Para além de uma discussão que parece estar na moda, a proposta desse livro é
contribuir, de fato, para as reexões e práticas que dinamizam e movimentam o
ambiente escolar. Quando se pretende articular ética, formação, interculturali-
dade e decolonialidade para pensar as coisas da educação, ele quer dialogar não
apenas com os pesquisadores das temáticas aqui tratadas, mas sobretudo chegar
ao ambiente da escola e da sala de aula. São nesses lugares que, efetivamente,
emergem situações desaadoras que, no mais das vezes, as pessoas têm dicul-
dades em compreender, reconhecer e construir soluções. Sempre recorrendo
ao mais do mesmo, o que geralmente acontece é um olhar supercial e raso às
inquietações e dramas geradores desses desaos, problemas e conitos. Aque-
le tipo de formação de professores, que predomina nos cursos de licenciatura,
parece pedir um novo signicado e sentido, pois não está mais dando conta de
responder e atender às exigências e às expectativas da formação escolar.
Talvez seja necessário irmos além de uma educação pautada somente pela razão
ou por uma ideia ou ideal de ser humano, mas tomar as reexões de autores
clássicos e contemporâneos de maneira a nos possibilitar incluir a dimensão
ética e estética no sentido contribuir na construção de um processo pedagó-
gico que tenha como ponto de partida e como telos a liberdade e a autonomia
humana. A sala de aula é mais do que um lugar onde meramente se transmite
conhecimento, mas um espaço de convivência, de alegria, de trocas de afetos e
saberes. Sabemos que as pessoas que se encontram são portadoras de paixões,
de pulsões, de sentimentos e de uma história que precisa ser valorizada e levada
em consideração. Aquele caráter colonizador que muitas vezes marca a prática
formativa e pedagógica parece não ter mais sentido, sobretudo pelas consequ-
ências causadas.
Diante desse diagnóstico, este livro pretender fazer algumas reexões acerca dos
saberes e das práticas que são adotados nos cursos de formação de professores e
na prática docente. Cremos que não é de todo sem sentido aventarmos a ideia
de que a angústia e a insegurança dos futuros docentes são os efeitos de um
processo formativo que fora concebido e implementado a partir de uma lógica
e de uma prática que nem sempre leva em consideração o real, isto é, a vida que
constitui as nossas existências e que pulsa em nossas experiências cotidianas.
Mais do que isso, desconsidera que os saberes e as maneiras de conduzir nossas
vidas de alunos e professores, por exemplo, - têm diferentes origens e matrizes
e que são construídos em distintos lugares e tempos percorridos pelos sujeitos.
E nos parece que levar isso em consideração pode ser bastante enriquecedor.
Os dezesseis textos que com-
põem esta coletânea estão divididos em
dois setores distintos, sendo o primeiro
deles dedicado a reexões sobre ética,
educação e formação, e o segundo aos
estudos acerca da decolonialidade e in-
terculturalidade no campo educativo. À
primeira vista, quase se poderia pensar
na existência de uma oposição ideoló-
gica entre as duas partes do livro, em
virtude do nítido descompasso entre
os dois temas. O primeiro deles trata
de diferentes abordagens derivadas de
um núcleo comum, que é a formação
do sujeito individualizado e autôno-
mo, gestados nos moldes iluministas da
Bildung, ao passo que o segundo expõe
reexões declaradamente antagônicas a
tais ideais, pois valoriza referências teó-
ricas antieurocêntricas e pós-coloniais.
Os ideais de ética e de formação
almejados na primeira parte do livro
contemplam justamente o acolhimento
da alteridade que se faz necessária para
que a ancestralidade ameríndia possa
ser recepcionada sem preconceitos in-
telectualistas e mecanismos emocionais
de defesa que habitualmente bloqueiam
a relação com o Outro.
A relação entre as duas partes
desta obra, que é o resultado coletivo
de pesquisas acadêmicas teoricamente
consistentes acerca de diferentes con-
cepções de liberdade, uma delas se-
gundo a modernidade europeia, outra
consoante com os modos de “estar” da
América profunda, não deve ser vis-
ta como oposição ideológica, mas sim
como oposição dialética no sentido he-
geliano do termo.
Nos horizontes de uma pola-
ridade dialética, em que cada um dos
termos saiba reconhecer no Outro o
complemento necessário de sua própria
imperfeição e nitude, o dualismo entre
o “ser” e o “estar” poderá congurar um
novo espaço para o reconhecimento da
diferença sob a perspectiva do consenso
racional.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0798/2018
Processo 23038.000985/2018-89
EDUCAÇÃO, ÉTICA, INTERCULTURALIDADE E SABERES DECOLONIAIS
EDUCAÇÃO, ÉTICA,
INTERCULTURALIDADE
E SABERES DECOLONIAIS
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
EDUCAÇÃO, ÉTICA, INTERCULTURALIDADE
E SABERES DECOLONIAIS
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
EDUCAÇÃO, ÉTICA, INTERCULTURALIDADE
E SABERES DECOLONIAIS
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)
Ma
rília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2022
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Di
retora
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Vice-Diretora
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Conselho Editorial
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Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
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uxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
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icha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
E24 Educação, ética, interculturalidade e saberes decoloniais / Alonso Bezerra de Carvalho
(Org.). Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2022.
360 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-211-6 (IMPRESSO)
ISBN 978-65-5954-212-3 (DIGITAL)
1
. Educação. 2. Ética. 3. Humanismo. 4. Eurocentrismo. 5. Cultura. I. Título.
CDD 370.19
Copyright © 2022, Faculdade de Filosofia e Ciências
E
ditora afiliada:
C
ultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
DOI https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3
Sumário
Prefácio | Sinésio Ferraz Bueno...............................................................09
Parte I | Ética, Educação e Formação Humana
Antroposofia e Pedagogia Waldorf: concepções sobre a formação do (ser)
humano para além da razão...................................................................17
Jaqueline Rodrigues Ferreira
Educação e a ideia de ser humano: orientações da Crítica da Faculdade do
Juízo e Sobre a pedagogia de Immanuel Kant...........................................35
Renata Cristina Lopes Andrade
Ética e autonomia na educação: reflexões a partir de Piaget, Vygotsky e
Paulo Freire..........................................................................................59
Fabiola Colombani
A formação virtuosa na escola................................................................77
Giórgia Andrade Regiani Ferreira Martins
Pedagogia de Schoenstatt: a dimensão ética e o ideal de uma educação da
infância para a liberdade e para a autonomia ..........................................99
Sandra Regina Mantovani Leite
A responsabilidade como fundamento ontológico do ser humano:
fundamentos de uma educação contemplativa em Hans Jonas..............117
Manuel João Mungulume
A sala de aula e o papel das pulsões na formação humana: um olhar
direcionado ao aluno...........................................................................141
Fábio Sagula de Oliveira
Parte II | Decolonialidade, Interculturalidade e Educação
América Latina: saberes ancestrais e decolonialidade no Ensino
Superior..............................................................................................165
Sueli do Nascimento
Aportes para uma Filosofia da Educação em Rodolfo Kusch ................187
Adão Alves de Araújo
Ap
rendendo com os povos indígenas a adiar o fim do mundo:
interculturalidade e decolonialidade a partir de Ailton Krenak..............205
Genivaldo de Souza Santos
Aproximações entre o pensamento de Paulo Freire e o pensamento decolonial: por
uma pedagogia nativa, intercultural e
libertadora..................................................227
Marina Coimbra Casadei Barbosa da Silva e Cláudio Roberto Brocanelli
Um currículo decolonial ou a decolonialidade no currículo: uma análise
preliminar ..........................................................................................253
Eliacir Neves França
e Zuleika Aparecida Claro Piassa
Decolonizar o saber: a construção do espírito de nação e o processo de
colonização das Américas à luz da teoria de Rodolfo Kusch...................273
Ricardo Francelino da Silva
Os deuses se acabaram, resta-nos o número: uma contribuição de Rodolfo
Kusch à educação................................................................................293
Alonso Bezerra de Carvalho
História cultural e ética intercultural: reflexões sobre o ensino do ethos
latino-americano.................................................................................313
Mateus de Freitas Barreiro
Outras percepções sobre humanidade e natureza para uma educação que
colabore para adiar o fim do mundo.....................................................331
Amanda Veloso Garcia
9
Prefácio
Este livro sobre educação, ética e interculturalidade, não é apenas
uma obra relevante nos tempos atuais, mas também um retrato fiel das
pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação,
Ética e Sociedade (GEPEES) nos últimos anos. Os dezesseis textos que
compõem a coletânea estão divididos em dois setores distintos, sendo o
primeiro deles dedicado a reflexões sobre ética, educação e formação, e o
segundo aos estudos acerca da decolonialidade e interculturalidade no
campo educativo. À primeira vista, quase se poderia pensar na existência
de uma oposição ideológica entre as duas partes do livro, em virtude do
nítido descompasso entre os dois temas. O primeiro deles trata de
diferentes abordagens derivadas de um núcleo comum, que é a formação
do sujeito individualizado e autônomo, gestados nos moldes iluministas da
Bildung, ao passo que o segundo expõe reflexões declaradamente
antagônicas a tais ideais, pois valoriza referências teóricas antieurocêntricas
e pós-coloniais.
Na primeira parte do livro, os ideais racionalistas de formação de
um sujeito emancipado aparecem por meio de diferentes recortes teóricos,
representados por pensadores consagrados da cultura ocidental, como
Aristóteles, Kant, Steiner, Jonas, Piaget e Freud. As reflexões sobre ética e
formação ali desenvolvidas remetem ao horizonte teórico universalista que
caracteriza as ciências humanas, desde a ética aristotélica, até a psicanálise
freudiana. Em contrapartida, na segunda parte deste livro, os textos
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p9-14
10
compartilham de um consenso fundamental, que diz respeito à completa
inadequação das matrizes eurocêntricas para o conhecimento da cultura
latino-americana, especialmente em relação ao estudo da ancestralidade
ameríndia. É importante deixar claro que, na perspectiva decolonial
adotada na segunda parte do livro, não se trata somente de um
descompasso teórico, mas da denúncia de um processo histórico de
etnocídio, que submeteu as culturas originárias das Américas aos padrões
racionalistas da modernidade europeia.
O contraste entre os dois conjuntos de textos que compõem a
presente coletânea provisoriamente pode ser bem compreendido quando
recorremos ao dualismo entre “ser” e “estar”, sugerido pelo filósofo
argentino Rodolfo Kusch para espelhar a oposição entre a cultura europeia
e a ancestralidade ameríndia. Para Kusch, o processo colonizador se baseou
na imposição de padrões civilizatórios impregnados por imperativos de
progresso, higiene, previsibilidade e domínio senhorial, que podem ser
sintetizados em uma determinada concepção de “ser” autárquico e
dominador do medo diante das potências da natureza. Em oposição radical
à ontologia europeia, o indígena americano desde tempos primordiais
anteriores à violência colonizadora, sempre valorizou modos de vida
baseados na busca de harmonia e equilíbrio entre homens e natureza. A
ancestralidade ameríndia é perpassada por formas rituais de “estar”
conjugadas com os ciclos cósmicos e completamente despojadas dos ideais
de controle e de domínio técnico sobre a natureza. A oposição entre o “ser
europeu e o “estar” ameríndio é suficientemente nítida quando
consideramos os ideais higienistas impostos pelos padrões europeus no
desenvolvimento urbano, em sua obsessão de limpar todos os espaços de
convivência dos resíduos de fedor e de sujeira representados pelo povo
indígena.
11
Então, ao adotarmos o dualismo proposto por Kusch, torna-se
imperativo nos tempos atuais a recuperação de uma relação cósmica de
equilíbrio na relação com a natureza, sob pena de que a própria vida
humana possa se tornar completamente inviável, dados os ritmos
ecologicamente insustentáveis de exploração dos recursos naturais. Duas
imagens apresentadas na segunda parte do livro são muito apropriadas para
ilustrar a importância ética de modos de vida amparados pela simplicidade
e economia de meios do “estar” popular e ameríndio. Alonso Bezerra de
Carvalho faz menção à “vida densa e divina que pulsa nas pessoas e no
mundo”, enquanto Genivaldo de Souza Santos, em referência a Ailton
Krenak, remete a uma outra vida possível, mediada pela utopia de “gozar
sem nenhum objetivo”. Tais imagens citadas pelos articulistas da presente
obra, são suficientemente eloquentes como signos ilustrativos da urgência
de processos formativos e de uma cultura política que esteja voltada para a
desativação do rolo compressor do progresso técnico que há séculos está
voltado para o domínio e destruição sistemática da vida natural.
Mas se a presente coletânea pode ser compreendida mediante a
oposição entre modos de “ser” ancorados no domínio instrumental da
natureza e do próprio homem, e modos de “estar” sintonizados com uma
harmonia cósmica, estaríamos diante de uma autêntica oposição ideológica
entre duas perspectivas que sequer poderiam ser organicamente
organizadas em uma obra comum? A resposta a essa interrogação é
negativa, uma vez que as referências teóricas mobilizadas pelos autores do
módulo europeu e moderno deste livro remetem a modos de ser que
representam horizontes universalistas plenamente compatíveis com o
despojamento ameríndio diante da natureza. Os ideais de ética e de
formação almejados na primeira parte do livro contemplam justamente o
acolhimento da alteridade que se faz necessária para que a ancestralidade
ameríndia possa ser recepcionada sem preconceitos intelectualistas e
12
mecanismos emocionais de defesa que habitualmente bloqueiam a relação
com o Outro.
Para entender a relação de complementaridade entre as duas partes
do livro, é relevante lançarmos mão de um argumento precioso de Ailton
Krenak. Em sintonia com esse brasileiro importante no atual momento
histórico, os dois conjuntos de artigos que ora se oferecem à leitura
buscam, cada qual à sua maneira, “evitar o fim do mundo”, porém
divergem unicamente em seus diferentes entendimentos sobre em que
consiste esse mundo a ser salvo. Em outras palavras, trata-se de pensar que
a justa medida da ética aristotélica, o rigorismo moral kantiano, a
responsabilidade de Hans Jonas, a evolução cognitiva piagetiana, e o
equilíbrio emocional freudiano, representam certas dimensões do “ser” que
se mostram compatíveis com a recuperação da dignidade humana em sua
relação com o cosmos, com a natureza e com a própria humanidade. O
imperativo ético e político de “evitar o fim do mundo” põe em circulação
modos historicamente distintos de desenvolvimento da consciência e da
intersubjetividade. Quando consideramos conceitos filosóficos muito
importantes da obra de Hegel, e levamos em conta que a superação
dialética de sistemas culturais e políticos de opressão requer o mútuo
reconhecimento da alteridade, se torna possível entender que prevenir o
fim do mundo envolve, antes de mais nada, superar a coisificação do
Outro. Nesse sentido, o sujeito moderno e o sujeito ameríndio compõem
duas perspectivas que devem ser postas em uma relação efetiva de
reconhecimento, que tenha por objetivo romper o recolhimento abstrato
e narcísico da consciência consigo mesma.
A relação entre as duas partes desta obra, que é o resultado coletivo
de pesquisas acadêmicas teoricamente consistentes acerca de diferentes
concepções de liberdade, uma delas segundo a modernidade europeia,
outra consoante com os modos de “estar” da América profunda, não deve
13
ser vista como oposição ideológica, mas sim como oposição dialética no
sentido hegeliano do termo. Nos horizontes de uma polaridade dialética,
em que cada um dos termos saiba reconhecer no Outro o complemento
necessário de sua própria imperfeição e finitude, o dualismo entre o “ser
e o “estar” poderá configurar um novo espaço para o reconhecimento da
diferença sob a perspectiva do consenso racional. As duas formas de
consciência, cada qual a seu modo, devem reconhecer seus próprios limites
mediante o acolhimento da alteridade que lhe falta: ao sujeito moderno,
cabe assumir sua própria sede de paz e de equilíbrio cósmico com o mundo
natural; ao sujeito ameríndio, cabe abrir-se a processos de evolução da
consciência moral e intelectual que ampliem seus horizontes de existência.
A interculturalidade aqui proposta configura um momento
decisivo para o progresso da consciência de si, que se realiza no encontro
da alteridade irredutível, e no dilaceramento entre duas concepções de
mundo que estão destinadas à superação de sua condição presente de
antagonismo. Embora essa integração entre os dois mundos possa parecer
utópica, muito pelo contrário, ela é historicamente possível, e a própria
existência de alguém como Ailton Krenak, que é líder indígena, filósofo e
ambientalista contemporâneo, representa a mais concreta corporificação
desse horizonte dialético. Ao lado de Krenak, e em homenagem à sua
corajosa resistência política e intelectual em tempos tão tristemente
sombrios como os atuais, as duas partes deste livro prestam-se à
composição de paraquedas coloridos que possam evitar o fim do mundo.
Marília, setembro de 2021
Sinésio Ferraz Bueno
UNESP
______________Parte I______________
Ética, Educação e Formão Humana
1
7
Antroposofia e Pedagogia Waldorf:
concepções sobre a formação do (ser) humano
para além da razão
Jaqueline Rodrigues FERREIRA
1
Não podemos mais vivenciar o seu voo como o vivenciavam os nossos
antepassados: como um desejo impossível. Pássaros deixaram de ser
aqueles entes que habitam o espaço entre nós e o céu, para se
transformarem em entes que ocupam o espaço entre os nossos
automóveis e nossos aviões de passeio. De elo entre animal e anjo,
passaram a objetos de estudo do comportamento em grupos. Se
quisermos enquadrar a nossa vivência de pássaros na dos nossos
antepassados, deveremos dizer que para nós todos os pássaros são o que
para eles eram as galinhas: entes que voam, mas precariamente. Pois tal
modificação da nossa atitude em relação aos pássaros e ao voo
(provocada pela aviação e astronáutica), tem efeito significativo sobre
a nossa visão de mundo. Perdemos uma das dimensões do tradicional
ideal da “liberdade”, e perdemos o aspecto concreto da tradicional visão
do “sublime. (FLUSSER, 1979, p. 27).
Em tempos de ruptura de velhos paradigmas da educação escolar
tradicional, vemos a necessidade da reflexão sobre o desenvolvimento do
ser humano por meio de concepções pedagógicas e filosóficas que o
valorizem em sua integralidade e o desenvolvimento de suas forças
1
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de
Filosofia e Ciências, Unesp, Campus de Marília. E-mail: jaquegrafianaterra@gmail.com
.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p17-34
18
internas, de maneira prática e teórica. Assim como na superação de visões
racionalistas e empírico-analíticas na constituição do saber científico para
explicar o mundo e o próprio ser humano.
Este trabalho é fruto dos estudos e reflexões de uma pesquisa de
mestrado em andamento, além de fazer parte das discussões realizadas a
partir do GEPEES- Grupo de Pesquisa Ética, Educação e Sociedade,
ambos vinculados ao Programa de Pós-graduação em Educação da Unesp-
Faculdade de Filosofia e Ciências do campus da cidade de Marília-SP.
Na contemporaneidade a escola ainda possui lugar de destaque
para o desenvolvimento do indivíduo, de modo que o mesmo possa
compreender o mundo e como ele funciona. Na educação escolar
tradicional, o papel da escola é propiciar maneiras para a transmissão e
apreensão do conhecimento historicamente construído e sistematizado
pela sociedade, através do enaltecimento da dimensão cognitiva. Ou seja,
nesta concepção escolar valoriza-se compreender o mundo por meio da
razão. Todavia, a construção do conhecimento durante o desenvolvimento
do ser humano, não perpassa somente na valorização do aspecto cognitivo.
Deste modo, considerando tais problemáticas advindas do
paradigma cartesiano-racionalista do ensino tradicional escolar, este estudo
propõe refletir sobre as contribuições da Antroposofia na compreensão do
desenvolvimento humano considerando corpo, alma e espírito. Bem
como, o fortalecimento do aprendizado no espaço escolar por meio da
Pedagogia Waldorf
2
. Mediante estas concepções, a prática pedagógica deve
ser orientada segundo alguns princípios gerais, entre eles, a compreensão
de que o ser humano desenvolve a aprendizagem por meio do pensar, do
sentir e do querer.
2
A Pedagogia Waldorf surge na Alemanha no início do século XX, a partir da Antroposofia, a qual
foi desenvolvida por Rudolf Steiner. Neste período, Steiner se debruçou em compreender a respeito
do desenvolvimento do ser humano e das problemáticas sociais vivenciadas em seu país.
19
Podemos perceber a influência do paradigma cartesiano-
newtoniano sobre o ensino escolar tradicional a partir de diversos prismas.
Nesta concepção pedagógica, as áreas de conhecimento estão divididas de
modo que o docente reproduz o ensino de um tema específico em sala de
aula isoladamente. Ademais, a troca de professores, o ritmo do cotidiano
escolar em função de sistemas avaliativos e calendários institucionais, em
grande medida, corroboram para que não haja tempo hábil para serem
trabalhados temas e aspectos relacionados com as necessidades da turma, o
acompanhamento individualizado, ou até mesmo, consolidar a
aprendizagem por meio do diálogo com outras áreas do conhecimento
3
.
De modo geral, observamos que a prática docente e os ritmos no
cotidiano do ensino escolar tradicional, não respeitam muitas vezes os
ritmos orgânicos, ou até mesmo necessidades psíquicas e emocionais dos
sujeitos na escola. Logo, o desenvolvimento da aprendizagem de conteúdos
por meio de habilidades e competências a serem apreendidas, não
garantem a constituição do conhecimento a partir da vida, ou de modo
contextualizado, contribuindo para uma formação na qual os sujeitos
possam se desenvolver para saber atuar de modo benéfico no mundo por
meio do pensar, do sentir e do querer.
Durante muitos séculos o conhecimento suprassensível
4
sobre o
mundo foi compreendido como parte na construção do conhecimento. Os
povos orientais, as populações ameríndias, ou do continente africano, entre
3
Sabemos que nas últimas décadas existem amplos círculos de debates, produções de trabalhos
acadêmicos e discussões a partir da ideia de interdisciplinaridade, com o objetivo do diálogo entre
diferentes áreas do conhecimento, para tornar a prática docente multidisciplinar. Todavia, tendo
em vista diversos fatores, entre eles, a formação continuada de professores, a organização do
currículo através de sistemas públicos de ensino, os quais pouco dialogam com a realidade
vivenciada em sala de aula, pelos professores e estudantes, entre outros, em muitos contextos, ainda
impossibilita que esta interdisciplinaridade aconteça de modo efetivo.
4
O termo suprassensível se refere à percepção do mundo captada acima da realidade sensitiva, ou
seja, acima do que é percebido pelos sentidos que captam a materialidade das coisas.
20
outros povos, desenvolveram preciosas teorias para a compreensão sobre o
mundo e sobre o desenvolvimento do ser humano sob uma perspectiva de
uma cosmovisão.
Todavia, o século XIX foi marcado pela expressiva oposição entre
a Ciência Moderna e o pensamento religioso. Com a Revolução Científica,
a Ciência Moderna ganhou destaque para explicar o mundo, como verdade
absoluta. Porém, já no final do século XVIII, em oposição ao racionalismo
cartesiano-newtoniano, o pensamento da escolástica grega, em especial de
Aristóteles, é retomado nas obras de Goethe, Schiller, entre outros autores
do Romantismo alemão.
O cientista e poeta Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)
dedicou grande parte de sua vida a estudar os enigmas da natureza. Em
suas observações dos reinos da natureza e fenômenos naturais ele
desenvolveu um método de pesquisa. Este método foi denominado
posteriormente como fenomenológico. A princípio é necessário evidenciar
que Goethe não utilizou a terminologia fenomenologia, pois viveu em um
período anterior ao surgimento da mesma. De acordo com Bach (2015),
o objetivo maior de suas pesquisas científicas era abordar a inter-relação
qualitativa entre sujeito e objeto.
Goethe iniciou um novo modo de fazer ciência que antecipou uma
série de problematizações que só surgiram no século XX, como a
questão dos paradigmas, da linguagem e da historicidade da ciência.
Confrontando-se com ícones da ciência de sua época, como Lineu e
Newton [...] (BACH, 2019, p. 19).
Incompreendido em sua obra científica, Goethe vivenciou a crise
entre os dogmas religiosos e os dogmas do racionalismo científico vigentes
21
em grande parte da Europa, no período urbano industrial, no fim do século
XVIII e início do século XIX. Desde modo, o naturalismo de Goethe se
desenvolveu em meio a este conflito nas ciências.
Para entender esta crise de percepção do mundo, Capra (1982)
destaca que a mesma teve sua gênese com a mudança de concepção de
mundo a partir do século XVI e XVII no contexto da Revolução Científica.
Neste período, a sacralização e concepção orgânica da natureza,
considerando-a como provedora da vida, cede espaço para a concepção do
mundo como máquina. Galileu Galilei, Nicolau Copérnico e
posteriormente, René Descartes e Isaac Newton, foram os precursores na
formatação da linguagem das leis da natureza em linguagem matemática.
De acordo com Bach (2019), essa geometrização da natureza, na ruptura
de uma cosmovisão da vida “são os primeiros passos para o
desencantamento do mundo [Entzauberung der Welt] [...]” (p. 28).
Esta mudança de paradigma esvaziou o método científico de
valores relacionados à ética, à estética, à espiritualidade, ou até mesmo aos
sentidos, os quais são primordiais, para a observação dos fenômenos da
vida, tais como a visão, o paladar, o tato, o olfato, entre outros, ou seja,
expulsando do discurso científico a experiência e a vivência. Com a
Revolução Científica, a natureza deixa de ser cultivada ou divinizada, e
transforma-se em objeto de controle a partir da técnica.
A supervalorização da razão é uma das maiores marcas da
modernidade. Entretanto, podemos inferir que o pensamento se constitui
no sujeito como parte da organização tanto do mundo externo, quanto de
uma organização corpórea do indivíduo. Deste modo, o cogito
5
de René
5
O cogito de René Descartes ergo sum, traduzido para a língua portuguesa, exprime a ideia “penso,
logo existo”. Todavia, muitas áreas do conhecimento, entre elas a física quântica por exemplo,
contestam esta expressão, a partir da compreensão de que o pensar não deve ser considerado fator
determinante do existir.
22
Descartes, torna-se uma ideia parcial de sujeito, haja vista a multiplicidade
que o mesmo se constitui. Ou seja, nesta concepção, “a ideia de sujeito é
uma ficção que oculta uma pluralidade de forças, de instintos, de sentidos”
(MOSÉ, 2012, p. 129).
Em oposição ao racionalismo científico, a ciência antroposófica e
a Pedagogia Waldorf, ambas desenvolvidas por Rudolf Steiner no início
do século XX, possuem como base teórica a fenomenologia de Johann
Wolfgang von Goethe e a filosofia estética de Friedrich Schiller. É
necessário destacar que a ciência de Goethe surge em um período em que
se discutiam sobre temas e questões que envolviam determinados
paradigmas, entre eles a degradação ambiental e as transformações
socioculturais em decorrência da Revolução Industrial nos países da
Europa.
A modernidade e o estilo de vida urbano, além de retirar o contato
com a natureza, retirou do ser humano grande parte do tempo para uma
vida contemplativa por meio do auto cultivo, mediante práticas culturais
ou artísticas, e até mesmo no desenvolvimento de inspirações do
conhecimento suprassensorial. Ademais, a necessidade avassaladora de
garantia da sobrevivência nas classes sociais com menos recursos
econômicos nas grandes cidades desde o século XVIII, trouxe também a
distração e o entretenimento como modus operandi. Ou seja, o
conhecimento espiritual perdeu espaço para uma cultura de massa, pouco
contemplativa, a qual corrobora para o “[...] abismo existente entre religião
e moralidade” (STEINER, 2014, p. 29). Rudolf Steiner compreende que
a questão social possui um profundo vínculo com o conhecimento
espiritual, segundo ele:
A questão social só poderá ser captada em sua total profundidade
quando for compreendida como uma questão moral, uma questão
23
religiosa. Contudo, não se tornará uma questão moral e religiosa
enquanto a questão moral e a religiosa não se tornarem uma questão
de conhecimento espiritual (STEINER, 2014, p. 30).
A Antroposofia tem como proposta uma cosmovisão do mundo e
do ser humano. Ela percebe o conhecimento espiritual como atividade a
ser desenvolvida na vida prática, ou seja, na arte, na religião não dogmática,
na relação orgânica com o mundo, entre outras maneiras. Estas são formas
que segundo Steiner (2014), fortalecem a força vital do ser humano e da
cura do organismo social
6
.
A fenomenologia da consciência desenvolvida por Rudolf Steiner
possui como cerne de pesquisa: o pensar, o sentir e o querer do ser humano,
em busca de compreender a respeito do desenvolvimento do sujeito e a
inter-relação destes campos. De acordo com Bach (2019, p. 133) “a
fenomenologia de Steiner é uma ampliação da abordagem goethiana no
âmbito psicológico, social, cultural e espiritual da humanidade”.
A práxis educativa da Pedagogia Waldorf desenvolvida por Rudolf
Steiner tem como premissa superar oposições, as quais foram instauradas
tanto na sociedade, como nas instituições ao longo da história. Bach
(2019) ressalta que a educação realizada mediante a fenomenologia é um
processo que tem como função a formação humana, tendo a concepção de
Bildung como referência, na superação de dicotomias entre o sujeito e o
mundo. Logo, a educação como atividade promotora do desenvolvimento
do ser humano, possui três princípios: o conhecimento epistêmico, a
estética e a ética.
6
Em uma cosmovisão, a partir da Antroposofia, a ideia do organismo social se refere a ideia de que
a sociedade funciona com um organismo vivo.
24
A educação em Steiner como um processo que instaura um exercício
de superação da separação entre o eu e o mundo, entre espírito e
natureza, não só é uma transformação da relação do sujeito com seu
meio ambiente, mas também consigo mesmo e com os outros
(sociedade). (BACH, 2019, p. 17)
O termo Bildung surge na Alemanha no fim do século XVIII, sob
a influência de valores e ideais iluministas, na literatura alemã, com
destaque para o Romantismo deste período. A partir do movimento
denominado Sturm und Drang, (Tempestade e Ímpeto), muitos
representantes desta escola literária alemã, entre eles, Goethe e Friedrich
Schiller, tentavam denunciar a limitada formação cultural e o acesso ao
conhecimento, que se oferecia para as classes populares. Nesta concepção,
a formação e desenvolvimento integral dos indivíduos era compreendida a
partir do desenvolvimento intelectual, espiritual e artístico, ou seja, a ideia
de Bildung se baseia na ideia de autodesenvolvimento.
Considerando este conceito, a formação do indivíduo é mediada
pelo conhecimento, pela estética e pela ética, logo a prática pedagógica não
deve se reduzir a uma educação cognitiva, mas na compreensão de que a
atuação do educar para a formação humana deve ter como meta a
intervenção e transformação da interioridade humana. Esta interioridade
refere-se às dimensões da alma e da espiritualidade, portanto, considera-se
a estética, como princípio e método educativo, seja a partir da música, da
dança, das artes plásticas, entre outras formas, as quais irão “alimentar” e
contribuir para a constituição destas dimensões. Nas obras de Rudolf
Steiner a espiritualidade do sujeito possui uma profunda conexão com a
inserção e atuação do mesmo na sociedade. A partir de Mosé (2012), se a
cultura teórica contribui para a constituição do caráter e de conceitos para
o indivíduo, a cultura estética contribui para a constituição da alma:
25
Schiller pensa a criação de um estado estético no qual o impulso lúdico
de criação artística educaria o homem para a liberdade, até o ponto em
que a moralidade se tornasse uma segunda natureza, com raízes na
sensibilidade, e não somente na razão e na cultura teórica, como tem
sido. (MOSÉ, 2012, p. 151).
No paradigma cartesiano-newtoniano, o conhecimento sobre o
mundo ocorre a partir do método empírico racional, ou seja, os fenômenos
da natureza devem ser compreendidos de modo reducionista e
quantificável. Portanto, medir, pesar e contar são ações necessárias para
explicar a realidade. Nas últimas décadas, esta abordagem se reforça cada
vez mais no ensino escolar tradicional, desde a tenra idade com a
necessidade da alfabetização científica
7
já no fim da primeira infância.
Na Pedagogia Waldorf a educação é compreendida como um
processo a ser desenvolvido pelo indivíduo por toda a vida, tendo em vista
os conceitos de Bildung e de autoeducação. Logo, nos três primeiros
setênios
8
, além da família, a escola possui lugar de destaque na constituição
do conhecimento do indivíduo. A educação em si mesma é considerada de
maneira orgânica pois, o ensino, o currículo, a relação entre os sujeitos de
toda a comunidade escolar, entre outros, são organismos que se inter-
relacionam.
Nessa concepção de educação, a prática pedagógica está alicerçada
na pesquisa para a autoeducação, logo, os educadores devem potencializar
7
O termo alfabetização científica foi incorporado no discurso de democratização do conhecimento
científico, entre a década de 90 e início dos anos 2000, período em que ocorria o avanço tecnológico
na ciência, todavia o acesso à estes meios tecnológicos ainda se dava de modo inexpressivo por
grande parte da população nos países em desenvolvimento.
8
Na Antroposofia a compreensão sobre o desenvolvimento do ser humano ocorre mediante a ideia
dos setênios, ou seja, são períodos de sete anos, em que ocorrem acontecimentos importantes na
vida do ser humano, como por exemplo, a troca dos dentes no final do primeiro setênio.
26
suas habilidades no aprimoramento individual de sua subjetividade (ser).
Neste contexto, assim como Goethe, a partir de um processo de
autoeducação, buscou compreender a essência do funcionamento da vida
orgânica na natureza, Steiner se utiliza deste mesmo princípio em busca de
compreender a essência humana, pois cada indivíduo “[...] representa uma
particularidade no campo de manifestações culturais e sociais [...]”
(BACH, 2019, p. 187). Portanto, para compreender o desenvolvimento
do ser humano, a Antroposofia e a Pedagogia Waldorf possuem como
cerne de pesquisa os seguintes pressupostos:
A antropologia filosófica steineriana pauta-se nos fenômenos
primordiais do desenvolvimento humano, como as três capacidades
autônomas do andar, falar e pensar, as fases do desenvolvimento em
sete anos (setênios), o ritmo diário da consciência e inconsciência
(vigília e sono), as metamorfoses da psique humana nos âmbitos do
pensar, sentir e querer (BACH, 2019, p. 187).
O vínculo do ser humano com o mundo está baseado em suas
vivências, deste modo, o potencial que cada ser humano traz consigo, além
de desenvolvê-lo por meio das dimensões cognitiva e espiritual, cada
indivíduo deve ser estimulado e desenvolvido a partir do corpo físico. “No
entanto, em condições pós-modernas o ser humano vem sendo
expropriado da experiência já na primeira infância” [...] “O
empobrecimento da experiência humana anda lado a lado com o progresso
tecnológico e científico” (BACH, 2020, p. 07).
Nesse contexto, cabe-nos indagar: como o ser humano irá conhecer
o mundo e desenvolver-se no e por meio deste, a partir de experiências
intuitivas e sensoriais, se vivemos em um contexto cada vez mais
artificializado, seja desprezando o contato com o mundo por meio do
27
corpo, ou mediante a valorização da racionalidade como método exclusivo
para a compreensão da realidade?
O tema formação e desenvolvimento humano, com base em
Goethe, se relaciona tanto com o termo Bildung, a partir da Antroposofia
e da Pedagogia Waldorf, como também a partir do termo auto cultivo
(Selbstbildung). Este termo indica alguém que, por meio de cada
experiência, consegue fazer a leitura de si com relação ao mundo,
reconhecendo a diversidade do mesmo, mediante uma perspectiva
omnilateral. Segundo Bach (2020, p.14) “O cultivar-se, como ideia central
de uma Selbstbildung, desdobrou-se em conceito central da filosofia da
educação de Steiner como autoeducação [...]”. Neste contexto o
conhecimento sobre o mundo é apreendido pelo ser humano a partir dos
corpos físico e espiritual
9
:
Por meio de seu corpo o homem pode colocar-se momentaneamente
em relação com as coisas; por meio de sua alma ele guarda em si as
impressões que as coisas produzem nele, e por meio do espírito lhe é
apresentado o que as coisas conservam em si (STEINER, 2004, p. 28).
Mediante tais pressupostos, a Pedagogia Waldorf como atividade
educativa, constitui a possibilidade de o sujeito desenvolver tanto a
omnilateralidade, desenvolvendo “[...] a capacidade humana de olhar a
realidade pelo maior número possível de ângulos [...]” (BACH, 2020, p.
13). E desenvolver, portanto, a expressão da sua potencialidade no mundo,
9
Segundo a Antroposofia, além da natureza física, o ser humano possui as naturezas anímica e
espiritual. Segundo Rudolf Steiner o ser humano é constituído por quatro “corpos”: pelo corpo
físico, pelo corpo astral, o qual se relaciona com as sensações e emoções, oriundas do contato com
o mundo físico. Além do corpo etérico, responsável pela organização das funções fisiológicas do
organismo e o corpo do eu, o qual é responsável pelo pensar, na constituição da consciência, da
personalidade e do ego.
28
ou seja, a experiência e a vivência, contribui para que o sujeito compreenda
a sua própria existência no mundo, como modo de atuação sobre a
realidade por meio de sua essência.
A leitura da experiência é um incentivo à conexão do sujeito que educa
a si próprio, um incentivo à sua vinculação com a existência para que
nesse exercício de ligação entre sujeito e mundo, paulatinamente, o
sujeito possa se auto constituir como expressão, na existência, de sua
essência. (BACH, 2020, p. 12).
O conhecimento sobre o ser humano desenvolvido pela
Antroposofia e pela Pedagogia Waldorf tem como objetivo evidenciar a
necessidade de uma compreensão mais profunda sobre o ser humano.
Portanto, estas concepções não visam propor uma nova estrutura na
educação, mas sim, o surgimento de um tipo de mentalidade educacional,
onde o aprendizado é orientado segundo a integração do pensar, do sentir
e do querer.
Desta maneira, segundo Rudolf Steiner (2014, p. 95), seria preciso
que a ação pedagógica considere o ser humano por inteiro, tanto a partir
do pensar, como a partir do querer, caso o desejo seja alcançar a prática
pedagógica. Para ele, só é possível educar alguém se realmente houver um
conhecimento profundo sobre a natureza do ser humano. Ou seja: “[...] só
se pode saber como educar quando se sabe como o ser humano realmente
é.”. Para este autor foi no século XVI, que a humanidade, como um todo,
passou a desconsiderar a relação entre o pensar e a vontade:
A partir do século XVI, as pessoas começam a refletir sobre educação
sem ter em vista as questões cruciais do conhecimento do ser humano.
Elas não compreendem o ser humano, e mesmo assim querem educá-
29
lo! Eis a tragédia que impera desde o século XVI (STEINER, 2014, p.
93).
Fundamentado nestes pressupostos, o pensar está inter-relacionado
com o querer (a vontade). Portanto, a prática pedagógica deve considerar
a relação entre estes fatores para a formação do caráter ético e moral do
sujeito. A seguir iremos discorrer um pouco sobre a compressão do pensar
na Antroposofia.
O pensar a partir da Antroposofia
Na Antroposofia, ao nascer a criança é considerada um órgão
sensorial, ou seja, devido à ausência da autoconsciência, ela assimila e
vivencia intensamente o ambiente que a circunda por meio do corpo.
Segundo Ignacio (2014, p. 14) “[...] as impressões que a criança recebe do
ambiente interferem nas forças vitais que estão atuantes no
desenvolvimento e no crescimento de seu organismo”. Deste modo,
podemos compreender que a formação orgânica da criança possui estreita
relação com tudo que a circunda
10
. O ser humano quando nasce é um ser
incompleto, com capacidade de autoformação, por meio do
desenvolvimento físico e psíquico do indivíduo, e de formação a partir de
condições e estímulos oferecidos por outros seres humanos,
principalmente os adultos. Os três primeiros anos de vida de toda criança
possui fundamental importância, pois neste período, a criança desenvolve
o andar, o falar e o pensar.
10
Ao refletirmos sobre a influência da ambiência sobre a organização corpórea da criança, podemos
pensar o quanto é benéfico para uma criança um ambiente tranquilo, limpo e organizado. E o
quanto será prejudicial para a mesma, em sua organização corporal, um ambiente sujo e
desorganizado.
30
Nesta concepção, até os sete anos de idade da criança, o pensar
possui uma natureza orgânica, pois as mesmas forças que configuram a
manutenção da saúde, constituem o pensar.
11
Ou seja, na Pedagogia
Waldorf, nesta faixa etária, o pensar se realiza por meio do corpo, logo, o
brincar possui papel fundamental para o desenvolvimento da criança.
Todavia, é somente no final do terceiro setênio, que o ser humano é capaz
de educar a si próprio, ou seja, o pensar como atividade da consciência
deverá ocorrer em torno dos 21 (vinte e um) anos de idade. Neste período
de vida, o jovem desenvolve a sua individualidade (Eu).
Ao observar o mundo, o ser humano busca a compreensão do
mesmo, e em busca de saber explicá-lo, o ser humano coloca-se em um
lugar de oposição, ou seja, a partir do pensar, o ser humano criou uma
linha divisória entre o Eu e o mundo. Esta dualidade parte do pressuposto
de que o ser humano é estranho a esta natureza externa. Nesta
compreensão sobre o mundo, o ser humano se empenha em conciliar uma
série de dualidades: espírito e matéria, sujeito e objeto, pensamento e
fenômeno.
Além da problemática da valorização do pensar no ensino escolar
tradicional, Rudolf Steiner se questionava sobre os modos de pensar a
partir de parâmetros universais. No geral, o ser humano desenvolve o
pensar conforme hábitos mentais pré-estabelecidos, segundo um modelo
de seu contexto cultural. Todavia, a partir da Antroposofia, Steiner
desenvolve a categoria do pensar intuitivo, no qual o sujeito consegue
pensar o mundo por meio de suas vivências, não se limitando a um modo
11
Com base na Antroposofia, até os sete anos de idade da criança, compreende-se que as forças do
pensar são de natureza orgânica, logo, tendo esta premissa, percebe-se a importância em não exaurir
a criança antes dos sete anos com excessivas atividades intelectuais, pois são estas forças plasmadoras
do pensar que possibilitam a manutenção da saúde da criança.
31
repetitivo de pensar, seja por meio da representação ou qualquer padrão
imposto.
Retomemos o contexto escolar tradicional e nos indagamos: que
liberdade tem os sujeitos na escola sobre o ato de pensar? Ou até mesmo:
a vontade, o afeto, os sentimentos são colocados em questão perante tal
ato? Na busca do equilíbrio entre sensibilidade e razão, a concepção de
liberdade defendida por Steiner evidencia os limites da tradição, tendo
como premissa o método intuitivo, alheio a qualquer coerção, na tentativa
de ultrapassar o sentido materialista atribuído à finalidade da vida, ou seja,
na superação de determinismos.
A educação tem como referência a razão para o desenvolvimento
da consciência. De acordo com Bach (2015, p. 131) “ é o aguçamento no
uso da racionalidade que faz a consciência convencional do senso comum
atingir o patamar filosófico”. Mas na teoria de Rudolf Steiner, este patamar
filosófico a ser alcançado está na possibilidade da faculdade humana em
desenvolver a capacidade intuitiva da consciência, ou seja, o pensar
intuitivo, o qual transcende a razão. De acordo com este autor, o
desenvolvimento deste pensar envolve um processo metodológico, em que
“[...] o sujeito se insere no aspecto heurístico para o desenvolvimento do
pensar intuitivo” (ibid., p. 133). Logo o pensar intuitivo é compreendido
como uma categoria, a qual só é possível, dentro de uma perspectiva da
autoeducação, ou seja, “[...] o pensar intuitivo é uma categoria dentro de
um processo de observação fenomenológica do ser humano. A observação
do pensar é o ponto de partida para o seu desenvolvimento que só pode
ser realizado por autoeducação” (ibid., p. 132).
O ato de pensar proposto por Steiner tem como origem o eu. É
por meio do eu que as ideias são ativadas. De acordo com os autores, sua
teoria do conhecimento defende o desenvolvimento do pensar de modo
32
multiforme, e de modo algum este ato ocorreria mediante parâmetros
universais:
O pensar é atividade pura, não corresponde à mera repetição de
pensamentos alheios, memorizados, habituais ou tradicionais. A
repetição mecânica, autômata ou alienada de pensamentos é mera
reprodução de conteúdo observado, é multiplicação da observação
(BACH et al,. 2013, p. 10).
Com base nesta concepção de ser humano, a atuação do educador
ou do adulto por meio de uma mentalidade científico-espiritual, deve
considerar tais premissas para realizar na vida prática o desenvolvimento
saudável do indivíduo na constituição do pensar, caso contrário, este
desenvolvimento estará comprometido.
Considerações Finais
O predomínio da valorização da razão, através da concepção
cartesiano-racionalista no ensino escolar tradicional demonstra-se ser
insuficiente, em vista dos desafios da atualidade no que tange sobre as
questões referentes à formação e desenvolvimento do ser humano a partir
de aspectos psíquicos, socioculturais e socioambientais, entre outros. Logo,
com base nos estudos teóricos e práticos da Antroposofia, e da Pedagogia
Waldorf, devemos desenvolver um olhar atento sobre a atuação docente,
considerando importantes princípios para a aprendizagem do ser humano,
entre eles, a integração entre o pensar, o sentir e o querer.
Rudolf Steiner afirmava que os desafios e as problemáticas sociais
do século XX eram reflexo de um desequilíbrio do ser humano, o qual se
33
desligou de suas memórias ancestrais, de sua natureza e de sua conexão
com o mundo. Logo, a Antroposofia enquanto área de conhecimento
sobre o ser humano e a Pedagogia Waldorf como modo de
desenvolvimento do ser humano em espaços educativos, apresentam
grande relevância para a educação contemporânea, pois segundo Steiner
(2012, p. 13) “[...] fortalece os mais frutíferos e práticos meios para a
solução das presentes questões existenciais da atualidade”.
Em síntese, na Antroposofia, a constituição do pensar considera a
experiência por meio das vivências, e por consequência as sensações
advindas das mesmas, como condição sine qua non para a compreensão e
atuação sobre o mundo. Além disso, a ideia sobre a formação e o
desenvolvimento humano nesta concepção filosófica se desenvolveram por
meio do conceito de Bildung, considerando a ética, a estética e a
espiritualidade. Neste contexto, as concepções sobre a educação em Rudolf
Steiner se fundamentam no princípio de que a educação é um tema de
ordem social e cabe à nós, professores, discutir e compreender sobre quais
são as necessidades sociais de nossa época.
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educação de Steiner. Curitiba: Lohengrin, 2019.
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para a liberdade. Educar em Revista, n. 56, p. 131-145, abr./ jun. 2015.
Editora UFPR.
34
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educação fenomenológica. Revista Educativa, Goiânia- GO, v. 16, n. 1,
p. 5-23, jan./jun. 2013.
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do pensamento cartesiano-newtoniano. In: CAPRA, F. (org.). O Ponto
de mutação. São Paulo: Cultrix, 2012.
FLUSSER, V. Naturalmente: vários acessos ao significado de natureza.
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ed. atual. São Paulo: Antroposófica. Associação Comunitária Monte
Azul, 2014.
MOSÉ, V. O homem que sabe: do homo sapiens à crise da razão. 3. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
STEINER, R. A cultura atual e a Educação Waldorf. São Paulo:
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STEINER, R. A educação da criança: segundo a ciência espiritual. 5. ed.
São Paulo: Antroposófica, 2012.
STEINER, R. Teosofia: introdução ao conhecimento suprassensível do
mundo e do destino humano. 7. ed. retraduzida e atual. São Paulo:
Antroposófica, 2004.
35
Educação e a Ideia de Ser Humano:
orientões da Ctica da Faculdade do Juízo e Sobre
a Pedagogia de Immanuel Kant
Renata Cristina Lopes ANDRADE
12
Introdução
Fundamentado no exame conceitual da filosofia de Immanuel
Kant (1724-1804), buscaremos, no presente capítulo, elucidar e refletir
sobre a educação e a ideia de ser humano em Kant. Os esclarecimentos e
reflexões ocorreram, particularmente, a partir das obras Crítica da
faculdade do juízo (1790) e Sobre a pedagogia (1803). Considerando a ideia
de humanidade, bem como as concepções de fim ou destinação do ser
humano, pretendemos discutir como a educação, segundo o projeto de
educação desenvolvida e justificada por Kant, se apresenta como um dos
caminhos para o alcance de tal ideia, a saber: o ser humano enquanto em
ser moral e livre.
12
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia
e Ciências. Unesp, Campus de Marília. Docente Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em
Educação - PPGEDU/FURG. Pesquisadora dos Grupos de Estudos e Pesquisas: “Grupo de Estudo
e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade/GEPEES”, “Desenvolvimento sociomoral de crianças e
adolescente”, “Formação de Professores e Práticas Educativas/NUFOPE” e “Trabalho, Educação e
Docência/GTED”. E-mail:
renatacrlopes@yahoo.com.br
https://doi.org
/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p35-58
36
Compreender o modo como a educação pode se fazer presente no
alcance do fim ou destinação do ser humano, justifica a abordagem de
Kant, no interior da sua filosofia, da necessidade da formação e do
desenvolvimento moral de alunos e alunas. Noutras palavras, ao
abarcarmos a educação como um dos caminhos para a efetivação da ideia
de humanidade, podemos vislumbrar um dos motivos em Kant, além da
própria moralidade, da necessidade do ensino, no sentido de formação e
de desenvolvimento, da ética.
Em nossa visão, a atenção com a formação moral via processos
educativos implica, ademais, na indispensável consideração com as diversas
dimensões do ser humano, o que permite a complexa ação educação, não
considerar, somente, a dimensão epistemológica dos educandos, em
termos kantianos, somente a sua razão especulativa. Segundo Kant, a razão
humana apresenta dois usos ou interesses, o Teórico ou Especulativo e o
Prático ou Moral. A razão, enquanto a faculdade dos princípios, dos
princípios do conhecimento especulativo e dos princípios práticos ou
morais, há, consequentemente, a possibilidade da formação moral do
educando, ou seja, a formação ou o desenvolvimento de uma faculdade ou
capacidade própria de todo ser humano. Ora, não se tratará de aprender
regras ou normas morais dadas pela sociedade, pela tradição ou pela
religião, regras ou normas que, em última instância, são somente
comportamentais, o que se encerraria em mera moralização muito distante
de qualquer formação genuinamente moral, não se tratará de qualquer
transferência ou imposição, mas antes, da formação e do desenvolvimento
de uma faculdade própria de todo ser humano.
Em Kant, tendo em vista a racionalidade humana ou a sua
faculdade dos princípios, a moralidade pode ser ensinada, no sentido de
formada e desenvolvida e, considerando a sua porção apetitiva, impulsiva,
de tendências ou de inclinações, a moralidade necessita ser ensinada.
37
Conforme explica Santos (2011, p. 209), o ser humano é o destinatário da
moralidade em sua perspectiva sensível e, ao mesmo tempo, o portador da
moralidade em sua perspectiva racional. Sendo assim, o que é constitutivo
do ser humano, enquanto ser racional, é preciso ser desenvolvido e
conquistado. (SANTOS, 2011, p. 214). Um dos recursos que podemos
lançar mão para esse desenvolvimento e alcance é a educação, de acordo
com Kant (1999, p. 12), a Arte de Educar.
Portanto, elucidar e refletir sobre a ideia ou o fim do ser humano
em Kant, ponderar sobre a necessária união entre a educação e os valores e
princípios morais e éticos, representa refletir sobre o desenvolvimento de
possibilidades próprias do ser humano.
Ao tratar da formação moral, ao abordar a ideia, o fim ou a
destinação do ser humano, enxergando na educação as dimensões que
constituem o do ser humano, por exemplo, a sua dimensão moral, ética e
livre, a faculdade prática da razão humana, podemos marcar a importância
e a necessidade da discussão moral na formação dos educandos, tanto no
interior do próprio pensamento kantiano, como para a complexa ação
educativa, a qual envolve a formação de professores, as práticas educativas,
a escola, os agentes escolares, as políticas públicas educacionais (dentre
outros), formação e desenvolvimento que, em grande medida, são
negligenciados. Como observou Kant na Antropologia de um ponto de vista
pragmático, existem aspectos da constituição humana que não devem ser
ignorados, a dimensão moral, ética e livre, o aspecto psicológico, bem
como a dimensão política. (KANT, 2006, p. 28).
Desse modo, trazemos, neste momento, a análise, e apresentamos
a aposta, de perspectivas educacionais que possam considerar os valores,
ou seja a dimensão moral e ética do educando. Oferecemos a reflexão de
conceitos e da estrutura argumentativa dos princípios filosóficos do
pensamento kantiano acerca da educação, da moralidade e da ideia de ser
38
humano, o que pode contribuir para o resgate de elementos educacionais,
morais e éticos, fundamentais. Se desejamos a formação educacional para
valores, bem como a efetivação de ações éticas no mundo, pensamos ser
importante a reflexão profunda dos princípios e dos conceitos morais e
educacionais que podem alcançar tal formação e ação. Olhando para a
tentativa de formar e desenvolver a Humanidade, a qual, segundo Kant, é
própria de todo ser humano, afirmamos que esse é um tipo de exercício
requerido.
Então, iremos abordar a educação, a moralidade, a ideia ou o fim
do ser humano com todo o rigor que a questão exige. Definir os objetivos
educacionais junto do processo de análise minucioso, da clareza dos
conceitos, dos princípios e dos valores que possam orientar a complexa
ação educacional exprime a oportunidade de direção, de progresso e de
exercício para a vida humana, significa o trabalho filosófico ampliando o
alcance da filosofia. Eis os esclarecimentos conceituais para perspectivas
educacionais e formativas.
A ideia de ser humano e a formação moral
Na Doutrina do Método da Crítica da faculdade do juízo – “Do uso
teleológico da faculdade do juízoKant expressa o seu interesse no ser
humano, também, em sua dimensão moral. A teleologia, de acordo com
Kant (1993, p. 257), conserva o interesse nos produtos da natureza e em
suas respectivas causas e fundamentos, fora e acima da natureza. Noutras
palavras, os princípios ou os juízos teleológicos, parte da natureza para as
suas causas e fundamentos.
É nesse momento de sua terceira Crítica que Kant expõe a ideia do
ser humano enquanto o fim terminal da natureza, no entanto, realiza essa
39
afirmação com a ressalva de que somente podemos conceber o ser humano
como um fim terminal sob a ideia da liberdade, ou seja, sob a condição
humana moral e livre. Grande parte do percurso de Kant na Doutrina do
método da faculdade de juízo teleológica diz respeito a um fim terminal da
natureza, a saber, o ser humano, porém, vale ressaltar, somente sob sua
moralidade e liberdade.
Ora, se apenas podemos conceber o ser humano como o fim
terminal da natureza sob a condição da moralidade e da liberdade, sob a
sua capacidade moral e livre, então, talvez seja correto compreender o ser
humano enquanto o ser da liberdade, ou seja, pensar o fim terminal do ser
humano em sua própria liberdade. Afinal, para conceber a ideia de
humanidade ou o fim terminal da humanidade, Kant não o faz pelas
habilidades, pelos conhecimentos, pela prudência ou pela civilidade, mas
antes, o faz pela moralidade e liberdade. Para designar a ideia ou o fim
terminal da humanidade, o ser humano moral e livre se faz presente
necessariamente
13
.
Além dos conhecimentos especulativos, das habilidades e da
prudência, conforme explica Menezes (2010, p. 123), o ser humano para
Kant apresenta um alvo, um desígnio maior, o seu fim, a saber: a
moralidade e a liberdade.
Assim, a teleologia kantiana, da natureza para as suas causas e
fundamentos, no âmbito da terceira Crítica, designa a moralidade e
liberdade do ser humano enquanto o seu fim, do mesmo modo o coloca
na condição de fim terminal da natureza. Para compreendermos essa
posição, devemos entender o que o filósofo chamou de ‘fim’ e de ‘fim
terminal’ na Crítica da faculdade do juízo. Vejamos.
13
Em favor dessa posição, temos a interpretação de Höffe no artigo “O ser humano como fim
terminal: Kant, Crítica da faculdade do juízo, §§ 82-84”.
40
Segundo Kant (1993, p. 266), chama-se fim o efeito representado,
isto é, o que se espera, quer ou deseja de uma ação cuja representação é, ao
mesmo tempo, o fundamento de determinação para a causa inteligente e
atuante. Para o caso das ações humanas, a causa inteligente e atuante é o
próprio ser humano, a sua vontade e razão. Vale dizer que a vontade, no
pensamento moral kantiano, é apontada como uma faculdade de ação. É
válido dizer, também, que: “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser
racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é,
segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade” (KANT, 1980, p. 123).
Desse modo, a vontade, para Kant, é uma faculdade de ação mediante a
representação de normas, regras, leis. Portanto, de acordo com Menezes
(2010, p. 105) “o conceito de fim (Zweck) é, primeiramente, prático”.
O fim, isto é, o efeito representado que é, ao mesmo tempo,
fundamento de determinação de uma ação, pode estar na própria causa
inteligente atuante e, se o fim está na causa inteligente atuante ou é
dependente apenas dela própria, de acordo com Kant, não se resume
apenas a um mero fim, mas, também, a um fim terminal (Endzweck)
“um fim terminal é aquele que não necessita de nenhum outro fim como
condição de sua possibilidade”. (KANT, 1993, p. 275)
14
.
Para o caso do fim se encontrar fora da causa inteligente atuante,
por exemplo, em um outro ser humano ou em um outro ser da natureza,
o fim não se caracterizará como um fim terminal, mas sim e,
necessariamente, será um fim que é ao mesmo tempo meio, ou seja, o fim
é, ao mesmo tempo, meio para outra coisa qualquer.
14
Faggion aponta que: “Fim terminal” é a tradução de Valério Rohden e António Marques para
Endzweck” [...]. A opção de tradução se justifica porque “End”, em alemão, significa o “fim”, no
sentido de um “termo” ou “final” de uma série, ao passo que “Zweck” é o “fim”, no sentido de um
“objetivo”, “intenção” ou “finalidade”. O “Endzweck” é, portanto, um fim incondicionado ou sem
outro fim como condição. Este fim, para Kant, é o homem sob leis morais”. (FAGGION, 2009, p.
149).
41
Observamos no âmbito da Crítica da razão pura, na “Arquitetônica
da razão pura, que Kant igualmente nos fala sobre um fim terminal e o
diferencia de todos os fins ditos subalternos. Aponta que no fim terminal
está toda a destinação do ser humano e “a filosofia sobre ela se chama
moral”. Para Kant (1993, p. 271), o único ser na terra que pode ser um
fim terminal, ou seja, o fim está na própria causa inteligente atuante ou é
dependente apenas dela própria, é o ser humano. O ser humano, é o único
ser na terra que possui uma razão e uma faculdade voluntária,
consequentemente, pode, voluntariamente, agir por si só e colocar-se fins,
independentemente de qualquer outro ser. Dito de outro modo, apenas o
ser humano pode propor e assumir fins sem dependência do outro. Nas
palavras de Kant:
Ora, nós temos somente uma única espécie de ser no mundo, cuja
causalidade é dirigida teleologicamente, isto é, para fins, e, todavia, de
tal modo constituída que a lei segundo a qual ela, determina fins, é
representada por eles próprios como incondicionada e independente
de condições naturais, mas como necessária em si mesma. Esse ser é o
homem [...] o único ser da natureza no qual podemos reconhecer, a
partir da sua própria constituição, uma faculdade suprassensível (a
liberdade) (KANT, 1993, p. 275-276).
Sobre a capacidade de se propor e assumir fins, de acordo com
Kant (2004, p. 15), é algo próprio do ser humano. Somente o ser humano,
graças a sua constituição racional, pode propor e assumir algo como sendo
o seu fim, o ser humano pode colocar fins a si próprio porque se
experimenta como “ser livre atuante” (MARTINS, 2006, p. 14).
Na terceira Crítica, Kant (1993, p. 272) reforça a capacidade do
ser humano de se colocar fins em geral, como sendo uma aptidão própria
42
humana, uma condição subjetiva própria do indivíduo, a aptidão de se
colocar fins em geral, independentemente de qualquer outro na
determinação dos fins. Lembrando que somente o ser humano é capaz de
se propor e assumir os seus fins, então, podemos dizer que o próprio ser
humano pode se colocar na condição de fim terminal da natureza “aquilo
que ele próprio tem que fazer para ser fim terminal”. (KANT, 1993, p.
271), bem como de se colocar um fim terminal à sua própria existência,
uma vez que, por sua razão e vontade, é capaz, não apenas de se colocar e
escolher fins em geral, mas, também, de escolher e selecionar os seus fins.
No entanto, o ser humano, por si só, pode não desenvolver a
habilidade de propor e assumir os seus fins em geral, do mesmo modo,
pode não desenvolver a faculdade de se colocar, selecionar, adotar e
determinar os seus fins (certos fins), isto significa, no contexto da terceira
Crítica, não fazer o que tem que ser feito para ser um fim terminal da
natureza ou não efetivar o fim terminal da sua existência.
Para Kant (1993, p. 272), a formação dessa habilidade, a produção
de uma aptidão para fins desejados em geral, é a cultura
15
.
Acerca da formação ou cultura das habilidades, notamos que há o
acordo entre as obras: Crítica da razão pura “este propósito prático é ou
o da habilidade ou o da moralidade; a primeira refere-se a fins quaisquer e
contingentes, a segunda, no entanto, a fins absolutamente necessários”
(KANT, 1983, p. 401); Crítica da faculdade do juízo“decerto a cultura
da habilidade Geschickichkeit é a condição subjetiva preferencial da aptidão
para a promoção dos fins em geral” (KANT, 1993, p. 272); e,
posteriormente, Sobre a pedagogia “a cultura é a criação da habilidade e
15
Segundo Oliveira (2004, p. 456), os termos Bildung e Kultur são, por vezes, usados como
sinônimos por Kant, concordamos com essa posição e compreendemos a utilização dos termos
enquanto sinônimos.
43
esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que
almejamos” – (KANT, 1999, p. 25-26)
16
.
A questão que levantamos aqui é: no âmbito da terceira Crítica, ser
capaz de propor e assumir fins em geral, significa fazer o que tem que ser
feito para ser um fim terminal da natureza ou efetivar o fim terminal da
existência humana?
No contexto da Sobre a pedagogia, para a plena formação do ser
humano, não basta o desenvolvimento e cultivo somente das habilidades,
a educação integral, de acordo com o filósofo, envolve a formação:
mecânico-escolástica, com o desenvolvimento das habilidades, das
qualidades e das capacidades; a formação pragmática, mediante a formação
da prudência e da civilidade; e, por fim, a formação moral, formando o
caráter, a virtude e a Pessoa.
Ainda de acordo com as preleções Sobre a pedagogia, para a última
etapa da educação prática, ou seja, o desenvolvimento moral ou do caráter,
acerca dos fins propostos e assumidos, ou seja, os fins da ação, Kant aponta
que o fim proposto e assumido deverá ser, necessariamente, um bom fim.
Sobre o bom fim ou o fim moral, na Metafísica dos costumes, diz respeito a
um fim que é, ao mesmo tempo, dever, o fim da ação enquanto um dever
de virtude e, na Sobre a pedagogia, diz respeito a um fim aprovado por
todos e que pode ser, ao mesmo tempo, o fim de cada um.
No campo da terceira Crítica, para que o ser humano possa ser
considerado o fim terminal da natureza ou efetivar o fim terminal da sua
16
Na Crítica da faculdade do juízo há a problemática de um fim terminal da natureza, a saber, o
próprio ser humano, bem como um fim terminal da natureza humana, que se encerra na
moralidade, isto é, na condição moral e livre da natureza humana. Com as preleções Sobre a
pedagogia, temos presente a problemática da plena formação do ser humano que, também, se encerra
na moralidade, no ser humano moral e livre a moralidade para que o ser humano possa atingir a
sua plena formação ou seu fim. Conforme posto na Sobre a pedagogia ou, conforme expresso no
âmbito da terceira Crítica, ser o fim terminal da natureza e atingir o seu próprio fim.
44
própria existência, o filósofo afirma, do mesmo modo que na Sobre a
pedagogia, que não se trata de todo e qualquer fim proposto e assumido ou
somente de uma aptidão para poder eleger e adotar fins em geral, como
aponta Martins: “a própria existência humana não pode ser considerada
um fim terminal pela satisfação material de suas necessidades”.
(MARTINS, 2012, p. 117).
O desenvolvimento da cultura ou habilidades possibilita ao ser
humano eleger e atingir os fins gerais que ele quer para si, a formação
moral, por sua vez, possibilita a escolha apenas dos bons fins. Na explicação
Bueno:
Essa prática tem a ver com as escolhas que o ser humano faz. Nesse
estágio do processo educacional, o foco não é a habilidade para se
alcançar fins, mas a educação para que o homem possa escolher fins
que possam ser considerados bons (BUENO, 2012, p. 174).
Sendo assim, será preciso não apenas a cultura da habilidade, a
aptidão para a promoção de fins em geral, mas, também, o que o Kant
chamou, na Crítica da faculdade do juízo, de cultura da disciplina (KANT,
1993, p. 272), isto é, a própria disciplina, o primeiro momento da
educação prática, exposta nas preleções Sobre a Pedagogia.
A Educação Prática, com os momentos de disciplina e de
formação, desenvolverá a humanidade do ser humano. Para a formação e
o desenvolvimento da sua humanidade, o ser humano deve ser educado.
Por Humanidade, Kant entende o desenvolvimento das habilidades, das
qualidades, das capacidades, o desenvolvimento da prudência e da
civilidade, a conquista do conhecimento e o alcance da moralidade e da
liberdade.
45
De acordo com Kant (1993, p. 272), a cultura ou formação da
habilidade desenvolve somente a habilidade ou a aptidão para fins em
geral, somente a aptidão para todo e qualquer fim que o ser humano almeja
ou poderá almejar, não sendo, portanto, suficiente para guiar a vontade
por si só na escolha e na seleção dos seus fins, a cultura da disciplina será
aqui necessária.
Na terceira Crítica, a disciplina é, do mesmo modo que na Sobre a
pedagogia, apenas negativa, diz respeito ao tratamento inicial às inclinações
humanas. A disciplina é definida pelo filósofo como uma condição, um
estágio preliminar e indispensável à educação completa do ser humano, diz
Kant: “a disciplina transforma a animalidade em humanidade” (KANT,
1999, p. 12). Na Crítica da faculdade do juízo, a disciplina:
[...] consiste na libertação da vontade em relação ao despotismo dos
desejos, pelos quais nós nos prendemos a certas coisas da natureza e
somos incapazes de escolher por nós mesmos, enquanto permitimos
que os impulsos sirvam para nos prender, os quais a natureza nos
forneceu como fios condutores para não descurarmos em nós a
determinação da animalidade ou não a ferirmos, já que somos até
suficientemente livres para atrair ou abandonar, prolongá-la ou
encurtá-la, segundo aquilo que exigem os fins da razão (KANT, 1993,
p. 272).
Kant (1993, p. 274), ainda diz que a disciplina das inclinações, das
tendências e dos impulsos, os quais “dificultam o desenvolvimento da
humanidade”, é necessária, precisamente, para que os seres humanos
possam se tornar “receptivos para uma formação que nos pode fornecer
fins mais elevados”.
46
Vemos aqui que a disciplina, com o intuito de que a natureza
humana possa se reconhecer como o fim terminal da natureza e,
igualmente, atingir o fim terminal da sua própria natureza, é, também,
como exposto na Sobre a pedagogia, um momento preliminar para o que
pode vir a ser, ou seja, a formação e efetivação da moral e da liberdade do
ser humano, a criação do caráter, o desenvolvimento da pessoa, possíveis
via a plena formação e educação do ser humano.
Na Crítica da faculdade de julgar, Kant revela a necessidade da
disciplina para domar a inclinação e alcançar a liberdade, na Sobre a
Pedagogia, o filósofo aponta a disciplina enquanto um momento
preliminar e necessário para alcançar a destinação humana, a saber, a
liberdade. Observamos que, tanto na terceira Crítica, como nas preleções,
a disciplina, enquanto parte da educação plena do ser humano, é
indispensável para que os seres humanos possam eleger e selecionar os seus
fins, eleger e se determinar por fins mais elevados, o que Kant chama de
fins morais, e, desse modo, alcançar a sua liberdade. Segundo Menezes:
O segundo tipo de cultura é a cultura da disciplina (Kultur der Zucht
[Disziplin]). As inclinações dificultam muito o desenvolvimento da
humanidade, porque atrapalham os homens em seu afã de estabelecer
fins. Logo, impõe-se uma disciplina especial como condição necessária
a essa atividade. A segunda forma de cultura é negativa e consiste na
liberação da vontade face ao despotismo dos desejos (MENEZES,
2011, p. 119).
Na terceira Crítica, bem como na Sobre a Pedagogia, as habilidades
dizem respeito à possibilidade de se propor todo e qualquer fim, a
disciplina, por sua vez, se faz necessária, no primeiro momento, para que,
uma vez domada a animalidade ou a rudeza no ser humano, seja possível,
47
no segundo momento, a escolha e determinação somente dos/pelos bons
fins, os quais são, segundo Kant, os fins morais e mais elevados. Com base
em fins morais, haverá a promoção do fim terminal da natureza e da
natureza humana, do mesmo modo, a possibilidade da inteira formação
do ser humano.
Acerca da disciplina e dos bons fins ou fins morais para os seres
humanos: “no primeiro período, o constrangimento é mecânico; no
segundo, é moral” (KANT, 1999, p. 30). Em um primeiro momento, a
determinação da ação pode ser mecânica, posteriormente, a determinação
ou razão da ação é moral, isto é, por razões morais.
Nesse sentido, com a atenção à formação moral dos seres humanos,
uma formação, também, para os valores, além do desenvolvimento único
e exclusivamente cognitivo, para o acúmulo de informações e de
conhecimentos, enxergamos a educação enquanto um dos caminhos para
o possível fim terminal da natureza ou da criação, da mesma forma, para a
própria ideia ou fim terminal da natureza humana, afinal:
[...] só no homem mas também neste somente como sujeito da
moralidade se encontra a legislação incondicionada relativamente a
fins, a qual por isso torna apenas ele capaz de ser um fim terminal
(KANT, 1993, p. 276).
Logo, o ser humano apenas pode ser um fim terminal da natureza
e o fim da sua existência, na qualidade de um ser moral e livre, isso significa
quando se propõe e assume fins mais elevados, fins incondicionados.
Quando houver um fim específico determinando a sua ação, que se trate,
necessariamente, de fins que são ao mesmo tempo deveres, em última
48
análise, deveres éticos, eis a legislação (autolegislação) universal e
incondicionada relativa a fins.
Daqui decorre a possibilidade de um fim terminal da natureza, ou
seja, o próprio ser humano, o único ser na terra capaz, dada a sua
racionalidade e a sua faculdade voluntária, de agir segundo fins dados e
assumidos por si só, de agir a partir da possibilidade da escolha apenas dos
bons fins, bem como a possibilidade da ideia ou de um fim terminal da
natureza humana, o ser moral e livre, o que, segundo Kant (1993, p. 283),
implica em um valor absoluto da humanidade.
Importa ressaltar que a possibilidade de um fim terminal da
natureza, do mesmo modo a própria ideia ou fim terminal do ser humano,
não se expressam pela faculdade do conhecimento do ser humano, também
não está na mera relação dos sentimentos de prazer ou bem-estar. A
possibilidade de um fim terminal da natureza e o próprio fim terminal da
natureza humana se expressam pela faculdade prática da razão humana, no
agir e nas ações, as quais devem ser segundo valores e princípios morais,
efetivando a moralidade e a liberdade humana. De acordo com Kant na
terceira Crítica:
Por isso é somente a faculdade de apetição, mas não aquela que o torna
dependente da natureza (através dos impulsos sensíveis), nem aquela
em relação à qual o valor da existência assenta no que ele recebe e goza,
mas sim o valor que somente ele pode dar a si próprio, e que consiste
naquilo que ele faz, no modo e segundo que princípios ele atua, não
enquanto membro da natureza, mas na liberdade da sua faculdade de
apetição, isto é, só uma boa vontade é aquilo pelo qual unicamente a
sua existência pode ter um valor absoluto e em relação ao qual a
existência do mundo pode ter um fim terminal (KANT, 1993, p. 283).
49
Em alguns momentos, na Sobre a pedagogia:
A disciplina é o que impede ao homem de desviar-se de seu destino,
desviar-se de sua humanidade (KANT, 1999, p. 12).
[...] desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que
o homem atinja a sua destinação [...] O homem, pelo contrário, é
obrigado a tentar conseguir o seu fim [...] o indivíduo humano não
pode cumprir por si só a sua destinação (KANT, 1999, p. 18).
[...] segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a
idéia de humanidade e de sua inteira destinação (KANT, 1999, p. 22).
[...] a perfeição a que está destinada a humanidade e para qual esta tem
as disposições (KANT, 1999, p. 23).
De acordo com Kant, somente o ser humano, moral e,
consequentemente, livre, pode ser fim terminal, do mesmo modo,
reconhecer e efetivar a sua própria ideia, fim ou destinação.
Acerca da ideia ou o fim terminal da natureza humana, Höffe
(2009 p. 22), esclarece que o ser humano, na condição de fim terminal,
“fim nele mesmo”, exposto por Kant na terceira Crítica, dispõe das mesmas
características do ser humano enquanto fim em si mesmo, desenvolvido
anteriormente pelo filósofo na Fundamentação da metafísica dos costumes.
O fim em si apresentado por Kant na ocasião de sua
Fundamentação, diz respeito a um fim que não é, ao mesmo tempo, um
meio para tal ou tal coisa, trata-se de um simples fim um fim em si
mesmo o qual apresenta em si mesmo um valor absoluto, íntimo e não
relativo. Porém, a novidade na Crítica da faculdade do juízo é o ser humano
abordado junto da totalidade da natureza, totalidade que não era do
interesse da filosofia moral pura.
50
Cabe ainda dizer que, de acordo com Höffe (2009, p. 20), o fim
terminal de toda a criação está no ser humano, nesse sentido, “o ser
humano como ser moral e, por conseguinte, como ser da liberdade, é o
senhor da natureza”, mas
[...] isso não significa certamente que a natureza toda seja apenas um
meio de satisfação das necessidades e interesses humanos. Ao contrário
de uma instrumentalização de toda a natureza como um
autoprivilegiamento ‘egoísta’ simultâneo da espécie humana, o homem
não vale como tal, mas apenas o ser moral enquanto fim terminal
(HÖFFE, 2008, p. 19).
O ser humano enquanto fim terminal, ou fim em si mesmo, está,
precisamente, no agir fundado (e em todos os casos) em princípios, o que
resulta, ademais, na liberdade e no valor absoluto da humanidade. Nas
palavras de Kant:
O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem
tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma
necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, a uma satisfação no
jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um
preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que
constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim
em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço,
mas um valor íntimo, isto é, dignidade (KANT, 1980, p. 140).
Segundo Kant, a moralidade, a liberdade, o caráter, a virtude, a
dignidade, são a condição (única) para fazer do ser humano, ser sensível e
racional, um fim em si ou, conforme proposto na terceira Crítica, terminal.
51
Queremos reforçar que a moralidade em Kant, isto é, a condição
direta para que possamos pensar o ser humano enquanto o fim terminal
da natureza e, da mesma maneira, conceber a sua própria ideia, fim ou
destinação humana, é possível, de acordo com a concepção do filósofo, por
meio da educação.
Mediante a educação moral do educando, o que resultará na
efetividade da ética na vida humana, o ser humano será capaz de agir no
mundo de modo a realizar o que é necessário para ser o fim terminal da
natureza, ou seja, o ser humano enquanto fim em si mesmo. Devemos
salientar que a natureza humana se apresenta como um fim em si mesma
mediante a escolha dos seus fins, bem como por poder não se servir de si e
nem dos outros enquanto meio para isso ou aquilo.
A educação para Kant é um dos caminhos capazes de preparar o
ser humano para as suas ações morais no mundo, implicando: i) formar
para a moralidade e efetivar a ética a ação em geral com valor moral; ii)
reconhecer o ser humano como o fim terminal da natureza; iii) alcançar a
própria ideia ou fim da natureza humana, a moralidade e a liberdade.
No pensamento e no projeto filosófico-educacional de Kant,
enxergamos a possibilidade e a oportunidade da formação plena do ser
humano, uma formação que traz à luz a Humanidade e, a plena educação
em Kant, reflete na formação para a ideia ou o fim terminal do ser humano.
Vemos, desse modo, a possibilidade da educação, pensada e apresentada
com um importante desígnio, fundamentalmente, Moral e Ético.
52
Reflexões Finais
Concebendo que a possibilidade de um fim terminal da natureza,
do mesmo modo, a própria ideia ou fim terminal da natureza humana, não
se expressam pela faculdade do conhecimento do ser humano, bem como
não se apresentam na mera relação dos sentimentos de prazer ou bem-estar
ou em suas habilidades, mas antes estão relacionadas com a faculdade
prática da razão humana, na moralidade e na liberdade humana e, sendo a
educação um dos mecanismos apontados por Kant para o alcance dessa
ideia ou fim, um dos caminhos para a realização moral da natureza
humana, queremos encerrar nossas colocações com algumas questões: é
possível, a partir da filosofia da educação, ter novas ou renovadas atitudes
e condutas em relação à formação e aos espaços educacionais? É oportuno
pensar, com rigor e cautela, no ser humano que podemos formar via
educação e que esperamos encontrar nas realizações e experiências reais?
Sugerimos essas questões, pois, de outro modo, “sem respostas claras, abre-
se o cenário para projetos políticos, sociais e educacionais convincentes que
escondem sua “liquidez” gerando possíveis referências sob falsas
premissas”. (LEPRE; ARRUDA, 2020, p. 07).
Pensando junto de Kant, e tendo em vista a integralidade do ser
humano, a formação somente dos princípios do conhecimento, a formação
escolástica e pragmática, as habilidades e a prudência, o que resulta,
segundo o filósofo (2004, p. 81), na perfeição física e na aptidão para toda
e qualquer espécie de fins, não é suficiente. Em Kant, olhando para a
plenitude e a possibilidade do valor moral das ações humanas, são
imprescindíveis os princípios e a formação moral, o que resulta na
perfeição moral e futura felicidade da natureza humana. Uma vez que a
habilidade e a prudência, ou seja, os princípios do conhecimento, podem
não abarcar apenas o conhecimento especulativo, mas também, por vezes,
53
direcionar o agir humano, isto é, fornecer os fins da ação algumas
formas de habilidade são úteis em todos os casos, por exemplo, o ler e o
escrever; outras só são boas em relação a certos fins” e “a prudência de não
nos servimos dos outros homens para os nossos fins” o desenvolvimento
dos princípios morais é necessário para tornar possível a escolha, a decisão
e o querer apenas os bons fins, a saber, fins morais.
Desse modo, o princípio moral ordenará à ação, mesmo que o agir
esteja, ao mesmo tempo, ligado aos princípios do conhecimento, alguma
habilidade desenvolvida e/ou à prudência. Noutras palavras, de acordo
com Kant, mesmo que o educando conheça, no sentido especulativo, caso
não haja a formação moral, não será possível a ação ética, nem a plena
formação do ser humano. Como explica Pascal (1999. p. 190), de acordo
com a educação kantiana, os alunos devem ir à escola, não somente para
aprender pensamentos, mas para aprender a pensar e conduzir-se do ponto
de vista da moralidade, para desenvolver a capacidade de pensar e agir
moralmente por si próprios.
Pensamos que, mesmo que as questões humanas estejam,
aparentemente, em desuso na atualidade, embora o valor moral, o caráter,
a pessoa humana, sejam cada vez mais raros, ainda assim devemos olhar,
com seriedade, para a sua possibilidade, afinal, conforme posto por Kant
(2006, p. 190), o ser humano não recebe pronto um caráter ou uma índole
moral, mas pode e precisa tê-los adquirido. A ideia de ser humano, em
Kant, é algo que podemos exigir da natureza humana. Tal exigência e
aquisição são possíveis com a educação. Sendo assim, os valores humanos
como algo significativo nas relações, situações, experiências, vivências
tipicamente humanas, representando o máximo do valor interno e possível
por meio da educação, devemos recusá-los ou ignorá-los enquanto objetivo
do processo educacional?
54
Considerar, via educação, o desenvolvimento amplo do ser
humano, as suas várias dimensões e aspectos, traz a proposta de formação
educacional na contramão dos desenvolvimentos que “[...] irão ressaltar
conquistas acadêmicas nas matérias e práticas de ensino tradicional”
(APPLE, 2005, p. 58). Olhar para o pleno desenvolvimento do ser
humano, representa uma significativa possibilidade de mudança de valores
e princípios, de condutas, de comportamento e costumes. Eis a necessidade
da proposta e aposta ética, uma formação ética, para a vida e vivências
humanas sustentadas por valores. Os valores, a virtude, o caráter, a pessoa,
a liberdade, são fatores dinâmicos do existir humano e são decisivos para
novas posturas e realidades humanas.
Pensamos ser apropriado conceber claramente a educação,
abordando o conjunto de seus conceitos, problemas, propósitos e
argumentos, para poder contemplar e procurar alcançar boa ação
educativa. A ideia de educação e de ser humano pode conduzir a complexa
ação educacional na experiência, o que nos permite não deixar que ela se
guie somente pelo empirismo, segundo Kant, o mero mecanicismo, em
uma ação desordenada, sem plano e conforme as circunstâncias, o que
pode agravar a generalização da esterilização das existências propriamente
educacionais e humanas. A partir da expressão conceitual, admitimos a
alternativa teórica, o lugar e o papel da reflexão filosófica, enquanto o que
pode possibilitar a questão a partir da sala de aula, da escola, da formação
e atividade docente, das políticas públicas, em suma, do real.
Com o pensamento de Kant, em particular a sua filosofia da
educação, nos deparamos com um ideal de humanidade e de formação que
podemos nos aproximar para alcançar tão almejado valor das ações
humanas em seu maior grau. E, mesmo havendo obstáculos à sua
realização, há um ideal de educação que a humanidade pode perseguir para
o seu aperfeiçoamento, sua futura felicidade e a sua perfeição. Em suma, o
55
pensamento kantiano acerca da educação nos oferece uma ideia de
educação prática, isto é, para a moralidade, para a liberdade, para o fim ou
destinação do ser humano, o que em Kant, em definitivo, não é vã.
O projeto kantiano de educação destaca-se, de forma incisiva, o papel
convergente da experiência e do conhecimento no domínio da
pedagogia. Não se pode educar sem uma ideia clara do que se pretende,
sem um projecto bem pensado em termos prospectivos (PINTO, 2006, p.
426, grifo nosso).
Encerramos, neste momento, o exame, a reflexão, a orientação
filosófica, como instrumentos que podem auxiliar o olhar dos problemas
educacionais acerca, em particular, da educação moral, do alcance da
liberdade e da ética colocados pelo presente. Não ignorando, desse modo,
as ideias que podem orientar e promover a ação educativa formativa e
plena.
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56
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57
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59
Ética e Autonomia na Educação:
reflexões a partir de Piaget, Vygotsky
e Paulo Freire
Fabiola COLOMBANI
17
Introdução
Nunca é demais retomarmos algumas ideias de pensadores que
podem levar a uma prática capaz de ressignificar a escola e sua forma de
educar. Se entendemos que o professor é um agente transformador que
pode destacar as possibilidades e potências de seus alunos, entenderemos
também, que a ética do aprender é um instrumento para uma formação
humana libertadora e autônoma.
Assim, a instituição escolar, independentemente da idade de seu
público, deveria por obrigação e pela própria natureza a qual se propõe,
assegurar a busca pela autonomia de forma constante. Sabemos que é
necessário permitir o desenvolvimento proporcionando a construção desse
mecanismo de autogovernar-se, de pensar além do que está posto, pensar
no outro e nas próprias condições, ter iniciativa, tomada de decisões e ser
proativo, isso torna os alunos responsáveis por seu processo de
aprendizagem e moralmente autônomos. Se há algo que a escola deveria
17
Doutora e Pós-Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, da Unesp, Campus
de Marília. Docente e Coordenadora da Clínica de Psicologia da Unimar Universidade de
Marília. E-mail: fabiolacolombani@unimar.br
h
ttps://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p59-76
60
estimular projetando o futuro, são essas ações e vivências, pois isso sim
poderá aproximá-lo da garantia (se é que isso seja possível), de ter uma vida
de mais sucesso. Pascual (1999, p. 03) complementa dizendo que:
Ser autônomo moralmente significa, também, aceitar a
responsabilidade subjetiva. A segunda característica que o juízo do
aluno deve apresentar para que a moralidade possa ser considerada
autônoma diz respeito à noção de responsabilidade. (PASCUAL, 1999,
p. 03)
Vários autores discutem sobre o tema da autonomia, mas neste
texto o destaque será para três teóricos que com seus pensamentos
contribuíram fortemente para a educação: Piaget, Vygotsky e Paulo Freire.
Piaget e a construção da autonomia
Na área da educação, Piaget é conhecido como um teórico
construtivista, o que é algo de grande valia, pois esse conceito permeia a
ideia de que nada está pronto ou acabado. O Construtivismo acredita que
o conhecimento é produto da interação do indivíduo com o meio físico e
social e o mundo das relações humanas é extremamente significativo para
o processo de ensino e aprendizagem; a ação, a movimentação na relação
do indivíduo com o objeto de interesse que se quer aprender, necessita
também interagir com potência, ou seja, você com a coisa a ser aprendida,
você e os outros, os outros com você, todos na relação de aprendizagem.
Becker (2001, p. 89) contribui dizendo que:
61
Construtivismo não é uma prática ou um método; não é uma técnica
de ensino nem uma forma de aprendizagem; não é um projeto escolar;
é, sim, uma teoria que permite (re) interpretar todas essas coisas,
jogando-nos para dentro do movimento da História - da Humanidade
e do Universo. (BECKER, 2001, p. 89)
Na educação construtivista valoriza-se a relação do professor com
o aluno, ou seja, é necessário haver um encontro entre as partes para que
se estabeleça um ambiente sócio moral capaz de promover o
desenvolvimento dos discentes.
Um dos pontos que Piaget ressaltou em suas discussões foi sobre a
Cooperação. Para Piaget ao alcançar a Cooperação, internamente ocorre
um amadurecimento e isso evita muitos dos conflitos que emergem no
cotidiano escolar, independente da idade. Segundo Cunha (2010, p. 133),
pode-se dizer que:
[...] a cooperação, como recurso pedagógico, coloca em prática a tese
piagetiana de que não é conhecimento aquilo que o educando adquire
passivamente e, mais ainda, que é impossível conhecer um objeto
qualquer por meio de um único ponto de vista. O trabalho em equipes
permite que os alunos atuem sobre os saberes a serem aprendidos,
pesquisem, busquem novas fontes de informação, levantem dados
sobre os conteúdos escolares e, principalmente, façam tudo isso
trocando ideias, uns com os outros, trabalhando cooperativamente na
construção do conhecimento. (CUNHA, 2010, p. 133)
Assim sendo, podemos afirmar que a cooperação é o caminho pelo
qual a ação moral opera. Ela é uma interação social que se dirige a um
determinado objetivo entre indivíduos que se consideram como iguais e
tratam uns aos outros como tais (DEVRIES; ZAN, 1998, p. 57). Piaget
62
(1994) considera importante que a cooperação seja uma ação moral
iniciada desde o planejamento da sala de aula, pois um professor
cooperativo torna o ambiente construtivo, possibilitando um aumento das
competências sociais, emocionais, intelectuais e morais. Ao cooperar com
o outro, se estabelece um respeito mútuo, considerando a importância do
outro além de mim.
La Taille (1992, p. 20) destaca que as relações de cooperação são
aquelas que possibilitam o desenvolvimento da autonomia:
Como o seu nome indica, a cooperação pressupõe a coordenação das
operações de dois ou mais sujeitos. Agora, não há mais assimetria,
imposição, repetição, crença, etc. Há discussão, troca de ponto de vista,
controle mútuo dos argumentos e das provas. Vê-se que a cooperação
é o tipo de relação interindividual que representa o mais alto nível de
socialização. E é também o tipo de relação interindividual que promove
o desenvolvimento. (LA TAILLE, 1992, p. 20)
Por meio das atividades em grupo ocorre o trabalho cooperativo
que em qualquer nível educacional traz para os alunos, a oportunidade de
adquirirem valores que irão ajudá-los a ter o desenvolvimento moral e
crescimento pessoal, durante o avanço dos anos de estudo. Além disso, essa
forma de trabalhar permitirá com que eles desenvolvam habilidades que
serão muito úteis no futuro, já na fase adulta. O sucesso dos trabalhos em
grupo colabora para sujeitos mais autônomos e ao mesmo tempo
solidários, empáticos e que colaboram mutuamente entre si.
No desenvolvimento moral, segundo Piaget (1994), a criança passa
por uma fase pré-moral caracterizada pela anomia. Gradualmente ela entra
na fase da heteronomia e dependendo de sua história de vida, suas
63
experiências e vivências formais ou informais, ela pode chegar à fase da
autonomia.
Anomia: é a fase da ausência total de regras que coincide com o
“egocentrismo” infantil e que pode ir até aproximadamente 2-4 anos de
idade. Nesta fase ela não dispõe de representação mental e seu pensamento
ainda é bastante difuso o que torna muito difícil a absorção de regras. E
por isso é comum ter que repetir a mesma orientação muitas vezes.
Crianças não medem consequências e por isso não temem pelo perigo.
Heteronomia: é a fase em que a criança segue as regras colocadas
pelos outros, com maior facilidade de internalização das orientações e
pouco questionamento. É a fase de maior obediência. É a fase que deve ser
cuidadosamente acompanhada, pois assim como é importante o respeito
às regras é importante também haver estímulo para que o pensamento
crítico aconteça, assim, com a idade essa fase deve ser deixada para dar
lugar à fase da Autonomia. Quando muito podada e não estimulada, a
criança e o jovem se tornam adultos heteronômicos incapazes de
questionar, refletir, repensar, inventar e criar novas regras alterando e
modificando positivamente o seu meio.
Autonomia: é uma fase que infelizmente nem todos alcançam.
Tanto a família quanto a escola, seja ela das séries iniciais, intermediárias
ou do ensino superior, devem promover uma dinâmica educacional que
propicie o desenvolvimento moral a tal ponto, que o indivíduo consiga
alcançar a Autonomia. É importante que seja possível se relacionar com as
regras, compreendê-las, porém sugerir outras como também, construir
novos acordos inclusive nas atividades extraescolares. Estar preparado para
os imprevistos, reinventar-se diante de um trajeto que precisa ser mudado,
ter capacidade de se autogovernar, ter pensamento crítico, ser empático,
cooperativo, adaptar-se em situações adversas e estar aberto às diversas
64
formas de construir o seu próprio conhecimento, demonstra que o
indivíduo alcançou a Autonomia.
Piaget (1994), afirma que essas fases se sucedem sem constituir
estágios propriamente ditos. Vamos encontrar adultos em plena fase de
anomia e muitos na fase da heteronomia. Poucos conseguem pensar e agir
pela si próprio, seguindo sua consciência interior. Porém, vários autores
discutem sobre essa questão e apontam que em países de terceiro mundo,
mais conhecidos hoje como países em Desenvolvimento, a maioria de sua
população não alcança a autonomia. Parte desse problema se deve ao modo
com que o sistema educacional conduz o processo de ensino e
aprendizagem. A escola tradicional sempre preconizou que o ensino
seguisse cartilhas, apostilas, ou seja, métodos enquadrados que não
possibilitam que o aluno transcenda e se posicione enquanto elemento
crítico e dinâmico de sua própria formação. Não estimula também
atividades criativas e intimidades com a arte e a cultura. Isso tudo engessa
o aluno e o prepara para exames e concursos que com o passar do tempo
ficam obsoletos.
Vygotsky e o desenvolvimento cognitivo autônomo
Outro teórico é Lev Vygotsky precursor da teoria Histórico-
Cultural contribui para pensarmos sobre o desenvolvimento cognitivo,
a busca pela autonomia e aponta com isso, como se dá na prática as
conexões de aprendizagem nos trabalhos em grupo.
Pensador importante em sua área e época, foi pioneiro no conceito
de que o desenvolvimento intelectual do ser humano ocorre em função das
interações sociais e condições de vida. Foi descoberto pelos pesquisadores
e profissionais do meio acadêmico após sua morte, visto que teve uma vida
65
breve, mas seus estados até hoje contribuem para o pensar do
desenvolvimento humano e da educação.
No Brasil, Vygotsky passou a ser conhecido na década de 1980
quando seus livros chegaram após passarem pela tradução do russo e do
inglês para o português. Por conta desse caminho percorrido na tradução,
alguns termos e conceitos foram interpretados de forma equivocada, como
é o caso de sua teoria que a princípio era chamada de sociointeracionista,
aproximando Vygotsky de Piaget. Porém, mais tarde, após um maior
aprofundamento nos estudos vygotskyanos, sua teoria passou a ser
chamada de Psicologia Histórico-Cultural, pois foi sabido que Vygotsky
não comungava das mesmas ideias de Piaget.
Faço aqui um destaque do importante apontamento feito por
Oliveira (2019), uma das referências de estudo em Vygotsky no Brasil,
sobre algumas das ideias que influenciaram Vygotsky e sustentaram sua
teoria.
Marcado pela orientação predominante na União Soviética pós
revolucionária, Vygotsky via no materialismo histórico e dialético de
Marx e Engels uma fonte importante para suas próprias elaborações
teóricas. Alguns postulados básicos do marxismo claramente
incorporados por Vygotsky, são: o homem é um ser histórico, que se
constrói através de suas relações com o mundo natural e social. O
processo de trabalho (transformação da natureza) é o processo
privilegiado nessas relações homem/mundo e a sociedade humana é
uma totalidade em constante transformação. É um sistema dinâmico e
contraditório, que precisa ser compreendido como processo em
mudança, em desenvolvimento. (OLIVEIRA, 2019, p. 28)
Para Vygotsky o conceito da função mediadora é o elemento
central para a compreensão do desenvolvimento e do funcionamento das
66
funções psicológicas superiores. Mas o que são funções psicológicas
superiores? São aquelas funções mentais que são dadas no comportamento
consciente do humano, ou seja, você é capaz de possibilitar e reproduzir,
são elas: linguagem, imaginação, memória, atenção, pensamento enfim,
são funções conscientes que organizam a vida mental do indivíduo e o
coloca como participante de seu meio.
Segundo a teoria Histórico-Cultural de Vygotsky, só é possível as
funções psicológicas superiores existirem e se desenvolverem nas relações
de interação humana. Porém, nós não nos relacionamos com o mundo e
com as outras pessoas de forma indireta, necessitamos ser mediados por
instrumentos materiais e psicológicos, busca-se então, a interação.
A interação é a coluna cervical para Vygotsky, sem ela nada se
sustenta ou evolui. Para ele o indivíduo constrói sua essência a partir das
relações sociais e se desenvolve de fora para dentro. Essa interação
desempenha um papel fundamental na construção cognitiva e emocional
do ser humano.
É importante compreendermos que nas relações interpessoais as
experiências são compartilhadas e aquilo que você aprende vem do outro
e perpassa para você e os demais. Assim, as culturas vão deixando a sua
marca, as pessoas vão pensando coletivamente e o processo de ensino e
aprendizagem vai sendo uma troca com outros indivíduos e com o meio.
Em Oliveira (2019, p. 38) é possível compreender um pouco mais:
A vida social é um processo dinâmico, onde cada sujeito é ativo e onde
acontece a interação entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de
cada um. (...) O processo de desenvolvimento do ser humano, marcado
por sua inserção em determinado grupo cultural, se dá “de fora para
dentro”. Isto é, primeiramente o indivíduo realiza ações externas, que
serão interpretadas pelas pessoas ao seu redor, de acordo com os
67
significados culturalmente estabelecidos. A partir dessa interpretação é
que será possível para o indivíduo atribuir significados a suas próprias
ações e desenvolver processos psicológicos internos. (OLIVEIRA,
2019, p. 38)
Desta forma, as origens das funções psicológicas superiores devem
ser procuradas nos relacionamentos, entre os pares, ou seja, no seu grupo
de amizades, de pessoas conhecidas enfim, pessoas de sua convivência e
outros que virão somar para serem também, elementos mediadores.
A mediação e a interação são o que possibilitam o desenvolvimento
segundo Vygotsky. Por isso valorizava tanto tais funções psicológicas
superiores e a partir daí, construiu sua tese sobre desenvolvimento. O autor
chama a atenção de como o ser humano aprende e como acontece o
aprender. Para ele, há três pontos fundamentais: Zona de
Desenvolvimento Real, Zona de Desenvolvimento Proximal e Zona de
Desenvolvimento Potencial. Compreender em qual momento os
estudantes estão é fundamental para saber qual caminho seguir.
Para Vygotsky (1984), a zona proximal de hoje será o nível de
desenvolvimento real amanhã. Por esse motivo Vygotsky sempre defendeu
a ideia de que o objeto aprendido deve estar sempre além do conhecimento
que já existe visto que, isso fará com que o aluno e a aluna possam avançar
em suas capacidades cognitivas.
O professor nessa relação não é o centro, não é única fonte de saber,
ele é um mediador, papel importante e muito mais significativo do que o
professor que “transmite” o conteúdo sem saber de fato se seus alunos estão
compreendendo ou se é um conhecimento que faz sentido.
Vygotsky trouxe a proposta de utilizarmos os instrumentos
internos para a partir daí conhecermos novas coisas e interagirmos com
68
outras realidades. Traz ainda que o indivíduo não pode ultrapassar uma
situação de aprendizagem sem antes ter algum conhecimento prévio que o
relacione, ou seja, uma base capaz de apoiar a nova informação e progredir
cognitivamente. O trabalho em grupo mediado por professores, colegas e
profissionais mais experientes dará todo o amparo para a construção da boa
prática.
Paulo Freire e a fromação humana autônoma
E por último, mas não menos importante, o patrono da educação
brasileira, Paulo Freire. Considerado um dos grandes intelectuais do século
XX, a sua contribuição para a renovação do pensamento e das práticas
educacionais é reconhecida em todo mundo. Crítico à pedagogia
tradicional, propunha uma formação humana que levasse em consideração
os problemas individuais, as experiências e o contexto social em que os
educandos estão imersos. Esse processo de conscientização era, segundo
ele, fundamental para se garantir uma atitude transgressora contra a
opressão e em prol da liberdade e da autonomia humana. Aquela formação
tecnicista e alienante, resultado de uma “educação bancária”, deveria dar
lugar à possibilidade do estudante e do homem em geral pensar e agir com
consciência política, seguindo e criando os próprios rumos para o seu
aprendizado.
Um dos seus livros mais conhecidos é Pedagogia do Oprimido
(2019), tendo sua primeira versão em 1968 e proibido no Brasil pela
ditadura militar. Sintetiza de maneira primorosa a caminhada que ele fez
nos anos anteriores, seja no campo da educação popular, quando se
dedicou ao que ele chama de “os esfarrapados do mundo” bem como sua
experiência de exilado no Chile, quando sentiu na pele o que significa a
69
opressão por parte de um sistema político que excluía a liberdade humana
do seu horizonte.
Defendendo que os oprimidos precisam também de uma teoria
para alcançar a liberdade, Freire considerava que a educação humana deve
estar atrelada a um processo e a uma pedagogia que os liberte das garras de
uma ideologia opressora e manipuladora, transformando a realidade onde
vivem. É assim que no início da década de 1960 desenvolveu um método
de alfabetização bastante inovador, inclusive inspirando pedagogos,
professores, cientistas sociais na América Latina e na África e,
posteriormente, em todo o mundo. Com este método, ele pretendia se
contrapor ao sistema tradicional de ensino, todo baseado em cartilhas e
conteúdos que dificultavam a aprendizagem da leitura e da escrita por parte
dos alfabetizandos, em que a repetição de palavras soltas e sem sentido para
a sua realidade era o mais comum.
Fundamentalmente, o método seguia alguns passos que procurava
levar os estudantes a superar a sua visão mágica e acrítica de mundo,
conduzindo-os uma atitude consciente, crítica e libertadora. Enfim, a
passagem dessa consciência mágica para a uma consciência crítica não
acontece naturalmente, mas é resultado de um trabalho educativo
dialógico, que proporcione ao alfabetizando interpretar os problemas, de
colocar de lado os preconceitos, garantir a experiência da liberdade e
preparar-se para a democracia.
Portanto, conscientização e alfabetização estão intimamente ligadas, na
medida em que a finalidade do indivíduo em tornar-se alfabetizado não
é apenas para reconhecer as letras, as sílabas e ter capacidade de ler uma
frase. É, também, para tornar-se um sujeito de sua história, engajado
nas lutas políticas e culturais (BRIGHENTE; MESQUIDA, 2016, p.
167).
70
Para Paulo Freire, a formação humana não é neutra, mas, sim, um
instrumento que enfrente a lógica de um sistema que busca integrar as
pessoas aos interesses do capital, conformando-as e impedindo-as que ajam
com liberdade e como sujeitos de sua própria história. Por isso, ele se
contrapõe frontalmente a um processo formativo que elimina qualquer
possibilidade do estudante agir com autonomia. Assim, uma educação que
trata os alunos como uma mera conta vazia a ser preenchida pelo professor
é descabida e passível de todas as críticas, pois os transformam em objetos
receptores, controlando os seus pensamentos e suas ações, ajustando-os ao
mundo e inibindo o seu poder criativo.
É neste contexto que podemos avançar um pouco mais na
exposição das ideias de Paulo Freire, mas agora para compreender o que
ele concebe como autonomia. Assim, o que de fato seria a autonomia?
Como vimos, ele considera que ao respeitar a individualidade, as
experiências, a visão de mundo e levar em consideração o que cada ser
humano traz consigo é fundamental no processo de formação e
emancipação humana. Conforme explicita Marilena Chauí, autonomia é
uma:
palavra composta de autós [este aqui, eu mesmo; por si mesmo, de si
mesmo, espontaneamente] e do substantivo nómos [regra, lei, norma;
é o que é por convenção, por acordo e decisão dos humanos] (...)
Autonomia significa o direito de dirigir-se e governar-se por suas
próprias leis ou regras; independência; se refere ao modo de quem é
livre ou independente. Autónomos: o que se rege por suas próprias leis,
independente, autônomo (CHAUÍ, 2002, p. 496).
A autonomia pra Freire, era entendida, portanto, como a
capacidade dos indivíduos agirem e tomarem decisões por meio de ações
71
não forçadas e levando em conta sua realidade, a autonomia do ponto de
vista da educação, como defende Freire, tem o objetivo de promover e
transformar o educando em um sujeito que toma consciência de sua
própria condição histórica e social. Essa concepção já aparece no contexto
daquela proposta por Kant, quando reporta-se ao que ele entende por
homem esclarecido.
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da
qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso
de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o
próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na
falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de
si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer
uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento
[Aufklärung] (KANT, 1974, p. 100, grifo do autor).
O homem esclarecido e autônomo é aquele que teria superado a
sua menoridade e que enfrentando sua condição de heteronomia, isto é,
de ser guiado por outro ou por outras regras que não as suas, pensa, decide
e age servindo-se de si mesmo e de sua própria razão e por conta própria
dirige suas escolhas a atitudes (ZATTI, 2007).
A autonomia seria então, o resultado de um processo de
conscientização, em que o homem deixaria de ser tratado como objeto,
passando a ser sujeito e indivíduo histórico que pode e deve intervir nos
rumos da sua história.
A educação não pode ser aquele que deposita, que incentiva a
memorização mecânica, a que treina (concepção bancária), porém
aquela que ajuda homens e mulheres, sujeitos da história, a pensar
72
criticamente, colocando-lhes desafios, dando espaço para mostrar suas
curiosidades e suas indagações (BRIGHENTE; MESQUIDA, 2016,
p. 165).
Para Paulo Freire, a autonomia tem como consequência uma
formação humana em que o sujeito seja capaz de fazer uso de sua liberdade
e determinar-se, deixando de ser dependente de pensamentos, normas,
ideais e projetos que não são seus. O educador que está comprometido
com uma educação assim “deve estar atento à difícil passagem ou
caminhada da heteronomia para a autonomia” (FREIRE, 2000, p. 78),
fazendo com que o educando seja capaz de “pensar certo”, isto é, sair de
um estágio de passividade, submissão, curiosidade ingênua e senso
comum, para um nível de determinação e curiosidade epistemológica,
formulando saberes e juízos próprios.
Ser autônomo é compreender, enfrentar e superar os discursos e as
práticas que procuram oprimir, adaptar e “amaciar ideologicamente” os
indivíduos, levando-os a acreditarem apenas em valores, condutas e
atitudes pautados pela ética do mercado, fundada no lucro e em que a
liberdade do comércio fica acima da liberdade do ser humano. Ser
autônomo é uma conquista que deve ser realizada pela educação por meio
de uma práxis pedagógica libertadora que considera o homem um ser
inconcluso, inacabado e que precisa ser formado e humanizado.
O que quero dizer é que a educação, como formação, como processo
de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou ao longo da
aventura no mundo dos seres humanos uma conotação de sua [própria]
natureza, gestando-se na história, como a vocação para a humanização
(...) Significa reconhecer que somos condicionados, mas não
determinados (FREIRE, 2000, p. 20-21).
73
Deste modo, uma pedagogia para a autonomia deveria estar,
segundo Freire (1997), fundada na ética, no respeito à dignidade do
educando, o que exige do educador a prática da escuta, de maneira a
aprender a falar com os educandos sem autoritarismo ou licenciosidade,
mas problematizando e acompanhando a construção do conhecimento e
do exercício responsável e racional da liberdade.
Considerações Finais
Há quem diga que Piaget, Vygotsky e Freire não conversam entre
si por terem em seus estudos bases epistemológicas diferentes. Porém, tais
teóricos não possuem ideias que colocam o tema em posição conflituosa
pelo contrário, complementam e se posicionam cada qual ao seu modo,
considerando a importância de se pensar a escola, a educação e o aluno
como um ser em constante transformação e desenvolvimento, devendo ser
atentamente cuidado para que não se perca a essência da condição humana,
ou seja, a necessidade de ser livre e pensar por si só.
Ao pensar a instituição escola desde os seus primórdios, é possível
observar que parece ter sido sempre muito arriscado que o professor saísse
de sua posição autoritária e que a escola estabelecesse suas leis dentro de
condutas democráticas. O controle sempre foi uma prática escolhida para
que se pudesse limitar o campo de ação dos sujeitos envolvidos. A figura
do diretor, tomou para si um papel absolutista, o que exigia que os
educadores seguissem também uma posição autocrata visto que, como
detentores do saber, tinham que impor a forma de ensinar e aprender,
desconsiderando a individualidade de cada educando.
As diversas transformações sociais levaram a escola a repensar suas
práticas, pois a sociedade passou a exigir que as pessoas consigam gerir a
74
própria vida, que se auto responsabilizem por suas ações e que possam
compreender o sentido do aprender para além de reproduzir o
conhecimento adquirido, como também, que haja condições suficientes
para aplicar de forma prática o que viu e aprendeu. Ou seja, entre o
transmitir e receber o conhecimento, passou a existir um “eu”, que
representando provisoriamente pela figura do estudante, deverá ter a ajuda
da escola para constituir sua autonomia tornando-se então, o sujeito
autônomo tão esperado para assumir os diversos papéis sociais. Se a escola
entende que ela tem uma responsabilidade nessa formação autônoma, ela
utilizará de seus instrumentos de aprendizagem para promover o
desenvolvimento moral e ético.
Como consequência desse sujeito que a escola possibilitou que se
tornasse autônomo, o próximo passo é pensarmos, com esperança e utopia,
em uma transformação do próprio mundo e da própria sociedade e é aí
que está o caráter político da educação. Pensar politicamente em uma
perspectiva autônoma é reinventar o mundo de hoje, o que exige
comprometimento e coerência do educador, o que implica além de
conhecimentos dos conteúdos, um esforço de desmascaramento da
ideologia dominante, que imobiliza e oculta verdades. Uma prática
educativa autônoma exige uma tomada de posição diante do mundo na
perspectiva de transformá-lo, de tal maneira que as condições heterônomas
sejam superadas e que cada indivíduo possa se responsabilizar por suas
escolhas e decisões.
Por fim, se faz necessário que tais ideias estejam presentes no
processo de formação dos professores ainda nos cursos de licenciatura, de
maneira que haja um alargamento de suas compreensões acerca da
educação, com ressonâncias concretas em suas práticas docentes na sala de
aula. Os autores apresentados neste texto entre outros, jamais perderão sua
atualidade, uma vez que levam educadores a pensar em novas
75
possibilidades de ensinar e aprender sem que se perca o objetivo
educacional que viabiliza a da busca da autonomia.
Referências
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Artmed, 2001.
BRIGHENTE, M.F.; MESQUIDA, P. Paulo Freire: da denúncia da
educação bancária ao anúncio de uma pedagogia libertadora. Pro-Posições.
Vol. 27. N. 1- Campinas. Jan./Abr. 2016.
CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CUNHA, M.V. Piaget: Psicologia Genética e Educação. In: Caderno de
Formão: formação de professores, educação, cultura e desenvolvimento
-UNESP/UNIVESP. São Paulo: Cultura Acadêmica,2010.
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FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 33 ed. São Paulo: Paz e terra, 1997.
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KANT, I. Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1974.
LA TAILLE, Y. Desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria
de Jean Piaget. In: LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M. K.; DANTAS, H.
76
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Paulo: Summus, 1992.
OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky e o processo de formação de conceitos.
In: YVES de La Taille et al. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias
psicogenéticas em discussão.o Paulo, SP: Summus, 2019.
PIAGET, J. O juízo moral da criança. Trad. Elzon Lenardon. 3. ed., São
Paulo: Summus, 1994.
PASCUAL, G.J. Autonomia intelectual e moral como finalidade da
educação contemporânea. Psicologia: Ciência e Profissão/ Conselho
Federal de Psicologia - Vol. 19, n. 3. Brasília, DF, 1999.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins
Fontes, 1984.
ZATTI, Vicente. Autonomia e Educação em Immanuel Kant e Paulo
Freire. Porto Alegre: EDI PUC RS, 2007
.
77
A Formação Virtuosa na Esola
Giórgia Andrade Regiani Ferreira MARTINS
18
Introdução
Este capítulo apresenta parte da dissertação de mestrado, concluída
em 2018 na UNESP de Marília. Trata-se de uma pesquisa de base
qualitativa que busca problematizar a questão que traz como título e tem
a ousada intenção de oferecer contribuições aos educadores que a ela
tiverem acesso. O texto tem o objetivo de analisar a relação da escola
contemporânea com a formação virtuosa de seus alunos, pretende, através
da análise do referencial teórico selecionado, discutir as possibilidades que
a escola oferece em seu espaço e tempo, ou poderia oferecer, para a
formação humana ética. A escola é viva e é temporal, é espaço em formação
assim como é o próprio ser humano; cabe aqui reflexões sobre sua
identidade, para que através do pleno uso da razão, tenha clara as suas
potencialidades e enxergue, se necessário for, outros modos, diferentes de
ações.
O desejo com este trabalho é entender a formação humana, quais
vivências são necessárias para o desenvolvimento das virtudes e,
especialmente, aquilo que cabe à escola nessa formação. O anseio é
18
Mestre em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília. Orientadora
Educacional da ETEC Dr. Luiz César Couto Quatá/SP. E-mail: giorgiaregiani@gmail.com
.
https://doi.org
/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p77-98
78
compreender que papel é possível à escola para o desenvolvimento de
sujeitos éticos. Estas são algumas inquietações que levaram à pesquisa.
A finalidade ao trazer a discussão sobre formação virtuosa na escola
é colaborar para manter a ideia de quão grandiosa é a humanidade e
importante a escola e da mesma forma mostrar que as relações entre os
homens são essenciais, o contato do sujeito com seus outros, seus encontros
com os diferentes.
Os conceitos apresentados são frequentemente analisados, estão
presentes em trabalhos que refletem a importância do ser humano em sua
individualidade e na polis, no coletivo. Assim, neste trabalho, conceitos
antigos e modernos se encontram, citações de teorias clássicas alicerçaram
discursos que visam contribuir para o pensamento e a vida prática na
escola.
A Virtude
A pessoa virtuosa é aquela que age racionalmente. Isso é próprio
do ser humano, é o que o faz feliz, mas para tanto, é preciso ser educado.
O sujeito adquire virtudes e disposição de caráter a comportamentos bons,
vive a prática contínua de boas ações até que se tornem hábitos.
Conforme Hooft (2013, p. 07) a palavra virtude vem de virtus:
[...] que significa “excelência”, “capacidade” ou “habilidade”. Neste
sentido, ter virtude é ter o poder ou a habilidade de realizar alguma
coisa. Mais comumente, no inglês moderno, a palavra veio a referir-se
a uma disposição ou a um padrão de caráter ou personalidade de
alguém que o leva a agir moralmente. Refere-se a traços de caráter que
consideramos admiráveis. (HOOFT, 2013, p. 07)
79
Há um estado de caráter que permite exercer a função humana, o
seu ser racional. O caráter se desenvolve através de práticas que geram
hábitos, pela constância em comportamentos que não se excedem, capaz
da escolha do justo meio.
A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha
e consiste em uma mediana, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é
determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de
sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso
e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou
ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a
virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua
substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma
mediania; com referência ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um
extremo. (ARISTÓTELES, 1991, Ética a Nicômaco, p. 35)
o virtuoso age corretamente, em harmonia com suas paixões, porque
ele as dominou de uma vez por todas. Não só aprendeu a agir de modo
conveniente, mas, a sentir o pathos adequado. Enquanto eu precisar
esforçar-me para resistir ao que minhas paixões trazerem de excesso,
ainda não as dominei. Ainda não sou virtuoso [...] (LEBRUN, 2009,
p. 20)
A virtude não é gerada naturalmente, mas através da repetição, do
hábito, assim o ser humano fica pronto para prática de atos justos. O
sujeito se torna virtuoso pelo exercício. É apenas em meio às práticas que
a virtude se desenvolve, por intermédio das atividades sociais. Entende-se
por prática, então:
[...] qualquer forma coerente e complexa de atividade humana
cooperativa socialmente estabelecida, por meio da qual os bens
internos e essa forma de atividade são realizados durante a tentativa de
80
alcançar os padrões de excelência apropriados para tal forma de
atividade, e parcialmente dela definidores, tendo como conseqüência a
ampliação sistemática dos poderes humanos para alcançar tal
excelência, e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos
(GONÇALVES, 2012, p. 85 apud MACINTYERE, 2001, p. 316).
Alves (2014), utilizando-se dos conhecimentos de Aristóteles,
destaca a educação virtuosa como fundamental para uma vida feliz e a
necessidade de exercícios constantes da virtude como o caminho para uma
boa vida.
Não é possível o pensamento da ética sem a reflexão sobre as
relações humanas. A escola é um campo riquíssimo de encontros, de
diálogos e experiências com pessoas diferentes. É um importante lugar para
se viver a ética; um lugar de interações coletivas. Um lugar em meio à vida
na realidade social que o homem apresenta seu caráter e manifesta a sua
índole.
Partindo de questionamentos sobre o que leva o homem a
comportar-se de forma virtuosa, adequada (moralmente), mesmo sendo
necessário privar-se, temporariamente ou não, de seus interesses e
prazeres/desejos, chega-se ao estudo da ética. Estudar o agir, o pensar e o
formar-se do homem, implica necessariamente na investigação da ética.
As virtudes são disposições não só de agir de determinadas maneiras,
mas também de pensar de determinadas maneiras. Agir virtuosamente
[...] é agir com base na inclinação formada pelo cultivo das virtudes. A
educação moral é uma éducation sentimentale. [...] uma qualidade
humana adquirida, cuja posse e exercício costuma nos capacitar a
alcançar aqueles bens que são internos às práticas e cuja ausência nos
impede, efetivamente, de alcançá-los (MACINTYRE, 2001, p. 255-
321).
81
Segundo o mesmo autor, a noção de virtude está ligada à vida
social, histórica, ao sujeito como um todo, integral, inserido em seu meio
e com suas experiências particulares de vida e ao mesmo tempo integrado
à vida e às experiências dos outros. Considerado como um sujeito formado
com estreito vínculo com a polis, com a sua comunidade, um homem que
possui identidade social e também animal, corporal.
O justo meio deve ser compreendido de maneira subjetiva, no
sentido do que é ideal a cada situação, para cada sujeito, logo, a virtude (o
jeito certo de agir) pode não ser exatamente a mesma em todos os
momentos.
Quando a razão decide agir em uma mediana, entre dois vícios,
temos uma ação virtuosa, um comportamento ético; quando o sujeito não
é dirigido por seus impulsos, mas diante deles faz uso da racionalidade e
decide pelo justo meio, o homem virtuoso então tem a vida feliz, pois
atinge o propósito maior da humanidade, a excelência do uso da razão; age
e vive, segundo sua racionalidade, o que nem sempre é fácil.
Para Zingano (2009, p. 156),
[...] se a virtude é uma disposição, a disposição é ela própria nosso
comportamento bom ou mau com relação às emoções, o que
reintroduz as emoções nos corações mesmo do agir virtuoso, a virtude
não é uma emoção, mas não ocorre sem emoções, dado que é uma
disposição é um comportamento estável com relação às emoções. A
virtude é então definida como sendo uma justa medida ou mediedade
entre dois extremos, a falta e o excesso que caracterizam os vícios a
serem evitados. (ZINGANO, 2009, p. 156)
Na ética das virtudes, mesmo as paixões (raiva, medo, prazer ou
dor) são vividas. Não há falta, ausência delas e tão pouco seu excesso, mas
82
busca-se pela vivência moderada. O ser humano escolhe por comportar-se
em uma mediana, uma justa medida encontrada pelo uso da razão.
O homem virtuoso não deve procurar extirpar suas emoções, como se
a virtude fosse uma ausência de emoções, uma apathéia, como queriam
os estoicos, mas ao contrário, tomando-as como elementos
indispensáveis da vida humana, ele deve buscar sua justa medida, graças
a qual a ação será adequada e verdadeira do ponto de vista moral ao
mesmo tempo em que fica ancorada nas emoções e paixões do agente
(ZINGANO, 2009, p. 143).
Virtuoso é aquele que tem livre escolha em seu agir; para ele não
há inclinações determinantes, mas há prudência sobre o que é bom e que
envolve a si mesmo e a todos ou outros. A princípio os atos virtuosos são
repetidos sem um conhecimento reflexivo, entretanto, conforme avança o
processo educativo surge a escolha de atitudes boas a partir de seu caráter
com a real intenção de realizá-las.
Compreende-se que no mundo sensível das paixões sem luz (sem
razão), sem visão, não apresenta possibilidade de conduzir bem a vontade
no momento da decisão.
Mas a exaltação da razão em detrimento das paixões pode ser tão
inadequada quanto seu oposto. Fique claro que não há defesa da renúncia,
em sacrificar, da busca pela aniquilação das paixões, como se isso fosse
possível. Não nos referimos à razão extinguindo as paixões, mas sim
“pensar a formação de um ser virtuoso a partir das paixões que o constitui”
(CARVALHO, 2012, p. 203); é pensar a ética a partir do homem
completo, inclusive sobre as suas questões até então excluídas e
consideradas negativas.
83
A virtude é o usar o que está sob o poder do sujeito, a razão, para
cuidar, conter ou decidir sobre o que não está, a paixão.
Aos apetites nos referimos à satisfação irracional do corpo, aos
prazeres dos alimentos ou sexo; seu oposto é a função que também se
preocupa com a segurança deste corpo, por fim, há uma parte racional que
busca o equilíbrio:
a sua tarefa ética é dominar e impor a medida e a proporção. Assim, a
alma será virtuosa se a parte racional for mais forte e mais dominadora
do que as outras duas e se não sucumbir aos apelos do apetite e da
cólera, isto é, se não ceder aos apelos irracionais das paixões
(CARVALHO, 2012, p. 205).
As paixões cumprem o positivo papel de conduzir ao movimento,
à ação, sem elas haveria estagnação, é a energia patente que leva o sujeito à
busca, às conquistas; graças às paixões o sujeito sai do estado de inércia,
caminhando com coragem, ou seja, dependemos das paixões. É importante
que sejamos apaixonados para sermos humanos em toda sua
complexidade, um elemento fundamental na formação dos valores éticos
e na constituição das ações humanas, sendo assim, é tarefa da ética:
[...] educar nossos desejos para que não se torne vício e colabore com a
ação feita por meio da virtude. Em outras palavras, Aristóteles não
expulsa a afetividade, mas busca os meios pelos quais o desejo passional
se torne desejo virtuoso (CHAUI, 2011, p. 444).
Diferentemente da negação, da aniquilação dos desejos; isso seria
extrair a própria humanidade. A pessoa virtuosa segue o modelo
84
aristotélico, sabe agir de modo conveniente, harmonioso com as paixões,
não as considera como obstáculos, mas aspectos importantes na
constituição da vida ética, são oportunidades de alcançar a virtude.
as paixões são elementos essenciais para a edificação do sujeito virtuoso,
cabendo a nós, homens, nos responsabilizarmos pela educação destas
tendências que estão implantadas em nossa natureza, isto é, somos
responsáveis pelo mau uso que delas podemos fazer. Essa educação,
porém, não é uma simples repressão dos desejos insaciáveis e que quer
se alimentar de tudo, mas, deve considerar o pathos como algo em
consonância com o logos, em que o papel deste consiste exatamente
em escolher os fins e proporcionar os meios. A virtude é o resultado do
exercício da razão no homem. (CARVALHO, 2012, p. 204).
A busca de um equilíbrio entre logos e pathos para a moral
aristotélica, para a ética das virtudes, é que leva à vida ética. Não há virtude
na ausência das paixões, ao contrário, é na justa medida que se faz delas, é
a mediania do pathos vivenciada nas circunstâncias da vida prática,
cotidiana, experiência esta que se dá de maneira cada vez mais excelente
com o bom uso da razão; neste momento, quando razão e paixão estão
juntas é que se constitui a vida feliz, na qual cada um destes fatores
essenciais à constituição do humano exerce bem suas funções. A paixão,
essencial para a formação do sujeito moral e a razão prática, tem como
função dirigir adequadamente as paixões de forma moderada.
A ética das virtudes entende que não há ética sem paixão. Paixões
são ponto de partida para ética aristotélica, já que é no controle das paixões
que se tem a virtude, nem na extirpação das paixões nem na sua absoluta
liberdade sem direção. Para a ética das virtudes a paixão não é condenável,
não é fonte de confusão ou erro se estiver sob o controle da razão. As
paixões provêm da parte não racional da alma e estão presentes em todo o
85
tempo no homem, a grande questão é se estarão subordinadas à razão ou
não. Para a ética das virtudes, ser virtuoso é viver as paixões de maneira
equilibrada, é reconhecer o quão humano somos.
A Escola
Formar para a excelência parece algo grandioso e complexo,
entretanto, a partir do momento em que decide pela educação e em que se
escolhe a escola, é assumida a responsabilidade; lugar em que o ensinar e o
aprender estão inseridos, independentemente de sua posição na hierarquia
das relações.
Em matéria intelectual, o lugar da formação seria o ensino, em matéria
moral a aptidão para a virtude decorreria da força do hábito, da prática
e, portanto, da ação social. Aristóteles não descarta, porém, o lugar da
natureza na obtenção dos dons humanos, em tudo o que se revela
expressão dos sentidos, o homem adquire a potência, a qual será a seu
tempo, exterioriza em ato. Assim a visão e audição são potenciais do
recém-nascido mesmo que este ainda não se valha plenamente dos
sentidos são potenciais que, a seu tempo e progressivamente, serão
atualizados na ação. No tocante a virtude, sucederia outro movimento:
é pelo exercício que se adquire a pratica do bem, ao praticar a justiça
tornamo-nos justos (BOTO, 2001, p. 126).
Há uma grande dimensão pedagógica na ética, já que, como visto,
a virtude moral vem pelo hábito e a constância do hábito requer educação,
prática na vida social. “[...]tornamo-nos justos praticando atos justos, e
assim com a temperança, a bravura, etc.” (ARISTÓTELES, 1991, Livro
II, 1).
86
Logo, é através da vida prática com outros homens que se torna
virtuoso, a qualidade das atividades vivenciadas repetidamente, dos atos
praticados, que conduzirão o homem a ser ético ou não.
A ética, diferente dos movimentos que levam as potencialidades
intelectuais a se manifestarem, só se manifesta na esfera coletiva. O ato
ético se dá na relação com os outros, repetidas situações que vão levando o
homem ao uso da razão, não pela disposição do intelecto, mas na vida.
É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera o homem
justo, e pela prática de atos temperantes, o homem temperante; sem
essa prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom.
Mas a maioria das pessoas não procede assim. Refugiam-se na teoria e
pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira.
Nisto se portam, de certo modo, como enfermos que escutassem
atentamente os seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhes
prescrevessem (ARISTÓTELES, 2011, p. 04).
O que se percebe ao estudar a escola, e ao observar sua rotina, é
que termos como ética, cidadania, sujeito social, e frases relacionadas aos
mesmos, estão beirando o senso comum. São excessivamente usados nos
discursos e nos documentos, podem estar levando ao enfraquecimento do
bom entendimento a respeito do que é Educação Ética e o que é a
formação.
A ação educativa é um processo regular desenvolvido em todas as
sociedades humanas que tem por objetivo preparar os indivíduos em
crescimento (crianças e adolescentes) para assumirem papeis sociais
relacionados à vida coletiva, à reprodução das condições de existência
(trabalho), ao comportamento justo na vida pública e ao uso adequado
e responsável de conhecimento e habilidades disponíveis no tempo e
87
nos espaços onde a vida dos indivíduos se realizarem (OLIVEIRA,
2011, p. 235).
Caso termos como ética ou formação humana e cidadã estejam
apenas preenchendo os documentos e os projetos sejam pensados com o
objetivo primeiro do evidenciar um trabalho exigido pelo sistema
educacional, e não o da formação humana efetivamente, então há uma
completa deturpação em seu uso.
O fim da educação escolar hoje, da ação educativa, a preparação
dos indivíduos para a humanidade, só pode ser compreendido na vida
social. Mas o que significa tudo isso afinal? O desenvolvimento de
competências e habilidades para o mercado, o acesso inteligente às
tecnologias, as heranças históricas e culturais, a arte e a política? Enfim, o
que é ser virtuoso hoje? O que é ser um homem cuja função se exerce com
excelência? E mais, haverá na escola possibilidades para formar este
homem?
A função de formação traz para a escola um novo desafio, uma
nova discussão, a saber, o que é ou não possível a escola quando recebe um
aluno que até então pouco exercitou o hábito da virtude ou poucos
cuidados adequados recebeu, nestes casos, quais as possibilidades da escola
contribuir para a formação virtuosa, para a educação ética e escolhas
políticas e racionalmente adequadas?
Sem resistência, sem disciplina, sem o limite do gozo das paixões
não há formação virtuosa. Há necessidade da contenção externa das forças
passionais para que chegue o momento em que, através do bom uso da
racionalidade, o homem possa agir com equilíbrio e a disposição e a
liberdade para isso vêm pela disciplina. A crítica aqui não é pela ausência
de instrução pela instrução, mas o pesar está sobre a falta grave do mestre,
88
do educador que conduz para a virtude para o saber, não com
arbitrariedade, mas com segurança, com gestos de afeição que trazem
conforto e segurança, de um educador que apresente a seu discípulo a
humanidade, para a ética.
Talvez a escola não seja capaz de fazer com que o homem alcance
plenamente a finalidade de sua existência, não seja capaz de formar o
homem virtuoso, não só ela, não de todos os que passam por ela, ou ao
menos no tempo em que permanecem nela, pois o homem, em sua
formação tão grandiosa, com suas multiplicidades, não “cabe” em tempo
e espaço tão definidos assim; não há como responsabilizar a escola sozinha,
única, pelo alcance deste resultado, deste propósito, que é formar o homem
virtuoso.
Sem dúvidas, são muitas as experiências na escola hoje que
auxiliam na formação do homem em sua excelência, que trabalham para
uma sociedade cosmopolita, para o bem comum.
A contínua reflexão sobre a escola é essencial para o contínuo
avançar, para a busca da excelência nos trabalhos. É importante para o
avanço da educação, que ela continue sendo estudada, planejada e não
apenas vivida mecanicamente, mas que seja raciocinada para que,
conforme Kant (2006, p. 22), possa ser um esforço coerente, sem que haja
o risco de destruirmos tudo o que já foi edificado. Não é suficiente
aprender as práticas e repeti-las, mas é preciso continuar pensando sobre
elas.
A margem de atuação da educação tem suas limitações. A formação
é um processo da vida toda e de muitos agentes. Neste processo é possível
que o aluno viva momentos viciosos e cabe à escola entender este processo
de construção de caráter e recebê-lo; é importante que a escola compreenda
o caminho que a razão faz até que alcance a mediana das paixões; cabe a
89
escola não desistir, não rotular, auxiliar para que ações cada vez mais
virtuosas sejam possíveis em próximas experiências. Em um exercício
constante para a vida toda, uma saudável e moderada interação entre razão
e paixão, para o viver bem.
A transformação do sujeito em um sujeito de fato racional, o fato
de capacitá-lo para ação moral, é o fim último que a educação deve buscar.
A escola deve ser espaço para que o aluno possa
desenvolver a capacidade de avaliar, modificar ou excluir seus próprios
juízos práticos e perguntar a si mesmo se as razões para agir são
realmente boas razões; desenvolver a capacidade de imaginar futuros
alternativos possíveis, de modo que possa escolher racionalmente entre
eles e, adquirir a capacidade de distanciar-se dos seus desejos para
perguntar-se racionalmente sobre o que é necessário para buscar o bem
e assim ou orientar ou reeducar seus desejos para alcançar o bem
(GONÇALVES, 2012, p. 88)
É complexa essa formação. Não se trata de fabricação, não depende
só do educador ou da escola, mas, é a escola um importante responsável
pela educação moral. Marques (2006) lembra que, na formação do caráter
moral, da virtude, é essencial a metodologia que gire em torno de
estratégias como a exortação, o exemplo e o envolvimento. E que o
professor deve considerar o uso do próprio conteúdo para desenvolver o
raciocínio moral; o estímulo à cooperação; o desenvolvimento de
responsabilidades; a superação do conflito sem violência e a promoção da
ética do cuidar. Não é aconselhável que os valores éticos estejam em uma
disciplina específica, que haja a penas um professor ensinando ética, mas
que este aprendizado percorra todo o currículo, de maneira transversal. A
90
ética é questão de toda a vida e está presente em todos os espaços, não é
possível isolá-la.
O ambiente da escola é determinante para o desenvolvimento moral
do aluno e um dos principais instrumentos é o código de conduta
escolar. São as autoridades escolares e os professores os responsáveis
pela elaboração, operação e implementação do código de conduta, o
qual torna uma opção clara pelo esforço da autoridade do professor,
reconhece a importância da linguagem moral e do habito no processo
de desenvolvimento moral. Lickona (1991) considera que existem três
componentes no bom caráter: o conhecimento moral, o sentimento
moral e a ação moral. O conhecimento exige reflexão, compreensão,
formação de juízo moral e processo de escolha. O sentimento exige
auto estima, empatia, afecto e saber colocar-se no lugar do outro. A
ação exige vontade e hábito, são assim estas as dimensões fundamentais
de qualquer programa de desenvolvimento moral preocupado, não
apenas com o desenvolvimento do raciocínio, mas, sobretudo com o
desenvolvimento do caráter ou da ação moral (MARQUES, 2006, p.
7-8).
Educar requer clareza dos direitos do outro e a importância dos
deveres. Há necessidade de mestres bem formados, o trabalho do educador
exige a formação virtuosa, ética, exige um cidadão virtuoso. A formação
ética necessita de ações éticas do professor, de professores bem formados.
Sem dúvida que para isso políticas públicas que viabilizem a formação
continuada dos professores são essenciais assim como olhar sobre o
currículo dos cursos de licenciatura.
[...] ao longo de nossas vidas somos atravessados e experimentamos
modos de existir que não se reduzem ou não podem ser compreendidos
em uma única configuração, pois somos seres em constante
91
configuração e movimento. A condição humana, isto é, as
características que nos distinguem dos outros seres viventes podem ser
vistas como marcadas por atividades, ideias, anseios e gestos que se
modificam, se contradizem, se unificam e são ultrapassados, o que
sugere nosso caráter finito, incompleto e sempre aberto”.
(CARVALHO, 2016, p. 209)
Logo, práticas pedagógicas como respeito, liberdade e
possibilidades de diálogos são o que contribuem com a formação virtuosa
da humanidade; uma escola que tenha em suas ações mais do que o ensino
instrumentalizado, mas que nelas caibam formação, valores, resolução de
conflitos humanos e a cultura; é esta escola que pode viver a experiência de
observar (trans) formações em seus alunos.
Na educação escolar não se deve excluir nenhum aspecto da
condição humana, é necessário trabalhar paixões, pulsões, os desejos do
corpo, o intelectual, o racional, enfim, o todo humano. A escola deve
oportunizar condições, espaços e lugares, vivências e reflexões sobre os mais
diversos aspectos da condição humana. Logo, o arbitrário não cabe e
também o se fala em libertinagem, mas, um meio termo que possibilite
o surgir, o manifestar das diversas identidades e que transmita segurança,
algum nível de contenção necessária e o apoio, o acolhimento que lhe são
importantes; um justo meio em que figuras, exemplos e virtuosidade,
atores éticos, possam surgir.
Experiências saudáveis de relações entre as pessoas devem acontecer
também na escola. Em alguns casos, por conta dos mais diversos fatores
vividos, as primeiras experiências com presença de liberdade, justiça,
tolerância ou qualquer virtude que leve ao desenvolvimento do homem
ético em um ambiente democrático acontece na escola, ao menos deveria
ser assim.
92
Um meio (ideal) em que todos possam ter voz sem a exigência de
que o outro viva igual, apresente as mesmas verdades, ideias ou atitudes,
lugar em que se expõe os diferentes modos de vida, os diferentes códigos e
que possa levar o outro a enxergar diferentes formas de viver, que permita
outros olhares, sem arbitrariedade. É o exercício da liberdade de ser e a
liberdade de olhar de cada um; a possibilidade de dizer de modo franco o
que se é assumir, se expor, sem o discurso descolado do modo de vida. A
escola deve buscar condições para que as diferenças se aproximem,
possibilidades de encontros proporcionados pela própria vida.
A escola, ainda segundo Biesta (2013) deve assegurar que
estudantes encontrem espaços para sua voz e se relacionem com o
diferente, experiências, que mesmo de conflitos, levem à maturidade.
[...] nós como professores e educadores, devemos estar cientes de que
rompe a operação tranquila da comunidade racional não é
necessariamente um distúrbio do processo educacional, poderia ate ser
o ponto em que os estudantes começam a encontrar sua própria voz
responsiva e responsável (BIESTA, 2013, p. 98).
É necessário que nas práticas da escola o exercício do poder seja
substituído por virtudes como a justiça e a temperança: “O homem deve
ser educado e formado para ser, antes de tudo e, sobretudo, um cidadão e
que a política é a verdadeira e suprema paideia, definidora da areté, da
virtude, da excelência moral e intelectual. ” (CARVALHO, 2010, p. 214).
O meio através do qual é possível formar sujeitos virtuosos é o agir
virtuoso, a ação ética. É exercendo a docência com ética, com atitudes em
que há virtude que se educa a humanidade para o bem comum, para
decisões equilibradas.
93
A proposta é esta, contribuir, através de mais um trabalho para que
a escola continue revendo seus caminhos, refletindo sobre suas práticas e
que teorias já conhecidas possam modificar ações há tempos repetidas; a
formação pode ser um trabalho longo e incômodo.
A escola não é o único, mas um importante lugar para se aprender
ética, para que aconteça a formação e transformação virtuosa da
humanidade, para que em contato com os excessos caminhemos (alunos e
educadores) para a prudência, a justiça, a amizade, a compreensão, a
tolerância, o amor ao próximo.
Este trabalho não pretende apresentar métodos para o ensino da
formação do sujeito virtuoso na escola. O termo método sugere
assertividade, precisão e agilidade para alcançar resultados, e a formação
ética não cabe em prazos determinados, o resultado do processo de
formação ética pode aparecer em um tempo além da escola, posterior a ela
logo, sem condições de registro.
Não se trata da definição de métodos a serem executados por
educadores, mas, do pensar sobre a formação na escola, sobre que aspectos
da formação do homem podem acontecer no ambiente escolar e em meio
às relações que se estabelecem ali.
[...] qualquer tentativa de transformar a educação em uma técnica,
qualquer tentativa de concebê-la em termos de instrumentalidade,
representa uma ameaça a própria possibilidade de tornar-se alguém por
meio da educação... transformar a educação em uma técnica requer a
eliminação da pluralidade, diversidade e diferença. Requer uma
eliminação, em outras palavras, do que torna a educação difícil
(BIESTA, 2013, p. 127).
94
As condições ou atitudes nas quais a ética se apresenta na escola são
aquelas em que a responsabilidade com o diferente e o plural são mais
importantes do que o conhecimento, é quando o humano recebe mais
atenção do que o tecnológico. O mundo contemporâneo ameaça atitudes
éticas na escola, ele reproduz um sujeito, um consumidor, internaliza nas
pessoas uma posição padronizada, ameaça diferentes maneiras de ser e
diferentes modos de vida. Ao contrário dessa posição, a responsabilidade
da escola é a educação ética, a condução para a formação de identidades
que convivam e se relacionem bem.
A maneira de educar para a ética, de auxiliar na formação virtuosa
é por meio da participação na vida, o que não se limita aos muros da escola,
mas é este um lugar importante. Só a experiência desenvolve o caráter
virtuoso, formamos hábitos e pensamentos reflexivos no ambiente social,
é através da interação que somos formados e transformados.
Experiências que formam pessoas éticas acontecem também na rua,
em casa, na internet e nas redes sociais, de fato de não se limitam à escola,
quando a escola é vista como instrumento de produção, fabricação de
produtos, com uma concepção instrumentalista ou como aquela capaz de
arcar com toda a responsabilidade da formação.
Segundo Gélamo (2010), a ideia sobre o que somos tem sido
associada ao saber, reduzindo a função da escola, com isso o papel do
professor tem se limitado ao método de ensinar bem, do bem explicar, do
fazer conhecer o já reproduzido, a argumentação e a repetição;
distanciando-se de questões voltadas à reflexão e a formação humana, fica
empobrecida, limitada, longe de dimensões éticas. É possível à escola um
ambiente cujas experiências contribuam para o pensar sobre a vida, sobre
as escolhas e mesmo assim aperfeiçoar a transmissão e construção do
conhecimento; este é o ideal, e que deve ser a busca, um exercício que traz
consigo reais dificuldades, já que a escola também vive uma crise de
95
subjetividade. Lazzarato (2014, p. 53) aponta que: "um mundo
maquinocêntrico, que impede a exposição dos discursos e processos de
subjetivação autênticos, singulares, heterogêneos, meio este que não
oferece a possibilidade de mudança".
A escola se propõe a trabalhar, a agir, a estudar processos, a umas
práxis, estando em movimento; a reflexão sobre o que se está vivendo,
sentindo, e experienciando; o refletir sobre as práticas da escola enquanto
o fazer se dá, sobre o meio, estando nele inserido; a pensar sobre as
melhores formas de relação na escola, vivendo as experiências como atores
desses encontros. Assim, propomos compreender a formação humana
estando ainda caminhando, ainda em formação, um desafio e ao mesmo
tempo a via necessária para a escola hoje
.
A escola é campo para encontros com o diferente, para exercícios
de escolhas e experiências com o coletivo, com a pólis; na escola há espaços
para diálogos, para o estranhamento e identificações, um espaço público
para a formação de identidades; por tudo isso é importante que as paixões
sejam vivenciadas e o uso da razão deve ser desenvolvido.
A condição do sujeito como aquele que deve ser educado é uma
condição clara, e é evidente a necessidade do outro para sua formação, para
o pleno uso de sua razão e para o exercício da ética. A função humana é o
uso de sua razão, uma condição que o faz diferente de todos os outros seres
da natureza.
Considerações Finais
A partir das considerações apresentadas é possível compreender a
escola como instituição que realiza muito além do ensino lógico-
96
matemático e da língua. Conteúdos curriculares e metodologias são
atravessados por experiências de aprendizagens que auxiliam o sujeito em
sua formação ética. Virtudes são desenvolvidas na escola e há espaço para
o humano além do tecnicista, do mercado de trabalho ou dos mais diversos
rankings.
Uma instituição educacional; seja infantil ou não, pública ou
privada; é fundada social e historicamente, traz todas as questões
apresentadas em seu tempo, é ordenada em sua relação escola/mundo, é
viva e forma ao mesmo tempo em que é formada, em um movimento
contínuo.
É certo que o conhecimento sobre a formação humana tem
contribuições de outros campos de pesquisa, como da medicina, da
psicanálise, da neurociência e tantas outras. E diante de tudo o que pode
haver, o trabalho se fez pequeno e deixa a cada leitura necessária ao seu
desenvolvimento, o desejo de ir além e a sensação de infinitude do tema.
Há uma grande responsabilidade na ação educativa e não se pode
negligenciá-la. Ao educador não cabe à omissão nem a ignorância sobre a
complexidade da escola, do ser humano e de tudo que pode surgir da
relação entre estes elementos vivos e ativos.
Uma escola comprometida com a formação tem o cuidado, o
compromisso, com a relação humana e as experiências existenciais que nela
residem; são singularidades e individualidades, o coletivo e o individual,
são as diferenças convivendo e sendo eticamente respeitadas. Para
formação do sujeito virtuoso na escola é importante a presença de
educadores que assumam em suas tarefas e em suas ações pedagógicas, um
modo virtuoso, oposto ao tirano e ao autoritário, que se apresentem com
posturas éticas, como desejo pelo bem, que possuam a fraternidade e que
gostem da humanidade; o que exige tanto disposição pessoal como boas
97
condições de formação para esses profissionais que envolvem condições de
trabalho, estrutura e recursos mais diversos e políticas públicas que
ofereçam-lhes condições de formação
Referências
ALVES, M. A. Ética e educação: caráter virtuoso e vida feliz em
Aristóteles. Acta Scientiarum, Maringá. v.36, n. 1, p. 93-104, jan/jun,
2014.
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99
Pedagogia de Schoenstatt:
a dimensão ética e o ideal de uma educação da
infância para a liberdade e para a autonomia
19
Sandra Regina Mantovani LEITE
20
E se a escola é tão importante na vida de toda criança, ela o é,
inicialmente, por isso: porque ao encontrar-se com seus amigos a
criança encontra neles, nesses seus amigos, os seus comuns amigos-do
saber, e, enquanto forma, encontra em tudo isso a amizade como um
princípio, uma arché, o primeiro fulgor de uma nascente vontade de
saber. (CARVALHO, 2016, p. 147).
Introdução
Ao ressaltar a pessoa do educador e sua importância no processo
educativo, alicerçado em um profundo relacionamento com o educando,
o Sistema Pedagógico Schoenstattiano contempla o ser humano em todas
as suas dimensões. Fundamenta-se em uma concepção filosófica cristã,
advinda dos ensinamentos de Josef Kentenich, criador de um sistema de
19
Este texto, agora ampliado e reorganizado, foi publicado nos Anais do V Congresso Brasileiro de
Ensino e Processos Formativos. São José do Rio Preto. UNESP/IBILCE, 2020.
20
Pós-Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília. Docente do
Departamento de Educação. Universidade Estadual de Londrina - UEL. Londrina. Paraná. Brasil.
sleite@uel.br
h
ttps://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p99-116
100
educação original e de uma pedagogia peculiar. Chama-se Pedagogia
Schoenstattiana, pois provém de um movimento de educadores e de
educação que tem em Schoenstatt a sua origem. Schoenstatt está situado
na Alemanha, perto de Coblença e pertence à pequena cidade de
Vallendar.
O objetivo deste estudo é apresentar a Pedagogia de Schoenstatt
como um ideário pedagógico ao alcance do professor da Educação Infantil,
em busca de uma educação humanizadora e que, portanto, pode
proporcionar à criança uma formação integral, favorecendo uma vida
melhor, consciente e feliz.
Josef Kentenich acreditava no educador e no seu papel
fundamental no processo educativo, que se desenvolvia em um profundo
relacionamento com o educando. Muitas questões surgem ao trabalharmos
os princípios da Pedagogia Shoenstattiana nesse momento. A primeira
delas seria: quais as contribuições da Pedagogia de Schoenstatt para a
Educação Infantil na prática pedagógica dos professores? Continuamos
com o seguinte questionamento: como a dimensão ética, entendida como
articuladora do processo pedagógico, se apresenta na Pedagogia
Schoenstattiana?
Em todo este tempo que estamos vivendo distanciados por conta
da Pandemia, do Coronavírus Covid 19 percebemos o quanto a
proximidade, o toque e até mesmo um momento de diálogo faz falta para
nos sentirmos amados e humanizados. O distanciamento social fez com
que percebêssemos a importância do outro próximo de mim e do outro
que está dentro de mim. Para as crianças que fazem parte da Educação
Infantil, que têm as interações e brincadeiras como eixos estruturantes na
organização do trabalho pedagógico, esse momento de crise tornou ainda
mais difícil o desenvolvimento e a aprendizagem. Tal constatação se dá a
partir de vários relatos de professores que atuam com esta faixa etária, que
101
afirmam perceber uma involução em termos do seu trabalho com as
crianças atendidas por meio remoto.
Nesse sentido, seja presencialmente (de forma híbrida ou em um
“novo normal”) seja de forma remota (online) a Pedagogia de Schoenstatt
e seu arcabouço teórico, alicerçado em um trabalho com uma educação
humanizadora, com formas de atendimento à criança que privilegiam a
valorização do outro, o exercício da alteridade e o trabalho metodológico
com os vínculos entre as pessoas e entre os objetos, poderia ser uma
alternativa para o trabalho com as crianças e professores da Educação
Infantil, em que a dimensão ética pode articular todas as outras dimensões
necessárias ao pleno desenvolvimento infantil.
Apresentando uma retomada histórica, é importante ressaltar que
a Pedagogia Schoenstattiana completou cem anos em 2012, sendo
utilizada e aplicada em vários países do mundo, como Alemanha, Chile,
Argentina e Brasil. Em Londrina, no Estado do Paraná, o Colégio Mãe de
Deus aplica de forma acentuada esta pedagogia e foi um dos espaços
utilizados na realização desta pesquisa bibliográfica e de análise
documental sobre o Projeto Político Pedagógico do próprio colégio.
Também se utilizou de documentos escritos pelo fundador e artigos
publicados sobre a Pedagogia de Schoenstatt. “Analisar historicamente essa
escola é interpretar e compreender uma parte do progresso, do
desenvolvimento político, econômico, cultural e educacional da cidade e
também da própria região” (LAWAND & BERTAN, 2008, p. 13).
102
Pilares que fundamentam o sistema pedagógico de Schoenstatt:
ações educaticas em busca da humanização no processo educativo
A Pedagogia de Schoenstatt tem como intuito ser a perfeita ligação
entre a teoria e a prática vivenciada, e para tanto se estrutura em cinco
colunas: Pedagogia do Ideal, Pedagogia da Vinculação, Pedagogia da
Aliança, Pedagogia da Confiança e Pedagogia do Movimento. Estudar
essas relações e estruturas possibilitará entender o processo educativo e
buscará responder as questões apresentadas anteriormente.
A Pedagogia do Ideal, trabalhada em todos os níveis de ensino, da
Educação Infantil até o Ensino Médio, se atenta para a formação do
próprio caráter, dos valores que fazem parte da vida da pessoa e que podem
ser vivenciados como objetivos pessoais em relação à sociedade. Os
educandos são estimulados, por meio da interdisciplinaridade e de projetos
sociais, a dar sentido a sua existência, relacionando o seu valor como pessoa
humana em todos os âmbitos da vida, quais sejam social, cultural,
científico, comunitário, afetivo e espiritual.
Para tanto, Padre Kentenich, relaciona que professores e alunos
ocupam posições diferentes, mas essas posições não precisam ser
antagônicas; as relações podem ser de complementaridade, colaboração,
cooperação, respeito mútuo, ou ainda, as relações podem ser de
subordinações, assimétricas, desiguais, dominadoras. A maneira como
essas relações são constituídas pelos sujeitos constrói cidadãos livres e
autônomos ou subordinados e dominados.
Portanto, o trabalho pedagógico buscar despertar nas crianças e
adolescentes a consciência do seu valor pessoal e de sua autoconfiança.
Assim, a pedagogia do Ideal, um dos pilares desta pedagogia, proporciona
ao educando meios para que, por meio do entendimento do seu valor
103
como pessoa humana, possa conquistar de forma afetiva o domínio da vida
para si e para a sociedade como um todo.
Dessa forma, o trabalho educativo que acontece por meio da escola
precisa possibilitar aos que a frequentam a oportunidade de formarem-se,
tornando-se homens e que tenham diante de si formas para realizar sua
própria individualidade de maneira produtiva para eles e para a
coletividade. Nesse sentido, lembrando Carvalho (2010), para que o
mundo e a vida não deixem de ser apenas uma possibilidade abstrata, é
necessário que enfrentemos o mundo burocrático, que estabelece um
cenário racional, essa deve ser a responsabilidade da ação educativa.
A Pedagogia da Aliança é a dimensão espiritual do Sistema
Pedagógico. Partindo do que está apontado no Projeto Político Pedagógico
do Colégio Mãe de Deus, podemos dizer que esta pedagogia propõe que o
relacionamento do educador com o educando pode se estabelecer como
uma aliança, sendo o ponto de partida Maria, Mãe de Deus, que serve para
o Ser humano como um exemplo fundamental para sua vida em
comunidade.
Quando apontamos a Dimensão Ética, como articuladora do
processo pedagógico, percebemos que na pedagogia apresentada, os valores
e a responsabilidade como cidadão se relacionam com a Pedagogia do
Movimento. Nesta, o processo dialético, possibilita ao educando a busca
pelo bem comum, pelo bem viver em comunidade. É preciso se formar
com dinamismo, criatividade e protagonismo, buscando a renovação e a
transformação da sociedade em qualquer nível.
Tanto nas discussões da Filosofia da Educação amparadas por
Carvalho (2016; 2010); Severino (2010; 2001); Boto (2001); Macedo e
Dias (2006), como nos estudos realizados por Kentenich, o professor
precisa ser entendido como agente de mudanças e promotor do saber, e
104
precisa também utilizar de sua atividade docente com a função de afetar,
de sensibilizar os envolvidos. O professor deve se dispor a ajudá-los a dar
significado. O significado se efetiva à medida que as pessoas se relacionam,
se conhecem e se respeitam, seja pela palavra, seja pela linguagem, por um
gesto, ou simplesmente por estarem dispostas a buscar a compreensão
acerca de si ou do mundo.
O diálogo, outro ponto importantíssimo na Pedagogia de
Schoenstatt, tem sua afirmação trabalhada na Pedagogia da Confiança. A
confiança está ligada ao papel do educador que, ao saber ouvir, conhecer,
interpretar e compreender a linguagem do educando, dá ao mesmo um
lugar de importância no processo, valorizando-o por meio do diálogo.
Consequentemente, esse trabalho conduz a última coluna apresentada pelo
Sistema Pedagógico - a Pedagogia das Vinculações. A questão dos vínculos,
além de se apresentar como um ponto importantíssimo na educação das
crianças pequenas, faz com que os educandos se sintam acolhidos,
abrigados e seguros no espaço educativo, promovendo a confiança
necessária para a organização de uma educação humanizadora e de
qualidade.
O Sistema Pedagógico de Schoenstatt apresenta, ainda, três pilares
que fundamentam a dinâmica do desenvolvimento de cada ser humano, a
saber: amor, liberdade e autonomia. Entendemos uma íntima relação entre
os três pilares e o conceito de cuidado, trabalhado pela Filosofia da
Educação por meio da Dimensão Ética. Os princípios que embasam toda
a atuação pedagógica criada pelo Padre Kentenich são válidos para a
constituição da pessoa humana, visto que asseguram o equilíbrio entre os
domínios científicos, culturais e éticos.
A concepção de cuidado na Dimensão Ética ultrapassa noções
relacionadas exclusivamente à necessidade de higiene ou cuidados com o
corpo. Da mesma forma, os pilares que fundamentam a Pedagogia de
105
Schoenstatt vislumbram o desenvolvimento do ser integral, visto como
pessoa humana. De forma sucinta, apresentaremos o que contempla cada
um deles e faremos um entrelaçamento com as ideias trabalhadas pelo
enfoque da Dimensão Ética na Filosofia da Educação.
O primeiro pilar do Amor: Padre Kentenich (1999), entende que
o espaço educacional é a continuação de seu espaço familiar e, portanto,
torna-se para ele um ambiente saudável, de alegria e de colaboração mútua,
quando se privilegia o componente afetivo como um dos pilares da atuação
docente, na qual o educador é aquele que transfere e conduz o amor de
Deus ao educando e vice-versa. “Este amor respeitoso do educador
desperta no educando todas as capacidades e o impulso em buscar, no
cotidiano de sua vida, as características desta ideia original.
(LONDRINA, CMD, 2019, p. 40).
O cuidado se relaciona com a dimensão ética na prática educativa,
o ser humano precisa ser visto como pessoa, valorizado como tal, e a
atuação do professor carece de proporcionar aos que estão na condição de
aprendentes as possibilidades de se construírem como seres humanos.
Segundo Folque (2014, p. 75) “aprender significa uma mudança de
participação em práticas sociais, que passa de uma participação periférica
para uma participação plena na comunidade”, sendo que para tanto, uma
Educação Ética, que privilegia o cuidado e o acolhimento pode auxiliar e
se efetivar como uma arte de viver, valorizando o espaço educativo como
comunidade de aprendentes, em que a aprendizagem é um “projecto de
acção partilhado” (FOLQUE, 2014, p. 75).
Nessa perspectiva, entendemos este primeiro pilar relacionado ao
que analisamos com o conceito de acolhimento. É mister valorizarmos o
ser e estar juntos, os momentos de interação com as crianças. Criar outra
forma social de cuidado. As pessoas necessitam de vínculos. É possível
afirmar que o amor é condição para a vida em todas as suas dimensões e
106
que, conforme Dotto (1994, p. 76), “quanto maior for a experiência de
amor, tanto maior será a capacidade de amar e a possibilidade de
crescimento e aperfeiçoamento da personalidade”. Nessa perspectiva,
afirmamos que o professor por meio da sua atuação com práticas que
valorizam o educar e o cuidar proporciona habilidades, conhecimentos e
experiências que contribuem para o desenvolvimento pleno da criança.
Nessa perspectiva, as reflexões sobre a educação da infância
implicam discussões sobre o cuidado, como forma de estar com o outro e
valorizá-lo como pessoa, como principal responsabilidade e,
consequentemente, o acolhimento em decorrência. Esse entendimento
influenciará na análise do segundo pilar, que é a Liberdade.
O segundo pilar da Liberdade: Para a Pedagogia de Schoenstatt
toda pessoa, desde sua primeira infância, precisa ser preparada para assumir
responsabilidades pelos seus atos, mesmo que não tenha total
entendimento de decisão e escolha. A liberdade como escolha livre
realizada por meio de atividades concretas, propostas pelo professor
ajudam a criança na construção e no uso de sua liberdade. Trata-se de um
caminho trilhado pelo próprio educando e cabe, aos educadores, pais e
mestres, o auxílio.
Desta forma, “estaremos contribuindo para a formação de um ser
humano livre. Ser livre de, a fim de ser livre para. Eis a grande chance para
a realização pessoal.” (LONDRINA, CMD, 2019, p. 43). Reafirmamos a
necessidade de possibilitarmos às crianças um desenvolvimento integral,
em que elas se sintam valorizadas como pessoas e valorizem o outro como
pessoa, torna-se essencial definir propostas pedagógicas concretizadas por
meio de práticas educativas que favoreçam o diálogo, a participação e a
negociação.
107
Qualquer ação do educando deve estar sob o olhar confiante do
educador. Com esta segurança é possível o agir e o pensar autônomo
que o educando demonstra, especialmente nas atividades escolares. A
autonomia não pode ser desenvolvida desvinculada do amor e da
liberdade. O desafio da educação para a autonomia conduz ao
aprofundamento do desenvolvimento da personalidade dos educandos
para que eles se tornem cidadãos na e para a sociedade. Este é um
processo contínuo. (LONDRINA, CMD, 2019, p. 46)
Sobretudo, o processo pedagógico e as práticas pautadas em valores
que proporcionem às crianças direito de expressar seus pontos de vista, de
ter voz e vez, com possibilidades de compartilhar ideias, experimentar o
mundo, transformando a Instituição de Educação Infantil em um espaço
de comunicação, de apropriação de conhecimentos e, consequentemente,
de humanização. A abordagem pelo diálogo é importantíssima, portanto,
“o diálogo cumpre sua função na práxis libertadora quando é instituído
como caminho para a constituição de sujeitos em um processo de
humanização e como ato de criação para a libertação dos homens para
serem mais.” (SZYMANSKI, 2009, p. 36).
Dessa forma, pode-se afirmar que a prática do cuidado também
apresenta duplo sentido, um deles no campo da ação do pensamento,
reflexão, e outro no campo da aplicação do espírito, apresentando-se em
atitudes de relacionamento para com o outro. Nesse sentido, e
principalmente tendo como foco a criança na Educação Infantil, pode-se
afirmar que cuidar abrange aspectos cognitivos e afetivos.
O Amor e a Liberdade como pilares no Sistema Pedagógico
Schoenstattiano desencadeiam-se no terceiro pilar: a autonomia: Padre
Kentenich afirma que “o homem novo, é a personalidade autônoma,
espiritualizada, capaz de estar disposta a tomar decisões, responsável e
108
interiormente livre da escravização formalista, bem como de um
arbitrarismo total” (KENTENICH, 1997, p. 10).
As crianças precisam ser vistas e valorizadas como sujeito de
direitos, pessoas ativas, participantes, protagonistas, como ser histórico e
social que se apropria da cultura existente reproduzindo-a e modificando-
a. Por isso, “não cabe à educação “fazer” pessoas, mas despertá-las para sua
autonomia mediante os recursos da cultura. Educar-se é aprender-se e se
constituir cada vez mais como sujeito.” (SEVERINO, 2001, p. 80). Assim
o professor mediador nesse processo tem um papel importantíssimo para
que o desenvolvimento e a aprendizagem da criança aconteçam de forma
plena e integral.
Ao professor da infância cabe realizar intervenções que respeitem a
originalidade de cada ser e afirmem as suas capacidades em
desdobramento, colaborando para que cada um dos educandos se torne o
melhor de si. Uma aproximação dialógica pode e deve ser entendida como
um movimento em direção a uma prática que reconheça e valorize a
horizontalidade.
Quando o professor prioriza o trabalho com a autonomia, o “serem
mais” acontece por meio da atuação da criança em desvelar novos
horizontes, que são conhecimentos para elaboração da sua própria história.
O professor da educação infantil e a pedagogia de Schoenstatt
A educação, nesse sentido, precisa ser entendida, como ação e
reflexão sobre a ação, como esforço histórico de auto constituição da
humanidade. A educação é a obra da práxis humana, é por isso que
somente pela educação é que o homem se torna homem. E é na instituição
109
escolar que o professor consciente do seu papel pode atuar buscando a
humanização da sociedade, uma “tarefa mediadora do professor, entre a
experiência do aluno e uma atividade crítica e cultural mais ampla.”
(GUZZO, 2011, p. 47).
Seguindo a pedagogia de Kentenich, entendemos que a educação
da personalidade conduz a uma atitude ética que leva a tomar decisões a
partir do próprio interior, independentemente de ordens ou atos
impulsivos. O desenvolvimento do cerne da personalidade, que
fundamenta a atitude, supõe, essencialmente, uma sadia consciência do
próprio valor pessoal e inclui a capacidade de se alegrar com a própria
originalidade (KENTENICH, 1962).
Na Pedagogia de Schoenstatt, as responsabilidades devem ser
partilhadas por educandos e educadores em todo o processo educativo,
sendo que participam por meio do trabalho coletivo. Ao educador cabe a
sensibilidade de despertar, em uma linguagem adequada aos estudantes,
mediante o diálogo livre, atitudes e ações que são mais evidentes do que as
palavras.
Em uma sociedade de conhecimentos fragmentados, a crença na
homogeneidade, a confiança das pessoas em modelos de “como ensinar”
podem trazer uma sensação de segurança ao professor. No entanto, na
Pedagogia schoenstattiana, o aprendizado é ação personalizada, requer
uma atuação do professor que leva em conta o conhecimento pessoal do
educando e de suas especificidades, pois segundo Kentenich (2006),
ensinar é colocar-se à disposição da atual sociedade a fim de colaborar no
processo de humanização dos homens, ciente de que a essência do
educador consiste em reconhecer e promover a missão de cada um.
Assim, o professor com sua atividade mediadora intervém na
prática educativa no sentido de instrumentalizar a criança desde a
110
Educação Infantil para sua atuação no meio social. Essa instrumentalização
é possibilitada ao ser humano por meio do saber escolar, que é a ferramenta
cultural necessária para intervir no mundo transformando-o, a dimensão
epistemológica que contempla a razão e o conhecimento, a aquisição e a
construção do sujeito como ser histórico e social é imprescindível para que
este sujeito se entenda como pessoa.
A Pedagogia de Schoenstatt vislumbra um trabalho pedagógico
organizado a partir de uma cultura do encontro e do diálogo. O diálogo
ocorre por meio das possibilidades vindas da observação e concretizadas
por meio das linguagens, sendo que a mesma é a capacidade humana de
compartilhar significados.
A cultura do Encontro entende o processo educativo que ilumina
a organicidade entre ensino e aprendizagem, uma vez que não há
possibilidades de se ensinar sem se colocar na condição de aprendiz. Um
aprendizado que se tornará condição de ensinar, mais do que palavras,
investe na conquista de atitudes e ações. A organicidade requer como
recurso pedagógico o cumprimento do dever, não como ação sem sentido,
e sim mobilizadora para a promoção da vida. (LONDRINA, CMD, 2019,
p. 53).
Essa ação significadora que utiliza da escuta. Escuta que pode ser
realizada de maneira sistemática, sendo que cada professor pode escolher,
por exemplo, quais meios serão utilizados para documentar e,
posteriormente, avaliar e refletir sobre as atividades. A escuta com os
ouvidos pode e normalmente permeia a comunicação, mas, para, além
disso, na efetivação do fazer docente está a necessidade de uma escuta mais
atenta e sensível, que propomos aqui ser efetivada por meio da
documentação, como suporte para posterior reflexão e novas relações com
as crianças.
111
Nesse sentido, o professor pesquisador precisa estar consciente da
sua atuação para enfrentar os desafios da sociedade e da escola
contemporânea, deixando de ser um mero técnico científico, haja vista que
formação é muito mais que domínio de conhecimento e aprendizagem de
técnicas. Formação é exercício permanente de presença ativa no mundo,
pensada a partir da perspectiva do compromisso ético, que utiliza do
conhecimento, das técnicas, sem, contudo, privilegiá-las. Sendo assim, a
concepção do educador que se defende neste estudo, seguindo na
perspectiva schoenstattiana, é de um trabalhador intelectual que faz a sua
parte na realização histórica, na humanização e emancipação da vida
humana.
A emergência de uma nova escola, para que se possa compreender a
crise da educação para uma nova atuação político-pedagógica
transformadora, envolve a formação do professor, no sentido de
construir-se a partir da consciência política e ética de sua práxis. A
clareza e o respeito da natureza ética e política da educação poderá
possibilitar ao professor auxílio a si e aos seus alunos, na medida em
que o fará compreender que esses componentes fazem parte de maneira
indissociável de sua formação. A escola, inserida em um ambiente
social, terá a possibilidade de receber melhor análise crítica se os
fundamentos das ações docentes se voltarem para a tarefa de construção
da cidadania para todos: alunos e professores. (GUZZO, 2011, p. 44).
Faz-se necessário valorizar e lutar para que o profissional da
educação tenha realmente uma formação inicial e permanente que
contribua efetivamente para que sua prática seja significativa. A formação
dos profissionais que atuam na Educação Infantil precisa proporcionar às
crianças o contato com as experiências vivenciadas pelos adultos
112
integrando as suas vivências, permitindo que a criança atue como sujeito
social, histórico e cultural.
Deste modo, os professores necessitam refletir constantemente
sobre sua prática, tendo para tanto uma fundamentação crítica e coerente,
criando estratégias e atuando de forma comprometida, desvalorizando o
uso de receituários e/ou manuais. Conforme Angotti (2008, p. 26)
[...] novos tempos podem ser pensados para a sociedade;
desenvolvendo e realizando pessoas mais completas, seres mais íntegros
que saibam exercer seus papéis enquanto ser pessoa, ser social, ser
histórico, ser cultural, novos tempos em que o ser humano possa viver
a plenitude de todas as etapas da sua vida, realizando-se e tendo uma
atividade intensa, uma vivência clara do que seja ser criança e viver a
infância. (ANGOTTI, 2008, p. 26)
Assim, para proporcionar o desenvolvimento de uma criança, o
professor, refletindo sobre os acontecimentos de sua prática, permitirá e
possibilitará diferentes vivências, que proporcionem acesso às diferentes
culturas e modos de vida.
Na Educação Infantil, a Pedagogia de Schoenstatt favorece um
trabalho relacional entre professor e criança, para que ambos possam, por
meio da cultura do encontro e do diálogo, utilizar as oportunidades, os
acontecimentos, as circunstâncias e os fatos para suscitar correntes de vida
que favoreçam o desenvolvimento pleno. A Importância do professor em
todo o processo permeia um acolhimento que oferece à criança segurança,
pois possibilita aos envolvidos no processo uma abertura para ouvir as
necessidades do outro. O educando é convidado a avançar, acreditando
que tem capacidade para renovar o mundo como protagonista em todos
os momentos.
113
Considerações Finais
Concluímos que a Pedagogia de Schoenstatt como ideário
pedagógico auxiliará em muito o trabalho do professor de Educação
Infantil, pois é uma pedagogia que proporciona, aos envolvidos no
processo educativo, uma educação que contempla o outro, em que
professor e aluno são afetados pela reflexão de seus limites, de suas
possibilidades, de uma interação alicerçada nas várias dimensões da prática
docente e que prioriza as relações humanas favorecendo a humanização da
criança.
A Instituição de Educação Infantil precisa ser um espaço que
potencializa a mediação e a realização da criança em sua plenitude. Um
educando que se descobre como ser humano, com sua dignidade de ser
pessoal, consciente e livre. E o professor como principal agente desse
processo também precisa utilizar de seu arcabouço teórico para
potencializar as atividades que são realizadas no espaço educativo.
As práticas pedagógicas que se relacionam com o educar, o cuidar
e o acolher precisam iniciar com reflexões sobre o que é realmente valoroso,
para que as atividades que serão realizadas não sejam superficiais e sem
objetivos pedagógicos consistentes e possibilitadores do desenvolvimento
da criança. Todo o processo que acontece em uma Instituição de Educação
Infantil é pedagógico, sendo que todas as relações que acontecem entre os
envolvidos no processo educativo precisam propiciar o desenvolvimento
pleno da criança em busca da humanização e da autonomia.
Nesse sentido, por meio da Pedagogia de Schoenstatt, por meio
das vinculações e do trabalho com os três pilares fundamentais, o professor
poderá organizar o seu trabalho pedagógico aproximando sua ação à uma
experiência ética que valorize a alteridade. Transformando o espaço da
114
Instituição de Educação Infantil e proporcionando por meio das atividades
o diálogo, a emancipação e a cidadania, reconhecendo o outro como capaz
de dialogar, sujeito que tem direito de escolha, garantindo que todos sejam
ouvidos, respeitando os diferentes pontos de vista, valorizando a
pluralidade nas produções infantil e acima de tudo proporcionando a
criança um ambiente em que a expressão de sentimentos e pensamentos
seja o objetivo para se chegar à função social da escola.
Ao refletir sobre o Sistema Pedagógico de Schoenstatt e sobre as
práticas pedagógicas que são articuladas na Instituição de Educação
Infantil ressaltamos o valor da Dimensão Ética como uma forma de
possibilitar um novo olhar sobre a criança. Padre Kentenich contribuiu
muito, ao afirmar que o professor deve ser para seus educandos um amigo
paternal. Ele acentua que o educador deve ter como traço fundamental a
seriedade digna, moderada, mas inexorável nas exigências. Acrescenta que
tanto maior autoridade terá sobre os educandos, quanto mais exato for no
saber, claro no expor, consequente nas exigências e no trato.
(KENTENICH, 1999)
Um processo de envolvimento em que o educador realmente se
compromete com o sujeito que precisa dele para se constituir como ser
humano autônomo e consciente de seu valor na sociedade. Esta forma de
proceder gera proximidade amorosa e distância respeitosa, elementos
indispensáveis na arte de educar, segundo Kentenich (1999).
Assim, acreditamos que, a Pedagogia de Schoenstatt ao ser
divulgada e trabalhada nos cursos de formação de professores poderá ser
entendida e assumida como uma das formas de trabalhar com a Dimensão
Ética em busca da Humanização e do desenvolvimento integral de cada
criança.
115
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117
A Responsabilidade como Fundamento Ontológico
do Ser Humano: fundamentos de uma educação
contemplativa em Hans Jonas
Manuel João MUNGULUME
21
Introdução
O presente texto tem como objetivo discutir o princípio da
responsabilidade em Hans Jonas (1903-1993), evidenciando suas
possibilidades e implicações nas práticas educativas contemporâneas.
Neste texto o termo contemplativo toma o sentido de apreciação e
afirmação da natureza como um habitat humano (casa comum), e que
merece respeito e consideração nos debates educativos. Para Jonas, a
responsabilidade é o elemento ético que situa e orienta a sociedade para a
prática de cuidado. Com esta discussão pretendemos contribuir com
alguns aspectos teóricos e práticos de modo a compreender novas
perspectivas filosóficas da relação homem-natureza.
Vivemos em uma época em que, o teor é de fragmentação da
natureza, assim o princípio da responsabilidade como característica
singular do homem emerge como antídoto para proteger a natureza que se
encontra em constante vulnerabilidade.
21
Doutorando e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Filosofia, Unesp, Campus de Marília. E-mail: manuel.mungulume@unesp.br
https://doi.or
g/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p117-140
118
Portanto, a responsabilidade perpassa em todas as dimensões
educativas e humanas. Existe estreita e essencial relação entre a
responsabilidade e a necessidade de educar. Nesta reflexão toma-se a
responsabilidade como uma condição fundamental para que a educação
assuma o seu compromisso ético e interventivo em relação aos problemas
que afetam a sociedade.
A escolha de Hans Jonas
22
(1903-1993) para uma articulação com
a prática educativa justifica-se pelo fato de o autor propor alguns
pressupostos imprescindíveis para a construção de uma sociedade
harmônica e sustentável. Vivemos em um momento propício para que os
debates educativos tenham um compromisso ético com a formação de uma
geração que garanta o bem-estar da natureza. Como diz Jonas, precisamos
propor uma ética abrangente que leve em conta o âmbito da natureza e as
futuras gerações, (JONAS, 2017). Uma ética com horizontes futurísticos.
O princípio de responsabilidade preconizado por Jonas contém
grandes potencialidades que nos possibilitam refletir em torno de uma
educação capaz de agir e atuar em prol do desenvolvimento de uma
educação que coopere com o sentido ético da solidariedade, do respeito, e
da valorização da democracia nas relações homem-natureza. Portanto, em
nome de uma civilização tecnocientífica, a nossa paisagem encontra-se em
constante mutação, umas benéficas e outras nefastas para a saúde humana.
22
Hans Jonas: sua trajetória intelectual - nasceu na Alemanha em 1903 e faleceu nos 1993. Judeu,
foi atingido pelos eventos dolorosos do século XX, especificamente, o Nazismo perpetrado pelo
Hitler. Hans Jonas nasceu em uma cidade da Alemanha denominada por (Mönchengladbach), 10
de maio de 1903. Faleceu em Nova Iorque, 5 de fevereiro de 1993. Jonas foi um filósofo alemão
de origem judia. É conhecido principalmente devido à sua influente obra O Princípio
Responsabilidade (publicada em alemão em 1979, e em inglês em 1984). Aluno de Husserl,
Heidegger e Bultmann, amigo de Hannah Arendt, foi professor na Palestina, no Canada e em Nova
York, onde veio a trabalhar na New School for Social Reserch. Engajado com seu tempo, elabora
um pensamento original, e a partir de um ponto de vista ontológico propõe uma filosofia da vida,
onde procura retomar as questões sobre a relação entre Ser e dever, causa e finalidade, natureza e
valor (JONAS, 2006).
119
O teor da civilização humana sempre procurou formas e mecanismo para
ter uma vida social harmônica, porém, muitas vezes, a visão de colocar o
homem no centro (antropocentrismo) contribui para o distanciamento do
homem-natureza, e assim perde-se o sentido de pertencimento, posto que
somos partes constituintes da natureza.
Pretende-se nesta reflexão construir saberes ecológicos baseados
pelo princípio da responsabilidade, uma vez que para Jonas a ética adota
um ponto de vista universal, o que nos possibilita usar e dominar a técnica
com responsabilidade. A nossa ação deve sempre tomar em consideração
um princípio ético de responsabilidade antes de agir; com isso o autor
aponta a responsabilidade como uma bússola que orienta e calcula as
nossas ações.
Considerando a crescente degradação do ambiente mundial, as
academias, as escolas e a sociedade no geral têm a responsabilidade coletiva
para dialogar e encontrar uma forma ética para minimizar os riscos-
socioambientais. Neste sentido, o princípio da responsabilidade entra
como uma grande aliada na formação de sujeitos atuantes para a
transformação social.
A fundamentação ética e filosófica do princípio jonasiano favorece
uma práxis educativa responsável, pois, além de ensinar a auto-constituição
de indivíduo, propõe o sentido da solidariedade, compaixão, respeito e
favorece o compromisso ético com bem-estar da natureza, e promove um
debate pedagógico para restabelecer a integridade do planeta. Espera-se
com estas discussões contribuir com uma educação que afirma a natureza
como extensão da nossa existência, caso a natureza desabe, também
desabaremos junto dela. Temos a responsabilidade pedagógica de agir com
responsabilidade em prol do bem-estar da natureza.
120
O princípio da responsabilida na educação
O discurso de responsabilidade na educação fomenta a ideia de
uma educação libertadora e transformadora e reflete a condição do próprio
homem. O núcleo fundamental onde se sustenta o processo de educação é
na responsabilidade como uma dimensão singular do homem. Portanto,
para Jonas (2006), a responsabilidade serve de crítica à civilização
tecnológica onde ele sugere uma nova dimensão da moral que promove e
possibilita uma boa relação homem-natureza.
O princípio da responsabilidade na educação visa construir com
uma abordagem ética, destacando a sua implicação pedagógica,
promovendo ações educativas que visem orientar a formação de seres
humanos capazes de agir com responsabilidade. A ética na educação
desempenha um papel fundamental no processo formativo considerando
o seu sentido etimológico, a Ética vem do grego ethos, que significa “modo
de ser” ou “caráter” enquanto forma de vida. Assim, originariamente, ethos,
“caráter” ou “costume”, assenta-se em um modo de comportamento que
não corresponde a uma disposição natural, mas que é adquirido ou
conquistado por hábito. É precisamente esse caráter não natural da
maneira de ser do homem que, na antiguidade, lhe confere sua dimensão
moral (VAZQUEZ, 2018, p. 24).
Não é possível fazer uma reflexão sobre responsabilidade sem
questionar as ações do homem moderno. O princípio ético de
responsabilidade visa contribuir com a formação de novas subjetividades
como é o caso do sujeito ecológico. Neste sentido, a educação enquanto
um instrumento de formação humana se configura como uma tarefa que
prepara homens e mulheres para intervirem de formas ativa e responsável
no espetro social e cultural. A responsabilidade como um princípio ético
121
opera na esfera humana como uma característica singular do ser humano.
Baseada nessa percepção, a educação desempenha um papel fundamental
no espetro social, pois trata-se de um mecanismo que busca no ser
humano, por meio de ensino, as suas potencialidades e valores para agir de
forma ativa na sociedade. Tomar ciência ou a responsabilidade do ser- estar
no mundo brota a lógica da responsabilidade como presença-ativa.
Jonas, no primeiro momento da sua análise procura tornar a ética
como um elemento abrangente e não como algo meramente
antropocêntrico como se centrava na tradição antiga: ame ao teu próximo
como a ti mesmo, tenha amor e respeito pelo teu próximo. Tal ética
segundo Jonas não afetava a natureza das coisas extra-humanas, ou seja, a
natureza não era objeto da responsabilidade humana, pois cuidava de si
mesma, a ética era confinada ao aqui e agora, (JONAS, 2006, p. 18). De
acordo com Vásquez (2018) tais princípios, valores ou normas encarnados
na idade antiga entram em crise e exigem a sua justificação ou a sua
substituição por outros. Surge então a necessidade de novas reflexões ou
de uma nova teoria moral, pois os conceitos, valores e normas vigentes se
tornaram problemáticos. Assim se explica a aparição e sucessão de
doutrinas éticas fundamentais em conexão com a mudança e a sucessão de
estruturas sociais, e, dentro delas, da vida moral (VAZQUEZ, 2018, p.
267). Esta ideia é igualmente compartilhada por Jonas, ao propor uma
nova teoria ética para a civilização tecnológica. A proposta de Jonas é de
que a ética seja debatida em um espectro amplo considerando todas as
formas de vida e do futuro da humanidade, uma vez que a técnica moderna
introduziu ações de magnitude tão desastrosas e imprevisíveis que os
marcos da ética clássica jamais poderiam contê-las. Desta feita, Jonas
formula o imperativo da ética Kantiana que afirmava: age como se a
máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei
122
universal, ou seja, age de tal sorte que possas igualmente querer que tua
máxima se torne uma lei universal”.
Para Jonas esta ética tornou-se inoperante na era da civilização
contemporânea e propõe novas dimensões éticas que se expressam em
quatro imperativos categóricos holísticos e abrangentes. Assim, Jonas
propõe uma nova dimensão moral no agir, que se adequa ao novo tipo de
sujeito atuante, devendo o sujeito agir da seguinte maneira:
Aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou,
expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não
sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou,
simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a
conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”; ou, em uso
novamente positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura
integridade do homem como um dos objetos do teu querer. (JONAS,
2006, 47-48).
Com isso Jonas apela para o novo modo de agir e clama por outra
coerência, não o ato consigo mesmo como queira a ética clássica, mas dos
efeitos finais que possibilitam a continuidade integral do futuro da
humanidade (JONAS, 2006). A ética moderna se cultiva nas bases
humanas e deixava de lado a natureza e os aspectos da vida extra-humana
e sua biodiversidade.
Jonas adota uma perspectiva abrangente e inclusiva, não somente
humanos que se valem da ética, mas todas as formas de vida. Para Jonas o
conceito vida ultrapassa a dimensão meramente humana, pois para ele
qualquer espécie que estabelece uma relação com a natureza tem vida
(JONAS, 2004).
123
Nesta perspectiva Boff (2004), adota o cuidado como modo de ser
e de agir essencial, uma atitude que pode provocar preocupação,
inquietação e sentido de responsabilidade, uma vez que, o cuidado se
encontra o ethos fundamental humano. Quer dizer, no cuidado
identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um
bem-viver e das ações um reto agir. Portanto, ainda para Boff, o cuidado é
o ethos fundamental do humano, um modo-de-ser não é um novo ser. É
uma maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer.
O cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano como
maneira concreta do ser humano. Sem o cuidado, ele deixa de ser
humano. Se não receber cuidado, desde o nascimento até a morte, o
ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se ao largo
da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por
prejudicar a si mesmo e por destruir o que estiver à sua volta. (BOFF,
2004, p. 33).
Desta feita, o cuidado, sensibiliza o atual estado da natureza que
está sendo definhada pelo uso desenfreado da técnica. A natureza encontra-
se hostilizada e empobrecida pelos apetrechos do consumismo. O
problema que Jonas se esforça em resolver é da autonomia da técnica em
relação a ética, pois, ele não pretende defender uma ética que limite o
desenvolvimento da técnica, mas submetê-la aos freios voluntários da ética.
(MORRETO, Apud, JONAS, 2015, p. 76). Assim, o que Jonas advoga é
de que os mistérios do universo natural devem ser considerados, pois na
civilização tecnológica, o homem tornou-se objeto da técnica. A intenção
não é de criticar os avanços da técnica em si, mas demostrar que ela deve
ser padronizada e orientada por um princípio supremo, que é a
responsabilidade, uma vez que, as ações humanas ilimitadas podem
124
comprometer a integridade da natureza.
23
Neste sentido, a educação
contemporânea tem uma missão inadiável, de promover e desenvolver
consciência crítica que permita ao homem transformar a realidade atual.
Na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão
respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços
geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora; tal
prática se faz cada vez mais urgente, (FREIRE, 2011, p. 17).
A educação contemplativa ou a pedagogia do cuidado-ecológico
através de debates, permite inserir e situar a condição humana no cosmo,
propor novas metodologias e práticas educacionais que se opõem ao
descuido e ao descaso com a natureza. Dessa forma, a educação como
prática de valores, é propícia para dialogar com o princípio de
responsabilidade como um dever ético, que conscientiza e sensibiliza a
diminuição de riscos socioambientais que estão afetando sobremaneira a
saúde humana. Conforme Boff, aqui estamos diante de uma pedagogia de
cuidado, que é uma atitude de ocupação, preocupação, responsabilização
e de envolvimento afetivo com o outro, (BOFF, 2004).
Jonas não trata de uma responsabilidade coibitiva ou de exortações
sensacionalistas, mas trata de uma responsabilidade que evite eliminar as
relações e os afetos com a diversidade de outras espécies, razão pela qual, a
ética de responsabilidade exige, sim, que, quando agimos, avaliemos as
pretensões morais dos que forem afetados pelos nossos atos, ou seja,
devemos medir as consequências da ação ao longo prazo, propondo um
alto sentido de agir com dever sobre as espécies. Como afirma Jonas:
23
A responsabilidade é uma dimensão profundamente humana, razão pela qual Jonas preconiza ao
homem o uso da ética como forma de impedir um destino trágico para humanidade, pois, segundo
ele tal destino está sendo posto em causa pela civilização tecnológica. Daí que emerge a necessidade
de uma ética que coloque os limites da ação humana sobre a natureza (JONAS, 2006).
125
a ética de responsabilidade terá como característica principal de
combater o defeito mais forte e favorecer o lado menos beneficiado
pelas circunstâncias. Nesse sentido, tal ética estará sempre ao lado dos
fracos contra os fortes. Assim, a ética deve estar ao lado da natureza que
está em constante vulnerabilidade pelo uso irresponsável da técnica
(JONAS, 2006, p. 19, grifo nosso).
Na ética da responsabilidade trata-se da solidariedade e da
compaixão, fundadas no cuidado e no valor intrínseco de cada ação.
Conforme Jonas, já que mudou a forma de agir sobre a natureza,
também deve mudar a regulamentação da ética, uma vez que a ética se
ocupa da condição humana, deve assim alterar a natureza da ação. A
responsabilidade é um princípio ético de cuidado pela vida, pela natureza,
que deve- se pautar por um novo olhar atento pelo comedimento das ações,
uma vez que, cada geração é responsável pelo mundo e por si mesmo
enquanto maneira de ser. Temos o dever moral de deixar um ambiente são
e digno para as próximas gerações. Esta é para Jonas, a nova tarefa da ética,
(JONAS, 2017, p. 23).
Nessa perspectiva, a educação escolar deve se identificar com esses
valores ecológicos como um processo formativo que influencie
positivamente a sociedade a todo momento, dentro e fora da escola, e que
tem a ver com o que “chamamos de formação de um sujeito ecológico e
de subjetividades ecológicas” (BRASIL, 2017, p. 137).
A responsabilidade como uma exigência democrática
A construção de uma sociedade democrática, harmônica e
sustentável depende de uma educação interventiva e comprometida com o
126
bem-estar comum, pois, a educação, enquanto direito humano
fundamental, é considerada o mais importante fator para a redução das
desigualdades e para se alcançar um desenvolvimento sustentável.
Para Dewey (1973), a educação para a democracia requer que a
escola se converta em “uma instituição que seja, provisoriamente, um lugar
de vida para a criança, em que ela seja um membro da sociedade, tenha
consciência de seu pertencimento e para a qual contribua. Ainda para
Dewey (1973, p. 07) “a educação é um modo contínuo de reconstrução
de experiências, ou seja, ela é um método fundamental do progresso e da
reforma social”.
Nesta perspectiva a educação pode influenciar eficazmente o curso
de sua evolução ou da transformação social, que é a construção de caminho
para efetivação da comunidade democrática e cooperativa. Portanto, a
função principal da educação em toda a sociedade é a de ajudar os alunos
a desenvolverem um conjunto de valores, hábitos ou virtudes que lhes
permitam realizar-se plenamente, em uma existência humana
compromissada com a dimensão ética do mundo em que está inserido.
Como afirma IPAD
24
,
A educação permite que cada indivíduo possa assumir a
responsabilidade pelo seu destino e contribuir para o progresso da
sociedade em que se insere, uma vez que lhe dá meios para participar
no processo do desenvolvimento de forma responsável, quer como
indivíduo, quer como elemento dessa comunidade. (IPAD, 2008, p.
03).
24
Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. Lisboa, 2008.
127
A educação é um vetor fundamental que contribui para a
autoformação de cidadãos consciente e responsáveis. A Educação é um
fator determinante na promoção da cidadania e na criação de uma
consciência social sobre o papel dos indivíduos no desenvolvimento das
sociedades, devendo potenciar a sua participação e intervenção. É de igual
forma fundamental enquanto fator de sensibilização sobre a situação de
violência contra a natureza, nos mais diversos aspectos comunitários,
incluindo a resistência e reconstrução de uma sociedade sustentável.
Assumir o princípio da responsabilidade na educação é um modo
cuidadoso de se relacionar com os outros humanos e não-humanos que
tornam a moral esteticamente admirável. Trata-se de uma pedagogia do
cuidado com o ambiente, como dimensão ecológica que pode ser refletida
e vivenciada pelas academias, por indivíduos, grupos e também pelas
instituições como a escola. A educação reforça, ainda, a cidadania, dando
às comunidades a capacidade de dominar o seu próprio desenvolvimento,
fazendo com que cada um tome o seu destino nas mãos e contribua para o
progresso, ajudando a criar sociedades mais abertas, críticas e democráticas.
Jonas (2006), define a responsabilidade como uma obrigação
preliminar do homem, e que temos a responsabilidade com a natureza,
presente e com futuro. Para ele não existe uma sociedade democrática,
digna ou harmônica sem que haja no primeiro momento um pacto com a
responsabilidade. Como enfatiza, Arendt; a responsabilidade não é um
peso e não tem nenhuma relação com os imperativos categóricos. Antes
flui naturalmente de um prazer inato em tornar manifesto, em clarear o
escuro, em iluminar as sombras. (ARENDT, 2008, p. 57).
A responsabilidade, só se converte em valores na medida em que
contenha uma resignação aceitável entre os homens, e assume o
compromisso de minimizar os riscos. Assim, evita prejuízos irreversíveis. A
natureza precisa estar em constante harmonia com os restantes elementos
128
do seu curso, sob o risco de causar um desequilíbrio ecológico. Portanto,
ecossistemas equilibrados e saudáveis são essenciais para a vida no planeta.
Para o efeito é necessário que em todas as ações humanas seja aplicado o
princípio ético de responsabilidade que orienta ou garante o equilíbrio
entre o risco e a prudência da ação imprevisível, pois caso contrário, as
atividades da ação humana podem afetar negativamente o futuro da
humanidade.
Por isso que os novos paradigmas da educação devem promover
debates de cuidados ecológicos, isto é, adopção de práticas pedagógicas que
cooperem com a formação de consciências cívicas trazendo a compreensão
da dinâmica da vulnerabilidade da natureza e as estratégias para a
diminuição de riscos sócio ambientais. Para isso, a educação deve:
propiciar a oportunidade de criar, pensar, agir, fazer, da sua forma e
por seus próprios meios. Trabalhar o conceito crítico de E.A para não
correr o risco de cair em um tema neutro e despolitizado, que não
provoque e/ou desperte a condição de cidadania ativa, ampliando seu
significado para um movimento de pertencimento e co-
responsabilidade das ações coletivas, visando ao bem-estar da
comunidade. (BRASIL, 2017, p. 47).
Precisamos somar esforços, de modo que a educação possa
contribuir de forma significativa na proteção da integridade ecológica,
como foi enfatizado pela carta da terra, onde convida a humanidade a:
somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no
respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça
econômica e em uma cultura da paz. Para chegar a este propósito, é
imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa
129
responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade
da vida, e com as futuras gerações.
25
A responsabilidade da educação neste sentido vai para além de
assumir a educação ambiental na escola; é o mais puro exercício de
cidadania, é o próprio ofício ou ato de responsabilidade e compromisso
com a construção de uma nova cultura, que tenha por base a
sustentabilidade ambiental. A responsabilidade de que Jonas anseia,
coloca-nos à reflexão e à aprendizagem de compromisso com o legado e o
futuro da humanidade. Cabe aos educadores nas suas práticas educativas
potencializarem as possibilidades pedagógicas construtivistas de iniciativas
coletivas. Para Jonas o homem define-se pela responsabilidade que exerce
em prol das futuras gerações. Ao mesmo tempo, o valor social do indivíduo
é medido, primordialmente, em termos de aptidões e qualidades de
adaptação padronizadas, em lugar do julgamento autônomo e da
responsabilidade pessoal.
A Heurística do Medo:
fundamentos da condição humana e a incerteza ecológica
A heurística do medo é uma característica que Jonas usa como um
princípio útil, em que o ser humano deve consultar as suas ações antes de
ser coagido pelos desejos. Ou seja, diante de um perigo iminente, o medo
nos protege de cometer danos irreversíveis. Portanto, na ótica de Jonas, a
civilização tecnológica coloca em risco a permanência intacta do destino
da humanidade. Por isso é que defende um Princípio ético da
25
Carta da Terra disponível em: www.cartadaterrabrasil.com.br. Acesso em 22 de outubro de
2020.
130
Responsabilidade, como um elemento ético para salvaguardar e garantir o
progresso humano sem causar danos às gerações futuras.
O sentido que a heurística do medo toma nas análises Jonasianas
não é um instrumento ingênuo, mas uma racionalidade prudente, um
temor racional e orientador. A heurística do medo desempenha o papel da
prudência sendo um instrumento que aconselha para o agir
cuidadosamente diante de riscos, como diz Aquino, a prudência é a razão
reta acerca das coisas contingentes, que supõe conselho na eleição. Assim,
a prudência pressupõe as virtudes morais, pelas quais a ação deve sempre
busca o bem. (AQUINO, 2001).
A flexibilização da modernidade deixou de lado outras formas de
relacionamentos colocando o homem no centro das atenções, o que Jonas
denominou de uma ética antropocêntrica. Tal ética é excludente à medida
que não coloca outros sistemas de vida como sujeito da ética e que merece
uma consideração na configuração dos limites éticos.
A incerteza ecológica se caracteriza pelas formas do domínio
humano sobre a natureza. O homem moderno rompeu com a natureza.
Portanto, os termos em que Bacon defendeu esse novo método empírico
de investigação eram não só apaixonados, mas, com frequência,
francamente rancorosos, A natureza, na opinião dele, tinha que ser
"acossada em seus descaminhos", "obrigada a servir" e "escravizada". Devia
ser "reduzida à obediência", e o objetivo do cientista era "extrair da
natureza, sob tortura, todos os seus segredos".
26
26
Francis Bacon denominou a ciência como um instrumento poderoso e que o conhecimento é
poder, colocando o homem como poderoso diante da natureza, eliminando desta feita o antigo
conceito da Terra como mãe nutriente foi radicalmente transformado nos escritos de Bacon e
desapareceu por completo quando a revolução científica tratou de substituir a concepção orgânica
da natureza pela metáfora do mundo como máquina (CAPRA, 1982, p. 31).
131
Com a modernidade, o consumismo surge como modo ativo de
relação homem-natureza, ou seja, a natureza passou a ser olhado como
recursos a ser explorado de todas as formas possíveis, sem medir as
consequências das ações a curto, médio ou longo prazo. Tais práticas
induz a humanidade em uma incerteza ecológica sem precedentes.
Precisamos indagar a condição humana, medir as consequências e as
implicações das nossas ações. Como bem afirma Capra:
Não se mata facilmente uma mãe, perfurando suas entranhas em busca
de ouro ou mutilando seu corpo. [... ] Enquanto a terra fosse
considerada viva e sensível, seria uma violação do comportamento ético
humano levar a efeito atos destrutivos contra ela. (CAPRA, 1982, p.
34).
Muitas dessas imagens violentas parecem ter sido inspiradas por
Bacon, desta mudança que Jonas se ocupa em propor um novo princípio
ético, que viria a ser de suprema importância para o desenvolvimento de
uma categoria ética abrangente, ou seja, a ética não é um estudo exclusivo
de homem para homem, mas sim de todas as espécies existente no mundo
cósmico.
Jonas formula a sua nova ética analisando quatro (4) teses de
relações na era da civilização tecnológica: Homem (Sociedade), Técnica,
Natureza (planeta) e o Futuro. A partir desses elementos o autor começa
denunciando o emprego da ciência moderna, pois segundo ele nas
premissas baconianas, mudaram radicalmente o objetivo da ciência e
passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para dominar e
controlar a natureza.
132
Assim, para Jonas (2006) e Capra (1982), a ciência e tecnologia
buscam sobretudo fins profundamente antiecológicos, devendo dessa
forma se submeter aos freios da ética da responsabilidade. Todo ser é capaz
de modificar o ambiente em que vive, podendo com sua ação manter um
equilíbrio ambiental ou não. As ações humanas constituem um grande
exemplo atual que não auxiliam na manutenção do equilíbrio ambiental,
já que fez de seu ambiente um local com construções, exploração e uso
excessivo da técnica.
A cultura da civilização tecnológica trouxe uma guinada histórica
da relação homem-natureza, perdendo deste modo a sensibilidade com a
natureza, não sente o senso de pertencimento da mãe natureza, como diz
Moran (2008), “somente quem tem o luxo de caminhar em uma grande
floresta sabe o que isso faz pelo espírito humano, como é emocionante,
como traz esperança e o senso de infinito”. (MORAN, 2008, p. 10).
Portanto, conhecer o humano não é separá-lo do universo cósmico
onde está inserido, mas situá-lo nele. Precisamos refletir sobre o estado da
natureza e de nós mesmo, resgatando a orientação clássica: Quem somos
nós? Onde estamos? De onde viemos? Para onde vamos? Portanto, estes
questionamentos nos servem de linha mestra para que as ações humanas
não cometam atos de riscos ou de incerteza ecológica, e dessa forma, as
práticas pedagógicas não se circunscreve somente em um mero saber, mas
uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver,
e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre.
Segundo Morin (2003), a educação deve contribuir para a consciência da
condição humana e o aprendizado da vida, assim, a educação reencontraria
a sua grande e profunda missão. Ainda para Morin, a educação deve
eminentemente permitir o desenvolvimento do espírito problematizador,
dirigido para os grandes problemas do conhecimento que afeta a condição
humana. (MORIN, 2003, p. 37).
133
Os excessos trazidos pelo consumismo exacerbado vão danificando
o curso natural do planeta, das nossas águas, das florestas e colocando desse
modo danos irreparáveis sobre o destino da humanidade. Assim,
considerando a crescente degradação ambiental, a poluição das águas está
associada às alterações de suas características físicas, químicas ou biológicas,
que prejudicam seu uso e afeta sobremaneira a qualidade de vida humana.
Tudo isso para Jonas está associado ao uso irresponsável da técnica.
(JONAS, 2013).
Segundo Giddens (1991), a nossa época vive em permanentes
incertezas de riscos. São várias outras formas que colocam a incerteza do
destino da humanidade, tais como, a destruição das florestas, a exploração
da madeira e a destruição dos recursos naturais em geral; são as
consequências de uso desenfreado da tecnológica sem a observância do
princípio ético da responsabilidade, pois segundo Jonas, os aparatos da
técnica vão para além do controle do homo faber. (JONAS, 2006).
A poluição das águas tem efeitos negativos sobretudo à saúde
humana. A contaminação microbiológica das águas, pelo lançamento
inadequado de esgoto sem tratamento, pode ser responsável pela contração
de diversas doenças parasitárias. Além da restrição do uso para fins
domésticos, a água poluída pode prejudicar sua utilização.
Atualmente, já existem tecnologias capazes de despoluir a água, porém,
ainda não podem ser utilizadas em larga escala, pois seus custos são
elevados. Desta maneira, nos resta apenas a alternativa de conservar os
recursos hídricos para manter e melhorar a qualidade de vida em todo
o planeta. (WATANABE, 2011, p. 69).
134
Uma responsabilidade que segundo Jonas vai para além de um
simples agir, mas apontar a heurística do temor mediante a ação. As
implicações pedagógicas da ação ambiental podem propiciar o bem-estar
social, cultural e sustentável, uma vez que o engajamento educacional
fomente ao sujeito um agir ético e responsável, e que a meta principal deve
ser a minimização do perigo. Vivemos em uma época em que a ação
humana está afetando todas as esferas sociais e humanas, como a destruição
do habitat aquático, as florestas, e a poluição. Em tudo isso, a educação
pode servir de um instrumento de extrema relevância, à medida que pode
contribuir com o conhecimento que conscientize com verdadeiro sentido
de humanismo; aqui vale apenas salientar que Jonas mobiliza a todas artes
científicas, políticos para ensinar a enfrentar a incerteza instituída pela
civilização tecnológica. (JONAS, 2006).
O ser humano, embora faça parte do meio ambiente, é um grande
causador de destruição do meio. A destruição da floresta leva ao
desaparecimento da fauna e da flora. A elevada modificação do estado
natural da natureza em busca do sustento leva o homem a ter uma relação
fatal entre os meios e fins, nos quais o fim mais sublime termina por
sucumbir. (JONAS, 2006, p. 347). E muitas vezes com grandes prejuízos
materiais e mesmo de vidas humanas, colocando desta feita um futuro
incerto ao destino da humanidade. O homem precisa medir e mediar
constantemente as suas ações diante da natureza de modo que não coloque
em causa o curso natural das florestas, uma vez que elas
têm uma participação fundamental no ciclo da água, ajudando na
regulação da precipitação meteorológica, bem como na purificação,
reciclagem e regulação dos cursos e reservatórios de água; participam
na estabilização da textura, topografia e fertilidade dos solos; tornam
135
possíveis complexos e diversificados nichos ecológicos, albergando e
providenciando alimento para diversas espécies vegetais e animais.
27
Neste sentido, as florestas sequestram e armazenam enormes
quantidades de carbono nos seus caules, folhas, raízes e nos solos em que
estão implantadas. Ainda segundo o documento da FAO (2014), as
florestas, ajudam a purificar o ar das excessivas concentrações de dióxido
de carbono e libertar o oxigénio essencial para a vida. Esse papel de
regulação das quantidades de oxigénio e dióxido de carbono na atmosfera
faz com que as florestas sejam também conhecidas como “os pulmões do
mundo” em todas estas incertezas ecológicas apontadas nessas reflexões, a
educação como uns princípios básicos deve se alinhar na formação para o
exercício da cidadania e desenvolver os valores e atitudes que o potencialize
a melhorar a qualidade de vida individual e coletiva.
Essencialmente, os fitoplânctons e as florestas têm uma estreita
ligação à base de recursos que sustenta a vida no nosso planeta (água, ar,
solos, fauna etc.), e também exerce uma influência direta sobre o ambiente
e o clima, particularmente em relação à temperatura e à humidade
ambiental
28
. A nossa era é caracterizada por diversas esferas de riscos. Tais
riscos são na verdade criados por formas normativamente sancionadas de
nossas ações. Neste sentido, a educação tem um papel fundamental para
desenvolver ações e debates que possibilitam a diminuição de riscos de
natureza socio ambiental. Segundo Jonas, a minimização dos riscos de alta
consequência da nossa época é mediante o crivo da responsabilidade.
27
A importância das florestas para o mundo melhor. Disponível em:
www.fao.org.lisbon
. Acesso em: 20.10.2019.
28
Os fitoplâncton são tipo de plâncton de organismo microscópicos que flutua na
água doce e em ambiente marinho, e que se destacam por ser capaz de realizar
fotossíntese, sendo a base da cadeia alimentar nos ambientes aquáticos, (PEREIRA,
2013).
136
Nesses termos, a grande missão da educação contemporânea
consiste em debater e transmitir essa sensibilidade natural, e olhar a
natureza como um habitat comum a ser respeitado e utilizando os seus
benefícios com senso de responsabilidade. Possuir um sentimento de
pertencimento e de responsabilidade sobre a natureza, possibilita conhecer
e compreender o meio em que vivem e as inter-relações existentes entre os
diferentes elementos que o compõem, e é condição essencial para a
conservação da diversidade biológica e cultural de um território.
Considerações Finais
Este trabalho buscou discutir e refletir em torno do Princípio de
Responsabilidade no contexto da Educação escolar, suas possibilidades e
implicações. A educação como um ato político deve permear um amplo
espetro do mundo, e tentar trazer para o debate os problemas que afetam
a sociedade. Hans Jonas como filósofo preocupado com os problemas do
seu tempo, propõe uma ética que se compadeça com o estado da natureza
e com destino do homem. Esta talvez continua sendo desafio da educação
contemporânea. O princípio de responsabilidade é uma alerta que serve
para orientar e demonstrar ao homem tecnológico que a vida vale mais que
um investimento cego das maquinarias que comprometem o futuro da
humanidade; e que a responsabilidade é o farol vermelho e ao mesmo
tempo “esperança” que pede calma em relação as nossas ações que podem
colocar em causa a natureza.
A educação como conjunto de saberes e de valores deve sim
fomentar uma formação de sujeitos conscientes, críticos, e ativos para
contribuir na promoção de ações que possibilitem assumir a
responsabilidade, a solidariedade com a natureza. A falta de
137
comprometimento com os cuidados ecológicos coloca em risco o futuro
harmonioso e sustentável da humanidade. Vivemos em uma época
necessária para a articulação entre o princípio da responsabilidade e a
educação como meio teórico e prático para executar os pressupostos
pedagógicos do cuidado ecológico.
A educação tem um papel privilegiado para propor e discutir a
manutenção do equilíbrio ecológico em seus espaços de debates e assim
fomentar a dinamização do agir individual e coletivo no tecido social,
político e cultural. A relação responsável com a natureza, mais que um
conteúdo a ser estudado na escola, reúne hoje um conjunto de
conhecimentos imprescindíveis para compreender e interpretar os desafios
da sociedade contemporânea que nos permite uma atuação como cidadãos
cada vez mais conscientes e cuidadosos.
A educação ambiental que se quer nestas reflexões é aquela
comprometida com o empoderamento social e que possibilita a construção
de um mundo que valorize a diversidade biológica e que promova uma
cultura de sustentabilidade. Essa é a tarefa da educação contemplativa que
afirma os valores de outras espécies para convivência ética, respeitosa e de
responsabilidade. Por fim, nesta discussão esperamos contribuir com as
importantes premissas e inquietações levantadas pelo filósofo alemão Hans
Jonas, para se pensar em uma educação que proporcione e contemple a
natureza como sujeito de discussões nas práticas educativas. Esperamos que
o Princípio de responsabilidade contribua efetivamente para uma
sociedade justa, harmônica e sustentável.
138
Referências
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letras, SP, 2008.
AQUINO, T. Suma teológica. 2ed. São Paulo. Edições Loyola, 2001.
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Editora vozes Petrópolis, Rio de Janeiro, 2004.
BRASIL. Vamos cuidar do Brasil: conceitos e práticas em educação
ambiental na escola/ Ministério da Educação, Coordenação Geral de
Educação Ambiental: Ministério do Meio Ambiente, Departamento de
Educação Ambiental: Brasília; UNESCO, 2007.
CAPRA, F. Ponto de mutação. Editora Cultrix, SP, 1982.
DEWEY, J. Vida e Educação. Edições melhoramentos. SP, 1973.
FREIRE, P. Educação e mudança. 12ed. Paz e Terra, RJ, 2011.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora
UNESP, 1991.
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Minas, 2013.
JONAS, H. Ensaios filosóficos: da crença antiga ao homem tecnológico.
Editora Paulus, SP, 2017.
JONAS, H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a
civilização contemporânea. Trad. Marijane Lisboa, Luís Barros Montes.
Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC – Rio, 2006.
139
JONAS, H. Ética, medicina e técnica: sobre a prática do princípio da
responsabilidade; paulus, 2013 SP.
IPAD. Estratégia da cooperação portuguesa para educação. Lisboa,
2008.
MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma Reformar o
pensamento. 8ed. RJ, Editora Bertrand Brasil. 2003.
MORAN, E. F. Nós e a natureza: uma introdução às relações homem-
natureza. Editora Senac SP, 2008.
VÁZQUEZ, Adolfo. Ética. 38ed. Rio de Janeiro, 2018.
WATANABE, C. B. Conservação Ambiental. Instituto Federal Paraná.
Curitiba, 2011.
Referência Eletrônica
Carta da Terra. Disponível em: www.cartadaterrabrasil.com.br. Acesso
em: 22 de out. de 2020.
FAO (2014). A importância das florestas para o mundo melhor.
Disponível em: www.fao.org.lisbon. Acesso em: 20 de out. d 2019.
141
A Sala de Aula e o Papel das Pulsões na Formação
Humana: um olhar direcionado ao aluno
Fabio Sagula de OLIVEIRA
29
Introdução
Os questionamentos acerca do que é esperado das instituições de
ensino e sobre os papéis dos alunos e professores na construção do
conhecimento, são apenas alguns dos mais recorrentes quando se busca
pelas respostas pelo sucesso ou fracasso escolar. Ainda que não existam
fórmulas mágicas ou receitas prontas, é possível atuar no sentido de
minimizar certos problemas rotineiramente enfrentados pelos gestores,
famílias, professores e alunos. Para isso, se deve conhecer ou buscar
compreender o cerne das problemáticas mais comuns. Atualmente, o papel
da escola parece se resumir em oferecer certos conhecimentos para que os
educandos sejam capazes de avançar para a etapa seguinte, seja essa o
mercado de trabalho ou a educação superior. Obter este tipo de
conhecimento, no entanto, não garante que o educando será capaz de
colocá-lo em prática em situações reais e tampouco que esse sujeito possua
uma formação ética e moral necessária para uma vida em sociedade. Em
29
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia
e Ciências, Unesp, Campus de Marília. Pós-Doutor em Educação pela Faculdade de Ciências e
Letras, Unesp, Campus de Assis. Docente do Centro Universitário de Ourinhos (UNIFIO). E-
mail: fso07@yahoo.com.br
.
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p141-162
142
meio a essas discussões, é importante repensar o papel do professor no
sentido de acompanhar as tendências pedagógicas e psicológicas mais
recentes. O professor deixou de ser o exclusivo detentor do conhecimento
para se tornar um mediador das aprendizagens. No entanto, dialogar com
um professor acerca de seu ofício representa, em grande parte das vezes,
entrar em contato com um histórico de desvalorização, escassez de
recursos, pouco ou nenhum apoio das instituições nas quais trabalham e
relatos das mais diversas formas de violência sofridas, sem contar com uma
espécie de apatia ou falta de perspectiva de vida por parte dos alunos.
Tendo em vista este panorama, fica difícil o docente acreditar na
importância de seu trabalho e consolidar uma identidade profissional forte
o bastante para o desempenho pleno de sua função.
Os alunos, por sua vez, ao adentrarem o espaço escolar carregam
bagagem importante de sentimentos, desejos, anseios, vontades e saberes.
Compreender os fenômenos psíquicos que se manifestam na relação do
aluno com o professor, o que eles esperam de seus mestres, é algo de vital
importância na busca pelo sucesso das práticas escolares. Compreender que
nem tudo resulta da ação consciente, por parte do aluno, é algo que os
professores deveriam ser capacitados para compreender.
É no sentido de investigar as possíveis causas da violência cada vez
mais presente nas escolas, ao mesmo tempo que se aprofunda o
conhecimento acerca da relação professor/aluno, que o presente trabalho
se desenvolve. A metodologia empregada foi a de revisão bibliográfica em
materiais que tratassem do tema abordado.
143
O professor e os desafios na sala de aula
Se o sujeito percebe que seu trabalho não é valorizado e que acaba
por não fazer muita diferença na vida de sua “clientela”, não há real
motivação em continuar desempenhando o mesmo. Não é raro encontrar
exemplos em que a autoridade do docente em sala de aula foi desafiada
pelos alunos de maneira violenta ou desproporcional. O professor, por sua
vez, tem sua didática violada e suas estratégias de ensino e avaliação
ignoradas quando é impelido a promover o aluno que não está em
condições de avançar devido a questões de cunho político-administrativo.
Os alunos de hoje em dia estão cada vez mais questionadores, mas
nem sempre isso se relaciona com o desejo real de participar de seu processo
de formação. Estar sentado em uma carteira, se concentrando no que o
professor fala ou em tarefas muitas vezes significa renunciar a outros
prazeres que podem ser imediatamente encontrados em uma série de
apetrechos tecnológicos. Investir sua atenção em atividades e conteúdos
escolares tende a ser bem menos divertido do que enviar ou receber
mensagens pelo celular, ouvir as músicas, ver vídeos e memes que estão em
alta, ou acompanhar em tempo real os acontecimentos noticiados nas mais
diversas modalidades de infotenimento (GITLIN, 2003). Certamente
todos estes aparatos tecnológicos de comunicação, entretenimento e
informação que estão presentes na sociedade são importantes para a
formação e para a vida dos sujeitos, mas o que chama a atenção é que esses
equipamentos vêm impondo sua onipresença também dentro de sala de
aula, onde os conteúdos e as exigências são outras.
É louvável a iniciativa dos professores que buscam utilizar as redes
sociais e os aparelhos celulares como instrumento de pesquisa e como
recursos na construção do conhecimento, mas não existem conteúdos cuja
144
aprendizagem exige outros tipos de estratégias e postura? Buscar a solução
do problema na internet não necessariamente ensina o aluno a pensar, mas
antes pode reforçar sua já internalizada habilidade de procurar informações
na web. Saber onde encontrar essas informações não significa saber utilizá-
las quando necessário e muito menos ser capaz de relacioná-las a outras
informações na solução de determinado problema ou mesmo para a
compreensão da realidade.
A capacidade de ouvir o que o outro tem a dizer parece não
combinar com o fluxo de informações que as pessoas recebem diariamente
e a todo instante. Essa mudança de panorama é mais perceptível nas novas
gerações, visto que já nascem imersas nesse contexto. (GITLIN, 2003). É
notório que escrever mensagens instantâneas fez com que os jovens
voltassem a escrever e que isso é ótimo; cabe o questionamento sobre qual
seria a vantagem de entrar em contato com a linguagem escrita se isso é
feito de maneira incorreta e descontextualizada. Qual seria a vantagem de
o jovem voltar sua atenção para escrita se esse o faz sem obedecer às regras
básicas da gramática? A questão é se essa “eficiência” comunicativa não
depõe contra o desenvolvimento de outras funções psicológicas, como a
memória, a abstração e a capacidade de organizar as ideias. Agindo desta
maneira, não estarão as pessoas regredindo às condições de predomínio das
paixões? E esta condição não seria o inverso da civilidade necessária para a
vida em sociedade? (VIEIRA, 2001).
Cabe ressaltar que o problema não é a ferramenta em si, mas sim o
seu uso desenfreado. Permitir que determinado artefato invada o cotidiano
das pessoas, de maneira tão onipresente, acarreta modificações na
subjetividade humana, podendo inclusive colocar em xeque a organização
da sociedade e, consequentemente, a convivência entre seus membros.
145
As pulsões e a formação humana
Como exigir do sujeito a capacidade de sublimar as paixões que ele
nem sabe que possui? Ou melhor, paixões que tomam atalhos tão
rapidamente para a satisfação que acabam por se diluir entre uma satisfação
e outra. Pulsão de vida e Pulsão de morte são pulverizadas em fragmentos
de informações e satisfações momentâneas, fazendo o sujeito tomar
determinadas atitudes porque “é legal”, sem que haja nenhum tipo de
reflexão a este respeito. Evitar o que “é chato” é inerente à natureza
humana, porém, não é toda situação desagradável que pode ser evitada sem
nenhum tipo de consequência para o sujeito ou para a sociedade à qual
pertence.
Entrar no mundo adulto significa estar preparado para arcar com
inúmeras responsabilidades, bem como assumir as consequências pelos
próprios atos. Quando as pessoas são privadas de experiências que as
habilitem para lidar com as diversas responsabilidades que lhes cabem, o
enfrentamento da vida adulta pode ficar comprometido. Desde criança,
experiências de esquiva das frustrações acabam por reforçar a ideia de que
não é necessário se responsabilizar pelas consequências de suas ações e, caso
não haja nenhuma interrupção, resulta na formação de adultos sem
perspectiva e com sérias dificuldades de se inserirem na vida social. Em um
movimento mútuo, indivíduos e sociedade reforçam posturas imediatistas
e displicentes.
Nesse contexto, um dos conceitos oriundos da Psicanálise e que
podemos utilizar aqui é o de dessublimação. Enquanto por sublimação se
compreende o processo de canalizar a energia sexual em uma ação benéfica
e controlada, o de dessublimação diz respeito a substituição da
146
satisfação mediata por satisfação imediata. Mas é dessublimação
praticada de uma ‘posição de vigor’ por parte da sociedade, que está
capacitada a conceder mais do que antes pelo fato de os seus interesses
se terem tornado os impulsos mais íntimos de seus cidadãos e porque
os prazeres que ela concede promovem a coesão e o contentamento
sociais (MARCUSE, 1979, p. 82).
Esse processo de dessublimação se intensifica na medida em que
não parece adiantar tentar capacitar os alunos para conteúdos acadêmicos
se nestes estudantes ainda não foram desenvolvidos aspectos da
personalidade extremamente importantes, para não dizer essenciais, para
uma conduta em sala de aula coerente com tal objetivo. Ainda mais: não
foram desenvolvidas posturas, frente à realidade, pautadas no processo
secundário, no adiamento das satisfações e na tolerância às frustrações.
Quando se está inserido em sociedade, invariavelmente, deve se
estar comprometido com hábitos, valores e comportamentos comuns. Para
os alunos inseridos na cultura midiática da sociedade unidimensional, cuja
velocidade e transitoriedade de informações são características que já se
instauraram e são vistas como naturais pela grande maioria de seus
membros, o funcionamento das instituições de ensino possivelmente causa
um estranhamento por parte dos alunos e certo desconforto entre pais,
alunos e professores, entretanto, tal estranhamento deveria ser utilizado
como elemento constituinte das disciplinas, levando a uma reflexão por
parte das pessoas envolvidas e uma ampliação de pontos de vista.
Obviamente, tal ação não se constitui em tarefa fácil, porém é algo que não
pode ser ignorado ou relegado a ser trabalhado de maneira estanque e
isolada por apenas algumas matérias geralmente aquelas que não gozam
de prestígio quando o assunto é vestibular ou mesmo “implicações
práticas” para a vida.
147
Hoje estamos mergulhados em uma cultura que supervaloriza os
prazeres. Uma cultura que se apoderou de algumas reivindicações
libertadoras dos anos 60 e desenvolveu a resposta na forma de
mercadorias: todos os prazeres que você puder imaginar estão à sua
disposição no mercado (KEHL, 1987, p. 471).
A busca incessante pelas satisfações que estão ao alcance de
considerável parcela da população acaba por entrar em consonância como
ritmo acelerado da vida moderna e com a obsolescência de seus valores e
informações, o que influi, em maior ou menor grau, na maneira com que
alunos, pais e até mesmo professores enxergam os conteúdos escolares.
Artefatos tecnológicos influenciam o meio e as formas de subjetividade por
consequência. (POSTMAN, 2005).
A renúncia às satisfações transitórias desponta como
comportamento de certo modo antinatural e até mesmo sem sentido em
meio a sociedade, e esse fato impele o sujeito a voltar suas energias para
atitudes primitivas de seu desenvolvimento, tal como um bebê cujo
aparelho psíquico não está amadurecido suficientemente para lidar com as
facetas não tão agradáveis da realidade ou para encarar as consequências de
seus próprios atos (LASHC, 1986).
O cotidiano das instituições de ensino é permeado por diversas
manifestações que acabam por evidenciar problemas nos métodos e nas
técnicas de transmissão e construção do saber. Além disso, o espaço
escolar/acadêmico acaba por funcionar como ponto de convergência de
uma série de efeitos da organização da sociedade, das configurações
culturais e econômicas. As manifestações de violência e hostilidade
possíveis de serem vistas no cotidiano das mais diversas instituições de
ensino parecem consistir em elementos cuja análise e reflexão pode trazer
148
novas perspectivas acerca do contexto educativo e até mesmo da
organização social em termos mais abrangentes.
Cabe ressaltar que atos de agressão e violência podem vir à tona de
modo imediato no calor do momento ou serem planejados, e não será
questionada nenhuma destas formas. O que se busca no presente trabalho
é evidenciar a existência de conteúdos passionais que atuam diretamente
na realização destes atos, possuam eles caráter premeditado ou não. “O ato
calculado de violência não dispensa a razão ao contrário, solicita-a”
(MOREIRA et al., 2009, p. 681). Evidencia-se, pois, que a dimensão
passional do sujeito influencia tanto em suas ações quanto na lógica e no
raciocínio empregado em alguns destes atos carregados de grande
hostilidade. De maneira imatura, a percepção do desconforto causado pela
frustração elege o causador da frustração como alvo preferencial de
manifestações hostis de reprovação e retaliação, sem que antes o aparelho
psíquico do agressor se encarregue de refletir acerca da situação de uma
maneira mais amadurecida e levar em consideração outras variáveis da
situação.
Entendendo o contexto educacional como um recorte da sociedade
que carrega inúmeros elementos desta mesma sociedade, a reflexão sobre o
que ocorre dentro das instituições também pode auxiliar na compreensão
em um âmbito mais amplo da configuração social de que dispomos. O
grande número de ocorrências que, de maneira cotidiana, acabam por
ocorrer nas instituições de ensino carregam em si aspectos primitivos do
humano que, por alguma razão, não estão sendo sublimados.
O desconforto resultante do acúmulo de tensão não parece mais
capaz de impulsionar o sujeito a utilizar suas energias (pulsões) de maneira
ativa, lidando com os aspectos da realidade que causam sua frustração,
visto que a tensão mal é sentida e já pode ser dissipada pelas mais diversas
vias que os artefatos tecnológicos colocam à disposição de uma ampla
149
parcela da população. Seja esquivando-se no consumo, seja lutando para
desfrutar deste mesmo consumo, a população se vê às voltas com uma
organização social na qual diversas qualidades subjetivas de seus membros
parecem ser atrofiadas pelas práticas vigentes. A utilização das diversas
frustrações como propulsoras e propiciadoras do pensamento e da reflexão
consiste em uma prática cada vez menos presente. As frustrações ainda
existem, assim como o acúmulo de tensão delas derivado, mas com a
diferença que o nível de tensão não mais alcança um patamar que
impulsione a utilização dos recursos do ego para lidar de maneira mais
coerente e amadurecida com os elementos causadores da frustração.
Desconforto brando que, associado à disponibilidade onipresente de
“alívio” oferecida pelos artefatos culturais, acaba por ser minimizado,
habituando o sujeito a um nível cada vez menor de tensão e atrofiando a
utilização de recursos subjetivos para lidar com as eventuais tensões e
frustrações cotidianas.
A irracionalidade da conduta violenta deve-se ao fato de que a razão
desconhece os móveis verdadeiros de suas intenções e finalidades. Ela
é irracional quando e porque se dirige a objetos substitutivos, na
acepção psicanalítica. Ao contrário do animal que não ‘deseja’
necessita, a violência humana porta a marca de um desejo (MOREIRA
et al., 2009, p. 681).
O desejo de eliminar a fonte de frustração ou tensão parece lançar
mão do aparato cognitivo para traçar planos de ação para que a pulsão se
manifeste mesmo que parcialmente. Dentro desta lógica, o abrandamento
de consequências significativas para os atos hostis, parece reduzir ainda
mais os limites entre o desejo e sua realização/manifestação. Portanto,
parecem estar envolvidos no fenômeno da violência, elementos
150
constitucionais da subjetividade do sujeito (baixa tolerância à frustração,
pautada no princípio do prazer) e elementos ambientais (possibilidade de
gratificação excessiva e ausência de consequências proporcionais aos atos
de violência).
Esta configuração de elementos e práticas, características da
sociedade unidimensional e do funcionamento psíquico, induzem os
sujeitos às práticas que privilegiam a percepção superficial de suas
frustrações, sem a possibilidade de reflexão e pensamento a respeito dos
motivos e consequências destas mesmas frustrações, que se encontram
subavaliadas pelo próprio sujeito. Nas situações de hostilidade e violência,
é possível encontrar elementos que sustentam a hipótese em questão.
Obviamente não seria esperado encontrar “boas notícias”,
entretanto, chama a atenção o grande número deste tipo de informação
relacionada a violência, o que demonstra que os eventos violentos atrelados
ao cotidiano educacional se evidenciam. Além do mais, se pode
compreender que a Psicanálise não propõe nenhuma fórmula mágica capaz
de explicar todos os motivos das situações violentas e hostis que se
manifestam nas instituições de ensino. Desta forma, elementos da teoria
psicanalítica auxiliam na compreensão, mas não esgotam os assuntos, as
reflexões e as possibilidades de intervenção. O inconsciente freudiano é
fugidio, ele tem em sua medula um “enigma” e é, portanto, inconsistente;
nenhuma “verdade” sobre ele o que quer que seja comunicável sobre ele
– basta (FORBES, 2013, p. 12).
Considerados inerentes à natureza humana os elementos de
hostilidade e violência, estas características se fazem presentes, estando
mais ou menos sob controle, mascaradas ou sublimadas, em todas as
parcelas da população. Em consequência dessa mútua hostilidade primária
dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente
ameaçada pelo risco da desintegração. O interesse pelo trabalho em
151
comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os
interesses razoáveis (FREUD, 1930/1996, p. 70).
A atribuição de papéis e tarefas entre os elementos constitutivos das
estruturas de ensino denotam que, por uma questão de desempenho de
função e de demandas específicas, as partes envolvidas precisam se
empenhar na realização das tarefas que lhe cabem, sob o risco do processo
todo de ensino e aprendizagem entrar em colapso (AQUINO, 1998).
Neste contexto, a Psicanálise também defende que determinadas posturas
devem ser desempenhadas por personagens específicos, também sob o risco
de os processos serem boicotados, deturpados ou falhos. A eliminação das
paixões, ou melhor, as tentativas de eliminá-las, não solucionaram as
questões mais conflituosas e presentes nas relações de ensino e
aprendizagem, assim como a racionalização técnica também não o fez.
Cabe, portanto, a hipótese de que estes aspectos passionais não podem ser
negligenciados nem inteiramente sufocados.
Tanto a educação quanto a psicanálise atingiram o objetivo de sua ação
caso tenham assegurado aos componentes pulsionais uma abertura a
uma organização libidinal satisfatória. Nem o educador nem o
psicanalista poderiam arrogar a si o direito de impor fins e objetos às
pulsões do paciente ou do educando (MILLOT, 2001, p. 53).
Exprimir as pulsões é algo inevitável, o que parece ser passível de
ser contornado vez por outra é o fato dessas expressões se manifestarem de
tamanha intensidade e desproporção que acabem colocando em risco,
físico ou não, a organização das instituições e das pessoas que as integram.
Munidos destas percepções e minimamente familiarizados com alguns
elementos da teoria psicanalítica, é possível a reflexão sobre as mais diversas
situações, boas e ruins, que se materializam no cotidiano escolar. Para isso,
152
é necessária a existência de um espaço para que estas reflexões se deem e as
angústias e afetos a elas relacionados sejam acolhidos e trabalhados. Sem
que haja referência direta à análise e psicoterapia para todos os docentes,
mas ao menos que seja garantido um espaço de reflexão que desfrute de
condições para a realização deste propósito, condições materiais, temporais
e simbólicas.
Tendo em vista o exposto até aqui, parece interessante nos
questionarmos acerca das possibilidades de reflexão oriundas das vivências
transferenciais, visando à médio e longo prazo que a relação entre quem
ensina e quem aprende seja mais frutífera e menos desgastante, na medida
em que ambas as partes possam participar efetivamente dos processos
pedagógicos de forma que as subjetividades envolvidas sejam levadas em
consideração. Cabe ressaltar que levar em consideração não é sinônimo de
aceitação incondicional. Problematizar a existência de desejos e demandas
inconscientes ou mesmo diferentes das permitidas nas propostas
pedagógicas, figura como terreno fértil para o surgimento e para a
construção de novas ideias e reinterpretações sobre as situações envolvidas
nos processos de ensino e aprendizagem.
Considerando os escritos de Szymanski e Rosa (2012), o aluno, ao
longo do processo educativo formal, pode transferir para a figura do
professor conteúdos amistosos ou hostis advindos de suas vivencias
anteriores e cuja percepção é de caráter inconsciente. Sendo assim, a leitura
psicanalítica pontua que estes elementos transferidos não devem ser
considerados direcionados/causados à figura do docente. O professor
aparece como um dos primeiros substitutos das figuras parentais,
principalmente, pelo fato de ocupar um lugar simbólico relacionado às
regras e valores diretamente relacionados ao princípio de realidade que
embasam a conduta da sociedade e contrariam o princípio de prazer. Desta
forma, o professor não apenas transmite o conhecimento como também
153
funciona como receptáculo de diversos afetos e sentimentos arcaicos
destinados originalmente às figuras parentais, servindo, portanto, como
parâmetro de conduta para as crianças (SILVA, 2005). Deste modo, a
percepção da dinâmica transferencial torna-se relevante para a
aprendizagem do aluno e para a reflexão acerca de questões inerentes aos
processos de ensino e aprendizagem.
O processo de desautorização do docente, independente dos
motivos que conduziram a esta situação, acabou por retirar do professor a
segurança e autonomia para lidar com as intercorrências em sala de aula,
deixando-o muitas vezes assustado/acuado e aparentemente sem recursos
para lidar com os fatos. “A violência se situa, assim, como uma resposta ao
declínio social do mestre” (BISPO; LIMA, 2014, p. 166). Além disso, se
antes a autoridade docente servia para proteger a relação dos aspectos
transferenciais mais regredidos, como a hostilização e a tensão provocada
pela hierarquia, hoje, sem conseguir se apropriar desta autoridade, o
docente enfrenta grandes dificuldades para desempenhar suas funções
(AQUINO, 1998). Os processos transferenciais sempre ocorreram no
contexto educacional, a questão é que nos dias de hoje parece que estes
processos permanecem em seu estado primitivo e não evoluem para
posturas mais amadurecidas e construtivas na relação professor-aluno.
Nas atividades de cunho pedagógico, pode ser notado o
estabelecimento de fenômenos transferenciais advindos de emoções e
desejos de ambas as partes envolvidas, tanto nos docentes como também
em seus alunos. Portanto é possível compreender que de maneira
indissociável, as práticas pedagógicas e os fenômenos de ensino e
aprendizagem trazem consigo a manifestação de uma gama de elementos
afetivos, inconscientes e arcaicos; e, além disso, estes aspectos
“desconhecidos” precisam ser levados em consideração, sem implicar
obrigatoriamente no tratamento clínico, para auxiliar uma vinculação
154
entre as pessoas e os conteúdos envolvidos nas práticas
educativas/formadoras no sentido de se desenvolverem de maneira mais
agradável e coerente para todos (FINOTO, 2012; SILVA, 2005).
Sendo inevitável às relações humanas, os fenômenos transferenciais
e contratransferenciais podem facilitar ou dificultar estas relações
pedagógicas (MORGADO, 2012). Dessa forma, cabe aos profissionais
envolvidos levar este fato em consideração quando se dedicam a refletir
acerca dos acontecimentos que se relacionam, direta ou indiretamente,
com as práticas exercidas e vivenciadas em instituições de ensino.
É preciso ressaltar que uma transferência positiva em sala de aula pode
também estar na origem de uma sublimação feita com sucesso, ou seja,
quando se trata de uma transferência positiva sobre o professor. Pode
estar na origem de uma sublimação bem sucedida de todos os objetos
de estudo e acarretar mais atividades intelectuais e uma relação positiva
com o saber (FILOUX, 2002, p. 62).
Alunos e professores figuram como elementos externos e estranhos
que em grande parte dos casos podem funcionar como receptáculos de
elementos subjetivos inconscientes de seus companheiros de espaço
(KUPFER, 2013). Deste modo, o outro carrega, mesmo que sem se dar
conta, conteúdos que não lhes pertence, mas sim projeções de fantasias
sobre as quais não exercem controle algum. Fantasias essas que têm
chamado atenção pelo seu grau de hostilidade e de falta de preparo das
instituições em lidar com elas.
Na constituição psíquica dos sujeitos, o conflito entre as pulsões é
motor de suas relações. Cada um com sua especificidade, Eros e Thanatos
encontram-se na raiz dos conflitos humanos e a vida se manifesta como
resultante destes conflitos. As diversas situações que se manifestam nas
155
adjacências das instituições de ensino carregam elementos eróticos
(advindos de Eros, que visam construção e crescimento) e Thanáticos
(inerentes à Thanatos, objetivando a desintegração e o retorno ao grau zero
de tensão). As expressões do desejo de aprender e cooperar podem ser
citadas como manifestações da pulsão de vida em ambientes escolares,
assim como situações de patente desinteresse e hostilidade podem
simbolizar a influência da pulsão de morte em sua busca pela desintegração
e retorno ao inanimado. (KEHL, 1987).
Destinados a receber transferencialmente afetos de seus alunos, os
professores encontram em suas práticas um elemento a mais que pode ou
não facilitar o processo de transmissão do conhecimento. Possibilitar os
processos de sublimação, auxiliando o sujeito a lidar com as onipresentes
frustrações da realidade só é viável na medida em que alunos e docentes
conseguem formar uma parceria, cooperando e compartilhando objetivos
comuns. Na óptica psicanalítica, a formação de tal relação não depende
apenas da boa vontade dos envolvidos e dos aspectos conscientes de cada
um dos envolvidos, mas é grandemente influenciada por elementos
inconscientes.
Pais e responsáveis precisam renunciar a desejos e expectativas
irreais para refletirem sobre o fato de que seus filhos são pessoas com
qualidades e limitações que precisam ser trabalhadas para que eles se
adaptem à realidade e ocupem lugar coerente e responsável na sociedade.
Precisam dar conta de um afastamento de seus filhos para que eles possam
realmente se apropriarem dos ambientes de ensino. Precisam acreditar na
educação e na capacidade/autoridade dos profissionais aos quais designam
o cuidado de seus filhos. Precisam abrir mão de uma parcela de seu tempo,
de sua energia e de seu “sossego” para acompanharem o percurso que seus
filhos fazem, além de corrigi-los e auxiliá-los quando necessário.
156
Alunos precisam renunciar às satisfações imaturas para entrarem
em contato com conteúdos dos quais necessitarão em seu futuro. Precisam
também submeter-se à “vontade” de outras pessoas (professores,
educadores, pais, etc.), renunciando à satisfação imediata de seus desejos
em nome de aquisições a médio e longo prazo. Abdicar do conhecido para
dar espaço para o novo. Investir sua energia em tarefas que, em um
primeiro momento, parecem não fazer tanto sentido, lidar com a
frustração do não saber e com a dificuldade de passar para a condição de
saber como proceder.
A dessublimação institucionalizada parece, assim, ser um aspecto da
“conquista da transcendência” conseguida pela sociedade
unidimensional. Assim como essa sociedade tende a reduzir e a
absorver a oposição (a diferença qualitativa!) no âmbito da política e
da cultura superior, também tende a fazê-lo na esfera instintiva. O
resultado é a atrofia dos órgãos mentais, impedindo-os de perceber as
contradições e alternativas e, na única dimensão restante da
racionalidade tecnológica, prevalece a Consciência Feliz (MARCUSE,
1979, p. 45).
O inegável progresso tecnológico desfrutado nos dias de hoje, traz
consigo o preço a ser pago pela obsolescência e velocidade de bens, serviços
e informações. O comprometimento psíquico e, consequentemente, da
saúde das pessoas e de suas relações, se manifesta cotidianamente. Ideais
deturpados de liberdade, associados à voracidade e ao desejo de
onipotência, inerentes ao humano (KLEIN, 1996) são utilizados para
justificar e incentivar condutas de consumo e posturas frente à realidade.
Ao longo da vida do sujeito, tais práticas acabam por influir em sua
subjetividade, desencadeando maneiras distintas de lidar com as
vicissitudes da realidade.
157
Tendo em vista que diversos elementos da sociedade e da cultura
podem influenciar, mesmo que indiretamente, a subjetividade de seus
membros (POSTMAN, 1999-2005) vale supor que este tipo de influência
também se expresse nas práticas educativas e nas diversas comunicações
existentes nestas práticas. A insegurança típica do adolescente, acerca do
próprio corpo e de suas relações sociais, ainda é um fator que intensifica a
reação do indivíduo à inveja e pode levar o jovem a ter uma resposta
agressiva à pressão para corresponder ao ideal de beleza amplamente
difundido.
Outro elemento a se levar em consideração diz respeito ao uso de
drogas, o que apresenta grande relação com a baixa tolerância à frustração
presente no funcionamento de acordo com o princípio do prazer. Além
disso, a venda de substâncias ilícitas figura, para muitos, como a maneira
mais coerente (se não a única) para que seja possível ter acesso aos bens de
consumo e serviços disponíveis em nossa cultura.
Considerações Finais
Neste texto quisemos verificar a possibilidade de um entendimento
mais amplo sobre as variáveis envolvidas nas práticas pedagógicas. As
relações que se estabelecem dentro da escola são fruto de ações nem sempre
conscientes. As ações de sublimação e dessublimação das pulsões, bem
como da transferência de que os professores são alvo por parte de seus
alunos, são alguns dos aspectos que podem condicionar o relacionamento
entre as partes constituintes do processo educativo.
A capacitação dos profissionais da área educacional mediante o
contato com elementos e conceituações psicanalíticas pode figurar como
um complemento para que as dinâmicas inerentes às instituições de ensino
158
possam ser repensadas, de maneira interdisciplinar e integrando as diversas
instâncias envolvidas nos processos de ensino e aprendizagem. Cabe
ressaltar que não se trata de transformar o docente em psicanalista e, muito
menos, em terapeutizar as relações de ensino, mas sim fornecer uma nova
perspectiva para se refletir acerca dos fenômenos inerentes às situações de
ensino.
A educação só tem sentido quando é capaz de despertar dúvidas
em quem aprende, fazendo com que os sujeitos elaborem hipóteses e
tenham sua curiosidade mobilizada em função do que aprendem. Quando
isso não ocorre, o valor da educação passa a ser questionado, tanto por
quem aprende quanto por quem ensina, o que por sua vez dá margem a
atitudes perigosas, como o desinteresse, a desmotivação e a violência.
As manifestações de violência, tão presentes nas escolas na
atualidade, podem ser atribuídas às questões relacionadas à “diferença de
interesses” entre alunos e professores, assim como diferenças entre os
próprios alunos, os quais, para lidar com quaisquer intercorrências
oriundas desta divergência de pontos de vista, lançam mão de atitudes de
confronto mesmo que indireto e intimidação. Neste contexto, é
possível perceber que a tolerância, à presença do outro e suas necessidades,
é baixa, culminando em reações passionais para que as possíveis frustrações
advindas deste convívio sejam extirpadas e eliminadas. Seja na figura do
docente, seja na figura do colega de escola, considerado por algum
motivo diferente e ameaçador, existe um trabalho (coletivo, na maioria
das vezes) para que este elemento que figura como ameaça e frustração seja
punido e excluído do convívio do grupo, mostrando sua fragilidade frente
ao suposto poder de retaliação de um grupo de pessoas que “se sentiram
incomodadas” pela figura do docente ou mesmo do “diferente”.
Tendo em vista o exposto, parece fazer sentido afirmar que a
qualidade das relações transferenciais também influi na qualidade destes
159
processos de ensino e aprendizagem, o que coloca o professor como peça
chave para os desdobramentos do ensino, podendo funcionar como figura
capaz de facilitar ou dificultar o desempenho acadêmico, dependendo dos
afetos que lhes são depositados e de como lida com este inevitável aspecto
da subjetividade humana evidenciado pela Psicanálise. Docentes que se
sentem acuados e vitimizados são fruto de um contexto no qual aspectos
sociais e psíquicos entram em ressonância, acarretando a manifestação de
elementos arcaicos do inconsciente dos docentes no que se refere ao medo
e à sensação de falta de recursos.
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https://bit.ly/3279Xj3. Acesso em: 01 de set. de 2020.
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VIEIRA, M.A. A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
______________Parte II_____________
Decolonialidade, Interculturalidade
e Educação
165
América Latina:
saberes ancestrais e decolonialidade
no ensino superior
Sueli do NASCIMENTO
30
[...] no puede ser pensado sin considerar las estrategias políticas
contextualizadas, como tampoco sin asociarlo a las políticas culturales
de identidad y subjetividade.
31
(WALSH, 2002. p. 117-118)
Introdução
A proposta desta discussão é o início de um projeto latino-
americano focado nos saberes ancestrais e na decolonidade no ensino
superior. Acredita-se, por estes meios, na aproximação dos povos indígenas
e em um programa que possa constituir uma filosofia de vida, de educação
para dimensões sutis no que concerne à alma ao que miticamente
chamamos de enigma da vida - ao adentrar a floresta e a cultura que ali
30
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosofia e Ciências, Unesp, Campus de Marília. Integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Educação, Ética e Sociedade (Gepees/Unesp). Mestre em Educação pela Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS/Unidade Paranaíba-MS); Docente do Centro Universitário Católico
Salesiano Auxilium UniSALESIANO, Campus Araçatuba/SP - e da Rede Pública Municipal de
Ensino de Birigui/SP. E-mail: sueli.nascimento@
unesp.br
31
[...] não pode ser pensado sem considerar estratégias políticas contextualizadas, nem sem associá-
lo às políticas de identidade cultural e subjetividade. (Tradução nossa).
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p165-186
166
existe e resiste. Tais aspectos nos aproximam da (re)existência,
32
ou seja, da
força simbólica apresentada por rituais, hábitos e costumes, para os
indígenas sinônimo de privilegiar o estar vivo.
Não se pretende romantizar contextos, como o distanciamento da
escrita e/ou a dimensão burocrática, nem o controle sobre o outro ou a
importância da transmissão dos conhecimentos pela oralidade. O intuito
é dialogar eticamente sobre dois horizontes que se entrecruzam. Deles
tomamos emprestada a palavra interculturalidade, para, com ela,
apresentar o cuidado com o olhar sobre os povos indígenas.
E é exatamente sob esse olhar cuidadoso que a reflexão
epistemológica e vivencial manifesta a voz na aldeia a conversa repleta de
ensinagem”, termo utilizado para expressar o poder medicinal das plantas
da floresta, do alimento que se faz, dos rituais, do sol como mestre do
horário e dos encantados (dos que já se foram desta vida), aspectos que
relacionam o entorno com os saberes ancestrais e que possibilitam
discussões pertinentes à nossa condição ontológica.
33
O processo denominado “interculturalidade” nos permiti
‘dialogar’ com as etnias indígenas, pois ela constituirá o meio para
entendermos a dimensão simbólica na leitura do trovão, de uma pedra que
encontramos no caminho, da chuva que se associa a comportamentos
humanos, retratando um pensar-reflexivo a partir de uma simbologia que
se contrapõe à cultura ocidental.
Nesta perspectiva, não cabem contrapartidas culturais, pois nada
há que se pareça com a valorização ou não do trovão, da pedra ou da chuva
32
Termo apropriado da seguinte citação: “No es de olvidar que mientras el silenciamiento ha sido
empleado históricamente como un dispositivo de disciplinamiento y dominación, el silencio
estratégico ha sido parte, también a lo largo de la história, de las prácticas insurgentes de resistir,
(re)existir y (re)vivir. (WALSH, 2017, p. 25).
33
Ontologia (do grego ontos "ente" e logoi, "ciência do ser"): existência do ser.
167
que cai. O que observamos é certamente uma distância entre a cultura
indígena e a cultura europeia, situado em meio urbano ou aculturado à la
ocidental a respeito do cosmos. Diferentemente dos primeiros, estes
últimos não têm um envolvimento com a natureza como o têm os
indígenas, o que significa, por parte dos segundos,
um não-envolvimento
emocional com os fatos naturais.
Por consequência, não há como encontrar neles o ‘espírito’ nos
rios, nas casas, enfim, segundo Hall, o sistema pode estereotipar este
cenário emblemático com a representação desses povos e retificar de forma
reducional a folclorização e a exotização da diferença, e poderá coisificar a
narrativa
,:
[...] como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas
nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de
histórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e
rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências
partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à
nação. Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos,
no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa (HALL,
2015, p. 31).
O cuidado inicial, manifestado nesta introdução, deve ser mantido
também ao se analisar e contar as histórias desses povos “na continuidade,
na tradição e na intemporalidade”, que é onde eles situam a “natureza das
coisas”.
O presente estudo se conecta com a formação de professores e,
consequentemente, com as práticas pedagógicas, para um encontro entre
a estética e a ética que concerne, na situação hipotética em que nos
168
colocamos, a um povo ‘formado’ que ou exclui ou pelo menos não inclui
o outro, nem entende seu modo de ser.
O contexto requer uma conversa pontual, com amor e respeito,
com o espírito da terra, da natureza e do cosmos, em um diálogo com os
saberes ancestrais. Diálogo, como escreve
Karai Miri Poty:
Que debemos mantener siempre encendido el fuego del corazón para
que reviva el espíritu de la palabra, pues solo así podremos
reencontrarnos con los demás, con los otros. Pero sobre todo,
podremos reencontrarnos con nosotros mismos... Que el espíritu de la
palabra, que da vida al fuego del corazón, hará posible que podamos
conversar con amor y con respeto, con el espíritu de la tierra, de la
naturaleza y el del cosmos (apud ARIAS, 2011, p. 10).
34
Os ensinamentos guaranis, aqui descritos, relacionam a sabedoria
do coração. posicionando-se, enquanto estratégia cosmo-existencial, para
a luta, em uma inquietude permanente que estimula a partilha pela
transformação de si mesmo, e a incansável busca por novas maneiras de ser
e de viver, em um respeito aos saberes ancestrais.
Nosso objetivo é descrever a importância do debate sobre os povos
indígenas na universidade em uma perspectiva intercultural e decolonial
para uma possível relação conceitual entre ancestralidade, formação,
saberes e práticas docentes.
34
Que devemos manter sempre o fogo do coração aceso para que o espírito da palavra reviva, porque
só assim poderemos redescobrir os outros, com os outros. Mas, sobretudo, poderemos nos
redescobrir ... Que o espírito da palavra, que dá vida ao fogo do coração, nos permita conversar
com amor e respeito, com o espírito da terra., natureza e a do cosmos (apud ARIAS, 2011, p. 10
Tradução nossa).
169
Por um olhar decolonial no ensino superior:
ancestralidade e saberes
Adentrar o espaço acadêmico é, por si, um repensar
indissoluvelmente relacionado ao pensamento e à crítica, entre conteúdos
preestabelecidos, “esperançar” por novos olhares a formação e a prática
docente, de justiça e de ‘vida integral’ (total realização do ser humano),
que Dussel (2012, p. 632) explica estar na “dimensão físico-biológica,
histórico-cultural, ético-estética e até mesmo místico-espiritual”. Daí a
importância sobre:
[...] o outro que habita em nós - medos, faltas e falhas. Todavia, se o
reconhecimento dessas dimensões não ocorre ou elas não são levadas
em consideração, a tendência é acarretar violências incontroláveis e
conflitos contra os outros, contra a polis, na verdade, contra si mesmo
(CARVALHO, 2016, p. 204-205).
Momento de se refletir sobre a complexidade do pensamento
decolonial no que cerne à “colonialidade” no fundamento do novo padrão
de poder e no movimento que fundou um modo de existência social
chamado “modernidade”, momento em que se acredita, no contexto de
pesquisa, deva intervir o papel da ética enquanto defensora da vida integral,
ou, mais especificamente, no ponto em que o Outro cansado de ser
excluído - deva ser incentivado a buscar por sua libertação. Para que isso
ocorra, porém, será necessária a tomada de consciência freireana, que
requer outro sistema ético e outra história de vida.
Tal assertiva nos remete ao questionamento formulado por
Quijano: “Por que e como a colonialidade do poder produziu o
170
des/encontro entre nossa experiência histórica e nossa perspectiva principal
de conhecimento e, consequentemente, frustrou as intenções de solução
eficaz de nossos problemas”
(2006, p. 75), colaborando para a
invisibilidade dos sujeitos que poderíamos relacionar como povos
indígenas?
Krenak já mencionava essa invisibilidade ao ser questionado pela
repórter, em entrevista (1989), com a pergunta: “Então Krenak, quem é
você?” Sua resposta:
Eu sou Ailton Krenak. Sou filho de uma pequena tribo originária da
região do Vale do Rio Doce. Nosso território tradicional se estende do
litoral do Espírito Santo até entrar um pouco no sertão de Minas. Neste
século XX, nós tivemos uma reserva delimitada pelo governo brasileiro.
Os vários grupos do povo Krenak foram presos nessa reserva em 1922.
Eu nasci em 1953; então, já sou filho da geração dos Krenak do
cativeiro. Os Krenak livres viveram até 1922 (KRENAK, 2015, p. 80).
Observe-se a voz que se manifesta em relação à cultura e à
resistência dos povos indígenas, perspectiva que abre espaço para
discussões entre indígenas e não-indígenas, focando principalmente, e
almejando, o elo entre ancestralidade, formação, saberes e práticas
docentes.
Dussel (2016, p. 163-164) declarou que “a exclusão do não
europeu como critério civilizador deu à Europa uma dominação cultural e
ideológica. O não europeu excluído terminou por desaparecer de toda
consideração prática e teórica”. Entende-se, por Dussel (1993, p. 58-59),
que “o domínio que os europeus exerceram sobre o ‘imaginário’ do nativo,
conquistado antes pela violência das armas, é um processo de
racionalização próprio da modernidade”. Mignolo (2017) contribuirá
171
significativamente nesse repensar, por admitir a necessidade de um projeto
para fazer ressurgir, reemergir e re-existir, tanto o nativo quanto seu
“imaginário”, ou melhor, sua “cultura”.
É nesse desigual cenário histórico que se insere a tarefa da
universidade, local do saber, para fazer frente a conceitos e preconceitos.
Cabe-lhe, segundo escrevia Freire (1981, p. 92), analisar se a educação tem
contribuído para a libertação, porque “[...] é na intersubjetividade,
mediatizada pela objetividade, que minha existência ganha sentido”. O
sentido de contribuir para a tomada de consciência dos sujeitos se faz pelo
princípio da análise crítica dos acontecimentos históricos e filosóficos, pela
intersubjetividade da existência coletiva em um diálogo entre
ancestralidade, formação, saberes e práticas docentes na humildade de um
aprender juntos pedagogicamente freireano.
Somos a mesma américa: formação e prática docente
Para intervir com um pensamento decolonial não há como evitar
polêmicas. Há, necessariamente, que abordar “epistemologias fronteiriças”
e caracterizar a “diversidade
de formas críticas de pensamento analítico”. É
o que observa Mignolo:
[...] a lógica da racialização que surgiu no século XVI tem duas
dimensões -ontológica e epistêmica - e um só propósito: classificar
como inferiores e alheias ao domínio do conhecimento sistemático
todas as línguas que não sejam o grego, o latim e as seis línguas
europeias modernas, para manter assim o privilégio enunciativo das
instituições, os homens e as categorias do pensamento do
Renascimento e a Ilustração europeias (2017, p. 17-18).
172
Por exemplo, ainda segundo o autor, “no momento em que os
ibéricos conquistaram, nomearam e colonizaram a América (cuja região
norte, ou América do Norte, os britânicos colonizarão um século mais
tarde), encontraram um grande número de diferentes povos” (2017, p. 17-
18).
Eis o ponto que requer, como já mencionado, olhar cuidadoso.
Este ponto constitui o ápice deste contexto e é de suma relevância no que
concerne à conexão entre ancestralidade, formação, saberes e práticas
docentes, pois esses povos, considerados “diferentes”, possuíam e possuem
aspectos culturais específicos que constituem sua história, linguagem,
memória e identidade.
Dentre eles, “astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, etc.,
trezentos anos mais tarde, todos eles reduziam-se a uma única identidade:
índios” (QUIJANO, 2005, p. 127). Acredita-se na possibilidade de que
tenha sido nesse trilhar epistemologicamente vivenciado que se
constituíram as inúmeras etnias que se ‘ressignificaram’ em sua própria
construção.
Nesta perspectiva, a construção de nossa formação e prática
docente não acontece “isolada do mundo, senão na práxis dos homens
dentro da história. Por implicar a relação consciência-mundo, envolve a
consciência crítica desta relação” segundo (FREIRE, 1981, 79-80). E isto
constitui o exato contexto que nos faz indagar como a formação influencia
nossa prática e como poderíamos reestruturar uma prática a partir de
outras possíveis formações, em um contínuo e ininterrupto respeito pela
ancestralidade e pelos saberes dos originários.
Representaria isso interferir no projeto decolonial e/ou significaria
colaborar com um novo modo de pensar junto?
173
As discussões propostas são um expoente para novas práticas
advindas de formações destinadas a criar um elo entre os saberes e a
ancestralidade na universidade, enquanto ciência epistemológica e
vivencial, possibilidade de uma educação que instigue os sujeitos, como já
mencionado, a ressurgir, a reemergir e a re-existir, o que demanda
consciência e atitude críticas para perguntar e se repensar: Somos a mesma
América?
Discussões
[...] la diferencia colonial permite entender la densidad diacrónica y la
constante re-articulación de la diferencia colonial aún hoy, en un
mundo regido por la información y la comunicación y por un
colonialismo global que no se ubica en ningún Estado-Nación em
particular. (MIGNOLO, 2000. p. 20).
35
O autor dá a entender que a diferença colonial ainda nos assombra,
pois a informação e a comunicação são regidas por um colonialismo global
que não se situa em nenhum Estado-nação particular. Nessa articulação
opressiva, a visão dos povos indígenas continua vinculada à visão
estereotipada de serem ‘preguiçosos e indolentes’, ou dos que ‘não
gostavam de trabalhar’. Segundo Munduruku (2012, p. 29), continua a
prevalecer a “violação à organização social e à soberania dos povos
indígenas”.
35
“[...] a diferença colonial permite-nos compreender a densidade diacrónica e a rearticulação
constante da diferença colonial ainda hoje, em um mundo regido pela informação e comunicação
e por um colonialismo global que não se situa em nenhum Estado- Nação em particular”
(MIGNOLO, 2000. p. 20, tradução nossa).
174
A ruptura desse paradigma só poderá ocorrer por meio do
pensamento e de uma atitude decolonial, que, segundo Mignolo:
[...] abre um novo modo de pensar que se desvincula das cronologias
construídas pelas novas epistemes ou paradigmas (moderno, pós-
moderno, altermoderno, ciência newtoniana, teoria quântica, teoria da
relatividade, etc.). Não é que as epistemes e os paradigmas estejam
alheios ao pensamento descolonial. Não poderiam sê-lo; mas deixaram
de ser a referência da legitimidade epistêmica (2017, p. 15).
Emerge, admitido este aspecto, a necessidade de uma relação à
leitura e à interpretação crítica, indispensável no âmbito acadêmico de
formação para uma possível prática pedagógica decolonial. Ousa-se, neste
quesito, chamar à discussão o campo do ensino e pesquisa, visto que,
segundo Bosi (2016, p. 313), devemos nos afastar de riscos ideológicos em
que o puro tecnicismo e o puro historicismo “têm consequências
especialmente graves no nível interpretativo”, gerando, consequentemente,
uma “técnica neutra e opressão ideológica” nos pesquisadores quando se
reflete sobre a dialética da colonização.
Trata-se de ‘desconstruir’ o produto do domínio do poder que, de
acordo com Santos (2011, p. 266-267), vem de “qualquer relação social
regulada por uma troca desigual. É uma relação social porque a sua
persistência reside na capacidade que ela tem de reproduzir desigualdade”,
incluindo “a ação e a vida”, “os projetos e as trajetórias pessoais e sociais”,
impulsionando uma educação desigual.
O estudo que aqui propomos preza por uma educação decolonial,
que consiste em “superar a mera posição teórico-cúmplice da filosofia com o
sistema vigente que gera vítimas” (DUSSEL, 2012, p. 321). Acreditamos
poder estabelecer com os povos latino-americanos, indígenas e não-
175
indígenas, um processo libertador e emancipatório através do diálogo.
Através dele, os sujeitos compreenderiam a história latino-americana não
somente caracterizada pela parcialidade e precariedade dos Estados-nação,
mas principalmente pelo conflito que se estabeleceu entre as suas
sociedades.
Dussel é mais específico a respeito:
Interpretar’ o mundo em uma exclusiva posição teórica pressupõe
aceitar o sistema dado a partir de seu próprio horizonte. Transformar
(ou ação transformadora de normas, ações, instituições, sistema de
eticidade) é o que se propõe a “razão ético-crítica”. Isto não significa
que se deva abandonar toda filosofia; significa que se deve superar a
mera posição teórico-cúmplice da filosofia com o sistema vigente que
gera vítimas, e comprometer-se praticamente com estas vítimas a fim
de colocar o caudal analítico da filosofia ético-crítica (que é a plena
valorização da filosofia) em favor da análise das causas da negatividade
das vítimas e das lutas transformadoras (libertadoras) dos oprimidos e
excluídos (2012, p. 321).
Indubitavelmente, tanto Dussel (2012) quanto Santos (2011)
afirmam que as formas de poder são trocas desiguais, que produzem
oprimidos e excluídos, incluindo a pesquisa científica, tão emergencial e
concisa. Entretanto, não resta outro recurso senão a “pesquisa científica”
para tornar possíveis as contribuições sociais e suas relações, desde que
tenham por propósito, declara Santos (2011, p. 286), conscientizar esta
“sociedade produtora de mercadorias”.
Indagar e, consequentemente, repensar sobre é a inquietude que se
mencionou anteriormente, para ir contra a coisificação das pessoas que
Santos (2011, p. 286) correlaciona com a “personificação das coisas”, ou
seja, com os resquícios coloniais que sobrevivem, infelizmente, no âmbito
176
educacional e que multiplicam uma troca desigual nas relações, marcadas
ou destacadas, no presente estudo, entre ancestralidade, formação, saberes
e práticas docentes.
Almeja-se, nesta discussão, do ponto de vista epistemológico e no
âmbito vivencial, “desconstruir”. Na prática, como tarefa da universidade,
isto significa combater a perspectiva expressa por Quijano (2005), segundo
a qual “ o não-europeu é percebido como passado”, oprimido.
Significa combater o que Freire (1980, p. 59) considera ser
colonizador (e seus descendentes), um cidadão não solidário com os
oprimidos senão quando deixa de os olhar como uma categoria abstrata e
os vê como pessoas injustamente tratadas, privadas de suas palavras, de
quem se abusou ao venderem seu trabalho.
Significa ‘desconstruir’ um padrão de poder imposto, que, segundo
Quijano (1999, p. 102), tem como eixos que impulsionam a dominação:
[...] la existencia y la reproducción continua de esas nuevas identidades
históricas, así como la relación jerarquizada entre tales identidades en
cada instancia de poder: económica, social, cultural, intersubjetiva,
política. Debido a eso las instituciones y los mecanismos de
dominación social, los subjetivos y los políticos en primer lugar, tenían
que ser diseñados y destinados, ante todo, para la preservación de ese
nuevo fundamento de clasificación social (1999, p. 102).
36
36
[...] a existência e reprodução contínua dessas novas identidades históricas, bem como a relação
hierárquica entre tais identidades em cada instância de poder: econômica, social, cultural,
intersubjetiva, política. Por isso, as instituições e os mecanismos de dominação social, subjetivos e
políticos em primeiro lugar, deveriam ser concebidos e destinados, sobretudo, à preservação desse
novo fundamento da classificação social (, 1999, p. 102, tradução nossa).
177
A esta dominação, Nelson Maldonado-Torres (2006, p. 106)
chamará de ‘dinâmicas de poder de caráter preferencial’, referindo-se “al
proceso en el que el sentido común y la tradición están marcados por las
dinámicas del poder que son preferentes en carácter: discriminan a la gente
y se dirigen a las comunidades”, enquanto essa colonialidade “sugiere que
el Ser milita contra la existencia misma de uno” (2006, p. 104).
37
O caminho proposto pelo processo ação-reflexão-ação não é
findável neste estudo e não pretende ser, pois, como afirma Dussel, para
“crescer é necessário amadurecer”, e este processo, aqui proposto, é longo
e complexo; exige de todos/as os/as envolvidos/as, incluindo leitores/as,
tempo, estudo, reflexão.
Tal como escreve Dussel (2006, p. 55), trata-se de um processo
que exige “retorno a los textos constitutivos de la propia cultura, antes, o
al mismo tiempo que el dominio de los textos de la cultura moderna
hegemónica”.
38
O autor (2005, p. 45) colabora, especificando “como
punto de partida de la Modernidad ‘fenómenos intra-europeos, y el
desarrollo posterior, que no necesita más que Europa para explicar el
proceso”.
39
Nesta discussão, além de se analisar o ponto de partida sobre a
modernidade, “no negamos la razón, en otras palabras, sino la
irracionalidad de la violencia generada por el mito de la modernidad”,
37
Nelson Maldonado-Torres (2006, p. 106) chamará essa dominância de 'dinâmica de poder de
caráter preferencial', referindo-se a “o processo em que o senso comum e a tradição são marcados
pelas dinâmicas de poder que são preferidas em caráter: eles discriminam contra pessoas e
comunidades-alvo ”, enquanto essa colonialidade“ sugere que Ser milita contra a própria existência
” (2006, p. 104, tradução nossa).
38
Como afirma Dussel (2006, p. 55), trata-se de um processo que exige “o retorno aos textos
constitutivos da própria cultura, antes, ou ao mesmo tempo que o domínio dos textos da cultura
hegemônica moderna. (Tradução nossa).
39
O autor (2005, p. 45) colabora, especificando "como ponto de partida dos fenômenos
intraeuropeus da Modernidade, e posterior desenvolvimento, que não precisa mais do que a Europa
para explicar o processo" (Tradução nossa).
178
mencionado por Dussel (2001, p. 69; 58) e que “...desarrolla un mito
irracional, una justificación de la violencia genocida” nos povos.
40
Nesse contexto, além dessa consciência da irracionalidade gerada
violentamente, pretende-se também reconceituar e fundar estruturas que
darão significado ao movimento indígena, mas também de elaborar um
projeto que não se justifique mais pela violência, mas que, segundo sugere
Walsh, esteja condicionado:
[...] a cambios profundos a este orden. Su afán no es simplemente
reconocer, tolerar ni tampoco incorporar lo diferente dentro de la
matriz y estructura establecidas. Por el contrario, es interrumpir desde
la diferencia en las estructuras coloniales del poder como reto,
propuesta, proceso y proyecto; es hacer reconceptualizar y refundar
estructuras que ponen en escena y relación equitativa lógicas, prácticas
y modos culturales diversos de pensar, actuar y vivir (WALSH, 2012,
p. 119).
41
O estudo não se poderá caracterizar como um combate contra a
modernidade e, muito menos, contra os estudos ocidentais, “sino como
una manera de pensar críticamente la modernidad desde la diferencia
40
Nesta discussão, além de se análise ou ponto de partida sobre a modernidade, “não negamos a
razão, ou seja, a irracionalidade da violência gerada pelo mito da modernidade”, citado por Dussel
(2001, p. 69; 58 ) e que "... desenvolve um mito irracional, uma justificativa para a violência
genocida" (Tradução nossa).
41
[...] a mudanças profundas nesta ordem. Seu desejo não é simplesmente reconhecer, tolerar ou
incorporar o que é diferente dentro da matriz e estrutura estabelecidas. Pelo contrário, é interromper
a diferença nas estruturas coloniais de poder como desafio, proposta, processo e projeto; É
reconceituar e reencontrar estruturas que encenam e relações equitativas de lógica, práticas e diversas
formas culturais de pensar, agir e viver (WALSH, 2012, p. 119, tradução nossa).
179
colonial” (MIGNOLO, 2000, p. 08)
42
e, ao se pensar por esta perspectiva,
revisar nosso pensar e agir.
Isto comporta repensar a formação e a prática docente para
finalmente as relações e as práticas equitativas se tornarem
substancialmente epistêmicas e vivenciais, permitindo que se aliem a
ancestralidade e os saberes de diferentes formas culturais, que
significativamente contribuirão para o nosso pensar, agir e viver,
aproximando-nos ética e esteticamente de um novo olhar sobre a temática
abordada.
Trata-se de criar um novo ‘contexto’, que Mignolo (2000, p. 08)
caracteriza como “una epistemología fronteriza que, desde la subalternidad
epistémica, reorganiza la hegemonia epistémica de la modernidad. Esta
epistemología fronteriza puede pensarse como descolonización, o si se
quiere, como de-construcción desde la diferencia colonial”.
43
Aspectos que não se distanciam cientificamente de novas
discussões, mas impulsionam o ininterrupto aprofundamento dos
conhecimentos, das cosmologias e práticas cotidianas indígenas,
combatendo, assim, a desumanização, a dominação, a opressão, a
inferiorização e a subordinação dos povos.
O desafio de todo esse processo são as brechas de ‘ordem colonial
moderna’ que minam a estrutura do poder, ou da cultura dominante.
42
Ou este estudo não pode ser caracterizado como um combate à modernidade e, muito menos,
contra os estudos ocidentais, “mas como uma forma de pensar criticamente a modernidade a partir
da diferença colonial” (MIGNOLO, 2000, p. 8, tradução nossa).
43
Trata-se de criar um 'contexto' novo, que Mignolo (2000, p. 8) caracteriza como “uma
epistemologia de fronteira que, a partir da subalternidade epistêmica, reorganiza a hegemonia
epistêmica da modernidade. Essa epistemologia da fronteira pode ser pensada como descolonização,
ou se você preferir, como desconstrução da diferença colonial ” (Tradução nossa).
180
No processo que nos propomos com o termo ‘decolonialidade no
ensino superior’, o “desconstruir” ou o “reconstruir” precisa levar em conta
as “brechas” identificadas e denunciadas por Walsh (2017) em seus
estudos, pelo fato de, apesar de tudo, continuarem a (re)padronizar, a
(re)constituir, a (re)moldar a colonialidade do poder.
Isto posto e reconhecido, concordamos com o que propõe Kusch:
Por lo tanto, más que de conocimiento, aquí cabe hablar de
comprensión, que supone una afinidad con el sujeto y una tendencia a
afianzarlo. Es entender que esa acción tiene otro sentido que el que
habitualmente le damos, que es una estructura autónoma a la cual se
someten los integrantes de la comunidad (1978, p. 62).
44
Este mesmo autor afirma ainda: “Ante todo, difícilmente podrán
estudiarse los símbolos aisladamente del contexto en el cual se dan. Dentro
de este contexto se advierte que la significación de un símbolo se enriquece
con la función que cumple dentro de la totalidade” (1978, p. 35).
45
O
contexto a que o autor se refere possui um significado simbólico-vivencial,
enriquecido pela função que ele desempenha em sua totalidade. Além de
não distante da epistemologia, poderá romper com futuros paradigmas
científicos.
44
Portanto, mais do que conhecimento, aqui podemos falar de compreensão, o que implica
afinidade com o sujeito e tendência a fortalecê-lo. É entender que essa ação tem outro sentido que
aquele que costumamos dar, que é uma estrutura autônoma a que se submetem os membros da
comunidade (1978, p. 62, tradução nossa).
45
“Em primeiro lugar, os símbolos dificilmente podem ser estudados isoladamente do contexto em
que ocorrem. Nesse contexto, nota-se que o significado de um símbolo é enriquecido pela função
que ele desempenha na totalidade” (1978, p. 35, tradução nossa).
181
Considerações Finais
A complexidade do presente estudo não permite prever um ponto
final. Aliás, admitimos que o que propomos são reflexões iniciais de uma
pesquisa em fase de desenvolvimento, oportunizando, assim, alguns
conceitos e dialogando com autores que trabalham ou estudam a temática
decolonial nos países da América Latina.
A reflexão exposta sob viés de um olhar decolonial no ensino
superior entre ancestralidade, saberes, formação e prática docente almeja,
em tese, uma educação emancipatória, que tem como sujeitos, em especial,
os povos indígenas, propondo que dialoguem nessa construção.
Em conversa com o terena Irineu
46
, ele falava sobre o poder
medicinal das plantas das florestas, do poder que sua avó dominava por ser
uma ‘koixomuneti’ (termo xamânico que compreende prática de cura entre
os terena além das questões físicas, a espiritualidade da aldeia e da
colheita). Este é um exemplo a ser considerado, entre tantos outros, mas
em particular no que tange às mudanças que ocorreram com a medicina
moderna. Ainda hoje, segundo testemunho do Irineu, existe uma
koixomuneti’ que mora na aldeia Ekerua, da etnia terena, e na aldeia dele
Kopenoti -, segundo ele ‘batizada’ como ‘koixomuneti’.
Nesse diálogo, destaca-se a busca desse indígena terena pela
medicina tradicional (plantando as ervas) e pela continuidade do trabalho
de sua avó na aldeia como ‘koixomuneti’. Também comentou a respeito
dos alimentos tradicionais que vêm da mandioca, como: ‘Hihi- tipo um
46
Amigo pertencente à etnia Terena, da aldeia Kopenoti, localizada em Bauru/SP, que gentilmente
colabora contando a realidade que seu povo vive e alguns costumes que aqui consideramos de suma
importância (Tradução nossa).
182
bolo de mandioca; ‘lapapé’, pamonha de mandioca, que antigamente,
como todos os povos indígenas, utilizavam o sol como relógio.
A aproximação com a ancestralidade e os saberes mencionados pela
voz do indígena são um primeiro passo, hipoteticamente decolonial, para
dialogar e contribuir para esta pesquisa, ainda em fase de desenvolvimento.
Com ela, espera-se contribuir com a formação e a prática docente para,
enfim, reconhecer e admitir que somos uma América, uma américa de
todos ou de muitos povos.
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187
Aportes para uma Filosofia da Educação
em Rodolfo Kusch
Adão Alves de ARAÚJO
47
Introdução
Em suas obras, Rodolfo Kusch não abordou direta e
especificamente a temática da educação escolar, tendo apontado apenas
algumas situações acerca de sua experiência na escola. No entanto, é
possível refletir sobre a educação a partir de suas obras, uma vez que ele
trata com profundidade sobre a formação do sul-americano e os processos
de formação cultural dos diversos povos latino-americanos. E para além
disso, a forma como o autor denuncia a alienação do homem sul-
americano de sua própria cultura, diante da imposição de um processo
formativo que lhe é distante e exteriorizado, criticando a promoção de uma
adaptação desses povos às práticas, costumes e comportamentos da cultura
europeia, traz reflexões importantes para o campo educacional
principalmente no tocante a uma ética que supõe e propõe uma formação
centrada na cultura originária dos povos latino-americanos.
Nesse sentido, Kusch pensa a formação do homem sul-americano
como necessariamente desvinculada de práticas culturais referentes à
47
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia
e Ciências, Unesp, Campus de Marília. Docente de Filosofia na Secretaria Estadual de Ensino de
São Paulo. E-mail: araujozz@yahoo.com.br
h
ttps://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p187-204
188
cultura europeia, propondo o resgate de uma sabedoria realmente
originária, em que sejam valorizadas as formas de constituição de
pensamento e os comportamentos locais, o ethos culturalmente original,
de forma que toda imposição e exclusão cultural devam ser negadas. O
autor enuncia a necessidade de negar qualquer iniciativa que se mostre
inautêntica e busque implantar uma extensão cultural do continente
europeu, um processo de europeização da América do Sul.
A educação e a problemática da negação
De acordo com os estudos de Rodolfo Kusch, negar é excluir. A
negação é, assim, uma maneira de exclusão que culturalmente se deu com
o processo de colonização, a imposição da cultura europeia sobre os povos
da América. Ao impor-se, o colonizador excluiu a possibilidade da
integração com a cultura autóctone. Negação que percorre toda a história
do processo de civilização americana, seja através da imposição violenta,
como também pela aculturação promovida por meio da lógica racional dos
povos colonizadores, ao prescrevendo seus saberes e seus conhecimentos
como universais, excluindo o outro enquanto ser cultural e existencial.
Segundo essa lógica, tem-se a premissa de que algo é sempre
verdadeiro ou falso, sem a possibilidade de uma terceira opção. Assim,
cultural e existencialmente considerados, os colonizadores representam a
verdadeira civilização da humanidade, enquanto os povos colonizados
não. Entre o ser e não-ser, não somos. Isso cria um paradoxo, pois como
sujeitos, somos. Estamos aqui. Ao passo que, considerada a cultura
dominante do colonizador a verdadeira, somos falsos. Negados enquanto
sujeitos culturais e existenciais. No dizer de Kusch, cultura considerada
189
suja, herética, a própria representação das sombras, caberia ao europeu
trazer a luz para a américa, que
encarnava o bárbaro porque ameaçava os bens da civilização [...] Tinha
um significado simbólico. Uma defesa da luz contra as sombras, na
medida em que as sombras eram a negação da luz, aquilo que não
alcançou e que escondeu uma ameaça, a provável afronta de um beco
mal iluminado (KUSCH, 2007, v1, p. 120).
48
A negação enquanto processo de imposição sobre a cultura do
outro acaba por desencadear um movimento de distorção, uma espécie de
dualidade ou ambivalência cultural e espiritual, visto que esse povo tende
a se sentir roubado em sua essência, em seu estar. Essa alienação ao qual
Paulo Freire (1967, p. 50) chama desumanização, e que também
descaracteriza o opressor em seu estar originário, uma vez que acreditando
serem os salvadores, acabam por se tornarem opressores, dada a violência
simbólica. Para os oprimidos, sujeitos da “redenção civilizatória” a
ambiguidade resulta em uma situação de não reconhecimento da própria
cultura, ao mesmo tempo que não alcançando totalmente a “civilização”
do outro, tende-se a ficar à deriva da indeterminação cultural e existencial,
ou seja,
mantemos uma relação impessoal com nossa cultura [...] Somos
obrigados a ver essas coisas, e então as utilizamos de acordo com o que
outros viram [...] “Entre o que é demonstrado como falso e o que é
comprovado como verdadeiro existe um lugar para o que não é
48
“encarnaba lo bárbaro porque amenazaba los bienes de la civilización [...] Tenia un significado
simbólico. Una defensa de la luz contra las sombras, en tanto éstas eran la negación de la luz, aquello
a donde ella no llegaba y que encubría una amenaza, la probable afrenta de un callejón mal
iluminado (KUSCH, 2007, v1, p. 120).
190
verificado, nem reconhecido como absurdo” [...] A lógica serve às
exigências da ciência. A ciência, por sua vez, o objeto. Porém, à ciência
corresponde uma face apenas do homem [...] Isto conduz ao erro de se
crer, especialmente em nossos países colonizados, que não exista outra
coisa [...] Porém, por acaso isto exclui a possibilidade de que grandes
áreas negadas possam se converter em ciência? É o problema da
América. (KUSCH, 2008, p. 108-109)
49
Assim, ao afirmar um modelo de comportamento, de ética e moral,
bem como de toda a atividade produtiva e tecnológica como a ideal e
necessária para todo e qualquer ser humano, de forma universalizante, esse
mesmo proceder age por exclusão, tendo como parâmetro a afirmação de
seus próprios preceitos e saberes. E a colonização da América comprova o
esquema universalizante, fundamentado no princípio da exclusão. Ou é.
Ou não é. Não somos? Como? Se aqui estamos!!! Porém, frente ao
“civilizado”, o homem sul-americano é não-homem, como reflete: “Vamos
pensar sobre o que significa não-homem. Já supõe outra coisa: pedra,
planta, deus, gato, mesa e muitas coisas mais. E unir o homem com o não-
homem, de acordo com o conhecer as trevas significa lançar o que é no
que não é” (KUSCH, 2007a, p. 574)
50
49
KUSCH, Rodolfo (2008) “mantenemos con nuestra cultura una relación impersonal. Todo lo
que necesitamos como política, como filosofía, como ciencia, como religión debe desplazarse en un
campo de afirmaciones. Nos obligan a ver las cosas y utilizamos entonces lo que otros han visto.
[…] “Entre lo que se ha demostrado falso y lo que se ha comprobado verdadero hay un lugar para
lo que no está ni verificado, ni reconocido absurdo” […] La lógica sirve a las exigencias de la ciencia.
La ciencia, por su parte, lo es de objeto. Pero, la ciencia responde sólo a una faz del hombre, ya que
satisface la puesta en conciencia de lo que aparentemente no era conciente. Y esto acarrea el defecto
de que se crea, especialmente en nuestros países colonizados, que no hay otra cosa que lo conciente
o afirmable. ¿Pero acaso esto excluye la posibilidad de que grandes áreas negadas puedan convertirse
en ciencia? Es el problema de América.
50
Pensemos qué significa no-hombre. Supone desde ya otra cosa: piedra, planta, dios, gato, mesa
y muchas cosas más. Y juntar el hombre con el no-hombre, según el saber tenebroso, significa
echar lo que aquél es en lo que no es (KUSCH, 2007a, p. 574)
191
Para Kusch, o caminho está, então, em negar a negação e com isso
tentar abrir novas possibilidades tanto para colonizado quanto para
colonizador. É fato que não é possível modificar o passado de opressão e
violência sofridos, mas para um presente de mobilização é necessário a
libertação que passa necessariamente pelo resgate do estar-sendo e isto
possibilita a liberação de todas as marcas da colonialidade que afetam
nossos comportamentos e práticas sociais, psicológicas, existências, ao
ponto de concordarmos em sermos roubados de nosso estar com o
argumento de que, como diz Freire “a violência dos opressores instaura
uma outra vocação a de ser menos” (FREIRE, 1977, p. 30) espécie de
vocação histórica, como se fosse algo predestinado. Na verdade, “se
admitíssemos [...] que é vocação histórica, [...] nada mais teríamos que
fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero” (FREIRE,
1977, p. 30)
Nesse contexto, alguns questionamentos podem ser feitos em
relação a esse processo proposto por Kusch, denominado “negação da
negação” no que se aproxima das reflexões educacionais. O que na escola
é negado?
Uma filosofia da educação embasada pelos estudos de Rodolfo
Kusch apresenta-se como uma proposta ética para uma abordagem cultural
em educação, que promova como processo de formação, o respeito e
integração dos saberes tanto de educadores quanto educandos enquanto
pessoas humanas. Esta proposta pode embasar reflexões que possam
desvelar os princípios que constituem os atos de negação, ou as formas de
imposição que historicamente geraram exclusões também nas práticas
escolares, e por isso deram continuidade aos movimentos de colonialidade
e negação do estar-sendo.
Dessa maneira, como refletir sobre o desenvolvimento de uma
filosofia da educação no contexto brasileiro a partir do pensamento de
192
Rodolfo Kusch e diante de teorias educacionais que tradicionalmente se
baseiam em conceitos e metodologias trazidas da Europa ou dos Estados
Unidos, as quais explícita ou implicitamente representam e reforçam
formas de pensamento européias? O processo para esse desenvolvimento
parece pressupor uma espécie de libertação da colonialidade nos aspectos
culturais, intelectuais e formativos, em outras palavras, negar aquilo que
nos nega.
Uma primeira solução consiste, segundo o autor, em buscar as
raízes do homem americano, sua cultura e pensamento verdadeiramente
autóctone, pois, ainda que colonizado pelas formas de pensamento
européias, o que prevalece é o estar enquanto fundamento do ser. O
princípio da autoctonia do pensamento consistiria em identificar nos
pensadores e educadores americanos o comprometimento com a nossa
formação cultural originária e a libertação da continuidade da colonização
dos nossos saberes e práticas.
A segunda solução se baseia nas observações que Kusch realizou em
meio aos povos e comunidades pesquisadas, quando ele propõe o conceito
de fagocitação
51
como forma de apropriação seletiva de tudo aquilo que é
imposto, ou seja, a “devoração simbólica” da cultura e dos saberes dos
colonizadores enquanto resistência, uma espécie de metamorfose do que
nos foi imposto, o que de acordo com Kusch faria com que "recuperemos
a hierarquia do pensamento, sua colocação no que acreditamos que deveria
51
Rodolfo Kusch emprestou das ciências biológicas o termo. A fagocitose é o processo, na digestão,
de identificação de organismos invasores e sua destruição, para que as células possam adquirir
nutrientes e posteriormente evoluir e, assim, possam defender melhor o corpo. Nos mamíferos a
principal célula fagocitária é chamada de macrófago, vastamente distribuído nos tecidos. São
soldados guerreiros que patrulham permanentemente o organismo, defendendo-o contra os ataques
de corpos estranhos. Assim, a fagocitação cultural representa o movimento de apropriação cultural,
na qual os elementos que propiciam desenvolvimento são retidos e aqueles que promovem a
negação de nossa identidade, que nos excluem, são eliminados.
193
ser o universal" (Kusch, 2007b, p. 603, tradução nossa)
52
. No que diz
respeito à educação, isso indica a busca por um modo seminal de pensar
próprio da nossa cultura, e em refletir sobre o que na escola concretiza-se
em práticas excludentes, e por outro lado, identificar aquilo que colabora
para uma integração intercultural na educação.
É preciso lembrar, por exemplo, o princípio de que a educação se
volta para o desenvolvimento e constituição de pessoas, o que é uma crítica
ao caráter estático que tem permeado as estratégias educacionais atuais,
baseadas muitas vezes em operações lógicas e buscando a exatidão de seus
resultados. Esse é um dos primeiros aspectos a ser negado, pois de acordo
com as reflexões de Kusch, se relaciona ao que no passado foi feito a partir
do “mito da limpeza e do fedor da América, quando criaram políticas puras
e teóricas, economias impecáveis, uma educação abundante e variada,
cidades espaçosas e brancas e aquele mosaico de repúblicas prósperas que
cobrem o continente". (KUSCH, 2007b, p. 13. Tradução nossa).
Desconsiderando toda forma de indeterminação e a emocionalidade,
essenciais para a compreensão de um sistema que busca se ocupar da
formação de pessoas.
Pensar as dificuldades e obstáculos enfrentados na realidade
educacional, principalmente da escola pública no contexto brasileiro, é
compreender também que muitos agentes educacionais por não terem uma
visão mais ampla de todo esse processo, se ancoram ou são condicionados
a se conduzirem em suas práticas pedagógicas, a partir de concepções fixas
de educação, que visam objetivos e índices estabelecidos logicamente, em
escalas de conceitos e proposições calculadas bastante distantes do estar dos
indivíduos aos quais se direciona. De forma que se pode refletir que a
formação para a cidadania, para a liberdade e emancipação não pode se
52
recobraríamos la jerarquía del pensar, su colocación en lo que creemos que debe ser lo universal”
(Kusch, 2007b, p. 603)
194
resumir a preparação técnica para o trabalho e o mercado, ou a uma
encenação de educação, que mais aliena do que desenvolve processos
formativos de fato. Um pouco do que discute Nussbaum (2015), quando
elenca uma série de problemáticas em torno do choque de civilizações
São muitas as problemáticas, ente tantas, como as pessoas se tornam
suscetíveis ao respeito e à igualdade democrática? O que as faz buscar
a dominação? [...] a luta política pela liberdade e pela igualdade, deve,
antes de tudo, ser uma luta de cada um [...] o choque interior de
civilizações pode ser percebido em muitas lutas em torno da inclusão e
da igualdade que tem lugar nas sociedades modernas: debates sobre a
imigração; sobre a adaptação de minorias religiosas, raciais e étnicas;
sobre a igualdade de gênero; sobre a orientação sexual; sobre a ação
afirmativa. Em todas as sociedades, esses debates causam ansiedade e
agressividade; em todas, também, existem forças que defendem a
compaixão e o respeito. (NUSSBAUM, 2015, p. 29-30)
Todas essas considerações reafirmam a necessidade contínua do
debate em torno da nossa realidade educacional e da busca de formas de
resistência em relação àquilo que nos conduz, conforme a autora discute,
à agressividade, dado a continuidade da negação da nossa cultura
originária. O que novamente conduz aos estudos de Kusch, quando este
também apresenta como solução filosófica a necessidade de tornar
consciente o fagocitar, principalmente no campo educacional, uma vez que
“a fagocitação não é consciente, mas opera na inconsciência social, à
margem do que se pensa oficialmente sobre cultura e da civilização.
53
(KUSCH, 2007b, p. 197. Tradução nossa)
53
La fagocitación no es consciente sino que opera más bien en la inconsciencia social, al margen de
lo que oficialmente se piensa de la cultura y de la civilización (KUSCH, 2007b, p. 197)
195
Emergindo ao nível consciente, o processo de fagocitação acaba por
torna-se uma ação pensada, deliberada, capaz de visualizar o que está
entranhado na raiz do nosso pensamento colonial, aquilo que coexiste
quase como essência cultural e persiste. O estar enquanto modo de
resistência consciente possibilita a transformação da educação, a qual traz
sobre si historicamente o signo da exclusão, de uma “educação bancária”
denunciada e combatida por Paulo Freire em toda sua vida de educador e,
eternizada na sua obra Educação como Prática da Liberdade. Educação
que, de acordo com Rodolfo Kusch ainda vive sob a ficção educativa
colonial; sob a égide da formação de mão de obra passiva. Educação que
rebaixa o espírito, ao mesmo tempo em que acirra o pensamento
individualista; um "empreendedorismo agressivo... O sentido moral
entorpecido". A nível cultural parece haver uma "investigação estéril",
"alexandrianismo", o domínio da enciclopédia na educação, ou seja, "o
conhecimento está divorciado da vida" (KUSCH, 2007b, p. 147), criando
uma individualidade e uma cultura fictícia, ideológica, aprisionando-os
para na colonialidade, tanto dos saberes, quanto cultural, econômica e
existencial.
Quanto à formação de professores as dificuldades são semelhantes.
Não diferindo na importância e nem na urgência na formação desses para
com aqueles. São esses educadores que poderão levar adiante o projeto do
estar-sendo, desenvolverão e sustentarão a ação fagocitante, na negação da
negação. É o professor, na linha de frente, que identifica todo o amálgama
da negação, no dia a dia. É com ele, que a possibilidade pode tornar-se
realidade, na busca pela formação de uma nova concepção e de indivíduos
capazes de exercer seus direitos e sua resistência aos agentes sociais
negadores de seu ser. Assim, “do ponto de vista do mero ser, a evolução da
América pode ter um significado muito especial” (KUSCHb, p. 180).
196
Negação enquanto forma de resistência educacional
Voltando à crítica acerca da teorias educacionais no cenário
brasileiro, as quais dentro de uma lógica neoliberal, tem como parâmetro
a busca pelo lucro exacerbado e, a partir disso, a construção de fazeres
educacionais que promovam a adaptação dos indivíduos para o mercado
de trabalho, compreende-se as representações em torno do que seja a
educação a nível do discurso, mas que na prática, acabam por dissolver
gradualmente a capacidade de agir e pensar criticamente, bem como de
propor e encarar os problemas locais e mundiais como “cidadãos do
mundo”, principalmente quando nega durante todo o percurso escolar, a
integração de seus próprios saberes com aquilo que pretende ser
desenvolvido na escola. Sobre as relações entre a educação e as políticas
neoliberais, Silva (1995, p. 12) argumenta que:
De um lado, é central, na reestruturação buscada pelos ideólogos
neoliberais, atrelar a educação institucionalizada aos objetivos estreitos
de preparação para o local de trabalho. No léxico liberal, trata-se de
fazer com que as escolas preparem melhor seus alunos para a
competitividade do mercado nacional e internacional. De outro, é
importante também utilizar a educação como veículo de transmissão
das ideias que proclamam as excelências do livre mercado e da livre
iniciativa. Há um esforço de alteração de currículo não apenas com o
objetivo de dirigi-lo a uma preparação estreita para o local de trabalho,
mas também com o objetivo de preparar os estudantes para aceitar os
postulados do credo liberal. (SILVA, 1995, p.12)
Os sistemas de ensino educacionais construídos no cenário
mundial nas últimas décadas, o que pode ser percebido pela ênfase e
pressão sobre os Estados para a construção de novos ordenamentos
197
legislativos e curriculares, têm buscado direcionar os objetivos formativos
para um ensino cada vez mais flexível e técnico, sob o argumento de uma
formação para um país forte economicamente, o que desvaloriza,
progressivamente, aprendizagens mais voltadas para a formação plena e
emancipadora do cidadão.
Um dos efeitos dessa primazia da defesa do crescimento econômico
sobre o campo educacional é a forma com que se tem, nos documentos
legislativos, cada vez mais reduzido ou diluído o espaço para as artes e
estudos humanísticos, considerados como de pouca utilidade. No cenário
brasileiro, outro aspecto é a ênfase no desenvolvimento de competências e
habilidades em contraponto ao ensino de conteúdo, ao que Libânio
questiona:
quais os reais motivos para esse tipo de mudança? E argumenta
que
no que se refere à área do currículo, observa-se que, em lugar dos
currículos rígidos e mínimos para um mercado de trabalho mais
estável, se tornou necessário instituir currículos mais flexíveis e com
eixos temáticos mais amplos e diversificados, tendo em vista um
mercado de trabalho cambiante e instável, que demanda alterações
permanentes na formação dos trabalhadores e consumidores. Assim, o
currículo tem-se voltado mais para o desenvolvimento de competências
e capacidades necessárias ao trabalhador polivalente e flexível,
acarretando maior individualização dos sujeitos na responsabilização
pelo sucesso ou fracasso na trajetória escolar e profissional (LIBÂNEO
et al., 2012, p. 254, grifo nosso).
Todos esses ordenamentos parecem conduzir a ideia de que
desenvolver a consciência crítica dos educandos opera como uma ameaça
ao progresso econômico uma vez que não formaria para o mercado de
trabalho, daí a necessidade de um ajustamento educacional ao modelo de
198
adaptação do indivíduo, o que teoricamente estaria de acordo com as
novas exigências técnicas e psicológicas que o mercado de trabalho
necessita, mas que concretamente promovem o esvaziamento de todo
conteúdo formativo, e para nossas discussões no contexto desse trabalho,
nega a constituição de saberes culturais de toda espécie.
Este ponto de vista não significa, no entanto, negar a necessidade
e o fato de que a preparação para o mercado de trabalho também é essencial
para o exercício pleno da cidadania e sua emancipação enquanto cidadão,
uma vez que a formação crítica e desenvolvimento da autonomia também
são pressupostos da educação e do ensino de filosofia, como explica
Adorno,
a educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo da
adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo.
Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo
nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em
consequência do que a situação existente se impõe, precisamente no
que tem de pior. (ADORNO, 1995, p. 143).
Nesse sentido, é preciso reafirmar a escola como local de
aprendizagem e estudo, a qual tem como fins e objetivos a formação de
indivíduos que sejam capazes de se adaptarem, sim, ao mercado de
trabalho, mas que principalmente possam exercer plenamente sua
cidadania, prontos a se integrarem e serem participativos nas ações de seu
país e que como trabalhadores que estejam aptos a se adaptarem a um
mercado cada vez mais volátil e em constante mudança. À escola, também
cabe essa exigência de adaptação e participação.
Enquanto agente de formação cultural, a escola deve promover o
respeito ao outro como parte do processo formativo para a cidadania.
199
Contemplando a interculturalidade e o respeito à multiplicidade, que é
característica de um coletivo que a frequenta. Pois a escola é, por primazia,
o local onde convivem a diversidade e a pluralidade culturais, abrigando as
mais variadas individualidades e personalidades. Em Aqueles que a
frequentam, advém de locais que lhe são próprios, diferenciados e plurais
com comportamentos e práticas próprias, relativas a cada sujeito, bem
como sua forma e maneira de se mover no mundo. Aprendizados que se
realizam em seus próprios locais de vivência, quais sejam, suas famílias e
comunidade.
A escola, assim, também é abrigo, um lócus onde saberes e
experiências únicas são produzidos e transmitidos. Práticas que aí
confluem e convivem, formando um complexo de experiências de tal
amplitude que, naturalmente, emergem conflitos e integrações culturais
que se dão com o convívio e com a experiência diária no relacionar-se com
o outro.
Segundo Aristóteles (1996, p. 14) “a natureza, compele, assim,
todos os homens a se associarem” e, sendo compelidos à associação,
evidentemente conflitos e diferenças de personalidade e comportamentos
se apresentam como algo natural, característico de cada um enquanto
indivíduo componente de um todo. No entanto, é necessário a
conscientização das diferenças e desigualdades entre cada um e o respeito
mútuo entre os indivíduos, que são diferentes, ação que se torna parte
integrante da busca pelo bem viver na escola, pois que todos convivem dia
a dia, e a interação, o desenvolvimento da amizade entre os indivíduos
concorre para o respeito mútuo, e o tratamento justo para com o todo.
Ainda que esses mesmos fins e objetivos façam parte, ou, de outra
maneira, sejam contemplados nos currículos e educacionais há algo que
determina de forma unilateral, um ato de negação dos saberes éticos,
morais, intelectuais, e até práticos, adquiridos por alunos e por professores,
200
durante o percurso de suas vidas, em suas comunidades, em seus locais de
habitação e vivência, onde estão enraizados e participam colaborativa-
mente, sendo protagonistas na construção de si, das práticas que lhes
outorgam saberes, e, também, no desenvolvimento do outro.
Seguindo a lógica ocidental, que Brasil e todos os países da América
do Sul e Latina adotam, crê-se que todas as circunstâncias, fatos e
comportamentos podem e devem ser codificados. Através de um processo
que as valide enquanto modelos de uso universal. Nesse processo incluem-
se, também, os códigos morais e éticos. Na educação, as relações
pedagógicas tendem a modelar e estruturar o comportamento dos sujeitos.
De maneira tal que a todos possam formar, de acordo com um processo
validado cientificamente, eliminando ambiguidades e inconsistências,
segundo um mesmo modo de validação universal.
Isso se dá a partir de uma lógica de uniformização racional que é
própria do currículo escolar. Uniformizar é eleger um rol de
conhecimentos e saberes que será transmitido, de modo que a todos
“favoreça”, assim, ao eleger um dado conhecimento, este torna-se universal
e descarta outros saberes, uma vez que supostamente trata todos como
iguais, descartando qualquer diferença entre os indivíduos, excluindo
conhecimentos e experiências individuais. Nesse sentido, nega a
possibilidade de desenvolvimento desses mesmos saberes, ou seja, a
racionalização, a universalização de normas e condutas, na educação,
termina por excluir e negar, todo um arcabouço moral, intelectual, ético e
prático que esteja em contradição com seus pressupostos constituído
comunitariamente, e partilhado.
Uma multiplicidade de técnicas e metodologias que formam uma
multiplicidade fictícia, sempre separadas ou apartadas de forma tal que de
um modo ou de outro deixam um vazio em suas aplicações. Vazio que é
201
justamente aquilo que é negado, que não se incorpora em metodologia
alguma. Assim reflete, Kusch, quando afirma que,
A verdade é que essa pluralidade de doutrinas nos faz sentir como se
estivéssemos cobertos de rótulos, e descobrimos que muitos aspectos
de nós mesmos não são contemplados. Além disso, a localização,
sabemos, é sempre parcial, como se estivéssemos metade em algo, e
falta algo de nós que não fomos capazes de incorporar. Parece que há
uma externalização do conhecimento, certamente porque o próprio
conhecimento se tornou complicado. Mas somos sempre como sujeitos
passivos perante o conhecimento que chega, que penetra e se deposita.
(KUSCH, 1976, p. 16, tradução nossa)
54
Considerações Finais
Tendo por base as obras de Rodolfo Kusch como possibilidade de
pensar sobre uma Filosofia da Educação originariamente nacional,
podemos considerar a urgência necessidade de uma reflexão profunda
acerca da educação que buscamos. E que esta seja uma educação
intercultural, fundamentada no pensamento e na cultura realmente
nacional, originário. Para isto é necessário que essa reflexão que se
concretize em ações práticas, que partam da própria experiência do povo
originalmente sul-americano e de seus saberes constituídos ao longo de
toda a história deste continente; história que não teve início com o
54
KUSCH, Rodolfo (1976) “Lo cierto es que esta pluralidad de doctrinas nos hace sentir como si
estuviéramos revestidos de etiquetas, y descubrimos que hay muchos aspectos de nosotros mismos
que no están contemplados. Es más, la ubicación, lo sabemos, siempre es parcial, como si
estuviéramos a medias en algo, y falta algo de nosotros que no hemos logrado incorporar. Se diría
que hay como una externación del saber, seguramente porque el saber mismo se complicó. Pero
siempre estamos como sujetos pasivos ante el saber que llega, que penetra y se deposita.
202
“descobrimento” pelos colonizadores europeus. É buscar o
desenvolvimento de uma Filosofia da Educação na essência cultural de
nosso povo e em suas necessidades reais, os parâmetros de uma educação
emancipadora para a pessoa humana.
No entanto, este trabalho não nega a existência de inúmeras
reflexões profundas acerca das condições, das necessidades e da urgência
de uma educação de qualidade e democrática, já organizadas ao longo da
história das discussões educacionais em cenário brasileiro. São muitos,
aqueles que fizeram o movimento de pensar a educação, tanto no Brasil,
na Argentina, no Chile, México, e em outros países da América, buscando
soluções para a precariedade da educação pública, bem como as práticas
excludentes que a permeiam, mandos e desmandos a que foi submetida a
educação nesse continente, o que remonta aos seus primeiros colégios,
séculos. Não se trata disso!
Por outro lado, também não é novo as reflexões aqui são
consideradas: a necessidade de um pensamento legitimamente sul-
americano. O próprio Rodolfo Kusch, já em meados do século XX
apresentava essa possibilidade um olhar voltado para o nosso continente,
tendo também encontrado críticas à sua tese sobre a negação da cultura
sul-americana, assim como Paulo Freire, no contexto brasileiro, teve seus
trabalhos relegados a um lugar de exclusão. Ambos visionários sul-
americanos, negados pelo imperialismo cultural eurocêntrico e dentro do
solo de seus países de origem. No entanto, dada a força de pensamento
resistiram. É a persistência do negado, que permanece mesmo sendo
excluído e instala no centro da negação um lugar de resistência.
203
Referências
ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra,1995. In: FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17ªed. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1977.
ADORNO, T. W. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1967.
KUSCH, R. Obras Completas. l° a ed. Rosario: Fundación A. Ross,
2007a, Tomo I.
KUSCH, R. Obras completas. l° a ed. Rosario: Fundación A. Ross, 2007b,
Tomo II.
LIBÂNEO, J.C.; OLIVEIRA, J.F. de; TOSCHI, M.S. Educação escolar:
políticas, estrutura e organização. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2012.
NUSSBAUM. M. C., Sem fins lucrativos: porque a democracia precisa
das humanidades; tradução Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2015.
SILVA, T. T. da. A “nova” direita e as transformações na pedagogia da
política e na política da pedagogia. In: GENTILI, P. A. A.; SILVA, T. T.
da (Orgs). Neoliberalismo, qualidade total e educação. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1995. p. 9-30.
205
Aprendendo com os Povos Indígenas a Adiar o Fim
do Mundo: interculturalidade e decolonialidade a
partir de Ailton Krenak
Genivaldo de Souza SANTOS
55
Introdução
Por natureza, o presente texto é marcado pela pluralidade,
diversidade e transversalidade, ao mesmo tempo que procura manter um
centro de gravidade a saber: as considerações de um filósofo da floresta,
Ailton Krenak, provindas de uma sabedoria ancestral do militante e
escritor indígena que vem fagocitando
56
a cultura dominante e
55
Doutor e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosofia e Ciências, Unesp, Marília. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo IFSP - Campus Birigui-SP. Vice-líder do Grupo de Estudo e Pesquisa
em Educação, Ética e Sociedade (GEPEES), cadastrado no CNPq. E-mail: genivaldo@ifsp.edu.br
.
56
Cunhada pelo filósofo e antropólogo Rodolfo Kusch (2007), a noção de fagocitação inspira-se no
processo biológico da fagocitose, a qual podemos compreender como “interação dialética que ocorre
a partir do encontro entre o ocidental e o ameríndio, e todo o arcabouço cultural que cada um traz
para essa interação. Propõe um modo de equilíbrio ou reintegração do humano. Fala-nos na
dualidade de um pensar causal e outro seminal, associados à polaridade existente entre inteligência
e afetividade e de tensão entre esses dois modos de apreensão sensível do mundo [...] Ainda, a
fagocitação proporciona um encontro de transcendência e fortalece seu sentido de diálogo
intercultural, educativo e de alteridade. Kusch (1986) nos provoca a refletir sobre a própria
existência, a partir do encontro entre o ameríndio e o europeu, mundos diferentes, conviventes e
tensos, afetuosos e solidários.” (SILVEIRA, F. R., & TEIXEIRA, A. L. , 2018, p.24;25). Também
pode ser compreendido em correspondência a uma espécie de aculturação inversa que “[...] revela
a força dos elementos originários subjacentes ao nosso estar-no-mundo que podem não ser
reconhecidos formalmente ou tampouco sistematizados, mas brotam na forma como o homem
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p205-226
206
contribuindo para a ampliação de uma reflexão mestiça, intercultural e
decolonizante, presentes no seu livro Ideia para adiar o fim do mundo.
A presente reflexão foi apresentada primeiramente no grupo de
pesquisa GEPEES Grupo de Estudo e Pesquisa Educação, Ética e
sociedade / UNESP - Marília e posteriormente em eventos científicos e
agora está frutificando na forma deste texto para colaborar na primeira
coletânea que traz as reflexões do grupo de pesquisa tematizadas pela
interculturalidade e decolonialidade no campo educativo.
As reflexões que advém estão sustentadas em nossas leituras do
antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de Castro, cujo perspectivismo
ameríndio nos ajuda a ter uma outra compreensão acerca do(s) lugar(es) do
Outro culturalmente dado e do filósofo e antropólogo argentino Rodolfo
Kusch, cujo mergulho em uma América profunda nos leva à fronteira da
ontologia ocidental, matizada pelo conceito de Ser, sustento ontológico
para era tecnocientífica contemporânea.
Para além da fronteira ontológica, as pesquisas realizadas por
Kusch (1976) junto às comunidades tradicionais indígenas Maimará e
Quéchua torna possível reconhecer um eixo outro paras as
culturas/pensamentos ameríndias, fixado no conceito de Estar (sem mais),
contrastando com a ontologia ocidental vincada no Ser. Se o
perspectivismo ameríndio proposto por Viveiro de Castro (1996) permite
um reembaralhando ontológico que coloca em xeque nossa organização do
real, ao mesmo tempo nos oferece outras possibilidades de ver e
compreender (inserir-se) no real. A busca de Rodolfo Kusch pelo próprio
da cultura/pensamento americanos foi direcionada também à
problematização do real e dos modos de vê-lo/constituí-lo (cosmovisões).
contemporâneo vive, trabalha e sente nas grandes cidades. [...] Recupera a nossa condição de
simples “estar” opondo-se à busca frenética e na maioria das vezes agressiva e excludente de “ser
alguém”. (COELHO, 2016, p. 35-36)
207
Metodologicamente, se as dinâmicas hermenêuticas nos levam a
possibilidade de compreensão do real, o encontro com o rosto do Outro
nos apresenta um limite a qualquer pretensão de compreensibilidade,
assim, para além da atitude hermenêutica, uma atitude intercultural crítica
(WALSH, 2012), consoante ao limite de compreensibilidade colocado
pela alteridade, conforme Lévinas (1980), pode proporcionar recursos que
impedem a redução do Outro ao Mesmo, ao comprometerem também a
sensibilidade, expressas nos modos do contato, da proximidade, da
vulnerabilidade, e da exposição em contornos éticos.
57
Após essas preliminares cabe-nos perguntar, em um gesto que
inverte o processo colonizador, assim como faz Reinaldo Fleuri (2017), o
que podemos aprender com os povos originários em como adiar o fim do
mundo? Afinal, o que é mesmo o fim do mundo para os povos originários?
Como interpretar essa situação no contexto atual da pandemia do
COVID-19?
Ideias para adiar o fim do mundo
Para além de uma subjetividade individual, Ailton Krenak
representa também um sujeito coletivo, assim como se apresentaram seus
ancestrais, ao garantirem às futuras gerações uma consciência da
necessidade de resistência face à colonização das mentes e dos corações,
que ainda continua ocorrendo. Assim, embora nossa interlocução ocorra a
partir do que Ailton Krenak escreveu, é com um sujeito coletivo, a etnia
Krenak e a filosofia/pensamento de todos os povos originários que
procuramos estabelecer um diálogo para aprender com eles.
57
Modos da relação ética ao Outro conforme a filosofia levinasiana.
208
O militante e escritor indígena Ailton Krenak nasceu em 1953, na
região de Itabira, em Minas Gerais, na região do vale do Rio Doce, uma
região profundamente degradada pelo rompimento da barragem de
Mariana que ocorreu em 2015. Sua participação foi fundamental nas lutas
travadas nas décadas de 70 e 80 que culminou no que ficou conhecido
como “capítulo dos índios”, trecho da constituição brasileira de 1988 que
confere formalmente os direitos indígenas à cultura autóctone e à terra.
58
Para os Krenaks, que sobreviveram ao desastre do rompimento da
barragem de Mariana/MG, este foi mais um fim de mundo dos muitos
fins de do mundo que vem ocorrendo desde a chegada dos invasores
europeus. O desabamento da barragem de Mariana praticamente matou o
Rio Doce, em cujo lado esquerdo fica localizada a comunidade dos Krenak,
a morte espalhada junto à barragem chegou ao ponto da necessidade de
instalação de fios de arame que impedem o acesso ao rio pois sua água
tornou-se venenosa aos animais e humanos.
Mas como dito, esse foi mais um fim de mundo, pois com a
chegada dos invasores europeus, chegaram também as doenças que aqui
não existiam, provocando verdadeiras pandemias que chegaram a dizimar
povos indígenas inteiros e o fim dos seus mundos, como ocorre atualmente
na situação de pandemia que estamos vivenciando com a COVID-19. O
sofrimento e a dor que estamos experimentando durante a pandemia
COVID-19 pode nos ajudar a nos aproximar da dor dos milhões de
58
Dentre outras iniciativas e alianças, destacamos sua participação na fundação da Organização
Não Governamental Núcleo de Cultura Indígena, na fundação da União dos Povos Indígenas e da
Aliança dos Povos da Floresta, também protagonizou o documentário Índios no Brasil. Em 2016,
a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) concedeu a Krenak o título de Professor Doutor
Honoris Causa, um reconhecimento pela sua importância na luta pelos direitos dos povos indígenas
e pelas causas ambientais no país. Nesta mesma universidade, Krenak leciona as disciplinas Cultura
e História dos Povos Indígenas e Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais. Além das Ideias para
adiar o fim do mundo, também foram publicadas sob sua autoria O amanhã não está à venda
(2020) e A vida não é útil (2020).
209
indígenas que morreram ou que perderam seus parentes por conta das
doenças trazidas junto à invasão europeia e da violência infringida aos
povos autóctones durante a colonização.
Se as situações apresentadas acima representam verdadeiros fins de
mundo impostos aos povos indígenas desde a colonização europeia,
confirmá-los para se conformar a ele significa um fim inevitável e é
justamente a respeito dessa questão que Ailton Krenak, junto aos seus
ancestrais, vem resistindo. Para adiar o fim do mundo, seus ancestrais lhe
contaram mais uma história e sempre haverá uma outra história a ser
contada, que resista a colonização e suas manobras de silenciamento,
ocultação e subalternização do Outro, para constituir lhe inferior e assim
explorar mais e melhor.
Essa dinâmica pode ser ilustrada com o questionamento que realiza
Krenak (2019) a respeito da ideia de humanidade: “Como é que, ao longo
dos últimos dois mil ou três mil anos, nós construímos a ideia de
humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas
que fizemos, justificando o uso da violência?” (KRENAK, 2019, p. 11).
O processo de colonização produzida pelo ocidente eurocêntrico
está sustentado na premissa de que a humanidade pode ser dividida em
duas, uma esclarecida que precisava iluminar a outra parte, obscura e
atrasada, conduzindo-a para esta “luz incrível”, como diz Krenak (2019).
Para o militante, isso denota a ideia de que existe um jeito certo de estar
aqui na Terra e uma certa concepção de verdade que é exclusiva e que não
pode tolerar as concepções dos outros povos. Esta é uma questão crucial
para as teorias decoloniais, pois significa o deslocamento da cosmovisão
ocidental como “universal”, na medida em que ela traduz uma verdade
cultural - grega - dentre tantas outras possibilidades.
210
Como justificar que somos uma humanidade, problematiza
Krenak (2019), se mais de 70% estão totalmente alienadas do mínimo
exercício de ser, e continuamos, e de estar no mundo? Amontoadas em
favelas e periferias, trazidas pelo sonho da modernização, transformando-
as em mão de obra em centros urbanos. Arrancadas de seus coletivos
ancestrais, perdendo com isso seus vínculos profundos com sua memória
ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, de
modo que a insanidade é a consequência da perda desses vínculos
(KRENAK, 2019):
Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos
a humanidade [...] [que] fomos nos alienando desse organismo de que
somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra:
a Terra e a Humanidade. (KRENAK, 2019, p. 16, grifo nosso)
O que significa dizer que a Terra é uma coisa e a humanidade é
outra? Entre outras, significa uma separação daquilo que é da ordem da
Natureza, que na filosofia moderna está sustentada pelas ideias de
universalidade e necessidade, oposta do que é da ordem da Cultura, reino
da liberdade e da consciência, em que se estabelece a possibilidade de
criação de sentidos e perspectivas, exclusivamente humanas. Tendo em
vista que a natureza tem seu funcionamento fixo e mecanicamente dado,
portanto sem possibilidade de uma inteligibilidade.
A constituição e a separação do sujeito do conhecimento face ao
seu objeto já guarda uma dicotomia anterior, entre corpo x alma-mente-
consciência. É desta dicotomia primeira que são (re) produzidas as outras,
na medida em que é a partir dela que se instaura o moderno sujeito
cartesiano, tornado independente e superior face alteridade manifesta no
mundo.
211
Dessa distinção essencial, podemos concluir que a relação da
cultura humana com a natureza é a de oposição, na medida em que a
cultura humana, a partir do fato da consciência, é construída para dominar
a natureza, domesticá-la e colonizá-la, em seguida utilizá-la como
recurso/coisa/mercadoria a benefício exclusivamente das sociedades
humanas, construídas sobre as cinzas das florestas ancestrais.
A crise ecológica e ambiental, que coloca em risco a possibilidade
de vida no planeta por conta das ações de uma única espécie - a humana,
a quem Ailton Krenak chama de “humanidade”, (auto)declarada superior
e externa ao seu Outro/natureza, considera-se a única forma de vida válida,
que deve ser garantida no planeta Terra, dispensando as demais, a menos
que elas representem algum ganho financeiro.
Entretanto, o que ocorre é que ainda resistem aqueles “[...] núcleos
que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles
que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios,
nas beiras dos oceanos [...] são caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes
a sub-humanidade.” (KRENAK, 2019, p. 21) E é com elas que precisamos
aprender atualmente, com aqueles que tiveram sua existência cultural
negada, seus saberes desprezados e categorizados como não-ser pois não se
encaixam na lógica produtivista ocidental.
A denúncia de Krenak (2019) destaca o incômodo que outras
relações com a natureza provocam no neocolonialismo do capital, na
medida em que “A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda,
tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para
separar esses filhotes da terra de sua mãe” (KRENAK, 2019, p. 22).
A (re)existência dos povos originários no Brasil pode nos ensinar
acerca do fim do mundo e como continuar, mas também são testemunhas
vivas de uma resistência sustentada na expansão de suas subjetividades “[...]
212
não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. O projeto
colonizador dos séculos XVI adiante pretendeu dizimar as populações
nativas, mas ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser
diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 idiomas e
dialetos” (KRENAK, 2019, p. 31, grifo nosso).
A cultura ocidental eurocentrada se estabeleceu por meio da
negação da possibilidade de que outro ser, além do próprio homem, possua
alguma perspectiva dotada de sentido, assim apenas o homem pode
conferir sentido às coisas ao seu redor, isto é, apenas o homem é capaz de
ter uma perspectiva. Entretanto, Ailton Krenak relata que a aldeia Krenak
fica na margem esquerda do rio Doce, a direita tem uma serra. Para a etnia
Krenak aquela serra tem nome, Takukrak e personalidade. Para os povos
da floresta, além da perspectiva humana, existem muitas outras
perspectivas, dos animais de caça, dos animais de presa, dos espíritos, por
exemplo.
Como pensar esta diferença entre o pensamento ameríndio e o
ocidental acerca da constituição daquilo que chamamos de real? É possível
compreender esta diferença sem um abandono, ainda que provisório, da
perspectiva ocidental eurocentrada? Ou, no máximo, enxergamos no
Outro cultural, nas culturas indígenas, aquilo que nós mesmos trazemos
conosco, em termos culturais, e a partir deles construímos nosso
“conhecimento” do Outro? Como compreender, com nossos esquemas
ontológicos eurocêntricos, que uma montanha possa ter personalidade,
conforme nos relata Krenak (2019), ao referir-se a Takukrak, a serra que
ladeia a aldeia Krenak e que conversa com os membros da aldeia?
213
Perspectivismo ameríndio
Acerca desta questão, o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiro de
Castro (1996), por meio de uma síntese de várias pesquisas etnográfica
desenvolvidas na América do Sul, de modo especial no noroeste
amazônico, elabora o conceito de perspectivismo ameríndio
59
, que marca
uma ruptura radical com o modo como vemos e construímos a realidade.
No perspectivismo ameríndio os humanos se veem humanos, os animais
como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos,
“[...] já os animais (predadores) e os espíritos vêem os humanos como
animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vêem os
humanos como espíritos ou como animais (predadores). Em troca, os
animais e espíritos se vêem como humanos: apreendem-se como (ou se
tornam) antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou
aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a
espécie da cultura vêem seu alimento como alimento humano (os
jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como
peixes, os urubus vêem os vermes da carne podre como peixe assado
etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.)
como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como
organizado do mesmo modo que as instituições humanas (com chefes,
xamãs, festas, ritos etc.). Esse “ver como” se refere literalmente a
perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns
casos, a ênfase seja mais no aspecto categorial que sensorial do
fenômeno [...]” (VIVEIRO DE CASTRO, 1996, p. 118)
59
“Mas são as etnografias de Vilaça (1992) sobre o canibalismo wari’ e de Lima (1995) sobre a
epistemologia Juruna que trazem as contribuições diretamente afins ao presente trabalho, por
ligarem a questão dos pontos de vista não-humanos e da natureza posicional das categorias
cosmológicas ao conjunto mais amplo de manifestações de uma economia simbólica da alteridade
(Viveiros de Castro 1993)” (VIVEIRO DE CASTRO, 1996, p. 118).
214
Em outras palavras, os animais são gente, ou se veem como pessoas,
como se cada espécie escondesse uma forma interna humana,
normalmente visível aos olhos dos xamãs. Esta concepção, levada a sério e
não tomada como mais uma superstição/crença infundada e carente de
sentido, porque carente de fundamento científico/filosófico desafia nosso
modelo ontológico que repousa em uma ideia contrária, ao afirmar que o
que há de comum entre homens e animais é a condição animal e não
humana. Tendo em vista que a cultura ocidental eurocêntrica está
fundamentada na concepção de que o homem rompeu com sua
animalidade/natureza e assim começou a construir cultura propriamente
humana; antes dessa ruptura havia um puro estado de natureza, porém
ainda não humano. O humano, no homem, seria a negação da sua
animalidade/natureza, compreendido na chave do sujeito racional,
consciente e livre, independente e superior ao seu corpo/objeto.
O que ocorre é que o perspectivismo ameríndio explode essa mono
perspectiva e nos oferece outra esquematização do real, sustentada não em
um esquema binário fixo: sujeito-objeto / alma-corpo / cultura-natureza
mas na possibilidade de interação entre elas, garantindo perspectivas
múltiplas, que dependem do ponto do qual se vê, em suma, perspectivas
que não se cristalizam em substâncias mas que dependem de contextos
relacionais: de todo modo, no perspectivismo ameríndio a humanidade é
a condição comum que permite a comunicação entre os diferentes corpos
animais, humanos e por extensão, vegetais e minerais (pedras, rochas).
60
60
“A grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se
afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou
mantidos pelos humanos. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos: os animais
são ex-humanos, e não os humanos exanimais7.Em suma, “o referencial comum a todos os seres da
natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição.” (Descola
1986:120).” (VIVEIRO DE CASTRO, 1996, p. 119)
215
Com esse embaralhamento ontológico, Viveiro de Castro (1996)
não visa esvaziar o esquema ontológico ocidental eurocentrado para dizer
que ele não existe. O valor metodológico da sua síntese é o de criar
mecanismo de comparação, o que possibilita, em nosso entendimento, a
criação de um espaço intercultural crítico que possa nos conduzir a revisão
das bases nas quais nos apoiamos culturalmente e ao mesmo tempo abrir-
nos as possibilidades de diálogo com o Outro cultural, no sentido
levinasiano, posto que estrangeiro e não falante da nossa língua, motivo
que nos força uma atenção redobrada a fim de aprender com ele.
Também podemos concluir que o modo [ocidental] como vemos
o mundo não é universal e válido para todos/as e que uma diferença
fundamental está posta desde a maneira como se vê até a maneira como se
constitui o real. Uma conclusão que deveria ser bem clara para todos, de
modo especial para os docentes, pois o etnocentrismo de pendor
colonialista tem suas raízes nesses esquemas ontológicos, que até ontem,
acreditávamos universais.
O ser e o estar
Para nos acercamos do pensamento ameríndio, como que uma
alteridade que fala outra língua e tem outros hábitos e que não se reduz ao
Mesmo do pensamento eurocentrado, assumi-lo em sua diferença
estrutural talvez possa colaborar na reflexão sobre nosso lugar ao nos
abrirmos para o Outro cultural, para que possamos ter consciência das
nossas medidas, bem particulares, mas que se projetam como universais e
válidas para todos/as.
Essa diferença estrutural na constituição do pensamento
ameríndio, para o filósofo e antropólogo argentino Rodolfo Gunther
216
Kusch, está relacionada à própria estrutura de pensamento dos povos
originários. Segundo ele, o pensamento originário de Abya Yala (sinônimo
de Terra madura, Terra viva, Terra em florescimento para o povo Kuna e
que foi chamada de América pelo colonizador) é o pensamento indígena,
cujo eixo não é o conceito do Ser mas o de Estar
61
.
Aos povos indígenas importa mais que possuir objetos, enraizarem-
se no solo, na terra, manter as relações em um mundo cheio de
significados. Mais que roubar o fogo dos deuses e voltar para casa depois
de uma Odisséia de aventuras, cujo final é a vitória de uma razão astuciosa
em relação aos poderes míticos em referência a Ulisses na epopeia
homérica que consolida a força do pensamento no ocidente grego os
povos indígenas mantiveram a relação com suas divindades,
consequentemente uma relação com a ira divina e com o trágico, com o
simbólico e com o ritual. Com a colonização europeia houve o
choque/trauma entre as duas estruturas de pensamento (Europa x povos
originários) sobrepondo-se a Abya Yala o termo América, cindida
doravante entre duas lógicas: do Ser e do Estar.
A lógica do Estar é originária da América e encontra-se viva nos
povos nativos, nos subúrbios das grandes cidades e no campesinato, tendo
como cerne a valorização de um saber não-proposicional e não-intencional.
Em contraposição à lógica do Estar, a lógica do Ser estruturou o
pensamento ocidental e se plasmou na sua cultura e nas suas instituições,
representado pelo homem empreendedor e cidadão, orientado pela
técnica.
61
Em primeira mão, podemos notar um limite entre o Ser e o Estar que pode ser verificada desde
sua significação etimológica, em que, se por um lado Ser designa, entre outras coisas, essência, valor,
domínio, natureza e posse, por outro o verbo Estar aponta para o lugar, para uma situação, condição
ou modo. Filosoficamente o Ser estaria relacionado à substância/essência e o Estar ao acidente ou
qualidade, como relata Kusch” (MATUSCHKA, 1985, p. 149):
217
A estruturação destas lógicas distintas Ser e Estar está
relacionada a resposta ao que Kusch (1976) denominou de um medo
original, antropologicamente falando, face a ira divina. Uma espécie de
sentimento ancestral de perder as poucas coisas que constituem a realidade
concreta e que repousa no reconhecimento de nossa indigência humana
face às forças e poderes (extra) naturais.
Face a esta questão ancestral e primordial, duas respostas são
destacadas por Kusch (1976): i) negá-la em nome do “desenvolvimento
civilizatório”, reprimindo e transferindo tal negação para o inconsciente,
como fez o Ocidente europeu, ou ii) assumi-lo e contar com ele, em uma
tensão sempre presente, manifestada na relação do nativo com a divindade.
A primeira responde ao desafio de ser alguém, a segunda do mero estar.
A resposta do Ocidente europeu ao medo original, face à ira divina,
foi a de dominar as forças míticas por meio da razão e da técnica,
elaborando uma concepção de saber enciclopédico, sustentado na
confiança em seu caráter quantitativo e cumulativo, que se estende para a
cultura, em uma tentativa de superar este medo original através da fórmula
expressa por Kusch (1976): “ser alguém”.
Entretanto, a resposta dos povos originários de Abya Yala face ao
medo da ira divina, conforme Kusch (1976) foi outra, foi a integrar o medo
e permanecer com a relaçao, ao invés de dominá-la como faz a Ontologia
do Ser do Ocidente, rompendo a relação. Não há explicação para o Estar,
ele é vivido profundamente em solo sul-americano; traduzido como uma
espécie de saber do não saber, “[...] el de nuestro puro estar, del qual no
sabemos em qué consiste, pero que vivimos sin más”, que não está previsto na
enciclopédia. Se o saber enciclopédico, vincado na lógica do Ser, surge
como um remendo face o medo original, a lógica do Estar mantém o
vínculo com medo, aliás, de acordo com Kusch (1976, p. 20)
218
la verdadera dimensión de estar no más debe ser entendido a nível del
miedo”, pois “[...] quando hemos cometido um aparente mal y la sociedade
nos segrega, llegamos a esse punto donde tenemos consciencia de lo “poco”
que somos. Ahí ya no tenemos remédio. Ahí, em esse último fondo
realmente no sabemos qué hacer. Esse es el ámbito del saber del no saber.
Y no hay psicologia que valga, ni tampoco enciclopédia (KUSCH, 1976,
p. 20).
Um puro existir, estar aqui e agora, estar sem mais revelaria a
atitude filosófica original do pensamento de Abya Yala, estruturante na
relação dos povos originários com o real, diferente da atividade industriosa
e empreendedora do modo ocidental de ver e inserir-se no mundo, pois:
Esta estructura ciudadana de "gringo industrioso" fracasa en América
dando por fruto la realidad escindida que hemos descriptor una América
mestiza en la que el esquema ciudadano queda reñado de la cultura del
"estar" que "fagocita" latente, pasiva y vegetalmente desde el interior del
país (en posición a la capital), desde lo autóctono, desde el indio, desde la
tierra, desde el paisaje, desde el fondo irracional del continente. El concepto
de estar representa la pasividad vegetal, la modorra espiritual deL
americano, la raíz geográfica de su vida, la receptividad feminoide de su
cultura, que se atrinchera en el suburbio porteño, en la impavidez del
indio, en la abulia de la peonada que tan estereotipadamente exacerba al
inmigrante ingenioso y emprendedor.” (MATUSCHKA, 1985, p. 142)
Ao interpretar o conceito de estar proposto por Kusch (1976),
Matuschka (1985) aponta o processo de fagocitação do estar, que se
desenvolve como uma força latente, passiva e vegetal que assimila desde o
interior, desde o autóctone, desde a terra e desde a paisagem, desde um
fundo irracional do continente.
219
Outro modo de compreendermos a diferença entre o Ser e o Estar,
conforme delineia Kusch (1976) pode se dar ao compará-los a partir do
seguinte esquema mental: Para “sermos” alguém é necessário uma série de
estruturas, organicamente armadas: empresas, conceitos, instituições, etc,
por outro lado, para “estarmos” aqui e agora basta uma vinculação com a
pura vida, sentimos, mas não podemos falar a respeito ou contextualizá-la;
que se mostra e que se esconde ao mesmo tempo. Estar refere-se a [...] una
falta de armado, apenas a una pura referencia al hecho de haber nacido, sin
saber para qué, pero sintiendo uma rara solidez en esto mismo, un misterio que
tiene antiguas raíces.” (MATUSCHKA, 1985, p. 149)
62
.
Considerações Finais
Ao falar do fim do mundo e de como adiá-lo, Ailton Krenak,
apoiado na força da sua ancestralidade fala a nós, povo da mercadoria, de
uma relação que necessita de uma urgente transformação, que é a relação
entre natureza e cultura e suas implicações na vida em coletividade. Se por
um lado, a relação de oposição entre natureza e cultura, estabelecida pelo
Ocidente eurocentrado, possibilitou um avanço em termos técnicos e com
isso a criação de ambientes cada vez mais artificiais, por outro, todo esse
desenvolvimento teve um ônus e no contexto do capitalismo impõe a
necessidade do lucro.
62
Diferentemente da proteção conferida pelos armamentos do estudo e esforço, próprio da cultura
do Ser, os que se deixam meramente estar abrem-se para a possibilidade do sacrifício, mantendo
abertas as possibilidade do mistério e a relação com o medo e com a morte. Que mistério? Pergunta
Matuschka (1985, p. 149): “El misterio del "mero estar", del poder "estar" vivo o muerto, el misterio
de "estar" esta puerta, la pared, el escritorio y todo ante uno. El misterio de rozar la pregunta de un
Leibniz herético: "por qué el 'estar' y no más bien la nada?". (SANTOS, 2020, p. 91)
220
Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte
de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra [...] Criando
ambientes artificiais em que, nós, a humanidade, passamos a viver,
dependendo de kits superinteressantes para nos manter nesse local,
alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. (KRENAK,
2019, p. 20).
A relação de oposição entre natureza-cultura traz em seu bojo um
processo de distanciamento dos elementos que recordam o homem
civilizado de sua animalidade e proximidade com processos vitais os quais
não são controlados pela consciência, pensamento ou vontade. Uma
relação que está na origem da destruição das florestas e rios, poluição de
mares, terra e ar, contaminação dos alimentos por agrotóxicos, etc
Paradoxalmente, essa relação destrutiva e predadora com a
natureza, cujo impacto social é desastroso, compromete a existência do
próprio homem. Essa é uma das denúncias de Ailton Krenak, cujo teor é
um apelo ecológico a favor da natureza. Como guardiões da floresta, é com
os povos originários que temos que aprender/ensaiar uma nova relação
com a ela.
A separação e superação da natureza têm um preço alto e um efeito
na fragilização de nossos vínculos afetivos, a pontos deles parecem sem
valor. Será que não há conexão entre este afastamento em relação à
natureza e o afastamento em relação ao Outro? Esta ruptura dos vínculos,
dos laços mais profundos que nos ligam aos Outros, não estaria na base do
alastramento de doenças psíquicas que assolam os habitantes das cidades?
Questiona Krenak (2019).
Resistir ao fim do mundo é um dos objetivos da educação, ao
menos daquela que não foi convencida do fim e que ainda nutre os sonhos
e as esperanças por um mundo melhor, mais justo, menos opressor,
221
aliançada com a Terra em florescimento, enfim, com a vida. Na realidade
trata-se de uma educação aliada aos processos vitais, a fruição corporal, a
movimentação pelo mundo, que se recusa a tornar-se uma “[...]
humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar [...]”
(KRENAK, 2019, p. 27).
Nem morta e nem viva, a humanidade zumbi a qual se refere
Krenak (2019) torna-se presa fácil e garantida, que acredita e se convence
do fim do mundo pregado pelo sistema capitalista, para que desistam dos
seus próprios sonhos e cumpram a função imposta pelas grandes
corporações, no atendimento de seus interesses. Atualmente, tais
corporações exercem uma forte influência sobre a educação, a tal ponto
que conceitos como cidadania e alteridade vão sendo substituídos pela
figura do consumidor.
E nossas crianças, desde a mais tenra idade, são ensinadas a serem
clientes. Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São
adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então para que ser
cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma
maneira crítica e consciente, se você pode ser consumidor?.
(KREKANK, 2019, p. 24).
O que os ancestrais de Krenak (2019) ensinaram para ele é que
para adiar o fim do mundo é preciso poder contar mais uma história
63
, se
“[...] pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.”
63
“Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram e me alimentei delas, da
criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos. A civilização chamava aquela gente
de bárbaros e imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de torná-los em civilizados
que poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas
“pessoas coletivas”, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo”
(KRENAK, 2019, p. 28)
222
(KRENAK, 2019, p. 27). Os povos indígenas nos ensinam a resistir a toda
insanidade provocada por um pensamento que nos aliena da própria vida,
da capacidade de criar, inventar e imaginar, por isso ele diz que “Há
centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam,
viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa
humanidade” (KRENAK, 2019, p. 31).
Fazendo referência ao livro de Davi Kopenawa e do antropólogo
francês Bruce Albert, que após vinte anos de colaboração e pesquisa,
produziram o livro A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, cuja
potência mostra que apesar dos variados anúncios do fim do mundo,
começando com a chegada do invasor europeu, no século XVI, há um
conjunto de culturas e de povo que ainda são capazes de habitar uma
cosmovisão diferente, habitar um lugar nesse planeta que compartilhamos
de uma maneira tão especial, em que tudo ganha sentido. Acerca do
território Yanomami especificamente, Krenak (2019) denuncia:
Este território está sendo assolado pelo garimpo, ameaçado pela
mineração, pelas mesmas corporações perversas que já mencionei e que
não toleram esse tipo de cosmos, o tipo de capacidade imaginativa e de
existência que um povo originário como os yanomami é capaz de
produzir. (KRENAK, 2019, p. 26, grifo nosso).
Destacamos um outro alerta realizado por Krenak (2019), cujo
sentido é existencial, ao apontar a especialidade de nosso tempo em criar
ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da
experiência da vida. Na sua concepção “Isso gera uma intolerância muito
grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar
vivo, de dançar, de cantar.” (KRENAK, 2019, p. 26).
223
Retomamos Kusch (1976) quando ele diferencia as lógicas do Ser
e do Estar e suas implicações geoculturais e existenciais. Embora seja
impossível ser sem estar, a lógica do Ser, promete e busca por isso, por um
lado, projetando no futuro, no bojo de uma concepção de progresso, o
sentido do existir humano, o que implica uma enorme maquinaria social
para atender o pátio de objetos, o que leva ao abandono da experiência e
do processo, que sempre ocorrem no presente; por outro, tais aparatos
tecnológicos também buscam superar a dependência da localização
corporal nas atividades sociais, promovendo a possibilidade de uma certa
ubiquidade, que se dá em termos de interações mediadas
tecnologicamente. Assim, o aqui e a localização corporal tornam-se
irrelevantes nas interações sociais e no fazer humano.
O que aprendemos com Ailton Krenak (2019) em como adiar o
fim do mundo tem necessariamente a ver com a lógica do Estar ou de uma
combinação desta com a lógica do Ser; tem a ver com a necessidade de um
aprendizado do aqui-agora; relaciona-se com uma experiência outra do
existir, experiência da alteridade, em um sentido amplo, que abarca, mas
que não se reduz à forma humana de vida.
Nas palavras de Krenak (2019), o aprendizado do aqui-agora é o
aprendizado da inocência, pois significa voltar a aprender a gozar sem
nenhum objetivo: “Mamar sem medo, sem culpa e sem nenhum objetivo.
[...]” E continua, “[...] Nós vivemos em um mundo em que você tem de
explicar por que é que está mamando. Ele se transformou em uma fábrica
de consumir inocência [...]” (KRENAK, 2019, p. 65). Talvez uma das
lições mais difíceis e urgentes para nós, a “humanidade”.
224
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227
Aproximações entre o Pensamento de Paulo Freire e o
Pensamento Deocolonial: por uma pedagogia nativa,
interlcultural e libertadora
Marina Coimbra Casadei BARBOSA DA SILVA
64
Cláudio Roberto BROCANELLI
65
Introdução
A proposta deste texto é abordar uma outra perspectiva para se
(re)pensar a educação. Trata-se de uma crítica à educação brasileira e sul
americana, que se estruturou predominantemente em bases de tradição
europeia, iluminista e positivista. Ofertamos reflexões sobre outros modos
de pensar a realidade educativa, por meio do pensamento decolonial, que
é um movimento muito mais amplo que visa construir conceitos e teorias
próprias da América Latina, mais especificamente aqui, brasileira,
conforme nossa proposta de reflexão. O movimento decolonial é um
amplo movimento filosófico e cultural que põe em questão o paradigma
epistemológico euro-norte-americano que acabou se impondo e se tornou
hegemônico em todo o território geocultural da América Latina. Essa
64
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia
e Ciências, Unesp, Campus de Marília. E-mail: graunasilva@gmail.com
65
Doutor em Educação e Docente do Departamento de Administração e Supervisão Escolar da
Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Campus de Marília. E-mail:
claudiobrocanelli@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p227-252
228
tomada de consciência atrelada ao questionamento do eurocentrismo
tornou-se emergente desde a segunda metade do século XX, em países
colonizados da Ásia e da África e mesmo na própria Europa, com a
sensibilização de alguns pensadores que repudiavam a situação de alienação
e de dependência em que viviam os povos colonizados.
A partir dessa perspectiva, pensadores da América Latina iniciaram
uma busca pela identidade e originalidade de um pensamento próprio e
autônomo; dentre eles, podemos citar Leopoldo Zea, Salazar Bondy,
Enrique Dussel, Arturo Roig, Paulo Freire que, em um primeiro
momento, se juntaram ao Grupo de Estudos Subalternos Latino-
americanos, e posteriormente consolidados no Grupo Colonialidade/
Modernidade, cujos nomes expoentes são: Anibal Quijano, Walter
Mignolo, Fernando Coronil, Nelson Maldonado-Torres, Edgardo Langer,
Santiago Castro-Gomez, Ramón Grosfoguel. Conta com a contribuição
de Caherine Walsh e Immanuel Walerstein, norte-americanos, de Joseph
Eastermann, austríaco e Boaventura Santos, de Portugal.
Essa nova perspectiva de olhar para o mundo e para todo modo de
conhecimento, saberes, culturas e afetos, têm sido empregada na teoria e
na prática de diversos campos do conhecimento. Aqui no Brasil, já
podemos identificar algumas iniciativas teóricas e práticas da
decolonização do pensamento latino-americano retratado em ações de
pensadores e educadores.
É, portanto, de fundamental importância a participação desses
demais autores brasileiros que estão em um processo de reflexão sobre a
realidade nacional que estamos inseridos, além de outros inúmeros
estudos. Para ilustrar autores que se inspiram na decolonização como
temática para suas respectivas pesquisas, indicamos: Fernanda Bragato, no
campo do Direito, Luciana Balestrini, no campo sócio-político, Gilberto
Ferreira, no campo da Educação, José Eustáquio Romão e Manuel
229
Tavares, no campo da Filosofia, Antônio Joaquim Severino e Alonso
Bezerra de Carvalho na área da Filosofia da Educação, e muitos outros.
A educação e a colonização epistêmica
Pode-se afirmar, com essa trajetória de estudos, que uma proposta
educacional que busque ser livre das amarras de uma cultura que não é
autêntica, nativa, já pode ser considerada em conformidade com um
pensamento decolonial, por se opor à hegemonia do pensamento
epistêmico. Com isso, o que pretendemos neste texto, especificamente, é
estabelecer relações entre o pensamento de Paulo Freire e sua
metodologia de trabalho educacional e filosofia de vida e atuação e
demais autores do pensamento decolonial, com a finalidade de pensar a
educação e outras possibilidades de formação das pessoas envolvidas e toda
a sociedade.
A prevalência do saber epistêmico em detrimento das demais
dimensões da vida que marcaram a modernidade, a sociedade e a educação,
recebe ferrenhas críticas atualmente e esboça-se uma perspectiva
decolonial. Há um arsenal de reflexões sobre a problemática educacional
na América Latina e não apenas no aspecto educacional, mas abrange
também o cultural, o político, o antropológico, o filosófico, enfim,
reflexões que se desenvolveram diante da tomada de consciência da
necessidade de decolonização do pensamento. A teoria decolonial
evidencia as consequências trazidas pelo epistemicídio no bojo do processo
civilizatório e busca pensamentos outros para a superação do modelo
estranho imposto.
Temos atualmente uma crescente produção de saberes com a
perspectiva decolonial. Acreditamos que a necessidade de nos
230
reconhecermos como latino-americanos é inadiável. Não somos apenas
descendentes de europeus, africanos, norte-americanos, etc. Somos da
América Latina e temos uma cultura e um solo que estão em nós antes da
colonização, dos costumes que foram impostos, da cultura que foi
outorgada, da espirualidade que foi manipulada. Esses estudos endossam e
dão corpo para a incessante busca da construção e compreensão de uma
antropologia filosófica americana.
O epistemicídio é um termo empregado por Boaventura Souza
Santos (1997), a princípio, no seu livro Pela Mão de Alice, e também tem
sido utilizado frequentemente por autores e autoras que analisam a
influência da colonização europeia (branca) e do imperialismo capitalista
sobre os processos de produção e reprodução da vida. Entendemos por
epistemicídio a destruição dos conhecimentos, saberes e culturas não
assimilados e negados pela cultura branca/ocidental. É uma das
consequências do colonialismo instaurado pelo avanço imperialista
europeu sobre os povos da Ásia, da África e das Américas.
Por outro lado, há um movimento antropológico-filosófico que
visa resgatar aspectos culturais elementares dos povos autóctones que por
anos foram sufocados, o que refaz o percurso a fim de compreendermos e
construirmos uma identidade própria latino-americana. Para esse fim, os
estudos têm se pautado na perspectiva intercultural que reconhece a
pluralidade e a diversidade de saberes e culturas e compreende a
possibilidade e importância de uma efetiva interação e convivência entre
essa multiculturalidade, sem hierarquização ou hegemonia, e essas culturas
plurais, que passa a ser, portanto, uma interculturalidade, conforme
defende Walsh (2007).
Pensando sobre o currículo formatado para a educação brasileira,
o mesmo não apresenta uma equidade das culturas plurais que vivenciamos
no nosso país, configurando-se, portanto, como um currículo colonizador
231
que impõe o pensamento hegemônico, especialmente na Educação Básica,
na qual temos poucas possibilidades de flexibilização; tal modelo curricular
se condensa em uma perspectiva de formação passiva em grande medida
não há participação do alunado. Há falta da interculturalidade e de
integração dos saberes já advindos da história de vida social e comunitária
do aluno que tantas vezes não são considerados na prática da alfabetização
e tampouco considerados para a elaboração de atividades criativas.
Do mesmo modo, ações excludentes e colonizadoras estão
presentes nas escolas, nas salas de aula, encenando mais uma vez o quadro
já vivido de invasão de territórios, desconsiderando a vida anterior daquele
que está ali para receber uma formação, esta já predefinida por outrem,
que despreza até mesmo o diálogo. A escola deveria ser o espaço da troca
de pensamentos, saberes e reflexões, muito mais do que de recepção de
informações a serem copiadas, assimiladas e reproduzidas por todas as
pessoas de uma mesma forma.
Com a finalidade de formular uma reflexão que valorize o diálogo
e outras ações formativas participativas, buscamos relacionar e articular as
ideias de Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, com demais autores
da perspectiva decolonial, pois consideramos que uma educação formativa
é distinta de uma instrumental, conteudista e bancária. A educação
formativa é aquela que permite a participação das pessoas envolvidas,
especialmente dentro da sala de aula e em todos os espaços escolares
fomentando a formação integral e vital, não apenas preparando a pessoa
para um momento específico, mas para toda a sua vida como agente social
atuante no mundo e na comunidade na qual está inserido (a).
A partir daí, considerando a premissa de que em muitos países com
um passado colonial colonizador , como o Brasil, mantém-se o mesmo
legado colonial na esfera escolar, isso nos chama a atenção para a
necessidade de teorias e práticas didático-pedagógicas que contestem os
232
resquícios de tal dominação. Isso implica em admitir que a independência
econômica e política exige independência nos modos de pensar e de agir e,
portanto, a escola é um espaço privilegiado para a manutenção ou para a
alteração dessa lógica colonialista reinante.
Embora os estudos decoloniais tenham sido profundamente
abordados nos últimos tempos e levantado bastante polêmica, de modo
que suas teorias revelam convergências ao mesmo tempo em que geram
polissemias e discrepâncias, o objetivo aqui é articular contribuições de
teorias e pensamentos decoloniais ao campo da educação.
Paulo Freire, ainda que nunca tenha se considerado
especificamente um pensador decolonial, defendeu um movimento para a
libertação das pessoas por meio da educação; também pertencia ao grupo
referente aos estudos subalternos, uma vez que ouvia a voz do colonizado,
ou melhor, do oprimido, conforme suas próprias palavras. Portanto,
destacamos que a educação brasileira ganhou contribuições importantes de
Paulo Freire em épocas em que o projeto educativo se iniciava de forma
mais consistente e com a atuação do Estado no campo escolar, ofertando
a possibilidade de escolas para todas as pessoas, ao menos nos anos iniciais
(e até a universidade) conforme verifica-se no Manifesto dos Pioneiros da
Educação Nova de 1932, marco histórico de tais ações na educação
brasileira.
Com isso, a perspectiva de uma educação para todas as pessoas
começava a ser vislumbrada por muita gente, e já ofertava outra perspectiva
de formação escolar, acadêmica e humana. É certo que durante muito
tempo ainda, aquilo que estava reservado a pessoas abastadas ou que
tinham algum interesse em seguir carreira religiosa, continuava sendo
privilégio. Porém, aos poucos, passou a ser possível estar na escola,
chegando aos nossos dias como escola obrigatória, para todos, gratuita,
laica, pública e de qualidade.
233
Obviamente vemos que isso ainda permanece um grande desafio
no Brasil. Há problemas no sistema educacional, os quais privilegiam
alguns, excluem outros e conservam um número grande de pessoas à
margem da sociedade, por ocasião da falta de mesmas oportunidades e falta
de apoio básico. De todo modo, é fundamental a luta permanente em
busca por uma educação que leve as pessoas à dignidade de vida.
Freire, com seus pensamentos, práticas e reflexões textuais, buscou
criar uma metodologia de trabalho e estudos que possibilitasse a conquista
de novas formas de vida que não meramente aquela determinada por um
poder soberano e dominador, como algo que vem de fora e enxerta-se na
vida do que já está aí. Seu desejo sempre foi o de que as pessoas, por meio
da educação, pudessem, ao mesmo tempo em que são alfabetizadas,
alcançar a consciência de si e da sociedade em que vivem, superando os
limites, fazendo parte da sociedade e, em grande medida, escolher outra
forma de vida que não a de resignação. Vemos, em suas iniciativas, formas
de lutar contra a colonização, o que compreendemos, portanto, como
ações para decolonizar o espaço educativo.
Tais ideias, expostas acima, primam por reclamar um espaço que
seja construído desde aqui, de nossas terras, de nossos ambientes e de
nossas experiências, diferente da legitimação de uma superioridade
europeia. Um movimento contrário ao eurocentrismo, na condição de
“uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se
torna mundialmente hegemônica, colonizando e sobrepondo-se a todas as
demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos”
(QUIJANO, 2005, p. 126), mostra-se como o principal aspecto que
precisa ser desestabilizado por uma educação decolonial, uma vez que o
eurocentrismo configura, muitas vezes, uma ideologia responsável por
manter o espaço escolar preso a uma “epistemologia monocultural”,
conforme denominada por Semprini (1999).
234
Vale destacar que o Brasil ficou sob domínio colonial português,
oficialmente, do século XVI ao início do século XIX. Esse domínio aparece
nas disciplinas escolares e em toda dinâmica da educação brasileira. De Sá
(2019) realizou uma revisão historiográfica sobre as lutas educacionais dos
movimentos negros e indígenas no Brasil e aponta que foi a partir dessas
lutas que foi possível a concretização de algumas leis federais, a saber, as
leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que tornaram obrigatórios o ensino de
história, cultura e literatura indígena brasileira, africana e afro-brasileira
em toda a educação básica nacional. A busca pela decolonização
epistêmica, debatida nos estudos decoloniais, se dá a partir da exaltação
dos saberes subalternos ou das intituladas epistemologias/vozes do Sul,
nas quais, o sul representa a oposição a um norte, como referência menos
geográfica e mais metafórica, de um pensamento europeu/ocidental em
diversas áreas, como ciência, política e economia, e inclusive, educação.
Portanto, implica em pensar sobre a filosofia do conhecimento que orienta
a validação dos saberes escolares. Para Mignolo (2005, p. 668).
Hoje, a descolonização já não é um projeto de libertação das colônias,
com vista à formação de Estados-nação independentes, mas sim o
processo de descolonização epistêmica e de socialização do
conhecimento. A “diversidade epistêmica” será o horizonte para o qual
convergem o “paradigma da transição” [...], proposto por Santos, e
“um outro paradigma” que está a surgir da perspectiva de
conhecimentos e racionalidades subalternos.
O currículo monocultural de matriz colonial é equivocado diante
da realidade pluricultural que temos em nosso país; portanto, as escolas
deveriam adotar um paradigma de transição, de uma educação de viés
colonial para uma educação decolonial. Isso não significa a substituição de
um repertório escolar por outro. Falar sobre o eurocentrismo não implica
235
discutir a qualidade e a relevância dos saberes de origem europeia, porém
há de se contestar que os mesmos tendem a ser universais e mais
valorizados.
Apontamos para a emergência de uma educação que dê
possibilidades de criação de uma consciência clara a respeito de tudo o que
ocorre e é definido por saberes supostamente superiores; para essa tomada
de consciência e a consciência desse acontecimento, é o mesmo que
considerar a realização de uma alfabetização escolar ao mesmo tempo em
que ocorre a conscientização tomada de consciência de si, do outro e da
sociedade promovendo a libertação de amarras e representações presentes
no íntimo das pessoas por ocasião da formação eurocêntrica, que valoriza
apenas uma face da moeda, ou que coloca a mesma face dos dois lados da
moeda, sem que a outra se contraponha e visualize um diálogo possível
como oportunidade de mudanças. O problema da colonização é a exclusão
extrema do outro, impossibilitando o logos a dois e criando, como arma,
um monólogo que oprime e que causa resignação cega.
Para uma aproximação dessa compreensão, temos reflexões de
Paulo Freire, em suas várias obras escritas e entrevistas realizadas. Freire
deixou relevantes contribuições para a educação brasileira e um legado a
toda educação latinoamericana. Suas reflexões são recurso para se pensar a
vida marginalizada que é aparente e escancarada na América Latina; vida
tomada, vida de sofrimento, vida abandonada, cultura invadida, vida
resignada e explorada. Tudo isso, de algum modo, precisa ser superado
pelas próprias mãos humanas, quiçá, de acordo com as
crenças aqui ainda
persistentes, pelas divinas, as quais dão brilho aos olhos de povos pobres e
sofredores que almejam dias melhores, sempre. A libertação não pode ser algo
dado, mas iniciado no terreno dos próprios colonizados, em um movimento de
resistência e luta pela construção dos seus próprios métodos, teorias, modos de
viver, pensar, ser e
estar. Isso refletiria na educação como um todo, ou, por
236
sua vez, se isso ocorrer na escola, haverá, aos poucos, um reflexo na vida
das pessoas, criando outras representações coerentes com a vida dos povos
daqui.
Sob essa perspectiva, olhar para os conteúdos e para as práticas
pedagógicas de modo decolonial é contestar a suposta neutralidade
epistêmica usualmente associada à esfera escolar em seu currículo e verificar
que informações, saberes e conhecimentos que não estão presentes nas
escolas, não estão de forma proposital. A inclusão ou a exclusão de
conteúdos escolares envolve relações sociais e de poder que podem,
inclusive, hierarquizar os saberes e condicionar os currículos em uma
narrativa que uniformiza em uma única história e cultura de um país.
Portanto, deve-se travar uma luta para revisitar tudo o que se legitimou
nesses últimos quinhentos anos, proporcionando superações de
representações estranhas, inaugurando novas formas de pensamentos
arraigados, advindos das raízes da América.
Compreendemos, portanto, que o rol de conhecimentos escolares
não é apenas uma “lista” de saberes, mas é uma parte constituinte de um
complexo sistema de regulação, de modulação. Para Silva (2017, p. 194),
[...] é no currículo que o nexo entre representação e poder se realiza, se
efetiva. As imagens, as narrativas, as estórias, as concepções, as culturas
dos diferentes grupos sociais e sobre diferentes grupos sociais estão
representados no currículo de acordo com as relações de poder entre
esses grupos sociais. [...] As representações são tanto o efeito, o produto
e o resultado de relações de poder e identidades sociais quanto seus
determinantes.
237
Boaventura de Souza Santos (2007, p. 71) descreve sobre a
impossibilidade de existir ao mesmo tempo o imperial e o colonizado;
existe um abismo metafórico que descreve isso e que sintetiza pontos
fundamentais para que esse fenômeno seja compreendido:
o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. [...] A
divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade,
torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente.
Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou
compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistência é
excluído de forma radical. (SANTOS, 2007, p. 71)
No Brasil, é expressiva a necessidade de impor leis para a
introdução de um repertório representativo da pluralidade cultural no
currículo escolar. Assim, a decolonização do ensino pode também ser
entendida como a análise da “zona colonial” não mais territorial e sim
metafórica dos currículos, manuais e documentos educacionais. Aqui é
o mesmo que pensar a decolonialidade em nível de América do Sul e
transpô-la para os espaços escolares; conforme enunciado acima, são
possibilidades de superação em via de mão dupla: dos espaços macros para
o micro da sala de aula, ou da sala de aula para os espaços maiores,
nacionais e sul americanos, superando resignações construídas
historicamente.
A fim de explicitar melhor essa afirmação anterior, vemos que
Quijano (2005) desenvolveu o conceito de colonialidade relacionado
àquilo que de colonial permanece mesmo após a descolonização, àquilo
que transcende o colonialismo histórico, sendo a colonialidade o lado da
modernidade que ainda precisa ser melhor estudado e compreendido, pois
é responsável por manter as hierarquias em distintos setores sociais, para
238
além da hierarquia epistêmica, também uma hierarquia estética, que
“administra os sentidos e molda as sensibilidades ao estabelecer as normas
do belo e do sublime, do que é arte e do que não é, do que será incluído e
do que será excluído, do que será premiado e do que será ignorado”
(MIGNOLO, 2017, p. 11).
Considerando as reflexões e ações dos autores citados, verificamos
que vem aumentando o número de trabalhos que denunciam as lacunas
presentes nos manuais escolares em relação à falta de pluralidade cultural,
em nome de ênfases nos conhecimentos de matriz europeia, fruto de um
modelo de ensino herdado de um passado colonial que, por muito tempo,
manteve assegurada a educação para os colonos portugueses e seus
descendentes. Inobstante à independência de 1822, a permanência de uma
zona colonial continuou nas mais diversas esferas da vida, pois tornou-se
uma representação coletiva incrustada socialmente.
Uma proposta decolonial para a educação:
articulações com Paulo Freire
Uma perspectiva decolonial de educação implica em movimentos
simultâneos de adição e de revisão de conteúdo, não meramente e pouco
produtiva, de substituição de um referencial cultural por outro. Partindo
de uma reflexão que contraria a conservação colonial, consideramos que a
perspectiva de uma educação decolonial é congruente com alguns aspectos
do pensamento de Paulo Freire. Podemos dizer que uma pedagogia
decolonial alinha-se à concepção de pedagogia crítica de Freire,
desenvolvida a partir de 1960.
A valorização das memórias coletivas dos movimentos de
resistência e a busca de outras coordenadas epistemológicas são
239
características presentes na perspectiva decolonial e também nos trabalhos
de Freire. Não está sendo sugerido aqui, equivocadamente, uma
equivalência entre as teorias freirianas e as teorias decoloniais, pois há
críticas com relação à superação de uma realidade dominada para a
participação nas mesmas condições dos dominadores, o que recai em uma
vida igual, sem que se alcance as origens mais profundas da América, com
os ancestrais daqui condição cara à decolonialidade.
Porém, propomos um diálogo entre a teoria decolonial e a
pedagogia de Paulo Freire, levando em consideração que a educação
popular, tão defendida pelo educador, chama a atenção para as
potencialidades do saber local e das vivências dos subalternos, aos quais ele
se referia por oprimidos. A vida à margem carece de sair dessa posição de
forma consciente, participando dos bens culturais ligados à escola e
tomando consciência da situação de resignação que pode e deve ser
superada em todos os ambientes, macros, mesos e micros.
A Pedagogia do Oprimido, de Freire (1961), levanta as questões da
realidade brasileira, do povo que se encontra no silenciamento, na
opressão, de escanteio na sociedade, e também na sala de aula, como lugar
de reprodução de poder e dominação. Seja qual for a modalidade ou o
ambiente, todo oprimido não é visto porque é colocado constantemente
em condição de passividade e conservado inconsciente das explorações
sofridas.
De todo modo, a educação pode vir a ser uma prática da liberdade,
como Freire (1967) deixou evidente. Nessa práxis tomada de consciência
que se opera nos homens enquanto eles agem no mundo , as relações vão
sendo modificadas e vai ocorrendo a libertação na forma de tomada de
consciência da sua condição de oprimido, explorado e, consequentemente,
a sua ação muda em relação ao mundo e o mundo muda com sua ação.
240
Na Carta aos Professores
66
, Freire promove nova leitura do mundo,
outra forma de ver as condições de vida e a necessária busca de uma
consciência libertadora de todos os sujeitos, alertando que todos estão
inseridos em uma condição de assujeitados a um sistema excludente.
Fundamentalmente, ele afirma na Carta a importância das ações do
professorado, ensinando tudo e somente o que sabe verdadeiramente, bem
como o valor da palavra como uma fonte que opera nos homens e
mulheres, uma ação que modifica tudo o que está à sua frente, pois há um
movimento ofertado pela leitura da palavra que promove nova leitura do
mundo, esta acrescentada à leitura anterior que fazia, ou seja, é riqueza de
conhecimentos e de visão que se desenvolve em cada um que se dispõe a
essa tarefa de aprender e ensinar.
Assim, justifica-se uma afirmação que dê condições de pensar e
educar para a libertação; isso implica na libertação de todos, sem exceção.
É o mesmo que pensar em uma vida mais justa, considerando todas as
pessoas como próximas e iguais em todos os aspectos, mantendo os
mesmos direitos e vivenciando as mesmas experiências de vida; caso
consideremos impossível uma situação de igualdade para todos, ao menos
que todos sejam respeitados e tenham condições dignas de existência e de
vida.
Quando Freire (1978) escreveu Cartas a Guiné-Bissau: Registros de
uma Experiência em Processo, ele demarcou um trabalho de construção de
modelos e de políticas de alfabetização, principalmente de adultos, naquele
país, após um momento de independência, ocorrido nos anos 1976 a
1977. Por isso, podemos afirmar que o tema da colonização está presente
66
Esta carta foi retirada do livro Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar (Editora Olho
D'Água, 10ª ed., p. 27-38) no qual Paulo Freire dialoga sobre questões da construção de uma escola
democrática e popular. Escreve especialmente aos professores, convocando-os ao engajamento nesta
mesma luta.
241
de modo explícito e muito usado nos textos de Freire. O autor enfatiza o
desafio deixado pela herança colonial no sistema geral do ensino do país,
haja vista o objetivo de “desafricanização” e a educação antidemocrática
que marcaram o regime (FREIRE, 1978).
Para a superação dessa situação, Freire propõe promover uma nova
prática educativa, visando uma transformação radical, pois o colonialismo
como uma ideologia, não poderia ser vencido por meio de escolhas
“neutras”. Para Freire, aquele momento histórico não poderia ser superado
pelo caminho da neutralidade, e sim com militantes engajados na
construção de uma outra realidade para o país.
Na ocasião em que Freire relatou as ações desenvolvidas no país,
ele referenciou aos pensamentos de Frantz Fanon e Albert Memmi em um
ponto, e também mencionou Aristides Pereira e Amílcar Cabral em outro
ponto, para reafirmar a necessidade de um movimento de decolonização
do pensamento, de decolonização das mentes (nas palavras de Pereira) e de
africanização das mentalidades (nas palavras de Cabral), conforme Freire,
1978. Consideramos que são ações que tocam em situações e temas
próximos às raízes de nossas origens como povo, ainda que haja, para trás
disso ainda, os povos originários destas terras, os quais são constantemente
esquecidos no tempo histórico brasileiro.
Esses esforços para se estabelecer outra realidade, chamada por
Freire de “esforço interestrutural” na educação, deve ser empregada em
oposição ao pensamento hegemônico. Portanto, o questionamento das
narrativas únicas é imprescindível. Sobre isso, Freire (1978, p. 20) diz que:
Neste sentido, a reformulação dos programas de Geografia, de História
e de Língua Portuguesa, ao lado da substituição dos textos de leitura,
carregados de ideologia colonialista, era um imperativo. Fazia-se
necessário que os estudantes guineenses estudassem, prioritariamente,
242
sua geografia e não a de Portugal, que estudassem seus braços de mar,
seu clima e não o Rio Tejo. Era preciso que os estudantes guineenses
estudassem, prioritariamente, sua história, a história de resistência de
seu povo ao invasor, a da luta por sua libertação que lhe devolveu o
direito de fazer sua história, e não a história dos reis de Portugal e das
intrigas da Corte. (FREIRE, 1978. p. 20)
Apesar de o contexto ao qual Freire se refere ser bastante específico,
a persistência de uma ideologia colonial nos currículos brasileiros permite
a reflexão de alguns pontos sobre a educação no nosso território. É sabido
que não se trata mais de uma busca por uma “reconstrução do nacional”,
como Freire mostrou necessário ser feito em Guiné-Bissau. Porém,
passados praticamente 220 anos da data oficial da Independência do Brasil,
a narrativa colonial é ainda predominante nas escolas, substanciada em
comportamentos autoritários.
Oportunamente, citamos aqui bell hooks
67
(2017) ativista,
professora e escritora norte-americana que teve influências do pensamento
de Paulo Freire que faz uma ressalva a respeito dos aspectos de
decolonização simbólica e também a insistência de Freire na ideia de
conscientização. Freire sempre lembra os seus leitores de que a
conscientização nunca é um fim em si mesmo, mas é sempre uma medida
em que se soma a uma práxis significativa, ou seja, é necessário saber que
mudanças de atitudes e aqui devemos evidenciar a referência a mudanças
de práticas educativas configuram-se em um importante estágio inicial
de transformação. O começo, e não o fim, de um processo político
decolonizador, que se dá de acordo com a formação de um povo movido
67
A autora prefere seu nome grafado em letras minúsculas. A justificativa é da própria autora, pois
ela considera que o mais importante é a substância e não quem ela é. Para ela, nomes, títulos, nada
disso tem tanto valor quanto as ideias.
243
pela tomada de consciência instigada por ações novas, legítimas e originais,
nascidas de um terreno próximo, seu, do aqui e do saber em suas raízes
mais profundas.
Consideramos longo o caminho para se chegar a escolhas e a
práticas didático-pedagógicas que rompam com a hierarquia de culturas
impostas pelo colonialismo e perduram camufladas pela colonialidade na
esfera escolar. Esse caminho decolonial não é linear, mas é recortado por
relações de poder; e a escola e o currículo, não podem estar alheios a seus
respectivos contextos sócio-históricos.
O currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em
torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por
meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política
educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os
dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua
verdade. (SILVA, 2001, p. 11).
Falar sobre opções decoloniais para o contexto escolar está longe
de concordar com uma mínima e insatisfatória concessão de espaço nos
currículos, pois preconizam uma mudança substancial, que desconstrói o
currículo turístico, que é caracterizado pela associação das minorias a um
lugar e papel marginais, estereotipado de rememoração e esporádico;
exemplo disso são as poucas celebrações pontuais e superficiais do “dia do
índio”, sem dar espaço para uma articulação do saber e da autoria indígena
à totalidade do calendário escolar. Outro exemplo, é que em lugar da
hegemonia das narrativas europeias sobre escravidão, houvesse a
articulação de histórias de resistência negra. Ao menos, havendo algumas
ações nesse mesmo sentido de valorização dos povos dominados, poderia
244
resultar em um reconhecimento de si e como busca de uma ancestralidade
esquecida.
Portanto, é preciso iniciar a decolonização da educação brasileira o
quanto antes, aliás, parece-nos que foi iniciado, considerando os vários
escritos vinculados a esse pensamento de resistência, resgate e volta às
raízes, assim como a existência de autores bastante preocupados em
registrar a importância dos povos originários do Sul Mundial; o desejo é
causar uma virada no mapa mundi, não no sentido do sul metafórico vir a
ser o norte, ou vice-versa, mas no sentido da horizontalidade dos valores,
das origens, da cultura.
Quando se fala em educação, não significa apenas a educação
instrumentalizada do ensino e a transmissão de saberes, dos espaços
escolarizados. Como afirmou Paulo Freire, a pedagogia é compreendida
como uma metodologia essencial dentro e para as buscas sociais, políticas,
ontológicas e epistêmicas da libertação; se a pedagogia é um modo de
conduzir, então é sumamente importante que se conduza de outros modos
que não os já cristalizados de forma impositiva e fora da realidade própria.
As lutas sociais também são cenários pedagógicos onde os
participantes exercitam suas pedagogias de aprendizagem,
desaprendizagem, reaprendizagem, reflexão e ação. É preciso reconhecer
que as ações dirigidas para mudar a ordem do poder colonial, muitas vezes,
começam na identificação e no reconhecimento de um problema e na
formação de oposição à condição de dominação e opressão. A prática
educativa como um meio para a intervenção com o objetivo de derrubar a
situação atual de colonialidade é já uma educação decolonial.
Walsh (2013) inicia seu livro, Pedagogías decoloniales: prácticas
insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir, mostrando a luta para uma
pedagogia decolonial. O interesse da autora é para com as práticas que
245
abrem outros caminhos e condições de pensamento, levantando e
construindo práticas pedagógicas que fazem questionar e desafiar o
fundamento lógico e único da modernidade ocidental e o poder colonial
ainda presente, com a finalidade de desligar-se dele.
A pedagogia decolonial é composta por pedagogias que encorajam
o pensamento a partir de genealogias, racionalidades, conhecimento de
diferentes práticas e sistemas civilizacionais e vivos. Pedagogias que
encorajam possibilidades de ser, sentir, existir, fazer, pensar, olhar e ouvir,
diferentes formas de conhecer, voltadas para processos e projetos de
caráter, horizonte e intenção decolonial.
Para que essa proposta de educação possa se efetivar, é necessário
uma realização coletiva, que levante reflexões e ensinamentos sobre a
própria situação/condição colonial e o projeto decolonial inacabado,
enquanto chama a atenção para o político, epistêmico, existencial que luta
para transformar os padrões de poder e princípios sobre os quais o
conhecimento, a humanidade e a própria existência foram circunscritas.
Pedagogias, nesse sentido, são práticas, estratégias e metodologias que estão
entrelaçadas e construídas na resistência, na oposição, na insurgência e na
afirmação de reexistência e re-humanização.
Essa compreensão de pedagogia está aliada com entendimentos da
chamada pedagogia crítica, iniciada por Freire na década de 1960 e
adotada por diversos educadores populares e intelectuais-ativistas em todo
o mundo até a década de 1990, quando começou seu declínio antes do
surgimento do projeto neoliberal e, como consequência disso, na América
Latina como um todo, houve declínio de projetos de posição política de
esquerda e, assim, aumentou o conservadorismo nas universidades,
incluindo as ciências sociais e humanas e a prevalência da hegemonia de
raiz europeia e norte-americana na instituição educacional.
246
O trabalho de Walsh (2013) se propõe a perguntar o que implica
pensar o decolonial pedagogicamente e o pedagógico decolonialmente e
como com quais propósitos e perspectivas seu caminho está sendo
traçado. Com isso, nossa intenção é inserir tal provocação nos ambientes
escolares e em outros espaços educativos que permitam a ascensão da
cultura arraigada como ponto de partida e resgate de origens.
Freire conferiu uma estrutura de base para se pensar em uma
pedagogia política, iniciada nos chamados Círculos de Cultura e uma
aprendizagem que nasce nos/dos termos próximos e conhecidos pela gente
que está aí, no seu lugar original. Para o autor, o fazer político-pedagógico
é indissociável do pedagógico-político, ou seja, as ações políticas que
envolvem a organização de grupos e classes populares devem levar a uma
intervenção para a reinvenção da sociedade.
O autor defende que a intervenção é oposta à adaptação; portanto,
acomodar é simplesmente se adaptar a uma realidade sem questioná-la. A
intervenção, por sua vez, implica necessariamente que se conheça e se
assuma o caráter político. Nas palavras de Freire (2003), ele afirma que é
substancialmente político e apenas adjetivamente pedagógico, o que
implica em dizer que o ato de educar e educar-se são atos políticos. Não
há prática social mais política do que a prática educacional. Na verdade, a
educação pode esconder a realidade da dominação e da alienação, ou pode
fazer o contrário, denunciá-los, anunciar outros caminhos, tornando-se
uma ferramenta emancipatória. (FREIRE, 2003).
Podemos dizer que a preocupação central de Freire estava focada
nas condições existenciais e vividas pelas classes pobres e excluídas, ou seja,
com os oprimidos e marginalizados e com a ordem injusta que engendra a
violência dos opressores e que desumaniza os oprimidos. Portanto, foi a
problemática da opressão, dominação, marginalização e subordinação
internalizada e estrutural-institucional que levou Freire ao
247
desenvolvimento de sua posição crítica à educação. O projeto de Freire era,
primordialmente, traçar percursos metodológicos e análises destinadas a
reconhecer esta realidade/condição e para a conscientização, politização,
libertação e transformação humana.
Em Pedagogia da Indignação, Freire (2000) escreve sobre os
oprimidos e a consciência da classe oprimida, para a consciência do
homem e da mulher oprimidos, da humanização e da desumanização e
para a relação opressor-oprimido, colonizador-colonizado, colonialismo e
(não) existência; além disso, Freire também dá atenção ao problema do
projeto neoliberal. Em uma autocrítica de Freire, ele demonstra a práxis
crítica, não como algo fixo, identificável e específico, mas como uma
prática contínua e um processo de reflexão, ação, reflexão.
Em meio a tais discussões, vemos o multiculturalismo como uma
evidência política social, mas que nas sociedades contemporâneas
neoliberais adquirem um caráter meramente descritivo, legitimador do
monoculturalismo, da cultura e ideologia das classes dominantes, que, por
meio da globalização hegemônica, dissemina a ideologia capitalista de
obtenção de lucro a qualquer custo, o que impede uma visão multicultural
emancipatória. É notável que o termo “multiculturalismo” adquiriu
diversas concepções no meio acadêmico.
Estabelecemos neste escrito que o multiculturalismo aqui
defendido é aquele que pressupõe a igualdade entre os seres humanos, em
que nenhuma cultura se sobrepõe a outra; ao contrário, todas devem
harmoniosamente conviver e manifestar-se nas suas diferenças, garantindo
a identidade própria de cada cultura, sua diversidade cultural e o
reconhecimento das minorias. O multiculturalismo aqui adotado é o
crítico, advindo de movimentos e lutas sociais e de representações de
gênero, raça e classe.
248
Walsh (2007) alerta e estamos de acordo com sua postura e
reflexão que muitas políticas educacionais fazem uso dos termos
multiculturalismo e interculturalidade de maneira agregadora e submissa
ao padrão epistêmico colonial, mantendo a hegemonia europeia. A autora
propõe o entendimento da interculturalidade crítica como fundamento de
uma pedagogia decolonial:
A interculturalidade crítica (...) é uma construção de e a partir das
pessoas que sofreram uma experiência histórica de submissão e
subalternização. Uma proposta e um projeto político que também
poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas que também
buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à
racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social
como pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes.
Pensada desta maneira, a interculturalidade crítica não é um processo
ou projeto étnico, nem um projeto da diferença em si (...), é um projeto
de existência, de vida (WALSH, 2007, p. 08).
Portanto, não se pode reduzir o termo interculturalidade ao
modismo que denota o contato entre o ocidente e as demais civilizações.
O termo interculturalidade representa uma concepção contrária à
geopolítica hegemônica monorracial e monocultural do conhecimento, e
impele à transformação e ao enfrentamento das estruturas que praticam e
estabelecem a lógica epistêmica eurocêntrica, promovendo, assim, a
manutenção da colonialidade do poder.
249
Considerações Finais
As diferenças de conceitos e a falta de compreensão estão presentes
em nosso cotidiano, dificultando o entendimento do funcionamento das
relações humanas, como uma marca em nossos povos daqui; há, no
homem sul americano e em qualquer pessoa que tenha vivido por muito
tempo em comportamento de resignação, o medo de ser inferior, pois já
foi catalogada como inferior toda a América do Sul, seja nos mapas, seja
no ser humano, seja em sua cultura. Isso cria no ser daqui o panorama de
um superior como o útil e o inferior como o inútil, assimilando,
processualmente, uma postura resignada.
Portanto, superar o medo da história pode ser o primeiro passo
para a superação de toda forma de vida inferiorizada; há aqui uma história
acidentada, não linear, com grandes diferenças, por exemplo, entre campo
e cidade, o que já define rico e pobre. Os analfabetos, no segundo grupo
citado comumente pobres , não fazem parte da história. Foi construída
a história a partir de fatos e coisas, desprezando o homem, sua
humanização ou hominização, como diria Freire; não se narra com vigor e
clareza a história do homem daqui.
A história divulgada trouxe personagens criados como superiores,
desfazendo-se de pessoas que aqui se constituíram até algum certo
momento. Essas pessoas morreram, ou melhor, foram aniquiladas e
precisam ser resgatadas de seu poço interior, de algum modo que, ao
menos, haja lugar e tempo para a sua dignidade.
Diante dessas reflexões, nosso desejo é construir um pensamento
que valorize o outro não reconhecido e que dê razões para novas reflexões
e possibilidades na educação, lócus primordial de vida digna a todos, e nos
diversos lugares em que tais reflexões chegarem. É sempre oportuno um
250
pensamento que instigue novas ações e novos comportamentos como uma
postura ética situada na sociedade em que estamos todos inseridos, não
esquecendo-se da realidade anterior e dos povos originários.
A fim de ilustrar situações aqui destacadas, concluímos o texto
recordando uma fala de Ariano Suassuna em sua Aula Espetáculo no
Tribunal Superior do Trabalho
68
, onde ele afirma: ‘há um Brasil Oficial e
um Brasil Real’. O Brasil Oficial é dos privilegiados, lugar onde estão todas
as pessoas bem de vida, especialmente os que estão à frente, governando e
todos os demais bem abastados. O Brasil Real é o povo, que sofre a cada
dia com muitos males, dificuldades e, impositivamente, é feito resignado
de modo que sua voz não tenha força, nem peso, nem som, nem lugar na
história.
Por outro lado, em outra fala de Suassuna que nos dá uma função
social e uma missão diante dos desafios atuais, temos: ‘O escritor procura
o que tem de verdade por trás da aparência’. Essa pode ser a maravilha que
ainda nos resta como força que resiste, escrevendo, registrando e ensinando
mudanças pelas leituras novas, oportunizando outras leituras do mundo.
Referências
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FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. Paz e Terra. Rio de
Janeiro, 1967.
FREIRE, P. Cartas a Guiné-Bissau: Registro de uma experiência em
processo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
68
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8ieVa2tVPac. Acesso em 15 abr 2021.
251
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252
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WALSH, C. (Ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de
resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-
Yala, 2013.
253
Um Currículo Decolonial ou a Decolonialidade no
Currículo: uma análise preliminar
Eliacir Neves FRANÇA
69
Zuleika Aparecida Claro PIASSA
70
Introdução
Uma discussão acerca do currículo escolar implica, a nosso ver, em
demarcar teórica e politicamente a perspectiva que assumimos. Destarte,
para a discussão que propomos neste texto, a chave de leitura para nosso
olhar e análise será a perspectiva teórica do pensamento decolonial
71
, mais
especificamente as categorias da colonialidade do poder elaborada pelo
sociólogo peruano Anibal Quijano e a colonialidade do saber na
69
Líder do Grupo de Pesquisa “Quo Vadis? Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas
Educacional”. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Educação, Ética e Sociedade (GEPPES) da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, do Laboratório de Políticas Públicas e
Planejamento Educacional da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Secretária Geral da Sociedade Brasileira de Educação Comparada (SBEC). Editora
da Revista Brasileira de Educação Comparada (RBEC). Docente do Departamento de Educação
da Universidade Estadual de Londrina (UEL)/Paraná/Brasil. E-mail: eliacir@uel.br.
70
Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Filosofia
e Ciências, Unesp, Campus de Marília. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “Quo Vadis? Grupo de
Estudos e Pesquisas em Políticas Educacional”; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Educação, Ética
e Sociedade (GEPPES) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Docente do
Departamento de Educação e Coordenadora do Colegiado do curso de Pedagogia da Universidade
Estadual de Londrina (UEL)/Paraná/Brasil. E-mail: zuleikapiassa@uel.br.
71
Adotamos aqui a perspectiva elaborada por “Catharine Walsh como manera de distinguir entre
la propuesta de-colonial del proyecto modernidad/colonialidad, por un lado, del concepto de
«descolonización» en el uso que se le dio durante la Guerra Fría, y, por otro, de la variedad de usos
del concepto de «post-colonialidad»” (MIGNOLO, 2008, p. 246).
h
ttps://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p253-272
254
perspectiva de Walter Mignolo. Tal escolha se sustenta no fato do processo
da colonização ainda não ter sido rompido em nosso país. E por que
advogamos isso? Fundamentalmente porque o discurso eurocêntrico se faz
hegemônico no currículo oficial ainda hoje, na medida em que apresenta
os conteúdos com base em uma chave de leitura de mundo
moderno/colonial/racializado ancorado no padrão de poder colonial
moderno: a classificação social, a distribuição do trabalho, as relações de
gênero e as relações intersubjetivas. (QUIJANO, 2014)
Advogamos aqui a favor da desobediência epistêmica como base
para a elaboração de uma proposta de currículo escolar
72
. Não temos a
ilusão de vermos a implantação de uma política curricular nestes moldes a
curto e médio prazo, afinal lá se foram mais de cinco séculos de trabalho
escolar pautados na perspectiva colonial, calcados nos valores dos
colonizadores travestidos de instrumento de libertação, de autonomização
e de formação para o exercício da cidadania e para o trabalho.
Estamos convencidas de que, a partir do pensamento crítico e
analítico, podemos construir espaços de esperança no mundo, na
contramão daquele forjado pelo projeto civilizatório do norte global
chamado capitalismo.
A abordagem teórica para a elaboração de um currículo com
perspectiva decolonial não tem um autor de referência, uma origem
comum. O que há são as vivências cotidianas de homens e mulheres que
trazem no corpo, no olhar, na alma as marcas da violência do colonizador
materializadas no desrespeito, no abuso emocional e material, no racismo,
72
A proposta deste capítulo se originou dos estudos desenvolvidos no Grupo de Estudos e Pesquisa
em Educação, Ética e Sociedade (GEPPES) e no Grupo de Pesquisa Quo Vadis?. A partir dos
estudos e debates em ambos os espaços, a problemática de pensar um “currículo outro” se
apresentou para nós.
255
na misoginia e na violência praticados pelos próprios colonos em nome
dos valores e conteúdos de um projeto civilizatório que não lhes pertence.
No limite deste texto nos propomos a problematizar a questão da
construção de um currículo decolonial que aqui nominaremos currículo
outro
73
. Nossa intenção é oferecer subsídios para que o silenciamento
próprio do currículo oficial seja rompido, senão, no mínimo percebido
pelos sujeitos intra e extramuros da escola. Entendemos que o processo de
rompimento do silêncio historicamente produzido pode ser possível na
medida em que os sujeitos dominados/subalternizados passem a interrogar
as teorias educacionais, bem como os saberes historicamente acumulados
pela humanidade transmitidos pela via do currículo.
Estamos convencidas que, uma vez demonstrado que
permanecemos colonizados, entre muitos motivos porque a declaração de
independência do Brasil e a proclamação da República foram atos dos
colonizadores no caso da primeira e dos intelectuais colonizados no
caso da segunda será possível iniciarmos o processo de rompimento com
o colonialismo e, então poderá adentrar às salas de aula um “currículo
outro”.
O currículo oficial é um espaço constantemente contestado e traz
em si o resultado de uma disputa de forças entre grupos de diferentes
interesses políticos e econômicos, que organizam e desorganizam um povo.
A decisão de estabelecer os saberes de um grupo como o mais legítimo,
como oficial, enquanto os saberes de outros grupos são abordados de forma
marginal, com abrangência apenas local ou mesmo com um valor abaixo
daqueles, demonstra algo de extrema importância sobre quem detém e
deseja manter o poder em uma determinada sociedade.
73
A ideia de “currículo outro” que propomos aqui se sustenta na discussão que Walter Mignolo faz
na obra Histórias locais/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento
fronterizo. Ver MIGNOLO, 2003.
256
Apple (2000) explica que, ao se eleger uma forma cultural como
sendo legítima, estabelece-se um sistema de predisposições subjetivas que
tendem a reproduzir tal forma cultural. “Através de sua incorporação ao
currículo centralizado oficial cria, então, uma situação na qual os sinais que
definem o “gosto” se tornam sinais que definem as pessoas” (p. 55). Da
mesma forma Quijano acentua que:
[...] de la misma manera, no obstante que el colonialismo político fue
eliminado, la relación entre la cultura europea, llamada también
‘occidental’, y las otras, siguió siendo una relación de dominación
colonial. No se trata solamente de una subordinación de las otras
culturas respecto de la europea, en una relación exterior. Se trata de
una colonización de las otras culturas, aunque sin duda en diferente
intensidad y profundidad según los casos. Consiste, en primer término,
en una colonización del imaginario de los dominados. Es decir, actúa
en la interioridad de ese imaginario en una medida es parte de él.
(QUIJANO, 1992, p. 12)
Historicamente, a sociedade ocidental proclamou os saberes e os
conhecimentos acumulados pela burguesia europeia, de cunho liberal,
como sendo a base da cultura de sua população (APPLE, 2000). Tal
pressuposto ancorou a conquista do Atlântico e a colonização da América,
justificando as atividades dos colonizadores europeus como missionários a
serviço do “bem” desses povos considerados selvagens, contrapondo-os ao
colonizador “civilizado”.
E foi a partir desta cultura que muitas das atrocidades vividas por
alguns povos africanos, asiáticos e latino-americanos foram, por muitos
séculos, legitimadas, aceitas e naturalizadas, como foi o caso da dizimação
completa de alguns povos nativos da latino-américa, a escravização de
povos africanos, além de todo o sofrimento que lhes fora imposto.
257
No se ha demostrado suficientemente quizá que el colonialismo no se
contenta con imponer su ley al presente y al futuro del país dominado.
El colonialismo no se contenta con apretar al Pueblo entre sus redes,
con vaciar el cerebro colonizado de toda forma y de todo contenido.
Por una especie de perversión de la lógica, se orienta hacia el pasado
del pueblo oprimido, lo distorsiona, lo desfigura, lo aniquila [...].
(FANON, 2000, p. 79)
Por séculos, a educação proclamada como ideal, estudada e
apreciada pelos sistemas educacionais oficiais formais, que se constituíram
nos países latino americanos, foi a educação denominada tradicional liberal
burguesa. O ideal de homem, advindo da obra de autores como Rousseau,
Kant, Pestalozzi, Herbart, ícones da pedagogia moderna, por séculos
passaram incólumes à crítica pedagógica mais avançada. No máximo,
encontramos um posicionamento contrário à metodologia proposta por
tais projetos pedagógicos, como foi o caso do pragmatista John Dewey,
nos Estados Unidos nas décadas de 1920 e 1930. Dewey criticava o que
ele denominou de “velha escola”, asseverando que a frieza, a disciplina e o
excesso de racionalismo presentes neste modelo curricular não contribuía
para a formação de um cidadão predisposto à democracia, tão pouco o
levaria à emancipação, à liberdade e à auto realização tão almejada por essas
teorias. Veja-se, que mesmo um modelo curricular progressista como o
cunhado por Dewey estabelece uma visão ideal e universal de homem,
pautada em uma concepção metafísica construída a partir de matrizes
epistemológicas europeias.
No século XX, o avanço científico e tecnológico levou a
humanidade a um nível de progresso jamais visto em tão pouco tempo.
Avançamos mais em um século que nos últimos dez anteriores a ele, porém
esse progresso não se estendeu a todos os povos e não se deu na mesma
proporção no âmbito da subjetividade dos indivíduos. Ao contrário, ele foi
258
fruto da ação exploratória e predatória de um povo sobre outro e de seus
recursos naturais, a partir da criação de toda uma estrutura política e social
que subalternizou estes povos e teve na educação, principalmente a escolar,
sua principal aliada.
Este processo gerou efeitos tais como as grandes guerras, bolsões de
pobreza em vários cantos do planeta, injustiças de toda ordem, uma vez
que toda forma de existência humana que fugisse ao modelo ideal,
proclamado pelos colonizadores, homem, hetero, branco, cristão e
abastado, era considerado como indigno de qualquer forma de felicidade.
Por tudo isso e por suas próprias inconsistências, a cultura europeia entrou
em crise, sendo trazida para o centro da crítica da filosofia e das ciências
humanas e sociais. Era preciso repensar todo o caminho histórico
construído pela humanidade e rever suas certezas ou verdades.
Os avanços dos estudos antropológico, que evidenciaram o valor
das diferentes culturas e desnudaram as intenções colonizadoras europeias,
bem como o processo de globalização, que possibilitou o intercâmbio entre
pesquisadores e movimentos sociais identitários de todos o mundo,
engendraram novas epistemologias, forjadas nos mais diferentes solos do
planeta e passaram a ter influência nos debates do campo do currículo.
Os desafios que se colocam para nós, que nos apresentamos
comprometidos com a viabilização de uma sociedade em que se tenha
como hegemônica a diversidade como projeto universal e não como um
“novo universal abstrato” são: a) quais mecanismos lançaremos mão para
a construção e consolidação deste “currículo outro”? e, b) como realizar
uma necessária reflexão acerca das possibilidades de inserção de elementos
dos postulados decoloniais como reverso da modernidade para a
elaboração de propostas curriculares capazes de oferecer condições de
formação crítica, cuja base é uma cultura latino-americana, seja em
perspectiva individual ou coletiva.
259
Mister pontuar que, em um primeiro momento esta proposta pode
parecer utópica, todavia, sem que busquemos pensar para além das
matrizes teóricas europeias hegemônicas não há que se falar em formação
crítica latino-americana, tampouco no rompimento com o silenciamento
imposto pelo processo de colonização.
Organizamos o texto em dois segmentos: em um primeiro
momento situamos a perspectiva teórica decolonial de poder, de saber e de
ser como condutores de nossos pensamentos. Em um segundo momento,
apresentamos reflexões sobre as possibilidades de inserir tais estudos, e a
ética que ele coteja, no currículo escolar, com a proposta de uma formação
crítica de matriz latino-americana.
A colonialidade do poder e do saber:
decifra-me ou permanecerás sendo devorado
As categorias de colonialidade do poder e do saber se constituem
em elementos de grande envergadura para a discussão a que nos propomos
aqui. A primeira foi pensada pelo sociólogo peruano Anibal Quijano no
final da década de 1980 e a segunda decorre desta, tendo sido desenvolvida
pelo semiólogo argentino Walter Mignolo na década de 1990.
De acordo com Quijano (1992) o conceito de colonialidade do
poder se assenta na crítica às relações de colonialidade presentes nas
dimensões econômica e política da sociedade que ainda se mantém
hegemônicas. Objetivamente falando, a colonialidade do poder denuncia
a continuidade das formas de dominação mantidas após o processo de
independência das colônias nas Américas Central e do Sul, África e Ásia e,
também, a manutenção dos processos de colonização, agora, impostos
pelos organismos internacionais e multilaterais no âmbito do
260
sistema/mundo capitalista moderno e contemporâneo, materializados no
discurso veiculado pelos meios de comunicação, nas redes sociais, nas
políticas públicas e no currículo oficial, por exemplo.
Outra questão importante que devemos atentar é a dimensão
emocional da colonização. Veja que
[...] a colonização é fundada na psicologia; que existem no mundo
grupos de homens atingidos, não se sabe como, por um complexo que
deve ser chamado complexo de dependência, que esses grupos são
psicologicamente feitos para serem dependentes; que eles precisam da
dependência, que eles suplicam por ela, exigem, reivindicam; que este
é o caso da maioria dos povos colonizados [...]. Embelezados com o
existencialismo, os resultados são surpreendentes; os lugares comuns
mais banais são reformulados e reformados; os preconceitos mais
absurdos, explicados e legitimados; e, magicamente, os gatos se tornam
lebres (CÉSAIRE, 2020, p. 55).
Para o projeto de construção do currículo outro, a colonialidade do
poder se apresenta como instrumento capaz de apontar e explicar processos
de silenciamento/subalternização que se dão nos âmbitos subjetivo e
objetivo. Todavia, sob o nosso ponto de vista, a decolonialidade do saber
é aquela que efetivamente poderá viabilizá-lo, na medida em que lançará
luz sobre o processo de dependência psicológica possibilitando ao
colonizado perceber-se sujeito da sua história. Dito de outra forma, a
decolonialidade do saber quando presente no currículo escolar pode
provocar questionamentos às hegemonias epistemológicas mantidas e
garantidas pela escola. Tal processo, provavelmente, culminará na
construção de um novo marco epistemológico, cujo objetivo é, à princípio,
a construção de outros lugares de fala na educação.
261
Um currículo outro
Pela via da ressignificação de perspectivas no campo
epistemológico da educação é que defendemos ser possível que os
silenciados se façam produtores de conhecimento na medida em que, de
posse do saber escolar, ganham voz a partir do seu lugar de fala, já não mais
do colonizador. Não temos respostas prontas, até porque um genuíno
problema possui infinitas possibilidades de soluções. Assim, denominamos
o convocar a pensar em uma nova forma de sistematização da formação
escolar, considerando uma matriz epistemológica decolonial de currículo
outro, em que os subalternizados do processo colonizador podem dar o seu
nome e se reconhecer nele.
Para continuarmos as reflexões sobre currículo e decolonialidade,
tomemos as palavras de Quintero et al. (2009) como referência para
pensarmos os reflexos do processo colonial europeu sobre os povos
colonizados:
A assimetria das relações de poder entre a Europa e seus outros
representa uma dimensão constitutiva da modernidade e, portanto,
implica necessariamente a subalternização das práticas e subjetividades
dos povos dominados; 5. A subalternização da maioria da população
mundial se estabelece a partir de dois eixos estruturais baseados no
controle do trabalho e no controle da intersubjetividade.
(QUINTERO et al., 2009, p. 04)
A educação, como prática social institucionalizada, no contexto
apresentado na citação, assume o papel de preparar as subjetividades tanto
para o trabalho na condição de explorado, quanto para a assunção política
da posição de subalterno. Depois de séculos de exploração colonial, seguida
262
de sua forma imperial e atualmente em sua forma financeira, temos uma
realidade cultural em que a condição de subalternizados “corre nas veias”.
Reverter, rever exige por parte do subalternizado uma coragem
epistemológica no sentido subjetivo, e atitudes de enfrentamento no
sentido objetivo. Abrir mão dos grandes sistemas de pensamento que nos
forjaram epistemologicamente, as metanarrativas, se tornam uma condição
para isto, na medida em que as formas de pensamento criadas e cultivadas
no contexto da diversidade latino-americana supõem contrapor-se a
qualquer forma de generalização, como sinônimo de respeito e afirmação
desta diversidade enquanto elemento histórico e constituinte de nossa
identidade.
Em um sentido social, faz-se mister ressaltar que a colonialidade
ultrapassa o colonialismo, sobrevivendo ao tempo e às transformações
sofridas pelo capitalismo comercial que lhe deram origem.
Para a educação e para o campo do currículo, nesse contexto, a
categoria que motiva a nossa reflexão é a colonialidade do saber. Segundo
Figueira, Quinteiro e Elizalde (2009), a colonialidade do saber supõe o
caráter europeu de toda produção do conhecimento realizada nos limites
da geopolítica totalitária europeia, a partir da conquista de territórios
espalhados pelo sul global. Conhecimento este, que tomou a cultura
europeia produzida na modernidade como mais avançada, em função dos
resultados que a mesma produzira em termos de progresso tecnológico,
científico e econômico em seus países de origem. No entanto, incutiu nos
povos colonizados a ideia de que, por não partilharem desta cultura, não
teriam o direito à dignidade humana. Impondo como condição para a
ascensão social o domínio desta cultura via instituição escolar,
desconsiderando, assim, que esta mesma colocou o homem como um
predador “natural da natureza”; que absolutizou o totalitarismo da razão
instrumental como sendo a legítima forma de atividade do pensar humano
263
e considerou como necessária para o desenvolvimento econômico a
exploração do homem sobre o homem. Também se estabeleceu negando
as culturas e as epistemologias nativas por não terem se utilizado da
racionalidade científica como forma exclusiva de produção de saberes.
Mesmo estando no século XXI, os objetivos dos currículos oficiais
dos países latino americanos não diferem muito entre si, expressam valores
universais, abstratos, pautados no individualismo e em uma perspectiva da
cultura moderna europeia. Kant ainda vive firme e forte nos currículos
latino-americanos. Seus ideais de formação do homem como culto,
civilizado, disciplinado e moralizado, em uma perspectiva única, metafísica
e universal ainda são almejados pelos sistemas escolares, que acrescentaram
o perfil empreendedor para imprimir o pragmatismo próprio da
contemporaneidade. No currículo mexicano oficial, por exemplo,
encontramos que ao final da educação básica, ou seja, nos objetivos, espera-
se que os escolarizados ajam da seguinte maneira:
Pensamiento crítico y reflexivo: analiza situaciones, identifica
problemas lógicos, matemáticos y de otra índole, formula preguntas,
define sus ideas y las fundamenta con argumentos y evidencia. [...]
Valores, convivencia y colaboración: respeta la ley, tiene juicio ético,
privilegia el diálogo para solucionar conflictos, ejerce sus derechos y
asume sus obligaciones como ciudadano, trabaja en equipo de manera
constructiva y ejerce un liderazgo participativo y responsable.[..]
Desarrollo físico y emocional: Conoce sus fortalezas, debilidades y
capacidades, reflexiona sobre sus propios actos, es empático y construye
vínculos afectivos, se mantiene sano y activo, y tiene una orientación
vocacional (MÉXICO, 2021).
Não estamos criticando a validade, em si, desses objetivos gerais,
mas acenamos que não há no campo dos valores a menção à cultura nativa,
264
ou mesmo à diversidade tão própria do país. No campo do pensamento
crítico e reflexivo predomina o racionalismo e o empirismo científicos,
próprios do pensamento moderno. Encontramos em outros documentos,
mais específicos, voltados ao trabalho docente orientações sobre o
tratamento da diversidade cultural, tratados como algo complementar,
porém considerados necessários à democracia mexicana. Outro exemplo
encontramos em nosso país em relação à Base Nacional Comum
Curricular (BRASIL, 2018), em que são estabelecidas dez competências a
serem desenvolvidas pelo sistema educacional, consideradas no documento
como “direitos de aprendizagem”. Excertamos duas para fins de análise:
Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das
ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a
imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar
hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive
tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas. 3
Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das
locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da
produção artístico-cultural. (BRASIL, 2018, p. 09)
Também, não há no documento de referência curricular
brasileiro uma finalidade mais explícita de se estabelecer um pensamento
ou atitude crítica ao processo histórico de produção da cultura brasileira
em sua condição colonizada, em seus aspectos singulares e imanentes.
Ambos os documentos deixam evidentes as finalidades pragmáticas acerca
da formação voltada à ciência, ao empreendedorismo e à produtividade,
até mesmo no campo das artes.
Santos (2020) utiliza-se do conceito de “epistemologias do sul”
para caracterizar teorias que se propõem a investigar outras construções
epistêmicas decolonizadoras do pensamento e da cultura. Afirma ele que
265
as ciências modernas, principalmente as sociais, conceberam a humanidade
como “um todo homogêneo que habita deste lado da linha” (p. 161),
referindo-se ao hemisfério norte. Esta mesma ciência moderna reconheceu
o colonialismo histórico baseado na ocupação estrangeira, mas não a
reconheceu como forma de sociabilidade e parte integrante da dominação
capitalista. Também não a reconheceu como responsável pela formação de
uma base cultural subalterna entre esses povos. Acreditavam os intelectuais
e educadores que toda a humanidade poderia se emancipar pelos mesmos
mecanismos e segundo os mesmos princípios, reivindicando os mesmos
direitos, junto às instituições estruturais, no sentido formal. O mesmo
aconteceu com a educação. Defendiam que, com base nesta imaginação
humanista, que desenvolvendo os mesmos currículos seria possível
desenvolver a ciência e promover a emancipação e o progresso humano e
social. Não se ativeram ao fato de que o capitalismo seria incapaz de
abdicar do conceito de sub-humano, enquanto parte integrante da
humanidade, ou seja, alguns grupos humanos precisam ser regulados,
podem ser explorados, simplesmente porque não são completamente
humanos.
Esta concepção balizou a cultura que se produziu nas sociedades
colonizadas e se manifestou no currículo escolar que a reproduziu e a
reforçou por longos séculos.
As formas de desigualdade, de discriminação social, os genocídios
em massa foram criando movimentos políticos de resistência, que por sua
vez criaram movimentos intelectuais no século XX. Estes, como vimos
anteriormente, passaram a questionar os estatutos da educação burguesa,
bem como as identidades produzidas pela mesma, e passaram a avaliar o
projeto moderno de formação produzido e reproduzido nas escolas pela
via de seus currículos e de suas práticas.
266
Em termos de América Latina, os movimentos a favor da inclusão
de pessoas com deficiência também fizeram com que intelectuais,
concentrassem seus olhares e críticas naqueles que de alguma forma eram
excluídos por suas diferenças culturais. Estes intelectuais já vinham
desenvolvendo seus trabalhos há mais de cinco décadas em alguns casos,
mas foi a partir da década de 1990 que começaram a ganhar notoriedade.
Buscaram inicialmente compreender as formas de produção e reprodução
cultural que se processava no processo de escolarização formal,
fundamentaram movimentos sociais em torno de um currículo escolar
mais democrático e produtor de identidades culturais imanentes. Até
mesmo na Europa, movimentos intelectuais como o pós-colonialismo, nos
Estados Unidos o multiculturalismo; e interculturalismo e os estudos
decoloniais que emergiram em países colonizados do hemisfério sul
trouxeram à baila acadêmica o desafio, primeiramente, de escrutinar o
currículo escolar na busca por entender como a colonialidade ainda se fazia
presente, influenciando práticas pedagógicas heterônomas e
epistemicamente burguesas eurocêntricas, mesmo estando tão longe
temporalmente do colonialismo original. Em um segundo momento, o
desafio se desdobra em se pensar e criar um currículo decolonial. É óbvio
que não somos ingênuas a ponto de pensar que esta será uma tarefa para
um pequeno grupo de humanos acadêmicos bem intencionados, que
trabalhando arduamente conseguirão sistematizar uma trajetória de
formação escolar coerente, marcada pela total ruptura com a cultura
burguesa moderna, cujas características já exploramos.
Lembremo-nos que a decolonização do pensamento e da cultura é
um processo que tem de acometer tanto o colonizado, quanto o
colonizador, portanto, implica em um acontecimento extremamente
profundo que perpassaria todas as áreas dos saberes e das práticas sociais.
(SANTOS, 2020)
267
Considerações Finais
Cabe-nos pensar, neste momento, a possibilidade de introduzir,
paulatina e inicialmente, formas de resistência por meio de conteúdos,
práticas, espaços e tempos de formação elementos da crítica decolonial que
despertem o gigante do “sono esplêndido”. Então, estamos falando da
decolonialidade do currículo enquanto conceito, enquanto problema,
enquanto potência de ruptura para se criar um novo mais próximo de
nossas origens, de nossas ancestralidades, de nosso tempo e de nosso
espaço. Um currículo outro que se sustente em uma perspectiva de ruptura
com a condição de colonizado. Em um primeiro passo, segundo Santos:
não é buscar a completude ou a universalidade, mas sim procurar
atingir uma maior consciência da incompletude e da pluriversidade,
não para valorizar conhecimentos segundo critérios abstratos baseados
em curiosidade intelectual, mas diferentes conhecimentos nascidos em
contra a dominação ou, se não nascidos na luta, suscetíveis de serem
usados em lutas de forma produtiva (SANTOS, 2020, p. 383)
Não se quer trocar de lugar o colonizador e o colonizado, mas
colocá-los em um mesmo lugar em que ambos se compreendem em sua
constituição histórica e que, portanto, tem a diversidade, a diferença como
elementos próprios do humano, produzidos a partir de um ser e estar no
mundo, mediado por relações de poder que perpassam a política, a
economia, a cultura e portanto, as identidades sociais e individuais.
Outro elemento, assinalado por Walsh (2017) seria a memória
coletiva como fonte dos conteúdos curriculares. Segundo a pedagoga:
268
Un ejemplo se encuentra en el uso de la memoria colectiva entre las
comunidades del afro-Pacífico ecuatoriano impactadas por el
extractivismo, el cultivo de la palma, la situación de violencia traída
por la regionalización del conflicto colombiano y las complicidades
entre narcotraficantes, intereses capitalistas y extractivistas y el
supuesto olvido estatal. Recuperar, reconstruir y hacer revivir la
memoria colectiva sobre territorio y derecho ancestral, haciendo esta
recuperación, reconstrucción y revivencia de procesos pedagógicos
colectivos, ha permitido consolidar comprensiones sobre la resistencia-
existencia ante el largo horizonte colonial y relacionarlas al momento
actual. También ha contribuido a restablecer y fortalecer relaciones de
aprendizaje intergeneracionales y, a su vez, emprender reflexiones sobre
los caminos pedagógico-accionales por construir y recorrer. (WALSH.
2017, p. 60)
Tomando a memória coletiva como um ponto de partida, a
proposta de um currículo outro é de se localizar as referências dos saberes
em um tempo e em um espaço conhecido, experienciado e, portanto,
repleto de significados e sentidos, e não na tradição acadêmica ocidental.
Santos (2020, p. 271), inclusive recorda que “todas as disciplinas modernas
foram estabelecidas deste lado da linha abissal (o lado da sociabilidade
metropolitana) como se o outro lado da linha (a sociabilidade colonial)
não importasse ou não influenciasse”.
E como chegamos a tal condição? Estaríamos imbuídos de uma
intencionalidade consciente de negar quem somos e nos igualar ao
ocidental, advindo do outro lado do Atlântico? Quijano (1992) esclarece
que os colonizadores, não só impuseram uma imagem de si para os
colonizados como sendo melhores, mais evoluídos no que se refere aos seus
padrões de produção de conhecimento, mas depois criaram leis de acesso
a este conhecimento e deles forneceram aos dominados apenas alguns
rudimentos, para cooptá-los e usá-los em algumas instâncias de poder.
269
“Entonces, la cultura europea se convirtió, además, en una seducción: daba
acceso al poder. Despues de todo, más a la represión el instrumento
principal de todo poder es su seducción. (QUIJANO, 1992, p. 13)
As palavras de Quijano, neste fragmento, deixam explícito o poder
de sedução produzido pelo colonizador em relação a sua cultura,
associando a sua aquisição pelo dominado, mesmo que rudimentarmente,
à participação de uns poucos em alguns setores do poder colonial.
Parte da tarefa de se construir um currículo outro está em
desmistificar, desencantar esta sedução por meio da crítica e de outro olhar
histórico sobre os próprios fatos que constituíram o pensamento colonial.
E então esperamos que “as sutilezas do vocabulário, que a nova
terminologia não os assustem! [...] Inicialmente, pode parecer um pouco
doloroso, mas na chegada você verá que vai encontrar toda a sua bagagem”
(CÉSAIRE, 2020, p. 51).
Em termos de organização dos tempos, dos espaços e do trabalho
pedagógico, não há uma resposta pronta para “como romper a tradição
academicista racionalista ocidental?” Este é um genuíno problema em que
convergem várias possíveis respostas, porém, sabe-se que todas elas
demandam das instituições formadoras, sejam elas de nível básico ou
superior, um envolvimento dos sujeitos do currículo como protagonistas
da elaboração crítica de seus saberes. Segundo Mignolo (2003) o papel das
instituições de nível superior não é reproduzir a ação do colonizador,
levando ao dominado um saber que os intelectuais julgam necessários e
legítimos a um novo pensar, mas ao contrário, é dar voz aos dominados
pelo pensamento colonial, é problematizar em conjunto com o colonizado
a imanência que ambos compartilham, estando, em alguns momentos, em
diferentes lugares de fala. É também penetrar as pequenas lacunas de
autonomia que os sistemas oficiais não podem controlar na dinâmica do
270
cotidiano, os chamados entre-lugares
74
que se constituem entre as
fronteiras da cultura ocidental eurocêntrica e a cultura dos vários grupos
sociais subalternizados.
Hoje, na condição de país subalterno em que o Brasil se encontra,
dominado pelos organismos multilaterais e suas regras, que alcançam
inclusive a educação, para manter a hegemonia dos países centrais e suas
culturas, não acreditamos na condução de um currículo outro a partir de
instâncias oficiais, uma vez que estas devem respostas às metas estabelecidas
por estes organismos, em função de negociações financeiras, por exemplo.
Então, colocamo-nos a pergunta: como fazer com que esta discussão
chegue a cada sala de aula?
A resposta parece simples à primeira vista, mas demanda esforço,
tempo, estudo, paciência, resiliência e todos os outros substantivos que
possam ser equivalentes, uma vez que o colonizado está em um estado de
mergulhado, convencido e escravizado pela ameaça de perder suas fontes
de sobrevivência. Ousar mudar é lançar-se a um desconhecido, com a
coragem da convicção. Esta só poderá ser dada mediante um novo saber
construído a partir de novos referenciais que não se colocam como
verdades, nem se hierarquizam, mas se assumem como o discurso daqueles
que foram historicamente silenciados e que, também historicamente, tem
buscado resistir e encontrar eco para sua fala.
74
Segundo Ribeiro, o conceito de “entre-lugares” foi criado pelo sociólogo indiano Homi Bhabha
e significa um pensamento liminar, construído nas fronteiras entre formas culturais distintas. “Pela
natureza deles, não é simples caracterizar tal espaço cultural, mas eles podem se encontrar, por
exemplo, na experiência da comunicação eletrônica entre jovens das camadas sociais pobres, que
reúne duas dimensões de tempo distintas na vivência humana: o pós e o pré-moderno” (RIBEIRO,
2015, p. 163). Também podem ser vislumbrados na expressão e construção da cidadania a partir
da arte popular como o hip-hop, danças de rua, capoeira e outros.[...] “Ou ainda nas experiências
religiosas que agregam diferentes tradições, como aquelas que reúnem em uma só vivência o urbano,
o afro e elementos tradicionais cristãos. (IDEM, p. 164)
271
Pois, enfim, precisamos nos decidir e dizer, de uma vez por todas, que
a burguesia está condenada a ser cada dia mais hostil, mais abertamente
feroz, mais desprovida de vergonha, mas sumariamente bárbara; que é
uma lei implacável que toda a classe decadente se transforme e um
receptáculo para o qual fluem todas as águas sujas da história; que é
uma lei universal que toda classe, antes de desaparecer, deva primeiro
desonrar-se de forma completa, omnilateral, e que, com as cabeças
enterradas sob o estrume, as sociedades moribundas emite seu canto de
Cisne. (CÉSAIRE, 2020, p. 55)
Há muito trabalho a ser realizado até que tenhamos um currículo
outro!
Referências
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BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.
Brasília, 2018.
FANON, F. Sobre la cultura nacional. In: BRAVO, A. F. (Comp.). La
invención de la nación: lecturas de la identidad de Herder a Homi
Bhabha. Buenos Aires: Manantial, 2000. p. 77 - 90.
CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Trad. Cláudio Willer. São
Paulo: Veneta, 2020.
MIGNOLO, W. Historias locales/diseños globales: colonialidad,
conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid: Akal,
2003.
272
MIGNOLO, W. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad,
lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires:
Ediciones del Signo, 2010
GOBIERNO DE LA REPÚBLICA DEL MÉXICO. Secretaria De
Educación Pública. Os fines de la educación en el siglo XXI.
QUINTERO, P. et al. Uma breve história dos estudos decoloniais.
Editora Mas Afterall. (Ebook).
QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena.
Lima, v. 13, n.29, p. 11 – 20, 1992.
QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-
estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires:
CLACSO; Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2014.
SANTOS, B. de S. O fim do Império Cognitivo: as afirmações das
epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
RIBEIRO, C. de O. A Contribuição das noções de entre-lugar e de
fronteira. In: Rever. ano 2015 ∙ nº 02 ∙ jul/dez 2015.
WALSH, C. Entretejiendo lo pedagógico y lo decolonial: Luchas,
caminos y siembras de reflexión-acción Para resistir, (re)existir y (re)vivir.
Edita Alternativa. (Ebook). Disponível em: https://alternativas.osu.edu.
Acesso em: 17 abr. 2021.
273
Decolonizar o Saber:
a construção do espírito de nação e o processo de
colonização das américas à luz da teoria
de Rodolfo Kusch
Ricardo Francelino da SILVA
75
Introdução
O processo de construção de Nação, ou do espírito de Nação foi
atravessado por variados motes éticos, estéticos, políticos e sociais. A
palavra Nação nos remete a pertencimento, àquilo que nos torna nós e não
apenas eu, ao fator ou fatores que permitem a um determinado povo, em
um momento específico de sua história se unir em torno de um ideal ou
de ideais compartilhados e dignos de se preservar. A história registrou
momentos em que pequenas aldeias e vilas se uniram e formaram nações
que alteraram a história da humanidade, mas vimos também a divisão de
povos que, mesmo possuindo inúmeras contingências para se unirem,
permaneceram separados e foram aniquilados.
Na conquista da América não foi diferente pois, as divergências
políticas e culturais, o combate interno e mesmo as próprias crenças
religiosas, possibilitaram a entrada do colonizador em terras Incas, Astecas,
75
Doutorando em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Campus de Marília.
Mestre em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras, Unesp, Campus de Assis. E-mail:
ricardo.francelino@unesp.br
https://doi.org
/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p273-292
274
Maias, terras Tupis e Guaranis, entre outras. A forma de agir do invasor
procurou explorar as divergências internas existentes entre os próprios
povos da terra para subjugar e expropriar as riquezas aqui presentes. Não
fora a superioridade bélica ou destreza marcial que possibilitou ao invasor
europeu lograr êxito em sua empreitada, mas sim, o acirramento das
divergências políticas e sociais existentes entre os próprios povos aqui
presentes.
Como nos afirma Todorov (1991), a superioridade em umérica e
conhecimento da terra, dariam vantagem insuperável ao nativo, mas a
vileza e a inescrupulosidade dos aventureiros mercantilistas lhes
permitiram enganar por tempo suficiente os povos nativos desse
continente, suficiente para que as doenças trazidas pelo europeu, para as
quais os cidadãos daqui não possuíam imunidade, dizimassem quase 1/5
do novo mundo do século XVI. Todorov (1991) estimou que habitaram
o continente cerca de 80 milhões de pessoas, cerca de ¼ da população
mundial estimada para o período em cerca de 400 milhões.
O processo de aviltamento praticado pelo invasor europeu
necessitou de tempo e orquestração para seu sucesso. A construção da ideia
de inferioridade, de subdesenvolvimento, propagadas pelo colonizador
espanhol e português fez parte do processo de criação de uma
superestrutura ideológica. A invasão das novas terras não seria, senão, um
ato de bondade, conduzido pelos céus, para civilizar e propagar o reino de
Deus aos perdidos. Vimos que, ao longo da história da humanidade, as
justificativas religiosas e civilizatórias foram empregadas em inúmeras
situações.
De todas as mazelas que o nativo americano teve de enfrentar,
nenhuma foi tão dura quanto às doenças trazidas pelo invasor. Até para
picada de cobra existiam intervenções da medicina natural indígena,
contudo, existiu um veneno muito mais eficaz, e para esse ainda não havia
275
anticorpos, o homem branco europeu. Conta-nos Tzvetan Todorov,
(1991), que milhões de pessoas foram mortas por doenças trazidas pelo
colonizador. Mais que as guerras e a escravidão imposta a diversos povos
ameríndios, as doenças trazidas pelo estrangeiro devastaram as populações
das Américas.
As civilizações nativas, consideradas primitivas e inferiores pelos
invasores europeus, demonstraram grau de desenvolvimento e técnica
surpreendente. Aprenderam a cultivar inúmeras plantas desconhecidas no
restante do mundo. O milho cultivado no Peru, Bolívia e principalmente
México, possuía variedade de espécies e diversificadas formas de
processamento. Estudos arqueológicos dataram amostras de milho
encontradas em abrigos rochosos na região originalmente habitada pelos
Zapotecas, Vale de Oaxaca, de 4.500 a.C., o que dataria as amostras dessa
região ao surgimento da escrita cuneiforme pelos sumérios antigos.
Amostras de feijão e abóbora encontradas nesta região datam de cerca de
10.000 mil anos atrás, o que comprova que o homem pré-histórico
Zapoteca já fazia uso desses alimentos (FLANNERY,
76
1985). Batata,
mandioca, tomate, cacau, feijão eram cultivados pelos mais variados
grupos étnicos presentes no continente invadido. Os Incas desenvolveram
técnicas de plantio em regiões montanhosas que revolucionaram a
agricultura no mundo. Até a descoberta dos terraços Incas, a agricultura
era realizada em planícies. Os Maias possuíam um sistema em umérico
vigesimal desenvolvido, conhecimentos de matemática, engenharia e
astronomia que intrigaram os colonizadores. Tenochtitlán, capital Asteca
do período das invasões, possuía tamanha grandiosidade em sua estrutura
76
Prehistory and Human Ecology of the Valley of Oaxaca, Mexico Estudo dirigido por Kent
Vaughn Flannery, em cooperação com demais colegas da Universidade de Michigan, entre 1966 a
1980.
276
e organização, tamanho e importância que fora comparada a
Constantinopla e Roma pelos invasores.
Não sabemos de fato o quão assertivo poderia ser a manutenção
dos termos e definições arbitradas para os povos que aqui estavam.
Expressões como o “novo mundo”, “América”, “Índios”, “Colonizador”,
não refletem o que de fato foi e, é o continente em questão, o que hoje
conhecemos como América, ou continente americano.
Os povos que aqui habitavam a terra na chegada dos europeus, aqui
já estavam há milênios, para ser mais exato há quase 30 mil anos, como
demonstram pesquisas em arqueologia (CLASTRES, 2004, p. 65).
Existem registros de que os maias iniciaram o processo de unificação a mais
de dois mil anos.
O processo de aculturação e de negação do outro posto em prática
pelos invasores europeus alicerçou-se sobre a ideia de inferioridade dos
povos do novo continente. Esta ideia faz parte de um processo maior e
intencional denunciado por Marx (1989) na formação da superestrutura
ideológica e política que dá sustentáculo ao capital para expropriar e
subjugar o homem. Nesse quesito, István Mészáros (2011) nos adverte que
a superestrutura de organização e conduta social, dos mecanismos
coercitivos do Estado, opera como mecanismo de controle um “usurpador
a serviço dos usurpadores da riqueza social” (p. 99). No caso específico da
invasão do recém-descoberto continente, inferiorizar o outro é condição
necessária para a imposição de uma cultura, uma forma de organização
social (mercantilista), uma religião que libertaria os incautos do
obscurantismo. Em outros momentos da história o processo de dominação
ocorre em nome do desenvolvimento, para o qual os povos subjugados
nunca puderam participar. A história é contada, salvo exceções raras, pelos
vencedores e sempre pelo ponto de vista de quem detém os meios de
comunicação e veiculação da informação. Existe um provérbio
277
moçambicano que diz: “até que os leões tenham os seus próprios
historiadores, as histórias da caça continuarão glorificando o caçador”.
O movimento de desconstrução desse processo de aculturação e de
expropriação da cultura dos povos subjugados perpassa pela necessidade de
reescrita da história, mas não por aqueles que venceram, mas sim pelos
atores que foram privados de voz e de expressão em nome do
desenvolvimento. Qualquer produção é crivada pelos agentes sociais que
patrocinam os meios de realização. Frei Bartolomeu de Las Casas
77
e outros
escritores do período colonial registraram algumas das atrocidades
realizadas em nome da “descoberta do novo mundo”, contudo, toda e
qualquer produção não está isenta das relações sociais, políticas e materiais
que permitam sua realização. O processo de conquista refletiu o
movimento realizado para criar uma realidade paralela que permitiu a
negação da cultura do outro, vista como inferior e, apregoou o chamado
desenvolvimento. Contra esse processo, as considerações de Rodolfo
Kusch (1922-1979), contribuem de maneira fecunda para o acirramento
do debate e consequente processo de desconstrução histórico-cultural,
chamado por Kusch de-colonialismo para, a partir desse movimento,
direcionarmos para o centro das pesquisas, as riquezas técnicas, científicas
e culturais produzidas pelas civilizações pré-colombianas.
A construção do espírito de nação e da identidade nacional
Uma pergunta intrigante de Aristóteles que moveu pesquisadores
ao longo da história foi: qual o fim de todas as coisas? O que, de fato, seria
necessário para o homem ser feliz, pleno, satisfeito e realizado? Atingir o
77
LAS CASAS, F. B. O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América Espanhola.
Tradução de Heraldo Barbuy. Porto Alegre. L&PM. 2011. p.176
278
estado eudaimônico? Nas Américas, divindades, crenças e valores antigos
foram suplantados em nome de um desenvolvimento que, de fato, buscou
preparar o “novo mundo” para a expropriação.
A desconstrução de valores, processo paulatino de desprezo pela
cultura notadamente americana, foi a caminho adotado para impor a
lógica do capitalismo mercantil, aprisionar e expropriar o Asteca, o Inca, o
Maia, o Tupi o Guarani, etc., de suas posses, de seus valores, de suas
crenças, de sua alma. O processo de desmistificação denunciado por
Adorno e Horkheimer (1985) em Dialética do Esclarecimento, ganha uma
nova versão no caso americano, não a substituição dos mitos pela
explicação racional das coisas, mas sim, a substituição de um mito por
outros mais eficazes no processo de dominação do nativo (catolicismo
romano). Nietzsche (2010a) criticou severamente a moral judaico-cristã
que aprisionou a alma humana e alicerçou os discursos de dominação. No
caso das Américas, ganha destaque o processo de catequese jesuítica em um
primeiro momento e, de outros agentes missionários em um segundo
período, que trabalharam na negação completa da cosmologia ameríndia.
Mas podemos nos perguntar, o que é ser americano? Ou melhor, o que é
ser nativo americano? O que é ser cidadão desse continente saqueado e
nomeado de América?
As civilizações ameríndias foram dizimadas, sua cultura ultrajada
e destruída, seus valores subjugados em nome de um desenvolvimento que,
na prática, escravizou e empobreceu, em todos os aspectos possíveis, as
populações. Como romper com essa superestrutura construída para a
manutenção da riqueza alheia? O sistema capitalista demanda a
acumulação de riquezas e a exploração do ser humano. Contudo, qual a
ligação da cultura ameríndia, que se construiu pelas relações familiares,
tribais muito mais próximas de uma filosofia africana que de fato de uma
279
filosofia universal? Poderia Ubuntu
78
representar o que existiu com mais
intensidade no passado e ainda hoje subsiste, ou melhor, resiste de uma
cultura tipicamente ameríndia?
Existem no campo de batalha e de resistência embates políticos e
ideológicos muito fortes e arraigados no imaginário social das populações
mestiças. Os arrendatários de impostos que aqui se estabeleceram
cooperam para a manutenção dos status quo adquirido e continuam a
propagar os valores dos antigos colonos como forma de manutenção do
sistema.
O “sistema” é forte e eficaz, dispõe de inúmeros instrumentos de
convencimento que nos impele ao inconvensível, ou melhor, nos convence
do que até então, tínhamos como impossível, que se torna possível por
vermos, ouvirmos e sentirmos, em um uníssono social, a repetição da
fábula. O poder da superestrutura de criar realidades é quase inacreditável.
O impossível torna-se realidade, realidade estranha ao sujeito americano.
A acumulação de terras e capital, as desigualdades sociais, a falta de
educação de qualidade para todos, a implantação do espírito da aceitação,
são meios pelos quais a realidade alienígena foi construída. O homem
nativo das Américas foi expropriado de sua essência, restando ao mesmo à
sobrevivência. Mas apenas sobreviver é o suficiente?
O papel da educação na construção de uma identidade americana
Nesse contexto, quais conhecimentos devem ser valorizados?
Assim, o debate sobre os conhecimentos cotidianos é inserido em cena, em
contraponto aos conhecimentos formais da escola, conhecimentos que,
78
Ubuntu é a raiz da filosofia africana.” (Ramose, 1999)
280
muitas vezes, não possuem ligação com o restante da vida dos estudantes.
Aprende-se o que não se conhece, sobre assuntos e culturas externas à sua,
por meios e métodos externos à realidade social onde o sujeito está
inserido, sem considerar, nem minimamente o interesse, vontade ou
sonhos do sujeito. Um “sujeito coisa”, sendo preparado para viver no
mundo do amanhã. O que de fato nos leva para a escola? Isso ocorre para
crescimento pessoal e preservação da cultura, ou manutenção da ordem
sugerida?
A falta de sucesso no ambiente escolar causa certo estigma
que seguirá o educando por ao longo de sua vida. Mas de fato, o que um
momento ruim, um descuido, um sentido, uma nota ruim pode traduzir
da capacidade ou de uma potencialidade em formação? A escola de fato
tem trabalhado para a emancipação do cidadão ou manutenção da
chamada ordem? No lema da bandeira brasileira está contida a frase Ordem
e Progresso, ordem para quem, com qual objetivo e progresso em qual
direção, com qual finalidade? O “bem estar” e união da população ou
enriquecimento de uma elite agrária, latifundiária, herdeira das grandes
famílias que aqui vieram para colonizar o novo mundo?
Kusch (2007a) nos propõe a mudança do paradigma dominante
da modernidade, a mudança de uma lógica do ser para a lógica do estar,
da essência para a permanência, do conceito para o símbolo. É de fato uma
nova postura epistemológica, ou melhor, uma postura epistemológica
muito antiga e renegada por centenas de anos pelo colonizador europeu. A
superação da ideologia dominante exige a alteração do centro de gravidade
do status quo que impera, pautado na ética do ter e do poder, para uma
ética das relações, uma ética relacional.
O processo de colonização buscou expropriar o homem nativo
americano de seus ideais, suas crenças, valores, de sua própria história,
inserindo no novo mundo uma nova perspectiva de realidade, uma
281
teleologia alienígena ao nativo. Esse movimento de negação da cultura
ameríndia foi implementado pelos próprios arrendatários de impostos
79
,
que viram a oportunidade de enriquecer, sobras de uma nobreza
cavalheiresca sem terras que migram para as Américas em busca de fortuna
e terras.
Esta história iniciou-se com os cronistas e naturalistas, viajantes
que por este continente estiveram para retratar as belezas do novo mundo,
mas que de fato desempenharam papel fundamental nos conhecimentos
sobre geografia, flora e fauna, culturas, usos e costumes dos da terra, para
uso do dominador.
O processo de pensamento desenvolvido por Rodolfo Kusch
(1922-1979), nos remete a resgatarmos a permanência do estar americano,
voltando-se à tradição que se manteve resistente ao longo das gerações,
resistente aos ataques constantes e ao processo de extermínio advindos da
chamada modernização. As artes, as canções antigas, os costumes, a forma
de fiar um sombrero, de se relacionar com a terra e a natureza. A cultura
própria dos povos andinos, dos povos existentes no Brasil pré-colonial, do
verdadeiro americano que foi deixada de lado. A filosofia americana
estabelece bases epistemológicas mais próximas com a filosofia africana,
ubuntu, do que com as demais existentes. A ética relacional fora o que
atribui sentido à configuração social americana. Contudo, após a invasão
europeia, o ter e o poder substituíram os princípios de permanecer e estar,
que significavam as populações ameríndias. O viés da posse está intrínseco
ao sistema capitalista de existência, sem o qual o capitalismo não existiria.
Os conceitos de inferioridade, de país subdesenvolvido, de terceiro
mundo, fizeram e fazem parte da cultura escolar dos países latino-
americanos. O processo de desvalorização impetrado pelos de lá, fez parte
79
Alusão ao método de dominação do império romano para com as províncias dominadas.
282
da história, mas não só da história passada, mas presente e quiçá, futura.
Contra essa lógica da dominação cultural, ética e política que Kusch se
rebela, contra a lógica da nomeação e da posse, direta e/ou indireta. Os
livros didáticos trazem em seus conteúdos conceitos importados,
valorizados pela elite intelectual e pelos mecanismos de manutenção do
poder.
Afirmar que uma pessoa, cidade, país ou grupo de países é melhor
ou pior baseado em sua riqueza, tem sido a lógica operante do capital na
América profunda. A escola, nesse contexto, ocupa papel determinante na
desconstrução da lógica da submissão imposta, da fabricação da cultura e
das ideologias que expropriaram o nativo de sua verdadeira essência. Kusch
diz:
La verdadera dimensión de estar no mas debe ser entendido a nivel del
miedo. Se dá mucho mas adentro todavía de la vida cotidiana, cuando
con motivo de algún fracaso o de una injuria, o peor aún, cuando
hemos cometido un aparente mal y la sociedad nos segrega, llegamos a
ese punto donde tenemos conciencia de lo “poco” que somos.
(KUSCH, 1976, p. 20 / 2007b, p. 27).
A luta contra esse sistema parece-nos, como demonstrou a
história, uma tarefa de Sísifo, mas resta-nos realizar o movimento inverso
de, por meios das bases estabelecidas, substituirmos o ter e o ser pelo estar,
processo não só de resistência, passivo, mas sim, de encanamento, de luta
para a transformação do que foi imposto ao homem americano como
realidade. Um processo ativo que se inicia na tomada de consciência sobre
a história e a partir dessa tomada de consciência, libertação da alienação,
um retorno às produções verdadeiramente americanas.
283
A educação formal, nesse universo, ocupa papel de destaque, visto
que é um dos principais meios pelos quais a cultura, a ciência e as artes são
ensinadas às novas gerações. Trata-se de uma proposta de revolução
paradigmática, em seu sentido epistemológico, ético e filosófico.
De uma lógica da modernidade ao retorno a uma lógica da convivênvia
Os princípios da lógica que movem a modernidade resgatam os
fundamentos da lógica formal grega, princípios do terceiro excluído, do
não contraditório e da identidade, da lógica dialética.
Valorizar o homem americano consiste em valorizar todas as esferas
do pensamento verdadeiramente americano, a sabedoria chamada popular,
e que aqui podemos chamar de filosofia milenar, resiliente e sobrevivente,
tão forte que, mesmo sendo há séculos atacada, aviltada, negada e
desmerecida, sobrevive.
Um pensamento ou escrito que produza reflexão deve, a priori,
estabelecer nexo substancial com a realidade circundante. A crítica de
Kusch à elite intelectual do círculo acadêmico de seu tempo se deu, pelo
menos em seu entendimento, da incapacidade de se romper com a lógica
de repetição de verdades já estabelecidas, para a produção de evidências
sobre verdades a se conhecer. Não foi apenas uma negação da cultura
europeia, mas sim uma tomada de decisão em relação à liberdade de se
pensar e filosofar sem a necessidade da validação da tradição hegemônica.
Maturana em Ciência e Vida Cotidiana: A Ontologia das Explicações
Científicas, afirma que uma verdade científica é uma proposta validada por
uma comunidade de cientistas.
284
A ciência, como um domínio cognitivo, não é exceção a esta forma de
constituição, e eu chamo o critério de aceitabilidade, que define e
constitui a ciência como domínio cognitivo e que simultaneamente
constitui como cientista a pessoa que o aplica, de critério de validação
das explicações científicas. (MATURANA, 2001, p. 127).
A supremacia das ciências como detentora da verdade e único meio
possível para se explicar a realidade já foi debatida por inúmeros
pensadores. Na obra Um Discurso sobre a Ciência, Boaventura de Souza
Santos (2008)
80
discorre sobre a crise do paradigma dominante das ciências
modernas. Segundo ele “[...] estamos a viver um período de revolução
científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe
ainda quando acabará [...]” (SANTOS, 2008, p. 40).
Maturana e Boaventura nos apresentam um viés das ciências
enquanto construção e portanto, passível de desconstrução. Na superação
dessa realidade teatral, retomaremos o que Kusch propõe como caminho
para superação desse não ser Europeu. Santos (2019) fez a seguinte
proposta de pergunta para resumir o pensamento de Kusch. “Se
pudéssemos resumir a pergunta principal que embasa todo o pensamento
de Kusch essa seria: o que há aqui na América que não nos faz europeus?”
(SANTOS, 2019, p. 75).
Para responder essa demanda, Kusch (1922-1976) retoma o debate
entre os conceitos de hedor e pulcritud. O debate entre o hedor, conceito
ligado ao lado obscuro, renegado, a periferia das cidades, se contrapõe à
pulcritud, a parte limpa, bonita das cidades, com traços europeus. Os dois
conceitos trabalhados por Kusch remetem a luta constante entre uma
América renegada, expropriada, abandonada, aviltada em sua dignidade e
direitos, representada pelas periferias e camadas excluídas da sociedade e
80
A 1ª edição foi publicada em 1987 pela editora Afrontamento, no Porto Portugal.
285
de uma América europeizada, elitizada, que mantém a ordem social
estabelecida, em favor do bem estar social, pelo menos no discurso, de
uma minoria da população, representada pelas elites urbanas e rurais. O
hedor que representa a periferia é condição sine qua non de existência da
limpeza, do pudor. Este cenário representa a ética do “ter” em seus
primórdios mais vorazes, que considera o ser humano coisa e as pessoas
meios para fins.
Segundo Santos:
A América convive então com a oposição entre o “fedor”, hedor,
popular e o “pudor”, pulcritud, das classes médias e altas de origem
europeia que habitam os centros urbanos. O cheiro, a cor, os hábitos
não europeus são, no seu limite, expurgados do contato com a classe
média que, por sua parte, sofre o ressentimento por tampouco aceder
de fato ao “ser-alguém.” (SANTOS, 2019, p. 76).
Segundo Tasat e Perez (2013), em Kusch, os opostos não se
superam ou se eliminam, mas convivem na contradição dos cosmos e do
caos, que sempre estão ai. Portanto através da mediação integração que
seria possível à construção do mundo, do homem, de sentidos, que
poderiam ser traduzidos como cultura própria, tanto comum, de-colonial,
americana. O colonialismo como se evidencia ganha novo rearranjo, mas
não deixa de tudo, de perpetuar-se. Contra essa realidade Kusch (1922-
1976) se dedicou a trabalhar em sua vida e obra.
Assim, para superar o processo de aviltamento da lógica do capital
e do domínio intelectualista, Kusch irá propor uma geocultura, uma
cultura localizada no tempo e no espaço. Uma proposta de pensamento
que fosse condicionado pelo lugar, em suas interações culturais e sociais,
“[...] un pensamiento condicionado por el lugar, o sea que hace referencia
286
a un contexto firmemente estructurado mediante la intersección de lo
geográfico con lo cultural.” (KUSCH, 2012b, p. 75). Por este viés, esse
pensador buscou evidenciar a cultura e a tradição nativa americana, dando
voz a um dos espectros da cultura que ficou encoberto pelo discurso e
cultura dos dominadores. Kusch (1976/2007b) denuncia em Geocultura
del Hombre Americano um medo que o americano tem de assumir sua
posição como agente da história, o que ele denominou de “medo de sermos
nós mesmos”, diante da barbárie histórica, política e social ocorrida.
Forjou-se um estereótipo negativo do nativo, do que fora subjugado, uma
amarra produzida pelos ditames da cultura. A história dos vencidos nunca
é exaltada nos livros de história, e Kusch propõe a denúncia desse
movimento ideológico como forma de desnudar a cultura heterônoma,
exógena ao americano. O pensador denuncia a audácia da filosofia
universal de propor um pensamento des-situado, desvinculado de um
lugar e um tempo, de técnicas particulares de conhecer que se propõem a
explicar toda e qualquer realidade.
Considerações Finais
Kusch retoma o debate fenomenológico na distinção do ser-
alguém e do estar-alguém. O europeu aqui chegou e se deparou com uma
filosofia de vida e de estar no mundo, que foi incompatível aos interesses
do invasor. Propõe a história da América do período das invasões até a
atualidade como a história menor das Américas em detrimento de uma
história maior, com início na pré-história e reforça a importância de resgate
das heranças nativistas para o processo de decolonização. Sobre essa relação
entre o ser e o estar o autor esboçou que,
287
[...] hay como un desgarramiento ontológico entre mi estar y el ser. Por
eso descubrimos siempre que somos anteriores al ser de otros. Por eso
creemos estar no más, y vemos al occidental que no está, sino que
siempre es. [...] Y eso ocurre porque nos sentimos en el puro estar, y
tenemos que optar por ser y convertir lo que es en un simple papel a
asumir frente a la realidad, sin que seamos realmente. Por eso nuestro
papel para ser aplasta nuestra posibilidad de vivir. (KUSCH, 2008, p.
99).
Vivemos uma ética em que o ser tornou-se o modus
operandi dessa realidade e controla a superestrutura. “Os de baixo”,
representado nos escritos de Kusch pelo hedor, das classes não abastadas,
da periferia, da cultura subalterna, das ações a serem evitadas se contrapõe
à pulcritud, limpeza ou pudor, das classes abastadas, continuadores da
tradição hegemônica europeia, representantes de um ideal “des-ideal” de
ser. Os sinais e manifestações dos excluídos são expurgados pelo contato
com a classe média, que se ressente por não conseguir ser alguém, segundo
Kusch. Os referenciais, símbolos e signos construídos não conseguem
atender as demandas e expectativas de um estar verdadeiro por pautarem-
se em uma ética, uma política, uma lógica de sociedade alienígena, externa
ao ser ontológico americano. A busca das origens e raízes apontada pelo
pensador Argentino seria um dos caminhos possíveis para retomada das
rédeas da história, retomada do lugar do cidadão verdadeiramente
americano como protagonista de sua história e responsável pela sociedade
em que vive. A ética do nós, o ubuntu da filosofia africana, seria o caminho
para a construção de uma epistemologia da convivência, do estar em
contraponto ao ser.
A história é sempre escrita por vencedores e nesse processo
constroem-se verdades artificiais, como mecanismo de manutenção da
superestrutura de dominação, inicialmente posta em prática pelo invasor
288
europeu e continuada por seus descendentes (os cidadãos dos centros
urbanos, das classes abastadas). A fábula da inferioridade bélica, do atraso
científico, da inferioridade cultural foram os meios para o processo de
expropriação. Foram descobertas evidências da manipulação da agricultura
na planície do México de oito mil anos antes de Cristo. A base da
alimentação europeia, pelo menos uma porção considerável dela advém
das culturas descobertas nas Américas (milho, batata, cacau, feijão), foram
levados ao restante do globo por tecnologias desenvolvidas pelos povos
ameríndios, biotecnologia avançada para o período. Com os povos
ameríndios foram descobertos conhecimentos em astronomia, matemática
até superiores aos presentes na Europa do período. Na atualidade sabe-se
que não fora a superioridade bélica que permitiu ao invasor lograr êxito na
invasão, mas sim a falta de defesas naturais, de imunidade para as doenças
trazidas pelos europeus.
Uma máxima do pensamento de Kusch (2007) retrata que a
filosofia é o discurso de uma cultura que encontra seu sujeito. A produção
filosófica, ética estética e política do sujeito verdadeiramente americano
foram negadas em subserviência ao discurso hegemônico, a ética
hegemônica a cultura que pertence aos sujeitos vitoriosos. Contudo, Kusch
nos conclama a realizarmos o caminho inverso e desenterrarmos o
pensamento negado como possibilidade de sustentação, não de uma nova
ética, mas sim de uma ética já existente, e por que não dizer resistente e
uma cultura verdadeiramente americana. Cabe a nós dar voz aos
pensadores que realizaram essa proposta reflexiva, na contramão do
discurso hegemônico.
Alguns dos escritores gregos já afirmaram a importância do todo
na constituição ética e política de uma sociedade (Aristóteles). Mas a busca
situada dessa condição constitui-se em condição sine qua non que se traduz
na pós-modernidade, um instrumento, veículo de resistência e de luta por
289
uma identidade verdadeiramente nativo americana. Uma luta contra o
ódio ao outro e seus agentes, que, ao longo da história, conseguiram
inculcar, no ideário nativo, o conceito de superioridade da filosofia
europeia sobre as demais, da ética do norte sobre o sul, dos ricos sobre os
pobres.
Uma máxima da filosofia africana presente no pensamento de
Kusch que marca sua proposta ética situada é a seguinte: os europeus
diante da diferença buscam a igualdade, o nativo americano diante da
diferença busca a convivência. Não há nos princípios éticos, filosóficos do
nativo a necessidade de extermínio da diferença. A convivência é possível,
pois juntos somos mais fortes.
Referências
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esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985.
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MATURANA R., H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo
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NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução: Paulo
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SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. 5ª Ed. São Paulo: Cortez,
2008.
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RAMOSE, M. B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond
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TASAT, J. A. & Pérez, J.P. El hedor de América: Reflexiones
interdisciplinarias a 50 años de la América Profunda de Rodolfo
Kusch. Buenos Aires: Centro Cultural de la Cooperación y EFUNTREF,
2013.
TODOROV, T. A Conquista da Arica: a questão do outro. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 1991.
293
Os Deuses se Acabaram, Resta-nos o Número:
uma contribuição de Rodolfo Kush à educação
Alonso Bezerra de CARVALHO
81
Introdução
Ao longo de minha trajetória, ministrando disciplinas em cursos
de licenciatura, tenho constatado que os alunos, especialmente aqueles que
estão nos anos finais de formação, demonstram certo sentimento de
inquietação e de angústia, chegando ao ponto de considerarem que ainda
não estão prontos e nem preparados para enfrentar os desafios que
emergem e dinamizam a uma sala de aula. Se não bastasse as condições de
trabalho e de salário, a eles não parecerá fácil lidar com várias classes ao
mesmo tempo, escolas com culturas diferentes, gestores, coordenadores e
colegas de profissão com os mais diversos pontos de vista e atitudes. Diante
dessas informações, começam a se darem conta de que estão prestes a
assumir uma profissão de grande responsabilidade, mas que tem sofrido
um processo de desvalorização ao longo do tempo, inclusive com situações
de profundo desrespeito e de violência pelo público que vai atender,
manifestas por meio de agressões verbais e físicas, entre outras. Alguns
relatam que quando vão fazer o estágio ouvem dos próprios futuros colegas
81
Docente do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da
Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Campus de Marília. Líder do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (GEPEES), cadastrado no CNPq. E-mail:
alonso.carvalho@unesp.br
h
ttps://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p293-312
294
palavras bastante desestimuladoras, revelando o desânimo a que estes estão
submetidos. Em um misto de frustração e de busca pela sobrevivência,
grande parte dos professores demonstra uma concepção de escola, de
educação e de prática docente que beira a uma catástrofe.
Diante desse diagnóstico, podemos fazer algumas reflexões acerca
dos saberes e das práticas que são adotados nos cursos de formação de
professores. Creio que não é de todo sem sentido aventarmos a ideia de
que a angústia e a insegurança dos futuros docentes são os efeitos de um
processo formativo que fora concebido e implementado a partir de uma
lógica e de uma prática que nem sempre leva em consideração o real, isto
é, a vida que constitui as nossas existências e que pulsa em nossas
experiências cotidianas. Mais do que isso, desconsidera que os saberes e as
maneiras de conduzir nossas vidas de alunos e professores, por exemplo,
- têm diferentes origens e matrizes e que são construídos em distintos
lugares e tempos percorridos pelos sujeitos. E nos parece que levar isso em
consideração pode ser bastante enriquecedor.
Deste modo, talvez seja necessário investir em programas de
formação que além de promover e propor atividades que estimulem o
protagonismo por meio de um espírito inquiridor e de capacidade
argumentativa, explicite as vicissitudes do exercício da profissão, os
modelos e desafios socioculturais envolvidos e manifestos. Para tanto, isso
inclui considerar a dimensão do trabalho coletivo, posturas éticas e afetivas,
a partir de uma inserção na escola e nos espaços de trabalho desde o início
da sua formação, responsabilizando-se por uma produção própria de
sentidos e valores. (CUNHA, 2015).
Embora o final do século XX e o início do século XXI tenham
apresentado mudanças significativas nas estruturas científicas, sociais e
educativas, com ressonâncias nas formas de pensar, sentir e agir das novas
gerações e que, de certa maneira, fizeram mudar o papel das escolas e as
295
funções docentes, queremos ir um pouco mais longe e mais fundo. Para
os propósitos deste texto, a ideia é pensar a educação a partir de uma
perspectiva que denominaríamos de decolonial, ou seja, levando em
consideração as singularidades, o ethos, a cultura, os símbolos, os mitos, as
crenças, os valores, etc., de um lugar situado que é a América Latina ou
Abya Yala
82
. Ainda que sejam importantes, as mudanças das quais falamos
parecem ainda seguir uma lógica que dá continuidade a um projeto de
dominação, de conquista, de manutenção do poder, de imposição de uma
maneira de ser, de pensar e de agir que remonta aos primórdios do processo
colonizador. Um novo projeto e uma nova prática educacional no Brasil e
nos países colonizados, que poderia trazer consequências positivas para o
processo de formação de professores, parece exigir um processo de
desaprendizagem, de problematização, mas, sobretudo, de pensar e de
educar de outra forma.
Nesse sentido, tomaremos algumas ideias do filósofo e antropólogo
argentino Rodolfo Kusch (1922/1979) para nortear, ou melhor, sulear
83
82
Embora no restante do texto mantenhamos a expressão América Latina, consideramos
fundamental o resgate da expressão Abya Yala. Como sabemos, América Latina é uma imposição
colonizadora desde o processo de invasão, ocupação e apropriação europeia dos territórios dos povos
originários do nosso continente, invisibilizando e desvalorizando a cultura, visão de mundo, os
costumes, as crenças, os símbolos, etc., aqui existentes. O conceito de América Latina foi utilizado
tanto para marcar uma continuidade com o modelo de civilização europeu no continente, como
para reproduzir a exclusão de povos e culturas que, no período colonial, estavam localizados fora
do modelo de humanidade desenhado pela colonialidade do poder. Por seu lado, Abya Yala
configura-se como parte de um processo de construção político-identitário em que as práticas
discursivas cumprem um papel relevante de decolonização do pensamento e que tem caracterizado
o novo ciclo do movimento dos povos originários. (QUENTAL, 2012; PORTO-GONÇALVES,
2015)
83
O termo sulear expressa um posicionamento que pretende chamar a atenção para o caráter
ideológico do termo nortear, associando-o à ideia de que o norte está acima e, portanto, apresenta-
se como superior, conforme chamou atenção Paulo Freire (1992). Boaventura de Sousa Santos
parece seguir a mesma direção contra-hegemônica quando formula o que ele denomina
epistemologias do sul, em que o Sul é “concebido metaforicamente como um campo de desafios
epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo
na sua relação colonial com o mundo.” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 12).
296
as reflexões que pretendemos realizar. Ainda que Kusch não tenha escrito
textos específicos sobre educação e decolonialidade, creio que é possível
depreender de sua obra, noções, categorias, concepções e metodologia que
podem contribuir para pensarmos e até formularmos perspectivas
inovadoras ao campo da educativo e da pesquisa. Aqui retomar dois
conceitos que considero ser chaves para essas reflexões: “ser alguém” e
“mero estar”.
“Ser Algm” e “Mero Estar”, a modo de apresentação
Segundo Kusch, o pensamento racionalista, de matriz europeia,
influencia, domina, reinterpreta, à sua maneira, o que encontra em
“nuestra América”, instaurando o seu jeito de conceber e agir sobre o
mundo. Por seu lado, trata-se, agora, de desconstruir essa estrutura que se
coloca como superior, útil, progressista e civilizada, em detrimento das
culturas autóctones e indígenas aqui já existentes. A racionalidade
ocidental estaria centrada no ser, no ente, na coisa, nos objetos e na busca
de uma objetividade, enquanto a racionalidade seminal indígena se funda
no estar, no domicílio, no habitat, no vivido
84
. Lançando mão dos modos
de observação próprios da ciência antropológica, foi a campo aprofundar
suas intuições no sentido de conhecer e compreender a maneira de pensar
e de existir autenticamente americana. Para ele, a experiência americana
havia gerado em sua história situações únicas - ontológicas,
84
“Sabemos que estar provêm de stare, latino, estar em pé, o qual implica uma inquietude. O ser,
por seu lado, enquanto provêm de sedere, estar sentado, conota um ponto de apoio que conduz á
possibilidade de definir. Um mundo definível, por sua vez, é um mundo sem medo e, ao contrário,
um mundo submetido ao vaivém das circunstâncias, é um mundo temível. Então, a oposição entre
estar em pé e estar sentado implica uma referência à oposição entre inquietude e repouso.” (KUSCH,
2007a, p. 529. Grifo do autor)
297
epistemológicas, estéticas, éticas, etc. -, que podem ser caracterizadas como
sendo baseadas no predomínio do “estar” sobre o “ser”.
A característica marcante do pensamento americano, portanto, não
requer uma técnica ou uma lógica que nos levaria a um conhecimento que
dissesse o como as coisas são, representando e definindo-as conceitual-
mente, mas viver e sentir o conteúdo tal como nos toca e nos afeta, o que
o distanciaria do caráter formal do pensar europeu. Kusch crê que é
necessário um equilíbrio entre conteúdo e forma, de tal maneira que
possamos colocar em suspeita a técnica e a lógica que promete o progresso
como consequência e que tem marcado, inclusive, a educação, ao
fundamentar o ensino na ideia do progredir e do avançar, ou seja, em uma
concepção de razão que considera tudo passível de ser dominado,
controlado e previsto. Assim, de um lado estaria o inferior, o inútil e, de
outro, o superior e o útil, que tem como objetivo o progredir, o ascender,
o ser alguém, não importa a que preço, conforme comenta o professor
Carlos Cullen:
Ser alguém implica o afã de sê-lo e esse desejo identifica-se, neste
contexto, com o progresso, com a substituição dos frutos pela
(acumulação) de simples coisas, com a obsessão de somar objetos. Assim,
a perfeição do ser, em última instância, implica ter (...) O indivíduo
busca a perfeição e esta identifica-se com um afã de progresso infinito
relacionado com os objetos, um progresso que implica a negação do velho
desejo que simplesmente pretendia conservar a vida, comprometido
com o mero estar. (CULLEN, 2003, p. 53, grifos do autor).
Influenciados por uma visão europeia, não suportamos o medo e o
estar, pois isso nos angustia, diferentemente do indígena, que ao sentir
medo recorria aos bruxos em busca de ajuda. Para eles, assumir a dimensão
298
humana é viver a nível da terra e enfrentar nossos temores. Para nós, isso
não é suficiente, pois queremos tudo claro, esclarecido e passível de ser
compreendido e manipulado pela razão. É como se houvesse um
imperialismo da racionalidade que, na verdade, revela a nossa fraqueza e
impotência frente à totalidade daquilo que deveríamos pensar e viver.
Somos incapazes de simbolizar ao pensarmos em termos ocidentais, pois
queremos reduzir tudo a uma relação de causa e efeito. Diante desse
quadro, podemos constatar na sociedade americana uma dupla polaridade:
de um lado, o “mero estar” e, de outro, o “ser alguém”, conforme expressões
kuschianas. Ou seja, vivemos uma rara mescla de um não saber da vida que
se apresenta e se constitui de uma profundidade cotidiana incompreensível
por meio de técnicas e lógicas pedagógicas e científicas e um saber
enciclopédico, acadêmico e pautado pelos livros. Segundo Rodolfo Kusch,
a noção de cultura que predomina entre nós, por influência europeia, não
passaria de um simples fetichismo.
O melhor exemplo é a livraria. Entramos nela e sempre sentimos nossa
inferioridade frente a tanto saber contido nos livros. Seguimos vivendo
a enciclopédia científica em nível cultural. Pensa-se que esse saber
acumulativo que se dá no ensino e que se cristaliza na livraria é uma
vantagem do século. (...) O que o século XX chama cultura reduz-se,
então, a um simples fetichismo (KUSCH, 2000, p. 22).
Portanto, o solo, o medo da ira divina, as forças hostis da natureza,
o aqui e o agora da vida, são as características centrais para se pensar e
compreender a singularidade da cultura latino-americana: é o “mero estar”
como estrutura existencial e como decisão cultural. Diferente do mundo
do “ser” que define e que faz referência à essência, o mundo do “estar”
299
assinala e aponta a condição, o modo exterior de tudo aquilo que existe
(ente), sem preocupação com uma interioridade.
O mundo do estar não supõe uma superação da realidade, mas uma
conjuração da mesma. O sujeito continua tendo a realidade frente a si,
porque carece de ciência para atacá-la. [...] O mundo do ser, ou seja, o
ocidental, aparentemente resolve o problema da hostilidade do mundo
mediante a teoria e a técnica. (KUSCH, 2007a, p. 116, grifos do
autor).
No horizonte simbólico americano destaca-se o predomínio do
estar, ou seja, de um viver puro, domiciliado e prendido a um solo que se
apresenta como inalienável, mágico, profundo e autêntico. Isso quer dizer,
explica Kusch, que nas culturas ocidentais, e que é bem manifesto na
América, o ser se sobrepôs ao estar, conquistando-o. Porém, a trajetória do
estar se confunde com o caos de um mundo que angustia, de um “mundo
que é assim” e que deve ser contemplado e vivido, não no sentido de um
progresso e de explicações científicas, simplesmente.
De um lado, o mundo do ser europeu-ocidental que se pauta pela
ideia de um progressismo civilizatório, racional, superior, a partir de uma
lógica de racionalidade fundamentada segundo o esquema de um sujeito
individualizado e autônomo que se sobrepõe a um objeto que é coisificado,
drenado de subjetividade e de raciocínio.
O sujeito ocidental implica um avanço sobre o mundo e uma
modificação deste. [...] Uma cultura que constrói o predicado como
algo essencial, ou seja, subordinando ao sujeito a uma ordem superior
e teórica, como ocorre na lógica ocidental. (KUSCH, 2007c, p. 268).
300
O homem ocidental, que pretende “ser alguém” indo à escola,
como veremos, apoia-se em um conhecimento da realidade, interpretando-
a como obstáculo e como um objeto a ser manipulado e como uma coisa
a ser manipulada. A ansiedade e o medo que desperta o mundo são
enfrentados com ações exteriores que lhe dão forma, criando uma outra
realidade.
De outro lado, o mundo do “mero estar” americano que não supõe
uma superação da realidade demoníaca, bárbara e indesejável, mas faz uma
invocação a ela, colocando-se e colocando-a à sua frente. Enquanto o
Ocidente cria a ciência e a educação para se contrapor e enfrentar o medo,
o indígena se mantém em sua magia, em seus rituais, conservando a
realidade do mundo, limitando-se a interagir com a natureza, retirando
dela o melhor proveito, mas com um profundo respeito.
O estar, o estar aqui ou mero estar é uma possibilidade para amenizar a
crise e a neurose cultural de nossos tempos. Eis aí uma opção decolonial
que nos apresenta [Kusch], como giro ou virada existencial e vivencial,
neste momento de crise da modernidade e do humanismo ocidental.
Este giro decolonial é outro ensino que nos propõe um pensar
geoculturalmente situado a nós que vivemos em outras latitudes.
(ESPOSTO, 2018, p. 145, grifos nossos).
Se o primeiro concebe e transforma a escolarização em um processo
de formação para levar o aluno a “ser alguém” por meio dos saberes
científicos e tecnológicos e pela normalização e disciplinamento ou
moralização da vida bárbara, irracional e arcaica, o segundo, por sua vez,
procura se integrar à realidade que o constitui, conservando e conservando-
se frente à natureza.
301
Esta dupla forma de situar-se e dualidade penetrou no imaginário
educativo, de modo que se pensa - de maneira similar à de Comênio -
na educação como preparação para ser alguém sob as figuras de ser
adulto, civilizado, cidadão, trabalhador. Nesse sentido, a escolarização
tem negado ao sujeito cultural popular, tentando substituí-lo pelo
sujeito pensante que coincide com o sujeito civilizado que pensa a
América; pensar dessa forma significa ser alguém. (HUERGO, 2015,
p. 41, grifos nossos).
Enfim, podemos dizer que essas duas formas de ver e agir sobre o
mundo, marcam e orientam as práticas, inclusive pedagógicas, e as
identidades que constituem e formam a América Latina. Resumindo:
uma, que se baseia no intelectual, vê apenas objetos e constrói práticas e
técnicas que contribuam, pressionem e levem o indivíduo a ser alguém;
outra, que se funda no emocional, provendo o mundo de signos e deuses,
representa e exprime o mero estar. Em geral, a pedagogia e a didática
obedecem à primeira forma, considerando-a como o único sentido possível
das práticas educativas ao privilegiar o racional, o número, etc., que,
internalizado, desconfia ou até proíbe tudo aquilo que provém do
emocional e de seus deuses, estigmatizados como demônios, degradação,
perigos e deformações. É o que exploraremos a seguir.
Os deuses não estão interessados em números, mas na unidade densa
onde a vida ainda existe.
Como dissemos acima, Kusch não se dedicou estritamente ao tema
da educação, porém alguns de seus escritos fazem referência direta ou
indiretamente a vários conceitos e noções que poderão nos ajudar a pensar
e a construir uma perspectiva pedagógica desde ou para um lugar situado
302
que é a América. Retomando ou se inspirando em categorias como “ser
alguém” ou “mero estar”, ele aborda o tema da educação de maneira mais
direta em textos como “Ser alumno en Buenos Aires”, “Um maestro a
orillas del lago Titicaca” e “¿Saber o sabiduria?” (KUSCH, 2007b), no
sentido de sintetizar e exprimir a singularidade e a maneira de um pensar
e de um sentir que mobiliza e atravessa a história dos povos originários
latino-americanos. Kusch, em suas andanças pelos altiplanos andinos pode
perceber dicotomias e ambivalências que se opõem, contradizem, negam e
tensionam com o pensamento hegemônico, inclusive no processo de
escolarização, que aqui se instaurou. Acerca dessas viagens, ele registra no
exórdio de América Profunda, livro de 1962: “em umerosas viagens ao
altiplano e a investigação sobre religião pré-colombiana, limitada às zonas
quéchua e aymará, deram-me a pauta de que havia encontrado
provavelmente as categorias de um pensar americano.” (KUSCH, 2007a,
p. 3). Seria muito interessante fazer um estudo sobre a sua proposta
metodológica, objetivo que fica para outro trabalho. Para a sequência deste
escrito nos limitaremos a refletir sobre um de seus textos “pedagógicos”.
Em “Ser aluno em Buenos Aires”, Kusch (2007b, p.563) relata o
que significa ir à escola e como ela funciona, mas em uma perspectiva que
dê respostas originais e problematize os condicionamentos impostos pelo
pensamento ocidental eurocêntrico que tem marcado e constituído a nossa
realidade latino-americana. Dito de outro modo, a proposta de Kusch é
indicar que a marca do Ocidente, com o processo de colonização, foi
universalizar os seus valores, suas crenças e pensamentos, seja no campo da
ciência, da filosofia e na educação, desvalorizando o que nos é específico e
singular e que forma a cultura da América desde tempos imemoriais.
Muito semelhante a um conto, “Ser aluno em Buenos Aires” não
apenas narra questões especificamente pedagógicas, mas revela a coerência
e a sintonia com as reflexões filosóficas e antropológicas que empreende
303
em suas obras. A partir de um lugar fertilmente arraigado, Kusch faz brotar
elementos essenciais para se pensar em uma educação libertadora e
emancipadora, gerada no contexto de uma cultura e de uma vida que
forma e movimenta orgânica e animicamente a “nuestra América”.
Inicialmente parece denunciar que o processo de escolarização promove,
sob a influência europeia-ocidental, baseada no “ser”, uma separação e uma
contradição entre o sujeito e o objeto, o indivíduo, a comunidade e o
mundo. Procurando racionalizar e construir uma subjetividade
desarraigada e cindida, a educação faria a promessa de que o indivíduo
quando vai à escola pode e deve “ser alguém”. Assim, relata Kusch:
Fomos alunos em Buenos Aires por muitas razões. Uma delas porque
mamãe nos levou aos empurrões e bruscamente ao colégio, outra
porque fomos sempre rapazes muito aplicados, outra porque já éramos
grandes e queríamos melhorar no emprego, ou tomar contato com
outra ordem de coisas, como a cultura e a técnica. É provável também
que tínhamos na família algum tio, que ocupa agora uma alta posição
em uma empresa por ter estudado. Nossos pais levaram em
consideração este exemplo e nos disseram: “Olha, vocês têm que
estudar para ser alguém na vida”. Então, logicamente, ingressávamos
em alguma instituição. (KUSCH, 2007b, p. 563, grifo nosso).
Esse processo inicia-se pela entrada na escola que, se nos primeiros
dias e meses parece ser um lugar divertido, onde se experimenta um clima
novo, com mudanças no ritmo da vida, na maneira de olhar as coisas, de
novas relações, etc., chega um momento em que passamos a viver situações
desagradáveis e até amargas, pois devemos estudar. A sala de aula torna-se
um espaço que, se permite brincadeiras e algazarras, com a chegada solene
do professor produz-se um silêncio para que a aula comece. Todos passam
a estudar a lição do dia, mesmo que não entendam nada, em que o
304
professor propõe atividades e exercícios, o que o torna os primeiros
momentos parecerem horas intermináveis, sobretudo se se comete
tropeços, erros e incompreensões do conteúdo. Embora se tente acertar,
muitas vezes o que se tem como resultado é uma avaliação condenatória:
“Sente-se! Você não sabe nada. Nota um para você!”. A escolarização, nesse
sentido, não passaria, então, de um processo de redução do aluno a um
número. Porém, diz Kusch:
somos muito mais que um número. Ou, pelo menos, não se leva em
conta o verdadeiro sentido dos números. Afinal, quando inventaram as
matemáticas? Melhor dizendo, os números já existiam quando o
mundo foi criado ou quando nos perdemos [ou seja, quando houve a
queda do paraíso]? Em outras palavras, antes ou depois de Adão? Todos
dirão que foi depois de Adão, porque antes não existia colégios
nacionais. No entanto, a coisa não é bem assim. As matemáticas foram
inventadas quando o mundo foi criado, assim nos disse Pitágoras. Por
exemplo, o zero era o ovo original do mundo, dele saindo a divindade,
ou seja, o número um. Depois, o casal original, ou melhor, Adão e Eva.
E posteriormente a trindade, para em seguida o quatro como símbolo
do mundo, e depois todas as coisas. Os carros, as casas, os trens, as ruas,
Buenos Aires e os professores.” (KUSCH, 2007b, p. 564).
Somos muito mais que um número. Esse parece ser o grande
desafio e problema que a educação moderna não parece querer enfrentar.
Baseada da lógica do “ser”, reforçada pelo desejo de “ser alguém”, o “estar”
histórica e divinamente situado e arraigado, como identidade, cultura e
horizonte simbólico dos povos latinoamericanos, é traduzido em práticas
de expropriação, de colonização, de subordinação e de extermínio. Ao
transformar o aluno em um número, a educação o equipara a mais um
objeto, como “os carros, as casas, os trens, as ruas”, perdendo a densidade
305
que existe na vida, na terra, na comunidade, na paisagem e na cultura,
enfim, indo, “no sentido contrário da criação”, como lembra Kusch
(2007b, p. 565). O processo de quantificação do mundo e das pessoas é,
de fato, perturbador, assim como foi para o aluno que recebeu, ou melhor,
foi castigado com nota um. Como dizer que o aluno não sabe nada?
se somos pequenos, sabemos algumas coisas, sim. Sabemos jogar bola.
Sabemos tudo o que diz respeito à mãe de alguém, isto é, do seu
carinho, dos seus resmungos enquanto faz a comida ou do que nos diz
quando voltamos tarde. Se somos grandes, sabemos tomar iniciativas,
ou sabemos seguir uma mulher pela rua. Se se é casado, sabemos dizer
à esposa tudo o que corresponde quando ela está nervosa e amargurada
por lavar os pratos todos os dias e nem receber nunca uma nota um
(...) E acima de tudo, grandes e pequenos, eles conhecem o quarto que
vivem, se é pequeno ou desarrumado, sabem sobre as ruas do bairro, o
armazém do quarteirão, as casas simples, a menina que mora em frente,
o bêbado que mora ao lado, o louco da esquina, e sabem sobre o solo
que se pisa, as ervas daninhas [yuyos], as árvores, a terra, as pessoas e
sobre a sua vida e de sua morte, em resumo, algo de América é
conhecido. De tudo isso se sabe. E tudo isto realmente não vale nada?
(KUSCH, 2007b, p. 565).
No entanto, o que se tem visto, e nisso Kusch é certeiro em seu
diagnóstico, é um desprezo, uma desvalorização e uma invisibilização dessa
vida densa e divina que pulsa nas pessoas e no mundo, em nome de uma
única verdade: “você tem que ser alguém”. Para tanto, ao invés da nota
um, você precisa de um dez, o que vai tornando a vida bastante
desanimada, em que a alma (anima) vital vai se esvaindo, tudo porque se
precisa estudar mais e mais. Seduzidos por esse discurso, os alunos até que
enfim conseguem o tão desejado e merecido dez, pois as regras gramaticais,
os teoremas e as classificações de botânica começam a exercer sobre nós um
306
raro encanto. “Tudo aquilo que antes era odioso, agora nos parece
luminoso, brilhante e até bonito [...] Nos sentimentos beatificados [...]
Ganhamos a santidade” (KUSCH, 2007b, p. 566). Agora ninguém tem
mais medo de fracassar, porquanto todos passam a compreender que “ser
alguém” é, de fato, o melhor caminho; é um ideal de vida a ser aspirado,
bastando manter o dez pelo resto da vida, mesmo que para isso seja
necessário abandonar o “estar”, ou seja, “uma vida marcada, conduzida
diariamente desde a infância até a morte, no bairro, pisando o solo, aqui,
encerrados na América” (KUSCH, 2007b, p. 568). Mas que ensinamentos
podemos tirar disso tudo?
Para Kusch, é justamente aí que se encontra o grande problema da
educação e da escolarização na América: ser aluno em Buenos Aires para
“ser alguém” é deixar-se de “estar”. Em outras palavras, é praticamente
negar o que está em baixo, nas ruas, na terra, na comunidade, nos
símbolos, nos valores e no ethos popular que forma a América. É isso que
Kusch parece denunciar. Viveríamos em uma época caracterizada pela
lógica instrumental herdada de um longo processo de desenvolvimento
científico marcado pela homogeneidade e o reducionismo e pela
onipresença da tecnologia.
A necessidade de predizer a ação em uma ordem estabelecida levou os
ideais da modernidade [europeia] a consumar-se como modernização
tecnológica, vincular, negando as sabedorias arraigadas em América,
que lutaram e resistiram, preservando de geração em geração os ritos
orais e a memória coletiva dos povos ancestrais, como também na
mestiçagem produzidas no cotidiano das novas cidades. (TASAT,
2019, p. 111)
307
Somos tão ocidentalizados que aqueles que, na América, se negam
a entrar na lógica do “ser alguém” são considerados preguiçosos, pois não
querem subir na vida e, por isso, são inúteis, fracassados e se contentam a
“estar” apenas. No entanto, como vimos, o que predomina na educação,
nos termos expostos por Kusch, é uma desvalorização daquilo que dá peso
e densidade à vida. Quem não obtém nota dez é lançado fora do sistema,
é como se ele não fosse nada, bem na lógica proposta por Parmênides: “o
ser é, e o não-ser não é”, ou melhor, “o ser é e o nada não é”. É seguindo
justamente este raciocínio que “o professor pode [atribuir dez] em nome
de Parmênides, porque o aluno traz consigo uma vida marcada de seu
bairro, e isso não convém”, diz Kusch (2007b, p. 568), porque o que
interessa é se ele tem condições para ser, isto é, “ser alguém”. O ser vivo
denso, divino, tal como os números se apresentavam em Pitágoras,
revestidos de divindade e de um caráter germinativo do mundo, como era
o zero, perde seu valor. O que vale é o dez, mas apenas como um número
esvaziado de sentido e de significado.
Nesse sentido, é que Kusch vai concluir o seu texto, “Ser alumno
en Buenos Aires”, afirmando que em nossa época os deuses se acabaram,
restando-nos apenas os números, como quantificação e instrumentalização
do mundo e da vida.
Os deuses não estão interessados em números, mas na unidade densa
onde a vida ainda existe. Para eles, tirar um dez, é como tirar um zero,
ou seja, você tem que começar tudo de novo, sempre. O verdadeiro
sentido da vida não é apenas cumprir o pequeno dever, mas assumir
sempre um pouco a criação do mundo. Não podemos dizer sem mais
que o mundo está criado, mas que cada um deve sempre assumir, com
toda a sua vida, sua própria criação, tal como ocorre nas profundezas
do bairro e nas profundezas da América. E é tão difícil isso. Mas essa é
a lei dos deuses. Primeiro o zero com o caos, depois a divindade com o
308
um e assim por diante até o infinito. Porém, só assim com os deuses.
Porque, do contrário, seríamos uma esfera apenas, porém sem vida.
(KUSCH, 2007b, p.568-569)
Portanto, uma educação que se pretende emancipadora e
libertadora talvez não devesse prescindir de considerar essas reflexões
trazidas por Rodolfo Kusch, de maneira a contribuir no enfrentamento e
na construção de práticas pedagógicas criativas, inquietas e profundas. Essa
ideia de que o sentido da vida está em assumirmos a nossa responsabilidade
como criadores de mundo é bastante inspiradora para que olhemos o
espaço da escola e da sala de aula com um novo significado.
Considerações Finais
Ser alguém ou meramente estar? Neste texto, quisemos mostrar
que esta pergunta é na atualidade uma interpelação fundamental e
inovadora que pode contribuir para pensarmos novos modos e novos
métodos para abordar a questão do educar. Desarraigada, a realidade
educacional parece que tem passado ao largo das inquietudes que a vida
desperta em todos envolvidos no processo pedagógico. Talvez isso pode
nos levar a compreender grande parte das angústias e da insegurança que
futuros professores têm experimentado nos anos finais dos cursos de
licenciaturas, à luz do que constatam quando têm oportunidade de
conhecer e observar o ambiente escolar.
Desde a formação até a prática docente na sala de aula o que se vê
é um processo de desarraigo em relação à dinâmica que constitui a vida,
tendo em vista que prevalece um olhar e um pensamento hegemônico e
excludente, que pretende tudo igualar, homogeneizar e nos tornar parte de
309
uma totalidade que define o que é a felicidade, a verdade e a boa educação.
Fundada na ideia de “ser” ou “ser alguém”, tudo que está fora ou não se
encaixa nessa totalidade é bárbaro, selvagem e passível de ser dominado e
até exterminado, como foram os povos originários latinoamericanos.
É a partir desse diagnóstico, feito por Kusch, que talvez seja
necessário assumirmos uma maneira de pensar e de agir educativo a partir
daquilo que foi negado pela positividade ocidental. Diferente de um
professor como aquele de Buenos Aires, o desafio está em termos uma
formação que aclare que o arraigo no solo que habitamos não é outra coisa
senão levar em conta a condição humana como “estar” e desde aí buscar
alternativas nas formas de ser, resistindo a um pensamento totalizador e a
uma superestrutura que se pretende idêntica para todos os sujeitos,
suprimindo as diferenças. A partir de uma atitude decolonial, talvez esteja
no momento de considerar, promover e atender à fecundidade do diálogo
entre diversas de “estar no mundo”, reconhecendo e valorizando os vários
sentidos de viver. O “estar” não é terra de ninguém e, por isso mesmo, é
de todos, o que significa dizer que mais do que dominar uns aos outros, a
tarefa, inclusive educativa, é aprender uns com os outros. Em uma periferia
de uma grande cidade, por exemplo, a escola poderia se lançar a um
processo de aprendizagem dos modos de ser, de estar, de viver, de sentir,
de pensar, de se organizar, etc., da comunidade que atende. Com isso,
podemos sair do processo de submissão e incorporação de um único modo
de entender e exercer a tarefa educativa, pautada em parâmetros e critérios
apresentados como supostamente universais para definir a qualidade da
educação.
Neste sentido, edificar um novo pensar e um novo agir, inclusive
pedagógico, talvez seja necessário para nos contrapor aos impulsos
individualistas do eu moderno, de matriz cartesiana, e refletir sobre um nós
que não seja metafísico e nem abstrato, mas arraigado em suas origens,
310
situado na terra e em suas raízes. Isso significa dar um passo atrás, voltar a
um estado embrionário que, como uma semente que cresce, possa dar
frutos, enfim, uma semente que germina sem determinismos e que se
compromete com o mundo a partir de um “mero estar”, em contraponto,
mas não em substituição, “ser alguém”. Para tanto, talvez seja necessário
buscar uma mestiçagem, isto é, um diálogo e um hibridismo entre o “ser”
e o “estar”, o que pode favorecer a pensarmos em um “estar sendo”, pois
nossa autenticidade [latinoamericana] não se funda no que o Ocidente
considera autêntico, mas em desenvolver a sua estrutura inversa, na
forma “estar sendo” como única possibilidade. Trata-se de outra forma
de essencialização, a partir de um horizonte próprio [o latino-
americano]. Somente o reconhecimento de este último dará nossa
autenticidade (KUSCH, 2000, p. 239).
Se o processo colonial na América Latina buscou eliminar e acabar
com todos os deuses, manifesto nas crenças, nos símbolos, nos ritos e mitos
indígenas, transformando o mundo, as coisas e os humanos em objetos,
em algo quantificável, pois só assim se pode “ser alguém”, nos parece que
a educação também é herdeira desse processo. Por isso, vale a pena insistir
em uma tarefa educativa que resista e inverta com inteligência crítica,
dialógica, argumentativa e responsável a esse processo que destrói,
desrespeita, deslegitima, invisibiliza e desvaloriza o que é diferente o
outro. Enfim, que comecemos por nos ocuparmos do outro que é, sem
sombra de dúvidas, uma maneira de ocuparmos de nós próprios. Essa
parece ser a nossa interpelação ética!
311
Referências
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subjetividade. Buenos Aires: UBA, 2007
CUNHA, M. I. Formação de professores: espaço e processos em tensão.
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formão de professores. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
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americano: lecturas y reflexiones. Buenos Aires: Biblos, 2018.
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia
do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
HUERGO, J. La educación y la vida: un libro para maestros de escuela y
educadores populares. La Plata: Universidad Nacional de La Plata, 2015.
KUSCH, R. América Profunda. In: Obras completas. Rosário: Editorial
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KUSCH, R. Obras completas. Rosário: Editorial Fundación A. Ross,
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KUSCH, R. Obras completas. Rosário: Editorial Fundación A. Ross,
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312
QUENTAL, P. de A. A latinidade do conceito de América Latina.
GEOgraphia. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense. v. 14, n.
27. 2012. Disponível em https://bit.ly/3jI94IR. Acesso em 20 abr.
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SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra:
Edições Almedina, 2009.
TASAT, J. A. La educación negada: aportes desde um pensamento
americano. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2019.
313
História Cultural e Ética Intercultural:
reflexões sobre o ensino do ETHOS
Latino-Americano
Mateus de Freitas BARREIRO
85
Introdução
Neste capítulo, discutem-se algumas contribuições da história
cultural e da ética intercultural, tendo como propósito, refletir sobre o
reconhecimento dos ethos latino-americano na educação escolar e na
sociedade como um todo. Desde a colonização da América Latina, foram
praticadas diversas formas de violências pelos colonizadores, incluindo a
imposição de um ethos eurocêntrico, ocasionando um “memoricídio” das
tradições ameríndias. Nas últimas décadas, os diferentes ethos latino-
americanos, apresentaram um modo plural de estar na modernidade e de
estar na escola, constituindo processos de identidades multifacetadas,
geralmente marcados por processos de segregação. O desenvolvimento
deste ensaio tem a finalidade de iniciar um diálogo interdisciplinar sobre a
eticidade latino-americana, debatendo como os ensinos das éticas
deontológicas tende a definir uma normativa de como as pessoas devem
pensar, viver, trabalhar e ser no mundo.
85
Doutorando em Educação na Faculdade de Filosofia e Ciências, na Universidade Estadual
Paulista UNESP/Marília, Brasil. E-mail: mateusfbb@gmail.com
https://doi.org
/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p313-330
314
O conjunto das reflexões indica que, cada vez mais, a ética deve se
consolidar como prática educativa para a formação da cidadania, da
pedagogia escolar e para a organização da sociedade. As contribuições da
história cultural e da ética intercultural, apresentam como diferencial, o
reconhecimento dos ethos latino-americanos e, com isso, contribuem para
reforçar tais aspectos no desenvolvimento de uma educação escolar que
possa levar a formação de uma densa consciência focada na formação
cultural e política de nosso continente. As diversas crises da moral sobre os
rumos do mundo moderno e da América Latina, tornam-se um desafio
para encaminhar soluções para a questão da formação ética e para a
ausência de pensamento crítico em diferentes contextos sócio-políticos. A
educação caminhou sempre próxima da filosofia desde a Antiguidade, pois
a filosofia se constituiu como uma intenção educacional de formar o ser
humano. Ao longo das últimas décadas, a educação tem sido
predominantemente utilizada para o desenvolvimento de saberes técnico-
instrumentais, enquanto o ensino da ética acabou ficando em segundo
plano, ainda com o agravante que a ética tende a estar desvinculada das
culturas locais.
Na América Latina, o ensino da ética carece de pesquisas a respeito
das experiências populares de diversas culturas. Para contextualizar a ética
na América Latina, mostra-se necessário entender as diversas culturas
latinas, que compõem um conjunto de símbolos e significados, levando
em consideração as diferentes perspectivas de olhares, em uma dada época
e em uma dada sociedade. De modo geral, a história cultural em suas
diferentes vertentes, ao analisar o processo histórico das diversas formações
culturais na América Latina, poderá manter diálogos interdisciplinares
com a ética intercultural, envolvendo outros campos de saber como a
história da educação.
315
Levando em consideração os objetivos do presente capítulo faz-se
necessário uma breve introdução sobre os pressupostos básicos da história
cultural, com o intuito de iniciar diálogos com a ética intercultural. A
partir deste debate introdutório sobre a eticidade latino-americana, será
possível pensar como o ensino da ética, poderá se desvincular dos
pensamentos colonizadores, de um ethos civilizatório, mas sem deixar de se
reconhecer as características da modernidade que tensionam com as
culturas latino-americanas.
A história cultural em suas diversas matizes procurou entender os
sentidos que emergem no interior de uma cultura popular, desvinculando-
se das grandes narrativas históricas, responsáveis pelos costumes
preponderantes de uma época. Visando traçar um amplo e profundo
panorama sobre a história cultural, Peter Burke (2005) na obra O que é
História Cultural? realiza uma detalhada pesquisa bibliográfica sobre a
trajetória da história cultural, remontando às contribuições de diversos
autores e aos desafios que a história cultural teria que enfrentar.
O conceito de cultura popular, primordial para história cultural, se
fez presente em obras que abriram caminhos para estudar as manifestações
de diversos povos e suas culturas em momentos diferenciados no tempo e
no espaço. Dentre tais estudos merecem destaque, entre outros autores, as
obras de Eric Hobsbawm (1959) História Social do jazz, de Edward
Thompson A formação da classe operária inglesa (1987) e O queijo e os
vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição
(2017), de Carlo Ginzburg. Peter Burke (2005) destaca ainda o
surgimento, em fins da década de 1980, do movimento que ficou
conhecido como Nova História Cultural (NHC), marcado por
continuidades e rupturas com o movimento inicial da História Cultural,
enfatizando a história dos imaginários, mentalidades, emoções e política.
Neste contexto, as obras anteriores de grandes expoentes de diferenciados
316
ramos do conhecimento humanístico contribuíram para fundamentar os
caminhos da NHC, podendo-se mencionar dentre eles Lévi-Strauss
(1976), Norbert Elias (1994), Michel Foucault (1972) e Pierre Bourdieu
(1983).
De acordo com Peter Burke (2005), a história cultural não é
monopólio dos historiadores, mas é uma disciplina de caráter
multidisciplinar, por isso é complexo definir precisamente o que é história
cultural. Embora a história cultural seja uma disciplina que possui um
campo autônomo, ela serve de fundamento para outros campos de
pesquisas, como os estudos em história da educação, que também tem seu
objeto próprio, mas que se interliga a outras disciplinas históricas ou com
elas caminham juntas. A intersecção entre história cultural e história da
educação, faz aproximar dois segmentos de saberes que fornecem
entrecruzamentos para se pensar a eticidade na América Latina. Os
historiadores da cultura têm como um dos desafios, tentar contornar as
intermináveis discussões sobre os objetos culturais que constituiriam a
matéria-prima da história cultural, mas ao mesmo tempo, encarar a
dimensão ou perspectiva cultural como algo que está presente na
economia, na política e na sociedade como um todo (FALCON, 2006).
Neste sentido, à história cultural interessa o estudo da “teia simbólica”,
tecida pela tensão dialética entre a modernidade e as culturas latinas,
acrescendo ainda, os olhares da história cultural sobre as narrativas
cotidianas das culturas locais.
Segundo Falcon (2006), a história da educação utiliza os
procedimentos metodológicos, conceitos e referenciais teóricos, incluindo
muitos objetos de investigação da história cultural. A ideia de compreender
o cotidiano dos grupos e da cultura popular, também pode se estender para
as instituições escolares na América Latina, pois as práticas de ensino da
ética devem considerar as múltiplas de subjetividades, fruto de diferentes
317
comunidades e culturas locais (FALCON, 2006). Algumas dificuldades se
interpõem em relação às pesquisas sobre certas culturas originárias da
América Latina, principalmente as que se referem às poucas provas
documentais para seu entendimento e compreensão, necessitando de
debates interdisciplinares, para um maior alcance hermenêutico sobre as
culturas orais, como o que foi realizado nos estudos de Carlo Ginzburg
(2017).
Em sua obra O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela Inquisição, o historiador italiano, Carlo Ginzburg
(2017) elucidou aspectos dos imaginários da cultura oral do campesinato
italiano do século XVI da região do Friuli, atendo-se especificamente a um
personagem específico, o moleiro, Menocchio. Nesta análise Ginzburg
desvenda a dinâmica das relações entre as culturas locais, ligadas a tradições
populares provindas de culturas orais antigas e a cultura dominante das
narrativas dos inquisidores que interrogaram Menocchio. Este movimento
de perceber a história, opondo-se às visões e conceitos do pensamento de
uma cultura hegemônica e das metanarrativas, são cruciais para entender a
dialética dos conflitos entre as chamadas culturas dominantes e dominadas.
Segundo Sloterdijk (2012), os olhares comuns sobre as culturas e
subculturas, tendem a utilizar códigos binários, como por exemplo, o
nobre versus comum, para culturas cognitivas, conhecimento versus
ignorância, para culturas militares, covarde versus valente, para culturas
administrativas, subordinado versus superior, para culturas políticas,
poderoso versus impotente e assim adiante (SLOTERDIJK, 2012). O
pensamento de Sloterdijk dá um passo além; ao sustentar que a um dos
polos, é socialmente atribuído um valor mais elevado do que outro.
Enquanto o primeiro torna-se um atrativo, o segundo emerge entendido
como algo de grandeza negativa, a ser evitado, exercendo sobre o homem,
uma influência orientadora para pensar e agir, fundamentada em uma
318
tensão permanente entre polos negativos e polos positivos (BRUSEKE,
2011)
Com a aceleração da globalização, as características dos processos
de identidade na América Latina revestem-se de uma relação ambivalente
com o pensamento da modernidade, merecendo maior profundidade para
entender a multiplicidade cultural, singular à América Latina. Para
Jurandir Malerba (2009), as perspectivas teóricas de problemas ligados aos
campos da história social e da nova história cultural, poderiam aprofundar
temas condizentes com os problemas estruturais da América Latina, como
por exemplo, a autenticidade dos pensamentos formulados na América
Latina, para explicar sua história e situação presente. As críticas de Jurandir
Malerba (2009), tem como alvo, as fragmentações dos objetos de estudo
do pós-estruturalismo e seus sucessores, que segundo o autor, sedimenta a
cultura em vários nichos, dificultando uma visão abrangente sobre os
problemas estruturais da América Latina. Polêmicas à parte, não se pode
acusar a história cultural de centralizar as interpretações sobre uma cultura,
mas pelo contrário, a diversidade de objetos de estudos que a história
cultural se propõe a estudar, poderá auxiliar na compreensão das diversas
formações culturais da América Latina, contribuindo para traçar um
panorama geral. Aos poucos, os estudos da história cultural, abriram
perspectivas fora do continente europeu, ao se desprender de antigos
conceitos teóricos generalizantes, movendo-se em direção aos valores de
grupos particulares, em locais e períodos específicos, onde há a
preocupação em incluir pessoas comuns e suas experiências concretas no
cotidiano local.
A historiografia tradicional pode ter ignorado um olhar sobre as
culturas populares, formando uma visão unilateral ao enfatizar as grandes
narrativas, que muitas vezes apresentam resquícios de pensamentos
colonialistas. Falar sobre um pensamento originário da América Latina
319
requer a busca de uma memória que foi perdida; um ponto de partida de
pensamento muito distante do logocentrismo ocidental e das clássicas
noções de temporalidade, mas paradoxalmente alguns saberes e conceitos
desenvolvidos na Europa, poderá auxiliar a olhar a eticidade do outro, a
partir de uma alteridade sensível, uma alteridade que não é formal, mas da
ordem ontológica, nas raízes da profundidade humana.
Memoricídio do ETHOS Latino-Americano
Os primeiros colonizadores europeus da América Latina
sustentavam a falsa ideia de descobrimento de uma nova terra, ignorando
a realidade de uma terra que estava habitada por seu povo originário. A
expressão “descoberta” da América Latina carrega um sentido de
apropriação sobre algo que é novo, um domínio sobre bens naturais,
sociais, culturais e simbólicos; estes modos de apropriações visam legitimar
a posse sobre um povo e a sua terra.
A expansão do domínio europeu sobre o “Novo Mundo”, ocorreu
em um amplo período histórico, marcado pela transição do pensamento
medievalista, para o pensamento moderno, culminando em um processo
de ruptura com as tradições religiosas de mundo, constituindo um
conjunto de experiências de cada indivíduo consigo mesmo e com os
outros. Contudo, o compromisso dos colonizadores em “catequizar” a
América Latina, ainda permaneceu na modernidade, causando uma
espécie de "memoricídio" do ethos originário dos ameríndios.
A história cultural é um ramo do conhecimento importante para o
entendimento do jogo de verdades e forças que compõem os conflitos entre
povos colonizadores e os povos originários da América, pois ela constitui-
se em um vasto campo de conhecimento que permite um olhar
320
diferenciado sobre este choque cultural ocorrido a partir do século XVI,
com desdobramentos para o entendimento das culturas populares latinas,
que perduram até os dias de atuais, adentrando o universo da sociedade
como um todo, incluindo as culturas escolares.
Deste jogo de forças fazem parte instituições que são pilares de
sustentação da sociedade no âmbito de cada uma das nações latinas, como
a Igreja, o Estado e mais recentemente, o movimento avassalador do
fenômeno da globalização. Ainda que de maneira tardia, nas últimas
décadas, foram realizados estudos para compreender as mentalidades das
culturas originárias da América Latina, que vem sofrendo uma espécie de
“memoricídio”, que consiste em um processo que não se resume em
colonizar a América Latina, expropriar riquezas de sua terra e cometer
genocídios, mas também em uma imposição para o esquecimento das
tradições dos habitantes originários da América Latina por meio da
sobreposição do ethos dos colonizadores.
Para Pierre Bourdieu (1983), o ethos é composto por vários
princípios internalizados que conduzem o indivíduo, de forma
involuntária, a aderir aos costumes partilhados por um grupo social. Para
entender a releitura que Bourdieu fez de Aristóteles e Platão, referente às
noções de ethos, eidos e hexis, tornou-se indispensável para ele condensar
estas noções e passar a entendê-las a partir do conceito de habitus. O
habitus norteia o modo das pessoas sentirem, julgarem e representarem o
mundo. Como estruturas que conduzem as ações e os pensamentos, o
habitus é indispensável para classificar, hierarquizar, ou ainda, expressar a
percepção do real através do corpo.
Com a colonização europeia da América Latina e a globalização
que vem ocorrendo nas últimas décadas, cada vez mais os ethos latino-
americanos se desintegram; ethos que trata das disposições internas do ser,
que compõe a sabedoria prática, pela héxis que corporifica os costumes por
321
intuição, a partir da experiência comunitária dos primeiros ameríndios. O
fato dos colonizadores tentarem transformar os ethos originários da
América Latina, em uma moral deontológica, tem como propósito a
imposição de um habitus “civilizatório”, legitimando os binôminos
civilizados-selvagens e dominadores-dominados. Desse modo, a
transformação do ethos dominante em uma moral universal, tende a definir
uma visão sobre como se deve ser e perceber a realidade. Nos modelos
deontológicos, a ética é compreendida como uma racionalidade que se
exprime por um conjunto de princípios universais. Na sala de aula, é
comum as práticas pedagógicas que prescrevam o que é certo ou errado,
bom ou ruim, sem promover uma discussão que levem o aluno a constituir
uma subjetividade única.
Nos períodos “pós-coloniais” o ethos moderno difundiu-se pelo
mundo, devendo ser pensado na perspectiva da modernidade. Conforme
a maior parte dos analistas contemporâneos, a modernidade pode ser
entendida como as mudanças nas concepções sobre o homem e a realidade,
que ocorreram progressivamente a partir do século XVI, e que tem frutos
em paradigmas fundamentados na noção de ordem, progresso, verdade,
razão, objetividade, emancipação universal, incluindo uma crença no
progresso linear da evolução da humana. Acreditou-se que o homem, fruto
de lutas históricas e sociais, seria livre e emancipado com o
desenvolvimento da modernidade. No entanto, não se eliminou a
dominação do homem pelo o homem, perdurando ainda os reflexos da
colonização e da escravidão.
A descrença nas promessas libertadoras da modernidade, que não
se concretizaram, estimularam o surgimento de estudos que buscassem
resgatar os processos de autenticidade do pensamento latino-americano.
Trata-se de um campo de pesquisa ainda recente, que começou a ser
estudado nas últimas décadas, por pensadores como Enrique Dussel
322
(2000), Rodolfo Kusch (1976), Ricardo Astrain (2010), Aníbal Quijano
(2000) entre outros.
Desse modo, refletir sobre os processos de reconhecimento de um
pensamento originário da América Latina, é muito produtivo debruçar-se
nos estudos do grupo de intelectuais que contribuíram para reconhecer a
autenticidade das culturas locais, tais como, sobre a contribuição dos
estudiosos como Kusch (1976) e Ricardo Salas Astrain (2010). Rodolfo
Kusch, filósofo e antropólogo argentino, tem trabalhado com a noção de
geocultura e formulou críticas sobre o “logocentrismo” de influência
europeia que dominou a interpretação sobre os saberes do homem latino-
americano. Nesse processo o autor recorreu à antropologia para observar
as culturas indígenas do Altiplano e dos campesinos, partindo de um olhar
para entender um saber local, que a filosofia logocêntrica não conseguia
assimilar fora de sua própria lógica. Já o chileno Astrain (2010) partiu para
a investigação dos fundamentos da ética intercultural, que se fundamenta
no reconhecimento do outro, a partir de um ethos local que está em
interação com diferentes tradições, se distanciando de uma moral
deontológica e de práticas que visam colonizar as culturas locais.
É necessário frisar que a proposta de reconhecer um ethos ou
pensamento latino-americano, passa por um movimento de retomar,
desconstruir e recompor, os próprios conceitos que analisam as diferentes
formações culturais. A autenticidade latino-americana, não implica em
uma ruptura total com os valores da modernidade ou pós-modernidade,
mas são processos complexos que vão se construindo ao longo da história,
que precisam ser reconhecidos como tais, com sua autenticidade.
Kusch (1953) em seu primeiro livro La seducción de la barbárie,
investigou a relação entre duas racionalidades presentes na América; o
ocidente, centrado no ser, no ente, no objeto, e por outro lado, havia o
pensamento indígena, focado no estar e no hábitat, que sempre foi
323
desconhecido pela cultura erudita e por muitos acadêmicos (KUSCH,
1953). Em diversas obras de Kusch, o autor mantém um debate crítico
com a filosofia de Heidegger, elucidando que o ser ocidental, entendido
enquanto Dasein, centra-se na apreensão do mundo e da natureza,
enquanto o estar é o significante que melhor representa a relação de
extensão do indígena com a natureza.
Heidegger (2001) também trabalha a questão em sua obra Ser e
Tempo, dando um novo sentido à noção de ser, desvinculando-se da
metafísica da “coisa” ou da substância, mas corresponde a uma abertura da
existência intrínseca do ser humano, a morada do homem no mundo
(HEIDEGGER, 2001). Para se ter uma dimensão, como a filosofia
europeia acerca do ser é hegemônica; para tanto, basta pensar sobre os
primórdios da tradição milenar do ser, iniciando-se com os pré-socráticos,
tendo como os principais expoentes Heráclito e Parmênides. A
problemática do ser aparece também nos fundamentos aristotélicos das
obras nomeadas Metafísica, possibilitando a Heidegger reinterpretar o
aristotelismo, no sentido de desvelar as estruturas ônticas do ser, que
estavam encobertas por uma metafísica aristotélica.
A busca por uma ontologia e epistemologia autêntica para a
América Latina, tem sido um dos maiores desafios de Kusch (1976),
mesmo que para isso seja necessário uma releitura de alguns saberes
filosóficos, para poder apresentar sua própria analítica existencial do “estar-
siendo”, entendendo que a uma pessoa só existe porque ela está se
relacionando com o seu próprio meio. Outra diferença do saber indígena,
é a busca pelo equilíbrio e o distanciamento de dicotomias como bem e
mal. Deste modo, o ethos indígena se afasta da ideia de combater um
suposto mal, com o suposto bem, mas a antropotécnica principal, seria o
equilíbrio entre as forças.
324
No livro Geocultura del hombre americano, Kusch (1976)
argumenta que o pensamento ocidental, concebe o homem da América
Latina como um ser incompleto, incapaz de se adaptar às diretrizes da
educação ocidental, baseada na técnica
e no positivismo. A cultura
ocidental eurocêntrica na América concentrou-se em espaços urbanos e
não conseguiu compreender a cultura do homem nativo. O homem nativo
resiste ao pensamento ocidental, porque ele não compreende a sua cultura,
fora de uma perspectiva orgânica. A cultura indígena, estudada por meio
do trabalho de campo e pela perspectiva antropológica, é uma cultura
completa em si, com horizonte simbólico próprio (KUSCH, 1976).
Diante do esforço de Kusch, em reconhecer a cultura originária da
América, seria possível pensar em um ethos originário da América?
Pensar em um ethos latino-americano implica uma reflexão
filosófica para o nosso tempo, orientado pela ética imanente do outro, um
pensamento sempre novo, voltado para a anterioridade do outro, uma
alteridade da ordem corpórea, mais sensitiva e menos representativa. O
sujeito moderno é o ser para a razão, com isso, afasta-se toda a possibilidade
de fala sobre o corpo, um corpo que apenas quer estar. Contudo, a ideia
de entender um ethos da América, a partir da noção de corpo, ainda se
mostra um gesto interpretativo que carece de maiores investigações, devido
à pluralidade da América Latina que é indígena, negra, branca, desigual,
regional, ideológica, enfim um Continente com problemas e tradições
híbridas.
Ética intercultural e os desafios para o ensino da
ética Latino-Americana
Na obra Ética intercultural: (re) leituras do pensamento latino-
americano, o filósofo chileno, Ricardo Salas Astrain (2010), sustenta que a
325
ética intercultural “é uma proposta filosófica que esboça teoricamente um
modo de compreender os registros discursivos que condensam as formas
de reflexividade em torno das normas e da cultura” (ASTRAIN, 2010, p.
17). Neste sentido, a partir da análise da noção de ética intercultural, é
proposto pensar na construção de um espaço aberto para alteridade. Os
processos de reconhecimento, que inauguram a possibilidade de
transcender, através do reconhecimento intercultural, propõem-se a
romper com as relações assimétricas que ocorrem desde a colonização a
as últimas décadas, sob as mais variadas formas de violências simbólicas.
A conquista de um bem ético comum, está associada à conquista
de uma vida em convivência, por meio do diálogo entre os povos, o
respeito pela diversidade e a incessante busca pelo reconhecimento do
outro. Mas a busca de uma ética comum, que reconheça as diferenças
culturais, é um desafio teórico-prático complexo, requerendo constantes
mudanças de paradigmas sobre o outro, mudanças de saberes e
sensibilidades.
Segundo Astrain (2010), a filosofia ocidental, demorou muitos
séculos para responder os diversos elementos da experiência moral. Ao
contrário de outras culturas, como as asiáticas, as africanas ou as dos indo-
americanos, que são menos objetivistas do que a cultura ocidental, a moral
não parte apenas da razão, mas do contato com outras formas de sabedorias
e espiritualidade. Este contato com outras culturas deve-se levar em
consideração os valores e saberes, abrindo caminhos para encontros sem
exclusão de alguma natureza. Mais do que um encontro entre um logos
monológico que examina o outro, exploram-se as singularidades de uma
cultura através de uma ética do diálogo.
A proposta de Astrain (2010) em desenvolver uma ética
intercultural na América Latina, não envolve exclusivamente interpretar
um ethos originário de uma cultura indígena no estado primevo. Nos
326
tempos de globalização, o autor visa refletir sobre uma ética para contextos
culturais conflitivos, no sentido de buscar uma abertura ética e filosófica
que na escola estimule os alunos e, na sociedade como um todo e os demais
sujeitos sociais emergentes, no sentido de praticar a ética, mas sem se
afastar dos problemas cotidianos (ASTRAIN, 2010).
Deste modo, a proposta de ética intercultural de Astrain conduz a
pensar o ensino da ética nas escolas, que não esteja subordinado a uma
ética universal. Assim, fará sentido que a cultura escolar e a história de vida
de cada aluno, possam ser compreendidas de modo singular, tendo em
vista que a globalização, também visa planificar as subjetividades
emergentes.
O processo de ensinar a ética em contextos como o da América
Latina, objetiva à transformação social, sendo pautada na perspectiva ético-
política. É diferente das éticas normativas, por não se tratar de uma
educação imposta, já que se baseia no saber da comunidade local,
incentivando o diálogo, sem subjugar os saberes ancestrais e acadêmicos,
mas sim os interligando em uma ética da tolerância. Sua principal
característica é utilizar o saber da comunidade como matéria prima para o
ensino. É aprender a partir do conhecimento do sujeito e ensinar a partir
de palavras e temas geradores do cotidiano dele. Neste sentido, a
possibilidade de uma eticidade emancipadora, deverá afastar um suposto
saber objetivo desenvolvido de fora e trazido como salvação a um povo
alienado.
Ao trabalhar o ensino da ética com base no cotidiano do educando,
é de grande valia levar em consideração as advertências contidas no
pensamento de Michel de Certeau (1994), sobretudo em relação ao
trabalho com os conceitos de táticas e estratégias. O ensino amparado pelo
caminho da estratégia se define “como algo próprio e ser a base de onde se
podem gerir as relações com uma exterioridade” (CERTEAU, 1994, p.
327
99). Desse modo, a estratégia pode apresentar um caráter normativo,
organizada por instituições e inseminação de epistemes, em que o ensino
da ética deontológica, se torna algo normativo, ou seja, apenas mantém o
status quo e se torna um saber para ser reproduzido socialmente.
Todavia, o pensamento de Certeau (1994) vislumbra ao considerar
o caminho do estabelecimento de táticas, a possibilidade para que o ensino
da ética possa ser um modo de perceber a relação dos educandos com a sua
cultura originária, incluindo os desafios do cotidiano que os jovens
enfrentam na América Latina. Ao refletir sobre uma ética interligada à
cultura escolar, as táticas apresentam uma “contra força”, podendo ser
definida como:
A ação calculada que é determinada pela ausência de um ser próprio.
Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de
autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso
deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei
de uma força estranha. (CERTEAU, 1994, p. 100)
Ao analisar o ensino de ética nas escolas, os conceitos de estratégias
e táticas, tem como fundamento a modalidade de operação que se pode
efetuar. As táticas designam um “local”, podendo ser a escola um espaço,
em que a ética pode ser ensinada para refletir sobre os diferentes ethos.
Assim, o ensino de uma ética intercultural, poderá se tornar uma tática que
tenta escapar do olhar totalizante das colonizações e do complexo processo
de globalização. Portanto, a ética precisa estar vinculada à cultura escolar,
nos desafios do cotidiano dos educandos e nos enfrentamentos das
desigualdades sociais. Pelo ensino da ética, os educandos poderão
reinventar o cotidiano, emitir novos sentidos, em contraposição aos ethos
328
colonialista, que é legitimado por práticas que visam naturalizar a relação
dominante/dominado.
No contexto educacional atual, o diálogo deve envolver relações de
trocas de experiências entre professor e estudantes, embora tal diálogo não
se efetive por uma relação entre pessoas iguais e racionalmente esclarecidas,
que objetivam chegar a um consenso idealizado entre os pares por meio da
linguagem. Mas isso não impede uma troca que leve ambos a superar o
desafio de vencer o olhar colonizador. Gadamer (1999), por exemplo,
defende que o diálogo não precisa ser entre os iguais, mas se inscreve no
registro de uma experiência que tem a função de abrir-se ao outro para
transformá-lo e se transformar, sem que seja necessário ser igual a esse
outro ou chegar a um consenso, visto que a relação com o outro é
imprevisível.
Conclusões
A partir das discussões sobre a intersecção entre história cultural e
ética intercultural, foram trabalhadas as dificuldades que o pensamento
ocidental tem para reconhecer os ethos originários do pensamento latino-
americano. As reflexões sobre a ética intercultural, tiveram como propósito
refletir sobre uma história decolonial. Também se possibilitou, o
desenvolvimento de questões quanto aos espaços formativos e o
redirecionamento de suas práticas pedagógicas para um caminho
libertador que possa ser construído para valorizar a identidade e a cultura
latino-americana, que se deu a partir de encontros e desencontros com as
tradições europeias. O discurso vigente sobre a inclusão das minorias
desfavorecidas no processo de formação escolar, teria que se materializar
no cotidiano escolar, incluindo o desafio do exercício de práticas
329
pedagógicas sobre a eticidade latino-americana. O desenvolvimento e a
prática da ética intercultural no contexto escolar, poderão fortalecer os
fundamentos que envolvem a ressignificação das ações docentes em sua
dimensão afetiva, com vistas a uma relação produtiva em relação ao outro,
de modo que no processo educativo as partes possam voltar o olhar para as
especificidades dos países latinos, no sentido de formar seres únicos.
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Janeiro: Paz e Terra, 1987. (Trabalho original publicado em 1963).
331
Outras Percepções sobre Humanidade e Natureza
para uma Educação que Colabore para Adiar
o Fim do Mundo
Amanda Veloso GARCIA
86
Pessoas que, quando anseiam por determinados conhecimentos, ao
invés de (ou apenas de) matricularem-se em uma escola formal de
ensino, buscam-nos utilizando-se de mediadores não humanos, como
plantas, raízes, fungos ou cipós, tecnologias da natureza há milênios à
disposição do homem. Plantas, fungos, raízes e cipós configuram-se,
portanto, como mediadores do saber, entre tantos outros mediadores
desconhecidos ou silenciados. (ALBUQUERQUE, 2011, p. 116)
Introdução
As urgências contemporâneas, que colocam em xeque a
possibilidade da sobrevivência humana neste planeta, impõem desafios à
educação. Se, por um lado, a colonização significou a imposição de um
mundo em que um tipo de humanidade se afirmou como universal, como
chama a atenção Ailton Krenak, também significou a imposição de um
modo único de viver, no qual humanidade e natureza estão descoladas a
fim de proporcionar a exploração e a objetificação humana e não humana
86
Doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Campus de Marília.
Docente do IFRJ/Pinheiral. E-mail: amanda.garcia@ifrj.edu.br
h
ttps://doi.org/10.36311/2022.978-65-5954-212-3.p331-358
332
que sustenta o capitalismo. Nesse sentido, uma pedagogia decolonial diz
respeito a práticas interculturais tanto quanto a construção de outras
formas de viver e compreender a relação entre humanidade e natureza que
permitam bloquear o processo destrutivo da modernidade.
Como Catherine Walsh (2009), defendemos uma concepção de
interculturalidade crítica, que se diferencia das apropriações neoliberais da
interculturalidade. A presença da diversidade nas escolas e em outros
espaços não gera necessariamente pluralidade, podendo ocorrer sobre a
lógica do “exótico” que reafirma o lugar de subalternidade desses saberes
diante da monocultura hegemônica. No sentido apontado por Walsh, não
se trata apenas da inclusão dos ausentes, mas de pensar coletivamente
outros mundos possíveis a partir das emergências de outros/as/es
sujeitos/as/es e saberes. Em suas palavras, “é um projeto que aponta à
reexistência e à própria vida, para um imaginário “outro” e uma agência
“outra” de com-vivência de viver “com” e de sociedade” (WALSH,
2009, p. 22). Nesse viés, a interculturalidade inclui a “revitalização,
revalorização e aplicação dos saberes ancestrais, não como algo ligado a
uma localidade e temporalidade do passado, mas como conhecimentos que
têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo, e para
compreender, (re)aprender e atuar no presente” (WALSH, 2009, p. 25).
A partir disso, entendemos a interculturalidade na educação como um
caminho para pensar outras formas de viver, ser, estar no mundo, mas
também para pensar outras formas de ensinar e aprender que, como afirma
Walsh (2009, p. 25), “cruzam fronteiras”.
Luiz Rufino (2019, p. 68) identifica o colonialismo como um
projeto de mortandade” que produz desencantamento e pode ser
entendido como a percepção de isolamento, desconexão, desumanização,
o processo de tornar tudo em coisa na engrenagem capitalista,
transformando pessoas e outros seres em “mortos-vivos”. Luiz Antonio
333
Simas, Luiz Rufino e Rafael Haddock-Lobo (2020, p. 33) descrevem o
estado de adoecimento decorrente do projeto colonial que produz
“desesperança e acomodação nos afetados por sua lógica” como um
quebranto colonial, que leva a um “total desmantelo e desconexão com a
natureza, ou seja, com a própria vida”. Os autores sugerem que narrar
outras histórias é necessário para o rompimento com essa lógica
adoecedora, pois a “história única é um processo de “aquebrantar a
diversidade” (SIMAS et al., 2020, p. 36). Sincopar e gingar essa história
única pode abrir caminhos para esculhambar “as pretensões do edifício de
desenvolvimento desencantado” (SIMAS et al., 2020, p. 77) do Ocidente,
que produz danos nas “diferentes esferas da vida, no imaginário, nas
subjetividades e na cognição” (SIMAS et al., 2020, p. 170).
Os modelos de educação que se baseiam nesse edifício do
desenvolvimento desencantado produzem adoecimento, conformando as
pessoas a sentirem o mundo em um tom único “normatizado pelas
gramáticas enfadonhas do desencanto” (SIMAS et al., 2020, p. 32). Isso
permite compreender tais modelos educacionais como necropolíticas da
existência e nos provoca a pensar: como a educação pode dar vida e não
morte a imaginários, subjetividades, epistemologias, corpos, etc? Na
perspectiva expressa por Rufino (2019), a educação precisa se voltar para a
vitalização da existência, produzindo encantamento e alargamento das
possibilidades ao “recuperar sonhos, pintar outros sentidos, alargar
subjetividades e frear o desencanto” (SIMAS et al., 2020, p. 97). No
intuito de buscar uma educação que permita adiar o fim do mundo através
da vitalização da existência, neste capítulo, a partir de outras histórias e
formas de entender a humanidade e a natureza, temos como objetivo
pensar outros caminhos para a educação, que incluam outros/as/es
sujeitos/as/es do saber, humanos e não humanos. Essas histórias emergem
especialmente da filosofia dos povos originários e seu perspectivismo, mas
334
também de saberes que emergem a partir da biologia e que apontam para
uma percepção mais sensível sobre a vida, desconstruindo as ideologias de
superioridade em que se ancoram os saberes hegemônicos com seus ideais
de racionalidade e individualidade.
Desumanização e Despersonalização:
duas faces do povo universal
O pensamento hegemônico ocidental se baseia em uma
monocultura narcisista que afirma sua percepção do mundo como
universal. Como explica Marco Antonio Valentim (2018a, n.p.):
ao contrário de superar de todo o sobrenatural, com o banimento
metafísico de Deus, o pensamento moderno não fez senão
redimensioná-lo, particularmente no sentido da dominação do
Homem sobre a natureza. O pensamento moderno é sobrenatural,
mágico, mítico à sua maneira. Seu mito fundador consiste naquilo
que Lévi-Strauss chamou de “o mito da dignidade exclusiva da
natureza humana”, o qual teria chancelado “todos os abusos”, ao
mesmo tempo no sentido do especismo e do racismo. De outro modo,
à luz da problemática ecológica contemporânea, poder-se-ia dizer que,
transfigurado monstruosamente em Homem, Deus tornou-se o agente
por excelência do estado de exceção/extinção que chamamos hoje
de Antropoceno, que jamais teria sido metafisicamente possível sem a
grande instauração, peculiarmente sobrenatural, da divisão moderna
entre natureza e cultura. (VALENTIM, 2018a, n.p)
A tradição filosófica ocidental se caracteriza por um pensamento
que promove a separação entre mundos, povos, pessoa/mundo,
humanidade/natureza, natureza/cultura, etc. Como explica Valentim, a
335
dignidade exclusiva da natureza humana, apontada por Lévi-Strauss como
o cerne do pensamento moderno, é um afeto narcísico que desencadeia “o
especismo e o racismo que caracterizam o “ciclo maldito” da modernidade,
a separar os humanos dos outros animais e segregar os humanos entre si”
(VALENTIM, 2018c, n.p.). Por isso, há uma relação constitutiva entre o
fascismo contemporâneo e o Antropoceno, “Conforme podemos
testemunhar mundo afora, o fascismo é a política oficial do Antropoceno
(assim como o capitalismo, o seu sistema econômico)” (VALENTIM,
2018b, n.p.). Portanto,
se o antropocentrismo constitui a ontologia fundamental do
Antropoceno, o fascismo é a sua política oficial: a que o instaura e
acelera, fechando por expansão frenética (destruição exportada) o
mundo “humano” sobre si mesmo e impelindo-o assim a sua própria
destruição. (VALENTIM, 2018a, p. 290)
O desejo do mundo único tem efeitos catastróficos para a
ecopolítica do planeta consumindo povos e seres para sustentar as classes
dominantes. De modo mais aprofundado, Valentim (2014, p. 4-5) explica:
uma multiplicidade iem umerável de mundos divergentes, todos eles
neutralizados em sua potência própria de mundanização pela
“consciência absoluta”, emancipada, do povo universal. Com efeito, se
se considera o discurso filosófico moderno em vista de seu impacto
imanente sobre outros povos, humanos e não-humanos, que ele desde
sempre manteve excluídos e ao mesmo tempo assujeitados à produção
do sentido “em geral”, dificilmente se escapa à evidência de que o
pensamento transcendental consiste, sobretudo, em um dispositivo
espiritual de “aniquilação ontológica” de outrem.[...] Se é verdade que,
com a iminência da catástrofe ecológica, “nosso mundo vai deixando
336
de ser kantiano”, é certamente por força de uma “inversão irônica e
mortífera” (idem, p. 26), pela qual o esperado “reino dos fins” se
aproxima, cada vez mais, como deserto inóspito [...]. Começa‐se agora
a experimentar o mesmo desastre a que incontáveis outros, próximos e
distantes, já vinham sucumbindo e resistindo há culos, vítimas da
baixa antropofagia dos modernos e seus inimigos íntimos.
(VALENTIM. 2014, p. 4-5)
O povo autodenominado universal tem seu conhecimento como
um dispositivo de aniquilação ontológica dos mundos divergentes, o que
faz de seu pensamento “tacitamente etno-eco‐cida” (VALENTIM, 2014,
p. 4-5). O povo cosmopolita, e não cosmopolítico, carrega uma potência
catastrófica, que antes não percebida por muitos já que se direcionava a
outros mundos, agora pode destruir a sua própria gente. Destruir mundos
humanos e não humanos é a própria essência do povo dominante. Se nosso
mundo vai deixando de ser kantiano, isto é, o/a/e sujeito/a/e começa a se
perceber intrinsecamente conectado com o “Grande fora”, não é pela a
autocrítica do pensamento hegemônico, mas por seu mundo em catástrofe,
pela intrusão de Gaia que obriga a repensar: “É, antes de mais nada, à
perversidade ecopolítica do pensamento que responde o colapso mental do
ambiente” (VALENTIM, 2018a, p. 290). No entanto, a própria ideia de
intrusão de Gaia só é nova para o povo universal da mercadoria:
Se faz sentido caracterizar o tempo das catástrofes mediante aquela
intrusão, é porque se o toma sob o ponto de vista da humanidade
moderna, metafisicamente isolada. Desde a perspectiva dos povos da
floresta, ele seria melhor designado por “outra” intrusão, a do “povo
da mercadoria” (Kopenawa & Albert 2015: 406-420). Tal equívoco
ontológico em torno ao elemento intrusivo atesta que a catástrofe se
efetiva de modos divergentes; mais ainda, que não é nada estranho ao
pensamento xamânico que Gaia tenha se tornado a intrusa justo para
337
os intrusos. [...] os chamados “povos sem história” mostram-se bem
mais capazes de conceber a multidimensionalidade cosmopolítica,
espectral, da transformação em curso uma hiper-historicidade, além
do Homem e, em certo sentido, do próprio Antropoceno, na qual
entropia e criação se tornam como que indiscerníveis. (VALENTIM,
2018a, p. 288)
Valentim destaca que a intrusão para os Yanomamis como
Kopenawa foi consequência do povo da mercadoria, que por
metafisicamente isolado percebe as catástrofes que cria como uma intrusão
de Gaia, ou sequer a percebe, e não como projeto de sua própria intrusão
etno-eco‐cida. As mudanças destrutivas pelas quais o planeta vem passando
questionam o modo de vida moderno e a existência de seu mundo único
universal. Por outro lado, o contato com filosofias como as ameríndias
aponta para outras possibilidades de viver.
A partir da filosofia ameríndia, não mais como objeto
antropológico, mas como sujeito que cria mundos, há um despertar para
o pensamento multiespécies. Se o pensamento moderno não é universal, o
pensamento ameríndio também não pretende ser, pois o mundo humano
é permeado por muitos outros seres que constituem seus mundos e
filosofias próprias, que também olham para grupos humanos modernos
ou ameríndios e os veem a partir de suas próprias categorias. O mundo
ameríndio é composto simetricamente por humanos e não humanos. Se a
humanidade olha para outros mundos e não consegue entendê-los, o
mesmo ocorre com outros seres que nos olham a partir de suas próprias
perspectivas que só podemos conhecê-las em relação. Não como uma coisa
em si inacessível, mas como algo que se constroem continuamente em
relação, como perspectivas que nunca são algo em si, mas sempre em
relação. Com essa virada ontológica, compreender mundos humanos se
torna muito pouco sobre o planeta que vivemos.
338
Ailton Krenak (2019b, n.p.) compreende que o clube da
humanidade anda “pelo mundo como se fosse a única inteligência viva da
Terra”, como se não pudesse existir mais nenhum lugar da Terra que não
possa invadir, pois “fomos nos alienando desse organismo que somos parte,
a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a
humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja
natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza” (KRENAK, 2019a, p.
16-17). Ele ressalta que
A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo em uma
abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a
pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o
mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para
todo mundo. (KRENAK, 2019a, p. 22-23)
Ao oferecer o mesmo cardápio, figurino e língua para todos/as/es,
controla mais profundamente as pessoas. Por isso, Krenak (2019a, p. 69-
70) propõe outra compreensão de nossa relação com a natureza:
Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas,
incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água
e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa
abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por
aí atropelando tudo, em um convencimento geral até que todos
aceitem que existe uma humanidade com a qual se identificam, agindo
no mundo à nossa disposição, pegando o que a gente quiser. Esse
contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar,
inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como
“natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem
alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada
339
identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da
interface de humanos muito-humanos. Os quase-humanos são
milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada,
da técnica, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia
estranha são tirados de cena, por epidemias, pobreza, fome, violência
dirigida. (KRENAK, 2019a, p. 69-70)
Em outras palavras, o que somos, em diferentes proporções, é o
que tudo que nos cerca é. O conceito restrito de humanidade é uma
invenção dos “muito-humanos” e contribui para os interesses das
corporações. Essa abstração da racionalidade pura estabelece alguns como
medida de todas as coisas. Por outro lado, outros os “quase-humanos”
são
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados
nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do
planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia
ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes
a sub-humanidade. (KRENAK, 2019a, p. 22)
Os “quase-humanos” que se recusam a repetir a coreografia da
dança civilizatória são aqueles que também recusam o antropocentrismo.
A devastação ambiental crescente que estamos vendo, para Krenak, é
consequência justamente da despersonalização da natureza: “Quando
despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus
sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós
liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial
e extrativista” (KRENAK, 2019a, p. 49). E, com isto, toda a força da Terra
340
é voltada para suprir a demanda humana de mercadorias, segurança e
consumo. Como explica Imbassahy (2019, p. 12):
Ailton Krenak faz uma crítica contundente de alguns dos princípios
dominantes que nos impedem de enxergar toda multiplicidade de seres
que coabitam conosco a Terra. Enquanto no xamanismo há uma busca
de ver o sujeito por trás do que parece ser um objeto, no capitalismo o
fundamental é que tudo vire mercadoria, isto é, objetos sujeitos à
exploração. [...] Com essa despersonalização do mundo, o que antes
eram diversos sujeitos se transformam em apenas uma humanidade,
que se concede o direito de explorar uma natureza exterior, passiva,
transformada em recursos naturais. Dessa forma, a acumulação de
objetos no Ocidente se faz mediante um empobrecimento generalizado
dos sujeitos que compõem o mundo. Seu objetivo final parece ser a
redução de toda diversidade à monocultura: uma unidade abstrata que,
no entanto, projeta um mundo assustadoramente real. Basta contrapor
um deserto verde (dominado por uma única espécie) e a Floresta
Amazônica; o português e as mais de 160 línguas diferentes faladas no
Brasil; as muitas centenas de povos que vivem no continente americano
e uma dúzia de Estados-nação; incontáveis espíritos e deuses e um
único Deus cristão. O que está em disputa é qual mundo queremos
habitar.
(IMBASSAHY, 2019, p. 12).
Krenak (2019b, p. 32) destaca que “os humanos não são os únicos
seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos
outros também têm”. Nesse sentido, ele (2019b, p. 40) traz como exemplo
o rio Watu: “O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso
avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não
é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte de nossa construção
como coletivo que habita um lugar específico”. Watu, que está em coma
depois do rompimento da barragem em Mariana (MG) em 2015, não é
um objeto manipulável como a lógica predadora da modernidade entende.
341
É vivo e fez possível a sobrevivência de muitas gerações Krenak fornecendo
água, alimento, local para banho e diversão.
Enquanto o perspectivismo ameríndio procura perceber os/as/es
sujeitos/as/es que existem no que o pensamento hegemônico entende
como objeto de exploração, o capitalismo busca transformar tudo em
objeto para consumo. Nesse bojo o próprio humano é entendido como
objeto. O perspectivismo é um chamado para perceber e experimentar a
multiplicidade do mundo, mas isto implica em repensar profundamente o
modo como as relações se constituem, rompendo com as ideologias de
superioridade e exclusividade humana. Para os adeptos do perspectivismo
não apenas os humanos constituem sociedades, expandindo a ideia de
entidade política para além do Homem moderno. Assim, dão um novo
sentido para afirmar que “tudo é político” a partir do entendimento do
ambiente como um espaço de emergência cosmopolítica, no qual muitos
mundos coexistem, onde outros seres têm agência e intencionalidade, não
apenas os humanos. Nesse sentido, a despersonalização da natureza é
também, como afirma Valentim (2014, p. 07), a “despolitização das
relações cósmicas”.
Contudo, adiar o fim do mundo envolve destruir esse edifício
necropolítico do desenvolvimento desencantado através da construção de
outras bases para a vida que rompam com a objetificação humana e não
humana.
Alianças simbióticas e outras perspectivas para a existência
A filosofia ocidental hegemônica trata a autonomia e a liberdade
como atributos exclusivamente humanos. Porém, podemos questionar se
de fato ocorre entre os humanos todos os preceitos que foram apresentados
342
na história da filosofia, pois o comportamento humano frequentemente se
mostra longe do que entendemos por consciência, deliberação,
intencionalidade, planejamento e outros, como provoca a pensar a
antropóloga Anna Tsing (2019, p. 72-74):
Considere uma comparação similar entre árvores e vilosidades
intestinais: folhas de árvores fazem “seres” fúngicos como bactérias
intestinais fazem humanos. Humanos e fungos ectomicorrízicos,
ambos precisam de outras espécies para conseguirem se alimentar.
Nenhum deles é capaz de comer sozinho. Fungos e humanos, cada um
tem muitos tipos do que Donna Haraway (2007) chama de
“companheiros de mesa”, isso é, companheiros para comer e serem
comidos. Mas eles compartilharem um subconjunto dentro disso é o
mais extraordinário: uma associação obrigatória para comer que
aproxima tão intimamente os companheiros que é difícil saber onde
um termina e o outro começa. [...] Nós não podemos nos alimentar
sem essas bactérias, assim como os fungos não podem se alimentar sem
as árvores. Nós evoluímos juntos; nós vivemos para comer juntos. [...]
Considere as implicações. Quem somos nós? Noventa por cento das
células em nossos corpos não têm uma assinatura genética; elas são
bactérias. No entanto elas estão conosco, e nós precisamos delas.
Nossos corpos vêm a ser através delas. Para além de nossos corpos, nós
não podemos sobreviver sem paisagens multiespécies. Nós nos
tornamos quem somos através de agregados multiespécies. Nós somos
mais parecidos com fungos micorrízicos do que imaginamos. Isso faz
uma enorme diferença para nossas teorias de ação “humana” no
mundo. Como os humanos podem agir como uma força autônoma se
o nosso “nós” inclui outras espécies que fazem de nós quem somos? Se
nós não somos uma força autônoma, e a liberdade seremos então
escravos da compulsão natural? O que pode significar para um
agregado multiespécie atuar sobre o mundo? (TSING, 2019, p. 72-74)
343
As alianças simbióticas convidam a repensar a individualidade e a
autonomia humana porque o que nos compõe enquanto pessoas é um
agregado multiespécie e não um indivíduo isolado dos outros seres que o
rodeiam. Os seres humanos necessitam de mutualidade multiespécies para
sobreviver, de modo que não faz sentido pensar um mundo no qual apenas
a humanidade tem relevância. Ignorar outras espécies significa ignorar uma
parcela importante do mundo em que vivemos e da nossa vida. Como
ressaltam Lynn Margulis e Carl Sagan (2002, p. 133), “A simbiose produz
novos indivíduos. “Nós” não poderíamos sintetizar as vitaminas B ou K se
não houvesse bactérias em nosso intestino”. Nesse sentido, poderíamos
entender a vida como uma rede de alianças entre mundos. Como destaca
a bióloga Donna Haraway (2003, p. 5), o companheirismo interespecífico
é a regra e não a exceção, pois “Através de seu alcance recíproco, através de
suas “preensões” ou alcances, os seres constituem um ao outro e a eles
mesmos. Os seres não pré-existem às suas relações. [...] O mundo é um nó
em movimento” (HARAWAY, 2003, p. 05).
O sujeito solipsista moderno não se sustenta porque “Naturezas,
culturas, sujeitos e objetos não preexistem em suas configurações
entrelaçadas do mundo” (HARAWAY, 2019b, p. 21). O companheirismo
interespecífico diz respeito a seres-em-encontro, é um devir-com
multiespécies. Nessa perspectiva, a história é feita de co-habitação e a ““a
relação” é a menor unidade possível de análise” (HARAWAY, 2003, p. 8).
Haraway acrescenta que é um erro entender a diversidade humana como
cultural e a diversidade animal como biológica porque ambas são co-
evolutivas. Os genomas humanos contêm registro molecular considerável
de patógenos das espécies com as quais estabelecemos companheirismo,
como ela explica (2003, p. 13),
344
Os sistemas imunes não são uma pequena parte das naturezaculturas;
eles determinam aonde os organismos, incluindo as pessoas, podem
viver e com quem. A história da gripe é inimaginável sem o conceito
de co-evolução de seres humanos, porcos, galinhas e viroses.
(HARAWAY, 2003, p. 13)
É preciso perceber tanto pessoas quanto quaisquer outros seres
além do reducionismo biológico ou da singularidade cultural. Sobre isso,
Haraway (2003, p. 13) acrescenta:
Como os organismos integram a informação ambiental e a genética em
todos os níveis, do muito pequeno até o muito grande, determina o
que eles se tornam. Não existe nenhum tempo ou lugar no qual a
genética termina e o ambiente começa e o determinismo genético é, na
melhor das hipóteses, uma palavra local para estreitas plasticidades do
desenvolvimento ecológico. (HARAWAY, 2003, p. 13)
Aqui é relevante trazer o exemplo do microorganismo Mixotricha
paradoxa que permeia diversas discussões feitas por Haraway. Como a
autora resumiu em uma entrevista:
Utilizo a Mixotricha paradoxa como uma entidade que interroga a
individualidade e a coletividade ao mesmo tempo. Trata-se de um
organismo unicelular microscópico que vive no intestino posterior do
cupim da Austrália setentrional. Aquilo que conta como “ele” é
complicado, pois ele vive em simbiose obrigatória com outros cinco
tipos de entidades. Cada uma tem um nome taxonômico e cada uma
se relaciona estreitamente com bactérias, pois não possuem um núcleo
celular. Elas possuem ácido nucléico, possuem DNA, mas este não é
organizado em um núcleo. Cada um destes cinco tipos de coisas
diferentes vive em ou sobre uma região diferente da célula. Por
exemplo, um vive nas interdigitações da superfície exterior da
345
membrana celular. De modo que você tem estas pequenas coisas que
vivem nestas dobras da membrana celular e outras que vivem dentro
da célula. Mas elas não são, no sentido pleno, parte da célula. Por outro
lado, elas vivem em simbiose obrigatória. Ninguém pode viver
independentemente aqui. Isso é co-dependência pra valer! E, então, a
questão é ela é uma entidade ou seis? Mas seis tampouco está correto,
pois há aproximadamente um milhão das cinco entidades anucleadas
para cada célula mononuclear. Há múltiplas cópias. Então, quando é
que um decide se tornar dois? Quando é que este conjunto completo
se divide de modo que agora você tem dois conjuntos? E o que conta
como Mixotricha? É somente a célula nucleada ou é conjunto todo?
Obviamente, esta é uma fabulosa metáfora que é uma coisa real para
interrogar nossas noções de um e de muitos. (HARAWAY;
GOODEVE, 2015, p. 52).
Em microscópio é possível perceber que a Mixotricha paradoxa é
composta por cinco tipos diferentes de entidades, milhares de outros seres
compõem suas células e superfície de forma que não podem de modo
algum serem separados, vivendo em simbiose obrigatória. Assim como o
cupim depende da Mixotricha paradoxa para sobreviver, pois sem ela não
é capaz de digerir a celulose que é o componente principal da sua
alimentação, ela sequer pode existir sem esse aglomerado. Mixotricha
significa “fios misturados” e é em si um ser paradoxal que não se encaixa
na ontologia hegemônica do ser. Isto leva a uma série de outros
questionamentos fundamentais:
como alguém a encontra em primeiro lugar e qual era a sua aparência
que forma assumia quando foi descoberta? Em qual momento de
sua existência ela foi descoberta? E como os pesquisadores encontraram
toda a sua complexidade e ainda a viram como um todo em vez de uma
série de entidades diferentes? (HARAWAY; GOODEVE, 2015, p. 05-
06).
346
Tais questionamentos levam à intuição de “que há todo tipo de coisas
como a M. paradoxa” (HARAWAY; GOODEVE, 2015, p. 06).
Concordamos com Haraway (2003, p. 20) que
todo relacionamento ético, dentro ou entre espécies, é tricotado a partir
do forte fio de seda do alerta permanente da outridade-na-relação. Nós
não somos um, somos vários que co-existimos e co-habitamos, e o ser
depende em permanecermos juntos não mais como indivíduos, mas
como multiplicidade. A obrigação é perguntar quem está presente e
quem está emergindo. (HARAWAY, 2003, p. 20)
O termo “autopoiesis” foi elaborado pelos chilenos Francisco
Varela e Humberto Maturana para explicar a capacidade dos seres se
autoproduzirem. Em simbiose com as pesquisas de Beth Dempster, Donna
Haraway traz o conceito “simpoiesis” (do grego sym que significa juntos e
poiesis que é criação/produção) para se referir ao gerar-com que é próprio dos
seres complexos:
Nada se faz sozinho, nada é realmente autopoiético ou autoorganizado.
Como diz o “game mundial” de computador iñupiat, os terráqueos
não estão nunca sozinhos. Essa é uma implicação radical da simpoiésis.
Simpoiésis é uma palavra apropriada para os sistemas históricos
complexos, dinâmicos, receptivos, situados. É uma palavra para
configurar mundos de maneira conjunta, em companhia. A simpoiésis
abarca a autopoiésis, desdobrando-a e estendendo-a de uma maneira
generativa. (HARAWAY, 2019b, p. 49, tradução nossa)
Simpoiesis é um sistema de produção coletivo no qual o controle e
as informações são compartilhadas com todos os seres que o compõem, é
um fazer-se-com contínuo. O que Haraway quer chamar a atenção com isto
347
é que não existem seres fechados em si e nem controlados a partir de uma
unidade autônoma central como a expressão autopoiésis evoca. Muitos
sistemas entendidos como autopoiéticos são na realidade simpoiéticos. A
Mixotricha paradoxa é a criatura favorita de todas para explicar a
“individualidade” complexa, a simbiogênese e a simbiose. Nesse sentido,
como destaca Haraway (2019b, p. 15), é necessário abandonar o
“individualismo limitado, em seus vários sabores na ciência, na política e
na filosofia”. O que somos é um fazer-com contínuo, nós emaranhados,
com-posto.
Porém, ainda que tudo esteja conectado a algo, “nada está
conectado a tudo” (HARAWAY, 2019b, p. 32, tradução nossa), ignorar
isto é não perceber a singularidade dos diversos contextos. Para que a
conexão não recaia em mais um mundo abstrato, Haraway propõe
tentacularizar a vida: tentáculo “vem do latim tentaculum, que significa
‘antena’, e de tentare, sentir, intentar” (HARAWAY, 2019b, p. 32,
tradução nossa). Como explica Haraway (2019b, p. 33, tradução nossa).
A tentacularidade trata sobre a vida vivida através de linhas e que
riqueza de linhas e não em pontos nem em esferas. “Os habitantes
do mundo, criaturas de todos os tipos, humanos e não humanos, são
caminhantes”; as gerações são como “uma série de caminhos
entrelaçados”. (HARAWAY, 2019a, p. 33, tradução nossa)
Tentacularizar é se conectar, sentir, agir, pensar em redes orgânicas.
O pensamento tentacular se dá em sua organicidade, é finito,
contextualizado, pois nenhum tentáculo é capaz de se estender
infinitamente.
Fazer-com implica transformar as relações profundamente.
Haraway sugere que cultivemos responsabilidades e rastreemos parentescos
348
que possam potencializar nossa ação em favor do ressurgimento
multiespécies:
Renovar os poderes biodiversos da terra é o trabalho e o jogo
simpoiético do Chthuluceno. Concretamente, diferente do
Antropoceno ou do Capitaloceno, o Chthuluceno é feito a partir de
histórias e práticas multiespécies em curso de devir-com, em tempos
que permanecem em risco, tempos precários em que o mundo não está
acabado e o céu não está caído, ainda... Estamos em risco mútuo. Ao
contrário dos dramas dominantes no discurso do Antropoceno e do
Capitaloceno, os seres humanos não são os únicos atores importantes
no Chthuluceno, com todos os outros seres capazes de reagir apenas.
A ordem foi reformulada: os seres humanos são de e estão com a terra,
e os poderes bióticos e abióticos desta terra são a história principal. [...]
A diversidade dos corais e das pessoas e povos está em risco, e de
maneira recíproca. O florescimento será cultivado como uma response-
ability multiespécies, sem a arrogância dos seres celestiais.
(HARAWAY, 2019b, p. 46-47, tradução nossa)
O que Haraway chama de Chthuluceno evoca as tarefas tentaculares
dos tempos urgentes que vivemos. O Chthuluceno não é uma era geológica
e nem pretende substituir o Antropoceno, como explica Alyne Costa
(2019, p. 93), “consiste nos emaranhados de histórias que conectam seres,
espaços e tempos nos processos que fazem da Terra o que ela é”. Em grego
chthonios significa “da terra ou do submundo”, o que está abaixo da terra,
nesse sentido, chthu diz respeito aos múltiplos potenciais subterrâneos da
Terra. Em tempos difíceis do Antropoceno o desespero é comum, mas
devemos nos ocupar em potencializar o ressurgimento que ainda é possível,
criando conexões, cultivando novas relações aumentando a habilidade
coletiva de lidar com os problemas atuais e construindo formas de viver e
morrer bem em tempos difíceis. Precisamos pensar que humanidade cabe
349
nesse mundo e como podemos colaborar com a existência em todas as suas
dimensões. Para evocar a necessidade de se romper com as abstrações
humanistas, Haraway (2019b, p. 74-75, tradução nossa) propõe que a
humanidade olhe para outra faceta do que a compõe:
Somos compostos, não pós-humanos; habitamos as humusidades, não
as humanidades. Filosófica e materialmente, sou uma compostista, não
uma pós-humanista. As criaturas humanas e não humanas devêm-
com mutuamente, se compõem e decompõem umas às outras, em cada
escala e registro do tempo e das coisas, em emaranhados simpoiéticos,
em configurações e desconfigurações de mundos terrenos ecológicos,
evolutivos e do desenvolvimento. [...] As criaturas, incluídos os
humanos, estão em presença uns dos outros; ou, melhor, eles se alojam
reciprocamente em seus mútuos tubos, dobras e rachaduras; em seus
interiores e exteriores, e não precisamente em um nem outro. As
decisões e transformações que são tão urgentes em nossos tempos para
reaprender ou para aprender pela primeira vez como devir menos
mortíferos, mais reponse-able, mais em sintonia, mais capazes de
surpreender-nos e de praticar as artes de viver e morrer bem em uma
simbiosis multiespécies, em simpoiesis e sinanimagênesis em um
planeta em ruínas, devem realizar-se sem garantias ou expectativas de
harmonia com quem não são um mesmo, e tampouco são “o outro”
com certeza. Nem Uno nem Outro, isso é o que somos e o que sempre
temos sido. É tarefa de todos devirem ontologicamente mais criativos
e sensíveis. (HARAWAY, 2019b, p. 74-75, tradução nossa)
Cultivar devires menos mortíferos passa por repensar a
humanidade em todas as suas esferas. A humanidade como húmus é a
radicalidade da relação multiespécies. A arrogância do Homo o que
Haraway (2019b, p. 20, tradução nossa) descreve como “essa auto-imagem
fálica do mesmo” é o que gera o Antropoceno, através de uma distorção
do que somos:
350
Aqueles dentre nós que sucumbirem à morte programada e cujos restos
mortais não são devorados como carniça, nem tampouco incinerados,
vão para o submundo fúngico. As substâncias químicas de nosso corpo
são devolvidas à terra. Os fungos mantêm a reciclagem dos compostos
da vida. [...] Essa é uma lição difícil: a matéria de nosso corpo, nossa
propriedade e nossa riqueza, não nos pertence. Pertence à Terra, à
biosfera, e, queiramos ou não, é para lá que se destina, sempre. Os
fungos ajudam-na a chegar lá. (MARGULIS; SAGAN, 2002, p. 200)
Fazer com-posto significa emaranhar-se, viver em consequência e
com as consequências. Haraway aponta para o devir húmus que diz respeito
a “entender de que maneira um mundo comum, os coletivos, se contrõem-
com de maneira recíproca, e não somente por humanos” (2019b, p. 38,
tradução nossa). A existência de um novo paradigma no qual a
humanidade não se constitui sem companheirismo interespecífico, como
a autora ressalta, exige “pensar fora do conto fálico dos Humanos na
História” (HARAWAY, 2019b, p. 37, tradução nossa), esses
autodenominados seres celestiais.
Haraway propõe o Chthuluceno como forma de evitar as respostas
simplistas aceleracionistas sob a forma de “bom Antropoceno”, que
acreditam que a tecnologia irá salvar o mundo, e também o derrotismo
característico daqueles que acreditam que não há saída para o mundo em
ruínas que está posto. Haraway considera que “Há uma linha tênue entre
reconhecer a vastidão e seriedade dos problemas e sucumbir a um
futurismo abstrato e seus afetos de sublime desespero e suas políticas de
sublime indiferença” (2019b, p. 15, tradução nossa). Por isso, a pensadora
propõe ficar com o problema, não sucumbir às respostas simplistas,
assumir as responsabilidades que ele exige. Não faz sentido nos
lamentarmos sobre um futuro perdido nem oferecer soluções quase-
mágicas universais, mas “temos que pensar o que podemos fazer com os
351
meios que temos” (HARAWAY, 2019a, n.p.). Não há tempo a perder com
futurismos, o que for possível é necessário cultivar, concordamos com
Haraway (2003, p. 25) que “a atenção à complexidade em camadas e
distribuída me ajuda a evitar tanto o determinismo pessimista quanto o
idealismo romântico”.
Para Haraway (2019b, p. 20, tradução nossa), as criaturas evocadas
no Chthuluceno “são seres da lama mais do que do céu”. Pensar na
interligação entre lama e regeneração nos leva para os manguezais. Para
refletirmos sobre a teia que emaranha vidas marítimas, terrestres, humanas
e mais que humanas, uma fonte é a perspectiva de Josué de Castro (1967,
p. 16) que diz que a primeira sociedade com que travou conhecimento foi
a sociedade dos caranguejos. O autor coloca os habitantes humanos dos
mangues como “irmãos de leite dos caranguejos”, igualmente “filhos da
lama” (1967, p. 16). Castro traz suas memórias do manguezal para refletir
acerca da fome e as dinâmicas que a produzem. Sobre a cidade de Recife,
ele reflete:
Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra.
Foram mesmo em grande parte os seus criadores. Toda esta vasta
planície inundável formada de ilhas, penínsulas, alagados e paus, fora
em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo, cercada
por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através da muralha
dessas colinas, dois grandes rios o Capibaribe e o Beberibe foram
entulhando a fossa com materiais aluvionais: com a terra arrancada de
outras áreas distantes e trazida na enxurrada das suas águas. Pouco a
pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas
lodosas, formadas através da precipitação e deposição dos materiais
trazidos dos rios. E foi sobre estes bancos de solo ainda mal
consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a
proliferar os mangues esta estranha vegetação capaz de viver dentro
de água salgada, em uma terra frouxa, constantemente alagada.
352
Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de
um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no
lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das
correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alíseos, que arrepiam
sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando
suas raízes e seus braços em uma amorosa promiscuidade, e foram
assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de
lodo donde brotaram. Com os depósitos aluvionais que se foram
acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo das
suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do
solo e alargando sua área sob a proteção desse denso engradado vegetal.
Não há, pois, a menor dúvida de que toda esta terra que hoje flutua à
flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi uma criação dos
mangues. Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por estes
trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio
solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se
fossem tropas de ocupação e, em contato com o mar, edificaram
silenciosamente e progressivamente esta imensa baixada aluvional hoje
cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada
de homens e caranguejos, seus habitantes e seus adoradores. Tendo os
mangues realizado esta obra ciclópica, não admira que, hoje, sejam eles
divinizados pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens
explicar como o mangue realiza este milagre de criar terra como se fosse
um deus. Mas os homens vêem, até hoje, crescer diante dos seus olhos
as coroas lodosas e transformarem-se, pela força construtora dos
mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida. E vêem,
assombrados, proliferarem em torno das ilhas maiores outras
pequeninas, como que saídas durante a noite do seu próprio ventre,
em misteriosos partos da terra que o mangue milagrosamente ajuda.
(CASTRO, 1964, p. 14-15)
A vegetação dos mangues se agarra com “unhas e dentes” ao solo
para sobreviver, amparando-se em outras árvores para resistir às marés e
ventos e oferecendo amparo para outros seres que se protegem em suas
raízes. No labirinto de raízes dos mangues surge vida e solo. Com suas
353
“tropas de ocupação”, o mangue pariu Recife assim como muitos outros
mundos. Entre mundos marítimos e terrestres, os manguezais são berços
de muitas espécies aquáticas e terrestres, soterrando sedimentos são ricos
em nutrientes e matéria orgânica e fornecem condições de vida para uma
enorme diversidade, também capturam mais gás carbônico do que
florestas, além de purificar a água e adubar os oceanos. A vegetação do
mangue possui árvores com raízes aéreas para captar oxigênio e resistir às
constantes cheias, tais raízes funcionam como filtros de sedimentos, fixam
as terras impedindo a erosão e estabilizando a costa. Da decomposição
emerge a vida através de uma teia alimentar complexa.
O mangue, como um emaranhado de coexistências, nos evoca a
figura de tornar-se em algum sentido humano-caranguejo. Entre mundos
aquáticos e terrestres, os mangues mostram sua resistência ao transformar
os restos de outros mundos, trazidos pelos mares, em alimento, vida, solo,
mundos. A “vegetação densa dos mangues com seus troncos retorcidos,
com o emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízes
perfurantes” como um “polvo, enfiando tentáculos” (CASTRO, 1976, p.
13) a tudo a sua volta resiste e cria alianças com muitos outros modos de
seres humanos e não humanos. Como evoca Chico Science, a potência
criadora dos mangues oferece perspectivas “Pra gente sair da lama e
enfrentar os urubu” (A cidade, 1994), produzir com-posto ressur-gente. A
partir dos ensinamentos dos mangues, somos convidados/as/es a nos
enlamearmos no mangue dos saberes que produz ressurgência através de
emaranhados da existência entre mundos.
Concordamos com Haraway que “O Chthuluceno, ainda
inacabado, deve coletar o lixo do Antropoceno, o extermínio do
Capitaloceno; cortar, desfiar e empilhar como um jardineiro louco,
tornando possível uma pilha de composto muito mais quente para o
passado, presente e futuro” (2019b, p. 47-48, tradução nossa). Ficar com
354
o problema implica em “criar camadas, tentar regenerar [...] aprender a
florescer na complexidade” (HARAWAY, 2019a, n.p.). Até mesmo
porque não adianta apenas parar o consumo, é preciso fazer algo com todo
o lixo que foi criado, como diz Alezandre Nodari (2014, p. 07), além de
termos “que nos virar com pouco, teremos também que nos virar com os
restos”.
Considerações Finais
Neste capítulo, a partir do que o perspectivismo ameríndio nos
suscitou, trouxemos alguns elementos sobre a indissociabilidade da relação
humanidade/natureza. A simpoiésis possibilita perceber que a vida é com-
posta. Entendemos que a educação pode colaborar convidando a perceber
outros mundos humanos e não humanos, com foco nos problemas e
pensando-os coletivamente. Isso é possível a partir da compreensão de que
a natureza está por toda a parte, inclusive em nós, e existem muitas formas
de percebê-la e fazer-com.
Uma educação simpoiética se dá na atenção à complexidade e as
alianças entre mundos humanos e não humanos. A aprendizagem
simpoiética diz respeito àquilo que podemos aprender com outros seres
professores. Como ressalta Albuquerque (2011, p. 77),
Pensar as plantas como sujeitos do saber implica considerar a
possibilidade da produção desse saber centrar-se em um ser não
humano o que, em si mesmo, configura-se com uma heresia
epistemológica na medida em que viola as clássicas distinções entre
natureza e cultura que transformou as plantas em meros objetos do
saber, mas nunca em sujeitos do saber. (ALBUQUERQUE, 2011, p.
77)
355
Debatendo a perspectiva da ecologia de saberes, a filósofa, que é
estudiosa do Santo Daime¸ tem uma vasta pesquisa sobre os saberes
proporcionados pela ayahuasca, com a predominância de elementos da
floresta, produzindo uma compreensão sistêmica e não instrumental da
natureza. Além da floresta, as perspectivas da vida animal e vegetal parecem
ter muita importância nas visões da ayahuasca. Os saberes da ayahuasca são
compartilhados pelas plantas, e não por seres humanos como ocorre na
educação hegemônica. Segundo Albuquerque (2011), com a propagação
de saberes ecológicos e que promovem uma conexão com a natureza, a
ecologia da ayahuasca pode colaborar na redução da degradação ambiental
bem como na superação dos abismos estabelecidos pelo paradigma
moderno, configurado na clássica distinção entre sujeito/objeto e
natureza/cultura.
Muitas perspectivas e mundos com-põem o planeta que vivemos.
Se o mundo do povo universal está ruindo e o desabamento das bases desse
edifício moderno de desenvolvimento desencantado é necessário para que
muitas vidas não sejam eliminadas, não cabe a nós adiar o seu fim, mas sim
colaborar para que desabe mantendo o cuidado para não sermos atingidos
por suas ruínas. Em outras palavras, podemos dizer que este mundo
universal dominante do Antropoceno precisa acabar para que outros
mundos continuem existindo, haja vista que sua existência tem potencial
para produzir o colapso total do planeta. Precisamos de outras com-
posições planetárias para adiar o fim dos mundos, que, embora também
finitos, trazem formas mais simpoiéticas de viver. Diante disso, cabe
também à educação buscar formas de potencializar a simbiose emaranhada
do mundo mantendo a sua complexidade e a possibilidade de um futuro
humano.
356
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Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43.
Pareceristas
Este livro foi submetido ao Edital 001/2021 do Programa de Pós-
graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, câmpus
de Marília e financiado pelo auxílio nº 0798/2018, Processo Nº
23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES. Contamos com o apoio
dos seguintes pareceristas que avaliaram as propostas recomendando a publicação.
Agradecemos a cada um pelo trabalho realizado:
Adriana Pastorello Buim Arena
Alberto Luiz Pereira da Costa
Alexandre Filordi de Carvalho
Américo Grisotto
Ana Claudia Saladini
Ana Maria Klein
Angelica Pall Oriani
Carlos Bauer
Carlota Boto
Celia Regina Rossi
Cinthia Magda Fernandes Ariosi
Claudia Cristina Ferreira
Cristina Maria Carvalho Delou
Daniel Ferraz Chiozzini
Domingos Leite Lima Filho
Erika Porceli Alaniz
Francismara Neves de Oliveira
Genivaldo de Souza dos Santos
Giza Guimarães Pereira Sales
Joana Tolentino
Jose Deribaldo Gomes dos Santos
Lalo Watanabe Minto
Lia Leme Zaia
Luciana Aparecida Nogueira da Cruz
Luciano Mendes de Faria Filho
Márcia Lopes Reis
Maria Cristina da Silveira Galan Fernandes
Maria de Fatima Felix Rosar
Maria José Viana Marinho de Mattos
Maria Lucia Marques
Marta Sueli de Faria Sforni
Mauro Castilho Gonçalves
Nadia Aparecida Bossa
Nilza Sanches Tessaro Leonardo
Ofelia Maria Marcondes
Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues
Rita Melissa Lepre
Sandra Aparecida Pires Franco
Simone Wolff
Sonia Bessa da Costa Nicacio Silva
Virgínia Pereira da Silva de Ávila
Comissão de Publicação de Livros do Edital 001/2021 do
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília
Graziela Zambão Abdian, Patricia Unger Raphael Bataglia,
Eduardo José Manzini e Rodrigo Pelloso Gelamo
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Kamila Gonçalves
Desenho da Capa
Sueli Nascimento
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Para além de uma discussão que parece estar na moda, a proposta desse livro é
contribuir, de fato, para as reexões e práticas que dinamizam e movimentam o
ambiente escolar. Quando se pretende articular ética, formação, interculturali-
dade e decolonialidade para pensar as coisas da educação, ele quer dialogar não
apenas com os pesquisadores das temáticas aqui tratadas, mas sobretudo chegar
ao ambiente da escola e da sala de aula. São nesses lugares que, efetivamente,
emergem situações desaadoras que, no mais das vezes, as pessoas têm dicul-
dades em compreender, reconhecer e construir soluções. Sempre recorrendo
ao mais do mesmo, o que geralmente acontece é um olhar supercial e raso às
inquietações e dramas geradores desses desaos, problemas e conitos. Aque-
le tipo de formação de professores, que predomina nos cursos de licenciatura,
parece pedir um novo signicado e sentido, pois não está mais dando conta de
responder e atender às exigências e às expectativas da formação escolar.
Talvez seja necessário irmos além de uma educação pautada somente pela razão
ou por uma ideia ou ideal de ser humano, mas tomar as reexões de autores
clássicos e contemporâneos de maneira a nos possibilitar incluir a dimensão
ética e estética no sentido contribuir na construção de um processo pedagó-
gico que tenha como ponto de partida e como telos a liberdade e a autonomia
humana. A sala de aula é mais do que um lugar onde meramente se transmite
conhecimento, mas um espaço de convivência, de alegria, de trocas de afetos e
saberes. Sabemos que as pessoas que aí se encontram são portadoras de paixões,
de pulsões, de sentimentos e de uma história que precisa ser valorizada e levada
em consideração. Aquele caráter colonizador que muitas vezes marca a prática
formativa e pedagógica parece não ter mais sentido, sobretudo pelas consequ-
ências causadas.
Diante desse diagnóstico, este livro pretender fazer algumas reexões acerca dos
saberes e das práticas que são adotados nos cursos de formação de professores e
na prática docente. Cremos que não é de todo sem sentido aventarmos a ideia
de que a angústia e a insegurança dos futuros docentes são os efeitos de um
processo formativo que fora concebido e implementado a partir de uma lógica
e de uma prática que nem sempre leva em consideração o real, isto é, a vida que
constitui as nossas existências e que pulsa em nossas experiências cotidianas.
Mais do que isso, desconsidera que os saberes e as maneiras de conduzir nossas
vidas de alunos e professores, por exemplo, - têm diferentes origens e matrizes
e que são construídos em distintos lugares e tempos percorridos pelos sujeitos.
E nos parece que levar isso em consideração pode ser bastante enriquecedor.
Os dezesseis textos que com-
põem esta coletânea estão divididos em
dois setores distintos, sendo o primeiro
deles dedicado a reexões sobre ética,
educação e formação, e o segundo aos
estudos acerca da decolonialidade e in-
terculturalidade no campo educativo. À
primeira vista, quase se poderia pensar
na existência de uma oposição ideoló-
gica entre as duas partes do livro, em
virtude do nítido descompasso entre
os dois temas. O primeiro deles trata
de diferentes abordagens derivadas de
um núcleo comum, que é a formação
do sujeito individualizado e autôno-
mo, gestados nos moldes iluministas da
Bildung, ao passo que o segundo expõe
reexões declaradamente antagônicas a
tais ideais, pois valoriza referências teó-
ricas antieurocêntricas e pós-coloniais.
Os ideais de ética e de formação
almejados na primeira parte do livro
contemplam justamente o acolhimento
da alteridade que se faz necessária para
que a ancestralidade ameríndia possa
ser recepcionada sem preconceitos in-
telectualistas e mecanismos emocionais
de defesa que habitualmente bloqueiam
a relação com o Outro.
A relação entre as duas partes
desta obra, que é o resultado coletivo
de pesquisas acadêmicas teoricamente
consistentes acerca de diferentes con-
cepções de liberdade, uma delas se-
gundo a modernidade europeia, outra
consoante com os modos de “estar” da
América profunda, não deve ser vis-
ta como oposição ideológica, mas sim
como oposição dialética no sentido he-
geliano do termo.
Nos horizontes de uma pola-
ridade dialética, em que cada um dos
termos saiba reconhecer no Outro o
complemento necessário de sua própria
imperfeição e nitude, o dualismo entre
o “ser” e o “estar” poderá congurar um
novo espaço para o reconhecimento da
diferença sob a perspectiva do consenso
racional.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
EDUCAÇÃO, ÉTICA, INTERCULTURALIDADE E SABERES DECOLONIAIS
EDUCAÇÃO, ÉTICA,
INTERCULTURALIDADE
E SABERES DECOLONIAIS
Alonso Bezerra de Carvalho
(organizador)