta
Melancolia com a Terra. Sendo assim, não seria problemático sustentar
que Claire ca exatamente entre Justine e John. Não somente no que diz
respeito à sua postura na trama, cuidando da irmã, que, por vezes, perturba
o relacionamento do casal, mas também no tocante às suas reações na
presença do que temos considerado por absurdo. Pode-se amparar essa
concepção na consciência de que, se Justine é aquela que não crê que exista
vida após a morte, Claire chega perto de acreditar nisso; e, se John decide-
se pelo suicídio, Claire chega perto de fazer o mesmo.
É pelas discussões respeitantes à Claire que começamos a vislumbrar
o problema do suicídio, com o qual a personagem se depara em diversos
momentos. Mas o suicida mesmo, neste âmbito, é melhor representado
pelo astrônomo John.
11
Quando a referida personagem busca os comprimidos para seu possível suicídio, nos deparamos com o recorte
de uma obra de arte: eGardenof Earthly Delights (1515), de Hieronymus Bosch. Nela, um detalhe chama
nossa atenção: um homem que, em meio a tantas belezas naturais – ou “delícias terrenas” –, encontra-se em pose
que denuncia sua melancolia, sua introspecção. Isso em muito se assemelha à conduta de Justine na primeira
parte do lme, que, entre as belezas naturais que os arredores do castelo onde ela se encontra exibe, coloca-se em
cena também de forma introspectiva.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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john, o suicidA
Nosso terceiro personagem está, indubitavelmente, muito distante
do herói absurdo – que suporta sua condição –, pois comete suicídio e
põe m ao dilema absurdo. Assim sendo, o problema desta última análise
consiste em investigar o porquê desse ato. As atitudes de John, quando
averiguadas sob o prisma de Le Mythe de Sisyphe, categorizam-no de duas
maneiras: sendo astrônomo, ele é o homem da ciência e, ao mesmo tempo,
aquele que confessa. Por isso, à medida que o Sísifo de Camus prefere
empurrar a rocha, John é propositalmente esmagado por ela, pois mata-se.
Atentemos para as causas.
Por ser um homem da ciência, mais especicamente um astrônomo,
não é de se estranhar que John estivesse, face a face com a possibilidade
de colisão de Melancolia com a Terra, desejando prescrutar ainda mais
o funcionamento dos planetas, das galáxias, enm, do cosmos em
sua totalidade. Vê-se tal empreendimento na segunda parte do lme,
quando a proximidade do planeta Melancolia é mais detidamente
trabalhada. Mas, ao ampararmo-nos no que nos é inspirado por Camus,
somos conduzidos ao juízo de que, no fundo, há algo a mais: ali está
oculta a busca por ultrapassar as fronteiras do mero conhecer. Além
da compreensão por si mesma, há, no ser humano, uma “nostalgia da
unidade” (CAMUS, 1942, p. 73, tradução nossa). Vimos, em John, que
essa “nostalgia de unidade” foi mortalmente ferida e, em função disso, ele
foi acometido por uma impressão avassaladora. Esse “apetite de absoluto
[que] ilustra o movimento essencial do drama humano” (CAMUS,
1942, p. 34, tradução nossa) é o que a ciência ambiciona resolver. E é
precisamente alicerçado nessa ciência, na qual John deposita toda sua
conança, e também esperança, que ele pretende remediar o drama de
sua esposa Claire. Notemos o que registrou Camus:
Compreendo que posso apreender os fenômenos e enumerá-
los a partir da ciência, nem por isso posso apreender o mundo.
Quando eu tiver seguido todo o seu relevo com o dedo, não
saberei muito mais sobre ele. E vocês querem que eu escolha entre
uma descrição certa, mas que nada me ensina, e hipóteses que
pretendem me ensinar, mas que são incertas (CAMUS, 1942, p.
38, tradução nossa).
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Aqui o lósofo fala ao astrônomo, ou seja, a armação de Camus
pode ser aplicada a John. Isso porque, em certa altura da trama, John, em
diálogo com Claire, que demonstra desespero frente à possibilidade do
m do mundo, arremata: “Querida, você deve conar em um cientista
(MELANCOLIA, 2011). Nesta ocasião, John exibe uma espécie de
otimismo lógico. E, assim, o marido procura convencer a esposa de suas
hipóteses, as quais considera como certas.
Mais tarde, quando John propõe um brinde à vida, Claire se assusta
e pergunta: “À vida? O que quer dizer com ‘à vida’? Você disse que caria
tudo bem” (MELANCOLIA, 2011). E John revela: “... estou dizendo
que quando se lida com a ciência e cálculos dessa magnitude, deve-se
contar com uma margem de erro.” Apesar de todo o estudo e minúcias
do conhecimento, há sempre algo que não pode ser apreendido. É isso
que John aparenta testemunhar com sua fala, porquanto, nessa parte,
identicamos que seu “salto”, impulsionado pela ciência, acabou por levá-
lo a aterrissar num buraco que desvendou seu engano.
Mesmo assim, John procura confortar Claire mostrando-lhe o selo
com o qual marcou o mundo (CAMUS, 1942, p. 34): com sua perícia
em astronomia. Ele garante que Melancolia está “se afastando de nós a
mais de 96 mil km/h” (MELANCOLIA, 2011). Este selo, não obstante,
será impiedosamente arrancado quando o planeta Melancolia começar
a contrariar todas as suas previsões e seguir imperturbável na direção da
Terra. Verica-se, desta forma, que, na medida em que sua compreensão do
mundo pôde ser reduzida a termos cientícos, John aparentava serenidade.
Possivelmente porque, como aponta Camus, “Um mundo que se pode
explicar mesmo com parcas razões é um mundo familiar” (CAMUS,
1942, p. 20, tradução nossa). E isso aplaca os ânimos excitados. Sua esposa
chega a mencionar que John estava muito tranquilo com relação àquilo
tudo. Todavia, chega o tempo em que ele detecta que suas previsões foram
refutadas e seus estudos desdenhosamente ignorados pela cega e inexível
indiferença do universo. Eis a origem do seu tormento.
O divórcio, até então resolvido, surge inexorável. Se antes John
acreditava poder explicar o mundo, agora, com o planeta Melancolia se
avizinhando, seu universo torna-se “privado de ilusões” (CAMUS, 1942,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 121
p. 20, tradução nossa). Não há mais exílio. E John, por sua prossão,
seu telescópio, suas pesquisas, personica rigorosamente o confronto da
racionalidade e da ciência com a irredutibilidade do mundo – lembremos
dos instrumentos que a jovem da gravura de Dürer tem à sua disposição
e que, presumivelmente, não foram sucientes para antecipar a vinda do
astro que, a princípio, vem em direção da Terra. John, imerso em um
contexto de iminente catástrofe total, apocalíptico – vale lembrar que, na
Bíblia, é o livro de João, ou John, em inglês, que anuncia o Apocalipse –,
e atormentado como aparenta estar a jovem de Dürer, reete a debilidade
da ciência frente a implacável apatia do universo, que, em pouco tempo,
reduzirá suas conclusões cientícas a poeira estelar.
Sua fortaleza, outrora tida como intransponível, revelou-se
quebradiça e expôs a absurdidade representada pelo “divórcio entre o
homem e sua vida, entre o ator e seu cenário...” (CAMUS, 1942, p. 20,
tradução nossa). Imediatamente, o homem da ciência vê-se impotente,
porque a carga que o absurdo exerceu sobre sua franzina musculatura
cientíca mostrou-se demasiadamente onerosa. Em oposição completa ao
herói absurdo, John representa seu fracasso, e põe termo a sua vida, uma
vez que, a princípio, “o suicídio é uma solução para o absurdo” (CAMUS,
1942, p. 21). Ou, como lemos em L’homme revolté, “O suicídio signicaria
o m dessa confrontação e o raciocínio absurdo considera que apenas
poderia subscrevê-lo negando suas próprias premissas” (CAMUS, 1951, p.
18, tradução nossa). Mas, eventualmente, há outra questão. Como aponta
Onfray, assim, o sujeito pode convencer-se de que o absurdo chega a seu
termo, ainda que, paradoxalmente, ao cometer suicídio, ao contrário de
anular o absurdo da vida, ele “o arma, aumenta sua força e seu poder”, e
também porque “O suicídio é tão absurdo quanto o absurdo que ele arma
negar” (ONFRAY, 2012, p. 272). Com isso, o suicida encerra o absurdo
para si, e apenas para si.
Chegamos à segunda classicação desse personagem: John é o que
confessa. Mas, por que o suicídio é uma conssão? Ora, porque “Matar-se,
de certo modo, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos
superados pela vida ou que não a entendemos” (CAMUS, 1942, p. 20,
tradução nossa). John foi superado pela vida e atesta não ser possível entendê-
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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la. É legítimo assegurar que também foi superado pela “irredutibilidade
desse mundo a um princípio racional e razoável” (CAMUS, 1942, p. 75,
tradução nossa). Desta forma, o astrônomo perde sua lucidez exatamente
quando se exige que o herói absurdo a preserve.
Uma indagação pode surgir: por que John não é, como sua esposa
Claire, um irreconciliado? Porque, se o irreconciliado é o mesmo que,
sem concluir, se interroga sempre”, não é a situação de John. Ele conclui.
E, após sua conclusão, opta pelo suicídio. Mas podemos nos perguntar:
John não é também uma antítese do herói absurdo, como vericamos em
Justine? E a questão é legítima. Ocorre que John não pode ser apontado
como a antítese do herói absurdo porque ele, assim como o herói absurdo,
não quer a morte. Nisso, ambos concordam. Diferente de Justine, que, se
não se suicida, aguarda apática pela colisão do planeta Melancolia com
a Terra, John desejava viver, mas o desejava em um mundo que pudesse
ser racionalmente esquadrinhado, cienticamente deslindado, algo que o
herói absurdo não busca. Sua razão de ser, de viver, era a ciência. Sobre tal
alicerce, John dispunha de satisfatórias razões para permanecer no mundo,
pois este se lhe agurava como familiar. E quando a ciência se mostrou
imprecisa, decidiu pelo m. Invalidar a ciência, que, para John, é o que
justica sua existência, seria análogo a remover, do mundo adorado pelo
herói absurdo, ou seja, Sísifo, o mar e o calor do sol (CAMUS, 1942,
p. 164), que justicam sua vida. Justine, no que lhe concerne, não tinha
nenhuma razão para viver; não adorava a ciência – mesmo que ela pudesse
tudo prever e/ou controlar – e tampouco adorava o mar e o calor do sol.
Em suma, não havia, para Justine, nada que a conectasse à vida, diferente
de John, devido à ciência, ou de Sísifo, com a beleza deste mundo.
Se John detivesse as características do herói, ao contrário de cometer
suicídio, leria a poesia por detrás do espetáculo apocalíptico prestes a
irromper, como o faria o herói absurdo. Na letra de Camus: “A conclusão
última do raciocínio absurdo é, com efeito, a rejeição do suicídio e a
manutenção dessa confrontação desesperada entre a interrogação humana
e o silêncio do mundo” (CAMUS, 1951, p. 18, tradução nossa). Além do
que, ao contrário do herói absurdo, John não esgotou tudo (CAMUS, 1942,
p. 80) nem viveu “em toda intensidade a vida que [lhe] estava reservada
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 123
(BARRETO, 1971, p. 53), como o faz o herói absurdo, que não busca
na ciência a explicação do mundo, já que sabe da sua imperícia. Destarte,
John, que antes brindou à vida, em vez de admirar a “visão espetacular”
(MELANCOLIA, 2011), que ele próprio comunicou ao avistar o planeta
Melancolia, preferiu o suicídio em um estábulo.
À guisA de conclusão
Sustidos nas reexões acima propostas, convém-nos assegurar que
a leitura do lme Melancolia, empreendida sob uma leitura camusiana,
responde à pergunta colocada inicialmente: podemos ver o herói absurdo
encarnado em algum dos personagens? A resposta, como zemos notar, é
negativa. O herói absurdo não nos é apresentado nesse longa-metragem
de Lars von Trier. A razão disso é que nenhum dos três sujeitos discutidos
suporta a tensão procedente do absurdo e, cada um à sua maneira,
responde a ele desfavoravelmente, o que não corresponde ao herói
absurdo, uma vez que este último, perante o fenômeno em questão, não
o rechaça, mas o arma.
É seguro atestar que, se o herói absurdo está ausente, o absurdo,
por sua vez, está presente todo o tempo. Esse elemento gura como um
personagem oculto, como uma fantasmagoria por detrás da trama que
dirige todos esses conitos. É ele que guia conversas e embates.
Após termos nos detido sobre Justine, observamos que ela é a primeira
que pretende anular o divórcio que há entre sua pessoa e o mundo. Esse
esforço é representado na cena em que, nua, ela parece intentar uma fusão
à Terra de modo a buscar invalidar essa separação. Ademais, para levantar
outra hipótese, arriscamos dizer que Justine é também quase uma suicida.
Por isso, vale a reexão: dado seu comportamento, sua concepção da Terra
como má etc., teria ela cometido suicídio caso a aproximação do planeta
Melancolia não representasse o m? É provável. Tudo nos leva a crer que ela
não põe termo à própria vida somente porque sabe que já está condenada.
Talvez seja exatamente por isso que Justine, sendo notoriamente a mais
melancólica, é a única dos três que não se aproxima pragmaticamente do
suicídio. Ela é a que melhor lida com o m, possivelmente por desejá-lo.
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Disso decorre que, longe de retratar o herói absurdo, encarna sua antítese,
porque anseia pelo m daquilo que o primeiro ratica: a vida na Terra, a
despeito de todas as angústias que ela implica. Lars von Trier conrma nossa
hipótese: “Ela [Justine] anseia por naufrágios e morte súbita” (TRIER,
2011, grifo nosso, tradução nossa).
Claire é a personagem que se empenha em neutralizar o divórcio entre
ela e o mundo procurando dar não apenas um, mas dois saltos metafísicos.
Ela anseia, quando busca acalentar a ideia de uma vida após a morte, unir
aquilo que está separado. Isto é, ela e seu universo. Claire não tolera o
desamparo. É a personagem que, sucumbindo à desolação resultante do
sentimento absurdo, também erta com o suicídio, mas, irreconciliada que
é, termina seus dias a indagar-se (CAMUS, 1942, p. 21). Vimos, assim,
que Claire não se assemelha ao herói absurdo devido a duas questões: ela
tenta dar dois saltos metafísicos que o herói absurdo tomaria por suicídio
losóco; e, por não resistir à aição que o absurdo implica, Claire cogita o
suicídio, o que contradiz em essência a conduta do herói absurdo, que ama
a vida, malgrado carência de sentido. Mas, acrescentemos uma terceira:
o sujeito absurdo é aquele que, sem contrapor-se à realidade do absurdo,
nada faz pelo eterno”, pois “prefere sua coragem e sua razão” (CAMUS,
1942, p. 95, tradução nossa), ao contrário de Claire, que prefere o eterno
em detrimento de sua coragem e sua razão.
John, o terceiro personagem, amargando o divórcio entre ele e seu
mundo, esforça-se em aplacá-lo por intermédio da ciência, de conceitos
e previsões. É nisso que o astrônomo se apoia, como numa busca para
suprimir essa divisão insustentável. A ciência era o que lhe dava a sensação
de familiaridade. Mas, quando suas hipóteses se revelaram incorretas,
John confessa que foi superado pela vida, confessa que não a entende,
e decide suicidar-se. Eis as características que mostram John como
alguém profundamente contrastante com o herói absurdo, porque não
anui à “irredutibilidade desse mundo a um princípio racional e razoável”
(CAMUS, 1942, p. 75, tradução nossa), o que o herói absurdo assimila
como uma tensão necessária; e, por isso, opta pelo suicídio, o que demonstra
sua predileção ao nada a um mundo indiferente aos seus esforços racionais
e cientícos.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Antes de concluir, é válido pontuar brevemente a existência de
um quarto personagem: o pequeno Leo, lho de John e Claire. Não nos
detivemos sobre a presença do menino porque sua atuação não demonstra
qualquer inquietação no que tange à aproximação de Melancolia.
Sabemos que Leo está invadido por uma mentalidade lúdica com relação
à existência – isso é manifesto, para darmos um exemplo, quando ele, ao
lado de sua tia Justine, carinhosamente apelidada “Steelbreaker”, constrói
uma caverna “mágica” com galhos de árvores com a nalidade de protegê-
los de Melancolia. O absurdo, para ele, não é uma realidade, haja vista a
inconsciência momentânea de sua frágil condição. Por esse motivo, nos
arriscamos a dizer que, para Leo, não há absurdo. E isso difere cabalmente
de seus próximos, que, ao meditarem sobre o m, foram atingidos por um
tormento – “começar a pensar é começar a ser sabotado” (CAMUS, 1942,
p. 19). Vimos, dessa maneira, no que esse tormento culminou para todos
os que pensaram de forma mais complexa.
Diferentemente do herói absurdo, em nenhuma oportunidade
vemos nenhum desses três personagens serem mais fortes que a rocha
(CAMUS, 1942, p. 165). Partindo de uma analogia direta ao escrito
de Camus, Justine é a que prefere car na planície e deixar que a rocha
naturalmente a esmague; Claire é a que só aceitaria empurrar a rocha até
o cume na hipótese de que lá houvesse um paraíso suprassensível; e John,
por seu turno, é aquele que faz questão de soltar a rocha e posicionar-se
embaixo dela a m de trucidar a si mesmo.
Nota-se, por m, que, além de contemplar o absurdo, presença
constante no lme, os três são, sobretudo, vítimas dele. Extremamente
diferentes do Sísifo, nenhum acolhe a existência ou transforma em regra
de vida aquilo que antes era convite para a morte (CAMUS, 1942, p. 90).
Se, no comentário de Barreto, “Desde o momento em que [Sísifo] constata
o absurdo da vida pode começar a ser feliz” (1971, p. 65), em Melancolia
vemos o contrário. Ninguém ali é superior à sua pena ou acredita que
A própria luta para chegar ao cume é suciente para encher o coração
homem” (CAMUS, 1942, p. 168, tradução nossa). Eles queriam demais.
Queriam mais do que a irredutibilidade do mundo nos convida a apreciar.
Logo, é impossível imaginá-los felizes.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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referênciAs
ARIELO, Flávia. O Mal em Anticristo de Lars von Trier: considerações sobre o mal, a
teodiceia e o gnosticismo. 2013. 143 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2013.
BARRETO, Vicente. Camus: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1971.
CAMUS, Albert. Le Mythe de Sisyphe: essai sur l’absurde. Paris: Gallimard, 1942.
CAMUS, Albert. L’homme revolté. Paris: Gallimard, 1951.
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128 |
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A ()  : 
    
Gabriel DEBATIN
1
No interior das discussões sobre arte em geral, o cinema ocupa
um lugar privilegiado. Talvez nunca, em toda a história da humanidade,
um gênero de manifestação artística tenha se tornado tão popular e,
certamente em função disso, tão versada da parte da crítica – não só a
dita especializada, mas de toda a sua audiência, daqueles que de diferentes
formas se ocupam do e com o cinema. Tal popularização da recepção do
cinema é inegavelmente muito complexa em suas razões, e as diferentes
correntes de pensamento poderiam atribuir a ela as mais diferentes causas
e razões. A indústria cultural adorniana, por exemplo, parece fornecer
explicações bastante razoáveis, sobretudo do ponto de vista sociológico e
econômico, às razões de ser que trouxeram o cinema ao quotidiano da
humanidade. Mas esse âmbito de abordagens não nos direciona ao cerne
da relação do cinema com a nossa época, porque o fundamento da arte
cinematográca, assim como o das outras artes, não se encontra facilmente
em suas causas materiais, pelo que para orientar-se adequadamente à
Doutorando em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil.
E-mail: gabrieldebatin@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p129-156
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
130 |
questão é preciso situar-se para além até mesmo de suas causas formais: é
preciso perguntar-se pela sua essência. A pergunta pela essência do cinema,
se quiser nos responder sobre sua relação com nosso momento histórico,
deve ser guiada simplesmente pelo fenômeno do cinema, ou seja, pelo
modo como o cinema se manifesta como tal, suspendendo-se tudo aquilo
que lhe é externo, ou mais formalmente, aquilo que não se dá por si só, não
sendo próprio ao seu modo de acontecer.
Mover-nos-emos, então, pelo ambiente fenomenológico, inquerindo,
através de como o cinema é, pelo “é” do cinema. A fenomenologia, como
método losóco de investigação, sempre entende o fenômeno sobre
o qual cada investigação se debruça como um evento de mostração de
sentido, como uma manifestação ontológica de onde provém qualquer
possibilidade de entendimento, compreensão e interpretação. Aqui nos
ateremos a uma abordagem fenomenológica do cinema, que procurará
perguntar-se pelo fenômeno que o cinema constitui, e, portanto, do
sentido que dele mesmo emana, abstraindo pré-julgamentos ou concepções
que já tenhamos desenvolvido sobre ele. Poder-se-ia, é claro, perguntar-se
fenomenológico-hermeneuticamente pelo sentido mostrado por um lme
em especial. Mas o cinema, como gênero artístico integral – por mais que
seja internamente fragmentário – é ele mesmo um fenômeno, um evento
que veio a ser em nossa época – entendida aqui em sentido amplo, desde
a inauguração da Pós-Modernidade (assumindo a divisão historiográca
como aquela fornecida por Gianni Vattimo, Richard Rorty ou Lyotard),
até os tempos hodiernos, cada vez mais fragmentados, incertos, sem
fundamentos em todos os âmbitos da experiência humana, quer individual,
quer social.
E o que sabemos do cinema de antemão, antes de qualquer formulação
mais complexa? Sabemos, e disso não temos a menor pretensão de duvidar,
que o cinema é uma arte. E também sabemos que só pôde ter lugar devido
ao desenvolvimento técnico da humanidade, que pôde gerar as condições
tecnológicas para reproduzir movimento. Originalmente é daí que lhe vem
o nome: κίνημα é o termo grego para “movimento”. Foi tornado possível
inicialmente pela invenção do cinematógrafo, literalmente um “gravador
de movimento”, que fornece material para a montagem – pondo de modo
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 131
muito simples, aquele processo em que as imagens em movimento (e, por
derivação, também em repouso) são organizadas, concatenadas, editadas,
formando um lme.
Assim, de saída iniciamos a discussão que aqui se apresenta
considerando este fato: de que o cinema é (uma) arte própria da Pós-
Modernidade, o que equivale a chamar de Contemporaneidade, a nossa
época, que é assinalada por um crescente domínio da técnica. Para além do
fato de o cinema ter sido tornado materialmente possível com o advento
da Idade Contemporânea e seu “progresso tecnológico”, é sobremaneira
importante sua anidade à nossa época, por articular-se visceralmente
com nosso momento histórico, manifestando e tornando evidente o
próprio modo como a humanidade acontece: desde os maiores dilemas
da humanidade e das suas organizações sociais às questões existenciais
mais íntimas e fundamentais, mas também ao outro polo, àquilo que é
supéruo, frívolo, duvidoso e enganoso (como a própria Pós-Modernidade
é em muitos aspectos): as questões que “fazem sentido” para nossa época,
assinalada justamente pela falta de univocidade e pelo suspense das certezas,
sempre se encontram narradas, das mais diferentes formas, perspectivas e
abordagens, nos lmes. Quer nos dramas, nas tragédias e nas comédias, nas
cções hollywoodianas e nas obras cult, o cinema põe o sentido em questão:
uma primeira demonstração disso está no fato de que um lme, qualquer
lme, é sempre um todo de sentido, ainda que incompleto, suspenso ou
oculto; até mesmo o cinema nonsense dialeticamente se enquadra aí.
Se o cinema corresponde tão bem às questões de nossa época, também
corresponderá à questão mais importante de nosso tempo: a questão da
técnica – e com ela, também a da arte.
Estabelecidos esses termos preliminares da discussão que aqui se
presenta, o referencial teórico que naturalmente se conduz neste ambiente
via fenomenologia é o heideggeriano. Arte e técnica foram questões cruciais
para Heidegger ao longo da maior parte, quiçá totalidade, de sua produção
losóca. Ateve-se longamente tanto à questão da técnica como modo-
de-ser da Contemporaneidade quanto sobre a arte manifestada através das
mais variadas modalidades artísticas – contudo, sempre dando preferência
para as clássicas, deixando muito evidente sua predileção pela poesia.
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Todavia, o cinema como tal sempre foi evitado por Heidegger, que não
se ateve à sua natureza e às suas particularidades – com efeito, Heidegger
nunca escreveu propriamente sobre cinema. Nós nos deteremos, então, não
apenas numa revisitação de conceitos próprios da losoa heideggeriana,
mas nos direcionaremos ao seu limite, na tentativa de explorar pontos que
ela não alcançou.
Por conta disso, o presente texto não servirá ao leitor como revisão
de literatura sobre o tema, salvo introduções necessárias aos conceitos
pertinentes à questão da técnica e da arte em Heidegger. Portanto, o
fenômeno em questão aqui, o cinema, não será tratado com relevante
respaldo bibliográco, mas se procurará pensá-lo de modo mais
independente e provisório – daí a natureza mais ensaística do presente
texto.
Entretanto, em vistas de que o presente ensaio possua um todo de
sentido, não poderíamos pular etapas e prosseguir sem tornar claras, no
interior da corrente de pensamento em que nos movemos, as duas linhas
em cuja intersecção se encontra o cinema, a arte e a técnica. Procederemos
então a uma brevíssima, porém necessária à unidade textual, introdução dos
temas no horizonte do pensamento heideggeriano para, então, podermos
nos encontrar em algumas lacunas (intencionais?) que Heidegger deixou
a respeito do cinema em seu entrave entre arte e técnica. No entanto, na
tarefa que nos compete no presente trabalho, dado seus muitos limites,
inclusive de dimensões, não é possível desdobrar como se gostaria as muitas
reexões losócas sobre o cinema que são aqui evocadas. Consciente de
sua condição, o presente texto pretende apenas dar um primeiro passo em
direção à questão do cinema.
heidegger e A técnicA
Na conferência A questão da técnica, proferida em 1953, mas publicada
em 1959, Heidegger investiga a essência da técnica moderna, vendo nela o
modo-de-ser que perfaz o período contemporâneo. O que mais importa no
tocante aos objetivos do presente ensaio consiste precisamente nisso: que a
técnica é o modo como o ser mesmo, ontologicamente, se dá na época atual.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 133
Todos os âmbitos da experiência humana, portanto, são, em diferentes
níveis, técnicos, afetados pela técnica. Poderíamos, então, no sentido que
aqui se vai aprofundar, dizer que o modo de ser da contemporaneidade é
técnico. Todavia, a técnica não se deixa entender apenas em seus efeitos
práticos imediatamente sensíveis sob a forma do progresso cientíco
e tecnológico, em sua instrumentalidade. Experimentada por todos
hodiernamente em seus resultados tecnológicos, os quais servem o ser
humano nas mais variadas funções, processos e produções, a técnica não
pode, é claro, deixar de ser qualicada em sua representação instrumental,
a tecnologia (HEIDEGGER, 2007, p. 376-377).
A técnica, entendida como instrumento, nomeadamente a tecnologia,
não pode ser rejeitada como uma adequada expressão da técnica, mas isso
ainda não corresponde necessariamente à determinação mais própria,
verdadeira, de sua essência. Enquanto “meio para atingir ns”, a técnica
moderna se rma legitimamente na instrumentalidade, quer sejam metas
concernentes à própria evolução progressiva da técnica, quer ao seu uso
por parte do ser humano. Porém, essa objetividade solipsista impede
que a essência da técnica venha a lume. Com efeito, o importante para
a losoa de Heidegger não é traçar uma investigação objetiva sobre a
técnica – processo já em si técnico, enquanto metasicamente voltado à
objetividade –, senão procurar o modo de abertura do ser no mundo da
técnica moderna. Logo, arma que “a essência da técnica também não é
de modo algum algo técnico” (HEIDEGGER, 2007, p. 376, grifo nosso;
KROKER, 2004, p. 45).
Heidegger procura, então, retornar às origens da técnica, pensando
sua essência em contraste à antiga técnica dos gregos. Etimologicamente, o
termo “técnica” advém do grego τεχνικός, do qual deriva o vocábulo τέχνη,
possuindo originalmente o sentido de arte, habilidade, destreza (LIDDEL;
SCOTT, 1869, p. 1624). Contudo, de acordo com a lologia heideggeriana,
possui o mesmo signicado de ἐπιστήμη, que signica o conhecer sob o
sentido de zelar por algo, compreendendo-o. Τέχνη, então, traduz-se no
conhecer da coisa, mais especicamente no aspecto de como produzi-la,
e assim relativo à ποίησις – produção. Contudo, τέχνη não é produção,
mas sim um saber acerca da produção, de como produzir. Τέχνη, adverte
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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134 |
Heidegger, também não é um termo utilizado somente para o saber e o
fazer manual, próprio do artesão, mas também compete às artes superiores
e belas artes. No ato do conhecer-produzir se dá uma explicação das causas
do ente, e, enquanto tal, o ato é também um desabrigar – Entbergen –, um
des-cobrir, um trazer ao mundo. A τέχνη é, por conseguinte, originalmente
um ἀληθεύειν – desvelar, um modo de salvaguardar a verdade. Aquele
que está prestes a efetuar um ato técnico no sentido grego, desvelará à sua
frente algo que não se produz sozinho, porém capaz de vir a aparecer e ser
notado, manifestar-se. A matéria do ente a ser iminentemente produzido
é des-coberta em direção à coisa acabada e determinada, especicação
que cabe para a técnica manual dos gregos, mas não propriamente para a
moderna técnica das máquinas (HEIDEGGER, 2007, p. 380).
Se a essência da técnica moderna não se desvela em sua produção
– e, logo, também a pergunta pela essência do cinema não se resolve no
uso maquinal do cinematógrafo ou de quaisquer tecnologias posteriores
que tenham o mesmo m –, precisa habitar uma região distinta e mais
distante em relação àquela alcançável através de um simples olhar
supercial sobre sua questão. O caminho para atingir a compreensão de
sua essência depende, portanto, de sua consideração sob o ponto de vista
de sua pertença à tradição. Dessarte, sendo plenamente consonante com o
modus operandi da metafísica – especialmente pelo culminar do processo
de esquecimento do ser –, a técnica moderna deve ser concebida em sua
relação direta e singular com o ente e, por decorrência, com seu impacto
na omnitude ôntica. Segundo Heidegger (2007, p. 381),
O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se
desdobra em um levar à frente no sentido da ποίησις. O desabrigar
imperante na técnica moderna é um desaar (Herausfordern) que
estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível
de ser extraída e armazenada enquanto tal. Mas o mesmo não vale
para os antigos moinhos de vento? Não. Suas hélices que giram, na
verdade, pelo vento, permanecem imediatamente familiarizadas ao
seu soprar. O moinho de vento, entretanto, não retira a energia da
corrente de ar para armazená-la.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 135
A técnica se rma sobretudo como um desaarHerausfordern,
também traduzível por provocação – da natureza. O ponto auge do
conceito de técnica em Heidegger é precisamente sua provocação violenta
à natureza, entendida enquanto totalidade do ente. A provocação técnica
constitui, para ele, uma exigência dominadora e exploradora da natureza
através dos seus meios de desabrigar. Porém, se a essência da técnica não é
algo técnico, o impacto de sua provocação realizada na natureza também
não o é. A natureza, enquanto φύσις, aquela que vem à tona como uma
vigência auto-instauradora de tudo o que existe, a totalidade do ente,
aquela que cresce-e-vige-a-partir-de-si-mesma (HEIDEGGER, 2006a, p.
32), passa a ser essencialmente modicada. Em vista de sua utilidade, a
natureza é posta a serviço de sua exploração como fonte de energia, não
tendo mais a autonomia de crescer-e-viger-a-partir-de-si-mesma. Sua
própria subsistência é controlada e condicionada, dependente da vontade
expressa na e através da técnica.
Talvez a mais importante característica da técnica, conforme sua
conceituação por Heidegger, resida no fato de que o homem da era da
técnica se relaciona com a natureza “como um depósito caseiro de reservas
de energia” (HEIDEGGER, 2007, p. 386), a qual ilimitadamente é
explorada, desde sua amplidão macrocósmica até a ínma partição
subatômica. A natureza, dessa forma requisitada como fundo de energia,
é posta a serviço da técnica. Conforme o modo-de-ser da antiga técnica
manual, o camponês arava o solo, semeava a semente e cultivava seu
alimento; mas agora o campo agrícola é posto como uma indústria de
alimentação motorizada. A técnica põestellt – a natureza para si, um pôr
que sempre tende para um extrair e um explorar.
O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no
sentido do desao [Herausfordern, provocação]. Este acontece pelo
fato de a energia oculta na natureza ser explorada, do explorado ser
transformado, do transformado ser armazenado, do armazenado
ser novamente distribuído, e do distribuído renovadamente ser
comutado. Explorar, transformar, armazenar e distribuir são modos
de desabrigar (HEIDEGGER, 2007, p. 382).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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136 |
A natureza posta como fonte de energia permanentemente disponível
é des-coberta pela exploração técnica daí decorrente. Uma vez tendo-se
mostrado como possuidora de energia em si contida, disponível à provocação
da técnica para ser explorada, a natureza não se torna absolutamente vazia,
sem energia, e por isso nunca é abandonada pela vontade da técnica. Ela
é tomada como um fundo de reserva ilimitado, o qual após ter fornecido
energia se recupera e se recoloca no papel de fornecedor. O modo-de-ser da
essência da técnica, dessa forma compreendido, é totalmente am à ideia de
reciclagem, tão defendida nos círculos de debates de pensamento ecológico
(CASANOVA, 2006, p. 155). A questão heideggeriana, entretanto, não
atribui à técnica uma correspondência à reciclagem somente no que
compete à reutilização de bens de consumo, mas à natureza integral, à
totalidade do ente continuamente abusada. Assim, o distribuído passa a ser
renovadamente comutado, não se encerrando em um processo único e nito,
pois aquilo que já foi explorado é novamente requisitado, renovando-se a
cada vez o processo de exploração da natureza. A demanda provocativa
da técnica tenta incessantemente saciar-se, seja qual for sua necessidade
material – alimento (vegetal e animal), bens de consumo para a sociedade,
combustível (energia propriamente dita), material bélico, e inclusive o ser
humano consta na lista.
Se a natureza, como totalidade do ente, tem sua essência alterada pela
demanda provocativa da técnica, também o ser humano, como partícipe
da totalidade – embora sendo o ente sui generis que compreende ser – passa
a ser modicado. Fato é que o império da técnica não conhece limites,
nem os antropológicos, nem os cosmológicos – seja a nível planetário
ou subatômico. A requisição da técnica, assim, atinge o ser humano,
arrastando-o para longe de sua essência, desumanizando-o.
Dentre as causas da crise do humanismo instaurada há décadas, talvez
séculos, na cultura contemporânea, o lósofo italiano Gianni Vattimo assinala
– aqui em boa consonância com o conceito heideggeriano – a técnica como
uma das principais e mais profundas, sobretudo por mostrar o enraizamento
da crise em suas bases ontológicas, como pregurado por Heidegger.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 137
Ora, è proprio in connessione con la tecnica che, per lo più, si
parla oggi di crisi dell’umanismo. La tecnica appare come la causa
di un generale processo di disumanizzazione, che comprende
sia l’oscurarsi degli ideali umanistici di cultura a favore di
una formazione dell’uomo centrata sulle scienze e sulle abilità
produttive razionalmente dirette, sia, sul piano dell’organizzazione
sociale e politica (VATTIMO, 1998, p. 41-42).
2
Nesse contexto da técnica desumanizante, é sobremaneira ressaltado
por Vattimo o conceito heideggeriano de Ge-stellim-posição.
3
A técnica
moderna, em seus efeitos ontológicos sobre a totalidade do ente, põe a
natureza em vista de sua utilidade de exploração. O pôr evidencia o gesto
técnico de requisição da natureza: a totalidade do ente é tão requisitada
como fundo de reserva que se presenta como posta, colocada, para a
requisição. A denição de Ge-stell é clara em Heidegger: “signica a
reunião daquele pôr que o homem põe, isto é, desaa [provoca] para
desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência
[Bestand, fundo de reserva]” (HEIDEGGER, 2007, p. 282, colchetes
nossos). A totalidade do ente, a natureza im-posta como fundo de reserva,
Ora, é propriamente em conexão com a técnica que, no mais das vezes, fala-se hoje de crise do humanismo.
A técnica aparece como a causa de um processo geral de desumanização, que compreende seja o obscurecer-se
dos ideais humanísticos da cultura a favor de uma formação do homem centrada nas ciências e nas habilidades
produtivas racionalmente diretas, seja no plano da organização social e política (Tradução nossa).
O termo Ge-stell deriva do verbo germânico stellen, que signica pôr, colocar. Assim, a tradução literal de
Ge-stell é consonante com “aquilo que foi posto”, embora o uso gramatical da estrutura verbal que Heidegger
procura enfatizar com o seu uso é o caráter pretérito da colocação técnica. A tradução de Ge-stell para as línguas
latinas é, contudo, bastante controversa e não encontra um porto comum. A tradução de Marco Aurélio Werle
de A questão da técnica, utilizada neste ensaio, prefere o termo armação, assim como também o faz Marco
Antônio Casanova e Zeljko Loparic (Cf. HEIDEGGER, 2007, passim; Cf. também CASANOVA, 2006, p.
156-157; LOPARIC, 1996, passim). Ernildo Stein se decide por seguir a corrente de tradução francesa, a qual
opta pelo termo arraisonnement – arrazoamento (Cf. HEIDEGGER, 2006b, p. 47, nota de rodapé; Cf também
TROTIGNON, 1965, p. 103). Manuel de Castro e Idalina Azevedo, na tradução de A origem da obra de arte,
bem como os tradutores dos Ensaios e Conferências, preferem se valer da alternativa do termo com-posição (Cf.
HEIDEGGER, 2010, p. 163; HEIDEGGER, 2012a, p. 23). Há ainda aqueles que, como André Duarte,
preferem a utilização do termo dispositivo para traduzir Ge-stell, dado que o termo, assim como composição,
conserva em sua estrutura o pôr, consonante ao stellen original (Cf. DUARTE, 2010, p. 142-143, nota de rodapé
n. 38). Todavia, preferimos nos valer aqui da opção de Vattimo para a tradução de Ge-stell, a saber, im-posizione
– im-posição –, dado que, além de o termo deixar explícito o caráter de pôr do conceito, distingue-se com um
sentido de violência em relação a termos como armação, arrazoamento, com-posição e dispositivo, que parecem
ser mais análogos à constituição da montagem cinematográca, como será tratado adiante.. Im-posição, por
outro lado, em toda a sua carga semântica, é plenamente consonante com a denição heideggeriana do termo,
enfatizando o caráter de requisição da Terra e o seu impelir por parte da técnica, tornando ainda explícito o ato
de pôr a natureza, subjugando-a à sua vontade (HEIDEGGER, 2007, p. 385). (Cf. VATTIMO, 1998, p. 179).
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138 |
é des-coberta pela provocação técnica de modo que apenas enquanto
inserida nessa relação se mostra a totalidade do ente no período pós-
moderno, caracterizando-o como era da técnica. Por mais que se procure
rejeitá-la juntamente com suas consequências, não há como escapar de
seu império histórico-destinalmente constituído, ao qual a humanidade,
por causa dele em crise, pertence.
Essa imposição exploradora acontece também e propriamente no
ser humano, pelo que este se encontra no âmago essencial da Ge-stell, na
dualidade de se instituir ao mesmo tempo como seu agente explorador
e alvo de exploração. A gura humana passa a ser um meio de expressão
da im-posição técnica, de forma que seu destino na era do ápice da
metafísica é assumir seu papel de requisitor-provocador da natureza
como fundo de reserva (CASANOVA, 2006, p. 157; HEIDEGGER,
2007, p. 387). Enquanto parte integrante da natureza, um ente em meio
à totalidade, também o ser humano é explorado tecnicamente, inclusive
quando considerado no âmbito da ciência anatômico-biológica, em
suas projeções sociais, culturais, políticas e antropológicas: são campos
em que o ser humano é posto como objeto de “estudo”, não como um
fenômeno a ser reetido, meditado, pensado (conforme o sentido do
termo no vocabulário heideggeriano), mas como fonte de informação,
como algo a ser classicado, rotulado, categorizado – tudo aquilo que
é necessário para o exercício do domínio. As ramicações do existir na
era da técnica procuram pôr o homem não como objeto de compreensão,
mas como fundo de reserva a ser explorado, tanto de conhecimento a ser
extraído, quanto de energia a ser empregada. Deve-se citar nesse contexto
o ser humano tal como pensado por Ernest Jünger, sob o modo-de-ser
da gura do trabalhador, que converte vida em energia, modo como a
técnica usa o ser humano para seus interesses – os quais, em Jünger,
culminam numa mobilização total da sociedade em vistas de sua própria
destruição através da guerra (JÜNGER, 1990, 2002).
A determinação metafísica do homem como sujeito em relação
ao ente compreendido na qualidade de objeto é ultrapassada em sua
culminância técnica. Não em uma ultrapassagem do tipo que passa a lhe
conferir uma determinação essencialmente diferente, mas como o atingir
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o ápice de sua própria essência, com o sentido de desenvolvimento
tão caro à própria técnica. O ente, não mais objeto da percepção e da
consideração do sujeito, é fundo de reserva para a requisição de energia.
Igualmente do ponto de vista da subjetividade a relação é ultrapassada: o
ser humano, antigo sujeito parcialmente senhor do ente, agora é requisitor,
imagem que consuma seu domínio total. Sujeito e objeto se convertem em
requisitor e fundo de reserva, aprofundando o sentido histórico-destinal
de dominação do ente.
Essa interação que a técnica exerce com a essência do humano é,
prima facie, nitidamente negativa do ponto de vista heideggeriano. Se a
técnica corrompe o dar-se original do humano e da natureza, não mais
deixando-os viger e crescer a partir de si mesmos, ocultando maximamente
o ser em seu esquecimento do ente, é certo, para Heidegger, que ela precisa
ser superada.
4
De acordo com o lósofo, o ser humano, requisitor do fundo
de reserva que é a natureza, também é conduzido para o caminho do
requisitado, sendo um dentre os entes que a compõe, provocado pela
estrutura im-positiva da técnica. “A essência da técnica moderna conduz o
homem para o caminho daquele desabrigar por onde o real, em todos os
lugares mais ou menos captável, torna-se subsistência [fundo de reserva]”
(HEIDEGGER, 2007, p. 388, colchetes nossos). A determinação essencial
da técnica moderna reside, sobretudo, pela “condução do homem a um
caminho”; no caminho, o ente vige como fundo de reserva dominado pela
requisição da Ge-stell. Mas enquanto “condução do homem”, não compete
ao ente a determinação, o qual vem apenas e de antemão determinado.
“Conduzir o homem a um caminho” depende do destino historial do
ser, o determinante originário de todo desvelamento. “Conduzir por um
4
O segundo Heidegger verá nele [no esquecimento do ser –Seinsvergessenheit”], sobretudo, a consequência
do destino da metafísica ocidental: ao submeter o ser à perspectiva da racionalidade (“nada é sem razão”), a
metafísica teria apagado o mistério original do ser, seu surgimento gratuito, sem um porquê. Essa metafísica da
racionalidade encontraria sua realização na essência da técnica: nela, o ser não passaria de um dado disponível
e compatibilizável. Heidegger está à espreita de outra compreensão do ser, menos imperial, menos regida pelo
princípio de razão”. Seu pensamento visa, dessa maneira, preparar um novo começo e a ‘superar’ assim o
pensamento metafísico, que tende a sujeitar o ser à perspectiva do homem ao exigir que ele preste contas. Essa
hermenêutica prolonga a visada de SZ [Sein und Zeit Ser e Tempo] no sentido de que seu propósito é destacar
os pressupostos da concepção metafísica do ser, em nome de outro pensamento, mais original, mais atento ao
surgimento do ser” (GRONDIN, 2012, p. 52, colchetes nossos).
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Gabriel Debatin (Org.)
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caminho signica em nossa língua: enviar [schicken]. Denominamos aquele
enviar que recolhe e que primeiramente leva o homem para o caminho
do desabrigar como sendo o destino [Geschick]” (HEIDEGGER, 2007, p.
388, grifo do autor, colchetes nossos).
Assim sendo, parece legítimo armar que, conforme Heidegger,
a técnica e sua Ge-stell são caracterizadas como parte do destino do ser,
da história – Geschichte. O velamento do ser característico da tradição
é, no entanto, condição para um possível posterior desvelamento, para
o acontecimento de ἀλήθεια. Como parte do destino historial do ser,
especicamente situada ao nal e auge da metafísica, a Ge-stell técnica
completa o velamento do ser pela tradição, e assim prepara caminho
para sua superação, para o desvelamento que só pode ocorrer onde
há um velamento originário. Do oculto pela técnica clama o apelo
originário do ser.
heidegger e A Arte
Em uma clara contraposição ao domínio que a técnica exerce
sobre a natureza, a arte se apresenta como um âmbito de salvaguarda
não só da natureza, mas também do ser e do seu sentido. No que
compete à concepção heideggeriana de arte, o texto fundamental para
o desenvolvimento da referida tese é A origem da obra de arte, de 1936,
que aborda fenomenologicamente a questão losóca da arte, a partir de
um propósito nitidamente crítico à tradição metafísica que a precede. É
notório ao longo de todo o texto o debate de Heidegger com a tradição
estética, sobretudo com os idealistas alemães, mais especicamente com
Hegel e Schelling; assume, contudo, uma postura não tanto heterodoxa no
tocante a Hölderlin, que completa o trio losóco ao entorno do qual se
situam as raízes do idealismo alemão, compreendendo seu surgimento com
a publicação d’O mais antigo programa do idealismo alemão, de 1796, cuja
(in) certeza sobre a autoria utua sobre os três modernos ora mencionados.
Embora em discussão direta com determinadas losoas precedentes,
Heidegger estabelece um novo âmbito para a consideração do artístico,
dotando sua abordagem com critérios fenomenológicos, revestidos, em
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 141
última instância, por elementos especícos de sua ontologia. Em vista
de elaborar seu pensamento sobre a arte, partimos de uma das maiores
máximas do texto, na qual Heidegger arma que: “a arte é um pôr-em-
obra da verdade do ser”. “Mas até agora arte tinha a ver com o belo e beleza
e não com a verdade” (HEIDEGGER, 2010, p. 87). O enfoque dado pelo
lósofo é por decerto diferente daquele conferido pela tradição metafísica
através da estética, alterando o âmbito de consideração do artístico do
belo para a verdade. Tal mudança de domínio conceitual se poderia aqui,
não obstante, chamar de destruição da estética, na esteira da destruição da
ontologia operada desde Ser e Tempo, de 1927. Ademais, não se trata de
realizar uma análise sobre como aquele que presencia o evento da obra de
arte frui esteticamente de sua beleza, objeto da tradição estética moderna,
tanto porque, dentre os vários motivos da recusa desta empresa, estaria
como plano de fundo necessariamente uma relação entre o sujeito que frui
da beleza da obra e a própria obra, como objeto da fruição, e, como sabido,
toda a produção losóca de cunho fenomenológico pretende manter-se
distante do binômio metodológico-conceitual sujeito-objeto. Com efeito,
a verdade que é posta-em-obra na arte não se dá no plano da evidência
acessada pelo sujeito através de uma estabilidade objetiva do ente, noção
em si caracteristicamente metafísica, nem mesmo de um ponto de vista
metasicamente mais explícito – e clássico –, como adequação do intelecto
à coisa, ὀμοίωσις – concordância – em sua origem platônico-aristotélica,
convertida na adequatio da tradição medieval. Assim, numa assertiva
marcadamente fenomenológica, disserta Heidegger (2010, p. 207):
A verdade é o desvelamento do ente enquanto ente. A verdade é a
verdade do ser. A beleza não aparece junto desta verdade. Quando
a verdade se põe na obra, ela aparece. O aparecer é – como este ser
da verdade na obra e como obra – a beleza. Assim, o belo pertence
ao acontecer-se apropriante da verdade.
Nota-se, aqui, que para Heidegger o momento do dar-se da verdade
que ocorre na obra de arte se posiciona anteriormente ao dar-se de sua
beleza, de forma mais originária, devendo constituir, portanto, a esfera
primeira de consideração da obra. Tanto porque não é no belo que a arte
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142 |
encontra sua essência, mas no acontecimento apropriante – o Ereignis,
mais desenvolvido em outros lugares do corpus heideggeriano – da verdade
que se dá na abertura do ente, do qual a beleza certamente participa,
porém não como essência original e originante da obra. A beleza, sustenta
Heidegger, é o produto das belas-artes e pertence ao domínio da estética,
metasicamente constituído – e, portanto, tecnicamente caracterizado. Já
o acontecimento da verdade é muito mais original que o do belo, porque
é o próprio desvelamento do ente que a obra de arte essencialmente opera
(HEIDEGGER, 2010, p. 87-89; DUARTE, 2008, p. 25-26).
É de importante consideração ressaltar aqui a diferença que se
delimita no foco do conceito de verdade em A origem da obra de arte em
relação a Ser e Tempo, em que o encontro com os entes se tornava possível
devido à abertura constituinte do Dasein, do ser-aí. Em contrapartida, no
texto de 1936 a verdade da obra de arte passa a ser considerada a partir
de outro ente peculiar, nem Dasein, nem um ente que habita o plano dos
utensílios, pré-determinados pelas formas comportamentais do Dasein. A
verdade como desdobramento das possibilidades de ser do Dasein abre
espaço para o pôr-se em obra da verdade, como acontecimento de verdade
(DUQUE-ESTRADA, 1999, p. 74; HEIDEGGER, 2012b, p. 611)
.
Tamanho é o deslocamento da noção de verdade operada em A
origem da obra de arte em relação a Ser e Tempo que a obra de arte, em seu
pôr-em-obra da verdade, abre de modo inaugural o ser do ente, revela-o –
não o Dasein. Em oposição à estética, o sujeito aqui é desconsiderado, e, em
conformidade com o método fenomenológico, atenta-se ao acontecimento
da obra de arte tal e qual ele se mostra, à medida que se mostra. Trata-se
de um dos aspectos ontológicos da obra de arte que Heidegger expressa
ao tomar como exemplo um quadro de Vincent van Gogh, no qual se
encontra retratado um utensílio costumeiro, um par de sapatos de
camponesa, dentre tantos outros sapatos pintados por van Gogh. Sabe-se,
conforme Ser e Tempo, que o instrumento é em seu uso, cujo modo-de-ser
é sua manuseabilidadeZuhandenheit –, conceito que sem esforços serviria
para suportar o modo-de-ser próprio do par de sapatos. Mas o quadro de
van Gogh dá à experiência algo distinto de um utensílio compreendido
em seu uso, porque o par de sapatos pintado não está disponível para o
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 143
uso, Zuhandenheit, nem está propriamente presente, subsistindo dentre os
demais entes, Vorhandenheit: “o ser-utensílio do utensílio vem muito mais
para o seu aparecer somente e através da obra e na obra” (HEIDEGGER,
2010, p. 87). O ser-sapato do sapato é revelado pela obra, não pela sua
manuseabilidade ou presença de fato. Ao modo de ser próprio do utensílio
retratado/desvelado na obra de arte, Heidegger chama de conabilidade
Verläßlichkeit. A conabilidade é muito mais original do que o utensílio
considerando em sua serventia ou simples subsistência, porque é apenas
em razão de sua conabilidade que a serventia do utensílio encontra
sentido, dispondo-se à camponesa em sua pré-compreensão, conando-se a
ela (HEIDEGGER, 2010, p. 87).
A conabilidade expressa pelo par de sapatos do quadro de van
Gogh tem muito mais a dizer sobre a camponesa – que não está retratada
na pintura – do que propriamente sobre o par de sapatos. A entrega da
camponesa ao seu labor, efetuado com o auxílio dos sapatos, e sua serena
segurança ante a ordem do MundoWelt – e da providência da Terra
Erde – expressa o que Heidegger chama de conabilidade. O que acontece
no quadro de van Gogh é o desvelar de um utensílio através do qual a
camponesa se a à Terra e se mantém segura em seu Mundo (COSTA, 2016,
p. 201). “A partir deste pertencer que abriga, o próprio utensílio surge para
seu repousar-em-si” (HEIDEGGER, 2010, p. 81). A conabilidade indica
precisamente o elo de sentido indissolúvel e intimamente ligados entre
Mundo e Terra.
Em virtude desta [conabilidade] e através deste utensílio a
camponesa é admitida no apelo silencioso da Terra. Em virtude da
conabilidade do utensílio está certa do seu mundo. Para ela e para
os que estão com ela e são à sua maneira, Mundo e Terra somente
estão aí dessa maneira: no utensílio (HEIDEGGER, 2010, p. 83).
A noção de Terra é ausente em Ser e Tempo, aproximando-se apenas
do conceito de natureza, embora não seja exatamente a mesma ideia
expressa através de cada um dos termos (HEIDEGGER, 2012b, p. 203).
Por Terra, Heidegger não pretende indicar o planeta em que estamos
situados, nem um simples aglomerado de matéria, mas aquilo capaz de
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abrigar o que, enquanto tal, revela-se. Dessarte, a Terra vige como aquela
que abriga o desabrochar do ente enquanto ente. Assim que “o vento
áspero”, “a umidade e a fartura do solo”, “a noite que vem caindo”, “o
grão amadurecente” e “o ermo terreno não-cultivado do solo invernal” são
reunidos por Heidegger em sua análise fenomenológica do quadro de van
Gogh sob o “apelo silencioso da Terra”, onde os sapatos da camponesa
vigoram enquanto sapatos (HEIDEGGER, 2010, p. 81).
O conceito heideggeriano de Terra é fortemente assinalado por uma
retomada grega: a φύσις dos gregos antigos, enquanto natureza, é aquela
que vigora se abrindo e se fechando por si mesma. A obra de arte opera
precisamente uma espécie de mobilização da natureza, da φύσις grega
(WERLE, 2011, p. 97).
Contudo, é ainda mais importante ressaltar aqui, no ínterim deste
ensaio, que, por mais que se procure desvelar aquela que abriga o próprio
desvelar do ente, a Terra, através das mais precisas intromissões calculantes
técnico-cientícas, ela de modo incessante permanece essencialmente
indecifrável, alheia a qualquer tentativa de apreensão totalizante,
domesticação, dominação. A intromissão calculante que se opera em
relação à Terra é por ela rechaçada, de forma que sua defesa é retrair-se em
si mesma, fechando-se. Distintamente, o movimento que a obra de arte
faz em relação à Terra é de elaborá-la, não de violentá-la, mostrando-a,
trazendo-a ao aberto como aquela que se mantém fechada, sem empreender
qualquer tentativa de dominação.
A pedra pesa e manifesta o seu peso. Mas ao nos confrontarmos
com seu peso ele se recusa ao mesmo tempo a qualquer penetrar
nele. Tentemos isso quebrando o rochedo, então ele nunca mostra
nos seus pedaços um interior e um aberto. Imediatamente a
pedra se retira, de novo, para o mesmo abafamento do peso e do
maciço de seus pedaços. Tentemos conceber isso de outro modo,
colocando a pedra sobre a balança, então só trazemos o peso ao
cálculo de quanto pesa. Talvez essa determinação bem exata da
pedra permaneça um número, mas o peso como tal nos escapou
(HEIDEGGER, 2010, p. 115).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 145
A Terra rechaça qualquer intromissão nela, sem permitir que a
impertinência calculante da Técnica a domine. Embora os êxitos cientíco-
tecnológicos ilustrem certo progresso e domínio, exercido e explorado até
o nível subatômico, não passam de “impotência da vontade”, nas palavras
de Heidegger (2010, p. 117). Assim, a Terra é aquela que, em sua essência,
mantém-se fechada. Somente no obrar da obra de arte não se opera violência
contra a Terra, permitindo que ela seja ressaltada apenas enquanto Terra,
trazendo-a ao aberto do modo como ela é, em sua essência, como aquela
que se mantém fechada.
Por outro lado, enquanto a Terra permanece fechada-em-si, “Mundo
é a abertura manifestante das amplas vias de decisões simples e essenciais
no destino de um povo histórico” (HEIDEGGER, 2010, p. 121). A obra
de arte abre um mundo, instala um sentido e o mantém em abertura,
como faz nitidamente outro exemplo dado pelo lósofo, o templo grego,
sem necessidade de especicações de sua localização ou da divindade à qual
é consagrado. O templo é uma obra arquitetônica, que, em seu erguer-se,
envolve a gura do deus, e faz com que ele no templo se torne presente.
Para o grego antigo, os principais momentos de sua vida adquirem sentido
ao entorno do templo, que assim abre o mundo daquele povo histórico.
Pela obra de arte é aberta e mantida uma totalidade de sentido.
A ideia de mundo já é bastante conhecida desde Ser e Tempo, em que o
Dasein apenas é porque é-no-mundo, sendo essa uma de suas características
existenciais constitutivas, um existencial em que vige a totalidade de
signicação com as quais o Dasein está continuamente familiarizado
(HEIDEGGER, 2012b, p. 197). Todavia, em A origem da obra de arte,
Mundo é a abertura que manifesta as decisões simples e essenciais de um
povo histórico. O fenômeno da obra-templo mostra a Terra enquanto
Terra, ressalta-a através de sua edicação sobre o fundamento rochoso,
seu brilho e luminosidade, realça o ser-Terra da Terra: a tempestade que
sobre ela se abate, a extensão do Céu e as trevas da Noite, a árvore e a
grama, a serpente e o grilo, o touro e a águia. Tudo aquilo que os gregos
denominavam φύσις. Mas também o mundo dos gregos antigos depende
do templo: enquanto abrigo do deus que reside no âmbito daquele recinto
sagrado, os principais momentos da vida do povo histórico em questão
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adquirem sentido ao seu entorno: nascimento e morte, bênção e maldição,
vitória e ignomínia, perseverança e queda, referências fenomenológicas
mencionadas por Heidegger que constituem somente algumas daquelas
que constituem a totalidade do mundo daquele povo histórico, que em
torno à obra-templo tem seu mundo aberto e garantido (HEIDEGGER,
2010, p. 101-103).
Mundo não é a mera união das coisas existentes, contáveis ou
incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mundo também não é
uma moldura apenas imaginada e representada em relação à soma
do existente. O mundo mundica sendo mais do que o que se pega
e percebe, com o que nos acreditamos familiarizados. Mundo
nunca é um objeto que ca diante de nós e pode ser visto. Mundo
é o sempre inobjetivável, ao qual camos sempre subordinados
enquanto as vias de nascimento e morte, bênção e maldição nos
mantiverem arrebatados pelo ser. Onde acontecem as decisões mais
essenciais de nossa história, que por nós são aceitas e rejeitadas,
não compreendidas e de novo questionadas, aí o mundo mundica
(HEIDEGGER, 2010, p. 109-111, grifo do autor).
Ressaltando-se a diferença estabelecida entre A origem da obra de arte
e Ser e Tempo no tocante à concepção de mundo, não é, aqui, o Dasein que
possui um mundo como estrutura ontológica constitutiva, mas é a obra
de arte que abre um Mundo e o faz permanecer vigorando. É precisamente
nesse contexto que Heidegger utiliza o exemplo do templo grego, em
que estão abertas as conexões fundamentais do povo histórico ao qual a
obra-templo originariamente pertence (DUARTE, 2008, p. 26). Assim
como dito acima, também o templo faz ressaltar a Terra em que ele está
inserido, concomitantemente enquanto mantém o Mundo daquele povo
aberto. Já no quadro de van Gogh se percebeu a ambivalência da obra na
conabilidade, que retrata um utensílio que pertence à Terra e que no
mundo da camponesa está abrigado.
Se são as próprias obras de arte que abrem o Mundo histórico do
povo a quem pertencem, é conclusão imediata que o lugar próprio da obra
na losoa da arte heideggeriana nunca é o museu, mas deve estar inserida
no contexto histórico próprio em que foi criada. Caso a obra de arte seja
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 147
privada de seu mundo, já não é mais dotada da mesma profundidade
ontológica que originalmente, embora possa ainda efetivamente existir,
sem ter materialmente desaparecido. A obra de arte, assim, assume uma
característica epocal: apenas em sua época e em seu contexto ela está apta a
abrir o horizonte ontológico que lhe é essencial, o âmbito da conabilidade.
Dessituada de seu mundo, a obra de arte já não mundica; tolhida de sua
íntima relação com a Terra, já não lhe propicia a mostração original.
É, portanto, a um duplo aspecto a que está sujeito o acontecimento
da obra de arte, cujo evento de verdade é um desvelar-se – Mundo – a partir
do ocultamento de que provém – Terra. Elaborar a Terra e instalar um
Mundo são dois aspectos essenciais da obra de arte, que se co-pertencem.
“Mundo e Terra são essencialmente diferentes um do outro e, contudo,
nunca separados. O mundo fundamenta-se sobre a Terra e a Terra irrompe
enquanto mundo” (HEIDEGGER, 2010, p. 121).
São essas considerações que nos permitem chegar, junto com
Heidegger, à sua tese fundamental no tocante à ontologia da obra de
arte: ela é acontecimento da verdade a partir da disputa – Streit – entre
Mundo e Terra.
Através da obra de arte a Terra é ressaltada no Mundo histórico em
que homens e povos continuamente se encontram, à medida que é sobre
a Terra que homens e povos fundam seu respectivo Mundo. A disputa
se estabelece na tensão criada pelo Mundo, que essencialmente é aquele
que abre, em relação à Terra, que é quem se mantém continuamente
fechada-em-si.
A Terra não pode passar sem o aberto do Mundo, para ela própria,
como Terra, aparecer na livre auência do seu fechar-se-em-si. O
Mundo, por seu lado, não pode desfazer-se da Terra, para ele, como
amplitude vigente e via de todo destino essencial, fundamentar-se
em algo decisivo (HEIDEGGER, 2010, p. 123).
Na obra de arte, essa disputa – que não é criada por ela, uma vez
que a antecede – não é apaziguada, mas, pelo contrário, instigada, fazendo
com que a disputa permaneça enquanto disputa. Ora, se a obra faz a Terra
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viger enquanto Terra – que se mantém permanentemente fechada-em-si –
ao mesmo tempo em que instala um Mundo – aquele que abre o mundo
histórico dos povos –, é, por decorrência, na obra de arte que a tensão entre
Terra e Mundo se dá de forma mais acentuada, consumando a disputa.
o cinemA como fenômeno técnico e Artístico
Ora, uma vez que é evidente por si a natureza artística do cinema,
nunca esteve no escopo deste trabalho pôr em questão se em algum
sentido o cinema se afastaria da qualidade de ser uma modalidade artística
por excelência – simplesmente propor tal questão já seria incorrer no
equívoco de ferir o bom senso, o entendimento ordinário do que é um
fato. Da mesma forma, também não é possível armar que o cinema não
tenha sido tornado possível na era da técnica – o que não corresponde a
imediatamente defender que ele seja essencialmente técnico. O problema
se encontra então em como pensar o cinema como arte no seio da técnica,
sendo claro à mente, pelo exposto até o momento, que a arte se constitui
como um verdadeiro oásis diante da dominação técnica da natureza e do
ser humano.
Uma primeira questão a ser posta no cruzamento de conceitos até
aqui apresentados pode ser encontrada visando caracterizar o cinema em
sua relação com a técnica. Sabemos já que as condições de possibilidade do
cinema como tal foram tornadas possíveis apenas na contemporaneidade,
quando o avanço tecnológico permitiu materialmente, de formas cada vez
mais elaboradas, a reprodução imagética do movimento. No entanto, é
possível aplicar ao cinema aqueles atributos que Heidegger diagnosticou
como essenciais ao dar-se da técnica na época contemporânea?
De saída podemos nos pôr a pensar a relação que o cinema
estabelece com a natureza, a φύσις, em paralelo com o modo com que
a poderosa gama de relações que a técnica mantém com ela. Conforme
o acima elaborado, a técnica continuamente se põe a explorar e exaurir
recursos da natureza, pondo-a como um fundo de reservas sempre
disponível ao seu ímpeto dominador. O cinema, contudo, não extrai coisa
alguma da natureza. Ela não é posta a seu serviço, e dela coisa alguma é
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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retirada. No entanto, ela é “enquadrada” pelas câmeras – no uso, porém
não bem no sentido, de um dos possíveis termos de tradução do alemão
Ge-stell, bastante utilizado pelos tradutores de Heidegger e que aqui são
competentes para referimo-nos ao cinema (Cf. nota de rodapé número 3).
Mas esse enquadramento não insere a natureza num nexo de exploração
e domínio por parte do cinema, como a técnica opera em relação a tudo
aquilo que há. Pelo contrário, o que o cinema faz é mostrar a natureza e o
humano através deste seu peculiar enquadramento.
Aqui vemos, então, não só uma exclusão do cinema de qualquer
argumento que veja no cinema uma força exploradora da natureza, mas
também seu acertado “enquadramento” no campo da arte, onde ao invés
de domínio encontramos um horizonte de mostração, uma “clareira
(Lichtung), como Heidegger preferiria dizer. O cinema é um horizonte de
mostração de sentido – um ambiente ontológico onde se origina sentido.
O cinema, entendido como fenômeno, sempre traz algo à mostração, a
partir da (des) montagem de sentido que ele sempre opera; cada lme
mostra sempre seu sentido, mas entendido não enquanto obra fílmica
individual, porém em sua totalidade, o sentido que o cinema mostra é o
sentido de sua época histórica, expressão autêntica da constituição própria
do nosso tempo.
De fato, quando trazemos o cinema ao pensamento, e com ele toda e
qualquer experiência fílmica, temos à mente sempre uma representação da
φύσις, ou, para entrar propriamente no campo vocabular de A origem da
obra de arte, da própria Terra. No movimento reproduzido pela montagem
nos lmes se vê sempre e apenas a Terra mostrada, e é claro também o ser
humano, à medida que este também participa do vigorar da Terra.
A Terra, no ensaio de Heidegger em questão, se apresenta como
aquela que, enquanto tal, revela-se. A obra de arte mostra a Terra ao
revelá-la “naturalmente” por sua constituição. O cinema não se encontra
em posição diferente: a produção fílmica sempre deixa em evidência
aquela que, enquanto tal, revela-se”. Como uma espécie de amplicação
artística da fotograa, pois, ao captar o movimento (e, portanto, também
o repouso enquanto repouso) via montagem, subsumindo também e
dentre outras a própria arte fotográca, a experiência fílmica se atém à
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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mostração dos espaços e do tempo – sem querer entrar em temas kantianos
ou deleuzianos, permanecendo no horizonte fenomenológico, onde espaço
e tempo legitimamente podem ser concebidos como âmbitos em que se dá
mostração: constituem horizontes de instauração da clareira do ser, uma
vez que tanto o espaço quanto o tempo se apresentam como âmbitos em
que, a cada vez, os entes vêm a ser. Até mesmo as mais recentes produções
da indústria cinematográca, que se valem de complexos processos de
digitalização, virtualização e simulação da realidade, executam uma muito
peculiar μίμησις do movimento; no entanto, o virtual/digital não se
encontra fora do domínio da Terra, que não se limita ao entes sicamente
materiais, mas se estende para todos os âmbitos em que se revela algo
enquanto tal.
Em sua mostração da Terra, o cinema não exerce de modo algum
a violência própria da técnica, permitindo que a Terra vigore por si
mesma enquanto si mesma. Mais do que isso, o cinema ressalta a Terra,
mostrando-a a seu próprio modo. Assim como as outras modalidades
artísticas, o cinema traz, pelo foco da câmera, à visibilidade aquilo que a
Terra é por e enquanto si mesma.
Por outro lado, talvez seja um pouco mais complexa e menos
óbvia a relação que o cinema enquanto modalidade artística estabelece
com o conceito de Mundo, que, assim como a Terra, é manifestado
na e pela produção cinematográca. Isso porque o lme sempre opera
uma “produção de sentido”. Se Mundo é aquela dimensão em que é
aberta e mantida uma totalidade de sentido – Heidegger, como vimos,
acrescentaria: para um povo histórico –, o cinema faz isso através da
montagem, uma de suas mais essenciais dimensões. Para além de simples
edição, arranjo de imagens sucessivas em diferentes planos, a montagem
monta o sentido – e também o desmonta, desconstruindo e reconstruindo
sentido nos mais diferentes âmbitos.
No tocante à montagem, recordamos aqui brevemente o soviete
Sergei Eisenstein, grande teórico do cinema. Nas palavras de Gilles Deleuze
(1985, p. 44),
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Eisenstein não para de lembrar que a montagem é o todo do lme.
Mas por que o todo é justamente o objeto da montagem? Do
começo ao m de um lme, algo muda, algo mudou. Entretanto,
este todo, este tempo ou esta duração, parece poder ser apreendido
só indiretamente, em relação às imagens-movimento que o
exprimem. A montagem é essa operação que tem por objeto as
imagens-movimento para extrair delas o todo, a ideia, isto é, a
imagem do tempo.
Pondo à parte certos desdobramentos losócos próprios do
pensamento de Deleuze nem tanto implícitos nessa passagem, poderíamos
muito bem aqui diferenciar-nos de sua linguagem e dizer que a montagem
corresponde à criação e manutenção de sentido. O que o lósofo francês
chama de todo, de ideia, pensamos aqui em termos de sentido, de
conteúdo hermenêutico-existencial elaborado pela arte, que no vocabulário
heideggeriano de A origem da obra de arte se aproxima consideravelmente
daquele âmbito que é criado pela noção de Mundo, e ampliado pela sua
disputa originária com a Terra.
Propomos, então, que o cinema, e por fazer parte dele qualquer lme,
como uma totalidade de sentido, possa ser entendido como uma forma de
elaborar Mundo. E com isso algumas implicações losócas surgem. A
primeira é aquela que nos vem quando recordamos, conforme o exposto,
que Mundo é uma dimensão de sentido epocal de e para um povo histórico.
E o cinema não ca distante dessa caracterização conceitual, uma vez que,
como já dito, o cinema foi tornado possível na contemporaneidade, época
da técnica, e que sua experiência nos marca a todos, em diferentes níveis,
muito provavelmente até mais do que aquele impacto que chega a nós hoje
daquelas modalidades artísticas clássicas, como a poesia e o teatro – que se
analisarmos estão sempre contidas na produção cinematográca, de forma
ainda mais alargada do que, por exemplo, a ópera, a qual muitos estetas da
tradição apontaram como manifestação artística sui generis por conseguir
reunir (quase) todas as demais.
Sendo como vimos, se a obra de arte só tem seu pleno sentido se
inserida em seu contexto histórico, devido seu caráter essencialmente
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
152 |
epocal, só assim podemos entender o cinema: como manifestação artística
de nossa época, da época da técnica. O cinema, então, abre-nos Mundo,
Mundo que nos é dado na época da técnica – que violenta a Terra, que
aniquila Mundo. O cinema se encontra, assim, imbricado na dialética do
sentido e sem-sentido, da arte e da técnica. Essa tendência do cinema de às
vezes montar sentido e às vezes desmontá-lo é plenamente conforme nossa
época, em que a cada vez mais todos os âmbitos da experiência humana
se fragmentam, perdem-se no abismo, no sem-fundamento – a razão, a
lógica, o ser, enm, todos os referenciais estáveis a que a tradição losóca
ocidental sempre se valeu para justicar a estabilidade do pensamento
agora caducaram.
Apesar do fato de o cinema acontecer apenas na época da técnica
e por conta dela, o seu status artístico supera as suas circunstâncias
histórico-epocais advindas de suas condições técnicas de possibilidade,
não exercendo as mesmas provocações da técnica em relação ao todo
do ente, à natureza. E o fenômeno do cinema dá isso à percepção
muito claramente, uma vez que todas aquelas características impositivas
da técnica, como a exploração da natureza que a põe a seu serviço, o
enquadramento de tudo aquilo que existe como um fundo de reserva a ser
incansavelmente explorado, aquela tendência a tudo dominar e inserir
em seu nexo provocativo, não são aplicáveis ao fenômeno do cinema.
Em verdade, o cinema exerce exatamente o contrário da técnica: ele não
violenta a natureza, mas mostra a Terra; ele não põe o ser humano em
um nada de sentido próprio do processo niilista, mas abre um Mundo de
sentido e nos mantém em seu aberto.
Plenamente consonante à conceituação de Heidegger da arte,
o cinema manifesta a conabilidade própria do artístico. A experiência
fílmica proporciona, com efeito, uma “mostração conável”, no sentido
da conabilidade heideggeriana aqui utilizado. O cinema mostra em
grande relevo a disputa entre Terra e Mundo, uma disputa que não anula
esses âmbitos, mas que os ressalta de diferentes modos. Qualquer lme,
nada obstante, pode ser integralmente analisado através de uma série de
noções bastante análogas a Terra e Mundo – analogias que Heidegger
não descarta, mas, pelo contrário, deixa em aberto, a m de que seus
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 153
conceitos possam funcionar como uma espécie de ampliação ontológica
de tais noções: espaço e tempo, matéria e forma, φύσις e sentido. A
montagem, como essência do cinema, funciona precisamente como a
amarra que une tais díades, a própria disputa que Terra e Mundo travam
entre si que constituem a essência do artístico. Numa cena de lme, por
exemplo, a imagem resultante da montagem remete diretamente à Terra,
mostrando uma perspectiva dos entes que a compõem – não violentando-
os ou explorando-os, mas permitindo que eles venham ao aberto, sejam
mostrados, tornem-se fenômeno –, enquanto como que “por detrás” das
imagens, no λόγος de toda e qualquer cena, o sentido do lme vai sendo
estruturado pela montagem, que assim se irrompe como Mundo.
A montagem, no entanto, enquanto o todo do cinema, não se
mantém apenas atrelada à caracterização conceitual do cinema enquanto
arte, mas também do cinema enquanto fruto da técnica: como há
pouco dissemos, Ge-stell. Os principais termos utilizados para traduzir
o vocábulo alemão Ge-stell muito curiosamente (e talvez não por acaso)
também se aplicam à montagem, e muito frequentemente se os encontra
como seus sinônimos e correlatos próximos: composição, armação,
enquadramento, disposição. E como a própria losoa de Heidegger nos
ensina, os termos utilizados para a tradução de um termo nunca são
escolhidos arbitrariamente, mas sempre indicam uma interpretação do
ser da coisa signicada pela palavra. E não nos parece ser nem um pouco
diferente no que compete à montagem cinematográca.
Parece haver uma relação dialética da montagem enquanto técnica
no sentido heideggeriano: ao mesmo tempo em que faz sentido aplicar os
termos que caracterizam a Ge-stell à montagem, a montagem não é Ge-
stell, no sentido de uma im-posição provocante da natureza. A montagem
é como se fosse uma composição que não compõe, uma armação que não
arma, um enquadrar que não enquadra. Põe, mas não impõe. Mostra, não
explora. Elabora, não violenta.
A montagem parece então operar uma espécie de Verwindung da Ge-
stell, uma superação-distorção, ou ainda uma aceitação-aprofundamento,
como Heidegger sugeriu aos tradutores franceses dos seus Ensaios e
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Conferências, onde o termo aparece algumas vezes.
5
A Verwindung,
ao contrário da Aufhebung hegeliana, não comporta os traços de uma
superação que mantém o superado em seu ir além, não visa um τέλος,
nem pretende efetuar um rompimento crítico com o que supera: distorce,
aceitando sua determinação enquanto aprofunda seu sentido.
Não parece equivocado supor que talvez o elemento artístico do
cinema opere para remir o seu elemento técnico. A montagem, enquanto
superação-distorção da Ge-stell, desmonta o ímpeto dominador da técnica,
de onde se originam as condições de possibilidade do cinema. Por tudo
aquilo que é manifesto no cinema, aquilo que vem à tona, o sentido que
dele emana, pode-se enxergar a técnica a serviço da arte, que, por sua vez,
opera na contramão da técnica, salvaguardando o que por ela é destruído.
De forma muito peculiar, portanto, o cinema manifesta muito
bem o verso de Hölderlin frequentemente retomado por Heidegger no
tocante à superação da técnica:onde há perigo cresce o que nos salva
(HEIDEGGER, 2007, p. 391; HÖLDERLIN, 1995, p. 395). É do
perigo da técnica que nos vem o cinema como arte, ao mesmo passo que
é da arte cinematográca que nos é dada a possibilidade de atribuir um
novo sentido à técnica. Dessa forma a própria técnica, através da arte que
ela curiosamente propicia, parece ser capaz de criar novas condições de
mostração de sentido, subvertendo sua própria lógica, onde o nada de
sentido impera. E a cada vez parece mais possível que de fato seja na arte
Quel che sappiamo dalle indicazioni che Heidegger ha dato ai traduttori francesi di Vorträge und Aufsätze,
dove il termine [Verwindung] è usato in un saggio in cui si tratta della Überwindung, del superamento, della
metasica, è che esse indica un oltrepassamento che ha in sé i tratti dell’accettazione e dell’approfondimento.
D’altra parte, il signicato lessicale della parola nel vocabolario tedesco contiene due altre indicazioni: quella
della convalescenza (eine Krankheit verwinden: guarire, rimettersi da una malattia) e quella della (dis)torsione
(un signicato abbastanza marginale, legato a winden, torcere, e al signicato di alterazione deviante che
possiede, tra gli altri, il presso ver). Al senso della convalescenza è legato anche quello di “rassegnazione”:
non si verwindet solo una malattia, ma si verwindet anche una perdita, un dolore. [Aquilo que sabemos das
indicações que Heidegger deu aos tradutores franceses de Vorträge und Aufsätze, onde o termo é usado em um
ensaio em que se trata da Ueberwindung, do superamento, da metafísica, é que isso indica um ultrapassamento
que tem em si os traços da aceitação e do aprofundamento. De outra parte, o signicado lexical da palavra no
vocabulário alemão contém duas outras indicações: aquela da convalescência (eine Krankheit verwinden: curar,
recuperar-se de uma doença) e aquela da (dis)torção (um signicado bastante marginal, ligado a winden, torcer,
e ao signicado de alteração desviante que possui, dentre outros, o prexo ver). Ao sentido da convalescência é
ligado também aquele de “resignação”; não verwindet apenas uma doença, mas se verwindet também uma perda,
uma dor]. (VATTIMO, 1998, p. 180, tradução nossa).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 155
que possamos encontrar a redenção para nossa época, sobretudo quando
recorremos a uma arte tão popular como o cinema.
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O    :  O
  
Claudia Pellegrini DRUCKER
1
Em 2015, a competição pelo Oscar de lme estrangeiro contou com
dois estreantes. Pela primeira vez, um candidato da Colômbia, O abraço da
serpente, de Ciro Guerra, disputou o troféu. A outra estreia foi a do diretor
húngaro Lazlo Nemes e seu primeiro longa-metragem, O lho de Saul, que
levou a estatueta dourada. Além do Oscar, O lho de Saul ganhou também
o Golden Globe na categoria de melhor lme em língua estrangeira e o
BAFTA na categoria de lme não falado em inglês, entre outros.
Ambos os lmes têm mais em comum do que a data de lançamento.
Ambos apresentam uma cinematograa despojada, seja por recrutarem
atores em experiência prévia, seja quando a oresta amazônica é retratada
em preto e branco, seja quando um campo de extermínio constitui um
pano de fundo intencionalmente desfocado, ubíquo e distante ao mesmo
tempo. O pano de fundo de um é o rastro de destruição deixado pelo
ciclo da borracha na Amazônia colombiana, nas fronteiras com Brasil e
Peru. A execução em fornos crematórios no complexo de Auschwitz cava
Professora no Departamento de Filosoa da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis
/ SC / Brasil. E-mail: claudia.drucker@ufsc.br
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p157-188
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
158 |
a cargo de integrantes dos Sonderkommandos (destacamentos especiais),
eles mesmos detentos que ajudavam a operar a engrenagem do extermínio.
Ambos os enredos são determinados por genocídios.
2
Os protagonistas de
ambos os lmes se encontram em aporias e se veem, por razões diferentes,
empurrados para fora da comunidade humana cada vez mais. A seguir,
pretendo elaborar perguntas sobre a aproximação e o afastamento possíveis
entre o modo como esta situação-limite é tratada, mas incluindo também
questões de recepção.
reivindicAndo A morte PróPriA: o filho de saul
No complexo dos seis campos de extermínio ligados a Auschwitz,
alguns detentos considerados pela administração mais fortes e saudáveis
foram selecionados para ajudar a levar a cabo a “solução nal”, ou seja,
o plano de exterminar todos os judeus da Europa e, quiçá, do planeta,
só formulado explicitamente em 1942. A rotina dos destacados consistia
em ajudar os recém-chegados aos campos a se despir, para o que os
nazistas diziam ser um simples processo de “desinfecção” anterior ao
seu emprego como trabalhadores do campo. Em seguida, sua tarefa era
levar as vítimas para dentro das câmaras de gás, lacrá-las, abrir as portas
depois de o veneno fazer efeito, empilhar os cadáveres, levá-los para os
fornos crematórios e depois dispersar as cinzas, fora do campo, no rio
Sola, um auente do Vístula. Depois, os SK recolhiam tudo o que fosse de
interesse nas roupas e bagagens que os envenenados deixavam para trás, e
incineravam o resto. Recebiam algumas recompensas, como alojamentos
e alimentação superiores aos dos outros prisioneiros. Estavam também em
desvantagem, justamente por dominar em detalhes o maior segredo dos
campos de extermínio. Eram ainda mais vigiados que os outros presos,
com os quais só se misturavam na antessala das câmaras de gás, e estavam
sujeitos a extermínios periódicos. Dentro da literatura de testemunho,
Embora o termo “genocídio” seja relativamente recente e tenha surgido especicamente para explicar a “solução
nal” nazista para a questão judaica, ele pode ser projetado sobre o passado. O Oxford English Dictionary credita
ao jurista judeu polonês Rafael Lemkin a cunhagem do termo em 1994. Será preciso voltar a esse ponto.
Provisoriamente, seja dito que a destruição física e cultural de povos inteiros, em escala desproporcional ao
necessário para assegurar a satisfação de um interesse econômico, pode ser denida como, seja anterior ou
posterior ao shoá.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 159
também os SK formam um grupo à parte, por responder por uma coleção
pequena de póstumos. Em Auschwitz-Birkenau, depois da libertação,
foram encontrados, em espaços bem largos de tempo, cinco escritos que
estavam enterrados (CALMANN-LÉVY, 2005). São todos de autoria de
integrantes judeus dos Sonderkommandos. A maioria de destacados era de
judeus, embora houvesse alguns prisioneiros russos ou membros de outras
etnias racialmente discriminadas.
Até hoje, os relatos e opiniões sobre os Sonderkommandos são vagos
ou negativos, inclusive por parte de historiadores e intérpretes importantes.
O mais conhecido dentre estes, Primo Levi, descreve os destacados como
corvos de forno crematório”, colaboradores de alma destruída (LEVI,
2016, p. 42). Em seu último livro, Os afogados e os sobreviventes, Levi se
baseia em parte no médico húngaro Miklos Nyiszli, também detento cuja
vida foi poupada para que trabalhasse como assistente de Mengele. No
nono capítulo das suas memórias, Nyiszli de fato reconta uma partida de
futebol entre SS e SK, cuja nota macabra foi justamente a semelhança com
qualquer jogo alegre e animado em uma cidade pacata (NYISZLI, 2011).
O historiador Raul Hilberg, em sua obra de referência, refere-se apenas e
de passagem ao episódio do levante malsucedido das “equipes de detentos
encarregadas da remoção (das câmaras de gás) e incineração dos cadáveres
de 7 de outubro de 1944 (HILBERG, 2003, p. 1045-1047). A divulgação
dos escritos dos SK contribui para um nuançamento da nossa opinião sobre
essas pessoas. Os escritos preservados pelas cinzas não só conrmaram o
funcionamento da máquina do extermínio, mas revelaram também facetas
desconhecidas dos detentos que trabalharam nela, inclusive sua liderança
na revolta de outubro de 1944, mas também as diferenças individuais entre
os SK em termos de motivação e caráter. Decerto não faltaram oportunistas
entre eles, interessados apenas em sobreviver mais um dia, ou em comer
um pouco melhor, mas também houve os resignados, e até os que viram
um propósito superior em continuar vivo, como conhecer o que se passava
para testemunhar quando a guerra acabasse.
O lho de Saul é compreensível como um ensaio sobre a ambiguidade
desses homens, preparado pela publicação dos seus escritos. Talvez mais
anos atrás fosse considerado um lme ofensivo, que tornaria os judeus
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cúmplices do próprio extermínio. Lazlo Nemes não esconde feitos terríveis,
mas está claramente preocupado com ressaltar a diversidade e a possível
humanidade que restou mesmo entre brutos. O capítulo XIX das memórias
de Nyiszli foi, a meu ver, o ponto de partida para a versão dramática da
vida dos SK, embora eu não possa sustentar essa suspeita apelando para
alguma entrevista do diretor do lme ou para a crítica. Nyiszli conta ter
sido chamado por um SK em pânico, pois algo inédito acontecera: uma
jovem de uns quinze anos não tinha morrido em decorrência do gás tóxico.
O médico a reanima, mas sabe que é inútil. Ele pede ao SS encarregado
da equipe, Oberscharführer Mussfeld, que a empregue em um bloco
afastado do crematório, junto com as outras trabalhadoras do campo. O
Oberscharführer hesita por um momento: se ela fosse mais madura para
compreender o valor do silêncio, talvez pudesse ser poupada. Por m,
ordena a outro ocial que a mate com um tiro na nuca. O que impressiona
Primo Levi, ao mencionar o episódio nas suas próprias memórias, é a
comoção que o caso particular da menina causou. Nyiszli enfatizam que
todos queriam ajudar, como se fosse sua própria lha, e até o ocial hesita
em executá-la. Ao que Levi acrescenta que tais fatos espantam porque se
opõem à imagem que temos do homem sempre de acordo consigo mesmo,
coerente, monolítico: “piedade e brutalidade podem coexistir no mesmo
indivíduo e no mesmo instante” (LEVI, 2016, p. 43).
Assim também Nemes cria um protagonista, o húngaro Saul
Ausländer (“estrangeiro”, em alemão), que encontra entre as vítimas de
envenenamento um jovem agonizante que pode ou não ser seu lho. É
um dia de outubro de 1944, durante o auge da limpeza racial na Hungria,
o que explica não só o recrutamento de SK húngaros, mas também a
atividade frenética das câmaras de gás. Uma das vítimas do grupo que Saul
acabara de levar à câmara sobreviveu ao Zyklon B e é levada à presença de
um ocial nazi. Este sufoca o garoto e ordena uma autópsia para que as
causas da sua sobrevivência sejam conhecidas. Os SK entre si mencionam
que isso só tinha acontecido uma vez, com uma moça, no que vejo uma
alusão a Primo Levi e Miklos Nyiszli. A partir daí, Saul ca obcecado pela
necessidade de dar um enterro judaico ao cadáver, pois a lei mosaica proíbe
todas as formas de violação do corpo, vivo ou morto. O primeiro rabino
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 161
que consulta lhe diz, de forma realista, que ele deve se contentar com o que
é possível fazer pelos mortos: rezar. Saul já não dá mais ouvidos a nenhum
cálculo de sobrevivência. Tudo o que faz para colaborar com os planos
dos colegas de cárcere ou estorvá-los é, daí por diante, incidental. O que
importa é o plano suicida de enterrar o menino fora do campo, na presença
de um rabino. O assunto do lme é a transformação desencadeada naquele
que talvez seja o pai. Na segunda metade do lme, centrada na revolta de
7 de outubro de 1944, o desfecho do protagonista se dene.
Há hoje um grupo de lmes sobre crianças em meio ao shoá, de
gosto bastante duvidoso, por sinal, como A vida é bela, Olga, A menina
que roubava livros e O menino do pijama listrado.
3
São lmes de pouca
preocupação com a veracidade histórica, em que as questões especícas
relativas ao shoá se transformam em pano de fundo. Roberto Benigni
admitiu em entrevista que A vida é bela pretendeu ser uma atualização de O
garoto e O grande ditador, de Chaplin: “Ele [o lme] deveria ter se chamado
O garoto ditador ou O grande garoto” (BENIGNI, 1998). Ao contrário, em
O lho de Saul o menino é quase um desconhecido do próprio pai (pois
se trata de uma criança ilegítima e criada longe do pai). O menino, cujo
nome não sabemos, só é visto nu, fora de foco, ou dentro de um saco. Ele é
apenas o que o campo fez dele: um quase-humano. Trazê-lo de volta desse
estado, nem que seja post mortem, ou até precisamente enquanto morto,
mediante o ritual tradicional de enterro, passa a ser a obsessão de Saul.
Para o diretor, a trama está mais próxima à Antígona. Antígona se
preocupa com o que vai acontecer com o espírito de seu irmão Polinice, se
o seu corpo não for sepultado da forma correta. Saul nunca é apresentado
como um homem versado em assuntos religiosos. Ele parece nem saber o
kadish, a oração fúnebre, de cor. Mas Nemes arma: “nos dois casos, mais
do que indivíduos são assassinados; sua cultura é destruída”. O campo de
extermínio é um lugar onde as pessoas são queimadas “como se nunca
tivessem um passado. [...] Saul dá a essa criança uma história, uma narrativa
Usarei a palavra “Holocausto” (com maiúscula) ou “holocausto” (com minúscula) exclusivamente em citações.
Embora durante anos muitos judeus tenham nomeado assim o extermínio durante o terceiro império nazista,
existe um desconforto crescente com as conotações religiosas do termo, que acarretam a insinuação de um
sacrifício ou puricação devidas a Deus. Contudo, a intenção dos nazistas não foi a de sacrifício ritual. Cf.
Evans (1989, p. 142).
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(story) de modo que há algo muito universal ou muito humano nisso
(NEMES, 2015). A obsessão em dar aos mortos um enterro tradicional se
mostra o único ponto em comum indiscutível entre ambos os personagens.
É questionável se a inocência de Antígona diante da maldição que se
abate sobre sua família levanta dilemas semelhantes ao de um detento no
campo. Além disso, dar o enterro apropriado a Polinice é um ato religioso.
A cultura a ser preservada não é um m em si mesma, no sentido tem um
fundamento transcultural. Antígona dá satisfações aos deuses enquanto
Creonte dá ao Estado, para quem Polinice é um traidor, de modo que o
embate com Creonte não é o que se visa em primeiro lugar. Se o enterro
redime o morto e os vivos (sua cultura) nas condições especícas do campo,
a interpretação precisa ser outra. A missão que Saul se propôs é, de alguma
forma, escolher os termos da morte, restituindo a humanidade a outrem e,
no processo, a sua própria. O lho de Saul pode ser tomado quase como
uma investigação sobre como um indivíduo ainda pode recobrar certo grau
mínimo de livre-arbítrio. Novamente, quer o diretor esteja consciente disso
ou não, o seu caminho foi preparado por uma discussão prévia. Debate-
se em losoa se a morte é experimentável, e se não for, uma losoa
da morte não é possível, assim como o inescrutável também não pode
ser tematizado. Mas alguns reivindicam que a prerrogativa humana de
saber que se vai morrer é da maior importância. A experiência da própria
morte é a decisão de viver ou morrer ou, no mínimo, a oportunidade de
se relacionar com a sua aproximação. Os protagonistas de ambos os lmes
chegaram à beira da morte. Karamakate se dene como um homem oco,
que espelha o “homem-concha”, mas no sentido em que é o último do seu
povo. Embora ele tenha desprezado os nativos que escolheram se aculturar
a vida toda, o isolamento não é garantia de autopreservação, pois uma
cultura inteira não vive quando resta apenas um dos seus representantes.
Em Ser e tempo, em uma discussão sobre estruturas apriorísticas de
constituição da existência, Heidegger distingue entre a morte de outrem, a
morte vivida e interpretada pelo público, e a morte própria, vivida de modo
intransferível por mim. A morte pública e impessoal não é apreendida de
modo adequado a um ente que existe e não apenas é do mesmo modo que
as coisas. A morte compreendida pelo indivíduo que subitamente se dá
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 163
conta da sua mortalidade é a realização da sua iminência. Vivemos nossas
vidas, porém, sem experimentar essa iminência. Não se está sugerindo aqui
que a morte se torne um pensamento xo – mesmo porque isso geralmente
leva a patologias. A morte é sempre uma possibilidade. Heidegger cita
Johannes von Templ: basta que o homem nasça para ser velho o suciente
para morrer (HEIDEGGER, 1977, p. 326). Incorporar a possibilidade da
morte ao cotidiano surte um efeito único.
Uma das estruturas constituintes do ser-aí é o ser-para-a-morte. Sem
entrar na discussão erudita sobre possibilidades de interpretação, vou me
limitar a apontar que ele nomeia a possibilidade de subitamente dar-se
um estranhamento diante de uma vida que parecia “innita” justamente
porque uniforme e homogênea. Tudo o que parecia denido como se para
sempre desmorona. Nossas certezas se mostram frágeis e transitórias diante
da possibilidade de um dia se acabarem. Mais ainda, o que aparece nesse
momento é que, de alguma forma, a existência sempre foi assim, sujeita
a abalos profundos nas nossas crenças mais arraigadas e inconscientes.
Viver a possibilidade da morte própria, é, portanto, exatamente o mesmo
que viver a possibilidade da vida própria: uma vida que se sabe sujeita a
desmoronamentos e ressignicações. O caminho para não mais se deixar
dominar por signicados já estabelecidos e acatados, que fazem a vida
parecer fadada ao eterno presente, não é não deixar a vida, literalmente,
mas viver como alguém que sabe que vai morrer. Quando o ser-aí não
se relaciona com a própria morte, é porque se toma a si mesmo como
subsistência”. Uma vida em que não é possível o despertar para a iminência
da morte é uma vida “achatada” reduzida a uma dimensão de presente
uniforme e homogêneo, como os lósofos imaginam que seja a morte.
Uma vida-morte, portanto, ou pelo menos uma vida menos viva.
Cotidianamente, pois Heidegger não estava pensando em nada
parecido com o terror ao escrever essas linhas, como seria possível “roubar
a morte de outrem”? Imagino que seria um processo consentido, como
quando alguém não assume a responsabilidade por lidar com a própria
contingência e indeterminação. Pedir que outrem lhe diga como deve
morrer pode ser tratar a própria morte como o ponto nal de uma vida
vivida como que de fora para dentro, a partir de representações públicas
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
164 |
e impessoais de quem sou. No campo, não se trata de um processo
consentido ou metafórico. Não que exista anestesiamento pela rotina. No
campo, existe o anestesiamento pelo terror. O poder exercido no campo só
é total se retirar do detento a experiência da sua própria morte.
os nAufrAgAdos do rio yArí
O desao proposto a Ciro Guerra é criar um protagonista indígena
distante de clichês. O desao dramático que Nemes se propôs é conceder
profundidade interior e simpatia a personagens brutalizados no grau
mais alto possível, mesmo que vítimas eles também. Ainda assim, há
convergências consideráveis. O abraço da serpente também fala de
submergidos. A oresta devastada também carrega os seus próprios
quase-homens ou chullachaquis, que precisam viver com o fardo de ter
testemunhado um horror. No entanto, encontrar uma tese artística nítida
em O abraço da serpente talvez seja menos fácil. A exibição das inúmeras
formas como a presença dos brancos foi nociva na Amazônia ocupa a
maior parte dos episódios. Por mais graves que sejam essas denúncias,
não são nada que já não conheçamos de relatos históricos e jornalísticos.
Não são nada que em alguma medida não continue a existir até hoje,
quando a sobrevivência física do indígena e a preservação da sua cultura
continuam ameaçadas. Mesmo quando o assassinato de indígenas é posto
na ilegalidade, seu desenraizamento continua avançando. Nenhum
de nós pode negar algum nível de conhecimento dessa situação. Mas
o horror da colonização interna do nosso continente não foi suciente
para criar uma tradição de reexão e um estilo narrativo, donde a tarefa
de Guerra ser, ao contrário da tese do ineditismo do holocausto, mais
difícil do que a de Nemes. Para desenvolver esta armação, vou me valer
em parte de uma crítica à tradição iniciada por Hannah Arendt sobre a
novidade radical do shoá.
Aqui, novamente temos uma boa dose de credibilidade histórica.
O o narrativo é dado pelo personagem Karamakate, um pajé da tribo
ccional dos cohuianos, e suas viagens em busca da yakruna. Esta
planta ctícia remete às espécies que estão na base de alguns cultos da
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 165
oresta, como o arbusto Psychotria viridis (chacrona ou rainha) e o cipó
Banisteriopsis caapi (mariri ou jagube), que são compostos para produzir a
bebida ayahuasca. Karamakate empreende duas viagens com dois cientistas
brancos em um espaço do que parecem ser três ou quatro décadas. Quando
jovem, Karamakate é procurado por Manduca, o assistente de um certo
eodor von Martius. Seu nome mistura os de Carl Friedrich Philip von
Martius, naturalista alemão, e eodor Koch-Grünberg, etnólogo alemão
que realmente escreveu um livro intitulado Dois anos entre os índios: viagens
no Noroeste do Brasil, 1903-1905. eo vê na yakruna a última esperança
de cura de sua doença grave, e Karamakate aceita guia-lo até ela, movido
pela esperança de reencontrar sua tribo, que é a guardiã da yakruna e que
ele acredita extinta. Décadas mais tarde, Karamakate encontra Evan, um
botânico ccional de Boston, que lembra Richard Evans Schultes pelo
seu interesse em plantas alucinógenas. Por motivos diferentes, ambos os
cientistas procuram a mesma planta sagrada.
Grande parte do lme é composta por imagens da viagem rio acima,
quando as sinuosidades são como a serpente sagrada que dá nome ao lme.
O percurso importa tanto quanto o ponto de chegada, de vários modos.
Nas várias estações da viagem se mostram, uma por uma, todas as aições
impostas pelos brancos: a escravização dos nativos, a destruição de suas
culturas e memórias, a catequização forçada das crianças, os conitos de
fronteira entre Peru e Colômbia e o encerramento subsequente de tribos
inteiras dentro de uma espécie de campo de concentração, a trapaça dos
brancos nas transações comerciais com os nativos e a exploração desordenada
– e, em última instância, suicida – da oresta. Mesmo quando os indígenas
não são aniquilados sicamente, são destruídos de outras formas. Os
missionários católicos que adotam as crianças indígenas órfãs demonizam
a sua cultura de origem, e punem quem preserva a sua recordação. Com a
ruína da missão, os órfãos passam a viver no pior dos dois mundos, já que
não há retorno à condição nativa. Temos aqui a porção de denúncia do
lme: tudo isso aconteceu deste modo ou ainda mais cruelmente, mas nem
por isso o lme pode ser descrito adequadamente como realista.
As duas viagens se espelham durante o lme inteiro. A primeira
viagem pouco afeta os viajantes. Karamakate reforça suas suspeitas sobre
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
166 |
os brancos, e as nossas suspeitas que o seu afastamento da tribo é tanto em
função da sua crença em ser o último quanto uma condenação generalizada
dos brancos e dos indígenas que concluíram tratados de paz com aqueles.
Tudo em von Martius reforça a sua convicção sobre o egoísmo, o belicismo
e a impiedade do branco – que não consegue se refrear nem para salvar a
própria vida. Von Martius tampouco muda muito ao longo do trajeto.
Ele é consistente na intenção de manter sua neutralidade cientíca – por
exemplo, quando avalia que seria melhor que os índios não retenham a
bússola, para não esquecer seus próprios sistemas de orientação. A sua é
uma ética da não-interferência, digna e respeitável, mas também jamais
realmente sintonizada com a oresta, como mostra a sua incapacidade
de seguir o tratamento médico prescrito por Karamakate quando exige
pedir permissão à oresta para matar. eo nunca esteve completamente
na oresta, pois só pensa na família, nos colegas e no lar. Ele prova o
caapi, que não surte nenhum efeito sobre ele, nem sequer o efeito vulgar
da intoxicação que corrompe os remanescentes dos cohuianos.
Com o americano, as coisas se passam de outro modo. Os anos de
isolamento de Karamakate trouxeram esquecimento e insegurança. Ele
já não ouve a língua da oresta e não lembra os conhecimentos da sua
tribo. Ele precisa que o branco lhe traga a folha de coca e lhe recorde
como prepará-la, de modo a potencializar seu efeito, como mambe. O
americano decifra o mapa que desenhou para reencontrar o último pé de
yakruna, e faz com que tanto as lembranças doloridas como a lembrança do
conhecimento da oresta regressem. De novo, Karamakate encontra uma
vantagem em se associar a um branco em quem não cona, agora porque
encontra no americano alguém capaz de resgatar o conhecimento que já
esqueceu. Entristecido pela perda da memória e pelo próprio sentimento de
já ter se transformado em uma sombra oca de si mesmo, um chullachaqui,
faz nova viagem rio acima em busca da última or da yakruna. Trata-se
de uma interpretação autoral do mito do chullachaqui, que se refere a
um espírito guardião da oresta. Como o curupira do mito brasileiro,
o chullachaqui tem pés invertidos que lhe dá o poder de desorientar os
caçadores (MAMANI, 2018, p. 109-110). No roteiro cinematográco,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 167
Karamakate chama os fotografados chullachaquis, tomados como duplos
esvaziados.
As limitações de Evan impedem que se separe do seu gramofone,
porque a música é sua única forma de chegar perto do mundo dos sonhos.
Ele espera que a yakruna o torne capaz de sonhar. Não que Karamakate
cone plenamente que essa seja sua motivação, pois ele vê “dois”, duas
pessoas ao mesmo tempo. O americano manifesta inicialmente um
interesse puramente cientíco no conhecimento da yakruna. Mais tarde,
revela interesse na capacidade da yakruna de puricar a seiva da seringueira.
A tensão dramática se dá quando o americano revela sua dupla face, de
branco em busca de uma vantagem bélica (o látex de qualidade superior)
e de homem angustiado pela incapacidade de sonhar. Como Karamakate
reagirá? Perdoará o americano e lhe permitirá sonhar por meio da yakruna,
ou não? Ele porá em prática o que dissera a von Martius décadas antes, a
saber, que o conhecimento é uno e deve ser partilhado? O homem branco
está, nalmente, pronto a ser abraçado pela serpente e ver o mundo com
os olhos da oresta?
As diculdades de conclusão de uma tal trama já se mostram. O
enredo deve ser compreensível apenas se as relações entre os personagens
forem mediadas pelas referências ao mito e à oresta. No entendimento
do roteirista, a serpente é o elo entre os deuses e os homens, o que
permitiu que eles descessem trazendo o conhecimento dos cohuianos
sobre a oresta. Mas os brancos só conservam, do caapi, a experiência da
intoxicação. Para eles, a serpente não é o rio, nem o elo entre o céu e a
terra, como é para os cohuianos (em um dos mitos registrados por Koch-
Grünberg, a serpente gigantesca Nyoko cresce tanto que se transforma na
Via Láctea) (KOCH-GRÜNBERG, 1927, p. 268-271). A serpente não é
o testemunho do que havia antes de a terra e os homens existirem. Será
impossível discutir se o uso que o roteiro faz do ciclo de mitos da serpente
é adequado etnologicamente. Artisticamente, há no lme uma fusão
inextricável de sonho, psicodelia e revelação espiritual. Desse ponto de
vista, Ciro Guerra está muito mais sozinho do que, digamos, Lazlo Nemes.
Existe uma tradição de estudos cientícos muito maior no caso do shoá e,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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inclusive, uma tradição cinematográca.
4
Em relação ao surgimento de um
estilo poético que incorpore o mito e ao mesmo tempo a lógica ocidental,
tudo é muito mais difícil. Os dois cientistas brancos só conseguem obter
alucinações” sem importância veritativa. Mas o artista nascido nessa
parte do mundo também enfrenta desaos estilísticos que os seus colegas
europeus não enfrentam.
De qualquer modo que queiramos entender o mito da serpente e
a revelação da yakruna, já merece um elogio qualquer lme que consiga
se contrapor às representações clichê do nativo americano, desde o
nobre selvagem até o bruto, que são as representações do colonizador. O
recurso às religiões da ayahuasca não implica, por si só, o conhecimento
das culturas indígenas, mas Guerra tenta evitar também o holismo
indeterminado da Nova Era, como o de Avatar, de James Cameron – no
fundo uma atualização do nobre selvagem que o mistura com todas as
culturas xamânicas conhecidas. O nal ambíguo de O abraço da serpente
talvez seja mestiço, ao projetar no nativo uma resposta ao seu próprio mal-
estar com o poderio da técnica e da sociedade administrada.
É possível que, no nal inconclusivo de O abraço da serpente, haja
antes uma recusa a tomar o encontro como mais do que realmente é. Temos
uma espécie de encontro entre o nativo e o branco, para que o último
nalmente compreenda a sabedoria indígena e a perpetue. Contudo,
uma iluminação tardia é incapaz de compensar por toda devastação já
perpetrada e ainda por ser perpetrada, e o herdeiro escolhido pode não
ser o ideal. Se o mérito de O lho de Saul está em uma tese forte, quer se
concorde ou não com ela, sobre a possibilidade de apropriar-se da própria
morte mesmo nas condições mais degradantes, o encontro da última or
da yakruna com o homem branco pode mudar o mundo, ou não mudar
nada. As redenções de Evan e Karamakate são psicodélicas e refratárias a
qualquer tradução losóca. Não sabemos se a “viagem” resulta na aceitação
resignada do homem branco como o herdeiro possível do conhecimento
indígena. Mesmo depois de extinta a yakruna, o mundo conhecerá o poder
do abraço da serpente? E qual o valor disso, se a Amazônia continua sendo
O lho de Saul foi aprovado como obra e como documento inclusive por Claude Lanzman, cujo Shoah é a
grande referência para se lmar os campos. Cf. Lanzmann (2015).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 169
o cenário de uma luta desigual, sem que nenhum Exército Vermelho venha
libertar os nativos?
umA Análise cinePolíticA
Talvez nenhum outro lme de um diretor iniciante jamais tenha
sido tão aclamado, se Nemes for considerado estreante no formato longa-
metragem, já que dirigiu o curta-metragem Türelem, de 2007 (INTERNET
MOVIE DATABASE). O preterimento de O abraço da serpente dividiu a
recepção hispanofalante. Enquanto parte da crítica colombiana ressaltou
que a indicação, por si só, foi um marco histórico, outros não se satiszeram.
É o caso de Julio Cabrera, lósofo argentino radicado no Brasil, que será
meu interlocutor principal nesta seção. Para ele, o mérito de O abraço
da serpente é não recorrer aos elementos que caracterizam um lme feito
para ganhar o Oscar. Filmes que envolvem crianças com o shoá têm um
histórico de boa aceitação. Em suma,
não nos enganemos: o objetivo último do lme húngaro não é
mostrar como Saul conseguirá, nalmente, enterrar o corpo do
menino no campo de concentração. O objetivo último do lme é
ganhar o Oscar de melhor película estrangeira (CABRERA, 2016).
Não há como saber se o diretor fez um cálculo para ganhar o
Oscar. Em arte, só casos muito gritantes de tentativa de manipulação
intelectual e afetiva são discerníveis, em meio a proposições que podem
ser consideradas falhas por motivos honestos ou semi-honestos. Resta-
nos reconhecer a qualidade retórica no cinema como dado inescapável,
assim como o direcionamento das premiações de festivais e concursos.
Como separar critérios cinematográcos e extracinematográcos para
escolher o melhor lme, quando o cinema é a mais retórica das artes?
Em outros textos, Cabrera concorda que é possível haver, por exemplo,
bom cinema de entretenimento, caso se entenda que o entretenimento
é um componente legítimo do cinema. Os lmes de Steven Spielberg se
encontram nessa categoria (CABRERA, 1999). Acrescento que já nasceu
também como meio de comoção das massas, de modo que negar-lhe este
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
170 |
componente como espúrio ou acidental me parece um desejo vão. A noção
de um cinema puro, no estilo de uma “beleza livre” e autônoma, ou de
toda estética puramente formal, me parece totalmente questionável em
se tratando de cinema – será impossível entrar em detalhes aqui. Assim,
suporei que uma das razões de ser legítimas do cinema é provocar um
efeito sobre o espectador. Se o Oscar gosta de lmes que mostram o
sofrimento de crianças, especialmente em meio ao shoá, isso não exclui
a possibilidade de um lme bom ou ótimo sobre esse tema. O abraço da
serpente não é inevitavelmente melhor porque não satisfaz as expectativas
da Academia, nem O lho de Saul é inevitavelmente pior porque o faz. O
que importa, em qualquer caso, é que o Oscar não seja o único caminho
para o julgamento favorável ou desfavorável a uma obra, ainda que seja
ingênuo negar o seu peso.
A posição de Cabrera deve ser entendida dentro de um contexto
mais amplo de buscar um pensamento autoral e não colonizado por uma
hierarquia possível entre genocídios. Novamente, a questão não é se o
cinema é uma forma de retórica, mas se esta é uma retórica justa. No
mínimo, é inegável que O lho de Saul pertence a um debate já bastante
estabelecido. Seu diretor, mesmo vindo de um país europeu semiperiférico,
se insere perfeitamente dentro de um debate recorrente desde a revelação
dos campos de extermínio. Mais ainda, para Cabrera a colonização é
encobridora e deturpadora da linguagem. Os intelectuais e os artistas
participam dessa deturpação.
A literatura sobre o shoá é muito vasta. A escolha de um interlocutor,
não-especialista, sobre este assunto precisa ser justicada. Parece inegável
que o shoá ocupa um lugar muito especial na nossa consciência moral
(se deveria ser assim é o que está em questão). O shoá é o caso exemplar
de perseguição, destruição e tortura de um povo. O cinema colaborou
muito para sedimentar esse senso comum moral, mas os intelectuais
também zeram a sua parte. Nesse ensaio, estou interessada em um debate
especicamente sul-americano. Não me rero tanto à existência de, por
exemplo, especialistas brasileiros, ou residentes no Brasil, na Segunda
Guerra mundial e na reexão europeia sobre ela, mesmo que alguns
dentre eles sejam muito respeitáveis. Há uma diferença considerável entre
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 171
conhecer bem as obras que já foram escritas e ter uma opinião justicada e
legítima sobre elas, pois o debate sobre o nazismo marcou todas as reexões
morais desde então nos países centrais, e, por conseguinte aqui entre nós.
Para Cabrera, a busca de um esclarecimento sobre como falar do shoá
também nos concerne no segundo sentido. Mais importante, limitar-se
a ser um “especialista em especialistas” é endossar uma certa narrativa. A
atitude de conhecer e preservar o que outros disseram já é ela mesma uma
tomada de posição, pois ou supõe a neutralidade do especialista, ou não a
supõe, mas aceita determinada interpretação dos fatos. Supondo que isso
seja verdade, a distinção entre especialistas e polemistas vai ser aceita aqui,
e a alegação de Cabrera de que o genocídio indígena nas Américas pode ser
lido exatamente com as mesmas categorias será discutida.
Vejamos como Cabrera a sustenta no caso particular da discussão
sobre o shoá, que ele chama holocausto (CABRERA, 2017, p. 193-243).
Ele escolhe discutir diretamente com o pensador espanhol Reyes Mate
(2003). Não vou tentar situar Reyes Mate dentro do debate. Basta que
Cabrera o considere um bom sistematizador da tese da singularidade do
shoá. Nos julgamentos de Nuremberg, o shoá não foi tomado como a
maior atrocidade que os nazistas cometeram, se comparado à própria
guerra de expansão do terceiro império (MARGALIT, 1996, p. 67). O
antissemitismo do regime era conhecido, mas não foi entendido como
determinante. Na década seguinte, surgiram as primeiras tentativas de fazer
do shoá uma chave de leitura do nazismo. Dentro do meu conhecimento,
isso aconteceu pela primeira vez em 1950, quando Hannah Arendt sugeriu
que o domínio total é o objetivo do governo totalitário, seja de direita ou
esquerda (e de fato ele torna essas categorias obsoletas) (ARENDT, 2005).
Mais tarde, em Origens do totalitarismo, a análise foi aprofundada e de tal
modo que as teses com que Cabrera discute são formuladas, com grau
maior ou menor de detalhe. Eis porque vou me referir principalmente a
Arendt. Poderia ser mostrado que todos os tropos que caracterizam o que
Cabrera chama a tese da singularidade absoluta já se encontram esboçados
no capítulo 3 da terceira parte de Origens do totalitarismo, e principalmente
na seção intitulada “O domínio total” (ARENDT, 1989, p. 439-510).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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O primeiro estágio do domínio exercido pelos campos é a
supressão da pessoa jurídica, e o segundo, a supressão da pessoa moral. O
totalitarismo rebaixa o cidadão ao animal natural desprovido de proteção
legal. Ou melhor, o interno no campo é menos que um animal, pois a
legislação nazista relativa aos animais é, de modo não surpreendente, uma
das mais avançadas do seu tempo. O poder total sobre as vítimas do campo
só foi alcançado mediante a retirada progressiva de direitos, culminando
na negação da cidadania mais básica. Além disso, a falta de explicação,
a expectativa constante do pior e as mudanças repentinas de ordens são
outras estratégias destinadas a abalar qualquer resquício de estabilidade e,
portanto, de vida humana no campo. Chegado esse ponto, a vítima está
exposta a qualquer tratamento, resignando-se. A ecácia do poder total
explica como os detentos, muitíssimo mais numerosos que os guardas, não
se livraram deles.
Fazendo de Saul um exemplo, não se trata de, ao nal, decidir se ele
se torna um homem bom. O lme é antes uma armação de como não
somos “monolíticos” e como podemos alternar instantes de baixeza com
outros – no caso, o gesto de resistência – sem deixarmos de ser a mesma
pessoa. Para além de não ser monolítico, Saul já declara estar morto. “Já
estar morto” pode dar a entender que a liquidação dos húngaros já está
quase terminada, e com ela a necessidade de SKs para operar as câmaras
e os fornos em ritmo acelerado. Pode signicar que ele sabe que vai ser
punido por abandonar seu posto de trabalho (quando vai em busca de
um rabino) e que a aproximação do Exército vermelho já é conhecida
no campo (e por isso as operações de ocultamento do extermínio já
começaram). Quando Saul se proclama já morto, refere-se ao fato de não
ter oposto resistência até então, por ter deixado que as regras do campo
determinassem completamente a sua vida, por ter querido sobreviver só
mais um dia. Para Arendt, o campo suprime a liberdade e espontaneidade
em níveis tão inéditos que inviabiliza o uso de teorias morais prévias,
baseadas na possibilidade da escolha moral. A imprevisibilidade e o sadismo
dos comandantes dicultam até o oportunismo, embora de forma alguma
o inviabilizem.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 173
Nos últimos sessenta anos, portanto, ganhou força de
convencimento a noção de que os campos de extermínio tiveram nos
judeus sua razão de ser, e que a compreensão dos campos é indispensável
para a discussão do nazismo. Contudo, acontecimentos e teorias
anteriores não oferecem padrões de comparação e compreensão. Essa
é a tese da singularidade. Há algumas variantes suas, mas interessa-nos
o sumário aceito por Cabrera, que adota a tese da tripla singularidade:
moral, histórica e epistêmica”. Cito:
O argumento da singularidade parece poder ser resumido da
seguinte forma: (1) O Holocausto foi feito, objetivamente, com
especial crueldade e cinismo, não por razões pragmáticas ou
ideológicas, mas matando por matar, não como um meio para outra
coisa, mas como um m. O nazismo estava interessado em terminar
gradualmente com a humanidade de suas vítimas, em reduzi-las
a mortos-vivos, a nada, à não-existência radical (Singularidade
moral). (2) O holocausto foi feito de maneira sistemática e
engenhosa, como um aparelho racional e frio de destruição,
apoiado pelo e pela população, incluindo seus intelectuais. Foi
uma fabricação burocrática de cadáveres, de extermínio totalmente
racional, como trabalho de engenharia, um grande aparato racional
da morte, altamente planejado, racionalizado e realizada de forma
sistemática e eciente (Singularidade histórica). (3) O holocausto
é ininteligível para as nossas categorias de pensamento habitual,
incluindo as jurídicas, e para nossas formas de comunicação
linguística (Singularidade epistêmica) (CABRERA, 2017, p. 198).
5
Trata-se de desdobrar as formulações dentro de cada um dos
argumentos e rebatê-los. A singularidade moral signica que o extermínio
teve motivações distintivas inéditas. Para os que a sustentam, o shoá foi,
pela primeira vez, um m em si mesmo. Em qualquer situação de conito
inter-étnico, a minoria sempre gozou das opções da fuga, assimilação ou
conversão. A escalada do antissemitismo, segundo o relato famoso de
Hilberg, é: primeiro a conversão foi exigida, depois a emigração e por m,
quando esta se mostrou impraticável (mas não só por isso), o extermínio.
A conversão se mostrou inútil diante da concepção do judeu como raça
Tradução minha, novamente respeitando o uso original das maiúsculas e minúsculas.
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Gabriel Debatin (Org.)
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inimiga, o mesmo podendo ser dito da assimilação. A racionalidade clássica
da guerra dita o cessamento das hostilidades quando o inimigo recua para
dentro de suas próprias fronteiras. Mas o regime nazista considerou vital
concentrar todos os judeus que o exército conseguiu alcançar nos países
invadidos, e enviá-los por trem para os campos. Teria feito o mesmo com
todos os judeus do mundo. O movimento nazista transformou a luta fatal
entre raças em princípio supremo, pelo menos para efeitos da sua face
pública, a propaganda.
6
A ideologia racial da luta de morte entre raças distintas, segundo
Arendt e outros, foi o ingrediente especíco que o nazismo acrescentou
ao antigo antissemitismo. A noção de que a violência era preventiva
e reativa não poderia ser mobilizada contra populações inofensivas
tecnologicamente. O eugenismo das Américas visou antes o negro, como
em Nina Rodrigues. O indígena não foi entendido como raça, mas o negro
sim, dada uma tradição de pensamento racial pseudocientíco como o
de Gobineau. Mas a perspectiva de uma luta entre forças iguais nesse
continente tanto não é minimamente crível que raras vezes foi enunciada.
O romance O presidente negro, de Monteiro Lobato é um exemplo de
exceção, ao descrever a supostainevitabilidade de um confronto nal, só
que nos EUA. (LOBATO, 1926).
Assim, a tese da singularidade histórica é aceita em parte. A
racionalidade burocrática da solução nal pode ter sido inédita, mas
o “matar por matar” esteve presente na colonização das Américas. A
estrutura montada para aniquilar os judeus da Europa consumiu recursos
indispensáveis em tempos de guerra, e o rendimento econômico dos
detentos nunca foi a razão de ser dos campos. Os campos só podem ser
justicados pelo imperativo da aniquilação de um povo válido de si e por
si mesmo. Alguns exemplos do sentido anti-estratégico da solução nal, do
ponto de vista bélico, se encontram em Hilberg: quando a malha ferroviária
teve de ser usada para o deslocamento de tropas para o front e para a
Se é verdade que se pode debater se a luta inevitável das raças foi a convicção pessoal fundadora de todos os
escalões superiores nazistas, também é verdade que a propaganda escolheu como alvo o judeu como inimigo
necessário e justicador. Sobre o teor do racismo nazista e suas variantes, como a sugestão de que Hitler
considerava o judeu um tipo espiritual e não biológico, uma “comunidade de espírito” Cf. Heinsohn (2000,
p. 424).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 175
concentração de judeus, ambos os usos receberam prioridade (HILBERG,
1985, p. 5-28).
No entanto, a expansão territorial da colonização norte-americana
também pode, segundo Cabrera, se abrigar sob essa rubrica. Os colonos não
visavam riquezas que não imaginavam haver naquelas terras. A expansão,
segundo Cabrera, foi um m em si mesma (CABRERA, 2017, p. 222).
Citando Bartolomé de las Casas e outros cronistas, Cabrera nos mostra o que
há muito esteve diante dos nossos olhos: o alto grau de sadismo empregado
em expedições que não poderiam ser descritas como de castigo ou reparação
por nenhuma ofensa (CABRERA, 2017, p. 203-204). Sublinha-se, no caso
dos campos de concentração, que lá a morte é certa, e ao mesmo tempo
totalmente imprevisível. Ela pode ser decretada na ausência de todo motivo
perceptível. Um capricho pode salvar ou matar um detento. Para constatar
que o mesmo aconteceu neste continente, basta ler os cronistas. O argumento
da racionalidade calculadora que envolveu a violência não resiste à leitura dos
cronistas da colonização, que, concordo, deveríamos conhecer no mínimo
tão bem quanto conhecemos a história da Segunda Guerra Mundial. A
brutalidade empregada excedeu em muito o estritamente necessário para os
objetivos visados. A eciência calculadora que permitiu aos nazistas fabricar
o máximo de cadáveres no menor tempo e com os menores custos pode ter
estado ausente neste continente, mas, segundo Cabrera, isto decorre apenas
do fato de que ela não era necessária nas Américas, onde se podia matar o
colonizado sem a necessidade de escondê-lo (a justicativa já estava dada
pelo imperativo da conversão ao cristianismo).
Mais importante, o elemento de negação da humanidade é tão
presente no genocídio colonizador quanto no nazista, ou até mais do que
nele. Os judeus se viram aos poucos privados do seu status de cidadãos
iguais ou quase iguais aos alemães arianos, até chegar ao estado de coisa
da qual um ocial poderia dispor deles como quisesse, ao sabor do menor
capricho. Segundo Cabrera, pode-se sustentar que o rebaixamento foi
maior ainda aqui. A propósito de um relato de Bartolomé de las Casas,
comenta: “não se dava de comer aos judeus, mas, que eu saiba, nenhum
judeu serviu de comida” (aos cachorros do colonizador espanhol ou
português) (CABRERA, 2017, p. 206). Novamente, pode-se retrucar
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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176 |
que o corpo das vítimas do holocausto também foi “comido” por meio da
comercialização de suas partes, embora com menor dor física (mas como
medir esta?). De qualquer modo, não se trata de estabelecer quem sofreu
mais. A premissa duvidosa é que o rebaixamento moral da vítima é mais
grave do que a retirada, desde o nascimento, do seu estatuto civil e moral.
Não se pode falar sequer em degradação quando a humanidade da vítima
já é retirada desde o começo:
O extermínio indígena foi executado contra seres que nem sequer
tiveram a oportunidade de “perder a sua humanidade”, pura e
simplesmente porque esta nunca lhes foi concedida. Nas minas
de ouro e prata e nas perseguições nas orestas, os nativos eram
mortos-vivos preocupados apenas com a sua sobrevivência e em
um estado pré-humano ao que jamais foram “degradados”, pois,
ao olhar do invasor, já tinham nascido nele. Não foi necessário,
portanto, qualquer exercício de razão para exterminar indígenas,
nem foi preciso desenvolver uma tecnologia de morte sosticada
para livrar-se dos cadáveres; porque ninguém se importava com
eles; eles poderiam ser jogados tranquilamente para os cães
comerem (CABRERA, 2017, p. 223).
Se entendo o argumento, a tese dos intelectuais europeus da
singularidade moral do shoá se baseia na noção de que o rebaixamento súbito
é mais doloroso do que uma vida inteira de aviltamentos. A recusa desde
o começo pode não ser menos grave do que o rebaixamento, seja porque
ninguém realmente ca anestesiado diante do sofrimento, seja porque
nessa tese pode estar embutida certa crença europeia no merecimento do
sofrimento. A tese do anestesiamento diante do sofrimento renovado é
bastante questionável. É possível que os intelectuais europeus não tenham
se sensibilizado diante de vidas passadas inteiras em estado de aviltamento
por desconar que ou a capacidade de sofrimento dos não europeus é menor
e mais embrutecida, seja pelo hábito de sofrer e de provocar sofrimento.
Quem não foi degradado, no sentido em que nunca teve “grau” que pudesse
ser negado, ou não sofreram demasiado por não conhecer nada melhor, ou
não se importaram (essa é a suspeita) com o sofrimento brutal inigido por
eles mesmos a seus inimigos. Mas aqui estamos no terreno da suposição,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 177
seja de uma crueldade sem limites de algumas sociedades pré-colombianas,
seja de os intelectuais europeus no fundo desconarem que a colonização
foi horrível, mas se exerceu por pessoas também más. Só podemos, como
faz Cabrera, mostrar o tratamento diferenciado dado a momentos diversos
de horror.
No caso de Arendt, é vã toda esperança de encontrar um tratamento
equitativo dado a europeus brancos e outros povos. Embora Arendt
descreva o imperialismo como uma das origens do totalitarismo, de modo
algum o tratamento dado aos povos colonizados é semelhante ao dado aos
judeus. Recordemos sentenças como: “o abismo entre os povos ocidentais
e o resto do mundo” não é primariamente um abismo de riqueza, mas
é causado pela sua “falta de educação e de know-how e competência
geral” (ARENDT, 1989, p. 151). Trata-se de uma resposta um tanto
tecnocrática, dada a sua aposta no saber técnico como passaporte para
a saída do imperialismo. A inocência dos judeus sempre foi enfatizada
por ela, e eles não foram vítimas do nazismo por qualquer atitude sua,
como por exemplo a incompetência de impedir que se difundisse e
radicalizasse. Mas os povos subdesenvolvidos são, antes de tudo, os povos
incompetentes. A incompetência, evidentemente, não exclui a inocência
quando se trata de sociedades complexas, cujos membros desempenham
muitos papeis. Uma situação pode aparecer como fruto da opressão para
uma pessoa ou da incompetência para outra: não faltou nada em termos de
puro conhecimento para que os judeus soubessem que estavam diante de
inimigos mortais. Se houvesse negacionismo, as razões devem ser buscadas
em outro lugar.
Assim, em favor de Cabrera, seria possível concordar que já desde
Arendt temos uma indiferenciação entre as teses da singularidade histórica
e moral do shoá. A alegação de que o shoá não tem precedentes sempre
combina as duas abordagens. Sem precedentes, para Cabrera, também
signica mais abrangente, ou, simplesmente, pior: menos compreensível,
menos justicável, menos merecido. A escala de crueldade, ou seja, uma
escala moral, depende de uma compreensão histórica, porque se pode ou
relativizar os sofrimentos dos não-brancos e não-educados, ou pronunciá-
los como iguais aos dos internos nos campos de extermínio. É preciso
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
178 |
concordar que, se a tese da singularidade histórica do shoá signica que
essa operação foi “sem precedentes” (do ponto de vista do sofrimento
inigido), então é “enormemente controversa” (CABRERA, 2017, p. 199).
Como o sofrimento humano não é mensurável, a tese do maior sofrimento
sempre é complementada por outras formas de singularização. Se não faz
sentido uma competição para denir quem sofreu mais, ou que sofrimento
foi mais importante, faz sentido comparar “registros”;
[S]e não faz sentido comparar horrores, faz, sim, comparar registros
de horrores, quando algumas das histórias são mais insistentemente
apresentadas e escondem ou nos fazem esquecer outros horrores
diante dos quais teríamos o dever de nos sensibilizar também, além
de tentar entender suas relações mútuas. Quando a insistência na
singularidade de um horror minimiza a singularidade dos outros,
isso é logicamente signicativo e requer um reajuste simbólico
(CABRERA, 2017, p. 222).
Seria preciso, na continuação, um esforço rumo ao ajuste simbólico,
só que este ajuste não consiste só no igualamento. A alegação de que o shoá
foi, em si mesmo, unicamente único foi rejeitada. Não sobra a possibilidade
de que tanto o shoá como a sua abordagem tenham sido únicos, cada um a
seu modo. O caráter singular do shoá é antes constituído pela reação a ele.
Uma conclusão de Cabrera é que a ignorância histórica está
ancorada no umbiguismo, ou seja, na cegueira para outrem e seus
problemas. Compreensão moral e histórica, de fato, caminham juntas.
Walter Benjamin (que Cabrera não cita) deu o mote a essa transformação
não só por conrmar que a história é escrita pelos vencedores, o que se
soube desde sempre, como também pela tese sobre a losoa da história
de que é preciso escrever a história do ponto de vista dos vencidos. Faz
parte da sensibilidade moral contemporânea reivindicar a visibilidade
do oprimido como um passo inicial indispensável, donde a explosão da
temática do “reconhecimento” e da visibilidade ou invisibilidade a que os
oprimidos estão submetidos. O que Cabrera acrescenta à discussão sobre
o reconhecimento é que não basta armar a sua igualdade. O status que o
shoá adquiriu na cultura contemporânea, e inclusive na cultura losóca
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 179
mediana, termina por ofuscar ativamente os outros genocídios. A meu ver,
a sua proposta é de rebaixamento, no sentido em que os intelectuais do
shoá foram instados a retirar a tese da singularidade e a hierarquia embutida
nela como pré-requisitos do igualamento.
De fato, no seu texto a terceira forma de singularidade atribuída
ao shoá é até mais importante no que se trata de estabelecer, no nível do
registro”, a prioridade hierárquica do shoá e a decorrente invisibilidade
de outros genocídios. Será necessário voltar a este ponto, mas a direção
geral do argumento já está clara. Em vez de ocupar o lugar mais alto pela
civilização e pela moralidade, agora o europeu ocupa o lugar mais alto em
uma lista de sofrimentos. Se não foi um sofrimento maior, é pelo menos
o mais revelador e o mais instigante – só que todas essas armações se
tornaram questionáveis.
Para concluir essa seção, parece-me que Cabrera trata a vitória de O
lho de Saul como mais um sintoma de que a arte e a ciência produzidas
até hoje sobre o shoá têm servido para rearmar o predomínio europeu. A
crítica de Cabrera é que o ineditismo alegado do shoá é discutível tanto em
relação ao passado como ao futuro e que intelectuais e artistas, ao insistir
na tese do ineditismo, promovem um ofuscamento epistêmico e moral de
outros genocídios. Essa hierarquia rebaixa ativamente a importância do
extermínio indígena.
Para concluir, vou apenas apontar algumas direções desse debate que,
a meu ver, poderiam ser escolhidas. Elas não implicam contestar a alegação
perfeitamente válida de ignorância histórica e indiferença moral, por parte
dos intelectuais do shoá, diante de realidades extra-europeias. Pergunto
apenas se, apesar disso, ou apesar de si mesmos, eles interessam a nós.
Primeiramente, alguns aspectos importantes da tese da singularidade
histórica devem ser abordados. Mais do que só um modelo de administração
das raças inimigas, o shoá é o capítulo nal de um experimento social
nunca antes tentado. O campo é uma novidade enquanto o protótipo da
futura sociedade nazista planetária. O fato de o antissemitismo ter sido a
motivação explícita e real dos campos não impugna a sua adaptabilidade
a toda humanidade. Em segundo lugar, deveria ser notado que nem todo
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intelectual do shoá se põe no lugar da vítima por excelência. Pode haver
um desejo de compreensão honesto e bastante aberto ao sofrimento alheio.
Foi mencionado acima que existem tendências contemporâneas
a levar em conta temas constrangedores para os sobreviventes, como a
colaboração forçada no extermínio. O “muçulmano” está no espectro
quase oposto ao Sonderkommando. O muçulmano, no jargão dos
campos, não é o devoto do Islã.
7
O muçulmano é o detento mais passivo,
incapaz da menor reação – mesmo que a “reação” dentro do campo possa
ser um sentimento ou pensamento invisíveis e privativos. O muçulmano
também é um tema tardio na obra de Primo Levi e nos estudos sobre o
campo, pelos motivos opostos ao que leva ao interesse pelos “comandos
especiais”: ele é o prisioneiro mais indefeso. É aquele que não aprendeu
a proporcionar para si mesmo as condições básicas da sua sobrevivência,
seja por qual motivo for. Alguns não dominam o idioma, outros não
compreendem o funcionamento do campo, nem como conseguir comida,
roupas, botas e outros itens básicos. O campo tem necessariamente os
seus muçulmanos, pois os meios de subsistência nunca são sucientes
para todos. Ao mesmo tempo, os campos não podem ser fechados em
vista do seu papel privilegiado no propósito da dominação total. Assim,
os muçulmanos precisam ser a maioria, sempre renovada pela chegada de
novos detentos pela linha de ferro.
Ao retirar o indivíduo da proteção e do olhar de qualquer sistema
legal digno desse nome, ele se torna invisível. É impossível saber quem ele é,
se está vivo ou morto, no sentido em que o detento está totalmente privado
de liberdade. Ele não tem cidadania, direitos e controle sobre a própria vida
e a própria morte: “os campos roubaram da morte a condição de desfecho
de uma vida realizada [...] provando que, doravante, nada – nem a morte
– lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o
fato de que ele jamais havia existido” (ARENDT, 1989, p. 503). O detento
do campo de concentração sabe que outros vão ser punidos, se cometer
suicídio, de modo que nem essa alternativa lhe resta (ARENDT, 1989, p.
Uma explicação para o termo “muçulmano”, recolhida por Agambem, é “homem-concha”, Muschelmann em
alemão. Contudo, ele conclui que o nome provém da passividade atribuída pelos ocidentais aos orientais. Cf.
Agambem (2008, p. 54, [Homo Sacer III]).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 181
503). Toda resistência parece se tornar fútil. Quando o detento abre mão
do último resquício de resistência interior e invisível, ele se muçulmaniza.
Privado de todo resquício de vida própria, o muçulmano é o último grau
entre o morto e o vivo, tanto biológica como moralmente. Os campos
roubaram a própria morte do indivíduo”, não só ao impedirem-no de
escolher como quer morrer, mas no sentido em que a distinção entre vida
e morte se apaga em uma existência plenamente dominada (ARENDT,
1989, p. 503). O muçulmano habita o “umbral extremo entre a vida e a
morte, entre o humano e o inumano” (AGAMBEM, 2008, p. 55).
Nemes parece se inspirar nessas palavras, mesmo que não as tenha
lido em primeira mão. Assim, a falta de enterro digno não se agura mais
como a última ofensa entre outras tantas, ainda piores, que a precederam.
A insistência de Saul em enterrar o lho dignamente é uma forma de lhe
devolver a humanidade retirada pelos nazistas para que o mundo saiba que
a criança existiu. No processo de provar que o lho existiu, mediante o
enterro decente, Saul também resgata o seu próprio ser-para-a-morte. Uso
a noção famosa de Heidegger para sugerir que existe uma quase tese ao
modo do primeiro Heidegger, no que diz respeito à possibilidade de nos
apropriarmos da nossa morte, mesmo em condições extremas. Assumir a
própria morte é assumir as possibilidades desencobertas quando se desperta
para a distância entre o presente e o m – iminente e indeterminado ao
mesmo tempo. Deixar ou não que o campo dite não só os termos em que
a vida termina, mas também o que é feito com o corpo que ca para trás é
aceitar que uma situação fática dite os nossos projetos. Nos seus últimos
momentos, resgatar a pessoa moral que o campo aniquilou, por meio do
ritual fúnebre, é assumir uma relação pessoal e intransferível com a morte
e a vida que resta.
Contudo, um projeto de poder total não cabe nos limites
hermenêuticos de Ser e tempo. O campo apresenta dilemas tão sádicos e
pervertidos aos internos que apaga as fronteiras entre culpados e inocentes.
O problema de restituirmos a Saul uma persona moral não é só que um
único gesto heroico é incapaz de redimir um número muito maior de gestos
torpes. O problema é identicar um discurso e um agente moral legítimo
depois de um experimento social como o campo de concentração, em
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
182 |
que o humano é forçado a ultrapassar os limites da inumanidade. O lho
de Saul, a seu modo, ecoa debates losócos recorrentes no pós-guerra,
a saber, se o mal testemunhado nos campos não constitui um desao às
nossas categorias losócas.
A resposta – indireta – de Heidegger foi o anti-humanismo e
a renúncia completa a um pensamento que admite a retomada da
individualidade perdida. O segundo Heidegger rejeita a vontade, que ele
entende como voluntarismo, em nome da lassidão como resposta possível
à indigência da noite niilista. A pergunta não é mais se a morte própria
é uma possibilidade – nesse caso, O lho de Saul seria um lme “falso”,
implausível e não-realista. A noção de domínio total de Arendt também
sugere uma inexão qualitativa no modo como o poder é exercido: a
burocracia não é um instrumento neutro quando permite um controle
mais preciso e completo de todo comportamento humano. O campo de
concentração é o protótipo da sociedade futura.
Para refutar na sua versão integral a tese da singularidade histórica (e
por versão integral rero-me às teses de Arendt e a de Giorgio Agamben),
seria necessário armar a indiferença da racionalidade burocrática por trás
do shoá. Inspirados pelo segundo Heidegger, Arendt e Agamben veem uma
forma nova de poder que não só não anula as formas de baixa tecnologia
como as usadas nas Américas como se somam a elas. A noção de que o
aparato burocrático não é neutro não se dirige a negar formas anteriores de
poder, mas a somar-se a elas, criando novas camadas de dominação.
Talvez a losoa contemporânea se debata precisamente entre as
alternativas da resistência e não-resistência ao mal radical. Agamben
tenta evitar a escolha entre voluntarismo e lassidão tendo por modelo
precisamente o último Primo Levi. Embora haja outros depoimentos,
Levi é o único que, segundo Agamben, se propõe conscientemente a
testemunhar em nome dos “afogados”, dos que foram destruídos e
chegaram ao fundo. Primo Levi e outros sobreviventes reconhecem
que nenhum interno ajudava os muçulmanos na sua descida até o
esquecimento. Ao contrário, a incapacidade de se ajudar do muçulmano
permite que outro sobreviva sem precisar sequer lhe dedicar um olhar.
Sobreviva, indiretamente, às suas custas. Zalmen Levental admite que
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 183
em 1941-2, todo, rigorosamente todo, indivíduo que vivesse mais de
duas semanas não pôde fazê-lo senão vivendo em detrimento de outros
(CALMANN-LÉVY, 2005, p. 103). Em Os afogados e os sobreviventes,
ainda mais claramente do que em outras obras, Levi famosamente recusa
o papel de porta-voz das vítimas, não porque tenha iludido ou explorado
diretamente um muçulmano, mas porque reconhece nele a vítima
“integral”. Os únicos inocentes, verdadeiramente, são os que pereceram
sem se acomodar de modo algum. Os outros internos habitam uma
zona cinzenta” em que são culpados e inocentes ao mesmo tempo, por
conseguirem se adaptar ao horror (LEVI, 2016, p. 27). O muçulmano
também é o detento que desperta o maior mal-estar.
O fenômeno da “culpa do sobrevivente”, que pode existir de modo
independente das ações reais do sobrevivente, já fora observado: ele pode
não ter prejudicado o que não sobreviveu, mas se sente culpado por não
ter feito mais (por não ter se insurgido, ou por não ter sido solidário),
ou simplesmente por não ter morrido. O reconhecimento de não ser a
vítima integral já é uma rejeição da posição de vítima privilegiada. Mas
esse fenômeno psicológico está associado ao paradoxo do testemunho em
Primo Levi. Os sobreviventes zeram concessões, ou tiveram habilidade ou
sorte, os que os poupou de sucumbir. Segundo Levi, os melhores, porque
menos adaptados, pereceram todos (LEVI, 2016, p. 65). A testemunha
integral vivenciou todas as formas de sofrimento e opressão, até sucumbir.
A testemunha integral viu o horror mais de perto, e o sobrevivente só pode
testemunhar em seu nome, e cuja credibilidade depende de apresentar-se,
precisamente, como uma vítima não-integral.
O testemunho da opressão
mais profunda é o que não pôde ser dado. O sobrevivente não está no
seu lugar nem pode se nomear seu porta-voz. A história dos campos de
concentração foi escrita por quem não bateu no fundo e carrega a culpa e
a vergonha de sobreviver. Os sobreviventes são as testemunhas possíveis,
mas não integrais.
Para fazer justiça ao texto de Primo Levi e ao seu tratamento por
Giorgio Agamben em O que resta de Auschwitz, muito deveria ser dito,
mas a pergunta que nos concerne aqui é a seguinte: como esta reexão se
situa diante da acusação de Cabrera? Na reconstituição de uma cultura
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
184 |
sobre o shoá, Cabrera deixou completamente de fora o fenômeno da
culpa do sobrevivente. Em seu favor, diga-se que ela pode conviver
perfeitamente com a tese da singularidade. A culpa do sobrevivente
do shoá por não ter perecido no campo ainda poderia ser vivida como
uma culpa “especial”, de sentido mais elevado – a não ser pelo fato de
que Levi e Agamben não armam nada do gênero. Mais importante, a
noção de um biopoder, como descrito por Agamben em toda a série de
escritos intitulada Homo sacer, modula a tese que Cabrera chama “da
singularidade epistêmica” do shoá, do mesmo modo que Arendt faz
quando se refere a uma era nova e desconhecida até hoje. A direção geral
do argumento de Cabrera é de rejeição: o fundo do poço moral para a
espécie humana já foi atingido há muito tempo. A diferenciação interna
entre sofrimento de alta e baixa tecnologia social não só não muda essa
realidade como também a mascara. Mas suspeito que tal resposta mostra
apenas um abismo de princípio entre as respostas.
Chegado esse ponto, parece-me que nos aproximamos de um
limite em que cada uma das partes recusa o que a outra considera ser uma
evidência. O intelectual do shoá poderia responder que o sofrimento nos
campos não foi menor, mas continua sendo qualitativamente distinto, de
uma forma que ainda não foi estudada. Para os adeptos da tese da noite
profunda do niilismo, o poder está hoje em espiral de diversicação e
crescimento (quando atinge novos humanos ou quase humanos como
o óvulo, feto, o agonizante, etc.). Cabrera continuaria respondendo que
dizê-lo é não assumir que a única novidade real é que europeus tenham
sido submetidos a práticas que antes permaneciam fora da Europa, de
modo que ser privado de cidadania não é pior de nunca tê-la tido. A
reexão sobre a colonização da Amazônia desde dentro (em que falar de
dentro não é nem falar como o europeu, nem como o nativo, mas do que
resultou desse encontro) encontra uma diculdade adicional que consiste
não na sua negação direta, mas em um expediente que consiste em lhe dar
uma dignidade menor. As circunstâncias particulares do shoá se devem à
particularidade de todo evento histórico.
Com a referência a Agamben, sustentei que parte da literatura atual
sobre os campos consiste hoje em um exercício de equilíbrio entre ouvir
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 185
as queixas legítimas de todos os povos e a pergunta sobre a peculiaridade
de novas formas de dominação. Novas formas de dominação nem anulam
as antigas, que podem conviver com elas, na verdade até as acentuando.
Enquanto a pergunta sobre se formas mais técnicas de dominação são
realmente mais perversas e totalizantes (ou apenas surpreendentes porque
novas) continua em aberto, Giorgio Agamben tenta equilibrar a tese
arendtiana da ruptura histórica e do surgimento do mal radical em 1942
com a desafetação perspicaz de Primo Levi. “O que resta de Auschwitz”,
em primeiro lugar, pode ser a pergunta sobre como o memorialista lida
com o fato de não ser ele mesmo a maior vítima. Segundo Primo Levi,
para cada opressão narrada e reivindicada, existe uma outra mais poderosa,
cujo poder se manifesta inclusive na sua invisibilidade. Assim, para usar os
termos de Levi, o intelectual (sul-americano ou não) não é o muçulmano,
mas o sobrevivente. O lósofo que aponta as vítimas esquecidas até pelos
pensadores éticos está recuando um pouco mais na direção da testemunha
integral. Contudo, esse discurso, eleaticamente, está fadado a não alcançar
nunca o da vítima: assim como Aquiles nunca alcança a tartaruga. A lição
de Auschwitz é o paradoxo do testemunho.
O abraço da serpente é dedicado a todas as tribos amazônicas que
sumiram sem deixar traço. Contudo, não são elas as protagonistas do drama,
mas antes o sobrevivente, o pajé de um povo aliciado que por isso mesmo
também já se dene como uma sombra vazia. A tarefa de Ciro Guerra e de
todos os artistas latino-americanos em busca de um estilo próprio consiste
em conservar a memória dos que não deixaram traço, mas também em
problematizar sua condição de intérprete. O “umbiguismo” espreita sempre,
e talvez inexoravelmente. Tomemos o caso de Bartolomé de las Casas, citado
por Cabrera como modelo de pensamento ético avançado, ancorado em
um cristianismo da igualdade. Em um Memorial de remédios para las Indias,
propôs que os índios fossem substituídos por negros trazidos de Castela ou da
Guiné. A sua condição prévia de escravos justicaria a troca. Os sofrimentos
dos índios foram considerados ofensivos, mas os tormentos dos africanos
trazidos para cá foram relativizados com o auxílio do clichê da sua força
física e resistência superiores, que dispensavam cuidados (LAS CASAS apud
CAMPLANI, 2011). Anos depois arrependeu-se em parte, condenando a
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guerra santa pela conversão dos africanos exceto por alguns casos lícitos.
8
Assim, pode-se falar de um genocídio interatlântico não mencionado no
texto de de las Casas e tampouco por pensadores pós-coloniais. É necessário
modicar o modo como os estudiosos tratam as relações entre 1492 e 1942,
e é possível mostrar a fragilidades de teses claramente eurocêntricas. Mas a
literatura sobre o shoá não é monolítica, como o pensamento pós-colonial
tampouco é. Nos dois casos ca claro que nossa capacidade para a compaixão
e compreensão estão limitadas por fatores diversos, a predileção de uma
comunidade de estudo dentre outras não sendo o menos importante deles.
referênciAs
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Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. [Homo Sacer III.]
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Zalmen Gradowki, Lejb Langfus, Zalmen Lewental e outros, sem indicação de editor
e cidade]. 2005.
Mais tarde, morando em Lisboa, e planejando uma História das Índias que não viveu para terminar, Bartolomé
condenou os modos violentos dos portugueses. Sem ter viajado até a África, baseou-se nos cronistas para
estabelecer que não havia guerra justa contra os africanos, apesar de a haver contra os mouros. Cf. Souza (2006,
p. 31-32).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 187
CAMPLANI, Clara. La defensa de los Negros en Bartolomé de Las Casas. In: ZOUNGBO,
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| 189
C   
 : U 
   lukluk’i,
 W W(2018)
Abrahão Costa ANDRADE
1
Caio Felipe Varela MARTINS
2
Alguém certa vez disse, de certos lmes, que eles faziam pensar. Difícil
não ter de perguntar, sempre recordando aquela passagem de Platão (2004,
p. 219), no Parmênides, segundo a qual o pensamento é sempre pensamento
de alguma coisa, e de alguma coisa que é, sobre o quê, anal, pensam esses
lmes que fazem pensar. A cartograa de uma obra cinematográca, pois,
também parte do pressuposto de que o lme faz pensar, mas, sobretudo, ela
quer marcar os traços, esboçar pontos luminosos, ligar áreas estranhas entre
si até poder formar um mapa capaz de dar ao pensamento um objeto: um
fora” onde ele possa ganhar espessura, e dizer-se. O lme que escolhemos
perseguir com alguns marcadores e os de ligação tem um título curioso:
Luk’Luk’I. O que é isso? Nos perguntamos no início. Mas, ndo o lme,
não largamos fácil a mesma pergunta. O que é isso? O que foi isso? O que
Professor titular de Filosoa da Universidade Federal da Paraíba – UFPB / João Pessoa / PB / Brasil. E-mail:
andradesimples@gmail.com
2
Professor de Filosoa da Rede Estadual de Educação da Paraíba. E-mail: varelacaiof@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p189-210
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
190 |
isso que acabou de acontecer na tela como um conjunto de situações nos
obriga a dizer? O que isso nos ena goela abaixo a pensar?
Logo na primeira cena surge-nos algo não menos intrigante: temos
uma cidade noturna em pleno movimento, e apenas o barulho de um
cachorro chorando, latindo, a acompanhar. Após isso, aparece um homem
levantando de uma cama, vestindo-se, e deixando uma mulher, que
continua deitada. O homem a deixa de um modo que quase entendemos
ter havido ali, não uma relação sexual entre marido e mulher, mas, no
mínimo, uma relação de sexo casual. A mulher, ainda deitada, e já livre do
parceiro, faz o sinal da pomba da paz com as mãos contra a luz vermelha
que lhe chega em seu quarto penumbroso através de sua janela solitária.
O lme mal começa e já nos deparamos com alguns “signos”, isto é, com
ofertas de sentidos ainda não simbolizados, ainda não preenchidos com
conotações que possam vir a constituir um plano de imanência capaz de
circunscrever uma ou várias signicações. Há a luz vermelha e há a pomba
da paz. Há um homem que sai e uma mulher que ca e, entre os dois,
entre a presença e a ausência, há um cão. O signo se torna símbolo do que
adiante chamaremos de uma política do desejo, ou melhor, já que o desejo
são forças moleculares, chamaremos de uma “micropolítica” de forças
contrastantes, entre a ação e a reação, entre a atividade e a reatividade,
num espaço de vida fora da subjetividade, porém dentro do corpo vivo
de cada um. Pomba da paz + vermelho do sangue: uma paz violenta? O
contraste “sígnico” trabalharia, então, para revelar o contraste “simbólico
entre o desejo e a realidade social, o desejo de paz e a violência do social
(ou a máquina de transformar desejo em produção material). O plano
de imanência se deixaria ver na formação da realidade social como força
reativa, e o desejo de romper com essa materialidade reativa da força social
como contraparte de algo que se furtaria à continuidade própria do que
somos levados a chamar de “realidade”.
Esse contraste entre realidade (forças reativas, já constituídas, o ente)
e desejo (forças ativas, em vias de se constituir, o ser como devir), entre
delírio e condição material da existência, pois, ele perfaria a micropolítica
das forças, e o lme em foco, nos interstícios de cada cena, trabalharia para
nos mostrar o movimento micropolítico trabalhando em imagens (perceptos
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 191
e afectos), oferecendo-se às operações de pensamento (os conceitos), para
usarmos as expressões de Deleuze e Guattari (2010, p. 193). Assim, um
homem (em seu boné, um nome escrito: Jesus) joga vídeogame com um
amigo. Ao sair do jogo, entra no Facebook e encontra o perl de seu lho.
O homem arma não o ver ou falar com esse lho há muito tempo. Pede
para seu amigo escrever uma mensagem para o lho dizendo que quer
encontrá-lo. Que o lho ligue para ele. O homem é viciado em droga
injetável e pede para esse seu amigo dez dólares para arranjar o próximo
pico”, armando, sob o típico efeito das forças reativas, que será o último.
Aqui, mais uma gura da micropolítica antevista: o desejo de ver o lho
(ativo) e a ssura de mais um pico (reativo). A ssura seria da ordem de uma
sociedade que possui sua estatística de drogados, e da qual aquela gura
faz parte. Dizer “será o último” é pôr em cena um certo desejo de largar;
mas o vício, assim como a totalidade social, faz o indivíduo sucumbir ao
movimento total da máquina de produzir viciados. Ao mesmo tempo, o
desejo sadio de rever o lho destila-se por dentro da derrota do indivíduo,
como uma armação que resistisse à negação, como uma atividade que
pulsasse contra a reatividade que o consome.
O mapa, nesse ponto, toca o limite tênue entre a liberdade de o
indivíduo ser ou não viciado e a sociedade, que produz esses indivíduos
“livres”. Daí o desejo de criar linhas de fuga. O amigo do pai drogado,
também ele um viciado, ao se drogar, tem uma “viagem” na qual aparece
um disco voador que projeta sua luz sobre ele, conotando uma abdução
alienígena. Seria, porventura, o desejo de permanecer indivíduo enquanto
o escolhido para ser catapultado para além da Terra. Outro homem aparece,
em sua casa, na cama, com uma deciência motora notável. Ele sai com
diculdade sozinho de sua cama para a cadeira de rodas e vai ao shopping
onde encontra uma patinadora, que está fazendo suas manobras no meio
do local; para-a e pergunta se ela não gostaria de ir, com ele, encontrar um
ingresso barato para o jogo (estão acontecendo as olimpíadas de inverno),
para assistirem juntos. A moça se nega a ir e tenta vender a ele uma de
suas camisas, pois ela arma ser famosa e precisar vender tais camisas para
arrecadar dinheiro. A patinadora encontra-se com uma pessoa que criou o
design para sua marca e suas camisetas; ela está insatisfeita com o resultado
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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e arma que não tem brilho suciente. Digno de nota é que ela sempre
está armando ser famosa (e ser mulher), enquanto mostra para o designer
seus vídeos patinando pela cidade. O rapaz pede o pagamento pelo seu
trabalho e ela diz ter dinheiro, mas rearma que é famosa e traz muito
amor para as pessoas, o rapaz fala que precisa de dinheiro e não de amor,
ao que ela diz que amor vale mais do que dinheiro. No meio da conversa
passam por ali um grupo de torcedores (do time nacional de Hockey). Os
rapazes começam a praticar bullying com ela do lado de fora do local: entre
eles uma vidraça. A patinadora decide tomar satisfação com esses rapazes,
vai atrás deles e acontece uma briga na qual eles tiram a câmera que ela usa
para fazer seus vídeos e a quebram. A patinadora, e não os arruaceiros, é
presa por conta da briga ocasionada pelo grupo de torcedores; os policiais
alegam conhecê-la; tratam-na como louca e insistem em chamá-la por seu
nome de registro (Jerey Dawson): ela é uma mulher trans.
A tensão social das forças ativas e reativas, a micropolítica do desejo,
não cessa de se desdobrar. O cadeirante continua tentando encontrar
ingressos para o jogo, com ambulantes na rua, e é na maioria das vezes
ignorado, até um daqueles ambulantes dizer que conseguirá os ingressos
pra ele, pedindo para segui-lo até um local ermo, onde, ca sugerido,
rouba de sua pochete o dinheiro reservado para a compra dos ingressos.
O homem (do boné escrito Jesus) consegue, supostamente, já que estamos
no estreito limite entre a alucinação e a realidade, marcar com seu lho
um encontro para assistir uma das partidas do jogo olímpico, mas ele
estava “trabalhando”, tirando um monte de terra de um lugar para colocar
em outro, em uma casa, e seu “patrão” o impede de sair mais cedo para
o suposto encontro com o lho. A moça da primeira cena compra um
presente que, pelo teor (tiaras, brinquedos de loja de 1 dólar), enseja saber
tratar-se de uma mãe, cuja lha estaria aniversariando naquele dia. Em
outra cena, ela é impedida de ver a lha: tudo indica tratar-se de uma
ordem da família ou de algum funcionário de conselho tutelar, alegando-
se que ela estava bebendo e/ou sendo violenta por conta de um incidente
fortuito captado pelo som do celular: alguém esbarra nela e derruba seu
aparelho no chão e ela o xinga.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 193
A partir daí começa a car claro para nós que o lme se oferece como
um amálgama bem intricado de delírio e realidade; de desejo de estar em
outro lugar e obrigação de estar aqui. A micropolítica dá-se como uma
luta entre o desejo de armação de si de cada um e a máquina social que
mói esse desejo. Tal máquina pode ser chamada de várias formas: Estado,
capitalismo, sociedade, violência. E necessariamente todas essas formas
fazem parte dela. O que Suely Rolnik chama de capitalismo nanceirizado
pode ser explicado como uma nova forma de regime que se atualiza desde
o modo anterior do capitalismo industrial. “O regime capitalista anterior”,
diz Rolnik, “precisava de corpos dóceis que se mantivessem sedentários,
cada um xo em seu lugar, disciplinarmente organizados (como os
operários da fábrica)” (ROLNIK, 2018, p. 165). Todavia, a tritura do
desejo de cada um em sua singularidade progride com as transmutações
do próprio regime do capital. “O capitalismo nanceirizado necessita de
subjetividades exíveis e ‘criativas’ que se amoldem, tanto na produção
quanto no consumo, aos novos cenários que o mercado não para de
introduzir” (ROLNIK, 2018, p. 165). O compasso entre o delírio do
desejo e a realidade de interdição de sua realização força a plasticidade dos
sujeitos. “O regime necessita produzir subjetividades que tenham suciente
maleabilidade para circular por vários lugares e funções, acompanhando
a velocidade dos deslocamentos contínuos e innitesimais de capital e
informação” (ROLNIK, 2018, p. 165). O que vemos em Luk’Luk’I é o
que nossa autora chamaria de micropolítica ativa e micropolítica reativa,
porém travadas simultaneamente, e do lado dos excluídos do capital como
parte de sua engrenagem.
Diferente da macropolítica que busca a sustentação de um status
quo (seja ele à gauche ou à droite), a micropolítica se desenvolve pelos
veios do corpo de cada um; seria o desejo que se move e o desejo que se
esbarra, a força ativa e a reativa que separa a primeira daquilo que ela pode
(DELEUZE, 2018, p. 56): um homem deciente que deseja um amigo
(pra assistir ao jogo, mas mais do que isso); uma mulher mãe que deseja
transbordar seu amor pela lha; uma mulher trans que busca a fama como
desportista (patinadora) portadora de responsabilidade social: ela ajuda
na organização do trânsito; um pai desgarrado que deseja reencontrar-se
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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com o lho; um homem viciado que busca a fuga totalmente completa
da realidade (uma abdução). E, em tudo isso, o empecilho causado pela
máquina trituradora de desejos: o preconceito com a deciência; a falta
de emprego; a transfobia; o preconceito com a loucura; com o vício; etc.
A máquina social, molar, constituída, real, existe contra o desejo que,
sufocado e separado do que pode, transforma a atividade produtora de
mundos moleculares em meros delírios. Ou dito de outro modo, o delírio
se efetiva como tal pela impossibilidade social (material) de realizar-se
como um desejo efetivo, que poderia criar milhões de mundos, mas jaz
sob a imaterialidade da alucinação.
Observemos mais de perto essa dupla máquina, a desejante, que se
degenera em delírio; e a de moer desejos, que se degenera em realidade
supostamente incontornável do capital vencedor da história. Olhemos
essa última máquina, por um momento, pela ótica do preconceito. Que
seja, então, evocada a diferenciação feita por Félix Guattari em seu livro
escrito em parceria com Suely Rolnik, Micropolítica: cartograas do desejo,
sobre a questão da marginalidade e das minorias. “É preciso distinguir as
marginalidades e as minorias. Trata-se de uma distinção de método. Na
linguagem habitual, podemos dizer que as ‘pessoas-margens’ (marginais)
são as vítimas de uma segregação e são cada vez mais controladas, vigiadas,
assistidas nas sociedades (ao menos nas desenvolvidas)” (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p. 119). Sabemos do uso que Michel Foucault faria dessa
contingência em seu livro Vigiar e punir. “No fundo”, continuam nossos
autores, “tudo o que não entra nas normas dominantes é enquadrado,
classicado em pequenas prateleiras, em espaços particulares, que podem
até mesmo ter uma ideologia teórica particular”: tudo é cercado na
vigilância, e tudo está disposto à punição. “Há, portanto, processos de
marginalização social à medida que a sociedade se torna mais totalitária,
e isso para denir um certo tipo de subjetividade dominante, à qual cada
um deve se conformar.” Isso ocorreria “em todos os níveis: desde a roupa
que você usa, até suas ambições, suas possibilidades subjetivas práticas”.
Isso quanto aos marginais. “As minorias são outra coisa, no sentido de
que você pode estar numa minoria querendo estar nessa minoria. Há, por
exemplo, minorias sexuais que reivindicam a não participação no modo de
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 195
valores, de expressão da maioria. Podemos imaginar uma minoria que seja
tratada como marginal ou um grupo marginal que queira ter a consistência
subjetiva e o reconhecimento de uma minoria, por exemplo” (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p. 119). No território fílmico explorado aqui, e uma
vez que seu cenário é uma das metrópoles canadenses (Vancouver), a
marginalidade como um espaço imposto pelo social denota muito melhor
a realidade de tais personagens que, entrementes, não estão fora do que se
poderia também chamar de “minorias” (como no caso da transsexual).
Nesse terreno movediço, vemos o trabalho micropolítico estender-se
na tensão já referida entre o desejo de cada um, como uma espécie de ponto
focal na nossa cartograa do plano de imanência que o lme imprime, e
a máquina social, azeitada nos corpos dos próprios sujeitos desejantes. O
cadeirante, então, reaparece, agora em um bar cuja singularidade consiste
em exigir de seus clientes que participem de um jogo de bingo, não se
podendo beber um trago a não ser com sua cartela à mão. Nosso cadeirante
diz não querer jogar, apenas beber; em contraponto, a funcionária do
bar insiste que só pode consumir quem participar do jogo, e pede para a
pessoa ao lado ajudá-lo com o preenchimento da cartela, por conta de sua
precária condição motora. O jovem e belo homem da mesa ao lado aceita o
encargo, ainda que relutante. Nesta cena ainda é mostrado que o cadeirante
e o homem da mesa ao lado se conectam, conversam e dão risadas. No
nal da noite, o cadeirante ganha o bingo, cujo prêmio são nada menos
que dois bilhetes de ingresso para a celebração nal da olimpíada. Nosso
personagem, que tanto desejou esses bilhetes, agora convida para ir com
ele ao jogo o novo “amigo”, o companheiro de bar, que camos sabendo
ser viúvo de um esposo muito amado. O belo viúvo reluta um pouco,
mas aceita o convite. Aqui tudo se torna por um momento potência de
armação. A vida parece abrir-se para novas possibilidades.
É nesse clima de potência das forças ativas que a patinadora também
reaparece, agora presa. Em sua cela, começa a sonhar acordada. Em sua
fantasia, está patinando em um rinque de gelo, com holofotes focados em
sua apresentação. Num certo momento ela está apenas com um parceiro que
acompanha seus movimentos dançarinos; em outro, está acompanhada de
várias mulheres que são apenas “gurantes” de sua apresentação, exaltando
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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pelas margens a sua performance central. O lme subitamente quase se
torna um musical.
É interessante chamar atenção para um detalhe dessa fantasia
glamourosa: a música que acompanha a dança traz na letra a frase: “this
is my destiny”. O destino do ser humano seria armar-se: deixar que suas
forças estejam juntas daquilo que elas podem (DELEUZE, 2018, p. 56), ir
até o limite do que pode um corpo.
Mas, se a fantasia fala dessa realidade ontológica, a realidade nua e
crua grita seus absurdos. A mãe encontra sua lha aniversariante, também
em um rinque de patinação, entrega seus presentes, a lha demonstra
ter adorado, as duas se abraçam e conversam, a cena se passa como um
encontro muito feliz, principalmente para a mãe. Mas tudo indica que essa
cena não acontece “de verdade”: é a projeção de um desejo.
Da mesma forma, o homem (de boné Jesus) está em um karaokê, o
bar está vazio, ele começa a cantar e fazer uma exibição de uma música em
cuja letra aparecem as palavras: “I gotta do it my way, or no way at all”. Seu
lho aparece em um lugar escuro e ermo do bar, assistindo-o. Eles anal se
encontram e seguem para também assistir ao jogo. Todavia, o homem está
aparentemente inquieto muito provavelmente por causa da abstinência de
droga. Conversa poucas coisas com seu lho, mas não consegue manter o
foco em nenhuma conversa. Súbito pede ao lho dez dólares para comprar
algo, que não especica. Os mesmos dez dólares do começo do lme? O
lho, com a carteira cheia de dinheiro, entrega a grana ao pai, que sai sem
dar explicações e não assiste o jogo.
O homem do desejo de abdução também reaparece. Agora a caminho
de uma casa muito bonita e que parece casa de pessoas abastadas. Ele, junto
com seu skate, traz um buquê de ores. Somos levados a pensar que aquele
teria sido um dia o seu lar. Quando chega, bate à porta, mas ninguém o
atende. Tenta de novo, e a mesma coisa acontece. Ele decide dar a volta
na casa, olhar se tem alguém. Enquanto arrodeia, passa por uma cozinha:
a câmera lma por dentro da casa e mostra ores mortas em um jarro,
estas iguais as ores que ele carrega na mão; e uma mulher que suspende
a respiração enquanto se esconde dentro da casa, para fazer crer não haver
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 197
ninguém ali. Quando o homem volta à porta da frente, vê-se uma viatura
policial. Ele vai novamente tentar bater à porta. Os policiais saem da
viatura e perguntam se ele mora nesse local. “Morava”, ele responde. Um
dos policiais pergunta: “Pode vir conosco?” e o levam em sua viatura.
Nem, de fato, a mãe encontra a lha; nem o pai, o lho, a não ser no
mundo do delírio, porém ambos são encontrados pela realidade positiva
das decisões judiciais ou pela realidade biológica do vício. E quando, na
realidade mesma, sem fantasia, um dos personagens procura reatar seu
vínculo com esse real duro, as forças policiais aparecem para mostrar a
impossibilidade disso.
Na micropolítica entre a máquina desejante e a máquina de estilhaçar
desejos, a realidade é responsável pela ironia dos acontecimentos prováveis.
O cadeirante aparece novamente em sua cama, assistindo uma reprodução
do jogo. Ele está feliz, vendo os casais aparecendo na Kiss Cam (tradição
em jogos na América do Norte, quando a câmera foca em casais que, ao
aparecerem no telão dentro de um formato de coração, beijem-se para a
câmera, sendo ovacionados pelos outros torcedores nas bancadas), e o desejo
de estar no meio daqueles casais é tão grande que, nesse momento, ele se vê
igualmente com o seu novo amigo, aparecendo na Kiss Cam, eles trocam
olhares acanhados e o seu companheiro para júbilo geral o beija. Mas,
em seu quarto real, ele está apenas emocionado com o momento vivido
somente em imaginação. Ele sai da cama, sobe em sua cadeira de rodas, vai
até o corredor, prontamente vestido para a date com o novo amigo, o viúvo
bonitão, mas o elevador está quebrado. Resta-lhe, então, duas opções: sair
da cadeira, jogar-se no chão e descer as escadas, arrastando-se pela realidade
humilhante; ou continuar seu dia fantasiando uma segunda possibilidade,
a do desejo que o dignica.
Em certo momento, Luk’luk’I começa a iluminar certos locais de seu
terreno e podemos ver mais de perto seus movimentos mais íntimos. Vemos
dois principais que, ao serem iluminados, mostram relevos completamente
diferentes. Começamos pela mãe, que aparece em uma cena entregando
o presente, ainda fechado, para um amigo (provavelmente pai de menina
também), nos mostrando que o seu encontro com a lha não teria passado
daquilo que Freud alhures chamou de sonho diurno. Após entregar o
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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presente, chama esse amigo para se drogar na casa de outro. Este outro com
quem ela se encontrará é o homem de boné (Jesus), que agora entendemos
ser ele o pai também da lha dela. Ele, então, confessa estar infectado
pelo vírus HIV. Outro relevo iluminado que encontramos é o amigo do
cadeirante, que aparece na frente do estádio, com um ingresso na mão, nos
mostrando que na verdade eles não chegaram a se encontrar e assistir juntos
ao jogo. Logo após, vemos o amigo correndo até a casa do cadeirante,
encontrando-o no chão da escadaria de seu prédio e o ajudando.
O cadeirante diz ao amigo:
Não achei que viria, pensei que estivesse com medo. Também
estou com medo, mas vai car tudo bem porque podemos car
com medo juntos. Isso é... tudo está tentando nos impedir, nos
dizendo que não podemos, mas por isso é tão especial. Há tantas
maneiras de perdermo-nos um do outro. Eu sei, também estou
perdido. Que importa quantos amantes a gente tem se nenhum
deles pode te dar o universo? O universo é um lugar amedrontador,
muito amedrontador, mas a gente pode segurar rme, se nós dois
segurarmos bem rme, talvez não percebam quem tem mais a
perder. Talvez eu possa te dar... o universo.
Ao som desse monólogo, vemos imagens de todos os personagens:
o homem de boné Jesus chora enquanto vê uma imagem de seu lho; o
homem do desejo de abdução aparece em um espaço aberto onde é anal
abduzido por uma nave extraterreste; o cadeirante é levado para casa nos
braços de seu amigo viúvo bonitão; a patinadora aparece nas ruas da cidade,
livre, patinando.
E temos uma cena nal na qual a mãe da menininha, porventura a
mesma mulher da cena inicial, do quarto de luz vermelha, com o gesto de
pomba da paz, aparece oferecendo-se à prostituição, na rua. Um homem
a aborda, pechincha o preço; ela entra no carro; ele agora diz que quer o
sexo sem preservativo; ela, então, sobe o preço do programa. No nal da
cena temos a câmera lmando a rua movimentada da cidade de Vancouver,
ao som do sexo entre a mulher e seu cliente. Próximo do êxtase do gozo,
escutamos barulhos de socos, engasgos e, anal, o silêncio eloquente da
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mulher misturado ao som triunfante do orgasmo do cliente, agora um
assassino, de fato, e, já que quis o sexo sem camisinha, um novo infectado
pelo HIV.
O terreno – plano de imanência – ao que tudo indica desvela-se
enm para nós. O desejo nos aparece sob várias formas: do senso comum
ao conceito intelectualizado, aqui nos debruçaremos sobre duas principais
conceitualizações do desejo: Lacan e Deleuze. Lacan, ao formular em seu
Seminário (livro 6): o desejo e sua interpretação, coloca o sujeito como ligado
à linguagem, pois é através dela que expressamos nosso ser. O desejo, para
Lacan (2016, p. 26), se manifesta “no intervalo, na hiância que separa a
pura e simples articulação linguageira da fala daquilo que marca que o
sujeito aí realiza algo dele mesmo, algo que não tem alcance, que só tem
sentido em relação a essa emissão da fala, algo que é seu ser – o que a
linguagem chama com esse nome.” Podemos perceber o desejo, para Lacan,
como uma experiência de uma dimensão entre a fala e a realização de algo
pelo sujeito, mas esse algo que não se alcança a não ser pelo desejo mesmo.
Em Luk’Luk’I vislumbramos essa visão lacaniana quando os desejos dos
personagens aparecem em suas fantasias, mas não necessariamente na fala
ou na realidade. Outra coisa importante que podemos tomar emprestado
de Lacan é o papel de defesa do eu do sujeito. Nosso autor arma que “o
sujeito se defende com seu eu” (LACAN, 2016, p. 28). Mas do que ele
se defende? Ele se defende “de seu desamparo e, com esse recurso que a
experiência imaginária da relação com o outro lhe dá, constrói algo que,
diferentemente da experiência especular, é exível com o outro”. Ora, o
que o sujeito reete “é ele mesmo como sujeito falante” (LACAN, 2016, p.
28). O desamparo não só se presentica naqueles que estão à margem, mas
também naqueles que estão no centro, e aqui é que vemos a importância
da diferença que Rolnik nos mostra entre micropolítica ativa e reativa.
Para atentarmos melhor a essa diferença, contudo, devemos, agora,
passar pelo terreno do desejo em Gilles Deleuze. Deleuze e Guattari,
em seu livro Anti-Édipo (2011) problematizam a questão colocada na
psicanálise do desejo como falta, falta de um objeto. Tal problematização
se mostra importante por vermos em Luk’Luk’I, de passagem rasteira, que
os personagens buscam um objeto que lhes falta em sua realidade (amizade,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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amor, família), mas, quanto mais adentramos no terreno mais podemos
perceber o desejo enquanto uma produção de realidade “outra” de cada
um. Se, em Lacan, o eu é quem defende o sujeito, aqui, com Deleuze e
Guattari, eu e sujeito são um só, e o que ambos defendem é anterior ao
sentimento de falta: não há falta, há produção de outra realidade, porque o
que está fora do sujeito é sua pulsão vital, que é uma máquina de inventar e
produzir, e não um buraco negro, um oco. Os autores inferem que (2011,
p. 42) “[...] se o desejo é falta do objeto real, sua própria realidade está
numa ‘essência da falta’ que produz o objeto fantasmático”, esse último
seria o objeto que podemos ver da fantasia de cada um, como observamos
anteriormente, mas mesmo quando o fantasma
é interpretado em toda a sua extensão, não mais como um objeto,
mas como uma máquina especíca que põe em cena o desejo, essa
máquina é apenas teatral, e deixa subsistir a complementaridade
do que ela separa: então, a necessidade é que é denida pela
falta relativa e determinada do seu próprio objeto, mas também
reduplicando a falta, levando-a ao absoluto, fazendo dela uma
‘incurável insuciência de ser’, ‘uma falta-de-ser que é a vida’.
(DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 42-43).
de tal modo que a fantasia se recupera da falta insuando vida onde não
há vida, criando um plano de consistência nas malhas da imanência, que já
não se deixa mais sgar como mera “falta”, mas como produção tanto do
que lhe falta quanto do que lhe locupleta.
A ser assim, isso nos leva a armar que a produção desejante não se
reduz à produção da fantasia, pois o fantasma enquanto máquina é denido
pela falta, mas uma falta adicionada como um ingrediente presenteado
pela formação social, que é aquele “fora” do sujeito acima referido, um fora
do sujeito que é o dentro de seu próprio corpo, que é o seu próprio corpo
como “corpo sem órgãos”, isto é, como o maciço plástico de si mesmo
enquanto pulsão vital e pulsão de morte (ANDRADE, 2020). Deleuze e
Guattari (2011, p. 43) armam que:
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 201
se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele só
pode sê-lo na realidade, e de realidade. [...] Nada falta ao desejo,
não lhe falta o seu objeto. É o sujeito, sobretudo, que falta ao desejo,
ou é ao desejo que falta sujeito xo; só há sujeito xo pela repressão.
com isso, podemos inferir que a produção de cada um dos desejos dos
personagens é produção de realidade, e por isso, vemos a realidade daquilo
na expressão de cada um: felicidade ao se ver beijando a pessoa amada,
emoção ao ver a lha, satisfação ao ver o lho, alívio ao ser abduzido.
Por conta de o desejo ser ele mesmo seu objeto, que a imagem
fantasmática revela, nós podemos colocar a realidade social capitalística
como destruidora de desejo, ou, como dissemos anteriormente, máquina
moedora, moedora da própria produção desejante de real de cada um
daqueles personagens postos à margem de outras realidades entrementes
disponíveis e, entretanto, deles subtraídas. Desta feita, “não é o desejo que
exprime uma falta molar no sujeito; é a organização molar que destitui
o desejo do seu ser objetivo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 44). A
organização molar, a máquina social moedora, aqui pode ser tomada como
a organização material que impõe o lugar daqueles que não se encaixam
no centro enquanto produtores e consumidores normais. O lugar deles é
a margem. Nos personagens, o desejo não para de produzir suas próprias
realidades, e quanto mais adentramos o terreno no qual essa produção é
efetuada, mais sentimos que a máquina social sempre funciona como uma
tentativa de conter o desejo, paralisá-lo, enquanto o desejo sempre arranja
uma forma de deslizar pelos menores buracos ou espaços que existem no
social. Nesse sentido, o cadeirante é uma bela metáfora fílmica do que
estamos pensando.
Quando, de fato, vemos o cadeirante sonhando com um beijo do
seu belo homem, não estamos vendo apenas fantasia, mas um “real” que
escapa de seu corpo, a felicidade, a emoção do acontecimento que não
se atualizou, mas que não deixa de ser, na virtualidade ontológica de seu
estofo, uma produção de uma máquina desejante, e, como vemos logo
na primeira página da obra Anti Édipo, Deleuze e Guattari começam por
dizer (2011, p. 11): “Há tão somente máquinas em toda parte, e sem
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qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas
conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta
emite um uxo que a outra corta”. Podemos decerto pensar que, de alguma
forma, a máquina fonte seria o social, a produção material, mas esta é uma
assunção completamente errônea; a máquina fonte é, e sempre foi, desejo,
e a máquina-órgão, aquela que corta, sempre foi a organização, também
porque para organizar precisa cortar, delinear algo, disciplinar. Por não
aguentar a produção desejante innita e caótica, a máquina-órgão, o órgão-
estado, órgão-social, órgão-capitalismo arranja meios de cortar, delinear,
economizar a produção de desejo, até tornar o ser humano, de modo
ideológico, isto é, falso ou unilateral, “um ser da falta”. Mas, “ser da falta
coisa nenhuma, como nos mostra o cadeirante: mesmo amesquinhados
pela máquina material, somos, até o fundo de nós mesmos, armação de
si, força ativa, não separada de si mesma, força capaz de ir até depois do
limite do que pode um corpo. O cadeirante, que também tem diculdade
de falar, é a imagem do que pode até mesmo aquele que nada pode: ele
deseja, e isso faz a diferença.
A pergunta “como isso é possível?” nos aparece, e podemos responder
a partir do próprio terreno em que entramos, onde vemos uma produção
de desejo que não cessa, mas que é parada por uma política das forças
reativas (o próprio mundo e suas organizações), que tenta por todos os
meios separar a força ativa daquilo que ela pode. Tomemos dois exemplos
que nos ajudarão neste momento: um homem cadeirante que busca
uma amizade (como prelúdio de um amor maior), e quer ser visto para
além da pena e do desconforto (algo já produzido pela própria máquina
social, que precisa de “coitados” para exercer sua caridade samaritana de
padres) (DELEUZE, 2018, p. 149); e uma mulher trans, patinadora,
que já se supõe famosa, mas deseja o reconhecimento disso e precisa da
simples possibilidade de lhe levarem a sério, precisa da não-discriminação.
Podemos entender até aqui o desejo como uma produção, que está entre
a realização e a linguagem, e uma produção que está sempre em vias, não
de se realizar necessariamente, mas sempre de produzir mais realidades
dentro de um parâmetro em que temos de relativizar a “única” realidade
efetiva, de tal modo que ela possa advir à compreensão, não mais como
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 203
modelo normativo, mas como um delírio entre outros. Com isso em vista,
adiantemos uma distinção que logo mais nos será muito útil, aquela que
a etimologia não oferece, mas a tarefa do pensamento exige, entre ética e
moral. Digamos, então, que a moral está para o bem agir no âmbito do
molar, assim como a ética está para o viver bem no âmbito molecular.
Mas, não deixemos de acrescentar, também no âmbito micropolítico do
molecular existe uma “moral”: justo aquela da micropolítica reativa, que
procura separar, dentro do corpo, a força daquilo que ela pode. Jürgen
Habermas, em A inclusão do outro (2018) chama-nos a atenção sobre o
teor cognitivo da moral, ou seja, o que há de razão, ou, de uma razão
cognoscente presente nas regras morais. “As regras morais”, diz ele, “operam
de modo autorreferente. Sua força para coordenar a ação comprova-se em
dois níveis de interação interconectados”. No primeiro nível, as tais regras
dirigem a ação social de modo imediato ao vincularem a vontade dos
atores e orientá-la de uma determinada maneira”. Já no segundo nível, elas
regulam as tomadas de posição em caso de conito. Uma
moral não somente diz como os membros da comunidade
devem se comportar; ela fornece, ao mesmo tempo, as razões
para a resolução consensual dos respectivos conitos de ação.
(HABERMAS, 2018, p. 34).
Desta forma, percebemos, na realidade, tanto nossa, quanto em
Luk’Luk’I, que a moral tem um papel importante também enquanto
personagem, não um personagem só, mas como vários: as pessoas que
ignoram o cadeirante ou o ladrão que lhe leva o dinheiro dos bilhetes, os
torcedores que fazem bullying com a patinadora, aqueles que impedem a
mãe de se encontrar com a sua lha, os policiais (e/ou os pais ou a ex-esposa
que o chamam) que prendem o homem do desejo de abdução por querer
visitar sua própria mulher (que, por sua vez, deve ter razão de sobras para
evitá-lo). Todas essas atitudes partem de uma certa moral aprendida com
a própria sociedade. Faz parte também do que leva os sujeitos a posições
marginais da sociedade.
O que vamos diferir aqui enquanto micropolítica ativa e reativa é a
forma com que o sujeito se faz, ou o que o sujeito faz com seu desejo ao
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confrontar o impulso nômade, molecular, de sua ética da armação de si com
as barreiras (molares e moleculares) da máquina moral. Agora, com efeito,
podemos reencontrarmo-nos com Suely Rolnik, que só aparentemente foi
deixada solta lá atrás. Para ela, em sua obra Esferas da Insurreição (2018),
existem duas formas de lidar com algo quando acontece alguma coisa que
tira o sujeito do eixo. Usaremos de exemplo as barreiras já comentadas
aqui, nas quais os personagens de Luk’Luk’I se encontram. Existe uma
micropolítica ativa e uma micropolítica reativa que se guiam por bússolas
diferentes, a primeira por uma bússola ética; a segunda, por uma bússola
moral. Rolnik fala da realidade, e como lidamos com ela, usando a alegoria
da obra Caminhando de Lygia Clark, na qual, sobre uma ta de moebius se
deve operar um corte; se este corte se dá até o seu m, a parte cortada se
destaca, e se cria mais do mesmo, mas se ao chegar perto do m se corta
em um outro ponto a referida ta, toma-se um caminho diferente, o corte
inusitado estará sempre continuando por pontos diversos. Rolnik dene a
micropolítica ativa como “essa política de desejo”, que é própria, diz ela,
de uma subjetividade
que habita o paradoxo entre suas duas experiências simultâneas,
como sujeito e fora-do-sujeito. Uma subjetividade que consegue
sustentar-se na tensão entre as forças que delas emanam, as quais
desencadeiam os dois movimentos paradoxais (ROLNIK, 2018,
p. 60).
Seria o caso, então,
de uma subjetividade que está apta a sustentar-se no limite da
língua que a estrutura e da inquietação que esse estado lhe provoca,
suportando a tensão que a desestabiliza e o tempo necessário para a
germinação de um mundo, sua língua e seus sentidos.
Entre Lacan e Deleuze, a produção de subjetividade envolve-se,
então, na produção de um certo saber. É essa subjetividade que “sabe
(extracognitivamente) sem saber (cognitivamente) que corta a superfície
nos mesmos pontos”, mas sabe também que isso “não lhe devolveria o
equilíbrio, pois a manteria connada na forma que perdeu seu sentido, cuja
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 205
falência é responsável por sua desestabilização”. As nossas personagens do
lme de cujo território vimos desenhando a cartograa vivem, em cada um
de seus dramas, essa tensão característica da micropolítica assim delineada.
A política de desejo, da qual nos fala Rolnik, leva-nos a pensar
sobre o que exploramos do terreno até agora: o desejo é o que leva os
personagens a saírem de sua realidade atual, como nômades, mesmo que
em alguns momentos não o conseguindo, ou seja, estando como estão
atados à malha da realidade social que os comprime. Nômades, todavia,
são, sobretudo, aqueles que não emigram, e que fazem de suas viagens uma
forma de manter-se no mesmo local (DELEUZE; GUATTARI, 2012,
p. 55). Vemos personagens que usam da fantasia para se propulsionar,
para criar realidades outras, seja para fugir da realidade em que vivem, na
margem, seja para furar o próprio real, relativizando-o, não no sentido de
amenizar a consciência de sua crueldade, mas no sentido de criar outros
mundos possíveis dentro do cerco do mundo real.
Enquanto o migrante abandona um meio que deveio amorfo ou
ingrato, o nômade é aquele que não parte, não quer partir, que
se agarra a esse espaço liso onde a oresta recua, onde a estepe e
o deserto crescem, e inventa o nomadismo como resposta a esse
desao (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 55).
O devaneio é o nomadismo de quem sofre o deserto da realidade.
Ao fazer esse caminho nômade de criação de mundos outros, ampliados,
dentro do estreito mundo da realidade mesquinha, a micropolítica
ativa é realizada em uma mão dupla, estourando a imanência sem criar
transcendências, mas, ao contrário, internando-se mais no tecido do real
sob a forma de rizomas, ou seja, de multifacetadas linhas de fuga que
variam qualitativamente sem se multiplicar quantitativamente: o fantasma
do desejo se torna a contrapartida real contra a realidade factual que se
desenrola sob um fantasma não menos alucinado que o primeiro, aquele de
que, somente por ter sido elegido como “o real”, seria também inconsútil,
denitivo, e absurdamente único.
Aqui, nosso crisol. Aqui o ponto focal mais reluzente. O mapa está
traçado: “A/B (BA=C)”. Cada um dos dramas encenados no lme parece
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cumprir esse mapa de um território que se delineia com esses parâmetros:
A” (a força molar, reativa) barra “B” (a força molecular, ativa); “B” fura
() por meio da fantasia o bloqueio de “A” e produz (=) “C”, onde “C” é
uma multiplicidade, um devir outro. Mas, alcançado esse ponto, a tensão
mais pura das micropolíticas desponta ainda mais forte, quando o próprio
real é obrigado a ser pensado como uma alucinação, um sonho que, por não
ser sonhado por nós, mas por outrem, os donos do establishment, contra
nós, reverbera-se facilmente em pesadelo, e nos obriga a agir a reação.
Estamos dizendo que o real factual é um sonho sonhado por outrem,
enquanto os fantasmas das fantasias desejantes são realidades alternativas
tão passíveis de sair do virtual para o atual quanto aquele plano de imanência
a que nos acostumamos a chamar, por comodidade, de “realidade” o foi
um dia. Tanto em um quanto em outro existe a guia de uma pulsão vital
e, digamos, contra-vital, sempre seguindo o corte por pontos diferentes
e nunca se repetindo, seguindo uma bússola ética, sempre confrontada,
nos meandros macro (molares) e micro (moleculares) por uma moral
delimitadora. No que diz respeito à bússola da pulsão vital, Rolnik (2018,
p. 65) assegura:
Tal bússola orienta as ações do desejo no sentido da criação de uma
diferença: uma resposta que seja capaz de produzir efetivamente
um novo equilíbrio para a pulsão vital, o que depende de seu poder
de atualizá-la em novas formas.
Movido internamente por essa micropolítica, “o desejo cumpre sua
função de agente ativo da criação de mundos, próprio de uma subjetividade
que busca colocar-se à altura do que lhe acontece.” No que diz respeito
à ação contra-vital, a moral seria as providências das forças inerciais, do
status-quo, forças da reação que, uma vez produzidas, nada mais criam e
fazem de tudo para evitar, de qualquer forma, que algo possa vir a ser, de
novo, criado.
Levada nossa exposição até esse ponto de nosso “mapa”, diríamos
nós que a ética estaria do lado da vida, que é desejo e criatividade,
enquanto a moral estaria do lado da morte, que é travamento do desejo
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 207
e perpetuação do sempre já dado? Poderia, talvez, vir a ser interessante se
o lme Luk’Luk’I nos deixasse nesse ponto algo confortável. Mas o lme,
como sói acontecer, tem um m, e esse m lança tanta luz para trás, para o
todo da narrativa, quanto o começo, com sua intensa luz vermelha, lançava
sombras que perseguimos ao continuar assistindo ao lme. E esse m,
absolutamente ambíguo e absolutamente claro em sua ambiguidade, é o
que ca como sugestão à tarefa do pensamento. LukLuk’I nos lança em
meio à violência, social, física e moral, de uma metrópole do capitalismo
contemporâneo. A primeira cena nos sinalizou para a imagem da pomba
da paz sobre a luz vermelha do abandono social, e é isso que o restante do
terreno fílmico, em seu plano de imanência, continuou nos mostrando,
quando quatro personagens que lutam diariamente contra o lugar que
ocupam no mundo organizado para eles foram confrontados com seus
próprios desejos. Enquanto vemos a máquina moedora cortar os uxos
de desejo repetidamente, vemos cada vez mais os desejos aparecendo e
se colocando numa posição de produção. Mas, seja a polícia, o Estado, a
sociedade ou a moral, por um lado, ou a ética do desejo ativo, por outro,
nenhuma dessas instâncias consegue calar a última cena.
Nesse ponto, o lme engole a losoa já feita de Deleuze e Guattari,
e faz, ele mesmo, sozinho, e à sua maneira, a sua losoa. A última cena
mostra a realidade do que seria aquela paz violenta que Luk’Luk’I anuncia
no começo: a mulher se prostituindo, o cliente pedindo para não usar
preservativo e assassinando-a por asxia durante o coito, mas, antes,
também ela aceitando o “programa” sem camisinha, sabendo que tinha
contraído HIV do ex-marido, e provavelmente passando o vírus para o
cliente maluco, maníaco, bem durante a morte dela. Gostaríamos de dizer
que o desejo regido pela micropolítica ativa contagia como um vírus, como
uma polinização de criação de diferença, de mundos possíveis; gostaríamos
de dizer que a luta do desejo não cessa, por mais forte que a máquina tente
moer, sempre pelos buracos e pelas vias possíveis de onde ele vai escapar.
Porém o lme barra esse anelo. Ele dá a pensar o seguinte: de nada vale
uma micropolítica do desejo ativo, criando alucinações sobre o couro do
real, e nos desvelando que esse real mesmo seria a alucinação de outrem, se
o real ele próprio não é destruído em vista de um outro tipo de organização
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social; e se perguntarem por que teríamos de deixar essa organização já
assentada, quando há vantagens para muitos em mantê-la, então a resposta
do lme é evidente: é preciso fazer ruir a organização molar, porque, do
contrário, o próprio molecular é tomado, desde dentro, pelos valores
assentados do molar, e, em vez de trabalhar para a armação da vida, sua
multiplicação, passa a trabalhar para a morte, para perpetuar uma situação
insustentável: um desejo de morte passa a ser o núcleo do desejado.
Não há subterfúgio. Quando alguém mata uma prostituta, ou
quando alguém passa de propósito um vírus; quando alguém é homofóbico
ou contrata outrem para tirar um monte de terra de um lugar para pô-lo a
dois metros em outro, e chama a isso de “trabalho”, é cada um de nós que
está fazendo isso junto. Cumplicidade é crime. Se não trabalhamos para
suplantar a sociedade instituída, diz o lme, seremos todos cúmplices da
morte, física ou moral, de pessoas que nunca nem sequer uma vez vimos.
Quando a ética da pulsão vital é contagiada pela pulsão de morte,
há um compromisso moral nisso, e somos nós, agarrados à alucinação de
outrem (os capitalistas, no caso contemporâneo, que põem a máquina
moedora em funcionamento, enquanto a gente pensa que está desejando
algo” quando deseja um lugar ao sol do mercado), à qual chamamos
realidade”, sem maiores questionamentos, somos nós quem está até o
fundo de nós mesmos implicados nesse compromisso.
Luk’Luk’I termina nos deixando num silêncio denso que, desbravado,
quer nos dizer exatamente isso. Um lme devastador. E é a terra por ele
devastada o que, no incômodo de suas articulações imagéticas, aqui apenas
cartografadas, nos dá o que pensar e diz o quê que precisa ser pensado: o
desprezo pela vida dos outros gera uma cultura de morte, da qual somos,
bem facilmente, presas dóceis.
referênciAs
ANDRADE, Abah. Drummond e o acontecimento ontológico. O eixo e a roda: Revista
de Literatura Brasileira, Belo Horizonte, v. 29, n. 01, 2020.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a losoa. Trad.: M. de T. Barbosa e O. de A. Filho. São
Paulo: N-1 Edições, 2018.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 209
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a losoa? Trad.: B. Prado Jr. e A. A.
Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.
Trad.: Luiz B. L. Orlandi. Rio de Janeiro: Editora 34, 2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad: P.
P. Pelbart e J. Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2012. v. 2.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely.Micropolítica: Cartograas do desejo. Petrópolis:
Vozes, 1996.
HABERMAS, Jürgen.A inclusão do outro. Trad.: D. L. Werle. São Paulo: Ed. Unesp,
2018.
LACAN, Jacques. O seminário: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar,
2018. livro 6.
PLATÃO. Parmenide. Trad.: Franco Ferrari. Edição bilingue. Milão: Libri, 2004.
ROLNIK, Suely.Esferas da insurreição: notas para uma vida descafetinada.São Paulo:
N-1 Edições, 2018.
210 |
| 211
O    
  
Henrique Franco MORITA
1
introdução
Convém iniciar as presentes considerações com uma observação
e algumas conclusões dela decorrentes: este trabalho pretende expor o
problema da relação entre a ética (área de estudo com uma longuíssima
tradição na história da losoa) e o documentário cinematográco (prática
artística quase sem referenciais como tema na tradição losóca). Daí
decorre, entre outras coisas, o seguinte:
a) O gênero documentário será aqui abordado na sua relação com o
cinema, o que impõe a primeira questão, a saber: “O documentário
é um gênero cinematográco?”;
b) Circunscrito ao cinema-documentário, o trabalho tem o condão
de mostrar e problematizar a natureza ética desta forma. Portanto, é
necessário perguntar: “Qual é a natureza do gênero documentário?”;
Doutorando em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil.
E-mail: henriquemorita@outlook.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p211-226
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
212 |
c) Por m, tendo galgado tais degraus, cabe a questão nal: “O
documentário possui uma natureza ética?”.
Tratando-se de uma incursão introdutória nessa temática, o
objetivo do trabalho é mapear o debate. Assim, com modesta ambição,
serão discutidos alguns escritos de referência para situar o tema, fazendo
considerações críticas ao longo da exposição, quando necessário. Espera-se
assim, ao menos, reunir aqui um retrato da problemática das relações entre
o documentário e a ética – entre o cinema e a losoa também, porém não
de modo abrangente, uma vez que restrito à não-cção.
o documentário é um gênero cinemAtográfico?
Pode parecer que essa pergunta mereça uma resposta armativa óbvia
e imediata. Dada a gritante evidência dessa armação, segundo o olhar
de alguns autores, a pergunta pode ainda parecer supercial ou de pouca
amplitude. Explico: há quem simplesmente considere que todo o cinema é
documentário. E não o faz sem argumentos. Vejamos quais são eles.
Para Bill Nichols, em Introduction to documentary (2001, p. 1),
every lm is a documentary” [todo lme é um documentário]. Essa
armação do autor está assentada no argumento de que qualquer
produção cinematográca é inevitavelmente o reexo das condições
em que foi feita, ou seja: o cinema de qualquer tipo, ccional ou não,
é também um documento dos meios de sua época, da cultura de sua
época e particularmente das pessoas envolvidas na formulação da sua
arte. Assim sendo, de uma perspectiva extremamente ampla, o cinema é
documentário em qualquer de suas manifestações, sejam elas ccionais
ou não, em razão da historicidade que qualquer obra de arte, enquanto
objeto do mundo material, acaba gravando em si mesma. Iremos voltar a
esses argumentos mais à frente.
Por ora, seguindo a formulação de Nichols, há então que se
dividir a produção cinematográca quanto ao tema: de um lado, os
1) “documentários” de realização de desejos e, de outro lado, 2) os
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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documentários” de representação social. A lógica de fundo dessa
classicação é que as obras cinematográcas se dividem quanto ao nível
de comprometimento com a representação social efetiva, ou seja, que
as chamadas cções (na terminologia de Nichols, “wish-fulllment
documentaries”), têm o papel de concretizar a imaginação livremente,
enquanto a não-cção (“social representation documentaries”, segundo
Nichols), diferentemente, está ligada à representação do mundo no qual já
habitamos, ou seja, do não-imaginado.
Para ir mais a fundo na distinção, enquanto ambos os tipos de
documentários” – cção e não-cção/realização de desejos e representação
social – são sempre histórias trazidas à interpretação de quem as assiste, os
documentários” de não-cção apresentam essas histórias carregando em
particular a expectativa de se fazerem credíveis. Esclarecendo: enquanto as
cções certamente tangenciam a não-cção e emulam a plausibilidade de
suas narrativas como reais, por sua vez as não-cções não apenas querem
a plausibilidade do real nas suas representações como também buscam
legitimar-se de credibilidade acerca da narrativa apresentada – possuem,
portanto, uma espécie de compromisso com a representação social que
fazem perante o público.
Nesse sentido, arma Bill Nichols:
Documentaries lend us the ability to see timely issues in need of
attention, literally. We see (cinematic) views of the world. ese
views put before us social issues and current events, recurring
problems and possible solutions. e bond between documentary
and the historical world is deep and profound. Documentary
adds a new dimension to popular memory and social history.
(NICHOLS, 2001, p. 2).
2
Há alguns problemas conceituais na caracterização de Nichols. O
primeiro deles advém da armação “todo lme é um documentário”. Isso
“Documentários nos fornecem a habilidade de observar questões oportunas que requerem atenção,
literalmente. Vemos visões (cinematográcas) do mundo. Tais visões colocam diante de nós questões sociais e
eventos atuais, problemas recorrentes e possíveis soluções. O vínculo entre o mundo histórico e o documentário
é sensível e profundo. O documentário adiciona uma nova dimensão à memória popular e à história social”
(tradução nossa).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
214 |
porque o critério para armar essa equivalência entre a cção e a não-cção
é pouco explorado pelo autor – Nichols gasta muito tempo discutindo
aquilo que diferencia o tipo “wish-fulllment documentaries” e o tipo
social representantion documentaries”, porém deixa de detalhar as razões
que aproximam cção e não-cção enquanto tipos de “documentário”. A
única razão exposta por ele, já replicada aqui no início dessa seção, é a de
caráter extremamente geral que arma que até a mais caprichosa cção
acaba por mostrar as suas raízes com o mundo concreto em que foi feita.
Ou seja, recorre-se ao argumento de que toda obra de arte possui um
contexto de produção no qual está inserida e, nesse sentido, é documento
de uma época.
Documento, entretanto, não é documentário. Logo após armar
que cção e não-cção são ambas formas de documentário, Nichols dene
o que ele vai, de fato, chamar de documentário: justamente a obra não-
ccional de representação social (e o leitor ca sem saber por qual razão
exatamente ele iniciou dizendo que “todo lme é um documentário”, se
vai ao longo de sua obra chamar de documentário apenas uma parcela dos
lmes que existem, qual seja, os de não-cção). Nichols parece estar, na
verdade, querendo chamar atenção para o fato de que qualquer produção
cinematográca é um documento (até mesmo um documento a respeito da
vida de um ator ou um diretor, na medida em que é elemento biográco da
carreira prossional de uma pessoa que trabalha com cinema).
Assim, a armação de que “todo lme é um documentário”, embora
eloquente e atraente, se trata ou de um arroubo retórico, ou de uma
confusão entre documento e documentário. Sobre essa confusão, diz João
Moreira Salles (2005, p. 61):
Usei a palavra documento, e não documentário, porque de fato
existe uma diferença importante entre uma coisa e outra. Não cabe
aqui enveredar pela natureza dos documentos; basta ressaltar que
eles possuem a característica essencial de serem índices do mundo
real. Os documentos mantêm uma relação de contiguidade com a
realidade. A revolução digital está prestes a eliminar as fronteiras
entre realidade e simulação, mas enquanto isso não acontece a
imagem na tela de Tom Cruise signica uma armação incontestável
de que Tom Cruise existe no mundo real, e isso independe de toda
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 215
interpretação. Quando ele fala na tela, o “grão de sua voz” é uma
consequência direta de ele ter aberto a boca e emitido algum som
no passado. Pois bem, todo lme, seja de cção ou de não-cção,
é um documento e pode ser lido assim. E não seria muito difícil,
segundo essa mesma abordagem, avançar uma casa e transformar
toda cção em documentário.
Não se pode aqui avançar mais no debate, porém já está claro que há
pertinência em questionar se o documentário é um gênero cinematográco.
O que constitui, então, um gênero cinematográco? Essa profunda questão
se liga ao cerne das obras artísticas em geral – na medida em que todas elas
fazem algum tipo de referência a gêneros (mesmo quando uma determinada
produção se volta contra a classicação ou os pressupostos de um gênero,
acaba armando a sua existência). Quanto a isso, a Poética de Aristóteles
foi uma das primeiras sistematizações grandiosas dos gêneros literários e,
certamente, sua inuência transcendeu da literatura para todas as artes.
A questão aqui em tela é discutida por Luís Nogueira em obra intitulada
Gêneros cinematográcos (2010, p. 3). Ali o autor estabelece, em diálogo com
os gêneros na história da literatura e da pintura, uma denição de gênero
cinematográco que abrange também o documentário. Eis: “um gênero
cinematográco é uma categoria ou tipo de lmes que congrega e descreve
obras a partir de marcas de anidade de diversa ordem, entre as quais as mais
determinantes tendem a ser as narrativas e as temáticas”. Trabalhando com
essa concepção, destarte, o autor reconhece ainda três características: 1) o
pertencimento a um gênero dependerá da presença de certas características
comuns a uma obra em relação a várias outras; 2) a princípio qualquer obra
acabará passível de se encaixar em algum gênero; 3) elementos de mais de
um gênero podem estar presentes em uma mesma obra.
Isso posto, pode-se aceitar o documentário como gênero cinematográco,
justamente na medida em que participa da mesma cultura narrativa dos demais
gêneros cinematográcos (levando em consideração, de forma central, que uma
película não precisa estar inteiramente inserida num único gênero, como acima
foi visto). O gênero, enquanto “categoria classicativa que permite estabelecer
relações de semelhança ou identidade entre diversas obras” (NOGUEIRA,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
216 |
2010, p. 3), se apresenta no cinema a partir da narrativa cinematográca. Por
m, Luís Nogueira reconhece que todo gênero, ao longo do desenvolvimento
de uma forma artística, é uma construção:
Assim sendo, poderemos dizer que, no limite, qualquer critério
pode servir a instauração de um género. Serão a sua dimensão
crítica (a qual determina se o género se institui enquanto tal em
função da extensão e relevância do corpus a que dá origem) e o
seu potencial epistemológico (isto é, a sua utilidade enquanto
instrumento de estudo das formas cinematográcas) a determinar
a sua relevância e a sua vigência. No que respeita ao cinema, temos
então uma repartição quadripartida essencial, sendo que a estes
quatro géneros fundamentais podemos fazer corresponder funções
especícas: a cção [...]; o documentário [...]; o experimental [...];
a animação [...].
Vê-se, assim, que o documentário é um gênero na medida em
que é parte essencial da própria identidade do cinema. Identidade essa
que é resultado de uma construção vagarosa de uma forma especíca
de narrativa, ou seja, é a constituição de uma linguagem. Mas então,
aceitando que o documentário é um gênero cinematográco e que, por
extensão, porta um conjunto de características estruturantes da linguagem
cinematográca, sabe-se que ele é um gênero entre outros – nesse sentido
está igualado aos demais. Podemos, assim, legitimamente, buscar o que o
diferencia, buscar a sua especicidade. Somando-se ao que já foi discutido
anteriormente, volta-se à distinção entre a cção e a não-cção. E é por
esse caminho, o da não-cção, que costumam surgir as peculiaridades do
gênero cinematográco documentário.
quAl é A nAturezA do gênero documentário?
É aqui que começa realmente, em termos de discussões levantadas
em torno da especicidade do documentário, a sua aproximação com a
ética. É na relação maiúscula que o documentário tem com a realidade,
com o não-ccional, que reside a ponte dele para dentro do universo das
escolhas, dos dilemas, da escassez e dos conitos, o universo da ética.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 217
Evidentemente, armar que o documentário possui uma ligação intrínseca
com o real pode fazer a discussão enveredar por innitos labirintos acerca
da natureza do real. Há quem queira desestruturar a forma especíca do
documentário por conta da mera referência feita agora ao “real”.
Fernão Pessoa Ramos, em O que é Documentário? (2002, p. 3),
explica e deixa clara a posição e também o equívoco daqueles que buscam
diluir a especicidade do documentário (na visão destes o documentário
alimentaria ilusões sobre si mesmo, acreditando ter acesso direto ao “real”).
A longa passagem de Ramos merece citação direta pela sua perspicácia:
Existe uma conuência entre esta visão de uma necessária
opacidade no movimento da representação e o eixo ético através
do qual o documentário consegue ser pensado hoje. Assumir um
campo especíco ao documentário, seria assumir a possibilidade de
uma representação objetiva, transparente. O raciocínio desenvolve-
se, mais ou menos, na seguinte linha:
1. parte-se do postulado de que, para alguns, o documentário busca,
ou tem como objetivo, estabelecer uma representação do mundo;
2. na medida em que o postulado está estabelecido (“eu posso
representar o mundo”, diria necessariamente o documentarista), a
ideologia dominante, hoje, sobrepõe facilmente a esta possibilidade
o seu caráter especular e falsamente totalizante; 3. a isto segue-se o
discurso sobre a necessária fragmentação do saber e da subjetividade
que sustenta a representação; 4. e, necessariamente atrelado, surge a
saída ética dominante da ideologia contemporânea: a reexividade
como postura correlata ao indispensável recuo do sujeito (pois
necessariamente fragmentado, senão imediatamente ideológico) na
articulação da representação. Poderíamos dizer: o recuo reexivo é
o ponto cego ideológico da ideologia contemporânea. É o ponto
cego onde a ideologia da ética contemporânea não consegue ver-se
enquanto tal. Em outras palavras: é ético mostrar o processo de
representação; não é ético construir a representação para sustentar a
opinião correta (como defendiam Grierson, ou Eisenstein, em um
outro parâmetro) [...]
Debita-se ao documentário uma certa inocência epistemológica,
cometendo-se um duplo erro: 1) analisar o documentário a partir
de um discurso inocentemente totalizador e transparente (o que não
corresponde à realidade, em função da diversidade estilística que
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
218 |
vimos tentando armar para o campo); 2) e, mesmo se assim o fosse,
ter um parâmetro relativamente pobre para julgá-lo: o parâmetro
que gira exclusivamente em torno da ênfase na fragmentação
subjetiva como saída ética. O discurso contemporâneo sobre a
sobreposição do campo ccional e do campo documental, na
realidade, responde a demandas posicionadas a partir deste “duplo
erro” (RAMOS, 2002, p. 3).
Para o escopo deste trabalho, é eixo central analisar justamente a
natureza especíca do documentário, ou seja, sua especicidade. Faz-
se isso buscando compreender se há e quais são os aspectos éticos dessa
especicidade. Nessa esteira, defende-se aqui, na linha de Fernão Pessoa
Ramos, e muito distintamente da visão já mostrada em Bill Nichols, que o
documentário envolve uma particularidade: a crença compartilhada de que
o documentário representa a realidade – de que oferece uma montagem
não-ccional dela. “Montagem não-ccional” é termo aqui adotado não
sem alguma ambiguidade, mas carrega menos na tinta da “realidade”,
resguardando o compromisso do documentário com uma narrativa acerca
do real percebido. Por isso, grosso modo, o documentário tem sempre um
caráter testemunhal, uma vez que todo testemunho é uma narrativa sobre
o que foi testemunhado, mas não o próprio testemunhado.
Para aprofundarmo-nos na natureza do documentário convém levar
em conta algumas outras considerações feitas ainda por Fernão Pessoa Ramos
(2002, p. 7). Segundo ele, há três estruturas recorrentes e fundamentais da
imagem documentária. São elas: 1) a “tomada” (ou take), ou seja, a presença
do sujeito que empunha a câmera (o ato de testemunhar); 2) a mediação
da câmera enquanto artefato, ou seja, a mediação de um suporte pelo qual
o mundo é ltrado (o modo de armazenar o testemunho, e que vai precisar
ser “montado” no processo de edição); e 3) a “dimensão pragmática da
imagem”, na medida em que surge uma “relação espectadorial” (a revelação
da história capturada perante os outros). Esse último aspecto é aquele
que parece mais fundamental, o da relação particular que se estabelece. E
isso ca mais evidente se tomarmos um exemplo dado por Ramos como
paradigma para pensar a natureza do gênero documentário.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 219
O exemplo trazido por ele é o da imagem da morte. Ou, de modo
mais especíco, a “imagem-câmera da morte real” (RAMOS, 2002, p.
7). É ali que se mostra a radical especicidade do documentário: ou seja,
a possibilidade remota que esse gênero fornece de o espectador habitar
a circunstância em que foi produzida a imagem-câmera. A chamada
relação espectadorial” (item 3 listado no parágrafo anterior) é justamente
o momento no qual o espectador é lançado numa circunstância que foi
tomada, captada, pelo documentarista. Circunstância que ele, espectador,
assume como real. A imagem da morte, aliás, elucida ainda uma outra
característica do documentário. Ele está situado numa “fronteira” entre
representação e realidade especialmente na medida em que transborda do
ponto de vista ético: a imagem da morte real de alguém é perturbadora, pois
é uma contemplação proibida, moralmente reprovada – nela se mistura a
fruição da obra de arte com o pressuposto ético da civilização ocidental
moderna de que a imagem real da morte de alguém não pode ser objeto de
um prazer estético.
Nisso o documentário difere da cção, onde a encenação da morte
(por mais que os meios disponíveis possam emular com dedignidade o
acontecimento) deve se dar no nível do encenado. Caso contrário, a película
ccional pula imediatamente para o nível da notícia, ou do descrédito.
Quanto à não-cção, faz parte da sua razão de ser a aproximação dessa
linha tênue entre a fruição estética de uma obra e o testemunho de um fato
do mundo – essa característica, então, cria sempre uma certa contradição e
um incômodo, pois o espectador é capturado pelo acontecimento, colocado
diante da superfície tensa do real, mas só tem à sua disposição a fruição
estética. Esse desapontamento, esse estar aquém do acontecimento, mas
também participar dele, faz emergir e aclarar as tensões éticas do mundo
ao qual o documentário se dirige. Quanto à diferença entre a cção e a
não-cção e uso das imagens intensas, diz Fernão Ramos:
Narrativas imagéticas voltadas para explorar a intensidade da
presença na circunstância da tomada, não são exclusivas do cinema
não-ccional. Grandes cineastas da narrativa cinematográca,
percebem as potencialidades da tensão do presente que
transcorre como presença na tomada, e articulam sua estilística
para exponenciar esta intensidade de modo poético. Diretores
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
220 |
como Roberto Rossellini ou Jean Renoir, são artistas que têm
na intensidade da presença na tomada, um núcleo articulador
na construção de seu estilo. Mas é evidentemente na tradição
do cinema não ccional que a dimensão da presença na tomada
adquire um campo aberto para abrir suas asas sobre o espectador.
O cinema não ccional é voltado para o instante da tomada, para
o transcorrer da duração na tomada e para maneira própria que
este transcorrer tem de se constituir em presente, que se sucede na
forma do acontecer. Podemos pensar no contra-argumento de que
existem cineastas, dentro da tradição não-ccional, que trabalham
com estilos nos quais esta presença não surge na linha de frente.
Novamente insistimos sobre o fato de que a constatação de que
é possível extrapolar denições e embaralhar fronteiras, não deve
impedir uma reexão mais acurada sobre as características sistêmicas
do conjunto das narrativas que denominamos documentárias, ou,
de modo mais amplo, não ccionais (RAMOS, 2002, p. 9).
Pode-se perceber, portanto, que há sim plausibilidade em defender
uma especicidade do gênero documentário. Em linhas gerais, a sua
natureza é captada de forma clara por João Moreira Salles (2005, p. 58):
Diante desses lmes, realizador e espectador estabelecem um
contrato pelo qual concordam que tais pessoas existiram, e que
disseram tais e tais coisas, que zeram isso e aquilo. São declarações
sobre o mundo histórico, e não sobre o mundo da imaginação. Para
que o documentário exista é fundamental que o espectador não
perca fé nesse contrato.
E segue mais adiante, complementando o que foi dito:
Aqueles que negam a existência de uma diferença essencial entre
cção e documentário geralmente partem do princípio equivocado
de que o documentário, caso existisse, deveria oferecer acesso
direto e não contaminado à coisa em si. Como isso não é possível,
preferem então declarar que todo lme é ccional. Estão errados.
Manipular o material não signica aproximá-lo da cção (SALLES,
2005, p. 65-66).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 221
Pelas razões expostas até aqui, então, este trabalho assume a natureza
do documentário na sua relação com o real (sem explorar a fundo,
entretanto, todas as várias camadas envolvidas nessa complexa apreensão
– ou seja, sem negar que o “real” propriamente é alguma outra coisa).
Disso decorre que o documentário possui uma relação com a verdade ou,
para assumir um ônus bem menor, com a veracidade (é o que expressa “a
fé nesse contrato”, nos termos de Salles, acima). Daí se concluir que há,
na natureza mesma do documentário, uma implicação ética indissociável:
bem entendido, o documentário não surge necessariamente em razão de
objetivos éticos ou calcado na defesa de uma perspectiva ética especíca –
mas ele sempre se faz documentário na medida em que incorpora a ética
na relação que produz com o real.
o documentário Possui umA nAturezA éticA?
Tanto em On Ethics and Documentary: a real and actual truth [Sobre
ética e documentário: uma verdade real e verdadeira] (2006) quanto em
What can a philosophy and ethics of communication look like in the context
of documentary lmmaking? [Como se parece uma losoa e uma ética da
comunicação no contexto do documentário?] (2014), Garnet C. Butchart
arma três formas clássicas de relacionar o documentário com a ética.
São elas: 1) a perspectiva do consentimento do participante; 2) o respeito
ao direito dos espectadores de serem informados; 3) o respeito a certas
expectativas de objetividade.
Sobre o documentário ter um compromisso ético com a objetividade,
embora possa servir de descrição a respeito do senso comum quanto ao
gênero, essa forma de caracterizar o documentário tende a confundi-lo
com o jornalismo. Embora haja uma relação particular entre esses dois
universos, o documentário, quanto à sua identidade, não é uma mera
descrição objetiva de fatos (aliás, ca em aberto a questão de se o jornalismo
por acaso também se amolda a essa descrição um tanto positivista). O
documentário possui, é verdade, elementos próximos ao jornalismo, mas
habita um campo completamente diverso: é obra montada e costurada de
maneira intencional para uma exibição, não exatamente para a informação
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
222 |
– o documentário atinge seus méritos menos pela importância do que narra,
e mais pela narrativa em si. Como dito por Moreira Salles, comentando
a postura do primeiro documentarista da história do cinema, o diretor de
Nanook, o esquimó [Nanook of the North] (1922), Robert Flaherty (que
era um antropólogo se convertendo em cineasta): “ele [o documentário]
não descreve, constrói” (2005, p. 63).
O direito dos espectadores, por sua vez, é um tema mais complexo.
Haveria uma obrigação ética do documentário/documentarista de municiar
os espectadores de maneira proba quanto às informações ali contidas? Ou
ainda, haveria uma obrigação ética do documentário/documentarista de
mostrar apenas aquilo que correspondesse efetivamente ao acontecido,
sem encenar acontecimentos? De certa forma, essas questões repetem o
que já foi tratado acima, acerca da objetividade: o documentário, porém,
mobiliza justamente as ferramentas do cinema ccional, que fogem à
objetividade, para criar uma relação com a história que irá registrar. Assim,
embora seja fundamental que haja crença do público no documentário,
essa expectativa não descreve bem a natureza desse cinema.
O documentário não existe para satisfazer a sede de realidade
dos espectadores. Enquanto forma de se relacionar com um tema, o
documentário apresenta uma montagem desse tema e trabalha com as
expectativas de veracidade que quer criar. Nesse sentido, o documentário tem
um compromisso com o seu próprio olhar, ou ao menos com a construção
de um olhar próprio. As expectativas excessivas da audiência podem se dar
em razão desse mito da objetividade já abordado anteriormente.
Há ainda, por m, uma terceira dimensão sugerida e majoritariamente
adotada em meio a documentaristas interessados na discussão da natureza
do documentário: a sua essência ética residiria na relação estabelecida
com a pessoa/personagem lmada. Em Directing the documentary (2004),
Michael Rabiger dedica um capítulo da obra, na parte em que discute a
pré-produção do documentário, para esclarecer as Missions and Permissions
[Missões e Permissões] do documentarista. Ali o autor deixa claro que,
ao selecionar pessoas e trazê-las para dentro do lme, o documentarista
estabelece com elas uma relação ética.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 223
A ideia central dessa leitura ética do documentário é a do
consentimento do participante, como se vê nas palavras de Rabiger (2004,
p. 243):
Informed consent: To secure informed consent from participants
means that you warn them that by publicly showing footage—
though not necessarily by taking it—their reputation or even
their life can be at risk, sometimes irreparably. Unlike the ction
lmmaker paying actors, the documentarian generally oers no
nancial compensation, and even if a substantial sum changes
hands, theres little comfort in trying to settle moral obligations
with cash. Checkbook documentary is still likely to be exploitation.
Where do your responsibilities lie? When do you owe loyalty to
the individual and when to larger truths? Is there an accepted code
of ethics? How much should you say to participants before they
become too alarmed to permit lming? […]. Documentary exists
entirely through the voluntary cooperation of participants, so
take every care to avoid unnecessary exploitation. Consider what
it will cost to do some good in the world, and decide from your
participants’ vantage as well as from your own whether a risk is
worth it—a lonely calculation if ever there was one.
3
A ideia de que os participantes deverão viver com as consequências
dos lmes nos quais estão inseridos norteia essa percepção ética. É inegável
compreender essa dimensão que perpassa todos os envolvidos na produção
da obra cinematográca, especialmente com relação à gente comum que
é tragada para o documentário como objeto do olhar do documentarista,
e que perde a sua condição “comum” ao ter sua imagem e sua história
“Consentimento informado: Assegurar o consentimento informado dos participantes signica que você os
alerte de que ao exibirem-se publicamente na lmagem – embora não necessariamente se aplique apenas a
fazerem a gravação – as suas reputações ou ainda as suas vidas podem ser colocadas em risco, às vezes de
modo irreparável. Diferentemente do diretor de cção pagando atores, o documentarista geralmente não oferece
nenhuma compensação nanceira, e mesmo que uma quantia substancial troque de mãos, há pouco conforto
em tentar saudar obrigações morais com dinheiro. Documentário “talão de cheque” é ainda provavelmente uma
forma de exploração.
Até onde vai sua responsabilidade? Quando você deve lealdade ao indivíduo e quando a verdades maiores? Há
um código de ética aceito? Quanto você deve informar aos participantes antes de eles carem tão alarmados que
decidam não participar do lme? [...]. O documentário existe apenas por conta da cooperação voluntária das
pessoas, então cuide para evitar a exploração desnecessária. Considere os custos de fazer o bem para o mundo e
decida a partir das vantagens do participante, bem como das suas, se o risco vale a pena – um cálculo solitário,
se é que há algum” (tradução nossa).
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Gabriel Debatin (Org.)
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transportadas para a construção da personagem no contexto da obra
cinematográca. Há que se reconhecer, portanto, que há um peso ético
a ser considerado e que há etapas na produção do documentário que
sempre trarão conitos éticos perante o documentarista. Entretanto, essa
camada complexa da ética entre os envolvidos na produção do lme é uma
especicidade do documentário?
Para João Moreira Salles a resposta é decididamente positiva, como
expressa claramente no texto A diculdade do documentário (2005, p. 70):
O que nós documentaristas temos de lembrar o tempo todo é que a
pessoa lmada possui uma vida independente do lme. É isso que
faz com que nossa questão central seja de natureza ética. Tentando
descrever o que fazemos numa formulação sintética, eu diria que,
observada a presença de certa estrutura narrativa, será documentário
todo lme em que o diretor tiver uma responsabilidade ética para
com seu personagem. A natureza da estrutura nos diferencia de
outros discursos não-ccionais, como o jornalismo, por exemplo.
E a responsabilidade ética nos afasta da cção.
Não é possível, no horizonte introdutório deste trabalho, perscrutar
mais a fundo. Entretanto, arriscando ir um pouco além do que seria
recomendável até aqui, parece que essa última morada ética do documentário
na relação entre as partes ali envolvidas não difere propriamente esse gênero
dos demais – segundo Moreira Salles, citado acima, “a responsabilidade
ética nos afasta da cção”. Será mesmo que o caráter interpessoal da
responsabilidade ética não está similarmente presente no set de lmagem
da cção? Depois da fortíssima repercussão dos abusos cometidos em
sets de lmagem, particularmente no contexto norte-americano, pode-se
falar numa reviravolta na história do cinema de cção com a inserção de
discussões de natureza ética que vão desde a relação entre atores e diretores
(e todas as demais relações paralelas a essa) até a responsabilidade ética das
premiações e da alocação de recursos por parte dos estúdios de produção.
Me rero a movimentos como o Me Too, por exemplo.
Não se trata aqui de negar que haja uma incidência da ética sobre
as práticas que envolvem a produção e a montagem de um documentário,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 225
mas essa incidência poderá ser também sentida e atestada no contexto do
cinema de cção (o problema da nudez de atrizes no cinema passou a ser
cada vez mais candente conforme se zeram ouvir as atrizes envolvidas em
processos abusivos na exposição de seus corpos). É necessário que o cineasta
se coloque questões éticas, mas isso não explica de maneira mais profunda
a natureza do documentário: essa forma de visualizar as obrigações éticas
dos envolvidos se iguala às demais formas, na medida em que expressa a
incidência da linguagem dos direitos individuais na seara do cinema de
não-cção, como chama a atenção Garnet C. Butchart (2006, p. 428).
São expressões do direito individual as vertentes até aqui discutidas:
o consentimento do participante é uma faceta do direito individual de
ser protegido no processo de representação; a responsabilidade perante
o público é uma faceta do direito individual do espectador de obter
informações de maneira proba; a obrigação de objetividade por parte do
documentário é uma variante do direito do público de ser bem informado,
na medida em que o documentário deve reetir o mundo tal como
percebido, sem manipulá-lo. Butchart mostra que essas expectativas giram
em torno, mais uma vez, da questão da verdade: a exigência de objetividade
na representação se ancora na crença de que a câmera capta uma verdade
na cena e que o documentarista deve apresentá-la intocada; também a
exigência de que o público seja respeitado em seu direito de saber radica
na percepção de que a verdade capturada pode ser manipulada, solicitando
transparência com a verdade; e o consentimento do participante envolve a
ideia de que há uma verdade do participante e que ela deve ser preservada
antes da manipulação do cineasta.
Há que se reconhecer, entretanto, que essa associação entre a verdade
e a ética, quanto ao documentário, é pouco elucidativa e/ou produtiva.
Isso porque, no nal do dia, a verdade ca circunscrita a contextos de
justicação e a ética se torna uma questão de bom senso: o próprio Michael
Rabiger, citado longamente algumas linhas acima, termina sua discussão
sobre o consentimento dos participantes com uma reexão acerca do
cálculo entre os interesses do participante, do cineasta e do público: um
fardo a ser suportado e mensurado pelo documentarista, com base em seu
próprio bom senso. Essa linguagem a procura de uma ética de direitos
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Gabriel Debatin (Org.)
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individuais envolvidos no processo de feitura do documentário sai em
busca de critérios éticos que caracterizariam o gênero e termina por armar
que o gênero será aquilo que o bom senso do documentarista decidir.
É importante que se frise, mais uma vez, que esse trabalho não
pretende resolver o problema da relação entre ética e documentário,
mas apenas apresentá-lo. Como contribuição nal, pode ser o caso de
retomar o exemplo de Fernão Pessoa Ramos sobre a “imagem-câmera da
morte real”. Ao que parece, quando o documentário produz sua fenda
na fronteira entre o acontecimento e a fruição estética do acontecido, ele
estressa nossas concepções éticas e revela aos espectadores aquilo que eles
próprios possuem como pressupostos éticos na recepção do material a eles
entregue: a relação entre documentário e ética é inegável nessa experiência
de provocação. Algo presente nessa experiência pode estar bem mais
próximo da natureza do documentário do que as considerações de códigos
de ética da prossão acima aventados e, ao cabo, redundantes.
referênciAs
BUTCHART, Garnet C. On ethics and documentary: a real and actual truth.
Communication eory, Oxford, v.16, n. 4, p. 427-452, 2006.
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in the context of documentary lmmaking? Semiotica, Bad Feilnbach, v. 2014, n. 199,
p. 83-96, 2014.
NICHOLS, Bill. Introduction to documentary. Bloomington: Indiana University
Press, 2001.
NOGUEIRA, Luís. Géneros Cinematográcos. Covilhã: Livros Labcom, 2010.
RABIGER, Michael. Directing the documentary. Oxford: Elsevier, 2004.
RAMOS, Fernão Pessoa. O que é documentário?. São Paulo: Editora SENAC, 2002.
SALLES, João Moreira. A diculdade do documentário. In: MARTINS, José Souza;
ECKERT, Cornelia; CAIUBY NOVAES, Sylvia (org.). O imaginário e o poético nas
ciências sociais. Bauru: Edusc, 2005. p. 57-71.
| 227
U    :
 -
  e la nave va,
 F
Márcio Benchimol BARROS
1
Há lmes que começam a mexer com a gente já com o título. E
a nave vai. Va benne, ela vai. Mas pra onde? Eis a questão: pra onde? Já
com este título, Fellini nos coloca cara a cara com a incerteza, que é um
dos ingredientes principais do clima trágico-sufocante-nostálgico que é
vivido na sua nave. Esse clima é no fundo uma experiência especíca
do tempo. É a experiência de um futuro ameaçador vivida a partir de
um presente que de repente se tornou estranho. É a experiência de um
presente que perdeu sua consistência, e que já quando se apresenta é
sentido com saudade, porque tudo nele faz lembrar de um passado
feliz pra sempre perdido. É essa experiência do tempo que se traduz
na feliz imagem do barco em meio ao oceano innito, desconhecido,
Professor do Departamento de Filosoa da Universidade Estadual Paulista – UNESP / SP / Marília. E-mail:
benchimolbarros@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p227-238
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imprevisível, perigoso…; a imagem da nave portentosa e segura de si,
mas, na verdade, frágil e totalmente incapaz de resistir a um sopro mais
forte dos elementos. Nela, homens e mulheres sentem de repente como é
esquisita essa sensação de não se ter mais terra rme sob os pés, lembram
saudosos da costa tão amada, tão conável e conhecida, à qual talvez
nunca mais voltem, ao mesmo tempo em que seus olhares se concentram
nas nuvens ameaçadoras que se adensam no horizonte.
Pra onde vai a nave? A pergunta não embaraça minimamente os
hóspedes da nave felliniana. Todos eles têm uma resposta imediata, pronta
e segura a ela: a nave se dirige à Ilha de Érimo a m de proceder às exéquias
da grande cantora Edmea Tetua, que em suas anotações testamentais
havia determinado que suas cinzas deveriam ser solenemente espalhadas
na costa de sua ilha natal, aos primeiros alvores da manhã. Mas essa
resposta diz muito mais do que eles imaginam. Mais do que a meta, ela
revela o signicado da travessia: ela é um cortejo fúnebre! Mas quem é, de
fato, o(a) nado(a)? É mesmo a diva Tetua? Não, por que ela representa o
espírito, o ideal e a essência da troupe inteira. No fundo, eles estão indo
a seu próprio enterro – e sabem disso! É a si mesmos que eles choram!
Como gente da Ópera, eles bem podiam dizer com Brühnhilde: eu vi o
mundo acabar
2
. Eles estão, de fato, vendo o seu mundo acabar, e não têm
a menor ideia do que vai substituí-lo. A nave é um prolongamento desse
mundo moribundo, o recria articialmente, mantendo-o criteriosamente
separado de toda inuência externa. Encapsulados em seu mundo-barco,
os hóspedes continuam a ser quem são e a viver como sempre viveram –
mesmo porque não saberiam ser outra coisa nem viver diferentemente.
Por isso, aferram-se a esse mundo-barco e de início estão perfeitamente
seguros de que ele está totalmente a salvo de qualquer perturbação vinda
do exterior. Mas, dia após dia, hora após hora, eles vão percebendo que
o isolamento é precário e a segurança ilusória. O incômodo e a violência
do mundo exterior não cessam de pressionar as paredes de vidro do
mundo-barco. Primeiro é a gaivota, depois são os sérvios, e, por m,
a artilharia austro-húngara. Mas nem com o barco afundando eles se
Na verdade, a frase, que deveria encerrar a tetralogia do Anel do Nibelungo, foi suprimida por Wagner,
juntamente com toda a ária nal de Brühnhilde, a qual, não obstante, não deixou de entrar para a crônica
operística como o “nal schopenhaueriano” de “O crepúsculo dos Deuses”.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 229
dignam a abandonar sua redoma: ao invés disso, preferem entoar um
canto de guerra operístico! Como se dissessem: que afunde o barco,
nosso mundo é a Ópera! A ópera é seu único meio de viver e interpretar
até mesmo os canhonaços e o iminente naufrágio!
É claro que o mundo da Ópera é apenas uma metáfora, e E la
nave va não é a primeira ocasião em que Fellini se utiliza da música e
dos músicos para espelhar a sociedade. A primeira, salvo engano, foi no
impagável Ensaio de orquestra. Mas ali o todo da orquestra representava a
sociedade toda, em suas diferentes subdivisões e estraticações. No lme
de 1985, o enfoque já é mais particularizante: uma pequena parcela do
universo musical representa uma pequena parcela da sociedade. Mais
precisamente, o mundo praticamente encerrado em si mesmo da ópera,
com sua proverbial enfatuação, com todos os seus narizes empinados,
seus códigos e tradições de adoração e culto das vaidades, representa
certa casta aristocrática europeia a que coube a (má) sorte de viver nos
anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial. A rigor, não se trata
exatamente de uma verdadeira aristocracia, pois de algo assim havia então
apenas reminiscências. Mas podemos pensar nos setores mais arcaicos e
tradicionais da alta burguesia, que havia herdado da velha aristocracia não
apenas suas fortunas, mas também suas maneiras, valores e visão de mundo.
Também esta “aristocracia” via, perplexa, dia após dia e hora após hora, o
seu mundo acabar; também ela experimentava com estranheza o presente
que a cada dia se tornava mais incompreensível, e, para fugir de um futuro
ameaçador, se refugiava em um passado de glória saudosamente venerado,
como se isso a pudesse manter a salvo da roda dentada do tempo, que
girava cada vez mais rápido.
Poder-se-ia talvez dizer que o todo da embarcação representa o todo
da sociedade. Pois na nave também existe hierarquia e estraticação. Abaixo
da alta burguesia aristocrática-tradicional, representada pelos músicos,
comparece ali também a pequena burguesia subserviente e aduladora,
representada pelos encarregados da cozinha, da manutenção e administração
do barco. Estes, por sua, vez, imperam sobre seus próprios subordinados,
com os quais se poderia certamente identicar a classe trabalhadora. Mas
mesmo nesta classe há estraticação, e a representação mais contundente
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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e crua de seu estrato inferior, o do proletariado industrial, é dada pelos
trabalhadores da caldeira, responsáveis pela manutenção e renovação de
toda energia que impulsiona o barco e torna possível a vida dentro dele.
A cena da caldeira é realmente antológica. Embora Fellini tenha tomado
a sábia decisão de musicá-la apenas com trechos da ópera italiana, é uma
cena propriamente wagneriana. Também Wagner, na tetralogia do Anel
do nibelungo, quis representar metaforicamente a estraticação social. A
classe operária é ali representada pelos nibelungos, povo anão escravizado
pelo tirano-anão Alberich, e por ele condenada a trabalhar diuturnamente
junto às forjas quentes, para manter sua riqueza e poder. O próprio
Alberich representa, evidentemente, a burguesia industrial. Mas há
também o mundo dos homens, de onde surge o revolucionário Siegfried,
como também o mundo dos deuses, que representa a então existente e
efetiva aristocracia. Na cena felliniana da caldeira, os operários-nibelungos
encontram-se face a face com os deuses-cantores, divos e divas operísticas,
que não se fazem de rogados em demonstrar seus dotes sobre-humanos
e divinos, para a aturdida admiração daqueles homens embrutecidos e
besuntados de suor, óleo e pó de carvão.
Mas já que estamos falando de música, não posso deixar de fazer
uma observação histórica: cabe lembrar que, por aquela época, Schönberg
já havia realizado suas primeiras experiências atonais, em vista das quais
alguém armou que, com o compositor austríaco, um mundo desaparecia
e outro surgia em seu lugar. Tal armação, que a História da música talvez
recomende relativizar, tem pelo menos a virtude de expressar o impacto
que o atonalismo trouxe para a música. Talvez só se possa compará-lo ao
impacto que o ateísmo teve para o pensamento metafísico-religioso, ou
que a descoberta do espaço innito teve para o pensamento astronômico.
De fato, a ideia de um espaço sonoro em que não mais existem centros
tonais em redor dos quais os outros sons gravitam, e em que todos os
doze tons da escala cromática não mais se hierarquizam segundo qualquer
princípio harmônico, rompe com séculos, quiçá milênios, de pensamento
e prática musicais. Assim é que a incerteza histórica retratada na obra
de Fellini tem seu componente musical. Pois por aquela época a música
também se viu de repente atônita, se bem que também eufórica, diante do
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 231
mar de possibilidades que se abria diante dela. Os principais compositores
dessa época são os pioneiros exploradores desse mar, tão intrépidos como
receosos, pois sabiam que a velha bússola não lhes serviria mais para nada.
Mas, qualquer que fosse sua atitude diante da nova situação, o certo é
que nenhum deles poderia saber para onde ia a nave-música. Porém, para
anunciar o novo mundo musical, Fellini não se utiliza de Schönberg, cuja
música faria um contraste talvez drástico demais com o restante da trilha
sonora, totalmente imersa no princípio tonal. É numa cena quase neutra,
silenciosa, calma e misteriosa que de repente o aroma do atonalismo se
insinua no universo musical do lme. É quando soa o prelúdio número 6
da primeira coleção de prelúdios para piano de Debussy, chamado Des pas
sur la neige (Passos na neve). Único prelúdio verdadeiramente atonal dessa
primeira coleção, Des pas sur la neige, por sua atmosfera desolada, solitária
e imensamente poética, representa uma passagem quase que imperceptível,
embora decidida, ao outro mundo musical, preludiando esse novo mundo
como a madrugada calma e silenciosa preludia mais um dia cheio de sons
e agitação. Que se avalie a distância que há entre os mundos musicais do
tonalismo e do atonalismo pela distância que há entre esse mágico prelúdio
e o Clair de lune, também de Debussy, que soa quando se projetam na tela
as únicas imagens lmadas de Edmea Tetua!
Mas esta experiência de que se estava vivendo na fronteira entre
dois mundos deve ter sido realmente bastante comum naquela época. No
plano social, os acontecimentos históricos que tiveram lugar nos meses
e anos seguintes à ctícia viagem da nave felliniana viriam conrmar de
maneira drástica essa sensação. Por um lado, a Primeira Guerra Mundial
viria a alterar violentamente a correlação de forças na geopolítica mundial,
ensejando um deslocamento do eixo econômico e político da Europa
para a América e preparando o terreno para o segundo conito mundial.
Por outro lado, há a Revolução Russa, que acende o alerta vermelho em
todo o Ocidente e coloca a classe trabalhadora no centro da cena política,
como um novo e importantíssimo protagonista. Ambos os abalos são
retratados com maestria na película de Fellini. A deagração da guerra
entra no próprio roteiro do lme, sendo inclusive a causa do próprio
naufrágio da nave. Já a entrada do proletariado na cena política e o ímpeto
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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revolucionário infundido planetariamente pela Revolução Russa se veem
magistralmente retratados na sequência dos sérvios. Que mais poderia
signicar a chegada repentina desses hóspedes inesperados, turbulentos,
exóticos, semibárbaros e potencialmente violentos, que de repente e aos
poucos começam visivelmente a disputar espaço com a aristocrática troupe,
senão justamente a ascensão política do proletariado industrial a disputar
o espaço da sociedade? Em relação a eles, os nobres músicos têm reações
contraditórias: de um lado, o indisfarçável fascínio pela vida transbordante
que neles se expressa, dando ensejo inclusive a confraternizações dançantes
e investidas românticas. Por outro lado, o horror amedrontado que os
obriga a tentativas cada vez mais precárias e ridículas de preservar o seu
espaço vital face a todo elemento perturbador externo, estabelecendo
limites, mesmo que na forma de frágeis cordões de isolamento, dentro dos
quais a sua vida pudesse continuar a ser o que sempre foi. E não falta aos
sérvios nem mesmo seu revolucionário, o jovem Mirko, no qual a liberdade
poética de Fellini faz condensarem-se as guras do Siegfried wagneriano –
que anuncia o crepúsculo dos deuses ao atirar o fatídico molotov contra a
nau inglesa, ao mesmo tempo em que rapta e emancipa sua valquíria, sua
Brühnhilde aristocrática – e a do estudante sérvio que, segundo registra
a História, assassina o arquiduque Franz Ferdinand, dando início ao
primeiro conito mundial.
Mas o contraste entre os dois mundos é retratado também na
obra de Fellini por ainda outro aspecto que magicamente se mescla às
transformações sócio-políticas e musicais na narrativa felliniana. Trata-
se da grande transformação por que passa a cultura como um todo com
a introdução dos modernos meios de captação e reprodução de som e
imagem. As primeiras décadas do século XX não são apenas a preparação
para a grande viragem trazida pela guerra e pela Revolução Russa. São
também as décadas em que a fotograa se impõe como meio importante
de apreensão e documentação do real e em que despontam seus primeiros
grandes artistas. É a época em que o lme engatinha e que a gravação
sonora deixa de ser mera curiosidade técnica, começando a se armar como
maneira de xar performances musicais. É a partir de então que as imagens
e sons do mundo começam a perder seu aspecto de impressões fugidias,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 233
recebendo o selo da permanência e da eternidade; começam a perder
sua ancestral e umbilical ancoragem no mundo dos objetos para passar a
acumular-se em uma dimensão diáfana e imaterial, mas sempre presente e
acessível a qualquer tempo e lugar. Trata-se daquela mesma transformação
que Walter Benjamin, em seu clássico texto A obra de arte na época de
sua reprodutibilidade técnica, caracterizou como processo de aniquilação da
aura. A essência da aura benjaminiana é o poder absoluto do aqui e agora,
que sempre dominou nossa cultura. É a unidade e identidade dos objetos
artísticos que estão sempre em um determinado lugar e em mais nenhum
outro; é a singularidade irrepetível dos eventos que ocorrem sempre em um
determinado momento e não em quaisquer outros. Foi sobre a autoridade
milenarmente intocável do aqui e agora que se havia assentado sempre a
cultura. Mas a introdução dos meios técnicos de reprodução de som e
imagem faziam ruir esse pilar. Com esse acontecimento, teria tido início
um processo de volatilização, por assim dizer, da cultura, que abandona seu
tradicional enraizamento no mundo concreto dos objetos – e, portanto, no
mundo das relações de propriedade e dominação de classe –, para passar a
habitar uma atmosfera virtual onde se apinham as miríades imagens e sons
eternizados, a espera apenas de um comando para descerem até nós.
O que Benjamin descreve é na verdade algo absolutamente conhecido
por todos, e, de fato, tão cotidiano e trivial que, por isso mesmo, requer uma
construção conceitual abstrata para que possa ser percebido. Essa cultura
não-aurática das imagens e sons eternos todos nós a reconhecemos como
a nossa cultura, mesmo os que jamais leram Benjamin. Foi dessa cultura
que sugamos o leite materno do espírito, foi ela que em grande medida
nos formou como entes de cultura. Tão profundamente fomos e somos
nutridos por essa cultura das imagens e sons eternos que já a reconhecemos
como a nossa mesmo quando se mostra em seus primórdios. Os trabalhos
dos primeiros fotógrafos nos parecem muito mais contemporâneos
do que obras literárias escritas décadas depois, pois aquelas imagens já
pertencem, desde nascença e por natureza, ao mundo do reprodutível, ao
imenso cabedal audiovisual que nos rodeia e ao qual podemos sempre ter
acesso a qualquer tempo. E note-se que esse tipo de consideração não vale
apenas para o terreno da cultura, como também para o da vida. As pessoas
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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retratadas por aquelas primeiras imagens nos parecem muito mais nossas
contemporâneas do que as que viveram depois e nunca foram reproduzidas,
e muitíssimo mais contemporâneas do que aquelas que viveram antes da
invenção dos meios técnicos de reprodução de som e imagem. E essa
sensação de proximidade é tanto maior quanto mais perfeitamente a vida
mesma é reproduzida no seu uxo natural; e, nesse aspecto, é claro que
o lme e a gravação sonora superam de longe os recursos da fotograa.
Todos conhecemos as imagens fotográcas de Nietzsche, Brahms, Verdi,
Marx, do imperador D. Pedro II, etc. Já os vimos tantas vezes que já não
nos causam qualquer especial comoção. Mas quando em uma plataforma
de vídeos da internet temos a oportunidade de ouvir uma gravação ao
piano de Mahler ou Brahms, não importando o quão discerníveis sejam
os sons musicais, ou quando vemos uma pequena lmagem do Nietzsche
já demente no hospital, assistido por sua irmã, temos um sobressalto, pois
é quase como se estivéssemos recebendo uma mensagem vinda de outro
mundo – talvez o mundo dos espíritos ou dos mortos – ou quase como se
estivéssemos realizando um importante achado em um sítio arqueológico
de alguma cultura antiga.
Ora, o tema da passagem de um mundo da não reprodutibilidade
técnica da imagem e do som para o mundo da reprodutibilidade é um dos
temas centrais de E la nave va, e talvez seja até mais importante que o da
transformação social, se é que se poderia separar um do outro (Benjamin
mesmo diria que não…). É natural que seja assim, já que se trata
exatamente de uma obra cinematográca vinda de um autor que nunca
deixou de reetir sobre sua própria arte. Já as cenas iniciais do lme rendem
homenagem aos inícios da fotograa e da lmagem. No preto-e-branco
dessas cenas iniciais, que – em uma primeira alusão ao progresso técnico
posterior – suavemente se transforma em colorido, já nesse preto-e-branco,
dizia eu, expressa Fellini, com a sensibilidade poética que o caracteriza, sua
gratidão, e a de todos os cineastas, aos esforços dos pioneiros da fotograa
e do lme, personagens em que muitas vezes a gura do artista mal se
distinguia da do técnico, da do inventor e do cientista. Mas nessas cenas
iniciais é também de se destacar a atitude das pessoas diante da câmera,
não exatamente da câmera de Fellini, mas daquela que, no lme, ali está
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 235
para registrar e eternizar o cerimonial da partida – se bem que em alguns
momentos essas duas perspectivas se tornam uma só, e a câmera do lme se
confunde com a câmera no lme. Os músicos, autoridades navais e agentes
funerários já se curvam à tecnologia e tratam a câmera com o devido
respeito e mesmo certa solenidade, como se adivinhassem que aquela era a
principal testemunha da cerimônia (no que estavam certos). Já é um féretro
totalmente diferente dos do passado, o de Edmea Tetua: ele já acontece para
a câmera, já pertence tanto ao aqui e agora quanto à eternidade virtual. O
operador da câmera não somente registra o cortejo, mas também o dirige:
como um diretor de cinema, ele paralisa a marcha fúnebre, ordena que se
retroceda alguns passos e dá o sinal para que ela seja retomada, de modo
a permitir que seja lmada convenientemente. Mas, principalmente, é
digna de destaque a atitude de alguns dos circunstantes comuns, que nada
sabiam de ópera, de cinzas e Edmeas. Para esses, a câmera é quase como
uma aparição extraterrestre, uma novidade excitante. De uma forma ou
de outra, eles se esforçam para exercer aquilo que Benjamin chamou de o
direito de ser lmado, mas, muito mais que isso, querem gozar da festa que
é ser lmado. Eles olham diretamente para a câmera, riem, fazem gracejos
e acenam para ela. Compreenderam que a câmera não era apenas uma
testemunha, e sim um personagem, e mesmo o personagem principal; que
o mais importante ali não era o lmado, mas sim o que lma. Olhando
para a câmera, eles olham para o futuro. Acenam, não exatamente para a
câmera, mas para mim e para aquele(a) que agora me lê, mas também para
qualquer um que a qualquer tempo pudesse ter acesso àquelas imagens.
Mais ainda do que para o futuro, acenam eles para a eternidade.
Durante a viagem, os músicos continuam a ter uma atitude ambígua
em relação aos meios técnicos de reprodução. Sem dúvida eles sabem que
pertencem a outro mundo, ao mundo pré-reprodutibilidade, e que tudo
aquilo que amam pertence também a esse mundo passado. Mas nem por
isso recusam a possibilidade que a técnica lhes dá de xar e rememorar o
seu mundo perdido. Usam gravações tanto para o puro deleite artístico
como eventualmente para acompanhar suas próprias performances. Claro
que para eles isso é apenas um substituto, um instrumento de menor
importância, mas mesmo assim não deixam de reconhecer que aquelas
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gravações preservam algo da essência da música, reconhecem que a
música pode sim sobreviver, mesmo quando decodicada nos cilindros
rolantes de metal ou inscrita nos sulcos de vinil. Com essa deferência e esse
reconhecimento que fazem à técnica, eles nos estendem a mão, e já quase
nos inclinamos a vê-los como nossos contemporâneos. Símbolo máximo
dessa reconciliação entre passado e futuro é a comovente imagem de
Edmea Tetua projetada sobre a tela em meio ao naufrágio. Edmea, espírito
e essência da música, sobrevive aos canhões, à guerra, ao naufrágio…, mas
sobrevive graças ao lme!
Porém, a reconciliação denitiva é reservada para as sequências
nais. É então que o próprio Fellini nos convida a também olhar através
da câmera, para trás dela, e assim descobrir o mistério que os populares,
no momento da partida da nave, tentavam confusamente perscrutar ao
encararem a lente que os encarava. E o que descobrimos é o cinema, o
cinema encarnado em Cinecittà, com suas gruas, suas plataformas móveis,
seus andaimes metálicos, seus canhões de luz, seus microfones direcionais,
suas equipes de iluminação e sonoplastia. Quem diria que tudo isso
se escondia atrás daquela velha lente de 1914, como o fruto maduro
palpitando na semente original? Em Cinecittà, o passado realmente se
reconcilia com o futuro, pois é ali que todo o passado é recriado e revivido
por meio da técnica mais futurista. O cinema supera a ópera ao realizar
mais plenamente a ideia da obra de arte total que sempre fora a meta
daquela. A fusão mais perfeita entre texto, imagem, atuação dramática e
música, juntamente com as especiais condições de isolamento acústico e
iluminação, tudo isso confere ao cinema um poder de ilusão, de “recriação
do real muito mais forte do que o da ópera. Dentro das paredes escuras
das salas de cinema os seres humanos podem se entregar de todo o coração
e sem receios a esse ancestral e poderoso pendor à ilusão, que no século
XIX levava os burgueses engalanados à ópera mas que já devia atuar nos
bruxuleantes jogos de sombras das cavernas, muito antes que Platão se
lembrasse de transformar esse proto-cinema em matéria losóca. Mas isso
não quer dizer que o cinema tenha substituído a ópera, pois esta continua
a existir como sempre existiu, como evento aurático, na linguagem de
Benjamin, como evento situado no aqui e agora, e, nessa medida, a rigor,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 237
sempre irreprodutível, de modo que todas as suas reproduções são apenas
cópias imperfeitas, simulacros. Mas quantos de nós teríamos qualquer
conhecimento mais concreto da ópera se não fossem esses simulacros? O
cinema e a técnica em geral não substituem nem destroem a ópera e nem
a cultura do passado, mas a preservam para um futuro que sem dúvida
dependerá cada vez mais da reprodução e da técnica. Pela técnica redentora
do cinema, a Guerra é revisitada e esteticamente superada, passado e futuro,
Verdi e Fellini, dão-se amistosamente as mãos…
- “Certo, vá lá, mas e o rinoceronte?”
- “Ah sim, o rinoceronte! (Pensei que podia escapar dele…)”
Creio que qualquer um que se disponha a falar publicamente sobre
E la nave va precisa contar com essa pergunta. Sim, que faz um rinoceronte
no meio da trama felliniana? De fato, o rinoceronte é um grande tema,
grande e pesado, um tema aliás, que, conforme puderam constatar os
hóspedes da nave, não cheira nada bem. Sem querer ter a palavra nal sobre
essa paquidérmica questão, indico apenas uma possibilidade de pensá-la.
Essa possibilidade se constrói a partir de duas referências literárias, as
duas convergindo em fazerem referência ao fascismo. Mas quero começar
confessando que nunca havia dado demasiada importância para essa aparição
insólita no lme de Fellini. Por não poder interpretá-la de nenhuma forma
satisfatória, a considerava como apenas um toque de absurdo, tão comum
nas obras do maestro, e tão condizente com sua poética. Parece-me agora
que estava errado, muito embora apontasse, sem querer, para o lado certo.
Penso que a intromissão da enorme besta no lme tem a ver sim com o
absurdo, mas, mais especicamente, com uma determinada obra do Teatro
do Absurdo, o Rhinoceros, de Eugène Ionesco. Esta inquietante narrativa
fantástica gira em torno de uma estranha epidemia que se teria abatido sobre
determinada cidade, e em virtude da qual seus habitantes, outrora pacatos
e ordeiros cidadãos civilizados, transformavam-se repentinamente em
rinocerontes, com a exceção do protagonista, que relutava em permanecer
humano. E o pior: todos os demais acostumavam-se à mutação, achando-a,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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por m, normal, além de perfeitamente decente e adequada: anal, se
todos estavam se rinocerontizando... É sabido que Ionesco retratava com
essa fábula o processo de fascistização das populações, que, rendendo-se à
violência e ao encanto imbecilizante do instinto de manada, abandonavam
suas características humanas para tornarem-se bestas semi-pré-históricas,
incapazes de qualquer sentimento humanizante, bem como de enxergar um
palmo além de seu próprio e chifrudo nariz. Deixo a cada um determinar,
segundo suas próprias experiências, o quanto a rinocerite de Ionesco
seria apenas o produto absurdo de uma mente literária delirante (já se
viu coisa semelhante?!). A segunda referência literária é dada por Brecht,
com sua conhecida armação de que após a Segunda Guerra ninguém
devia comemorar a vitória sobre o fascismo como algo de denitivo, pois
a cadela que o havia parido já estava novamente no cio. Lembremos então
da última cena do lme: ela nos mostra o repórter-narrador em seu bote,
junto com o paquiderme, nos informando de que o rinoceronte dá um
bom leite. Disso se deduz não apenas que se tratava de uma rinoceronte
fêmea, mas também que estava prenhe ou havia acabado de dar à luz, pois
do contrário não produziria leite.
E eis aí a “resposta”, para quem quiser acreditar nela: a sociedade
decadente vai a pique, mas gesta, nas suas mais profundas e irracionais
entranhas, o embrião malcheiroso do fascismo, que haveria de vicejar já
na década seguinte, especialmente na própria Itália, onde Fellini viveu seus
anos de adolescência – mas esse já é tema para Amarccord
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C    
Ulisses Razzante VACCARI
1
introdução
Assistimos, recentemente, no Brasil e no mundo, a uma radicalização
política que, apesar da semelhança com outros períodos da história,
possui características próprias. Para além de investigar essa especicidade,
nos interessa aqui pensar os efeitos da radicalidade política na arte e,
em especial, no cinema, problema que pode ser sintetizado no seguinte
questionamento: como a radicalização política pode afetar a arte em geral
e o cinema em particular? Tempos radicais em termos de política e de
movimentos sociais transformam ou deveriam transformar o modo como
os artistas produzem suas obras? Em caso armativo, como entender
então a obra de arte? Ela deve ser pensada como um reexo da política,
como incitação às revoluções ou, ainda: é possível defender sua autonomia
independentemente das convulsões sociais? Tal é a constelação de questões
que o presente texto procurará discutir, buscando, sempre que possível,
referir a obras de arte em geral e a obras cinematográcas especícas.
Professor no Departamento de Filosoa da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis /
SC / Brasil. E-mail: ulisses_vaccari@hotmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p239-260
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Logo de saída, gostaria de observar que a radicalização política
exerce um efeito imediato sobre o ânimo da sociedade, transformando,
inevitavelmente, todo conteúdo cultural, social e artístico em conteúdo
político. Em tempos de convulsão social, como, por exemplo, períodos
que antecedem golpes de Estado, revoluções e revoltas, é mister que
produtos culturais-artísticos sem uma visão claramente engajada, que
não combatam claramente nenhum preconceito determinado, nenhuma
injustiça, nenhuma desigualdade, sejam imediatamente rechaçados como
alienados e desinteressantes. Essa exigência popular, expressa muitas vezes
pela própria opinião pública, afeta igualmente a animosidade dos artistas,
que, buscando fugir do ostracismo, veem-se de certo modo obrigados a
acatar as exigências da massa e da opinião pública pela politização e o
engajamento. Não seria certamente exagero armar que, no Brasil, há
uma predileção pelo cinema politizado, desde O pagador de Promessas,
de Anselmo Duarte, ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 1962,
passando pelos lmes de Glauber Rocha, como Deus e o Diabo na Terra
do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), chegando até a década de 1980
com Pixote, a Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, entre outros. Após
uma década inteira dominado pela pornochanchada – a de 1980 –, o
cinema político vive um “renascimento” em 1998 com Central do Brasil,
de Walter Salles e, nos anos 2000, agora com o revestimento da técnica
cinematográca de expressão norte-americana, como em Cidade de Deus,
de Fernando Meirelles e em Tropa de Elite, de José Padilha. Recentemente,
observou-se um anamento da produção cinematográca dita engajada
em lmes tais como Que horas ela volta?, de Anna Muylaert e Bacurau de
Kleber Mendonça Filho, ocasionando grande debate nacional por trazerem
questões político-sociais a uma linguagem mais próxima da brasilidade,
sem precisar recorrer ao aparato técnico e pirotécnico próprio do cinema
norte-americano. Por outro lado, lmes não claramente politizados, tais
como O Homem das Multidões, de Marcelo Gomes e Cao Guimarães, ou
Amarelo Manga, de Cláudio Assis, enfrentaram, desde seu lançamento, o
mais amargo silêncio, muito embora tenham levado o cinema nacional a
um patamar artístico jamais visto até então.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Como explicá-lo? De onde vem, anal, essa predileção pelo cinema
dito engajado? Uma resposta possível é que o público em geral, incluindo
a própria opinião pública nacional, constituída de críticos e jornalistas,
é muito mais sensível à política que à arte; que, assim como ocorre no
futebol, as paixões se exacerbam quando o tema é política, como se pôde
observar na discussão inamada que envolveu o lançamento de Tropa de
Elite, por exemplo, a qual ultrapassou em muito o plano artístico para
se envolver no nível de uma política apaixonada e carente de razão. O
debate originado por ocasião do lançamento do lme não discutiu o lme
nele mesmo, isto é, suas qualidades artísticas, mas focou sobretudo no
fato de ele ter trazido à tona uma questão social de primeira ordem, que,
segundo o tom geral da opinião pública, seria mais importante. Por outro
lado, lmes que não trazem a política à or da pele, mas que se focam
em elementos que a ultrapassam, não possuindo uma visão especíca
sobre uma “questão social”, são ignorados ou rebaixados à categoria de
“interessante”. Ao que tudo indica, um determinado lme ou uma obra de
arte só adquire visibilidade quando seu tema é “polêmico”, isto é, quando
se torna capaz de exaltar as paixões que, em verdade, já se encontram
exaltadas. Consequentemente, especicamente no Brasil, a qualidade
artística do lme encontra-se subordinada ao seu nível de engajamento
político ou social, de modo que a arte que não engajada tem sua função
artística diminuída. O problema, a meu ver grave, refere-se a uma falha
da opinião pública, mais profundamente a uma falha da crítica de arte
ou de cinema que, visando audiência, acaba por produzir o que o público
em geral deseja ler ou escutar. Como este público encontra-se de antemão
imerso e inamado pelas questões políticas nacionais, o cinema sabiamente
se alimenta desse fato, visando justamente ganhar visibilidade e obter o
lucro. Fazer cinema com tema social, no Brasil, passou a signicar não
propriamente o engajamento político da arte, mas sua submissão a um
mercado especíco. O que se espera da crítica, assim, é que ela se eleve
do plano das paixões e comprometa-se a analisar o cinema de uma forma
neutra, procurando, na obra, o equilíbrio entre a polêmica potencial e a
estrutura artística. Somente assim se corrigiria o preconceito corrente que
grassa na opinião pública tradicional, que consiste em submeter a arte à
política apaixonada.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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Recentemente, no Brasil e no mundo, assistimos a um
recrudescimento desse fenômeno, como se pôde acompanhar nos debates
em torno de lmes tais como Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, e
Coringa, de Todd Phillips. Tanto um como outro vieram à tona em
momentos políticos extremamente conturbados de cada país – Bacurau,
no Brasil e Coringa, nos Estados Unidos –, o que, a meu ver, deveria ser
levado em conta nos debates sobre os lmes. Pelo que se pôde acompanhar,
raramente se discute o lme pelo lme, isto é, a qualidade da direção, as
opções cênicas, a montagem e a atuação dos atores, preferindo-se sempre
desvendar a “mensagem política” por trás do enredo ou a posição política
do diretor. Não é preciso dizer que tais juízos têm como efeito ignorar
a estrutura estética da obra, o que, em última instância, corresponde a
uma distorção do próprio lme, na medida em que o juízo sobre ele está
fundado numa redução simplista e ingênua. Tal problema se agrava em
tempos politicamente conturbados, como se disse, em que não apenas o
público em geral, mas a própria opinião pública encontra-se imersa no
oceano dos afetos que inunda a nação como um todo.
Bacurau e Coringa, nesse sentido, foram vistos e interpretados
invariavelmente como libelos políticos, como conclamações à revolta
popular e à conspiração contra um status quo opressivo e dominador.
No caso de Bacurau, o lme foi recebido em muitos círculos como uma
película de resistência; retrataria, segundo essa interpretação, a resistência
armada de uma comunidade do interior do Brasil diante da invasão de
um grupo internacional igualmente armado, cujo propósito consistiria em
literalmente riscar a cidade do mapa, dizimando seus cidadãos. Os motivos
desse grupo internacional, cujos integrantes são falantes do inglês norte-
americano, escapam do plot do lme, deixando as analogias ao espectador
e à opinião pública que, como se disse, encontra-se inamada por paixões
violentas, sedentas por um posicionamento político. O julgamento do lme
por parte do público está assim determinado de antemão, inclusive porque
é conhecida publicamente a posição política do diretor. O próprio Kleber
Mendonça fez questão de submeter o lme Aquarius, de 2015, à sua posição
política pessoal na sua apresentação em Cannes
2
, predeterminando, assim,
 Cf. Moraes (2016).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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seu público e o julgamento reservado ao lme. Assim como Adorno refere-
se ao fenômeno da supressão do gosto pela indústria cultural, o mesmo
pode ser dito de um lme cuja “posição política” é antecipada pelo próprio
diretor, ceifando a liberdade de julgamento dos espectadores e da opinião
pública. Nesse sentido, são louváveis as entrevistas de diretores que, diante
da sana midiática de denir o “sentido” do lme, apenas embaralha e
confunde sua “mensagem”, ou, no máximo, apenas proporciona pistas para
que o espectador possa refazer o caminho por si próprio, garantindo assim
a liberdade da imaginação, um dos bens mais raros no cenário artístico
mundial da atualidade.
O caso de Coringa não é diferente. Embora houvesse quem elogiasse
a atuação de Joaquin Phoenix, as interpretações se limitaram a uma questão
exterior, mas não menos política, de que a grandeza da película estaria no
seu combate à ideologia do herói própria dos lmes da Marvel. Ao contrário
destes, Coringa seria um bom lme porque traria para as telas o drama da
vida dos vilões que, humanizados, não são mais vistos como a encarnação do
mal radical. A “mensagem política” do lme, assim, é que, agora, todos os
excluídos da chamada democracia, os marginais da cultura e da sociedade,
podem se identicar com esse vilão que só é tal justamente porque foi
desde sempre excluído. Não há, a meu ver, interpretação mais mecânica,
mais simplista do que esta. Se o objetivo consiste em situar o núcleo do
cinema no enredo, abstraindo dos elementos propriamente estéticos do
lme (o que faz com que a crítica contemporânea seja aristotélica sem o
saber), esse enredo, por outro lado, peca por um simplismo que beira a
infantilidade. De modo que a única explicação para que a opinião pública
eleja esse lme como um grande lme reside no desejo subjetivo de que ele
repare uma “injustiça social”, dando voz aos excluídos e estabelecendo a
conexão – óbvia, a meu ver –, entre os marginalizados e a loucura recalcada
que circula, solitária, pelas ruas repletas de decadência, base de toda revolta
popular. Coringa, nesse sentido, sequer teria o mérito da originalidade,
pois, nesse quesito, foi precedido por Taxi Driver, de Martin Scorcese, cujo
enredo consiste exatamente no estabelecimento dessa relação causal entre
a explosão da loucura e da violência gratuita e descontrolada e o recalque
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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dos desejos dos oprimidos, obrigados a viverem como ratos nas grandes
metrópoles da segunda metade do século XX.
Diante disso, eu gostaria de defender aqui que tal redução da arte
e, particularmente do cinema, a uma visão político-social imediata é
empobrecedora. A arte ou, ao menos, a qualidade artística de uma obra não
pode e não deve ser denida apenas em relação ao seu nível de engajamento
político e não deve ser precedida pela posição política do seu diretor ou de
sua produção; fazê-lo signica determinar de antemão a crítica e a opinião
pública, ceifar a liberdade da imaginação e de julgamento, e, portanto,
esvaziar a obra de arte de suas qualidades artísticas. Estas últimas, embora
tangencie inevitavelmente temas políticos e se formem em torno deles,
devem se incrustar igualmente em outros domínios da vida humana,
sejam eles metafísicos, sociológicos, cientícos, psicológicos ou mesmo
puramente artísticos. À obra de arte deve-se, no mínimo, garantir a
possibilidade e o desejo de manter-se num nível puramente estético, de
permanecer no âmbito de uma brincadeira ou de um jogo, se este for o
caso, ou de se satisfazer com a chamada “bela aparência”, sem que, com
isso, seja considerada descompromissada, desinteressada (ou interessante)
ou alienada. O caráter político, sendo apenas um dos elementos possíveis
da obra de arte, não deve sobrepujar sua qualidade artística, ou ser usado
para determiná-la, preponderando, assim, sobre os outros elementos que
perfazem e constituem o seu universo.
Desde o surgimento da estética e da losoa da arte na antiguidade
grega discute-se o papel da arte, de sua “função” na sociedade e na cultura,
tendo os mais diversos pensadores se colocado ora a favor ora contra o
engajamento político da arte. Não se trata aqui de tomar um partido na
querela, já milenar à época de Platão, mas simplesmente apontar para o fato
de que toda redução da arte à sua função política signica o atrelamento
da obra a seu tempo imediato e a seus problemas especícos, o que, por
outro lado, resulta na perda da dimensão losóca, universal, atemporal
e a-histórica que toda arte e toda crítica, invariavelmente, devem possuir
e conservar. Sempre que lemos uma análise de um lme relacionando-o
à conjuntura política atual ou procurando ver sua gênese a partir de
uma situação política especíca, corremos o risco de sobrepor à obra um
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 245
fenômeno meramente empírico, um fato histórico determinado, perdendo
de vista, consequentemente, todos os outros elementos que a denem
como “arte”. Tão logo este fato empírico ou dado histórico a que a obra foi
reduzida desapareçam, desaparecerá igualmente o interesse pela obra, que
passará a ser “datada”, como aliás, tornou-se comum na expressão “lme
de época”, referindo-se a um certo gênero cinematográco cujo objetivo
consiste apenas em retratar os costumes de uma determinada época. A
expressão “lmes de época”, geralmente, é usada em um tom depreciativo
e serve, justamente, para rebaixar um determinado lme, retirando dele
todas as qualidades artísticas que ele porventura pudesse possuir, o que,
evidentemente, revela-se uma injustiça com a obra. Basta pensar em Barry
Lyndon (1975), de Stanley Kubrik para convencer-se de que um lme,
mesmo ao retratar os costumes de uma época passada, pode ser losóco.
O mesmo ocorre com lmes ditos panetários.
o engAjAmento Político do cinemA no século xx
Não há dúvida de que esse modo de analisar uma determinada obra
de arte, neste caso, um lme ou mesmo o cinema como um todo, está
amparado por uma tradição crítica, sobretudo de orientação marxista.
Embora as obras do próprio Marx careçam de uma estética, isto é, de uma
aplicação de sua teoria buscando pensar a obra de arte na era do capitalismo,
seu pensamento fundou uma tradição que se encarregou de estabelecer
essa relação. O primeiro a fazê-lo, a saber, utilizar os conceitos de Marx
para pensar a estética na modernidade capitalista, foi Georg Lukács, em
História e consciência de classe. Não se trata, evidentemente, do primeiro a
abordar o tema do engajamento político da arte, mas foi um dos primeiros
a pensar as consequências d´O Capital de Marx para uma teoria estética.
Com isso, Lukács abre caminho para uma gama de pensadores que,
desde o início do século XX, se caracteriza por exigir da arte uma postura
politizada, como forma de combate ao status quo opressor e subjugador,
geralmente identicado com “o sistema capitalista”. Um dos autores mais
conhecidos dessa via aberta por Lukács é Walter Benjamin que também
envereda pela questão do fetichismo da mercadoria, procurando pensá-la
no domínio da arte e da crítica. Segundo Benjamin, a ideia do fetiche
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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da mercadoria, quando pensada no plano da cultura como um todo,
tem como efeito a transformação de todas as relações sociais e humanas
em relações fantasmagóricas, isto é, carentes de um fundamento sólido,
porque calcadas tão-somente na aparência. Nesse sentido, observa-se um
movimento de multiplicação da aparência, que já não exprime uma essência
concreta, facilmente identicável, mas uma aparência que se alimenta de si
mesma e por si mesma. O III Reich soube apropriar-se desse fenômeno, ao
utilizá-lo na política, como forma de propaganda. Fortemente estetizada,
a política do nazismo pôde, nalmente, ganhar para si as grandes massas.
A obra de arte, nesse cenário, assume uma função importante,
de combate aos ilusionismos próprios dessa cultura, conquanto, nela,
sobressaia sua função política em detrimento de sua função meramente
estética. Eis como Benjamin, em seu conhecido ensaio A obra de arte
nos tempos de sua reprodutibilidade técnica, defende a ideia da politização
da arte como forma de combate da estetização da política, própria dos
regimes fascista e nazista: “Essa é a estetização da política, tal como a
pratica o fascismo. A resposta do comunismo é a politização da arte
(BENJAMIN, 1975, p. 34).
É sobretudo no cinema que Benjamin deposita a esperança da
politização da arte contra a estetização da política. Para mostrá-lo, o lósofo
reduz toda a linguagem do cinema à sua função política, ao valorizar
nele sua qualidade reprodutível, contrariamente à arte tradicional, não
reprodutível, portanto, aurática. É precisamente este o ponto de inexão
no qual a crítica passará a favorecer o lado político da arte e, em especial,
do cinema, em detrimento de suas qualidades propriamente artísticas. Este
é um momento decisivo para a crítica de cinema, porque é a partir dele
que se fará a cisão entre cinema político e apolítico, então, entre o cinema
engajado e o cinema desinteressado (ou meramente interessante). É a partir
de Benjamin que o cinema apolítico se tornará sinônimo de um cinema
não compromissado com os problemas sociais, vertente esta que ganhou
fôlego no território nacional, mesmo que os nossos críticos e formadores de
opinião não conheçam a fundo a teoria benjaminiana da reprodutibilidade
técnica. A bem dizer, o texto de Benjamin tornou-se uma espécie de bíblia
dos professores universitários de cinema e jornalismo, de modo que, desde
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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o primeiro ano na faculdade, os estudantes aprendem que o texto sobre a
reprodutibilidade técnica constitui o texto talvez mais fundamental sobre
cinema do século XX, o que, em certo sentido, não deixa de ser verdade. O
problema, porém, reside no modo como este texto é ensinado, ou melhor,
louvado muito mais por seu caráter panetário que propriamente por seus
valores históricos, sociológicos ou losócos. Ensina-se o texto na maior
parte das vezes sem se estabelecer a conexão necessária entre ele e o contexto
histórico em que o autor o escreveu, por um lado, e sem se estabelecer sua
conexão sistemática com o restante dos textos do autor sobre o tema. O
conceito da aura, assim, permanece até hoje um enigma metafísico não
resolvido, porque não compreendido, bem como escapa dessa forma de
ler o texto sua unidade losóca. Isolado de suas conexões losócas mais
abrangentes, exalta-se no texto apenas seu grito de desespero, ignorando
suas nuances, suas ironias, suas ambiguidades e mesmo as incertezas que
subjazem suas teses mais importantes e mais conhecidas, elementos estes
deveras importantes para Benjamin.
A obra de Benjamin, da qual ecoa com uma força retumbante a
exigência de politização da arte, pertence àquelas que não podem ser
explicadas sem a referência à sua vida, e esta, por sua vez, só pode ser
compreendida no interior do contexto histórico de sua época. Ao fazê-lo,
ao buscarmos compreender os motivos que levaram Benjamin a formular
assim seu pensamento, talvez possamos relativizar um pouco suas teses,
retirando delas a radicalidade exigida por sua época. Da contextualização
histórica do seu tempo (algo nem sempre fácil de fazer) derivará
necessariamente a compreensão de muitos dos seus postulados losócos,
como, por exemplo, a necessidade de se proteger contra os grandes temas
metafísicos da losoa, a necessidade de buscar pela matéria em detrimento
do espírito, a necessidade de se intitular um materialista histórico, enm,
a necessidade de exigir o engajamento político-revolucionário da arte.
Há épocas históricas extremas que exigem da losoa uma radicalidade
próxima à do revolucionário e Benjamin viveu, talvez, no momento mais
extremo do século XX, política e socialmente falando. Sua vida foi marcada
pelo surgimento da Primeira Guerra Mundial, pela Revolução Russa,
pelas empreitadas revolucionárias de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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em Berlim, pelo malogro da República de Weimar e, nalmente, pelo
despontar do fascismo na Itália e na Alemanha. Vivenciou o momento em
que Hitler se torna chanceler em 1933, quando se despediu denitivamente
da Alemanha, vindo a se exilar em Paris para o resto de seus dias, cujo
m trágico foi determinado pelo suicídio em Port-Bou, na fronteira com
a Espanha. Diante disso, a pergunta que ressoa não é relativamente às
razões de ter Benjamin exigido da arte o engajamento político, mas, pelo
contrário, diante de um século a tal ponto explosivo, havia como não exigir
da arte um posicionamento político?
Como arma Brecht, como pintar uma natureza-morta num navio
que está afundando? Tal ambiente torna compreensível a exigência de
engajamento que se faz à arte, condenando sua permanência no âmbito da
bela aparência; a exigência de que ela não poderia simplesmente fechar-se
sobre si mesma e ignorar o mundo que ruía à sua volta. O tempo histórico
tornava não apenas necessário o engajamento da arte, mas imperativo, na
medida em que a humanidade viu-se compelida a utilizar todas as forças
humanas no combate a uma ameaça real. Nessas forças, a própria arte
viu-se incluída, conclamada à luta. Com que direito, anal, poderia a arte
car de fora desse esforço universal, que envolveu o mundo como um
todo e o todo das forças do mundo no sentido de combater um inimigo
comum? Como arma o próprio Benjamin no ensaio sobre A obra de arte,
em meio a um cenário a tal ponto radical, o século XX não poderia tolerar
uma “arte pela arte”; uma arte que, fechada sobre si mesma, se alimentasse
de um prazer estético tornado tanto mais repugnante devido às condições
políticas de um século sombrio.
O problema é como a posterioridade conseguiu descontextualizar
a exigência de Benjamin para a arte e utilizá-la a bel prazer em todo e
qualquer contexto histórico, exigindo sempre da arte um posicionamento
político-social. Se, por um lado, podemos compreender os motivos que
levaram Benjamin a exigir da arte e do cinema em especial o compromisso
com a política, isso, por outro, não implica que essas exigências possam ser
estendidas a todos os tempos e a todas as épocas, isto é, à arte de um modo
em geral. Tal tentativa, aliás, estaria em contradição com o pensamento
do próprio Benjamin, que procurou com todas as suas forças livrar-
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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se das concepções eternas da metafísica. Ele aprendeu que, após Hegel,
toda armação que vise o absoluto soará dogmática, portanto, que toda
armação pretensamente atemporal deve ser compreendida historicamente.
Ora, o mesmo vale para o tema da arte política que, pungente à época
de Benjamin, deve ser em outras épocas exibilizado, a m de que o
pensamento respire, e assim possa chegar a outros resultados e conquistar
novos patamares. Se é perfeitamente compreensível e justicável a exigência
feita em algumas épocas de que a arte não pode virar as costas para a práxis,
essa exigência não pode possuir pretensões universais e atemporais, como
se, a partir de então, toda arte devesse ser reduzida à sua função política.
Como diz Adorno em uma crítica feita justamente a Benjamin, a exigência
de que a arte deve se politizar precisa ser pensada de uma forma tal que
essa exigência não anule a autonomia da arte, conquistada a duras penas
ao longo de um árduo processo histórico. Seria preciso, diz Adorno, pensar
de que modo a arte pode conservar seu engajamento político sem anular
sua liberdade, de modo que ela mantenha-se como arte. Seria preciso
pensar uma arte que, ao se engajar, não necessariamente anule com isso
suas qualidades estético-artísticas, colocando a própria arte em risco. É
por isso que Adorno armava ser necessário pensar a arte no interior de
uma dialética na qual liberdade e engajamento político não se anulem
necessariamente, mas convivam no interior do conceito da arte que, assim,
preserva sua autonomia sem abrir mão de sua responsabilidade social.
Essa concepção, relativa à arte em geral, permite dar conta da
história do cinema em particular, pois ela consegue preservar nele a
totalidade de seus momentos históricos especícos, sem reduzi-lo a uma
exigência determinada. Quando pensamos o cinema a partir de uma
dialética entre engajamento e autonomia conseguimos dar conta dos mais
diversos momentos de seu desenvolvimento, em que ele segue por outros
domínios do conhecimento humano, sejam eles losócos, psicológicos,
sociológicos ou meramente estéticos, dependendo do momento histórico
ou das condições em que tal ou tal lme foi produzido. Com isso, seria
possível mostrar a relevância artística e mesmo justicar losocamente
lmes não claramente engajados, como Gritos e Sussurros, de Bergman ou
mesmo Hannah e suas Irmãs, de Woody Allen, por exemplo, mantendo a
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armação de que constituem o cinema do mesmo modo que o Encouraçado
Potemkim, de Eisenstein ou O Grande Ditador, de Chaplin. Esse conceito
dialético de arte e de cinema deveria ser absorvido e exercitado pela crítica
e pela opinião pública de um modo geral, de modo a elevar no Brasil a
discussão estética do cinema, por meio da qual se permitiria no âmbito
racional a convivência de manifestações as mais diversas possíveis, sem
que um tipo apenas de cinema tivesse predileção baseada apenas no afeto
e no sentimento.
o engAjAmento Político dA Arte nos séculos xviii e xx
A história da autonomia da arte é antiga e, no plano da losoa,
remonta a Alexander Baumgarten, no século XVIII, como o primeiro
lósofo a tentar atribuir à sensibilidade um estatuto de conhecimento. Em
sua Aesthetica, Baumgarten procurou desvincular a ideia de que somente
a razão é propiciadora de conhecimento. Há, segundo ele, outra fonte
de conhecimento, a sensibilidade, geralmente descreditada pela tradição
racionalista como o âmbito do confuso e do obscuro. Contrariamente
a essa tendência, para Baumgarten, a sensibilidade é geradora de um
conhecimento sensível ou estético, que, embora não possua as mesmas
características do conhecimento racional, pode ser considerado um
conhecimento, por exemplo, quando um pintor estuda uma paisagem
para representá-la na tela ou quando um poeta investiga um sentimento
visando reproduzi-lo na forma de um poema. Poderíamos acrescentar
que também um diretor, ao fazer um lme, proporciona uma forma de
episteme do mundo, por meio de sua técnica própria da montagem, da
direção, da lmagem, do arranjo das cenas, etc. Baumgarten, com isso,
funda uma tradição, peculiar ao pensamento alemão, cujo traço principal
constituirá em mostrar por que, anal, a arte não constitui uma linguagem
epistêmica inferior à ciência (ou à moral, ou à política). Ao possuir leis
próprias de conhecimento da natureza e da humanidade, a arte, ao lidar
especicamente com a sensibilidade, estaria assim no mesmo patamar
dos conhecimentos consagrados pela tradição racionalista, muito embora
o próprio Baumgarten a denomine gnosiologia inferior (no sentido
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 251
metafísico antigo, segundo o qual a sensibilidade era entendida como a
faculdade inferior de conhecimento).
Essa concepção de Baumgarten funda, como se disse, uma tradição
de origem alemã, cujo objetivo consistirá em mostrar losocamente
a autonomia da arte e da estética em relação aos outros domínios do
conhecimento, sobretudo em relação à ciência e à moral (incluindo a
política). Kant será um dos maiores representantes dessa vertente, muito
embora ele se diferencie de Baumgarten em um ponto fundamental. A
busca pela autonomia do estético, segundo Kant, pressupõe a separação
radical da sensibilidade em relação ao âmbito do conhecimento, de modo
que não se pode mais armar que a sensibilidade gere conhecimento, como
Baumgarten ainda sugeria. O domínio do belo, para Kant, funda-se num
campo completamente distinto do juízo de conhecimento e do juízo moral,
fundando-se em um campo, ou melhor, fazendo um uso das faculdades de
um modo inteiramente próprio. Segundo Kant, o belo, embora aparentado
com o símbolo da moralidade, por um lado, e almejando a universalidade
do conceito, por outro, é de natureza completamente diferente destes,
porque seu juízo é desinteressado, isto é, não tem como objetivo determinar
o objeto fora do sujeito, como sói acontecer nos outros dois domínios. A
característica do juízo de gosto, segundo Kant, consiste no fato de que ele
apenas proporciona prazer ou desprazer, não sendo atribuído a ele nenhuma
função cognitiva nem edicante. É como se, para Kant, o artista zesse arte
tão somente em virtude do prazer ou do desprazer proporcionado por ela,
sem querer, com isso, nada que esteja para além desse domínio.
Em Kant, assim, não se encontra nenhum vestígio de nenhum
tipo de demanda política endereçada à arte; esta demanda ganhou força
sobretudo no século XX, como vimos. Apesar disso, é possível encontrar no
próprio século XVIII um ponto de inexão que, em certa medida, alteraria
esses resultados conquistados por Kant. Trata-se da estética de Schiller
que, embora tivesse procurado, em muitos de seus estudos propriamente
losócos, dar continuidade à tentativa de delimitar a estética e a arte
em sua autonomia, traz em si uma ambiguidade, sensível já em seu
grande interesse por temas políticos relacionados aos acontecimentos da
Revolução Francesa. Em certo sentido, não é exagero armar que seus
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
252 |
estudos losócos relacionados à estética são em grande parte motivados
pelo ambiente político da França daquele nal do século, cujas reviravoltas
afetaram consideravelmente também a Alemanha. Seu projeto losóco
mais conhecido, as Cartas sobre a educação estética da humanidade,
dicilmente pode ser compreendido sem a referência às atribulações
políticas da Europa naquele período especíco da história. A tese principal
do livro segundo a qual a humanidade deve ser educada esteticamente –
o imperativo categórico se torna aqui estético – deriva desse estado de
coisas que Schiller deseja reverter. Caso fosse possível demonstrá-lo, então
teríamos novamente um exemplo de como a vida, inserida em um contexto
histórico peculiar, determina ou pode determinar uma losoa, como já
mostramos no caso de Benjamin, o que é completamente compreensível.
Mas, assim como lá, importa não universalizar ou tornar absoluto um
pensamento que foi construído no calor de um momento de perigo,
marcado por convulsões sociais que mudariam o curso do mundo.
É nesse espírito que é preciso compreender a tese de Schiller acerca
da educação estética da humanidade. Trata-se de um projeto ambicioso, no
qual o autor procura mostrar por que o caminho em direção à liberdade
moral e política deve ser trilhado não pela práxis revolucionária, pois esta
redundou no Terror de Robespierre, mas por meio do belo da arte, pois só
este possui capacidade propriamente formadora. Mas é exatamente aqui
que o projeto, apesar de sua beleza intrínseca e densa especulação losóca,
acaba por se manter el a essa mesma práxis da qual o lósofo deseja se
libertar. Pois, grosso modo, a tese central do projeto de Schiller pode ser
compreendida a partir da seguinte sentença: “... para resolver na experiência
o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela
beleza que se vai à liberdade” (SCHILLER, 1989, p. 26). Como se vê, o
problema candente do pensamento de Schiller consiste não propriamente
em pensar a arte ou a estética em si, mas pensar a arte e a estética na medida
em que por meio delas é possível “resolver na experiência o problema
político”. A sentença, assim, reinsere na arte e na estética uma diculdade
que Kant havia de certo modo resolvido e que pode ser reduzida à tese de
que à arte novamente é atribuída uma função, uma responsabilidade, de
conduzir a humanidade à liberdade moral e política. Isso signica que,
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 253
com Schiller, o problema volta a ser o mesmo: como sustentar a autonomia
da arte e da estética, ou seja, a própria liberdade dessas instâncias, se elas
são vistas como meios para se alcançar um m exterior a elas? Ou: como a
arte pode conduzir à liberdade se sua liberdade intrínseca é tolhida em prol
de um m dito superior?
Certamente se poderia interpretar a sentença no sentido de que arte
e liberdade são irmanadas, de que a arte é lha da liberdade e, portanto,
que não há separação possível entre um domínio e outro. Segundo essa
interpretação, fazer arte seria por si só exercer a liberdade. Para isso, porém,
seria preciso denir o que se entende por liberdade e, quando o fazemos,
deparamo-nos com o fato de que, em Schiller, o termo “liberdade” está
muito próximo de Kant. Schiller se declarou anal claramente um seguidor
de Kant no período em que se pôs a estudar estética losóca. Em Kant,
porém, o sentido de “liberdade” é sempre moral e, especicamente em
Schiller, o termo, além do sentido moral, adquire também uma conotação
claramente política, em relação direta com os rumos da Revolução Francesa.
Ao armar que arte e política são irmanadas, que são conceitos inseparáveis,
Schiller, assim, volta a relacionar dois elementos que Kant havia separado,
ação esta que se torna tanto mais incompreensível se considerarmos que
o ponto de partida de suas investigações losócas consistia precisamente
em radicalizar o processo de autonomização da estética, iniciado por
Baumgarten e por Kant.
Schiller, com isso, abre o anco para um tipo especíco de
interpretação que, principalmente a partir do século XX, tentará
novamente fortalecer esse laço rompido por Kant entre arte, moral e
política. Uma dessas interpretações, como vimos, é a de Benjamin que,
embora não se rera explicitamente a Schiller no que se refere à fundação
de sua teoria, o pressupõe de muitas formas. Mas há outra intepretação
que se refere explicitamente a Schiller: a de Jacques Rancière, lósofo
francês bastante celebrado no cenário da estética contemporânea,
responsável por repensar as conexões possíveis entre arte e política.
E, para fazê-lo, Rancière parte de Schiller, na medida em que, tendo
fundado o que denomina de “estado estético”, sua teoria é interpretada
como expressão de uma prática política própria do momento histórico
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
254 |
do m do século XVIII, no qual foram postas abaixo todas as hierarquias,
sejam elas políticas, referentes ao ancien régime, sejam da ordem das
ciências e do conhecimento. Do mesmo modo que, no plano político, a
Revolução Francesa reivindicou a anulação da classe nobre e fundou na
França a era do republicanismo, a estética, no âmbito do pensamento,
reivindicou com Schiller a superação do conhecimento cientíco, de
ordem conceitual, como a forma de conhecimento por excelência: “O
estado ‘estético’ de Schiller, suspendendo a oposição entre entendimento
ativo e sensibilidade passiva, quer arruinar, com uma ideia da arte, uma
ideia da sociedade fundada sobre a oposição entre os que pensam e
decidem e os que são destinados aos trabalhos materiais” (RANCIÈRE,
2009, p. 66). Ao lado de Benjamin, Rancière gura assim como um
dos maiores representantes dessa nova tendência do pensamento
estético que, reaproveitando a lufada marxista dos séculos XIX e XX,
procura reconectá-lo com sua potencialidade político-revolucionária. Ao
correlacionar a revolução executada no plano do pensamento e a outra
executada no plano da práxis, Rancière se inscreve como uma espécie de
continuador da chamada teoria crítica da escola de Frankfurt, para a qual
não há efetivamente separação entre teoria e prática. Pensar, para essa
vertente, já constitui em si uma forma de práxis. Como se pode ler em
outros de seus livros, trata-se efetivamente de um esforço considerável
no sentido de derrubar todas as fronteiras do pensamento, erigidas nos
séculos XVII e XVIII. Esta revolução proporcionada por Rancière no
âmbito da pura teoria, segundo ele iniciada com o estado estético de
Schiller, surge assim como continuidade da revolução política efetivada
no plano da práxis.
Mas, embora possua traços marxistas, sobretudo em sua formação,
Rancière não está ligado de forma tão atávica aos ideais socialistas como
Benjamin. Autor de uma dezena de livros, a maioria deles sobre política,
estética e losoa da arte, Rancière se notabilizou com a tese da “partilha
do sensível”, em que procura radicalizar a ideia de Benjamin em torno
da politização da arte. Enquanto, para este, a exigência do engajamento
político da arte fazia-se necessária em um momento histórico determinado,
para Rancière, pelo contrário, todo ato estético deve ser em si mesmo
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 255
denido como um ato político e vice-versa. É impossível e, no mínimo,
improdutivo, como arma em outra obra, separar de forma estanque os
âmbitos do conhecimento humano, como se a política e a estética, ao
contrário do que arma o século XVIII, fossem regimes completamente
autônomos e incomunicáveis entre si. Todo ato político, segundo Rancière,
implica uma reestruturação da sensibilidade, do quinhão de espaço e do
tempo destinado a cada indivíduo e a cada grupo, do mesmo modo que
toda obra de arte procura contestar as divisões políticas estabelecidas e
propor outras novas. Em Políticas da Escrita, Rancière se refere a Benjamin
para denir sua tese: “Já se falou, a partir de Benjamin, de uma ‘estetização
moderna da política, que alguns assimilaram a uma espetacularização.
Mas a política não se tornou ‘estética’ ou ‘espetacular’ recentemente. Ela é
estética desde o início, na medida em que é um modo de determinação do
sensível, uma divisão dos espaços – reais e simbólicos – destinados a essa
ou àquela ocupação, uma forma de visibilidade e de dizibilidade do que é
próprio e do que é comum” (RANCIÈRE, 1995, p. 8). E, em A partilha do
sensível, completa: “Existe, portanto, na base da política, uma ‘estética’ que
não tem nada a ver com a ‘estetização da política’ própria à era das massas,
de que fala Benjamin” (RANCIÈRE, 2009, p. 16).
Num sentido diferente de Benjamin, tal tese arma que é impossível
pensar a política sem uma relação com a estética, isto é, uma política
pura, que não proponha redimensionamentos na ordem sensível. Assim:
a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘cções’, isto é,
rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se
vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE,
2009, p. 59). Trata-se, em última instância, de uma revisitação da ideia
do teatro grego como espécie de laboratório de estudos das possibilidades
innitas da recente democracia ateniense, defendida, entre outros, por
Jacques Taminiaux. Segundo essa visão, a nalidade do teatro grego,
assim como toda arte de um modo geral, está sempre ligada, de uma
forma ou de outra, a esse redimensionamento da política, mesmo que, na
arte, esse redimensionamento seja pensado apenas no domínio da cção.
O interesse da cção, sendo assim, não está nele mesmo, mas na hipóstase
por meio da qual se pensa e se repensa os dimensionamentos políticos.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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A imaginação artística ou fantasia perde assim seu estatuto ontológico
próprio; sua riqueza está, segundo essa leitura, apenas em sua ligação
com uma práxis política, portanto, a uma ligação com um m exterior.
Segundo essa concepção, nunca se imagina por imaginar, mas todo ato
imaginativo é em si mesmo político. Embora se pretenda universalista
e antirreducionista ao propor a superação das cisões estabelecidas pelo
século XVIII entre os saberes, entre arte e política, por exemplo, tal
tese acaba justamente redundando em seu oposto, ao armar que toda
política é estética e que toda arte pretende de algum modo rearranjar as
divisões realizadas pelas ações propriamente políticas.
cinemA e liBerdAde
O perigo que ameaça a obra de arte quando esta é submetida a um fato
histórico-político determinado é o mesmo que ameaça a losoa, quando
esta se submete a modas da época ou a ideologias partidárias. Arte e losoa
estão aparentadas no pensamento livre; situam-se acima de interesses
particulares e individuais. Do mesmo modo que um lósofo não deve se
submeter a um partido político, pois comprometido com o pensamento
radical, tampouco deve o artista submeter-se a posições políticas, correndo
o risco de sacricar assim a própria arte. No caso especíco da arte, seu
fundamento é tão-somente a imaginação produtiva, associativa, de modo
que a arte não possui propriamente fundamento, a não ser ela própria.
Eis o signicado da tese iluminista da autonomia da arte, formulada no
mesmo século XVIII responsável por formular a estética como disciplina
losóca. Somente espelhando-se em uma atividade em si mesma livre, em
uma imaginação completamente destituída de vínculos e interesses, pode
uma determinada cultura ou sociedade almejar sua libertação política. Esta
jamais se concretiza por meio de uma imaginação subjugada, submetida
a conceitos que lhe são exteriores, a ns que lhe são estranhos. Por si só,
tal posição garante uma função política para a arte sem que esta precise
necessariamente declarar-se engajada. Ao se armar que a arte repousa na
liberdade, num sentido não propriamente moral, nem político, mas numa
liberdade da imaginação em criar o que lhe convém, garante-se a ela o direito
de tomar ou não ares político-engajados. Sua “essência”, assim, deixa de ser
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 257
necessariamente a “política”, para residir apenas nela mesma. Do mesmo
modo que a essência da imaginação é imaginar, da fantasia, fantasiar, a
essência da arte deve ser a própria arte. Longe de constituir um fundamento
metafísico determinado, estanque e xo, a essência, aqui, se torna produto
ou efeito da própria atividade imaginativa, restando indeterminado o que
esta atividade produzirá como essencial. Isso corresponde a armar que a
essência da arte deve ser produzida pela própria arte, sem a pretensão de
encontrá-la em qualquer outro lugar a não ser nela mesma.
Tal concepção remete a uma prática executada por um certo tipo de
cinema, que, baseado em verdade numa tradição milenar da arte, pretendeu
falar não sobre fatos da vida, como se estes existissem independentemente
do cinema, mas falar da vida na medida em que ela se confunde com
o próprio cinema. Tal cinema, que tem seu ápice em Jean-Luc Godard,
deixa de funcionar como uma linguagem como meio para a transmissão
de ns exteriores a si, e se transforma numa linguagem imediata, em
metalinguagem, linguagem cinematográca que tem por objeto a
própria linguagem do cinema. Nesse caso, o cinema não está a serviço da
representação de um objeto ou de um fato de uma vida que se situa para além
da câmera e da representação, mas a representação pela câmera do cinema
se torna o próprio objeto do cinema. Trata-se do cinema que imagina o
próprio cinema, o cinema que cria sua própria essência, como acontece,
por exemplo, ao início do lme O desprezo (Le Mépris), de 1963, cuja cena
inicial consiste numa imagem frontal da própria câmera de cinema, que,
portanto, está apontada para o espectador, que se vê assim lmado. É a
câmera contra a câmera, a câmera lmando a câmera, numa espécie de
círculo em que o espectador, geralmente situado fora do lme, se confunde
agora com o lme, pois está reetido na própria tela ao mesmo tempo em
que a reete. Ambos os planos – espectador e câmera – se unicam nesse
momento em um único e mesmo plano, superando a separação conceitual
entre representante e representado, trocando de lugares, mas, ao mesmo
tempo, sem se cristalizar no oposto que assumiram. A ideia é simplesmente
tornar uido o lugar, o topos que cada qual ocupou ao longo da história
do cinema, numa espécie de transporte innito e inacabado entre um
extremo e outro. Com isso, o lme rompe com a separação tradicional
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
258 |
entre forma e conteúdo, sujeito e objeto, inserindo na película e ao mesmo
tempo pressupondo o conceito losóco de reexão. Como diante de um
espelho, o cinema não apenas lma a si próprio, pois isso seria banal e
corresponderia ao que conhecemos hoje pelo gênero do making of. Pelo
contrário, nessa auto-lmagem, reete a si mesmo, pensa losocamente
sobre si e, assim, toma a si mesmo ao mesmo tempo como sujeito e objeto,
forma e conteúdo. Nessa autorreferência da reexão de si, o conteúdo passa
a ser a forma e vice-versa, superando também a divisão entre um fora e um
dentro, um interior e um exterior, um representante e um representado,
pois todos os conceitos são unicados, separados e reunicados na reexão
de si, na livre associação imaginativa, do cinema que reete o cinema. Deixa
de existir com isso a vida fora do cinema, que é completamente absorvida
na película, assim como deixa de existir o diretor, o ator, o produtor,
como personas xas e imóveis, que atuam por trás da câmera, separados
do lme, para se tornarem personagens de uma trama que é representada
no interior do lme e que, ao trabalharem para o lme, ao mesmo tempo
atuam no lme. Tal é o que de fato se observa no enredo de O desprezo. O
lme trata da vida dos que fazem cinema, daqueles que estão envolvidos
na lmagem da Odisseia, de Homero, trazendo para o interior da imagem
cinematográca a vida de cada um, mostrando como ela se mistura e se
confunde com a história do cinema e com a produção material do lme.
É nesse ponto, nesse ápice da história que se confunde com a narração
de si, que o cinema atinge sua máxima liberdade, que ele se arma não
como uma linguagem de veiculação de conteúdo, de representação de um
representado, mas como uma linguagem completamente autônoma, tão
autônoma que se volta para reetir e pensar a si mesmo.
O mesmo procedimento se observa, por exemplo, em lmes de
Woody Allen, que se referem constantemente à história do cinema e se
alimentam dela. Muitas foram suas tentativas de recriar os ambientes e as
tramas dos lmes de Bergman, como em Interiores, por exemplo, lme de
1978 que abandona o espírito satírico-irônico para se aventurar no domínio
do trágico e do absurdo da existência humana, assumindo uma forma
claramente losóca. Os próprios lmes de Bergman são caracterizados
por sua tessitura losóca, existencialista, isto é, por uma visada menos
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 259
empírica, menos factual, e mais abstrata. Sua questão é a mesma do teatro
grego e de Shakespeare, isto é, desvendar a natureza humana em sua
universalidade, despir os personagens de suas roupagens pessoais em busca
de seu ethos. Aqui, o enredo importa menos que a dimensão humana dos
personagens, trazidos para uma cena trágica. Mesmo que se interprete seus
lmes a partir de certa visão política, defendendo que se trata de uma crítica
à sociedade sueca em sua conguração burguesa ou elitista, essa visão está
submetida à estrutura estética do lme, que supera a visão política, e que
se alçou à dimensão fundamental do lme por uma necessidade intrínseca
a ela mesma, pelo curso de seu próprio desenvolvimento enquanto obra
de arte baseada na imaginação livre e produtiva. O arranjo estético das
cenas, em Bergman, adquire uma função superior, livre, autônoma, não
por uma determinação exterior da opinião pública ou da crítica de cinema,
mas a partir da própria exposição sensível da essência do ser humano. A
estética de seus lmes não surge, assim, como produto do acaso ou como
capricho do diretor, mas como necessariamente conectada com seu objeto,
o ser humano, de modo que a visão que se obtém deste ao longo dos
lmes de Bergman não é uma visão abstrata, meramente conceitual, mas
uma visão inseparável da forma sensível e estética alcançada pela sequência
das imagens de seus lmes. A miséria humana, seus caprichos, a inveja,
o ciúme, o ódio, o desprezo, são todas características humanas que só
se tornam compreensíveis por meio do modo como o diretor as ordena
esteticamente. Em todo caso, a estética, o belo, a aparência, está sempre
acima de qualquer outra determinação, e é isso o que, a meu ver, caracteriza
sua grandeza.
referênciAs
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de suas técnicas de reprodução. Trad. José Lino
Grünnewald. São Paulo: Abril, 1975.
MORAES, Camila Ribeiro de; VICENTE, Alex. Equipe de ‘Aquarius’, de Kleber Mendonça
Filho, protesta em Cannes. El País, São Paulo, 19 maio 2016. Cultura. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/17/cultura/1463498064_139719.html. Acesso
em: 09 jan. 2020.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
260 |
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São
Paulo: Editora 34, 2009.
RANCIÈRE, J. Políticas da Escrita. Trad. Raquel Ramalhete. São Paulo: Editora 34,
1995.
SCHILLER, F.A educação estética do homem: numa série de cartas.Trad.Roberto
Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1989.
| 261
ensaio de orquestra e o Maestro:
 
Ubirajara Rancan de Azevedo MARQUES
2
introdução
Prova d’orchestra,
3
de 1978, é obra de Federico Fellini, com duração
de pouco mais de 70 minutos. Dyrygent,
4
de 1979,
5
é obra de Andrzej
Wajda, com duração de pouco mais de 90 minutos. No caso de Ensaio de
Orquestra, os personagens não têm identicação nominal própria; como de
fato ocorre nas orquestras, eles são, ali, identicados com os instrumentos
 Parte do texto a seguir foi publicada em Alves e Rancan (2021, p. 98-118).
Professor do Departamento de Filosoa da Universidade Estadual Paulista – UNESP / SP / Marília. E-mail:
ubirajara.rancan@gmail.com.
Ensaio de Orquestra não é a única, nem a primeira obra de Fellini para a TV, tendo sido precedida em tal
sentido por I clowns; cf. “Prova d’orchestra”.
Essa obra de Wajda parece não estar ora comercialmente disponível no Brasil, quer em “DVD”, quer em “Blu-
ray”; pior: não está mais acessível versão dela, legendada em português, existente até pelo menos 20 de agosto
de 2020 na plataforma YouTube. Agradeço ao caro colega Prof. Dr. Giovanni Alves a disponibilização da cópia
acima indicada.
Nos créditos do lme, encontra-se a referência: “FILM POLSKI MCMLXXIX” [“FILME POLONÊS
MCMLXXIX”]; já em várias páginas na Internet—inclusive na página dita “ocial” de Andrzej Wajda [http://
www.wajda.pl/en/lmy.html] –, o lme é datado de 1980. Ao que parece, 1979 será o “ano de produção” de O
Maestro, ao passo que 1980 – a partir de “24.3.1980”, data da pré-estreia dele –, o ano no qual ele passou a ser
exibido; cf. Dyrygent. Disponível em: https://lmpolski.pl/fp/index.php?lm=12514 Acesso em: 11 mar. 2021.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p261-280
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
262 |
que tocam [por exemplo: harpa, piano, fagote], ou com a função que têm
[direttore / regente; primo violino / primeiro violino]. Embora assim—e ao
contrário do que poderia parecer —, alguns dos personagens do lme, inda
que porventura não todos, são vividos por atrizes e atores prossionais,
mesmo que não conhecidos do grande público; entre eles: Balduin Baas [o
regente], Clara Colosimo [a harpista], Elizabeth Labi [a pianista], Ronaldo
Bonacchi [o fagotista].
6
No caso de O Maestro, para além de John Gielgud,
saudoso grande ator inglês que nele interpreta “John / Jan Lasocki”,
personagem-título da película, merece destaque a grande atriz polonesa
Krystyna Janda, que no lme é a personagem “Marta”, bem como Andrzej
Seweryn, que nele é o também regente “Adam Pietrzyk”.
A partir de uma alegoria musical que toma a orquestra como um
microcosmo privilegiado de representação da ordem político-social (LE
PAVEC, Jean-Pierre. Cinéma”, Paris, 1980 apud Dyrygent [e Orchestra
Conductor]),
7
tanto a obra de Fellini, quanto a de Wajda constroem
narrativas e dramatizam situações sobre estrutura e relação de poder. Na
verdade, pareceria mesmo demasiado pouco consistente—seja para com os
contextos históricos italiano (FUMAGALLI, 1981)
8
e polonês de então,
seja para com as próprias estruturas e desenvolvimentos de ambos os
lmes—que um e outro não estivessem premeditadamente a fazer tal coisa.
Tal, com efeito, o elenco identicado pela própria “Rai Movie”, por cuja iniciativa foi produzido Ensaio de
Orquestra. Embora assim, diferentes websites identicam vários outros atores que atuaram no lme; cf. “Prova
d’orchestra”. Disponível em: https://www.rai.it/raimovie/news/2020/07/Prova-dorchestra-6bc62eb3-719a-
4f33-914a-426e57fae896.html Acesso em: 25 mar. 2021.
Disponível em: http://www.wajda.pl/en/lmy/lm23.html. Acesso em: 11 mar. 2021: “Since his lm debut
Wajda has lmed conicts between the older and the younger generations. In his early days, he sided with the young.
Now, he tends to take the side of maturity. […] In e Orchestra Conductor it is obviously premeditated. is
new point of view is emphasised by the fact that John Gielgud not only looks old, but also is known for his advanced
age. Although his hero is nearing the grave, both the young female violinist and other members of the orchestra are
fascinated by him. […] Like Fellini in e Orchestra Rehearsal, Wajda is not interested in the activity in which the
conductor and the orchestra are directly involved: he is not concerned with their music and its quality. e director
himself confessed at some point that he didn’t pay much attention to the music, which is not his speciality anyway.
What really attracted him about the orchestra was its quality of a social organism in miniature, ideally suited to convey
all sorts of metaphors pertaining to society, its organisation, and interpersonal relations in general. It is Poland that he
has portrayed in the guise of the orchestra”.
Disponível em: http://www.lmselezione.ch/scheda.cfm?tipo=reg&iniz=WAJDA%20ANDRZEJ&start
=4&id=60 Acesso em: 23 fev. 2021: “Wajda e Fellini sono assai dissimili. Il secondo deforma la realtà, il primo ne
subisce costantemente le tentazioni. Così PROVA D’ORCHESTRA e questo DIRETTORE D’ORCHESTRA seguono
strade dissimili. Ma hanno qualcosa in comune: per Wajda, come per Fellini, l’orchestra rappresenta la società. E i
rapporti che legano i musicisti tra di loro e con il loro direttore, sono i rapporti che concernono i cittadini, ed loro
contatti con il Potere. Con ancora una diversità: a Fellini interessa molto di più l’orchestra che non il direttore”. [...]
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 263
Parecendo avaliar o regente em geral como intrinsecamente
despótico, Fellini toma o palcoscenico musicale como instância de “prova”;
ou seja: lugar e momento de experimentação, investigação, tentativa
(DIZIONARIO ETIMOLOGICO ONLINE, c2006),
9
e, pois, de
oportunidade artística para uma imagem concentrada da [desordenada]
ordem político-social então vigente na Itália, a partir de voltas e reviravoltas
entre opressores e oprimidos. Partindo também de palco e ensaio como
lugar e momento privilegiados de representação dessa mesma ordem,
Wajda, porém, ao contrário de Fellini, parece avaliar o regente em geral
como não necessariamente ditador, expondo, ao lado do comportamento
autoritário de um, o comportamento autoritativo de outro.
A partir do mote—em grande medida comum a ambos—que um e
outro lme dispõem-se a glosar, Prova d’orchestra e Dyrygent, ecoando-as
[de caso pensado ou não], ajustam-se com leituras intelectuais conhecidas
desde pelo menos os anos 50 e 60, ou com imagens empregadas nesse
mesmo âmbito, já nos anos 30 do século XX.
No “§ 13” do “Quaderno “15” dos Quaderni del carcere,
10
por
exemplo, Antonio Gramsci lançava mão da seguinte analogia orquestral:
Uma consciência coletiva—ou seja: um organismo vivo—só
se forma depois que a multiplicidade foi unicada pelo atrito
dos indivíduos; nem se pode dizer que o “silêncio” não seja
multiplicidade. Uma orquestra que ensaia, cada instrumento por si
próprio, dá a impressão da mais horrível cacofonia; não obstante,
estes ensaios são a condição para que a orquestra viva como um
só “instrumento”. (GRAMSCI PROJECT DIGITAL LIBRARY,
c2021).
Já em 1960, em Massa e Poder (CANETTI, 2013, p. 395-397),
Elias Canetti armava: “Inexiste expressão mais manifesta do poder
do que a atividade do maestro. […] Alguém que nada soubesse a seu
respeito poderia deduzir uma a uma as características do poder a partir
Disponível em: https://www.etimo.it/?cmd=id&id=13794&md=70a44b24f140e1e1e602f83c45f56f6a.
Acesso em: 15 fev. 2021.
10
Como se poderá vericar pela referência contida na próxima nota, outras passagens dos mesmos Quaderni
contêm analogias musicais a partir da “orchestra” e do “direttore d’orchestra”.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
264 |
da contemplação atenta do regente” (CANETTI, 2013, p. 395). Em
meio a um conjunto de lições ministradas durante o semestre de inverno
de 1961-1962, eodor Adorno considerava a gura do regente em:
“Regente e orquestra. Aspectos sociopsicológicos” (ADORNO, 2009, p.
217-238; especialmente p. 217-229):
As ponderações sobre o regente, a orquestra e a relação entre os
dois justicam-se, não apenas em função da relevância social de seu
papel na vida musical, mas, sobretudo, porque elas formam em si
algo semelhante a um microcosmo no qual as tensões da sociedade
ressurgem e deixam-se estudar concretamente. (ADORNO, 2009,
p. 217).
Para o caso de Ensaio..., quando da rebelião de vários músicos
da orquestra e das propostas subsequentes de o direttore ser substituído
por um metrônomo, ou de dele se prescindir por completo, sem que
seu lugar seja ocupado por um substituto mecânico, vale recordar um
exemplo de contraposição ao hierarquismo presente na atividade do
maestro, incompatível com os cânones da nova ordem revolucionária
ali então estabelecida: na União Soviética, entre 1922 e 1933, teve lugar
o experimento regular de uma orquestra sinfônica sem regente.
11
O
grupo tornou-se conhecido pelo acrônimo: “PERSIMFANS”, que, na
transposição para o português da expressão original russa que leva a ele,
signica: “Primeiro conjunto sinfônico sem regente”.
12
Em 2008, algo
similar foi recriado na Rússia, embora, parece, não mais a partir dos ideais
político-revolucionários da Revolução de 1917, mas por requisitos de
ordem artístico-musical.
13
11
Embora, tecnicamente, não seja um caso de falta absoluta de regência, em 2017, um robô conduziu a
Orchestra Sinfonica di Lucca e o solista Andrea Bocelli; cf. ABBs robot YuMi takes center stage in Pisa, conducts
Andrea Bocelli and Lucca Symphony Orchestra”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fohc1Qg-
rQU Acesso em: 24 fev. 2021. Em 2020, nova experiência do gênero teve lugar em concerto nos Emirados
Árabes Unidos; cf. “is Robot Conductor Leads Human Orchestra”. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=5JU0R4Zd2To Acesso: 24 fev. 2021.
12
Disponível em: http://www.trivia-library.com/b/history-of-the-greatest-conductorless-orchestra.htm Acesso
em: 20 fev. 2021.
13
Cf. “PERSIMFANS”. Disponível em: https://persimfans.com/about/persimfans/ Acesso em: 27 fev. 2021.
No registro seguinte, pode-se acompanhar o quarto e último movimento da 9ª. Sinfonia de Beethoven por essa
orquestra fundada há 13 anos: “Beethoven 9th by Persimfans (Finale)”. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=nSzPXAUkwLM Acesso: 27 fev. 2021.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 265
Afora tais referências, haveria também que lembrar um fato da
crônica musical então contemporânea a Fellini e a Wajda: a progressiva
notoriedade do regente principal vitalício [desde 1955] da Filarmônica de
Berlim, orquestra à frente da qual ele permaneceria por longos 35 anos:
Herbert von Karajan. Embora na época [e antes] houvesse outros regentes
de destaque à frente de grandes orquestras, nenhum era tão iconizado
naqueles tempos quanto Karajan.
14
Não se tratando de ora comentar as reexões de Gramsci, nem as de
Canetti, tampouco as de Adorno, sequer o experimento musical soviético
acima recordado, ou o possível impacto da imagem de Karajan sobre
Fellini e Wajda, tais referências têm por objetivo dimensionar o alcance
político-ideológico da alegoria de que se valem Ensaio de Orquestra e
O Maestro, procedimento que, por sua vez, não tem a intenção de sub-
repticiamente armar que os diretores de ambas essas películas terão se
servido de tais elementos—deste ou daquele; de um ou de todos—para
a concepção de seus próprios lmes, algo em si mesmo porventura
desnecessário, já pelo fato de que a componente político-ideológica da
gura do regente será, por assim dizer [e como apontado por Canetti e
por Adorno], mais ou menos intuitiva.
ensaio de orquestra
No lme de Fellini, a orquestra é a verdadeira protagonista. Não
assim pelo simples fato de estar à frente da grande maioria das cenas,
mas por ela representar o elemento em torno do qual a trama inteira
se desenvolve. Com efeito, desde a longa parte [metade de toda a obra,
aproximadamente] das entrevistas, na qual se mostram as dissensões entre
instrumentistas e naipes, até o clímax da revolta própria, desunicada
e acéfala, ao qual se segue um curto desfecho reincidente, a orquestra é
sempre tutelada, quer pela burocracia sindicalista, quer pelo poder técnico
constituído, face aos quais sua própria incompetência, reexiva e gerencial,
não lhe permite auto-organizar-se.
14
Cf. VALENTE, Augusto. Karajan vive!. DW Brasil. 02 abr. 2008. Cultura. Disponível em: https://www.
dw.com/pt-br/karajan-os-100-anos-de-um-regente-controverso/a-3218110 Acesso em: 27 fev. 2021.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
266 |
.
Quais os personagens de Ensaio de Orquestra? Pela ordem de sua
aparição em cena: o copista; a televisão [representada pelo entrevistador,
cuja voz é do próprio Fellini, por sinal;
15
os músicos da orquestra [nenhum
deles em particular] e o regente, havendo ainda o “chefe da orquestra
[“capo orchestra”] e o dirigente sindical.
“Copista” e “televisão”, embora ambos componham a cena—aquele
de forma visível; esta, ocultamente—, a atuação destes dois personagens
será preferencialmente alusiva. Inda que um e outro estejam no tempo
presente, o copista torna-se emblema de um passado faustoso, ao passo
que a “TV” representará—naqueles anos de crise, também para o cinema
16
a possibilidade de um futuro danoso para a sétima arte. No caso do
copista, trata-se de alusão metafórica, que, enaltecendo positivamente
a autoridade sicamente agressiva de um regente do passado,
17
recorda
uma outra estrutura político-social, também, depois, saudosamente
enaltecida pelo maestro de agora. Com isso, talvez se possa desenhar a
seguinte conguração: em meio a um presente político-social convulsivo
[a realidade daquele momento, na Itália e em boa parte do mundo], a
lembrança de um passado faustoso, mas velho – prestes a aposentar-se –, e
a perspectiva de um futuro incerto, sem rosto e artisticamente ameaçador.
Se assim, o desenrolar da trama, emoldurada pelas guras do copista-
passado” e da televisão -“futuro”, centra-se na convivência-“presente”,
alegoricamente representada pela sociabilidade em crise de músicos
15
PROVA d’orchestra”. In: WIKIPEDIA: the free encyclopedia. [San Francisco, CA: Wikimedia Foundation,
2010]. Disponível em: https://it.wikipedia.org/wiki/Prova_%27orchestra. Acesso: 21 fev. 2021.
16
Cf. PUBBLICATO il dodicesimo volume della “Storia del cinema italiano” dedicato al cinema degli anni
“70”. Centro Sperimentale di Cinematograa, Roma. Disponível em: https://www.fondazionecsc.it/
pubblicato-il-dodicesimo-volume-della-storia-del-cinema-italiano-dedicato-al-cinema-degli-anni-70/. Acesso
em: 29 jan. 2021.
17
Tratar-se-á aí de licença fílmica de Fellini, uma hipérbole bem a seu gosto, que, porém, pode erradamente
levar o espectador incauto a tomá-la como exata referência histórico-biográca a Arturo Toscanini, cuja imagem
é mostrada mais adiante. A propósito de Toscanini, cf. SNORIGUZZI, Francesco. Arturo Toscanini: Primo
divo della direzione d’orchestra. L’indro, Italia, 24 mar. 2017. Cultura & Societá. Disponível em: https://www.
lindro.it/arturo-toscanini-primo-divo-della-direzione-dorchestra/. Acesso em: 15 fev. 2021.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 267
reunidos num em princípio banal ensaio de orquestra.
18
Ou seja: diante
da glória perdida, face a um futuro sem projeção, o presente oscila entre
nostalgia lamentosa e embate cego.
Salvo engano, o lme admitirá as seguintes divisão e desenvolvimento:
1. Um rápido introito, com “copista” e “TV” representando
respectivamente “passado” e “futuro”. Nesse introito, ouve-se, na
apresentação de créditos, uma cacofonia urbana, típica das grandes cidades,
provável alusão à cacofonia político-social do momento;
2. Uma primeira parte, com a apresentação dos músicos que formam
o “presente”, tempo do desenrolar da trama, apresentação na qual não
faltam imagens e considerações saudosistas, e na qual se vai entrelaçando o
tecido da discórdia. Até aqui, tem-se aproximadamente metade do lme;
3. Uma segunda parte, com o início propriamente dito do ensaio, na
qual, ao contrário do que normalmente se esperaria, não se vê um regente
dirigindo-se a músicos e a falar-lhes de uma obra e da interpretação da
mesma [a obra a ser então ensaiada], mas um funcionário e um dirigente
sindical que se reportam diretamente a funcionários sindicalizados. Diante
dessa impostação burocrático-administrativo-sindical, os músicos reagem
em total conformidade para com ela, posicionando-se a respeito da
correção ou incorreção trabalhista de a TV realizar entrevistas com eles,
sem nenhum pagamento adicional por isso;
4. Separada em duas seções, uma terceira parte do lme, decidida pelo
chefe da orquestra” — decisão que sucede a um absurdo mal-entendido
entre regente e dirigente sindical—, leva ao intervalo do ensaio, que,
exibindo a simplicidade [e mesmo a simploriedade] musical e intelectual
da grande maioria dos músicos da orquestra, mostra igualmente apatia,
comodismo, revolucionarismo inconsequente de diferentes grupos dela.
Longe de retratar uma pausa de descanso, essa etapa do lme enfatiza os
diferentes tipos sociais já antes caracterizados, bem como suas respectivas
18
Vale lembrar algumas licenças de Fellini no que se refere à orquestra, já assim quanto à disposição dos músicos,
não exatamente canônica. Entre os instrumentos de corda, notar-se-á a ausência da viola, estando presentes
somente o violino, o violoncelo e o contrabaixo [este último em número exagerado para o tamanho do grupo,
com nenhum contrabaixista, a propósito, sendo entrevistado]. Relativamente a todo o conjunto, exagerado
também o número de trompas.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
268 |
índoles político-ideológicas. Na segunda seção dessa terceira parte de
Ensaio..., a nova fala do copista é em determinado momento acompanhada,
ao fundo e à esquerda, pelo retrato de Arturo Toscanini, materialização da
referência saudosista ao passado, à imagem do líder de outrora, cuja rigidez
[problematicamente hiperbolizada por Fellini]
19
é enaltecida pelo copista,
pelo regente, por alguns músicos;
20
5. Uma quarta parte, com a convulsão que se instala, na qual
alguns músicos preferem o caminho da autogestão, ao passo que outros,
a mera substituição do marcador-de-compasso humano, tão livre quanto
imprevisível, pelo marcador-de-compasso mecânico, não livre, mas
previsível e controlável. Essa última opção implicará uma escolha anterior,
sub-reptícia, pelo mecânico em lugar do livre, assinalando com isso não
só um distanciamento do que seria um processo de autogestão, mas
apontando para uma radicalização da gura do controlador externo, agora
representado pela máxima inexibilidade de um metrônomo programável.
Os que não querem o sistema autogestionário optam por controlar o
controlador externo. Sem consenso a respeito, a discórdia termina em
tumulto e anomia;
6. Uma quinta e última parte, com a reinstauração da antiga
ordem. Após o colapso parcial da estrutura ambiente pelo impacto da
bola de demolição contra ela—impacto algumas vezes prenunciado, quase
sempre em momentos de efetivo desacordo “social” —, o regente, face ao
estupor dos músicos, oferece-lhes o auxílio de sua liderança inicialmente
gentil, outra vez convertida, a seguir, em despótico comando. Nas cenas
derradeiras, mais incisivamente ditatoriais, já não se veem mais o “chefe da
orquestra”, nem o dirigente sindical, cujas guras tornaram-se perfeitamente
supéruas diante do líder que tudo controla. As frases ditas em alemão
pelo regente ao nal da história poderão ser uma alusão político-musical a
19
Cf. LA DIGNITÀ di Toscanini contro la violenza fascista. Mediazione Dialogo Relazione, Torino, 14 magg.
2019. Corsi e Ricorsi. Disponível em: http://www.me-dia-re.it/la-dignita-di-toscanini-contro-la-violenza-
fascista/ Acesso em: 29 jan. 2021.
20
Notar-se-á também que o biotipo do “chefe da orquestra” — biotipo, dir-se-á, caracteristicamente
felliniano—, sobretudo quando ele levanta-se para anunciar o intervalo antecipado, aludirá a alguns dos caubóis
vividos no cinema por John Wayne. Pense-se em especial no decadente—mas ainda ativo—Rooster Cogburn,
de “Justiceiro Implacável” [“Rooster Cogburn”; direção de Stuart Millar], lme de 1975, exibido na Itália como
Torna El Grinta”.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 269
Karajan, ou, no limite, uma alusão retórico-política a Hitler, não, decerto,
em forma de clamor pela revivescência de uma liderança de tipo nazista,
21
mas à lembrança do perigo a que a ruptura social está sempre sujeita. Dito
de outro modo: a inviabilidade de um compromisso político maior entre
diferentes tendências ideológicas conitantes pode—outra vez—resultar
no desenvolvimento de condições que favoreçam a emergência [ou re-
emergência] de uma liderança extremista.
Tal me parece ser o argumento de Ensaio de Orquestra. As últimas
palavras do regente, em italiano, remetendo a uma típica expressão musical
– “da capo!” [“do início!”] –, expressão já antes utilizada por ele, levam agora
à suspeita de que tudo possa repetir-se, o que conduziria a um renovado
sentimento de desesperança.
o Maestro
A respeito de O Maestro como um todo, também de sua relação com
a Polônia e com Karol Wojtyla, assim se pronunciou o próprio Wajda:
Frustrados como estávamos todos naquela época na Polônia, não
sabendo o que fazer, sentíamos no ar um tipo de expectativa por
um milagre a ocorrer; talvez um anseio por algum tipo de modelo,
especialmente se vindo do Ocidente. Ele seria personicado por
um maestro mundialmente famoso, conduzindo um concerto de
aniversário na pequena cidade polonesa onde ele havia nascido.
Consequentemente, a história tinha de ter lugar numa cidade
provinciana, com seus dignitários locais intrusivos e implacáveis.
21
Cf. GRAZZINI, Giovanni; FELLINI, Federico. Intervista sul cinema. Giulianocinema, 2004. Disponível em:
http://giulianocinema.blogspot.com.br/2010/07/prova-dorchestra-iii.html. Acesso em: 21 fev. 2021.: “Se dovessi
tentare di ricavare un senso da alcune reazioni del pubblico che mi hanno raggiunto o che mi sono state riferite,
davvero non saprei più nemmeno io da che parte cominciare per denire il mio lm (smarrimento forse salutare,
soprattutto come esempio da seguire). Come conciliare infatti la commozione di coloro che a ne lm commentavano
rammaricati: ‘Che peccato che il lm non nisca quando gli orchestrali riprendono a suonare tutti insieme! Ma perché
quello si mette improvvisamente a parlare in tedesco? Che c’entra? Che signica?’, con il guizzo demenziale di quel
pazzo (perché mi sembra che si debba essere irrimediabilmente pazzi per intendere il lm così) che nel guardaroba
di un ristorante, mentre stavo inlandomi il cappotto, mi ha sussurrato con bieca soddisfazione: ‘Ho visto il lm.
Sono con lei. Qui ci vuole lo zio Adolfo!’? Domando costernato: ma è mai possibile che il lm si presti a un equivoco
così mostruoso? O meglio, che cosa può voler dire, che cosa può testimoniare o rivelare una tale aberrante reazione?
Che nel mondo di oggi, sotto il crollo delle sue strutture organizzate, nella cancellazione di tutti i suoi valori e punti
di riferimento, ciascuno reagisce alla confusione, al malessere, al male che ci circonda, generalizzando una propria
personale patologia e proiettando quindi su quanto ci sta attorno, sia esso un lm o un evento, le proprie paure e i
propri desideri?
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
270 |
Todas as espécies de líderes partidários, criaturas indignas, típicas
dos chamados “lmes de inquietação moral”, encontraram seu
caminho para a tela. Andrzej Kijowski fez duas importantes
alterações no roteiro [do lme]: ele idealizou o inspirador, embora
um tanto absurdo, personagem principal – o maestro sagrado,
absolutamente dedicado à sua arte e tendo garantida a admiração
de seus companheiros. Além disso, Kijowski acrescentou a história
do jovem casal cujos problemas conjugais começam quando
o marido, ele mesmo um regente, torna-se enciumado face à
admiração que sua esposa violinista sente pelo maestro. Depois de
Karol Wojtyla ter-se tornado Papa, o ritmo dos acontecimentos
acelerou-se repentinamente na Polônia. O “Visitante do Ocidente
não precisava mais ser um monstro. Esperávamos que tal
personagem fosse nosso patrono e guia. O sonho já estava lá, mas
a probabilidade de uma visita de João Paulo II à Polônia parecia
irreal. Rapidamente, o roteiro saiu do controle e o lme começou a
evoluir à sua maneira.
22
(WAJDA, 2010).
Antes da referência a “um maestro mundialmente famoso”, que
personicaria um “modelo” ocidental, as palavras de Wajda não permitem
com clareza saber se a frustração e a inércia de que ele fala constituem
uma alusão ao móbil do roteiro nal, ou se formam parte dele. Ambas as
possibilidades sendo completamente plausíveis, além de não excludentes—
quer do ponto de vista da estrutura dessa narrativa, quer, sobretudo, do
ponto de vista do contexto histórico polonês de então—, parece-me que
uma e outra devam ser conjuntamente aceitas; ou seja: frustração e inércia
apontadas por Wajda serão um dado da sociedade polonesa na época de
22
WAJDA, Andrzej. Dyrygent [e Orchestra Conductor]. c2010a. Disponível em: http://www.wajda.pl/
en/lmy/lm23.html. Acesso em: 11 mar. 2021: “Frustrated as we all were at that time in Poland, not knowing
what to do, we felt in the air a kind of expectation for a miracle to happen; perhaps a longing for some kind of model,
especially if it came from the West. It was to be personied by a world-famous conductor, leading an anniversary
concert in the small Polish town where he had been born. Accordingly, the story had to take place in a provincial town,
with its obtrusive and ruthless local dignitaries. All sorts of party leaders, unworthy creatures typical of the so-called
“lms of moral unrest”, found their way onto the screen. Andrzej Kijowski made two important alterations to his
script. He devised the awe-inspiring, if slightly absurd, main character - the hallowed maestro, absolutely dedicated to
his art and taking the admiration of his companions for granted. Also, Kijowski added the story of the young couple
whose marital troubles begin when the husband, a conductor himself, becomes jealous of the admiration which his
violinist wife feels for the maestro. After Karol Wojtyla became Pope, the pace of events suddenly accelerated in Poland.
e “Visitor-from-the-West” did no longer have to be a monster. We expected such a personage to be our patron and
guide. e dream was already there, but the likelihood of a visit by John Paul II to Poland seemed unrealistic. Very
quickly the script got out of control and the lm began to evolve in its own way”.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 271
produção do lme, e, por isso mesmo, parte do roteiro de O Maestro. Se
assim, a “expectativa por um milagre a ocorrer”, o “anseio por algum tipo
de modelo, especialmente se vindo do Ocidente”, uma e outro explicariam
a “admiração” dos músicos da orquestra pelo “inspirador, embora um
tanto absurdo, personagem principal – o maestro sagrado, absolutamente
dedicado à sua arte”, que, fosse outro o momento, poderia não carrear essa
mesma “admiração”.
Segundo Wajda, o roteirista Andrzej Kijowski “fez duas importantes
alterações” no—supõe-se—roteiro original: além da inserção do próprio
personagem Lasocki, “a história do jovem casal cujos problemas conjugais
começam quando o marido, ele mesmo um regente, torna-se enciumado
face à admiração que sua esposa violinista sente pelo maestro”. Tais alterações
não serão tão só “importantes”, mas verdadeiramente substanciais, não se
concebendo que o roteiro original, qualquer que tenha sido ele, mas sem
tais personagens e as histórias que os entrelaçam, pudesse ainda referir-se
ao mesmo lme.
Com relação à caracterização do personagem principal da trama,
que, ao ver de Wajda, será “um tanto absurdo”, ela poderá estar apoiada na
sacralidade com que, segundo o próprio diretor do lme, ele é considerado,
bem como no fato de Lasocki ser “absolutamente dedicado à sua arte”.
Com isso, a “expectativa por um milagre a ocorrer” será negativamente
considerada por Wajda, não como “expectativa”, mas como espera por
um “milagre”, pela como que intercessão da Providência. Contudo, a
sacralidade em pauta não será uma característica autêntica do personagem,
só lhe podendo ser, em verdade, indiretamente imputada, tendo-o em
verdade sido, e justo pela orquestra, ansiosa “por algum tipo de modelo”,
que nele, enm, encontra. Tampouco uma alienação relativa ao contexto
histórico imediato, decorrente de visão esteticista da arte, poderia ser
corretamente atribuída a Lasocki, quem, a propósito, nega-se a dirigir a
orquestra provincial reforçada com músicos vindos de Varsóvia. Ou seja:
ao perceber que a orquestra é outra, não lhe importa a possibilidade de
um som esteticamente superior, mas o fato de os músicos com os quais
trabalhara terem sido autoritariamente preteridos. Assim, nem sacralidade,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
272 |
nem alienação parecem ser autênticos atributos do personagem, embora
sejam componentes da imagem típica do regente de orquestra em geral.
As palavras seguintes de Wajda, de “Depois de que Karol Wojtyla
tornou-se Papa [...]”, até: “a probabilidade de uma visita de João Paulo
II à Polônia parecia irreal [...]”—serão o testemunho conrmatório de
uma impressão bastante natural entre pelo menos muitos espectadores
de O Maestro; ou seja: a de que, nalguma medida, o personagem de Jan
Lasocki remete ao então Sumo Pontíce, o “Papa polonês”. O “modelo
ansiado, “vindo do Ocidente”, o “Visitante do Ocidente”, aquele de quem
se esperava fosse “patrono e guia”, eis o maestro, o dirigente, o condutor,
tal como, depois, em larga medida, será efetivamente o Papa Wojtyla. Mas
a personicação do “modelo” pelo qual se ansiava não é um líder ocidental,
mas um que, oriundo de para onde foi, dali tendo partido, dali ausente
havia 50 anos, é, a rigor, inda assim, somente “vindo do Ocidente”, não
dele originário. Sem poder ser uma remissão metafórica, quase documental
a Karol Wojtyla em sua terra [a primeira viagem de João Paulo II à Polônia,
transcorrida entre 2 e 10 de junho de 1979,
23
não deverá ter ocorrido ao
menos até o desenvolvimento de boa parte das lmagens de O Maestro],
Jan Lasocki será, retrospectivamente, como que uma alusão avant la lettre
à presença do “Papa polonês” em sua própria pátria.
Em meio a armações importantes sobre o contexto polonês de
então, essa apresentação de Wajda a seu próprio lme
24
parece conduzir
a um mascaramento do interesse e da grandeza da obra. Além da
caracterização depreciativa e imprecisa de Lasocki, ele refere-se à relação de
Marta e Adam como “a história do jovem casal cujos problemas conjugais
começam quando o marido, ele mesmo um regente, torna-se enciumado
face à admiração que sua esposa violinista sente pelo maestro”. Não se
podendo dizer que assim não pareça ser, O Maestro será bem mais. No
lme, com efeito, os “problemas conjugais” de Marta e Adam, o ciúme
23
Cf. VIAGEM apostólica do Papa João Paulo II à Polônia. Vatican, [s. l.], 02 jun. 1979. Disponível em: http://
www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/speeches/1979/june/documents/hf_jp-ii_spe_19790602_polonia-
varsavia-okecie-arrival.html. Acesso em: 11 mar. 2021.
24
No assim chamado “website ocial” de Wajda [“Andrzej Wajda. Ocial Website of Polish movie diretor”.
Disponível em: http://www.wajda.pl/ Acesso em: 23 mar. 2021], a maior parte dos lmes dele é apresentada
por um texto seu; cf. “Films by Andrzej Wajda”. Disponível em: http://www.wajda.pl/en/lmy.html. Acesso: 2
mar. 2021.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 273
dele e a admiração dela por Lasocki nada serão além da primeira camada
de um tecido mais fundo e mais complexo.
No lme, embora nalguns poucos momentos ela se comporte
como tal, a orquestra não é coprotagonista direta [embora possa ser
dita coprotagonista indireta, por meio de Marta, que a compõe], mas
diretamente coadjuvante, função, de resto, proporcional à relação que,
como um todo, ela mantém com o protagonista principal da trama,
relação caracterizada pela admiração e pelo fascínio. Tendo em conta o
equilíbrio dramático da película, a orquestra de O Maestro não poderia
mesmo coprotagonizar a história ao lado do personagem com que se mostra
am, tendo de, ao contrário, dividir a cena com o personagem ao qual
aos poucos se contrapõe; em tal caso, com Adam Pietrzyk. Essa distinta
relevância da orquestra em Ensaio... e em O Maestro é especialmente
palpável pelos diferentes objetos visados em cada um deles pelas câmeras
inseridas nas tramas: no caso do lme de Fellini, a câmera de uma rede
televisiva, nunca mostrada, entrevista os músicos da orquestra, embora
também, depois, o regente dela; no caso do lme de Wajda, a câmera,
sempre mostrada, registra o desempenho prossional e momentos da vida
pessoal do maestro, de quem se prepara um documentário comemorativo
dos 50 anos de carreira.
Quais os personagens de O Maestro? Pela ordem de sua aparição em
cena: Marta, Adam, Lasocki.
25
Salvo engano, o lme admitirá a seguinte
divisão: 1. Um alentado introito [transcorrido em Nova Iorque]; 2. Uma
primeira parte, com o retorno de Marta; 3. Uma segunda longa parte [a
maior do inteiro lme], com a chegada de Lasocki; 4. Um curto epílogo.
Ao som do início do Primeiro Movimento da “Quinta” de Beethoven,
Marta extasia-se com a Nova Iorque que mal começara a ver. Em meio à
velha música que a introduz no “novo mundo” – a alteridade emblemática
que uma boa cidadã comunista deveria de pronto repelir... –, destaca-se a
postura vertical que ela mantém [de pé no carro que a leva, com parte do
próprio busto para fora dele, através do teto solar do veículo], quase sempre
voltada em direção ao alto. Essa postura é logo depois realçada às avessas
25
Aparecendo nalgumas poucas sequências, pai e lha de Marta não são nomeados, embora, ao voltar de Nova
Iorque, Marta chame a lha por “Marysia”, diminutivo de Maria, o que faz supor ela tivesse tal nome.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
274 |
quando a câmera mostra o interior de sua casa polonesa, na qual, estirado
horizontalmente no chão, seu marido ouve e rege a mesma sinfonia que
acompanhara sua chegada triunfal a Nova Iorque. Num caso, grandiosidade
da obra e grandiosidade da megalópole estão em total proporção; noutro,
um mundo à parte, interior, que, abstraindo da pequenez circundante e
ligando-se à exterioridade por um mero fone de ouvido, está, se tanto,
somente em proporção consigo mesmo.
Pela leitura que faço do lme, o “introito americano” de O Maestro
estará longe de ser um mero “longo passeio turístico por New York,
que, exceto pelo encontro de Marta com o maestro, não tem função
nenhuma”.
26
A razão de ser desse de fato longo introito nova-iorquino do
lme é mostrar a Polônia ao encontro do mundo. Não se trata de Marta
somente como representação da Polônia contemporânea. Marta, também
o deslumbramento de Lasocki havia 50 anos, torna-se Anna, sua própria
mãe, paixão de Lasocki, representação, para ele, da Polônia então deixada.
O conhecimento de Marta por Lasocki condu-lo a sua revivescência
de Anna. A Polônia em busca do mundo, a desoprimir-se [Marta], revive
em Lasocki seu vínculo para com ela [Anna]. Quando Marta / Anna /
a Polônia diz não poder adiar o próprio retorno, é Lasocki quem já se
convenceu a enm voltar.
O retorno de Marta é a volta reexiva de Lasocki a seu passado distante,
cada vez mais presente. Adam não será o Lasocki de antes da própria partida,
50 anos atrás, diante do qual, agora, um outro Lasocki, envolvido com outra
Polônia, lha daquela, buscaria acertar as contas consigo mesmo. Houvesse
permanecido naquela outra Polônia, Lasocki teria sido o que ora é Adam,
encarnação de um Lasocki que não teria partido.
Na verdade, O Maestro pode bem ser, num certo sentido, somente
ele, Lasocki; se assim, Marta e Adam serão lembranças suas, reencontros
seus consigo mesmo [Adam], com a Polônia de agora [Marta] e de outrora
26
CANBY, Vicent. Wadja Directs ‘Orchestra Conductor’. e New York Times, New York, sept. 28,
1980, Section 1, p. 64. Disponível em: https://www.nytimes.com/1980/09/28/arts/wadja-directs-orchestra-
conductor.html Acesso em: 11 mar. 2021. For no special reason at all, the lm opens in New York City, where
Marta is studying on a three-month grant, so we are treated to an extended sight-seeing tour of New York that, except
for her meeting with the conductor, serves no function whatsoever”.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 275
[Anna]. Ou seja: não é necessário que Marta e Adam tenham o mesmo
estatuto de efetividade de Lasocki. Em tal caso, a câmera que quase sempre
o persegue representará o desejo de tais vivências serem mesmo efetivas,
de haver registro que o testemunhe; e o estupor diante da própria suposta
demência, esforço elaborado de lucidez [a encenação psicodramática no
restaurante], será o ponto mais alto dessa onirização do lme, jogo de
aparência e realidade no interior do sonho.
Que se obtém com tal interpretação onirizante? Uma coerência
histórica que não se resume ao encaixe entre roteiro e realidade presente,
mas entre roteiro e realidade almejada. Ou seja: em meio à frustração,
à inanição [nas palavras de Wajda: “Frustrados como estávamos todos
naquela época na Polônia, não sabendo o que fazer [...]”], Lasocki é a
expectativa por um milagre a ocorrer”. O sonho já é real, mas a realidade
ainda não o alcançou [“O sonho já estava lá, mas a probabilidade de uma
visita de João Paulo II à Polônia parecia irreal”]. Com Dyrygent, Wajda dá
corpo a esse sonho.
.
Em sua segunda parte, uma das duas cenas que tenho por mais
emblemáticas de O Maestro [a outra, a do monólogo final de Marta,
será mais à frente comentada] é aquela em que, sentados à mesa de
um restaurante, iluminados por um candelabro sobre ela, Marta e
Lasocki protagonizam o que me parece ser o momento mais revelador
de todo o filme.
Tirando-lhe os óculos, como que para re-personalizá-la,
27
Lasocki
dirige-se a Marta, à sua frente, mas fala a Anna, mãe dela. Embaraçada
com o que lhe terá parecido ser um triste episódio de confusão mental
de Lasocki, Marta, em duas frases subsequentes, envoltas por expressão
facial que a mostra toda cheia de cuidado e ternura, sussurra a Lasocki,
27
Pouco depois da cena de que aqui se trata, vê-se quadro com uma imagem fotográca de Anna, mãe de Marta,
no qual, ao menos ali, ela não porta óculos corretivos. Com isso, a re-personalização sinalizada com a retirada
dos óculos de Marta, mesmo sem necessidade, mostra vínculo com a realidade encenada.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
276 |
em polonês, advertindo-o de seu engano. Depois de ouvi-la, o Maestro
aquiesce com que ela seja Marta, não Anna: “Yes, I know. I know”. Entre o
início da primeira frase e a expressão de Lasocki após a última, o intervalo é
de pouco mais de 4 segundos, período em que, tendo-se voltado à realidade
aparente [Marta e ele sentados à mesa de um restaurante, iluminados por
um candelabro sobre ela], o Maestro retorna à realidade sem aparência
própria que ele constrói, na qual, agora, Marta / Anna também opera.
Antes de sua declaração nal conrmatória—“I know”—, o riso sorridente
e autoirônico de Lasocki tanto afasta o quadro de um diagnóstico negativo,
quanto anuncia outra dimensão para aquele momento psicodramático.
Feita a declaração nal conrmatória, porém, o riso sorridente e autoirônico
de Lasocki—espécie de garantia suplementar [como se isso lhe importasse]
da certeza que ele tem sobre à sua frente estar Marta, não Anna—, tal riso
cede a vez para expressão que o remete de volta ao plano de sua fala inicial
na cena, pelo que, assim, aqueles pouco mais de 4 segundos formam uma
espécie de concessão dramática a afastar uma hipótese narrativa [confusão
mental] em desacordo com a autêntica trajetória do lme.
Vale notar que as falas de Lasocki em tal cena são todas em inglês,
o que, se por um lado presenteia-nos com voz e entonação do próprio
John Gielgud, dispensando a dublagem que faria o personagem expressar-
se em polonês, pareceria estar em desacordo com a autenticidade daquela
encenação psicodramática na qual ele dialoga com Anna, que o remeteria
a uma época na qual ele ainda não partira da Polônia. Mas quem ali se
expressa não é o Lasocki integralmente polonês de 50 anos atrás, mas o de
agora, cidadão do mundo cuja língua corrente tornou-se o inglês. Se ele
dialogasse com Anna em polonês, isso o faria tomar a Polônia da Guerra
Fria pela do entreguerras, a efetivamente confundir Marta com Anna.
Fazendo-o em inglês, emblema da celebridade mundial em que se tornou,
timbre da plena internacionalização buscada pela Polônia daqueles dias,
ele se volta para Anna, Polônia passada, como a dizer-lhe que o futuro—
quando quer que venha—não pode ser um retorno nostálgico, como se o
período da Guerra Fria, tal uma não-vida, pudesse ser cancelado. Lasocki
fala a Anna—mas para que Marta o ouça.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 277
Após a morte de Lasocki, há como que um pré-epílogo entre Marta
e seu pai, e, então, o epílogo propriamente dito do lme, entre ela e o
marido. O objeto declarado de um e outro é a relação entre Marta e Adam,
a Polônia e quem a governa. Diante do sufocamento a que Adam submete
Marta, seu pai a aconselha a partir, opção que ela de pronto rejeita. Já
o epílogo é dividido em duas partes: numa, dialogal, Marta rechaça
a encenação melodramática de Adam; noutra, monológica, ela expõe a
perversidade dele, musicalmente travestida.
Não houvesse partido, Lasocki seria o Adam que ora se vê. Morto
ele, Adam, não mais o Lasocki que não teria ido, é os vários Lasockis que
não se tornaram no que poderiam. Correspondentemente, Lasocki, ao
partir, torna-se no que os vários Adams não foram, nem poderão ser. Ao
voltar, mais do que morto por Adam, Lasocki, por ele traído [Adam nada
lhe dissera sobre a orquestra ser reforçada com músicos de Varsóvia], deixa-
se morrer. O que dele resta, conforme o monólogo nal de Marta, é a
expressão do homem livre, que, livre também para morrer, mata seu outro,
deixando-se por ele matar. Lasocki morto, Lasocki redivivo, é Adam quem
morre. Em vez de dela outra vez partir, Lasocki parte na Polônia, nela
restando.
No monólogo nal, Marta tira os óculos—como lhos tirara
Lasocki, na cena do restaurante—, fala com outra entonação, mostra-
se especialmente resoluta. A Polônia que ela é, chora menos a morte do
modelo” vindo do Ocidente, do que brinda a mensagem por ele deixada.
conclusão
Em Ensaio de Orquestra, o crescendo que mostra o regente como
ríspido, autoritário, déspota, cabe à perfeição para, alegoricamente, exibir
e comentar a relação opressiva entre governante e governados, opressor e
oprimidos. Embora tal coisa não devesse ter importância nenhuma para
Fellini, nem por isso poderá admitir-se que todo e qualquer regente seja um
déspota—esclarecido ou não—, ou que o despotismo inera a tal função.
Contudo, para efeito da alegoria que ele tinha em mente explorar, ter-lhe-á
sido suciente a hiperbolização universalizadora de traços presentes no
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
278 |
modelo escolhido, operação, contudo, como que [falsamente] justicada
por um emblemático testemunho local [Toscanini].
No caso de O Maestro, a alegoria é algo mais complexa; ou seja: tem
mais dobras. Veem-se dois regentes, um dos quais autoritário, o outro,
autoritativo. Este último, tal o primeiro, é polonês, mas com a sintomática
diferença de ter passado a maior parte da vida no estrangeiro, onde
construiu uma brilhante carreira internacional. Sua volta [cuja camada
epidérmica é o faz de conta da ciumeira a um só tempo conjugal e musical
de Adam] representa em certa medida o reencontro do ex-agrilhoado com
os antigos companheiros de caverna, que nela ainda estão. Em certa medida
porque, na verdade, trata-se do reencontro de Lasocki consigo mesmo,
com aquilo em que se teria tornado [Adam], houvesse permanecido entre
as correntes. Adam—existe? Tanto quanto Lasocki. Qualquer um deles é o
outro de si mesmo na engrenagem que busca uma saída—global, dir-se-ia
hoje—para a Polônia.
Prova d´orchestra será bem mais o reexo da sensação de aporia em
boa parte da sociedade italiana daqueles tempos, do que um momento
reexivo a respeito do então ambiente político do país. Até o ponto em que
gli orchestrali possam corresponder a cidadãs e cidadãos da segunda metade
dos anos 70, italianas e italianos estarão retratados no lme como, do ponto
de vista político, gente demasiado crédula, desarticulada, desesperançosa.
O Maestro, por sua vez, não conduzindo a nada de substancialmente
distinto em relação a isso, torna mesmo assim possível, parece, enxergar a
seguinte moral da história, porventura aplicável também à obra de Fellini:
a sociedade polonesa não apresenta uma organização própria pela qual ela
seja levada a uma transformação autêntica; vale dizer: uma transformação
desprovida de subterfúgios despóticos de variado matiz. De modo
positivo: sem um líder carismático, oxalá benfazejo, nada se altera, ou,
pior, tudo retrocede, as eventuais vitórias sobre as dissensões sociais sendo
estabelecidas pela força destrutiva, não pelo diálogo construtor. Para o caso
da sociedade polonesa daqueles dias, um líder assim carismático, segundo
Wajda, deveria vir de fora. Como se sabe, João Paulo II—de dentro, mas
fora de seu país—tornou-se efetivamente essa liderança, centelha espiritual
naquela Polônia pré-Solidariedade, mas já com Lech Walesa, e, pois, quase
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 279
. Na Itália, nada houve no gênero; a liderança espiritual do Papa, tão
próximo, ali não obteve nenhum resultado político.
Quando se conhece algo da história da Itália e da Polônia nos idos
dos anos 70, ambos os lmes parecem estar tão fortemente comprometidos
com seus respectivos contextos políticos e sociais, que não se torna empresa
fácil superar o vigor de tais amarras, neles encontrando aquela fração de
atemporalidade que catapulta a obra de arte. Seja como for, ademais do
prazer experimentado ao vê-los ou revê-los tanto tempo após produzidos,
vale reetir a partir dos alertas que um e outro lançam, já porque, para
além da Itália e da Polônia, o mundo inteiro—parte dele, mais; parte dele,
menos—continua atado à credulidade, à desarticulação, à desesperança,
o que o torna presa sucessiva de governos despóticos ou conjunturas
autocráticas.
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O      :
   
-- 
- C
Rafael Teixeira SANTOS
1
introdução
“Meu problema é a objeticação do sujeito, ou então, a de-
subjeticação do indivíduo (o último é mais a questão para Kant e
Goethe); e, de mesmo modo é: a eterna signicância do temporal”
(SIMMEL, 2010, p. 161, Aforisma 7, tradução nossa)
Este texto é um exercício de interpretação. Ele se desdobra, ao
mesmo tempo, também como interpretação deste aforisma e do lme
como obra assinalada e fática que trataremos adiante – Vertigo – e do
papel do cinema como um todo em relação à experiência metafísica. Estes
três se interpenetram num todo que é o papel imanente do indivíduo
na modernidade (de seu surgir no momento industrial sob a égide do
Mestre em Filosoa pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC / Florianópolis / SC / Brasil. E-mail:
ensnry@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p281-316
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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Iluminismo até sua manifestação tardia) e seu enredamento necessário,
sua autoalienação, dadas as condições do meio. Logo, se o tema em
questão é o cinema, ele é – mais além – a própria perspectiva de alienação
a partir desse meio, inserido em seu contexto histórico-cutural próprio.
Conceitualmente, chegaremos lá, nossa interpretação tem o papel
de abarcar – nessa forma – três sentidos, que são apenas inicialmente
metafóricos, induzidos no título: a sobreposição – “vertigem/espiral
hermenêutica
2
e o apelo do negativo, que realiza o salto para o conceito
de Justiça. A título de introdução, os três apresentam a supracitada relação
da imanência do individual com o seu meio próprio histórico-cultural,
que é tensionado por uma força que advém de sua própria negatividade,
mesmo que cada um de seu modo próprio.
cinemA: imAgens em movimento como A eternA significânciA do
temPorAl
Vertigo (1958) foi produzido em Hollywood
3
e dirigido pelo
célebre diretor inglês Alfred Hitchcock. Depois de décadas de disputa
historiográca, entre os detentores de seu saber teórico, ele chega a
ultrapassar Citizen Kane (1941) e é escolhido pela maioria dos críticos da
eminente revista do campo do cinema Sight and Sound, em 2012, como a
maior obra cinematográca de todos os tempos
4
. Se isto é verdade, devemos
deixar claro que, por princípio metodológico – uma hermenêutica que visa
o todo –, não o sabemos e não podemos saber de modo algum. Já que, pois,
não estamos preocupados com a moda da opinião pública especializada,
“Vertigem” e “espiral hermenêutica” não são exatamente o mesmo, mas manifestações – ou modos-de-
apreender – distintos de um mesmo fenômeno.
Situada no estado da Califórnia, é o lar da grande indústria cinematográca norte-americana até os dias de
hoje.
“Depois de meio século de monopólio sobre o primeiro lugar, Cidadão Kane estava começando a parecer
presunçosamente inviolável. Chame isto de Schadenfreude [satisfação sobre seu infortúnio], mas vamos nos
regozijar que o símbolo agora convencional e ritualizado de ‘o maior’ foi nalmente tornado menor do que
pretendia ser. A ascensão de Vertigo dicilmente possui a natureza de um coup d’état [golpe de estado].
Empatando no décimo primeiro lugar em 1972, a obra-prima de Hitchcock continuadamente escalou as
pesquisas pelas próximas três décadas, e por 2002 era claramente o legítimo herdeiro. Ainda assim, até os
ardentes Wellesianos devem se sentir graticados com a modesta revolução – mesmo que apenas pela prova que
os cânones cinematográcos (e as versões da história que eles legitimam) não estão completamente fossilizados
(MATTHEWS, 2018).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 283
não no sentido de desqualicá-la, mas buscar, além dela, sentidos desta
obra assinalada que possam nos remeter não apenas à própria, mas à
essência do cinema e à própria interpretação do sentido, esta compreendida
formalmente enquanto hermenêutica.
Partindo da problematização de Vertigo como obra assinalada a
pensaremos diferencialmente e em diálogo com o processo imanente de
situação e autoalienação do indivíduo que ela nos oferece. Pois, como
na própria constituição interna de Vertigo, encontramos como princípio
subjetivo da interpretação-de-si o ser-outro – e a co-produção do si-
mesmo pelo ser-outro. Buscamos compreender a essência do cinema
como ela se mostra a partir do diálogo entre estas obras e objetos,
estabelecendo até o m a lógica do sentido que elas implicam. O
procedimento nos remete a alguns autores principais. Não esperamos,
porém, discutir em pormenores a obra de cada qual, nem sermos éis
a eles. Muito pelo contrário, é a partir dessa indelidade originária e
malícia do sentido que pretendemos violar seus preceitos. Essa violência
hermenêutica não é mero resultado de um ecletismo, de um desejo
curioso, mas tem como necessidade pensar o sentido imanente das obras
que nos interpelam – e o modo que elas mudam o nosso interpelar o
cinema e a própria hermenêutica – contra a simples noção de encaixá-las
em um quadro conceitual dado. Se elas são “dignas de serem pensadas”,
ou mesmo o próprio cinema como um todo, rendemo-nos à radicalidade
hermenêutica. Deixamos claro, já, o distanciamento.
A teoria cinematográca, e sua prática especíca e especializada,
compreendida enquanto cinelia (ou apreciação de cinema) – e também
como produção de lmes – estas como exemplares seja da mais alta cultura
ou da mais popular e cotidiana, necessariamente não compreendem
a essência de seu ob-jecto
5
, o cinema. Isto, pois, já estão pré-vinculadas
culturalmente a ele. As mesmas disputas do campo cultural que informam
o seu mais-próprio modo-de-tratar, como as que decidem se uma obra –
enquanto ob-jeto cultural – tem tal e tal valoração e deva ser aproximado de
tal e tal forma, põe-se à frente do caráter de obra da coisa, nunca a deixando
Ob-jecto no sentido de Gegen-stand, ou, o que se põe contra o representar teórico, à forma de um anteparo
conceitual.
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Gabriel Debatin (Org.)
284 |
repousar nela mesma e, assim, dizer ela mesma o que é. Logicamente, o
pôr-se contrário a coisa (culturalmente, aqui) mediante a necessidade
recíproca de fazê-la fazendo-se a si (produção), ou, fazendo-se a si – fazê-
la (apreciação), é a marca da im-possibilidade conceitual da elevação da
coisa-ob(jecto) cinematográca à coisa-obra, no sentido mais amplo de sua
dimensão estética, partindo de qualquer ponto que já não seja de antemão
o ponto assinalado: a coisa-obra ela mesma. Essa necessidade recíproca já
nos põe diante de dois modos-de-apreensão conjugados. Inicialmente, é o
primeiro indício de um dos motivos hermenêuticos sobre o qual Vertigo
chama tanta atenção: o próprio sentido de vertigem, não como um recurso
dramático ou cinematográco, mas como um companheiro essencial a
uma possível lógica do conceito e do sentido.
A vertigem, portanto, seria a incapacidade do olhar de encontrar-se
estavelmente no olhado, condenando ambos à innita busca de um pelo
outro. Mais propriamente, em relação ao sentido e ao conceito, a vertigem
se dá como fato básico da verdade da coisa-ob-jecto: enredados em uma
necessidade imanente e recíproca de constituírem-se, sujeito e ob-jecto
nunca encontram sua verdade estabelecida um no outro, mas permanecem
num movimento espiral em que um peticiona de-terminando o outro de
modo cada vez mais elevado. Queremos dizer, para cada avanço temporal,
sujeito e ob-jecto apelam à essência do outro, trocando posições entre si-
mesmo e ser-outro, assegurando-se um do outro e arriscando a essência um
do outro de modo cada vez mais acentuado e distante – até que a distância
torne-se a incapacidade efetiva da constituição de um pelo outro.
O movimento espiral-vertiginoso, assim, não encontra seu sentido
nele mesmo, mas no ponto central que foge ao olhar e que remete ao início
in-nitamente perdido da espiral, onde se supõe que sujeito e ob-jecto
eram os mesmos. Porém, é impossível experimentar, dentro deste ponto
de vista, a unidade entre sujeito e ob-jecto, pois um surge como a negação
do outro, ob-jecto é a contraposição de sujeito. O ponto central da espiral,
como seu início, é uma hipótese impossível, mas é esta hipótese que anima
todo o movimento. No seu ponto inicial, sujeito e ob-jecto são, enquanto
si-mesmo e ser-outro: o mesmo, e a negação do mesmo. É esse paradoxo
originário que chamamos de hipótese impossível do sentido, sua necessidade
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 285
é a base do desenrolar temporal enquanto um é produção do outro,
produção sempre mais distante, mais arriscada. Ela é impossível para o
ponto de vista interno da espiral, mas por isso mesmo, sua impossibilidade
cria – ao mesmo tempo – a própria espiral e um outro ponto de vista.
A vertigem é a espiral compreendida enquanto movimento. Esse ponto,
imóvel, é o que compreende a vertigem como um todo, e é a base para o
entendimento da coisa-obra.
Essa dialética inesperada da vertigem, apenas delineada até aqui,
choca-se diametralmente contra a nossa tentativa aludida inicialmente de
realizar uma hermenêutica do cinema a partir da interpretação de Vertigo
como obra assinalada. É como se, no trato com a própria coisa, esta
resistisse a tentativa de uma delimitação xa ou mesmo diferencial de seu
sentido. Diferencial no modo não apenas do diálogo constante com outras
obras, mas que, na relação da visão intuitiva da obra com a interpretação
do todo – o cinema propriamente dito –, possa se cultivar uma relação que,
embora assistemática, preserve a integridade de uma essência. Tal essência
não nos parece ser entregue de forma alguma, ou mesmo está além de
qualquer noção formal. E mesmo esta suposta essência não sendo uma
estrutura rígida, pensada diferencialmente e a cada vez
6
em relação ao todo
de sua interpretação, logo em relação ao cinema como apreciação e prática,
o mistério da dialética da vertigem que nos iniciamos aqui é justamente
repelir cada tentativa diferencial de pensar seu sentido, exigindo assim uma
intuição lógica distinta caso queira se tratar de seu movimento peculiar. A
interpretação diferencial, porém, é-nos necessária, pois sem ela não seria
revelada a própria diculdade diferencial da coisa e seu caráter peculiar
de resisti-la. Um ponto de partida meramente “cultural”, “historiográco
ou mesmo “antropológico” resultaria no mesmo do que já fora dito, e de
modo muito melhor, pela crítica cinéla especializada. Tal crítica tem seu
papel legítimo como curadoria e manutenção da imagem das obras, porém
não pode ir além disso, nem é seu papel e vocação. Não tratemos, então,
de repeti-los.
A cada vez”, dito temporalmente. Embora não possa car explícito, este texto depende, enquanto interpretação
do aforisma inicial, da questão temporal implícita no jogo da vertigem e relação sujeito-objeto.
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Gabriel Debatin (Org.)
286 |
Esta dissonância, entre a intenção hermenêutica e diferencial
(temporal a cada vez em sua relação com o todo), e entre as possibilidades
únicas de não-resolução do sentido apresentadas pela dialética da
vertigem, enquanto suspensão do sentido no todo, é uma das novidades
e diculdades de se tratar do pensar o cinema em sua apresentação única,
como fruto da tecnologia e condição social modernas que se estendem até
a contemporaneidade.
Já fomos introduzidos, do ponto de vista cultural e tendo em vistas o
cinema, a distinção entre coisa-objecto e coisa-obra. A delimitação do tema
da vertigem, dentro da lógica do sentido e do conceito, deixa-nos claro
que entre a atitude cinéla ou a produtora de cinema há um vazio gerado
pela hipótese impossível de sentido. Ou seja, todo processo apreciativo
ou produtivo constitui a si mesmos, mas por uma impossibilidade de
compreenderem a totalidade de seu processo até a sua originalidade –
impossibilidade esta constitutiva do próprio processo – permanecem
fora de seu sentido. Ora, reciprocamente, se a lógica do sentido está na
apreensão deste como paradoxo, a lógica do conceito, conversivamente,
está em apreendê-lo em seu movimento (vertigem). Daí a supracitada
diferença entre espiral hermenêutica e vertigem. Assim, o conceito só pode
ser apreendido diferencialmente e relativo-temporalmente na vertigem.
A geração (paradoxo) e sua manifestação (vertigem) se co-pertencem
intimamente. Essas últimas apreciações são, do ponto de vista losóco,
ontologicamente incompletas, pois apresentam-se apenas como estruturas
prévias do sentido conquistadas até aqui não devido à ordem do ser, mas
devido à ordem da apresentação. Apresentamos até aqui dissociadamente
o indissociável (paradoxo) como mero recurso apresentativo, em relação
à forma. Assim, impomos ao texto o mesmo formato de seu conteúdo.
Apresentar a estrutura prévia da lógica de seu sentido antes das obras serve
aqui como paradoxo gerador da vertigem. Pois não se trata de impor às
obras mesmas o que já fora exposto sobre o sentido, mas assegurar nelas
o pensamento visto, logo, todo o seguinte pensar deve ser vertiginoso.
A mostração das obras deve repetir o escrito e dar-lhe o asseguramento
ontológico. Assim, voltamo-nos às obras elas mesmas.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 287
do viés do esPectAdor dA imAgem À vertigem fActuAl: vertigo
(1958) e os paradoxos da negatividade
Vertigo aparece, à primeira mão, como uma história de detetive
relativamente simples com um plot twist
7
pouco comum. A narrativa
pode ser dividida em duas fases principais, com uma breve intermissão,
que trataremos a seguir. Inicialmente, conta a história do detetive Scottie
(James Stewart) na São Francisco dos anos 50 e seu envolvimento
romântico crescente com a bela e renada, atormentada, Madeleine Elster
(Kim Novak). Scottie mostra-se inicialmente sofrendo de acrofobia (medo
de alturas), após um evento em que perseguia um bandido pelos telhados
de São Francisco e vê um colega detetive cair das alturas.
Essa é a primeira superimposição da vertigem que aparece
brilhantemente delineada no plano de abertura, como uma série de
objetos geométricos parciais superimpostos a um olhar feminino,
também parcial. Todo o objeto na vertigem é um objeto parcial, assim como
todo sujeito. Essa parcialidade lógica não tem ligação imediata com o
sentido psicanalítico, sujeito e objeto são parciais na medida em que não
contém integralmente seu sentido, pelo contrário, só se dedicam a uma
parte. De mesmo modo, cada visão no cinema é parcial – e isso faz parte
de sua essência – suspensa em sua parcialidade. O olhar no cinema é um
olhar oblíquo – enviesado – que se dirige a um objeto sempre parcial, que
tem seu conceito sempre debastado. Todos os personagens são parciais,
as situações, os lugares. Todos se reduzem a algum pequeno número
concreto de relações de sentido e causalidade mais ou menos namente
articuladas, que de modo contrário no real seguem-se innitamente em
cadeias – ou seja, apresenta certa integralidade hermenêutica indenível.
O olhar-situação do cinema, ele mesmo parcial, dirige-se sempre a um
objeto parcial. É o corte, a tomada. Por si só, essa imageticidade não
distingue o cinema da literatura ou teatro, mas é um composto junto com
a noção de montagem em sua propriedade, tratando-se de cinema e não
de teatro – na medida em que pro-voca a cada vez um olhar especíco.
Curiosamente, J. Lacan, em 1960, adicionou o “olhar” a lista de “objetos
Nome técnico para uma “reviravolta no enredo”, dispositivo narrativo para uma mudança no curso esperado
de um enredo a partir de um evento inesperado.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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parciais” de sua teoria psicanalítica, mas tal fato não têm relação direta
com o que chamamos de parcialidade na lógica do sentido e do conceito
– de que os conceitos são, a cada vez, imagens transitórias
8
. Reforçando,
a parcialidade do objeto em sua apresentação cinematográca se compõe
de sua imageticidade de modo genérico, e de sua inserção na montagem
de modo especíco, embora ainda reste distinguir esta montagem do
que é advém do teatro e do que advém mais originariamente do próprio
cinema. Com isto, retomamos a narrativa de Vertigo.
A narrativa se desenvolve a seguir com o abandono do detetive
de sua carreira policial em razão de sua incapacidade de trabalhar nas
ruas, e de sua indisposição a um trabalho burocrático. Logo, recebe um
convite de um antigo colega de faculdade, Gavin Elster, que apresenta-
se em boa condição nanceira devido a seu casamento com Madeleine
Elster. Para sua surpresa, seu colega pede-lhe seus serviços por um motivo
muito incomum. Gavin acredita que sua esposa esteja sendo “possuída
pelo espírito de uma de suas ascendentes, Carlotta Valdéz, e precisa de um
detetive para acompanhar seus estranhos desaparecimentos cada vez mais
frequentes, para que tenha mais informações sobre como agir, inclusive em
relação ao auxílio psiquiátrico. Scottie, inicialmente, recebe o pedido com
enorme incredulidade, urgindo a seu colega que a providencie tratamento
adequado, e que uma agência de detetives prossionais seria mais adequada
do que ele, caso queira persistir nesse caminho. Gavin insiste, e baseia seu
argumento em uma suposta “pessoalidade” de sua relação com Scottie, por
já tê-lo conhecido antes. Precisa de mais informações, e, se tratando de um
suposto “sobrenatural”, precisa de alguém conável e familiar.
díAde Pelo olhAr: errânciA, então, liBerdAde/finitude
Segue-se uma longa sequência sustentada pelo olhar da câmera e
pela trilha sonora orquestral, conduzida pela imageticidade visual e textura
sonora, com poucos elementos explicitamente gurativos além destes – de
Os objetos parciais para J. Lacan não possuem imagem porque se remetem a um sujeito em fantasia da
completude. O sujeito-olhar-situação do cinema, como dissemos, já é parcial originariamente, então por isso
seu objeto parcial oferece uma imagem. No nosso contexto, essa parcialidade não tem relação com a análise
psicanalítica originária da infância.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 289
certo modo criando uma atmosfera abstrata ou suspensiva. As imagens nos
narram em crescendo vertiginoso a descoberta e desenrolar da construção
de Madeleine na visão de Scottie, seu encantamento com sua beleza e
renamento mediado pela estranheza e tensão do elemento “sobrenatural
proposto. Nessa sequência, Scottie permanece à distância observando-a,
inicialmente num jantar com Gavin e então durante seus “passeios” diários,
relevando seu contato com diversos signos representativos da história de
Carlotta, tais como: um quadro no museu, uma lápide numa igreja, um
antigo casarão transformado em pensão.
A sequência é denitivamente interrompida com um incidente, em
que Madeleine cai – ou se joga – na baía de São Francisco e é resgatada por
Scottie, que estava à espreita. Em seu primeiro encontro real com Madeleine,
leva-a desacordada até a sua casa, onde Madeleine, ao acordar, encontra
um detetive questionador e estupefato, além de claramente encantado com
sua presença. Deixa-o claro ser casada, o que Scottie já sabia obviamente.
Enquanto Scottie noticia Gavin ao telefone às escondidas, Madeleine
sai furtivamente. Novamente, encontramos Scottie, agora já claramente
obcecado pela imagem de Madeleine, realizando seu trabalho e a seguindo,
porém, surpreende-se que ela pára em frente a sua casa. Ao ngir recebê-
la, descobre que ela vinha lhe trazer uma carta pedindo desculpas pelo
“incômodo e inconveniente”. Scottie fala de modo atrapalhado que não foi
incômodo algum, e que gostaria de “vê-la novamente”.
A atuação de James Stewart é um ponto importante aqui.
Inicialmente, chama a atenção a diferença de idade entre os protagonistas
e cada um de seus respectivos atores. James Stewart tinha 50 anos à época
do lme, e representa um detetive no alto de sua meia-idade. Kim Novak
(Madeleine), por sua vez, tinha apenas 25 anos de idade, representando
Madeleine, que teria 26 anos no lme. A diferença de idade do até agora
improvável par romântico pode gritar bastante alto aos movimentos de
gênero típicos do início do século XXI como ranço de um machismo
cinquentista ultrapassado; como uma demonstração da submissão da
mulher mais nova e fetichizada a um homem mais velho, mais independente,
psicologicamente e nanceiramente; além da rejeição da gura da mulher
madura, experiente, independente e empoderada. Seria o caso de uma
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
290 |
representação romântica e exaltada da gura da menina-mulher, colocada
entre um marido também mais velho, interesseiro e controlador (Gavin
Elster) que a tomou por esposa também por sua fortuna, e um outro
homem mais velho (Scottie), obcecado por sua gura fetichizada?
Dado o que já mencionamos introdutoriamente, tais
questionamentos recairiam no âmbito da cultura, seja a própria dos anos
cinquenta – da qual pertence o lme – seja quanto a sua recepção possível
no início do século XXI, em que, após uma longa luta, os movimentos
de gênero tornaram palavras do dia – e de ordem – empoderamento,
identidade, e fetichização e objeticação. E, é óbvio que tal translação
cultural afeta a visão sobre a experiência cinematográca, em que a
cinelia se apresenta pré-vinculada culturalmente. Se dissemos que este
âmbito cultural não pode ser a porta de entrada, nem o m último da
consideração losóca do cinema como obra, ele não deve ser ignorado.
Por dois motivos sólidos e paradoxais: um – o âmbito cultural que permeia
as obras e sua recepção é em si legítimo, e não é possível adentrá-las a
partir do Nada; dois – o âmbito cultural que permeia as obras é, por si, o
que mais as obscurece (e isso vale para o todo do cinema), pois, embora
sendo legítimo em seu lugar próprio, o uso ilegítimo da cultura como
remissão à totalidade da coisa e de seu sentido – como m – é a marca da
atitude mais antilosóca possível. A tarefa em mãos seria, inversamente:
um – distinguir a mistura de usos do âmbito da cultura até que seja
considerada em seu lugar adequado; dois – adentrar o sentido da obra
para além do ruído cultural na medida que considere verdadeiramente
não apenas o conteúdo dessa cultura, mas a forma com que se apresenta.
Tendo isso em vista, a questão quanto a fetichização da protagonista
trata de um ponto esclarecedor, se nos atentarmos ao todo do lme e a
construção do personagem Scottie inclusive pela sua atuação. A atuação
e o papel de James Stewart mostram propositalmente um homem fraco,
inseguro e hesitante, que esconde tais características atrás de um humor
irônico. É um personagem vacilante, no roteiro e atuação que não esconde,
mas não sabe o que fazer com sua obsessão. Sua fraqueza é bem representada
pela sua acrofobia e vertigem, e mesmo suas aparições “fortes” são um
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 291
resquício de sua fraqueza, inicialmente de não ter Madeleine, e então do
peso do passado.
O que o âmbito cultural pode vir a ver como fetichização com o
viés de uma teoria de gênero não pode ter esta mera caracterização como
m, mas serve de forma interessante para adentrar além dele nos sentidos
da vertigem que dá nome ao lme. Se, de um lado, a vertigem apresenta a
própria transcendência da forma com o qual todo o âmbito cultural tenta
se aproximar em estruturações constantes a cada vez vencidas; de outro, a
fórmula imanente do que é experimentado apenas supercialmente como
fetichização só pode ser encontrada em denitivo na suspensão de sentido
originária da vertigem. Logo, a lógica da fetichização encontra-se na lógica
do sentido – o paradoxo da vertigem, de sua origem impossível como
si-mesmo e ser-outro: o mesmo, e a negação do mesmo (contradição), e do
conceito – o todo da espiral, o próprio movimento constante da vertigem,
de tentativa fugidia e temporal de encontro de si-mesmo no ser-outro. A
vertigem é a arte do desencontro. Assim, começa a esclarecer-se também a
estrutura desse âmbito cultural que permeia o cinema por ele mesmo. Se
o âmbito cultural se preocupa tanto com a fetichização aqui é porque ela é
um tema fundamental para nós, embora não possamos nos contentar com
a mera explicação “cultural”, “sociológica” ou mesmo “antropológica”. A
vulgar “fetichização” se transforma na dúplice contradição do sentido e
abertura temporal-vertiginosa do conceito, na compreensão do cinema
enquanto fenômeno imanentemente moderno, tecnológico e industrial.
O cinema é a arte do desencontro. Não da desconexão entre som, roteiro,
imagem, ou mesmo mero caos; mas da contradição geradora do sentido e
da constante abertura de seu conceito, como imagem transitória. Assim,
convida – enquanto arte – o seu espectador a desencontrar-se de sua
situação real, lançando-o em maio às possibilidades absurdas de seu efetivo
diante de seu olhar.
Scottie costumava evadir as questões sobre sua ocupação corrente
com a simples resposta que estaria “vagueando
9
, esse motivo condutor
expressa um sentido bastante profundo quando de seu segundo encontro
O original é “wandering”, de “to wander”, vaguear sem rumo, casualmente, sem direção, de modo oblíquo,
enviesado.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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com Madeleine, ao despedir-se dela, corre ao seu carro e insiste em
perguntar onde ela vai, segue-se o diálogo, iniciando com Madeleine:
“– No, I just tought that I’d wander.
“– Oh, thats what I was going to do.
“– Oh, yes, thats right. I forgot. at’s your occupation, right?”
“– Yeah, well, dont you think its kind of a waste for the two of
us…”
“– To wander separately?”
“– Uh-huh.
“– But only one is a wanderer. Two together are always going
somewhere.
10
Pois apenas um vagueia; juntos, dois estão sempre indo a algum
lugar”. Isso, além de explicitar positivamente e poeticamente a narrativa
do lme até então, diz muito sobre a trajetória da vertigem, da construção
indireta, oblíqua e enviesada do objeto no cinema como imagem parcial,
e da fetichização, ou melhor, da objeticação do sujeito e subjetivização do
objeto
11
que ocorre no cinema como modo moderno de narrar, e que é
parte por excelência da narrativa de Vertigo. Assim, o sujeito enredado pelo
moderno crê que está sempre vagueando, o que é sua auto-percepção de
sua objeticação pelo domínio das coisas e cacofonia da tecnologia, mas
não percebe – no mais das vezes – que cada vez mais que se torna objeto,
mais subjetiviza seu objeto, de modo correlato.
Por isso, na narrativa vertiginosa de obsessão de Vertigo, Scottie é um
sujeito fraco, impotente perante as forças de seu objeto, sem se perceber
disso até quase o m, e sem perceber que sua ruína, a de-subjetivação de
si é a subjetivação de seu objeto. Essa dialética se espelha em Madeleine,
10
Madeleine: “– Não, eu apenas pensei que eu vaguearia.
Scottie “– Oh, era isso que estava indo fazer.
M. “– Oh, sim, está certo. Eu esqueci. Esta é sua ocupação, certo?”
S. “– Sim, bem, não pensa que é um certo desperdício para nós dois…”
M. “– Vaguearmos separadamente?”
S. “– Aham.
M. “– Mas apenas um vagueia. Juntos, dois estão sempre indo a algum lugar.
VERTIGO, 2006, cap. 14. grifo nosso.
11
Ver aforisma mencionado na introdução.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 293
que abdicará de sua condição de objeto, para então, como sujeito, de-
subjeticar-se novamente. Logo, não se trata de uma mera misoginia
cinquentista, mas de uma descrição estética do movimento do sujeito e
do objeto para além desse pathos cultural. Esse movimento, característico
do moderno, torna-se fundamental para o funcionamento do olhar
no cinema como um todo, como modo renovado de estruturação das
narrativas cujo papel, em grande medida, trespassa efetivamente a mera
realidade do cotidiano.
Ao “vaguearem juntos” Scottie e Madeleine se encontram numa
oresta de sequoias, onde Madeleine apresenta mais um surto “sobrenatural”
ao perceber a longevidade das grandes árvores frente a insignicância da
duração temporal da vida humana. Scottie insiste em que ela lhe conte
o que se passa, e após parecer temporariamente possuída pelo espírito
de Carlotta, perde-se do detetive. Segundo a narrativa, Carlotta Valdez
teria sido jovem amante de um homem poderoso da região, ao m do
século anterior, teria então sido despossuída, sua lha tomada, e assim teria
enlouquecido e se matado, e o espírito de Carlotta faria o mesmo à sua
ascendente na mesma idade com que ela se matara. Ao reencontrarem-se
em uma região de pedras beirando o mar, Scottie promete estar sempre
para protegê-la, como na ocasião da “queda” na baía. Receando estar
enlouquecida após o transe, e narrando a visão de sua cova e um vilarejo na
Espanha, beijam-se apaixonadamente.
Depois de um tempo, Madeleine retorna à casa de Scottie alarmada
com o retorno do “sonho” - da visão que tivera em transe – ao narrar o
vilarejo espanhol” com mais detalhes, Scottie se convence que se trata de
um vilarejo colonial espanhol ao sul de São Francisco, que provavelmente
estava na memória de Madeleine após tê-lo visitado em algum momento
especíco do qual não se lembrava. A teoria de Scottie era, encontrada a
fonte, ele poderia reverter os “sonhos” e transes de Madeleine. Decidem,
então, “retornar” ao vilarejo – que havia sido preservado historicamente
para parecer o mesmo que no tempo de Carlotta – Madeleine entra em
transe novamente, e Scottie promete nunca mais deixá-la, apaixonado
e obcecado pela gura de Madeleine. Ambos declaram seu amor, mas
Madeleine insiste que “está tarde demais”. Após ela insistir que “há algo
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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que eu deva fazer”, Scottie insiste que não há nada que ela deva fazer”. Ela
corre e se aproxima da igreja, despede-se com um beijo e os dizeres: não
deveria acontecer deste modo (…) Você acredita que eu te amo? (…) Então
se você me perder saiba que eu o amo e queria continuar amando-o. Com
isso, corre ao alto da torre da igreja. Scottie a persegue, mas sua acrofobia
o faz entrar em vertigem, impedindo-o de atingir o topo. Logo, escuta o
grito de Madeleine e têm a visão de seu corpo que caiu. Após isso, deixa
o recinto desesperado.
Assim se encerra a primeira fase da narrativa, com o crescendo da
atração, obsessão e envolvimento entre Scottie e Madeleine. Entre ela e o
climático m, há uma intermissão, que narra a progressiva autopercepção
de Scottie de sua de-subjetivização após o aparente m de seu objeto – o
distanciamento vertiginoso que desfaz a própria espiral. Após certo tempo,
vemos em um tribunal, que admite que Madeline cometeu suicídio num
estado de “perturbação mental”, isenta Gavin Elster de responsabilidade,
recrimina – mas não condena – Scottie por ter sido incapaz de impedi-la
de efetivar o ato e abandonar a cena do fato em estado de choque, segundo
a justiça “uma questão entre ele e sua própria consciência”. Scottie mostra-
se visivelmente abalado perante o júri. Gavin Elster despede-se dele e diz
que vai se mudar para longe e vender todos os seus bens, desculpa-se pelo
ocorrido e reforça que sua crença é na morte de Madeleine por meio do
espírito de Carlotta.
Depois disso encontramos Scottie tendo o que se implica ser uma
série recorrente de pesadelos envolvendo Carlotta e os temas sobrenaturais
em relação ao desenvolvimento de sua obsessão por Madeleine, repetindo,
simetricamente, porém em registro mais grave, o desenvolvimento da
fase inicial do lme de seu desenrolar de sua obsessão por Madeleine.
Deste modo, encontramos poucas referências gurativas (sem diálogo)
além da incrivelmente dissonante trilha sonora, que é acompanhada de
superimposição de cores no quadro, além de imagens de Carlotta ao lado
dele e Gavin, de um túmulo, o rosto de Scottie e animações indicando a
espiral vertiginosa e um buquê de ores se desfazendo. Por m, no clímax
do pesadelo, encontramos quadros em negativo (preto e branco invertidos)
que mostram o corpo do próprio Scottie adentrando a escuridão branca.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 295
Essa inversão do negativo, nesses quadros, mostra muito bem a ligação
não só plástica
12
, mas de sentido, da vertigem como fator siológico do
personagem, bem como ontológico da narrativa, do desespero de encontrar-
se no ponto de origem da espiral vertiginosa e sentir a negatividade do
objeto como a própria negatividade, e do papel da negatividade ontológica
na estruturação da espiral vertiginosa como um “conceito aberto”. É da
negatividade imanente ao início innitamente perdido da narrativa e da
espiral vertiginosa que se deduz o seu desenvolvimento conceitual como
constante passar de si ao outro. Esse passar de si ao outro, essa constante
inversão de polos, é o apelo do negativo – da contradição imanente ao
sentido – a cada um destes – si-mesmo e ser-outro –, como elemento
organizador da vertigem.
Adentramos, agora, o crescendo nal do lme. Sob o qual a intermissão
– para fazer jus ao nome – assemelha-se a uma ironia. Esse crescendo se
apropria da ironia da fase anterior, e a joga como uma luz sobre a totalidade
da obra, sendo que isso é apenas perceptível apenas quando essa totalidade
se efetiva ao m do lme. Scottie deixa o hospital, após aproximadamente
um ano, e inicialmente vaga pelos lugares relativos a história de Carlotta
transposta a sua história com Madeleine. Então, vaga pelas ruas até que
uma mulher chama a sua atenção, e a segue. O olhar-situação do lme já
nos mostrava seu viés, olhar oblíquo em relação às mulheres, nessa fase.
Continua seguindo a mulher que o chamou atenção até o singelo quarto
onde vivia, no Hotel Empire, que possui uma característica luz neon verde
que será explorada pela cinematograa nos momentos seguintes. Quem
atende no quarto é Judy Barton (Kim Novak), uma jovem moça solteira
que trabalha numa loja próxima. O primeiro encontro de Scottie com Judy
e desastrado e acidentado, do alto de sua fraqueza e franqueza pede a Judy
para falar com ela, conhecê-la. Explica que não está vendendo nada nem
fazendo pesquisas porta a porta. Judy, inicialmente, resiste. Porém, com a
insistência de Scottie e após ela “advinhar” sua história de ter conhecido
alguém que se parecia com ela e o havia deixado, ela vai progressivamente
aceitando o inquérito de Scottie. A frase porque você me lembra de alguém
12
Uma relação plástica é onde o meio se deforma sem retorno; numa relação elástica há sempre o retorno ao
mesmo.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
296 |
se torna um dos motivos condutores, assim como a trilha sonora, desta fase
da obra, comparável ao “vaguear” da fase inicial. Assim como este último
é complementado pela fala de Madeleine: apenas um vagueia; juntos, dois
estão sempre indo a algum lugar; o primeiro tem como resposta de Judy
(na cena seguinte) “Isso não é muito lisonjeiro, repetindo a primeira fase da
obra de forma trágico-irônica. Ao m, Scottie a convida para jantar, e Judy,
acaba aceitando na medida que suas intenções contenham apenas isso.
Outra frase de Scottie, que como senha o permitiu adentrar o apartamento
dela: porque eu gostaria de saber mais sobre você.
Se poderíamos entender o estranho comportamento de Scottie
a partir do trauma da primeira fase e da intermissão, o motivo do
comportamento de Judy nos é esclarecido assim que Scottie deixa, ansioso,
seu apartamento para buscar o carro e levá-la para jantar. Vemos Judy
planejando fazer as malas e deixar a cidade, após uma súbita lembrança, e
começa a escrever um bilhete. Nele, junto com a memória, ela narra que
assumira o papel da esposa de Gavin ao mando deste, que Scottie havia
sido uma testemunha forjada de um “suicídio” que na verdade fora um
homicídio, que a mulher de Gavin fora a verdadeira assassinada e que havia
sido fácil pois ela vivia reclusa. A história de Carlotta havia sido inventada
baseada parcialmente em fatos. Vemos, também, que no episódio da torre,
que completa a primeira fase, Gavin joga a sua própria mulher no lugar da
falsa Madeleine. Há um grande erro nessa história, que é como ela termina
a carta, falando inicialmente sobre Gavin:
“– He planned it so well. He made no mistakes.
“– I made the mistake. I fell in love.
“– at wasnt part of the plan.
“– I’m still in love with you, and I want you so to love me.
“– If I had the nerve, I’d stay and lie, hoping that I could make you
love me again as I am for myself.
13
13
[Judy]: “– Ele planejou isto tão bem. Ele não cometeu erros.
“– Eu cometi o erro. Eu me apaixonei.
“– Isto não era parte do plano.
“– Eu ainda estou apaixonada por você, e eu quero tanto que você me ame.
“– Se eu tivesse a coragem, eu caria e mentiria, esperando que eu pudesse fazer você me amar novamente como
eu sou por mim mesma.” Ibid., cap. 26.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 297
O erro de Judy é um pequeno sinal dessa tragédia, o plano seria
perfeito”, Gavin não cometeu erros pois agiu diretamente – e assim
egoisticamente – em relação aos impulsos de sua vida. Seu plano é a sua
luta para manter as condições de suprimento de seus impulsos, logo,
agiu apenas conforme a eles, sua necessidade material e tudo o mais que
não sabemos em que sua mulher poderia atrapalhar. Para lembrarmos
negativamente da fórmula engessada de Kant do imperativo categórico, ele
tomou tudo como um meio, inclusive outros agentes morais como Judy,
Scottie e mesmo sua esposa, a verdadeira Madeleine. Porém, não camos
presos a esta tendência formalista de Kant ao observar a moral – “Tratar o
homem como um m e não como um meio.
O erro de Judy, porém, é o que liberta sua ação da esfera egoísta do
suprimento dos impulsos de sua vida, e põe sua vida, como totalidade, mas
seguindo a coloração especíca da Forma reguladora do amor erótico, em
razão de algo que está contido além da imanência de sua individualidade,
que a transcende. Logo, se antes o problema era suprir suas necessidades
e impulsos de vida de uma jovem mulher trabalhadora com o retorno
nanceiro do plano de Elster, o plano de Judy teve um “erro”, que o tirou
da direção da autograticação egoísta para um desejo de transcender e
tocar um Ideia que está muito além de si, o outro. Mas, assim, com tudo
o que dissemos em relação à vertigem, e da de-subjetivação de si perante o
outro, ca fácil entender como essa mesma fuga do egoísmo – de pretensa
liberdade-para-o-outro –, mediada pela Forma do amor erótico, leva a vida
a uma tragédia. Pois essencialmente a tragédia consiste na autodestruição
(no caso, na autoalienação) a partir do próprio sentido positivo do
desenvolvimento vital. É justamente por seu desejo de ser livre, de que
sua vida em totalidade supra uma necessidade que está contida além dela,
que ela se perde em relação a si mesmo. Assim, sua vida, mesmo livre,
não deixa de ter um destino – trágico – no momento que esta liberdade é,
enquanto transcendência – anada em relação à idealidade que a liberta.
Observamos, então, uma dialética trágica que opera duplamente na obra,
parte da de-subjetivação do olhar de Scottie como um sujeito enquanto
construção de Madeleine como um Objeto-sujeito. Então, na segunda fase,
é Scottie o Objeto ativo (enquanto sujeito de-subjetivado, fraco, negativo)
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
298 |
que, mediante a Imagem
14
do Objeto-sujeito perdido de Madeleine, de-
subjetiviza Judy como subjeito. O importante é notar que é sempre o
polo negativo do objeto que atraí o sujeito em sua positividade trágica.
A força ativa reside no negativo do objeto, já que o sujeito, certamente
positivo, põe sua positividade em favor de uma expressão trágica de si. O
apelo do negativo, enquanto tensão do objeto, aparece nos interstícios do
sujeito positivo e trágico, e está aí uma relação indissociável entre tragédia,
vertigem e o apelo do negativo.
Judy segue então em sua condição erótica de liberdade, com o novo
plano, a coragem, de se fazer novamente para Scottie, agora como quem ela
é e nalmente poder viver seu amor em sua vida. Logo, procede a aceitar a
frágil investida de Scottie e procedem a jantar e então sair no dia seguinte e
então. Vemos Scottie novamente capturado por Madeleine, por sua imagem
parcial, e em sua obsessão vemos logo a tentativa de Scottie de “recriar
Madeleine. Nessa etapa, em que a tensão da obra se agudiza ao máximo,
vemos uma polêmica “força” de Scottie, em sua obsessão pela imagem de
Madeleine, forçando e “errando
15
o plano de Judy de fazê-la amá-la como
ela é, uma garota simples do interior do Kansas e muito distante do modo
renado com a qual Madeleine se apresentava a Scottie. Além da absoluta
performance de Kim Novak como duas mulheres distintamente diferentes,
que faz com que nós literalmente vemos duas vezes a mulher
16
, temos a direção
de Hitchcock em canalizar a expressão da atriz – que não era tida como
muito artística e apenas sensual em Hollywood. Assim como a diferença
de idade, dentre outras peculiaridades, a forma com que Scottie insiste e
força Judy a se transformar em Madeleine, se torna muito mais polêmica
se considerarmos a expressão hodierna das relações de gênero. Judy não só
acaba se submetendo após reiterar que não quer usar tais roupas ou adereços,
mas a vemos chorando, ao perceber que seu plano tragicamente a levaria
14
Essa imagem parcial de Scottie retém de Madeleine está associada intrinsecamente com a origem da imagem
cinematográca que pertence à obra, como lme. É como se essa dialética trágica funcionasse enquanto
referência ao caráter de lme do lme em que ela nos é apresentada. E também, essa dialética parece funcionar
perfeitamente apenas enquanto mostração cinematográca.
15
Também denota o caráter “errante”, “vagueante” dessa força de Scottie, sua marca de nascença na sua máxima
fraqueza em relação à imagem parcial e perdida de Madeleine.
16
Referência ao belíssimo título do lme em italiano: “La donna que visse due volte; “A mulher que foi vista
duas vezes”.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 299
a se tornar Madeleine de novo, entre dois fracassos, o último, ou o de ir
embora e deixar Scottie. Ao perceber que nada seria suciente enquanto
Judy, nem mesmo as roupas, mas teria que se transformar completamente
em Madeleine, capitula (começando com Scottie):
“– Judy, please, it cant matter to you.
“– If… If I let you change me, will that do it”?
“– If I do what you tell me, will you love me?”
“– Yes.
“– All right, then, I’ll do it. I dont care anymore about me.
17
“Eu não me importo mais comigo. É muito claro que tal apresentação,
ainda que numa dimensão estética, geraria uma grande crítica do ponto
de vista de nossa cultura de gênero. Já mencionamos nossa resposta a tal
indagação possível, que nosso esforço é de trazer a narrativa de um âmbito
de apreciação cultural para um ontológico. Não cabe a nós medir o teor
de misoginia do que nos é apresentado, mas calibrar a percepção para os
fenômenos que se escondem por detrás dessa misoginia, ou mesmo, os
fenômenos os quais a misoginia é apenas uma coloração acrescida e não seu
fundamento. Então, como dissemos, nesse ponto observamos agudamente
a de-subjetivação trágica de Judy. De um lado, sua vida é canalizada para
algo totalmente além dela, mas que dialeticamente deixa de ser sua diferença
com Scottie (sendo o amor uma forma de viver a diferença com o outro),
e passa a ser a sua identidade alienante com Madeleine. De outro lado, é
seu esforço de dar-se, de libertar-se do seu egoísmo que, positivamente,
a aprisiona no objeto negativo “utuante” em sua diferença com Scottie,
Madeleine. Do lado de Scottie, em toda a força que demonstra para
convencer Judy, está a fraqueza, o signo de sua perda original de Madeleine
quando, assim como Judy, colocou sua vida como totalidade em favor de
Madeleine, que agora o aprisiona como seu objeto.
E chega o nal: Judy se transforma em Madeleine, aos auspícios
de Scottie, tornando-se o simulacro do simulacro que era a primeira
17
[Scottie]: “– Judy, por favor, não pode importar para você.
[Judy] “– Se… Se eu deixá-lo mudar-me, você vai me amar?”
[Scottie]: “– Sim.
[Judy] “– Tudo bem, então, eu o farei. Eu não me importo mais comigo” (Ibidem., cap. 29).
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
300 |
Madeleine falsa. Quando ela sai do banheiro após ter arrumado o
cabelo (mudar o modo de prender o cabelo seria o derradeiro modo
de resistência) temos uma montagem cinematográca incrível. Vemos,
pelos olhos de Scottie a nova Madeleine, idêntica a anterior, banhada
de forma fantasmagórica e antinatural pela luz esverdeada do neon do
hotel, que deveria estar distante, mas está próxima na montagem da cena.
Ao se abraçarem e beijarem novamente sob a luz verde neon e o furor
da trilha sonora orquestral, o próprio quarto de hotel se transmuta, por
um instante, no vilarejo colonial onde de fato Scottie viu Madeleine
pela última vez. Essa transmutação onírica e fantasmagórica da cena,
brilhantemente conduzida pelo diretor como referência íntima àquela
cena anterior, vale-se e demonstra, do recurso intrínseco da montagem
no cinema com o trunfo da direção do olhar, ou melhor, da capacidade do
cinema de interferir no olhar dotador de sentido do espectador e mudar
a trajetória desse sentido para alguma remissão inesperada. Isso, somado
a outras características do cinema, como seu recorte plástico e imagético
de sequências causais num todo nito, ordenado e determinado, põe o
cinema, mediante a vida como uma aventura.
Tudo parece estar bem. Após o reencontro dos amantes, Judy
(enquanto totalmente alienada de si – reeditando o papel de Madeleine
sob outro nome) coloca um colar, e Scottie logo percebe que se tratava
do colar de Carlotta. Deste modo, deduz a ligação causal entre Judy e
Madeleine. Ambos saem, e Judy começa a desconar do olhar diabólico de
Scottie e do longo desvio que estão fazendo ao sul de São Francisco, onde
deveriam jantar. Ao questioná-lo, responde a assustadora armação de que
haveria algo que precisava fazer, e então estaria livre do passado.
Chegam ao vilarejo, e Judy se desespera, Scottie força-a sicamente
a adentrar a torre, e, aos gritos de ambos, questiona-a sobre a verdade
do assassinato de Madeleine. A escalada dos andares é difícil, entre a luta
corporal com Judy e a acrofobia de Scottie, mas chegam à “cena do crime”:
o alto da torre. Scottie continua o inquérito, e ao m, declara seu antigo
amor por Madeleine, que “já fora”. Judy declara que voltara apenas em
nome do seu amor por Scottie, que ainda o ama. Mas, não seria suciente.
A frase condutora da cena é da boca de Scottie: “Você não deveria ter
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 301
mantido souveniers de um homicídio. Você não deveria ter sido tão
sentimental.” Judy, termina, então, postada próxima a abertura da torre.
Repentinamente, vemos surgir da escuridão a imagem de uma freira, que
havia escutado vozes. Judy olha para ela, grita, e seu corpo cai da torre.
A díade Errância, então, Liberdade/Finitude é aqui manipulada
pelo olhar do diretor para se tornar nosso olhar. O bom cinema brinca
com esse viés existencial pela imagem. “Apenas dois vão a algum lugar.
(Liberdade e Finitude) E nunca se assiste a um lme sem estar junto a
outro olhar despercebido, se é que se assiste então a um lme. Essa própria
manipulação gera a vertigem, num sentido metafísico e estético. (Errância)
A diAléticA dA imAgem como A didáticA dA trAgicidAde
O título do lme em português, “Um corpo que cai”, remete ao
profundo mistério e ambiguidade dessa nalíssima cena. Pois camos
questionando, e o lme simplesmente termina, porquê Judy caiu, ou
mesmo se ela havia se jogado e o motivo disso. São várias as leituras
possíveis: uma, mais niilista e casual, e que ela apenas teria se assustado e
pateticamente caído; outra, mais simbólica-psicanalítica, que a freira – por
sua ligação com a castidade e religiosidade – simbolizaria o espírito de
culpa de Judy. Não temos como interpretar essas explicações na coloração
especíca de cada uma, já que não é nosso papel, mas aventamos uma
hipótese fundamental. Tal hipótese, se relaciona com o todo de nossa
exposição, com o conceito de vertigem, espiral hermenêutica, apelo do
negativo. Se Judy tem a sua liberdade de agir-para-o-outro frustrada pela
imagem transitória que é o resquício de Madeleine em Scottie, ela sofre
outro fenômeno. Podemos interpretar o lme na progressiva conversão de
duas disposições morais da protagonista (enquanto Madeleine falsa, Judy
e Madeleine-Judy).
Isso deve ser observado de dois lados. Temos a aplicação de duas
disposições morais em três estágios de objeticação. Devemos alertar que
tais “disposições morais” são só restritamente morais, mas em si se reportam
a totalidade de seu conteúdo. Elas são: ser-por-si, buscar a autograticação
dos impulsos de sua vida em relação a um ideal imanente a esta própria
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
302 |
vida – egoísmo; ser-para-o-outro, buscar a resolução de um impulso
que se encerra num ideal totalmente além dos conns da própria vida,
orientar a totalidade da própria vida em relação a um objeto transcendente
– liberdade. Já discutimos que, quando essa liberdade é dirigida a outro
indivíduo enquanto ideal, a vida recai na lógica de autoalienação trágica
18
.
Agora, enquanto objeto inicial (Madeleine falsa) seu ser-por-si para aplicar
o golpe era suciente, mas progressivamente converte-se em sujeito (Judy)
por meio do relacionamento com Scottie. Não na Judy que, com sucesso,
aplicou o golpe, mas na Judy que ama que quer ser amada como ela é. Tendo
em vistas a imagem residual do objeto inicial e a obsessão de Scottie, seu
ser-para-o-outro retorna de forma insuperável para o ser-por-si(-mesmo)
da Judy-Madeleine, o ápice de sua alienação. Ao confrontar-se com Scottie
no m, percebe seu próprio objeto como negativo, como o ponto inicial
da vertigem em que não há, tecnicamente, espiral – não há um descobrir
o outro como transcendente pois não há distância, é imanente – é puro
pathos. Isso ocorre devido a uma força estruturante, o apelo do negativo.
Acontece, que este apelo tem uma coloração sentimental especíca, e esta
é a chave para o mistério do corpo que cai.
Os franceses possuem nomes únicos para acontecimentos psíquicos
– não a se interpretar no sentido psicológico –, sendo um já bastante
conhecido, o déjà vu, a estranha sensação de já haver visto algo antes.
Porém, há um nome menos conhecido, mas igualmente único: L’appel
du vide. Traduzimos e mantemos com estreita correlação ao fenômeno
losóco que apresentamos como “apelo do negativo”, no entanto, ao usar
o nome francês não nos referimos imediatamente ao âmbito ontológico
que o sustenta, mas os seus imediatos efeito e coloração psíquica. L’appel du
vide denota uma sensação, assim como o déjà vu, estranha e intrusiva que
é primariamente ligada à situação de alguém em um lugar alto ao olhar a
profundidade e o abismo. A sensação é: jogar-se. A ideia de um “chamado”,
de um “apelo” do vazio pode parecer macabra, mas não é estranha à
losoa. Nietzsche, com muita propriedade, reportou-a em seu aforisma
146, em Além do Bem e do Mal: “Quem combate monstruosidades deve
18
Ou seja, não queremos dizer que toda a ação livre do egoísmo é trágica. Apenas que a ação livre que toma o
outro indivíduo como ideal transcendente é trágica, justamente pelo outro, enquanto indivíduo, não cumprir as
exigências de um Ideal puro. A arte, o conhecimento, a religiosidade, são exemplos dessas formas ideais puras.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 303
cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para
um abismo, o abismo também olha para dentro de você.” (NIETZSCHE,
1992, p. 79, grifo nosso).
Aqui, encontramos um reexo do L’appel du vide e uma chave para
sua interpretação losóca. Pois, a sensação do L’appel du vide é uma
sensação que advém repentinamente, como que do Nada – mas não é isso
que caracteriza sua negatividade – e rompe intrusivamente com toda a
cotidianidade estabelecida. L’appel du vide pode ser usado para descrever
outras sensações do mesmo gênero, ligadas às experiências psiquiátricas.
Mas, como isso tudo se encaixa?
Voltando à Judy, não nos parece estranho que a causa psíquica de
sua “queda” seja o appel du vide, que rompa com aquela situação em que
estava inserida com Scottie na torre, tendo como âmbito ontológico a
tradução do appel du vide em apelo do negativo, na insuportável situação
sem-sentido de encontrar-se entre o não-eu e o não-outro. Mostrando uma
relação entre dois termos, aquele appel du vide também é um déjà vu, de
duas maneiras. Entre a “queda” proposital de Madeleine na Baía de São
Francisco e a sua derradeira – e verdadeira – queda, e o seu grito quando
Gavin joga a esposa (que teria a intenção de pará-lo pois estava apaixonada
por Scottie), e o seu grito quando caí na última vez. Todas estas imagens
são sobrepostas no último momento. Não é a toa, já mencionamos, que
o título do lme em italiano se traduz: A mulher que foi vista duas vezes.
A reexão de Nietzsche nos dá uma última pista para compreender o
comportamento de Judy. Temos que ter em mente o que foi dito sobre seus
estágios de objeticação e disposição moral. Inicialmente, poderíamos dizer
que Judy pulava” para viver, como no episódio da baía de São Francisco,
agia e aplicava o golpe para satisfazer suas necessidades imanentes e egoístas.
Depois, ao ter Scottie como seu Ideal, vivia para pular, ou seja, o seu appel
du vide, como apelo negativo, apresenta sua maior armação da vida e de
sua vontade, que, paradoxalmente, a destrói. Judy é a heroína trágica da
narrativa, não Scottie. Quando Nietzsche nos alerta em seu aforisma, ele
nos alerta sobre o domínio da forma metafísica, ideal e transcendente que
tomamos para nós, como nossa Verdade Absoluta e imanente. Justamente,
o domínio desse ideal pode nos possuir como o espírito de Carlotta, e
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levar-nos a autodestruição ou autoalienação trágicas de nossa vontade,
mesmo que nossa intenção possa ser “antagonizar” tais ideais. Ou seja,
essa tentativa de liberdade apresentada requer – como saídas –, ou uma
aceitação da tragicidade imanente à vida, ou um refúgio idealista e ascético
nas formas ideias supra-individuais, ou mesmo à negação da tragicidade
da vida e vontade e aceitação do real como eterno retorno do mesmo (contra
o ciclo próprio da tragédia). Nietzsche, obviamente, não distingue essa
relação com o “outro”, explicitado de modo geral na nossa dialética da
vertigem, apenas como o “outro indivíduo”, mas mira também as formas
ideiais do conhecimento cientíco, religiosidade, moral, e quiçá a arte,
se anada com estes outros. Das soluções apresentadas anteriormente, a
solução do autor do aforisma que interpretamos – Simmel – é a aceitação
da tragicidade do âmbito vital, por uma modulação implícita do idealismo
ascético, o que, claramente, choca-se com o pensamento de Nietzsche.
Mantemos assim, ambas as soluções em aberto. O importante é que
Nietzsche, muito antes, diagnosticara e havia dado sua solução à questão.
Munidos de ambas interpretações e diagnóstico, percebemos
melhor o m de Judy, o momento trágico em que sua vontade é jogada
violentamente contra ela mesma, encerrando sua própria vida na
sobreposição de situações (déjà vu), é quando ela sucumbe – ou aceita
– sua autoalienação máxima, mediante o domínio conversivo do outro,
seu ideal transcendente. A tensão ontológica dessa conversão, do ideal do
outro à imanência de si, é o apelo do negativo e sua coloração especíca na
psique é o appel du vide. O momento em que ela deixa absolutamente de
pular para viver”, e sua vida, em sua totalidade, se concentra num ponto:
vive para pular. E foi um pequeno erro, imanente a sua vontade, que a fez
ser livre, e ser livre é ter um destino:
– I made the mistake. I fell in love.
“– at wasnt part of the plan.
(Itálico nosso)
Se seguirmos a interpretação simmeliana dessa metafísica, percebemos
que neste ponto a interpretação de Nietzsche utilizadanos serve mais como
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 305
de uma forma radical do pensamento de Schopenhauer, e não ainda de
uma ruptura como preconizado no Nietzsche tardio.
Schopenhauer tira as consequências, pelo menos ao formular o
problema moral: o homem plenamente moral não diferencia ele
mesmo e os demais; em teoria ou, pelo menos na prática, reconhece
a profunda unidade metafísica entre tudo que existe. Diante dessa
unidade, a particularização individual é uma aparência enganosa
que decorre de concepções subjetivas. Aquela unidade absoluta que
está na raiz de nosso Ser não é o fundamento da inexistência de
diferenças, mas o reexo dessa inexistência; falta um m denitivo
a que tais diferenças pudessem se referir. (SIMMEL, 2016, p. 21).
Em O conceito e a tragédia da cultura, Simmel não se demora em uma
exposição do conceito de tragédia, limitando-se a uma explicação formal e
apenas funcional. Dentre os aforismas de Simmel, podemos destacar alguns
que tratam diretamente da tragédia em sua essência, e também, em sua
visão, dois de seus momentos mais típicos
19
: a tragédia grega (ou antiga) e
a tragédia elisabetana, que encontra seu ápice em Shakespeare. A tragédia
contemporânea aparece como uma extensão do que fora prenunciado por
Shakespeare, mas isso só é inteligível – em Simmel – se compreendermos
a tragédia mediante seu âmbito próprio de interpretação, que é a relação
íntima que o trágico mantém com a vida. Embora não tenhamos como
detalhar todos os aspectos de sua losoa da vida, ela ca apresentada
nos dois pontos de nosso aforisma inicial: a relação autoalienante sujeito-
objeto (da objeticação do sujeito e de-subjetivação do objeto) desenrolada
mediante a relação entre o eterno e o temporal (a eterna signicância
do temporal), em que, apenas o temporal pode ser eterno – entendido
enquanto transcendente.
Em O conceito e a tragédia da cultura, o trágico:
[…] em contraposição ao triste ou ao que destrói a partir de fora –
entendemos o seguinte: que as forças aniquiladoras dirigidas contra
uma essência brotam das camadas mais profundas desta mesma
essência; que com sua destruição já se consuma um destino que
estava instalado nela mesma e que o desenvolvimento lógico constitui
19
No sentido de tipo ideal.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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justamente a estrutura com a qual a essência construiu sua própria
positividade. (SIMMEL, 1998, p. 103-104, grifo nosso, – Do
Ensaio: “O conceito e a tragédia da cultura).
Isso signica que uma vida se constitui trágica, não de acordo
com o uso vulgar de trágico por ter seu destino acentuadamente triste,
mas pela sua destruição ser o desenvolvimento positivo dessa própria
vida. A vertigem encontra a sua tragédia prenunciada no seu início
paradoxal como não-eu e não-outro, na destruição do ciclo mediante a
distância alienante, que é de certa forma o retorno e a impossibilidade
de permanência no início mencionado. O destino trágico é a negação
radical algo que só pode surgir da sua própria armação. Nesse sentido, a
morte é trágica não no sentido ser triste enquanto negação de uma vida,
mas por ser uma possibilidade intrínseca e inevitável do desenvolvimento
do homem em sua positividade. É importante frisar que nos referimos à
morte como um evento comum à condição humana e não a uma morte
especíca considerada factualmente, que pode ou não ser trágica – porém,
e justamente por isso, a tragédia enquanto narrativa sintetiza a condição
humana em sua forma e conteúdo, para além da distração do cotidiano.
Isso já nos leva a uma reexão importante. A determinação fundamental
da vida de Simmel – o fato da vida (entendida para além do biológico)
conter o seu futuro, transcendendo-se a cada vez em direção a ele – é uma
condição de possibilidade de sua interpretação da tragédia na medida em
que esta requer que, para que algo seja tragédia, seu destino enquanto
negação seja contido no seu desenvolvimento positivo e a determinação
fundamental da vida coloca em possibilidade esta de conter o seu destino.
O puramente objetivo que está-no-presente não pode ser trágico. Isso se
reporta à distensão, à eterna signicância do temporal, já que o temporal,
em sua temporalidade dialética, se distende até o eterno. O que é diferente
do estático, em que abdica do vivo. No entanto, e é necessário para uma
compreensão da tragédia, a vida se manifesta na forma relativamente estável
do indivíduo, e essa tensão, de estar individualmente e viver temporalmente,
é o caso manifesto da tragédia humana. Logo, a tragédia como gênero não
é uma construção articial, mas catalisa em forma e conteúdo essa tensão
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 307
imanente, já que, no mais das vezes, o cotidiano esvazia esse conteúdo.
O cinema, enquanto arte e cultura, o resgata. A dialética da vertigem,
consequentemente, se situa além na análise lógica formal.
A tragédia se apresenta no fato, muito simples, de que existem
indivíduos. Em suma, o primeiro ato do drama da cultura
espiritual teve lugar no dia em que a corrente contínua da se xou
em individualidades fechadas e perecedoras; o que resulta como
paradoxal e verdadeiramente trágico é que a vida, uxo ininterrupto
e perpetuamente móvel, não pode existir e de fato apenas é contínua
sob a forma de um eu limitado no espaço, nito no tempo,
unicado em torno de um centro imutável que é como o núcleo
de uma personalidade. O indivíduo é, portanto, uma parcela da tela
da vida isolado no enclave intemporal e rígido de uma forma; e se a
individualidade é sempre vivente, a vida é sempre individual: essa é
a fatalidade da natureza humana. A aparente incompatibilidade dos
dois princípios, em cujo acercamento reside o trágico da existência,
resolve-se em uma síntese irredutível e simples que cada um de nós
pode experimentar no fundo de si mesmo, e que escapa a análise
abstrata do perito em lógica (JANKÉLÉVITCH, 2007, p. 83,
tradução nossa).
três AforismAs
O aforisma 146 do diário de Simmel reforça esta conexão da vida
com o trágico: “O desejo apaixonado pela vida pode em si mesmo levar à
autodestruição. Pois vem da fundação última de toda existência e leva de
volta a ela, sendo que a negação da forma individual reside de fato muito
próxima a ele.” (SIMMEL 2010, p. 183, tradução nossa, – Aforisma 146)
A vida não só oferece a condição de possibilidade para a tragédia ao poder
conter seu futuro, mas a mera armação radical e positiva da vida pode
levar à autodestruição. Esta forma de autodestruição revela a forma trágica
da armação da própria vida.
O próximo aforisma apresenta a tragédia de maneira similar ao
encontrado em O conceito e a tragédia da cultura, mas reforçando sua
dualidade de ser um destino que se torna pela necessidade daquele que o
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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engendra e, ao mesmo tempo, o destino que nega a própria possibilidade
de seu engendrar:
A essência do trágico pode talvez ser descrita assim: que um destino
é mirado destrutivamente contra a vontade vital, natureza, sentido
e valor de um ser particular – e que ao mesmo tempo este destino
é percebido como procedente da profundidade e necessidade
deste mesmo ser. (…) A quantidade de tensão necessária pelo que
destrói uma vida reside em um elemento de maior profundidade
desta mesma vida – esta é a medida do trágico. Isso é muito
evidente nas tragédias de Shakespeare. Na tragédia antiga, ao invés
da necessidade pessoal formar a base do processo de destruição
é a necessidade do destino – correspondendo ao modo antigo
de pensar, que geralmente não entendia a denição individual
como base metafísica para a vida da pessoa. (…) Na tragédia, uma
grande harmonia existe entre o positivo na pessoa e o que destrói
o positivo (…) (SIMMEL, 2010, p. 183, tradução e itálico nossos
Aforisma 147).
Aqui Simmel vai pensar a tragédia tendo como tipo as duas
tradições supracitadas. Adiciona como elementos gerais entre elas que a
potencialidade destrutiva necessária é uma função da própria vida, um
claro desdobramento do conceito de tragédia; e que existe uma “grande
harmonia” entre a potencialidade do destruído e do destruidor. Essa “grande
harmonia” ecoa na consideração de uma “tragédia da cultura” pois esta não
é menos que a tragédia da síntese, uma busca instável de harmonia entre
o sujeito e o espírito objetivado e sua própria destruição pressupõe uma
harmonia entre sua positividade e a positividade destrutiva. Precisamos de
mais uma consideração, a origem do trágico na vertigem é justamente o
desenvolvimento espiral de seu começo, estar perdido entre o não-sujeito
e não-objeto é a marca do seu desenvolvimento destinal em espiral, e seu
m é meramente o retorno da espiral num ponto impossível – a distância
impossível nal resgata a proximidade impossível inicial.
A distinção clara marcada entre as duas tradições de tragédia é
que, enquanto nas tragédias de Shakespeare a necessidade da destruição
é pessoal, nas tragédias antigas um “destino” se colocava além da própria
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 309
pessoa. A partir do moderno o destino coincide com a liberdade. Se
formos transpor isto para a tragédia da cultura a pergunta resultante é:
a potencialidade destrutiva da tragédia da cultura surge de seus elementos
internos, “pessoais”, ou sua necessidade metafísica tem como base um destino
abrangente? Dissemos isso pois, tomamos o cinema como cultura, embora
como arte seja um ideal absoluto, cada uma de suas manifestações são
individuais, temporais e autônomas.
O último aforisma que nos interessa repete a estrutura da tragédia,
mas aponta a relação desta com a consciência: mediada pela culpa. O mais
interessante visto aqui é que vemos que não só a cultura individual se abre
como não conclusão, mas como – numa reviravolta – a própria tragédia
se mostra como não conclusão ideal – emancipando-se de seu princípio
relativo ao conceito central de vida. A relação da tragédia com a culpa nos
informa que não só a cultura
20
é trágica, nem mesmo apenas a vida, mas a
tragicidade se emancipa delas
Simmel considera:
A essência da tragédia é que a vontade mais profunda de uma pessoa
é negada e que tal negação é no sentido mais profundo desejada.
Que o herói trágico tão geralmente termine com o suicídio é uma
percepção supercial desta constelação, mas ainda um símbolo do
que compreende a tragédia em geral. O conceito de culpa que se
tende a identicar a essência da tragédia é apenas uma obsoleta
e atenuada expressão desse estado de coisas (…) A culpa aparece
como a ponte sobre a qual a vontade encontra o fato que esta
vontade destrói sua própria base – onde a vontade encontra a si
mesma como vontade oposta. Com a culpa o paradoxo do trágico é
transposto na consciência para a pessoa, mas seu caráter paradoxal
é assim reconhecido. (SIMMEL, 2010, p. 184, tradução nossa –
Aforisma 149).
Temos aqui muitos elementos para pensar o caso de Vertigo. Como
dissemos, não podemos colocar na essência da tragédia de Judy a culpa ou
o suicídio, para a essência da tragédia, isso não importa. O que importa
20
Como subproduto da vida.
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Gabriel Debatin (Org.)
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é o seu desenvolvimento vertiginoso que enreda o trágico, que leva a sua
máxima vontade corresponder a sua máxima negação. Tanto o suicídio,
quanto a culpa, aparecem como mediações do trágico, símbolos que
transportam e fazem esclarecer o trágico na consciência a partir dos seus
momentos concretos. Mas, se o trágico em si se reporta a esta concretude da
vida, e não à vida diretamente, é porque – embora gestado pelo princípio
metafísico-formal da vida – ele se emancipou deste e adquiriu a liberdade de
se mover entre os conteúdos desta vida. Por raras vezes sentimos – embora
a identicamos unicamente – a essência do trágico por meio da metafísica,
mas sim na concretude dos nossos conteúdos individuais, mediados por
símbolos como a culpa e o suicídio. E muitas vezes confundimos estes
últimos com a essência do trágico, por terem sido eles os mensageiros do
paradoxo em nós. Isto só reforça o caráter mediador deles e também um
outro fenômeno: a emancipação do trágico como algo elevado além da
própria vida.
Simmel demonstrou a dialética trágica segundo a qual a vida só
pode ser apreendida na forma em que não é mais apreendida como
vida. Nessas demonstrações, ele usa exemplos extraídos de situações
concretas da vida, na qual o fator do conceito é substituído por
outros fatores, tanto os necessários quanto os contrários à vida. É
nessa dialética trágica que se baseia o ensaio de 1912 “O conceito
e a tragédia da cultura” (…) Esse conceito vital de individualidade
retoma em outra frase de seu diário, que tem por objeto a
tragicidade do amor: “O amor só é despertado na individualidade
e se despedaça na insuperabilidade da individualidade.” (…)
Aqui, o conceito central da losoa de Simmel já foi abandonado,
e o trágico foi elevado acima da idéia fundamental que acaba
retomando, na era pós-idealista, a reivindicação de totalidade do
pensamento sistemático sobrepujado, contra o qual aquela idéia
inicialmente se insurgiu (SZONDI, 2004, p. 70-71).
A relação profunda do Cinema com o trágico é o apelo do negativo,
do ponto de vista literal, vê-se o negativo da realidade. O seu conteúdo
cultural se coalesce necessariamente nessa forma ontológica. Do ponto
de vista da nitude, é uma in-nitude imagética – que se repete. Isso
torna nosso olhar enviesado cotidiano em vertigem, como todo fruto da
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 311
metafísica moderna. Porém, a astúcia da repetição da vertigem, nos apenas
aponta além da própria metafísica.
considerAções finAis – o olhAr enviesAdo em susPensão como
fidelidAde e grAtidão Ao re-velAr-se do seer
21
A palavra viés foi santicada – ou demonizada – como uma das
palavras-guia de nossa era. Tal palavra, tendo liberto o seu sentido, aparece-
nos como uma chave para concluir o pensamento sobre Vertigo, o cinema,
e sua relação com o trágico – e ao nosso próprio texto como interpretação,
segundo a espiral hermenêutica. De acordo com o mapeamento do
jornalista Sérgio Rodrigues
22
:
O português conhece desde meados do século 16 o verbo enviesar,
cujo particípio é “enviesado”). Quando devia tudo ao francês
“biais” e nada ao inglês “bias”, nosso viés era menos atarefado.
Até aproximadamente 20 anos atrás, pouco tinha se afastado do
sentido de origem: o de indicar uma trajetória oblíqua, indireta,
diagonal. Quando se olhava enviesado para alguém, olhava-se de
esguelha, de soslaio – como fazia Capitu, com seus “olhos de cigana
oblíqua e dissimulada”, nas palavras de José Dias abraçadas pelo
enviesadíssimo Bentinho. O olhar enviesado sempre teve o poder de
introduzir entre duas pessoas uma instabilidade, uma desconança,
uma irritação – até um perigo. Mas o sentido mais básico do adjetivo
não continha juízo de valor: era de orientação espacial. No romance
“O Senhor Embaixador”, Érico Veríssimo faz o personagem olhar
enviesado para um catálogo. (RODRIGUES, 2019, grifo nosso).
Assim como a metáfora espacial da “espiral”, o “viés” se apresenta
como outra metáfora espacial rica de signicado. Pois o cinema tem na
espacialidade de sua imageticidade parte de sua essência, completando o
21
Utilizamos o termo Seer, em itálico, para distinguir do ser/Ser; como alusão do pensamento vindouro pós-
metafísico. Uma Dádiva que não é existir, nem ser – nem as diferenças entre ambos.
22
O mero uso de um diário de notícias, e coluna de opinião pode soar até macabro. Nossa justicativa é ainda
estarmos num campo hermenêutico e era da metafísica. De um lado, diz Heidegger: “Todo questionamento
metafísico põe o questionador em questão”. De outro lado da justicativa, diz Scheleiermacher: “Como todo
discurso tem uma dupla relação, com a totalidade da linguagem e com o pensar geral de seu autor: assim também
toda compreensão consiste em dois momentos; compreender o discurso enquanto extraído da linguagem e
compreendê-lo enquanto fato naquele que pensa” (SCHELEIERMACHER, 1998, p. 8).
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Gabriel Debatin (Org.)
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que dissemos, o olhar enviesado do cinema sempre teve o poder de introduzir
uma instabilidade, uma desconança, uma irritação – até um perigo. O
cinema nos controla pois ele controla nosso olhar – e quanto melhor
cinema é (mais próximo de sua essência) mais tem esse poder. Porém, essa
“interferência” pela qual o cinema controla nosso olhar – obviamente –
não é meramente espacial, mas é uma interferência hermenêutica. Vertigo
pode muito bem ser considerado lme arquetípico do cinema – e não
nos importa se há realmente lmes melhores, deve-se ter – pois traduz e
funde o viés cinematográco, esta irritabilidade e insatisfação (e até mesmo
perigo iminente) no seu conteúdo próprio. É como se ele rezesse a ponte
metafísica entre a tragédia dialética da vida e a tragicidade em si que –
gestada pela primeira – que nos abala em sua concretude.
Isso tem a ver com outro sentido da palavra viés, potencialmente
escondido no anterior, não o viés plástico do cinema em si, mas o viés trágico
que a vida faz sentir na concretude mediada pela forma emancipada do
trágico. É o viés da dialética da vertigem. Viés do sujeito em vertigem, viés
da busca temporal e eternizada do objeto que passa pela autoalienação.
Por m, enquanto interpretação, que é a nossa atividade, é o viés
hermenêutico – agora se aproximando do sentido anglófono, de viés de
conrmação de uma verdade ou fato. É óbvio que essa modalidade de
viés também necessita ser emancipada do seu uso vulgarizado como, por
exemplo, em “viés ideológico”. Pois, o viés hermenêutico, antes de ser
um viés de conrmação em que a idealidade de uma posição ou ponto
de vista interfere na facticidade absoluta do real, indica esse ponto de
vista ele mesmo, indica a própria situação-olhar tal qual ela é. A situação
hermenêutica, logo, necessita de um viés, ou recairia numa compreensão
absoluta sem compreendor – ou um compreendor igualmente absoluto.
O famoso “círculo hermenêutico” – para usar outra rica metáfora espacial
– infelizmente padece da mesma fragilidade espacial do círculo: sua
linearidade. Tal linearidade recusa parte importante da negatividade trágica
do entendimento. Robert Belton faz uma sugestão interessante:
O círculo hermenêutico falha ao lidar com o efeito transformador
de informações novas ou corrigidas, as quais podem vir de fora do
texto tão facilmente como de dentro dele. Quando um intérprete
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 313
vê um detalhe que havia escapado de sua percepção antes, ele é
apresentado com uma oportunidade de ver o sentido do todo em
outra luz. Quando ele aprende que um artista é um membro de um
grupo social ou gênero diferentes, ele pode ser inspirado a mudar a
sua opinião sobre o quê uma obra quer dizer. Ele não termina onde
começou, assim, a metáfora inadequada de um círculo é substituída
pela da espiral, que engloba a acumulação e consideração de gatilhos
não-antecipados à novas associações. (BELTON, 2017, p. 18).
O viés hermenêutico aqui aparece justamente como esse efeito
transformador das informações, que desestabiliza o círculo. Fica clara
nossa opção em escolher uma espiral hermenêutica e também diferenciá-
la da vertigem. De fato, considerando a totalidade da própria coisa,
ambas são a mesma coisa, mas cada uma se reporta a um âmbito distinto
do real. Vertigo, enquanto apresentação imediada de uma tragicidade
metafísica recai no âmbito da vertigem; mas, quando considera-se
recursivamente que Vertigo é ela mesmo uma obra cultural criada por
uma série de manifestações pouco a pouco conexas, que ela mesmo está
sujeita à forma mais elementar de tragédia – da cultura, percebemos a
necessidade de interpretá-la espiralmente. Esse é o pensamento diferencial
que aventamos no início, partimos dele, mergulhamos nos paradoxos da
vertigem, e retornamos a ele – não como um círculo, mas em um ponto
superior – um fechamento provisório.
Uma espiral hermenêutica parece retraçar seu caminho, mas ele
na verdade move-se para longe de sua localização prévia para
olhar de volta ao objeto cultural em questão de uma perspectiva
diferente. O fechamento nal nos escapa. Ao contrário, nós
temos um fechamento provisório ou “pseudo”-fechamento. O
sentido do texto não pode ser determinado pois há um número
inesgotável de outras localizações preenchidas com outros objetos
cujos contrastes produzem uma estonteante variedade de outras
possibilidades interpretativas. O discurso crítico no mundo real
está constantemente sendo corrigido pela nossa descoberta de
outros textos, para-textos e intertextos, alguns dos quais vão mudar
nossas opiniões. (BELTON, 2017, p. 18).
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A estranha sustentação de nossa hermenêutica-de-mundo –
imediatamente espiral, e não circular, tornada tão plástica
23
pelo cinema
como também ato social e cultural, logo fático, reside negativamente
no mesmo modo-de-possibilidades que estrutura o nosso entendimento
metafísico: o Princípio de Razão Suciente. Simplicadamente:“Para
tudo há uma razão para que seja ou explique o que seja”. Se o paradoxo
do cinema é gerado, inclusive no ato cultural de cada lme, pela busca
proposicional de relacionar a experiência em conceitos. O cinema traduz o
já sabido apenas esteticamente-metasicamente, porém como uma ponte
instável entre imagem e conceito, vivência de mundo e teorização. De ser-
no-lme e ser-espectador. Servindo além do cinema, mostra: tudo tem uma
imagem para que seja e e-ternique
24
o que apenas é. Tal reconhecimento,
no âmbito da superação da metafísica, e não mais da dialética moderna,
demonstra – no mundo que for – uma terna gratidão ao velamento e
delidade revelamento do Seer.
Uma apresentação de outro âmbito, que reforça a urgência do se
pensar o Seer para além de uma necessidade ou curiosidade acadêmica e
escolástica, mas é impossível de ser dita adequadamente pelas utuações
da linguagem proposicional, e ainda assim é justicada aqui por resolver
(e não suspender) o paradoxo do próprio trágico do lme especíco
apresentado aqui.
Primeiro a representação da dialética da imagem nos leva a uma
apresentação da didática do trágico, e é pela própria superação da dialética
metafísica da imagem que se pode (mesmo no âmbito proposicional do
roteiro) vislumbrar: o que se no nível do Seer é suspensão, no nível do
trágico é re-solução – novamente, tornar a estrutura-hermenêutica espiral
em uma circularidade virtuosa. O Velamento e Desvelamento do Seer,
talvez em um “degrau inferior” se mostre como a Fidelidade e Gratidão de
uma Ontologia Social. Por uma incapacidade de linguagem, e estrutura
(afetiva-anativa) de mundo, ambos estão imbricados hermeneuticamente.
23
Uma relação plástica é onde o meio se deforma sem retorno; numa relação elástica há sempre o retorno ao
mesmo.
24
A Imagem que e-ternica, torna-se lembrável recursivamente pela sua anidade ao mundo, à ternura.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 315
Por meio do Apelo do Negativo, o Cinema nos permite simplesmente
não-fazer, pela Imagem instável e móvel, de vários modos tortuosos e
diferenciais, um fazer-jus a nossa estrutura de interpretação como a Dádiva
do Seer. E, ao “fazê-lo”, supera o Eterno Retorno da Metafísica – no sentido
de nos depreender de uma estrutura sempre elástica de mundo. O Vislumbre
do Seer como des-truição das cisões (Caos), a Justiça (Gerechtigkeit) – o que
é a resolução de um salto para além da própria Imagem espelhada como
m do eterno retorno que acaba com a resolução da de-cisão. O verdadeiro
normal (Judy) é fazer-jus à sua própria Dádiva, enquanto si mesma. Pular
para si, sem que se caia o corpo.
Aqui nós tratamos de uma relação entre a ontologia do cinema
como imagem em movimento e o modo próprio de interpretação em geral,
concluindo que isso também envolve o conteúdo de todo fazer-cinema em
sua relação com a tradição literária trágica. Nós partimos do lme concreto
Vertigo (1958 – Um corpo que cai), para adentramos uma discussão
ontológica sobre a função do cinema na Era da Metafísica, e como esta
função revela a possibilidade de uma nova hermenêutica-de-mundo.
referênciAs
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VERTIGO. Direção: Alfred Hitchcock. Fotograa: Robert Burks. [S. l.]: AVH, 2006. 1
DVD (128 min), cor. Título original: Vertigo. Data original: 1958.
| 317
A    
 :  
- 
   ‘N  C
Renata Silva SOUZA
1
introdução
Buscamos, neste ensaio, assinalar, a partir do lme ‘Noites de Cabíria
(1957), dirigido pelo diretor italiano Federico Fellini, reexões acerca da
dinâmica de constituição de hábitos e crenças nos âmbitos individual
e coletivo, com ênfase em cenas que ilustram a incessante repetição de
hábitos de conduta construídos ao longo de milênios. Em poucas palavras:
apoiamo-nos na hipótese segundo a qual ‘Noites de Cabíria’ retrataria uma
história sobre as diculdades em torno do rompimento de hábitos e o
papel paradoxal da ilusão e dos sonhos em face de uma realidade brutal
e desumanizadora. O lme em questão, é importante ressaltar, recebeu
inúmeros prêmios, dentre eles o Palma de ouro de melhor atriz, no Festival
de Cannes, para a interpretação de Giulietta Masina, o prêmio David de
Donatello de melhor produção e direção – para, respectivamente, Dino
Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Contato: renatynhass@
hotmail.com.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-222-2.p317-338
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de Laurentiis e Federico Fellini -, e o Oscar de melhor lme estrangeiro
(STARLING, 1964).
As dimensões míticAs ABordAdAs no filme
Já no início do lme, temos contato com a personagem principal,
Cabíria, (ou Maria Ciccareli – o nome verdadeiro da personagem na
referida película), mulher que personica e preserva traços marcantemente
vivos e encantadores de sua outrora meninice. Ela corre pelos campos
acompanhada de seu par amoroso, Giorgio. Entre abraços e carinhos,
ambos se encontram à beira do rio Tibre, para o qual, então, ele subitamente
a lança. Essa atitude surpreendente é depois explicada: os reais interesses
de Giorgio eram os de roubar aquela que o acompanhava em um suposto
passeio idílico.
Não sabendo nadar, Cabíria se vê em face de um iminente perigo de
morte, mas é salva por crianças que a veem em situação de afogamento. A
presença de crianças faz-se notar em diversas cenas do lme, nas quais, em
nosso entendimento, representa, através de uma dimensão externa, algo que
é interno e peculiar à personagem principal. Espécie de metáfora viva, as
crianças representam a faceta infantil da própria Cabíria, evidenciada, por
exemplo, em sua espontaneidade, receptividade aos sonhos, entusiasmo,
inocência e boa-fé, características essas que sustentam – e também colocam
em risco, por vezes - a sua existência e integridade.
No decorrer do desenvolvimento da película, saberemos que Cabíria
é uma prostituta que procura pela realização de um ideal de felicidade,
ideal esse atrelado à busca do amor e à sua efetiva consumação nos laços
matrimoniais. No entanto, conforme salientado por Fellini (1995, p. 124)
“[...] quando se procura o amor, não signica que ele será encontrado.
Assim como também nem sempre se recebe de volta o amor que se dá”.
Os desdobramentos dessas armações são passíveis de serem observados de
forma patente durante toda a apresentação da película.
Ainda sobre a construção e percepção das características centrais da
personagem principal, Fellini ressalta que (1995, p. 123):
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
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Cabíria é uma gura muito positiva, tem realmente caráter nobre
e maravilhoso. Ela não recusa nem os clientes mais mesquinhos e
aceita mentiras como verdade. Ela é uma prostituta e a vida não foi
boa para com ela, mas mesmo assim Cabíria está sempre em busca
da felicidade. Quer mudar sua vida, mas é uma perdedora nata –
uma perdedora que depois de cada golpe se levanta e jamais desiste
da busca da felicidade.
A personagem em questão ganha vida a partir de várias inspirações
de relatos baseados em casos reais que impressionaram Fellini. A cena
acima explicitada – do quase afogamento de Cabíria -, particularmente,
tem como inspiração, segundo o cineasta, “[...] um artigo de jornal sobre
uma história semelhante, em que a prostituta, ao contrário de Cabíria, não
foi salva” (FELLINI, 1995, p. 123).
A primeira cena do lme, aqui mencionada, será, em nosso
entendimento, parodiada pelas demais, que decorrerão no uxo de toda
a narrativa da película, indicando que os cenários se modicam, mas o
cerne das experiências parece ser o mesmo. Embora Cabíria prometa a si
mesma que determinadas situações, como as vividas com Giorgio, jamais
acontecerão novamente, damo-nos conta de uma conduta assentada
em repetições incessante de padrões, bem como de uma resistência à
possibilidade de mudança de hábitos, possibilidade essa capaz de reconciliar
a dureza dos fatos brutos da realidade com a necessária ludicidade, própria
dos sonhos e da imaginação, em face dos desaos da vida.
A repetição incessante das mesmas experiências vivenciadas pela
personagem, em contextos aparentemente semelhantes ao de Cabíria,
pode provocar no espectador um sentimento de imediata simpatia e
autorreconhecimento para com ela, como se de alguma forma ele estivesse
em tais experiências, assim como quando se lê uma tragédia grega com mais
de 2400 anos e se tem a sensação de espanto e estupefação pelo suspeito
incômodo de que pouco mudamos desde então, e de que talvez sejamos
ainda os mesmos - embora envoltos em outro cenário de atuação no qual
tem lugar o teatro da existência.
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Embora seja possível elucidar uma série de fatores que poderiam
lançar luz sobre as diculdades relativas à transformação humana, bem
como sobre a possiblidade de rompimento efetivo com antigos hábitos,
entendemos ser importante salientar as peculiaridades que delineiam e
caracterizam o conjunto especíco e formador da identidade da personagem
principal do nosso lme. Assim, indicaremos elementos plausivelmente
envolvidos na conduta de recusa da dureza de alguns dos fatos das vivências
mais fundamentais de Cabíria, iniciando com uma reexão acerca de
elementos históricos no âmbito das relações erótico-amorosas, como é o
caso, por exemplo, de uma conduta balizada pela busca do amor ideal.
Parece ser lícito pensar que o mito do amor ideal, encarnado pelas
narrativas míticas de Eros e Psique, e do mito do andrógino, explicitado por
Aristófanes no Banquete de Platão, estão ambos espraiados no imaginário
humano como um dos elementos fortemente presentes na interação
social. A m de promover um melhor acompanhamento do raciocínio ora
proposto, apresentaremos uma breve síntese das narrativas presentes em
tais mitos.
Em relação ao Mito do andrógino, Aristófanes argumenta que,
no início da humanidade, havia três gêneros de humanos: feminino,
masculino e o andrógino. Os três gêneros, segundo ele, eram compostos,
respectivamente, por quatro pernas e mãos, dois rostos, quatro braços, dois
sexos, órgãos duplicados, etc. Em virtude da tentativa desses poderosos
seres de desaarem os deuses, subindo até os céus, Zeus os puniu com
a separação de cada ser inteiriço em dois, a m de torná-los mais fracos.
Desde então, após a separação de tais metades, cada qual procura,
incessantemente, pela parte perdida. Tal tentativa de regeneração de nossa
natureza anterior, representa a origem mítica do amor que, nas palavras de
Aristófanes, se assenta na “[...] tentativa de fazer um só de dois e de curar
a natureza humana” (1972, p. 30).
No caso de Eros e Psique, trata-se, conforme ressaltado por Brandão
(1987), de um mito grego relatado pelo escritor romano Lucio Apuleio
(125-170 d.C), relato esse que tem lugar nos livros IV, V e VI de ‘O Asno
de Ouro’. Conforme a narrativa, a beleza divinal da mortal Psique provoca
a ira de Vênus, deusa da beleza, haja vista que os mortais, encantados por
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 321
aquela, e tomando-a por deusa, começam a prestar-lhe honrarias, ao invés
de o fazerem à própria Vênus. Como punição, Vênus cona ao seu lho
Eros a tarefa de fazer com que Psique se apaixone pela criatura mais abjeta já
existente. Encantado pela beleza daquela que deveria punir, contudo, Eros
é picado pela própria seta, terminando por desposar Psique. Para evitar a
fúria da mãe, Eros mantêm a relação em segredo, preservando, inclusive,
o anonimato do seu rosto e do seu corpo para a própria esposa. Com o
tempo, incitada pelas irmãs invejosas, e tomada pela própria curiosidade,
Psique busca descobrir a identidade do homem invisível, a ver se aquele
com quem dividia o leito era ou não um terrível animal.
Na sequência de tais intentos, Psique, iluminando com um candeeiro
o rosto do marido, percebe que ele era o próprio deus do amor. Em assim
fazendo, extasiada pela beleza de Eros, ela, por descuido, deixa que uma
gota de óleo fervente do candeeiro que levava caia sobre o ombro do
esposo. Desperto, apercebendo-se da situação, Eros voa para “[...] o alto e
desaparece” (APULEIO, 2019, p. 207). Submetida a uma série de provas
e sofrimentos impostos por Vênus, Psique consegue reconquistar o marido
amado. Nas suas bodas nupciais, Psique é presenteada com a imortalidade
pelos deuses do Olimpo, imortalidade que selaria uma união perpétua e
feliz entre ambos.
Entendemos que dimensões do mito de Eros e Psique e do mito
de Andrógino, parecem estar presentes em diversos momentos do
desenvolvimento da história de Cabíria, ainda que de forma mais ou menos
velada. Nessa esteira, é possível identicar que uma das características
patentes da personagem principal, e que nos remete a ambos os mitos,
refere-se à sua incessante busca pelo amor ideal. No caso do segundo mito,
aqui relatado, entendemos que ele ilustra de modo patente a dimensão
da ignorância que a personagem assume ao desconhecer a verdadeira face
de seus objetos de desejo, assim como Psique desconhecia a face e a real
natureza do seu esposo (BRANDÃO, 1987, p. 229).
Pensemos nas cenas em que os mitos apresentados tomam corpo em
diversos momentos da narrativa, como, por exemplo, aquele em que Cabíria
sai com o conhecido artista Alberto Lazzari, e adentra a sua suntuosa casa,
que mais parece um palácio de contos de fadas. Crendo que viverá o seu
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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tão aspirado dia de princesa, à maneira de Psique que goza de uma vida
idílica no luxuoso palácio do Deus do amor, Cabíria aprecia as belezas da
casa de Lazzari, como os animais exóticos no quarto do artista, as esculturas
gregas, a 5ª sinfonia de Beethoven, o mordomo que a tudo atende (à maneira
de Zéro, vento que servia Eros), bem como o curioso guarda-roupa que,
ao ser aberto, faz soar curtas e melodiosas canções. A propósito, no quarto
de Lazzari, logo atrás de Cabíria, percebe-se uma escultura do torso de
Vênus, o que permite aludir à narrativa mítica. Com a chegada de Jessy,
porém, namorada de Alberto, Cabíria é levada a esconder-se no banheiro,
dali assistindo, pela fechadura, ao que Apuleio denominara ‘os combates de
Vênus’. Fazendo companhia, no banheiro, ao cãozinho do artista, Cabíria é
mais uma vez frustrada nos seus intentos e desejos.
À maneira de Eros e Psique, as narrativas míticas fazem-se presentes
no curso do desenvolvimento histórico humano, se desdobrando em
contos de fadas, bem como em narrativas televisivas e cinematográcas
que possuem uma estrutura parecida com a dos mitos e da tragédia grega.
O próprio Fellini, quando indagado a respeito das motivações e temáticas
subjacentes aos seus lmes, intitulava a si mesmo como “[...] contador de
contos de fadas” (FELLINI, 1995, p. 98). Essas narrativas míticas, agora
desdobradas em contos de fadas, embora modicadas no curso do tempo,
seguem, em geral, a seguinte estrutura: Profecia-Preâmbulo – encontro –
Erro/fuga – Punição/Busca – Redenção/Salvamento
2
. Cabe notar, porém,
que nem todos os contos de fadas, tampouco os mitos, têm uma estrutura
idêntica ao mito de Eros e Psique, pois são inúmeros os contos e mitos
nos quais os nais são trágicos
3
, indicando, assim, uma diculdade de
transformação da personagem principal por eles retratada.
A relação entre a história de Cabíria e os mitos em questão faz-
se também notar pela percepção de que tais narrativas míticas rompem
2
O diagrama ora explicitado é de autoria de Lucia de Souza Dantas, pesquisadora e doutora em Filosoa pela
PUC-SP, apresentado na ocasião do curso intitulado ‘Filosoa dos Contos de Fadas’- ministrado pela mesma no
primeiro semestre do ano de 2020. Vale a pena ressaltar que a pesquisadora em questão autorizou a utilização
do diagrama apresentado em aula para a composição do presente artigo.
Pensemos, por exemplo, nos contos de fadas de Andersen [1805-1875] que ilustram outros possíveis nais
– tristes e trágicos - para os mesmos. Ver, por exemplo, o conto de fadas por ele intitulado ‘Os sapatinhos
vermelhos’ (ANDERSEN, 2011). Como ilustração de mitos nos quais há nais trágicos, pensemos no próprio
Mito de Narciso, ou mesmo nas próprias tragédias gregas.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 323
fronteiras de classe social, etnia, nacionalidade, bem como o domínio
espaço-temporal, haja vista a atualidade das mesmas na contemporaneidade.
Em ‘Noites de Cabíria’, a personagem principal encarna tais imaginários
relatados por ambos os mitos, bem como por alguns contos de fadas, nos
quais encontramos, por exemplo, a possibilidade de redenção de uma moça
pobre e sem recursos a partir do casamento com o príncipe encantado,
como é o caso de Cinderela.
As dimensões da natureza de relatos míticos, ou dos contos de fadas,
trazem à baila a ideia de que as diferenças de classe podem desaparecer
com o amor, e, com isso, quem tanto sofreu pode um dia viver uma vida
de princesa ou Deusa. Provando que a realidade é bem distante das delícias
dos sonhos, Cabíria, mesmo no interior da casa-castelo, é acordada por um
cachorro, no banheiro em que, escondida, dormia.
Ao sair da casa-castelo, ela contempla, pela última vez, o leito de
Lazzari, no qual a bela Jessy estava entregue ao sono – uma espécie de releitura
às avessas de Eros e Psique, na qual há uma personagem de fora que a tudo
observa, sem, contudo, poder ocupar o lugar da esposa do Amor.
Ao sair da casa-Castelo, novamente Cabíria colide com a dureza dos
fatos, como quando tenta atravessar uma porta transparente, fechada. O
vidro – bem como determinadas situações de vida –, embora transparente,
não é percebido como tal, levando Cabíria a com ele colidir diretamente.
Então, ela se pergunta: onde é a saída [da casa-castelo]? Como quem dissesse
“Onde é a saída do mundo dos sonhos, dos quais me tornei prisioneira?”.
dimensão sociAl de ‘humilhAdos e ofendidos
4
Em adição aos elementos supracitados, que compõem aspectos
do desenvolvimento dos modos de formação e sentimento de uma dada
comunidade, soma-se à constituição da identidade da personagem o fato
de ela fazer parte, à maneira de um vocabulário dostoeviskiano, de um
grupo de ‘humilhados e ofendidos’, uma parcela da sociedade relegada à
invisibilidade, ao desamparo, à restrição e ao desprezo. Esse universo dos
O título ‘Humilhados e ofendidos’ faz referência a um romance de autoria do literato Russo Fiodor Dostoiévski,
publicado no ano de 1861.
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
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humilhados e ofendidos é explorado, de forma mais detida por Fellini,
por exemplo, na gura da família que compra a casa de Cabíria, e que
gera indignação e comoção – nela e em Wanda - pela situação de extrema
pobreza que ela encarna. No que tange à cena em questão, Fellini apresenta
as seguintes considerações:
Uma das cenas mais tristes de todos os meus lmes é o momento
em que mostro a família que comprou a casa de Cabíria, enquanto
ela se põe, como acredita, a caminho de seu casamento. Ela vê
aquela gente como invasora. Ela própria vendeu-lhes a casa, mas
agora está como uma criança que disse que sim mas que mudou de
ideia. (FELLINI, 1995, p. 61).
Essa parcela dos invisibilizados, encarnada, por exemplo, através da
gura de Cabíria e de suas colegas de trabalho, ou mesmo da família que
compra a casa da primeira, também é explicitada na cena do ‘homem do
saco’. A cena em questão retrata, por sua vez, o caso real de um benfeitor
caridoso que auxiliava pessoas pobres, geralmente mulheres mais velhas
e ex-prostitutas, que moravam como que em ‘cavernas naturais’ situadas
em terrenos baldios nos arredores de Roma, oferecendo-lhes alimentos
e produtos de necessidades básicas. Segundo Dominique Delouche
5
,
assistente francês de Fellini, o ‘homem do saco’ realmente existia, bem
como essas pessoas desprovidas de assistência social mínima, o que chamou
a atenção de Fellini acerca dessa gura. Delouche também arma que as
gravações dessas cenas foram feitas no local em que, segundo relatos, o
referido homem realmente atuava.
A título de curiosidade, indicamos para o fato de que a sequência
cênica do ‘homem do saco’, de acordo com o próprio Fellini, inicialmente
foi passível de ser apreciada apenas pelo público de Cannes, mas,
posteriormente, foi mantida em diversas versões da película (FELLINI,
1995, p. 124). Surpreendentemente, a sequência em questão, como
armara o próprio Fellini, fora a única, em todo o lme, que a Igreja
não aprovara para a exibição ao público italiano, objetando, nas palavras
As armações em questão foram extraídas de partes de uma entrevista concedida por Dominique Delouche,
disponibilizada nos extras do lme ‘Noites de Cabíria’ (2018).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 325
de Fellini (1995, p. 124), que “[...] era assunto seu [da igreja] ajudar os
pobres e famintos. E essa cena daria a impressão de que a Igreja não estava
assumindo a sua responsabilidade”.
Retomando a nossa análise da sequência cênica supracitada e sua
relação com a dimensão daqueles colocados à margem da sociedade, vale
lembrar que, no momento em que Cabíria encontra o homem de caridosa
alma (o homem do saco), faz com ele um passeio pelas grutas nas quais
vivem pessoas de condições paupérrimas de existência. Ela se comove com
a situação dessas pessoas, e reconhece uma das guras que outrora também
vivia na prostituição, e que agora via-se privada dos direitos humanos mais
fundamentais como alimentação, trabalho e moradia. Embora vivendo
uma situação de desamparo, análoga à dessas pessoas, sobrevivendo da vida
na prostituição, Cabíria entende que é especial, distinguindo-se delas –
sobretudo por possuir uma casa, que, conforme repete orgulhosamente, é
provida de água, luz e gás’.
A crença de Cabíria de que é diferente das outras pessoas, também
humilhadas e ofendidas, com as quais convive, faz-se notar em diversos
momentos da narrativa fílmica, embora haja situações especícas nas
quais ela toma consciência da sua situação, revoltando-se contra isso. Tal
o momento, por exemplo, da visita ao Santuário de Nossa Senhora do
Divino Amor, visita motivada, sobretudo, pela realização de prostituição
no local, e não pelo fervor religioso de uma fé irrestrita.
A Dimensão da repetição cega tem uma variável importante a ser
considerada no âmbito dos desvalidos, ou dos ‘humilhados e ofendidos’,
como, por exemplo, uma forma de resistir às intempéries da dureza
dos fatos. No trecho da cena do Santuário de Nossa senhora do Divino
Amor, também nos deparamos com os desvalidos que se apoiam em algo
extraterreno, como é o caso da religião, e do apego fervoroso a uma fé sem
limites, capaz de servir como bálsamo às restrições e precariedades de um
grupo relegado ao anonimato, desdém e desprezo. O santuário é o local
no qual (supostos) pecadores e (supostos) não pecadores se encontram,
peregrinos, pessoas humildes etc. Contudo, há algo que os une, como a
crença numa redenção, ou mesmo uma cção aprazível, capaz de acolher
sonhos e desejos que talvez nunca se concretizem em vida.
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As dimensões do sonho e da cção, comungadas nessa cena de
prestação de homenagens e pedidos à Virgem Maria, fazem-se também
presentes na gura do tio de um dos cafetões que acompanham as
prostitutas no percurso do Santuário. Aparentemente, o mesmo tio estaria
envolvido com atividades de prostituição e tráco de drogas. As muletas do
tio parecem metaforizar os sonhos, que são muletas, ou mesmo ferramentas,
que nos auxiliam a transitar por determinadas situações de difícil travessia.
As mesmas muletas que sustentam o tio, porém, também metaforizam os
limites da cção, espécie de ferramenta que, quando dela se é privado, faz
despencar o indivíduo rumo ao chão. Nesse sentido, talvez não seja difícil
admitir que determinadas formas de apego cego à religião, ou mesmo aos
mais doces sonhos e cções, possam ser encaradas como muletas.
Na mesma direção, também Cabíria faz um pedido à Virgem, para
que mude de vida, e se frustra ao perceber que nada mudou. Em um lamento
tragicômico, ela murmura: “Ainda somos os mesmos, ninguém mudou”.
E, repetindo igual murmúrio, acrescenta: “Estamos todos como sempre,
como estropiados”. Ao ser indagada por Wanda, amiga sua, a respeito do
que esperava, ela diz que irá embora, e venderá tudo para começar nova
vida, acrescentando ser diferente de Wanda e dos demais com os quais
convivia. Wanda, ao que parece, à maneira das irmãs invejosas de Psique,
poderia representar, de forma mais profunda, o convite à conscientização
de Cabíria a respeito da sua real condição de vida, bem como a dúvida em
relação à real face dos seus pares amorosos, por ela de fato desconhecida.
Cabíria ressente-se com a ideia de que milagres não existem, e se
abriga na imaginação face à constatação dessa dura verdade, muito embora,
conjecturemos, o verdadeiro milagre resida em ser possível habitar o sonho,
ainda que de forma fugaz.
elementos suBjAcentes À nArrAtivA fílmicA
A dimensão onírica de toda a narrativa coaduna-se com o preto
e branco do lme, no qual as formas se sobrepõem às cores, e no qual,
conforme arma o próprio Fellini (2011), podemos imaginar diferentes
tonalidades e intensidades de cores que ali se fazem ausentes. Nas palavras
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 327
de Fellini (2011, p. 140), “[...] as chamadas ‘cores naturais empobrecem a
fantasia”.
O próprio lme tem inspiração em uma personagem real que
Fellini encontra enquanto está lmando ‘A trapaça’. Fellini relata avistar
um minúsculo e miserável casebre na aldeia de San Felice, construído,
segundo armação do próprio diretor, de “[...] pedações de latão e velhas
caixas de frutas”. Ao adentrar a casa, ele se espanta com o esmero com que
os parcos recursos são organizados. Após a proprietária car enfurecida
com a ousadia de Fellini, tomando-o por um enviado da prefeitura para a
demolição da casa, ela se aproxima aos poucos do set de gravações, travando
breves diálogos com Fellini, nos quais, segundo o mesmo, ela alternava:
[...] episódios de uma realidade atroz e brutal, de uma vida de
inseto, com outros que se via bem que eram inventados a partir de
cenas de lmes que havia assistido ou de romances de quadrinhos.
Com teimosia, se obstinava em misturá-los, confundindo tudo
em razão de uma penosa necessidade de acreditar que sua vida de
desgraças era assim, como contava, colorindo-as com ingênuas
fantasias sentimentais de uma garotinha ignorante e azarada.
(FELLINI, 2011, p. 102-103).
Retornando à leitura do lme - à inspiração por ele recebida de
episódios da vida real, o que resulta na intensicação dos sonhos que se
mesclam com a realidade, formando uma linha tênue entre vida e cção,
e diferentes nuances e graus de embaralhamento entre arte e vida -, Fellini
apresenta o ápice da trama com o show de Mágica e espetáculos variados,
que incluiriam o hipnotismo e autossugestão. Nesse fragmento de narrativa,
é claramente ressaltado o entrelaçamento entre cção e realidade. Na cena
em questão, o mágico hipnotiza Cabíria e a faz vivenciar cenas das suas
memórias de infância [uma espécie de mergulho profundo nos anseios
coletivos entranhados no indivíduo], apresentando-a ao seu imaginário
pretendente - Oscar. O mágico, novamente, trabalha com a temática do
amor ideal, trazendo à tona os desejos profundos nutridos por Cabíria – e
também por uma coletividade construída ao redor de tal pensamento - em
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busca da realização de tais ideais, ou mesmo da neutralização de situações
oriundas de uma brutal realidade.
Ao sair do transe hipnótico, novamente os sonhos se desfazem como
uma espécie de um líquido que não se consegue reter nas mãos. Cabíria,
mais uma vez transtornada, irada, espera que todos saiam do teatro para
não ser, ainda mais, alvo de zombarias. Um dos espectadores a esperava na
saída do teatro, apresentando-se a ela como Oscar D’Onorio, enfatizando
uma dimensão de destinação, pelo fato de ele também se chamar Oscar,
o mesmo personagem ctício com o qual Cabíria formara par amoroso
durante a sessão de hipnose.
Oscar diz entender os sentimentos de Cabíria, apreciando a pureza
dos seus sentimentos em relação ao amor. Cabíria, embora oferecendo
resistência às palavras aprazíveis de Oscar, vê-se novamente enamorada,
outra vez diante da possibilidade de vivenciar o tão desejado sonho.
Sabemos, porém, como terminará toda essa trama, na qual o início do
lme aparentemente se repete.
As ‘noites de cABíriAe A construção de háBitos individuAis e
coletivos: umA Breve investigAção
Em narrativas autobiográcas de Fellini, transcritas de diálogos
realizados entre ele e Charlotte Chandler, o primeiro assevera que “Nós
vivemos muito mais no mundo de nossas imaginações do que na realidade
e estamos presos no casulo de nossos hábitos”. (Fellini, 1995, p. 106).
No entendimento de Fellini, os hábitos são responsáveis por fazer
com que cada um viva “[...] em seu mundo de fantasia” muito embora,
ele acrescenta, a consciência de tal condição não esteja clara para a maioria
das pessoas (FELLINI, 1995, p. 17). Em face dessa armação, caberia
as seguintes indagações: 1) O que é um hábito? 2) Como entender a
dinâmica constitutiva e formadora de hábitos? As questões propostas serão
investigadas a partir de trabalhos do lósofo Charles Sanders Peirce (1839
– 1914).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 329
A m de alçar os propósitos ora enunciados, iniciemos pela
caracterização que Peirce apresenta da noção de crença, que, como veremos,
associa-se estreitamente à de hábito. De acordo com Peirce: “A essência
de uma crença é o estabelecimento de um hábito; e crenças diferentes
são distinguidas pelos diferentes modos de ação a que dão origem” (CP.
5.398
6
). O mesmo acrescenta que uma crença pode ser caracterizada a
partir dos seguintes traços, a saber:
[...] primeiro, é algo de que estamos cientes; segundo, aplaca
a irritação da dúvida; e, terceiro, envolve o estabelecimento de
uma regra de ação em nossa natureza, ou, digamos, um hábito.
Ao aplacar a irritação da dúvida, que é o motivo do pensar, o
pensamento relaxa e ca em repouso por um momento ao alcançar
a crença. (CP. 5.397, tradução nossa).
Na concepção de Peirce, crenças indicam a existência de hábitos,
uma tendência à repetição que auxilia agentes no balizamento de suas
respectivas condutas presentes e futuras. Em contraste, quando há presença
da dúvida genuína, pode ocorrer uma desestabilização de um conjunto de
crenças, convidando o indivíduo a atualizá-lo de modo a poder incorporar
outros tipos de hábitos. O pensador em questão acrescenta ainda que:
“[...] tão logo uma crença é rmemente alcançada, camos inteiramente
satisfeitos, quer a crença seja verdadeira ou falsa
7
” (PEIRCE, 2008, p. 45).
Em seu trabalho intitulado A xação da crença
8
, publicado em 1877,
Peirce (2008, p. 43) arma que “Nossas crenças guiam nossos desejos e
moldam nossas condutas”. A m de analisar e elucidar, de forma mais
profunda, os tipos de crenças envolvidos em nossas condutas diárias, ele
observou quatro tipos de métodos pelos quais xamos crenças, a saber: a)
por tenacidade; b) por autoridade; c) a priori; d) cientíco. Apresentaremos,
brevemente, os quatro métodos ora aludidos.
CP refere-se à obra Collected Papers. O primeiro número diz respeito ao volume, enquanto que o segundo
indica o parágrafo. Essa é uma forma usual de referenciar o trabalho em questão.
Conforme explicitado pelo próprio Peirce (2008, p. 82), crenças verdadeiras dizem respeito àquelas
estabelecidas com base na realidade, enquanto que as crenças falsas se assentariam em cções.
Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.
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O primeiro método (a), xação de crenças por tenacidade, encerra-
se no âmbito de crenças individuais, nas quais há uma espécie de recusa
em mudanças de opiniões e condutas. Nas palavras de Peirce (2008, p. 48):
Um homem pode passar a vida mantendo sistematicamente fora de
vista tudo o que poderia causar uma mudança em suas opiniões [...]
Ele [o indivíduo tenaz] não se propõe a ser racional, e na verdade
falará, frequentemente com desdém, da fraca e ilusória razão
humana. Assim, deixem-no pensar como queira.
Tal método expressa um apego bastante contundente à determinada
crença, evitando, a qualquer custo, a dúvida, já que ela, conforme explicita
Peirce (2008, p.43), é um estado em que experimentamos ‘desconforto e
insatisfação’, e são esses mesmos sentimentos que nos impelirão à busca
de uma crença que atenue ou cesse o desconforto trazido por uma dúvida
genuína. Embora se possa permanecer por bastante tempo connado às
próprias crenças, por vezes limitadoras, como é o caso de crenças tenazes,
Peirce (2008, p.48) assinalará que tal método “[...] será incapaz de, na
prática, manter seu fundamento. O impulso social está contra ele”.
Ainda a respeito da crença xada pelo método da tenacidade, Ibri
(2020, p. 241) assevera que: “[...] uma pessoa ou conjunto de pessoas
que assim creem sobrevivem em um mundo que lhes é próprio, privativo,
mas que, ao interagir com mente ou mentes que praticam crenças vivas
9
,
conitam de modo inevitável com elas”. O pensador em questão acrescenta
ainda que restaria aos indivíduos tenazes: “[...] alternativamente, isolarem-
se da rede semiótica que os desaa a conjecturar, gura lógica impensável
para a mente tenaz, e viverem sua cção como se fosse realidade” (IBRI,
2020, p. 241).
O segundo método (b), a saber, por autoridade, por seu turno,
abrangeria uma escala mais ampla da dinâmica de constituição de uma
crença, ultrapassando o domínio puramente individual para o de crenças
que abrangeria grupos maiores, envolvendo, por seu turno, a “[....]
formação de opinião e o direcionamento de ações coletivas” (GONZALEZ
9
Ibri (2020, p. 237) considera ‘crenças vivas’ aquelas formadas pelo constante diálogo com os eventos do
mundo, como é o caso, por exemplo, em seu entendimento, das crenças xadas através do método cientíco.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 331
et al. 2018, p. 9). Em poucas palavras, Peirce (2008, p. 49-50) assinala que:
“Esse método tem sido, desde os tempos mais remotos, um dos principais
meios de manter doutrinas teológicas e políticas corretas, e de preservar seu
caráter universal ou católico”.
Esse método de xar crenças, conforme ressalta Ibri (2020, p. 238),
“[...] é bastante eciente no sentido de promover ações de uma coletividade
voltada para ns eleitos pela autoridade”. O pensador em questão sugere
que pensemos, por exemplo, em instituições nas quais se assentam rígidas
hierarquias, como é o caso de organizações militares ou mesmo corporações
empresariais (IBRI, 2020, p. 238). Em ambos os exemplos, Ibri ressalta o
papel da decisão da autoridade na tomada das decisões e direcionamento
coletivo da conduta de grupos de pessoas.
O terceiro método (c), a priori, no entendimento de Peirce (2008,
p. 53-53):
[...] é bem mais intelectual e respeitável do que os outros dois
sobre os quais discorremos [tenacidade e autoridade]. Mas suas
falhas têm sido mais manifestas. Faz da investigação algo similar
ao desenvolvimento do gosto; mas o gosto, infelizmente, é sempre
mais ou menos uma questão de moda e, assim, os metafísicos
nunca chegaram a xar qualquer acordo, de modo que o pêndulo
das opiniões tem balançado para um lado e para outro [...].
O método em questão, pode-se considerar, está assentado, de acordo
Ibri (2020, p. 239-240), na:
[...] tendência humana em crer naquilo que pode lhe ser conveniente,
cumprindo um certo papel de trazer conforto espiritual a quem crê.
Contudo, esse método está longe de conseguir um acordo universal
de opiniões, xando-se por meio de doutrinas que armam a
realidade de objetos cujo lado externo não pode ser experienciado,
permanecendo apenas interiores ao que dele em teoria se declara.
Ibri enfatiza que o referido método de xação de crenças não
mantém um diálogo vivo com os fatos do mundo, sendo minada, assim, a
possibilidade de vericação da validade das crenças por ele xadas, através
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do confronto com a alteridade dos fatos. Para ilustrar tais armações, o
pensador sugere que pensemos em “[...] todas as metafísicas que armam a
priori a realidade de objetos que cumprem papel de dar sentido à nitude
humana, pelas promessas de atemporalidade de uma vida transcendente a
essa onde, também, os ímpios seriam nalmente justiçados. (IBRI, 2020,
p. 240).
Por m, o quarto método, cientíco (d), por seu turno, é caracterizado
por Peirce (2008, p. 53-54) da seguinte forma:
Para satisfazer nossas dúvidas, por conseguinte, é necessário que se
encontre um método pelo qual nossas crenças possam ser causadas
por algo em nada humano, mas por alguma permanência externa
– por alguma coisa sobre a qual nosso pensar não tenha efeito. [...]
A permanência não seria externa, no sentido aqui usado, se sua
inuência se restringisse a apenas um indivíduo. Tem de ser algo
que afete, ou que pudesse afetar, a todo o homem.
A partir dessa passagem, podemos aferir que as crenças xadas por
tal método são formadas não a partir de desejos individuais ou mesmo às
aspirações subjacentes a determinadas instituições ou doutrinas, mas pelo
diálogo com eventos no e do mundo que nos convidam a mudar as nossas
crenças e condutas. No entendimento de Peirce, há um estado de coisas
no mundo que possui permanência e que independe de nossos desejos
ou mesmo da representação que dele se possa fazer, estado esse que ele
denominara ‘realidade
10
.
As crenças xadas pelo método cientíco, vale ressaltar, não são
tipos de crenças exclusivas de cientistas, mas de todos os seres passíveis
de aprenderem com as suas respectivas experiências no mundo. Na
mesma direção argumentativa, conforme ressaltado por Ibri (2020, p.
237), “Animais e plantas não podem cristalizar suas condutas, sob pena
de perecerem”. Dito de outro modo, outros seres são também capazes de
balizar as suas respectivas condutas a partir da alteridade dos fatos. Os
eventos no mundo convidam o indivíduo a corrigir a própria conduta,
10
O conceito peirciano de realidade é desenvolvido e analisado com maior detalhamento e profundidade em
Ibri (2015), Cap. 2.
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 333
anando sua ação através da alteração de hábitos em face de sua alteridade
(GONZALEZ et al. 2018).
Há, no entanto, inúmeras razões para que o indivíduo seja incapaz –
ou mesmo tenha grandes diculdades - de constituir uma crença através do
método cientíco, dentre elas podemos destacar a incorporação, de longo
prazo, de normas e regras de instituições religiosas, familiares, bem como a
incorporação de certas narrativas (como aquelas subjacentes, por exemplo,
aos contos de fadas e aos mitos) que, de alguma forma, moldam os modos
pelos quais os indivíduos sentem e percebem a si próprios no âmbito de
seus contextos de interações.
Para tentarmos ilustrar, de forma sintetizada, correlações possíveis
entre as formas de xar crenças com o lme ‘Noites de Cabíria’, pensemos,
por exemplo, nos golpes vivenciados pela personagem principal em
sua saga pela busca da felicidade – que ela associa ao amor ideal. Os
comportamentos de seus pares amorosos podem, em nosso entendimento,
ser tomados como fatos no mundo, fatos esses que indicializam certos
padrões regulares relativos às suas respectivas crenças e condutas. Esses
mesmos comportamentos, vale lembrar, não dependem dos desejos ou
mesmo das representações fantasiosas que Cabíria possa deles fazer.
No caso de Cabíria, ela vivia fortemente a crença de que o casamento
seria capaz de conduzi-la à felicidade e mudança de vida. A aposta cega em
tal crença, responsável por fazer com que ela se negasse a considerar qualquer
indício em contrário, conduzia Cabíria a hábitos de conduta que a levaram
a situações limite de perigo e desamparo econômico e emocional. Esse é
o caso, por exemplo, dos constantes roubos de seu dinheiro – realizados
pelos seus pares amorosos - e com o seu quase afogamento no rio Tibre. A
repetição constante de condutas que negam um dado fato no mundo, por
seu turno, evidenciam uma diculdade patente de mudança de hábitos
conduzidos pela aprendizagem com a experiência. A conduta baseada na
negação dos fatos, no caso analisado, aproxima-se, sobremaneira, a tipos de
crenças xadas por tenacidade, autoridade, e a priori, por exemplo.
Por m, indicamos que o aparato conceitual peirciano mostra-se
profícuo na identicação de hábitos e crenças que subjazem determinas
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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condutas. Conforme aludido pelo próprio Peirce (2008, p. 57): “Às vezes,
a força do hábito fará com que um homem se agarre a velhas crenças,
mesmo depois de estar em condições de ver que elas não possuem bases
corretas”. Entendemos que talvez essa seja uma das principais causas que
dicultam, aparentemente, a mudança de conduta não apenas de nossa
personagem principal, mas de grande parte da humanidade.
considerAções finAis
Parece-nos que um dos argumentos principais do lme transita na
hipótese de que a ilusão desempenha um papel importante na dinâmica
de manutenção da integridade psíquica – e, por que não, física - dos
indivíduos.
N’ O livro dos sonhos, de Fellini (2019) (apud ARGENTIERI,
2019, p. 22), livro no qual ele narra e desenha os sonhos que tivera,
Fellini arma que “[...] o ser humano não consegue suportar a realidade
por muito tempo”. Tal armação parece fundamentar a hipótese de que
um dos argumentos possíveis do lme seja uma espécie de elucidação das
dimensões positivas da ilusão e do sonho, e uma espécie de elogio à cção
em vida. A ilusão, no caso da narrativa proposta por Fellini em ‘Noites
de Cabíria’, parece cumprir um papel paradoxal, como, por exemplo, o da
manutenção do desejo de persistência de vida, e de luta pela vida, mas que,
contudo, levada ao limite, também pode conduzir à morte, ou a situações
de riscos iminentes, pela recusa da perda do encantamento pelo mundo,
pelas pessoas, e por si próprio.
A dimensão do sonho também aparece inúmeras vezes como nos
momentos de fruição artística através da dança, e do maravilhamento
sentido em situações ordinárias, como são os casos, por exemplo, em que
Cabíria dança o mambo no ponto de prostituição com um rapaz que lá
se encontrava, ou mesmo com Alberti Lazzari, momentos esses capazes de
suprimir as humilhações e desventuras vividas pela personagem, situações
essas, inclusive, em que ela desdenha e enfrenta os olhares de desaprovação
à sua roupa, com, dentre outros, o clássico bolero de penas de galinha.
Tais momentos, em nosso entendimento, ilustram o poder redentor da
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 335
arte, que Fellini arma acreditar ser “[...] a possibilidade de transformar
o fracasso em vitória, a tristeza em alegria”. Sendo a “Arte [...] o [próprio]
milagre” (FELLINI, 2019 apud BRUNETTA, 2019, p. 16).
Embora a arte possua um poder redentor, assim como o sonho ou a
cção, talvez o grande problema entre o entrelaçamento entre sonho e vida
seja a perda dos limites do real, desconsiderando os choques de alteridade
que a experiência indica, como a necessidade de reajustar condutas e
ideais, em face da possibilidade de aprendizagem com a experiência – o
que, como vimos, encarnaria o tipo de possibilidade de aquisição, no
vocabulário peirciano, de crenças através do método cientíco. Embora
não negligenciemos o papel da ilusão nas dimensões de sobrevivência
individual e coletiva, tida como uma espécie de escudo protetor em face
de uma verdade dura e incessante, é forçoso considerar que essa admissão
nos lança em um paradoxo irreversível: se, por um lado, a ilusão de um
amor ideal correspondido é o que temporariamente salva Cabíria da dor
de uma vida limitada à brutalidade de suas vivências cotidianas, por outro,
é essa mesma ilusão que, coadunada a diversas diculdades de ordem da
estrutura socioeconômica, aprisiona-a e limita o seu campo de ação.
Em suma, trabalhamos a ideia de que há elementos muito antigos
da construção coletiva de hábitos que forjam modos de ser, sentir e agir.
Há hábitos de sentimento que são difíceis de serem quebrados, ainda que
em face da existência da dureza de fatos que nos sugere a necessidade de
mudanças de conduta que nos habilitem a viver novas experiências. A
conduta de Cabíria em face dos acontecimentos repete-se incessantemente
em virtude de um círculo vicioso de hábitos, não apenas no âmbito do
individual e amoroso (que, conforme vimos, trata-se também de uma
longa construção ao longo do tempo), como também no da repetição de
situações produzidas por uma estrutura social. A conduta de repetição da
personagem não se limita apenas a ela, mas a uma grande maioria que
se vê na pele de Cabíria, e com ela se solidariza, como um reexo de si
próprio no espelho, reconhecendo as mesmas mazelas interiores e coletivas
vivenciadas pela personagem principal.
Por m, na cena derradeira, após entregar, pela segunda vez, os seus
bens a um falso Deus do Amor, Cabíria ainda se vê envolta em fantasias,
Ulisses Razzante Vaccari; iago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin (Org.)
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metaforizadas pelos felizes jovens que a acompanham em uma caminhada,
o que alude à possibilidade de os sonhos ainda cantarem e sorrirem para
ela, que, num esforço hercúleo, tenta retribuir com um sorriso emoldurado
por prantos contidos e expressão retorcida pela dor. Conforme o título da
música de Nino Rota presente na cena nal sugere - ‘Ma la vita continua-,
poderíamos acrescentar que, com a vida, continuam os sonhos e as ilusões.
referênciAs
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Duradouro: reexões sobre os Interpretantes Emocionais e Lógicos nos Modos Peircianos
de Fixação de Crenças. Semiótica e Pragmatismo: interfaces teóricas. Marília: Ocina
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NOITES DE CABÍRIA. Direção de Federico Fellini. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2018.
1 DVD (118 min).
Cinesoa: a sétima arte em devaneio
| 337
PEIRCE, C. Ilustrações da Lógica da Ciência. Tradução de Renato Rodrigues Kinouchi.
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PEIRCE, C. e Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Charlottesville: Intelex
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PLATÃO. Banquete. Tradução e notas de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril
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STARLING, C. Federico Fellini [e] Noites de Cabíria. São Paulo: Folha de S.
Paulo, 2018.
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normAlizAção
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Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
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100
imPressão e AcABAmento
2022
soBre o livro
"A necessidade de se pensar o
cinema do ponto de vista da filo-
sofia está vinculada à urgência
de reconquista do sentido mais
fundamental do filme na vida
contemporânea. Decorridos mais
de um século depois da invenção
do cinema, é possível dizer, sem
maiores rodeios, que o filme, de
um modo geral, caiu nos últimos
tempos em uma espécie de crise.
É como se, passados mais de cem
anos das primeiras experiências
cinematográficas, a pergunta
pela essência do cinema se fizes-
se mais urgente do que nunca."
ISBN 978-65-5954-221-5
Cinesofia
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Ulisses Razzante Vaccari
Thiago Kistenmacher Vieira
Gabriel Debatin
(Organizadores)
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