Escrita por muitas mãos, a presente
obra é uma coletânea que reúne 14 capítulos
em torno da temática do ensino de losoa.
Colaboraram, com sua tessitura, professores/
as e pesquisadores/as para os quais ensinar
losoa é um problema losóco genuíno,
pois consideram que é pensando as relações
da losoa e seu ensino que também temos
condições de problematizar nossa formação
e atuação como professores/as de losoa e
lósofos/as na contemporaneidade. Se o en-
sino de losoa representa o pano de fundo
dos capítulos, o o condutor são as experi-
ências vivenciadas no comum do Grupo de
Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de losoa
(ENFILO).
A obra foi dividida em quatro partes.
A primeira, O ensino de losoa: questões
do/ao campo cientíco-losóco, apresen-
ta os capítulos de Patrícia Del Nero Velas-
co e Elisete M. Tomazetti, produzidos em
interface e tensão com as pesquisas da área
no Brasil. A segunda parte, Ensino de -
losoa e formação, concentra os capítulos
construídos em torno da reestruturação do
curso de losoa da UNESP. Augusto Ro-
drigues, Rodrigo Pelloso Gelamo, Amanda
Velloso Garcia, Bruna de Jesus Silva, Elói
Maia de Oliveira, Júlio César Rodrigues da
Costa mostram, por diferentes perspectivas,
suas participações político-losócas, seus
questionamentos à estrutura do curso, suas
reivindicações por uma outra formação do
professor/a e por um ensino de losoa à
altura dos desaos contemporâneos. Na ter-
ceira parte, Heranças Formativas, estão dis-
postas as pesquisas de José Roberto Sanabria
de Aleluia e Tiago Brentam Perencini, que
se desenvolvem em torno da institucionali-
zação do ensino de losoa universitário no
Brasil. Na última parte, Ensino de Filosoa
e Experiência, Genivaldo de Souza Santos,
Daniel Salésio Vandresen, Silmara Cristiane
Pinto, Sara Moraes Rosa, Rodrigo Barbosa
Lopes apresentam suas pesquisas que emer-
gem, principalmente, das tensões criadas
com o exercício de ensinar losoa na con-
temporaneidade.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0798/2018
Processo 23038.000985/2018-89
As pesquisas com o ensino de losoa se intensicam como um problema
losóco relevante a muitos pesquisadores/as, professores/as e graduandos/as
e seus subsequentes grupos no Brasil. Se antes o ensino de losoa era assunto
concentrado nas mãos de poucos, o debate brasileiro se capilariza nos diferen-
tes núcleos acadêmicos e fornece à temática a pluralização de percepções que
lhe parece imprescindível. Percepções sobre o ensino de losoa é uma obra
que visa a registrar e tornar público uma ramicação do debate contemporâ-
neo, construída em comum no Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino
de losoa (ENFILO). Entre os relatos de experiência, memórias, práticas
docentes e discentes e debates, o leitor terá acesso a textos que marcam os
movimentos teóricos e políticos dos 10 anos de existência do grupo. Uma co-
letânea que, ao se enriquecer nas singularizações de experiências, oferece um
panorama macro dos problemas losócos do ensino de losoa.
PERCEPÇÕES SOBRE
O ENSINO DE
FILOSOFIA
AUGUSTO RODRIGUES
RODRIGO PELLOSO GELAMO
(Org)
PERCEPÇÕES SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA
registros de um tempo e seus movimentos
PERCEPÇÕES SOBRE O ENSINO
DE FILOSOFIA:
registros de um tempo e seus movimentos
AUGUSTO RODRIGUES
RODRIGO PELLOSO GELAMO
(Org)
AUGUSTO RODRIGUES
RODRIGO PELLOSO GELAMO
(Org)
PERCEPÇÕES SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA:
registros de um tempo e seus movimentos
Ma
rília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
P428 Percepções sobre o ensino de filosofia: registros de um tempo e seus
movimentos / Augusto Rodrigues, Rodrigo Pelloso Gelamo (Org.). Marília :
Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
466 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-191-1 (Digital)
ISBN 978-65-5954-190-4 (Impresso)
1. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Campus de Marília).
2. Professores - Formação. 3. Filosofia Estudo e ensino. 4. Filosofia Ensino
superior. I. Rodrigues, Augusto. II. Gelamo, Rodrigo Pelloso. III; Título.
CDD 370.1
Copyright © 2021, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Sumário
Apresentação | Os organizadores...............................................................9
Parte 1.
O ensino de filosofia: questões do/ao campo científico-filosófico
Revisitando minha trajetória de pesquisa junto ao Enfilo:
problematizações sobre (não tão) velhas (mas sempre caras) questões |
Patrícia Del Nero Velasco.......................................................................21
Sobre modos, velhos e novos, de dizer sobre didática da filosofia desde a
universidade brasileira | Elisete M. Tomazetti..........................................53
Parte 2.
Ensino de Filosofia e formação
Ensinar e aprender filosofia como problema filosófico: a emergência de um
projeto político-filosófico na UNESP | Augusto Rodrigues e Rodrigo Pelloso
Gelamo.................................................................................................89
Reflexões acerca da formação em Filosofia na UNESP através dos porquês
e contribuições de uma disciplina sobre as “Questões da filosofia e seu
ensino” | Amanda Veloso Garcia...........................................................133
Registros | Bruna de Jesus Silva.............................................................179
A luta do movimento discente frente a reestruturação do Curso de
Filosofia da UNESP/Marília em 2013: A dignidade da licenciatura | Elói
Maia de Oliveira.................................................................................203
Questões da Filosofia e de sua luta | Júlio César Rodrigues da Costa
...........................................................................................................229
Parte 3.
Heranças formativas
O arquipélago das palavras: notas sobre a minha formação universitária |
José Roberto Sanabria de Aleluia.........................................................251
Percurso de formação e investigação no Enfilo: Uma arqueologia do ensino
de filosofia no Brasil | Tiago Brentam Perencini...................................287
Parte 4.
Ensino de Filosofia e experiência
Somente quem anda a pé pela estrada conhece a força que ela tem: O
ensino de filosofia e o Pibid-Filosofia Unesp | Genivaldo de Souza
Santos.................................................................................................337
A escrita de si, o coabitar problemas e a partilha do sensível: o encontro
com o grupo de estudos Enfilo | Daniel Salésio Vandresen....................359
A experiência do ensinar e do aprender no ensino de filosofia | Silmara
Cristiane Pinto.....................................................................................379
A institucionalização do pensamento e a experimentação do filosofar: notas
de um processo de formação filosófica | Sara Morais Rosa....................407
Ensino de filosofia e o campo problemático das ideias | Rodrigo Barbosa
Lopes...................................................................................................435
9
Apresentação
O Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de filosofia
(ENFILO) completou uma década de trajetória acadêmica
recentemente. Seus primeiros integrantes foram os estudantes de
filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP de Marília,
que, entre 2009 e 2010, participavam de dois projetos com o ensino
de filosofia: o PIBID, com suas características de levar o ensino de
filosofia à sala de aula das escolas públicas de Marília, e o “Ensino de
filosofia em espaços não formais”, o qual, como o próprio nome já
diz, experimentava fazer filosofia em lugares em que a educação
formal não era o principal objetivo. O desenvolvimento dos projetos
não coincidia com a existência do grupo. Este só foi criado pela
iniciativa dos estudantes bolsistas e voluntários que, instigados pelo
momento histórico em que a filosofia retornava obrigatoriamente à
educação básica, como também pelos problemas advindos de suas
relações com o ensino de filosofia, resolveram se organizar para
debater e verificar os limites e as possibilidades de ensiná-la e
apren-la, tensionando as experiências dos dois diferentes projetos.
Somente depois que vieram os professores atendendo às demandas
dos estudantes. Foi nesse momento que se figurou a "necessidade"
de institucionalizar o grupo de estudos e fomos acolhidos como uma
das linhas de pesquisa do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e
Filosofia (GEPEF).
10
Em 2020, foi possível a realização de um projeto-desejo,
desenhado ainda em 2009, e que, em vários momentos, havia sido
aventado, mas que só dez anos depois, impulsionado, mais uma vez,
pelos estudantes, encontrou as condições objetivas para a sua
concretização: o seu credenciamento e certificação no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq. Atualmente, o grupo é composto por
professores/as universitários/as/es, da educação básica e do ensino
técnico, e por estudantes de graduação e pós-graduação de diversas
partes do país, constituindo-se como um espaço formativo que
integra diferentes subjetividades, experiências e projetos, cujo
comum são os problemas que orbitam na relação da filosofia com
seu ensino e sua aprendizagem.
Com a proposta de organização deste livro, oferecemos a
cada participante um espaço de escrita, de maneira que todos
aqueles/as que, de alguma forma, integram o ENFILO, ou que por
ele já passaram, ou ainda que se engajaram em uma luta comum,
pudessem apresentar suas pesquisas e/ou suas reivindicações políticas
em torno do ensino de filosofia. Para tanto, como organizadores
desta coletânea, sugerimos diversas formas de escrita por exemplo,
relatos de experiência e memórias da época do ENFILO e da prática
docente e pesquisa atual; debates teóricos que apresentem as
pesquisas concluídas ou em andamento; narrativas autobiográficas
que percorressem o próprio processo formativo como professores-
filósofos/as/es que são; etc. Nosso objetivo não foi o de organizar
uma coletânea apologética, mas abrir esse espaço a fim de
debatermos, coletivamente, as nossas pesquisas, registrar as
percepções filosóficas com o ensino de filosofia construídas até o
presente momento e tornar público os movimentos teóricos e
11
políticos que marcaram esses 10 anos de existência, mesmo que
informal, de nosso grupo de pesquisa. Esperamos que o passado e o
presente se tensionem e que nossos pensamentos sejam, assim,
problematizados.
Antes de apresentarmos as partes da presente coletânea,
gostaríamos de localizar o leitor no próprio processo de elaboração
dessa proposta. Acreditamos que o percurso pode trazer nuances que
os textos, muitas vezes, não expressam em seus ditos. A princípio,
formulamos uma chamada intitulada “Questões da filosofia e seu
ensino: uma luta coletiva pela licenciatura de filosofia da UNESP”.
O nome escolhido era uma homenagem a uma das disciplinas que
compõe a grade curricular da licenciatura de filosofia daquela
universidade. Isso porque, embora possa parecer apenas mais uma
dentre tantas outras inseridas, recentemente, no currículo com a
ampliação da carga horária da licenciatura, sua presença institucional
marca um acontecimento à trajetória da licenciatura de filosofia da
UNESP, resultado de muita luta política movida, principalmente,
pelos estudantes, mas não só. Muitos daqueles que hoje cursam essa
disciplina, talvez não conheçam o contexto de sua emergência em
nossa universidade, o que ela representa em termos dos movimentos
políticos inerentes ao campo de pesquisa do ensino de filosofia no
Brasil e, especialmente, o movimento feito por alguns dos autores.
O que nós adquirimos e dizemos “nós” porque sua conquista foi
resultado de uma luta coletiva, em diferentes campos de batalha
institucionais, desenvolvidas por vários segmentos e movimentos
dentro da universidade foram as primeiras demarcações de um
território institucional, linhas divisórias ou, muitas vezes, apenas
limítrofes de um espaço em comum que tem como objetivo central
12
construir filosoficamente uma licenciatura de qualidade e quem
sabe, filosófica. Esse era e continua sendo, pelo menos, o nosso
desejo.
Aquilo que sobrou registrado nos anais institucionais da
história é que esta disciplina foi ministrada, pela primeira vez em
2013, como disciplina optativa ao curso de bacharelado e
licenciatura, oferecida por dois professores: Antônio Trajano
Menezes Arruda, docente responsável e professor do Departamento
de Filosofia, e Rodrigo Pelloso Gelamo, docente colaborador e do
Departamento de Didática
1
. Entretanto, para além da versão oficial,
sabe-se que, na realidade, sua primeira formulação data 2012.
Consistia em uma demanda dos próprios estudantes do ENFILO, e
que a ele se somaram muitos outros estudantes de licenciatura e até
mesmo do bacharelado do curso de filosofia, que almejavam por um
espaço formativo para além do grupo, a fim de pensar
filosoficamente o ensino de filosofia. A proposta seria submetida
pelo professor Rodrigo, o qual, naquele momento, serviu como um
sujeito de enunciação para viabilizar, institucionalmente, essa
iniciativa coletiva, ofertando um projeto de disciplina intitulado
“Problemas filosóficos do ensino e aprendizagem da filosofia”. Essa
proposta foi, inicialmente, negada. Por qual motivo? Isso será
acessível ao leitor em alguns dos artigos que se dedicaram a esse
assunto. No entanto, como se sabe, o ensino de filosofia não é bem
aceito como um campo de investigação genuíno da filosofia, o que
é evidenciável no próprio modelo dicotômico das principais
licenciaturas de filosofia do país, o qual, apesar de algumas mudanças
1
Esses professores, juntamente com Vandeí Pinto da Silva, foram os primeiros professores
a entrar no ENFILO.
13
significativas nos últimos anos, ainda separa uma formação
filosófica, responsabilidade dos departamentos de filosofia, e uma
formação pedagógica, responsabilidade dos professores dos
departamentos da área de educação.
Embora a proposta inicial da disciplina não fosse restrita à
licenciatura, sua formulação ressoa um contexto nacional da área do
ensino de filosofia, de sua luta para transformar o ensino de filosofia
em um problema de pesquisa filosófica. Por outro lado, a demanda
dos próprios estudantes marca um contexto regional do curso de
filosofia da UNESP, em que eles carregavam certas críticas à
formação filosófica que recebiam. A voz que ecoava em boa parte do
corpo estudantil fazia jus, principalmente, à presença do professor
Trajano. Quem teve a oportunidade de estar no curso antes de 2014,
sabe de sua importância para a constituição da filosofia da UNESP
e de sua crítica incansável à filosofia universitária brasileira. Não é
coincidência que seu nome seria o escolhido pelos estudantes para
resolver o impasse da aceitação da disciplina e que esta ganharia
espaço institucional somente com sua adesão.
Como vimos insistindo, pensamos que os efeitos dessa
movimentação ultrapassam a criação de mais um espaço disciplinar,
uma vez que o engajamento dos/as/es estudantes foi importante para
que, entre 2012 a 2015, participassem ativamente nas alterações
curriculares do curso, o qual teria que se reestruturar em razão da
CEE. 111/2012. Assim, o que queríamos, com a organização desta
coletânea, era justamente recuperar as memórias daqueles/as que
participaram dessas movimentações iniciadas em torno da disciplina
“Questões da Filosofia e seu ensino”, que seria aprovada em 2013, e
terminada com a nova grade da licenciatura da UNESP. Seria uma
14
oportunidade que teríamos de analisar, coletivamente, cada um em
sua esfera de atuação, sobre o nosso curso, nossa formação
universitária e os problemas do ensino de filosofia, de maneira geral.
Como muitos dados desta luta comum estão escondidos em nossos
e-mails, mensagens e nos escaninhos de nossas lembranças, achamos
que viria em boa hora trazê-los à tona, especialmente para
demonstrar que o curso de filosofia precisa continuar a construir-se
a partir de um espaço comum, partilhado por estudantes e
professores, e proporcionar força ao corpo estudantil para
reivindicarem por melhorias do curso do qual faz parte. Além disso,
tal coletânea poderia constituir-se como uma homenagem ao prof.
Trajano, pois, como o leitor perceberá, seu nome é uma constante
nos diferentes textos, tornando-se, ainda na atualidade, um querido
interlocutor para pensarmos o ensino de filosofia.
Ao recebermos os capítulos dessa primeira proposta,
resolvemos ampliar o escopo de análise, de modo a debatermos não
só o curso de filosofia da UNESP, mas também as pesquisas com o
ensino de filosofia que foram desenvolvidas nesse contexto. Ora, será
que não podemos ver, dentro desses acontecimentos que marcam a
proposta de uma disciplina filosófica para o ensino de filosofia, suas
disputas institucionais e o questionamento das heranças formativas
como um movimento político-filosófico característico à área do
ensino de filosofia na contemporaneidade brasileira? Do mesmo
modo, teríamos como negar as ressonâncias desses debates nas
próprias pesquisas dos diversos integrantes do ENFILO?
Acreditamos que os nossos enfrentamentos e reivindicações
regionais sofrem as marcas de um tempo, um movimento de
discussão nacionalmente peculiar ao ensino de filosofia, tal como as
15
pesquisas do ENFILO são tecidas ante as marcas de nossa
temporalidade. Por isso, escrevemos uma nova chamada e
convidamos aqueles/as que desenvolvem pesquisas em interlocução
com o grupo para, recuperando sua trajetória de pensamento
formativo com o grupo, pensar as problemáticas que lhe são caras,
conforme explicitado nos primeiros parágrafos.
Exposto o percurso de elaboração do projeto da coletânea,
apresentamos sua organização. Dividimos a obra em quatro partes.
Se tais contornos não deixam de ser arbitrários, expressando uma
percepção sobre os textos e suas possíveis interconexões,
organizamos os capítulos em eixos investigativos que retratam, de
alguma maneira, possíveis direções das pesquisas desenvolvidas pelo
ENFILO nos últimos anos. Mesmo que uma década não seja
suficiente para demarcarmos linhas de pesquisas já consolidadas,
esses anos foram importantes para construirmos caminhos
investigativos com o ensino de filosofia.
Na primeira parte, O ensino de filosofia: questões do/ao campo
científico-filosófico, estão dispostos os capítulos produzidos em
interface e tensão com as pesquisas da área no Brasil. O/A leitor/a
terá acesso a textos de pesquisadoras que há muito tempo se
comprometem com o desenvolvimento da área e cujas recentes
pesquisas retomam antigas e colocam novas questões caras ao campo
em debate.
A segunda parte, Ensino de filosofia e formação, concentra os
capítulos construídos em torno da disciplina “Questões da filosofia
e seu ensino” e a reestruturação do curso de filosofia da UNESP.
Os/As autores/as mostram, por diferentes perspectivas, suas
16
participações político-filosóficas, seus questionamentos à estrutura
do curso, suas reivindicações por uma outra formação do professor/a
e por um ensino de filosofia à altura dos desafios contemporâneos,
movimentação que prepararia o terreno para as adequações
institucionais da resolução CEE nº 111/2012 e que, de certa forma,
contribuiria para que, hoje, a licenciatura tenha em sua grade
curricular não só algumas disciplinas por eles demandadas, mas
também, no caso do ensino de filosofia, três disciplinas filosóficas
obrigatórias.
A terceira parte, Heranças Formativas, traz pesquisas em
torno da institucionalização do ensino de filosofia universitário no
Brasil. Problematizam as práticas discursivas e não discursivas
institucionalizadas na maneira como se pesquisa, ensina e aprende
filosofia, revelando alguns traços de uma herança universitária, suas
regularidades e descontinuidades, que se consolidam no cenário
brasileiro e da qual somos herdeiros.
Na última parte, Ensino de Filosofia e Experiência, são
apresentados textos que emergem, principalmente, das tensões
criadas com o exercício de ensinar filosofia na contemporaneidade.
A sala de aula torna-se o lugar de referência a partir da qual muitos
dos integrantes do grupo puderam tensionar os pressupostos e o tipo
de experiência com o filosofar que são praticados e estão
institucionalizados naqueles/as que a ensinam e aprendem. A
transmissão da filosofia como conhecimento representacional, a
aprendizagem como recognição e o empobrecimento da experiência
nas relações educativas com a filosofia, a figura do mestre explicador
e uma suposta causalidade entre ensinar e aprender são alguns dos
17
problemas tratados, vislumbrando-se outras possibilidades para a
filosofia, seu ensino e sua aprendizagem.
Convidamos, assim, os leitores/as ao debate e à interlocução,
com a expectativa de que essa coletânea ultrapasse a dimensão
problemática local, específica ao ENFILO, e que possa contribuir,
de alguma forma, com o crescimento e solidificação da área no
Brasil, retratando problemas que nos são, muitas vezes, comuns.
Os organizadores
Parte 1.
O ensino de filosofia:
questões do/ao campo científico-
filosófico
21
Revisitando minha trajetória de pesquisa junto ao
Enfilo: problematizações sobre (não tão) velhas (mas
sempre caras) queses
Patrícia Del Nero VELASCO
1
Às leitoras e aos leitores, uma breve contextualização
O convívio durante todo o ano letivo de 2019 com o
ENFILO Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia
compreende um dos períodos mais férteis da minha trajetória de
pesquisa. Algumas das minhas produções recentes e mais
significativas corroboram essa autoavaliação
2
; todavia, não a
encerram. São apenas expressões do que há de mais caro na história
desta relação: o respeitoso, incisivo e insistente desafio intelectual; as
fecundas parcerias acadêmicas; os encontros que nos acolhem e nos
interpelam. Uma história que completou recentemente uma década
e foi coroada com a certificação do ENFILO no Diretório de Grupos
de Pesquisa do CNPq, em 2020. Ano este em que foi finalizado meu
estágio de pós-doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em
1
Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH) / Universidade Federal do ABC
(UFABC) / São Bernardo do Campo / São Paulo / Brasil /
patricia.velasco@ufabc.edu.br
.
2
As referidas publicações (a saber, VELASCO 2019a; 2019b; 2019c; 2020a; 2020b) serão
contextualizadas no decorrer do capítulo.
22
Educação da UNESP, campus Marília, sede do Grupo de Estudo e
Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia ora homenageado
3
.
Sob a supervisão do amigo Rodrigo Pelloso Gelamo, a
pesquisa intitulada “A constituição do Ensino de Filosofia como
campo de conhecimento: mapeamento da área na década de 2008 a
2018” procurou responder a um duplo problema: qual o atual estado
da arte do Ensino de Filosofia e o que pensam o(a)s professore(a)s-
pesquisadore(a)s da área sobre Ensino de Filosofia e formação
docente em Filosofia? Para tanto, foram coletados depoimentos de
41 colegas, a partir do convite feito: aos integrantes do GT da
ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar; a colegas do Programa de
Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN/CEFET-RJ) e do
Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO); além de
pesquisadoras e pesquisadores que, embora não façam parte destes
fóruns, têm produção e orientação na área.
A discussão sobre o estado da arte do Ensino de Filosofia no
Brasil logo se mostrou tarefa hercúlea: como mapear todas as
produções bibliográficas referentes à temática? Que critérios utilizar?
Como acessar este acervo? Pensando no universo de cerca de 180
profissionais credenciados a um dos dois mestrados profissionais
vigentes hoje no país, nos inúmeros colegas vinculados a programas
acadêmicos de pós-graduação em Educação e/ou Filosofia que
desenvolvem pesquisas e orientam sobre Ensino de Filosofia, além
de todos os professores e professoras em exercício na Educação
3
O estágio em questão foi realizado com bolsa Pós-Doutorado Sênior do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq (Chamada CNPq Nº
22/2018 - Bolsas Especiais no País e Exterior, Processo 148901/2018-2), no período de
março de 2019 a fevereiro de 2020.
23
Básica que realizam pesquisas diárias para suas aulas, decidimos fazer
recortes. A primeira restrição diz respeito aos(às) pesquisadore(a)s
cujo acervo seria coletado; a segunda, acerca da natureza deste
acervo.
Por conseguinte, optamos por coletar as produções de
colegas formalmente vinculados ao GT Filosofar e Ensinar a
Filosofar, os quais correspondiam, em 2019, a 45 profissionais
4
.
Ademais, limitamos os dados aos projetos (de pesquisa, ensino e
extensão), às produções bibliográficas (artigos, livros, capítulos de
livros, trabalhos completos publicados em anais de eventos,
prefácios/posfácios, entre outras) e às orientações (dissertações, teses,
iniciações científicas, trabalhos de conclusão de curso e monografias
de cursos de especialização). Com o propósito de estabelecer um
comparativo entre os períodos anterior e posterior à obrigatoriedade
da Filosofia como disciplina escolar
5
, não restringimos a pesquisa ao
período subsequente à fundação do GT, a qual ocorreu em 2006. O
levantamento levou em conta duas décadas de produção: 1997 a
2007 e 2008 a 2018. O material foi publicado pela Editora do NEFI
- Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias, com o título Filosofar
e ensinar a filosofar: registros do GT da ANPOF 2006-2018
(VELASCO, 2020a).
Acerca das iniciativas da área, cabe ainda mencionar que um
brevíssimo histórico foi reconstituído em artigo publicado na edição
inaugural da Revista Estudos de Filosofia e Ensino, do Programa de
4
Desde então, colegas há tempos presentes e atuantes no GT foram credenciados no grupo,
aumentando consideravelmente o número em questão. (Cf. a página institucional do GT:
https://www.anpof.org/gt/gt-filosofar-e-ensinar-a-filosofar
. Acesso em: 06 mai. 2021).
5
Cf. Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008.
24
Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do CEFET-RJ (cf.
VELASCO, 2019b). Nesse texto, registramos algumas coleções,
revistas e eventos dedicados à área, assim como fazemos referência a
iniciativas no âmbito da ANPOF e ao PROF-FILO.
Especificamente sobre este último, a fim de discutir a natureza do
Mestrado Profissional em Filosofia a partir de alguns dados do
programa, criamos o texto “O que é isto o PROF-FILO?”,
publicado no dossiê sobre Ensino de Filosofia da Revista O que nos
Faz Pensar, da PUC-RJ (VELASCO, 2019c).
Contextualizado o modo de abordagem e as produções
oriundas do problema de pesquisa “qual o atual estado da arte do
Ensino de Filosofia?”, passo a discorrer sobre a segunda e correlata
questão-cerne da investigação realizada no âmbito do ENFILO, a
saber, “o que pensam o(a)s professore(a)s-pesquisadore(a)s da área
sobre Ensino de Filosofia e formação docente em Filosofia?”. A
despeito das saudáveis e enriquecedoras divergências de pontos de
vista, interessava-nos encontrar uma eventual voz consoante entre
aquelas e aqueles que escolheram em suas trajetórias acadêmicas se
debruçar sobre o Ensino de Filosofia como um problema filosófico
de pesquisa. Uma voz que não pretende apagar as
incompatibilidades e/ou os distintos percursos filosóficos de cada
participante, mas que concebe nas diferenças aportes para a
delimitação (ainda que tênue) de um campo de conhecimento a
partir de perspectivas comuns a quem constitui a área de Ensino de
Filosofia no Brasil.
O mapeamento das posições do(a)s participantes foi
realizado a partir de um questionário, no qual perguntamos a
respeito da aproximação da área; do autorreconhecimento como
25
pesquisador(a) da área; das relações entre as atividades de pesquisa,
ensino e extensão; da necessidade (ou não) de reconhecimento do
Ensino de Filosofia como uma subárea de conhecimento nas
agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos
para a pesquisa no país; das eventuais dificuldades de
reconhecimento do Ensino de Filosofia como temática ou área de
conhecimento filosóficas pelo(a)s colegas de graduação/
mestrado/doutorado, pela comunidade filosófica em geral e/ou pelas
agências de fomento. Além destas questões, duas outras foram feitas
e consideradas centrais para o nosso propósito: “o que considera
fundamental para formar um(a) professor(a) de Filosofia?” e “o que
caracteriza essa subárea (campo) do conhecimento? Quais suas
especificidades e quais as proximidades e/ou distâncias com relação
à Filosofia da Educação? E à própria Filosofia?”.
As questões supracitadas são cernes de duas outras produções
oriundas do meu encontro com o ENFILO. As reflexões sobre as
especificidades (e as interfaces) do Ensino de Filosofia como campo
de conhecimento compuseram a temática submetida aos pares no
VII Congresso Internacional da SOFELP (São Paulo, USP, 03 a 05
de setembro de 2019), assim como tem sido problematizada em
diversos encontros desde então
6
. Uma primeira versão textual das
ideias organizadas em torno do tema compreende o artigo “O
estatuto epistemológico do Ensino de Filosofia: uma discussão da
6
Além das reuniões periódicas da comissão do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar criada
para este fim, o tema foi pautado nos seguintes encontros: Aula inaugural do núcleo UERN
do PROF-FILO (2020), 1ª Quinzena Virtual de Ensino e Pesquisa em Filosofia da
Unicamp (2020), Seminários da Filosofia UFABC (2021) e Seminário de Licenciatura em
Filosofia: Diálogos com a Educação Básica (UFOP, 2021).
26
área a partir de seus autores e autoras”, aceito pela Revista Pro-
Posições (VELASCO, [no prelo]).
Os debates sobre formação docente, por sua vez, foram
compartilhados com os próprios autores e autoras colaboradores da
pesquisa (ou grande parte dele(a)s) durante o VI Encontro do GT
Filosofar e Ensinar a Filosofar, ocorrido em outubro de 2019, na
Universidade Federal do Maranhão. Na ocasião, juntamente com os
colegas Elisete M. Tomazetti (UFSM) e José Benedito de Almeida
Júnior (UFU), discutimos a temática a partir das perspectivas de
licenciando(a)s e professore(a)s de Filosofia. A versão final da
comunicação “O que pensamos nós, formadore(a)s de
professore(a)s, sobre formação docente em Filosofia?” compõe o
Dossiê “VI Encontro do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar”,
publicado no número 34 da Revista Sul-Americana de Filosofia e
Educação (cf. VELASCO, 2020b/2021).
Não obstante as produções acima referenciadas sejam uma
contraparte relevante do frutífero convívio com aquelas e aqueles
que fazem parte do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de
Filosofia, não encerram como já mencionado outras dimensões
da colaboração em voga: o acolhimento e a interpelação, o constante
deslocamento de nossa zona de conforto, a abertura para outros
olhares sobre as nossas (não tão) velhas (mas sempre caras) questões.
Neste sentido, o presente relato não poderia se furtar, ao revisitar a
trajetória das atividades realizadas junto ao ENFILO, de recolocar
as teses defendidassubmetendo-as a possíveis novas interrogações.
27
Recolocando as teses, reconhecendo suas fragilidades
No que diz respeito ao acervo coletado dos membros do GT
Filosofar e Ensinar a Filosofar, há que se mencionar, primeiramente,
uma notória injustiça: dado que a atualização dos pesquisadores e
pesquisadoras que cotidianamente têm constituído o GT nos
últimos anos foi realizada apenas na reunião virtual ocorrida em
dezembro de 2020, a pesquisa bibliográfica incidiu sobre os nomes
oficialmente vinculados ao grupo até 2019. Alguns destes, presentes
desde a fundação do GT; outros, participantes itinerantes; muitos,
responsáveis pelo fomento das pesquisas sobre Ensino de Filosofia e,
consequentemente, pela efetiva presença da área no cenário da pós-
graduação em Filosofia. Com essa escolha metodológica, nomes que
têm dado imprescindível contribuição para a consolidação da área
não tiveram suas produções identificadas. Sinalizamos, aqui, a
urgência deste reparo. Uma necessidade já diagnosticada pelo
próprio GT, o qual iniciou, em 2021, o trabalho de mapeamento do
escopo maior das publicações da área, visando a criação de um
repositório sobre Ensino de Filosofia. Um trabalho que, dada a
vastidão territorial brasileira e a efervescência da área, só logrará êxito
se for realizado coletivamente.
Um segundo aspecto referente às publicações e orientações
originárias do GT concerne à dificuldade de identificação do escopo
próprio do Ensino de Filosofia. Uma análise comparativa dos
números de publicações e orientações do grupo é proposta no texto
“Sobre os números do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar: a
consolidação de uma área de pesquisa”, parte que encerra a
28
supramencionada obra Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT
da ANPOF 2006-2018 (VELASCO, 2020a). Nestas mesmas
páginas, afirma-se que a despeito do inegável avolumamento de
produções daquelas e daqueles que problematizam o filosofar e seu
ensino no âmbito do GT da Associação Nacional de Pós-Graduação
em Filosofia há ainda todo um trabalho a ser realizado que diz
respeito à classificação do acervo segundo sua especificidade.
Reproduzimos aqui a ressalva feita no livro:
Dado que a própria discussão sobre o estatuto epistemológico
da área, seus limites e interfaces, ainda está sendo realizada por
pesquisadores e pesquisadoras, há que se considerar a acentuada
diferença de natureza de algumas produções: algumas
provavelmente serão, de modo consensual, aceitas como
pertencentes ao campo do Ensino de Filosofia; sobre outras,
certamente haverá discordância. Pertencem ao escopo da
Filosofia da Educação? Estão em uma área de interface? (Como,
por exemplo, textos e pesquisas sobre formação filosófica ou
sobre a presença da Filosofia na formação educacional). Na
impossibilidade, para fins deste livro, de adentrarmos esta
discussão, oferecendo outra classificação possível para o acervo,
contentamo-nos em acatar o escopo mais amplo de produções
do grupo ação que permitirá, senão afirmarmos o estimado
crescimento da área de Ensino de Filosofia no Brasil, ao menos
demonstrarmos o indubitável aumento de produções daqueles
e daquelas vinculados ao grupo de trabalho que, dentro da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, dispõe-se
a refletir sobre o filosofar e seu ensino (VELASCO, 2020a, p.
516).
29
Em outras palavras, chamamos a atenção do(a) leitor(a) para
a delicada tarefa de identificar as produções específicas do campo de
conhecimento “Ensino de Filosofia”. Complexa tarefa, visto que é
indissociável da discussão ainda em processo de maturação sobre
o estatuto epistemológico da área. Se os limites e as especificidades
do Ensino de Filosofia como subárea filosófica de pesquisa ainda não
são claros e (muito menos) distintos, como classificar produções
localizadas em suas interfaces seja com a Educação, seja com o
Ensino, seja ainda, com a subárea de Filosofia da Educação? Por
outro lado, justamente por ser um campo de interface, por que não
compilarmos também este legado marcado pelos rendados
7
próprios
ao Ensino de Filosofia?
A discussão sobre o estatuto epistemológico do Ensino de
Filosofia, como dissemos, ainda está sendo amadurecida. Todavia,
podemos antecipar que há um traço distintivo da área corroborado
por todos aqueles e aquelas que pesquisam a temática, a saber, o
caráter filosófico deste ensino. Quemem sua trajetória acadêmica
assumiu o Ensino de Filosofia como problema de investigação,
entende que a questão metafilosófica “o que é filosofia?” perpassa,
invariavelmente, o escopo das discussões da área. Como a Filosofia
é polissêmica, o ofício docente em Filosofia obriga aquele(a) que se
dispõe a ensinar a manter a pergunta “que filosofia?” em seu
horizonte de reflexão: qual a relação que eu mantenho com a
filosofia e como essa relação implica a minha atividade de ensi-la?
Este é o questionamento que qualquer professora ou professor, em
7
A expressão “rendados” como referência às interfaces do campo de conhecimento do
Ensino de Filosofia foi cunhada por Flávio de Carvalho a quem peço licença para tomar
o termo por empréstimo. Obrigada, meu amigo.
30
qualquer nível de ensino, deveria procurar responder. Uma vez que
a didática própria da Filosofia é permeada de problemas sobre a
natureza do filosofar e do seu ensino, dizemos que ela é,
forçosamente, filosófica
8
.
Além das questões metafilosófica que o atravessam, o campo
do Ensino de Filosofia se constitui por dois outros tros distintivos,
a saber, suas dimensões prática e política.
Diferentemente de outras subáreas da Filosofia, que ao
menos tradicionalmenteo trabalhadas de modo estritamente
teórico, o vínculo entre teoria e prática no Ensino de Filosofia é
indissociável. Este campo é estéril sem o chão da sala de aula, sem o
chão da escola ou da universidade, enfim, sem as práticas
mobilizadas por aquelas e aqueles envolvidos com esse ensino e essa
aprendizagem. Em outros termos: os problemas investigados no
Ensino de Filosofia usualmente nascem de experiências vivenciadas
por seus atore(a)s e solicitam metodologias de pesquisa e referências
teóricas escassas (quando não inexistentes) nos programas de
Filosofia.
A atribuição de uma dimensão prática à área de Ensino de
Filosofia pode, eventualmente, incorrer em uma interpretação que
não gostaríamos de corroborar: a consideração de que este campo de
8
Sobre o tema, além da preciosa obra de Alejandro Cerletti, O ensino de Filosofia como
problema filosófico (2009), indicamos a leitura de um material coletivo, intitulado Ensino
de qual? Filosofia: ensaios a contrapelo (VELASCO, 2019a). Nascido das preocupações do
corpo docente da UFABC com as questões metafilosóficas inerentes ao Ensino de Filosofia,
o livro cujos textos ensaiam perspectivas sobre o ensino da Filosofia a partir de pensadores
clássicos foi publicado durante o estágio de pós-doutorado na UNESP: Rodrigo Gelamo,
líder do ENFILO, assinou o prefácio do volume e viabilizou sua edição junto à Cultura
Acadêmica. Em nome dos autores e autoras do livro, reiteramos nosso muito obrigada(o).
31
conhecimento só pode ser acolhido por programas profissionais (ou
profissionalizantes) de pós-graduação. Respeitamos o(a)s colegas que
comungam desta posição, mas dele(a)s divergimos.inúmeras
pesquisas de mestrado e doutorado sobre Ensino de Filosofia que são
de cunho acadêmico; pesquisas defendidas tanto em programas de
pós-graduação em Educação como em programas de Filosofia. Os
mestrados profissionais têm como objetivos, entre outros, a
capacitação qualificada para o exercício de determinada prática
profissional e o atendimento de demandas sociais locais ou regionais
(BRASIL, 2009, p. 31). Não obstante tais objetivos estejam
incluídos no horizonte de pesquisas em/sobre Ensino de Filosofia,
há investigações na área que têm escopo distinto e diferente
natureza. O campo de conhecimento que visamos delimitar se
debruça, igualmente, sobre: os fundamentos filosóficos de
determinada prática de ensino; a formação docente; as relações entre
o ensino e a história da Filosofia; o valor formativo da Filosofia, entre
outros. Temas e problemas nos quais a dimensão prática não
compreende o produto visado (como um produto educacional
característico dos mestrados profissionais
9
), mas o próprio objeto de
investigação: o ensinar, o formar, o filosofar etc. Nesse sentido, o
Ensino de Filosofia como campo de conhecimento comporta tanto
uma dimensão profissional quanto uma dimensão acadêmica,
embora em uma ou em outra não se furte a refletir sobre
determinadas práticas ou sobre determinados processos
historicamente instituídos.
Ademais, podemos considerar que a própria atividade de
ensinar e aprender filosofia é parte constituinte da dimensão prática
9
Sobre produtos educacionais de filosofia, cf. PINTO; PEREIRA (2019).
32
da área: um filosofar que se faz enquanto ensino e enquanto
aprendizagem ao exercitar-se na Filosofia, o(a) docente reinventa
o ato filosófico no mesmo espaço em que o(a)s estudantes
experimentam o pensamento em seu registro filosófico.
Ainda sobre as práticas características e a dimensão prática
inerente à área estudada junto ao ENFILO, há que se perguntar
sobre as pesquisas de professoras e professores de Filosofia voltadas
para a prática docente. Para nosso ofício de dar aula, tanto na
Educação Básica quanto no ensino superior, pesquisamos materiais,
literatura, metodologias. Estariam estas investigações no escopo da
área? Dificilmente diríamos que não. Mas em que medida se
diferenciam das pesquisas realizadas na pós-graduação?
A caracterização do campo de conhecimento “Ensino de
Filosofia” a partir da prática e das questões metafilosóficas inerentes
à área tal como realizada até aqui é, certamente, insuficiente. Há que
se fazer menção a outra dimensão intrínseca e singular do Ensino de
Filosofia: o compromisso com a constituição do espaço público.
Talvez como nenhuma outra subárea filosófica, o Ensino de
Filosofia compreende um exercício político: a atividade docente
filosófica instiga os não filósofos à experiência de pensarem questões
fundamentais ao ser humano o que é a vida? O que é o
conhecimento? O que é o justo? O que é o belo? Etc. Convida-os,
outrossim, à discussão filosófica de questões fundamentais ao tempo
presente: questões contemporâneas como o feminismo, o racismo, o
decolonialismo; questões que, em última instância, dizem respeito
ao modo como ensinamos e ao propósito deste ensino.
33
Se, dentre outras tantas características, a Filosofia questiona
os fundamentos as razões de pensarmos de uma forma e não de
outra , o filosofar em sala de aula não escapa à discussão das
questões supra referidas. E por que o faria?
As situações de ensino de Filosofia podem ser formas de
intervenção filosófica sobre textos, problemas, temáticas ,
nas quais o que emerge é a relação que com ela mantêm aqueles
que ensinam e aprendem. Em uma aula filosófica, procura-se
dar lugar ao pensamento do outro. Nesse contexto, a Filosofia
é construída dialogicamente e os velhos [e novos!] problemas
são vivificados em seu registro filosófico e reconstruídos de
modo significativo por cada um dos envolvidos (VELASCO,
2018, p. 73).
Pensando (mais) especificamente na Educação Básica, ainda
que a professora ou o professor não tematizem as questões
contemporâneas em seus cursos, as estudantes e os estudantes
certamente as trarão para a sala de aula, pois são inquietações
vivenciadas por elas e por eles em seu cotidiano. Situações de
machismo ou de racismo que este(a)s adolescentes presenciam no
ponto de ônibus, no pátio da escola, nas injúrias escritas nos
banheiros das escolas
10
. Situações e inquietações para as quais a
10
Referencio, aqui, a pesquisa desenvolvida por Nathalia de Oliveira (PROF-
FILO/UFABC) sob a orientação do prof. Alexander de Freitas e a coorientação da profa.
Marília Mello Pisani. No trabalho intitulado “Corpos injuriados na escola:
problematizações para o Ensino de Filosofia”, Oliveira busca compreender, desnaturalizar
e descontruir os discursos presentes na escola que versam sobre os corpos injuriados, tendo
como ponto de partida, entre outros, as injúrias grafadas nas paredes dos banheiros da
escola.
34
Filosofia em sala de aula deverá estar atenta contribuindo para a
respectiva crítica e ressignificação.
A dimensão política do Ensino de Filosofia pode ainda ser
demarcada por um outro aspecto que, a princípio, lhe é peculiar: o
espaço do ensino e da aprendizagem filosófica é (ou deveria ser)
também o espaço da difuo da Filosofia. Assim como o Ensino de
Ciências há muito se ocupa com a divulgação científica, tornando as
ciências acessíveis ao público leigo, espera-se do Ensino de Filosofia
algo similar: conceber, de um lado, a divulgação daquilo que se pensa
e se produz em Filosofia para um público de não-filósofos; de outro,
e concomitantemente, refletir sobre práticas filosóficas que
poderiam ter algum impacto em setores variados da sociedade.
Apesar do papel de divulgação filosófica pela área de Ensino
de Filosofia ser aparentemente uma tese que não encontraria muita
resistência
11
, ainda são ínfimas (se comparadas às produções
bibliográficas) as iniciativas nesse sentido. Damos poucas entrevistas,
raramente escrevemos para jornais e revistas não especializados,
enfim, dedicamo-nos esporadicamente a transpor aquilo que
estudamos da linguagem filosófica acadêmica para uma linguagem
não formal ou técnica, passível de compreensão por leigos. Uma
lacuna, há que se lembrar, que não é própria apenas da subárea em
questão, mas de todo o campo da Filosofia.
Com o intuito de finalizarmos este subcapítulo, resta-nos
apresentar as teses referentes à formação docente, parte integrante
do problema de pesquisa investigado. Para tanto, recorreremos à
11
Cabe mencionar, a título de autoria, que a referida tese foi mencionada na pesquisa ora
compartilhada de modo mais detido por dois colegas, Felipe Gonçalves Pinto (CEFET-RJ)
e Renê Jose Trentin Silveira (UNICAMP), aos quais agradecemos a interlocução.
35
passagem do artigo “O que pensamos nós, formadores/as de
professores/as, sobre formação docente em filosofia?”, a qual
sintetiza as posições dos pesquisadores e pesquisadoras participantes
sobre o tema:
há que se tomar o ensino de Filosofia como problema filosófico,
indissociável, portanto, da pesquisa. Deve-se oferecer
conhecimento profundo de Filosofia e de metodologias e
práticas de ensino de Filosofia, atentando para o trabalho com
a dimensão prática desde o início e durante toda a formação
docente. Uma formação que se dedica a pensar sobre o próprio
valor formativo e que não se encerra com a Licenciatura
entendida como ‘curso com nome e sobrenome próprios’ ,
mas requer aprimoramento contínuo, abertura à alteridade e
diálogo com as outras áreas de conhecimento, com a cultura,
com o seu público alvo. Posturas necessárias para que o Ensino
de Filosofia seja significativo e, por conseguinte, efetivamente
formativo (VELASCO, 2020b/2021, p. 32).
A despeito das distintas bases epistemológicas e percursos
formativos que fundamentam as posições de cada participante da
pesquisa, as respostas dadas mostram que há expressivos pontos
comuns nas reflexões dos pesquisadores e pesquisadoras sobre o
assunto e, consequentemente, tornou-se possível alinhavar uma
perspectiva formativa enquanto área. Trata-se de uma concepção de
formação docente que reverbera nos cursos de licenciatura aos quais
cada um de nós está vinculado. Nos últimos anos, por força da lei,
ocorreram mudanças significativas nos cursos de formação de
professores e professoras de Filosofia. Muitas delas, demandadas há
36
algum tempo pelo(a)s pesquisadore(a)s da área: a problematização
filosófica do ensino e da aprendizagem em Filosofia; o cuidado com
a dimensão prática da formação durante todo o curso; a interlocução
com outras áreas e saberes que integram a escola, em particular, e o
processo educacional, em geral.
A fragilidade da tese sobre formação docente em Filosofia,
entendemos, localiza-se menos naquilo que é defendido (que pode e
é, obviamente, alvo de crítica de alguns colegas) e mais
provavelmente no fato de não ser plenamente exequível no
contexto institucional vigente. Não se trata, aqui, de um
impedimento intransponível; diz respeito, antes, ao modo como os
cursos de bacharelado e licenciatura foram historicamente
concebidos e à falta de familiaridade (e às vezes de interesse) do(a)s
próprios docentes destes cursos com as questões do Ensino de
Filosofia
12
.Dos cursos de Licenciatura em Filosofia vigentes no país,
quais deles atendem à posição síntese da área acima citada? Quais
têm acesso às discussões e às produções sobre formação docente do
grupo-base da presente ora compartilhada, a saber, os membros do
GT da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar?
Apresentadas as principais teses originárias da pesquisa no
âmbito do ENFILO, bem como apontadas algumas de suas
fragilidades, passemos a novas problematizações, movimento que é
uma das marcas das pesquisadoras e dos pesquisadores do grupo:
rever nossos pressupostos, buscar fundamentações mais fortes para
aquilo que nos parece óbvio.
12
Conferir os livros dos colegas de ENFILO Augusto Rodrigues (2020) e Rodrigo Gelamo
(2009).
37
Outros aspectos das mesmas questões
O acervo recolhido durante a pesquisa realizada junto ao
ENFILO ainda não foi objeto de estudo. Todavia, algumas
conclusões já podem ser tiradas com base em uma visão geral do
material. No lançamento virtual do livro do GT
13
, meu querido
Marcos Von Zuben fez uma resenha da obra. Entre outros
apontamentos, observou que enquanto o termo “ensino” é
amplamente utilizado por nós, pesquisadoras e pesquisadores da
área, as menções à aprendizagem são raras. Constatação idêntica já
tinha sido realizada por Gelamo durante a supervisão da pesquisa de
pós-doutorado
14
. Em nossas conversas, verificamos também que,
assim como nas demais subáreas filosóficas, citamos e nos apoiamos
muito em Foucault, Deleuze, Nietzsche, mas pouquíssimo em
nossos próprios pares. Se já temos discussões que vêm sendo
amadurecidas há pelo menos vinte anos, por que não dialogar
igualmente com essa literatura, com as produções sobre Ensino de
Filosofia realizadas desde Santa Maria, por Elisete Tomazetti, até o
Rio Grande do Norte, por José Teixeira Neto, Maria Reilta Cirino
e o próprio Zuben? Julgo que este passo é imprescindível para
desenvolvermos uma cultura de Ensino de Filosofia solidificando
nossas discussões que envolvem, pra além dos problemas universais,
nossas idiossincrasias, nossas regionalidades, nossa escola pública.
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bAH-9Cp4BDQ. Acesso em: 13
abr. 2021.
14
Dos poucos trabalhos sobre a temática da aprendizagem em Filosofia, lembramo-nos de
dois de nossa autoria, apresentados durante o VI Simpósio Internacional em Educação e
Filosofia. Cf. Gelamo; Rosa (2017) e Velasco (2017).
38
Outro aspecto que precisamos ainda cuidar com maior
fôlego diz respeito à discussão e à criação de metodologias e didáticas
próprias para o filosofar na Educação Básica. Insistimos nas reflexões
teóricas e produzimos em menor escala materiais sobre “como”
ensinar. Concomitantemente, sabemos que materiais desta natureza
são produzidos aos montes por aquelas e aqueles que estão nas
escolas; contudo, não são publicizados e/ou não têm o estatuto de
pesquisa que as pesquisas acadêmicas têm.
Em parte, a aludida lacuna vem sendo suprida pelas
dissertações desenvolvidas nos mestrados profissionais, as quais, em
grande medida, oferecem não só um arcabouço conceitual e teórico
sobre as temáticas investigadas, mas também proposições didático-
metodológicas. Os trabalhos em voga, sem dúvida, constituem uma
rica matéria prima para pesquisas futuras
15
. E tem a vantagem de já
estarem disponíveis nas páginas institucionais do Programa de Pós-
graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN/CEFET-RJ) e do
Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO)
16
.
Os mestrados profissionais m exercido um papel crucial na
aproximação das pesquisas sobre Ensino de Filosofia realizadas na
pós-graduação com as ações da área vigentes na Educação Básica.
Compreendem uma oportunidade ímpar de avizinhamento de
quem pesquisa Ensino de Filosofia no seu ofício cotidiano e de quem
pesquisa Ensino de Filosofia na universidade. As investigações
15
Há que se mencionar a pesquisa já realizada por Ferreira, Silva e Carreiros (2020), na
qual as autoras analisam dissertações do PROF-FILO, mostrando as abordagens
metodológicas mais recorrentes nestas: pesquisa fenomenológica, pesquisa-ação e pesquisa
intervenção.
16
Disponíveis, respectivamente, em: http://dippg.cefet-rj.br/ppfen/index.php/pt/ e
http://www.humanas.ufpr.br/portal/prof-filo/. Acesso em: 12 abr. 2021.
39
desenvolvidas no âmbito dos mestrados profissionais têm alcance nas
escolas, pois são fruto de problemas de pesquisa delineados a partir
da realidade e do dia a dia das escolas em que os professores e
professoras mestrando(a)s atuam
17
. Por conseguinte, possuem um
impacto social que seguramente os mestrados acadêmicos não
atingem. Possuem, similarmente, uma imediata ressonância nos
cursos de formação de professoras e professores: ao darem
visibilidade às lacunas formativas e mostrarem que a realidade
escolar é distinta daquela existente quando muitos dos cursos de
licenciatura foram criados, os mestrados profissionais contribuem,
outrossim, para que estes últimos sejam repensados.
A distância entre as pesquisas sobre Ensino de Filosofia
realizadas nas universidades e a efetiva prática docente na Educação
Básica, acima sinalizada, também é visível entre as investigações em
questão e os cursos de formação de professoras e professores de
Filosofia. Se anteriormente afirmamos que a concepção de formação
dos membros do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar reverbera nas
licenciaturas em que cada um de s está vinculado, o que dizer dos
demais cursos? Problematizam filosoficamente o ensino e a
aprendizagem em Filosofia? Atentam à dimensão prática durante
todo o curso? Cuidam das interlocuções com outras áreas e saberes
constitutivos da escola?
De acordo com o colega de GT Christian Lindberg Lopes
do Nascimento (2020), dos 44 cursos de Licenciatura em Filosofia
de universidades federais, 18,18% não ofertam uma única disciplina
filosófico-pedagógica e 34,1% ofertam apenas uma disciplina desta
17
Alguns resultados das dissertações da primeira turma do PROF-FILO foram publicados.
Conferir, por exemplo, Soares; Pimenta (2020) e Teixeira Neto; Cirino (2020).
40
natureza. Constata Nascimento, igualmente, que as discussões da
área aparecem com os seguintes nomes nos projetos pedagógicos dos
cursos: Metodologia do Ensino de Filosofa (em 15 IES), Prática de
Ensino (em 9), Didática Filosófica (em 8), Seminário de Ensino (em
5), Ensino de Filosofia, Filosofia do Ensino de Filosofia, Laboratório
de Ensino e Ensino de Filosofia (em 4 cada). Se os nomes mostram
que há muito ainda para discutirmos sobre o escopo do Ensino de
Filosofia (em que medida Ensino de Filosofia se diferencia de
Didática Filosófica? E de Filosofia do Ensino de Filosofia?
Metodologia e Didática coincidem?), os números revelam que
“pouco mais da metade dos cursos de licenciaturas em Filosofia”
(NASCIMENTO, 2020, n. p.) ofertam uma ou nenhuma disciplina
específica da área de Ensino de Filosofia. Uma porcentagem
problemática não apenas por conta do não cumprimento das
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação Inicial de
Professores para a Educação Básica (BRASIL, 2019), mas e
primordialmente por escancarar o prejuízo formativo dos futuros
professores e professoras, em sua maioria ainda formados segundo
um modelo obsoleto e distante das reflexões e produções atuais da
área.
A discussão supracitada sobre o escopo (e a natureza) do
Ensino de Filosofia, já dissemos, está em andamento e alguns
resultados foram apresentados no subcapítulo anterior. Por ora,
interessa-nos abordar uma outra dimensão do mesmo problema, a
saber, a da institucionalização do Ensino de Filosofia como campo
de conhecimento. Essa abertura para o tema envolve: pensar as
razões pelas quais historicamente o Ensino de Filosofia não foi
considerado subárea da Filosofia nas universidades e nas agências de
41
fomento; entender a constituição dos departamentos de Filosofia e
dos programas de pós-graduação; assim como debater os espaços de
luta política que envolvem essa questão. Alguma pesquisa neste
sentido tem sido feita no âmbito do ENFILO e as já indicadas obras
de Gelamo (2009) Rodrigues (2020) são exemplos da investigação
em pauta.
Sobre o possível reconhecimento acadêmico do campo de
conhecimento Ensino de Filosofia”, devemos mencionar a
ignorância de grande parte da comunidade filosófica sobre as
produções da área. Assim como nós, do campo, não conseguimos
dar conta daquilo que é produzido nas demais subáreas da Filosofia,
o(a)s colegas analogamenteo acessam o que é problematizado
entre nós. Uma vez que (ao contrário das demais subáreas) o Ensino
de Filosofia não é institucionalizado, como pleitear esse lugar
institucional se a comunidade filosófica não conhece a literatura e as
demais ações da área?
Outra dificuldade do processo de pleitear o reconhecimento
acadêmico da área de Ensino de Filosofia compreende a dimensão
prática a que fizemos menção anteriormente. Esta última deve ser
motivo de resistência por parte do(a)s filósofo(a)s, uma vez que não
é tradicionalmente associada às pesquisas em Filosofia. Por esta
razão, estaria o Ensino de Filosofia necessariamente excluído dos
programas de pós-graduação em Filosofia? Ou, contrariamente,
precisaríamos rever a concepção talvez estreita de Filosofia
sedimentada nestes últimos?
A dificuldade maior na busca por reconhecimento
institucional, todavia, talvez seja o fato de que este pleito implica a
42
atribuição de um poder político e de um capital que poderá
reconfigurar o jogo de forças hoje vigente na comunidade acadêmica
filosófica. Tomando Pierre Bourdieu (1983) como referência
teórico-conceitual, entendemos campo como um espaço autônomo
em que estão inseridos os agentes e as instituições que produzem,
reproduzem e difundem o conhecimento científico (sendo o termo
“científico” tomado em seu significado mais amplo e, portanto,
incluindo o “filosófico”). Nesse sentido, para Bourdieu (1983, p.
122), o campo compreende “o espaço de jogo de uma luta
concorrencial”, que envolve não só a capacidade técnica e uma
visibilidade social (e isso o percurso de pesquisa junto ao ENFILO
permite afirmar que o Ensino de filosofia já goza), mas uma
legitimidade outorgada pela comunidade, no caso, a comunidade
filosófica. Uma legalidade que certamente nós não temos, porque
não há uma única linha de pesquisa nos programas de pós-graduação
em Filosofia que contemple o Ensino de Filosofia em seu escopo,
assim como não há essa subárea nas agências de fomento à pesquisa
e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país. Mesmo
assim, ocupando um não-lugar institucional, os trabalhos sobre a
temática do Ensino de Filosofia representaram 10% das
apresentações no encontro da ANPOF de 2018 (VELASCO,
2019b). O que acontece se houver este reconhecimento da área?
Ainda sobre o mesmo tema: temos hoje cerca de 180
docentes credenciado(a)s em mestrados profissionais; se cada
pesquisador e pesquisadora estiver orientando ao menos um
trabalho, temos no mínimo 180 pesquisas em andamento. Mas este
número é bem maior: contando a turma ingressante e a turma de
veteranos, por ano, só na rede PROF-FILO temos cerca de 300
43
mestrando(a)s, ou seja, 300 pesquisas em andamento sobre Ensino
de Filosofia sendo desenvolvidas anualmente na pós-graduação em
Filosofia. Estaria a comunidade filosófica disposta a reconhecer a
área de Ensino de Filosofia não só por seu estatuto epistemológico,
mas pelo impacto desse reconhecimento nos espaços de disputa
filosófica – como encontros, revistas e agências de fomento?
Em contrapartida, a mesma comunidade filosófica poderia
questionar: qual a necessidade dos pesquisadores e pesquisadoras da
área de Ensino de Filosofia de pleitear o reconhecimento
institucional? A nosso ver, a resposta é um tanto óbvia: o acesso
do(a)s profissionais da área a recursos e bolsas de pesquisa, assim
como a uma situação mais justa nas situações de avaliações de nossos
trabalhos pelos pares. Não podemos ficar reféns da simpatia do(a)s
pareceristas; temos o direito de sermos avaliados por pesquisadoras
e pesquisadores que efetivamente conhecem a área. Um projeto de
História da Filosofia não é avaliado por um pesquisador de Lógica
ou Epistemologia, certo? Por que deveríamos ser então avaliado(a)s
pelas outras subáreas da Filosofia? São inúmeros os casos de colegas
que tiveram seus projetos ou artigos recusados não por demérito
acadêmico, mas por não serem considerados do escopo da Filosofia.
Perguntamo-nos: de qual Filosofia?
Nesse viés, há um exercício de poder, de tomada de decisões
e de capacidade de influenciar diferentes instâncias acadêmicas que
diz respeito à cada comunidade profissional. Um exercício que pode
sofrer alterações sempre que uma nova comunidade é reconhecida
pela academia. Assim sendo, a institucionalização do Ensino de
Filosofia como campo epistemológico autônomo implica não só a
legitimidade de um grupo e seu dever de indicar e conduzir um
44
projeto político-pedagógico de formação de professore(a)s de
Filosofia, como também e este parece ser o ponto fulcral a
concessão de um poder político que eventualmente redimensionará
o jogo de forças (que envolve disputa por espaços, recursos,
financiamento) hoje estabelecido na comunidade acadêmica
filosófica.
De todo modo, independentemente do almejado
reconhecimento institucional do Ensino de Filosofia como campo
de conhecimento (e, consequentemente, como subárea de pesquisa
nas agências de fomento), pensamos que o mapeamento e a
sistematização daquilo que já há em termos de pesquisa em Ensino
de Filosofia e o amadurecimento das discussões sobre suas
especificidades podem contribuir notadamente com: a formação de
recursos humanos (a partir da divulgação dos trabalhos de pesquisa
realizados nos diferentes cursos de licenciatura e nos programas de
pós-graduação); a promoção do ensino (com a publicização dos
materiais didáticos e paradidáticos produzidos, bem como das
pesquisas de mestrado e doutorado na interface entre Filosofia e
Educação); a consolidação dos mestrados profissionais em Filosofia
e a desejável criação de linhas de pesquisas nos Programas de Pós-
graduação acadêmicos; a formação de redes e grupos de pesquisa de
âmbito nacional (há muito(a)s pesquisadore(a)s de locais distintos
do país que estudam temas próximos, mas desconhecem os trabalhos
de seus pares); a constituição de uma identidade (ainda que plural)
para os cursos de licenciatura em Filosofia, garantindo a execução
das teses por nós defendidas e a integralidade presente na letra da lei;
a consolidação de um espaço próprio para as reflexões filosóficas
sobre “ser professor(a) de Filosofia”, evitando o usual entendimento
45
de que “ser professor de Filosofia é, simplesmente, ensinar a
Filosofia, mesmo sem se ter a compreensão filosófica do que seja ‘ser
professor’ e do que seja ‘ensinar a Filosofia’” (GELAMO, 2009, p.
30).
As pesquisas sobre Ensino de Filosofia, em última instância,
podem também alertar para o papel que a presença da Filosofia nas
escolas pode desempenhar junto aos nossos cursos de graduação e
pós-graduação e junto à sociedade em geral. Recentemente, a
Filosofia na Educação Básica assistiu a revisão dos direitos
conquistados pela área nos documentos legais
18
; os impactos desse
processo nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia ainda
serão contabilizados, embora algumas graduações sinalizem desde já
uma procura menor de ingresso para os seus cursos. Neste cenário,
talvez caiba indagarmos se a institucionalização da subárea de Ensino
de Filosofia, até então pensada por e para um grupo de pesquisadoras
e pesquisadores que se dedicam à temática, não poderia
compreender, na luta concorrencial pelo capital científico com
outros campos (BOURDIEU, 1983), o fortalecimento do poder
social da própria grande área da Filosofia. Que outra subárea da
Filosofia contempla as questões do nosso tempo de forma tão
sistemática e constante? Que outro campo cumpre este papel de
divulgação filosófica junto a um público leigo que não pretende se
especializar em Filosofia, mas para o qual a Filosofia certamente
pode ter algum valor formativo? Será que, se a Filosofia estivesse
presente de modo significativo e efetivo nas escolas, nas praças
públicas, nas bibliotecas, nas comunidades de base, nas bancas de
jornal, nos curtas-metragens, nas redes sociais, não seria mais difícil
18
Cf. Lei n. 13.415, de fevereiro de 2017.
46
aos discursos que a menosprezam, encontrar ouvidos e ter alguma
repercussão? Em tempos em que a Filosofia é continuamente
aviltada, não seria o reconhecimento institucional do Ensino de
Filosofia uma forma de resistência?
Por fim: o Ensino de Filosofia compreende hoje, no Brasil,
uma prática social, uma atividade realizada “por um conjunto de
indivíduos que produzem conhecimentos, e não apenas ao conjunto
de conhecimentos produzidos por esses indivíduos em suas
atividades” (MIGUEL et al., 2004, p. 82). Sabemos, contudo, que
embora a maioria do(a)s filósofo(a)s seja, hoje, professor(a) (e suas
atividades se efetuam em um quadro escolar ou universitário), “a
atividade de pesquisa constitui o elemento definidor de sua
identidade profissional [e, portanto, assim como] ensinar
matemática não é uma atividade vista como suficiente para ser
matemático; para isso seria preciso, ainda e sobretudo, produzir
resultados matemáticos” (MIGUEL et al., 2004, p. 84), cabe ao
filósofo(a) produzir filosofia para ser reconhecido(a) pelos seus pares.
Sabemos, outrossim, que a prática da docência é indissociável da
prática da pesquisa. Se sustentamos, amparados em nossos pares, que
não é “possível ser um bom professor sem pesquisar a própria prática
ou um bom pesquisador sem compartilhar a pesquisa com outros”
(GALLO; KOHAN, 2000, p. 181), cabe a nós, que integramos a
área de Ensino de Filosofia, continuarmos a pensar a natureza destas
pesquisas e sua inserção nos cursos de formação e nos programas de
pós-graduação, assim como estreitar a indesejável distância entre as
pesquisas em pauta e aquelas realizadas por nosso(a)s colegas que
atuam na Educação Básica.
47
Cabe à comunidade filosófica, por sua vez, atentar a um
outro e substancial aspecto: o entendimento do Ensino de Filosofia
como problema filosófico é uma peculiaridade das investigações
desenvolvidas em nossa América Latina e, com ainda maior força de
pesquisa em pós-graduação, em território brasileiro; não reconhecer
as produções da área significa ignorar uma parte significativa daquilo
que já é desenvolvido na pós-graduação brasileira
19
. E aquilo que é e
pode ser, com ainda mais vigor, um dos diferenciais das pesquisas
realizadas no Brasil. A não ser que os irônicos versos de Caetano
Veloso (1984) compreendam verdadeiramente um prenúncio: Se
você tem uma ideia incrível / É melhor fazer uma canção / Es
provado que só é possível / Filosofar em alemão”.
À guisa de conclusão, cantarolamos a estrofe da canção
Flor do Lácio Sambódromo / Lusamérica latim em pó / O que quer
/ O que pode / Esta língua?, indagando: o que quer, o que pode,
a Filosofia nos trópicos?
20
Referências:
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato
(Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. Tradução de Paula Montero e
Alicia Auzmendi. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-155. (Coleção
Grandes Cientistas Sociais).
19
Rodrigo Gelamo, coordenador do ENFILO, realizou uma pesquisa de identificação das
dissertações e teses que versam sobre Ensino de Filosofia. O acervo, ainda não publicado,
reúne trabalhos defendidos desde 1989.
20
Inspiramo-nos, de forma deliberada e extremamente afetuosa, na interrogação de Filipe
Ceppas (apud VELASCO, [no prelo]). Ao discutir questões caras ao Ensino de Filosofia,
pergunta o colega de GT: “por que estamos estudando Descartes, Rousseau, Kant, nos
trópicos?”. Filipe, meu caro, aquele abraço!
48
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para
Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008. Altera o
art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a
Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos
do ensino médio. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/lei/l11684.htm. Acesso: 12 abr. 2021.
_____. Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Portaria
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profissional no âmbito da Fundação Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
Disponível em:
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l1.pdf. Acesso: 08 abr. 2021.
_____. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.
Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 2, de 20 de dezembro de
2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação
Inicial de Professores para a Educação Básica e Institui a Base
Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da
Educação Básica (BNC-Formação). Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=d
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49
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50
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52
VELOSO, Caetano. Língua. Álbum: Velô. Philips
Records/PolyGram, 1984. 1 disco sonoro (35:51min), 33 1/3 rpm,
estéreo, 12pol.
VIESENTEINER, Jorge L. Entre o engajamento e o rigor
conceitual. In: DUTRA, Jorge da Cunha; GOTO, Roberto (Org.).
O filosofar, hoje, na pesquisa e no ensino de filosofia. Blumenau:
IFC, 2018. p. 23-33.
53
Sobre modos, velhos e novos, de dizer sobre didática da
filosofia desde a universidade brasileira
Elisete M. TOMAZETTI
1
Introdução
A relação da comunidade filosófica com a didática da
filosofia tem se alterado nas últimas décadas no Brasil. Este fato pode
ser justificado em grande parte pela obrigatoriedade da filosofia no
currículo do ensino médio, alcançada com a homologação da Lei
11.684, de 02 de julho de 2008, após longo período de lutas e
enfrentamentos de professores/as e estudantes de filosofia com os
agentes do Estado. As questões pedagógicas e didáticas acerca do
ensino da filosofia aos poucos deixaram de ser consideradas como
um caso de “contaminação”
2
e passaram a ser tomadas como um
“mal menor”
3
para professores e professoras de cursos de licenciatura
1
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, RS, Brasil. E-mail:
elisetem2@gmail.com
2
Essa expressão contaminação foi retirada do livro Filosofia em sala de aula: teoria e
prática para o ensino médio, 2009, de Lídia Maria Rodrigo, ao se referir às pesquisas de
Michel Tozzi e sua relação com pesquisadores/as das ciências da educação. Ela diz: “Alguns
professores franceses acusam outros colegas de ‘contaminar’ a filosofia, introduzindo na
prática de seu ensino princípios e métodos extraídos das ciências da educação (Tozzi, s/d)”
(RODRIGO, 2009, p. 30, grifos nossos).
3
Guillermo Obiols, em seu livro, Uma introdução ao ensino da filosofia, publicado no
Brasil em 2002, traz como um subitem do capítulo 2 a frase O ensino da filosofia como
o mal menor. Nele dá destaque ao modo como alguns filósofos como Abelardo,
Schopenhauer, Etienne Gilson consideraram o ensino da filosofia na sua vida profissional.
“[...] é possível reconhecer nestes filósofos uma posição drástica frente ao ensino da filosofia:
54
em filosofia. O ensino da filosofia passou, a partir da primeira década
dos anos 2000, a ser um problema da filosofia”. Deste modo, a
afirmação: quem domina a filosofia sabe naturalmente ensiná-la não
permaneceu com livre circulação e assentimento de filósofos e
filósofas. As questões escolares, os desafios e as dificuldades que
foram sendo narrados por docentes em exercício e por futuros/as
professores/as em formação cobraram responsabilidade e
compromisso ético e político dos cursos de licenciatura em relação à
formação docente que ofereciam.
Como exemplo desta situação, no livro que resultou do I
Congresso Sul-Brasileiro de Ensino de Filosofia
4
foram enunciadas
algumas tensões internas vividas nos cursos de licenciatura em
filosofia e, por conseguinte, a percepção clara da necessidade de
mudanças.
Não basta batalhar para a legislação determine a
obrigatoriedade da disciplina Filosofia no Ensino Médio se os
cursos de Filosofia não tiverem uma política de formação do
professor de Filosofia. [...] O ensino de Filosofia deve ocupar
um lugar central na reflexão dos cursos de licenciatura em
Filosofia (FÁVERO; RAUBER; KOHAN, 2002, p. 9).
trata-se de um mal menor, uma moléstia, uma distração da atividade propriamente
filosófica, que serve simplesmente como um recurso, mais ou menos tolerável, de
subsistência” (OBIOLS, 2002, p. 93).
4
Entre os anos de 2001 e 2010 era realizado o Simpósio Sul-Brasileiro de Ensino de
Filosofia, em universidades da Região Sul do Brasil, organizado pelo Fórum Sul de
Coordenadores de Cursos de Filosofia, cujo objetivo era “não somente a troca de
experiências, mas o adensamento das políticas institucionais voltadas para o crescimento
do ensino de Filosofia” (RIBAS, 2005, p. 11). Para mais informações sobre o Simpósio e
os livros que dele se originaram consultar a Revista Educar em Revista (TOMAZETTI,
2012).
55
[...] a formação de professores e professoras talvez seja hoje uma
problemática tão complexa quanto essa do ensino de filosofia.
Além do mais, seria lamentável se toda a articulação em torno
da questão do retorno da Filosofia à educação escolar em nível
médio não se ocupasse, inclusive da necessária formação
docente (MATOS, 2002, p. 252).
O reconhecimento de professores e professoras de cursos de
licenciatura em filosofia da necessidade de se começar a colocar em
questão a formação que ofereciam foi cada vez mais se tornando um
tema frequente. Ao mesmo tempo, a cobrança para que fossem
realizadas alterações nos currículos e para que outras perspectivas de
formação docente fossem assumidas não era de fácil adesão, embora
algumas mudanças importantes tenham sido realizadas a partir de
2002
5
. No entanto, estudos e pesquisas sobre didática da filosofia,
objeto de nossa investigação, nas universidades brasileiras, são ainda
incipientes. Para compreender esse cenário é importante lembrar
que a pesquisa que se realiza nas universidades brasileiras, em grande
medida, está associada às disciplinas ministradas por docentes que
ingressam por concurso público para atuar nos cursos de graduação
e, em geral, ingressam como pesquisadores/as em programas de pós-
graduação. Pesquisas sobre ensino da filosofia começaram a ser
produzidas no interior dos cursos de mestrado e doutorado em
5
Tais mudanças são resultantes da RESOLUÇÃO CNE/CP 2, DE 19 DE FEVEREIRO
DE 2002, que instituiu 400 horas de Estágio Curricular Supervisionado e 400 horas de
Prática de Ensino ao longo dos cursos de licenciatura. O histórico modelo 3+1, ainda em
vigência mesmo que não por via normativa, sofria um duro golpe, pois os cursos precisaram
alterar sua estrutura curricular de modo a contemplar as questões de ensino, estágio, escola,
metodologias, de modo efetivo, mesclando-se com as disciplinas de “conteúdo específico”.
56
Educação, a partir dos anos 1990
6
e não, como se poderia esperar,
no interior dos próprios programas de pós-graduação em Filosofia,
que foram criados no Brasil nos anos 1970
7
.
As considerações acima apresentadas foram tomadas como
justificativa para a realização da pesquisa de pós-doutoramento
realizada em 2020
8
, cujo objetivo foi compreender a relação
construída entre Filosofia e Didática no contexto universitário
brasileiro que, estruturado a partir do Estatuto da Universidade
Brasileira de 1931, assumiu a tarefa de formar professores e
professoras para atuarem no ensino secundário. A didática, como um
saber/disciplina da formação de professores/as, atravessou o século
XX e as primeiras décadas do século XXI, nos diferentes cursos de
licenciatura, sendo alvo de suspeitas acerca de sua importância e
valor.
Temos hoje no Brasil duzentos e quarenta e oito (248) cursos
de licenciatura em filosofia, entre públicos e privados
9
e, em tese,
considera-se que a Didática da filosofia seja uma disciplina
obrigatória do currículo, ministrada por docentes doutores e
doutoras. Mesmo assim, a produção de conhecimento sobre este
saber ainda é pequena, embora a crescente realização de eventos e
6
Conforme Rodrigo Gelamo, no livro que resultou de sua tese de doutoramento O
ensino da filosofia no limiar da contemporaneidade, publicado em 2009 pela Editora da
UNESP.
7
Conferir a página da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia ANPOF - no
endereço https://anpof.org/anpof/programas-associados
8
O estágio pós-doutoral foi realizado com a pesquisa A emergência da didática da filosofia
no discurso do ensino da filosofia no Brasil sob a supervisão do professor doutro Rodrigo
Pelloso Gelamo, na Universidade Estadual Paulista UNESP/Marília, no ano de 2020,
quando a pandemia causada pelo novo corona vírus se abateu sobre o mundo.
9
Este dado foi retirado de um “relatório de consulta textual” realizado no site do MEC e
será melhor apresentado na sequência deste texto.
57
produção de artigos e livros sobre ensino de filosofia tenha crescido
bastante desde sua obrigatoriedade no ensino médio, em 2008
10
.
Esta constatação me conduziu a pensar sobre as condições que
tornaram e em grande parte ainda tornam possível esta situação.
Desse modo, uma das etapas da pesquisa foi o envio de um
formulário google docs para professores e professoras que participam
do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da ANPOF e ministram a
disciplina
11
em suas universidades. O objetivo foi primeiramente
identificá-los e ter acesso às suas compreensões acerca dos termos
Didática, Didática da filosofia e Ensino de Filosofia, entre outros
que não serão aqui tratados. O retorno dos formulários foi
significativo, pois vinte e três (23) colegas enviaram suas
contribuições tornando possível, então, a construção da analítica
apresentada na escrita que segue.
Professores e Professoras de Didática da Filosofia
Nesta seção, nosso objetivo é localizar as instituições em que
atuam professores/as de didática da filosofia e apresentar suas
concepções sobre o saber/disciplina que têm sob sua
responsabilidade. O gráfico 1, abaixo, indica as cidades em que estão
10
A afirmação sobre a pequena produção sobre Didática da filosofia no Brasil tem o sentido
de demarcar que as produções acadêmicas discorrem mais sobre Ensino da Filosofia,
embora contemple elementos da didática. Sobre didática da filosofia como uma disciplina,
Angel Diaz Barriga (1998, p. 4) afirma que é uma disciplina “muy peculiar que
históricamente se estructura para atender los problemas de la enseñanza en el aula”.
11
Os/As professores/as que participaram da pesquisa atuam em suas instituições com
questões de didática da filosofia, no entanto, nem sempre o nome da disciplina é Didática
da Filosofia. Há uma variação que é mencionada ao longo do texto.
58
situadas suas instituições de ensino e a abrangência do estudo - todas
as regiões do Brasil foram contempladas: Região Norte: Amazonas;
Região Nordeste: Rio Grande do Norte, Piauí, Paraíba; Região
Sudeste: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro; Região Centro-
Oeste: Mato Grosso; Distrito Federal; Região Sul: Paraná e Rio
Grande do Sul. Destacamos acerca das cidades, que algumas são
capitais como Rio de Janeiro, Cuiabá, Belo Horizonte, e outras são
cidades de médio porte e do interior dos estados, o que nos leva a
afirmar que a presença de cursos de filosofia oferece condições de
acesso a diferentes comunidades. Atualmente, conforme dados do
MEC, (https://emec.mec.gov.br), o Brasil tem 359 cursos de
filosofia, entre bacharelado e licenciatura, em diferentes instituões
de ensino superior: universidades, centros universitários, faculdades.
O caráter orçamentário destas instituições é apresentado do seguinte
modo: pública federal, pública estadual, privada sem fins lucrativos,
privada com fins lucrativos. No documento constam: 84 cursos de
filosofia em universidades federais; 42 universidades públicas
estaduais; 58 universidades/faculdades/centros universitários
privadas com fins lucrativos e 173 universidades/faculdades/centros
universitários sem fins lucrativos. Do total geral dos cursos de
filosofia, 248 são de licenciatura e 111 são de bacharelado.
59
Gráfico 1 Cidades de atuação dos professores e professoras
Fonte: Da autora.
O gráfico 2 apresenta as universidades a que estão vinculados
os/as docentes de didática da filosofia. Treze (13) colegas atuam em
universidades federais; cinco (5) em estaduais, três (3) em
universidades privadas sem fins lucrativos e um (1) em universidade
com fins lucrativos. O contato com eles/as foi realizado desde o GT
Filosofar e Ensinar a Filosofar
12
, através de convite enviado a lista de
12
Como membro do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, da ANPOF, desde sua criação em
2006 e participando de eventos e discursões específicas foi possível entrar em contato com
colegas através da lista de e-mails do GT e convidá-los/as a participar da pesquisa através
de um formulário google docs criado para obter informações sobre sua atuação como
professores e professoras de Didática da filosofia. Vinte e três (23) colegas gentilmente
preencheram o formulário, no entanto para a escrita deste texto as considerações de todos/as
não foram mencionadas devido o recorte específico aqui realizado. Porém, são nomeados
no conjunto maior da pesquisa realizada. A todos/as agradeço a disponibilidade em
compartilhar comigo suas ideias e percepções sobre didática da filosofia.
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
4
4,5
60
e-mails. O não alcance de mais docentes da disciplina pode ser
explicado pelo fato de muitas instituições ainda não contarem com
cursos de pós-graduação strictu sensu, o que seria um limitador de
sua participação em uma associação nacional de pesquisa em
filosofia, como a ANPOF. O recorte nesse universo, todavia,
representa significativamente regiões e instituições diversas do país e
oferece condições para um estudo inicial acerca do tema.
Gráfico 2 Instituições a que pertecem os/as docentes de
Didática da filosofia
Fonte: Da autora.
O gráfico 3 destaca o tempo de atuação dos/as docentes:
quatro (4) atuam a mais de 20 anos; oito (08) atuam a mais de 10
anos e onze (11) tem menos de dez anos de serviço em suas
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
4
4,5
UFRJ
UESPI
UERN
UFMT
UFABC
UPF
UFU
UNIOESTE
UFAM
UnB
UFMG
U. Católica de Petrópolis
Universidade P. Mackenzie
UNINOVE
UFCG
UEL
61
instituições. Chama atenção que o maior percentual é de professores
e professoras com tempo de serviço de até dez anos (11). Este dado
pode ser resultado da política pública do período, que gerou
ampliação do ensino universitário brasileiro, denominada de
REUNI
13
, criada em 2007. Esta política pública permitiu a criação
de novos cursos universitários e, por conseguinte, a abertura de
novas vagas para docentes. Tais vagas para professores e professoras
de didática da filosofia, nas universidades federais, em grande parte,
foram geradas de dentro de departamentos de filosofia e não mais de
departamentos de metodologia do ensino ou de outro departamento
vinculado aos centros/faculdades de educação, como historicamente
ocorria
14
. O gráfico 3 também mostra que a maioria dos professores
e professoras de didática da filosofia iniciaram sua carreira
universtiária em torno de 12 anos atrás e como veremos no Gráfico
4 estão lotados nos departamentos de filosofia.
13
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
Brasileiras Reuni - “faz parte do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e foi
instituído em 6 de abril de 2007 pelo Decreto Presidencial n. 6.096, sob o pressuposto do
importante papel das universidades federais no desenvolvimento econômico e social do
país. Sua principal finalidade é reduzir as desigualdades sociais com relação ao acesso e à
permanência no ensino superior” (LIMA; MACHADO, 2016). Segundo as autoras, em
2008 foi apresentado às universidades federais e teve adesão, no mesmo ano, de 59
universidades federais do país.
14
A criação de novos cursos de licenciatura em Filosofia tornou possível que vagas próprias
aos departamentos de Filosofia, que historicamente eram distribuídas entre as disciplinas
de “conteúdo específico”, fossem destinadas ao ensino da filosofia, constituindo novas
disciplinas com este nome ou outro com Didática ou Metodologia do Ensino da Filosofia.
Em alguns casos a disciplina de Estágio Curricular Supervisionado também ficou sob a
responsabilidade destes departamentos. Embaralhavam-se, então, as posições e os lugares
de onde se passou a ensinar sobre ensino da filosofia.
62
Gráfico 3 Período de atuação como docente
Fonte: Da autora.
No que tange ao departamento ou centro de ensino a que
pertencem, o gráfico 4 indica que a maioria tem sua lotação em um
departamento de filosofia - dos/as vinte e três (23) participantes da
pesquisa, treze (13) possuem esse vínculo. Quatro (4) professores/as
estão lotados em departamentos vinculados a Faculdades de
Educação, mas com nomenclaturas diferentes: departamento de
didática, departamento de métodos e técnicas de ensino;
departamento de educação. Os/as demais professores/as indicaram
sua vinculação a centros de ensino, como Centro de Ciências Sociais
e Humanas, Centro de Teologia e Humanidades; Centro de
Ciências Naturais e Humanas e Unidade Acadêmica de Ciências
Sociais.
Estes dados dizem de mudanças importantes ocorridas no
cenário da filosofia ou mais propriamente do Ensino da Filosofia no
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
4
4,5
30
anos
10
anos
13
anos
18
anos
9
anos
8
anos
28
anos
15
anos
11
anos
3
anos
25
anos
17
anos
33
anos
5
anos
63
Brasil, que estão ligadas à expansão universitária, como já
mencionado anteriormente, e também à definição da
obrigatoriedade da filosofia como disciplina do ensino médio, em
2008. Desse modo, os departamentos de filosofia passaram,
gradualmente, a considerar as questões de seu ensino como um
objeto de estudos e pesquisas que lhe é próprio
15
.
Esta situação diz respeito, de modo mais específico, às
universidades federais, cujo modelo se estrutura em
centros/faculdades de ensino responsáveis por diferentes áreas de
conhecimento. Os cursos de filosofia, bacharelado e licenciatura e
seus departamentos pertencem, de modo geral a Centros/Faculdades
de Ciências Sociais e Humanas. E a área da Educação como área de
conhecimento, estruturada por saberes/disciplinas, que tem como
uma de suas tarefas a “formação de professores/as”, constitui os
Centros/Faculdades de Educação. Essa estrutura universitária, que
foi instituída pela reforma universitária de 1968
16
, Lei 5.540 de 28
15
A ampliação de cursos de licenciatura em filosofia, bem como do número de docentes de
Didática da filosofia vinculados a departamentos de filosofia, não representou a criação de
grupos de pesquisa cujo objeto de estudo específico é a Didática da filosofia e, por
conseguinte, o crescimento de produções acadêmicas sobre o tema. No entanto, cabe
mencionar que essa situação não ocorre com o objeto de estudo e pesquisas - Ensino da
Filosofia, que por vezes se pode confundir com Didática da filosofia. Sobre isso trataremos
ainda nesse texto.
16
“A Reforma de 1968 produziu efeitos paradoxais no ensino superior brasileiro. Por um
lado, modernizou uma parte significativa das universidades federais e determinadas
instituições estaduais e confessionais, que incorporaram gradualmente as modificações
acadêmicas propostas pela Reforma. Criaram-se condições propícias para que determinadas
instituições passassem a articular as atividades de ensino e de pesquisa, que ate então salvo
raras exceções estavam relativamente desconectadas. Aboliram-se as cátedras vitalícias,
introduziu-se o regime departamental, institucionalizou-se a carreira acadêmica, a legislação
pertinente acoplou o ingresso e a progressão docente à titulação acadêmica. Para atender a
esse dispositivo, criou-se uma política nacional de pós-graduação, expressa nos planos
nacionais de pós-graduação e conduzida de forma eficiente pelas agências de fomento do
64
de novembro de 1968, definiu que a formação pedagógica de todos
os cursos de licenciatura, de diferentes centros/faculdades, seria de
responsabilidade dos departamentos próprios dos centros/faculdades
de Educação. Por isso, professores e professoras de didática da
filosofia, até meados de 2010, estavam alocados, exclusivamente nos
departamentos de Metodologia do Ensino ou com outra designação
semelhante; no entanto, como referido anteriormente, esta estrutura
vem se modificando.
Gráfico 4 Unidade a que pertencem os/as docentes em suas
instituições
Fonte: Da autora.
O gráfico 5 apresenta a formação inicial dos professores e das
professoras de Didática da filosofia, que majoritariamente é em
filosofia, no entanto, nove (9) docentes fizeram curso de licenciatura
governo federal. Nos últimos 35 anos, a pós-graduação tornou-se um instrumento
fundamental da renovação do ensino superior no país” (MARTINS, 2009, p. 16).
1
13
1
3
2
1
1
1
Departamento de Didática
(1)
Curso de Filosofia (13)
Unidade Acadêmica de
Ciências Sociais (1)
65
em filosofia e onze (11) são diplomados nos dois cursos: licenciatura
e bacharelado em filosofia; um/a (1) docente possui apenas o curso
de bacharelado em filosofia; um/a (1) docente cursou licenciatura e
bacharelado em Ciências Sociais e um/a (1) docente licenciatura em
pedagogia.
Gráfico 5 Formação inicial dos/as docentes
Fonte: Da autora.
Os gráficos 6 e 7 apresentam dados dos cursos de mestrado
e doutorado dos/as professores/as de didática da filosofia.
Majoritariamente cursaram mestrado e doutorado em filosofia.
Os/as demais professores e professoras fizeram sua formação em pós-
graduação em programas de Educação; apenas um (1) professor/a
fez sua formação em outra área, como História (mestrado) e Difusão
do Conhecimento (doutorado). Tais dados estão conectados com as
observações anteriores acerca da presença crescente de docentes da
11
9
1
1
1
Curso de Filosofia
Bacharelado e
Licenciatura (11)
Curso Filosofia
Licenciatura (9)
Licenciatura em
Pedagogia (1)
66
disciplina lotados nos departamentos de filosofia e,
consequentemente, de alterações nas relações entre Filosofia e
Educação, ou melhor dizendo, do envolvimento e da “captura”, que
vem se ampliando, dos estudos sobre Ensino da Filosofia, didática
da filosofia, pelo campo da Filosofia. Sobre esta situação, de modo
inicial, pode-se inferir que os saberes que compõem o campo da
Educação já não atuam de modo solitário na formação de
professores/as de filosofia para o ensino médio. Também, que a
expressão didática nas produções da área concorre com outra
expressão - “filosofia do ensino da filosofia”, conforme
apresentaremos ao longo deste texto.
Gráfico 6 Área de conhecimento do mestrado
Fonte: Da autora.
16
1
6
Filosofia
História
67
Gráfico 7 Área de conhecimento do doutorado
Fonte: Da autora.
Os dados expostos pelos sete (07) gráficos acima, a título
inicial, dizem de alterações significativas na estrutura universitária,
que acolhe professores/as pesquisadores/as como responsáveis pela
disciplina didática da filosofia, nos cursos de licenciatura em
filosofia, nos últimos anos no Brasil. Essa mudança deve ser pensada
a partir de um conjunto de fatores/situações de caráter político,
histórico e epistemológico, que na amplitude de nosso estudo vem
responder à pergunta pelas condições que têm tornado possível o
reconhecimento e a visibilidade da didática (didática da filosofia
filosofia do ensino da filosofia), como saber/disciplina pela
comunidade filosófica. Nesse texto, não faremos uma análise capaz
de dar conta de tal questão, mas na sequência tratamos de
13
8
1
Filosofia
Educação
68
problematizar sobre os sentidos e os modos como a didática é
nomeada pelos/as professores/as que participaram da pesquisa
17
.
Didática da filosofia Ensino de Filosofia: relações e
especificidades
Sobre a didática da filosofia como um possível campo de
saber os/as colegas se referiram a um potencial começo de sua
configuração, considerando a emergência de um conjunto de
estudos mais expressivo desde a expansão de cursos de licenciatura e
de pós-graduação em filosofia. A partir de 2008 a obrigatoriedade
da disciplina no currículo do ensino médio, segundo os professores
Marcos Von Zuben e Rodrigo Marcos de Jesus demarca um
momento importante desta expansão. Embora não tenha sido
mencionada a qual pós-graduação em filosofia se referem, trata-se,
na verdade, do Mestrado Profissional em Filosofia, PROF-FILO,
iniciado no ano de 2017
18
. Com sua implementação houve um
17
O formulário google docs enviado à lista de e-mails do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar
foi respondido por 23 professores e professoras. Não foram feitas perguntas, mas indicadas
as seguintes expressões para que manifestassem seu entendimento: Didática; Didática da
filosofia; Ensino da Filosofia; Metodologia do Ensino da Filosofia; Prática de Ensino de
Filosofia; Estágio Supervisionado em Filosofia. Neste texto não apresentamos a análise
sobre todas as expressões propostas.
18
Segundo Patrícia Del Nero Velasco, em seu artigo “O que é isto o PROF-FILO?”,
esclarece: “O Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO), como expresso em seu
Regulamento Nacional, ‘é um programa de pós-graduação destinado a ofertar curso de
mestrado em filosofia, na modalidade mestrado profissional, em rede, com abrangência
nacional, e tem como público os professores de filosofia na Educação Básica,
preferencialmente aqueles que atuam nas escolas das redes públicas de ensino’. Objetiva-
se ‘uma formação filosófica e pedagógica aprofundada voltada para o exercício da docência
da filosofia, em especial no Ensino Médio’ e, por conseguinte, a melhoria da qualidade do
ensino de filosofia na Educação Básica” (VELASCO, 2019, p. 85). Conforme a autora, em
69
crescimento significativo de pesquisas e consequentes publicações
sobre o tema nos últimos anos no Brasil. No entanto, a distinção
entre Ensino da Filosofia e didática da filosofia me pareceu
necessária, pois desde já indico que os considero campos de saber
diferentes. De modo majoritário, o conjunto de professores
identificaram Ensino da Filosofia como uma área de saber
abrangente, que abrigaria a didática da filosofia, entendida como
uma subárea. Esta é também a compreensão da professora Patrícia
Del Nero Velasco, a partir de sua pesquisa de pós-doutorado,
realizada no ano de 2019.
Considerando o crescimento da produção bibliográfica e
técnica sobre de ensino da filosofia no Brasil, entre os anos 2008 e
2018, Patrícia Velasco (2021, p. 3) afirma ser possível considerar
ensino da filosofia “como área de conhecimento: um campo
epistemológico e profissional autônomo”, que abrigaria os seguintes
temas:
que conteúdos devem ser ministrados? Que metodologias de
ensino devem ser adotadas? Para qual nível de ensino? De que
escola estamos falando? Que recursos didáticos serão adotados?
Que tipo de avaliação será realizada? Qual a formação filosófica
pretendida? Qual contribuição desta formação para a formação
integral do/a estudante? E, por fim: que formação docente é
necessária para que a futura professora e o futuro professor
possam responder de maneira própria e apropriada todas essas
perguntas? (VELASCO, 2021, p. 8).
2018 participavam 16 universidades da rede de instituições que ofereciam o mestrado
profissional em filosofia.
70
Estas questões denotam uma abrangência que não se verifica
quando se trata de pensar a didática da filosofia, ela própria tomada
pela autora como objeto de investigação da área ensino da filosofia.
Didática da filosofia, nas condições em que se encontram as
pesquisas produzidas por pesquisadores/as individuais ou por
grupos, ainda está distante de se constituir em um discurso com
estatuto epistemológico definido e consolidado no meio acadêmico
brasileiro.
A área Ensino da Filosofia está se consolidando; tem havido
empenho de professores e professoras que, de dentro dos cursos e
departamentos de filosofia, têm se tornado sensíveis à realização de
pesquisas, especialmente no âmbito do Mestrado Profissional em
Filosofia - PROF-FILO. No entanto, tais condições não foram
suficientes, ainda, para que tenha sido reconhecido como uma área
“pelas agências de fomento e pelos programas de graduação e pós-
graduação” (VELASCO, 2021, p. 23). Isso significa dizer que as
lutas por reconhecimento e as tentativas de adentrar à ordem
discursiva acadêmica científica seguem em movimento. A
comunidade filosófica se articula em relações de poder e de disputas
sobre o que pode ou não pode ser objeto de pesquisa no interior dos
cursos de pós-graduação em filosofia, ou seja, o que é permitido dizer
e quem ali pode dizê-lo.
Na seção seguinte nosso propósito é discorrer sobre as
ponderações feitas pelos/as colegas no questionário compartilhado,
de modo a compor um quadro inicial sobre o sentido da
didática/didática da filosofia no discurso da comunidade filosófica
nos dias atuais.
71
A didática não trata apenas detodos e técnicas de ensinar
Ao se referirem à didática da filosofia três professores/as
chamaram atenção para o fato de que seu objetivo não é apenas
indicar técnicas e métodos de ensino para aulas nas escolas de ensino
médio. Demarcam, pois, seu distanciamento de uma compreensão
de didática que marcou grande parte de sua história na universidade
brasileira, ou seja, a didática como técnica ou arte universal de
ensinar tudo a todos
19
. Os excertos que seguem enunciam tal
deslocamento de sentido:
Tenho certeza que a ideia ‘quem sabe, sabe ensinar’ é uma ilusão, e
nós professores de filosofia da academia ainda estamos devendo muito
quando o assunto é o Ensino como conceito ou a Didática como uma
ciência que precisa ser valorizada. (Professor Alécio Donizete da Silva
grifos nossos).
19
Comenius publicou sua obra, Didática Magna, em 1657, cujo objetivo era, na
perspectiva de José Mário Pires Azanha (1992, p. 38), “implantar, no campo da educação,
a reforma pretendida por Bacon no domínio das ciências. Assim como para Bacon fazer
ciência era aplicar um método, também para Comênio educar ou ensinar era a aplicação
de um método”. Na educação sua principal herança foi, então, a reivindicação da
centralidade do método em todo o ensino.
72
Considero que a Didática (geral) não trata apenas de técnicas e
métodos de ensino; antes, faz parte e tem implicações com o conjunto
de preocupações que dizem respeito às finalidades da educação, ao
projeto pedagógico da escola e seu entorno social, com o currículo escolar,
com os aspectos cognitivos relacionados à aprendizagem e com os aspectos
epistemológicos das disciplinas da educação básica. (Professora Maria
Cristina Teobaldo grifos nossos).
Avalio que a didática não seja algo universal, como uma técnica
única a ser internalizada e aplicada e/ou reproduzida em qualquer
área do conhecimento. [...] No caso da filosofia, acredito ser um
reducionismo pensar a questão didática como uma técnica responsável
por tornar possível a transmissão de conteúdos produzidos por outros: os
filósofos ou pesquisadores. Ao abandonar essa perspectiva limitadora [...]
abre-se a possibilidade para ver a didática filosófica como um genuíno
problema filosófico a ser tratado e avaliado pela própria indagação
filosófica. (Professora Michele Silvestre Cabral- grifos nossos).
Ao nomear a didática como uma disciplina que não trata
apenas de métodos e de técnicas de ensino; que não é uma “técnica
única a ser internalizada e aplicada”, mas que é uma “ciência que
precisa ser valorizada nos cursos de filosofia”, professores e
professoras se distanciam daquele sentido que fixou sua identidade
no meio universitário brasileiro. A identidade da didática a qual me
refiro é expressa nas críticas que lhe foram endereçadas, tais como:
dar ênfase às preocupações de ordem prática, ao fazer em sala de aula,
as normas e técnicas a serem seguidas no processo do ensino com a
73
promessa de bom desempenho (sucesso) dos/as estudantes. Por fim,
o conteúdo da didática, como afirma Osvaldo Rays (2004, p. 46),
“assume características de um saber-fazer atomizado, que, em nome
de uma metodologia eficiente e eficaz dilui a definição dos valores,
propósitos e razões de projeto educativo mais substancial”.
Para os/as participantes de nossa pesquisa, a didática é
nomeada como um saber que ultrapassa a dimensão técnica;
também diz respeito a ideias e aos conceitos acerca das finalidades
da educação, do currículo escolar e dos “aspectos cognitivos
relacionados à aprendizagem e com os aspectos epistemológicos das
disciplinas da educação básica”, como diz a professora Maria
Cristina Teobaldo, no excerto acima. O “como fazer” em sala de
aula é concebido como um ato que se alicerça em uma visão de
mundo que supõe abertura para os saberes das ciências da educação,
enfatiza o professor José Benedito de Almeida Junior.
Entendo por didática, uma área do conhecimento que estuda os aspectos
gerais dos processos de ensino e os de aprendizagem. O que inclui questões
de caráter histórico, sociológico e filosóficos da educação trabalhados de
forma interdisciplinar com estas áreas específicas. (Professor José
Benedito de Almeida Junior)
Didática é definida como um saber sobre o ensino e a
aprendizagem escolar, que demanda a conexão com outros saberes,
de outras áreas de conhecimento. O ato pedagógico, que ocorre na
sala de aula, é descrito como situado em contextos específicos,
sociais, culturais, entre sujeitos concretos, que precisam ser
74
reconhecidos em suas relações com a escola e com os diferentes
saberes escolares, no caso, em especial, com a filosofia. Tem, em uma
dimensão ampla, a tarefa de responder ao “campo prático do
ensino”, aos seus métodos e ao planejamento, que devem estar
sustentados em princípios teóricos que precisam ser reconhecidos e
analisados por professores e professoras responsáveis pela tarefa de
ensinar. A prática de sala de aula é fundamental, mas uma dimensão
teórica, de caráter compreensivo, emerge como alicerce da ação
docente. Dessa forma, o modo como se ensina não é tomado como
independente daquilo que é ensinado, de onde é ensinado e a quem
se ensina.
“[...] a didática tem como objeto o campo prático do ensino.
Examina os princípios teóricos implicados no ato de ensinar, os
métodos de ensino, as formas de aprendizagem e as relações
estabelecidas entre docente, estudante e objetos de conhecimento.
Sendo assim, a didática é reflexão acerca do ensino, envolvendo tanto
análise dos fundamentos do ensino e da aprendizagem quanto o
desenvolvimento dos procedimentos de ensino”. (Professor Rodrigo
Marcos de Jesus grifos nossos)
Exame de princípios do ato de ensinar; reflexão sobre o ensino;
análise dos fundamentos do ensino e da aprendizagem tarefas que
pressupõem aproximação com saberes da Educação e da Filosofia.
Oferecer referências conceituais para pensar sobre o sentido do
ensinar; sobre como se aprende; quando se aprende; sobre as
condições da aprendizagem. Os contextos socioculturais da
75
aprendizagem são questões que não são esgotadas pela reflexão
didática, mas dela fazem parte de modo a constituir quadros
compreensivos e propositivos para a ação pedagógica na escola.
Como escreve a professora Ângela Zamora Cilento, a didática “tem
por pressuposto uma ‘weltanschauung’, que abriga duas dimensões
a pedagógica e a política no recorte e na seleção de conteúdos [...]”.
Deste modo, tal compreensão assume relação de proximidade com
a de José Carlos Libâneo (2013, p. 55), que define o ensino em
situação escolar, mais especificamente, a sala de aula como sendo o
objeto da didática. A sala de aula demanda pensar a relação entre
quem ensina, professor/a; a matéria a ser ensinada e aquele/a a quem
se ensina; relações com contextos sociais, culturais, bem como com
aspectos subjetivos individuais dos sujeitos envolvidos. “O processo
do ensino [...] inclui: os conteúdos dos programas e dos livros
didáticos, os métodos e formas organizativas do ensino, as atividades
do professor e dos alunos e as diretrizes que regulam o orientam esse
processo” (LIBÂNEO, 2013, p. 55).
Métodos, práticas, conceitos tudo é didática da filosofia
De modo mais específico sobre didática da filosofia,
docentes que ministram a disciplina declararam sua importância na
formação inicial e, de modo breve, apresentaram seu entendimento
acerca de sua tarefa, seus objetivos, os temas e problemas que a
constituem. Destaco de início, a percepção de uma professora sobre
as tensões entre o discurso filosófico e o discurso didático vividas
pela comunidade filosófica.
76
[...] Entendo que a precariedade e a secundarização que a didática
tem na formação do filósofo não tem a ver com a velha discussão
sobre o quanto os filósofos desvalorizam a educação, mas com algo
mais profundo; para se dar valor positivo à didática é necessário um
pressuposto, uma condição: é preciso querer que todos
compartilhem, experimentem, acessem o conhecimento e
pensamento filosófico”. (Professora Suze Piza grifos nossos).
A afirmação da “precariedade” e da “secundarização” da
didática na formação do/a filósofo/a dá continuidade ao discurso
que persiste desde a constituição dos cursos de licenciatura no Brasil.
Dizer da precariedade da didática na formação do filósofo é dizer
que sua presença foi “escassa, incerta, frágil”, pois tal adjetivação
indica “falta, insuficiência, imperfeição, deficiência”
20
. Na mesma
linha, o significado de secundário diz de algo “que é de segunda
ordem ou ocupa o segundo lugar em ordem de graduação ou
qualidade, relativamente a outrem ou outro [...]”
21
. Declarar, pois, a
didática como sendo secundária na formação do filósofo é dar-lhe a
denominação de um saber/disciplina que é acessório, inferior,
coadjuvante, intermediário. Tal declaração repete os ditos sobre
relações entre Didática e Filosofia e, assim, dá certa visibilidade à
ordem do discurso científico/universitário, que também se expressa
na sequência argumentativa do excerto: “a velha discussão sobre o
quanto os filósofos desvalorizam a educação”. Embora a explicação
de tal atitude possa ser encontrada em outros motivos, como diz a
20
Disponível em: https://www.dicio.com.br/precariedade/. Acesso em: 28 out. 2020.
21
Disponível em: https://www.dicio.com.br/secundario/. Acesso em: 28 out. 2020.
77
professora, chamo atenção que a declaração lembra de algo que nos
acompanha, que já está na ordem do sabido, que é uma verdade que
nos guia desde há muito tempo.
O próximo excerto inicia dizendo que a didática não é só
técnica, não é só método - um dito sempre necessário a ser lembrado,
pois se trata dar um outro significado para algo tão marcado pela
instrumentalidade e pela assepsia das técnicas de ensino. A didática
da filosofia passa a ser nomeada como conceitual e, então, não mais
colocada na ordem da falta e do precário; ela implica discussões
filosóficas e metafilosóficas; tudo o que pensamos e fazemos em
didática da filosofia principia pelo sentido que damos à filosofia, que
não é uma, não é a filosofia; são múltiplas as filosofias, no plural.
Sua dimensão teórica e conceitual é acionada com a tarefa que deve
assumir, ou seja, pensar filosoficamente o conceito de ensino, não
deixando de lado a importância do diálogo entre a tradição
educacional e a tradição filosófica.
A didática da filosofia, [além dos aspectos relativos à didática geral]
discussões filosóficas e metafilosóficas; uma vez que a própria
concepção de filosofia e de filosofar é controversa, a didática da
filosofia não pode se abster da problemática: que filosofia (s) e/ou
filosofar(es) ensinar? Toda a reflexão e todo planejamento da ação
pedagógica, em Filosofia, não escapam do afrontamento desta
questão. (Professora Patrícia de Nero Velasco grifos nossos).
Nos excertos que seguem, destaco primeiramente que o
diálogo entre filosofia e didática é novamente colocado em
78
evidência, agora não mais com o sentido de uma necessidade ou de
uma condição a ser cumprida, mas como já fazendo parte de sua
identidade, pois no campo da didática da filosofia “há um diálogo
intenso” entre as duas áreas. Também, como declara o professor
Rodrigo Marcos de Jesus, a didática da filosofia se constitui na
dependência do sentido que cada docente dá à filosofia, como a
compreendem: como história, como problema ou como filosofar.
Da resposta à pergunta sobre o que é filosofia brotam os
“procedimentos de ensino da filosofia” que são colocados em ação
na escola.
“[...] a didática da filosofia é aquele [campo] no qual há um diálogo
intenso entre os conteúdos de filosofia e os conteúdos de didática,
especialmente em relação a ações práticas como elaborar aulas,
avaliações, atividades em sala de aula e outras, ou seja, é um como se
ensina filosofia a partir do diálogo com a tradição didática e
pedagógica”. (Professor José Benedito de Almeida Junior grifos
nossos).
A didática da filosofia articula as reflexões e os procedimentos de
ensino em geral com as questões e os procedimentos de ensino da
filosofia em específico. [...] pressupõe uma abordagem filosófica do
próprio conceito de filosofia, da história da filosofia, dos problemas
em filosofia e dos modos de filosofar. (Professor Rodrigo Marcos de
Jesus - grifos nossos).
79
A didática da filosofia é referida como um saber que se ocupa
dos conceitos: ensino, filosofia, filosofar; indaga seus sentidos; os
toma como problema para só então, considerar a prática docente.
Dessa forma, articula reflexões e procedimentos de ensino, tais como
planejamento de aulas, atividades, avaliação; não é tomada como um
saber técnico e instrumental apenas. É, pois, uma disciplina teórica
e reflexiva, que se constitui no exercício de problematização sobre o
seu próprio conteúdo. O professor Flávio Carvalho concebe a
didática da filosofia como “responsável por investigar a relação entre
as diversas concepções de Filosofia e suas implicações no modus
operandi do processo de ensino da Filosofia”. O professor Marcos
Von Zuben comunga, também, dessa perspectiva: “[...] a didática da
filosofia se depara necessariamente com o problema do sentido do
filosofar, da ideia que se tem da filosofia, condição para se pensar em
ensino e aprendizagem específicos da filosofia”.
De forma recorrente, professores e professoras enunciam que
o modo como compreendem e praticam a filosofia é definidor de
um modo de ensi-la na escola. Não se trataria apenas de ensinar
“conteúdos” da filosofia, mas principalmente, de ensinar um modo
de entender, de praticar e de viver a filosofia no próprio ato de seu
ensino, na sala de aula. Este enunciado é proferido por Alejandro
Cerletti (2009, p. 17), em seu livro Ensino de filosofia como problema
filosófico, que é uma referência central em grande parte dos cursos de
licenciatura em filosofia no Brasil. Diz Cerletti - “o que se considera
ser basicamente a filosofia deveria expressar-se de alguma maneira
em seu ensino, se se deseja estabelecer alguma continuidade entre o
que se diz e o que se faz em um curso”. Ou, dito de outro modo, o
vínculo que cada professor e professora “estabelece com a filosofia é
80
substancial a todo o ensino” (CERLETTI, 2009, p. 18) por isso,
o ensino da filosofia é, antes de tudo, um problema filosófico.
Nos ocupamos acima em dar visibilidade a enunciados que
dizem da didática da filosofia como um saber conceitual e filosófico
que, por isso, mereceria reconhecimento da comunidade filosófica.
Reforçar e demarcar sua dimensão teórica e reflexiva se insere no
movimento discursivo que a desloca do sentido hegemônico que
assumiu no campo universitário, ou seja, de um caráter instrumental
e procedimental. Assim, professores e professoras de departamentos
de filosofia, aos poucos, sentiram-se autorizados a assumir uma
posição mais confortável para tratarem do tema e ministrarem a
disciplina. É preciso salientar, no entanto, que a expressão que
nomeia esta ação na maioria das vezes não é “didática da filosofia”,
mas ensino da filosofia, o qual abarcaria as questões próprias de uma
dimensão didática, mas a ultrapassaria e nela abrigaria outras tantas
referências, conforme já mencionamos em outro momento deste
texto.
Todavia, há também a recorrência de afirmações que
destacam a dimensão prática da didática da filosofia, que diz respeito
ao trabalho docente em sala de aula. A professora Débora Mariz faz
essa referência ao dizer que a didática da filosofia “compreende
saberes, competências e habilidades. [...] pressupõe os
procedimentos didáticos e os processos cognitivos presentes no
ensino de filosofia, assim envolve conteúdos e métodos de ensino”.
Também o professor André La Salvia afirma: “[...] entendo a que a
didática envolve uma série de técnicas, conhecimentos específicos,
metodologias, enfim, toda uma multiplicidade de atividades que
precisam estar na formação docente”. Se a dimensão teórica foi
81
enfatizada pelos/as docentes, a dimensão prática da didática da
filosofia não foi apagada. A emergência de novos enunciados acerca
da disciplina/saber filosofia não se fez ao custo de retirá-la do âmbito
das técnicas, dos métodos e dos procedimentos. Deste modo,
afirmam que a tarefa de ensinar, na escola, demanda o
reconhecimento de atividades: planejamento, execução, uso de
certas técnicas, de procedimentos, recursos e métodos. A relação
entre pensamento e ação constitui a didática da filosofia; não no
sentido de que esta ação (docente) seja o resultado engessado de uma
ideia, de uma concepção, de um plano, ou seja, de uma aplicação.
Assim, pode-se afirmar que nomeiam a didática da filosofia como
um saber vinculado às práticas concretas da docência, que é sempre
marcada pela complexidade e aberta ao imprevisto.
Considerações Finais
“[...] embora tenhamos cursos de graduação em filosofia em
praticamente todas as unidades da federação [...] e que em sua
maioria esses cursos oferecem a licenciatura, o descompromisso
com a formação do professor de filosofia é gritante, salvo
honrosas exceções muito localizadas. O resultado de todo esse
processo e essa história é que entre nós se desenvolveu muito
pouco o campo de estudos e pesquisas em torno de uma
didática da filosofia. À diferença de países como França, Itália,
Portugal, Uruguai e Argentina, por exemplo, no Brasil temos
pouquíssima pesquisa, produção quase nula e nenhuma
tradição nesse campo. A formação do professor de filosofia,
quando se dá, acontece por esforço e mérito de professores
universitários de disciplinas como ‘metodologia do ensino de
filosofia’ e/ou ‘prática de ensino em filosofia/estágio
82
supervisionado’, isolados nas instituições em que atuam. Ou
então acabam ficando a cargo do próprio licenciando [...]”.
(GALLO apud RODRIGO, 2009, p. 29-30, grifos nossos)
Por que no Brasil “se desenvolveu muito pouco o campo de
estudos e pesquisas em torno de uma didática da filosofia”? escreve
Silvio Gallo. Esta pergunta nos deu a pensar e orientou, em grande
medida, o texto que estamos finalizando. Em lugar da expressão
“didática da filosofia” poderia ter sido utilizada a expressão “ensino
da filosofia”, mas o autor lhe deu destaque ao prefaciar o livro cujo
título demarca a docência na escola Filosofia em sala de aula: teoria
e prática para o ensino médio, da professora Lídia Maria Rodrigo
“[...] o primeiro livro de didática da filosofia produzido entre nós em
muitas décadas” (RODRIGO, 2009, p. 30). Em 2012 seria o
próprio prefaciador, Silvio Gallo, a escrever seu livro Metodologia do
ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio; o segundo livro
em muitas décadas. Esta situação não nos autoriza a dizer que outros
tantos textos publicados como capítulos de livros e artigos em
periódicos não tenham tratado sobre os desafios do ensino da
filosofia, proposto sugestões de metodologias e de atividades e
realizado reflexões sobre a filosofia na escola. O que aqui afirmo é
que há diferença entre “os campos” - ensino da filosofia e didática
da filosofia, mesmo com interfaces e aproximações que lhe são
inerentes. Essa diferença é demarcada pelas relações que se dão com
o campo maior das ciências da educação e da didática (geral) que,
em meu ponto de vista, permanece ainda pouco visível no discurso
colocado em circulação pelos/as envolvidos/as com a temática.
83
O destaque aqui dado à expressão didática da filosofia tem
sua razão de ser; primeiro, o reconhecimento de que é um saber e
uma disciplina com especificidade que precisa ser explicitada. Esta
especificidade, para aparecer, no entanto, precisa ser depurada de
sentidos que marcaram a história da didática (em geral) no Brasil,
desde os anos 1930, ou seja, um saber/disciplina que trataria apenas
do “como ensinar?”; que se preocuparia em indicar o melhor método
para a obtenção de resultados satisfatórios de aprendizagem; uma
prática sem teoria e, por isso, com pouco ou nenhum valor na
formação de professores e professoras. As afirmações dos/as
participantes de nossa pesquisa indicam, no entanto, que um outro
modo de dizer sobre a didática e didática da filosofia vem sendo
acionado, no qual é afirmada sua dimensão conceitual constituída
pelo modo como a filosofia é concebida, sempre marcada pela sua
pluralidade de compreensões e sentidos.
A afirmação da didática da filosofia no meio acadêmico, ao
longo do tempo tornou possível sua formulação em outra
perspectiva - uma didática filosófica ou, melhor, uma “filosofia do
ensino de filosofia”. Entretanto, o que se diz e se produz como
filosofia do ensino de filosofia está ainda em construção. Como saber
e como disciplina, a didática da filosofia tem dirigido seus
movimentos em busca de sua identidade no vasto território dos
estudos sobre ensino da filosofia. Parece-me que essas condições
poderão tornar possível em um período não tão longo a constituição
de uma certa tradição no campo da didática da filosofia, ou da
filosofia do ensino da filosofia, como alerta a epígrafe escolhida para
estas considerações finais.
84
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Parte 2.
Ensino de Filosofia e
formão
89
Ensinar e aprender filosofia como problema filosófico: a
emergência de um projeto político-filosófico na UNESP
Augusto RODRIGUES
1
Rodrigo Pelloso GELAMO
2
Introdução
Optamos por escrever o presente texto a quatro mãos, cruzar
as experiências de alguém que, na época, não estava diretamente
envolvido com o debate em torno da disciplina Questões da filosofia
e seu ensino, cuja possibilidade de acompanhá-lo foi internamente ao
Grupo de Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia (ENFILO), por ocasião
da iniciação à docência, com as experiências daquele que, pela
demanda do próprio grupo e dever de ofício, assumiu uma das
frentes e se tornou responsável institucionalmente pela proposição
da disciplina. Talvez o ponto de convergência dessas experiências,
além do próprio vínculo e trajetória construída dentro do grupo, seja
a partilha de perspectivas daqueles que sentem os efeitos do que se
passou naquilo que se tornaram. Embora a ideia de autonomia e a
pretensão de não existir um vínculo genético crucial entre o
1
Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Filosofia e Ciências, UNESP, Campus de Marília, São Paulo, Brasil.
augusto.rodrigues@unesp.br
2
Professor do Departamento de Didática e dos Programas de Educação e Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de Marília, São Paulo, Brasil.
rodrigo.gelamo@unesp.br
90
pensamento e o contexto sejam muito caras à filosofia, ao menos aos
olhos da filosofia acadêmica e a maneira como ela se relaciona com
a tradição filosófica, não há como separar as inquietações, as
problemáticas envolvidas em nossas pesquisas da atualidade dos
eventos e dos efeitos em torno dessa disciplina.
Nesse sentido, colocamo-nos como pesquisadores da área do
ensino de filosofia que, em busca de analisar o lugar do qual
enunciam seus problemas, escrevem esse texto com o objetivo de
mostrar uma perspectiva em torno da emergência dessa disciplina,
de modo a problematizar as condições contextuais e filosóficas dos
acontecimentos e analisar, ainda que brevemente, suas ressonâncias
no curso de filosofia da UNESP. Nossa leitura indica que a
constituição da disciplina ressoa, por um lado, um acontecimento
mais amplo do cenário brasileiro relacionado com a construção de
um projeto político-filosófico para pensar filosoficamente os
problemas do ensino de filosofia, e, por outro lado, os caminhos
críticos já abertos localmente na UNESP por aqueles que
questionavam a formação universitária brasileira de filosofia e,
consequentemente, de nosso curso, como é o caso do professor
Antonio Trajano Menezes de Arruda. Na primeira parte,
exploraremos um pouco da proposta da disciplina e a recepção desta
no curso. Na segunda, mostraremos como a enunciação da proposta
disciplinar faz ressoar uma discussão nacional na área do ensino de
filosofia brasileiro, analisando a sua recepção no ENFILO. Na
terceira, apresentaremos algumas críticas do professor Trajano, cujas
influências marcam o contexto da UNESP e a formação de inúmeras
gerações que dão continuidade às suas críticas à filosofia universitária
brasileira. Para concluir, retomaremos os desdobramentos dessas
91
discussões na reestruturação do curso de licenciatura promovidas
pela CEE nº111/2012, momento em que cruzamos nossas
experiências com a disciplina de Questões da filosofia e seu ensino,
Prática de ensino I e Prática de ensino II
3
. Defenderemos que a
discussão iniciada pela disciplina contribuiu para que hoje a
licenciatura em filosofia da UNESP tenha em sua grade curricular
obrigatória essas três disciplinas que aprofundam filosoficamente as
discussões do ensino de filosofia, trazendo para o bloco específico da
formação do licenciado uma densidade maior em torno das práticas
de ensinar e aprender filosofia. Isso nos faz crer que, mais do que
uma disciplina, a Questões da filosofia e seu ensino pode ser
considerada um marco para o curso de filosofia da UNESP, pois é
dela em diante que circula, ainda que timidamente, um projeto
político-filosófico para o qual o ensino de filosofia é de
responsabilidade e uma área genuína da filosofia.
Por que problematizar filosoficamente o ensino e a aprendizagem
da filosofia? A formulação de uma proposta disciplinar
A disciplina Questões da filosofia e seu ensino, ministrada pela
primeira vez no ano de 2013 como disciplina optativa do
3
Ressaltamos que as experiências com as disciplinas são múltiplas e ocorrem em distintas
temporalidades. Das disciplinas Questões da filosofia e seu ensino, Prática de ensino I e II o
autor Rodrigo remonta tanto à sua experiência como docente responsável pelas três
disciplinas, quanto supervisor de estágio docente. Por sua vez, o autor Augusto pôde
experienciar as Questões da filosofia e seu ensino como discente ainda na época na graduação,
experiência que se soma à oportunidade de lecionar nas três disciplinas, no ano letivo de
2020-2021, como professor pós-graduando, na modalidade de estágio docente, sob
supervisão do autor Rodrigo.
92
bacharelado e da licenciatura, consistia em uma segunda versão de
uma primeira proposta, apresentada e recusada um ano antes. A
disciplina recusada intitulava-se Problemas filosóficos do ensino e
aprendizagem da filosofia. Como o próprio nome já explicita, era um
projeto que apresentava as problemáticas filosóficas envolvidas nas
práticas de ensinar e aprender filosofia. O objetivo da disciplina era
pensar filosoficamente o ensino de filosofia, investigando a natureza
epistêmica de seu ensino e aprendizagem na contemporaneidade. O
fio condutor do estudo se centrava na transmissibilidade do saber
filosófico, localizada historicamente dentro da própria tradição da
filosofia, inicialmente em Kant e Hegel e na recepção desse debate
no Brasil.
Torna-se interessante ressaltar que esse lugar de investigação
adotado diverge de outras possibilidades com as quais se poderiam
pensar as peculiaridades do ensinar e aprender filosofia. É o caso, por
exemplo, de um estudo pedagógico, decorrente da própria condição
institucional que a filosofia, ao adentrar ao regime institucional
educativo, se depara. Neste âmbito, podemos destacar as questões da
ordem da importância pedagógica da filosofia, dos conteúdos a
serem ensinados e das metodologias a serem aplicadas, questões com
as quais nos deparamos na função de professor de filosofia e através
das quais somos cobrados pelas diretrizes institucionais a dar
respostas aos aspectos programáticos de nossa prática docente.
Isso não significa, por sua vez, negar os caminhos de
pesquisas e demandas pedagógicas, excluir os problemas que a
dimensão institucional educativa, com a invenção moderna do saber
pedagógico, colocou à filosofia. O problema da transmissibilidade
do saber filosófico, mediado pelas práticas de ensinar e aprender, é
93
algo estabilizado na modernidade, no enquadramento escolar e
institucional da filosofia. E é em razão desse enquadramento
institucional que problemas relativos à ensinabilidade e à
aprendibilidade da filosofia começam a aparecer na tradição,
invadindo a preocupação dos filósofos, como são os casos de Kant e
Hegel. Dito de outro modo, com a emergência da pedagogia
moderna e seu projeto iluminista de reforma da humanidade, que
concebia o ser humano como um ser modificável e progressivo, a
filosofia é atravessada por questões novas. Deste momento em
diante, como diz Carrilho (1987, p. 27), “as preocupações
pedagógicas afetam a filosofia e a levam a interrogar-se sobre o seu
próprio ensinável”.
Nesse sentido, a proposta da disciplina de adotar uma
perspectiva filosófica para desenvolver as tensões do ensino e da
aprendizagem da filosofia procurava trazer para o curso essas novas
problemáticas emergidas na tradição, as quais, de certa forma, não
tinham ainda muita penetração no âmbito acadêmico. Cientes da
importância deste espaço tanto para a eminente experiência de se
tornarem professores na educação básica, como para pensar
filosoficamente as relações próprias de ensinar e aprender filosofia, a
proposta era, na realidade, uma demanda dos próprios integrantes
do ENFILO, que, participando dos projetos "Ensino da filosofia
em espaços não formais"
4
e do Programa de Iniciação à Docência
(PIBID), prestes a completarem a graduação, sentiam a necessidade
da criação de um espaço disciplinar de discussão. Mas algumas
4
O projeto “Ensino de filosofia em espaços” não formais se desenvolveu entre os anos de
2010 e 2013, financiado pelos Núcleo de Ensino-UNESP e pela P-Reitoria de Extensão
Universitária e Cultura (PROEX). Para mais detalhes e reflexões sobre o projeto, conferir
o artigo de Pinto et al. (2015).
94
dúvidas surgiram entre os mais céticos ante a proposta, que não só
questionavam a pretensão filosófica de oferecer uma disciplina, cuja
temática se situava aparentemente fora dos cânones da tradição
filosófico-universitária dos cursos mais respeitados do país, mas
também se tal disciplina não seria um objeto restrito à licenciatura,
em razão de sua suposta especificidade pedagógica e educacional.
O próprio modo de remeter essa discussão a um problema
típico da licenciatura e, consequentemente, como algo não
filosófico, é interessante para evidenciarmos a dicotomia existente
no curso de licenciatura de filosofia da UNESP, que insiste em
separar os aspectos educativos dos aspectos filosóficos. Isso se pode
notar na opção do curso que separa a formação "específica em
filosofia" um tronco comum de disciplinas oferecido tanto ao
bacharelado e licenciatura, de responsabilidade exclusiva dos
professores dos departamentos de filosofia e a "formação
pedagógica" disciplinas da grande área de formação de professores,
de responsabilidade, hegemonicamente, dos departamentos de
educação. Assim, qualquer questão relacionada ao ensino de filosofia
supostamente estaria alocada na formação pedagógica
complementar, conforme pode se verificar no Projeto Pedagógico do
Curso de Filosofia: “caso o discente opte por licenciatura em filosofia,
além das disciplinas obrigatórias, ele deverá cumprir uma carga
horária excedente, composta por disciplinas de formação
pedagógica” (UNESP, [19-?]), ao exemplo das disciplinas de Estágio
supervisionado I e II, Psicologia da educação, Didática e Estrutura e
funcionamento do ensino fundamental e médio.
O problema é que essas disciplinas, na época em que
ocorriam os debates na UNESP, tinham como especificidade uma
95
reflexão pedagógica e educacional em geral, não diretamente
relacionada às especificidades do saber filosófico. Tratava-se de
oferecer uma perspectiva educacional da escola, habitada por
professores e suas metodologias gerais de ensino e aprendizagem
e um perfil de estudante construído teoricamente pelo olhar
psicológico das etapas do conhecimento de uma representação de
estudante universal. Dessa forma, uma formação pedagógica e
educacional, no que diz respeito ao “ser professor” e as questões que
atravessam sua prática, propicia a separação de áreas, o que fica mais
evidente com a possibilidade de cursar tais disciplinas em outros
cursos que não o de filosofia. É como se o professor de filosofia se
formasse tão somente no momento das disciplinas pedagógicas;
como se o seu processo educacional fosse o encontro de duas etapas
de formação, a dos conteúdos filosóficos e dos saberes técnicos e
pedagógicos, que preparariam o estudante de filosofia em professor
capaz de transformar aquilo que estudou em conteúdos escolares, em
saberes ensináveis e aprendíveis para estudantes da educação básica.
E, dentro dessa etapa pedagógica, a filosofia não teria nada a
contribuir para pensar a formação do professor de filosofia, as
questões de ensinabilidade e aprendibilidade da filosofia, já que estas
não seriam uma temática de sua alçada.
Apesar dos problemas de a licenciatura estarem diretamente
relacionados ao contexto e às nuances da educação básica, podemos
continuar a pensar as questões do ensino de filosofia
dicotomicamente, desde um lugar geral estritamente pedagógico,
pressupondo que ensiná-la e aprendê-la envolvem os mesmos
processos de ensinar e aprender de outras disciplinas? A própria
natureza do saber filosófico não resultaria em uma específica prática
96
de ensinabilidade e aprendibilidade e, consequentemente, não nos
remeteria a uma gama de problemáticas que só uma intervenção
filosófica poderia realmente tensionar? Por exemplo: apesar da
filosofia ter historicamente uma vocação educacional, é possível
ensiná-la, transmiti-la de um filósofo a um não-filósofo?; o que se
espera que o outro aprenda quando alguém se propõe a ensinar
filosofia?; o que significa aprender filosofia? Aparentemente,
responder tais questões nos insere em problemas cujas resoluções nos
levariam às discussões epistemológicas, estéticas, políticas e
filosófico-educacionais que não poderíamos renunciar à
interlocução com a tradição filosófica, como é característico à
estrutura da licenciatura.
Ainda sobre essa dicotomia formativa poder-se-ia
questionar, contudo, se a trajetória como professores não se iniciaria
desde o momento em que pisamos nas aulas de filosofia. Muito mais
do que conteúdos específicos, não aprenderíamos com os professores
das disciplinas estritamente filosóficas maneiras de ensinar, aprender
e fazer filosofia, de tal modo que seria problemático dizer que é
somente na formação pedagógica que nos desenvolvemos como
professores de filosofia? Ao que nos parece, a própria maneira como
nos relacionamos com a tradição filosófica não está isenta de
pressupostos e heranças. Nossa formação específica não se dá
simplesmente com conhecimentos gerais da história da filosofia, um
corpus objetificável de conhecimentos, passível de se separar das
intencionalidades, das práticas e pressupostos consolidados no
ensino e na pesquisa de nossa universidade. Aliás, mesmo o projeto
pedagógico do curso da UNESP no qual se pode ler o seguinte:
“igualmente familiarizado com a técnica de ‘explicação de texto’,
97
tornando-a privilegiado instrumento do ensino de Filosofia no 2º
grau, que o licenciado deverá, também promover o contato
produtivo de seus alunos com os mais significativos movimentos da
cultura ocidental” (UNESP, [19-?]) reconhece que a proficiência
explicativa de textos, cara aos bacharéis e, portanto, à pesquisa
filosófica, se torna uma contribuição à filosofia na educação básica.
Seria possível, então, pensar o professor de filosofia e as práticas de
seu ensino e aprendizagem como se fossem questões exclusivas ao
contexto da educação básica, cujas demandas investigativas
poderiam ser suficientemente atendidas pela formação pedagógica e
suas disciplinas educacionais? Pois, afinal, quem melhor do que a
própria filosofia para problematizar o que é essa técnica de
explicação de texto, como ela funciona e por que ela é essencial à
formação filosófica no universo escolar e universitário
5
?
Nesse sentido, mesmo se os problemas que a disciplina
pretendesse abordar fossem algo restrito à formação pedagógica
complementar do curso de licenciatura da UNESP, o modo como
essa formação estava estruturada não era suficiente para tanto. Ao
levarmos em consideração o caráter genérico da formação
pedagógica da licenciatura, considerarmos a própria influência das
heranças filosóficas que nos são dadas no quadro da formação
específica do curso condição que nem mesmo se é negada no
projeto do curso e as tensões filosóficas que atravessam o ensino de
filosofia, já teríamos boas razões para a existência de um momento
institucional disciplinar para pensar filosoficamente o ensino de
5
Algumas dessas questões, especificamente as que se relacionam com as heranças e os
pressupostos do ensinar e aprender filosofia como estratégia explicativa de textos, foram
trabalhadas em algumas de nossas pesquisas recentes (RODRIGUES, 2020;
RODRIGUES; GELAMO, 2019).
98
filosofia, para além da dicotomia estabelecida. Apesar disso, a
proposta da disciplina não estava restrita à dimensão da licenciatura.
Os problemas que percorrem as relações de transmissibilidade e das
práticas de ensinar e aprender filosofia não são somente enfrentados
por aqueles que ensinam a filosofia na educação básica, mas dizem
respeito àqueles que, em sua constante maioria, praticam a filosofia
na contemporaneidade. Tanto na universidade ou na escola, um de
nossos ofícios filosóficos é ensinar a filosofia e a relação formativa
que estabelecemos com a filosofia acontece, basicamente, por
intermédio da instituição educativa. Como viemos insistindo, as
nossas práticas de ensinar e aprender filosofia revelam heranças e
pressupostos que nos possibilitam relacionar com a filosofia de
determinada maneira na contemporaneidade. Questioná-las
significa repensar o nosso programa de formação. Por essa razão, tais
nuances problemáticas dizem respeito ao curso de filosofia como um
todo, envolvendo a formação do filósofo-bacharel, assim como a do
filósofo-licenciado. E é bem provável, analisando os acontecimentos
ocorridos, que o interesse dos estudantes, os quais não só
propuseram a ideia da disciplina como também lutaram pela sua
presença na grade curricular, aconteceu por reconhecerem a
amplitude das investigações que poderiam ser criadas em relação à
filosofia na UNESP. Os eventos Nossa filosofia
6
, o Guaraná
6
Evento criado, em 2013, com o objetivo de apresentar e debater os estudos dos estudantes
de diferentes projetos pedagógicos de cursos universitários de filosofia, pensando a
eminente reforma do curso em decorrência das exigências do Conselho Estadual de
Educação, deliberação CEE nº 111/2012. Pode-se considerar como um dos agenciadores
dessa discussão estudantil os acontecimentos institucionais em torno da disciplina
“Problemas filosóficos do ensino e aprendizagem da filosofia”.
99
Filosófico
7
, o VIII Encontro de Pesquisa na Pós-graduação em Filosofia
da UNESP, “Filosofia Brasileira: possibilidades e desafios
8
, o X
Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP
9
, nos dão
indícios de que a luta por um espaço disciplinar, que permitisse
pensar filosoficamente o ensino de filosofia, constituía mais uma
oportunidade para problematizar a relação com a filosofia que nós
tínhamos na universidade do que uma relação estrita com a
licenciatura.
Basta retomar o próprio projeto da disciplina que o caráter
filosófico, pertinente tanto ao bacharelado e à licenciatura, poderá
ficar mais claro. Como dissemos anteriormente, o curso da disciplina
é inicialmente contextualizado a partir das reflexões de Kant e Hegel
e os desdobramentos desse debate no ensino de filosofia brasileiro.
7
Evento organizado pelo Centro Acadêmico, que, em uma de suas edições, trouxe o
professor Gonzalo Armijos Palácios em 2013, um dos críticos da filosofia universitária
brasileira, para repensar a nossa formação.
8
Esse evento contou com a participação de figuras cruciais ao debate da filosofia brasileira,
tal como a conferência de Paulo Margutti, A filosofia brasileira e sua história, a conferência
de Leonardo Prota, Filosofias nacionais, a exposição de Julio Cabrera Crítica da filosofia
acadêmica enquanto possível obstacularizadora do surgimento de filósofos autorais. Junto às
críticas à filosofia brasileira contemporânea, adotou-se como estratégia pensar outras formas
de filosofia, que não são aceitas nas acadêmicas, ao exemplo do minicurso Filosofia indígena,
cujos expositores foram: Cristine Takuá e Carlos Papá. Cabe dizer que a programação do
evento era elaborada pela comissão de estudantes, os quais consistiam, de fato, nos
responsáveis pela organização e realização do evento. O envolvimento dos professores era
mais por questões de formalização institucional ante as agências de fomento.
9
Os Encontros de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP buscavam oferecer sempre
outras oportunidades para pensar não só temas diferentes que não existiam em nosso curso,
como também pesquisadores que pudessem questionar a estrutura vigente. Em 2015, no X
Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP, por exemplo, tivemos a
presença de minicurso e palestras do professor Antônio Florentino Neto sobre a filosofia
oriental, um tema raramente abordado em nossa formação. Para explorar a formação da
filosofia universitária brasileira, contamos com a participação do professor Marcelo Silva
de Carvalho, e do professor Marcos Nobre, em sua palestra Filosofia e universidade na
mudança de modelo de sociedade do Brasil.
100
Desse modo, a disciplina colocaria em questão as práticas
hegemônicas de ensinar e aprender filosofia, cujas heranças
remontam à centralidade da história da filosofia, à leitura dos textos
clássicos como cerne da formação filosófica, marcado por um
arcabouço técnico-acadêmico de influência predominante da
Universidade de São Paulo (USP). Para tanto, retomar-se-iam
leituras fundamentais como: as diretrizes do ensino de filosofia de
Jean Maugüé (1955) para o curso em início da USP; os debates dos
professores auxiliares e, posteriormente, catedráticos da USP, Lívio
Teixeira (1964) e João Cruz Costa (1959); as narrativas/experiência
de formação da cultura filosófica uspiana de Prado Jr (1988) e Paulo
Arantes (1994); a recepção metodológica dos pressupostos histórico-
filosóficos de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt nas análises de
Porchat (1970). Na passagem dos acontecimentos de formação do
curso de filosofia da USP às nossas circunstâncias regionais, a
disciplina contaria com as tensões das práticas e problematizações
desenvolvidas há décadas na UNESP pelo professor Trajano. Este
último, graduado na USP no final dos anos de 1960 e pós-graduado
na década seguinte, trazia, em sua bagagem, um conjunto de
reflexões filosóficas acerca da formação nessa instituição,
questionando a predominância do comentário, explicação e leitura
de textos clássicos como estratégia formativa, unilateralidade que
limitaria o aparecimento de um pensamento filosófico brasileiro
original e regular. Em suma, a proposta da disciplina se iniciava no
aparecimento histórico do problema da transmissibilidade da
filosofia nas condições de seu ensino e aprendizagem, questionava a
recepção e o debate dessa problemática em território nacional,
101
buscando pen-la na imanência das próprias práticas do curso de
filosofia da UNESP.
Embora acreditemos que todos esses argumentos seriam
suficientes para demonstrar a validade filosófica e a urgência da
disciplina no contexto do curso de filosofia da UNESP, não houve,
contudo, aderência à proposta pela maioria dos professores do
departamento. São nesses momentos que vemos que, mesmo no caso
de instituições e agentes sob a qualificação filosófica, o
funcionamento de nossos hábitos está direcionado,
hegemonicamente, por uma relação dogmática com a filosofia, sob
a argumentação de tradicionalidade. O compromisso incondicional
com a tradição, aliado ao desencorajamento de qualquer tentativa
crítica com a ordem vigente, ofuscam as fontes das experiências que
foram fundamentais para criar a tradicionalidade de nossos hábitos.
Sem o acesso às condições de possibilidades que sacralizaram uma
relação específica com a filosofia, por meio de seu ensino e
aprendizagem na contemporaneidade brasileira, torna-se
extremamente difícil repensar a formação em curso e o que, de fato,
fazemos sob o nome da filosofia, o que refletirá não só na pesquisa e
no ensino acadêmico, que é o caso do bacharelado, como também
no contexto da educação básica, momento em que também
reproduzimos os hábitos adquiridos na graduação.
Apesar disso, a recusa e a despretensão de pensar
filosoficamente essas questões não expressam algo exclusivo ao curso
da UNESP ou estritamente alguma possível querela entre os
professores do departamento de filosofia com os outros que
compõem o curso. Se é bem verdade que propor a necessidade de
uma disciplina que pensasse filosoficamente o curso em geral,
102
estabelecendo uma similaridade filosófica entre o rigor das pesquisas
e disciplinas realizadas no departamento de filosofia com uma
disciplina que advém de um departamento de educação, poderia
ferir as regras de “boa vizinhança”
entre os departamentos que
compõe o curso, entendemos que tais posicionamentos expõem um
panorama nacional, enfrentado quase que hegemonicamente nos
diversos cursos de filosofia no Brasil. Na realidade, as reflexões sobre
o ensino de filosofia em nosso país, sintomaticamente, não
encontram espaço nos departamentos de filosofia. Essa visão
empobrecida dos problemas do ensino de filosofia é enfrentada e
adquire força, principalmente, na passagem da década de 1990 e
começo dos anos 2000, momento em que uma série de professores
de filosofia tentaram resistir a essa tendência universitária e abriram
um novo território de investigação na filosofia. O que faremos a
seguir é mostrar como uma problematização filosófica do ensino e
aprendizagem da filosofia, conforme proposta pela disciplina, faz
ressoar alguma das reivindicações dessa movimentação nacional, a
qual entendemos como um projeto político-filosófico a ser
constituído em solo brasileiro.
Filosofia do ensino de filosofia: um projeto político-filosófico
brasileiro e suas ressonâncias no curso de filosofia da UNESP.
Em razão da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 1996 que previa, ambiguamente
10
, a necessidade dos
10
A defesa da imprescindibilidade da filosofia na educação básica não era garantia de sua
presença como disciplina no currículo, uma vez que sua participação poderia se dar como
103
conhecimentos filosóficos à formação da educação básica,
professores de filosofia se organizaram academicamente, realizando
uma série de encontros, congressos e fóruns de discussão que
permitiram uma articulação mais orgânica em torno de temática.
Enquanto uma das pautas, evidentemente, foi a luta legislativa pelo
retorno da filosofia à grade curricular obrigatória do ensino médio,
desejava-se, concomitantemente, abrir um campo de pesquisa,
promover um debate mais conceitual, de modo a pensar os
problemas relativos à temática do ensino de filosofia e não
simplesmente lutar corporativamente por um espaço na escola.
À primeira vista, se olharmos para os agentes participantes
nessas discussões, perceberemos que a grande maioria habitava os
departamentos da área da educação e realizava suas pesquisas em
programas de pós-graduação em educação e não de filosofia: “[...]
com algumas exceções, são os filósofos que elegeram a educação seu
tema privilegiado de pesquisa, que têm enfrentado o problema do
ensino de filosofia” no Brasil (DANELON, 2008, p. 16-17). Essa
postura indiferente da filosofia universitária às questões do ensino de
filosofia não é uma novidade da realidade brasileira. Desde a época
da criação da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia na
década de 1980, as produções teóricas do ensino de filosofia nunca
tiveram espaço acadêmico de exposição na própria associação
(ALVES, 2002, p. 52). Só recentemente, a partir de 2005, que o
conhecimentos transversais a serem ministrados no espaço de outras disciplinas. Para
reverter esse cenário institucional, foram elaborados dois projetos de lei, o 3.178/97, do
Padre Roque Zimmermman, e o 1641/03, de autoria do deputado Ribamar Alves. É do
segundo que resultaria a Lei nº 11.684/2008 de 2 de junho de 2008, a qual altera o artigo
art. 36 da LDB/96 para incluir a filosofia e a sociologia como disciplinas obrigatórias nos
currículos do ensino médio.
104
ensino de filosofia seria reconhecido como uma temática própria à
filosofia por essa associação, quando esse mesmo grupo de
professores pressionou pela criação do GT Filosofar e Ensinar a
Filosofar. Mesmo assim, quinze anos após a conquista, precisamos
ainda nos perguntar qual é o tipo de reconhecimento conquistado,
se realmente o espaço na ANPOF nos legitimou ante a comunidade
filosófica, porque, apesar de muitas pesquisas serem apresentadas e
integrarem o principal evento de filosofia do Brasil, a grande maioria
delas ainda são deslocadas, hegemonicamente, para os programas de
Pós-Graduação em Educação, ocupando um espaço nas linhas de
Filosofia da Educação. Dizemos grande maioria uma vez que, desde
2017, alguns departamentos de filosofia são responsáveis pelo
Mestrado Profissional PROF-FILO
11
. Entretanto, a política pública
de mestrado profissionalizante da CAPES não se tornou suficiente
para criarmos um reconhecimento institucional das pesquisas
estritamente acadêmicas com o ensino de filosofia na área de
filosofia, deslocando ainda muitas pesquisas, especialmente aquelas
de cunho acadêmico e de nível doutoral, para a área de educação.
Um momento referencial para essa articulação acadêmica
entre os professores de filosofia foi o Congresso Internacional de
Filosofia com Crianças e Jovens, promovido em julho de 1999 pelo
Projeto Filosofia na Escola, sediado na Faculdade de Educação da
Universidade de Brasília. Apesar do intuito central do congresso
consistir no debate da filosofia e infância, houve a criação de uma
mesa redonda para discutir o tema “A filosofia no ensino médio”.
Seria a partir deste evento que os professores de filosofia fizeram uma
11
Para mais detalhes do Mestrado Profissional em Filosofia, conferir o texto de Velasco
(2019).
105
reunião, da qual se tirou a proposta de realizar um congresso
nacional, a fim de debater a problemática do ensino de filosofia nesse
nível de ensino (GALLO, 2013, p. 15). Diria ainda Gallo (2004, p.
11) que foi nesse evento “que começamos a nos debruçar com mais
rigor sobre o tema do ensino de Filosofia”.
No ano seguinte, realizar-se-ia o I Congresso Brasileiro de
Professores de Filosofia
12
. Ante o descaso dos cursos de filosofia e a
inexistência de um campo de pesquisas e produção bibliográfica na
área do ensino de filosofia no Brasil, os professores participantes
percebem a necessidade de criar uma articulação regional e nacional
com o objetivo de aprofundar o debate e criar estratégias para
pressionar os governos para introduzir a filosofia no ensino médio
(CORNELLI, 2003). Partindo da experiência do Fórum Sul de
Coordenadores dos Cursos de Filosofia, que já havia realizado os
Encontros dos Cursos de Filosofia do Sul do Brasil, e que convocavam
para um primeiro encontro sobre o ensino de filosofia, são criados o
Fórum do Centro-Oeste de Ensino de Filosofia, o Fórum Sudeste de
Ensino de Filosofia e o Fórum Norte-Nordeste do Ensino de Filosofia.
Cada um, dentro de sua regionalidade, procurou constituir-se como
polos organizadores, realizar eventos e reuniões os quais foram
geralmente publicados em coletâneas ou em edições de revista , de
modo a pensar a problemática do ensino de filosofia.
Daí em diante, houve um incremento significativo nas
pesquisas na área do ensino de filosofia, proporcionando uma
12
Evento realizado em Piracicaba, São Paulo, em outubro de 2000 na UNIMEP
Universidade Metodista de Piracicaba. Tal evento contou com a publicação de uma
coletânea: GALLO, Sílvio; CORNELLI, Gabriele; DANELON, Márcio (Orgs). Filosofia
do Ensino de filosofia. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 190.
106
produção bibliográfica ainda não existente até aquele momento na
realidade brasileira. E, mais significativo do que o desenvolvimento
quantitativo da produção bibliográfica e de pesquisas, é a emergência
discursiva que esses eventos proporcionam à área do ensino de
filosofia. Dentre os diversos enunciados que começam a circular no
debate, chama a atenção aqueles que demarcam a emergência de
uma nova forma de pensar a filosofia e seu ensino na realidade
brasileira, especificamente os discursos em torno de uma “filosofia
do ensino de filosofia”, cujo objetivo é transformar o ensino de
filosofia em um problema, de fato, filosófico. São estudos mais
recentes que modificaram a percepção do ensino de filosofia. Se até
então a filosofia, seu ensino e aprendizagem não constituíam um
problema filosófico relevante à comunidade acadêmica, é dessa
movimentação em diante que se começa a criar possibilidades de
entendê-los como um campo complexo de problematização
filosófica, com teorias e questões singulares, como destaca Danelon
ao fazer um balanço da área em 2008:
Os diversos eventos e as inúmeras produções acadêmicas sobre
o ensino de filosofia estão sinalizando para uma mudança de
eixo no entendimento do problema do ensino de filosofia.
Afirma-se, de forma incisiva, a necessidade de um olhar
filosófico para o ensino de filosofia, ou seja, que o ensino de
filosofia se constitui um problema filosófico, tratado de forma
filosófica e tendo, isto é fundamental, a história da filosofia
como instância dialógica para o enfrentamento desse problema
(DANELON, 2008, p. 17).
107
Se retornarmos para o primeiro expressivo encontro entre os
professores, já podemos observar que a bandeira do I Congresso
Brasileiro de Professores de Filosofia é a de que “refletir sobre o ensino
de filosofia é também ofício da filosofia” (CORNELLI, 2003, p.
10). Sob o rigor da própria filosofia aproximadamente 250
professores das mais diversas regiões brasileiras e de outras
nacionalidades (Argentina, Uruguai, Itália e França) encontram
um ponto em comum para sua diversidade: pensar a atividade de
ensinar filosofia, fazendo deste evento a oportunidade de solidificar
bases e estratégias, ampliar contatos e dar início a “singularização de
um campo de discussão” (CORNELLI, 2003, p. 10). Um campo
que, conforme o próprio nome da coletânea Filosofia do Ensino de
Filosofiacomece a pensar filosoficamente os problemas do ensino
de filosofia no Brasil.
A ideia por trás de um campo, a partir do qual se pensasse
filosoficamente o ensino de filosofia, está sustentada nas condições
de possibilidade da filosofia reconhecer como próprio o problema de
sua transmissão, das práticas envolvidas no seu ensino e na
aprendizagem, algo academicamente visto como um aspecto
separado ou como uma questão subalterna. Como já afirmamos
anteriormente, os problemas do ensino de filosofia ocupam um lugar
de menoridade ou estatuto estritamente pedagógico nas relações
universitárias, pois não são considerados um “problema filosófico
pelos filósofos que se dedicam aos temas ‘tradicionais da filosofia,
amplamente aceitos e compreendidos como pertencentes à
verdadeira natureza filosófica’, tais como a ética, a estética, a política
e, especialmente, a história da filosofia” (GELAMO, 2009, p. 32).
Mesmo que não haja uma tentativa de demonstração por parte
108
daqueles que propagam esses pressupostos, costuma-se frisar que os
grandes filósofos da tradição nunca se dedicaram aos problemas
educacionais da filosofia. Por essa razão, como afirmam Gallo e
Kohan (2000, p. 181) os “cursos superiores de filosofia, com
honrosas exceções, não cultivam os espíritos com vocação de
educador e desestimulam a dimensão educacional da filosofia.
Assim, o ensino de filosofia como um problema filosófico genuíno,
a ser desenvolvido como um campo de pesquisa filosófica, é uma
luta por inaugurar um “território filosófico ‘filosofia do ensino
filosófico’ e dentro dele pensar as condições e as possibilidades da
transmissão e ensino dos saberes, das atitudes e das práticas
filosóficas” (CERLETTI, 2003, p. 67-68).
Nesse contexto, notamos a emergência de uma perspectiva
filosófica que toma o ensino de filosofia como um projeto político-
filosófico que busca inaugurar um território na filosofia, filosofia do
ensino de filosofia, e, dentro dele, pensar as condições e as
possibilidades para se ensinar e aprender filosofia filosoficamente.
Quer-se criar um espaço na contemporaneidade para que, na
responsabilidade de professores de filosofia, nosso modo de fazer e
ensinar a filosofia ultrapasse os problemas pedagógicos e que
filosofemos ante os problemas que permeiam nossas práticas. Isso
não significa que há uma desvinculação entre os problemas do
ensino de filosofia da educação, pelo contrário, significa que os
professores de filosofia, junto com as contribuições da área de
educação, não se furtam aos problemas filosóficos de suas práticas.
Trata-se, em outras palavras, de territorializar as questões do ensino
de filosofia na própria filosofia, como demonstra Silvio Gallo na
abertura do I Simpósio Sudeste do Ensino de Filosofia:
109
Nos últimos anos os filósofos professores de Filosofia brasileiros
vêm se preocupando com questões como essas. Trata-se, quer
me parecer, de um movimento de pensar filosoficamente o
ensino da Filosofia. Um movimento em que os filósofos têm
tomado para si a responsabilidade de pensar a prática docente,
em seus vários níveis. Um movimento de dar cidadania, no
território da Filosofia, à problemática do ensino que, até aqui,
só encontrava asilo no território da educação. Trata-se de tirar
da educação algo que lhe é próprio? Trata-se de prescindir das
contribuições que os especialistas em educação podem trazer
para o ensino da Filosofia? Penso que não. Toda contribuição
é mais do que bem-vinda. Por outro lado, contudo, não
podemos nos furtar a essas preocupações (GALLO, 2004, p.
10).
Como consequência do contexto de emergência desses
fóruns e congressos, a proposta de pensar filosoficamente o ensino
de filosofia, de desenvolver pesquisas filosóficas na área, terá como
crítica e estará muito ligada, sobretudo, à reestruturação da
licenciatura. Uma filosofia do ensino de filosofia significará, em boa
parte das reflexões, insistir na responsabilidade filosófica com a
formação docente e com o futuro da disciplina na educação básica.
De nada adiantará lutar pelo retorno da disciplina se não bem
formarmos os professores. E é nessa direção que vemos que os
responsáveis pela organização da coletânea do I Simpósio Sul-
Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia fazem questão de chamar a
atenção: é preciso “estratégias de debate para que a discussão sobre
o ensino de filosofia deixe o anonimato, o espontaneísmo, o
didatismo, o pedagogismo e ocupe um lugar central na reflexão dos
110
cursos de licenciatura de filosofia” (FÁVERO; RAUBER; KOHAN,
2002, p. 9). Não é plausível que os cursos de filosofia continuem a
formar os professores sem pensar tal formação com seriedade.
Com a defesa da postura filosófica ante os problemas do
ensino de filosofia, de modo a sinalizar a importância e a
responsabilidade que o curso de filosofia e os futuros professores
teriam com a dimensão educacional da filosofia, começa-se a
tensionar a dicotomia entre as questões filosóficas e as questões
educacionais. Mobiliza-se, assim, um olhar mais concentrado para a
formação filosófico-educacional das licenciaturas, que diz respeito à
formação complementar direcionada às práticas de ensinar e
aprender filosofia no contexto da educação básica. Apesar disso,
pensar filosoficamente o ensino de filosofia não está restrito à
dimensão da filosofia na educação básica. Tal projeto político-
filosófico cria um campo problemático novo para a filosofia, que
busca fundamentalmente tensionar, desde a filosofia, as relações que
se tem quando ela é ensinada e aprendida, seja em qual nível
institucional educativo for.
Entretanto, a ideia de um novo território na filosofia não
pode ser entendida estritamente como se inaugurasse apenas um
conjunto teórico de novos problemas em que a produção filosófica
serviria só para fundamentação das atividades de ensinar e aprender
filosofia. De fato, quando as práticas educativas com a filosofia são
dimensionadas como um problema realmente filosófico, o seu
exercício exige de seus agentes um compromisso com a pesquisa
filosófica. Ensinar e aprender filosofia, pela especificidade filosófica
que os envolve, impele o professor a adentrar ao registro teórico e
tensionar os pressupostos e as implicações de suas práticas. Implica,
111
de um lado, um compromisso com a pesquisa filosófica. Só que
pensar uma filosofia do ensino de filosofia significa também reviver
a relação filosófica intrínseca às suas práticas educativas. É pensar o
exercício filosófico enquanto ensino, aprendizagem e formação, de
tal forma a assumir um compromisso com o filosofar,
transformando as salas de aulas em um espaço por excelência da
prática filosófica, onde os professores e estudantes sejam
minimamente filósofos.
Essa nova perspectiva nos ajuda, principalmente, a
problematizar a hierarquia universitária existente entre a pesquisa e
a docência, entre o bacharelado e a licenciatura. Apesar de boa parte
dos estudantes do curso de filosofia ter como alvo a licenciatura,
como também é o caso do curso da UNESP, não há essa
preocupação com a dimensão educativa da filosofia, sequer um
incentivo. No jogo de poder das hierarquias acadêmicas, no campo
constituído de saber filosófico, as pesquisas guardam ainda traços da
filosofia enquanto as relações filosófico-educacionais não são
consideradas como tal. Estas, em muitos dos casos, são apenas
caracterizadas mais como um ofício de subsistência ao pesquisador
do que uma prática filosófica. De certa forma, os pesquisadores são
considerados responsáveis pela produção de conhecimentos. Mesmo
que, dentro da produção da pesquisa filosófica nas universidades, a
criação do pesquisador não seja, em muitos dos casos, considerada
semelhante aos filósofos da tradição, prevalece ainda um pressuposto
e uma defesa da existência de um processo filosófico, seja elaborando
um comentário original, seja produzindo uma atualização
historiográfica dos problemas perenes da filosofia. De uma maneira
ou de outra, há uma atualização no corpus da filosofia, que implica,
112
se não a produção teórica propriamente dita, uma renovação e
atualização dela no presente. Já o exercício docente está mais
próximo da reprodução, divulgação e circulação do saber filosófico
produzido através das relações educacionais do que um ato criativo
filosófico. Quem é professor nada há a atualizar na filosofia, uma vez
que sua função realiza apenas uma mediação, uma circulação e
divulgação da cultura filosófica. Se há criação, esta é considerada
estritamente didática.
Por essa razão, enquanto a universidade reconhece a
pesquisa, fundamentalmente concentrada nas práticas
historiográficas e no comentário, como algo da natureza filosófica,
isso não vale para o registro educacional da filosofia. E isso até se
considerarmos a função do professor na graduação, já que a iniciação
à filosofia não coincide com a iniciação à prática filosófica. Pode até
ser que o filosofar seja a meta final de todo o processo é constante
ouvirmos para ousarmos filosoficamente somente no doutorado ou
até depois, quando atingirmos o amadurecimento necessário , mas
o ensino de filosofia é encarado muito mais como uma propedêutica
cultural do que um exercício no filosofar. No entanto, pensar o
ensino de filosofia como um problema filosófico resgata, traz ao
cenário de debate, justamente essa potencialidade filosófico-
educacional de ensinar e aprender filosofia. Já não haveria uma
dissociação entre ensinar e produzir filosofia, entre os aspectos
educativos e os aspectos filosóficos, o processo educativo já nos
remeteria ao exercício do filosofar. Ou seja, do mesmo modo que a
pesquisa já é considerada um ato criativo filosófico, que agora
passaria a incluir as temáticas do ensino de filosofia, as práticas
educativas com a filosofia seriam um ato filosófico por excelência.
113
A construção de um projeto que cultive uma perspectiva
filosófica com o ensino de filosofia em cenário nacional terá suas
ressonâncias na UNESP, recepcionada fundamentalmente pelas
pesquisas e prática docente dos integrantes do ENFILO.
Independentemente do registro em que o ensino de filosofia é
praticado, seja na educação básica, na universidade, ou em espaços
não formais, seja qual for o estatuto da pesquisa desenvolvida
iniciação à docência, iniciação à pesquisa científica, mestrado ou
doutorado , o ENFILO assume o desafio de estabelecer uma relação
filosófica com o ensino de filosofia. Isso significa que o filosofar é a
condição fundante das relações com o ensinar e aprender filosofia,
tanto de um ponto de vista da necessidade dos integrantes do grupo
se vincularem filosoficamente às práticas de ensinar e aprender, de
forma a pensar os limites e as possibilidades educativas da filosofia
pela própria filosofia, tanto como experienciar, dentro das relações
institucionais e não-institucionais, o filosofar com os não-filósofos
ou pretendentes a filósofos por assim dizer. Sendo assim, se
quisermos entender a proposta da disciplina Problemas filosóficos do
ensino e aprendizagem da filosofia é preciso associá-la a esse projeto
político-filosófico que procura constituir-se como uma filosofia do
ensino de filosofia nas discussões nacionais da área e perceber como
essas reflexões coletivas passam a adquirir corpo em nosso contexto
universitário, de modo que fizesse sentido problematizar
filosoficamente as práticas de ensinar e aprender filosofia
consolidadas institucionalmente, para além de um registro
meramente pedagógico.
Entendemos o ENFILO como o núcleo que recepciona esse
projeto-filosófico na UNESP, a partir do qual a proposta da
114
disciplina encontrava sustentação e fazia ressoar essa demanda
nacional em crescimento no Brasil. Mas a proposta diferencia-se no
espaço regional, incorporando as demandas contingenciais de nosso
curso, e os próprios acontecimentos em torno da disciplina podem
nos indicar essas diferenciações. A proposta dessa disciplina em
2012, recusada pelo conselho do curso no mesmo ano, só tomaria a
forma de uma disciplina optativa no currículo do curso de filosofia
da UNESP pela associação do professor Trajano em 2013. Para que
ela fosse aceita, foi-se exigido a participação de um integrante do
próprio departamento de filosofia, e, em razão da temática, o seu
nome passou a ser o mais indicado. Desse encontro nasceria a nova
disciplina, agora intitulada Questões da filosofia e seu ensino, a ser
ministrada pela primeira vez no ano de 2013, em que o professor
Trajano aparecia como principal autor e Gelamo como auxiliar
com isso, a sede da disciplina passou a ser o departamento de
filosofia. A mudança do nome da disciplina não pode ser vista
apoliticamente: a supressão do termo “filosófico” mostra o não
reconhecimento institucional do caráter filosófico da temática, assim
como a substituição de “problemas” por “questões” não deixa de ser
uma forma de abrandar a tensão filosófica existente com o ensino de
filosofia. Isso aponta o conflito com a proposta e que a conquista
desse espaço institucional não foi tão simples conforme possa parecer
em nossa análise. De fato, os estudantes do curso de filosofia
encabeçaram a disciplina, de modo a pressionar, tanto nas reuniões
departamentais e do conselho de curso, pela adesão a essa proposta.
Se a disciplina foi aceita, nem que ainda a contragosto, é porque
houve uma luta estudantil por um espaço de formação em que se
pudesse pensar filosoficamente os problemas de ensinar e aprender
115
filosofia, somando-se ao peso especial de autoridade do prof.
Trajano, uma das figuras mais antigas do curso e muito respeitada.
Mesmo que boa parte dos estudantes envolvidos tivessem
algum vínculo com o ENFILO, tanto entre esses estudantes quanto
aos outros que não eram próximos do grupo havia ainda um
interesse em comum pelo destino do curso de filosofia da UNESP.
Prevalecia um cenário de turbulência e insatisfação com o tipo de
formação que nós tínhamos, cujas pulsões já eram fomentadas na
graduação, principalmente pela figura do professor Trajano. Por essa
razão, se quisermos entender a emergência da disciplina seria muito
difícil ignorar a presença e os caminhos já abertos através de sua
convivência no campus. O ensino de filosofia universitário e a
formação de filósofos no Brasil foram questões que costumeiramente
atravessaram suas práticas filosóficas e que desenvolvia no curso de
filosofia da UNESP, cultivando, entre os estudantes da universidade,
um cenário propício para as reflexões oferecidas pela disciplina.
Quando os estudantes encabeçaram a luta pela disciplina nos
conselhos de curso e reuniões do departamento, é porque, de certa
forma, levavam também adiante as indagações e as inspirações do
professor Trajano, as quais pareciam se correlacionar com as
propostas filosóficas da disciplina. Muito mais do que um mero
vínculo institucional, o professor Trajano tem uma participação
fundamental na emergência dessa disciplina.
Nesse sentido, a emergência da disciplina Questões da filosofia
e seu ensino precisa ser contextualizada, de um lado, com a
inauguração de uma filosofia do ensino de filosofia, que procurava
criar um território na filosofia para o qual a filosofia, seu ensino e
aprendizagem se tornassem um problema filosófico. De outro,
116
torna-se fundamental considerar que as reflexões da proposta
disciplinar coincidiam com os problemas apresentados pelo
professor Trajano. Problematizações estas que, certamente,
influenciaram não só os estudantes do curso na época em que se
propôs a disciplina, como é o caso de um dos autores deste texto
criando uma extensão problemática para a temática mas que
também tiveram suas ressonâncias, na década anterior, no outro
autor deste texto, na época ainda estudante de filosofia. Isso porque
os próprios caminhos escolhidos por este para desenvolver a
disciplina, apesar de se amparar no campo das pesquisas do ensino
de filosofia, tem como característica alguns olhares para os
problemas do ensino de filosofia universitário brasileiro que não foi
muito comum àquela movimentação dos anos 2000 já que este
movimento tem como olhar mais a formação filosófico-pedagógica,
que diz respeito propriamente à licenciatura de filosofia e que, por
essa razão, ressoa sua substancialidade à convivência com o professor
Trajano. Assim, o que queremos na próxima seção é explorar um
pouco do pensamento do professor Trajano a fim de demonstrar
nossa leitura da emergência da disciplina. Para tanto, o
apresentaremos a partir de nossas memórias e de nosso convívio com
suas práticas, focalizando em alguns de seus textos em que ele traz as
problemáticas sobre o ensino de filosofia e a formação universitária
brasileira.
117
Filosofar para formar filósofos: um olhar crítico à filosofia
universitária brasileira
Essa situação anômala e crônica tem, felizmente, gerado um
descontentamento crescente entre estudantes de Filosofia no Brasil.
E, na verdade, esse descontentamento é uma das coisas mais valiosas
que temos agora, tanto mais que ele vem acompanhado de desejo
de mudança, de reforma. (ARRUDA, 2013, p. 50)
Ser afetado pelos hábitos instituídos, pelas ordenações e
relações vigentes, e problematizar os motivos que os tornam desse
modo e não de outro são atitudes que parecem imprescindíveis ao
filosofar. Assim defendia o professor Trajano, fazendo questão, em
suas aulas, de deixar os estudantes perplexos, de chacoalhar as
perspectivas situadas, os preconceitos e estereótipos encarnados, a
fim de que saíssem de seu estado habitual de conforto. Decerto, era
muito difícil passar ileso por suas aulas, não se incomodar com suas
provocações e com o modo como as conduzia.
Longe das diretrizes tradicionais que guiam uma aula,
principalmente àquelas de cunho expositivo, o professor Trajano nos
iniciava à filosofia de maneira totalmente diferente. Não parecia
acreditar no ensino de filosofia enquanto uma disciplina expositiva,
isso porque, conforme aponta em sua entrevista à revista Kinesis, nas
“disciplinas expositivas não havia, e ainda não há, espaço para o
filosofar, isto é, para debater a temática filosófica” (MORAES;
GIROTTI; 2013, p. 9). De fato, o professor Trajano tentava colocar
em sala de aula o que considerava o essencial da filosofia: uma
discussão temática dos problemas filosóficos. Para ele, “os problemas
118
da filosofia são absolutamente centrais nela e em toda sua história,
desde o começo, na Grécia”. Lidar com os problemas é a condição
epistêmica imprescindível à criação filosófica, uma vez que “um
problema, e só um problema, é o que gera espanto ou perplexidade”
(ARRUDA, 2013, p. 25).
Embora reconhecesse que os problemas só valessem para a
filosofia na medida em que têm efeito naqueles que os pensam, ou
seja, o interesse pelo problema filosófico jamais pode ser
transmitido, ensinável, suas aulas nos mostravam que os problemas
podem ser encorajados, intensificados ou até diminuídos como é
comum acontecer nas disciplinas de filosofia que focalizam o
objetivo nos textos do que nos problemas. O desafio das suas aulas
de filosofia era justamente permitir que os estudantes vivenciassem
os problemas em seu caráter pulsante, afinal, como afirma Arruda
(2013, p. 48), “sem esse contato vivo, cultivado e regular com a
problemática, permaneceremos estranhos à filosofia”. Por essa razão,
os temas e suas respectivas problemáticas ganhavam a centralidade
em seu exercício docente, sempre nos incentivando a pensá-los de
modo argumentativo, recorrendo aos filósofos na medida e
proporção em que as temáticas os evocavam, e não simplesmente a
comentar o que determinados filósofos haviam sobre eles já escrito
13
.
13
A seguir referenciamos a lista de uma série de teses que deveríamos problematizar como
trabalho final do curso, a qual acreditamos bem expressar sua proposta disciplinar: 1) Quais
os limites do controle da sociedade sobre a liberdade do indivíduo. 2) O problema do
determinismo e do livre-arbítrio. 3) O que havia eticamente de errado com: o aborto, a
eutanásia e o suicídio assistido? 4) Ninguém é mau voluntariamente e consciente. 5) O
prazer é nosso bem principal e inato. 6) O homem nasceu livre e em todos os lugares ele
está acorrentado. 7) Renunciar a sua liberdade é renunciar a sua qualidade de homem? 8)
O que é pensar livremente? 9) O que se entende por “liberdade de pensamento”? Pode essa
liberdade se tornar abusiva? 10) Discuta a teoria segundo a qual os fins justificam os meios.
11) O que fundamenta nossa certeza sobre as questões morais (exemplo: incesto)? 12) Por
119
E, dentro de sua concepção formativa, as aulas expositivas jamais
dariam conta de iniciar os estudantes às problemáticas, porque
simplesmente a filosofia só pode ser apresentada, os estudantes só
podem ser a ela iniciados, através da própria prática com o filosofar.
É preciso, então, que a sala de aula seja o lugar do exercício com o
filosofar:
Tentar dizer o que a Filosofia é, e desse modo, esperar
transmitir a quem ouve ou lê o espírito dela, o “coração e a
mente dela”, é uma empreitada nela mesma com uma séria
limitação, mesmo que alguém consiga dizê-lo de um modo
excepcionalmente bom, ou o melhor possível. É que a filosofia
propriamente dita isto é, aquela que é praticada por aqueles
que chamamos de filósofos, e que não inclui nem estudos de
comentador nem histórico-filosóficos propriamente ditos é
uma atividade, uma arte, portanto algo que envolve o cultivo
de determinados interesses e habilidades. E, como toda arte, ela
não é suscetível de ser explicada apenas por meio do discurso.
É necessário, para se ter dela uma explicação menos abstrata,
mais concreta e aprofundada, que se a pratique; é preciso que
o dizer de quem explica se combine intimamente com o fazer
filosófico, com a atividade filosofanteainda que em nível do
aprendiz filósofo daquele para quem a explicação está sendo
dirigida (ARRUDA, 2013, p. 42, grifos do autor).
que razão deve-se obedecer as leis, mesmo se elas forem injustas? 13) A sociedade é, para as
pessoas que a compõe, um fim ou um meio? 14) O homem só é um homem quando está
entre outros homens. 15) Que características devem ter uma sanção para ela seja eficaz? 16)
Qual é o elemento principal da felicidade humana? 17) A sinceridade para consigo mesmo
é mais difícil do que a sinceridade para com os outros.
120
Em sua condição de arte, de atividade, nós estudantes jamais
poderíamos ser iniciados pelo recurso expositivo. Pouco adiantará
oferecer cursos temáticos que ainda mantenham uma relação
expositiva com os problemas filosóficos, uma vez que a iniciação à
filosofia significa trabalhar com certas motivações e habilidades que
só um professor de filosofia, que necessariamente seja filósofo,
poderá exercitar com os seus estudantes. Ou seja, os cursos
temáticos, para desenvolverem a arte do filosofar, precisam ser
ministrados “no estilo de um filósofo e não de um historiador das
ideias ou de um comentador de obras”, de tal forma que o
“currículo, e o modo como é praticado, precisam por a discussão de
temas no centro do curso” (ARRUDA, 2013, p. 46-47). E era
justamente nesse sentido que funcionavam as aulas do professor
Trajano: exercitava o debate, a apuração dos problemas e o diálogo
intersubjetivo com a tradição filosófica, tendo-o como exemplo e
estimulador desse exercício filosófico coletivo.
Sua postura como docente está diretamente relacionada com
sua percepção crítica da filosofia universitária no Brasil. Era uma
reação ao que se havia instalado em solo brasileiro, e que o próprio
professor Trajano havia sofrido na pele quando discente e pós-
graduando (mestrado) de filosofia da USP, entre as décadas de 1960
e 1970. Na sua experiência formativa no curso de filosofia da USP,
conta-nos o autor que “o peso do comentário estava em todas as
disciplinas”, e eram raras as possibilidades de escrever sobre temas,
pensar e debater os problemas de interesse próprio. Inclusive, este
era um descontentamento de boa parte daqueles que cursavam
filosofia na época: “uma das coisas que alguns de nós
121
reivindicávamos no curso era a formação de filósofos também, não
apenas de analista de texto” (MORAES; GIROTTI, 2013, p. 4).
Apesar de reconhecer o valor da análise de texto, do trabalho
do comentário filosófico e da historiografia da filosofia na formação
do filósofo, o professor Trajano entendia que no Brasil, em razão de
sua implementação universitária, a formação filosófica foi reduzida
ao estudo direto e no original dos textos filosóficos, apostando-se em
uma metodologia supostamente suficiente para compreendê-lo
científica e objetivamente segundo as razões do autor estudado. Se
um dos argumentos desse rigor acadêmico é o desencadear no país
de um vasto conhecimento das línguas estrangeiras dominantes no
cenário internacional e o desenvolvimento de uma competência
reconhecida no trabalho científico de comentário das obras
filosóficas, a concentração nesse tipo de estudo tomou a centralidade
dos cursos de filosofia. O exercício do comentário predominou ante
o exercício do historiador das ideias filosóficas e dos estudos
temáticos de filosofia, criando um domínio generalizado do
comentário de obras, intitulado pelo professor Trajano como regime
do comentarismo na filosofia. Para ele, é esse regime que nos impede
de pesquisar e ensinar filosoficamente na universidade, e precisa ser
combatido caso queiramos mudar o cenário da academia brasileira.
É a prática do comentário que, ao ser transmitida de geração em
geração de professores, capilarizada no modo hegemônico de ensinar
e aprender filosofia, se torna o principal empecilho do filosofar
brasileiro, porque obscurece a força dos problemas para construção
do filosofar e foca nas obras apenas como objeto de comentários.
122
O comentarismo é o principal fator que tem entravado e
atrasado o aparecimento na universidade brasileira de uma
reflexão filosófica original regular e consistente. O ensino e a
pesquisa em Filosofia já nasceram assim, e assim continuam a
hoje. [...] Nesse regime de comentarismo não há lugar para o
elemento de interesse pelo objeto da filosofia, pelo tema, pelo
problema. Uma vez que a origem da filosofia está no espanto,
na perplexidade, então a esperança de que a reflexão filosófica
tenha finalmente sua plena origem e desenvolvimento na
universidade brasileira vai precisar esperar até que o interesse
pela temática e problemática filosófica deixe de ser bloqueado e
sufocado pelo regime do comentarismo. Com efeito, espanto e
perplexidade são experiências feitas em relação com os
problemas filosóficos, e não em relação com as obras que vão
ser objeto de comentário (ARRUDA, 2013, p. 51-52).
Embora algumas discordâncias com a leitura da
institucionalização do curso de filosofia da USP, de tal forma que
sua crítica parece mostrar uma continuidade de práticas entre as
gerações, o que pode ser questionado, na citação acima o professor
Trajano evoca a esperança de mudança da universidade brasileira.
Ele mesmo nunca ficou de braços cruzados esperando. Para escapar
desse registro formativo, recorreu à realização do doutorado na
Inglaterra, onde pôde realizar sua tese de doutoramento trabalhando
tematicamente a filosofia. O entusiasmo para formar filósofos, para
que os estudantes em filosofia sejam aprendizes de filósofos e não
apenas de comentadores e historiadores da filosofia, é uma
transformação operada de sua experiência no exterior, deixando-nos
um legado de convivência na UNESP certamente marcante. Como
ele próprio diz em entrevista: “Voltei numa outra encarnação. Como
123
professor, e também como pesquisador, orientador, estava muito
interessado em, responsável por, e comprometido com a missão de
contribuir com a formação temático-filosófica de meus alunos”
(MORAES; GIROTTI; 2013, p. 9). Nessa outra fase, não cansou
de transformar suas aulas, suas pesquisas, suas orientações, suas
participações em eventos na UNESP, enfim, sua convivência
universitária em uma prática de resistência ao instituído na
universidade brasileira. Tratou de defender, a partir de seu próprio
exemplo, que o filosofar é algo que se aprende através do exercício,
do estímulo, da problematização das temáticas filosóficas, e que o
futuro da filosofia no Brasil dependeria da correção das práticas e
dos pressupostos então instituídos em nossas universidades.
Quando pensamos na emergência da disciplina Questões da
filosofia e seu ensino, vemos o encontro de movimentações ocorridas
em frentes distintas, mas com muitas causas em comum, que se
reelaboram na UNESP e criam um cenário de tensão problemática
com as práticas hegemônicas de ensinar e aprender filosofia de nossa
universidade. É o encontro de dois projetos político-filosóficos
simultâneos: olhar filosoficamente para esse regime universitário em
suas entrelinhas e desdobramentos históricos, de modo a dar maior
densidade às críticas já realizadas pelo professor Trajano; e realizar
uma problematização filosófica da ensinabilidade e aprendibilidade
da filosofia, dando continuidade a esse recente projeto nacional,
cujas mudanças só podem acontecer, de fato, nas relações
microfísicas de cada universidade e curso de filosofia.
A adesão à proposta da disciplina, por parte dos estudantes,
certamente não tem a ver exclusivamente com a abordagem da
disciplina, mas com a possibilidade que os estudantes encontraram
124
condições discursivas para problematizar a distância entre os desejos
de filosofar e o curso de filosofia da UNESP. Muitos desses
estudantes tinham como modelo e já se amparavam nas
problematizações do professor Trajano, cuja convivência
universitária não só trazia uma outra relação formativa com a
filosofia, mas também um questionamento da maneira como a
universidade brasileira e a nossa universidade formavam os futuros
filósofos.
Para terminar essa seção, gostaríamos de trazer o
complemento do trecho utilizado na epígrafe, de modo a acentuar a
importância que o professor Trajano vislumbrava nessa inquietude
com o que está, em termos de filosofia, estabelecido em nossas
universidades brasileiras. Inquietude que, no caso da UNESP, ele
sempre foi um dos agenciadores. Não obstante o vasto domínio do
comentário de texto na produção e em nossa maneira de ensinar e
aprender filosofia na contemporaneidade, casualmente ocorrem
algumas movimentações contrárias, descontentes com a forma que
as coisas andam e em busca de uma reconfiguração da filosofia que
praticamos:
Essa situação anômala e crônica tem, felizmente, gerado um
descontentamento crescente entre professores e estudantes de
Filosofia no Brasil. E, na verdade, esse descontentamento é uma
das coisas mais valiosas que temos agora, tanto mais que ele vem
acompanhado do desejo de mudança, de reforma. Esses
portadores do desejo de mudança, de reforma filosófica, são
neste momento um contingente muito precioso. O
descontentamento com o estado de coisas comentarista e
associado ao desejo de mudança, são um sinal de seriedade e
125
profundidade filosóficas, de desejo de libertação do modo
dominante que trava e sufoca o ensino e a pesquisa em Filosofia
entre nós (ARRUDA, 2013, p. 52).
Considerações Finais
Desde 2017, a disciplina Questões da Filosofia e seu Ensino foi
integrada à grade curricular obrigatória apenas da licenciatura, a fim
de atender à reestruturação da carga horária promovida pelo
Conselho Estadual de Educação, CEE nº 111/2012. A questão
educacional da filosofia é ainda relegada a um segundo plano no
curso e os problemas de ensinar e aprender filosofia são associados
especificamente ao horizonte da educação básica, ao contrário do
que foi defendido desde a proposta inicial da disciplina. Se a
distância e a falta de experiência com a educação básica poderiam
supostamente justificar um posicionamento teórico mais
resguardado do departamento de filosofia em relação aos problemas
da licenciatura, tornando-a secundária nas preocupações
institucionais o que nem assim é justificável, conforme apontamos
na seção acima , são raras as problematizações próprias à
problemática do ensino de filosofia no registro universitário. Com a
morte do prof. Trajano, perde-se um companheiro crítico de nossa
formação filosófica e, a cada ano, forma-se uma série de filósofos,
bacharéis e licenciados em filosofia, sem, em muitos dos casos,
sequer serem questionados os sentidos dessa formação, os problemas
filosóficos envolvidos nesse percurso, sustentando um projeto
formativo no automatismo dos pressupostos e das práticas
instituídas uma atitude antifilosófica, por sinal.
126
Mesmo assim, toda a movimentação ocorrida em 2012 e o
oferecimento da disciplina Questões da Filosofia e seu Ensino em
caráter optativo nos anos seguintes foram importantes para
incentivar as discussões realizadas posteriormente em torno da
reestruturação do curso de filosofia da UNESP, e, de certa forma,
prepararam o terreno para a criação de mais duas disciplinas
filosóficas em torno da filosofia e seu ensino, então intituladas
Prática de Ensino I e II, atualmente sob nossa responsabilidade. Em
uma primeira análise, a criação dessas duas disciplinas, mais a
inserção obrigatória da Questões da Filosofia e seu Ensino pode
associar-se estritamente à demanda da resolução CEE n. 111/2012,
exigindo um número maior de disciplinas “didático-pedagógicas” na
formação das licenciaturas. Em outras palavras, essas disciplinas
podem ser consideradas uma justificativa institucional ao art. 10 de
tal resolução na medida em que ambas ofereceriam o
aprofundamento de “didáticas e das metodologias de ensino próprias
dos conteúdos a serem ensinados”, no caso específicas à área de
filosofia. Existindo ou não o debate filosófico em torno do ensino de
filosofia, possivelmente disciplinas seriam criadas para cumprir a
carga horária demandada, as quais burocraticamente poderiam ser
justificadas nesse registro específico de problematização. Entretanto,
o início de uma problematização filosófica do ensino de filosofia deu
a possibilidade de o curso ter, de fato, um espaço institucional de
três disciplinas responsáveis por trazer essas discussões no registro
filosófico que elas demandam, abordando as próprias especificidades
inerentes à ensinabilidade e aprendibilidade da filosofia, por
exemplo. Atualmente, a proposta disciplinar das Questões da Filosofia
e seu Ensino é ampliada e desenvolvida na Prática de Ensino I e II,
127
assumindo esse compromisso filosófico com o ensino de filosofia,
apesar das práticas educativas da filosofia serem ainda deflacionadas
se comparadas com a formação do bacharelado no curso não são
raros os relatos dos estudantes, que se somam à nossa percepção, do
desprestígio que os projetos da licenciatura, tal como o PIBID,
sofrem se comparado às pesquisas de iniciação científica.
Ainda que apenas para os estudantes de licenciatura, essas
três disciplinas são usadas como espaços-institucionais com o intuito
de tensionarmos os porquês nós ensinamos e aprendemos filosofia
de determinada maneira e não de outra, os problemas filosóficos do
ensino e da aprendizagem da filosofia. Percebemos, com isso, que
muitos estudantes se inquietam com os pressupostos e as práticas
estabelecidas, e que têm, por sua vez, algumas críticas ao estado de
nossa formação filosófica. Isso ainda é pouco. Faltam-nos espaços na
universidade que permitam uma problematização da ordem vigente,
e se criem outras possibilidades de fazer, ensinar e aprender filosofia.
Talvez com os textos que permearão a presente coletânea, cada um
trazendo sua experiência e apresentando as memórias de todas as
tensões e desafios enfrentados para repensar o nosso curso de
filosofia, as fagulhas de perplexidades possam ser estimuladas e
passem a voltar, com maior frequência, a habitar nossas relações
acadêmicas.
A movimentação em torno da proposta disciplina, desde a
demanda dos estudantes do ENFILO até a incorporação da bandeira
pelos estudantes do curso e a associação do prof. Trajano, amplificou
o que era propriamente uma política de trabalho restrita ao ENFILO
e se transformou em uma política-filosófica de resistência ao
instituído na UNESP. Entre as pressões, os silenciamentos e as
128
disputas institucionais pelo espaço da filosofia, surgiram uma série
de pesquisas iniciações científicas e docentes, dissertações e
doutorados , novas disciplinas foram criadas, professores que hoje
habitam a salas do ensino médio e das universidades foram
formados, levando adiante uma política-filosófica de pensar
filosoficamente a filosofia, seu ensino e aprendizagem. Talvez só com
esses acontecimentos que os integrantes do ENFILO puderam sentir
a importância de territorializar os problemas do ensino de filosofia
no terreno da própria filosofia na contemporaneidade. Por certo,
perceberam que a construção de novos espaços para se praticar a
filosofia dentro da universidade e na escola passa por uma resistência
constante às nossas heranças universitárias, o que significa também
uma luta pelo alargamento dos limites institucionais impostos pelo
selo da tradição.
Olhando a trajetória dos nossos recentes passos na
universidade, seria impossível desvincular nossa formação de todos
os encontros suscitados pela participação nas movimentações por
um curso de filosofia mais próximo do que almejamos. Como dizia
o professor Trajano, o descontentamento com o estado de coisas é
um sinal de seriedade e profundidade filosófica, nesse caso, é um
compromisso consigo e com o curso de filosofia, uma política-
filosófica, que estudantes e professores são convidados a integrar na
condição de filósofos.
129
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133
Reflexões acerca da formação em Filosofia na UNESP
através dos porqs e contribuições de uma disciplina
sobre as “Questões da filosofia e seu ensino”
Amanda Veloso GARCIA
1
“Não se deixe dominar pela inércia do hábito”.
(Antonio Trajano Menezes Arruda, 2011, p. 18)
“Como é possível que o cânone do pensamento em todas as
disciplinas das ciências sociais e humanidades nas universidades
ocidentalizadas (Grosfoguel, 2012) se baseie no conhecimento
produzido por uns poucos homens de cinco países da Europa
Ocidental (Itália, França, Inglaterra, Alemanha e os Estados
Unidos)?
Como foi possível que os homens desses cinco países alcançaram
tal privilégio epistêmico ao ponto de que hoje em dia se considere
o seu conhecimento superior ao do resto do mundo?
[...] Por que o que hoje conhecemos como teoria social, histórica,
filosófica, econômica ou crítica se baseia na experiência sócio-
histórica e na visão de mundo de homens destes cinco países?
Como é que no século XXI, com tanta diversidade epistêmica
existente no mundo, estejamos ancorados em estruturas
epistêmicas tão provincianas camufladas de universais?”.
(Ramón Grosfoguel, 2016, p. 26-27)
“aqui, em nosso Departamento, a história da
filosofia faz as vezes de filosofia” (Paulo Arantes, 1994, p. 135)
1
Professora de Filosofia do IFRJ/Pinheiral. Email: amanda.garcia@ifrj.edu.br
134
Introdução
Neste capítulo me proponho a pensar o que envolveu o
debate acerca da inserção da disciplina “Questões da filosofia e seu
ensino” e de que modo seus desdobramentos impactaram na
formação em Filosofia na UNESP. Para isso, refletirei também sobre
acontecimentos que se seguiram ao oferecimento desta disciplina a
fim de apontar seu impacto no corpo discente. Devido à importância
do Prof. Antonio Trajano Menezes de Arruda para seu
oferecimento, bem como para o curso de Filosofia da instituição
como um todo, o que aprendi com ele será eixo central das reflexões
que serão realizadas. Pretendo com isto apontar as contribuições e
limites da formação filosófica que recebi, refletindo de que modo
isto impactou em minha atuação enquanto docente de Filosofia e
como filósofa.
Portanto, o capítulo contará com duas seções. A primeira
versará sobre a formação que recebi, trazendo experiências pessoais e
as reflexões do Prof. Trajano sobre os cursos de Filosofia no país. Na
segunda seção, discutirei o que aprendi para além das salas de aulas,
conectando com a importância de inserção da disciplina “Questões
da filosofia e seu ensino” para a reestruturação de curso e os
Encontros de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP e
Encontros de Pesquisa na Pós-graduação em Filosofia da UNESP.
135
Filosofia nas “grades” curriculares: qual forma(ta)ção filosófica
recebemos?
Para delinear qual formação filosófica recebi no curso de
Filosofia da UNESP, começarei esta seção trazendo o que consta em
referenciais oficiais do curso e levantando algumas questões. No site
da instituição
2
encontra-se o seguinte perfil almejado para o curso
de Filosofia:
A vocação que se espera do estudante de filosofia é o interesse
por assuntos abstratos e o gosto de refletir sobre diferentes
respostas à mesma indagação teórica. O prazer de ler e estudar
e a satisfação de dominar línguas estrangeiras, tanto grego e
latim, quanto inglês, francês, alemão e italiano (que pouco a
pouco se tornam familiares, dada a importância que têm para a
pesquisa em filosofia),o também desejáveis. Vida cultural
ativa, consciência política e presença constante na biblioteca são
o tempero e o charme do estudante e do pesquisador (UNESP,
2007, n. p.).
Já no “Projeto Pedagógico”, consta o seguinte perfil:
O bacharel em Filosofia é profissional capacitado ao trabalho
de docência e pesquisa no ensino superior, plenamente
habilitado para o trabalho intelectual, desenvolvendo ensaios
cuja característica é a originalidade da reflexão, bem como
comentários de alta especificidade técnica e erudição histórico-
2
https://www.marilia.unesp.br/#!/graduacao/cursos/filosofia/perfil-profissional/
136
filológica. Igualmente familiarizado com a técnica da
“explicação de texto”, tornando-a privilegiado instrumento do
ensino da Filosofia no 2o. grau, o licenciado deverá, também,
promover o contato produtivo de seus alunos com os mais
significativos movimentos da cultura ocidental, no domínio das
ciências e das artes (UNESP, 2010, p. 1).
Mais adiante o documento afirma que a “História da
Filosofia” é a ““espinha dorsal” da estrutura curricular” (UNESP,
2010, p. 1), sendo a fonte para o desenvolvimento e “comentários
de alta especificidade técnica”. Sobre o ensino de filosofia afirma que
“no segundo grau passa significativamente pela mediação do livro
didático” (UNESP, 2010, p. 3) e, portanto, o treinamento na
“explicação de texto”, comum ao Bacharelado e a Licenciatura, é a
principal ferramenta do graduado na instituição. Algumas perguntas
emergem a partir disso: por que a História da Filosofia é a “espinha
dorsal da estrutura curricular”? Por que o ensino de filosofia deve ser
mediado pelo livro didático e a explicação de texto? As fontes
primárias da filosofia são os autores consagrados do ocidente ou o
mundo?
Considero que não é um mero detalhe que a história da
filosofia apareça em letras maiúsculas no documento, pois não se
trata de qualquer hisria do pensamento filosófico, mas sim de uma
“história única”, patriarcal e eurocêntrica, nos termos apontados
pela nigeriana Chimmamanda Ngozi Adichie (2009). Isto motiva a
pensar por que a instituição omite a palavra “Político” na expressão
“Projeto Pedagógico”, embora seja senso comum a compreensão de
que todo documento desse tipo é um “projeto político-pedagógico”.
137
Até mesmo porque, pelo que vou discutir neste capítulo, tal
documento não pode ser considerado em nenhum sentido neutro.
Para refletir sobre tais aspectos, trarei minha experiência com
o curso, pois, ainda que documentos oficiais revelem ideologias
centrais, a maior parte da formação está para além das ementas
curriculares, embora estas digam muito sobre os cursos. Tal
formação oculta aparece na maneira como os temas são abordados,
nas práticas de ensino, nos parâmetros avaliativos, na escolha das
palavras pelos docentes, entre outros, é desta forma que aprendi o
que deveria pensar sobre a filosofia.
Logo no primeiro semestre, tive aulas com o Prof. Antonio
Trajano Menezes de Arruda. Durante esses momentos, as
expectativas que tinha sobre o curso encontraram lugar, foram
acolhidas, pensadas coletivamente, viradas ao avesso pelos
questionamentos que as aulas e a presença do Prof. Trajano
inspiravam. Suas aulas se caracterizavam por serem especialmente
provocativas, incentivando a participação discente e a elaboração de
ideias próprias a partir de temas filosóficos. No entanto, pareciam
um mundo à parte, pois, na grande maioria de disciplinas que tive
durante a formação, uma perspectiva bastante restrita do
pensamento filosófico ecoava.
Com poucas exceções, recebi uma formação exclusivamente
pautada em filósofos europeus e estadunidenses, em sua quase
totalidade homens brancos. Aprendi que não era, e talvez nunca
seria, filósofa e que precisava me ater a entender tais autores, sem
refutar, para não “arrombar portas abertas”, frase que ouvi diversas
vezes durante o curso. Isso fica evidente na análise de documentos
138
como este supracitado, que em nenhum momento apontam como
um dos objetivos de o curso de Filosofia formar filósofos/as/es. Nos
documentos oficiais das graduações em Filosofia no Brasil é difícil
encontrar como objetivo transformar discentes em filósofos/as/es, é
um legítimo tabu se colocar nesse lugar, que é visto como restrito a
poucos “gênios iluminados” ou àqueles que possuem Doutorado em
Filosofia. Assim, também aprendi que precisava me inserir nessa
racionalidade universal e sua correspondente metodologia, que
exigia que a filosofia a ser escrita em uma linguagem específica e
também em línguas específicas, como podemos observar no perfil
almejado supracitado e que procurava fazer com excelência a
reprodução do pensamento de tais autores consagrados europeus. As
tentativas de pensar os problemas cotidianos que me afetavam de
forma autônoma, sem me amparar em filósofos europeus e
estadunidenses, eram vistas como algo a ser evitado, um desvio,
como algo não rigoroso e até mesmo ingênuo. Não podemos
esquecer que a linguagem está intrinsecamente relacionada ao
pensamento, de maneira que a opção por uma língua implica na
adoção, e ao mesmo tempo na limitação, de um sistema amplo de
pressupostos e conceitos que são expressos por ela. Nesse sentido, o
incentivo ao aperfeiçoamento de línguas como “inglês, francês,
alemão e italiano” (UNESP, 2007, n. p.) funciona como uma forma
de incentivar a reprodução de seus pensamentos e de sua
racionalidade específica, que não costuma ser associada às línguas
não europeias. Ainda que tais línguas possam funcionar como
ferramentas interculturais, em um contexto em que apenas um rol
restrito de saberes tem espaço, o resultado é o fomento de uma
racionalidade restrita aos interesses dominantes, pois não se trata de
139
um aprendizado para o diálogo, mas sim para a leitura e reprodução
adequada dos textos originais.
Tal contexto inicialmente me levou a um sentimento de
incapacidade, pois eu não cumpria os requisitos da filosofia que era
imposta. Os anseios que me fizeram gostar de filosofia estavam
bastante distantes desses espaços de formação universitária. No
entanto, o Prof. Trajano me possibilitou compreender tal cenário, o
que fez com que eu não desistisse do curso. Ele distinguia a filosofia
no Brasil em três modalidades existentes: a) História da filosofia, b)
Comentário de filósofos, c) Filosofia propriamente dita. A história
da filosofia corresponderia a uma descrição detalhada que visa a
apontar a continuidade ou ruptura ocorrida no pensamento
filosófico de diferentes períodos. Por sua vez, o comentário de
filósofo constitui-se da análise do pensamento ou de algum conceito
específico da obra de um filósofo. Por fim, para ele, a filosofia
propriamente dita é de cunho temático e não se restringe à
reprodução do pensamento de um filósofo ou período histórico,
trata-se da criação de pensamento através do contato com
problemas.
O Prof. Trajano (ARRUDA, 2013, p. 14) considerava a
Missão Francesa na USP um pecado original da filosofia brasileira,
pois os professores franceses que participaram do início do curso de
Filosofia da USP marco da filosofia profissional no Brasil
pertenciam a uma única vertente da filosofia: o comentário de
filósofos. Para evitar o que era entendido pelas elites brasileiras como
“consequências desastrosas do autodidatismo na filosofia”, as bases
das graduações da área foram elaboradas por professores estrangeiros
que tinham como referência exclusivamente outros estrangeiros e
140
uma metodologia específica. Os professores franceses convidados
para dar início ao curso de Filosofia da USP concordavam sobre a
necessidade do estudo da tradição como única forma possível de se
aproximar do filosofar. Por isso, propuseram um método que se
ativesse à leitura e análise focada na lógica interna de textos sem
extrapolar os domínios da sua coerência própria, apenas
reconstruindo e compreendendo seus argumentos e teses, supondo,
é claro, a possibilidade de objetividade diante de um texto filosófico.
Haja vista que tais docentes formaram em grande parte os
futuros docentes dos cursos de outras universidades, o método que
utilizavam se espalhou pelas graduações como sinônimo de
“filosofar” e gerou um afastamento da filosofia da vida cotidiana e,
principalmente, do contexto social. O mesmo se propagou no ensino
de filosofia escolar uma vez que docentes têm origem em graduações
que, em geral, mantêm os mesmos preceitos. Não à toa, são poucas
as pesquisas desenvolvidas sobre temas contemporâneos que não se
prendam de modo subalterno aos filósofos estrangeiros consagrados.
O argumento para a vinda de tais docentes franceses era a
suposta falta de rigor do pensamento brasileiro, o que tem relações
profundas com os processos coloniais. Entre os argumentos mais
recorrentes para afirmar que não há filosofia no Brasil estão as ideias
de que somos uma nação em desenvolvimento e, portanto, imatura
em comparação com países europeus, e, por outro lado, a ideia de
que a população nacional não apresenta uma vocação à aspiração
metafísica, tendo um pensamento muito ligado ao domínio
supostamente superficial das “coisas visíveis”. Entendo que ambas as
ideias partem de uma perspectiva colonizadora, pois desconsideram
que o território não “nasceu” com a invasão europeia, invisibilizando
141
a história de milhões de pessoas que já viviam no que hoje é
considerado “Brasil”. Além disso, não reflete sobre a complexidade
dos saberes que existem para além da metafísica e nem de outras
metafísicas e que se expressam de múltiplas formas no cotidiano.
Ainda que a ideia do “conhecer para refutar” seja sensata, o
método propagado na USP, e que reverberou profundamente em
minha formação, exige um foco tão grande na leitura dos textos que
o momento de refutação nunca ganha espaço. Nesse sentido, em
minha formação tal método produziu um sentimento de
inferioridade do pensamento que emerge em nosso território e do
meu próprio pensamento. Tendo em vista que a universidade
brasileira oferece uma formação quase que inteiramente voltada para
o desenvolvimento do comentário de filósofos clássicos, ela
colabora para que o Brasil tenha “muitos hermeneutas e
historiadores da filosofia, e poucos filósofos” (DOMINGUES,
2000, p. 44). Além do que essa formação específica no comentário
de filósofo constitui-se como problema por inibir a criatividade de
discentes, ensinando-os apenas a repetir as ideias contidas em textos,
e também por estabelecer um padrão único, eurocêntrico e patriarcal
para o filosofar. Nesse sentido, ser capaz de reproduzir os filósofos
da Europa consistiu num modo de civilizar-se.
A vinculação da filosofia com a produção de saberes
europeus hegemônicos não colabora para o desenvolvimento do
filosofar em outros contextos e territórios. A diversidade de
pensamento parece ser importante para áreas que, tal como a
filosofia, visam a produzir pensamento autônomo e a evitar o
dogmatismo, uma vez que o contato com o outro permite a
percepção de outros modos de ser no mundo e das limitações de
142
nosso pensamento. Sendo assim, a diversidade se mostra um recurso
importante para o enriquecimento do pensamento, o que é
silenciado por uma filosofia pautada exclusivamente em um único
método.
O comentário de filósofos costuma se configurar em grande
medida como comentário exegético de tipo escolástico, haja vista
que esse foi o método empregado pelos professores franceses
conhecido sob o nome de método estruturalista. Se opondo a
compreensão dos sistemas filosóficos a partir de seu tempo histórico,
tais docentes franceses viam no comentário exegético a única forma
de entender um sistema filosófico através de explicações sobre o
movimento interno lógico a um texto. No entanto, a explicação
acrítica de sistemas filosóficos, ignorando seus contextos sociais e
políticos, e focando apenas em movimentos internos a textos, não
leva necessariamente a uma postura filosófica do presente. E talvez
não leve nem a compreensão do próprio sistema filosófico. Por isso,
é essencial descontruir a ideia de que o comentário de filósofo
significa história da filosofia, uma vez que o que faz, na maioria das
vezes, é justamente deixar a história de lado e reduzir o filosofar a
explicações, diversas vezes explicações de explicações quando a
referência é o comentador e não o texto original, o que mostra que
tal método, além de não olhar para os problemas filosóficos, pode
deixar a própria filosofia de lado.
É importante observar que ainda que o comentário de
filósofo seja um marco na forma de compreender a atividade
filosófica no Brasil, ele pode ser entendido não como causa, mas
como uma consequência da colonialidade, de maneira que
professores da Missão Francesa na USP não podem ser diretamente
143
responsabilizados pelo contexto atual da filosofia no Brasil.
Contudo, podemos dizer que a filosofia praticada na academia
brasileira tem suas raízes na colonização, pois, de um lado, as
hierarquias coloniais estabeleceram a hegemonia do pensamento
europeu e a relação subalterna dos povos que compõem nosso
território, e, de outro, a colonialidade fez com que a implantação do
curso de Filosofia da USP tivesse como referencial a filosofia
europeia. Como afirma Paulo Margutti (2013, p. 34), “Em virtude
de nossa autoimagem negativa, esse método não foi adotado entre
nós para o estudo de pensadores brasileiros, ficando restrito aos
estrangeiros, considerados mais dignos das atenções acadêmicas”.
A adoção do comentário exegético mantém uma relação
subalterna com os autores. Mesmo nas poucas iniciativas que
existem de refletir sobre filosofias brasileiras, é utilizada a mesma
metodologia, mantendo a relação de se ater a apenas comentar tais
pensamentos a partir das estruturasgicas do texto. O comentário
de filósofo pode realmente colaborar para pensarmos os problemas
que afetam a realidade que vivemos? Tal metodologia pode
colaborar para um ensino de filosofia significativo para os problemas
e desafios contemporâneos? O pensamento propriamente filosófico
parece nascer na experiência cotidiana, do que nos afeta enquanto
seres situados no mundo, de modo que a mudança de autores pode
não ser suficiente para uma filosofia que busque colaborar com a
realidade que vivemos. É preciso repensar as metodologias,
questionando profundamente as categorias que fundamentam o
pensamento filosófico hegemônico.
Esse modelo de filosofia propaga uma ontologia hegemônica
na qual o homem branco europeu é a matriz referencial. Portanto, é
144
uma ontologia do ser eurofalogocêntrica, porque define como
superior um padrão europeu, masculino e baseado em um
determinado tipo de racionalidade logos –. Tal modelo
universalista propaga uma ideologia subalterna que faz com que não
nos vejamos como capazes de filosofar e silencia a possibilidade de
qualquer filosofia a partir do contexto brasileiro. Desse modo,
passamos a entender que problemas de filósofos europeus e
estadunidenses como se fossem nossos, cometendo o grande
equívoco de aplicar suas soluções para nossos contextos, o que nos
impede de ver quais são os nossos reais problemas porque estamos
presos a entender suas teorias. Assim, a formação que é fomentada
através do uso exclusivo do comentário de filósofo não incentiva a
pensar os problemas da nossa realidade e nem a buscar soluções
próprias e coletivas a eles, o que é essencial para que nossa atuação
enquanto filósofos/as/es não se restrinja a criar explicações sobre a
realidade, mas que possa contribuir para transformá-la efetivamente.
A afirmação de que os problemas são universais não se
sustenta porque a relação dos conceitos com seus contextos é
essencial. Quando analisamos o que os europeus entendem por
liberdade e qual o sentido deste conceito para pessoas colonizadas,
fica evidente que aquilo que garante a liberdade para os primeiros
pode significar escravidão para os outros. Até mesmo porque parte
dos problemas que vivenciamos enquanto brasileiros/as/es é
consequência de conceitos e teorias elaboradas por filósofos
europeus, por isso, infelizmente é abundante o acervo de racismo e
sexismo na história única e oficial da filosofia ocidental. Portanto, a
filosofia hegemônica, com seus conceitos eurofalogocêntricos,
145
encobre a realidade que vivemos e pode nos impedir de enxergar os
problemas que nos afetam.
O que o Prof. Trajano entendia como um pecado original
da filosofia no Brasil, prefiro entender nos termos de uma praga, até
mesmo para nos distanciarmos de um vocabulário que remete à
religião hegemônica que tanta violência promoveu em nosso
território, embora essa associação faça sentido uma vez que tal
filosofia hegemônica também produz violência. Minha preferência
pelo uso do termo “praga” tem a ver com seus sentidos e uso. Os
seres que são vistos como “praga” pela monocultura desempenham
importantes funções para a vida existir nos diferentes solos que
compõem. A grande proliferação que vemos nas plantações é na
verdade o sinal de um desequilíbrio ecológico decorrente da
alienação dos seres de suas ecologias específicas e companheiros
interespecíficos, especialmente pela comercialização de
réplicas/clones em viveiros industriais que levam junto consigo
fungos e bactérias para as quais os seres de seus novos nichos
ecológicos não têm resistência suficiente. Assim, fungos
sequestrados de seus nichos ecológicos podem gerar devastação em
outros contextos, prejudicando plantas nativas e outros seres vivos.
A partir desta perspectiva, entendo o comentário de filósofo como
uma praga na formação em filosofia no Brasil. Na história da
filosofia profissional do país, por sua relação com a colonialidade,
incentivou-se extrair filosofias de um contexto no qual existem
relações intrínsecas sociais, interespecíficas, cosmopolíticas,
ignorando tais condições como determina o método estruturalista,
e aplicá-las em um contexto diverso em todos os sentidos. Do
mesmo modo como os fungos que são entendidos como pragas,
146
retirados de seus companheiros interespecíficos e colocados em
outro contexto, para o qual as relações cosmopolíticas não são as
mesmas que os impediam de proliferar. Nesse sentido, o comentário
de filósofo se tornou praga no contexto brasileiro, proliferou sem
qualquer condição de controle sobre suas implicações e alienado de
seus contextos, pois o que aprendemos a fazer nas graduações é ler
quaisquer filosofias de maneira alienada, desconsiderando seus
determinantes sociais e políticos, e também ignorando nossas
próprias relações sociais e políticas.
Portanto, podemos dizer que pouca filosofia propriamente
dita é feita nas graduações em Filosofia no Brasil. Por outro lado,
também é possível afirmar que há o fomento a um distanciamento
da filosofia da vida cotidiana e da sociedade como um todo, haja
vista que há pouco direcionamento para pensar problemas,
praticamente nenhum espaço para pensar problemas que tenham
relação com o contexto brasileiro. A filosofia que fez parte da minha
formação faz jus à expressão “grade curricular”, haja vista que
aprisiona o filosofar em uma perspectiva restrita e que, inclusive,
colabora para opressões que vivemos no sistema-mundo. Essa
filosofia produz subalternidade, ensina qual o nosso lugar no
sistema-mundo capitalista. Parece que no Brasil a elitização do
filósofo caiu como uma luva aos interesses de dominação herdados
da colonização. Considero que nesse modelo de formação filosófica
são empobrecidos tanto a vida quanto os próprios livros. Enquanto
os livros se reduzem, na melhor das hipóteses, a uma repetição de
suas ideias, tanto por docentes quanto estudantes, as vidas se
distanciam cada vez mais das salas de aula e, consequentemente, da
própria filosofia. Nessa perspectiva, o “interesse por assuntos
147
abstratos” representa, ao mesmo tempo, um distanciamento dos
problemas próprios de cada contexto e uma negação dessa filosofia
em contextualizar seu próprio pensamento.
A fim de incentivar a pensar problemas, o Prof. Trajano
trouxe para o curso as tutorias. O modelo de tutoria tem o foco no
estudante, por meio de uma filosofia que se faz pensando junto com
o docente. Porém, o contexto apresentado aqui, fez com que a
tutoria se transformasse em mais um espaço de reprodução do
comentário de filósofo. Tive a oportunidade de fazer tutoria com o
Prof. Trajano, que propunha que escolhêssemos em uma lista um
tema que nos interessasse refletir e, a partir dele, escrevêssemos
nossos argumentos. A cada semana, ele apresentava problemas
decorrentes de meus argumentos e eu reescrevia o texto, pensando
juntos e sem necessidade de citar ninguém. Ele não foi o único
docente que me possibilitou pensar problemas, mas o que estou
pontuando com a reflexão deste capítulo é que, em um curso de
Filosofia, tais momentos não deveriam ser exceção. Como é possível
um curso de Filosofia não incentivar o filosofar? Foi a escassez de
tais espaços que me motivou a buscar formação para além das aulas,
como apresentarei na próxima seção.
Filosofia nas frestas: que filosofar aprendemos?
Quando em 2012, com a colaboração do Prof. Trajano, o
Prof. Rodrigo Pelloso Gelamo propôs uma disciplina optativa acerca
dos “Problemas filosóficos do ensino e da aprendizagem da
Filosofia”, a ser incluída no primeiro semestre de 2013, certamente
148
não imaginava os desdobramentos posteriores e nem a importância
que o debate promovido por ela teria para os/as/es estudantes nos
anos seguintes. A proposta da disciplina foi para atender os anseios
dos/as/es estudantes, uma vez que grande parte do corpo estudantil
da época havia escolhido o curso motivado pela inserção, em 2008,
da disciplina de Filosofia como obrigatória no Ensino Médio. Logo,
tais turmas se preocupavam com sua formação no que diz respeito à
docência e sentiam que este debate era ignorado.
Como não há uma definição única do que é filosofia na
história que não seja passível de contestação, seu ensino está
permeado por reflexões filosóficas sobre o que ela é e suas
possibilidades de transmissão, mas também sobre a relação entre o
filosofar e a aprendizagem. Contudo, apesar de evidente que o
ensino de filosofia deve ser problema de filósofos/as/es que
conhecem suas especificidades, a disciplina foi inicialmente
recusada, mesmo sendo proposta como optativa. Em uma das atas
de reunião do Departamento de Filosofia ocorrida no dia 31 de
outubro de 2012, consta o seguinte:
A seguir, comunicou que, o prof. Rodrigo Gelamo, do Depto.
de Didática apresentou uma proposta de oferecimento da
disciplina “Problemas Filosóficos do Ensino e Aprendizagem
da Filosofia”, como optativa, aos alunos do Curso de Filosofia
juntamente com o prof. Trajano, ficando o prof. Rodrigo como
responsável pela disciplina em questão. Os docentes presentes
indagaram se o prof. Trajano, na condição de voluntário, está
engajado no oferecimento da referida disciplina. Algumas
sugestões foram apresentadas, tais como: o prof. Tassinari
sugeriu que o prof. Trajano encaminhe um ofício ao Depto. de
149
Didática dizendo que acha importante o oferecimento da
disciplina e que o Depto. apóia a iniciativa do prof. Rodrigo,
tendo em vista o conteúdo da proposta. O discente Elói acha a
disciplina importante, mas depende muito em que o aluno
busca sua formação. Considera que o aluno deva escolher a
disciplina eletiva de acordo com a modalidade de Bacharelado
ou Licenciatura. Mesmo assim, na condição de aluno,
considera interessante a disciplina proposta pelo prof. Rodrigo.
O prof. Lúcio acha que não é o momento para se discutir a
questão. A maneira mais racional será colocar a discussão na
reestruturação curricular do Curso de Filosofia, o que irá
ocorrer brevemente, em 2013, para vigorar em 2014. Após
ampla discussão sobre o assunto, foi aprovada a proposta do
prof. Lúcio: postergar a discussão para mais alguns meses, por
ocasião da reestruturação curricular. Portanto, se o prof.
Rodrigo quiser oferecer a disciplina em 2013 através do Depto.
no qual está lotado, poderá fazê-lo (ATA Nº. 326/2012, p. 1).
Isto foi decidido no Departamento de Filosofia, órgão que
não era paritário e nem o espaço para decisões do tipo, o que gerou
insatisfação por parte de estudantes que, como eu, gostariam de
cursar tal disciplina e, por diferentes motivos, não poderiam
aguardar mais um ano para isso. O que motivou debates em
assembleia estudantil e um abaixo-assinado, no qual solicitavam que
o debate fosse realizado no Conselho de Curso de Filosofia, órgão
com representação igualitária entre docentes e discentes, e que os
proponentes da disciplina fossem convidados para o debate. Vale
ressaltar que, como pode ser verificado na mesma ata, não se fazia a
diferenciação adequada entre as reuniões do Departamento de
Filosofia e do Conselho de Curso, e nem de que debates deveriam
ser realizados em cada instância, privilegiando o primeiro espaço
150
para as decisões, uma vez que era difícil conseguir quórum para a
reunião do Conselho por parte dos docentes. Diferentes argumentos
apareceram para justificar a recusa da disciplina, entre eles que o
docente em questão não pertencia ao Departamento de Filosofia,
que a disciplina deveria ser oferecida pelo Departamento de Didática
por não ser da área da Filosofia, que o conteúdo da disciplina não
era filosófico, e, como consta na ata acima, até mesmo foi colocado
em dúvida se o Prof. Trajano estava envolvido com a proposta.
O incômodo por parte dos/as/es estudantes gerou três cartas,
nas quais pressionavam para que a discussão acontecesse no
Conselho de Curso, na qual a participação discente seria
considerada. Embora conste na ata acima que seria “mais racional
adiar o debate sobre a disciplina para a reestruturação de curso, o
que é considerado “racional” nesse caso é a exclusão dos/as/es
discentes do debate, e, portanto, não significava simplesmente o
adiamento de uma disciplina, como procurarei mostrar a seguir
trazendo acontecimentos e documentos subsequentes.
Após a reação estudantil, foi marcada a reunião do Conselho
de Curso, que contou com a participação do Prof. Trajano. Diante
desse cenário, os/as/es estudantes compareceram em massa à
reunião, o que incomodou um dos docentes que disse que cancelaria
a reunião se os/as/es discentes que não eram representantes
continuassem na sala. Tal fala fez com que o Prof. Trajano afirmasse
que se os/as/es discentes saíssem ele se retiraria, já que também não
era representante docente, e que não havia motivo para se incomodar
com a presença estudantil, de maneira que o docente em questão
não pôde manter sua posição naquele momento, considerando a
importância que o Prof. Trajano tinha para a história do curso como
151
um todo. Tal situação evidencia o que o Prof. Trajano significava
para o corpo estudantil e a importância que ele teve para muitas
gerações de discentes, mas especialmente para tal geração que
presenciou momentos como esse. Na maioria dos espaços a
participação estudantil não era valorizada, ao contrário, se
incomodavam quando os/as/es estudantes solicitavam participar de
processos que envolviam o curso e especialmente quando
discordavam dos rumos indicados pelo Departamento.
Diante de tal situação, um dos representantes discentes da
época propôs que se a questão era o Departamento que ofereceria a
disciplina, o Prof. Trajano, como docente do Departamento de
Filosofia, poderia assumir a disciplina e o Prof. Rodrigo seria o
colaborador, invertendo a proposta inicial. Até porque os debates da
disciplina seriam de interesse dos/as/es graduandos/as/es do curso
mais do que qualquer outro. O Prof. Trajano concordou com o
encaminhamento e, não havendo mais argumentos para recusá-la, a
disciplina foi oferecida como optativa no primeiro semestre de 2013.
É importante ressaltar que o incômodo se voltava especialmente para
o Prof. Rodrigo, que, trazendo debates sobre o ensino de filosofia
em suas aulas e no Grupo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino de
filosofia (ENFILO) que coordenava, dava vazão a desconfortos
sentidos pelos discentes com relação ao Departamento de Filosofia.
Assim, havia um esforço contínuo em desqualificá-lo como filósofo,
o que não ocorria com o Prof. Trajano. Por isso, diante do aceite do
Prof. Trajano em ser docente da disciplina, não houve qualquer
argumentação contrária. Também houve uma mudança no título da
disciplina para “Questões da filosofia e seu ensino”, desconsiderando
parte da proposta política da disciplina elaborada inicialmente, que
152
visava a defender o caráter filosófico dos problemas que envolvem o
ensino de filosofia.
Esta foi uma das últimas disciplinas ministradas pelo Prof.
Trajano antes de seu falecimento, foi uma experiência marcante para
quem, como eu, pôde participar de tais debates. Ambos os docentes
valorizavam muito a participação discente e tinham como temas das
aulas os problemas que envolvem o ensino e a aprendizagem em
filosofia, deixando evidente de que se conectavam com questões
diversas do ensino e da aprendizagem em outras áreas do saber.
Também é importante lembrar que a mobilização estudantil
em prol da disciplina promoveu o estabelecimento ao final de 2012
do Centro Acadêmico de Filosofia “7 de Novembro”, órgão que
estava desativado desde 2010. O nome da chapa faz referência à data
da assembleia em que se discutiu sobre a recusa da disciplina optativa
em questão, sendo um acontecimento importante para a
movimentação estudantil que se deu nos anos seguintes.
Os debates sobre a disciplina colaboraram, entre outras
coisas, para as propostas dos/as/es estudantes para a reestruturação
de curso e, especialmente, para os eventos realizados pelos/as/es
discentes nos anos seguintes. Durante o ano de 2013, devido a
algumas mudanças na legislação referente às Licenciaturas das
universidades estaduais paulistas
3
, foi necessário reformular o curso.
Tão logo o corpo estudantil soube disso, iniciou uma movimentação
para que discentes pudessem participar de tal processo, trazendo o
que identificavam como necessário para que o curso tivesse uma
formação adequada para o contexto contemporâneo. Sentíamos que
3
Tal mudança foi decorrente da Deliberação CEE n° 11/2012.
153
os desafios contemporâneos estavam distantes do curso, haja vista
que as diferentes disciplinas se dedicavam especialmente a debates
monográficos sobre autores europeus ou estadunidenses, raramente
refletindo sobre problemas que afetavam a filosofia na atualidade
como, por exemplo, filosofias que não fossem eurocentradas, mas
também seu ensino na educação básica, que ainda era recente e trazia
diversas questões à tona.
O processo de reestruturação estava sendo conduzido no
Departamento de Filosofia, é importante lembrar que o curso de
Filosofia não é formado apenas por docentes do Departamento de
Filosofia, reduzir suas decisões a esta instância empobrece as
perspectivas que compõem curso. Além de reivindicar sua
participação nos debates sobre a reestruturação, no espaço das
assembleias de curso o corpo discente passou a se preparar para tal
participação através de debates, organização de eventos que
trouxessem formação sobre as lacunas que sentiam no curso e,
especialmente, por meio de um grupo de estudos. Neste grupo de
estudos, do qual participei ativamente durante todo o processo,
discentes se reuniam para discutir documentos oficiais do curso de
Filosofia da UNESP e de outros cursos renomados, e os documentos
nacionais que regiam os cursos no Brasil. Com esta experiência,
ficou evidente para nós que diversos argumentos que ouvíamos para
deslegitimar as demandas dos/as/es estudantes não se sustentavam e
consistiam na verdade em posições políticas. Existiam mais
possibilidades do que nos diziam, a não ser que houvesse
desconhecimento dos documentos oficiais.
Paralelamente ao grupo de estudos, foram realizados pelo
Centro Acadêmico alguns eventos importantes para a formação
154
dessa geração de estudantes: o Guaraná Filosófico e o Fórum Nossa
Filosofia. O Guaraná filosófico tinha como perspectiva trazer
filósofos/as/es para dialogar com os graduandos/as/es e, por isso, a
organização, os temas e convidados do evento refletiam os interesses
do corpo discente. Um desses momentos marcantes foi o Guaraná
Filosófico com o Prof. Gonçalo Armijos Palácios (UFG), autor do
livro “De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto, ou ser gênio”,
realizado no dia 27 de março de 2013. Na ocasião, além de oferecer
uma palestra no período noturno, o docente participou de uma roda
de conversa com os/as/es discentes no período da tarde. Já o Nossa
Filosofia apresentava os resultados do grupo de estudo voltado para
a reestruturação de curso, tendo os discentes como palestrantes, algo
que não tinha espaço em nenhum evento organizado pelo
Departamento de Filosofia.
Também por causa da reestruturação de curso, os/as/es
estudantes realizaram uma pesquisa para mapear as principais
características dos discentes que procuravam o curso da UNESP,
entendendo que o curso não é para seus docentes e que deve atender
ao perfil estudantil que o procura. Importante destacar que a maior
parte dos discentes que efetivamente frequentavam o curso
responderam o questionário
4
. Os resultados evidenciam um corpo
discente oriundo de escola pública (60%), com a maior parte
(41,7%) possuindo renda de um a três salários mínimos, com 58,3%
afirmando que lecionariam em escolas públicas e privadas após o
término da graduação, com 66,6% afirmando que fariam
exclusivamente ou priorizariam a Licenciatura, com 60% tendo
como o período de maior interesse da história da filosofia a
4
O curso tem entrada anual de apenas uma turma com 35 estudantes.
155
contemporaneidade. Entre os temas de maior interesse, somados
Filosofia da Educação e Ensino de Filosofia receberam 48,33% das
indicações.
Primeiramente, é preciso pontuar que tais resultados
expressam uma relação entre o perfil socioeconômico e a escolha da
modalidade de graduação, algo que precisa ser pensado e que não se
trata de “ideologia do pobrismo”, como foi dito por um professor
durante uma das reuniões realizadas. Entendo que a prioridade da
Licenciatura se relaciona com questões trabalhistas, haja vista que a
necessidade de trabalhar fazia com desejassem possuir o diploma de
Licenciatura o quanto antes, além de o mercado de trabalho voltado
para o Ensino Médio ser bastante mais amplo do que para o Ensino
Superior. Mas também, com a inserção da Filosofia no Ensino
Médio, é crescente o interesse pelo ensino de filosofia. Porém, os
cursos de Filosofia no Brasil em geral não estão acompanhando essas
mudanças. É comum a desvalorização da Licenciatura como uma
modalidade inferior. Há um silenciamento do ensino de filosofia na
pesquisa da área. Na grande maioria das graduações em filosofia, o
ensino não é visto como uma questão relevante e há um
privilegiamento explícito dos Bacharelados, ainda que a quase
totalidade de graduandos estejam mais interessados na Licenciatura,
tanto por questões trabalhistas quanto por entender que docentes
universitários também precisam pensar suas práticas de ensino. A
pouca pesquisa que há sobre o ensino de filosofia geralmente é
realizada por filósofos/as/es que se aventuram em áreas como a
Educação, uma vez que há pouco espaço para tal estudo nas pós-
graduações em Filosofia.
156
Como podemos acreditar que alguém que não tem formação
na área pode nos dizer como ensinar isso que nem nós sabemos o
que é? O ensino e a transmissibilidade da filosofia são em si mesmos
problemas filosóficos e deveriam ser abordados e entendidos como
parte da atividade do/a/e filósofo/a/e. Como pensar a melhor
formação possível para esses/as estudantes trabalhadores/as, de
maneira que pudéssemos construir uma sociedade mais potente para
lidar com os problemas contemporâneos? De certo modo este perfil
explica o interesse pela oferta de uma disciplina sobre “Problemas
filosóficos do ensino e da aprendizagem da Filosofia” e porque
mobilizou estudantes de diferentes grupos.
Diante do contexto que estou descrevendo aqui, é evidente
que há diferenças radicais de compreensão do que é filosofia entre
docentes e discentes. Para explicitar melhor tal ponto, trago para este
capítulo a proposta de reestruturação elaborada pelos/as/es discentes.
A proposta que partiu dos/as/es estudantes indicava a inserção de
algumas disciplinas. Entre elas “Línguas Clássicas Instrumentais
(Grego ou Latim)” I e II e “Línguas Modernas (Francês, Alemão ou
Espanhol)” I e II. Para o oferecimento de tais disciplinas,
pensávamos não só nos docentes do curso que dominavam algumas
dessas línguas, mas também em articulações com o Centro de
Línguas da instituição. Estas sugestões não permaneceram no
documento final aprovado, o que é estranho considerando que o
perfil que apresentei no início do texto indica “a satisfação de
dominar línguas estrangeiras, tanto grego e latim, quanto inglês,
alemão e italiano” como desejável para a formação (UNESP, 2007,
n. p.). De que modo o corpo docente espera que o/a/e estudante
desenvolva isto especialmente considerando o perfil socioeconômico
157
que apontou o questionário realizado pelos estudantes? Lembro que
para realizar mestrado/doutorado é exigido demonstrar proficiência
em línguas estrangeiras e que um perfil que diz preparar para a
pesquisa filosófica deveria se preocupar com isso.
Além destas disciplinas, os/as/es discentes também
propuseram “Iniciação à Pesquisa em Filosofia”, que no documento
final se tornou “Metodologia da Pesquisa Filosófica”. Vale ressaltar
que no sentido proposto pelos/as/es discentes a disciplina pretendia
evidenciar a visão do Prof. Trajano que apresentei na seção anterior,
e não se tornar um espaço para ensinar a metodologia estrutural de
leitura de textos filosóficos.
Considerando a amplitude de temas e a importância da
interdisciplinaridade na filosofia, os/as/es estudantes sugeriram
“Eletivas” a partir do segundo semestre até o quarto semestre do
curso, e, a partir do sexto semestre indicaram “Optativas”, que
podiam ser realizadas em outros cursos da instituição. Para o
aumento das eletivas e optativas, sugeriam uma redução da carga
horária destinada às disciplinas de História da Filosofia, o que não
foi atendido, de maneira que tais disciplinas permaneceram com a
maior parte da carga horária. A sugestão de redução não se tratava
apenas de uma questão de carga horária, mas da afirmação de um
caráter mais temático, interdisciplinar para o curso, nos termos de
uma filosofia propriamente dita como aprendemos com o Prof.
Trajano, além de maior autonomia para os/as/es estudantes
escolherem suas disciplinas de interesse. Faz sentido um curso de
Filosofia que se volta majoritariamente à história? Especialmente
porque a Pós-graduação em Filosofia da UNESP tem grande
destaque na pesquisa temática no Brasil, o que consideramos
158
interessante de ser aproveitado para pensar a estrutura do curso da
instituição.
Também foi proposto pelos/as/es discentes que a disciplina
“Problemas filosóficos sobre o ensino de Filosofia” fosse obrigatória
tanto para a Licenciatura quanto para o Bacharelado. A mudança no
título da disciplina respondia a compreensão do corpo estudantil de
que quem atua no Ensino Médio também é filósofo/a/e, do mesmo
modo que quem atua no Ensino Superior também é docente. Por
mais que isto pareça óbvio, há um senso comum nas graduações em
Filosofia que delineia como filósofos apenas professores/as/es do
Ensino Superior, reservando ao Bacharelado o espaço do ser
filósofo/a/e, e que ignora que estes também dedicam sua vida à
docência. Se aquele/a que opta pelo Bacharelado também será
docente, ou ao menos se dedicará a transmitir saberes filosóficos a
outros/as/es, faz sentido que ele/a também reflita sobre os limites
desses processos de transmissão. Cabe ressaltar que nesse momento
não houve questionamento algum sobre a inserção dessa disciplina
como obrigaria, uma vez que a mudança que indicada a
Deliberação do CEE obrigava o aumento da carga horária para a
Licenciatura. No entanto, a forte resistência em compreender o
caráter filosófico do ensino de Filosofia fez com que tal disciplina
não fosse incluída para o Bacharelado na proposta final, além da
retomada do título “Questões da filosofia seu ensino”.
Também propusemos como disciplinas obrigatórias do
curso de Filosofia, tanto para a Licenciatura como para o
Bacharelado, “Libras” I, “Filosofia da Mente” I, “Filosofia da
Educação” I. É importante ressaltar o absurdo de um curso de
Filosofia não ter até então a disciplina de “Filosofia da Educação”,
159
esta foi incluída no projeto final de reestruturação do Departamento
como “História e Filosofia da Educação”. A disciplina de “Libras
gerou inserção de “Políticas Públicas em Educação Inclusiva”, que
considero um importante ganho para a grade curricular. No entanto,
a ausência de uma formação em Libras é dificultadora da atividade
docente, eu mesma já ministrei aulas para alunos/as surdos/as e senti
na pele os entraves de comunicação. Mas provavelmente se não
houvesse a necessidade de aumento de carga horária, tais disciplinas
continuariam não sendo entendidas como relevantes para a
formação em Filosofia.
Considero um ganho na reestruturação de curso o fato de
que algumas disciplinas deixaram mais evidentes seus propósitos
incluindo em seus títulos a expressão “Abordagem Histórico-
Filosófica”. No entanto, cabe ressaltar novamente que tal abordagem
não condiz com o que costuma ser feito nesses momentos, pois não
é história da filosofia, mas comentário de filósofo, já que apenas uma
minoria de docentes apresenta um panorama histórico, o que quase
a totalidade dos/as docentes faz são cursos monográficos em que
apresentam os comentários que produzem sobre os filósofos que
estudaram durante sua pós-graduação.
Para além disso, tenho que ressaltar que com a reestruturação
algumas disciplinas ganharam uma perspectiva temática, que se
aproxima da filosofia propriamente dita que era apresentada pelo
Prof. Trajano. Também destaco que, apoiando-se na Lei 10639/03,
que determina o ensino da história e culturas africanas, afro-
brasileiras e indígenas nos currículos escolares, a pressão que os/as/es
discentes fizeram para a inserção de filosofias que não fossem
eurocentradas com a proposta de disciplinas como “Filosofia
160
Africana”, “Filosofia Latino-Americana”, “História da Filosofia
Brasileira”, “Filosofia Oriental”, “Filosofia da Cultura Popular”,
embora tenham sido recusadas, gerou a disciplina “Abordagem
Pluralista e Interdisciplinar de Filosofia”. Ainda que seja um ganho,
deve ser um enorme desafio condensar toda a diversidade de
filosofias para além da europeia em uma única disciplina. Os debates
sobre a inclusão de tais disciplinas em sua maior parte se voltaram à
discussão da relevância filosófica dessas outras formas de
pensamento. Curioso que a História da Filosofia que é tão
importante para o curso, não torne a disciplina “História da Filosofia
Brasileira” também interessante, ou seja, a questão é o ensino de
filosofias eurocentradas e não da história da filosofia como um todo.
Considero ainda, um resultado da proposta elaborada pelos/as/es
discentes, a inclusão da disciplina “Filosofia na Atualidade”, no
entanto, apenas para o Bacharelado, reafirmando uma perspectiva
restrita acerca da filosofia, o que inclusive contraria a extrema
relevância desse tema para a filosofia no Ensino Médio.
Eu fui representante discente durante a reestruturação de
curso, lembrando que o fato de eu poder participar dos debates foi
resultado de uma forte pressão do corpo discente, e o fato de
conseguirmos a autorização para que uma representante única
expressa o quanto éramos bem-vindos/as/es em debates deste tipo.
Isto ficou claro quando a reunião final para fechamento do projeto
de reestruturação não teve a participação de nenhum/a/e discente.
Obviamente isto deixou o corpo estudantil insatisfeito, tendo
representantes colocando seu descontentamento em reunião da
Comissão de Ensino em que o projeto foi aprovado. Isto produziu
reações de alguns docentes em específico, tornando evidente como
161
eles entendiam os debates filosóficos que ocorriam entre discentes e
docentes. Após isto, em um e-mail enviado em junho de 2015, um
docente afirmava: “Em meu tempo, nós admirávamos os professores
de Filosofia, eu sinto hoje no entanto que vocêsm raiva da gente
e não entendo por que. Acho que os trancaços que vocês promovem
são apenas expressão desse trancaço mental que os alunos têm com
os docentes em geral e com a filosofia em particular”. No final do
mesmo mês, em uma mensagem enviada por um docente dirigida a
mim, o movimento estudantil era descrito como “arrogante e
irresponsável”, me indicando como uma “boa porta-voz desta
regressão ética e política nas relações acadêmicas”.
O que era entendido por alguns docentes como uma questão
pessoal, para o corpo discente era uma questão política. Este é um
problema real em instituições públicas, misturar interesses
particulares e pessoais e não refletir sobre a função social que se
ocupa quando se assume alguns cargos. Para mim, o “trancaço
mental” e a “regressão ética” teria mais a ver com a postura de recusa
para novas possibilidades de pensar a própria filosofia, e não com o
interesse por participar de debates institucionais sobre ela.
No mesmo mês em que isto ocorreu, o IX Encontro da Pós-
graduação em Filosofia da UNESP foi cancelado, evento este que era
organizado desde o primeiro encontro por estudantes, contando
com o apoio institucional de um docente da Pós-graduação em
Filosofia. No ano de 2015, o evento tinha como tema “Filosofia:
outros lugares e formas” e, além de verba de 8 mil reais já aprovada
por parte de uma das agências financiadoras, já tinha confirmada
uma programação com conferências sobre os temas “Pensar sem
fronteiras: Filosofia POP” com o Prof. Roberto Charles Feitosa de
162
Oliveira (Unirio), “Filosofia e formação: pensando a Filosofia com
criançascom o Prof. Maximiliano Valerio López (UFJF), “Ética
abolicionista: racismo, sexismo, especismo” com a Profa. nia T.
Felipe (UFSC), Ayahuasca: Filosofia, educação e saberes de uma
Planta Mestra” com a Profa. Maria Betânia Barbosa Albuquerque
(UEPA), “Filosofia, Corpo & Cinemacom a Profa. Natacha Muriel
López Gallucci (Conservatório Carlos Gomes), um minicurso
teórico-prático sobre “Filosofia do Tango” com a Companhia Típica
Tango, e, por fim, uma Mesa-redonda sobre o tema “Há Filosofia
além das salas de aula da universidade?”.
Como resposta oficial os/as membros da Comissão
Organizadora só receberem um e-mail enviado pelo coordenador da
Pós-graduação em Filosofia no dia 23 de junho de 2015, com o
título “Esclarecimento sobre o Encontro de Pesquisa após reunião
do Conselho de 18/06”, contendo o que se segue:
O Encontro de Pesquisa na Pós-Graduação em Filosofia da
Unesp é um evento do Programa de Pós em Filosofia. Ele sempre
foi formalmente organizado por um docente do Programa (que nos
primeiros eventos era o próprio coordenador) e, portanto, está
institucionalmente ligado ao Programa. O que tem havido nos
últimos anos é uma espécie de ‘concessão informal’ a uma comissão
de alunos para sua organização.
Entretanto, desde os tempos em que os encontros se
iniciaram na década passada, ao menos dois importantes fatores
claramente se alteraram:
1) houve uma total descaracterização daqueles que eram os
objetivos e princípios do evento. O que eram no início encontros
163
pequenos, ligados exclusivamente à pesquisa filosófica do Programa
e suas relações externas, se tornaram eventos grandes, temáticos,
supostamente destinados a suprir lacunas de formação,
completamente alheios ao que deveria ser o direcionador central do
evento: a pesquisa no mestrado.
2) a relação estudante/professor, antes marcada pela
colaboração, cooperação e simbiose, passou a ser estabelecida, ao
menos por uma parcela dos estudantes, por uma pauta de disputa e
enfrentamento (não só na pós-graduação). E isso tem se refletido
claramente nos últimos eventos de estudantes, organizados à revelia
dos docentes e não de forma colaborativa, como nos primórdios.
Por conta desses fatores, o Conselho estabeleceu nada fazer
além do óbvio e institucionalmente elementar:
1) por ser uma atividade do Programa, o evento deve
necessariamente ser coordenado por um docente vinculado ao
Programa.
2) o evento deve, como qualquer evento do Programa
(portanto, não é exceção, mas regra), ser submetido ao conselho.
Sendo assim, os encaminhamentos a serem obedecidos para
a realização do encontro de 2015 e demais devem ser os seguintes: o
docente responsável, vinculado ao Programa, deverá enviar
formalmente para apreciação do conselho um projeto do evento
constando os membros da comissão organizadora, calendário,
programação e rol de conferencistas. Atentar ao fato de que o evento
deve estar voltado, como seu nome diz muito claramente, a discutir
a pesquisa na pós-graduação e não a suprir supostas lacunas na
formação dos estudantes. O conselho poderá vetar total ou
164
parcialmente o projeto, caso esteja em desacordo com as diretrizes
do Programa ou com os princípios norteadores do evento.
***
Este e-mail recebeu a resposta de um docente
cumprimentando o Conselho pela “pela clareza e determinação num
momento especialmente crucial”. Por que o cancelamento de um
evento em condições tanto organizativas quanto financeiras para
acontecer pode ser entendido como um “momento especialmente
crucial”?
É importante ressaltar que, assim como este evento, os
Encontros de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP também
eram organizados por comissões compostas por estudantes. Além
disso, eram os únicos eventos gratuitos da área na instituição, o que
era uma bandeira estudantil, uma vez que para se formar é
requisitado que discentes cumpram 210 horas de Atividades
Acadêmicas, Científicas e Culturais (AACC). Por optar por não
cobrar inscrições, este dois Encontros, não recebiam o suporte da
seção técnica da instituição, de maneira que a comissão organizadora
era responsável por todos os trâmites, o que não ocorria com os
demais eventos.
Os Encontros da Graduação em Filosofia da UNESP e os
Encontros da Pós-graduação em Filosofia da UNESP eram os únicos
espaços em que estudantes podiam escolher as palestras que
gostariam de ver, permitindo que pudessem ouvir outros pontos de
165
vistas que não apareciam nas aulas. A organização estudantil fez com
que tais eventos se elevassem a outro patamar, tanto no que diz
respeito aos/às convidados/as, mas também no que tange à verba
conseguida para sua realização, sendo mérito dos/as/es discentes a
aprovação de verba FAPESP para esses Encontros, o que exigia uma
organização com bastante antecedência. Tais Encontros também
buscavam romper com as hierarquias, colocando discentes para
mediar mesas e debater com os/as conferencistas, entendendo este
como um espaço formativo em todos os sentidos, tanto para quem
organizava quanto para quem participava das mesas mediando
debates.
Quando começaram a trazer debates sobre filosofias não
eurocentradas, tais eventos começaram a produzir reações
incômodas por alguns docentes, que eram expressas em e-mails,
redes sociais, mas nunca em suas conferências ou espaços de debate
presenciais. Em 2013, o Encontro da Graduação em Filosofia da
UNESP teve a palestra “Afroperspectividade: a legitimidade da
Filosofia Africana ontem e hoje” proferida pelo Prof. Dr. Renato
Nogueira dos Santos Junior (UFRRJ), que despertou enorme
interesse dos/as/es discentes. No Encontro da Graduação em Filosofia
da UNESP de 2015, o Prof. Antonio Florentino Neto (UEL)
ofereceu o Minicurso As bases filosóficas do pensamento oriental”, o
Prof. Marcos Nobre (UNICAMP) proferiu a Conferência “Filosofia
e universidade na mudança de modelo de sociedade no Brasil”, e
aconteceu um debate sobre “A formação da filosofia universitária no
Brasil” com o Prof. Marcelo Silva de Carvalho (UNIFESP), que no
momento era Presidente da ANPOF.
166
No ano de 2014, o Encontro da Pós-graduação em Filosofia
da UNESP teve como tema “Filosofia brasileira: possibilidades e
desafios”
5
. Entre as conferências que ocorreram, tivemos “A Filosofia
brasileira e sua história” proferida por Paulo Roberto Margutti Pinto
(FAJE/MG), “Filosofias nacionais” proferida por Leonardo Prota
(UEL), “A situação da filosofia no Brasil no contexto latino-americano”
proferida por Julio Cabrera (UnB). Tivemos a Mesa Redonda
uma identidade na Filosofia Brasileira?” com Paulo Roberto Margutti
Pinto (FAJE/MG), Julio Cabrera (UnB) que falou acerca da
Crítica da filosofia acadêmica enquanto possível obstaculizadora do
surgimento de filósofos autorais e a Profa. do campus Mariana
Claudia Broens (UNESP/Marília). Ocorreu também a Mesa
Redonda “Há uma identidade na Filosofia Brasileira?” com Tiago
Brentam Perencini (UNESP/Marília), Cristine Takuá
(E.E.Indígena Txeru Ba’e Kua-I) e Sérgio Augusto Domingues
(UNESP/Marília), professor de antropologia no campus. Ainda
aconteceu o Minicurso: “Filosofar na América Latina” com Daniel
Campos (CUNY Brooklyn College). Mas sem dúvida o maior
incômodo foi resultado do Minicurso: “Filosofia Indígena” com a
filósofa Cristine Takuá, graduada pela UNESP e docente da
E.E.Indígena Txeru Ba’e Kua-I, e Carlos Papá, cineasta presidente
do Instituto Guarani da Mata Atlântica (IguaMa) e fundador e
conselheiro do Instituto Maracá. Entre os e-mails circulados pelo
Departamento, um docente manifestava preocupação de que a
programação de tal evento prejudicaria a solicitação de Doutorado
5
Na seguinte página é possível encontrar a programação e Anais do evento, o texto de
algumas palestras e três entrevistas realizadas pela comissão organizadora com os
conferencistas Daniel Campos, Paulo Margutti e Leonardo Prota:
https://encontroposfilunesp.wordpress.com/caderno-de-resumos/.
167
em Filosofia no campus, o que mesmo com a mudança no perfil de
organização dos eventos e a centralização nos interesses do corpo
docente, ainda hoje não se efetivou.
Como consta em Moção de Repúdio escrita pela comissão
organizadora do evento cancelado em 2015
6
,
Foi afirmado que “a autonomia só é conquistada após o
Doutorado” e de que “um evento desse tipo pode ser prejudicial
ao pedido de Doutorado que será enviado à CAPES”.
Requeremos o reconhecimento de que o Encontro se
consolidou como um espaço de construção das estudantes e dos
estudantes, e não como o evento oficial organizado pelo
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP. Não é
nem um pouco razoável defender que a autonomia seja fruto
de um título, mas sim uma conquista produto do uso da razão
pública que condiz totalmente com o histórico das
participações das estudantes e dos estudantes em Filosofia da
UNESP, que agora se vê ameaçado.
O evento que está com a programação e com todos os
documentos de solicitação de auxílio a agências de fomento
prontos, versaria sobre o tema “Filosofia: outros lugares e
formas” visando a pensar, de modo interdisciplinar, a
intersecção entre a Filosofia e a sociedade, e sua presença nos
diferentes espaços da vida. Esclarecemos que o Encontro deste
ano surge da preocupação com o abismo criado entre a
universidade e a sociedade. Reconhecemos que a universidade,
enquanto entidade pública, precisa construir com e prestar
6
Esta Moção de Repúdio foi enviado por e-mail para todos os estudantes e professores do
curso. Disponível em:
https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR82739&fbclid=IwAR3V9VQT_kXLod5
IU3eXaelayg59DC6kERf5X0YF2yyXI7VtlEqIFp6aNbg. Acesso em: 20 de nov. 2020.
168
contas à sociedade. Por isso a proposta é pensar e discutir as
relações entre Filosofia e cotidiano, corpo, alimentação, ação,
formação e rituais. Debatendo, assim, as diferentes concepções
de Filosofia e as possibilidades de expressão do filosofar em
outros âmbitos, para além das salas de aula e das dissertações e
teses dos Programas em Filosofia do país.
Professores de Filosofia não deveriam se preocupar em debater
temas, independente se concordam com eles ou não. A
manifestação do corpo docente do Programa de Filosofia, ao se
censurar a programação e o tema do Encontro, apresenta temor
e se nega a discutir tais questões, influindo numa postura não
esclarecida e dogmática, que contraria o que se entende por
Filosofia.
Neste ano de 2015, eu era representante discente na Pós-
graduação e pude observar que as críticas ao evento se confundiam
com críticas à organização dos estudantes e ao movimento estudantil
como um todo, expressando o que de verdade estava sendo discutido
ali. Também ouvi que não se estava discutindo a programação
do evento, mas a relação entre professores e estudantes, que deveria
ser de admiração e não de ódio, como os docentes entendiam que
era no momento. Ao que me parece, discursos desse tipo confundem
“admiração” com submissão, o que está de acordo com a formação
silenciadora da pluralidade que descrevi aqui e com a imposição de
que apenas eventos aprovados pelos docentes poderiam acontecer.
Contudo, um curso que foca excessivamente na explicação e
comentário de textos e silencia o pensamento dos/as/es discentes,
também silencia o filosofar. Por isso, não considero minha formação
de fato filosófica. No entanto, tive a oportunidade de vivenciar a
169
formação de pensamentos próprios no contato com outros/as/es
discentes do curso, que também sentiam seus filosofares silenciados.
Assim, o que parecia ser um problema meu, se evidenciou como um
problema estrutural da própria filosofia universitária brasileira.
Minha formação levou à constatação de que uma filosofia
enjaulada na perspectiva eurofalogocêntrica impede de pensar os
problemas que nos envolvem. Porém, tal constatação não resultou
em imobilidade, mas na busca por espaços de fuga dessas políticas
de silenciamento para pensar os problemas que me afetavam. Na
busca por pensar meus problemas, encontramos outros/as/es
estudantes que foram incentivados pela Filosofia propriamente dita
do Prof. Trajano. Nas frestas da universidade, encontrei os
pensamentos e filosofias que (re)existem no submundo do
conhecimento hegemônico e fálico.
Também colaboraram com linhas de fuga as inciativas do
Grupo de Pesquisa e Estudos de Ensino de Filosofia (ENFILO) que,
além de discentes pesquisadores do ensino de filosofia na instituição,
envolvia bolsistas do Programa Institucional de Incentivo à Docência
(PIBID/CAPES) e do projeto de extensão de “Filosofia em espaços
não formais”. Este grupo permitia pensar uma filosofia
intrinsecamente relacionada aos problemas, bem como pensar um
filosofar vivo que se efetiva em nossa atuação no cotidiano tanto nas
escolas quanto fora delas. O PIBID foi essencial em minha formação
filosófica
7
, permitindo entender o filosofar para além dos muros
restritos da universidade. Também atuei na Fundação CASA através
do projeto de “Filosofia em espaços não formais”, coordenado pelo
7
Fui bolsista PIBID durante 2010-2011 e 2016-2018, fui supervisora atuando
conjuntamente com graduandos no ensino de filosofia na cidade de Marília (SP).
170
Prof. Rodrigo Pelloso Gelamo, pensando um filosofar não permeado
por relações de transmissão. Isso me permitiu vivenciar o filosofar
em ação, e não apenas como discurso.
Os filosofares nas frestas subterrâneas do curso de Filosofia
da UNESP expressos nas ações de colegas com quem aprendi muito,
impactou decisivamente para a educadora e filósofa que me tornei.
Sem tais experiências e o diálogo com outros/as/es discentes, com
pouca filosofia propriamente dita eu teria contato durante a
formação. Por tudo que enunciei até aqui, é preciso afirmar que
minha formação filosófica se deu nesses espaços mais do que nas
aulas.
Entre os aprendizados que tive nos corredores da UNESP,
destaco a necessidade de descolonização do filosofar para romper
com as políticas de silenciamento, pois a metodologia hegemônica
se ancora numa visão inferiorizada de nosso território e da população
que o compõe. Como pesquisadora da filosofia no Brasil, entendo
que as filosofias europeias são parte do problema, já que tais filosofias
têm como suas faces ocultas a escravização e exploração de povos do
continente que vivemos. Nos espaços que citei acima, havia uma
preocupação em romper com as hierarquias entre as formas de
pensamento e as diferenças e conflitos eram tratadas como parte do
processo e não como um desvio a ser silenciado.
Também aprendi que a suposta objetividade do
academicismo não é de fato neutro como se apresenta. Por isso,
considero necessário descontruir a visão da filosofia como uma
atividade individualista e que olha para a realidade como se tivesse
distante dela. Entender a filosofia exclusivamente como uma prática
171
individual que se faz comentando textos produz um pensamento
mais propício ao erro, haja vista que todo conhecimento é parcial, e
que dificilmente contribuirá para lidarmos com os problemas
complexos contemporâneos. As experiências relatadas acima me
ensinaram principalmente que filosofar convida à ação e à
construção coletiva, pois muito do que motivou a pensar e agir no
mundo durante estes anos de formação não estava disponível em
nenhum livro, mas partiam de problemas que me afetavam no
cotidiano.
Particularmente entendo que as dificuldades de diálogo
expressas aqui, apontam algo sobre a formação do profissional de
filosofia no Brasil. A reflexão sobre o que faz o filósofo quando
ensina filosofia é importante para as pessoas formadas tanto na
Licenciatura quanto no Bacharelado. É preciso descontruir a ideia
de que o docente do Ensino Superior é filósofo e que o docente do
Ensino Básico não é, ao mesmo tempo afirmar a importância da
reflexão sobre a transmissibilidade da filosofia, questão primordial
para a docência e para o/a/e filósofo/a/e, bem como afirmar o papel
de docente dos professores/as do Ensino Superior. E o mais
importante de tudo, entender que a formação em filosofia não tem
a ver com “admiração” pelos docentes, e sim com um curso
adequado para a atualidade e o perfil discente, lembro que o perfil
não foi alterado com a reestruturação, permanecendo o mesmo
Projeto Pedagógico, o que é um erro. Eu, enquanto docente que já
participou da elaboração e reestruturação de alguns cursos, aprendi
que o primeiro passo para qualquer mudança é definir o perfil do
egresso, justamente para que as mudanças não estejam subordinadas
aos interesses particulares de docentes. Além do que, é preciso
172
considerar que a aprendizagem não está restrita aos espaços de aula,
como procurei demonstrar neste capítulo, e que, por isso, a
autonomia estudantil é essencial para qualquer autonomia de
pensamento, e, consequentemente, para um filosofar próprio, o que
não pode ser alcançado apenas com um título.
Considerações Finais
Neste capítulo, procurei trazer duas perspectivas sobre a
formação em Filosofia na UNESP. A primeira perspectiva foi
consequência das aulas que tive no curso e a segunda representa o
aprendizado que tive para além da sala de aula, em contato com
colegas do curso. Isto leva a pergunta: a formação que recebi na
UNESP propaga que modelo de ensino de filosofia? A filosofia que
descrevi neste capítulo a partir de minhas experiências enquanto
estudante, docente e filósofa, corresponde a um modelo de ensino
dominador e eurofalogocêntrico que silencia as diferenças e propaga
uma filosofia subalterna. Há um fomento da passividade diante dos
problemas e da subalternidade diante do pensamento e realidade
europeia, assim como diante dos docentes com título de Doutorado.
Em meu entendimento, é majoritário um pensamento abstrato
sobre a filosofia afastando-a dos problemas da vida e do mundo. A
filosofia, nessa perspectiva, é um ideal transcendente a ser cultuado,
entendido como um pensamento separado objetivo, neutro e
universal da experiência. Lembro que o perfil que apresentei no
início do texto assume tal caráter ao afirmar que a “vocação que se
173
espera do estudante de filosofia é o interesse por assuntos abstratos
(UNESP, 2007, n. p.).
Tal modelo de ensino de filosofia promove uma perspectiva
única de mundo que recusa as diferenças através do eurocentrismo e
do patriarcalismo, por meio de currículos exclusivamente formados
por homens europeus, o que demonstra um silenciamento da
pluralidade do próprio filosofar. Não só seu ensino não tem espaço
nas políticas oficiais, como também em suas práticas não há um
incentivo para o pensamento próprio. Filosofar de algum modo se
liga a pensar os problemas que o contexto que vivenciamos impõe.
Tal cenário se configura como um dificultador do pensamento dos
problemas atuais, haja vista que não são apenas elementos da vida
são silenciados, mas qualquer iniciativa de construção própria, tão
necessária para os desafios atuais, é inferiorizada.
Além de tais fatores que acompanham a filosofia no Brasil
desde sempre, no atual contexto, muitos problemas urgentes se
colocam e exigem que intelectuais repensem seu papel na sociedade.
A democracia no país está ficando cada vez mais distante, além dos
problemas globais que colocam desafios para a permanência da
humanidade num futuro próximo. As questões que mais assolam a
humanidade são as de vida ou morte, os dilemas que se colocam
diante dos sujeitos para que sua sobrevivência e de seus descendentes
se tornem possíveis no futuro. Diante de um mundo que tem sido
caracterizado por crises tanto das relações humanas quanto
materiais, já que vivemos à espreita de uma grave crise ecológica que
coloca em xeque o modo de vida hegemônico, precisamos pensar
que contribuições o ensino de filosofia pode oferecer neste contexto.
Por outro lado, cabe pensar também para que mundo colabora esse
174
modelo de filosofia que descrevi neste capítulo. O contexto que
vivenciei, e que recusa o debate em igualdade entre docentes e
discentes, exige que se pergunte: qual filosofia faz sentido no mundo
contemporâneo e deve fazer parte de nossas preocupações enquanto
docentes filósofos/as/es?
Não podemos esquecer que o silenciamento do ensino de
filosofia também é uma política governamental. Nesse sentido, é
importante citar a reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/ 2017),
aprovada em fevereiro de 2017, e a consequente reformulação da
Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC),
aprovada em dezembro de 2018. Entre as grandes mudanças que a
BNCC traz para a educação pública brasileira, cabe destacar que
retira o espaço destinado ao saber filosófico, diluindo-o em
componentes curriculares que envolvem “ensino religioso” e
“projeto de vida. Também vem diminuindo o espaço da pesquisa
filosófica no financiamento público, com discursos de
representantes governamentais afirmando que “quem quiser estudar
filosofia deve fazer com dinheiro próprio” porque a verba pública
deve ser destinada para áreas “úteis”. Diante de tais entraves, o
contexto atual do ensino de filosofia nos exige agir para a garantia
de nossos espaços, mas também para construir uma filosofia que
expresse a sua relevância, é necessário mais do que nunca que
repensemos qual o nosso papel enquanto docentes, pesquisadores/as,
filósofos/as/es, e também enquanto sujeitos/as/es nesse mundo que
tende às ruínas. Desde nossa existência nesse planeta, este é o pior
cenário possível. As instituições de ensino são espaços que podem
potencializar a busca por soluções aos problemas contemporâneos.
175
Entender a filosofia como comentarismo neutro e distante da vida é
um desperdício de nosso potencial filosófico de pensamento.
As diferenças de concepções filosóficas expostas aqui
são decorrentes de uma concepção de filosofia atrelada a uma
universalidade e objetividade equivocada. Concordamos com
Donna Haraway (1995, p. 31) que a “objetividade não pode ter a
ver com a visão fixa quando o tema de que trata é a história do
mundo”, pois o próprio mundo é dinâmico. A partir das
perspectivas feministas, ela propõe entender a objetividade como
racionalidade posicionada. É justamente nas perspectivas parciais
que está a possibilidade de uma avaliação objetiva e irracional, pois
o eu cognoscente é sempre parcial em todas as suas formas, nunca
acabado, de maneira que o tomar por imparcial é uma
irracionalidade, uma distorção dos fatos. Portanto, um
conhecimento de fato racional “não tem a pretensão do
descompromisso: de pertencer a todos os lugares e, portanto, a
nenhum, de estar livre da interpretação, da representação, de ser
inteiramente auto-contido ou inteiramente formalizável”
(HARAWAY, 1995, p. 32). O eu cognoscente, supostamente
imparcial, não se responsabiliza pelos conhecimentos que produz.
A perspectiva das filosofias das frestas me ensinou que
conhecimento tem a ver com posição, “políticas e epistemologias da
objetividade corporificada e, portanto, responsável” (HARAWAY,
1995, p. 29). Nesse sentido, a parcialidade, exposta e evidenciada,
sempre desde algum lugar, e não a universalidade, é “a condição de
ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional”
(HARAWAY, 1995, p. 30). Assim, o conhecimento pode ser
entendido como uma “junção de visões parciais e de vozes vacilantes
176
numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios
de corporificação finita continuada, de viver dentro de limites e
contradições, isto é, visões desde algum lugar’ (HARAWAY, 1995,
p. 33-34). Nesse viés, o conflito faz parte, e não deve ser visto como
a manifestação de algum tipo de “disfunção” que deve ser corrigida
para forçar supostas “relações harmoniosas”. Filosofias “do
consenso” sempre beneficiam um lado, ainda que não assumam.
Contudo, considerando a posicionalidade de todos os
saberes, defendo que qualquer conhecimento, e especialmente a
filosofia, que se recusa ao debate se recusa ao próprio conhecimento
racional. O Prof. Trajano nos deu um exemplo de uma filosofia em
ação, uma racionalidade posicionada, e não um pensamento que
produz explicações sobre filosofia, proposta esta que esteve viva em
todos os acontecimentos nas frestas que expus nesse capítulo. Tudo
que enunciei neste capítulo foi importante para a filósofa e
educadora que me tornei, os problemas guiam minhas aulas e
estudos, valorizo a autonomia discente solicitando a sua participação
em todos os espaços da instituição que trabalho e estímulo o filosofar
mais do que a repetição. Que as frestas possam continuar sendo
fonte de aprendizado do filosofar para muitos/as/es estudantes em
busca de uma filosofia propriamente dita, que fuja das pragas do
pensamento subalterno no Brasil.
Referências
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proferido por Chimamanda Adichie no evento TED Global em
2009. TED Ideas Worth Spreading, jul. 2009. Disponível em:
177
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_single_story?language=pt#t-1026978. Acesso em: 20 de set. de
2018.
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de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
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metafísicos. São Paulo: NeAD/Refedor-UNESP, 2011.
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Antonio Trajano Menezes Arruda. Revista Kínesis, v. V, n. 09,
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niilismo absoluto e do sujeito-demiurgo. Interações, v. V, n. 9, p.
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universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os
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[online], v. 31, n. 1, p. 25-49, 2016. ISSN 0102-6992. Disponível
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para o feminismo e o privigio da perspectiva parcial. Cadernos
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MARGUTTI, Paulo. História da filosofia do Brasil. 1ª Parte: O
período colonial. São Paulo: Loyola, 2013.
178
UNESP. ATA Nº. 326/2012. Reunião ordinária do Conselho
Departamental do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia e Ciências da UNESP- Campus de Marília, realizada no
dia 31 de outubro de 2012.
UNESP. Perfil Profissional Almejado. Atualizada em 07/03/2007
às 15:47 - Responsável: André Luis Scantimburgo. Disponível em:
https://www.marilia.unesp.br/#!/graduacao/cursos/filosofia/perfil-
profissional/. Acesso em: 12 nov. 2020.
UNESP. Projeto Pedagógico. Atualizada em 12/02/2010 às 09:52
- Responsável: Alzira Xavier Martins. Disponível em:
https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/projeto.
pdf. Acesso em: 12 nov. 2020.
179
Registros
Bruna de Jesus SILVA
1
Hoje, sentada, procuro no arquivo
palavras catadas, de tempos bravios,
sangrentos até,
mas que descreviam coragem felina
de fera que luta fugindo do asfalto,
de bala zunindo,
correndo adoida na noite a cair,
guiada por sombras fugitivas e esgueiradas
que leem caminhos quietos,
seguros sem nada enxergar,
a lhe sobrar força de ir resistindo
e não tropeçar.
(Maurinete Lima)
Registro 1
Uma das primeiras e memoráveis declarações do Trajano que
lembro é de que o se pode fazer filosofia sem-la e/ou conhecê-
la. A afirmação foi proferida nas primeiras aulas de Filosofia Geral e
Problemas Metafísicos que ocorria às segundas-feiras, para a turma
do primeiro ano do curso de graduação em Filosofia da UNESP em
1
Filósofa, arte educadora e pesquisadora independente/ São Paulo/ SP/ Brasil/
bruna.djs53@gmail.com
180
2010. Na sequência, o argumento escolhido para discorrer sobre,
aparentava-se naquele momento irrefutável, logo nas primeiras aulas
estava convicta de que para ser filósofa era preciso ler e conhecer
minuciosamente o pensamento filosófico.
Em 2010, encontrava-me diante de um velho sábio
refletindo a introdução do célebre livro de Deleuze e Guattari O que
é a filosofia?, encontrava-me diante de três grandes filósofos
refletindo sobre a atividade durante a terceira idade. A plateia era
jovem e muito bem-disposta à Filosofia, a ouvi-los, a -los e a
questioná-los. A declaração não resultava do pensamento dos
filósofos franceses e apesar da aparente incongruência entre os três:
Gilles Deleuze, Félix Guattari e Trajano Arruda, naquela
circunstância em sala de aula, um não anulava o pensamento do
outro. O professor e filósofo Trajano Arruda conseguia relacionar na
atividade do ensino campos aparentemente incompatíveis, como por
exemplo o conhecer e o questionar, o velho e o novo.
Cada aula constituía-se no compartilhamento de uma
performance ao mesmo tempo íntima e pública, onde um conjunto
composto por pensamento, paixão, violência, vulnerabilidade,
radicalidade, veracidade, temor, cinismo, humor personificavam-se
em sua emblemática figura. As aulas performances configuravam-se
em uma onda sensorial extensa, ampla, com vales profundos
seguidas de cristas difíceis de serem apreendidas, mas extremamente
instigante aos pequenos aspirantes à filosofia. Muitas vezes o término
da aula era lembrado somente com a presença gentil do porteiro,
ansioso para fechar as salas da faculdade. Entre os alunos a discussão
seguia acalorada em alguma república, no meu caso a discussão
181
continuava literalmente com o travesseiro e de olhos fechados
enquanto tentava dormir.
Mas não somente, no dia seguinte às terças-feiras o
encontrava na aula de Introdução à Filosofia e à Leitura de Textos
Filosóficos, para aprender um processo lógico de análise e
sustentação de argumentos e teses filosóficas. Ou seja, também
aprendi o rigor analítico e historiográfico da Filosofia. A lógica foi a
sua primeira grande área de pesquisa da graduação ao doutorado,
aliada à audaciosa vontade de realizar um trabalho temático, criativo
e original. Indubitavelmente apreciava em suas aulas performances
lógicas, estéticas, humanistas e vanguardistas para a filosofia
brasileira. Por fim escolhi ler e conhecer a Filosofia e algumas outras
Filosofias não ensinadas naquele espaço institucionalizado por uma
tradição de pensamento branca, eurocêntrica e hegemônica.
Registro 2
Como no poema escrito por Maurinete Lima, a autora do
seguinte texto é também uma arquivista acostumada a manusear
publicações, imagens, palavras, afetos, traumas, tudo o que pode ser
localizado em um complexo dispositivo chamado arquivo. É como
arquivista que contribuo ao escrever e refletir sobre dois
acontecimentos que participei ativamente e que convergem à
proposta do livro: a implementação da disciplina de ensino de
filosofia e a atuação do movimento estudantil em defesa do mesmo.
182
A escrita é ensaísta, crítica, teórica, lírica, poética e
antecipadamente saliento que é fruto de incômodos, pois algumas
das experiências vivenciadas não foram ideais para um ambiente de
formação saudável e tais mazelas poderão ser apresentadas e caso
ocorra serão conscientemente preservadas no texto. Quem escreve é
também o corpo e a mente de uma mulher negra inserida em um
contexto de ensino que ainda carece de sólidas transformações.
Portanto,
falar sobre essas posições marginais evoca dor, decepção e raiva.
Elas são lembretes dos lugares onde mal podemos entrar, dos
lugares nos quais dificilmente “chegamos” ou não “podemos
ficar” (hooks, 1990, p.149). Tal realidade deve ser falada e
teorizada. Deve ter um lugar dentro do discurso, porque não
estamos lidando aqui com “informação privada”. Tal
informação aparentemente privada não é, de modo algum,
privada. Não são histórias pessoais ou reclamações íntimas, mas
sim relatos de racismo. Tais experncias revelam a inadequação
do academicismo dominante em relacionar-se não apenas com
sujeitos marginalizados, mas também com nossas experiências,
discursos e teorizações. Elas espalham as realidades históricas,
políticas, sociais e emocionais das “relações raciais” em espaços
acadêmicos e deveriam, portanto, ser articuladas tanto teórica
quanto metodologicamente (KILOMBA, 2019, p. 57-58).
Grata ao convite não poderia dissimular os acontecimentos,
mas posso provocar a reflexão e a possibilidade de ações condizentes
à um ambiente saudável e profícuo para o Ensino de Filosofia no
Brasil - uma das causas em que o querido homenageado também se
dedicou.
183
Registro 3
Em termos realistas, a política e seu espaço constituem a única
possibilidade de expressão concedida ao social.
(Antonio Negri)
Ao final do segundo semestre de 2011 o Centro Acadêmico
de Filosofia foi convocado pelos docentes do departamento a
nomear três representantes titulares e três representantes suplentes
para participar das atividades do Conselho de Curso de Filosofia e
do Departamento de Filosofia. Apesar da surpresa a convocação foi
bem-vinda, pois a chapa elegida estava no término do segundo ano
de mandato e a tentativa de abertura do processo eleitoral foi um
movimento tímido.
Não era o horizonte ideal, mas foi a alternativa viável para
cultivar uma relação e um fazer político preciso entre as duas
entidades e dentro de um ambiente apropriado. A importância de
ocupar um espaço político de deliberação é evidente na máquina
política e para nós estudantes era emergencial, pois não conseguimos
iniciar o processo eleitoral para a escolha do Centro Acadêmico de
Filosofia. A mudança de pauta nas assembleias sofreu pouca
resistência, estávamos cientes da perda, mas ainda dispostos a fazer
parte da esfera política. Resumidamente, os alunos que se
disponibilizaram a criar uma chapa eleitoral tornaram-se
representantes discentes nos dois órgãos. Comemoramos a conquista
de um feito político que nos anos seguintes possibilitou uma
experiência constituinte na comunidade acadêmica e filosófica da
184
instituição universitária em que nos encontrávamos: a defesa da
criação de uma disciplina sobre o ensino de filosofia. Infelizmente, a
primeira proposta foi rejeitada e somente em 2013 uma segunda
proposta foi aceita, porém iniciamos no final de 2011 um campo de
negociação essencial para as demandas que surgiram: a criação e
defesa de uma disciplina sobre o ensino de filosofia e a Resolução do
Conselho Estadual de Educação, CEE nº111/2012.
Sobre a potencialidade de realizar ações políticas sob
condições adversas, o filósofo italiano Antonio Negri nos lembra da
existência de uma maquinaria próxima à qual exercitamos: o poder
constituinte. Sobre o conceito de poder constituinte, Negri afirma
que
é definido como um poder excepcional, que inova radicalmente
o direito vigente por meio da modificação radical de suas
condições sociais. Legislar continua a ser a arte quase divina de
imprimir forma à matéria’. Os múltiplos aspectos do poder
constituinte são definidos um a um, e reunidos em uma
concepção criativa. Instituir um governo é engendrar uma
criatura política a partir da imagem de uma criatura filosófica,
ou infundir alma ou faculdades humanas no corpo da multidão
(NEGRI, 2015, p. 126).
Diante das circunstâncias, a escolha de focar em ações diretas
nos espaços de decisão do curso, correspondeu a um modo viável de
ainda operar e defender a pauta estudantil. Questões não somente
relacionadas ao curso de filosofia, mas também questões relevantes a
toda a comunidade acadêmica foram encaminhadas ou
185
minimamente discutidas nos órgãos colegiados. Instauramos um
espaço de governabilidade com a participação ativa dos
representantes discentes e não passiva.
Um corpo estudantil foi criado, ora próximo ao que Hardt e
Negri nomearam como “multidão, ora distante. Como multidão
compreende-se
um modelo pelo qual nossas expressões de singularidade não
são reduzidas ou diminuídas em nossa comunicação e
colaboração com outros na luta, com o resultado de que
formamos hábitos, práticas, condutas e desejos comuns cada
vez maiores em suma, com a mobilização e a extensão globais
do comum (HARDT; NEGRI, 2014, p. 282).
Mediante as diferentes proporções dos eventos analisados,
ambos se encontram na esfera micropolíca e de fato o que estava
sendo construído era um espaço que possuía como característica
principal o desejo de mobilizar as pautas do comum, a pauta comum
dos estudantes. O corpo estudantil era pequeno, porém continha
uma diversidade de subjetividades interessadas em manter a
representatividade dos discentes na vida política do curso.
Esta coincidência do comum com as singularidades é o que
define o conceito de multidão, também impossibilita que nos
limitemos a voltar a propor modelos passados. [...] Desse modo,
em vez de uma arqueologia que desenterre modelos do passado,
precisamos de algo parecido com a noção de genealogia de
Foucault, na qual o sujeito cria novos modelos institucionais e
186
sociais com base em suas próprias capacidades produtivas
(HARDT; NEGRI, 2014, p. 390).
Restauramos um campo de disputa entre as partes que
constituem o curso, entre docentes e discentes, tais disputas
constituíram uma experiência política memorável. O que a princípio
foi um ato de resistência, abriu uma possibilidade de relativa
liberdade para os estudantes, diferente da qual o centro acadêmico
exercitava. Reafirmando assim a ideia de que “O princípio de
liberdade torna-se princípio constituinte, manifestando-se primeiro
como contrapoder e, depois, como poder formador. [...] Não é
apenas um princípio radical, mas também uma máquina
constitutiva” (NEGRI, 2015, p. 127).
A compreensão deste corpo de singularidades, disforme e
efêmero não era completamente ciente de si na época ou de sua
potencialidade, tal compreensão é tardia. Simplesmente éramos
movidos pelas pautas dos alunos, por um desejo comum. Mas havia
algo estranho, sério e curioso pois imaginávamos contribuir para o
curso, enquanto notamos por parte dos docentes reações de espanto
e resistência, como se estivéssemos realizando algo inadmissível,
monstruoso. Realizamos um movimento inesperado do ponto de
vista político, mas, não do ponto de vista filosófico. Conceber a
inabilidade dos alunos de mobilizar suas problemáticas, seria
depreciar o próprio trabalho docente. Neste sentido: “Este novo
ciclo global de lutas inevitavelmente parecerá monstruoso a muitos,
pois, como sempre acontece com lutas assim, baseia-se numa
condição de excedentes, mobiliza o comum, ameaça os corpos
187
sociais e políticos convencionais e cria alternativas” (HARDT,
NEGRI, 2014, p. 282).
Em 2011 lembro de uma única reunião do Conselho de
Curso, basicamente de apresentação dos novos representantes e de
uma prévia da agenda do ano seguinte. Na época a atmosfera era
aprazível e manteve-se até quando o Rodrigo Gelamo apresentou a
proposta de uma disciplina de ensino de filosofia. A discussão
iniciou na instância do Conselho do Curso, pois segundo o estatuto
somente o Conselho do Curso poderia instituir ou destituir uma
disciplina na grade curricular. O conselho constitui-se por
representantes de todos os departamentos que compõem o curso,
como por exemplo o departamento de educação e de didática.
Porém, os representantes docentes alegaram a necessidade de
discutir a proposta com o Departamento de Filosofia antes da
deliberação do conselho.
Particularmente acompanhei à distância as mobilizações do
segundo semestre de 2012, o ápice da discussão, pois realizei no
mesmo período um intercâmbio à Universidade do Porto e retornei
somente no início do primeiro semestre de 2013. Sobre a criação e
a defesa da disciplina creio que um dos capítulos complementarão
com maior expressividade os eventos. Na vida política instaurada, a
minha ausência não fez diferença, apesar de estar à frente de muitas
das iniciativas, as pautas estudantis continuaram a ser mobilizadas,
pois “O novo ciclo de lutas é uma mobilização do comum que
assume a forma de uma rede aberta e disseminada, na qual não existe
um centro exercendo o controle e todos os nodos expressam-se
livremente” (HARDT; NEGRI, 2014, p. 282). Ou mais
188
propriamente na obra em que Negri fala sobre o governo da
multidão:
O princípio de autoridade surge da própria vida de um povo,
na sua integridade e com toda a sua complexidade. A vida da
república é como a vida de um organismo humano: uma alma
e um corpo, razão e paixão, que se equilibram e governam
reciprocamente. A alma é a virtù: a república deve prevalecer a
virtù como a alma do corpo. Mas o princípio da virtù, é o
domínio coletivo da razão sobre o corpo: assim nasce a lei,
como resultado desse processo (NEGRI, 2015, p. 128).
Contribuo na verdade, com o relato e a análise introdutória
da conjuntura política que viabilizou a aprovação da disciplina
ministrada pelos professores Rodrigo e Trajano. Apesar do corte
cronológico na narrativa, quando volto do intercâmbio carregada de
experiências de ensino diferentes da qual estava acostumada,
matriculo-me na primeira turma da tão aguardada disciplina sobre
o ensino de filosofia.
Registro 4
Nessa cidade inerte, essa estranha multidão que não se junta, não
se mistura: hábil em descobrir o ponto de desengate, de fuga, de
esquivança. Essa multidão que não sabe ser multidão, essa
multidão, percebe-se, tão perfeitamente só sob esse sol como uma
mulher toda, crer-se-ia, entregue-se à sua cadência lírica.
(Aimé Césaire)
189
Participar como aluna das aulas de Questões da Filosofia e o
seu Ensino no primeiro semestre de 2013 representou um raro
momento em que senti segurança e concisão dentro da universidade.
Não farei qualquer tipo de avaliação da aula, da escolha dos textos,
da abordagem ou do trabalho conjunto, desde o primeiro ano do
curso de filosofia aproximei-me de grupos de pesquisa em educação
e ensino de filosofia. Desde então, observava a necessidade de
implementar tais discussões na grade curricular obrigatória, pois o
curso formava um grande número de alunos que são inseridos
profissionalmente no mercado de trabalho como professores, apesar
da rasa formação específica em educação e ensino de filosofia.
Mas, não pretendo ser neutra, afirmo novamente as
sensações de segurança e concisão em sala de aula, pois foram
extremamente importantes para mim ao retornar do intercâmbio,
precisas para compreender as experiências de ensino vivenciadas nos
dois países. Uma das temáticas abordadas em sala de aula foi a
Filosofia no Brasil e a formação dos departamentos e dos cursos. A
partir das indicações do Rodrigo, analisei o mesmo com o ensino em
Portugal e assim consegui prosseguir um pouco mais confortável,
consciente do processo de formação em que estava inserida.
Entretanto eu não era a única aluna interessada, a sala de aula estava
sempre cheia, muitos matricularam-se e permaneceram atentos até o
término da disciplina. Estavam presentes nas aulas colegas do
primeiro ao último ano da graduação, além de alguns da pós-
graduação.
O ensino não é uma questão secundária, além da demanda
profissional, é um dos elementos responsáveis pela formação de um
pensamento e de uma tradição filosófica. Informar ao aluno sobre a
190
concepção, o processo histórico, as escolhas políticas que
fundamentam a sua própria formação deveria ser uma
obrigatoriedade do curso. Mais precisamente no caso de um curso
universitário, é necessária uma justificativa plausível para
compreender aquilo que está presente na grade curricular e para
aquilo que não está presente, mesmo diante da impossibilidade de
abranger a universalidade da produção filosófica.
A filosofia pode ser considerada um saber universal no
sentido cognicível da questão e somente, como nos lembra o filósofo
Renato Noguera:
Nesse sentido, a filosofia ocidental seria universal porque trata
do Homem. Esse homem é ocidental, branco, civilizado,
adulto, heterossexual, culturalmente cristão; [...] O
conhecimento é um elemento-chave na disputa e na
manutenção da hegemonia. Sem dúvida, o estabelecimento do
discurso filosófico ocidental como régua privilegiada do
pensamento institui uma desigualdade epistemológica. [...]
Essa injustiça cognitiva é capaz de definir status, formar opinião
e excluir uma quantidade indefinida de trabalhos intelectuais.
Nossa leitura é que o racismo é um elemento decisivo para o
entendimento do epistemicídio e seus efeitos (NOGUERA,
2014, p. 23).
Assim, a disciplina Questões da Filosofia e seu Ensino
primeiro correspondeu a uma necessidade básica dos alunos e
consequentemente evidenciou uma série de problemas para a
Filosofia Brasileira. A autoanálise e a autocrítica foram muito bem-
vindas por parte dos alunos, apesar das patologias desencadeadas.
191
Um dos lúcidos professores que realizava e compartilhava sem temor
este tipo de questionamento era o Trajano, lembro perfeitamente
uma de suas declarações:
Por azar nosso, um azar verdadeiramente histórico, na
instituição da Filosofia predominaram os comentadores, e não
os filósofos. Tinha que ter vindo um grupo de filósofos
propriamente ditos, além de grupo de historiadores, é claro.
Ocorre que historiadores só podem formar historiadores, do
mesmo modo que só filósofos podem formar filósofos. Como
disse, a Filosofia no Brasil foi gestada num “pecado capital” em
sua instalação: pecado porque não vieram filósofos para
instaurar a investigação temática, e original a deformação
comentarista/ historiográfica foi se transmitindo de geração em
geração até chegar nos dias atuais (ARRUDA, 2013, p. 14).
Apesar da existência de algumas problemáticas na
formulação deste pensamento, por reduzir a análise à uma específica
instituição universitária dentro do país e por ainda estar circunscrito
na tradição do pensamento ocidental, há muito o que pode ser
derivado da citação acima. O argumento reverbera provocativo, pois
surge de um homem que desde a graduação esteve atento à própria
formação e exigia mais do aprendizado que recebeu, mais do que a
formação historiográfica. É um relato do próprio processo, sincero e
corajoso em que inclusive carece de uma estrutura argumentativa
lógica, mas, contém uma retórica atraente, convidativa,
simplesmente pelo de fato revelar, anunciar uma verdade, uma
prática.
192
O meu olhar, o meu interesse, direcionou-se nas lacunas do
que seria essencial para a formação de uma Filosofia no Brasil.
Nenhum curso de graduação com a duração média de quatro ou
cinco anos conseguiria corresponder aos desejos dos alunos ou ao
que infelizmente não é possível ensinar, devido à quantidade e
complexidade deste saber que ousamos estudar. Porém serei prolixa:
é necessária uma atitude clara e concisa de um curso de filosofia
localizado no sul global que justifique tais escolhas, que justifique a
manutenção de uma tradição ocidental e que ignora, secundariza,
mistifica a produção não ocidental, por exemplo.
Registro 5
O que move os agentes da insurreição micropolítica é a vontade
de preservação da vida que, nos humanos, manifesta-se como
impulso de “anunciar” mundos por vir, num processo de criação e
experimentação que busca expressá-los.
(Suely Rolnik)
Um último evento sucedido em 2013 relevante ao contento
do livro foi a necessidade de o curso adequar-se aos novos requisitos
da CEE nº 111/2012, o que na época foi chamado a princípio pelos
próprios docentes de reestruturação do curso. Todos os
departamentos receberam o comunicado e articularam-se para
cumprir os requisitos exigidos, apesar da medida um tanto
autoritária. Os docentes anteciparam a discussão da reestruturação,
quando os representantes discentes foram informados.
193
Ciente da indisponibilidade dos docentes de discutir em
conjunto aos discentes a pauta da reestruturação do curso, fomos
obrigados a fazer o mesmo e a nos organizar entre os estudantes.
Convocamos uma assembleia estudantil e para a surpresa da parte
dos representantes a assembleia foi composta por um número acima
do habitual, isto demonstrou minimamente o desejo do corpo
estudantil ser parte ativa do próprio processo de aprendizagem.
Uma comissão foi organizada para discutir a questão, optamos por
estudar o que estruturava a grade curricular do curso de Filosofia no
Brasil. Assim, teríamos condição para participar das futuras reuniões
junto aos docentes.
A série de eventos relatados aconteceram no primeiro
semestre de 2013 e coincidiu com uma grande greve estudantil que
durou aproximadamente três ou quatro meses. Os estudantes de
diversos campus da UNESP entraram em greve devido a alguns
problemas que a política de permanência estudantil apresentava,
além das pautas acumuladas dos anos anteriores e que exigiam uma
luta constante por parte dos alunos. Não podemos esquecer que
ainda no cenário das mobilizações que surgiram sobretudo no âmago
dos movimentos estudantis, o aumento do valor da passagem de
ônibus provocou em todo o país uma onda de mobilização massiva
nas ruas. 2013 foi um ano de grandes mobilizações, “a rua brasileira
tinha uma agenda precisa de apenas vinte centavos, porém do
tamanho de todo um ciclo de humilhações no transporte público e
privações de toda sorte” (ARANTES, 2014, p. 428).
Diversas foram as pautas, erros e conquistas, mas não
perdemos o foco das lutas, posso afirmar que parte dos sujeitos que
vivenciaram o ano de 2013 não estavam inertes, não despertaram
194
politicamente naquele ano. As Jornadas de Junho para parcela da
população não correspondia a um novo movimento; o que mudou
foi a quantidade de corpos, de sujeitos e subjetividades na rua e
consequentemente o tempo de resposta e de diálogo com as
autoridades. Ir às ruas era uma estratégia ainda apreciada pelos
estudantes da UNESP, “A utopia real armazenada numa proposta
tão disparatada quanto sensata não teria surgido no horizonte se o
tabu da luta política na rua não tivesse caído” (ARANTES, 2014, p.
424).
Ao longo de todos os eventos enunciados, os estudantes
realizaram os encontros da comissão de reestruturação do curso.
Começamos estudando o projeto político do nosso próprio curso e
na sequência o de outras universidades dentro e fora do Estado de
São Paulo. Em uma das reuniões analisamos, por exemplo, o projeto
pedagógico e político da Universidade Federal da Bahia, a fim de
observar a existência ou a inexistência da influência cultural e
histórica da cidade para o curso de filosofia; também estudamos o
projeto do curso de filosofia da Universidade Federal de Minas
Gerais que na época já apontava avaliações de excelência em todos
os níveis de formação, segundo os órgãos que realizavam tal atividade
à nível nacional; e também propostas de instituições mais recentes
como a da Universidade Federal do ABC, onde observamos a
autonomia dos estudantes ao escolher as disciplinas ofertadas dentro
de uma ampla proposta de formação em Humanidades. Em seguida,
procuramos os documentos oficiais que estabelecem as diretrizes
curriculares, depois de observar as raras diferenças na grade
curricular dos projetos de curso. No site do MEC, encontramos com
relativa facilidade os documentos oficiais e com o apoio dos
195
servidores administrativos da faculdade acessamos o estatuto, esta foi
a nossa leitura básica para compreender e discutir a possibilidade da
reestruturação do curso, para termos condição mínima de participar
de tal discussão com os docentes, nas reuniões do Departamento e
do Conselho do Curso.
Quando retomamos as aulas após o período de greve e com
o apoio do Centro Acadêmico organizamos um evento realizado no
dia 22 de agosto, para apresentar a pesquisa da comissão. Alunos e
professores foram convidados, nomeamos aquele encontro de Nossa
Filosofia. O título foi uma elucubração da nossa parte, após tanta
dedicação imaginamos a possiblidade de inserção de uma partícula,
de um substantivo possessivo, mas na primeira pessoa do plural. A
intenção era demonstrar o desejo e a capacidade de participar de uma
proposta de reestruturação do curso, proposta que depois o
Departamento de Filosofia reformulou a ideia para uma simples
adequação às exigências do CEE nº111/2012. Apresentamos na data
noções técnicas, históricas e políticas, em nenhum momento fomos
propositivos. Discutimos incansavelmente sobre a possibilidade de
ofertar um trabalho propositivo, mas estávamos cientes de que tal
tarefa destinava-se primeiramente aos professores. O nosso desejo
naquele momento conteve-se em simplesmente fazer parte da vida
política, das decisões do curso, ainda com o olhar de quem tinha
muito o que aprender naqueles espaços. Gostaríamos que fossemos
reconhecidos como parte ativa e constituinte do curso, somente.
Escolhemos uma via de diálogo respeitosa, aguardamos um futuro
convite para retomar uma pauta cujo interesse era também comum
aos docentes. Mais uma vez ficamos diante de reações espantosas e
196
silenciosas por parte dos docentes, raros foram os professores que na
noite do evento de fato aceitaram o nosso convite ao diálogo.
Registro 6, 7
Filosofar a partir da primeira pessoa do plural não é uma
prática comum da tradição herdada. A filosofia europeia apenas
desenvolveu o pensamento a partir de um enunciado, o eu, um
pronome pessoal, na primeira pessoa do singular. Mas, em outros
territórios geográficos, atentos aos aspectos culturais múltiplos,
surgem questionamentos, propostas que desafiam tal tradição
hegemônica, por exemplo o pensamento de bell hooks. Para a
filósofa negra e estadunidense, “Fazer da sala de aula um contexto
democrático onde todos sintam a responsabilidade de contribuir é
um objetivo central da pedagogia transformadora” (HOOKS, 2019,
p. 56).
O contexto democrático ao qual a autora refere-se, implica
um modo de ensino em que o aluno é parte ativa do processo
inserido. Para tanto, o referencial não é o sujeito ou uma categoria
universal, como o pensamento europeu concebeu principalmente a
partir do Iluminismo. O contexto universitário norte americano da
década de 1970 em diante, não permitiu bell hooks reafirmar a
tradição de pensamento hegemônico. Sobretudo devido ao fluxo
migratório do país e às políticas de inclusão, o espaço acadêmico
tornou-se um rico espaço de encontro para o desenvolvimento pleno
do conceito de democracia, ou ao menos para questionar a
aplicabilidade de tal conceito. As iniciativas, experiências frutíferas,
197
advém de um feminismo negro disposto ao diálogo e ao combate da
hegemonia branca, historicamente instaurada pelos processos do
Imperialismo e do Colonialismo, cujo objetivo não era somente o de
conquistar territórios, mas também de exterminar os povos nativos
e toda a sua cultura. Ou seja, também havia a implicação de um
projeto de morte epistêmica, da cultura e do pensamento do outro.
Em sala de aula, um conselho simples e sábio era o motor para uma
pedagogia libertadora, “Na sala de aula, comunico o máximo
possível a necessidade de os pensadores críticos se engajarem um
múltiplas posições, considerassem diversos pontos de vista, para
podermos reunir conhecimento de modo pleno e inclusivo”
(HOOKS, 2019, p. 124).
Primeiro, estamos diante do pensamento de uma intelectual,
que assim como Trajano, enquanto aluna ou enquanto professora
nunca deixou de refletir sobre a própria formação filosófica. E
consequentemente ambos não duvidaram da capacidade da
educação e do ensino de transformar paradigmas aparentemente
resistentes às mudanças. Uma das referências da filósofa inclusive é
brasileira, em inúmeras obras bell hooks reafirma e comenta o
trabalho do Paulo Freire, fundamental para a criação da análise
multiculturalistas a qual desenvolveu. Ainda sobre fazer filosofia
para além da primeira pessoa do singular, ela relata que “Muitas
vezes, os professores e os alunos no contexto multicultural têm de
aprender a aceitar diferentes maneiras de conhecer, novas
epistemologias” (HOOKS, 2019, p. 59).
O pensamento dos povos africanos, a epistemologia
construída por eles, representa um arquétipo plural, complexo e
diferente da invenção grega, fonte referencial da construção do
198
pensamento europeu ou eurocêntrico. Muniz Sodré desenvolveu
uma pesquisa exímia sobre, mais especificamente analisando o
pensamento nagô, que advém de uma nação africana que
historicamente influenciou a cultura nacional devido à diáspora
africana. Para o autor,
a nossa hipótese relativa a um modo específico de pensar no
complexo simbólico nagô não é “negra” portanto, não deriva
categoricamente de nenhuma “relação raciala sim afro, por
comportar processos inteligíveis apenas à luz da Arkhé africana.
É possível falar de um perspectivismo, no sentido nietzschiano
de um modo de pensar assentado sobre um viés particular e não
sobre a pretensão de se anunciar verdades absolutas (SODRÉ,
2017, p. 20).
As diferenças culturais influenciam mais do que a questão
racial para Muniz Sodré, quando se trata de epistemologias. O afro,
o continente africano, possui um complexo simbólico maior que a
questão racial, conceito inclusive inventado pela racionalidade
branca e muito bem desenvolvida, argumentada, na obra de Frantz
Fanon Pele Negra Máscaras Brancas.
São muitos os exemplos que poderiam ser retomados para
desenvolver a questão, de trabalhos voltados às análises
historiográficas aos pragmáticos. No presente texto selecionei
pensadores dispares inclusive, para reafirmar a necessidade de
conhecer novas epistemologias, ou melhor, epistemologias ainda não
reconhecidas nos cursos de filosofia no Brasil. A hegemonia, a ação
de determinadas histórias, tradições, epistemologias ou ensino sob
199
outras, é uma repetição que deve ser lembrada diante das
problemáticas filosóficas enfrentadas no Brasil. Como nos lembra o
filósofo congolês: “Os contrastes entre preto e branco contam uma
história que provavelmente duplica uma configuração
epistemológica silenciosa mas poderosa” (MUDIMBE, 2019, p.
27). Denunciar tal silêncio pode ser uma proposição encorajadora a
todos, independente de raça, gênero ou qualquer outro título, para
a construção de uma filosofia que não sucumbi à um eu, à um
continente, à uma única epistemologia.
Registro 8, 9, 4, 15
Não escrever porque este,
em última instância,
não é o melhor século
para não escrever.
(Ricardo Aleixo)
Escrever a fim de registrar os acontecimentos, as lutas, os
avanços conquistados e os retrocessos do que no passado foi
realizado. Há muito o que escrever, não porque há pouco o que já
foi escrito sobre o Ensino de Filosofia no Brasil, ao contrário, esta é
uma área de pesquisa que se desenvolve qualitativamente no país.
Mas, porque há muito o que deve ser anunciado, refletido e
modificado.
Como arquivista retomo os acontecimentos a fim de
registrar: a importância do trabalho desenvolvido por um professor
e filósofo; a resistência das atividades políticas e estudantis na
200
universidade; a invisibilidade do aluno como sujeito ativo da própria
formação; a limitada, porém hegemônica tradição do pensamento
filosófico. Acontecimentos díspares, mas não dispersos, pois todos
são movidos pelo Ensino da Filosofia e de certa forma constam na
contribuição filosófica do Trajano para nós. Finalizo o texto com a
sensação de não terminá-lo, mas ciente e satisfeita com as linhas
introdutórias oferecidas aos leitores.
Referências
ALEIXO, Ricardo. Pesado demais para a ventania: antologia
poética. São Paulo: Editora Todavia, 2018.
ARANTES, Paulo. O Novo tempo do mundo. São Paulo: Editora
Boitempo, 2014.
ARRUDA, Antônio Trajano Menezes. Entrevista com o Prof. Dr.
Antonio Trajano Menezes Arruda. Revista Kínesis, v. V, n. 09,
Edição Especial, p. 01-20, jul. 2013. Entrevista de João Antônio
de Moraes e Marcio Tadeu Girotti.
CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal/ Diário de um
retorno ao país natal. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2012.
DELEUZE, Guilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro/São
Paulo: Editora Paz & Terra, 2018.
DELEUZE, Guilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. Rio
de Janeiro: Editora 34, 2010.
201
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador:
EDUFBA, 2008.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e
democracia na era do Império. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora
Record, 2014.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática
da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo
cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
LIMA, Maurinete. Sinhá Rosa. São Paulo: Invisíveis Produções,
2017.
MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção da África: Gnose, filosofia
e a ordem do conhecimento. Petrópolis: Editora Vozes, 2019.
NEGRI, Antonio. O poder constituinte: Ensaios sobre as
alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: Editora Lamparina,
2015.
NOGUERA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639. Rio de
Janeiro: Editora Pallas, 2014.
202
ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: Notas para uma vida não
cafetina. São Paulo: Editora N-1, 2018.
SILVA, Denise Ferreira da. A dívida impagável. São Paulo: Editora
Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019.
SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
203
A luta do movimento discente frente a reestruturação do
Curso de Filosofia da UNESP/Marília em 2013: A
dignidade da licenciatura
Elói Maia de OLIVEIRA
1
“Nas relações entre Filosofia e educação só existem realmente duas
opções: ou se pensa e se reflete sobre o que se faz e assim se realiza
uma ação educativa consciente; ou não se reflete criticamente e se
executa uma ação pedagógica a partir de uma concepção mais ou
menos obscura e opaca”.
(Cipriano Luckesi)
Introdução
Pensar o ensino da filosofia no ensino médio não é uma
tarefa fácil, principalmente quando a formação daquele docente não
foi suficientemente básica em sua graduação para lhe fornecer
instrumentos para tal empreitada. Não é de hoje que se discute a
formação dos professores na licenciatura e o que deve conter em sua
formação para torná-lo um profissional adequado para os desafios
da sala de aula atual. Diante dessa preocupação e do que estava por
1
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista UNESP/Marília.
Professor de Filosofia na E.E. Edson Vianei Alves Prof. (Marília/SP). E-mail:
eloimaia@gmail.com.
204
vir, discentes do curso de filosofia da UNESP/Marília,
principalmente das turmas de 2009, 2010 e 2011 decidiram por se
mobilizar e organizar um movimento estudantil histórico que
geraria mudanças substanciais nas futuras formações de professores
de filosofia desta instituição.
A minha busca pela filosofia deu-se justamente através da
disciplina no ensino médio da qual me chamaram a atenção os temas
abordados, sua pertinência para a busca de respostas e de como os
filósofos se propunham a tal engajamento de construir uma filosofia
para sustentar suas convicções e certezas. Meu ingresso no curso de
graduação deu-se no ano de 2010, com um claro objetivo: formar-
me e lecionar para adolescentes que, como eu, pudessem se
apaixonar pela filosofia como eu me apaixonei.
Em meu primeiro ano, tudo muito novo, tive tremendas
dificuldades para compreender a linguagem puramente filosófica e
obras densas que fizeram, ao mesmo tempo, me desafiar para a
leitura como me desanimar e acreditar que não era capaz (até então
aqui não sabia se de fato eram os textos tão complexos ou a didática
dos professores que dificultavam as coisas). Diante desse cenário
hostil para discentes do primeiro ano, (pois em conversas com
demais colegas as dificuldades eram quase unânimes), tínhamos um
professor que fugia da regra, o professor Antônio Trajano, que era
conhecido apenas como Trajano.
Esse professor que, em 2010 tinha por volta de seus 70 anos,
mas com vigor de um homem de 20, lecionava a disciplina chamada
“Introdução à Filosofia e a Leitura de textos filosóficos”. Sua
metodologia era fantástica. Ele expunha teses filosóficas e faziam
205
discentes debaterem entre si com argumentos prós e contras à
sustentação destas teses e expunha certos argumentos filosóficos com
base em autores clássicos. Cada argumento que ele nos dava nos
convencia, mas, no minuto seguinte, ele nos convencia com outro
argumento totalmente contrário ao anterior. Saíamos esgotados da
aula, mas com uma satisfação imensa.
Ao comparar a metodologia adotada pelo Trajano, em
relação ao demais professores, pode-se notar além de características
pessoais, como: a relação de afeto professor-aluno; a preocupação
em, de fato, acompanhar o raciocínio e argumento que o estudante
apresentava para entender a sua lógica, havia uma atenção pela forma
como era conduzido e introduzido os temas filosóficos para sua
exposição. Era apresentado o tema. Depois, ele permitia que os
estudantes falassem sobre o tal, se já pensaram sobre, se tínhamos
alguma concepção ou conceito formado. Em seguida, apresentava
algumas ideias clássicas sobre o tema. E a partir disto, as discussões
ocorriam com os argumentos e pensamentos apresentados pelos
estudantes e os apresentados pelo professor. A aula ocorria em um
formato dialógico, sempre com inserções de novos elementos para a
discussão, ora pelos textos dos filósofos, ora por vídeos, vivências,
etc.
Compreendo que a disciplina oferecida carrega em sua
essência o caráter temático, e poderíamos pensar que, as outras
disciplinas por terem sua abordagem mais histórico-filosófica, por
exemplo, História da Filosofia Antiga, História da Filosofia
Moderna e etc, a didática/metodologia ficaria limitada a ser exposta
de uma maneira conteudista.
206
Justamente por serem disciplinas que carregam um peso
teórico-histórico-filosófico, há uma necessidade dos docentes que
ministram tais disciplinas se preocuparem com sua exposição,
principalmente por se tratar de estudantes no primeiro ano do curso,
na qual apresenta uma enorme pluralidade de formação e bagagem,
ora podendo acompanhar com tranquilidade tal percurso, ora
apresentar enorme dificuldade. As questões que me moveram a
pensar a importância da licenciatura a partir deste contexto foi:
Como vou conseguir ensinar sobre Platão e Aristóteles para alunos
do ensino médio? Será apenas com leituras e comentários como são
feitos na graduação? Será de caráter expositivo? Isso é ensinar algo a
alguém, a pura transmissão de leitura do texto e seu comentário?
Essa problemática tornou-se mais latente quando assumi algumas
aulas no ensino médio no ano de 2012, que me deterei mais para
frente sobre tais reflexões.
Voltando a aula do Trajano, lembro-me que ele queria que
nos organizássemos em grupos para apresentação de seminários
sobre determinados temas (não existia ainda WhatsApp e o
Facebook ainda estava começando a se tornar público) e por eu ser
uma pessoa bem expansiva, pediu que eu organizasse e enviasse por
e-mail a ele os grupos formados. E é aqui que começa minha atuação
para ser representante de classe e, posteriormente, representante
discente do curso de filosofia no Departamento de Filosofia.
Na UNESP, os colegiados são formados nas seguintes
formas: Conselho de Curso, Departamento de curso e Congregação.
Essas três instâncias contêm representação discente. No Conselho de
Curso, são 6 docentes com respectivos suplentes e 5 discentes com
respectivos suplentes. Em decisões de deliberação, todos votam, e,
207
caso de empate, o coordenador do curso tem o “voto de minerva”.
No caso do Departamento, os discentes têm mais um papel
consultivo e informativo do que propriamente deliberativo, pois são
apenas 2 discentes com respectivos suplentes que compõem
regimentalmente parte do conselho departamental (que inclui
decisões na pós-graduação, apesar de a pós-graduação ter o seu
Conselho) com o corpo docente constituído de 15 membros na
época, ou seja, todas as decisões tomadas eram substancialmente em
razão dos votos docentes. E a Congregação com um regime chamado
“70/15/15” dos quais compõem, 70% de docentes, 15% de
discentes e 15% de funcionários (já se verifica previamente como se
dão os andamentos nesta instância).
Dito isto, por todo o meu período na graduação, 4 anos,
(depois mais 1 ano de bacharelado) fui representante discente no
Departamento, local onde ocorriam as maiores discussões sobre o
curso (mesmo não sendo a instância correta de discussão que, no
caso, seria o Conselho de Curso, em que se tem o voto paritário)
pela argumentação de que todos os docentes se encontram nesta
reunião e é de interesse em comum (muitas vezes as reuniões de
Conselho de Curso eram esvaziadas pelos próprios docentes, ficando
assim, sem quórum para as deliberações necessárias fazendo-as na
reunião departamental).
Em 2013, chega uma notícia que mudaria todo o rumo das
futuras formações dos professores de filosofia e das demais
licenciaturas. Começa a ser divulgada a informação de que os cursos
de licenciatura de todas as universidades sofreriam alterações
substanciais em suas grades de formação, a fim de capacitar e
qualificar o profissional da licenciatura incumbindo a faculdade de
208
disponibilizar, em sua grade de formação, certas disciplinas
obrigatórias (já intituladas pelo MEC) e que os cursos teriam que se
adaptar para poder ministrá-las, tanto em relação à carga horária
como na sua oferta. Eis aqui o momento claro em que os professores
do Departamento de Filosofia teceram duras críticas a esta nova
reestruturação e tiveram uma posição de grande resistência à
mudança.
Um dos primeiros argumentos colocados na reunião de
discussão sobre esta nova reestruturação foi que o curso tinha como
objetivo e finalidade “formar acadêmicos, profissionais para a
pesquisa”. Outra queixa era de “como conciliariam a carga horária
pedida com as disciplinas já ofertadas, uma vez que teriam então que
suprimir disciplinas já existentes para encaixar as outras”, e “de quem
oferecia estas disciplinas voltadas especificamente para a
licenciatura?”. Vários docentes, de antemão, já se posicionaram
contrários a ministrar tais disciplinas, docentes estes que
concordaram com a primeira argumentação feita. Outros docentes,
de um modo mais reflexivo, se posicionaram de forma a levar ao
colegiado, de fato, a refletir sobre as mudanças e pensar
possibilidades, ouvir os discentes, ao invés de encarar essa mudança
como algo totalmente negativo.
Diante deste cenário e com os argumentos ditos, eu e os
demais conselheiros, tanto o outro colega discente do Departamento
quanto os do Conselho de Curso, chamamos uma assembleia de
curso, no primeiro semestre de 2013, para expor as mudanças que
estavam por vir. Dos encaminhamentos dados, foi tirada uma
comissão de alunos que estudaria mais de perto todo esse processo
de reestruturação e como os discentes poderiam participar.
209
A comissão contou com cerca de 7 discentes engajados para
compreender detalhadamente esse processo e estudar os documentos
pertinentes para tal reestruturação. Os documentos em que se
basearam nossos estudos iniciais foram: A Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional LDB (1996), as Diretrizes Curriculares para os
cursos de graduação em Filosofia CNE/CES 492/2001, o Manual
de Instruções e Normas de Graduação (2006) Linhas de Ação para
Orientação dos Trabalhos de Reestruturação Curricular das
Licenciaturas e o Projeto Pedagógico do Curso de Filosofia da
UNESP/Marília.
O estudo documental
Depois de estipulados os documentos-base para o processo
de reestruturação e analisados individualmente, nos reunimos para
expor nossas visões e perspectivas e pensar nos devidos
encaminhamentos que deveriam ser dados e considerados para todo
o trâmite. Resolvemos discutir do macro para o micro, ou seja,
primeiro pela LDB, as Diretrizes, o manual e o PP. Na LDB,
percebemos que se trata de elementos gerais e de algumas questões
burocráticas de ordem de funcionamento a fim de regular a oferta
de ensino da Universidade. Logo, não contribuiu para o nosso objeto
específico que era pensar a nova oferta da licenciatura, uma vez que
a LDB não versava especificamente sobre isto.
Já as DCN para os cursos de Filosofia indicavam caminhos
muito interessantes de como o curso deve ser estruturado, desde o
perfil dos formandos, as competências e habilidades, os conteúdos
210
curriculares, a organização do curso, a estrutura, os estágios e
atividades complementares. Desse modo, já aproveitamos a leitura e
começamos a comparar o que as Diretrizes apontavam com o PP do
curso de Filosofia.
Nas Diretrizes, encontramos que o perfil dos formandos
tenha “sólida formação de história da filosofia, que capacite para a
compreensão e a transmissão dos principais temas” (BRASIL, 2001,
p. 3), sendo o licenciado “habilitado para enfrentar com sucesso os
desafios e dificuldades inerentes à tarefa de despertar os jovens para
a reflexão filosófica [...] e o gosto pelo pensamento inovador, crítico
e independente” (BRASIL, 2001, p. 3).
Quando lemos o PP do curso de Filosofia sobre o perfil dos
formandos, o que encontramos acerca da modalidade da licenciatura
é: “Familiarizado com a técnica da ‘explicação de texto’, tornando-a
privilegiado instrumento do ensino da Filosofia no 2º grau”
(UNESP, [19-?], n. p.). Claramente observamos um total
desalinhamento entre os documentos e dos seus perfis formadores
da modalidade da licenciatura. Eu, como professor de filosofia do
ensino médio (e não mais 2º grau), não estou e não posso apenas
estar com uma instrumentalização da “explicação de texto”.
O que torna mais problemática a formação é quando nos
deparamos com os “Conteúdos Curriculares” previstos nas
Diretrizes e que ao lermos o PP do curso torna-se alheio aos
interesses dos licenciados.
O elenco tradicional das cinco disciplinas básicas (História da
Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética, Lógica, Filosofia
211
Geral: Problemas metafísicos. Além de duas disciplinas
científicas), tem se comprovado como uma sábia diretriz. Tal
elenco vem permitindo aos melhores cursos do País um ensino
flexível e adequado da Filosofia. Entretanto, tendo em vista o
desenvolvimento da Filosofia nas últimas décadas, algumas
áreas merecem ser consideradas, como: Filosofia Política,
Filosofia da Ciências (ou Epistemologia), Estética, Filosofia da
Linguagem e Filosofia da Mente. No caso da licenciatura,
deverão ser incluídos os conteúdos definidos para a educação
básica, as didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas
que as embasam (BRASIL, 2001, p. 4, grifos nossos).
No que tange à licenciatura, está claro no documento
orientador que sejam ofertados os conteúdos definidos para a
educação básica e sua didática própria. Eu, na época como aluno do
3º ano do curso (e nem depois no 4º ano), não tive nenhuma
disciplina que me dessa esta apropriação conteudista para a educação
básica e muito menos as didáticas próprias (ter a disciplina de
“Didática” na grade curricular não significa que tal disciplina fosse
oferecida pensando os conteúdos filosóficos à luz de seu ensino no
ensino médio). Tal divergência é denunciada, não apenas no meu
relato como ex-discente do curso, mas no próprio PP do curso, em
que lemos que:
O ensino da Filosofia no segundo grau passa significativamente
pela mediação do livro didático. Tal leitura tradicionalmente
não encontra espaço nos Cursos de Graduação em Filosofia. De
um lado, o recurso exclusivo às fontes primárias e às suas
melhores traduções, o acesso aos artigos de caráter estritamente
científico e acadêmico e também o estudo de textos dos grandes
212
comentadores, mantêm e garantem o elevado nível de formação
do futuro profissional. [...] Por outro lado, salvo devido a um
pendor pessoal ou a uma experiência encontrada fora, o jovem
professor vê-se pouco informado sobre o melhor material
didático disponível e sobre a melhor maneira de utili-lo
(UNESP, [19-?], n. p., grifos nossos).
Ora, o PP reconhece que o material exclusivo do professor
de filosofia é o livro didático, contudo alega que tal instrumento não
cabe na Universidade? Só a formação com as fontes primárias com
boas traduções (apesar de que as Diretrizes no campo de
“Competências e Habilidades” apresenta que o aluno de filosofia
deve ter “capacidade e leitura e compreensão de textos filosóficos em
língua estrangeira”) e comentadores é suficiente? De fato, a formação
do licenciado está sendo oferecida ou está sendo negligenciada para
uma valorização apenas do bacharel? E este bacharel, não se
professor universitário um dia? Estas e mais algumas reflexões foram
levantadas na época.
Por fim, discutimos o Manual que rege a normatização dos
cursos de graduação da UNESP. O Manual trouxe certos elementos
que levantaram reflexões acerca dos apontamentos que realizamos na
comparação das Diretrizes e o PP do curso de Filosofia,
problematizando ainda mais a precarização do licenciado nestes
moldes que vinham sendo apresentados.
Quanto aos princípios gerais: A formação de professores não
pode ser concebida como uma superposição de dois conjuntos
de conhecimentos, em que o estudo do saber disciplinar
antecede o do saber pedagógico. As disciplinas ditas
213
pedagógicas terão que integrar a estrutura curricular de forma
harmoniosa e não poderão estar concentradas em um ou dois
anos. O saber pedagógico não complementa a formação do
bacharel, articula-se com ela. Não se trata de alimentar a lacuna
entre Licenciatura e Bacharelado, mas de garantir que núcleos
comuns se construam e que as especificidades de cada formação
se evidenciem (UNESP, 2006, p. 10).
O nosso questionamento se estabeleceu em: Será que nossa
formação ocorre, de fato, essa harmonia entre Licenciatura e
Bacharelado? Pelo que vimos nos documentos citados, será que o
curso de Filosofia agia de tal modo que não necessitasse de tal
reestrutura?
Recomenda-se que os cursos não retrocedam com relação à
densidade de seus conteúdos e à sua duração, garantindo-se
uma formação básica sólida para licenciados e bacharéis bem
como a formação do professor capaz de exercer a ação docente
com competência técnica e eticamente comprometida com os
interesses da maioria e com os direitos da cidadania (UNESP,
2006, p. 10).
A formação docente, tanto para quem optava por seguir a
modalidade de licenciatura, quanto para quem optava pela
modalidade de bacharelado era adequada? A discussão sobre a
formação docente é citada apenas uma vez no PP, tornando-a
praticamente nula. Afinal, a importância de uma boa formação
docente cabe apenas aos licenciados?
214
No apontamento da “Quanto à prática como componente
curricular” o Manual apresenta:
A ‘prática como componente curricular’ ou prática
intencionalizada para a formação do professor deverá estar
presente desde o início do curso, seja nas aulas práticas das
disciplinas de conteúdo independentemente de
contemplarem também o bacharel seja nas atividades
realizadas no interior das escolas, seja nas atividades extra-
muros do ambiente universitário e escolar (órgãos técnicos e
administrativos da educação, ONGs, projetos especiais etc.)
seja ainda no interior de algumas disciplinas específicas de
natureza eminentemente prática (Ex:“Prática de Ensino
de...”,“Metodologia do Ensino de...”ou “Instrumentação para
o Ensino de...”). Assim, a “prática intencionalizada para a
formação do professor” poderá contar com a colaboração de
todos ou da maioria dos docentes do curso (UNESP, 2006, p.
10, grifos nossos).
Este Manual foi redigido em 2006, ano em que foi realizada
a formulação da nova grade do Curso de Filosofia. Lendo o que o
Manual diz, e observando a grade curricular do Curso, notamos
claramente a não observância no quesito: formação do professor
desde o início do curso que também contemple o bacharel e que
conte com a colaboração dos docentes do curso.
As disciplinas especificamente da licenciatura em filosofia
oferecidas eram: Psicologia da Educação, Didática I e II, Estrutura e
Funcionamento do Ensino Fundamental e Médio e Estágio
Supervisionado I e II. Todas estas disciplinas eram oferecidas pelo
Departamento de Educação sem nenhum diálogo com os docentes
do Departamento de Filosofia. Portanto, todas disciplinas ofertadas
215
para a modalidade da Licenciatura não dialogavam com as
disciplinas oferecidas no núcleo comum do curso de Filosofia.
Assim, chegamos à segunda parte do Manual que visa
compreender o processo de reestruturação ou alteração do currículo.
Por definição,
Reestruturação curricular é o processo que visa à modificação
substantiva na estrutura curricular vigente e que decorre da
verificação de defasagem ou da inadequação da estrutura atual
às exigências da realidade, ou ainda de novas determinações
legais referentes ao currículo (UNESP, 2006, p. 17).
Questionamos se, de fato, o nosso curso se estruturava nas
exigências atuais, capacitando-nos para a realidade fora do mundo
acadêmico da Universidade. Para se pensar a reestruturação, o
Manual indica uma documentação necessária para tal feito, sendo:
Justificativa da reestruturação, resultado da avaliação do curso, breve
histórico do curso, a adequação do currículo vigente às necessidades
regionais e nacionais, tendo em vista o profissional formado e as
novas exigências sociais, a situação da profissão, a caracterização do
alunado relação oferta/demanda e demanda/matrícula e o
acompanhamento de egressos no mercado de trabalho.
Diante dessas informações, ficamos atentos para observar se
haveria uma busca por parte do Conselho de Curso ou do
Departamento acerca destas exigências para a reestruturação do
curso. Desta reunião feita com os 7 discentes do curso tivemos uma
ideia, a fim de contribuir com os dados necessários para
compreender quem eram os discentes do curso e o que eles buscavam
216
no Curso de Filosofia. Em 2013, foram coletadas informações, por
meio de um questionário dos discentes das turmas que ingressaram
em: 2010, 2011, 2012 e 2013 (tivemos dificuldade de coletar dados
da turma de 2009, pois a grade do 4º ano era muito fragmentada,
logo os discentes eram dispersos nas disciplinas optativas). Com estes
dados em mãos e mais uma elaboração de pauta de reinvindicações
elaborada pelos discentes do curso para o Curso de Filosofia,
marcamos um evento intitulado “NOSSA FILOSOFIA”.
A pauta de reivindicação e o resultado da pesquisa
No dia 01 de outubro de 2013 foi realizado, na sala 64, um
Fórum do Curso de Filosofia para divulgação dos resultados da
pesquisa e da pauta de reivindicação elaborada em Assembleia dos
estudantes do curso. A pauta de reivindicação incluía os devidos
pontos:
- Abertura de uma nova turma em Filosofia no campus da
UNESP/Marília com proporcional ampliação do corpo docente. A
discussão central era pela justificativa que o curso de Filosofia da
UNESP tinha um corpo docente muito pequeno e,
consequentemente, não se tinha docentes de diversas áreas e
especialidades ficando prejudicada a formação e pesquisa de demais
discentes, que, por muitas vezes, gostaria de pesquisar uma temática
ou filósofo específico, mas não havia ninguém do corpo docente que
se propunha a tal pesquisa. A argumentação dos docentes do
Departamento que impossibilitava a contratação de novos docentes
era pelo motivo da quantidade de turmas oferecidas pelo curso.
217
Logo, nossa argumentação foi a de que se abrissem turmas, para
então, ampliar o quadro docente, sendo benéfico tanto para o curso
que teria mais turmas e pessoas formadas quanto para o campus.
Porém, a posição do Departamento era que eles gostavam de ser um
curso pequeno, com uma formação concentrada, visando à
qualidade e não à quantidade, (como se uma coisa anulasse a outra),
que, neste caso, não é esta a implicação, ou seja, a qualidade não seria
afetada pela quantidade, mas ao contrário, pela quantidade, a
qualidade aumentaria, visto o maior número de docentes, logo de
pesquisa, formação e progressão na carreira.
- Ampliação do acervo de livros de acordo com a demanda
do Curso.
- Ampliação do número de cotas do LABI (Espaço onde era
permitido imprimir certo número de cópias de textos que os
docentes enviavam para leitura obrigatória, mas que quase sempre
os textos dados das disciplinas excediam o número de cópias
permitidas).
- Ofertar disciplinas das Línguas clássicas, como o: grego e o
latim dada a especificidade da Filosofia.
- Pela imediata realização de fóruns entre os professores e
entre os estudantes que compõem o curso de Filosofia a fim de
debater a reestruturação da grade do curso de Filosofia da UNESP.
- Pela exigência de que os professores de todos os
Departamentos que compõem o Curso de Filosofia pudessem
participar ativamente das discussões que os envolvam (a discussão da
reestruturação do Curso de Filosofia estava apenas do âmbito do
Departamento de Filosofia, mas outros Departamentos também
218
compunham a formação do curso, como os Departamentos de
Didática e Educação e Desenvolvimento humano).
- Que toda votação referente ao Curso de Filosofia ocorra no
respectivo órgão competente: O Conselho de Curso (como já
supracitado, as discussões ocorriam em reunião Departamental e não
no Conselho de Curso).
- Que as modalidades de Licenciatura e Bacharelado sejam
tratadas com a mesma importância pelos Departamentos que
compõem o Curso de Filosofia.
- Pela gratuidade dos eventos em Filosofia promovidos pela
FFC para os estudantes do Curso (Diante da necessidade de cumprir
os créditos complementares e muitos alunos não tinham condições
financeiras de arcar com os custos de inscrições de eventos).
- Pela exigência do cumprimento de todas as atribuições do
corpo docente, a serem definidas pelo Conselho de Ensino, Pesquisa
e Extensão Universitária, obedecendo ao princípio de integração das
atividades de ensino, de pesquisa e de extensão universitária
conforme o artigo 78 do Estatuto da UNESP, p. 35.
Apresentada a pauta de reivindicação, houve a exposição do
resultado do questionário formulado. O questionário foi respondido
por 60 discentes das turmas de ingresso dos anos de: 2010, 2011,
2012 e 2013, pelo formulário do Google Forms e enviado ao e-mail
dos discentes do curso restrito apenas a uma resposta por e-mail
vinculado à matrícula no Curso de Filosofia. As perguntas foram as
seguintes:
219
Objetivo e justificativa da realização do questionário:
Processo que visa à modificação substantiva na estrutura curricular
e que decorre da verificação de defasagem ou inadequação da
estrutura atual às exigências da realidade.
Em relação à modalidade do Curso, qual você pretende
cursar?
10% - Somente Bacharelado
8% - Somente Licenciatura
58% - Licenciatura e posteriormente bacharelado
23% - Bacharelado e posteriormente Licenciatura
O Projeto Pedagógico do Curso de Filosofia da UNESP
entende o perfil profissional de seus bacharéis como: “O bacharel em
Filosofia é profissional capacitado ao trabalho de docência e pesquisa
no ensino superior, plenamente habilitado para o trabalho
intelectual, desenvolvendo ensaios cuja característica é a
originalidade da reflexão, bem como comenrios de alta
especificidade técnica e erudição histórico-filológica”. Sobre o
referido perfil profissional, você considera que o PP:
11% - Habilita plenamente para este perfil.
48% - Habilita parcialmente para este perfil.
20% - Habilita raramente para este perfil.
20% - Não habilita para este perfil, ainda que o diga.
O Projeto Pedagógico do Curso de Filosofia da UNESP
entende o perfil profissional de seus licenciados como: “Igualmente
familiarizado como a técnica da ‘explicação de texto’, tornando-o
220
privilegiado instrumento do ensino de Filosofia no 2° grau. O
licenciado deverá, também, promover o contato produtivo de seus
alunos com os mais significativos movimentos da cultura ocidental,
no domínio das ciências e das artes”. Sobre o referido perfil
profissional, você considera que o PP:
7% - Habilita plenamente para este perfil.
52% - Habilita parcialmente para este perfil.
23% - Habilita raramente para este perfil.
18% - Não habilita para este perfil, ainda que o diga.
Qual a sua avaliação sobre as disciplinas (conteúdo, método,
didática, carga horária) para a formação do licenciado em Filosofia?
4% - Excelente
2% - Muito bom.
18% - Bom
39% - Razoável
30% - Ruim
4% - Péssimo
3% - Não quis opinar
Qual a sua avaliação sobre as disciplinas (conteúdo, método,
didática, carga horária) para a formação do bacharel em Filosofia?
4% - Excelente
9% - Muito bom
221
29% - Bom
39% - Razoável
14% - Ruim
4% - Péssimo
1% - Não quis opinar
Depois de divulgados a pauta e os resultados, os discentes
deste comitê teceram breves reflexões sobre os dados obtidos e
interpretados à luz da reestruturação que o Curso de Filosofia
sofreria.
A mim, couberam algumas considerações sobre a filosofia no
ensino médio e o papel do professor de filosofia neste contexto da
reinserção da disciplina de caráter obrigatório em 2008 pela Lei Nº
11.684, de 2 de junho de 2008. Questionei que, por estarmos
passando por um processo de reestruturação, precisaríamos pensar
como a formação dos professores de filosofia tem se efetivado e se
condiz com a prática na sala de aula do ensino médio. Eu comecei a
lecionar em 2012, como contratado, justamente pela falta de
profissionais formados na área, ou seja, eu como aluno do 3° ano do
curso já estava lecionando, e este movimento em parte foi bom, para
de fato ver as possibilidades e dificuldades de um professor de
filosofia em uma sala de aula do ensino médio e se o que vinha se
aprendendo na universidade condizia com a possibilidade de sua
aplicação.
Indagações que foram despertadas ao longo do curso se
materializou quando entrei em uma sala de aula como professor.
Naquele momento, diante de 30 alunos pensei: Como vou expor
222
para eles a importância da filosofia através dos filósofos que estou
estudando na universidade? Recorri a quem tive como exemplo
metodológico: o Trajano.
Tratei de conhecer os alunos primeiro. Seus desejos e
ambições. Perguntei o que achavam da Filosofia e o que esperava das
aulas. Contei um pouco como foi meu ingresso no curso e o que me
fez ir para as questões filosóficas. Apresentei para eles o currículo e o
porquê estudaríamos aqueles temas. A cada apresentação do tema
e/ou filósofo buscava primeiro deles, pela sensibilização, se já
ouviram sobre o tema, se tinham algum conceito pré-estabelecido
sobre ele, e a partir dos elementos que os alunos expunham, partia
para algum encontro com o que havia preparado.
Ora, dava super certo, ora não. Alguns super interessados, e
outros nem tanto. A preocupação do professor é em cativar a todos
para participar e se interessar pelo tema. Não é tarefa fácil. Não é
algo que se aprende na universidade. Lá você aprende ou “aprende”.
Na escola a dinâmica é outra. A formação didática é fundamental
para saber lidar com os jovens, seus anseios, compreender seu
momento, sua linguagem, entre outros fatores fundamentais para
“entrar” no mundo deles e trazer ele para o seu, e ambos poderem
compartilhar seus mundos de uma forma sinérgica. E isso, não
vemos em nossa formação.
Mais algumas questões rondavam meu pensamento, como:
a formação do Curso de Filosofia é o de formar historiadores de
filosofia ou filósofos? E em ambos os casos, qual seria o método? Não
obstante, aproximar a filosofia do cotidiano escolar vivido pelos
alunos não é uma tarefa fácil, apesar de elas serem interligadas. Os
223
alunos não têm familiaridade com o exercício do filosofar e, neste
caso, pode um professor, querendo contextualizar a filosofia para a
realidade deles, cair no erro espontaneísta (SILVA, 2011, p. 125). A
culpa não é exclusivamente do professor, mas sim, de sua formação
universitária que não o capacita plenamente para esse exercício de
diálogo no ensino médio.
Encerradas todas as exposições e reflexões, dias depois, foi
marcada uma reunião Departamental para discussão da
reestruturação do curso e a pauta de reivindicações. A reunião seria
aberta a todos os discentes, e eu, além de discente e representante
discente do Departamento, estava na reunião com outros colegas de
Curso.
De várias discussões e colocações feitas, a que cabe salientar
aqui foi a retomada do debate realizado em 2012 acerca de uma
proposta de ser ter uma disciplina que oferecesse justamente este
suporte supracitado para o professor e que ele conseguisse articular
a filosofia acadêmica com a filosofia do ensino médio (mesmo elas
não sendo diferentes, mas sim o seu modo de se comportar), não só
a disciplina de Didática ou Estágio, mas uma disciplina
essencialmente filosófica pensando os problemas pedagógicos, sendo
esta, obrigatória a todos os discentes que fossem para a licenciatura.
Em 2012, a maioria dos docentes do Departamento de
Filosofia discordou radicalmente de tal ideia. Eu, na qualidade de
discente e representante discente do Departamento, ainda defendi
insistentemente a necessidade de tal disciplina. Através de muito
empenho foi cedida, mas o questionamento agora era: quem a
lecionaria?
224
Os mesmos docentes, que a princípio eram contrários, já se
manifestaram dizendo que não seriam. Os docentes que já tinham
sido favoráveis, indicaram o professor Trajano para tal disciplina. Ele
aceitou, apesar de dizer que já estava bem sobrecarregado com outras
atividades. Nós, como discentes, não desfazendo do nome e do
prestígio do professor Trajano, mas justamente para não
sobrecarregá-lo e para trazermos um docente que justamente
pesquisa e estuda especificamente sobre tal assunto, sugerimos o
professor Rodrigo Gelamo (professor que já ministrava outras
disciplinas na licenciatura em Filosofia, como: Estágio e Didática
que revezava com o professor Vandeí) e que tem como pesquisa de
sua tese de doutorado “O ensino de filosofia no limiar da
contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser
professor de filosofia?”. E, neste momento, tivemos outro impasse.
Os docentes do Departamento de Filosofia foram contrários
ao nome do Gelamo, argumentando que, por se tratar de uma
disciplina que viria a ser oferecida no curso de Filosofia,
necessariamente deveria ser ministrada por um professor do
Departamento de Filosofia e não de outro Departamento (no caso,
o professor Rodrigo é do Departamento de Didática). Este
argumento foi rebatido pelo fato que o professor Rodrigo já
ministrava disciplinas obrigatórias para a Licenciatura, mas o que
estava em jogo não era apenas esta pseudo questão burocrática, mas
sim de oferecer uma disciplina de caráter filosófico a alguém do
Departamento “da Educação”.
Mediante a isto, sugeri que a disciplina então fosse ofertada
tanto pelo Trajano quanto pelo Gelamo, uma vez que o Trajano se
disponibilizou, apesar de estar atarefado, sendo o Rodrigo um
225
professor que conduziria, junto, a disciplina, sendo assim, um
professor do Departamento de Filosofia ministrando a disciplina.
Dado o devido argumento, os docentes do Departamento de
Filosofia não puderam recusar. E a disciplina ficou intitulada como
“Questões da filosofia e seu ensino” sendo sua oferta como optativa
iniciada no primeiro semestre de 2013, e posteriormente
incorporada como obrigatória na reestruturação de curso.
Mesmo com tal inserção da disciplina o curso em sua
estrutura não aponta uma importância para a formação do estudante
na licenciatura. A disciplina oferecida se apresenta como um
paliativo para o déficit da formação. Não deveria ser uma disciplina
vista como algo de caráter exclusivamente para a licenciatura, pois já
evidenciamos a importância de disciplinas de caráter didático para a
formação dos bacharéis e futuros pós-graduados. O curso de
Filosofia precisa ser pensado na finalidade de sua formação,
respeitando as legislações pertinentes sobre o tema e apresentar uma
visão orgânica de formação das modalidades de
licenciatura/bacharelado a fim de ser ter um profissional com os
instrumentos necessários para o lecionar e o pesquisar, porque ambas
as práticas são indissociáveis.
Considerações Finais
Em virtude da minha formação em 2014, não consegui
assistir à disciplina pela qual eu junto lutei, mas fiquei feliz pela sua
inclusão na grade dos próximos professores de filosofia que seriam
formados. A notoriedade e maestria do pensamento do professor
226
Antônio Trajano foram dignas da criação de um simpósio em seu
nome, em homenagem aos seus anos de contribuição para a filosofia
no Brasil. A primeira edição ocorreu no ano de 2012 com a frase que
mais movia o seu pensar: “Qual o sentido da vida?”. A
particularidade deste formato de simpósio seria justamente o de não
se referenciar ou citar filósofos, mas sim permitir um pensamento
filosófico autêntico. Em 2012 e 2013 ocorreram os simpósios com
tal temática, dos quais o Trajano participou.
O Departamento de Filosofia havia afirmado que o evento
ocorreria anualmente como forma de incentivar os discentes a
elaborar reflexões próprias e até mesmo estimular os docentes a
ensaios autênticos. Em 2014, o tema do simpósio foi “O que é
filosofia?, mas infelizmente neste, o Trajano não pôde estar
fisicamente presente, pois o evento ocorreu no final de outubro de
2014 e seu falecimento se deu em 11 de setembro do mesmo ano.
Não perdendo a tradição, em 2015, ocorreu o IV Simpósio
Antônio Trajano: O que é filosofia? Parte II, do qual pude fazer parte
da comissão organizadora, finalizando minha trajetória como
graduando no Curso de Filosofia da UNESP e ingressando no
mestrado.
Depois de 2015, houve um hiato do evento retornando em
2017 o V Simpósio Antônio Trajano com o tema: Pensar é agir? E
desde então, não teve mais o evento. Assim, desde 2013, o Curso
de Filosofia veio passando por uma grande reestruturação, ficando
homologada, a partir do ingresso da turma do ano de 2017, uma
nova grade curricular que, constatada em relação ao tempo de
formação, não houve uma mudança substancial, mas sim na
227
implementação de novas disciplinas que não compunham o rol das
disciplinas da licenciatura, como: História e Filosofia da Educação,
Políticas Públicas em Educação Inclusiva, Questões de Filosofia e
seu Ensino (está já estava incluso desde 2014, mas só apareceu agora
na grade curricular atualizada) e Sociologia da Educação.
Pude notar também que a novidade foi a redistribuição das
disciplinas de matriz comum e a inclusão de algumas disciplinas
novas na base de formação, como: Abordagem Pluralista e
Interdisciplinar de Filosofia I e II, Filosofia na Atualidade e Filosofia
da Informação. Fico feliz com estas mudanças que poderão ser
significativas para a formação das turmas a partir de 2017 (que se
formarão em 2021), mas uma pena que o PP não tenha sido
atualizado da mesma forma como a grade curricular foi (o último
dia de acesso ao site da UNESP/Marília na página do Curso de
Filosofia para verificação dos documentos foi realizado em
20/09/2020), ficando expostos aqueles conceitos e textos superficiais
da formação do profissional em filosofia. Como pode haver toda a
mudança estrutural da grade curricular e os docentes não terem se
atentado à reformulação do PP do curso e com a grade do curso
antiga ainda anexada ao mesmo? Que a filosofia não seja apenas
conceitual, mas também atitudinal.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de
Educação. Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação
em Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação
Social, Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e
228
Museologia. CNE/CES 492/2001. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf. Acesso
em: 10 set. 2020.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 9.394, de 20
de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em:
05 set. 2020.
GELAMO, Rodrigo Pelloso. O ensino de filosofia no limiar da
contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser
professor de filosofia?. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. São Paulo:
Cortez, 1994.
UNESP. Manual de instruções e normas de graduação.
Universidade Estadual Paulista, Pró-Reitoria de Graduação
(Organização e redação TANURI, Maria Leonor; PATROCINIO,
Jorgetti; SANTOS, Maria Selma de Souza; OLIVEIRA, Sandra
Maria Modesto de; REIS, Vera das Graças Santos). São Paulo:
UNESP/Pró-Reitoria de Graduação, 2006.
UNESP. Projeto Pedagógico do Curso de Filosofia. Marília, [19-
?]. Disponível em:
https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/projeto.
pdf. Acesso em: 20 set. 2020.
SILVA, Vandeí Pinto da. Cotidiano e Filosofia no Ensino Médio:
mediações. Educação em Revista, Marília, v. 12, n. 1, p. 125-138,
jan./jun., 2011.
229
Questões da Filosofia e de sua luta
Júlio César Rodrigues da COSTA
1
Este texto provavelmente será estranho aos leitores de livros,
capítulos e artigos de Filosofia. É também estranho a mim mesmo
escrevê-lo, depois dos 10 anos de formação acadêmica que me
ensinaram a escrever de outra forma, mais rebuscada, mais
“científica”, mais “filosófica” do que um texto escrito em primeira
pessoa, buscando utilizar, principalmente, a memória sobre fatos
ocorridos há um bom par de anos. Mas é a empreitada que me
coloquei ao ser convidado para escrever estas páginas, e é a que
seguirei, mesmo com a estranheza da situação.
Será este um texto filosófico? Histórico? Um texto opinativo
no qual minha opinião, parcialíssima, dos fatos se sobrepõe a estes?
Deixarei aos futuros possíveis leitores esta análise. Caberá a mim a
tentativa de trazer à tona um processo que as páginas amarelas
costumam silenciar, e minhas reflexões sobre.
A efetivação da disciplina “Questões da Filosofia e de seu
ensino” não foi pacífica e marcou uma transição que muitos dos que
vieram depois dela não sabem. Não que tenha sido um processo
revolucionário; para tal deveria ampliar seu escopo. Mas certamente
1
Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP/Marília.
Professor de Filosofia da rede estadual de São Paulo. E-mail:
julio.rodrigues.92@hotmail.com.
230
não foi pacífico e tampouco um consenso entre as partes deste todo
que, no período, formavam o curso de Filosofia da Faculdade de
Filosofia e Ciências da UNESP/Marília.
Como dito anteriormente, escrevo tudo isso a partir da
minha memória, provavelmente turva, dos fatos. Eu teria e tenho
acesso a muitos dos documentos que aqui serão citados, e não seria
difícil conseguir alguns outros, que dariam mais base “científica” ou
“filosófica” ao texto. Mas, afinal, o que é Filosofia?
“Isso não é Filosofia
Estas palavras, proferidas com um sorriso no rosto, deram o
tom da discussão do Departamento de Filosofia da UNESP/Marília
em 2012, quando o germe da disciplina foi proposto e negado.
Filósofos e estudiosos de Filosofia são costumeiramente criticados
por serem prolixos, numa tentativa de lidar com todas as partes do
todo que se procura compreender; são também, não raramente,
reticentes em definir o que é e o que não é a Filosofia. Nenhuma das
duas características estiveram presentes no momento supracitado,
tendo sido uma discussão inicialmente breve e com muita facilidade
em definir algo como não filosófico.
Isso deixou clara uma certa leitura de que a Filosofia e o
ensinar Filosofia são coisas distintas, e um curso universitário e
acadêmico de Filosofia deve tratar antes da primeira e não da
segunda; a esta cabe um ensinamento didático e pedagógico, mas
não filosófico. No entanto, devido a diversos fatores, desde desejo
231
pessoal a necessidade material, a maioria dos estudantes de um curso
universitário de Filosofia serão professores da disciplina, ou
trabalharão em outras áreas que não a sua de formação, e assim o era
com o corpo discente do curso da UNESP/Marília. Renegar o
caráter filosófico do ensinamento da Filosofia os revoltou; parecia
criar uma hierarquia na qual o professor de Filosofia era inferior ao
pesquisador, àquele que, numa sociedade capitalista, poderia ter
toda atenção no estudo de seus diversos temas, mas sem ser obrigado
a se preocupar que no nosso país uma das pouquíssimas áreas em
que um formado em Filosofia atua, e, portanto, da qual tirará seu
proveito para manutenção de sua vida material, é no seu ensino.
Estes, pelo menos em Marília, sempre foram a minoria.
Inicialmente a revolta dos estudantes foi, como acontece
muitas vezes, má direcionada, pois se encontrava nos corredores da
faculdade e não nos espaços políticos formais de discussão e que
poderiam, com acúmulo de força social, dar vazão à revolta de
maneira a lidar com seus problemas efetivamente. Ora por descrença
nos espaços, ora por comodismo, é comum que estudantes
universitários não participem destes espaços; ambos os casos devem
ser desmistificados. Mas, de toda forma, uma grande parcela desses
estudantes se deu conta disso, e passaram a participar dos espaços do
Movimento Estudantil. E assim a história começou a ser modificada.
Ao final de 2012, os estudantes de Filosofia decidiram
articular sua luta em várias esferas: nas assembleias dos estudantes do
curso, que se tornaram frequentes, cheias e politizadas; nas instâncias
representativas dos discentes, como no Conselho Departamental
(onde a proposta foi inicialmente tratada, apesar de não ser o espaço
devido para isto) e, especialmente, no Conselho de Curso de
232
Filosofia, uma instância paritária na Universidade, uma
particularidade do campus de Marília; e na retomada da Diretoria
do Centro Acadêmico de Filosofia, desativada desde 2010.
Vale dizer da estrutura universitária como um todo aqui, e a
descrença que a maioria dos estudantes sempre têm a estes espaços,
e então o porquê de terem centrado suas forças, institucionalmente,
num dos poucos espaços paritários. Na UNESP a divisão do poder
é no “70-15-15”, cujo poder decisório fica, majoritariamente, com
os professores universitários, com o peso decisório de 70% das
deliberações. Os demais 30% são divididos igualmente entre
estudantes e servidores técnico-administrativos que, então, mesmo
se alinhando completamente, não atingem metade do poder dos
docentes. Os 70% do poder aos docentes encontra base na LDB de
1996
2
, enquanto para a divisão aos demais segmentos não há regra.
Em Universidades como a USP este número é ainda mais desigual.
Fortalecendo-se organicamente em suas assembleias e com a
eleição da Diretoria do Centro Acadêmico de Filosofia, com a chapa
“7 de Novembro” vitoriosa, os estudantes pautaram a disciplina no
conselho de curso de Filosofia. Neste meio tempo, entre a decisão
inicial, proferida com a negativa que inicia essa parte do texto, e a
deliberação no Conselho de Curso que possibilitou a disciplina,
apareceu um novo argumento: de que o “perfil” dos estudantes do
curso de Marília era o de pesquisadores, sendo uma minoria os que
de fato desejam a licenciatura e o trabalho docente no ensino básico.
Não havia então, nesta linha de raciocínio, “demanda” para uma
2
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 10 dez.
2020.
233
disciplina pedagógica no curso de Filosofia, voltado à formação
destes pesquisadores.
O ano de 2012 terminou com a aprovação da disciplina, em
reunião do Conselho de Curso aberta cuja maioria presente era dos
alunos. Terminou também com o movimento estudantil do curso
altamente mobilizado e uma diretoria do centro acadêmico eleita. E
terminou com alguns litígios políticos entre docentes e estudantes.
Foi assim que o ano de 2013 teve início.
A formação da chapa “7 de Novembro”, para gestão do
Centro Acadêmico de Filosofia
Antes, porém, de abarcar 2013 e como algumas destas
questões reverberaram durante um ano histórico de nosso país, devo
falar sobre esta atuação dos estudantes ainda em 2012. Meu objetivo
aqui é tentar eternizar, nestas páginas, coisas que ficaram na
memória viva das pessoas, mas que raramente são traduzidas de
maneira a permanecer viva também em documentos. Não se
encontrará este histórico nas páginas da ementa da disciplina nem
de qualquer outra, e tão somente estará nas muitas atas de diversas
reuniões que pouquíssimas, se não nenhuma, pessoa irá ler. De
2010, ano em que os estudantes dos cursos de Filosofia e Ciências
Sociais fizeram greve por quase um mês, a 2012, os estudantes de
Filosofia pouco participaram da vida política do curso e da
faculdade, o que os deixou politicamente numa situação
cambaleante. Apesar disso, alguns estudantes retomaram a
participação nas instâncias de articulação dos estudantes, nas
234
assembleias, e nas institucionais, como os Conselhos já referidos
acima, neste período. Mas era algo bastante fragilizado, e cumpria
mais uma função protocolar do que de politização do corpo discente
de fato.
Foi a proposta da disciplina e sua negativa que reacendeu o
espírito de combatividade destes estudantes. Os espaços se tornaram
cheios, frequentes, críticos e altamente politizados. O próprio
conjunto dos estudantes chegou à conclusão de que a Direção do
Centro Acadêmico de Filosofia, o CAFI, desativado desde 2010,
poderia ser uma importante ferramenta de fortalecimento de sua
luta, e foi então constituída uma chapa com oito membros (dentro
de um número mínimo de cinco e máximo de dez): Aline Oliveira,
João Pedro Morgado, Sérgio Del’Arco, Felipe Marinho, Vinicius
Camargo, Vitor Barbieri, Pedro Bravo e eu mesmo. O processo de
sua constituição e de seu programa político foi inteiramente aberto,
o que acarretou, por exemplo, nas múltiplas visões políticas da
Diretoria que viria a ser eleita. Foi também firmado um acordo entre
estes membros: se, segundo o estatuto do CAFI, são necessários que
os membros se dividam em cargos (três diretores-gerais, um
secretário de finanças e um secretário de comunicação, mais
suplentes), internamente estes cargos seriam completamente
irrelevantes, e todos estaríamos no mesmo nível; sendo assim,
também é irrelevante, aqui, dizer quem ocupou formalmente qual
cargo.
Se a memória não me falha e meu desejo é escrever este
texto inteiramente a partir de minha memória votaram 67
estudantes de Filosofia, com 66 votos para a chapa “7 de Novembro”
e uma abstenção. O corpo discente do curso, apesar do que os
235
números oficiais possam dizer (contendo ainda muitas matrículas de
alunos que abandonaram a graduação), tem pouco mais de 100
estudantes, sendo, portanto, uma votação expressiva.
De sua eleição até o fim da gestão, o CAFI realizou grande
parte de suas propostas políticas, na maioria delas sempre em
conjunto com os demais discentes do curso: políticas de
levantamento de verba, retomada do Guaraná Filosófico (um evento
histórico dos estudantes do curso, no qual poderiam tocar temas
mais “livres” do que costuma acontecer), ajuda de custo para
estudantes apresentarem trabalhos, tendo em vista ser algo
necessário para sua formação, dentre outras. Mas, mais importante
que tudo isso, foi a politização e a construção de uma cultura crítica
no corpo discente que reverbera até hoje. Se esta criticidade já existia
antes, estava dispersa e espalhada pelas cabeças pensantes dos
estudantes, e raramente se colocava nos espaços conjuntos, o que
passou a acontecer regularmente, desde então, com uma organização
ímpar na faculdade.
Tudo isso não deve ser visto de maneira acrítica; a formação
acelerada da diretoria do CAFI levou a um acordo frouxo entre seus
membros, e fez com que alguns desistissem do trabalho, e também
a desníveis na disciplina para a realização de suas tarefas, mas que,
de maneira geral, foram cumpridas. Tampouco a votação deva
expressar de fato um acordo generalizado do corpo discente ao
programa da chapa, pois sendo um curso pequeno, todos acabam se
conhecendo e, certamente, muitos votaram por amizades e outras
relações pessoais que extrapolariam os critérios políticos do processo
eleitoral. De toda forma, a gestão de um ano do Centro Acadêmico
foi majoritariamente avaliada de maneira positiva pelos discentes.
236
PIMESP e perfil discente: o que isso tem a ver com Filosofia?
O ano de 2013 foi, como dito acima, um ano histórico para
o povo brasileiro; marcou um levante da população como há tempos
não se via. Muito já foi escrito sobre o período, mas não vem ao caso
em questão a ser tratado aqui; o importante é saber apenas de mais
algumas pinceladas deste quadro que, de certa maneira, antecederam
o que ficou conhecido como junho de 2013.
Já no começo do ano, o governo do Estado de São Paulo
lança o PIMESP Programa de Inclusão ao Mérito do Estado de
São Paulo
3
um programa de cotas altamente exclusivo.
Funcionaria da seguinte forma: os estudantes de escolas públicas e
os PPIs (Pretos, Pardos e Indígenas) que desejassem o ingresso no
ensino superior público paulista ingressariam numa espécie de curso
de nivelamento, por dois anos, antes de ingressar nas universidades.
Nesse curso teriam diversas disciplinas para sanar possíveis falhas do
ensino básico, junto com algumas outras disciplinas como “gestão
do tempo” e “empreendedorismo”. Ao fim dos dois anos, no caso de
o estudante obter nota insatisfatória para ingressar no curso superior,
adquiriria pelo menos um diploma de que o havia cursado. USP e
UNICAMP mal se debruçaram sobre o projeto, mas UNESP
acenava que poderia acei-lo.
Os estudantes de Filosofia, ainda mobilizados a partir do fim
do ano anterior, buscaram nas suas áreas de atuação discutir e
3
Disponível em:
http://143.107.26.205/documentos/acoes_afirmativas_pimesp_programa.pdf. Acesso em:
15 dez. 2020.
237
problematizar este Programa. Entre os próprios discentes, houve
praticamente consenso que se tratava de um processo altamente
excludente e que não deveria ser aceito pela Universidade. Porém,
quando levamos aos espaços conjuntos com os docentes do curso,
para que estes também se posicionassem de maneira crítica ao
Programa, a resposta foi novamente de uma soberba incrível;
chegou-se a afirmar que o documento portado pelo representante
discente não era verdadeiro. Nele continha justamente a proposta do
governo, em papel timbrado pelo mesmo. Mas não foi o bastante, e
o corpo docente do curso não tomou qualquer posicionamento neste
momento (e, até onde sei, tampouco posteriormente se posicionou).
Concomitantemente a isso, as políticas de permanência
estudantil, voltadas para que os estudantes mais pobres consigam se
manter na universidade, já demonstravam fraqueza, com diversas
limitações em um de seus principais eixos: o Restaurante
Universitário. Para resumir, sobravam bocas famintas e faltavam
alimentos. A Direção da Faculdade de Filosofia e Ciências, recém-
eleita, se dizia inapta para modificar a situação, que só poderia
melhorar com aportes financeiros da Reitoria da UNESP. O mesmo
problema era sentido estadualmente, sendo que alguns campi, como
de Ourinhos, sequer tinham Restaurante Universitário no período
(este mesmo continua não tendo e corre risco, hoje, de ser
desativado).
Também no campus de Ourinhos é dado o estopim de uma
forte greve estudantil, seguido por Marília e Assis e, posteriormente,
varrendo o Estado, chegando a onze cidades em greve, das vinte e
quatro nas quais a UNESP está inserida; destas, oito chegaram, em
algum momento da mobilização, a ocupar alguma região do campus.
238
No caso da FFC, inicialmente foi ocupado o prédio da Direção e,
ao fim da greve, migrou para os prédios das salas de aula. A
mobilização estadual lutava, principalmente, contra o PIMESP e por
melhorias nas políticas de permanência estudantil, e durou em torno
de cem dias.
O que tudo isso tem a ver com o Centro Acadêmico de
Filosofia, com o curso de Filosofia e com a disciplina em questão?
Lembremos do segundo argumento dos professores do curso contra
a implementação desta última: o perfil dos estudantes era de
pesquisadores e não de professores. Nós, que convivíamos
diariamente, sabíamos que era mentira, e muitos dos nossos
dependia das políticas de permanência estudantil, e também muitos
dos nossos já davam aula para garantir seu sustento. Sabíamos que
era mentira, mas não havia como comprovar.
De todo modo, os discentes do curso compuseram
ativamente a greve, em várias frentes: grupos de estudos para debates
filosóficos; grupos de estudos para formular uma proposta discente
de reestruturação da grade curricular do curso, então em discussão;
participação delegada no comando de greve do campus; política
financeira para realização de atividades da direção do CAFI, dentre
outras. Mas destacaremos aqui duas destas: primeiro, uma
formulação de pautas de reivindicações dos estudantes de filosofia,
até então documento inédito do campus. Se formos analisar este
documento, produzido em 2013, com lentes de 2020, veremos que
ainda se mantém muitíssimo atual. Nele constavam reivindicações
de: cursos de línguas para os estudantes; mais e melhores bolsas
socioeconômicas e de pesquisa; melhora do acervo da biblioteca;
239
manutenção das disciplinas de tutoria (comumente criticadas por
docentes); dentre outras reivindicações.
O outro documento, tão importante quanto toda esta
história dentro de outra história, viria para, talvez, servir de figura da
gestão. Afinal, qual era o perfil dos estudantes de Filosofia? Estes
mesmos construíram um questionário a ser respondido pelo corpo
discente, de maneira anônima, em que responderiam suas
preferências filosóficas, suas condições de vida materiais, e outras
informações que, no período, nós, jovens estudantes, acreditávamos
ser importantes. Diferentemente da pauta de reivindicações, se este
questionário for analisado de maneira técnica, provavelmente
haveria muito a ser melhorado. O que não enfraquece o poder que
proporcionou aos estudantes de enterrarem a argumentação dos
professores de que o perfil discente da UNESP/Marília era de
pesquisadores. Mais de 90% destes cursariam licenciatura, e mais da
metade o fariam/fizeram primeiro, antes do bacharelado; muitos já
eram professores, muitos outros desejam tornar-se professores, e a
maioria era pobre. Estas respostas foram divulgadas num evento
aberto, com a presença de discentes e docentes, possibilitando um
debate real e verdadeiro sobre quem eram os estudantes do curso.
Não se falou mais, até quando estive na FFC/Marília, em
perfil de estudante de Filosofia.
240
Docência e luta
Até aqui, contei brevemente a história da luta para a
regulamentação da disciplina, que esteve, por sua vez, envolta e
relacionada a outras lutas estudantis, e, portanto, não poderiam ser
deixadas de lado.
Se a ideia de um curso universitário de filosofia é formar
estudiosos de filosofia e professores da disciplina, lutar, no meio
disso, dará uma realidade, uma concretude da vida que, muitas vezes,
está alheia ao estudo formal do filosofar. Ao passo que se estuda
Hegel, Aristóteles, Sartre, etc., é muito comum que se desvencilhe,
prontamente, questões sobre a atividade prática (ou falta desta)
destes filósofos que, na sua maioria, foram também docentes. Deixa-
se de lado tanto sua atividade pedagógica quanto a política.
Necessitaríamos de todo um livro para falar sobre o que é
Filosofia, e ainda assim não seria o bastante para dar cabo da
discussão. No entanto, podemos dar algumas indicações do que se
trata esta: parece ter centralidade na compreensão racional do
mundo e desta própria racionalidade. É, por essência, um estudo
humano ou, se se quer dizer, uma ciência humana, despindo aqui o
termo “ciência” das conotações positivistas que adquiriu nos últimos
séculos, tendo em vista estudar uma de suas características essenciais:
a razão. Poderia, então, um estudioso de filosofia ou um filósofo
ignorar outras das essências humanas, especialmente as que parecem
claramente se relacionar à sua racionalidade?
Falo aqui certamente da vida em sociedade, política por
natureza, e na qual, historicamente, se decidiu por educar os jovens
241
de modo a inseri-los nessa mesma sociedade. Quando se busca
desvencilhar o estudo dos filósofos de sua vida prática, e aqui claro
não queremos dizer sobre seus casamentos e filhos, mas sua atuação
social como agente dentro deste meio, estamos realmente tendo a
melhor compreensão filosófica daquele ou deste pensamento?
Em minha vida acadêmica, até hoje, pesquisei a filosofia
hegeliana. Há alguns anos apareceu, no Brasil, alguns textos de uma
autora estadunidense, Susan Buck-Morss
4
, nos quais ela busca fazer
uma afirmação polêmica: muito da Fenomenologia do Espírito,
especialmente a dialética do senhor-escravo, foi a leitura filosófica de
Hegel sobre, especialmente, a Revolução Haitiana, que acontecia
praticamente junto de sua escrita. A autora busca provar, no
mínimo, que Hegel conhecia os fatos deste movimento político
caribenho, e que, assim como pela Revolução Francesa,
demonstrava-lhe algum “afeto”, isto é, partilhava de seus valores e os
defendia. Qual o interesse em apagar isso da história, como
geralmente é feito nos cursos universitários?
Ainda outro caso mais grave, e que sempre encontra bastante
resistência, e muitas justificativas torpes e vergonhosas: a associação
de Heidegger ao nazismo. Frequentemente, ao estudar os trabalhos
deste filósofo, é escamoteado que era um grande defensor das
políticas eugenistas do Partido Nazista; isto para não dizer quando
se afirma que um filósofo de tamanho alcance, reitor de
Universidade durante o regime nazista, não sabia de fato o que
acontecia. Não quero dizer aqui que devemos apagar sua filosofia,
tampouco a de Locke, grande filósofo liberal e defensor da liberdade
4
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002011000200010. Acesso em: 16 dez. 2020.
242
que lucrava com o tráfico de escravos, ou de outros filósofos com
valores questionáveis como estes; mas será realmente inútil, para um
estudo filosófico, dizer que Heidegger julgava os judeus como
grandes proponentes da visão técnica de mundo que ele criticava?
Estes grandes pensadores, para o bem ou para o mal, não
estavam alheios ao seu mundo, não filosofavam apenas olhando para
as estrelas, mas buscavam compreender o mundo e pensá-lo, ora
através da sua própria filosofia, aplicando-a à realidade, ora
buscando abstrair daquela prática social particular sua universalidade
para sobre ela filosofar. Por que escamotear isso então?
Trazendo tudo isto para nossa realidade: ainda que o curso
de Filosofia e os seus estudantes tenham passado por uma forte
mobilização, com grande apoio dos discentes, era muito comum que
isso fosse criticado por colegas, ou então ignorado pelos docentes,
que por vezes dizem, em sala de aula, cientes do poder que existe na
palavra de um professor e na influência desta com os estudantes, ser
mais importante “estudar filosofia” do que participar de uma
assembleia, ou aprender a ensiná-la. Por acaso acreditam que o
trabalho dos futuros docentes que ali serão formados
espontaneamente dentro da sala de aula? Eles têm consciência de
toda a política que ronda o trabalho pedagógico de um professor?
Será que julgam inadequado que um estudioso de Filosofia tenha
posicionamentos políticos e atue socialmente segundo eles?
Foi em 2013 que me formei como militante. Não que tenha
saído de todo este longo processo sem a necessidade de me
aprofundar mais na prática militante, na atuação política; muito pelo
contrário, foi e ainda é necessário muito estudo para isso. Mas foi ali
243
que ficou claro, a mim, que vivemos numa sociedade de classes, e a
luta entre estas é transversal na humanidade. Nada lhe é alheia; a
razão e a racionalidade (assim como seu estudo) não é “neutra” e não
está acima da luta de classes é por isso que se nega a vinculação de
Heidegger ao nazismo ou de Locke à escravidão no estudo teórico
de seu pensamento, para manutenção de certos valores “humanos”
abstratamente, tendo em vista que numa sociedade de classes eles
nunca se concretizarão à humanidade de fato e muito menos à sala
de aula. Logo no meu primeiro ano como professor, em 2018, fui
denunciado como “doutrinador” por tratar dos pensadores de
esquerda e temáticas “subversivas”, como aborto e racismo, nas
aulas.
A Filosofia sem a prática política é vazia, a prática política
sem a Filosofia é vã. Conscientemente ou não disso, desvincular
ambas serve à dominação de classe, em múltiplas esferas. Serve, pois,
abstrai da realidade social um pensamento diretamente ligado a ela;
serve, pois, interfere numa compreensão universal de fato da
realidade; serve, pois, abstrai valores de sua concretude. Mas, mais
do que isso, serve, num curso de filosofia, para formar futuros
docentes que não perceberão que seu trabalho em sala de aula é
inócuo sem uma prática política que fortaleça este trabalho, tendo
em vista o desmonte do ensino que a classe dominante busca. A
realidade desta educação é que os estudantes chegam nas aulas de
filosofia formados: são copistas, interpretam muito mal e leem muito
pouco, com uma dificuldade tremenda de pensar a realidade, quanto
mais de maneira crítica. Esta realidade, da maneira como vejo, não
se transforma com duas aulas semanais de 45 minutos cada, ainda
244
que estas sejam importantes na busca de plantar “sementes de
discórdia” na cabeça daqueles jovens.
Esta se transformará na luta da categoria docente, em
particular, e da sociedade, como um todo, por uma educação crítica
e mais humana. É nesta luta que o período de 2013 mais me formou
e ajudou; e, conversando, convivendo com muitos colegas, é o que
mais falta para o segmento, inclusive aos professores de Filosofia.
Acredito eu que o curso acadêmico de Filosofia da UNESP/Marília
forma professores com uma boa base teórica e histórica da disciplina,
apesar de ficar aquém na capacitação pedagógica para o ensinar
Filosofia, a despeito do esforço de alguns para tal. Mas muito pouco
nessa esfera política intimamente coligada à anterior. Em partes,
pelos próprios docentes, tendo em vista reafirmarem a negação a este
lado, como dos próprios estudantes em não aproveitarem uma
situação particular riquíssima para esta necessária formação.
Conclusão
Do que servirá para a reflexão filosófica tudo isso?
Segundo muitos autores, principalmente socialistas, a luta
social é pedagógica e por vezes pode transcender a aprendizagem do
ensino formal. Se se pode filosofar sobre o ensino, e se a luta ensina,
então pode-se filosofar sobre a luta. Silogismo hipotético básico. Mas
muitos ainda discordarão que o ensino seja uma questão filosófica,
quem dirá, portanto, a luta.
245
Como dito anteriormente, precisaria ser escrito muito mais
do que estas páginas para definir a Filosofia e, portanto, o que é ou
não filosófico certamente, muito mais do que um comentário
sardônico em reunião institucional burocrática. No entanto, trarei
mais uma história para pensar sobre isso.
Fui aluno da disciplina “Questões da Filosofia e de seu
ensino” em 2013. Confesso que, na minha formação acadêmica,
pouco me ative às questões sobre o ensinar Filosofia, pois não tinha
nenhum desejo e interesse em me tornar professor. Mas gostava
muito de Filosofia e sabia que teria de me adequar a isso em algum
momento.
Pois bem, lembro-me, especialmente, de um dia no qual o
professor Gelamo não estava presente, e tampouco muitos dos
estudantes matriculados na disciplina; quem a ministrou foi o
professor Trajano, para no máximo 5 estudantes. Como aconteceu
com todos os professores com os quais tive aula, discordei dele em
diversos momentos, e um em especial que quero trazer aqui: é papel
do estudioso e do professor de Filosofia pensar sobre as condições
materiais de seus estudantes? Dando nome aos bois, falei exatamente
o seguinte: será que, de fato, não é meu papel como professor pensar
se Joãozinho ou Maria estão pelo menos bem alimentados, o
bastante para manterem a concentração nas palavras difíceis dos
textos filosóficos? Vale frisar aqui que falo da educação da maioria
dos jovens paulistas, no ensino básico público, e não no privado,
ainda que muito disso possa ser repensado sem grandes mudanças
para as escolas privadas.
246
Eu acreditava que sim, professor Trajano que não. Não acho
que ele pensava em ignorar estas questões, mas que não são o papel
de um professor de Filosofia. Mas que papel é este? Entrar numa sala
de aula com 20 ou 30 jovens e “filosofar” com estes pelos
longuíssimos 45 minutos? Diga-se de passagem, que destes poucos
minutos um professor perderá alguns chamando atenção,
distribuindo livro didático ou algum outro texto, fazendo
chamada... obrigações que demandam tempo e diminuem aquele em
que se pode debruçar, realmente, ao conteúdo.
E mais ainda: se não é papel do professor pensar as condições
materiais de estudo de seus estudantes, de quem é? Do governo? Do
diretor da escola? Formalmente, estaria correto, tendo em vista que
são ambos os administradores da realidade escolar em suas múltiplas
esferas política, social, financeira, disciplinar, etc. , mas na
realidade, o governo tem interesse na piora material da vida destes
estudantes, tendo em vista que, via de regra, governa para benefício
da classe dominante e não da maioria, e é de interesse dos opressores
de nossa sociedade capitalista que os alunos não tenham condições
de um estudo efetivo e que lhes possibilite, na vida adulta, posturas
críticas sobre os mais variados temas.
Talvez pudesse caber, então, ao diretor da escola este papel.
Vale lembrar, no entanto, que no Estado de São Paulo estes não são
escolhidos para o cargo pela comunidade escolar, antes são
concursados ou indicados pela Diretoria de Ensino (que, por sua vez,
são indicações do governo). Neste segundo caso, ficará muito claro
que o diretor estará, na escola, para fazer a política do governo do
Estado e, portanto, tampouco preocupar-se-á com a realidade
material dos estudantes a ponto de estabelecer, aí, uma criticidade
247
que possibilite de fato alguma mudança. No caso dos diretores
concursados, há uma abertura um pouco maior para esta postura,
mas de toda forma também estes estão sob constante vigilância da
Diretoria de Ensino, averiguando se estão de acordo com a política
educacional proposta por esta que, como vimos, é uma indicação do
governo do Estado e, portanto, a efetivação de suas propostas
políticas.
Pois bem, como dito anteriormente, vivemos numa
sociedade de classes, dividida entre os poucos que dominam, seja
economicamente, politicamente, culturalmente, etc., e a maioria
dominada, incluindo aí a maioria dos estudantes das escolas
públicas. Sendo assim, o trabalho pedagógico não é neutro e não está
alheio a isso, tampouco estão as estruturas formais de uma escola e
da educação como um todo. É ingênuo e ilusório partir desta e de
uma ideia como se funcionasse para o bem dos estudantes, dando-
lhes as condições necessárias para um estudo de qualidade. A
realidade é que um professor, no mundo de hoje, deve se desdobrar
entre o trabalho pedagógico, na sala de aula, buscando trabalhar da
melhor maneira possível todo o conteúdo cultural que lhe refere,
buscando constituir sujeitos verdadeiramente críticos e,
principalmente, conscientes da dominação de classe que sofrem, e
por outro lado, uma atuação política condizente com este objetivo
de educação, dentro da escola e também fora, em espaços de
articulação e luta de classe, como sindicatos, protestos, organizações
políticas, etc., tendo em vista que a estrutura social vigente é
contrária a esta criticidade a ser formada nos estudantes.
Tal qual com a Filosofia, a educação sem a prática política é
vazia, a prática política sem a educação é vã. Filosofia, educação e
248
prática política são coisas diferentes entre si, é claro, mas também
estão intimamente ligadas, e sua desvinculação só serve para a
manutenção da desigualdade, da opressão, da dominação. Foi essa
ligação que a luta pela disciplina “Questões da Filosofia e de seu
ensino” me ensinou.
Parte 3.
Heranças formativas
251
O arquipélago das palavras: notas sobre a minha
formação universitária
José Roberto SANABRIA DE ALELUIA
1
Em 2007, iniciei a graduação em Filosofia, na Faculdade de
Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, com o
objetivo de estudar as teorias comunicacionais sob a perspectiva
filosófica. Recordo-me que todo entusiasmo foi soterrado pelo
intelectualismo burocrático e ritos dogmáticos acadêmicos.
Ingenuamente apresentei no primeiro ano do curso um plano de
trabalho para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre o tema da
comunicação. Após ser ignorado, a orientação que era regra da fala
padrão das/os docentes se resumia nas recomendações da leitura
estrutural e da produção de comentários, de preferência de um autor
estudado por algum docente do departamento. Estava destinado a
ser um comentador da filosofia, quiçá um historiador da filosofia. A
frustração não foi suficiente para produzir imobilidade, pelo
contrário, fiquei muito curioso e espantado com aquele fenômeno.
Na época, comecei a dialogar com alguns professores e
colegas de curso a respeito da estrutura que sustentava nossa
formação. Todos meus questionamentos estavam articulados com o
desejo de compreender por que muitos professores em sala de aula
1
Professor da Educação Básica II do Quadro do Magistério da Secretaria de Estado da
Educação de São Paulo na cidade de Marília. Email: sanabria@hotmail.com.br
252
indicavam apenas o caminho do comentário e nunca a possibilidade
de enunciarmos que somos filósofos. A impressão que dava é que tal
afirmação parecia uma grande profanação de uma ordem
consolidada.
A partir do segundo semestre passei a identificar no processo
formativo uma lógica limitante, que despotencializava os desejos dos
estudantes no campo das experimentações e que reduzia nossas
condutas à reprodução de falas, gestos e comentários de filósofos
que, por vezes, conhecíamos de forma precária. Para muitos aquilo
que vivenciávamos em sala de aula não tinha nenhum significado,
mas de alguma forma algo me incomodou a ponto de observar o
cotidiano acadêmico unespiano e comparar as diferenças formativas
dos cursos de Ciências Humanas.
Como na época não havia alguém para indicar um caminho,
a intuição se tornou a trilha.
O primeiro impulso foi verificar os elementos discursivos
nos projetos políticos pedagógicos da instituição, a fim de
compreender a concepção de cada curso e identificar o perfil do
sujeito que a universidade almejava encontrar conforme sua
singularidade.
Analisando os Projetos Pedagógicos dos respectivos cursos,
optei por comparar os tópicos Objetivos do Curso, Perfil do
Profissional e Perfil do Egresso, na tentativa de encontrar algum
indício documental. Diante das comparações, nasceram ideias que
possibilitaram certas reflexões e, com o objetivo de sintetizá-las e
atualizá-las, pretendo citar alguns fragmentos dos Projetos
Pedagógicos dos cursos de Arquivologia, Ciências Sociais e Filosofia.
253
De acordo com o tópico Perfil profissional almejado, do
Projeto Pedagógico do curso de Arquivologia (2018, p. 29)
2
, o
“arquivista é o profissional de arquivo de nível superior, que objetiva
o conhecimento da natureza dos arquivos, das teorias, métodos e
técnicas a serem observados na sua constituição, organização,
desenvolvimento e utilização”. É curioso, talvez até banal, mas o
fragmento “arquivista é o profissional de arquivo de nível superior”
denomina uma função para um sujeito e localiza-o dentro de um
discurso institucionalizado, cria um saber e um poder para
determinadas ações do arquivista, justifica o básico, ou seja, que o
sujeito que ingressa no curso de Arquivologia torne-se um arquivista
e seja capaz de executar determinadas tarefas.
Por mais simples que seja essa observação, não percebi a
mesma clareza no Projeto Pedagógico de Filosofia, pois tais
características são inexistentes na formação do graduando em
Filosofia. Foi nesse período que a primeira pergunta surgiu na
seguinte estrutura: todo graduando no curso de Filosofia da Unesp
poderá enunciar - sou um Filósofo? Sem respostas evidentes, segui
analisando os documentos dos outros cursos e me deparei com os
enunciados do Projeto Político Pedagógico de Ciências Sociais
(2018)
3
.
2
Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Arquivologia/projeto-
pedagogico-2003.pdf. No ano de 2013, o curso atualizou seu Projeto Pedagógico, contudo
a definição permaneceu a mesmas.
https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Arquivologia/projeto-pedagogico-
2013.pdf. Acesso em: 22 jun. 2018.
3
Disponível em:
https:/www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/CienciasSociais/projeto%20pedagogico.p
df. Acesso em: 22 jun. 2018.
254
Segundo o tópico Perfil Profissional (2018, p. 03)
4
, do curso
de Ciências Sociais, o profissional formado deve ser versátil,
“possuidor dos fundamentos básicos das ciências sociais,
conhecimentos e habilidades que o encaminhem para a enorme
variedade de ocupações do setor público e privado como
pesquisador, consultor para políticas e programas sociais, docente do
Ensino Fundamental e Médio”. Perante esse fragmento fiquei mais
curioso, já que não sabia se as relações de poder e saber que
sustentavam seus enunciados justificariam algumas interpretações
subjetivas. Por exemplo, é possível ler o trecho “consultor para
políticas e programas sociais, docente do Ensino Fundamental e
Médio” e compreender que, o curso de Ciências Sociais da
Unesp/Marília forma cientistas políticos, sociólogos e professores de
sociologia, história, geografia para o Ensino Fundamental e Médio?
A partir dos itens A criação do curso e sua Trajetória (1963-
2000) e Histórico das modificações recentes feitas na grade
curricular do curso (2001-2006), que apresentam a história recente
do curso Ciências Sociais da Unesp/Marília e expõem um
consistente panorama legislativo, pedagógico e político da
constituição discursiva da disciplina no ensino superior brasileiro -
comecei a perceber o modelo e todo aparato sobre a formação dos
futuros cientistas sociais e prováveis professores de sociologia,
história e geografia.
4
Disponível em:
https:/www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/CienciasSociais/projeto%20pedagogico.p
df. Acesso em: 22 jun. 2018.
255
Segundo o documento
5
(UNESP, 2018, p. 13), o objetivo
da licenciatura “sempre foi formar um professor reflexivo,
desenvolver as competências de análise e reflexão da prática
pedagógica visando à construção do trabalho coletivo e
interdisciplinar na escola, tendo como referencial a prática social
global”. Am da licenciatura, o estudante de Ciências Sociais pode
optar pelo Bacharelado, desde que faça, a partir do terceiro ano
“disciplinas relativas ao Núcleo Comum” e no quarto ano, curse “as
áreas específicas do conhecimento que integram as Ciências Sociais
(Sociologia, Antropologia e Ciência Política), bem como as suas
áreas conexas (Economia, História e Geografia)”. Essa especificidade
pretende proporcionar um rigor técnico e científico, ou seja, para
que o estudante possa desenvolver sua autonomia intelectual e
profissional, as três áreas são contempladas, possibilitando a
formação de sociólogos, antropólogos e cientistas políticos.
Podemos perceber que os dois Projetos Pedagógicos
apresentados justificam e sustentam a formação de arquivistas e
cientistas sociais na Universidade Estadual Paulista. Mas será que o
curso de Filosofia da mesma instituição é capaz de formar filósofos?
Será que o Projeto Pedagógico do curso de Filosofia compõe um
discurso que sustenta a produção subjetiva de filósofos, a partir do
ensino da Filosofia?
O item Perfil Profissional do Projeto Pedagógico do curso
de Filosofia (2018)
6
afirma que o bacharel em Filosofia é um
5
Disponível em:
https:/www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/CienciasSociais/projeto%20pedagogico.p
df. Acesso em: 22 jun. 2018
6
Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/projeto.pdf.
Acesso em: 26 jul. 2018.
256
profissional capacitado “ao trabalho de docência e pesquisa no
ensino superior, plenamente habilitado para o trabalho intelectual,
desenvolvendo ensaios cuja característica é a originalidade da
reflexão, bem como comentários de alta especificidade técnica e
erudição histórico-filológica”. Valendo-se desta citação, algumas
reflexões devem ser expostas, a fim de localizar e direcionar nossa
problematização.
Primeiro, podemos inferir que o bacharel em Filosofia é um
profissional que atinge um perfil polivalente, ou seja, é capacitado a
tornar-se professor universitário com atributos para desenvolver
pesquisas no ensino superior. Além disso, parece-me que tal
capacitação o habilita numa estilística restrita e simultaneamente
exigente: o futuro professor universitário deverá desenvolver ensaios
filosóficos originais e comentários eruditos sustentado pelo
domínio da História da Filosofia e pelo aprofundamento nos estudos
das línguas estrangeiras (grego, latim, francês, alemão, etc.) com
objetivo de refinar seu domínio conceitual e possibilitar uma fina
análise filológica. Sendo assim, o bacharel em Filosofia da
Unesp/Marília é formado no propósito de transformar-se em
professor universitário, que será capaz de produzir ensaios e
comentários filosóficos originais e técnicos. Mas e o licenciado em
Filosofia, qual sua função social?
Segundo o Projeto Pedagógico, o estudante que optou pela
licenciatura, será familiarizado com a técnica “da ‘explicação de
texto’, tornando-a privilegiado instrumento do ensino da Filosofia
no 2º. grau. O licenciado deverá, também, promover o contato
produtivo de seus alunos com os mais significativos movimentos da
cultura ocidental, no domínio das ciências e das artes”.
257
A partir da análise desse fragmento, a primeira impressão deu
margem à identificação de uma hierarquia. A licenciatura aparece
como segunda opção na estrutura formativa e nas práticas didático-
pedagógicas do curso de Filosofia. O fato de o estudante atuar no
ensino médio da rede pública ou privada indica uma relação saber-
poder, entre o bacharel (futuro professor universitário-pesquisador)
e o licenciado (futuro professor do ensino médio). O primeiro
assume o papel do produtor do conhecimento, aquele que irá pensar
em sua potência e originalidade; o segundo será capacitado, apenas,
para transmissão do conhecimento, pois foi formado a partir do
tecnicismo da “explicação de texto”
7
.
Curioso é que o sujeito que deverá assumir a segunda função
terá a responsabilidade de “promover o contato produtivo de seus
alunos com os mais significativos movimentos da cultura ocidental,
no domínio das ciências e das artes”. Sendo assim, resta-nos a
questão: como alguém formatado nas técnicas de explicação de
textos filosóficos, será capaz de produzir esse contato?
7
Ainda segundo o “Projeto Pedagógico” (2018, p. 3) do curso de Filosofia, o “ensino da
Filosofia no segundo grau passa significativamente pela mediação do livro didático. Tal
leitura tradicionalmente não encontra espaço nos Cursos de Graduação em Filosofia. De
um lado, o recurso exclusivo às fontes primárias e às suas melhores traduções, o acesso aos
artigos de caráter estritamente científico e acadêmico e também o estudo de textos dos
grandes comentadores, mantêm e garantem a elevação do nível de formação do futuro
profissional. Colabora para a manutenção desse patamar o caráter predominantemente
monográfico das programações oferecidas, que escolhem um número reduzido de
problemas e de autores e os tratam em profundidade. Por outro lado, salvo devido a um
pendor pessoal ou a uma experiência encontrada fora, o jovem professor vê-se pouco
informado sobre o melhor material didático disponível e sobre a melhor maneira de utilizá-
lo. Por essas razões, procurou-se centrar o currículo proposto em torno da história da
filosofia, uma maneira de estender o leque do desenrolar filosófico ao máximo possível”.
Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/projeto.pdf.
Acesso em: 26 jul. 2018.
258
Permanece evidente a limitação de uma análise restrita ao
Perfil do Profissional, uma vez que esse diagnóstico possibilita
apenas a clareza da inexistência de proposições lógicas positivas, que
suprime as indagações sobre a existência de filósofos na
Unesp/Marília. Nesse sentido, foi possível identificar as primeiras
incongruências na relação entre o processo formativo e o ensino da
filosofia, como também identificar pela primeira vez as tensões
existentes no limiar da produção de saberes e nas relações de poderes.
Essa simples vivência serviu como condutor para o segundo
momento da constituição do problema.
Convencido de que o Perfil do Profissional não foi suficiente
para suprir as questões levantadas - prossegui com a análise do
documento com muita dificuldade, visto que, distintamente do
Projeto Pedagógico do curso de Ciências Sociais, o Departamento
de Filosofia não demonstrou preocupação histórica ou política em
relação à ausência de fundamentações teóricas sobre a constituição
do curso. Não encontrei informações sobre a criação, o local, ou o
reconhecimento oficial, nada que indicasse uma trajetória.
A impressão que tive naquele ano de 2008 foi que a
faculdade subsistia de modo atemporal, restrita à lógica das razões,
completamente ausente da lógica histórica, independente, portanto,
dos conflitos políticos, pedagógicos ou econômicos que assolaram a
segunda metade do século XX. Com um olhar retrospectivo, faz total
sentido a falta de memória da universidade, principalmente se
entendermos que os efeitos do esquecimento podem ser um
desdobramento dos modelos metodológicos e teóricos do
estruturalismo.
259
Diante de a tal fragilidade, a análise que foi possível elaborar
se fixou no documento Resolução Unesp 57/2006, que define
Proposta Curricular para os ingressantes de 2006
8
. De acordo com
o documento a distribuição curricular tinha por base estrutural duas
modalidades disciplinares, a saber: as expositivas (distribuídas entre
obrigatórias [120 créditos], optativas
[16 créditos] e pedagógicas
9
[32 créditos, somente para os
estudantes que optarem pela licenciatura]) e as tutoriais
10
.
8
Vale ressaltar que em um período de 20 anos (1999-2019), três grades curriculares foram
implantadas (1999, 2006 e 2017). A última atualização insere na formação do licenciado
três novas disciplinas que foram conquistas das lutas dos estudantes e alguns docentes que
debatem o problema do ensino da filosofia no Brasil são elas: “Questões de Filosofia e seu
Ensino, História e Filosofia da Educação e Libras Língua Brasileira de Sinais'”. Cf.
https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/grade_a_partir_de_2017_filo-
pagi.pdf. Acesso em: 24 jul. 2018.
9
Todos os 32 créditos (Psicologia da Educação, Didática, Estrutura e Funcionamento do
Ensino, Fundamental e Médio, Prática de Ensino de Filosofia I, Prática de Ensino de
Filosofia II) não eram oferecidos pelo Departamento de Filosofia, mas ficava a cargo do
Departamento de Didática.
10
Segundo o Projeto Político Pedagógico do curso de Filosofia (2018, p. 2), a inovação da
grade de 2006 foi “a inclusão da modalidade tutorial de ensino para figurar paralelamente
modalidade das disciplinas expositiva”. As tutorias são uma experiência que o
Departamento de Filosofia veio desenvolvendo de modo informal desde 1990. Como
tutor, o professor tem a responsabilidade da educação intelectual “personalizada” de um
pequeno número de estudantes, num determinado período letivo. São três as características
principais da tutoria, que a tornam bastante contrastante com a modalidade expositiva: (1)
a atividade acadêmica é centrada mais no aluno do que no professor; (2) a atividade do
aluno se faz sem solução de continuidade ao longo de cada uma das semanas do período
letivo; (3) o trabalho didático é feito individualmente, ou em pequenos grupos, para
atender às necessidades e interesses específicos de cada estudante. A tutoria não é uma
atividade auxiliar das disciplinas expositivas e subordinada a elas. Ao contrário, é uma
modalidade independente, com sua identidade e finalidade própria. A estrutura curricular
prevê dez tutorias, ou disciplinas tutoriais, que estão distribuídas nos seguintes grupos e
áreas de Filosofia: Grupo I: Tutoria A (Filosofia Geral); Tutoria B (História da Filosofia):
Tutoria C (Filosofia Política); Tutoria D (Estética); Tutoria E (Teoria do Conhecimento);
Tutoria F (Ética); Grupo II: Tutoria G (Filosofia da Linguagem e da Lógica); Tutoria H
(Filosofia das Ciências Naturais); Tutoria I (Filosofia das Ciências Humanas); Tutoria J
(Filosofia da Arte)”. Disponível em:
260
Esse conjunto didático-pedagógico constituído para
sustentar a formação plena do estudante de Filosofia tem a História
da Filosofia como “‘espinha dorsal’ da estrutura curricular, ao
estudante será oferecida a possibilidade de cumprimento dos
créditos de acordo com uma sequência pedagogicamente encadeada
(História da Filosofia Moderna, Antiga, Medieval e Renascentista e
Contemporânea)”.
Analisar tal documento e, simultaneamente, vivenciar a
experiência de ser um estudante da graduação foi espantoso, pois tive
a percepção do discurso que atravessara meu corpo. Na tentativa de
encontrar rotas para dela escapar iniciei uma série de
questionamentos: Se a História da Filosofia é a “espinha dorsal” do
curso de Filosofia e a “explicação de texto” é o instrumento técnico,
que profissional a Unesp/Marília formará? Um comentador? Um
historiador da Filosofia? Um filósofo?
Após a análise e comparação dos Projetos pedagógicos, não
possuía ainda uma resposta positiva sobre meu futuro profissional,
somente indícios nebulosos. Todavia, notava alguns avanços na
lapidação do problema. Por certo, havia compreendido que toda
estrutura do curso de Filosofia tinha como princípio a História da
Filosofia e a explicação do texto, visando à formação de professores
universitários, que seriam capacitados para a pesquisa. Ademais,
pretendia abranger a formação de professores secundaristas, para o
setor público e privado, com a capacidade de transmitir conteúdos
filosóficos existentes em qualquer livro didático, confiando ser a
História da Filosofia suporte circunstancial para tal atividade.
https://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/projeto.pdf. Acesso em: 26 jul.
2018.
261
Após um ano refletindo e recolhendo fragmentos de
conversas informais nos intervalos das aulas expositivas, comecei a
abandonar o propósito de entender toda aquela ordem discursiva.
Não havia interesse algum por parte dos estudantes nesse debate,
posto que, estavam preocupados com problemas mais nobres, das
pesquisas científicas que versassem sobre grandes filósofos. Queriam
Nietzsche, Kant, Hegel, Platão, desejavam grandes temas no seio da
História da Filosofia - trilhar por problemas epistemológicos, éticos,
políticos, estéticos, de preferência em francês ou alemão. Não
reconheciam nossa formação e “ensino da Filosofia” como problema
filosófico, nem mesmo como um problema, pois tudo estava dentro
da ordem e no verdadeiro.
Exceção à regra
A naturalização do processo me espantava, assim passei a
observar algum tempo depois, que a fala dos estudantes não tinha
um centro emissor, mas era algo que ecoava por toda a arquitetura
da instituição. Notei que os enunciados emitidos pelos professores
também se tratava de um eco. O simulacro do simulacro, a
reprodução da reprodução. Corpos que reverberavam uma ordem
discursiva que há muito tempo fora enunciada.
A partir dessas observações comecei a refletir como esses
enunciados constituíram-se e transformaram-se numa ordem
discursiva sobre o ensino da Filosofia, especificamente, nas
universidades paulistas. Esta nova intuição revigorou o ânimo.
Igualmente, conhecer os docentes Dr. Antonio Trajano Menezes
262
Arruda
11
, Dra. Arlenice Almeida da Silva
12
e Dr. Rodrigo Pelloso
Gelamo
13
significou um acontecimento imprescindível para a
lapidação do problema e, finalmente, para realização da minha
pesquisa.
O cumprimento dos créditos das disciplinas Introdução à
Filosofia e a leitura de textos filosóficos e Filosofia Geral: problemas
metafísicos - ministradas por Arruda, apresentou grande impacto e
diferença das demais disciplinas de Filosofia. As aulas não se
restringiam à mera transmissão de conteúdos ou às análises
estruturais de textos, consistia em algo que escapava ao padrão e
configurava-se como experiência filosófica.
Interessado pela diferença de suas aulas, iniciei longos
diálogos com Arruda, que indicou seu texto La enseñanza de la
filosofía: su situación en Brasil (2004). Foi a partir desse ensaio que
compreendi com maior clareza um pouco mais das práticas didático-
filosóficas que vivenciara e que consequentemente, me trouxeram
condições favoráveis para lapidar de forma mais apurada meu
problema.
O ensaio reflete sobre as práticas do ensino da filosofia no
Brasil, reservando grande parte do debate para o ensino superior. De
acordo com Arruda (2004, p. 83, tradução nossa):
11
No ano de 2007 ministrou as disciplinas “Introdução à Filosofia e à leitura de textos
filosóficos” e “Filosofia Geral: problemas metafísicos”.
12
Atualmente é professora adjunta da UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo
(campus Guarulhos). Em 2009, como professora assistente ministrou as disciplinas Estética
I e Estética II pelo departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências -
UNESP/Marília.
13
Professor do departamento de Didática e do Programa de Pós-graduação em Educação
da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP/Marília. No ano de 2010 ministrou a
disciplina Didática.
263
Podemos distinguir três áreas de investigação dos profissionais
universitários de Filosofia: (1) a filosofia propriamente dita, ou
seja, o que os filósofos fazem e produzem, (2) o comentário de
obras filosóficas, aqui entendido como estudos que não entram
nos detalhes das conexões da obra comentada com a literatura
filosófica anterior e/ou subsequente, e (3) a história da filosofia,
aqui entendida no sentido de estudos que contam o itinerário
das ideias e doutrinas no tempo e no espaço, examinando, por
conseguinte, o surgimento e o desenvolvimento desta ou
daquela doutrina ou escola em certo lapso de tempo, às vezes
maior e às vezes menor. Essas três modalidades são muito
diferentes umas das outras, ainda que as duas últimas sejam às
vezes confundidas segundo a denominação "história da
filosofia". Por isso, quando se reflete sobre o ensino dessa
matéria, é necessário fazer a tripartição, uma vez que as
motivações e as habilidades envolvidas nelas são específicas de
cada uma delas.
Observa-se que o cuidado conceitual na definição das três
áreas que constituem as práticas dos professores universitários de
filosofia deve ser imprescindível quando o objetivo da reflexão se
fixar no ensino da filosofia, pois a singularidade das motivações e
habilidades pressuposta para cada atividade não pode ser
menosprezada. Isso porque, segundo o autor (ARRUDA, 2004, p.
83, tradução nossa), “os cursos para a formação de filósofos são
distintos dos cursos para a formação de comentaristas, e estes, por
sua vez, diferem da formação de historiadores”.
Diante da impossibilidade de contemplar as três áreas, o
recorte apresentado pelo autor se estrutura da seguinte maneira.
“Não estarei encarregado neste trabalho com o tema do ensino da
264
história da filosofia, nem do comentário filosófico. Meu enfoque
será o ensino da filosofia, assim como a situação de semelhante
ensino na universidade brasileira” (ARRUDA, 2004, p. 83, tradução
nossa).
Para desenvolver sua argumentação, o autor inicia uma série
de distinções. A primeira fixa-se no esclarecimento das diferenças
existentes no ensino da Ciência e da Filosofia, tendo em vista, a
dualidade entre a atividade do investigador e o conteúdo produzido.
Para Arruda (2004, p. 83-84, tradução nossa)
[...] a atividade é a de fazer ciência, ou seja, praticar os métodos
e gerar os resultados em forma de um corpo de proposições (leis
ou hipóteses), e o conteúdo é esse corpo de proposições mais
ou menos consensualmente aceito na comunidade de
pesquisadores [...] Acontece que na filosofia é conhecido que
um corpo de teses não existe, nem é aproximadamente aceito
como verdadeiro em uma comunidade apropriadamente ampla
de estudiosos; ao contrário, a filosofia se caracteriza pelo
volume de controvérsias e discordâncias nos temas substantivos
e nos assuntos metodológicos.
A distinção estabelecida entre Ciência e Filosofia nos permite
inferir que a transmissão de conteúdos filosóficos é algo impossível,
pois, a dispersão enunciativa impossibilita uma unidade que
justifique a existência que poderíamos chamar de “o Método” ou “a
Teoria”. “Portanto, o que existe para ser ensinado é uma atividade,
a de filosofar. Assim ensinar a filosofia vem a ser, essencialmente,
265
ensinar a filosofar, ou seja, ensinar a arte de filosofar” (ARRUDA,
2004, p. 84, tradução nossa).
Se aceitarmos e sustentarmos as proposições elaboradas pelo
autor, seremos obrigados a admitir que a característica central do
ensino da Filosofia está vinculada na instrução de uma atividade
denominada a arte de filosofar. No entanto, o que seria a arte do
filosofar, ou como essa atividade configurar-se-ia? Nesse viés,
verifiquei como o autor sanou as problemáticas acerca das práticas
que sustentam o modelo didático-filosófico.
Em primeiro lugar, o estudante de filosofia não vai aprender a
filosofar a menos que tenha a sua disposição, inicialmente, duas
coisas indispensáveis. Uma é que haja entre os professores de
seu curso, professores que ensinem cursos filosóficos
propriamente ditos, isto é, que ofereçam ao largo do período da
aprendizagem cursos essencialmente temáticos; e a outra é o uso
de um conjunto de textos de filósofos (ARRUDA, p. 84,
tradução nossa).
Diante das duas premissas que, segundo Arruda, são “coisas
indispensáveis” para que haja efetivamente cursos filosóficos lancei
as seguintes questões: quais professores teriam condições de
ministrar um curso filosófico, sendo que o “Projeto Pedagógico” do
curso de Filosofia revela, de antemão, uma predisposição para a
História da Filosofia? Quem entre os professores do departamento
admitiria ser filósofo? Quais professores teriam se formado em um
modelo temático-filosófico?
266
Percebi que as indagações orbitavam em torno de um eixo
elíptico, que indicava dois pólos para uma possível orientação. Os
problemas começaram a agrupar-se nos eixos da formação dos
professores e da prática didático-pedagógica. Em outras palavras, era
preciso compreender por qual formação meus professores passaram
e por que eles ensinavam daquela maneira? Relacionar a formação
dos professores com as práticas pedagógicas tornou-se possível após
me deparar com o seguinte trecho:
Permita-me examinar agora a situação do ensino da filosofia na
universidade brasileira. A implantação dos cursos universitários
de Filosofia no Brasil, de graduação a princípio, se caracterizou
pela apatia generalizada e indiferente por razões que não
mencionarei aqui, dos manuais tanto de filosofia como de
história da filosofia. A respeito da última, isso consistiu na
substituição dos manuais para o estudo direto de textos
originais, e frequentemente no idioma original. Isso foi
naturalmente um grande progresso, uma grande contribuição
que nós devemos atribuir às primeiras gerações de professores
de filosofia no país. O estudo das obras originais veio
acompanhado de uma concepção de análises rigorosas do texto,
o mais neutro possível, nessa época associado ao estruturalismo.
Como resultado disso, em poucas décadas se formou no Brasil
um corpo de docente-pesquisadores com grande conhecimento
dos idiomas estrangeiros, filosoficamente importantes, e com
um nível de competência verdadeiramente internacional no
gênero do comentário de obras filosóficas (ARRUDA, 2004, p.
86, tradução nossa).
267
Analisando o fragmento acima é possível observar que duas
tradições didático-pedagógicas existiram na universidade brasileira.
A primeira, sustentada por manuais de filosofia caracterizada como
retrógrada; já a segunda assinalada como progressista, substitui os
manuais por textos filosóficos originais, adotando simultaneamente
um método de análise, o estruturalismo
14
.
Aparentemente, as relações de poder existentes na
constituição da segunda tradição, suplantou todas as formas de fazer
Filosofia no Brasil, a começar com pela formação de “docentes-
pesquisadores”, especializados no gênero do comentário filosófico.
Acontece, entretanto, que esse gênero desgraçadamente
terminou ocupando o espaço inteiro que nos departamentos
universitários deveria destinar-se à Filosofia como um todo
ou seja, em suas três modalidades tanto com respeito aos
cursos de graduação, e posteriormente de pós-graduação, como
às investigações produzidas
(ARRUDA, 2004, p. 86).
As palavras do autor indicam a consolidação hegemônica do
comentário. Diante de tais palavras, me perguntei: qual a
proveniência das práticas do comentário de textos filosóficos que
constituem as relações formativas do ensino da Filosofia nas
universidades paulistas? Será que a hegemonia do comentário
impede a disseminação das outras áreas? Nesses termos, a filosofia,
propriamente dita, até mesmo a história da filosofia, nunca existiu
14
O método em questão, também denominado leitura estrutural do texto filosófico baseia-
se na tradição da filosofia francesa, tendo como principais representantes Martial Guéroult
e Victor Goldschmidt.
268
realmente em ato nas universidades brasileiras? De acordo com
Arruda (2004, p. 86-87, tradução nossa),
O comentário é o fator principal que tem impedido e atrasado
o aparecimento na universidade brasileira de uma reflexão
filosófica original regular e consistente. O ensino e a
investigação na Filosofia nos departamentos universitários
brasileiros já nasceram assim, e continuam assim até hoje. Por
conseguinte, o passado, com essa séria deformação
comentarista, ainda está presente em nós quase em sua
totalidade; se constituiu como um pecado original que, como
tal, foi se transmitindo de geração a geração de professores.
Apesar das palavras de Arruda indicarem bons caminhos
investigativos, uma certa continuidade provoca certa desconfiança.
O pecado original e sua transmissão de geração para geração não
parecia ser algo tão simples.
Ora, se admitíssemos todas as premissas apresentadas pelo
autor, deveríamos admitir também a hegemonia de uma prática
didático-pedagógica. Sabemos que esse tipo de inferência se
estabelece em decorrência do argumento de autoridade, logo
acreditar em toda cadência lógica estabelecida no ensaio analisado
seria aceitá-la como verdadeira. Por conseguinte, mesmo sem
comprovações documentais ou evidências históricas, teríamos de
aceitar as premissas e as consequências práticas; por exemplo, a
premissa do “pecado original”
15
sustentaria hipóteses da inexistência
15
“A Filosofia no Brasil foi concebida num “pecado original” nos anos de 1934-35, na
USP. A Sociologia teve frutos (Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique, e
outro) porque vieram para o Brasil sociólogos que se interessavam por estudar a realidade
269
de filósofos na fundação dos departamentos de Filosofia no Brasil.
Nesse sentido, a desconfiança dos argumentos de Arruda foi
fundamental para despertar o desejo de compreender as relações de
poder entre os processos formativos e o ensino da Filosofia na
tradição universitária paulista.
No mesmo período em que analisava o ensaio La enseñanza
de la filosofía: su situación en Brasil, cursava Estética II, com a
professora Dra. Arlenice Almeida da Silva. Recordo que suas aulas
colaboraram na compreensão do problema, pois naquele período
estudávamos obras literárias e textos filosóficos. A primeira oriunda
brasileira, e não comentar obra alheia. A Física brasileira também teve um início
semelhante, que resultou em uma boa quantidade de físicos teóricos de alto nível. Por azar
nosso, um azar verdadeiramente histórico, na instituição da Filosofia predominaram os
comentadores, e não os filósofos. Tinha que ter vindo um grupo de filósofos propriamente
ditos, além de grupo de historiadores, é claro. Ocorre que historiadores só podem formar
historiadores, do mesmo modo que só filósofos podem formar filósofos. Como disse, a
Filosofia no Brasil foi gestada num “pecado original” em sua instalação: pecado porque não
vieram filósofos para instaurar a investigação temática, e original deformação
comentarista/historiográfica foi se transmitindo de geração em geração até chegar nos dias
atuais. Por essa razão, o ensino de Filosofia na Graduação deveria ser tripartidário. Não
pode ser só filósofos formando os alunos. Em geral, filósofos não tem formação boa para
ensinar a história da filosofia; eles ensinariam, ao contrário, Ética, Filosofia Política,
Filosofia da Linguagem. Para os outros aspectos da formação precisa de um grupo de
historiadores e comentadores, não sei qual a quantidade. Mas o departamento de Filosofia
deve ter, de preferência, profissionais nas três áreas, que atuem no sentido de ensinar e
formar comentadores, historiadores e filósofos. É preciso que seja um curso que forme esses
profissionais; se não der pra formar os três, que forme pelo menos dois: aprendizes de
filósofos e de comentadores. Aprendiz de filósofo qualquer um de vocês tem condição de
ser, desde que você se aplique a um assunto que te interesse de verdade, ou não vai
funcionar. Mas só um filósofo, e não um comentador, pode formar um aprendiz de filósofo.
Aí sim iremos ampliar o número de filósofos no Brasil, que trabalham com temas”
(ARRUDA, 2013, p. 14-15, tradução nossa). Esse argumento, pode ser refutado através
das evidências documentais encontradas na tese de doutorado de Denilson Cordeiro
(2008), no meu livro A invenção do Filósofo Ilustrado (SANABRIA ALELUIA, 2014) e,
também, na minha tese de doutorado Por que não somos filósofos? notas genealógicas sobre o
ensino da filosofia na Universidade de São Paulo.
270
da literatura brasileira apresentava através do conto A hora e a vez de
Augusto Matraga (2001), de Guimarães Rosa e Os sofrimentos do
jovem Werther (2001), de Goethe. Apesar de todo encantamento
provocado por Goethe, associações filosóficas oriundas da literatura
de Guimarães Rosa alimentaram meu desejo de pensar o Brasil. Pela
primeira vez, em três anos de curso de Filosofia da Unesp/Marília, o
Brasil fora mencionado.
Nesta aula tive a chance de conversar sobre os problemas que
desejo pesquisar. Embora não houvesse espaço para o debate sobre o
ensino da Filosofia, Silva indicou uma série de livros que foram
fundamentais para compreensão do problema e direcionamento
metodológico, a saber: Formação da literatura brasileira: momentos
decisivos (CANDIDO, 2000), A universidade da comunhão paulista
(CARDOSO, 1982) e Um departamento francês de Ultramar: estudos
sobre a formação da cultura filosófica uspiana (ARANTES, 1994).
O livro de Cardoso foi o primeiro contato sistemático com
a questão universidade. A obra, muito bem documentada,
possibilita uma inserção no contexto da criação da Universidade de
São Paulo. “A tese de Irene Cardoso alterna o geral com o particular:
das conjunturas políticas em torno de 30 para a fundação da
Universidade de São Paulo, e desta para as novas posições da
Comunhão Paulista depois de 35” (BOSI, p. 17, 1982).
Originalmente apresentada no Departamento de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, a tese transita entre as análises políticas e a
reconstrução da cultura educacional que permearam a constituição
do discurso sobre a Universidade de São Paulo. Segundo Cardoso
(1982, p. 20-21):
271
A pesquisa foi iniciada com a leitura de textos que tratavam da
criação da Universidade. Gradativamente foi aparecendo a
necessidade de consultar textos referentes ao projeto político e
ideológico do “grupo do Estado”. Aquilatada a importância
deste na consecução do projeto da Universidade de São Paulo,
visto que a criação da Universidade fazia parte de um projeto
muito mais ambicioso de “regeneração dos costumes políticos
da nacionalidade”, e que a Universidade só poderia ser
entendida como parte deste projeto, resolveu-se ampliar a
pesquisa de modo a captar todos os meios a ação do “grupo”.
Após o fichamento do livro, me dediquei alguns meses em
recolher e analisar os principais documentos mencionados no livro.
No Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa da Unesp/Assis,
analisei e verifiquei o arquivo do jornal O Estado de S. Paulo de
1925 até 1936. Dentre os documentos analisados, destacam-se: A
comunhão paulista (MESQUITA FILHO, 1922), A crise Nacional:
reflexões em torno de uma data (MESQUITA FILHO, 1925), e A
instrucção pública em S. Paulo: ensino secundário e superior
(AZEVEDO, 1960), que subsidiaram a compreensão mais
detalhada sobre a criação da Universidade de São Paulo. Consegui,
ao reunir outros documentos sobre a criação da Universidade um
panorama sobre as relações de poder entre o grupo do Estado de S.
Paulo
16
e o Governo Provisório de Gétulio Vargas. A compreensão
das relações de poder da elite paulista e seu desejo pela criação de
uma Universidade indicaram novos caminhos investigativos. No
16
O grupo do Estado de S. Paulo é uma noção desenvolvida por Cardoso (1982) para
denominar um conjuntos de intelectuais e políticos liberais agrupados em torno do jornal
O Estado de São Paulo (OESP). Entre seus principais representantes encontramos, Júlio
de Mesquita Filho e Fernando de Azevedo.
272
mesmo período, aproveitei para recolher o Processo 186/1970:
reconhecimento do curso de Filosofia e comparar os programas de
ensino, docentes e bibliografia com objetivo de rastrear as
proveniências das práticas de ensino de Filosofia. O programa
consolidado em 1970 já estava fundamentado inteiramente na
perspectiva da História da Filosofia. O que chamou atenção foi o
conteúdo da cadeira de História da Filosofia Antiga, ministrada pelo
professor Dr. Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento. Nele os estudos
platônicos estavam associados à leitura estrutural do texto de
Victor Goldschmidt
17
.
Articulando as reflexões existentes nos conjuntos de
documentos analisados com o ensaio La enseñanza de la filosofía: su
situación en Brasil inferi um ponto de partida. Comecei a formular a
hipótese, na qual o discurso sobre ensino da Filosofia no Brasil
surgira de uma grande dispersão discursiva, ou seja, para que uma
ordem discursiva fosse estabelecida como prática, muitos enunciados
teriam sido silenciados no decorrer da história. Iniciam-se os estudos
do livro de Arantes (1994), que possibilitou um panorama interior
das práticas filosóficas existentes entre 1934 até 1968. Influenciado
pelo esquema teórico de Candido (2000)
18
e pelas teses de Schwarz
17
Cf. Anexo 1. Programa da Cadeira história da filosofia antiga.
18
Arantes afirma que em “nenhum momento deixo de aludir ao fato (deveria até ter sido
mais discreto, como seria do gosto do pai da ideia) de que o meu esqueminha está
inteiramente apoiado na ideia de Formação que Antonio Candido, encerrando um ciclo de
ensaios clássicos de interpretação do Brasil. Todos eles variações dessa mesma obsessão
nacional, desenvolveu para o caso particular da literatura brasileira, revirando de alto a
baixo a interpretação do nosso passado literário, reapresentado como o vir-a-ser de uma
constelação de obras, autores e público - um campo histórico de influências artísticas
entrecruzadas - que na sua trajetória ia aos poucos convertendo surtos desgarrados em vida
literária efetiva [...]. Estava armado o esquema de que eu precisava, o ponto de vista que
tornava enfim visível o meu assunto, o lugar ocupado pela Filosofia na formação e
273
(2000)
19
, o autor procura traçar as continuidades históricas, que
permitiram a evolução da cultura filosófica no departamento da
FFLC-USP.
“No Brasil”, afirma Arantes (1996, p. 23), “a falta de assunto
em filosofia é quase uma fatalidade. Razão a mais para transformá-
la em problema.o é uma questão de talento, mas de formação”.
Percebi na exposição de Arantes, que a forma (formação) sobressai
ao conteúdo (assunto, ou a falta de assunto), pois, por mais que
aparentemente a “falta de assunto” seja uma fatalidade, que foi
transformado em problema, o epicentro da discussão está na
problematização da formação, logo, refletir sobre os procedimentos
do ensino de Filosofia precede discussões sobre a existência ou não
de uma Filosofia brasileira.
Logo, observei nas reflexões do autor que o processo de
formação filosófica desde sua constituição se fixou em reproduzir o
pensamento europeu em análises que visavam a suprir problemas de
ordem locais. Essa prática viciada de seguir vicissitudes externas, ao
calor da hora, gerou uma espécie de descontinuidade na formação
filosófica brasileira. Para Arantes (1994, p. 61) nossa “bruxuleante
curiosidade filosófica, como é sabido, sempre viveu à mercê das
funcionamento do sistema cultural brasileiro - como era de fato muito lateral, ficava mesmo
difícil enxergar alguma coisa” (ARANTES, 1995, p. 185-186).
19
A influência das teses elaboradas por Roberto Schwarz na obra Um mestre na periferia do
capitalismo: Machado de Assis e no ensaio As ideias fora do lugar, parecer orientar as análises
de Paulo Arantes. Isso porque, as teses de Schwarz, nas quais, indicam que as periferias
culturais como Brasil emprestam dos países centrais ideias, sistemas, metodológicas, etc.
Contudo, as conjunturas sociais, econômicas, culturais e históricas das periferias do
capitalismo proporcionariam uma distorção das “formas” civilizadas, que seriam quase
irreconhecíveis. Para uma maior compreensão do tema recomendo a leitura de ARANTES
(1997).
274
marés ideológicas da metrópole, literalmente a reboque dos vapores
da linha da Europa, como diziam os desaforados desde os tempos de
Sílvio Romero”. Se nossa curiosidade filosófica depende das marés
ideológicas que surgem na Europa, como afirma Arantes, de que
maneira essas ideias deságuam nas praias brasileiras? Como essas
marés filosóficas se ramificam pelos estados brasileiros, se
manifestam e concretizam nas produções filosóficas, mais
especificamente, como elas contribuem para formar um possível
campo de estudo e pesquisa que se denomina Ensino da filosofia?
Para Arantes (1996, p. 23) a “cultura filosófica
contemporânea é essencialmente universitária, uma especialidade
entre muitas”. Assim sendo, inferir que o ambiente universitário
seria um candidato às proveniências, nas quais se ramificavam e se
desenvolviam em uma extensa rede de saberes e poderes. Tais redes
atravessavam os corpos dos indivíduos como receptáculos dessa
ordem discursiva.
Imaginei ser possível compreender por um viés filosófico o
modo como o debate sobre o ensino de Filosofia se constitui nos
espaços acadêmicos brasileiros e situar os atuais modos de ensinar
que direcionam as diferentes abordagens sobre o ensino de Filosofia.
Comecei a perceber uma relação entre a existência de uma
tradição filosófica europeia e uma ordem discursiva, que se
estabeleceu nas universidades paulistas. Aparentemente, essa prática,
especificamente no Brasil, ao se ramificar nas instituições de ensino
e pesquisa de filosofia, gerou um fazer mimético filosófico, no que
concerne ao método, ao conteúdo, como já alertava Arruda (2004).
275
Coincidentemente nesse semestre, o professor Gelamo
ministrava a disciplina de Didática. A partir das aulas tomei
conhecimento do seu livro Ensino da filosofia no limiar da
contemporaneidade: O que faz o filósofo quando o seu ofício é ser
professor de filosofia? (2009) e da proposta de Alejandro Cerletti
contida no livro O ensino de filosofia como problema filosófico (2009),
que direcionaram de forma basilar à construção das minhas
pesquisas.
O caminho
No primeiro semestre de 2011, fui aprovado no processo
seletivo do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Unesp de Marília, sob a orientação do professor Gelamo. O
projeto “O ensino da filosofia no Brasil: uma genealogia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo
20
tinha por objetivo analisar quais foram as condições que
permitiram a emergência de uma ordem discursiva sobre o ensino
da Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo e como tal discurso produziu a imagem
do filósofo da elite ilustrado na Universidade de São Paulo em 1936.
Após dois anos de investigação a dissertação foi publicada pelo selo
Cultura Acadêmica da editora Unesp com o título A invenção do
20
A referida dissertação foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp) e
tornou-se livro através da iniciativa “Programa de Publicações Digitais” (Edital nº 11/2014
- PROPG) organizada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Unesp e Fundação Editora
Unesp e integra o selo “Cultura Acadêmica” da Fundação Editora da UNESP com o título
A invenção do filósofo ilustrado: notas genealógicas sobre o ensino da filosofia no Brasil.
276
Filósofo Ilustrado: notas arqueogenealógicas sobre o ensino da
Filosofia no Brasil
21
.
Nessa pesquisa, a partir dos procedimentos
arqueogenealógicos, investiguei o período de 1870 até 1936. O
recorte histórico pretendeu evidenciar o acontecimento discursivo
que denominei Encenação trágica da epistémê brasileira. Busquei
demonstrar que a ilustração brasileira se configurou como um
acontecimento moderno, pois partilhava da nova configuração das
ciências empíricas, da filosofia transcendental e da própria criação
das ciências humanas (duplo empírico transcendental)
22
. Dessa
relação, três enunciados (universidade, elite e ilustração) emergiram
e sustentaram a constituição da ordem discursiva sobre o ensino da
Filosofia na Universidade de São Paulo.
A ilustração brasileira como acontecimento no seio da
epistémê moderna teve na institucionalização dos saberes e na
ramificação das práticas discursivas o objetivo de inventar um novo
modo de ser do homem brasileiro: o homem ilustrado. Esse processo
subjetivo seria moldado no cerne da universidade, que teria como
função esclarecer e civilizar esse homem através de um ensino livre
(científico, filosófico), que o libertaria das superstições religiosas e
das péssimas condições intelectuais das práticas didático-retóricas da
época. O homem ilustrado na mais alta cultura (cultura europeia)
teria uma função ética-jurídica de pensar os caminhos para
21
Através da iniciativa “Programa de Publicações Digitais” (Edital nº 11/2014 - PROPG)
organizada pela Pró Reitoria de Pós-Graduação da Unesp e Fundação Editora Unesp, as
cinquenta melhores dissertações e teses de toda UNESP foram selecionados para integrar o
selo “Cultura Acadêmica” da Fundação Editora da UNESP.
22
O procedimento arqueológico desenvolvido no livro As palavras e as coisas foram a base
teórica e discursiva para sustentar as principais hipóteses sobre a ilustração brasileira.
277
modernização econômica, cultural (SANABRIA DE ALELUIA,
2014).
Sairíamos do estágio inferior do espírito humano e
alcançaríamos as regiões da evolução social aos moldes da cultura
europeia. Durante toda a ilustração brasileira as disputas entre os
saberes e poderes, segundo minha leitura, produziram dispersões
discursivas. Contudo, os enunciados elite, universidade e ilustração
que perpassaram diferentes discursos, subjetividades, instituições e
ideologias começam a constituir uma regularidade discursiva em
torno do objeto homem ilustrado, esclarecido pela liberdade do
ensino no devir da universidade.
Nesse caminho reflexivo cheguei a uma segunda emergência
discursiva, através da reativação do enunciado universidade
23
, que
mediante o objeto homem bem pensante justificou a manutenção
da universidade da elite ilustrada, objetivando formar a elite
dirigente no rigor do método e refinamento espiritual das
humanidades, para conduzir o país ao progresso e à ordem
(SANABRIA DE ALELUIA, 2014).
Essa segunda síntese apontou os caminhos para compreensão
de que nosso processo formativo e o ensino da filosofia estavam
diretamente ligados com uma relação de poder na condução dos
homens. O homem bem pensante formado na universidade seria
23
Em 15 de novembro de 1925, o artigo “A crise nacional Reflexões em torno de uma
data” escrito por Júlio de Mesquita Filho. O documento relacionava o processo de abolição
da escravatura com as origens da “decadência política” instaurada após a Proclamação da
República. Com objetivo de purificar e promover o desenvolvimento da nação, Júlio de
Mesquita Filho propõe a criação de uma Universidade em São Paulo.
278
educado para tornar-se um dirigente, que conduziria os homens e a
nação para o progresso da humanidade.
Também destaquei uma terceira emergência discursiva, na
relação do método histórico-historiográfico com a ordem discursiva
mauguetiana. Na medida em que almejei esclarecer que a formação
discursiva que se constitui na dispersão de Cousin a Guéroult
produziu práticas discursivas pelo ensino educacional francês, as
consequências de tais práticas resultaram na disciplinalização
filosófica de Jean Maugüé, principalmente pelo contato com Léon
Brunschvicg, reconhecido como receptáculo do discurso histórico-
historiográfico (SANABRIA DE ALELUIA, 2014).
Da relação das duas formações discursivas, uma ordem
emerge no artigo O ensino da Filosofia: suas diretrizes
24
. Observei que
tal ordem forneceu as condições de existência para o ensino do
filósofo da elite ilustrado, o qual, disciplinado pelo método
histórico-historiográfico, teria a possibilidade de filosofar em suas
meditações ou pela crítica da atualidade, objetivando encontrar os
princípios gerais que regem a multiplicidade das coisas. Nessa
mesma ordem, entendemos que o professor de Filosofia assumiria
dois papéis, o primeiro, mais ilustre, caracterizado pelo filosofar, na
medida em que praticava a crítica do presente através da história da
filosofia, mas também considerado um professor-comentador, visto
que argumentava para seus alunos sobre os principais conceitos e
24
O texto de Jean Maugüé foi publicado originalmente em 1937 no Anuário da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: 1934-1935 (p. 25-42);
também foi publicado na Revista Brasileira de Filosofia, v.5, fasc. IV, n.20, out.-dez. 1955,
e no Caderno do Núcleo de Estudos Jean Maugüé, em novembro de 1996.
279
características históricas dos autores clássicos (SANABRIA DE
ALELUIA, 2014).
Além de sustentar uma formação, a mesma ordem
estabelecia regras que prescreviam formas de fazer filosofia no Brasil,
tendo em vista o projeto que constitui a Universidade de São Paulo.
A partir da normatização, ser filósofo significava estar no verdadeiro,
ou seja, possuir uma formação cultural refinada que precedesse os
estudos filosóficos, seguir os preceitos da formação em História da
Filosofia no rigor da leitura do texto filosófico e viver no presente
(ARANTES, 1994; CORDEIRO, 2008; MARQUES, 2007).
Esse conjunto de reflexões me levou a recolocar o problema
novamente no doutorado pelo impacto do presente e da experiência.
Quais as relações de poder existentes no processo de formação do
filósofo ilustrado? Será que os processos de consolidação do modelo
uspiano do ensino da Filosofia estão relacionados com as disputas
entre os saberes e poderes? Quais são as proveniências dessas ordens
discursivas? Muitas perguntas nasceram e me motivaram a continuar
minha pesquisa no doutorado.
Diante disso, minhas últimas experiências como estudante,
professor e pesquisador permitiram conhecer e compreender os
arquivos e os principais enunciados que constituíram o projeto da
elite paulista para Universidade de São Paulo e, principalmente a
emergência do ensino da Filosofia até 1936. Porém, faltava
compreender como ocorreu a implantação do ensino da Filosofia na
Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras entre 1936 e 1963.
Sendo assim, na tese denominada Por que não somos filósofos:
notas genealógicas sobre ensino da filosofia na Universidade de São
280
Paulo (2021), refleti sobre a relação entre a formação filosófica e seu
ensino, especificamente verifiquei a relação de poder na formação do
filósofo focando nos elementos constitutivos das diferentes formas
de ensinar filosofia na Faculdade de Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL USP) entre de 1936
e 1963.
Encontrei os processos formativos que se estabeleceram nas
relações do ensino filosófico uspiano, para apreender o aparente
modo hegemônico de fazer filosofia no Brasil. Como demonstrei na
exposição sobre meu trajeto formativo, comprovei os indícios de
uma ordem discursiva estabelecida na produção subjetiva daqueles
que dedicam aos estudos filosóficos. Entretanto, mergulhei na busca
das vozes dissonantes que insistem em se enunciar de outro modo.
Nessa relação de continuidades e descontinuidades a investigação
que se desdobrou na em palavras que pareciam ilhas desertas, mas
organizadas em uma ordem discursivas delineavam arquipélagos.
Uma ordem discursiva potente em suas relações de poder que
reverberam em nossos corpos no presente.
Coletei notas arqueológicas em arquivo empoeirados, para
compreender o por que não somos filósofos se fez necessário revirar os
documentos, experiências e práticas que foram silenciadas no
decorrer da consolidação de um modo do fazer filosófico uspiano.
Uma forma que por ser insuficiente e artificial em sua constituição,
não conseguia segurar a potência da diferença que se manifestava
naqueles que não foram capturados por um regime de poder que
deseja impor um modelo único, uma voz uníssona sobre o filosofar.
Como Arruda, Gelamo, Almeida emergiram como vozes dissonantes
e resistentes às relações de poder instauradas nas paredes, nos
281
corredores e nos corpos institucionalizados, encontrei outros
corroboraram para outras formas de fazer filosofia em épocas
distintas.
Foi estudando a relação entre o projeto filosófico-
propedêutico elaborado por Jean Maugüé, no artigo “O ensino de
Filosofia e suas diretrizes” (1936) e seu desdobramento na formação
e atuação dos primeiros quadros de professores brasileiros,
especificamente os filósofos João Cruz Costa e Lívio Teixeira, que
encontrei outras possibilidades pensar o ensino da Filosofia.
A compreensão do silenciamento desse projeto mauguetiano
foi necessário para apreender as consequências da recepção da
abordagem metodológica desenvolvida pelos professores franceses
Martial Guéroult e Victor Goldschmidt. A tradição historiográfica
da filosofia uspiana absorveu parte da metodologia, substituído por
um simulacro goldschmidtiano. Não nos tornamos nem tecnólogos
da razão (historiadores), nem filósofos dos sistemas. A inferência é
que retornamos aos comentários escolásticos infrutíferos e inférteis,
que perpetuam a falta de tato histórico e produzem um
discernimento muito raso. Isso não implica a inexistência de bons
comentadores e algumas histórias da filosofia como descritas por
Guéroult, mas tais obras são as exceções de uma ordem discursiva
que strictu sensu forma comentaristas.
Assim nos tornamos ótimos comentadores dos
comentadores da história da filosofia. Digo isso com pesar e não com
alegria, não há desdenho ou romantismo nas minhas palavras.
Também nenhuma profecia niilista, que por desamparo se afasta da
filosofia e caminha para o ceticismo. Pelo contrário, as construir
282
uma topologia que permitisse me localizar no tempo e espaço, sinto
que minha geração e as próximas já dividem uma contempora-
neidade capaz de ampliar toda potencialidade das nossas faculdades
cognitivas. Sem teleologia para sustentar nossas fugas, o projeto de
outras formas de vidas filosóficas está no presente.
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287
Percurso de formação e investigação no Enfilo:
Uma arqueologia do ensino de filosofia no Brasil
Tiago Brentam PERENCINI
1
A força de um chamado e tempo presente
Receber o convite para participar da elaboração da presente
coletânea acenou-se a força de um chamado existencial, afetivo e
institucional; espécie de rememoração de meu passado formativo,
vivido enquanto estudante, professor e pesquisador em filosofia da
educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de
Marília-SP.
Um chamado existencial, primeiramente, pois, corrido cerca
de um setênio desde a minha participação no Grupo de Estudo e
Pesquisa sobre o Ensino de filosofia (ENFILO), oportuniza-me
resgatar feixes de memórias sobre um passado que hoje se modificou
substancialmente em mim em nível de ambições, escolhas e
subjetividade. Oportunidade boa para rever o que eu e a vida fizemos
de mim mesmo. Eu, minha própria criação.
Chamado afetivo, pois entendo que a singularidade
exercitada por mim à época no Enfilo, para além da produção
acadêmica, fora o de um articulador que procurou promover
1
Curso de Medicina. Centro Universitário de Santa Fé do Sul-SP (Unifunec)/Santa Fé do
Sul-SP, Brasil, tiagobrentam@gmail.com.
288
alianças entre diferentes espaços formativos. Cito, por exemplo, o
espaço do Encontro de Graduação em Filosofia da Unesp, que
organizei durante anos, as instâncias políticas estudantis e
representacionais da Unesp à época, como o Movimento Estudantil
e o contato com representantes discentes do curso de Filosofia. Afora
isso, oportunizou-me também recordar da relação com amigos
queridos, como Antonio Trajano Menezes Arruda (in memorian),
espírito por quem sinto gratidão inenarrável ao mostrar-me outras
possibilidades de se experimentar a filosofia naquela ocasião. Não de
maneira fortuita a minha dissertação de mestrado fora dedicada a
Antonio Trajano.
Chamado institucional, pois considero que o resgate de tais
memórias oportunizará aos estudantes presentes hoje no curso de
filosofia a leitura de diferentes olhares sobre acontecimentos que não
ingressaram e ingressarão nos documentos oficiais, como fora o caso
da disciplina Questões da filosofia e seu ensino, acontecimento muito
diferente de mero espaço curricular da licenciatura em Filosofia da
UNESP de Marília/SP. Ao contrário, entendo a Questões como um
agregado de várias forças comuns que se puderam sintetizar na defesa
qualitativa da licenciatura e na importância de pensar a formação do
professor de filosofia enquanto problemática filosófica, bem como
na percepção de um esgotamento de um tipo de formação em
filosofia recebida à época por minha geração, a saber, a concepção
historiográfica e exegética, que regeu a formação docente do
Departamento de Filosofia.
Tal chamado é grande desafio para meu tempo presente,
porque ocorre justamente em um momento em que me encontro
em outro limiar existencial, onde diferentes ciclos daquilo que fui
289
conversam com uma série de novas possibilidades (d)e caminhos a
trilhar. Conclui o meu doutoramento em Filosofia da Educação pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp de Marília
(PERENCINI, 2020a) no início de 2020, tendo por orientadores
Pedro Angelo Pagni e Alexandre Simão de Freitas, pesquisa que
originou a publicação do livro Filosofia, Educação e Magia: uma
anarqueologia do cuidado de si entre o daimon e os sonhos
(PERENCINI, 2020b). Defendi uma tese híbrida, que aponta para
a magia como campo eclipsado pelo curso da história e filosofia
ocidental, indicando técnicas heterodoxas para se pensar uma
educação filosófica no tempo presente. O presente percurso sugeriu
também o meu distanciamento existencial das questões da filosofia
e de seu ensino porque fui conduzido a experiências que
transcendem os eixos formais e disciplinares de saberes e práticas
universitárias e escolares de formação.
Ocupo-me agora em nível acadêmico e profissional com os
campos de história e filosofia da medicina, educação médica e
formação humanitária em educação e saúde como docente do curso
de medicina do Centro Universitário de Educação e Cultura de
Santa Fé do Sul-SP, Unifunec, instituição universitária privada.
Como continuidade de meu doutoramento, esse trabalho tem me
possibilitado aprofundar sobre campos terapêuticos e de cura pouco
ou nada visíveis pela formação médica, como é o caso das práticas
de encantamento, feitiçaria, bruxaria e magia.
Curiosamente, questões de transmissão de saberes, práticas e
subjetividades voltam a povoar os meus propósitos, mas de uma
maneira muito diferente do que trouxera à época do Enfilo. Durante
o meu próprio curso de doutoramento tornei-me um filósofo
290
terapeuta, termo que inventei e o qual tenho desenvolvido teórica e
praticamente, abrindo-me há mais de cinco anos para campos não
visíveis pelos saberes acadêmicos, como é o caso da astrologia e
tarologia terapêutica. Recentemente, iniciei formalmente a minha
trajetória enquanto terapeuta integrativo com Práticas Integrativas e
Complementares em Saúde (PICs) em yoga, onde também me tornei
professor de filosofia e história do yoga em um curso de formação
para docentes.
Teço na presente coletânea a narração de parte desse
percurso formativo, vinculado ao Enfilo, após uma década de sua
trajetória acadêmica, o qual tive oportunidade de contribuir desde a
sua fundação e durante anos, na companhia dos professores Rodrigo
Pelloso Gelamo e Vandeí Pinto da Silva, ambos docentes e
orientadores com quem tive a honra de trabalhar e a quem muito
agradeço pelo aprendizado partilhado.
O meu encontro com o Enfilo foi fundamental no início de
minha graduação em filosofia para me mostrar que os problemas em
filosofia não se escreviam na esteira puramente conceitual, como
advogavam a maioria dos docentes do Departamento de Filosofia,
mas se estreitaram desde a minha experiência fraturaria como
estudante, professor e pesquisador. Disso surgiu o interesse pela
investigação do ensino de filosofia.
291
O cenário existencial como campo de encontro ao Enfilo
Suponho que não seja possível abarcar exatamente o início e
o fim de uma experiência, mas o curso do esquecimento não me
rouba a lembrança viva de como a minha fratura formativa se
potencializou. No ano de 2009, assumo a posição de professor de
filosofia no Cursinho Alternativo da Unesp de Marília (CAUM)
2
.
Ainda iniciante na graduação, o meu ofício docente balizou-se em
duas esferas. Na projeção de certos docentes na Universidade, que
tomava como espelho. E também na recorrência aos manuais
tradicionais de filosofia para o ensino médio, que vigoravam no
Brasil à época.
Os docentes que me serviam como amostra tratavam de
explicar os textos e os rígidos conceitos de determinados autores da
tradição filosófica. Os manuais ofereciam um modo de ensino
calcado entre temas e a história da filosofia. O meu ofício docente
foi ganhando forma nesse intento: instruir estudantes de um grau
inferior ao universitário na história e nos temas da tradição filosófica.
Para um iniciante, não parecia mau grada a tarefa, sobretudo porque
anos depois percebi que era exatamente essa a especificidade de
minha formação universitária em filosofia.
2
Referência ao Projeto de Extensão “Cursinho Alternativo da Unesp de Marília” (CAUM),
coordenado pelo Prof. Dr. Luiz Roberto Vasconcellos Bozelli. Tendo iniciado as suas
atividades em 1998, atualmente o projeto conta com 120 estudantes ingressos por ano.
Além de complementar a formação do aluno/a adquirida em nível de ensino médio,
possibilita também ao graduando uma melhor formação atinente ao ensino e a pesquisa.
Todas as informações sobre o CAUM encontram-se no endereço:
http://www.marilia.unesp.br/index.php?inputNoticiasBuscaTopo=Caum#!/caum
292
Basta um recuo a dois importantes documentos para
averiguar essa finalidade de formação. O primeiro é local. No Projeto
Pedagógico da Unesp-Marília, entende-se a especificidade do
licenciado da seguinte maneira: “Igualmente familiarizado com a
técnica da ‘explicação de texto’, tornando-a privilegiado
instrumento do ensino da Filosofia no 2o. grau, o licenciado deverá,
também, promover o contato produtivo de seus alunos com os mais
significativos movimentos da cultura ocidental, no domínio das
ciências e das artes”
3
. Portanto, a instrução na tradição para o ensino
da filosofia no nível médio deveria contar com a “explicação de
texto”, privilegiado instrumento para a formação do professor.
O outro documento é de relevância nacional, mas cumpre o
mesmo propósito. As Diretrizes Curriculares para os Cursos de
Graduação em Filosofia no Brasil
4
unem o perfil formador,
modalidade de bacharel e licenciado, à “sólida formação de história
da filosofia, que capacite para a compreensão e a transmissão dos
principais temas, problemas, sistemas filosóficos, assim como para a
análise e reflexão crítica da realidade social em que se insere”
(BRASIL, 2001, p. 3)
5
. A “técnica de explicação de texto” soma-se
3
O referido Projeto pode ser encontrado no seguinte endereço:
http://www.marilia.unesp.br/Home/Graduacao/Filosofia/projeto.pdf. Acesso em: 10 jan.
2015.
4
A presente Diretriz pode ser encontrada em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf. Acesso em: 10 jan. 2015.
5
O modelo de curso que vai ao encontro desse modo de ensino é a graduação da
Universidade de São Paulo. O Projeto Pedagógico do curso demarca muito bem o modo
de compreensão do ensino de filosofia, a partir do rigor na leitura do texto e no trato
histórico em suas questões, oferecido em cursos monográficos: “Se observarmos que o lema,
talvez mais fundamental, que presidiu as orientações pedagógicas e da pesquisa na formação
do Departamento de Filosofia foi, certamente, o de que ‘o ensino da filosofia deverá ser
primeiramente histórico’ para ser, em seguida, ‘mais contemporâneo’, e o de que tal ensino
se faz pela leitura rigorosa, frequentação e meditação dos textos dos grandes filósofos,
293
a “sólida formação em história da filosofia” recebida na graduação
como os dois privilegiados instrumentos que deveriam reger o perfil
do licenciado na educação média.
Recordo que a minha grande motivação à época era
aprimorar tais conteúdos e, sobretudo, formar-me a partir dos
melhores métodos de exegese e transmissão do texto. Assim, poderia
ensinar a filosofia a todos. Somado as atividades de professor, iniciei
uma pesquisa sobre retórica, esperando apurar os modos de instruir
estudantes na tradição filosófica. Fiel à (in)formação recebida,
dediquei-me a centralidade da História da Filosofia a partir da sua
transmissão e explicitação de seus textos. A finalidade de esse ensino
era persuadir o outro de que tais conteúdos eram importantes e
precisavam ser estudados. A sala de aula existia para mim como uma
grande contenda para os exercícios retóricos que a pesquisa me
aliciava. Sobre a exigência dos conceitos abarcados pelos textos
filosóficos, acreditava que o fortalecimento didático sanaria
quaisquer dificuldades em seu ensino.
Nisso, a minha formação como professor de filosofia estaria
plenamente realizada: “explicar textos”, em sua maioria rebuscados,
a estudantes que, diferentemente de mim, não escolheram a filosofia
como formação, utilizando-me de uma “história da filosofia”
cronológica e evolutiva como o seu instrumento privilegiado.
Exatamente assim ocorriam as minhas aulas na Universidade. Era
para essa finalidade que eu, estudante de filosofia, estava sendo
formado.
compreenderemos que o ensino que oferecemos tenha se organizado segundo o eixo da
‘História da Filosofia’ e se pautado por cursos ‘monográficos’ de interpretação dos clássicos
em suas grandes obras”.
294
Pois bem. Na contramão disso, à medida que eu me
aprofundava na graduação e particularmente no ofício de professor
atentei-me para uma série de dissonâncias. Mostro três delas.
Primeiro, os cursos arrogados de “História da Filosofia” ocupavam
a centralidade do rol de disciplinas tanto no bacharel, como na
licenciatura. Mas eram monográficos, o que pouco permitia a
nomeação “História”. Segundo os cursos nomeadamente temáticos
(ética, política, estética, etc.), em lugar disso, ora eram igualmente
monográficos, ora meramente narrativos sobre autores e seus
sistemas de pensamento, com proximidade no tema referido. E, por
fim, nenhuma “História da Filosofia” sequer tencionou quaisquer
reflexões acerca das questões conceituais, teóricas e metodológicas
em história. Algo parecia rachado no processo.
Retomando a prática de professor, que explicava textos à luz
da história da filosofia, admito que a minha teoria foi, definitiva e
catastroficamente, outra. Não demorei a perceber a restrição da
estratégia para qual estava sendo formado na licenciatura. O
conteúdo da história da filosofia e as técnicas didáticas para a
explicação de texto eram insuficientes. A sala de aula não servia mais
como o palco para as minhas repetidas performances orarias.
Tornou-se mesmo um lugar desconfortável, arenoso e problemático.
A oratória e a retórica foram ocupando um espaço secundário em
meus interesses como estudante.
Lembro que essa formação calcada na transmissão histórica
me tomava por uma profunda impotência. Meus colegas de curso,
estudantes como eu, não entendiam muito bem o motivo. A história
da filosofia parecia tão rica em suas vertentes e temas, por que
questioná-la? Talvez, a minha curta experiência como professor,
295
ensinou-me a não tratar este objetivo como a única forma de se
relacionar com a filosofia escolar. Poderiam existir outras
possibilidades, mas como estudante do curso de filosofia, ambiente
de formação para professores, eu não encontrava qualquer debate
acerca delas.
O desconforto da sala de aula possibilitou-me a percepção
de que eu também já não ocupava apenas o mesmo lugar da maioria
de meus colegas, como estudantes do curso. A minha escolha
encaminhara-se para outro rumo. De maneira adversa da maioria
deles, optei pela licenciatura. Agora eu era um professor, escolha
infame. De um estudante infame. Esta decisão me provocava uma
ausência, mas também uma estranha força. Se, de um lado, a sala de
aula tornava-se uma decepção, por outro, também me marcara
profundamente, coisa diferente da pesquisa conceitual realizada com
a retórica. Já não me conseguia ver mais fora dessa relação. Talvez
nunca estive. E agora eu precisava (re)pensá-la.
A prática como professor em um espaço heterogêneo, como
o CAUM, permitiu que uma série de suspeitas entre a filosofia e o
seu ensino desabrochassem em mim. Questões tanto atinentes à
transmissão do conteúdo e do método em filosofia, sua natureza se
comparada à escolarização das demais disciplinas ou ainda a função
política que o ofício docente alude. Tais perguntas somaram-se a
impressão de que as práticas universitárias com a filosofia eram
igualmente problemáticas. Existia uma “história da filosofia”, que
não era história, tampouco filosofia. Uma “Ética” que, de revés, era
histórica.
Contudo e mais decisivamente, pude notar que havia uma
intensa dissonância entre dois lugares: o discurso da formação
296
universitária em relação à prática escolar na educação média. A
formação do licenciado era uma espécie de apêndice da formação
pretensamente rígida do bacharel. A figura do professor parecia
secundarizada se comparada à do pesquisador. E esse escalonamento
começou a me incomodar profundamente. A minha iniciação à
filosofia não foi de ordem teórica e conceitual, mas nessa relação de
desassossego defronte a formação recebida.
Posso exemplificar uma série de questões que (me e se)
encontraram à época: Seria eu alguém a “explicar textos” da cultura
filosófica para estudantes que, diferentemente de mim, não
escolheram uma graduação de filosofia como curso? E que não
pretendem existir enquanto leitores ou historiadores “profissionais
da filosofia? E que “profissionais” eram estes que nunca me
proporcionaram sequer uma reflexão acerca dos canteiros teóricos e
metodológicos da história? Este parecia um ofício desgraçado! Em
essência e muito vagarosamente, iniciei um processo de pensar
diferentemente do que se pensava em minha formação de
graduando. E isso, com o tempo, (me) incomodou.
O ensino de filosofia torna-se um problema para mim.
Então, quis também formalizá-lo como pesquisa de iniciação
científica. Lembro que aliava a minha função de professor bolsista a
uma pesquisa informal de retórica. A minha primeira motivação foi
sugerir ao orientador dessa investigação a tomada do ensino de
filosofia como objeto. Para a minha surpresa, além de ele não
entender a minha motivação, extratou que isso não se configurava
como uma temática eminentemente filosófica.
Confesso que fiquei sem compreender quais critérios
legitimavam a “retórica” como um campo sumariamente filosófico,
297
em descrédito de outro cujo nome se remetia à própria filosofia,
como o “ensino de filosofia”. Este segundo parecia indigno de ser
pensado. Eu era um tímido graduando de filosofia (há muitos deles!)
e não me sentia competente para questionar quaisquer juízos de área.
Mas, tampouco, aceitei de bom grado a afirmação - há muita ousadia
nos tímidos graduandos, mesmo quando em silêncio.
Abandonei a retórica. A segunda motivação foi procurar
entre os docentes do Departamento de Filosofia da Unesp de Marília
qual deles poderia me auxiliar em uma iniciação científica, que
tivesse como objeto a filosofia e o seu ensino. A minha surpresa foi
perceber que sequer um deles se dedicava a temática em suas
pesquisas. Era ingênuo, confesso, mas não pude olhar com certo
estranhamento os vários professores de filosofia que não se
dedicavam a pensar o seu próprio ofício.
Também notei que as pesquisas em filosofia na universidade
era um lugar para especialistas. Não existindo especialistas de
filosofia em ensino de filosofia, ele não seria pesquisado entre os
estudantes de filosofia. O resultado de minha procura foi que esses
mesmos docentes me indicaram a área da “Pedagogia”, assim se
referiam, pois era ali que as questões do ensino da filosofia eram
investigadas. Ao menos um pedagogo haveria de pensar o ofício do
professor de filosofia, tranquilizei-me.
Naquele momento e certo de que entre os pedagogos
encontraria as respostas sobre o que e como ensinar tomei
conhecimento do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Filosofia
298
(GEPEF)
6
. Mais surpreso de que o ensino de filosofia não era um
tema filosófico e de que os professores de filosofia não produziam
pesquisas na área, foi perceber que os “pedagogos” não me
ofereceriam as soluções pretendidas sobre o que e como ensinar.
Contudo e mais decisivamente, mostraram outros modos de refletir
as questões que trazia comigo, indicando também outra
compreensão das pesquisas em Filosofia.
Em geral, o Gepef possibilitou-me um processo de pensar
filosoficamente a educação em seus mais amplos aspectos. Em
específico, mostrou-me que as questões do ensino de filosofia
também filosoficamente poderiam ser trabalhadas. Essa maneira de
conceber a filosofia atentou-me que uma pesquisa na área não se
reduzia como um saber fechado sobre si mesmo. Poderia, enfim,
pensá-la de outros modos.
Vale uma digressão. Ainda iniciante na área acadêmica, a
minha concepção de um problema a ser investigado filosoficamente
formalizava-se nas seguintes perguntas, tendo em vista as práticas
universitárias recebidas: Sobre quem pesquisarei? Em qual conceito
de determinado filósofo quero ser especialistas? Por outro lado, tais
perguntas tornaram-se restritas para mim que já iniciara na docência
e não encontrara esse campo contemplado nas pesquisas acadêmicas
em Filosofia.
De forma contínua, o Gepef propiciou que transmudasse
também esse modo restrito de compreender uma investigação.
Comecei a me questionar se uma iniciação filosófica e científica
6
O GEPEF tem por lideranças Pedro Angelo Pagni e Divino José da Silva. Maiores
informações sobre o Grupo na página: http://www.marilia.unesp.br/#!/pesquisa/grupos-
de-pesquisa/gepef/historico/.
299
deveria ser feita, necessariamente, a partir de algum filósofo
canônico, bem como sobre os seus conceitos. E mais, pude
compreender que a relação entre o ensino e a filosofia trazia
especificidades que estavam para além do campo pedagógico.
Criamos, meses depois, um espaço para estudar o ensino e a
filosofia, que intitulamos Enfilo
7
, subgrupo do GEPEF, a fim de
pensar tais nuances. De maneira paradoxal, enquanto os professores
do Departamento de Filosofia relegavam o seu modo de ensino à
transmissão do sistema de pensamento de determinado autor
canônico da tradição filosófica, encontrei, entre os professores
oriundos dos Departamentos ligados à Educação, potencialidades
para problematizar filosoficamente esse nível de ensino e
aprendizado. Fui percebendo que o modo pedagógico de tratar as
relações entre o ensino e o aprendizado da filosofia era apenas uma
das formas possíveis. E o nosso modo era diferente desse.
Remeto a um exemplo do trato filosófico na
problematização dessa relação com Alejandro Cerletti (2008), um
dos estudos feitos pelo Enfilo. Esse autor indica que, não sendo a
filosofia um saber cuja identificação é consensual, a tarefa de ensinar
promoverá no professor uma série de decisões subjetivas a serem
tomadas, para além das diretrizes sobre o que e como ensinar.
Perguntas tais como “que é e por que ensinar filosofia?”, e ainda “se
a filosofia se ensina, de quais modos seria possível?”, estão imanentes
ao seu ofício de dar aulas. Em suma, tais questões partem da
necessidade de definição estatutária sobre esse saber, que
efetivamente se responde como reflexão filosófica.
7
Grupo coordenado pelos docentes Rodrigo Pelloso Gelamo e Vandeí Pinto da Silva.
300
O problema é que quaisquer de meus amigos estudantes na
filosofia pouco tinham acesso a essa reflexão. A sua importância
justifica-se tanto para o licenciado, como para o bacharel. Da parte
do primeiro, para não reproduzir as mesmas práticas de explicação
exegética de texto a partir de uma história cronológica da filosofia
para estudantes que não pretendem se profissionalizar na filosofia,
como é o caso do nível médio. Da parte do bacharel, pois a sua
formação na pesquisao inviabiliza o ofício docente no grau
universitário. Penso que a ausência da reflexão filosófica acerca das
especificidades desse ensino reverbera, invariavelmente, na
formação do professor de filosofia em ambos os níveis.
Pesquisas de Iniciação Científica produzidas
junto ao Gepef e Enfilo
Da peculiaridade em se tratar o ensino de filosofia ao modo
filosófico, inicio uma pesquisa na área, com vistas à produção
bibliográfica brasileira. Em março de 2010, sob a supervisão de
Rodrigo Gelamo, fui bolsista PIBIC/CNPq (Edital 2010/11
processo 145202/2010-0) da investigação que trouxe por título O
“lugar” do conhecimento e da experiência no aprendizado da filosofia
8
.
Nela procuro analisar as produções sobre o ensino de filosofia em 16
periódicos
9
especializados em Filosofia, Educação e Educação e
8
Acresce que essa pesquisa partiu de problemas enunciados por Gelamo (2009), em seu
livro O ensino da filosofia no limiar da contemporaneidade, que objetiva desenvolver uma
série de questões sobre a sua prática docente, materializadas em um problema central: o que
faz o filósofo quando uma de suas tarefas na contemporaneidade é ser professor de Filosofia?
9
Dos 16 periódicos analisados, são os de filosofia: Trans/Form/AçãoUNESP, Discurso
USP, Revista Brasileira de Filosofia Instituto brasileiro de Filosofia, Kriterion UFMG,
301
Filosofia, que tiveram circulação a partir de 1934, ano da criação do
curso de Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), até o ano de
2008, com a aprovação da Lei 11.684/2008, que previa a
obrigatoriedade da disciplina Filosofia para toda a educação de nível
médio no país. O objetivo geral da análise foi conferir como se
articularam as noções de “conhecimento” e de “experiência” no
aprendizado da filosofia.
Dessa pesquisa, verifiquei que o entendimento do ensino de
filosofia esteve amplamente embasado em um modo de transmitir
um conteúdo da tradição filosófica e no melhor método para fazê-
lo, o que restringiu a possibilidade de pensar esse nível de
aprendizado como uma experiência de pensamento. Além disso,
pude notar que a ausência de uma reflexão sobre a filosofia e o seu
ensino não era tributária apenas do Departamento de Filosofia da
Unesp de Marília.
Constatei a escassa produção sobre o ensino de filosofia por
parte dos pesquisadores brasileiros à medida que nem um por cento
do todo de artigos e/ou textos analisados nos 16 periódicos dedicou-
se a discutir a temática em questão. Da revisão dos mais relevantes
periódicos de Filosofia, Educação e Educação e Filosofia em
circulação no Brasil, que totalizaram 9242 artigos e/ou textos
revisitados, apenas 64 0,69% da produção geral traziam por tema
o ensino de filosofia com seus diferentes enfoques e destes 64, apenas
Síntese Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e Manuscrito CLE Unicamp. Em
educação: Educação e Pesquisa USP, Educação e Realidade UFRGS, Educação e Sociedade
Unicamp, Pro-posições Unicamp, Revista Brasileira de Educação ANPED, Caderno
Cedes – Unicamp, Revista da Faculdade de EducaçãoUSP, Educação em RevistaUFMG
e Revista de Pedagogia da USP. Por fim, o de educação e filosofia: Educação e Filosofia
UFU.
302
40 0.43% da produção geral tratavam-no com vistas às
problemáticas brasileiras. A suspeita percebida enquanto professor
de filosofia, de que o discurso universitário e a prática escolar na
educação média eram dissonantes, ganhou corpo nessa atividade de
pesquisa. Tanto pelo diagnóstico da restrição temática, como pela
escassa produção sobre o ensino de filosofia nos diferentes níveis
escolares.
Vale mencionar que esse trabalho possibilitou um primeiro
contato com documentos, lugar estrangeiro para um graduando em
filosofia. A procura foi extenuante, entremeada por seriados
empoeirados e deixados aos cantos das bibliotecas. Ao cabo das 16
revistas, revisei quase dez mil documentos sobre educação e filosofia,
na tentativa, quase inexistente, de encontrar vestígios sobre uma
produção do ensino de filosofia. Tendo encontrado poucos
documentos nos periódicos anteriormente verificados, decidimos
ampliar o número de análise. Iniciávamos a responsabilidade de
resgatar uma memória.
Em outra pesquisa intitulada O Ensino de Filosofia no Brasil:
A recepção e o seu debate nos periódicos brasileiros, sob o fomento da
FAPESP [Processo 2011/21785-0. Vigência de 01/03/2012 a
31/12/2012], na modalidade Iniciação Científica, investiguei qual a
recepção do debate sobre o ensino de Filosofia em mais 10
periódicos brasileiros
10
. As publicações com o início de circulação
10
Os dez periódicos são divididos entre as áreas de Educação e de Filosofia. São eles da área
de Educação: Revista de Educação (São Paulo: Secretaria da Educação do Estado de São
Paulo, 1927 a 1961); Boletim de Educação Pública (Distrito Federal RJ: Secretaria Geral
de Educação e Cultura, 1930 58); Formação: Revista Brasileira de Educação (Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1938 54); Educação (Rio de Janeiro: Associação Brasileira
de Educação, 1939 1967); Revista do Ensino (Porto Alegre: Secretaria de Educação e
303
nos decênios de 1930, 1940 e 1950 foram enfatizadas, tendo elas
continuado posteriormente ou não.
A partir dessas investigações, pude constatar a suspeita
enunciada por meu Gelamo (2009), de que a discussão sobre o
ensino de Filosofia no Brasil foi perspectivada em grande medida
sobre três diferentes enfoques: (1) do entendimento da importância
do ensino da filosofia para a sociedade, para a cultura e para a
formação crítica do homem; (2) da reflexão sobre os temas e
conteúdos a serem ensinados e sobre o currículo; (3) da busca do
entendimento metodológico do ensino da filosofia. Os documentos
mostraram que a academia brasileira restringiu o pensamento acerca
do ensino de filosofia tanto pela sua produção quantitativamente
irrisória, como pela restrição qualitativa no debate.
O curso investigativo de minha iniciação científica foi
fundamental para ensejar outra percepção de ausência. Por um lado,
os documentos contemporâneos sobre o ensino de filosofia
remetem-se sobremaneira a uma defesa filosófica de seu debate. Por
outro, pouco se referem a sua produção histórica no país. Notar essa
ambiguidade foi fundamental para iniciar a justificação da presente
pesquisa.
De certa maneira, a literatura contemporânea sobre a
questão tem se dedicado largamente a fundamentar o ensino de
filosofia como uma problemática filosófica, campo que mereça ser
Cultura do RS, 1951 1974). Os periódicos em Filosofia são: Anais da Sociedade Brasileira
de Filosofia (Rio de Janeiro: A Sociedade, 1939 1955); Organon (Porto Alegre: Faculdade
de Filosofia UFRGS, 1956 69); Doxa (Pernambuco: Revista oficial do Departamento
de Cultura Acadêmica da Faculdade de Filosofia de Pernambuco. 1952 - ?); Verbum (Rio
de Janeiro: PUC, 1944 1979); Veritas (Porto Alegre: PUC, 1956 -.)
304
investigado pelo filósofo de ofício, principalmente com o advento da
Filosofia na educação média brasileira. Ora buscam a justificação
problemática na tradição clássica em Kant e Hegel
11
. Ora no
questionamento da natureza filosófica em face do seu ensino, que
pretende tornar o ensino de filosofia um problema filosófico
12
. Ora
compreendendo o aprendizado dessa transmissão entremeada a uma
experiência filosófica
13
. Ou ainda, refletindo criticamente sobre os
11
Menção específica ao debate: Ensina-se a filosofia (e sua história) e/ou aprende-se a
filosofar? De certo modo, artigos em especial focam o problema mencionado: GELAMO,
R. P. O ensino da filosofia e o papel do professor filósofo em Hegel. Trans/Form/Ação, São
Paulo, v. 31, n. 2, p. 153-166, 2008. HORN, G. B. Do ensino da filosofia a filosofia do
ensino: contraposições entre Kant e Hegel. Grupo de Trabalho Filosofia da Educação n. 17;
NOVELLI, P. G. A. O ensino de Filosofia segundo Hegel: contribuições para a atualidade.
Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 28, nº 2, p. 129-148, 2005.; RAMOS, C. A. Aprender a
filosofar ou aprender a filosofia: Kant ou Hegel? Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 30, n. 2,
p. 197-217, 2007.
- CABRERA, Mônica. CERLETTI, Alejandro. Política de la enseñanza de la Filosofia.
Educação e Filosofia, Uberlândia, v.15, n.30. p. 103-116, 2001.; CERLETTI, A. Enseñanza
filosófica: Notas para La construcción de um campo problemático. Educação e Filosofia,
Uberlândia, v.22, n. 44, p. 43-54, 2008.; MURCHO, D. A natureza da Filosofia e seu
ensino. Educação e Filosofia, Uberlândia, v.22, n.44. p.79-99, 2008.; GELAMO, R. P.
Pensar sem pressupostos: condição para problematizar o ensino da filosofia. Pro-posições,
Campinas, v. 19, n. 3 (57), p. 161-174, 2008.; GELAMO, R. P. A imanência como “lugar”
do ensino da filosofia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 1, 2008.
13
Inspirados na Filosofia da Diferença, ressoa o debate entre o ensino de filosofia e a
experiência filosófica, de um modo ou de outro, nos seguintes artigos: GALLINA, S. O
ensino de filosofia e a criação de conceitos. Caderno Cedes, Campinas, v.24, n.64, p. 359-
371, 2004.; DANELON, M. Para um ensino de Filosofia do caos e da força: uma leitura
à luz da Filosofia nietzschiana. Caderno Cedes, Campinas, v. 24, n. 64, p. 345-358, 2004.;
ASPIS, R. P. L. O professor de Filosofia: O ensino de Filosofia no ensino médio como
experiência filosófica. Caderno Cedes, Campinas, v. 24, n. 64, p. 305-320, 2004.
GELAMO, R. P. O problema da experiência no ensino de filosofia. Educação e Realidade,
Porto Alegre, v. 31, n. 2, p. 9-26, 2006.; GALLO, S. Filosofia e o exercício do pensamento
conceitual na educação básica. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 22, n. 44, p. 55-78,
2008. KOHAN, W. O. Sócrates, la Filosofia y su enseñanza. Actualidad de uma invención.
Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 22, n. 44, p. 115-139, 2008.
305
aspectos mais técnicos desse nível de ensino, como o aporte ao
material didático e a leitura do texto filosófico
14
.
Por outro lado, com auxílio de Gelamo à época, percebi a
ausência de considerações históricas para melhor fundamentar o
debate filosófico sobre a questão no Brasil. Ao analisar as produções
teóricas a partir da década de 2000, decênio em que se acentua a
importância da discussão sobre o ensino da filosofia no país,
constatei a ausência de referências a quem desenvolveu o seu discurso
em decênios anteriores. Encontrei, ainda, apenas um artigo que
buscou mapear o ensino de filosofia no Brasil. Tratou-se de uma
publicação do ano de 2004 intitulada O ensino de filosofia no Brasil:
uma mapa das condições atuais
15
, na qual, a pedido da UNESCO,
vários autores buscaram diagnosticar as condições atuais para o seu
desenvolvimento nas diversas regiões brasileiras.
Diferentemente disso, Moraes Filho (1959)
16
e Paim
(1970)
17
procuraram uma compreensão histórica sobre o ensino de
filosofia desde o período colonial no Brasil. Porém, ainda não
encontramos uma reconstituição de memória mais apurada entre a
década de 1930 a 1968
18
, principalmente, que tematizasse o nível
14
São exemplos destes os artigos: ALVES, A. J. L. Os PCN e o Ensino de Filosofia.
Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 17, n. 34, p. 101-115, 2003.; FABBRINI, R. N. O
ensino de Filosofia: a leitura e o acontecimento. Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 28, n. 2,
p. 7-27, 2005.
15
Referência completa: FÁVERO, A. A.; CEPPAS, F.; GONTIJO, P.; GALLO, S.;
KOHAN, W. O. O Ensino de Filosofia no Brasil: Um mapa das condições atuais. Caderno
Cedes, Campinas, v. 24, n. 64, p. 257-284, 2004.
16
FILHO, E. M. O ensino de Filosofia no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo,
v. 9, n. 1, p. 19-45, 1959.
17
PAIM, Antônio. A filosofia no Brasil como disciplina universitária. Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, v. 20, n. 78, p. 208-218,1970.
18
Kruse (1952), com a publicação de o Desenvolvimento e Importância das Faculdades de
Filosofia no Plano Educacional Brasileiro de 1936 a 1950 aproxima-se do nosso propósito,
306
universitário, de responsabilidade pela formação do professor e
pesquisador em filosofia no país. Dito isso, não houve apenas um
pensamento escasso sobre o assunto por parte da academia brasileira,
mas também, a própria literatura contemporânea sobre o ensino de
filosofia parece se referir minimamente sobre a anterioridade da
produção.
Evidentemente, não afirmo que a contemporaneidade não
tem produzido investigações que retomem certa história acerca da
temática pesquisada, mas demarco que a busca por um corpus teórico,
tal como me proponho, ainda não se evidencia no campo de
pesquisas acerca do ensino de filosofia no país. Em suma, não se
pode ainda afirmar que exista um “estado da questão” por aqui, o
que parece outra motivação para a realização da presente
investigação.
A percepção dessa ausência possibilitou a precisão de meu
material de investigação. Vasculhamos
19
os arquivos sobre o ensino
de filosofia universitário em cerca de 41 periódicos de filosofia e de
educação circulados no Brasil. Resgatei as produções desde a década
de 1930 - data que se teve início a maior divulgação da filosofia em
território brasileiro, precipuamente, com a criação da Faculdade de
Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) em 1934 – até 1968,
mas, o seu resgate histórico não tem o enfoque preciso no ensino de filosofia brasileiro.
Atém-se ao desenvolvimento das Faculdades de Filosofia no país.
19
Esse percurso de catalogar arquivos soma-se a outras investigações desenvolvidas pelo
doutoramenteo de GELAMO (2011/14755-8), que se desmembrou nas investigações dos
mestrandos SANABRIA (2011/16673-9), e COELHO, bem como os graduandos
PERENCINI (2011/21785-0), SALVADORE (2011/21808-0) e BRAVO (Processo:
104081/2012-0).
307
ano em que ocorreu a Reforma Universitária
20
no país, fixando uma
série de normas e diretrizes de organização para o seu ensino
superior.
O curso investigativo de minha iniciação científica foi
fundamental para ensejar outra percepção de ausência. Se, por um
lado, as produções contemporâneas sobre o ensino de filosofia
remetem-se sobremaneira a uma defesa filosófica de seu debate, de
maneira diferente, pouco se referem a sua produção histórica no
país. Essa dissonância foi fundamental par a justificação minha
investigação em nível de mestrado
21
.
Uma arqueologia do ensino de filosofia no Brasil
No mestrado, desenvolvi a pesquisa nomeada O ensino de
filosofia no Brasil: A sua formação discursiva no contexto universitário
de 1930 a 1968 [FAPESP Processo: 2012/21672-4], onde procuro
fazer um resgate da formação discursiva do debate acadêmico do
ensino de filosofia nos anos formadores da Universidade brasileira.
20
Referência específica a outorga da Lei n° 5.540, de 28/11/68. Como lembra Fávero
(2006, p. 33), “Entre as medidas propostas pela Reforma, com o intuito de aumentar a
eficiência e a produtividade da universidade, sobressaem: o sistema departamental, o
vestibular unificado, o ciclo básico, o sistema de créditos e a matrícula por disciplina, bem
como a carreira do magistério e a pós-graduação”.
21
Pude constatar claramente a relação entre a escassez e a necessidade dessa sistematização
de pensamento quando da minha participação como comunicador no Grupo de Trabalho
Filosofar e ensinar a filosofar do XVI Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-
Graduação em Filosofia no Brasil (ANPOF). Dado que esse Evento reúne os pesquisadores
que se tem dedicado mais pormenorizadamente a tratar o ensino de filosofia no Brasil,
percebi um grande interesse pela sistematização das bases de dados no período tratado, mas
também um grande desconhecimento do que foi produzido.
308
A escolha dos anos 1930 a 1968 deve-se a dois fatores. Considero
que 1930 é a data que se teve início o maior debate acadêmico acerca
da filosofia em território brasileiro, precipuamente, com a criação da
Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) em
1934. A escolha por 1968 vai ao encontro de ser este o ano em que
ocorreu a Reforma Universitária
no país, fixando uma série de
normas e diretrizes de organização para o seu ensino superior.
Refiro-me a outorga da Lei n° 5.540, de 28/11/68. Como lembra
Fávero (2006, p. 33):
Entre as medidas propostas pela Reforma, com o intuito de
aumentar a eficiência e a produtividade da universidade,
sobressaem: o sistema departamental, o vestibular unificado, o
ciclo básico, o sistema de créditos e a matrícula por disciplina,
bem como a carreira do magistério e a pós-graduação.
Em suma, tais anos possibilitaram arquivar como o ensino
de filosofia foi debatido discursivamente entre os anos formadores
da Universidade no país.
O material de análise foram 41 periódicos das áreas de
Educação e de Filosofia publicados durante o período de 1930 a
1968
22
. Em princípio, recortei somente os periódicos de “filosofia”
22
Após revisar 18 da área “filosofia”, notei uma insuficiência de arquivos para uma pesquisa
em nível de mestrado. Expandi, então, para a área de “educação”, onde encontro mais 23
periódicos de publicação no período. Estes foram os 41 periódicos analisados entre 1930 a
1968: A Lâmpada (Curitiba, PR: Instituto Neo-Pitagórico 1931); Anais da Sociedade
Brasileira de Filosofia (Rio de Janeiro: A Sociedade, 1939 1955); Anais / Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, Marilia (1955 - ?); Anais da Faculdade de Filosofia do Crato
(1959); Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo.
(1934-1952); Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae (1943-
309
entre 1930 a 1968 para fins de análise, até perceber a insuficiência
de produção arquivística na área. Expandi, então, para a área de
“educação”, o que possibilitou a maior quantidade de arquivos que,
apesar de pouco se nomearem “ensino de filosofia”, poderiam
oferecer elementos oportunos para pensá-lo e necessitavam da devida
averiguação.
Contabilizo aproximadamente a presença de 11.600 textos
em 1240 edições. Deste material, localizo 41 arquivos
23
que
1955); Anuário da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais. (1939-1954);
Anuário / Faculdade de Filosofia do Recife (1941); Anuário da Faculdade de Filosofia da
Universidade de Minas Gerais (1939); Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da Universidade de São Paulo, Filosofia. (1942-1964); Anuário da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras do Paraná (1940); Arquivos da Universidade da Bahia. Faculdade de
Filosofia (1942); Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de
São Paulo. Filosofia (1942); Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, História da filosofia. (1954-1955); Convergência (Rio de
Janeiro. 1968 - revista da CRB (1962); Convivium (São Paulo - revista bimestral de
investigação e cultural - 1962); Delfos (1957); Doxa (Pernambuco: Revista oficial do
Departamento de Cultura Acadêmica da Faculdade de Filosofia de Pernambuco. 1952 - ?);
Estudos (Fortaleza: filosofia, ciências e artes - 1940); Estudos anglo-hispânicos (1968);
Filosofia, ciências e letras (1936); Folhas pedagógicas (1959); Kriterion (Departamento de
Filosofia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais. 1947 - ?); Logos (Curitiba - 1953); Lucerna (1964); Mimesis (Goiânia -1968);
Minerva (Ponta Grossa - 1967); Minerva brasiliense (jornal de ciências, letras e artes -
1843); Paideia (Sorocaba - 1954); Panorama: coletânea mensal do Pensamento Novo (São
Paulo: 1936); Organon (Porto Alegre: Faculdade de Filosofia UFRGS, 1956 69);
Revista Brasileira de Filosofia (Instituto Brasileiro de Filosofia. 1951 - ?); Revista /
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (1960); Revista da Conferencia dos
Religiosos do Brasil (1967); Revista da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São
Bento. (1941-1944); Revista da Faculdade de Filosofia da Paraíba.(1954-1955); Revista
FNF (Rio De Janeiro, RJ: Universidade do Brasil, Faculdade Nacional de Filosofia 1941);
Sintese (Belo Horizonte. 1974); Universidade (Londrina - 1964).
23 A dimensão do arquivo não se restringe a artigo ou textos de produções teóricas. Há,
entre eles, relatórios, divulgação de Eventos na área, resenhas, etc. Desde já quero desfazer
a impressão de que a produção acerca do ensino de filosofia no período foi considerável.
Noto, ao invés disso, uma ausência profunda em sua tomada como tema de
pensamento/pesquisa nos anos formadores da Universidade brasileira.
310
possibilitaram elementos para pensar o ensino de filosofia, o que
configura apenas 0.35 por cento da produção total revisada. Após
uma primeira revisão nestes arquivos, noto que, muito embora
existiam elementos acerca do ensino de filosofia, um debate efetivo
entre os autores dos textos era ausente. Evidentemente, é possível
identificar figuras relevantes em determinadas instituições, como o
exemplo de Jean Maugué na USP. Não à toa, arquivos desta
Universidade mostram que o eixo didático de seu ensino se faz à luz
das orientações de seu professor
24
. Por outro lado, tendo a minha
pesquisa se alargado em termos geográficos, dada a ausência de
arquivos, percebo que os autores de diferentes instituições não
dialogam entre si.
Primeiramente, a presente investigação contribuiu para a
sistematização das bases de dados acerca da área “ensino de filosofia”
no Brasil, especificamente no que diz respeito aos discursos
especializados produzidos em periódicos. Ao cabo do mapeamento,
notei a ausência de um debate mais conciso acerca da temática em
quase três décadas de insurgência da Universidade brasileira. Não
encontrei referências satisfatórias entre os autores e as instituições
que possibilitasse afirmar a existência de um campo de saber
nomeado “ensino de filosofia” como tema ou problema investigativo
24 Confira o seguinte enunciado: “A orientação didática da Cadeira tem sido a que mais
parece se coadunar com a verdadeira situação da cultura filosófica em nosso país. Entendeu
o professor que atualmente ocupa a Cadeira de Filosofia que, no Brasil, onde a cultura
filosófica sempre se manifestou por uma tendência unilateral, que era aconselhável dirigir
o ensino da Filosofia, num sentido que acentuasse a importância histórica dos sistemas e
dos problemas filosóficos” (CADEIRA DE FILOSOFIA, 1939-49, p. 441).
311
até 1968
25
. Uma reflexão mais apurada sobre a questão aparece em
raríssimos arquivos dentre os sistematizados
26
.
Vale mencionar que me utilizei do procedimento
arqueológico de Michel Foucault para a análise dos arquivos. O
pensamento arqueológico tem por objeto principal a análise dos
saberes. A sutileza empregada por Michel Foucault, ao intitular o
seu livro “metodológico” de A arqueologia do saber, pretende mostrar
que saber (savoir) não se restringe ao conhecimento, à disciplina e à
ciência. Nestas, o que se efetiva é a construção do verdadeiro e do
falso. A análise do saber não ocorre em termos de estrutura, de onde
se pode verificar uma verdade e uma falsidade. O arqueólogo analisa
um saber para identificar o que foi dito verdadeiramente ao seu
respeito. Isso significa que mobilizei o ensino de filosofia como saber
para, até mesmo entre os restos produzidos acerca dele, identificar
práticas discursivas operantes.
Uma arqueologia segue o curso dos arquivos. Quando põe
arquivos em funcionamento no auxílio da reflexão, o arqueólogo
estabelece um diálogo que se vai clarificando com a análise, de modo
que a visão geral parece se abrir somente após a aventura percorrida.
25
Evidentemente, é possível identificar figuras relevantes em determinadas instituições,
como o exemplo de Jean Maugué na USP. Não à toa, arquivos desta Universidade mostram
que o eixo didático de seu ensino se faz à luz das orientações de seu professor. Por outro
lado, tendo a minha pesquisa se alargado em termos geográficos, dada a ausência de
arquivos, percebo que tanto os autores como as diferentes instituições não dialogam entre
si.
26 Refiro-me aos arquivos específicos: VELLOSO, A. V. A filosofia como matéria de
ensinança. Kriterion, n. 15 e 16, p. 22 52, 1951; CORBISIER, R. A introdução à filosofia
como problema. Revista Brasileira de Filosofia. v. II, n. 4, p. 668 678, 1952; MAUGUÉ,
Jean. O ensino da filosofia e suas diretrizes, v. 7, n. 27-28, p. 29-30. Belo Horizonte:
Kriterion, 1955; VITA, L. W. A filosofia e seu ensino. Revista de Pedagogia USP, São Paulo,
n. 3. p. 89-101, 1956; MORAES FILHO, Evaristo de. O ensino de Filosofia no Brasil.
Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 18 45, 1959.
312
Os arquivos se curvam na moldura do arqueólogo. Os resultados
finais de meu mestrado puderam mostrar nitidamente a carga
filosófica de uma pesquisa arqueológica.
Teci as considerações acerca da seguinte problemática:
Como ocorreu a formão discursiva do ensino de filosofia em
nível universitário? Os periódicos de educação e de filosofia
produzidos de 1930 a 1968 forneceram as chaves para a análise.
Analiso os arquivos formadores do ensino de filosofia na
esfera de duas positividades: (1) A filosofia como estratégia
discursiva; (2) A ensinabilidade como dispersão conceitual do
discurso. Nisso se alinhavaram as práticas discursivas que cruzam o
objeto “ensino de filosofia”.
(1) A filosofia como estratégia discursiva. Trazer a filosofia
para ser analisada como estratégia significa valorizar o que pode
existir nela de acontecimento discursivo. O ponto de partida para
essa análise foi notar que as convenções discursivas atribuídas à
filosofia parecem oferecer elementos para pensar práticas do ensino
de filosofia. Os arquivos sugeriram a existência de dois modos de
regularidades com a filosofia. (1a) Uma que relacionou a filosofia à
ciência. (2a) A outra, que valorou a filosofia ao filosofar. Procurei
em tais arquivos modos possíveis de relações com o ensino de
filosofia.
(1a) A noção de verdade aparece nos arquivos como
regularidade discursiva não apenas para a filosofia, mas também para
outros saberes, como a ciência e a religião. A marca comum entre os
três é a busca pela verdade. Se comparada as demais, a filosofia goza
da exclusividade nos aparecimentos da sua relação de busca por uma
313
“verdade pura e desinteressada”. A história da filosofia emerge como
lugar de segurança” para atestar essa relação no decurso entre as
épocas. No paralelo entre filosofia e religião, aparece certo caráter
moral a unir ambas. O professor assume a posição do exemplo,
sujeito de “reta conduta”.
A segunda regularidade tipifica a filosofia e a ciência no
critério de sistema. As marcas enunciativas encontradas nos arquivos
sugerem que uma expansão da filosofia acontece na sua adequação a
“sistemas filosóficos”. Um sistema filosófico é marca de seriedade na
filosofia. No seu entorno, amoldam-se noções como “prova”,
“rigor”, “certeza” e “coerência”. A “originalidade” é o selo dos que
podem ou não ser nomeados “filósofos” nesse processo. Uma relação
de exercício em face da filosofia não basta. Para ascender ao critério
de “filósofo”, “originalidade” de um pensamento é indispensável. Os
arquivos mostram que a universalidade aparece também como
marca somada aos critérios anteriores. Pela vinculação efetiva em sua
ordem de inscrição, procurei relacioná-los no campo analítico.
A relevância de compreender a ligação entre ciência e
filosofia justifica-se ao transpor relações possíveis para discursos
formadores do ensino de filosofia. Lembro, porém, que essa relação
somente foi possível tomando o arquivo como acontecimento
discursivo. Muito embora eu tenha separado 41 textos para a análise
final, raríssimos deles trouxeram o ensino de filosofia por tema
central. Mais de quatro dezenas de arquivos pode soar um número
alto para a análise, mas a grande maioria deles simplesmente
trouxeram elementos que deram a pensar o meu objeto, mas não o
debateram diretamente.
314
O caráter científico parece, primeiro, a condição de
segurança para que a filosofia seja possível de ser ensinada e
aprendida. A universalidade e a sistematização da filosofia realçam a
sua pertinência como currículo. Em tese, uma filosofia justificada na
ciência parece assegurar que o seu saber será transmissível.
Um ideal científico liga-se também a prática do professor de
filosofia, que a ensina a partir da tradição sistemática. A distribuição
de temas e de problemas acontece por meio do privilégio a sistemas.
O objetivo desse ensino parece se aproximar de explicar os sistemas
e problemas da filosofia. Essa marca é de importante realce. Não
afirmo que um ensino por problemas não existiu nesse modo
sistemático, mas parece que ele se reteve a universalizar e a
atemporalizar o problema, extraindo, então, as marcas de
pessoalidade do filósofo.
Também noto certa hierarquia de temporalidade na ordem
dos conhecimentos nesse ensino de filosofia ao modo científico.
Primeiro, o cabedal da tradição deve ser conhecido para, posterior e
eventualmente, opinar sobre tais sistemas. Na companhia dos
arquivos, valendo-me do pressuposto de que uma concepção de
filosofia exerce uma relação direta para o ensino de filosofia, procurei
mostrar práticas discursivas prementes para o ensino de filosofia.
(2a) Encontro também uma segunda manifestação de
regularidade filosófica entre os arquivos. Entendo que esta
entrelaçou a filosofia ao filosofar. Nesse propósito, o primeiro ponto
a ser destacado é a sua oposição a um modo científico de
compreender a filosofia. Faço o movimento semelhante ao anterior,
que foi de mostrar a que regularidades se estabeleceu essa estratégia
315
para, em seguida, direcionar como o ensino de filosofia se pode dela
servir.
A relação filosofia e filosofar parece existir sob o símbolo da
maior pluralidade. Ao invés da estratégia científica, que degenera a
arte como saber, esta admite uma dimensão objetiva e outra
subjetiva da filosofia. “Objetivamente, é um conjunto de teses,
proposições e conhecimentos. Subjetivamente, é uma atitude, uma
postura de espírito” (RANGEL, 1964, p. 42-43). De modo que o
filosofar, apesar de não desconsiderar a dimensão objetiva, enfatiza
a dimensão subjetiva. A marca enunciativa lembra que não é na
técnica que se ampara a filosofia. O seu aparato técnico surge da
vida; não o contrário.
Uma estratégia assim proporciona uma atividade do homem
comum na filosofia, não a relegando para especialistas. É na reflexão
acerca de problemas que o tomam que o homem inicia o processo
de filosofar, não exclusivamente no seu aspecto objetivo. Nesse
aspecto, também se articula de modo contrário aos critérios
científicos, tais como universalidade e sistematização. O que move o
sujeito para o filosofar não é a “originalidade” do seu pensamento,
mas o exercício em vida que se propôs. A verdade não é o lugar de
chegada, mas a experiência de busca em percurso.
Une filosofia e vida a problematização. Isto é, uma filosofia
em vida marca-se pela atividade humana de se colocar e resolver
problemas. A caracterização de um problema filosófico exige, para
além do seu conteúdo, a intenção do sujeito para pensá-lo. Nisso, os
arquivos parecem sugerir outro elemento regular para esse modo
316
filosófico: a disposição
27
. O movimento analítico dos arquivos, nesse
ponto, é diferente. Não tratam de definir o que caracteriza uma
disposição filosófica de modo a defini-la, mas entendem que uma
marca indissociável do filosofar é relação do homem com a filosofia
enquanto o revés da indiferença. Esta atividade não advém do
ordenamento, mas davida. Por isso, o filosofar não se firma na
verdade encontrada, mas na relação de exercício com a filosofia. E
nisso os arquivos priorizam o filósofo em exercício ao invés do
27
Disposição é apenas um nome possível. Os arquivos mostram outros. Muito embora já
os tenha referenciado na análise, entendo que uma nova colocação faz-se necessária aqui:
Limitação: “Ainda que a situação não predetermine, forçosamente, nem o conteúdo de
nossa vida nem de seus problemas, circunscreve evidentemente o âmbito destes problemas
e, sobretudo, limita as possibilidades da sua solução. Isto é, o homem é sempre o que é,
graças as suas limitações, que lhe permitem eleger o que pode ser” (VITA, 1956, p. 93);
Perda: “Se a filosofia é uma exigência de certeza absoluta, de fundamentação radical do
conhecimento, só poderia surgir com plena autenticidade, isto é, com o caráter de uma
urgência vital, nas épocas em que o esboroamento das crenças impõe aos homens a
necessidade de recuperarem essa certeza perdida” (CORBISIER, 1952, p. 671). A
ignorância, amparada no caso de Sócrates: “O ponto de partida de sua filosofia é, sem
dúvida, de consciência da própria ignorância, que está na raiz da ‘ironia’ e ‘maiêutica’.
(CORBISIER, 1952, p. 669); A vida radical de Descartes: “Ponde em questão todo o
patrimônio dos conhecimentos recebidos e inclusive o testemunho dos sentidos, Descartes
recupera, após injetar no corpo das opiniões e supostas certezas o ácido da dúvida radical,
da dúvida metódica, a evidência apodítica do ‘cogito’; na qual encontra o alicerce, o ponto
de apoio a partir do qual poderia reconstituir o edifício do conhecimento humano”
(CORBISIER, 1952, p. 670). Crise: “Surgindo como um imperativo da crise do mundo
moderno, a reflexão filosófica vem atender a exigência de fundamentação radical do
conhecimento e de recuperação do sentido da existência humana, procurando assim criar
as condições que formarão possível a restauração da cultura” (CORBISIER, 1952, p. 12).
Este enunciado, além de reconhecer a ausência, também aponta para a diferença entre a
natureza da filosofia se comparada à arte e a ciência: “Todos a consideram inútil, e todos,
nos momentos difíceis, se dirigem a ela; Também àqueles que ignoram seu nome o fazem
obscura, quase instintivamente. Por que não se pedem à arte o ‘toca-sanea’? Por que não
invocam da ciência a panaceia? Não, fazem apelo à filosofia. É a sorte estranha só na
aparência de todas as raríssimas coisas verdadeiramente grandes e nobres, olvidadas”
(ECSODI, 1952, p. 16).
317
sistema criado. Os problemas filosóficos exercem com os sujeitos
uma íntima ligação.
Especificado o solo sobre o qual se assentou uma posição da
filosofia na relação com o filosofar, mostro as considerações que os
arquivos me permitiram verificar acerca da formação discursiva do
ensino de filosofia no debate acadêmico inicial no Brasil. A primeira
observação é que o modo de colocação da problemática acerca do
ensino de filosofia muda. Antes de partir do pressuposto do que
ensinar, a pergunta que emerge pode ser posta do seguinte modo:
Esse filosofar é transmissível? (VITA, 1956; MAUGUÉ, 1955).
Noto que a transmissão desse exercício pode ser
compreendida de um modo muito particular. Primeiro, a recusa do
ensino de filosofia como um corpo de verdades a serem
objetivamente transmissíveis. (MAUGUÉ, 1955). O ensino da
filosofia parece exigir certa reflexão por parte do aprendiz e também
do professor de filosofia. Nesse propósito, ambos devem se assumir
como filósofos, qual seja, homens que se propõe ao exercício da
filosofia.
A liberdade de pensamento para que uma relação assim
ocorra aparece como outra marca nos enunciados. A figura do
professor não se retém àquele que ensina conteúdos da filosofia, mas
pede que este possibilite que o aluno pense por si mesmo. Contudo,
a existência do filosofar só acontece quando cada indivíduo assume
para si a escolha da reflexão, tanto da parte do estudante, como do
próprio professor. A liberdade é marca entre ambos, portanto.
De maneira próxima a estratégia filosofia e filosofar,
encontro também nessa prática discursiva do ensino de filosofia uma
318
relação entre problema e vida. Os problemas não podem ser tratados
de maneira livresca, mas em proximidade com a vida. Disso segue
que os conceitos também se devem enredar a vida. De um ponto de
vida metodológico, não há a exclusão do texto, desde que ele cumpra
também o propósito da relação entre filosofia e vida. A leitura exige
certa colocação pessoal daquele que lê. Afora isso, maneiras artísticas
como filme ou programa de teatro já aparecem como possíveis de
serem utilizadas nas aulas de filosofia (PAIVA, 1963).
Este foi o primeiro modo de análise arqueológico percorrido
para examinar o ensino de filosofia. A partir da percepção de que
uma posição da filosofia delimita as práticas do seu ensino, verifiquei
os arquivos na tentativa de justificá-la. O ponto que me chamou a
atenção foi a baixa quantidade de enunciados entre os arquivos.
Passo agora para o segundo modo de análise: a inscrição do campo
de ensinabilidade.
(2) A ensinabilidade como dispersão conceitual. Analisei o
campo da ensinabilidade a fim de verificar as suas contribuições para
a formação discursiva do ensino de filosofia nos anos formadores da
Universidade brasileira. Em uma análise arqueológica, determinados
movimentos entre arquivos conduzem a outros. Após verificar certa
relação entre escolhas teóricas da filosofia e práticas discursivas
acerca do ensino de filosofia, as sucessivas leituras indicavam que o
campo da ensinabilidade não gozava de certa regularidade entre a
baixa produção de arquivos. O apontamento metodológico que a
arqueologia me permitiu inferir foi não analisar tal campo como
regularidades, mas entre as próprias dispersões conceituais.
Suspendi, então, a habitualidade com que se acostumou a
tratar o objeto “ensino de filosofia” para verificar o que se relacionou
319
à “filosofia” no campo da ensinabilidade. As perguntas que procurei
responder foram: que variações conceituais apareceram e se foi
possível firmar novas regularidades entre elas. Entendi que o modo
de exame inventariado podia contribuir para a análise da formação
discursiva do ensino de filosofia no que especifica ao campo da
ensinabilidade nos anos iniciais da Universidade brasileira.
Identifiquei quatro usos, os quais considero a seguir: ensino,
introdução, estudo e aprendizado.
Ensino aparece como a primeira inscrição conceitual nos
arquivos
28
. Os enunciados que se remeteram a ensino, na relação
com a filosofia, parecem articulá-lo a figura da instituição
29
. Tanto
da afirmação da filosofia como disciplina escolar, como a sua relação
direta ao amparo legal para ocorrer. Nisso também circulam
menções a leitura, história da filosofia, programa e método. Penso
que, mediante a estas aparições, também se anuncia a relevância em
marcar a filosofia como algo a ser ensinada no sentido de
“transmissão, instrução” do saber filosófico.
Introdução
30
aparece como segunda dispersão conceitual
31
.
Pude conferir que os usos de “introdução a filosofia” não se retêm à
esfera da instituição. Em suma, marcas que se reportam como
28
Inscrições encontradas nos seguintes textos: CORBISIER, 1952; CASTRO, 1956;
CADEIRA DE FILOSOFIA, 1939-49; THIESEN, 1957; CASTRO, 1956; STREGER,
1955; GALEFFI, 1954; CASTRO; MACIEL, 1959.
29
As únicas aparições que não se remetem a essa inscrição encontram-se em MAUGUÉ
(1955).
30
Não faço a distinção entre termos como “introduzir”, “iniciar” ou “começar”, pois
considero que se tratam de nomes diferentes para a mesma repetição enunciativa, que é “de
(se) ingressar em um saber”.
31
Tais arquivos firmam a presente ocorrência. GALEFFI, 1954; CORBISIER, 1952.
Especialmente a esse segundo firma-se tal ocorrência.
320
“introduzir”, “iniciar”, “começar”, “ingressar” ou “descobrir” a
filosofia mostram a necessidade de uma colocação de si na tentativa
de se estabelecer em relação com certa ausência em vida (a filosofia).
Nisso, posso notar que cumprem a função de mostrar a limitação de
instruir a filosofia como conteúdo para alguém.
Estudo aparece como terceiro conceito inscrito no campo da
ensinabilidade da filosofia
32
. Os seus usos permitem, ao menos, dois
significados distintos. Especificamente, ora se remeteram na relação
direta com a esfera escolar (no caso, a Universidade) e a legalidade,
como se fez com ensino. Uma marca entre enunciados foi a
separação entre “estudo” e “ensino” da filosofia, que procurei
mostrar em minha análise. Nisso, “estudo” aparece como conceito
próprio ao campo da ensinabilidade.
Aprendizado
33
é o quarto e último uso conceitual, na relação
com a filosofia, circunscrito entre os arquivos
34
. Analisei essa
inscrição, relacionando-a as dispersões de ensino, introdução e
estudo, onde procuro identificar os critérios pelos quais aprendizado
se difere deles na relação com a filosofia.
Ensino e aprendizado aparecem entre arquivos como noções
opostas. Enquanto o primeiro se firma na proximidade da
32
Encontrei tais ocorrências nos seguintes arquivos: THIESEN, 1957; MORAES FILHO,
1959; TEIXEIRA (1939-49 [1948]); VELLOSO, 1951; 1961; CRUZ COSTA, 1938;
MAUGUÉ, 1955; PAIVA, 1963; STREGER, 1955.
33
Não fiz distinção entre termos como “aprendizado”, “aprendizagem”, “aprender”. Penso
que se tratam de palavras diferentes para a mesma afirmação de sentido. Apenas “aprendiz”
pode caracterizar um ponto diferente se comparado às demais derivações, já que também
indica “estudante” ou “aluno”.
34
Recorrências encontradas em tais textos: VELLOSO, 1951; KRUSE, 1954;
CORBISIER, 1952; ECSODI, 1952; CRUZ COSTA (1939-49 [1949]); RANGEL,
1964; STREGER, 1955.
321
instituição escolar, aprendizado está mais perto de uma “busca
deliberada do conhecimento” (KRUSE, 1954). E nisso circula a
posição de que não deve ser a filosofia uma mera disciplina
curricular. Já estudar e aprender a filosofia se inserem na relação
direta entre enunciados. Embora exista a diferença entre um
conceito e outro, posto que para aprender a filosofia o seu estudo é
necessário. A diferença é que o aprendizado não se pode reter ao
estudo.
Nessa ultrapassagem, ganha intensidade o cruzamento entre
introduzir e aprender a filosofia. Aprender é mesmo um ato de se
introduzir. Entretanto, a novidade exibida pelo aprendizado é a sua
promoção como uma iniciação ativa defronte a filosofia. Tal
atividade se relaciona intimamente ao filosofar. Ora, aprender a
filosofia é praticar este exercício. E esta prática não se articula,
simplesmente, de um para outro, mas é preciso que se deixe iniciar
em cada um de maneira ativa.
No cruzamento entre ambas as positividades - da
ensinabilidade como conceito e da filosofia como estratégia teórica
-, faço as considerações acerca da hipótese aventada nessa pesquisa.
Após o decurso de minhas iniciações científicas, trouxe como
suspeita que o ensino de filosofia se direcionou como discurso
interno as áreas da (1) pedagogia e da (2) filosofia. Identifiquei
práticas discursivas que se aproximam de um e de outro campo, mas
penso que de um ponto de vista arqueológico elas devem ser
pensadas de modo muito próprio.
Primeiro, não trato de classificar os sujeitos como “filósofos”
ou “pedagogos”, de modo a suprimir as diferenças entre as suas
produções discursivas, tampouco penso que se torne produtiva uma
322
consideração que remeta os textos analisados como discursos da
“área pedagogia” e da “área filosofia”. Isso seria categorizar o
discurso, postura da qual procurei escapar no decorrer de toda a
minha escritura. Analiso a hipótese dessa pesquisa como campos
discursivos, que procuro especificar a seguir.
Entendo que as práticas discursivas encontradas acerca do
ensino de filosofia ambientam-se “filosófica ou pedagogicamente”
quando é a própria definição de filosofia que está em jogo.
Dependendo da posição assumida na filosofia, as suas relações de
ensino se expandem ou se abreviam. Nesse ambiente, existiram
práticas do ensino de filosofia mais e menos filosóficas, bem como
práticas mais e menos pedagógicas. Quero, com isso, furtar-me
também da ideia de que um “conteúdo e didática” são elementos
específicos da área da pedagogia. Ora, enquanto disciplina escolar,
as relações de “conteúdo e método” são também de interesses à
filosofia.
Partindo de tais observações sobre o modo de colocar e
responder a hipótese dessa pesquisa, considero que uma escolha
teórica de filosofia que se alinhava à ciência, torna-se também mais
justificável no campo pedagógico. Critérios como “verdade”,
“universalidade”, “sistematização” e a sua própria história parecem
um solo mais determinável para a transmissão e a assimilação
objetiva desse saber. De acordo a isso, o campo da ensinabilidade
circunscrito nos arquivos se remete a maior recorrência de inscrições
como “ensino” e “estudo” na relação com a filosofia em sua
justificação disciplinar. Em essência, a escolha estratégica da filosofia
como saber objetivo e científico encontra perenidade também para
que o ensino de filosofia se desenvolva pedagogicamente.
323
Já uma escolha teórica da filosofia que se aproxima do
filosofar se propõe outro modo de relação com o ensino de filosofia.
Resgato que os arquivos mostraram que o modo de problematização
acerca desse ensino não precede do “que e como se ensina esse corpo
científico de verdades”, mas se pergunta por suas condições de
ensino, qual seja, se “esse filosofar pode ser transmissível?”. A
suspensão da transmissão como elemento próprio do filosofar
possibilita ao ensino de filosofia o maior amparo em liberdade de
pensamento, mas acarreta também a sua menor justificação
disciplinar.
Desse modo, a marca enunciativa do filosofar não se furta
de também pensar conteúdos e métodos, mas cobra a atenção para
a especificidade desse saber como um exercício também no campo
disciplinar. “Liberdade de pensamento”, “reflexão por parte do
aprendiz e também do professor de filosofia”, “a importância do
professor para a elaboração de conteúdos e de métodos”, etc.
parecem marcas de uma produção discursiva mais filosófica nos
arquivos.
Entendo que nisso se justifica também o campo da
ensinabilidade recorrer aos conceitos como introdução e
aprendizado da filosofia. Uma filosofia em exercício não se pode
reter ao ensino de um para outro ou no próprio estudo, mas exige
também uma promoção ativa tanto daquele que ensina, como
daquele que estuda. Nisso, cabe a relevância de se reportar para
conceitos como introdução e, sobretudo, o aprendizado da filosofia.
Em essência, a escolha estratégica da filosofia como filosofar
encontra uma maior abertura para um pensamento filosófico, do
324
mesmo modo que se torna um problema a sua justificativa no campo
pedagógico.
Em resumo, procurei investigar o ensino de filosofia entre
jogos de forças, tomando um cuidado procedimental para não o
categorizar por área de saber (autor, texto, instituição, etc.), que
suprimem as suas diferenças. Afirmo que existiram práticas
discursivas tanto pedagógicas, como filosóficas, na produção de
arquivos acerca do ensino de filosofia no Brasil em seus anos
formadores da Universidade brasileira. A necessidade de justificação
da filosofia como disciplina escolar parece imanente tanto ao campo
da filosofia, como da pedagogia. O ensino de filosofia torna-se mais
ou menos praticado filosófica ou pedagogicamente como concebida
a filosofia. Quanto mais científica, mais fácil de se justificar no
campo disciplinar. Quanto mais propensa ao filosofar, o ensino
parece ganhar em ambientação filosófica, mas se torna também um
problema pedagógico. Eis a disputa de forças.
O último objetivo a ser perseguido para essa pesquisa foi
oferecer o mapeamento do debate acerca do ensino de filosofia no
Brasil pelos discursos universitários entre os anos de 1930 e 1968. A
sistematização das bases de dados para as pesquisas futuras sobre o
ensino de filosofia no Brasil parece ainda escassa, mas de
fundamental importância para o fortalecimento desse campo de
saber. Entendo que a minha contribuição se configura na
materialidade dos periódicos. Da parte dessa finalidade, há duas
considerações a serem emitidas.
A primeira delas é que os arquivos encontrados permitiram
localizar práticas discursivas acerca do ensino de filosofia no Brasil
entre o período averiguado. Nesse aspecto, entendo que se pode
325
dissolver um pensamento comum entre a comunidade que se dedica
a pesquisar o ensino de filosofia, de que o seu debate se inicia no
Brasil somente na década de 1980, período conhecido pelo início da
discussão acerca da retomada do ensino de filosofia na educação
média brasileira, alavancado também pelo regresso do regime
democrático no país
35
. Entendo que a compreensão de que já se pode
falar de certas práticas acerca do ensino de filosofia é de fundamental
relevância para esta comunidade.
Por outro lado, há uma segunda consideração a ser efetuada
mediante a anterior. A posição de que certo pensamento acerca do
ensino de filosofia é presente, não implica na defesa de que a
temática foi efetivamente pensada. A necessidade de “mapear o
saber” foi o ponto de maior incômodo para a presente investigação.
Muito embora trouxera 41 arquivos para análise, quero também
suspender uma falsa ideia, que apenas se clarificou ao cabo de meu
itinerário da pesquisa arqueológica. Entendo que quatro dezenas de
arquivos podem remeter à falsa impressão de que a produção acerca
do ensino de filosofia foi considerável no período tratado. Trago a
clareza de que não foi bem assim.
A especificidade arqueológica de arquivo, no itinerário
foucaultiano, deve suspender as categorias tradicionais de texto e isso
foi muito importante para a presente investigação, posto que não me
35
Referencio ao menos três textos que mencionam integral ou parcialmente esta
posição: RODRIGO, L. M. Da ausência à presença da Filosofia: O desafio da iniciação à
reflexão filosófica. Educação e Filosofia, v. 1, n. 2. Uberlândia/MG, 1987.; COSTA, M. C.
V. O Ensino de Filosofia: Revisando a História e as Práticas Curriculares. Educação e
Realidade, v. 17, n. 1, Porto Alegre, 1992.; SILVEIRA, R. J. T. O afastamento e o retorno
da filosofia ao segundo grau no período pós-64. Pro-posições, v. 5, n. 3, p. 15, Campinas/SP,
1994.
326
retive a pesquisar somente “artigos” produzidos no período.
Primeiro, notei que o gênero “artigo” tal como se concebe na
produção acadêmica contemporânea era muito diferente das
produções nos anos iniciais da Universidade. Segundo, entendi que
uma arqueologia cobra a conversão do olhar para o que passa
despercebido em uma análise tradicional. Entre a quantidade dos
“41 arquivos” pesquisados há notas de eventos, resenhas, discursos,
relatórios, etc. O lugar comum entre eles é a sua produção na
materialidade do periódico, marca aparentemente segura para
arquivar um debate acadêmico.
Constato com isso que, ao mesmo tempo em que foi de suma
importância recolher vestígios em materiais de diferentes naturezas
que se remeteram indiretamente ao ensino de filosofia no período
tratado, também averiguo que uma ínfima quantidade entre eles se
dedicou a pensar esse assunto como campo de saber. Ora, em lugar
de um debate efetivo entre autores e instituições em quase três
décadas de insurgência da Universidade brasileira, o que encontro
são dispersões de textos que me levaram a conceber que a filosofia já
se constituía como disciplina escolar em diferentes graus. Contudo,
encontro uma reflexão mais apurada em raríssimos arquivos dentre
os sistematizados
36
. Tais reflexões incorreram entre dois conjuntos
discursivos (um científico, outro que expressou um filosofar), que
me possibilitaram extrair práticas para os seus modos de ensino.
36
Refiro-me aos arquivos específicos: VELLOSO, A. V. A filosofia como matéria de
ensinança. Kriterion, n. 15 e 16, p. 22 52, 1951; CORBISIER, R. A introdução à filosofia
como problema. Revista Brasileira de Filosofia, v. II, n. 4, p. 668 678, 1952; MAUGUÉ,
Jean. O ensino da filosofia e suas diretrizes. v. 7, n. 27-28, p. 29-30. Belo Horizonte:
Kriterion, 1955; VITA, L. W. A filosofia e seu ensino. Revista de Pedagogia USP. São Paulo,
n. 3. p. 89-101, 1956; MORAES FILHO, Evaristo de. O ensino de Filosofia no Brasil.
Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 18 45, 1959.
327
Entendo, portanto, que entre os anos 1930 a 1968, tomando
o periódico como materialidade de pesquisa, não houve um saber
que se pode nomear “ensino de filosofia”. Trata-lo como saber foi
de suma importância como procedimento para esta pesquisa, na
pretensão de identificar práticas discursivas que se (podem) remeter
aos seus modos de ensino. Contudo, não considero verdadeira a
afirmação de que estive, efetivamente, diante de um saber. Ao
menos, não entendo que um pequeno agregado de arquivos tomados
como discurso o que os homens disseram, pensaram e praticaram
sobre o ensino de filosofia o legitima como saber.
Sou tomado por uma série de novas perguntas ao final de
meu percurso, que se sintetizam por interrogar o ensino de filosofia
como campo de saber no debate universitário brasileiro: Se entre os
anos formadores da Universidade no país, especificamente antes da
Reforma universitária de 1968, não se pode afirmar a existência de
um saber nomeado “ensino de filosofia”, quando é que a sua
existência se efetivou? A quais práticas discursivas se assentou? Posso
afirmar que existe um saber nomeado ensino de filosofia na
atualidade? Tais perguntas resvalam sobre quando e se ocorre o seu
ponto de emergência como saber. A pesquisa efetuada foi de
fundamental importância para clarificar por quais caminhos se
iniciou este debate na formação do professor e do pesquisador em
filosofia no país.
Nesse sentido, entendo que a análise de periódicos entre
1930 a 1968 foi também importante na contribuição dos
apontamentos efetuados por Gelamo (2009). Já na sua tese de
doutoramento, notou a baixa produção especializada acerca do
ensino de filosofia. Atualmente, tem investigado a sua condição de
328
existência como saber no Brasil. Pude contribuir para constatar a
existência de uma irrisória produção discursiva até 1968, o que
compactua na hipótese de que “ensino de filosofia” não parece se
inscrever como saber nos anos formadores do discurso filosófico e
pedagógico no país.
Nesse propósito, considero que os resultados de meu
mestrado abriram não apenas a possibilidade da expansão do período
investigado, como também do procedimento de análise. Tendo já
escavado arqueologicamente tais produções até 1968, e somando
boa parte de outras publicações em periódicos de Educação e de
Filosofia até 2008 por minhas pesquisas de iniciação científica, à
época, o período de 1968 a 2008 pareceu-me conferir um canteiro
profícuo para um novo diagnóstico.
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329
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Parte 4.
Ensino de Filosofia e
experiência
337
Somente quem anda a pé pela estrada conhece a força
que ela tem: O ensino de filosofia e o Pibid-Filosofia
Unesp
Genivaldo de Souza SANTOS
1
Antes de tudo manifesto meu agradecimento pela
oportunidade de colaborar neste movimento, materializado neste
livro, que nos brinda com a oportunidade de revisitar memórias e
textos, que já datam 10 anos (os mais antigos). Destaco com isso o
caráter afetivo da minha contribuição, na medida em que as
experiências relacionadas ao Pibid-Filosofia /Unesp, em que atuei
entre os anos de 2010-2013, em suas conexões com as experiências
formativas do ENFILO Grupo de Estudo de Ensino de Filosofia
2
,
coordenado pelo Prof. Rodrigo Pelloso Gelamo, foram
fundamentais em minha formação docente. O enfoque à época era
a problematização da valorização excessiva do caráter pedagógico
atribuído ao ensino de filosofia, garantido por certa formação que
deslocaria o sentido filosófico do ensino de filosofia já na formação
inicial, cuja lógica se estenderia para a prática pedagógica do futuro
docente.
1
IFSP Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo Campus
Birigui/SP/Brasil/ genivaldo@ifsp.edu.br.
2
Na época, o ENFILO era um dos grupos de estudos vinculados ao GEPEF Grupo de
Estudo e Pesquisa Filosofia e Educação, coordenado pelo Prof. Pedro Ângelo Pagni.
338
Nessa perspectiva, ensinar filosofia seria o equivalente a
ensinar qualquer outra disciplina, como matemática ou história,
sendo imprescindível, no entanto, estar municiado do método, cujo
sentido reside na promessa de um caminho seguro, que desde os
primórdios da modernidade tem apostado na busca de um método
universal de ensino, que possa ensinar tudo a todos por meio da
educação (educare) como transmissão de conhecimento, por meio da
explicação. Sendo assim, passível de ser reduzido a fórmulas e sua
posterior reprodução pelo/a aluno/a e que, supostamente serviria
para todas as disciplinas. No entanto, ensinar filosofia ou ensinar a
filosofar é o equivalente a ensinar matemática ou geografia? Ou
haveria uma especificidade que lhe é própria, cujo ensino deve
permanecer atento?
Nesse contexto de valorização do caráter filosófico do ensino
de filosofia, os/as estudantes da licenciatura em Filosofia da
UNESP/Marília também se mobilizaram, reivindicando um lugar
para o ensino de filosofia entre as disciplinas ofertadas pelo curso de
licenciatura em Filosofia/UNESP, até então ausente. Foram
vivamente animados/as pelo saudoso professor Antônio Trajano de
Menezes Arruda, para quem a prática do ensino de filosofia era
atravessada pela experiência do filosofar. Não sem nostalgia, vale
lembrar as suas aulas acerca dos problemas filosóficos sob as árvores
do campus, que tanto chamavam a atenção da comunidade
acadêmica.
No bojo dessas vivências e experiências
3
, orientadas pela
ideia de que o conhecimento experiencial constitui um elemento
3
Que se desenvolveram concomitantemente à escrita da tese doutoral acerca da relação
professor-aluno e da importância da atenção nesta relação. Cf. SANTOS, G. S. A
339
fundamental no processo de formação inicial dos/as futuros/as
docentes, que o Pibid-Filosofia/Unesp foi desenvolvido. Sendo que
a presença do/da bolsista ampliou a clássica relação pedagógica
professor-aluno, alargando-a para uma relação triádica, que além do
Eu e do Outro, incluía também o Ele/Ela, encarnada na figura do/a
licenciando/a em filosofia da UNESP/Marília, em sala de aula.
Assim a demanda por ensinar algo a alguém, presente na relação
professor-aluno, passou a ser ensinar algo a alguém para que ele/ela
também ensine, ampliando a relação para professor/a- futuro
professor/a (licenciando/a) aluno/a
4
.
O caráter experiencial e a diversidade relacional certamente
estão entre as contribuições do PIBID
5
na formação inicial de
professores/as, possível a partir da interação com as práticas de
ensino desenvolvidas na escola parceira, ao participarem ativamente
do processo de elaboração-execução-avaliação das aulas de filosofia,
no contexto dos dilemas da escola pública, num movimento entre a
importância da atenção na relação professor-aluno no contexto tecnocientífico. 2012. 199 f.
Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Filosofia e Ciência, Marília, 2012.
4
O professor supervisor no PIBID é uma figura na estrutura pedagógica-formativa do
PIBID cujas funções são desenvolvidas pelo/a professor/a vinculada a uma escola parceira
do programa, dentre elas, destacamos sua função co-formadora dos/das licenciandos/as,
futuros docentes, cuja base é conhecimento experiencial acumulado por ele/ela no chão da
escola.
5
O PIBID Programa Institucional de Bolsas de Incentivo à Docência é um programa do
MEC (Ministério da Educação Brasileiro) gerenciado pela CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e, à época (visto que o programa passou
por mudanças que não são tomadas em consideração nesse texto), tinha como uma das
principais características a formação de parcerias entre universidades e escolas das redes
públicas de ensino, prevendo o pagamento de bolsas para alunos de licenciaturas (bolsistas),
para professores das escolas parceiras (professores supervisores) e para professores da
universidade (coordenadores) visando estimular a formação de novos professores para
atuarem na rede oficial de ensino, comportando também o aprimoramento da formação
continuada dos professores que já atuavam na referida rede de ensino.
340
universidade (Grupo de estudo Ensino de Filosofia - Enfilo) e escola
pública, incluindo a pesquisa teórico-bibliográfica acerca do ensino
de filosofia e de suas questões, a preparação das aulas da semana, a
execução das aulas na escola parceira, posteriormente a socialização
e avaliação realizada pelo grupo e por fim, o fechamento do ciclo,
quando as questões acerca do ensino de filosofia emergiam e eram
problematizadas e analisadas à luz dos conceitos filosóficos e da
prática docente.
Como quando sentimos um cheio que nos remete a certas
situações específicas, a experiência formativa do PIBID-Filosofia
remete, no contexto da minha vivência formativa, a três textos
marcantes: E-ducar o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre, de
Jan Masschelein (2008), O mestre ignorante, de Jacques Rancière
(2002) e O diário de Escola, de Daniel Pennac (2007) com os quais
quero manter um diálogo a fim de problematizar o ensino de
filosofia e suas questões e ao fazer isso tornar probletica minha
relação com a filosofia, especialmente por envolver a formação do
Outro e do Outro do Outro.
Destaco que o presente texto é entretecido de Amanda, de
Vandeí, de Rodrigo, e também de Jeuséte, Éliton, Augusto, Kátia, e
de Felipe, sem esquecer da Sara, da Silmara, do Tiago e do João
Francisco, e também de Marielle, Laura, de Leonardo, Guilherme
e Theo, como uma peça de Pachwork, cuja diversidade comporta um
sentido, uma paradoxalmente surgida de retalhos.
341
Lições de um Mestre Ignorante
Peça central na problematização do ensino de filosofia, a
narrativa de Jacques Rancière (2002), O mestre ignorante, nos foi
oferecida como um convite para problematizarmos o caráter
representacional do ensino de filosofia, que cada vez mais mostra sua
defasagem em relação aos desafios contemporâneos da educação, os
quais nos parece exigir uma relação outra entre experiência,
representação e verdade.
Tornando-se uma espécie de clássico entre os
pesquisadores/pesquisadoras, professores e professoras que realizam
críticas aos métodos tradicionais de ensino, em geral sustentados pela
Ordem da explicação, sempre é bom lembrar as lições do professor
Joseph Jacotot, narradas pelo filósofo francês Jacques Rancière, que
mais parecem contos pedagógicos, com destaque para uma certa aura
de encanto nas experiências do professor Jacotot. Entretanto, a
história da educação francesa conta com seu legado teórico e
político, destacando-se como um militante político da causa da
educação do Século XIX:
[...] foi oficial dos exércitos da jovem república. Em Dijon, após
ser nomeado professor de Literatura Clássica, desempenhou
sucessivamente as cátedras de Métodos das Ciências, Idiomas
Antigos, Matemáticas Superiores, Legislação Romana,
Matemáticas Puras e Transcendentes e Direito, e ainda, piano
e violão. Em 1815, chegou a ser eleito deputado e por ocasião
da Segunda Restauração e com a queda final de Napoleão, no
mesmo ano, viu-se obrigado a deixar a França. Exilado nos
Países Baixos, ensinou privadamente em Mons e em Bruxelas.
342
Em 1818, obteve o cargo de professor na Universidade de
Louvain (VALVERDE, 2005, p. 8) para lecionar Francês e
Literatura, época de sua aventura intelectual (RANCIÈRE,
2005) (PERRELA, 2011, p. 2).
De acordo com Valverde (2005, p. 2011), as ideias e
experiências de Jacotot foram propagadas com a criação da sociedade
pedagógica panécastique (traduzido como tudo está em tudo) e de dois
jornais, Journal de Philosophie Panécastique e o Journal de
L’Émancipacion Intellectuelle. Nasceu em Dijon, no mês de março
de 1770 e morreu em Paris, em 1840 aos 70 anos, nos deixando um
legado que ainda tem muito a nos dizer, provocando ainda hoje o
pensamento a fim de problematizarmos nossas práticas docentes e
seus interesses embrutecedores ou emancipadores.
Rancière (2002) apresenta a experiência pedagógica de
Jacotot como uma aventura intelectual, ocorrida no seu exílio nos
Países Baixos, ao defrontar-se com um enorme desafio: ensinar
língua e literatura francesa para um grupo de alunos, em sua maioria
holandeses, numa condição em que nem os aprendizes dominavam
o idioma falado pelo mestre (francês), nem o mestre dominava a
língua holandesa (flamengo). Em suma, como estabelecer uma
relação de ensino e aprendizagem, sem uma língua comum, que
torna possível a comunicação entre mestre e aprendizes?
Ao aceitar o desafio, o acaso colocou nas mãos do professor
Jacotot uma edição bilíngue (holandês e francês) do livro Telêmaco,
de Fénelon, publicado em Bruxelas. Por meio de um intérprete,
propôs aos alunos/as que se valessem da leitura do Telêmaco e,
amparados na tradução holandesa, procurassem aprender o francês.
343
Depois de certo tempo, esperando resultados medíocres, para sua
surpresa, percebeu que o grupo de alunos obteve excelentes
resultados.
Esta situação provocada pelo acaso mostrou ao Professor
Jacotot a possibilidade de ensinar até o que não se sabe, pois, as
pessoas nascem com igual condição de inteligência e que o fato de
esta ser mais ou menos estimulada, “[...] associado ao grau de atenção
do aluno, define o seu êxito em aprender. Desenvolvida a sua
vontade em verificá-la, o aluno será capaz de aprender qualquer
coisa” (PERRELA, 2011, p. 3, grifos nossos)
6
.
A impossibilidade de explicação ensinou uma lição ao
professor Jacotot, de que a própria explicação fundaria a distância
entre o mestre e o aluno em relação ao conhecimento, ao mesmo
tempo em que é apresentada como a solução que irá suprimir a
lacuna criada por ela mesma, preenchendo a distância entre o saber
do mestre e a ignorância do aluno/a: inteligências desiguais que serão
igualadas ao final do processo graças a arte da explicação.
Impedido de fazer uso da lógica da explicação para ensinar
a língua francesa ao grupo de alunos holandeses, que desconhecia a
língua do mestre, o recurso utilizado por Jacotot foi a apresentação
de um livro, de um objeto material que serviu de ponto em comum
que desafiava a inteligência de ambos, mestre e alunos, e dispensava
a explicação. Os resultados desta aventura intelectual possibilitaram
a generalização de alguns princípios que nos ajudam a compreender
6
Qualquer um pode aprender por si, “[...] utilizando o que sabe, observando o que está a
sua frente, dizendo o que viu, verificando o que disseram” (RANCIÈRE, 2005;
DOUAILLER, 2003 apud PERRELA, 2011, p. 3).
344
e diferenciar uma educação embrutecedora da emancipadora. O
mestre explicador embrutece, não emancipa.
Subjacente à aposta do professor Jacotot na inteligência do
seus/suas alunos/as há um profundo reconhecimento de suas
alteridades e uma confiança na inteligência do Outro, enquanto
Outro, sem um enquadramento ontológico que transforma a
inteligência do/a aluno/a em um anexo ou uma colônia da
inteligência do/a professor/professora.
Deslocando a centralidade da explicação do professor, o
objeto passaria a ser disponível também para a/o aluno/a,
transformando sua condição de um dependente do olhar/
inteligência do/a professor/a, ou seja, de sua explicação, para a de
alguém que exerce, dentro do círculo de potência, sua própria
inteligência. Tendo acesso ao objeto, ambos podem compartilhar a
visão/conhecimento de algo/objeto comum e com isso podem
estabelecer uma relação de inteligências em pé de igualdade, desde o
início e não apenas ao final.
Ao oferecer o objeto à/ao inteligência/olhar do/a aluno/a, o
mestre subtrai-se de sua função explicadora, mediador/a ou
intérprete do objeto de conhecimento face ao/a aluno/a, para
colocar-se ao lado do/a aluno/a, desafiado/a, junto ao mestre, ante o
objeto/problema. Neste movimento há um reconhecimento
alteritário que justapõe a inteligência do/a aluno/a, antes relegada à
subalternidade e a dependência por meio da ordem explicadora, e
que restituída de sua dignidade, pode ocupar o mesmo solo que se
move a inteligência do/a mestre.
345
Ao oferecer o Mestre Ignorante para o grupo de pesquisadores
do ENFILO e para os bolsistas do PIBID-Filosofia, o professor
Rodrigo subtraiu-se da lógica explicadora e nos convidou a olhar
para o problema e aprender com ele: Como ensinar filosofia de
modo filosófico e não de modo pedagógico
7
tão somente? Assim
procedendo, o objeto tornou-se evidente para nós, estava sob nossa
vista, não era mais controlado/reduzido pela explicação do mestre e
seguindo as lições do professor Jacotot, para quem “o aluno deve ver
tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder
à tríplice questão: o que vês? O que pensas disso? O que fazes com isso?
E assim até o infinito. Mas esse infinito não é mais segredo do
mestre, é marcha do aluno” (RANCIÈRE, 2002, p. 44, grifos
nossos). Em marcha nos colocamos, por caminhos diversos e o que
(em que) nos tornamos?
Somente quem anda a pé pela estrada
conhece a força que ela tem
Oferecer, apresentar, apontar ou indicar algo no mundo para
o Outro é muito diferente de representá-lo ou explicá-lo e sua
diferença está na ordem da força e da intensidade, assim nos lembra
o filósofo da educação Jan Masschelein (2008), que em referência a
Benjamim (2013), nos lembra a diferença entre voar sobre a estrada
8
7
Preocupado com o conteúdo/método/avaliação, tão somente.
8
A força de uma estrada do campo é diferente quando caminhamos por ela e quando
voamos sobre ela num avião. Da mesma forma, a força de um texto quando lido é diferente
de sua força quando copiado. Quem voa vê apenas o modo como a estrada penetra pela
paisagem, como ela se desdobra de acordo com as leis da paisagem ao seu redor. Somente
quem anda a pé pela estrada conhece a força que ela tem, e como, da mesma paisagem que
346
e percorrê-la à pé. Isso porque que quem percorre a estrada a pé vê
as clareiras, os vales, as encostas, as encruzilhadas e os dramas de uma
trilha, quem voa sobre ela apena vê, tem uma ideia ou uma
representação dos seus contornos.
O texto de Masschelein (2008) veio como uma provocação
e como uma resposta outra acerca das possibilidades do ensino
filosófico de filosofia, quando o autor propõe uma pedagogia pobre
sustentada na e-ducação do olhar por meio da atenção. Para
Masschelein (2008) a E-ducação (educere) difere do sentido
conferido a educare, pois se este visa transmitir, aquele busca trazer
para fora, quer mostrar e apontar. Pobre porque livre de
metodologias ricas, de objetivos e de recursos que visam facilitar e
garantir uma determinada aprendizagem, livrando-a dos perigos
inerentes às trilhas que cortam a floresta, isto é, das possibilidades
que se abrem a inteligência do/a aluno/a quando exposta ao objeto
de conhecimento diretamente. Pobre também porque não visa
nenhum domínio a ser conquistado ou protegido.
A pesquisa e-ducacional crítica proposta por Masschelein
(2008) prescinde de intenção, que sempre nos oferece uma visão ou
um projeto, mas visa abrir os olhos para ver, requerendo, no entanto,
atenção. Tal proposta, para além/aquém do reconhecimento de
outros pontos de vista ou do reconhecimento da parcialidade do
para quem voa é apenas uma planície aberta, ela desvenda distâncias, mirantes, clareiras,
panoramas a cada curva como um comandante posicionando soldados numa frente de
batalha. É somente o texto copiado que comanda, assim, a alma de quem se ocupa dele, ao
passo que o mero leitor jamais chega a descobrir os novos aspectos de seu interior que são
abertos pelo texto, a estrada corta ao meio a floresta que vai constantemente se fechando
atrás dela: porque o leitor segue o movimento de sua mente no vôo livre da imaginação,
enquanto quem copia submete a mente ao seu comando (BENJAMIM, 2013, p. 14).
347
nosso próprio olhar, busca a emancipação do próprio olhar, a tal
ponto que se possa reconhecer o ponto cego contido na própria
evidência.
Quando o professor Jacotot oferece o livro Fénelon para seus
alunos/as, tira do centro da relação sua interpretação do livro
(explicação) para que os próprios alunos/as possam ter suas próprias
interpretações, ao exercitarem suas inteligências acerca do objeto
comum: observando, tentando, errando, verificando o erro,
observando e tentando novamente. Em outras palavras, percorre-se
a estrada que corta a floresta, sente-se o cheiro da mata, são avistadas
as clareiras e precipícios, avança-se, a floresta se fecha conforme a
estrada é percorrida, o cansaço se apresenta, é preciso parar,
descansados é preciso continuar, não há controle, há um caminho a
percorrer e não é possível delegar a outrem.
Em contraposição, voar sobre a estrada revela a ascendência
do sujeito do conhecimento em relação objeto. De cima, pode-se
ver, abstraído da materialidade, a superfície da estrada e os pontos
cartesianos possíveis de serem traçados e a proteção/controle do
sujeito em relação ao objeto se impõem. Os riscos inerentes à
experiência são anulados. Em sua explicação, o mestre explicador voa
sobre a estrada e oferece/impõe uma visão aos seus/suas alunos/as a
partir de cima, dando origem e se apresentando como solução da
incapacidade daquele/a que necessita da explicação para que
compreenda.
Uma das consequências deste movimento é a
subalternização da inteligência da/o aluna/o, que aprisionada na
ordem da representação, que sobrevoa a estrada e percebe seus
contornos do alto, o/a mantém resguardado/a das transformações
348
inerentes ao ato de caminhar por dentro da floresta, em que a
mudança relativa ao objeto/estrada também afeta ao sujeito:
vulnerável e exposto, ainda não imunizado pelas certezas da
metodologia ou dos recursos, nem o representante de um domínio
ou de um reino a ser conquistado/preservado, mas que se deixa
atravessar pelas experiências, pelo fora do pensamento, pela força da
estrada que convoca a caminhada.
Diário de escola.
Como nos constituímos professores e professoras? Eis aí uma
questão bem interessante, atual e carregada de muita sensibilidade,
mas que em geral fica sem resposta porque implica em um processo
de autoexame e que requer uma disponibilidade para certa dose de a
ex-posição
9
e para a vulnerabilidade, no limite, disponibilidade para
o encontro com um corpo que sofre, para o encontro com a dor.
Assim é constituída a narrativa do Professor Daniel Pennac quando
realiza este autoexame, nos convidando, professores/as, para realizar
o mesmo.
10
9
Ex-posição no sentido conferido por Masschelein (2008), sair de uma determinada
posição, mover-se e caminhar.
10
“Eu iria mais longe, seria preciso perguntar aos aprendizes de professor as razões por que
se consagraram a tal matéria mais do que a outra. Por que ensinar inglês e não matemática
ou história? Por preferência? Então, que eles fossem escavar do lado das matérias que não
preferiram! Que se lembrassem de suas fraquezas em física, de sua nulidade em filosofia, de
suas falsas desculpas em ginástica! Enfim, é preciso que aqueles que pretendem ensinar
tenham uma visão clara de sua própria escolaridade. Que eles sintam um pouco o estado
da ignorância se querem ter alguma possibilidade de nos fazer dar certo!” (PENNAC, 2007,
p. 232).
349
A dor de não aprender, o sentimento produzido pelo fracasso
escolar, o luto da escola, uma espécie de invariável que acompanha
a trajetória da instituição escolar, do passado até os dias de hoje. É
sobre esse lamento que escreve o professor Daniel Pennac, agora, um
renomado professor da língua francesa, escritor de livros, formador
de opinião, cujo passado não pode ser evocado sem este sentimento
de dor.
11
Chagrin d´école é o título em francês de sua mais conhecida
obra, cuja tradução livre nos aproxima da intenção do autor, que é
dar voz ao luto da escola, embora no Brasil, a tradução tenha
oferecido para o/a leitor/a o título Diário de Escola. Nela, difícil não
se comover com a narrativa da transformação do aluno lerdo ou do
mau aluno em professor, em mestre, que agora tem muito a dizer
sobre este não dito escolar, sobre isto que a instituição procura
esconder.
Então, eu era um mau aluno. A cada final de tarde de minha
infância, eu voltava para casa perseguido pela escola. Meus
boletins contavam a reprovação dos meus mestres. Quando não
era o último da turma, eu era o penúltimo (Champanhe!)
11
Diz Pennac (2007): “Nós ouvimos esses espertos, nos salões, nas entrevistas, apresentar
seus dissabores escolares como altos feitos de resistência. Não acredito nessas palavras, a
mesmo que eu perceba nelas o fundo de som de uma dor. Porque, se nos curamos da
lerdeza, não se cicatrizam jamais as feridas que ela nos inflingiu. Uma infância assim não
era engraçada, e lemb-la também não é. Impossível contar vantagem. É como se um
antigo asmático se vangloriasse de ter mil vezes sentido que ia morrer de sufocação! Do
mesmo modo, o lerdo que dá verto não deseja que o lamentem, quer esquecer, é tudo, não
pensar mais nessa vergonha. Além do mais, ele sabe, no fundo de si mesmo, que poderia
muito bem não ter saído daquela situação. Afinal, os lerdos perdidos na vida são os mais
numerosos. Eu sempre tive o sentimento de ser um sobrevivente” (PENNAC, 2007, p.
82).
350
Fechado primeiro para a aritmética e logo em seguida para a
matemática, profundamente disortográfico, resistente à
memorização de datas e à localização dos lugares geográficos,
inapto pra a aprendizagem de línguas estrangeiras, com
reputação de preguiçoso (lições não aprendidas, trabalho não
feito), eu levava para casa resultados lamentáveis que não eram
compensados com a música nem com o esporte, aliás com
nenhuma atividade paraescolar (PENNAC, 2007, p. 15).
Embora possamos fazer uso de conjecturas sociológicas ou
psicológicas, o autor define seu passado discente como a de um puro
lerdo, dado sua ótima condição social, econômica, política e
familiar, que impede o uso de tais recursos: filho da burguesia de
Estado, saído de uma família afetuosa, sem conflitos, cercado de
adultos responsáveis que o ajudavam nos deveres, pai politécnico,
mãe em casa, nada de divórcio, nem alcoolismo, sem temperamento
forte ou taras hereditárias, três irmãos na faculdade, alimentação
sadia, ritmo familiar regular, biblioteca em casa “[...] pintura até os
impressionistas, poesia até Mallarmé, música até Debussy, romances
russos, o inevitável período Teilhard de Chardin, Joyce e Cioran por
toda a audácia [...] E, no entanto, um lerdo” (PENNAC, 2007, p. 21,
grifos nossos).
Mas o que levou o mau aluno, o aluno lerdo a conseguir sair
do seu coma escolar, a superar o luto e caminhar, posteriormente
conquistado um mestrado e superando o difícil processo de
habilitação ao magistério francês e por fim, realizar-se como um
escritor renomado de livros? Dentre os elementos da narrativa de
Pennac (2007), destacamos a figura de algumas professores/as,
351
dentre eles/elas o de Filosofia, um dos seus salvadores
12
do seu
fracasso escolar.
13
Além do professor de Filosofia, o ainda jovem Pennachioni
encontrou mais três outros salvadores: um professor de matemática,
que era a matemática, um professor de História, encarnação da
própria história e o professor de francês, seu primeiro salvador:
“Esses quatro mestres me salvaram de mim mesmo” (PENNAC,
2007, p. 78). E de que eram feitas essas horas que prendiam tanto a
atenção do aluno lerdo, a ponto de provocar essa reviravolta na
postura do mau aluno, com o poder de transformá-lo em um aluno
dedicado e atento?
Esclarece Pennac (2007) que essas horas eram constituídas
“Essencialmente da matéria que o professor Bal nos ensinava e da
qual ele parecia habitado, o que fazia dele um ser curiosamente vivo,
calmo e bom. Estranha bondade, nascida do conhecimento em si,
desejo de partilhar conosco a “matéria” que alegrava seu espírito e que
não podia conceber que nos fosse repulsiva, ou simplesmente
estranha. O professor de matemática, Bal, “[...] era formado de sua
matéria e de seus alunos” (PENNAC, 2007, p. 205, grifos nossos).
12
“[...] a imagem do gesto que salva do afogamento, o punho que empurra você para cima,
apesar de suas gesticulações de suicida, essa imagem bruta de vida da mão agarrando
solidamente a gola de um casaco é a primeira que vem quando penso neles” (PENNAC,
2007, p. 208).
13
“Então veio o meu primeiro salvador. Um professor de francês. Na nona série.
Espantado, sem dúvida, com a minha aptidão para dar brilho às desculpas sempre mais
inventivas por todas as minhas lições não aprendidas ou meus deveres não feitos, ele decidiu
e dispensar das dissertações para me encomendar um romance. [...] Não creio que tenha
feito nenhum progresso no que quer que fosse naquele ano, mas, pela primeira vez na minha
escolaridade, um professor me dava uma posição; eu existia, escolarmente falando, aos olhos de
alguém, como um indivíduo que tinha uma linha a seguir e que garantia a situação no tempo
(PENNAC, 2007, p. 75-76, grifos nossos).
352
Ao entrarem em sua aula, Pennac e a companhia de alunos lerdos
ficavam “[..] como que santificados pela nossa imersão na
matemática, e, passada a hora, cada um de nós se refazia como
mathematikos!” (PENNAC, 2007, p. 205).
O que tinham estes/estas professores/as que os/as
diferenciavam dos/das demais? “[...] eram apenas habitados pela
paixão comunicativa de suas matérias, armados dessa paixão eles
foram me buscar no fundo do meu desencorajamento e só me
largaram uma vez que eu tive meus dois pés bem plantados nos seus
cursos, o que se revelou a antecâmara da minha vida
14
” (PENNAC,
2007, p.207, grifos nossos).
Esses três professores só tinham um ponto em comum, de
acordo com Pennac (2007): eles nunca renunciavam. Eles não se
deixavam levar pelas nossas confissões de ignorância. “Na sua presença
suas matérias eu nascia para mim mesmo: um eu matemático, se
posso dizer, um eu historiador, um eu filósofo, um eu que, no espaço
de uma hora, me esquecia um pouco, me colocava entre parênteses,
me desembaraçava do eu que, até o encontro desses mestres, me
tinha impedido de me sentir verdadeiramente lá” (PENNAC, 2007,
p. 207, grifos nossos).
14
“No mais, não se podem imaginar professores mais diferentes: o professor Bal, tão calmo
e sorridente, um Buda matemático; a professora Gi, ao contrário, um tronco de ar, como
se diz na minha vila, um tornado que nos arrancava da nossa ganga de preguiça para nos
carregar consigo pelos cursos tumultuosos da história, enquanto o professor S., filósofo
cético e de ponta (nariz pontudo, chapéu pontudo, ventre pontudo), imóvel e perspicaz,
me deixava, ao cair da noite, com questões fervilhantes, que me queimavam para encontrar
as respostas” (PENNAC, 2007, p. 207).
353
Perder-se para encontrar-se, errar para chegar ao caminho
constitui esse movimento paradoxal da experiência que na presença
do professor, face ao comum; perde-se uma ideia cristalizada de si
(de mau aluno, por exemplo) para nascer um novo “eu”, fruto da
experiência, composto da própria matéria aprendida e praticada,
dentro de um círculo de potência. Isso o jovem Pennachioni
aprendeu. Aprendeu uma relação e admirava a relação com o
conhecimento que seus/suas professores/as emancipadores/as o
ensinavam, muito embora talvez sem perceberem.
Enfim,
Na função de incomodar e problematizar, lembrando
Sócrates quando se compara ao mosquito que incomoda aos
atenienses, nosso querido professor Rodrigo Gelamo sempre insistiu
nas reuniões do ENFILO, que congregava também o grupo de
bolsistas do PIBID-Filosofia, na tensão presente no seio do ensino
de filosofia: da relação de problematização/transformação de si e do
mundo, inescapável ao fazer filosófico. Afinal, não é isso que faz um
filósofo quando seu ofício é ensinar filosofia? (GELAMO, 2009).
Isto é, de ensinar, com sua própria vida, com seus gestos e atitudes
o caráter relacional do aprendizado em filosofia. Ensina-se e
aprende-se uma relação.
Especificamente, acerca do ensino de filosofia, certamente a
historiografia filosófica pode ser apresentada como uma fonte para
comentários, interpretações e explicações. Em todo caso, será que
podemos afirmar que transmitir uma informação da história da
filosofia ou uma explicação acerca de um conceito a fim de que seja
compreendido significam ensinar a filosofia ou filosofar? De outro
354
modo, a experiência do filosofar se esgotaria na explicação da história
do pensamento Ocidental?
Trazer para fora, indicar e mostrar revelam o sentido e-
ducativo (educere) em que o ensino e a aprendizagem estão em
movimento e requerem atenção na forma de uma educação do olhar.
A tensão é mantida e os passos a serem dados ainda são incertos, em
uma estrada que convoca a caminhada, dada sua força. Tensão
ausente no ensino representacional, que sobrevoa, e que é
dependente da ordem explicadora. Nesta diferença de força éramos
convidados/as a habitar e problematizar - em toda reunião do
Enfilo, pelo Professor Rodrigo.
Ainda sobre a relação entre atenção e presença, outro aspecto
invocado por Pennac (2007) para diferenciar os professores que o
emanciparam dos que o embruteceram está relacionado a uma certa
sabedoria prática desses/as mestres/as, que reconheciam que seus
“maus alunos” (alunos considerados sem futuro) nunca chegam
sozinhos às instituições de ensino. Como uma cebola, camadas de
desgosto são encobertas com camadas de medo, preocupação,
rancor, raiva, vontades não satisfeitas, renúncias furiosas,
acumuladas no fundo de um passado vergonhoso, um presente
ameaçador, um futuro condenado.
Pennac (2007) solicita de nós, professores e professoras, que
olhemos para nossos/as alunos/as, para ver: “[...] como eles chegam,
seus corpos em formação e suas famílias dentro das mochilas e a aula
não pode verdadeiramente começar antes que o fardo seja
depositado no chão e que a cebola seja descascada”. Difícil de
explicar isso, mas de modo prático “[...] um só olhar às vezes é
suficiente, uma frase de simpatia, uma palavra de adulto confiante,
355
clara e estável, para dissolver as tristezas, tornar mais leves esses
espíritos, instá-los num presente rigorosamente indicativo”
(PENNAC, 2007, p. 55).
Exercitar-se é o que ele nos propõe, exercitar um olhar atento
e uma postura atenta em relação ao tempo da experiência, enquanto
ela dura, no presente, que acontece aqui e agora:
Seria necessário inventar um tempo particular para a
aprendizagem. O presente da encarnação, por exemplo. Eu estou
aqui nesta sala de aula e eu entendo, enfim. É isso! Meu cérebro
está difuso no meu corpo: isto se encarna. Quando não é o caso,
quando não entendo nada, me desagrego ali mesmo, me
desintegro no tempo que não passa, viro poeira e ao menor
sopro me disperso. Acontece, porém, que, para o conhecimento
ter chance de se encarnar no presente de uma aula, é preciso
parar de brandir o passado como uma vergonha e o futuro
como um castigo (PENNAC, 2007. P. 56).
Em seu livro Produção de presença, Hans Ulrich Gumbrecht
nos convida a lutar contra a tendência da cultura contemporânea de
abandonar, e até esquecer, a possibilidade de uma relação com o
mundo fundada na presença. Ele defende a possibilidade de nos
relacionar com as coisas do mundo, oscilando entre efeitos de
presença e efeitos de sentido, nos alertando, porém, que somente os
efeitos de presença apelam aos sentidos corporais, pois sua dinâmica
“[...] não têm nada a ver com imaginar o que se passa no pensamento
de outra pessoa” (GUMBRECHT, 2010, p. 15, grifos nossos).
Neste sentido, está suficientemente claro para nós,
professores/as, de que as dinâmicas pedagógicas (ministrar aulas, por
356
exemplo, ou acolher aos/as alunos/as à porta) não é tão somente
“troca de informação”, produção de sentido, mas também produção
de presença?
Do ponto de vista da experiência profissional em sala de aula,
alguns estudos
15
caracterizam como um “choque de realidade” a
vivência dos novos docentes ao iniciarem sua atuação, que no limite
os/as levam a abandonar a docência ainda no início da profissão. Isto
ocorreria porque a formação oferecida pelos institutos de formação
de professores/as estaria distante da experiência concreta da atuação
do docente em sala de aula, ao não evidenciar os variados elementos
que compõe o jogo pedagógico, tão importante quanto o
planejamento da aula, a organização da sequência didática e
avaliação dos resultados.
Um choque intensificado no Brasil, dada à estrutura ainda
precária dos sistemas de ensino que não conseguem promover a
formação adequada, cujos efeitos colaterais colaboram no desgaste
da relação professor-aluno e, consequentemente, num processo de
produção de ausências, que na maior parte dos casos inviabiliza as
relações de ensino e de aprendizagem. Sem dúvida, o choque
apontado pela pesquisa educacional encontrou resposta nesta
potente associação entre formação inicial (Unesp), experiência em
sala de aula (Pibid/Escola parceira) e pesquisa (ENFILO), cujo
agradecimento quero explicitar, de modo especial aos
companheiros/as de jornada, pela vida e pela força partilhadas que
nos tornam caminhantes de uma estrada (in)comum.
15
Cf. MARCELO, Carlos. Pesquisa sobre a formação de professores: o conhecimento sobre
aprender a ensinar. Revista Brasileira de Educação, n. 09, p. 51-75, 1998.
357
Referências
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. Trad. Ed. João Barrento.
São Paulo: Autêntica, 2013.
GELAMO, RP. O ensino da filosofia no limiar da
contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser
professor de filosofia? [online]. São Paulo: Editora UNESP; São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 178 p. ISBN 978-85-98605-95-
1. Available from SciELO Books.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o
sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto,
2010.
MARCELO, Carlos. Pesquisa sobre a formação de professores: o
conhecimento sobre aprender a ensinar. Revista Brasileira de
Educação, n. 09, p. 51-75, 1998.
MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o olhar: a necessidade de uma
pedagogia pobre. Educação & Realidade. p. 35-48, n. 33, v. 1,
jan./jun. 2008.
PENNAC, Daniel. Diário de Escola. Trad. Leny Werneck. 2. ed.
Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2007.
PERRELA, Cileda dos Santos Sant´Anna. Joseph Jacotot:
contribuição para a reflexão acerca do conselho de escola.
Apresentado na ANPAE, 2011. Disponível em:
https://www.anpae.org.br/simposio2011/cdrom2011/PDFs/trabal
358
hosCompletos/comunicacoesRelatos/0099.pdf. Acesso em: 10 fev.
2021.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a
emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Autêntica: Belo
Horizonte, 2002. Coleção experiência e sentido.
SANTOS, Genivaldo de Souza. A importância da atenção na
relação professor-aluno no contexto tecnocientífico. 2012. 199 f.
Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Filosofia e
Ciência, Marília, 2012.
SKLIAR, Carlos. Jacotot-Rancière ou a dissonância de uma
pedagogia (felizmente) pessimista. Educação e Sociedade,
Campinas, v. 24, n. 82, p. 229-240, abr. 2003.
TELLO, César. Ensayo crítico sobre el maestro ignorante de J.
Rancière. Revista Ibermericanade Educación, Madrid, n. 34/5, p.
1-18, 2005.
VALVERDE, Antonio José Romera. Autodidatismo e filosofia:
desejo de conhecer. Margem, São Paulo, v. 21, p. 33-46, 2005.
359
A escrita de si, o coabitar problemas e a partilha do
sensível: o encontro com o grupo de estudos ENFILO
Daniel Salésio VANDRESEN
1
Introdução
“Falar, e sobretudo escrever, é jejuar
(Gilles Deleuze e Félix Guattari .).
O que é filosofia? O que é ensino de filosofia? O que ensinar
em filosofia? Como ensinar em filosofia? Como aprender em
filosofia? Para que ensinar filosofia? Qual o ofício do professor
filósofo? Como avaliar em filosofia? O que se espera da formação
discente a partir da filosofia? Muitas perguntas se colocam quando
se reflete sobre o ensino de filosofia, mas uma em especial conduz
nosso trabalho: como pensar o ensino de filosofia como problema
filosófico?
Ao colocar esta questão, entendemos que o próprio fazer do
ensino de filosofia precisa se realizar em um filosofar
problematizador. Entendemos que o estatuto epistêmico do ensino
de filosofia, desqualificado muitas vezes pela academia de filosofia,
1
Instituto Federal do Paraná (IFPR), Coronel Vivida, Paraná, Brasil. Doutor em Educação
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6662-
4703. E-mail: daniel.vandresen@ifpr.edu.br
360
passa por uma atitude teórica-metodológica de coabitar problemas
como modo de tensionar o ensino e a aprendizagem em filosofia. As
questões acima apresentadas ou qualquer outra colocada para pensar
o ensino de filosofia só serão filosóficas quando se colocarem em
uma atitude problematizadora do próprio filosofar.
Meu primeiro encontro com o grupo de estudo e pesquisa
Enfilo foi durante a realização do doutorado (2015-2019), no qual
desenvolvi uma pesquisa sobre o ensino de filosofia na educação
técnica de nível médio. Essa pesquisa teve como orientação teórica o
de pensar a tarefa ético-política do ensino de filosofia no ensino
médio técnico como modo de proporcionar a aprendizagem do
cuidado de si, um cuidado que se realiza em uma vida que se arrisca
nos exercícios de si. Atualmente, em minha prática docente e
pesquisa de pós-doutorado vinculado ao Enfilo, tenho trabalhado
com o conceito de escrita de si de Michel Foucault com o objetivo
de pensar a escrita filosófica como modo de ensinar e aprender em
filosofia.
Nesse sentido, o percurso descritivo deste capítulo apresenta
as recentes problematizações teóricas em minha pesquisa:
inicialmente apresentamos a noção de escrita de si em Foucault,
descrevendo a escrita filosófica no ensino de filosofia como um
modo de coabitar problemas. Em seguida, desenvolvemos a
compreensão de Jacques Rancière de uma escrita como ato político
e partilha do sensível. E, por fim, descrevemos nossa filiação
conceitual e experiência partilhada na comunidade de pensamento
que constitui o grupo Enfilo.
361
A escrita de si e o coabitar problemas em filosofia
O conceito de escrita de si desenvolvido por Foucault está
situado em suas investigações em torno da noção de cuidado de si
(epiméleia heautoû), a qual entende como um exercício de produção
da subjetividade realizado por meio de técnicas de si, um exercício
que também é uma arte/técnica de viver (technè tou biou). Por isso,
define que o cuidado de si “[...] constitui um princípio de agitação,
um princípio de movimento, um princípio de permanente
inquietude no curso da existência” (FOUCAULT, 2004, p. 11).
Desse modo, suas pesquisas na década de 1980, denominadas como
estética da existência, se constituem em uma reflexão sobre a relação
entre as técnicas de si e a constituição do sujeito. Como afirma:
O fio condutor que parece ser o mais útil, nesse caso, é
constituído por aquilo que poderia ser chamar de “técnicas de
si”, isto é, os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda
civilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar
sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de
determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si
sobre si ou de conhecimento de si por si (FOUCAULT, 1997,
p. 109).
Nesta perspectiva, o tema da escrita de si em Foucault
aparece como um diagnóstico das técnicas de si desenvolvida na
filosofia antiga, principalmente em Platão e nos estoicos. Segundo
Foucault (2014), entre os estoicos, principalmente Sêneca, Epicteto
e Marco Aurélio, a epiméleia constitui-se de um conjunto de
362
ocupações para consigo mesmo, um trabalho de si por diferentes
práticas, como: o exame da consciência, a meditação, os cuidados
com o corpo, a leitura e a escrita. E ao tratar sobre a escrita, afirma:
“[...] em torno dos cuidados consigo toda uma atividade de palavra
e escrita se desenvolveu, na qual se ligam o trabalho de si para
consigo e a comunicação com outrem” (FOUCAULT, 2014, p. 66-
67).
No curso de 1982 intitulado A Hermenêutica do Sujeito,
Foucault (2004) trata sobre história do cuidado de si e ao mencionar
o tema da escrita afirma que ela é um exercício que permite vincular
a verdade ao sujeito, ou seja, permite interiorizar as verdades
recebidas tornando-se uma espécie de hábito. A escrita possibilita
dois usos, um para nós e um uso para os outros, o que os gregos
denominavam de hypomnémata (FOUCAULT, 2004, p. 433),
constituindo-se em um verdadeiro cuidado de si e dos outros.
Já no texto de 1983 intitulado “A escrita de si”, Foucault
(2012) vai aprofundar essa temática definindo a escrita como uma
“[...] prática da ascese como trabalho não somente sobre os atos,
porém mais precisamente sobre o pensamento [...]” (FOUCAULT,
2012, p. 142). Assim, entende que a escrita possibilita um exercício
de si por si mesmo pelo trabalho do pensamento. “É a sua própria
alma que é preciso criar no que se escreve” (FOUCAULT, 2012, p.
149).
E acrescenta, que este trabalho no pensamento, por meio da
escrita como um elemento de treinamento de si, tem como objetivo
se constituir em princípios racionais de ação, ou seja, transformas a
verdade em êthos, atitude denominada por Plutarco como uma
função etopoiética. Em seguida, Foucault passa a descrever duas
363
formas de escrita etopoética que aparecem nos séc. I e II: a
hypomnêmata, que são um tipo de anotações que servem de guia de
conduta e utilizadas como livro de vida) e a correspondência, que
são cartas escritas como forma de correspondência espiritual da
experiência da vida cotidiana, neste tipo de carta a escrita age tanto
sobre aquele que escreve quando sobre aquele que envia. Como
afirma: “A carta que se envia age, por meio do próprio gesto da
escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura,
ela age sobre aquele que a recebe” (FOUCAULT, 2012, p. 150).
Ao estudar os estoicos, Foucault (2012) menciona que em
Epicteto a escrita estava associada à meditação, ou seja, no exercício
do pensamento sobre ele mesmo. Já em Sêneca, afirma que o autor
estoico dizia que era preciso ler, mas também escrever. E ao estudar
as cartas de Sêneca, Foucault descreve que o objetivo era examinar a
vida cotidiana para prepara-se diante de outros acontecimentos
semelhantes. O exame da vida constitui um exercício que “[...] lança
sobre si mesmo ao comparar suas ações cotidianas com as regras de
uma técnica de vida” (FOUCAULT, 2012, p. 157), isso significa
que é preciso examinar a maneira como se vive tendo como
referência a criação da arte de viver, ou seja, da construção da melhor
forma de viver.
No entanto, Foucault (2010) ao analisar a tima Carta (ou
Carta VII) de Platão, menciona um certo conflito entre a atividade
da escrita e o filosofar na filosofia antiga. Neste texto, Platão relata
sobre o fracasso de Dionísio na prova da filosofia, recusando a
filosofia como exercício de práticas e escolhendo escrever um tratado
de filosofia. Platão descreve: “[...] meu primeiro cuidado foi
certificar-me se Dionísio era mesmo unha e carne com a filosofia”
364
(PLATÃO, 1975, p. 154) e explica que ele apesar de pretender-se
filósofo não a praticava como atividade existencial. Por meio da
descrição de Platão, Foucault evidencia que a experiência de
Dionísio é de uma escrita como reprodução, mas que a filosofia deve
ser realizar como modo de vida, em que a própria vida deve ser
modificada por meio de práticas cotidianas, sendo uma delas a
escrita.
A partir disso, Foucault compreende a filosofia como
exercício de si que se realiza por práticas. Então afirma: “Aquilo que
a filosofia encontra seu real é a prática da filosofia, entendida como
conjunto das práticas pelas quais o sujeito tem relação consigo
mesmo, se elabora a si mesmo, trabalha sobre si. O trabalho de si
sobre si é o real da filosofia” (FOUCAULT, 2010, p. 221). Ao
interpretar a Carta VII que trata sobre o relato de Platão sobre sua
missão de conselheiro político na ocasião de sua segunda viagem a
Sicília, Foucault percebe que o que está em jogo na missão de Platão
é o próprio sentido da filosofia: não ser puro e simples discurso
(logos), mas érgon (tarefa, obra).
A Carta VII é para Foucault uma reflexão que trata sobre o
real da filosofia, contudo, não o real enquanto parâmetro para medir
se a filosofia é verdadeira ou não, mas da verdade como modo de
vida. E cita o exemplo do homem doente, relatado por Platão,
demonstrando que, para que a filosofia não seja apenas discurso, mas
realidade, ela precisa ter a mesma atitude do médico que busca
convencer o doente a mudar seu regime de vida, ou seja, o que está
em jogo é seu modo de vida cuja transformação evitará outras
doenças.
365
Já Pierre Hadot (2014) ao descrever sobre o tema do discurso
como modo de operar mudança sobre si mesmo, também resgata a
importância da escrita como exercício. Para o autor, nos estoicos a
escrita não deve ser entendida como um modo de resolver problemas
teóricos e abstratos ou de fórmulas destinadas a ser aplicadas
mecanicamente, mas deve ser entendido como máximas, como
regras de viver, que orientam a ação. Na escrita “[...] o que conta é
o ato de escrever, de falar-se para si mesmo” (HADOT, 2014, p.
255).
Hadot (2016) também descreve que o tema da escrita na
Antiguidade estava sempre associado ao ensino e aponta que durante
quase três séculos (desde Sócrates até o século I d.C.) ela
correspondia a um jogo de perguntas e respostas. E na escrita não
consistia em expor algo de maneira sistemática, como também
descreve Platão sobre o fracasso de Dionísio, mas de um diálogo em
que mestre e discípulo estão tratando de questões circunstanciais aos
seus problemas, seja de ordem da problematização do saber seja da
ordem do estado moral.
O que é o “si” da escrita de si? Não é um eu como identidade
fundamental, mas a formação de uma subjetividade singular. A
escrita filosófica enquanto problematização de si constitui-se em um
modo de liberar o indivíduo do assujeitamento produzido pelos
processos de uma escrita reprodutora. Deste modo, a escrita de si é
um acontecimento em que o próprio indivíduo está em jogo, ou seja,
ele apropria-se da escrita quando deixa-se afetar pelo acontecimento
de uma experiência ou pensamento. Pensar a escrita como
acontecimento é abrir-se para o encontro com o inusitado, com o
estranho, com a que nos desassossega e nos provoca a mudança.
366
Compreendemos a filosofia e seu ensino como um modo de
“coabitar problemas” (FOUCAULT, 2010, p. 225), o qual constitui
uma relação consigo que permite estar atento ao que nos acontece e
nos afeta no cotidiano de nossa existência. É essa atenção
problematizadora com as práticas cotidianas que propomos
evidenciar pela análise do acontecimento discursivo e, assim como
afirma Plutarco, é “[...] a vida cotidiana dá a possiblidade de
filosofar” (HADOT, 2014, p. 68) e pensar a singularidade de nossa
existência.
A partir disso, pensamos que no ensino de filosofia o
essencial não é a transmissão de um conteúdo em que o é suficiente
a sua apreensão. Ao contrário, a filosofia precisa ser praticada em
uma coexistência, em um coabitar problemas, onde não há respostas
imediatas e definitivas, mas que se realiza como um “longo caminho
da filosofia, isto é, tomar a via rude dos exercícios e práticas”
(FOUCAULT, 2010, p. 224).
Foucault (2010, p. 233, nota n. 6), retomando a Carta VII
de Platão, em que este afirma que é necessário frequentar por muito
tempo os problemas, somente convivendo com eles que é possível a
verdade brotar na alma. Nas palavras de Platão:
Não é possível encontrar a expressão [mathémata] adequada
para problemas dessa natureza, como acontece com outros
conhecimentos. Como consequência de um comércio
prolongado e de uma existência dedicada à meditação de tais
problemas é que a verdade brota na alma como a luz nascida
de uma faísca instantânea, para depois crescer sozinha
(PLATÃO, 1975, p. 155, nossa inclusão e grifo).
367
Também aponta, que a filosofia como mathémata conduz a
ideia de que “dava-se ares de saber muitas coisas e de dominá-las
(PLATÃO, 1975, p. 155) e isso para Foucault (2010, p. 224)
acarreta na ideia de que “agora que já sabia o bastante, não precisava
se formar mais”. Nesse modo de filosofia como transmissão, a posse
da verdade conduz a um modo de ser em que as relações de poder
são autoritárias, como por exemplo, em práticas de ensino em que o
professor se coloca como detentor da verdade a ser transmitida e o
aluno sendo apenas receptor e reprodutor desse saber. E isso para
Foucault tem consequências éticas, isto porque, torna-se perigoso o
modo de proceder daqueles que praticam a mathémata, como
afirma:
Mas na verdade seria ou inútil, ou perigoso. Seria perigoso para
os que efetivamente, não sabendo que a filosofia não tem outro
real senão suas próprias práticas, imaginariam conhecer a
filosofia, tirando disso vaidade, arrogância e desprezo pelos
outros, e portanto seria perigoso. Quanto aos outros, aos que
sabem perfeitamente que o real da filosofia está nesta, na sua e
nas suas práticas, pois bem, para esses o ensino pela escrita, a
transmissão pela escrita seria totalmente inútil (FOUCAULT,
2010, p. 226, grifos nossos).
Nessa perspectiva, o ensino de filosofia como transmissão e
através do reconhecimento de si pela verdade produz a dogmatização
de posicionamentos e, como consequência, dificultando as relações
com o outro. Por isso, pensamos que a filosofia precisa se realizar
como um aprendizado do coabitar problemas, no qual a filosofia é
um caminho de práticas que jamais se completa. Desse modo,
368
aprender a coabitar problemas pressupõe que o sujeito esteja em uma
relação viva com seu presente, ou seja, constitui um modo de estar
atento ao que se passa consigo e em seu modo de agir ético em
relação ao mundo e aos outros.
Então, como entender a escrita como um modo de coabitar
problemas? Para responder, recorremos a interpretação feita por
Deleuze (2005) do pensar como problematização na filosofia de
Foucault, como afirma:
Certamente, uma coisa perturba Foucault, e é o pensamento.
‘Que significa pensar? O que se chama pensar?’ a pergunta
lançada por Heidegger, retomada por Foucault, é a mais
importante de suas flechas. Uma história, mas do pensamento
enquanto tal. Pensar é experimentar, é problematizar. O saber,
o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do
pensamento (DELEUZE, 2005, p. 124, grifos nossos).
Nesta perspectiva, a escrita como expressão do exercício de
si no pensamento possibilita a experiência do coabitar os problemas.
A partir do exposto, defendemos a atitude de coabitar problemas
como modo de praticar a filosofia. Isso exige uma atitude de
contraposição à ideia da transmissão da verdade, a qual implica em
uma busca metódica para resolver problemas. Ao contrário, coabitar
os problemas não implica necessariamente em dar respostas, mas em
um movimento de problematização que conduz ao desprender-se de
si mesmo.
Enfim, perguntamos: o que a escrita de si se diferencia de
outra forma de escrita? No desenvolvimento desse trabalho
369
defendemos o exercício da escrita como uma forma de
problematização de si que potencializa o fazer filosófico, tornando-
se um instrumento fundamental para combater certas práticas de
ensino em que o conhecimento é demarcado pela produção de
repetições. Em um ensino como repetição apenas se gera imitação,
isto porque nesse processo de transmissão do conhecimento o
indivíduo deixa-se operar pelos outros e sua resposta nada mais é que
a reprodução da informação recebida. Por isso, por meio da leitura
foucaultiana da noção de escrita de si procuramos descrever uma
inquietação por meio de uma escrita filosófica problematizadora das
práticas como forma de atenção ao presente e uma relação menos
abstrata no ensino. Isto quer dizer que, diferentemente da repetição
do conteúdo como reprodução do mesmo, em que o indivíduo se
deixa operar pelo comando do outro, se tornando um sujeito
autômato, na escrita de si como prática existencial torna-se possível
construir uma relação consigo transformadora.
A escrita como partilha do sensível
Na obra “Políticas da escrita” Rancière (1995) desenvolve a
relação entre política e escrita a partir da noção de partilha do
sensível, a qual é entendida como constitui de uma comunidade pela
determinação do sensível como relação entre o comum partilhado e
a separação do que lhe é próprio, do sentido partilhado e do que é
dissemelhante, do dentro e do fora. A partir disso, entende que a
escrita não é o mero exercício de uma competência como ocorre na
atenção apaixonada que as sociedades escolarizadas dão ao
370
aprendizado da escrita, antes, o ato da escrita é uma maneira de dar
sentido ao modo como um corpo ocupa o sensível.
Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem
significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação de
mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga;
desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos
com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade
com a sua própria alma. [...] o ato da escrita é uma maneira de
ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação.
(RANCIÈRE, 1995, p. 7).
A escrita não é um simples gesto de gravar um resultado em
um texto, mas opera algo no real quanto atribui sentido aos espaços
ocupados. O ato de escrever solicita um corpo, altera a relação e o
movimento no encontro com outros corpos. Por isso, o conceito e o
ato da escrita são políticos porque o significado que traça é a marca
de um sujeito em seu devir corpo-alma na comunidade. A relação
entre escrita e comunidade ocorre quando a primeira em seus modos
de visibilidade expressa a experiência estética e política da segunda.
Para Rancière (1995) governa no pensamento ocidental,
desde Platão com o mito da invenção da escrita desenvolvido no
final do texto Fedro, uma redivisão entre a ordem do discurso e das
condições, isto é, um jogo “[...] complexo que é jogado entre os
poderes do escrito e a ordem ou a desordem do social” (RANCIÈRE,
1995, p. 13). No Fedro, há uma concepção crítica da escrita porque
ela é ao mesmo tempo muda e falante demais. É muda porque não
há nenhuma voz acompanhando-a para dar às palavras o tom da
371
verdade delas a ser recebidas pelos receptores. Deste modo, se
contrapõe ao ato de palavra que dá a um logos sua legitimidade pelo
ato de falar e ouvir. E é falante demais porque a escrita circula como
uma letra morta sem saber a quem se destina, dando a ela uma voz
que não é mais a dela.
A escrita não tem corpo, é a expressão de um sentido
partilhado por uma comunidade de pensamento. A escrita expressa
o modo como uma comunidade afetou-se pela partilha do sensível.
Por isso, Rancière afirma: “Há escrita quando palavras e frases são
postas em disponibilidade, à disposição, quando a referência do
enunciado e a identidade do enunciador caem na indeterminação ao
mesmo tempo” (RANCIÈRE, 1995, p. 8).
Para Rancière nesta oposição “[...] entre a voz viva e a escrita
morta, é preciso reconhecer uma oposição mais essencial entre dois
modos de circulação dos enunciados: um enunciado acompanhado
e um enunciado livre” (RANCIÈRE, 1995, p. 8). O enunciado
acompanhado, que é matriz de qualquer pedagogia, é o ato de
explicar e conduzir um significado do ponto de partida ao ponto de
destino pelo dono. É “[...] uma atualização do logos da comunidade
enquanto partilha do logos [...] do modo como o logos faz questão de
ser” (RANCIÈRE, 1995, p. 9). Já o enunciado livre, ao separar o
enunciado da voz que o enuncia legitimamente, “[...] vem
embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer. A
perturbação teórica da escrita tem um nome político: chama-se
democracia” (RANCIÈRE, 1995, p. 9). Rancière entende a
democracia não como um modo particular de governo, mas como a
forma da comunidade em que a circulação de uma escrita órfã que
372
afasta qualquer relação natural entre a ordem das palavras e a das
condições.
A perturbação da escrita muda/falante é, assim, mais profunda
que a da mimese teatral denunciada na República. Antes de ser
o regime do teatro mentiroso, a democracia é o regime da
escrita. E a escrita é, indissoluvelmente, duas coisas em uma: é
o regime errante da letra órfã cuja legitimidade nenhum pai
garante, mas é também a própria textura da lei, a inscrição do
que a comunidade tem em comum (RANCIÈRE, 1995, p. 9).
Rancière aponta que a partir de Platão se desenvolve o sonho
de corrigir o mal da escrita por meio de uma outra escrita que é, ao
mesmo tempo, menos que escrita e mais que escrita. Menos que
escrita porque expressa “um puro trajeto do logos que não se expõe a
nenhum desvio” e não passa pela palavra simulacro que fala com
todos sem ser destinado a ninguém. E é também mais que escrita,
uma escrita “[...] infalsificável, pois que traçada na própria textura
das coisas, desenhando o corpo mudo/falante da própria verdade”
(RANCIÈRE, 1995, p. 10).
Na forma platônica do diálogo, a afirmação do logos vivo, do
discurso nobre, é a proteção contra a dispersão e o desvio
democráticos da escrita, porque para Rancière “há democracia e
política, consequentemente porque há palavras sobrando, palavras
sem referente e enunciados sem pais que desfazem qualquer lei de
correspondência entre a ordem das palavras e as coisas”
(RANCIÈRE, 1995, p. 15).
373
Para Rancière a relação da escrita com o conteúdo não é de
uma verdade a ser representada como correspondência natural entre
palavras e coisas, nem o de ser uma estrutura formal que expressa
um logos sem desvios. E sim, uma escrita sem corpo que coloca à
disposição a partilha do sensível em uma comunidade democrática.
Considerações sobre o encontro
com o grupo de estudos Enfilo
Meu primeiro contato com o grupo de estudo e pesquisa
Enfilo (Grupo de Estudos sobre o Ensino de Filosofia) ocorreu em
2014, quando conheci o prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo por
ocasião do ingresso no doutorado em educação do Programa de Pós-
graduação em Educação da UNESP de Marília. Grupo ou melhor,
nos termos de Rancière, uma comunidade em que a partilha do
pensamento e da vida tenciona o exercício do trabalho crítico de nós
mesmos.
Neste encontro, o que mais me inquietou a atenção e
cuidado comigo mesmo foram os tensionamentos dos problemas da
pesquisa e da escrita como exercício do filosofar. O que marca a
singularidade desse grupo é a partilha e um caminhar juntos em
torno da problematização da filosofia e de seu ensino. Um caminhar
que busca potencializar o ensino de filosofia como problema
filosófico, isto é, um modo de pensar e praticar a filosofia que é o de
coabitar o caminho pela verticalização dos problemas. Entendemos
que o ensino de filosofia deve ser tratado como problema filosófico
ou não será filosofia, ou seja, o exercício do pensamento não é a
374
busca por um resultado ou um produto, mas o próprio filosofar
enquanto devir. E diante do não reconhecimento da filosofia do
ensino de filosofia como disciplina/área da filosofia, busca-se habitar
este não-lugar no qual ainda é possível pensar outras filosofias.
Um modo de operar o pensamento e a pesquisa que também
exige outro olhar sobre a escrita filosófica, a qual não é da
representação e da analítica da verdade que predominam na tradição
acadêmica, mas da escrita como um modo de dar sentido a maneira
como coabitamos problemas e ocupamos o sensível.
O Enfilo como comunidade da partilha do sensível, nos
termos de Rancière, nos proporcionou encontros do comum
compartilhado (filosofia do ensino da filosofia) e da diferença que é
própria de cada pensamento, experiência e interesses de pesquisa.
Minha prática docente em filosofia iniciou-se em 2005 na
rede de educação do Estado do Paraná, momento em que se
reformulava a diretriz curricular de filosofia sob a perspectiva
teórica-metodológica da noção de criação de conceitos em Deleuze.
Deste modo, já no início de minha atividade como professor de
filosofia já problematizava minha prática filosófica, no entanto,
apenas como um modo de praticar a filosofia em uma nova
orientação teórica e metodológica. E foi a partir desse encontro com
o Enfilo que tensionei minha prática do ensino de filosofia como
problema filosófico, ou seja, não apenas uma reflexão crítica sobre o
que ensinar (problematização sobre a escolha do conteúdo) e como
ensinar (problematização sobre modos de ensinar em filosofia), e
sim, sobretudo, praticar o ensino de filosofia como uma atitude
ético-política em que o modo de coabitar problemas produz uma
tensão vertical de liberação. Portanto, como um êthos filosófico.
375
Enfim, o encontro com o Enfilo, nos problemas coabitados,
na escrita tensionadas e na partilha do sensível, levou-me há um
singular acontecimento em minha prática docente em filosofia.
Considerações Finais
No desenvolvimento desse trabalho defendemos o exercício
da escrita filosófica como uma forma de problematização de si que
potencializa o filosofar, tornando-se um instrumento fundamental
para combater certas práticas de ensino em que a escrita é deslocada
apenas para a função de reprodução do conhecimento. Por meio da
leitura foucaultiana da noção de escrita de si e da escrita como
partilha do sensível em Rancière procuramos descrever a escrita
filosófica como uma inquietação com a atualidade que nos constitui,
fazendo da filosofia um coabitar o presente e uma relação menos
abstrata no ensino.
Diante de um empobrecimento da experiência de si
intensificada na cultura moderna e do enraizamento de uma prática
de ensino em que a escrita cada vez menos se vincula a vida, torna-
se fundamental questionar nosso uso descartável da escrita. É preciso
coabitar o tempo da escrita. É preciso ruminar como diz Nietzsche
ou jejuar como afirma Deleuze e Guatari (1977, p. 30) “Falar, e
sobretudo escrever, é jejuar”.
376
Referências
DELEUZE, G. Foucault. Trad. C. Martins. São Paulo:
Brasiliense, 2005.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor.
Trad. Júlio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. Trad. Márcio A.
da Fonseca e Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
FOUCAULT, M. Ética, Sexualidade, Política. 3. ed. Trad. Elisa
Monteiro e Inês A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2012.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade 3: Cuidado de Si. São
Paulo: Paz e Terra, 2014.
FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: curso no Collège
de France. Trad. E. Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2010.
FOUCAULT, M. Subjetividade e Verdade. In: FOUCAULT, M.
Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1997. p. 107-115.
HADOT, P. O que é filosofia antiga?. 6. ed. São Paulo: Edições
Loyola, 2014.
HADOT, P. A filosofia como maneira de viver: entrevista de
Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. Trad. L. C. de Malimpensa.
São Paulo: É Realizações, 2016.
377
PLATÃO. Diálogos: Fedro - Cartas - O primeiro Alcibíades.
Belém: Ed. UFPA, 1975.
RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
379
A experiência do ensinar e do aprender
no ensino de filosofia
Silmara Cristiane PINTO
1
Entre as perguntas que me acompanharam nos primórdios
de minha experiência como aluna do curso de graduação em
Filosofia, a que ganhou corpo e instigou toda minha trajetória de
pesquisa durante a Graduação e a Pós-Graduação na Faculdade de
Filosofia e Ciências, campus de Marília São Paulo, se situa no
âmbito da Educação. A pergunta se enquadra em uma situação
específica da educação formal, a saber, o ensino de Filosofia: é
possível vivenciar uma aprendizagem filosófica no contexto do
ensino de Filosofia?
A expressão “aprendizagem filosófica” se tornou muito
familiar para mim a partir do ano de 2011 quando comecei a
participar dos encontros do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino
de Filosofia da UNESP, o ENFILO. O interesse pelo tema da
aprendizagem crescia a cada encontro, e remetia àquela centelha
filosofante que começara em uma modesta escola pública do interior
paulista, graças à promulgação da Lei nº 11.684, de 2008, que
1
Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista, UNESP, campus de Marília e
professora na Secretaria do Estado da Educação de Santa Catarina, cidade de Florianópolis,
SC, Brasil, silmaraffc@gmail.com.
380
tornou a Filosofia disciplina obrigatória nas três séries do Ensino
Médio brasileiro.
Foi precisamente essa centelha que me instigou o desejo de
estudar Filosofia na universidade, embora viesse saber mais tarde que
a filosofia universitária seria a responsável por minar um pouco desse
entusiasmo. A reflexão de Silvio Gallo ilustra perfeitamente meu
sentimento de desencanto:
Há um desejo que nos constitui e nos encaminha para uma
busca intelectual, estudar filosofia seria parte dessa busca se não
encontrássemos aí um problema, o de que existe uma
predileção da comunidade filosófica em iniciar o estudante em
uma espécie de “treinamento que desmobiliza a criação e a
capacidade da invenção conceitual (GALLO, 2008, p. 72).
Não obstante, quanto mais a frustração solapava minhas
expectativas em relação a uma pretensa formação filosófica, mais
forte se tornava a minha obstinação em não fazer como alguns de
meus professores, isto é, não produzir uma distância abissal entre o
conhecimento filosófico e a experiência filosófica do pensamento.
Minha necessidade em investigar os bastidores da aprendizagem
filosófica, ou seja, descobrir como é possível que uma aula seja um
espaço para a reflexão e a produção de conceitos, portanto, nasceu
nesse contexto.
O ano de 2011 foi decisivo em minha experiência
acadêmica. Cursando o terceiro ano de graduação me vi confrontada
pela professora que me tornaria em um futuro muito próximo.
Embora começasse a se delinear alguma familiaridade com conceitos
381
e com a História da Filosofia, havia uma grande lacuna no quesito
formação filosófica e isso se tornou para mim um dilema pessoal,
pedagógico, ético, político e filosófico. Nesse sentido, participar do
ENFILO permitiu que eu situasse minhas angústias no campo da
pesquisa sobre o ensino de Filosofia e também pudesse dividi-las
com meus colegas de graduação e amigos membros do grupo.
Minha atuação como bolsista no Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES) no ano seguinte
também representou um marco nesse processo de pensar o ensino e
seus métodos para além das concepções tradicionais e
representacionais de educação, uma vez que o projeto associado ao
programa tinha como objetivo analisar os limites e as possibilidades
do ensino da filosofia na escola pública do Estado de São Paulo a
partir da Proposta Curricular e das condições oferecidas pelos seus
materiais didáticos de apoio.
Como universitária e bolsista do PIBID Filosofia, pude
voltar ao espaço da sala de aula, lugar onde habitamos boa parte de
nossa vida, mas pela primeira vez com anseios e responsabilidades
diferentes. A experiência desse retorno produziu um efeito
interessante, como se houvesse um devir aluna e um devir professora
se cruzando e se interpondo um ao outro incessantemente.
A vivência com o PIBID foi uma grande experiência de
pensamento vinculada à práxis, um momento de aprender que
planejar uma boa aula é uma condição, porém não suficiente para
produzir uma aprendizagem significativa da Filosofia. Era preciso
mais do que isso, era preciso estar sensível aos acontecimentos da sala
de aula, à potencialidade das relações, aos signos filosóficos
382
expressados em uma conversa, em um debate, nos olhares, nas
contendas e até mesmo nos silêncios.
Aliás, pensar o ensino para além das concepções tradicionais
culminou em uma busca pela experiência filosófica de pensamento
não apenas no espaço institucionalizado da escola, mas também em
espaços não formais. Daí nasceu o projeto “Filosofia em espaços não-
formais”, cuja ideia era promover encontros com jovens em
cumprimento de medida judicial em uma instituição socioeducativa.
Nesses encontros a figura do professor, do aluno, dos conteúdos
prévios, dos regimes de verdade, das imagens do pensamento
poderiam ser deslocadas e até suprimidas como alternativa aos
métodos limitantes do ensino comum.
A partir desse projeto, pude descobrir, no entanto, que o que
procurava de fato não era um espaço desinstitucionalizado para o
ensino da filosofia, e sim uma temporalidade não formal ou mesmo
não cronológica do espaço escolar. Chegar a essa consideração
significou para mim um redirecionamento em minhas inquietações,
pois pude deslocar o foco do ensino para pensar a aprendizagem, já
que sua efetuação poderia se dar aquém ou além dele.
Uma das primeiras e mais significativas leituras que
motivaram minhas pesquisas e as discussões do ENFILO acerca da
necessidade de repensar o ensino, a aprendizagem, os papéis do
professor e do aluno foi a leitura do livro “O Mestre Ignorante: cinco
lições para emancipação intelectual” (2002) do filósofo francês Jacques
Rancière. No capítulo primeiro de O mestre Ignorante, Jacques
Rancière narra a aventura intelectual que viveu o mestre Joseph
Jacotot, um revolucionário belga interessado em literatura e com
futuro promissor na política de Dijon.
383
Desde cedo, era versado na arte de ensinar Retórica, Línguas
Antigas, Matemática e Direito, entre outras disciplinas. Em meados
de 1815, período histórico da restauração Bourbon na França,
Jacotot se exila nos Pses Baixos onde passa a lecionar sob
consentimento do rei. A estada, que aparentava ser tranquila, logo
lhe impõe o difícil desafio: Jacotot deveria ensinar francês aos alunos
holandeses, sem ao menos conhecer sua língua de origem. A
primeira reação foi estabelecer um elo comum com os alunos, uma
edição bilíngue do livro Telêmaco, publicado naquela época em
Bruxelas. Com auxílio de um intérprete, Jacotot requisitou aos
jovens que aprendessem o francês mediante a tradução que indicara
e, ao chegarem à metade do livro primeiro, que repetissem
continuadamente o que haviam aprendido. A tarefa dos alunos seria
escrever em francês o que pensavam daquilo que haviam lido e
Jacotot, obviamente, não esperava mais do que sua total impotência.
Todavia, desta presunção provou-se o contrário. Para sua
surpresa, os jovens se saíram tão bem quanto fariam os próprios
franceses. A eles, Jacotot nada havia explicado, por si mesmos
haviam progredido e apreendido através de uma busca
absolutamente livre de qualquer ensinamento. Até aquele momento,
o pedagogo naturalizado nos preceitos de sua instituição acreditava
que “a grande tarefa do mestre era transmitir seus conhecimentos aos
alunos para elevá-los gradativamente à sua própria ciência
(RANCIÈRE, 2002, p. 16). Isto perante uma tarefa essencial que era
explicar. Ao longo dos seus trinta anos de ofício, Jacotot julgava ser
porta-voz do saber e, através do ensino, levaria os ignorantes ao
esclarecimento. Compartilhava dessa convicção que era consenso
entre os demais naquele início do século XIX.
384
A surpreendente aprendizagem dos alunos, fez com que
Jacotot repensasse seu ofício e, principalmente, a utilidade de suas
explicações. Confrontado em suas certezas, ele percebeu que a
necessidade da explicação não nascia, afinal, de uma incapacidade de
compreender. A incapacidade era apenas um pressuposto que
sustentava a centralidade da ordem explicadora na relação
pedagógica.
Através de uma decisão improvisada, inicialmente irrefletida,
Jacotot confiou aos alunos o espaço de liberdade para aprenderem o
que era, na verdade, a única lição que lhes bastava. A aprendizagem
não resultou de seu conhecimento, tampouco de sua instrução.
Naquela ocasião, o mestre era o ignorante e quem sabia e detinha as
condições para aprender eram os alunos. Desse modo, o único que
dependia de fato do argumento da explicação era o mestre, ela não
teria razão de existir senão por sua própria conveniência. Vencido
pela ignorância e traído pelo senso comum pedagógico no qual
sempre esteve inserido, Jacotot aprende sua primeira lição: a
explicação poderia fornecer a tradução de um texto, mas nunca o seu
sentido. Logo, nenhuma explicação seria capaz de superar o que as
próprias palavras do livro poderiam dizer.
A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade
de compreender. É, ao contrário, essa incapacidade, a ficção
estruturante da concepção explicadora de mundo. É o
explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário,
é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a
alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode
compreendê-la por si só (RANCIÈRE, 2002, p. 19-20).
385
A partir dessa experiência, Jacotot despertou o olhar para
uma perspectiva absolutamente divergente quanto ao pensamento
pedagógico e ao método explicador. Para ele, sustentar a necessidade
da explicação, justificando-a pela incapacidade de compreensão do
aluno, mostrou-se apenas uma forma de determinar níveis de
inteligência, uma superior à outra. Para Jacotot, tratava-se de uma
questão propriamente política e filosófica. A palavra do mestre se
interpunha entre o conhecimento do texto e a inteligência do aluno,
e o ato de explicar mantinha uma distância imaginária entre o aluno
e o saber, subjugando, ao mesmo tempo, sua inteligência a
inteligência do mestre. Este era o princípio de uma pedagogia que
para educar precisava embrutecer.
Nessa aventura intelectual, Jacotot passou a denunciar uma
França que tinha a instrução como palavra de ordem, mas que nada
fazia senão reiterar, na instituição pedagógica, uma desigualdade de
inteligências como reflexo da própria desigualdade social existente
naquele país. Sem o recurso da explicação, Jacotot pôde enxergar que
a inteligência que fizera seus alunos aprender o francês em Telêmaco
era a mesma que os havia feito aprender a língua materna; uma
inteligência, portanto, insubmissa que a pedagogia tradicional não
teria razões para sujeitá-la senão por um objetivo nitidamente
político, o de reproduzir um pressuposto da desigualdade sob o
pretexto de sua própria denegação.
Em síntese, a lição primordial de Jacotot foi a descoberta de
que sua ignorância poderia ser causa de ciência para outro ignorante
desde que assegurasse a autonomia das inteligências. “Ele havia sido
mestre por força da ordem que mergulhara os alunos no círculo de
onde eles podiam sair sozinhos, quando retirava sua inteligência para
386
deixar as deles entregues àquela do livro” (RANCIÈRE, 2002, p.
25).
Para mim, o que Rancière comunicou através da história de
Jacotot é que um mestre pode ensinar o que ignora desde que force
o aluno a utilizar sua própria inteligência. Nesse aspecto, não haveria
relação de poder sustentada pela submissão, o que estaria em jogo
seria a força da própria necessidade sobre a vontade de aprender, de
modo que o desejo designaria a única possibilidade de fazer nascer
as capacidades do intelecto.
A crítica de Rancière abalou sensivelmente meus
pressupostos sobre o ensino, especialmente a tese de que aprender
não seria consequência da explicação, mas uma experiência
intelectual própria que não acontece, necessariamente, por meio da
transmissão de conteúdo e também não se reduz à mera
compreensão. A história do mestre Jacotot provocou em meu
pensamento uma série de interrogações sobre a necessidade do
professor, pois qual seria então a sua função nos processos de
aprendizagem do aluno?
Obviamente, Rancière não intencionava subtrair a presença
do professor, mas deslocá-lo de seu centro sapiente, retirando-lhe o
poder de assim se autogerir para conduzir o caminho dos ignorantes.
Uma vez invertida a representação do mestre que sabe e do aluno
que ignora, seria preciso resignificar a sua tarefa. No caso de Jacotot,
se não foi sua explicação, tampouco seu conhecimento os
precursores da aprendizagem, foi por outra ordem de motivos que
ela veio ocorrer. O aprendizado não teria acontecido se o mestre não
oferecesse a condição primordial para tanto: o livro. Com isso, o
387
maior ensinamento do mestre foi devolver aos seus a possibilidade
de aprender autonomamente.
Essa ideia instaurou em mim diversas lacunas, mas também
um olhar crítico sobre a relação entre professor e aluno e a relação
que ambos têm com o saber. Segundo o filósofo, além de a explicação
ser um recurso didático, ela se constitui como norma na escola já
que alimenta uma lógica associada à transmissão. Rancière
denomina esse método de ensino de ordem explicadora como forma
de resguardar o exercício da autoridade e a submissão dos sujeitos.
A ordem explicadora instaura um regime de educação
orientado pela ideia de que o aluno será sempre dependente das
representações do professor para se emancipar. Através da explicação,
o professor espera transmitir aos alunos a matéria a ser ensinada e
assim preencher o espaço que separa o estudante do saber. Trata-se
de uma lógica que pressupõe a inteligência do mestre e a ignorância
do aluno, prerrogativa de uma desigualdade de inteligências que o
autor procura interpelar.
Nesse viés, a função da pedagogia tradicional, da transmissão
neutra do saber, consiste basicamente em estabelecer o princípio de
igualdade como objetivo tomando a desigualdade como ponto de
partida. Todavia, ele adverte que a igualdade não pode ser um
resultado a ser atingido. Ela deve ser o critério primeiro de toda
relação que se pretenda igualitária. Estabelecer a igualdade como
objetivo e não como base é o mesmo que poster-la
indefinidamente, pois, supõe que o sujeito deva obedecer uma
ordem, compreendê-la, assumir que deve obedecê-la para tornar-se
um igual. Igualar-se ao mestre depende da submissão a ele e nada
388
mais eficaz que uma instituição pedagógica para reproduzir este
ideal.
A função do explicador consiste em legislar sobre os
conhecimentos a serem transmitidos e, por conseguinte, avaliar sua
recepção pelos alunos. Assim, fica a cargo do estudante compreender
e reproduzir os ensinamentos à maneira como lhe foi explicado. Por
via de regra, a assimilação do aluno se alcançada não ultrapassa
os limites do entendimento de seu próprio mestre, visto que ocupa
uma posição de subordinação. Ele deverá compreender o que lhe é
transmitido e demonstrar que seu entendimento segue o do mestre.
Sua experiência possível com o objeto do conhecimento estará
submissa às representações do explicador.
Conforme afirma Rancière, esse pressuposto longe de tornar
possível a emancipação consolida o embrutecimento, pois interfere
de modo restritivo o movimento daquele que está a aprender.
Quanto mais o professor assume a perspectiva do esclarecido, mais
lhe parece evidente a distância que vai de seu saber à ignorância dos
ignorantes. Parece-lhe óbvio, portanto, a necessidade de suas
explicações para que o aluno aprenda. Com isso, sua voz substitui a
autoridade do livro e o procedimento da explicação decreta a
impotência do aluno como se não fosse possível aprender com o
recurso de sua própria inteligência.
Pelo ato de explicar, o mestre limita as chances do aluno em
construir relações de saber por meio de suas próprias definições.
Uma vez explicado, o aluno “investirá sua inteligência em um
trabalho do luto: compreender significa, para ele, compreender que
nada compreenderá, a menos que lhe expliquem […] mais tarde, ele
389
poderá, por sua vez, converter-se em um explicador” (RANCIÈRE,
2002, p. 21).
A crítica do autor se dirige especialmente à ideia de que a
explicação é necessária para solucionar o suposto problema da
incapacidade de compreender. Para Rancière (2002, p. 20), a
incapacidade, tal como pensada no senso comum pedagógico, é que
estrutura o princípio da ordem explicadora. Antes de ser o ato do
pedagogo, a explicação é o mito da pedagogia, a parábola de um
mundo dividido em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos
maduros e imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos.
Evidentemente a crítica que Rancière dirige aos pressupostos
pedagógicos de seu contexto é um dos desdobramentos de sua
posição política em relação às desigualdades e às formas de submissão
decorrentes delas. Ele chama atenção para as condições que limitam
as possibilidades da emancipação humana, começando pela
experiência escolar.
Com a proposta de criação do grupo ENFILO não foi
diferente, já que sua existência também engendrava uma intenção
política, a de pensar o ensino e a aprendizagem em filosofia como
problema filosófico, algo que não era apreciado como tema
necessário para o departamento de Filosofia da UNESP de Marília.
Embora o grupo explorasse uma bibliografia autêntica no cerne da
própria história do pensamento filosófico, o viés pedagógico da
temática representava um desvio ou uma deformação para uma área
que se pretendia especializada em assuntos fundamentais dentre os
quais o ensino não interessava.
390
Aliás, a própria estrutura curricular de muitos cursos de
graduação evidencia a disjunção das modalidades licenciatura e
bacharelado, privilegiando esta última como principal e única
referência para a pesquisa. Conforme a mentalidade disseminada,
inclusive por docentes, a formação em licenciatura seria matéria de
cunho pedagógico e, por isso, não interessaria à pesquisa e à filosofia.
Mas, o engajamento político do grupo diante da necessidade
de rever a própria estrutura curricular do curso de Filosofia, por
exemplo, se tornava mais forte à medida que as pesquisas acerca do
ensino começavam a se delinear. Envolvida na atmosfera dessa luta
política, iniciei em meu último ano de graduação um projeto de
iniciação científica acerca do ensino de Filosofia, propondo um olhar
crítico aos referenciais de ensino e de aprendizagem cristalizados nas
escolas e universidades brasileiras.
Essa pesquisa foi apenas o início do projeto que me propus
a desenvolver posteriormente, entre os anos de 2014 a 2016, no
curso de Mestrado em Educação da mesma universidade sob
orientação daquele que considero um grande mestre e amigo Prof.
Dr. Rodrigo Gelamo. No decorrer desse processo, muitas outras
leituras atravessaram meu pensamento, como é o caso de alguns
textos de Gilles Deleuze. A propósito, Deleuze foi e continua sendo
meu grande intercessor para entender o que constitui a
aprendizagem, e que temporalidades e singularidades tornam
possível a aprendizagem filosófica no contexto do ensino de
Filosofia.
391
No livro O que é filosofia? (1992)
2
, Gilles Deleuze e Félix
Guattari discutem a tese de que a filosofia é a disciplina que se define
essencialmente pela criação de conceitos. Criar conceitos é uma arte
singular e propriamente filosófica. Ambos perguntam “Que valeria
um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele
não criou seus conceitos?” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p. 14).
Segue-se que contemplar, refletir e comunicar ideias já estabelecidas
não é a tarefa própria do filósofo e sim de uma espécie de “operário
da filosofia”, como diria Nietzsche. Ele não busca mais do que se
especializar para posteriormente capacitar especialistas na
reprodução de saberes. Esse é especificamente o movimento de
muitos professores, um retorno infinito às imagens do pensamento,
aos falsos problemas e a uma aprendizagem que não visa a criação
filosófica, mas a recognição.
O que são as imagens do pensamento? No terceiro capítulo
de Diferença e Repetição (2006)
3
, Deleuze apresenta a questão da
2
Esta obra, publicada na França em 1991, leva o título original Qu’est-ce que la philosophie?
Utilizei a primeira edição (1992) da tradução brasileira feita por Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Munõz sob revisão técnica do Prof. Dr. Luiz Orlandi. Neste livro, os autores
respondem à pergunta, (o que é filosofia?) propondo a ideia de que a atividade do filósofo
vincula-se, primordialmente, à criação de conceitos, a “extrair algo de novo, transvasar algo
de novo à repetição que ele contempla”. Deleuze e Guattari, amparados no pensamento de
Nietzsche, sustentam que “O filósofo é o conceito em potência. Quer dizer que a filosofia
não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos
não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a
disciplina que consiste em criar conceitos”. Ressaltam ainda que a “A filosofia não
contempla, não reflete, não comunica [...] a contemplação, a reflexão, a comunicação não
são disciplinas, mas máquinas de constituir Universais em todas as disciplinas [...]. O
primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem
ser explicados”, por isso a necessidade de uma criação singular e “o conceito como criação
propriamente filosófica constitui sempre uma singularidade” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 14-15).
3
Do original Différence et Répétition (1968), foi utilizada a tradução de Luiz Orlandi e
Roberto Machado, segunda edição de 2006.
392
“Imagem do Pensamento” através da qual procura analisar o
problema dos pressupostos em filosofia
4
. As imagens do pensamento
são os pressupostos a partir dos quais toda filosofia ocidental se
estabeleceu historicamente, o que é um problema, dado que,
segundo o autor, propor-se a um verdadeiro começo nesse campo
intelectual significa eliminar todos seus pressupostos.
A história da filosofia sempre foi o agente de poder na filosofia,
e mesmo no pensamento. Ela desempenhou o papel de
repressor: como você quer pensar sem ter lido PIatão,
Descartes, Kant e Heidegger, e o livro de fulano ou sicrano
sobre eles? Uma formidável escola de intimidação que fabrica
especialistas do pensamento, mas que também faz com que
aqueles que ficam fora se ajustem ainda mais a essa
especialidade da qual zombam. Uma imagem do pensamento,
chamada filosofia, constituiu-se historicamente e impede
perfeitamente as pessoas de pensarem (DELEUZE; PARNET,
1998, p. 21).
As imagens do pensamento são pré-filosóficas, pois se
sustentam em ideias genéricas e subjetivas provenientes do senso
4
No capítulo terceiro de Diferença e Repetição, Deleuze sintetiza oito postulados que
engendram a imagem do pensamento na filosofia, mas salienta que eles são definidos por
uma série de proposições subjetivas, pré-conceitos essencialmente morais e dogmáticos que
se mantêm implícitos no discurso do filósofo: O princípio da cogitatio universalis; O ideal
do senso comum; O modelo da recognição; O elemento da representação; O negativo do
erro; O privilégio da designação; A modalidade das soluções e O resultado do saber.
Segundo o conceito desenvolvido anos mais tarde junto a Guattari, em Kafka - para uma
literatura menor (1977), podemos sustentar que tais postulados compõem a “filosofia
maior”. Esta se estabelece protuberante às correntes teóricas majoritárias do pensamento
ocidental europeu, podendo ser caracterizada para Deleuze mediante a imagem ortodoxa,
dogmática, pré-filosófica, natural e moral do pensamento.
393
comum. A expressão “todo mundo sabe…”, por exemplo, é utilizada
por Deleuze para demonstrar uma representação geral, ou seja, uma
ideia universalmente reconhecida de que todo mundo pensa, de que
o pensamento é o exercício natural de uma faculdade e de que todo
mundo sabe o que significa pensar. Ocorre que a filosofia reproduz
o discurso do senso comum sob o invólucro de uma representação
objetiva da realidade.
O princípio da Cogitatio natura universalis, por exemplo, é
primeiro postulado identificado por Deleuze que reafirma
justamente essa representação, pois pressupõe a “boa vontade do
pensador” e umanatureza reta do pensamento”, colocando em
vigor os valores morais do bom senso e da retidão. A “boa vontade
do pensador” e a “natureza reta do pensamento” constituem, assim,
os eixos de uma filosofia dogmática, são verdades pré-filosóficas que
alimentam a imagem moral do pensamento.
É nesse sentido que o primado da inteligência constitui, para
o filósofo, um ponto de ligação entre a amizade e a filosofia. A
amizade permite a troca de ideias, o compartilhamento de opiniões
e sentimentos. De modo geral, amigos são como espíritos de boa
vontade que estão de acordo com a significação das coisas, das
palavras e das ideias.
É evidente para Deleuze que pensar não consiste exatamente
em um exercício natural e que a boa vontade daquele que pensa não
é suficiente para fazê-lo refletir filosoficamente, “[...] os homens
pensam raramente e fazem mais sob um choque do que no elã de
um gosto” (DELEUZE, 2006, p. 194). Nesse viés, o argumento de
que pensar seja o exercício natural de uma faculdade, que essa
394
faculdade tenha uma boa natureza e uma boa vontade representa,
em última instância, apenas um ideal retirado do senso comum.
Como dito anteriormente, o verdadeiro começo em filosofia
precisa ser livre de pressupostos, precisa ser “diferença”, que já é em
si “repetição
5
, mas uma repetição autêntica e criadora, que tenha
como ponto de partida não as imagens morais do pensamento e sim
uma ruptura radical dos postulados que elas implicam. Somente a
repetição autêntica é capaz de gerar a singularidade filosófica no
pensamento e este singular não encontra meios de existir senão pela
renúncia da forma da representação e do modelo da recognição.
O termo “recognição” constitui também um dos postulados
da imagem do pensamento na filosofia. Ela é definida, parcialmente,
por instituir um paradigma de ortodoxia do qual a filosofia não
encontra meios de romper o senso comum. Na recognição, somos
prisioneiros da caverna platônica, reencontramos apenas o que é
reconhecível e reconhecido nesse registro.
Conforme atenta Gilles Deleuze, a recognição não pode ser
um modelo para o que significa pensar. É a forma que serve muito
bem ao sistema representacional em manutenção às suas verdades
estabelecidas. Nesse modelo, o pensamento reconhece os valores do
Estado, da igreja e inclusive da instituição pedagógica, opera em
conformidade como se as faculdades pudessem colaborar numa
síntese passiva e concordante do entendimento. A forma da
5
O conceito de repetição tem um significado muito importante na filosofia deleuziana.
Grosso modo, o autor busca pensar uma potência própria de repetição, geradora de
singularidades, diferenças. Mesmo nos hábitos mais genéricos da repetição, existe uma
estrutura mais profunda em que se disfarça e se desloca um diferencial. Este diferencial é o
singular, é o novo que se cria no pensamento (o conceito, no caso da filosofia).
395
recognição é incapaz de conceber a Diferença. Ela sustenta o
protótipo do idêntico, ou seja, a representação de uma identidade
do objeto que será sempre reconhecido e tudo o que escapar à
representação será considerado falso, imperfeito, incorreto
6
.
Com efeito, o modelo da recognição tem suas projeções no
ensino de Filosofia, pois remete a uma ótica similar que é a exigência
da compreensão. Compreender é uma condição imposta ao aluno
cuja finalidade é fixar em seu pensamento um tipo de argumentação
alheia às suas próprias elaborações. Nessa lógica, o ato de perguntar
é destituído de valor, já que é mais básico adaptar-se sempre ao
entendimento de questões prontas e explicadas pelo mestre. O aluno
compreenderá corretamente à medida que seu pensamento se
adequar à identidade do objeto explicado pelo professor.
Reconhecido o conteúdo, ele poderá reproduzi-lo, o que exige que
suas faculdades cognitivas estejam voltadas para a concordância com
o explicado. Assim, seu pensamento estará cercado pelo esquema da
representação.
Por isso, Deleuze defende que a recognição e a compreensão
não servem ao exercício especulativo: “Que é um pensamento que
não faz mal a ninguém, nem àquele que pensa, nem aos outros? [...].
Quem pode acreditar que o destino do pensamento se joga aí e que
pensemos quando reconhecemos?” (DELEUZE, 2006, p. 197-198).
Para o filósofo, não há entendimento sem a necessidade da
6
A diferença, do ponto de vista da Representação, será sempre pensada como um princípio
de comparação, e nunca como diferença em si mesma. Tudo o que pode ser pensado como
diferente obedece, em primeiro lugar, aos parâmetros da identidade, da semelhança, da
analogia ou da oposição. Na acepção de Deleuze, é sempre em relação a uma identidade
concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida
que a diferença se torna objeto de representação (DELEUZE, 2006, p. 201).
396
interpretação e não há interpretação sem a comoção de uma
sensibilidade. A rigor, nossa faculdade intelectiva exerce sua função
somente em situações concretas que a violentam e a exigem na
construção do conhecimento.
O erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de
pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. A filosofia
atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem
perturbam. As ideias formadas pela inteligência pura só
possuindo uma verdade lógica, uma verdade possível, sua
seleção torna-se arbitrária. Elas são gratuitas porque nascidas da
inteligência, que somente lhes confere uma possibilidade, e não
de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria a
autenticidade. As idéias da inteligência só valem por sua
significação explícita, portanto convencional. Um dos temas
em que Proust mais insiste é este: a verdade nunca é o produto
de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência
sobre o pensamento. As significações explícitas e convencionais
nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como
aparece encoberto e implícito num signo exterior (DELEUZE,
2003, p. 15).
É na República de Platão que se encontra parte desse erro, tal
como afirma Deleuze. Conforme Platão, a inteligência é a faculdade
que precede nossos encontros e nossa sensibilidade. De um lado,
Deleuze admite sua proximidade com as ideias de Platão, no ponto
em que é um filósofo a construir uma imagem do pensamento sob
os signos dos encontros e da violência. Platão afirma que há eventos
no mundo que nos impõe o trabalho de pensar e também os que dão
ao pensamento apenas o pretexto de uma aparência de atividade.
397
Estes seriam objetos de uma recognição, onde nossas faculdades se
voltam ao objeto, mas por um exercício contingente e fugidio. De
acordo com Platão, a impressão de um signo sensível ocorre como
um start para que o pensamento complete a aprendizagem com a
inteligência, de modo que somente a inteligência é capaz de sanar as
lacunas que a sensibilidade ignora. A sensibilidade apreende o signo,
a alma (ou a memória) o interpreta, e o pensamento acessa a essência
das coisas, o que realmente importa a ser pensado.
É justamente seguindo Platão que o ensino de filosofia se
estabelece: parte-se do pressuposto de que a inteligência precede
tudo o que pode ser apreendido. A inteligência, em termos
platônicos, é que precede aos encontros, provoca, suscita e os
organiza. Este é o ponto da objeção de Deleuze, que propõe
justamente o contrário: é no acaso dos encontros que a inteligência
é requerida, não no pensamento abstrato que opera por recognição.
Ele pode ocupar-se com os processos da recognição através da
memória e das percepções, mas isso nada tem a ver com o pensar:
Falta-lhes uma garra, que seria a da necessidade absoluta, isto é,
de uma violência original feita ao pensamento, de uma
estranheza, de uma inimizade, a única a tirá-lo de seu estupor
natural ou de sua eterna possibilidade: tanto quanto só há
pensamento involuntário, suscitado, coagido no pensamento,
com mais forte razão é absolutamente necessário que ele nasça,
por arrombamento, do fortuito no mundo (DELEUZE, 2006,
p. 203).
Para Deleuze, não é propriamente a inteligência que nos faz
pensar, tampouco uma harmonia de nossas faculdades, ao contrário,
398
pensamos quando todas nossas faculdades se chocam num esforço
divergente, cada uma sendo colocada frente aos seus próprios limites,
comunicando e recebendo uma violência no seu uso discordante. É
no choque de uma experiência e na força súbita dos afetos que somos
levados a reinstituir no lugar de velhas determinações novas
referências para prosseguir.
O que o verdadeiro filósofo busca não está nas imagens do
pensamento, até porque as imagens não exigem uma busca e sim
reconhecimento, e reconhecer é o contrário do encontro. O
encontro com os signos é o que atravessa o filósofo na busca pela
verdade, os signos são qualquer coisa que o incita, que o viola e
remexe sua compreensão. É da violência com que nos bate um signo,
afirma Deleuze, que faz do pensar um exercício necessário e
inevitável.
A natureza desse encontro intensivo opõe-se a toda
recognição possível. Ela evidencia uma vagueza própria de nossas
faculdades, dando testemunho de uma má natureza e de uma má
vontade que devem ser sacudidas de fora (DELEUZE, 2006, p.
206). Novamente, não somos movidos a experiência do pensar
mediante uma inclinação natural ou por um simples gosto em
refletir. A força dos signos é o que violenta e dá movimento a essa
capacidade.
Conhecer algo é uma ação muito diferente de reconhecer.
Para se conhecer é preciso, obviamente, tomar um caminho
desconhecido e é na intensidade do signo que somos capazes de nos
deslocarmos ao incógnito, gerarmos novas conexões no pensamento,
em suma, aprender.
399
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são
objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato.
Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um
ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados.
Não existe aprendiz que não seja “egiptólogo” de alguma coisa.
Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos
da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da
doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a
signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo
ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos
(DELEUZE, 2003, p. 4)
7
.
Se os signos são objeto de um aprendizado temporal e não
de um saber abstrato, como expressa o autor, a contribuição da teoria
dos signos em Deleuze é muito significativa do ponto de vista
filosófico, pois permite ver que toda a epistemologia tradicional que
7
Proust e os signos (DELEUZE, 2003 [1964]) é o livro em que Gilles Deleuze trabalha a
noção de signo de modo mais expressivo, muito embora não haja em sua filosofia uma
teoria sistemática do signo, nem uma definição unívoca e totalizante desse conceito. Ele
aparece em suas obras, tais como Lógica do Sentido (1969), O Anti-Édipo (1972), escrito
junto à Felix Guattari, entre outras, sob tonalidades diversas e em relação com os conceitos
e problemas respectivos a cada uma delas. Desse modo, a temática dos signos, em Deleuze,
está sempre atrelada à construção de sua filosofia da diferença, por isso, também ele ganha
sentidos diversos àqueles da semiótica clássica. Utilizamos em nossa pesquisa o
desdobramento da noção de signo apresentado em Proust e os signos. Esta obra, enquanto
signo artístico é tomada como objeto de um aprendizado que se dá no tempo. Um tempo,
sinônimo de multiplicidade e devir, que reúne uma tipologia de intensidades através de
encontros fortuitos gerados nas relações sociais, nas experiências sensíveis, na memória, nos
amores tal como mostra o desenvolvimento da ficção proustiana. Cada uma dessas
dimensões emite signos que trazem consigo uma diferença a ser apreendida, numa
temporalidade específica de decifração e interpretação por parte do protagonista. É o
aprendizado do homem de letras (DELEUZE, 2003, p. 3) de Marcel Proust que serve à
interpretação de Deleuze e que se apresenta, na voz do filósofo, como imagem de uma
aprendizagem não representacional.
400
conhecemos está convencionalmente enraizada no pressuposto da
recognição. Isso também permite que visualizemos outras
possibilidades de conceber uma teoria do conhecimento que não
esteja limitada ao cânone racionalista que subordina nossas
experiências de aprender à lógica representacional.
Para Deleuze, a aprendizagem filosófica e o exercício do
pensar estão muito próximos de uma experiência de não
representação ou de uma experiência de criação que não tem a ver
com saberes preestabelecidos, mas com a sensibilidade. A mesma
sensibilidade, que sempre foi vista como menor pelo “tribunal da
Razão”, é que reserva a potência para a criação de imagens ou novos
conceitos. Isso seria pensar diferentemente, esse seria um novo
começo em Filosofia.
Assim, começar a pensar implica aprender verdadeiramente.
Nesse sentido, o ato de aprender filosofia é menos definido por um
conjunto de métodos e objetos que lhe são específicos do que pela
transversalidade de domínios os quais permitem pensar. Entender a
linguagem da filosofia não é o que torna alguém filósofo. Precisa
estar impregnado mais do desconhecido do que do saber.
Entretanto, a aprendizagem a qual nos adaptamos desde o
início de nossa vida escolar é aquela entendida como
instrumentalidade do saber. A esse respeito, Silvio Gallo argumenta:
[...] somos treinados a pensar de determinada maneira. Ou,
para dizer de outra forma: não aprendemos uma imagem do
pensamento, não a experimentamos como novidade absoluta
de nosso próprio pensamento, mas somos treinados para pensar
segundo ela, investindo na recognição e na repetição do mesmo.
401
Somos treinados a pensar por palavras como a possibilidade
única da filosofia e o que fazemos como professores é treinar
nossos alunos para fazerem o mesmo, na melhor das hipóteses
(isto é, quando logramos que eles “aprendam” a filosofia)
(GALLO, 2008, p. 72).
A crítica à recognição e ao modo como a filosofia, inscrita
nos moldes de um sistema representacional, sobrepuja a
potencialidade criadora do próprio pensamento é um dos pontos
fortes da filosofia deleuziana e que ensejou minha busca. Os
conceitos de representação, de recognição, as imagens do
pensamento, de um lado, e os signos como matéria para o
aprendizado, de outro, me auxiliaram a problematizar ainda mais as
relações de aprendizagem.
Rancière, ao escrever sobre a concepção pedagógica de seu
tempo, menciona o principal objetivo da escola: “transmitir
conhecimentos e formar os espíritos, levando-os, segundo uma
progressão ordenada, do simples ao complexo” (RANCIÈRE, 2002,
p. 17). Nesse horizonte, o próprio mestre era quem impunha a
suposta distância entre o saber e o não-entender do aluno. E essa
distância era sempre relacionada a uma falta, a uma ignorância que
deveria ser abolida com a explicação. Era função do mestre,
portanto, retirar o aluno de seu estado de incompreensão e elevá-lo
à luz do conhecimento pelo método explicativo.
Em nosso âmbito educacional, a incompreensão ainda é
considerada uma falta na inteligência, um defeito no intelecto. Não
é permitida ao aluno a largueza do não entendimento, já que não
entender jamais foi considerado um processo natural da
402
aprendizagem, apesar de ser característica intrínseca a essa
experiência. A incompreensão do aluno é sempre considerada um
erro, um desvio do qual o professor acredita ser capaz de suprimir.
A esse respeito, Deleuze aponta outros caminhos. Em uma
aula, nem tudo o que diz o professor convém a todos. Há um
deslocamento constante dos centros de interesse que pulam de um
para outro, e não existe uma lei que diz o que diz respeito a alguém
8
.
O assunto de seu interesse é outra coisa, muitas vezes corresponde a
algo que não compete ao professor determinar ou alcançar.
Sob esse prisma, pude perceber que uma aula interessa muito
mais pelas lacunas que deixa no pensamento, do que pelas respostas,
salvo aquelas que estimulam mais perguntas e desencadeiam
problemas para pensar. Nesse sentido, há uma prudência a ser
tomada pelo professor, pois uma aula é um movimento e nem todos
entram ou acompanham da mesma maneira. Isso porque também
existe uma temporalidade do aprender que não é consequência da
cronologia estabelecida pelos métodos, tarefas ou explicações.
Professores e alunos se encontram em um limite onde se estabelece
tempos, critérios e tendências que podem se cruzar tanto quanto
gerar distâncias irreconciliáveis. Cabe ao professor preparar, ensaiar,
dar vazão aos deslocamentos possíveis.
Todo esse percurso formativo e o interesse ainda latente pelas
questões da aprendizagem e do ensino de Filosofia se deve às
experiências de pensamento oportunizadas pelo grupo ENFILO.
Neste momento, novos perguntas povoam meu horizonte e, apesar
8
Trecho retirado do Vídeo (entrevista) LAbecedaire de Gilles Deleuze, 1988. Verbete “P”,
Professor.
403
de me constituir diferentemente, já que 10 anos se passaram desde a
criação de nosso grupo, alguns problemas permanecem os mesmos.
A exemplo disso, a hipótese da aprendizagem como um
acontecimento na relação entre professor e aluno constitui
atualmente um novo ponto de partida a ser percorrido.
Ao utilizar a noção de acontecimento me baseio
precisamente na reflexão que Deleuze apresenta em Lógica do Sentido
(DELEUZE, 1974 [1969]), em que o termo acontecimento não é
definido por algo que simplesmente acontece (como acidente), mas
é uma singularidade, uma “instância paradoxal” na qual se expressam
os problemas que nos mobilizam, nos cortam e nos marcam como
uma ferida de que é preciso sofrer a dor e depois se recompor nela.
Tal concepção é interessante para mim já que indica a potencialidade
de uma aprendizagem como acontecimento, que remete também à
criação. As feridas deixam um crivo em nosso corpo e pensamento,
de modo que não é mais possível nos recompormos da mesma
forma.
Hoje atuo como professora na rede pública do Estado de
Santa Catarina, no Ensino Médio e na modalidade de Educação de
Jovens e Adultos da cidade de Florianópolis, SC, e os signos do
encontro com o ENFILO ainda reverberam fortemente diante das
angústias e dos prazeres que envolvem ensinar filosofia nas escolas
públicas deste país. Fazer do ensino um espaço para a experiência
filosófica do pensamento continua sendo meu maior desejo e meu
maior desafio, assim como transgredir os mecanismos tradicionais e
condicionantes do pensar.
404
Referências
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Roberto Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
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Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Kafka Por uma literatura
menor. Trad . Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago
Editora LTDA, 1977.
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DELEUZE, G; PARNET, C. Diálogos. Trad. Eloisa Araújo
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GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender. In:
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E CURRÍCULO, UFSC, 2012. Anais [...]. Santa Catarina, 2012.
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Educação Básica. Educação e Filosofia, v. 22, n. 44, Uberlândia, p.
55-78, jul./dez. 2008.
405
GARCIA A. V.; GELAMO, R. P. Repensando o lugar da
representação, da transmissão e da experiência no ensino da
Filosofia. Filosofia e Educação, v. 4, n. 1, abr./set. 2012.
GELAMO, R. P. O ensino de filosofia no limiar da
contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser
professor de filosofia?. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.
_____. O Problema da experiência no Ensino de Filosofia.
Educação & Realidade, v. 31, n. 2, p. 9-26, jul./dez. 2006.
KOHAN, W. O. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar.
Trad. Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2009. (Coleção Ensino de Filosofia).
NASCIMENTO, Roberto D. S. A Teoria dos Signos na filosofia
de Gilles Deleuze: focos de elaboração semiótica em Proust e os
Signos, Lógica do Sentido e O anti-Édipo. Tese (Doutorado em
Filosofia)Unicamp, Campinas, fev. 2012.
PARNET, C. L’Abecedaire de Gilles Deleuze. Entrevista Claire
Pernet. TV ARTE, Paris, 1988 e 1989.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: Cinco lições sobre a
emancipação intelectual. Trad. Lilian do Valle. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.
407
A institucionalização do pensamento e a experimentação
do filosofar: notas de um processo de formação
filosófica
Sara Morais ROSA
1
Antes de qualquer inserção à temática aqui apresentada, é
salutar afirmar que o presente trabalho tem na memória vivida seu
ponto de ancoragem, e na ontologia do presente
2
sua economia.
Nosso movimento de pensamento não busca as luzes da verdade que
nos cegam com estúpida clareza, nosso exercício se faz no olhar
atento para o que em nós há de obscuro. Este obscuro, ao qual
fazemos menção, se delineou em anos de experiência com o ensino
e com a aprendizagem em filosofia, a qual hoje nos exige, num
exercício anacrônico, extemporâneo, pensar um presente já distante,
mas que nos é contemporâneo como diria Agamben (2005).
Atualidade que nos leva a percorrer nossos anos de graduação em
Filosofia até nossas primeiras experiências com o ensino, desde uma
1
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosofia e Ciências, UNESP, Campus de Marília, São Paulo, Brasil.
sara_moraesrosa@hotmail.com
2
Neste sentido nos dirá Foucault: “Existe, porém, na filosofia moderna e contemporânea
outro tipo de interrogação, outro modo crítico de indagação: é justamente o que vemos
nascer na questão da Aufkclärung ou no texto sobre a revolução. Essa outra audição crítica
formula a questão: O que é a nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências
possíveis? Não se trata aí e uma analítica da verdade, trata-se do que se poderia chamar uma
ontologia do presente, uma ontologia de nós mesmos” (FOUCAULT, 1984, p. 268). Por
isso, podemos afirmar, a partir de Foucault, que nossa investigação parte de uma ontologia
de nós mesmos, de um presente no qual estamos implicados.
408
instituição de ensino formal, bem como os espaços informais nos
quais também foi possível experimentar o ensino de filosofia,
percorrendo as relações que levaram a um novo
3
encontro com a
Filosofia.
Ora, se nos propomos a falar de nossa relação com o ensino
de filosofia, acreditamos, neste momento, ser imprescindível trazer,
nas linhas rígidas deste trabalho científico, algo como o contorno
quase impreciso da nossa própria experiência. Todavia vale ressaltar
que não buscamos encontrar a gênese do nascimento do problema
que nos afecta, e sobre o qual trabalhamos ao logo desde anos.
Tampouco, ansiamos demarcar um lugar ao qual ele pertença,
jamais conseguiríamos encontrar rigorosamente seu sopro original.
As diferentes relações de intensidades e afecção que a
experiência com o ensino de filosofia nos proporcionou nos
atravessam em diferentes direções e espaços do tempo. A cronologia
aqui será mera formalidade da escrita, pois a intensidade que os
problemas alcançaram não se fez de modo linear. E ainda que haja
uma linearidade de fatos, a decifração dos signos e nossa entrega aos
afectos não é. A cada novo modo de olhar para o mesmo problema,
uma nova intensidade é sentida, e um novo sentido redescobrimos
acerca do vivido
4
.
Entretanto, se para dissertar é preciso escolher um começo,
partamos de nossas primeiras relações com a experiência do filosofar,
as quais encontraram nas salas de aula da Faculdade de Filosofia e
Ciências do Campos da UNESP de Marília (FFC) um lugar
3
Falamos novo, pois já havíamos nos encontrado com a filosofia enquanto estudando o
ensino médio, e posteriormente como estudante na graduação.
4
Por isso, ousamos dizer que este trabalho não encontra neste texto um final.
409
emergencial
5
. Em 2008, recém chegados ao curso de filosofia,
vivíamos cada aula como um acontecimento novo e inquietante.
Talvez pelo devir de um pensamento ainda imaturo, pela entrega a
cada texto e leitura filosófica, ou pelo primeiro olhar tão apaixonado
pela amante, Filosofia, tudo aquilo que vivíamos, e que nos dava a
pensar, nós o experimentávamos como afecção, como problema a
lançar-nos numa busca continua pelo saber filosófico.
6
Não tardamos a perceber que toda essa efervescência dos
signos amorosos, já nos semestres seguintes, parecia se diluir. O
pensamento, antes inquieto, determinado e tantas vezes afoito,
parecia não ser necessário naquele contexto. Antes um raciocínio
rápido, e uma memória vasta pareciam nos servir melhor. Quanto
aos problemas excitantes que nos eram apresentados em nossas aulas,
aos poucos compreendíamos que não nos cabia pensar sobre eles,
mas sim revisitá-los, munidos de douto entendimento, no lugar
ilustre que a inerte vitrine da história da filosofia lhes concedera.
Neste interim, as aulas começavam e terminavam, as
disciplinas findavam-se atestando-nos que os problemas que antes
nos afetavam, as questões que nos violentavam, eram, no limite de
nossa compreensão, apenas falhas rudimentares, como equívocos
interpretativos ou mesmo o resultado de uma insuficiência teórica,
e não uma questão legítima de âmbito filosófico. Neste contexto, a
5
Emergencial aqui tem dois sentidos. O primeiro é o de urgência no pensamento em dar
conta daquilo que nos afetava e, em outro sentido, aquilo que emergia nas relações em que
nossos afetos eram movidos a nos insurgir no pensamento.
6
Para Deleuze o signo é o objeto de um encontro, o início de um processo de
aprendizagem, intensidade que, ao nos atravessar, nos força a pensar e buscar por um
sentido. Há na obra de Deleuze uma pluralidade de signos. Por ora, podemos já afirmar
que, neste primeiro momento, éramos movidos pelos os signos amorosos que nos afectavam
com toda força de um amor que sempre insondável sempre nos esconde algo.
410
dúvida não era o início de uma caminhada pelo pensamento
filosófico, e sim sinônimo de uma falta, uma falha que poderia ser
facilmente corrigida por nosso professor e sua leitura sobre
determinado autor.
Com o tempo, tornou-se um ato de sensatez acreditar que,
no contexto acadêmico, o ensino de filosofia tinha outra finalidade,
que não a promoção de um pensar filosófico, mas da apropriação
adequada do conteúdo da Filosofia. Afinal, o fazer Filosofia, o pensar
filosófico era o ofício dos grandes pensadores, dos renomados
filósofos, e não dos mestres e doutores da área, quiçá de estudantes
da graduação que, no limite, poderiam ser um dia historiadores ou
comentadores. Aquela mesma sala de aula que nos proporcionava
inquietudes, a essa altura havia se tornado solo infértil. Não éramos
s que deveríamos arar a terra do pensamento e dar condições de
crescimento aos problemas que brotavam frágeis, o ofício que
deveríamos dominar era o de colher com apreço os frutos já maduros
da árvore da tradição. Nesse interim, tratamos logo de nos
aquietarmos e contentarmo-nos com este modo de viver a filosofia.
Aspirar ser um dia um comentador de uma grande obra filosófica já
seria uma grande pretensão! Ora, já seria uma grande conquista sair
da universidade como versados leitores.
O Ensino da Filosofia praticado nestes termos recebe notória
crítica na obra Rancière (2007), o qual o destaca como um modelo
de ensino consciencioso, que se exerce sobre o paradigma da
transmissão conteudista. Por isso, dirá Rancière (2007, p. 11): “Em
suma, o ato essencial do mestre era de explicar, de destacar os
elementos simples dos conhecimentos e de conferir sua simplicidade
de princípio com a simplicidade de fato que caracteriza os espíritos
411
jovens e ignorantes”. Desse modo, o ensino consciencioso concebe
como ensino o próprio processo de transmissão de conteúdos e a
compreensão das representações dadas como aprendizagem.
Seguindo a marcha da explicação, a razão explicadora do
mestre é a única capaz de retirar da inércia a inteligência do aluno e
garantir-lhe a instrução, a partir da compreensão adequada das
representações verdadeiras que apenas o mestre pode acessar e
transmitir-lhes. Esta lógica explicativa se legitima ao subtrair da
relação de ensino e de aprendizagem o contato direto da inteligência
do aluno com objeto do conhecimento, ou seja, ao invés do aluno
estabelecer uma relação singular com o próprio objeto a ser
conhecido, ele terá que conformar sua inteligência a um processo de
assimilação das representações que o professor irá transmitir sobre
determinado objeto em um processo de adequação de seu
pensamento ao pensamento que o professor transmitiu como
filosófico Neste sentido, a aprendizagem do aluno permanece atada
a um esforço de assimilação no qual ele reconhece o objeto sem que
antes o tenha conhecido. Esta denúncia rancièriana circunscreve o
processo da explicação no registro de uma projeção pedagógica
fictícia, a qual fomos submetidos em nossa formação em filosofia,
assim como são tantos outros aprendizes nas mais diversas
instituições de ensino do país.
Todavia dois momentos divergentes devolveram a nossa
caminhada acadêmica um respiro filosófico por tantas vezes
sufocado, os quais nos lançaram no seio de uma problemática ainda
maior. Nosso encontro com Antônio Trajano é o primeiro deles.
412
Antônio Trajano Menezes Arruda
7
, mestre renomado e com grande
prestígio na academia, dono de uma sabedora invejável, lecionou
como poucos, era atento às demandas dos estudantes e possuía uma
relação singular com eles, se mantinha próximo, presente,
característica que mais nos marcou nestes anos de convívio.
Professor da Unesp desde 1975, lecionou diversas disciplinas como
Introdução à Filosofia, Lógica, Filosofia da Linguagem, Teoria do
Conhecimento, Filosofia Geral, Problemas Metafísicos e, em
especial, trouxe ao curso de filosofia a modalidade de Turoria
8
,
marca que singularizava o curso no país, tendo como um dos
objetivos recuperar o relacionamento entre o mestre e o aluno.
Em nossa primeira aula de Tutoria, ou seria maias
apropriado dizer encontro, a postura de nosso tutor já se destacava
ao nosso olhar. Individualmente ele nos recebia em sua sala para dar,
como ele mesmo diz, “uma atenção personalizada para um aluno,
sem ter pressa de despachá-lo” (MORAES; GIROTTI, 2013, p. 12).
Ao nos apresentar teses filosóficas, sugeria-nos que dissertássemos a
respeito e, ensinando os caminhos da argumentação filosófica,
orientava-nos a deixar nosso pensamento se exercitar. Teorias
filosóficas, teses, axiomas e a tradição historiográfica não eram o
ponto de chegada, tampouco o de partida. A construção de nossa
própria relação com o tema/problema é que era. Por isso, nos pedia
7
Trajano, era Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1969), Mestre em
Filosofia pela Universidade de São Paulo (1978) e Doutor em Filosofia pela University of
Oxford (1985). Atuou como Assistente Doutor na Universidade Estadual Paulista Júlio
Mesquita Filho. Como áreas de experiência destacam-se Filosofia, com ênfase em Ética,
atuando principalmente nos seguintes temas: auto-engano, ética, filosofia da mente,
ciências cognitivas, educação e filosofia, e epistemologia.
8
Acontecimento que data 1990, tendo por inspiração a seu doutorado em Oxford, ele
também e recebeu o incentivo de outros professores, como Maria Eunice Quilice Gonzales.
413
para, num primeiro momento, deixarmos os filósofos de lado de tal
modo a termos de nos relacionar com o problema e sua intensidade.
Nosso tutor parecia ter claro seu objetivo, a saber, dar
condições para que nosso pensamento se ensaiasse com liberdade,
sem estar refém do pensamento ou as autoridades de um filósofo
reconhecido. Para tanto, ensinava-nos a dar densidade e força aos
conceitos que esboçávamos frágeis, para que, então, na economia de
nossas argumentações pudéssemos defender as mais diversas teses, as
quais muitas vezes ele mesmo nos desafiava a escrever. Começamos
ali a afirmar, em nossas primeiras linhas, a possibilidade real de
encontrar na academia um novo modo de trabalhar nosso
pensamento. Sentíamo-nos, realmente, aprendizes de filósofo.
Os 50 minutos de encontro era pouco tempo para a
densidade das discussões que naquela ocasião brotavam.
Trabalhávamos a escrita argumentativa, os problemas filosóficos, a
criação de conceitos, mas, principalmente, um novo tipo de relação
entre aquele que aprende e aquele que ensina. Trajano não tinha por
ofício ser um professor explicador
9
, tampouco se colocava como um
transmissor da hisria da Filosofia, não mediava nossa relação com
9
Como já dissemos anteriormente, em grande parte dos modelos e sistemas de ensino está
presente um paradigma pouco contestado que subsidia a modalidade do ensino como
transmissão, a saber, a crença na necessidade de explicações. Neste sentido, somos
costumeiramente levados por este controverso pressuposto a inferir que a tarefa do professor
consista, então, em transmitir aos seus alunos os conhecimentos que ele possui, seguindo,
para tanto, uma didática de ordem explicadora. Todavia, dirá Rancière (2007, p. 24) que
“Explicar alguma coisa a alguém é, antes de tudo, demonstrar-lhe que não pode
compreendê-la por si só”. Segue-se disto que a relação direta do pensamento do estudante
com o conhecimento acerca do objeto filosófico é transpassada pelas representações de uma
autoridade superior como a do professor, assim, a inteligência do aluno permanece
condicionado a mediação de seu professor, sem que consigo por si mesma experimentar
uma relação singular com o que se aprende.
414
um pensar filosófico, apenas se preocupava em despertar no
pensamento o seu exército genuíno e levá-lo ao encontro de suas
consequências.
O convite a pensar sempre partia de realidade, e não dos
livros, de um problema, e não da história. Por isso, para cada
problema potencialmente filosófico, havia um grande esforço em
torná-lo denso o suficiente para que não fosse silenciado por um
olhar para a historiografia, mas para que sua realidade vociferasse
para fora daquela pequena sala no departamento de filosofia da
Unesp. Por fim, saímos exaustos de cada encontro, inundados de
problemas, ansiosos por pensá-los uma vez mais na companhia deste
que, para nós, era um reflexo nítido de um filósofo brasileiro.
Esta experiência de pensamento sob a guia do Professor
Trajano durou um ano, com sorte cursamos Tutoria I e Tutoria II
na presença viva de seu ilustre pensamento. Tempo esse suficiente
para marcar profundamente nosso modo de nos relacionar com a
Filosofia e perceber que, para além da Historiografia e do
comentário filosófico
10
, os quais têm seus lugares salutares e de
grande importância na formação filosófica, poderíamos nos atrever
a ser aprendizes de filósofo e a pensar filosoficamente.
10
Queremos com isso deixar claro que compreendemos a importância dessas vertentes para
a formação em Filosofia no País. Contudo acreditamos como Trajano que a:Por essa
razão, o ensino de Filosofia na Graduação deveria ser tripartidário. Não pode ser só filósofos
formando os alunos. Em geral, filósofos não tem formação boa para ensinar a História da
Filosofia; eles ensinariam, ao contrário, Ética, Filosofia Política, Filosofia da Linguagem.
[...]. Mas o departamento de Filosofia deve ter, de preferência, profissionais nas três áreas,
que atuem no sentido de ensinar e formar comentadores, historiadores e filósofos”
(MORAES; GIROTTI, 2013, p. 13).
415
Este acontecimento nos perseguiu deste então. Entretanto,
muito abafado pelo modo diametralmente oposto de estudar as
demais disciplinas do curso, todas historiográficas, a lembrança dessa
experiência já meio amortizada permaneceu no decorrer dos anos
como uma quimera.
Anos depois, em 2010, quando convidados a participar do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID/CAPES)
11
. Dessa vez, ocuparíamos lugares inicialmente
ambivalentes, mas doravante complementares, o lugar do aprendiz
11
As pesquisas que resultaram deste projeto podem ser encontradas nas seguintes
publicações: resumos expandidos publicados em anais de congressos; ROSA, M. Sara;
Oliveira, M. Jeuséte; Ambivalências na Proposta Curricular do Estado de São Paulo para a
Filosofia no Ensino Médio; In: 9ª Jornada do Núcleo de Ensino de Marília - ensino e
aprendizagem como processos humanizadores: propostas da teoria histórico-cultural para a
educação básica, 2010, Marília. Coletânea de textos da 9ª Jornada do Núcleo de Ensino de
Marília, 2010; ROSA, M. Sara; GARCIA, V. Amanda; OLIVEIRA, M. Jeuséte; PESSOA,
B. C. Kátia; AZEVEDO, R. K. Laura; SALVADORI, T. Theo; SILVA, D. Éliton;
SANTOS, S. Genivaldo; SILVA, P. Vandeí; GELAMO, P. Rodrigo; Os limites do ensino
de Filosofia: análise do material do programa São Paulo Faz Escola. In: II Encontro dos
Núcleos de Ensino e I Encontro PIBID, 2010, Águas de Lindóia - SP. Anais do II Encontro
dos Núcleos de Ensino e I Encontro PIBID, 2010. Trabalhos apresentados com resumos
publicados e anais de congressos: ROSA, M. Sara; Algumas considerações sobre o Ensino
de Filosofia: uma abordagem rancièriana. In: 6º Encontro de Pesquisa na Graduação em
Filosofia; UNESP, 2011, Marília (SP). Caderno de resumos do 6º Encontro de Pesquisa
na Graduação em Filosofia da UNESP, 2011; ROSA, M. Sara; A (im) possibilidade do
Ensino de Filosofia no Programa São Paulo faz Escola. In: Simpósio Douta Ignorância
2011- Que Filosofia na Escola?; Universidade de Brasília, Brasília DF; Anais Simpósio
Douta Ignorância 2011- Que Filosofia na Escola? Pg.36; 2001; ROSA, Sara Morais da.
Ensino de filosofia em espaços formais: à procura de um ensino não representacional. In:
7º Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia; UNESP, 2012, Marília (SP). Caderno
de resumos do 7º Encontro de Pesquisa na Graduação em Filosofia da UNESP, 2012.
Resumo expandido com previsão para publicação como trabalho completo: ROSA, M.
Sara; O Problema da Lógica explicadora no Ensino de Filosofia. In: I Colóquio Nacional
do Ensino de Filosofia: o que queremos com o filosofar na Educação Básica? (I CONEF)
e III Encontro do GT: Filosofar e Ensinar a Filosofar da ANPOF; Faculdade de Educação
da Universidade Federal da Bahia, Salvador (BA); 2011.
416
da graduação em Filosofia e o lugar do professor de Filosofia da rede
Ensino Fundamental do nosso Estado.
Neste Programa, articulamos o projeto “Os Limites do
Ensino da Filosofia no Programa São Paulo faz Escola” com o
objetivo de investigar as implicações do material didático de apoio
ao professor e aos estudantes, oferecido pelo Programa São Paulo
Faz Escola, para o ensino de filosofia. Fomos levados por esta
experiência a entrever, nas sendas do ensino da filosofia, a
emergência de tensões e problemas que, para além de uma dimensão
pedagógica, configuram-se repleto de questões filosóficas, as quais
nos mobilizaram e forçaram a reconhecer os limites e os entraves que
as práticas, os espaços e as diretrizes acerca da formação filosófica
deixaram como legado para a relação entre o ensino e aprendizagem
em filosofia, e para o pensamento filosófico desde a instituição.
Inicialmente, as limitações didáticas encontradas em sala de
aula nos causaram grande estranhamento, bem como o lugar
majoritário que estas questões assumiam no espaço escolar. Em
meio às disputas entre práticas de ensino mais efetivas e métodos
didáticos adequados ao plano estabelecido pela escola, notamos que
as problematizações filosóficas acerca do ensino eram
pormenorizadas, quando não silenciadas por um ideário pedagógico
dogmatizante. As questões concernentes à indisciplina, atividades
avaliativas, quantidade de conteúdos transmitidos, aquisição de
habilidades e competência pré-determinadas, pareciam ser as pautas
mais urgente e realmente dignas de atenção da instituição
educacional.
Contudo, ainda que ajustássemos nossa atuação docente à
resolução destas demandas práticas e didáticas, a dúvida sobre o que
417
estávamos a fazer quando ensinávamos a filosofia se mantinha.
Questão sobre a qual pouco se discutia institucionalmente, tendo
em vista a total confiança docente em um tipo de “didática magna”,
a suportar a todo e qualquer ensino, para todo e qualquer sujeito.
Ora, não havia porque ser diferente em filosofia.
Por isso, a despeito da singularidade que cada disciplina
abarca, de seus objetos de estudos, de suas diferentes metodologias e
abordagens, o “modus operandi” de um professor que pretenda
ensinar deveria se fazer o mesmo: transmitir seu saber. A premissa
por traz desta crença era simples, ensinar é transmitir um saber, e
aprender é compreender o saber transmitido.
A constante afirmação de um ensino como transmissão de
saberes se fazia ao modo de um senso comum, como se este modelo
de ensino já estivesse pressuposto no ato próprio de ensinar. Tão
forte se fazia esse paradigma que não havia no ambiente das
instituições de ensino sequer o lugar para estes questionamentos:
como se ensina?; ou como se ensina a filosofia? Algo muito parecido
com o modo de ensino ao qual estávamos submetidos na própria
graduação.
Logo que assumimos nossas aulas, passamos a reproduzir o
mesmo comportamento de nossos professores de graduação, ao
molde de um ensino consciencioso. Todavia, tão logo, notamos que
os efeitos de um ensino como transmissão de conteúdos se
mostravam demasiado distantes daquilo que almejávamos promover
com a Filosofia na vida daqueles estudantes. A necessidade de
cumprir o currículo, a reprodução irrefletida e historicizada de
conteúdos, a transmissão em ritmo de produção, pareciam furtar o
tempo e a ambiência de nova relação com o pensamento e com o
418
filosofar. A transmissão da filosofia teve de ser reduzida à
compreensão objetiva de enunciados filosóficos, que, quando muito,
atuavam a favor da constituição de recortes sobre os temas e as
formas de pensamento presentes na história da filosofia.
Aos poucos, ficou claro que este modelo de ensino, muito
similar ao que vivíamos na academia, restringia a experiência do
aprender a uma relação puramente abstrata com o objeto filosófico.
Ao final desta experiência ensino/transmissão da filosofia havíamos
cumprido nosso plano didático pedagógico, ora o conteúdo
programático havia sido apresentado, as explicações se mostraram
eficazes no momento avaliativo
12
, visto o rendimento satisfatórios de
nossos alunos, mas, para além dos conteúdos historicizados que eles
aprenderam a reproduzir, não havia muito mais que a compreensão
formal de um conteúdo.
Mas onde estaria a reflexão particular, a experiência subjetiva
com a filosofia? Estas questões, neste momento, pareciam distantes,
até mesmo menos importantes a que apropriação de saberes
filosóficos. Ao final, não fazíamos nada além do que nossos
professores propuseram na graduação, não ensinávamos a criar, mas
a reproduzir, não promovíamos o ato de conhecer, e sim o
reconhecer.
Nosso ofício enquanto professores de filosofia jazia refém
do nosso próprio currículo. A burocratização da instituição de
ensino, a esta altura, deixara os documentos e diretrizes pedagógicas
para tomar o lugar das relações subjetivas da aprendizagem. Esta
12
Em atividades avaliativas os alunos se preocupavam estritamente em reproduzir
exatamente o que o professor havia dito em suas explicações, raramente alguém ensaiava
seu próprio pensamento.
419
experiência como aprendizes de docentes no ensino formal
possibilitou-nos conhecer e vivenciar os processos de ensino no
ambiente escolar e perceber que, dadas as devidas diferenças no
conteúdo, o modo consciencioso de ensinar filosofia está presente
nos mais diferentes graus de ensino. Em outras palavras, desde que
esteja presente em uma instituição de ensino formal, a transmissão,
a memorização e a recognição dos saberes filosóficos são,
majoritariamente, procedimentos supervalorizados em detrimento
da experiência do pensar.
Diante de tantas descobertas, angústias e inquietações que
esta experiencia com o ensino da filosofia nos trouxera, tornou-se
imperativo investigar o que estávamos a fazer quando ensinávamos
a filosofia, e como poderíamos promover uma aprendizagem
filosófica neste contexto. Para pensar este problema, e tantos outros
que afetavam nossos companheiros de projeto, houve a necessidade
de criarmos um grupo de estudos, um lugar de partilha, de
aprimoramento dos nossos conhecimentos, de investigação e
pesquisa, mas sobretudo um lugar para experimentarmos outro
modo de nos relacionarmos com a Filosofia e com os problemas que
naquele momento nos afetavam com tanta violência.
Este foi nosso segundo momento de respiro filosófico ao
longo de nossa formação acadêmica, o qual nos acompanhou para
além dela. Nestas circunstâncias, sob o olhar atento de nosso
orientador Rodrigo Pelloso Gelamo
13
, nasceu o Grupo de Estudo e
13
Rodrigo Pelloso Gelamo possui Licenciatura em Filosofia pela Universidade do Sagrado
Coração (1999), mestrado em Filosofia (2003) e doutorado em Educação (2009) pela
UNESP/Marília. Atualmente é professor do departamento de Didática e do Programa de Pós-
graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP/Marília. Seu interesse
420
Pesquisa sobre o Ensino de filosofia (ENFILO). Composto
inicialmente pelos estudantes de filosofia da Faculdade de Filosofia
e Ciências da UNESP de Marília, cujas pesquisas se relacionavam
com o ensino da filosofia, tantos os integrantes do PIBID, quanto
os bolsistas da Programa de Extensão, encontravam neste ambiente
um espaço de acolhimento de suas próprias questões e
problemáticas.
Vale ressaltar que, até este momento, não havia na Unesp
campus de Marília, nenhuma disciplina que se dispusesse a pensar
as questões do ensino da filosofia. Esta temática costumava ser
atribuída às disciplinas didáticas/pedagógicas, sendo assim,
transferida a outros departamentos que não o de Filosofia. Ora, este
cenário já nos permitia entrever algo que acontecia em diversas
outras Graduações em Filosofia: o olhar desatento dos próprios
professores de Filosofia face ao seu ofício, marca profunda da
incapacidade de reconhecer este campo como um problema
filosófico. Negligenciada por décadas, esta problemática precisou de
muita pesquisa, e muita luta para conquistar seu espaço nos
departamentos de Filosofia de todo país, e com a Unesp campus
Marília não foi diferente.
Todavia, foi no ENFILO, que o ensino de filosofia na Unesp
Campus de Marília, encontrou um solo fértil para suas questões.
Enquanto espaço de promoção de saber, não dispensávamos a
literatura filosófica, e nos dedicávamos a compreender como a
tradição da filosofia tratara até aqui as questões que orbitam as
relações com o ensino da filosofia. Porém, fundamentalmente,
de pesquisa está relacionado à problemática filosófica do ensino, especialmente do ensino da
Filosofia.
421
enquanto espaço formativo de aprendizes de filósofos, ele
extrapolava os conteúdos e o tratamento historicizado da temática,
permitindo-nos habitar um ambiente de criação tanto de nossos
problemas, quanto novos conceitos.
A esta altura nossas pesquisas e discussões evidenciavam que
a estrutura institucionalizada do ensino da filosofia, na qual se
impõem a disciplinarização do aprender, a transmissão conteudista,
o reprodutivismo como técnica avaliativa, tudo em meio a uma
temporalidade
14
predeterminada para sua execução, eram as
principais limitações para a experiência de pensamento filosófica do
aprendiz. Premissa que nos instigou procurar, para além destas
condicionantes, quais as possibilidades do ensino de filosofia fora das
diretrizes e normatizações que regulamentas as instituições de
ensino. Quais diferenças poderiam emergir em nossa relação com o
ensino e com a aprendizagem filosófica se nos dispuséssemos a
habitar um espaço desprovido dos compromissos formais e do todo
consensual ideário pedagógico? Esta foi a questão que nos tomou de
assalto e que no ENFILO ganhou maior densidade, transformando-
se em um novo projeto de pesquisa a dar continuidade em nossas
pesquisas sobre ensino e aprendizagem em filosofia, buscando uma
experiência inédita com o ensino, com a aprendizagem, com o
filosofar.
A fim de dar uma resposta a estas questões, criamos, em
2012, por intermédio do ENFILO, uma nova vertente do projeto
14
Nesse caso, para que o aluno tenha contato com a gama de conteúdos prescritos pelo
currículo educacional, exige-se um domínio da temporalidade da aprendizagem, ou seja,
controla-se o tempo da experiência, fundamental ao aprender filosófico, em virtude da
demanda de informações a serem transmitidas.
422
de extensão: “Ensino de filosofia em espaços não formais
15
. O
objetivo era deslocar os lugares fixos e seguros nos quais o ensino
institucionalizado se alicerça, bem como oferecer aos seus
participantes um espaço no qual o pensar pudesse emergir em toda
sua potência de criação, sem a determinação prévia de habilidades e
competências a se promover antes mesmo da experiência do pensar.
Almejávamos promover um espaço livre do currículo e da
burocratização do conhecimento, ansiávamos nos dedicar à prática
do pensar e à promoção de um novo modo de pensar a filosofia. Para
tanto, convidamos alguns jovens (assistidos por uma instituição
socioeducativa do Estado de São Paulo) a compor, com quatro
estudantes do curso de graduação em filosofia, um espaço que
pudesse transbordar as relações normativas e institucionalizadas nas
quais a filosofia está imersa.
Contudo, abrir-nos a esta nova forma de ensino, que não
reproduz os papeis da instituição, mas que resiste a ela, como lugar
de possibilidade à emergência do pensamento, foi o grande desafio.
15
Para fugir desse registro que circunscreve o modo como devemos nos relacionar com o
ensino e com aprendizagem da filosofia é que decidimos criar este projeto. Para a realização
deste projeto, enviamos a proposta a uma instituição socioeducativa de semiliberdade em
nosso município, a fim de convidar os jovens em cumprimento de medida judicial a realizar
conosco encontros semanais, que poderiam ocorrer em diferentes espaços desde que
marcados por relações desinstitucionalizadas e não formais. Tendo sido aprovado pela
diretoria da instituição, fizemos o convite aos adolescentes que se encontravam em regime
de internação. Convidá-los pareceu-nos mais do que justo, já que a participação deles não
seria demarcada por uma obrigatoriedade institucional, mas por um livre desejo de
participação. Este projeto só faria sentido se pensado, construído e executado com e por
estes jovens e não para eles. Não queríamos levar a eles algo que uma equipe gestora havia
decidido em suas reuniões de coordenação, imaginando qual seria a melhor forma de
encaminhar questões, de escolher temas etc., mas, ao contrário, pensar em conjunto todas
as atividades e tematizações nelas realizadas. Nove jovens atenderam ao convite e passaram
a integrar as atividades do projeto.
423
Ora, era necessário, para o êxito do projeto que nós também
conseguíssemos atuar em outro modus operandi, deslocando os
lugares de professor, de alunos, os regimes de verdade, a tradição.
Para assim, nos despir da rigidez didática e de tantas outras
normatizações que regem o ensino, e assim vislumbrarmos apenas os
problemas filosóficos em toda sua intensidade, sem assumir o lugar
de mediador entre o conhecimento filosófico, e os demais
participantes.
Em nossos encontros, as reflexões tinham sua origem na
partilha de experiências singulares, ora trazidas pelos participantes,
ora por nós. Aquilo que de algum modo parecia guiar nossa afecção
era o que ganhava densidade. Os problemas da história da filosofia
não eram predispostos em nossos encontros, nossas problemáticas
emergiam de acontecimentos reais, e não de um decalque hipotético
sobre a realidade das nossas vivências. Refletir sobre nós mesmos,
sobre o nosso presente e aquilo que nele nos inquietava era o que
nos movia e nos fazia tratar com seriedade nossas questões, bem
como a profusão de pensamentos e saberes que a partilha em grupo
nos permitia alcançar. Assim procuramos caminhar e decifrar o
sentido que estes problemas permitiam revelar.
Entretanto, tão logo percorremos estes novos meios de nos
relacionar com o ensino da filosofia, com a aprendizagem filosófica
e com a experimentação do pensar, ora nós, ora nossos interlocutores
solicitavam continuamente, nestes encontros, a necessidade de
buscar no referencial filosófico da tradição, não uma nova
possibilidade ao pensar, mas sim o valor de verdade do pensamento
que ali emergia. Era nítido que havia sempre nesta relação, uma certa
relutância ao livre pensar, como se algo nos escapasse sempre e nos
424
colocasse como devedores. A todo momento, os papeis
conscienciosos de professor e de aluno eram reivindicados, evocando
como urgente o arcabouço historiográfico da Filosofia para assegurar
a possibilidade da expressão, e a autoridade do Filósofo/Mestre para
legitimar o saber supostamente adquirido, para então, somente
então, atestar se havíamos de fato filosofado nestas circunstâncias.
Ora, a resposta para a questão se, de fato, havíamos
filosofado, muitas vezes, nos soava negativa. Mas, tantas outras vezes,
poderíamos dizer um sonoro sim. Todavia, cada ensaio de
pensamento emergente que pudesse diferenciar-se do referencial da
tradição, em um movimento inconsciente, julgávamos como um
pensamento frágil e pouco sustentável, por assim dizer, pouco
filosófico. Assim, caminhamos sempre buscando resistir, mas,
muitas vezes, nos rendendo à sombra de uma imagem do pensar
filosófico que nos cegava diante das intensidades que se disparavam
do interior daquela experiência desafiadora.
Tanto para os participantes convidados, como para nós que
promovíamos este projeto a convivência com dúvida era constante,
estava presente nos discursos a expressão certa tibieza com relação
àquela experiência, seria ela realmente filosófica? Não obstante,
acreditávamos todos que apenas a autoridade de um filósofo poderia
nos dar essa garantia, por isso recorríamos a todo momento ou
história da filosofia, ou ao próprio filósofo, seu comentador, um
professor, um livro didático, algo que validasse e que atestasse que
naquele movimento do pensar, estávamos a fazer a mesma
experiência que faz um filósofo em seu ofício, pensar
filosoficamente.
425
Tal necessidade nos evidenciou que daquilo que projetamos,
para aquilo que experimentamos de fato, pouco havíamos nos
distanciado das relações permitidas pela Filosofia de cunho
institucionalizada, pois apenas acreditávamos ter filosofado quando
reproduzíamos um conteúdo filosófico já instituído. Tão logo, ao
término de nosso projeto, qual não foi nossa surpresa ao descobrir
que estávamos do lado de fora das instituições, mas que o processo
da institucionalização já estava dentro, no interior do nosso
pensamento.
Embora nos fosse imperativo procurar lugares de resistência
ao pensamento, e de pura experimentação, este acontecimento
vivido com a filosofia em ambiente não formal, mas que permaneceu
institucionalizado nas relações, marcara a nossa impossibilidade de
fugir à presença de um referente, de uma representação adequada
àquilo que a instituição escolar, e a acadêmica estabeleceram como
padrão ao modo de filosofar. Em outras palavras, a incapacidade de
nos livrarmos da necessidade de uma designação verdadeira a
legitimar e confirmar se de fato pensávamos, quando estávamos a
pensar.
Embora estes acontecimentos ressoem inatuais, apenas no
tempo presente conseguirmos delinear neste platô as intensidades
que nos atingiram para assim estar à altura destes acontecimentos.
Por isso, os trazemos aqui como tensionamentos, como pontos de
irrupção da experiência vivida, sob a forma de um acontecimento
singular, e que mais adiante poderá se atualizar na forma de
problematização geral. Desde a graduação, nossa problemática face
a relação entre pensamento filosófico, ensino e aprendizagem já se
desenhavam em diferentes nuances, sempre a perseguir nossas
426
pesquisas tangenciando nossas investigações, bem como nossas
vivências, ora dentro da academia, ora na prática escolar.
Se operarmos um retorno ao início de nossa narrativa
veremos que há dois momentos que se destacam ao longo de nossa
formação, ambos dentro da instituição, mas que operam de modo
contrário ao processo que majoritariamente nos formou. Tanto o
espaço de ensino da disciplina Tutoria, tanto quando o ambiente de
estudo do ENFILO, apresentavam-se como espaços formativos
dentro da instituição de ensino, porém ofereciam-nos experiencias
que extrapolavam o contexto do ensino consciencioso, ao modo
crítico como Rancière (2007) o concebe, da aprendizagem
meramente reprodutivista, bem como da relação abstrata com o
pensamento filosófico, propondo-nos atuar como aprendizes de
filósofos e não apenas aprendizes da Filosofia, buscando criar novos
sentidos e não compreender apenas as designações e significações
atestadas como verdadeiras pela tradição historiográfica da Filosofia.
Nesta perspectiva, nosso problema passou a se desenhar sobre os
seguintes contornos: o que acontecia nestes lugares onde a relação
com o pensamento filosófico ultrapassava a instituição e nos lançava
em uma experiência singular com o filosofar?
Se pudermos aqui, com ousadia, ensaiar uma resposta,
acreditamos que esta se situe na relação entre a desinstitucionalização
da experiência de pensamento filosófica, e na promoção de uma
relação direta entre o aprendiz com os próprios problemas/signos.
Ainda que o termo desinstitucionalização não esteja presente na obra
de Deleuze, vamos neste momento nos servir de seu pensamento
para dar à esta noção as condições possíveis.
427
Para Deleuze, o sujeito elabora meios artificiais para a
satisfação de suas tendências, como uma forma organizada de sanar
seus instintos surge a instituição. Sendo assim, a instituição atua
sempre por intermédio de um sistema organizado de meios e
modelos positivos de ação. Dirá Deleuze (2004, p. 19):
Toda instituição impõe ao nosso corpo, mesmo em suas
estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dão à nossa
inteligência um saber, uma possibilidade de prever e de
projetar. Reencontramos a seguinte conclusão: o homem não
tem instintos, ele faz instituições.
Cumpre ressaltar neste momento, que não encontremos na
filosofia da diferença uma preocupação expressa acerca do que
chamamos de institucionalização
16
no pensamento, todavia há nas
obras de Deleuze noções e conceitos que, de algum modo, podem
ser pensados em esferas diferentes das originárias, a partir das quais
podemos extrapolar as significações dadas. Isto se faz possível uma
vez que, o procedimento adotado aqui não se encerra em um modo
pensar sobre as verificações e os critérios de valor das proposições e
noções deleuzianas. Mas antes, trata-se de um pensar com este
mesmo autor, os problemas que nos afetam, empenhando-nos em
articular seu pensamento diferencial, e o que ele nos dá a pensar,
16
Nosso problema não devém de uma investigação estrutural e literal do conceito de
institucionalização, dentro da obra deste autor, seria despropositada. O que nos interessa,
sobremaneira, nesta pesquisa é pensar com Deleuze um novo olhar sobre a estas relações
bem como, de que modo através dos conceitos expressos podemos encontrar um lugar
profícuo para a emergência de outro modo de pensar, que se abra à criação de novos
conceitos.
428
com outros domínios que não foram necessariamente propostos em
seu conjunto de obras.
Posto isto, nos é possível partirmos da sua noção de
instituição, como atividade constitutiva de modelos dos quais não
somos conscientes, e chegarmos à noção de institucionalização do
pensamento, como um processo institucional que engendra no
próprio pensamento modelos do que significa pensar. Logo, o
movimento inverso, de ruptura e fuga a este modelo, é o que
pretendemos nomear desinstitucionalização do pensamento,
enquanto meio de romper com esse processo de sistematização
ordenada.
Nesta perspectiva, acreditamos que reconhecer que os limites
para a experncia livre do pensamento ultrapassaram a instituição e
passaram a integrar nosso próprio modo de pensar é concluir que
institucionalização do pensamento se tornou um processo, muitas
vezes inevitável, no interior das instituições. Ora, se fizermos uma
tentativa de aproximar ainda mais esta noção do campo conceitual
deleuziano, veremos que a presença da institucionalização no
pensamento revela-nos as marcas de um pensar refém de um
processo ainda maior.
Deleuze, em Diferença e Repetição (2006), aponta para a
existência de uma imagem ubíqua e dogmática do que significa o
pensar. Esta imagem, a qual ele dirá, dogmática, se erige a partir de
dois pressupostos, a saber, os objetivos e os subjetivos.
17
Nesta
17
Os pressupostos objetivos caracterizam-se por servirem às ciências e também à filosofia, e
são os conceitos explicitamente supostos por um conceito dado, ou ainda supostos em
teoremas, ou mesmo em problemas. Estes atuam como leis e axiomas, consolidando-se
como aquilo que inquestionavelmente todos sabem. No tocante aos pressupostos subjetivos,
429
perspectiva, não é difícil entender porquê as discussões sobre ensino
de filosofia e da aprendizagem filosófica, ainda que sistematicamente
investigadas, apresentem-nos poucas soluções para os problemas
relativos à impossibilidade de se fazer uma experiencia de
pensamento filosófica desde a instituição, uma vez que, como pano
de fundo destas relações parece haver uma imagem dogmática
constitutiva do que seja pensar filosoficamente, como um
pressuposto que atua no obscurantismo das relações institucionais.
Esta imagem dogmática do pensamento, que resultado do
processo de institucionalização do pensamento, encontra-se nos
cânones metodológicos, e até mesmo nas teorias do conhecimento
mais ortodoxas. Em tais vertentes, o ato de pensar é entendido, em
grande medida, pelo viés de uma representação, a qual se dá em face
de um referencial dado. Pensar, neste sentido, configura-se em um
pensar por imagens p-concebidas.
Ao longo de sua investigação Gilles Deleuze realizará uma
crítica a este modo de pensar por imagens, e partir deste momento,
apoiar-nos-emos em sua obra para compor nossa problemática.
Dentre os oito postulados
18
que Deleuze destaca como fundantes
desta imagem do pensamento, o “modelo da recognição” e o
esses necessitam da elaboração racional, visto que não estão explicitamente dados. Por isto,
se ocupam em demonstrar o que está implicitamente compreendido em suas premissas para
poder, então, chegar à conceituação. Segue-se que eles se nos apresentam através da forma
expressa do “todo mundo sabe”.
18
São eles: O princípio da cogitatio universalis; O ideal do senso comum; O modelo da
recognição; O elemento da representação; O negativo do erro; O privilégio da designação;
A modalidadedas soluções e O resultado do saber.
430
“elemento da representação” são os que mais se aproximam da noção
de institucionalização do pensamento que tentamos aqui construir.
O modelo da recognição instaura sempre, e de modo
essencial, a constituição de modelos e conformações de um objeto,
sob a forma do Mesmo pela identidade do conceito. Essa
determinação conceitual implica uma análise em comparação aos
predicados possíveis e seus opostos, que devem estar, por uma
concórdia das faculdades, em analogia com seu respectivo objeto.
Todavia, quando a força da recognição ultrapassa a relação com os
objetos e se coloca no âmbito dos valores aferidos a estes objetos, sob
a suposta configuração de um pensamento, uma ideia, ou um juízo
acerca destes, sua adoção torna-se um elemento limitados da
experiencia livre do pensar.
Na esteira do modelo da recognição caminha, também, o
modelo de ensino da filosofia pelo qual passamos em nossa formação
e que posteriormente reproduzimos enquanto professores. Assim, ele
opera a favor da conformidade do pensamento do aprendiz a um
enunciado legitimamente filosófico, perspectiva similar ao princípio
da explicação e compreensão fundantes do ensino transmissor, o
qual fixa o pensamento do aluno na inércia e da manutenção destas
verdades filosóficas, e investindo sua potência no reconhecimento e
reprodução de modelos.
Do mesmo modo, a representação que impede o
pensamento de diferenciar-se em face de seus pressupostos,
mantendo-o fixo nas mesmas formas de recognição, de
reconhecimento e identificação, ainda que em variação de graus.
Neste registro o ensino da filosofia se serve deste sistema
representacional, convertendo-se na comunicação de verdades
431
filosóficas, de enunciados abstratos e significações preconcebidas que
tão somente atingem seu interlocutor enquanto representações que
seguem os esquemas de identidade, oposição, analogia e semelhança,
em face de um objeto filosófico.
Por conseguinte, a experimentação do livre pensar, tão cara
ao nosso propósito enquanto professores e aprendizes de filósofos,
foi atenuada pela marcha da tradição que elege como primeiro motor
a enunciação das verdades filosóficas, das proposições abstratas e das
significações preconcebidas que tão somente nos atingiam, bem
como aos nossos interlocutores enquanto representações
verdadeiras.
Por isso, vimos tantas vezes, ao longo de nossa formação,
nossos próprios problemas serem silenciados em função do domínio
mudo das representações filosóficas verdadeiras e seus padrões de
reprodutibilidade. A emergência de qualquer diferença caberia
apenas o status de uma falsa representação, ou um erro, jamais a
criação de um novo conceito, outra perspectiva face um problema,
ou mesmo de um pensamento genuinamente filosófico por parte
daquele que aprende.
Ora, se mais uma vez podemos lançar uma hipótese acerca
dos acontecimentos filosóficos que marcaram nossa caminhada
formativa, como as memoráveis tutorias com o Professor Antônio
Trajano, bem como em nossos encontros no ENFILO,
confirmaríamos assim a característica desinstitucionalizada destes
ambientes e sua constante preocupação em oferecer uma experiencia
de pensamento filosófica singular, como uma linha de fuga a abrir-
se para um pensamento diferencial.
432
Neste sentido, acreditamos que as interfaces do pensamento
de Deleuze com a problemática aqui levantada, podem produzir
desvios profundos, como linhas de fuga que escapem às linhas duras
e pouco flexíveis do pensamento institucionalizado. Ao fim, nos cabe
acenar à desinstitucionalização do pensamento como uma variação
que ao afetar um sistema instituído o impediria de se homogêneo,
sendo assim linha de fuga possível.
Em suma, talvez tenha sido está maior das experiências
filosóficas vivida ao longo de nossa formação, o ato de resistir, de
buscar linhas de fuga, de escapar ao modelo institucional de
pensamento filosófico. Resistência que só foi possível uma vez que
encontramos aqueles que ousaram despir nosso olhar do prisma
institucional, fazendo nascer em nosso próprio pensamento a
coragem de pensar, de produzir algo real, e de criar vida. À coragem
de todos aqueles que, conosco, um dia se permitiram e nos
permitiram experimentar pensar filosoficamente, nossa profunda
gratidão.
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435
Ensino de filosofia e o campo problemático das ideias
Rodrigo Barbosa LOPES
1
Notas para uma introdução
Disciplina acadêmica? Campo de investigação? Área de
estudos? Afinal, o que é ensino de filosofia? Em busca de ensaiar
uma resposta, ora nos deparamos com aqueles que hesitam falar, não
importa o quê. Ora com aqueles que advertem não se tratar de, mas
ensino da filosofia. Não poucas vezes com aqueles, sobretudo a
maioria de nós, que, há muito refletindo o sobre o tema, ensaiam
retóricas que fazem proliferar as respostas à medida que variam os
pontos de vista. Mas isso sequer se parece com uma alternativa à
questão, ainda que vista de longe. Contudo, uma coisa é certa.
Pensar o ensino de filosofia não é falar de sua transmissibilidade.
Seria isso um paradoxo ou uma aporia? Na verdade, nem uma coisa,
nem outra. Partimos da alternativa de pensar o ensino de filosofia
como problematização, lançar a questão sobre o ofício, quando não
a arte, de ensinar filosofia. Com efeito, a questão a ser lançada não
poderia ser outra que não a formulação de um campo problemático
das ideias. Este é o argumento que desenvolveremos aqui. Ademais,
1
Professor de Filosofia - Departamento de Educação e Programa de Pós-Graduação em
Educação. Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia,
Campus Presidente Prudente.
436
nada há de óbvio em começar com uma pergunta, desde que os
problemas sejam bem colocados. Isso significa dizer que não
começaremos pela definição ao modo da pergunta Que é? Qual o
fundamento? , mas pela colocação de problemas que dão ao ensino
de filosofia um sentido determinável, que fazem dele uma questão
determinada na história do pensamento.
Antes, porém, colocaremos em evidência uma questão que
pode bem servir ao propósito de uma introdução, quando não à ideia
de uma aproximação, ao tema da filosofia e do seu ensino. Contudo,
nem de longe o intuito é validar alguma tese corrente em detrimento
de outra que, por razões distintas, parte de premissas diferentes ou
que não compartilha os mesmos resultados. Nada disso importa,
porque não propomos fazer uma análise do tema ao modo de uma
síntese ideal de concepções divergentes ou seja, uma síntese dos
universais como produto da razão dialética , mas ao modo de uma
problematização. Sobretudo, porque, é o modo de fazer, isto é, de
operar o campo problemático das ideias que tem relevância neste
exercício de pensar o ensino de filosofia como problematização
2
.
É verdade que “ensinar” tem a ver com instruir, transmitir,
dar a conhecer a alguém; que tem a ver com a mediação do
conhecimento, motivo pelo qual a didática emula o epíteto de
ciência magna. E já que o ensino escolar não é uma atividade
espontânea, menos ainda privada ou individual, “ensinar” tem a ver
também com currículos, objetivos de aprendizagem, metodologias,
2
O estudo dos modos de problematização e sua relevância para o ensino de filosofia serão
analisados adiante. Contudo, indicamos três trabalhos nos quais Foucault fez referências ao
tema: O que são as Luzes?; Polêmica, política e problematização; O cuidado com a verdade,
publicados em 1984 e depois reunidos em um mesmo volume por ocasião da edição
francesa de Ditos e escritos (Cf. FOUCAULT, 1994c, p. 562-578; 591-598; 646-649).
437
conteúdos programáticos. Muitos defenderiam que tudo isso é
relevante, o que é uma verdade, porém um problema permanece sem
ser colocado. Permanece oculto o pressuposto implícito que confere
ao ensino esta boa vontade e a crença no pensamento naturalmente
orientado à verdade. Tudo se passa como se o ensino dispusesse dos
meios que despertam no homem a boa vontade para conduzi-lo a
aprender, a cultivar a amizade pela verdade e pelo conhecimento.
Falamos, é claro, por analogia sobre o ensino, mas é em relação à
filosofia que essas questões não cessam de ser formuladas.
Precisamente, porque resulta da identificação do pensamento com a
forma geral da representação, ou da recognição, o elemento
implícito dessa imagem da filosofia: o princípio de uma cogitatio
natura universalis.
Este elemento consiste na posição do pensamento como
exercício natural de uma faculdade, no pressuposto de um
pensamento natural, dotado para o verdadeiro, em afinidade
com o verdadeiro, sob o duplo aspecto de uma boa vontade do
pensador e de uma natureza reta do pensamento. É porque todo
mundo pensa naturalmente que se presume que todo mundo
saiba implicitamente o que quer dizer pensar (DELEUZE,
1993, p. 171).
Nesta peculiar e original crítica do pensamento filosófico,
que foi Diferença e repetição, Gilles Deleuze reiterou em outra parte
a ressalva que pesa contra a situação a que o pensamento está
subjugado:
438
Lembremo-nos dos textos profundos de Heidegger, mostrando
que, enquanto o pensamento permanece no pressuposto de sua
boa natureza e de sua boa vontade, sob a forma de um senso
comum, de uma ratio, de uma cogitatio natura universalis, ele
nada pensa, prisioneiro da opinião, imobilizado numa
possibilidade abstrata... (DELEUZE, 1993, p. 188).
Pois bem. A questão que trouxemos à baila se refere,
portanto, ao problema dos pressupostos em filosofia. É inegável a
importância de Diferença e repetição neste caso, razão pela qual
escolhemos pautar a análise na crítica de Deleuze à imagem
dogmática da filosofia, segundo a qual o pensamento coincide com
a representação: “pensar é representar”. É verdade que este problema
pertence de direito à filosofia, contudo não pertence menos ao seu
ensino. A razão é simples: tanto quanto não há filosofia sem uma
imagem do que significa pensar, não há ensino que seja isento de
concepção.
Ambos os fragmentos citados anteriormente remetem a
análise para o problema do pressuposto implícito ao pensamento.
Enquanto os pressupostos objetivos são os conceitos explicitamente
supostos por uma dada noção ou concepção, aquele é de um tipo
especial: segundo Deleuze, ele tem a forma de todo mundo sabe...
“Todo mundo sabe antes do conceito e de um modo pré-filosófico...
todo mundo sabe o que significa pensar e ser... de modo que, quando
o filósofo diz ‘Eu penso, logo sou’, ele pode supor que esteja
implicitamente compreendido o universal de suas premissas, o que
ser e pensar querem dizer...” (DELEUZE, 1993, p. 170). Tal
pressuposto implícito à filosofia é, na verdade, um duplo. A noção
do pensamento como exercício natural de uma faculdade supõe, por
439
um lado, a boa vontade do pensador e, por outro, a boa natureza do
pensamento. Nunca é demais recordar que tal é a forma e o discurso
da representação: é porque todo mundo pensa naturalmente que se
presume que todo mundo saiba implicitamente o que quer dizer
pensar.
O pressuposto da boa vontade, da boa natureza... Tudo isso
remete a filosofia não à criação de um conceito, de uma concepção
específica, mas à forma da representação ou da recognição em geral.
Significa dizer que “pressuposto” é o que é universalmente aceito, e
que tal universalidade é apenas a forma do que significa pensar, não
sobre o que é pensado. Trata-se, portanto, da acepção de uma
filosofia que não é histórica e culturalmente situada, mas de uma
imagem pré-filosófica e natural sobre o que significa pensar: “A
forma mais geral da representação está, pois, no elemento de um
senso comum como natureza reta e boa vontade. O pressuposto
implícito da Filosofia se encontra no senso comum como cogitatio
natura universalis, a partir do qual a Filosofia pode ter seu ponto de
partida” (DELEUZE, 1993, p. 171). Tal pressuposto do
pensamento, Deleuze o denominou de imagem dogmática ou
ortodoxa:
Os postulados em filosofia não são proposições que o filósofo
pede que se lhe conceda, mas, ao contrário, temas de
proposições que permanecem implícitos e que são entendidos
de um modo pré-filosófico. Nesse sentido, o pensamento
conceitual filosófico tem como pressuposto implícito uma
Imagem do pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do
elemento puro do senso comum. De acordo com esta imagem,
o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui
440
formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro.
E é sobre esta imagem que cada um sabe, que se presume que
cada um saiba o que significa pensar. Pouco importa, então,
que a filosofia comece pelo objeto ou pelo sujeito, pelo ser ou
pelo ente, enquanto o pensamento permanecer submetido a
esta Imagem que já prejulga tudo, tanto a distribuição do objeto
e do sujeito quanto a do ser e do ente (DELEUZE, 1993, p.
172).
Em outras palavras, a suposição de uma tal imagem para o
pensamento é o que constitui o pressuposto implícito da filosofia em
seu conjunto. Mas ela se refere tão somente às coordenadas do
pensamento, não sobre as filosofias no tempo. O problema dos
pressupostos diz respeito, portanto, não às concepções, mas às
coordenadas pelas quais pensamos o que pensamos: “Por imagem do
pensamento não entendo o método, mas algo mais profundo,
sempre pressuposto, um sistema de coordenadas, dinamismos,
orientações: o que significa pensar, e ‘orientar-se no pensamento’”
(DELEUZE, 1992, p. 185). Desse modo, o problema do
pressuposto implícito da filosofia é inteiramente o problema da
suposição de uma imagem dogmática que orienta o pensamento na
direção do ideal do senso comum.
Ademais, resta explicar como o enlace do pressuposto
implícito da filosofia com esse ideal, ou ratio, resulta na assimilação
do conceito filosófico pelo postulado da recognição como modelo
transcendental do pensamento. É nesta operação de síntese ideal que
podemos encontrar a transposição ao ensino dos pressupostos que
enformam a ortodoxia do pensamento na filosofia. Contudo, este
assunto será examinado na próxima seção. Sobre o que vimos
441
analisando, todavia, gostaríamos de dizer que não defendemos a
elaboração de um método ou conjunto de axiomas para conduzir o
pensamento segundo uma ordem universal e, por conseguinte, de
como a filosofia deve ser ensinada. Preferimos, ao contrário, cultivar
um interesse amplo pela atualidade da filosofia ou pela inventividade
do pensamento filosófico na atualidade, que mais tem a ver com o
que Nietzsche chamava de “inatual” ou “intempestivo”: o projeto da
filosofia como ato de pensamento. Nesse caso, pensamos que Gilles
Deleuze poderia ser lembrado com referência ao que disse Richard
Rorty (1994) sobre os “filósofos edificantes” em oposição à imagem
dos “filósofos sistemáticos”: que oferecem não verdades ou
argumentos universais, mas a experiência de pensamento, a urgência
de pensar a experiência e a experiência de pensar filosoficamente.
Este nos parece ser, igualmente, o caso de outro filósofo que
aludiremos nestas páginas: Michel Foucault. Sua importância ficará
evidente quando explanarmos sobre ideia do ensino de filosofia
como modo de problematização do pensamento.
Para completar o sentido do que explanamos até aqui, ganha
destaque a apresentação ao público brasileiro da tradução da obra
Empirismo e subjetividade, na qual Luiz Orlandi afirma que “em vez
de praticar exclusões que acabam reiterando falsas noções de
progresso em filosofia, um dos mais fecundos interesses dos estudos
filosóficos é participar atentamente desse cruzamento de ideias
díspares, desvelando paisagens inesperadas nessa vasta síntese
disjuntiva que é o pensamento conceitual.” (Contracapa)
3
.
Considerando-a desde o ponto de vista do tema analisado, essa
afirmação apoia o argumento de que, face à constelação de ideias que
3
DELEUZE, 2001.
442
abrem campos variados de temas e conceitos, fazer e ensinar filosofia
tem a ver com um exercício muito específico de pensamento. Qual
seja, de desbravar a disponibilidade do pensamento filosófico,
propiciar o enfrentamento com a tradição, lançar o desafio de
trabalhar os saberes formalizados, dialogar com os autores e revisar
os conhecimentos acumulados em face dos desafios atuais. Tudo isso
é importante, porque sem esse trabalho do pensamento, ao mesmo
tempo solitário e povoado de conceitos e experiências, não haveria
uma palavra a dizer sobre o que ele pode ter de novidade, de
invenção. Principalmente, porque é nesta viragem que o novo salta
aos olhos, que a criação em filosofia é mais uma vez possível. É nesse
sentido que compreendemos o que disse Deleuze (1969, p. 15) a
respeito dos estoicos: “O gênio de uma filosofia se mede em primeiro
lugar pelas novas distribuições que impõe aos seres e aos conceitos”.
Notas para pensar o ensino de filosofia
1. Posição e criação de problemas
Algo se passa com a filosofia que impede perfeitamente que
o novo e a criação surjam no pensamento. Talvez, algo da ordem do
que Foucault chamava de analítica da verdade
4
, ou do que Deleuze
chamou de imagem dogmática do pensamento, como analisado
anteriormente. Tudo se passa como se os problemas, que desafiam
4
Nas palavras de Foucault (1994c, p. 687), trata-se de uma “tradição da filosofia que coloca
a questão das condições sob as quais um conhecimento verdadeiro é possível”.
443
os saberes constituídos, apenas pudessem ser apresentados segundo
a forma das soluções possíveis, para que, no instante seguinte, a
propositura de um determinado problema pudesse enfim existir de
direito. Falamos, nesse sentido, sobre certa precedência real, não
obstante lógica, das respostas em face das perguntas; das soluções em
face dos problemas; dos resultados em face da pesquisa; da pura
determinação em face do indeterminado. Em conformidade com
esse estado de coisas, conclui-se apressadamente que as condições
para que o pensamento ocorra sejam maiores que o condicionado,
ou seja, que o que está condicionado na forma de questão ou de
problema deva ser dito eminentemente das soluções. Esta é, pois, a
prerrogativa de uma anterioridade formal talvez nos termos de
uma escolástica tardia em relação ao pensamento contemporâneo
que define a natureza dos problemas solucionáveis ou inconclusos;
indeterminados, indefinidos ou bem colocados. Influenciados por
tal argumentação com aspirações à verdade, cometemos o mais
terrível dos juízos: sentenciamos o pensamento ao que é apenas
possível, o pensamento aprisionado ao já pensado, estipulado e
medido pela forma da representação.
Mas não é precisamente contra essa tomada de decisão que
se pretende considerar o pensamento como uma experimentação e
uma problematização? E não seria esta alternativa a que melhor
expressa o ensino de filosofia como uma problematização do
pensamento? Ela é, na verdade, a alternativa que passaremos a
examinar. Contudo, ela não pode ser colocada de pronto. Primeiro,
é necessário que a crítica à identificação do pensamento com a forma
da representação seja desdobrada na análise de um duplo que
constitui o postulado da recognição: o ideal do senso comum e o
444
bom senso “como a coisa do mundo mais bem repartida”
(DELEUZE, 1993, p. 173). De fato, não apenas de direito, esses são
os elementos implícitos da imagem ortodoxa do pensamento. Não
são acidentais ou complementares. São originais, uma vez que deles
derivam duas ordens da generalidade: a ordem qualitativa das
semelhanças, e a ordem quantitativa das equivalências. Também,
porque é neste ponto de inflexão que vemos o ensino da filosofia
replicar os mesmos pressupostos, uma circularidade da qual não se
sai facilmente. A não ser que...
***
A não ser que se renuncie à forma da representação bem
como ao elemento do senso comum. Segundo Deleuze (1993, p.
173), é “como se o pensamento só pudesse começar, e sempre
recomeçar, a pensar ao se libertar da Imagem e dos postulados”.
Obviamente que isso não é uma solução, mas algo diferente. Colocar
problemas, cria-los, é determinar uma posição do conceito, não
lançar perguntas em série. É uma problematização. O conceito de
ideia, por exemplo. Não é o mesmo em Platão, Descartes ou Kant.
Apesar da generalidade que faz o pensamento operar por semelhança
e igualdade, consentindo mais similitude do que o conceito pode
suportar, “ideia” não é o mesmo conceito para esses filósofos. Na
medida em que os conceitos são apenas possibilidades, é preciso dar-
lhes uma posição, sem a qual o pensamento permanecerá preso a
uma possibilidade apenas abstrata. O conceito de ideia para cada um
desses filósofos corresponde a gradientes diferentes de problemas.
445
Logo, se os problemas não são os mesmos, também os conceitos não
o serão. “Na verdade, os conceitos designam tão somente
possibilidades. Falta-lhes uma garra, que seria a da necessidade
absoluta, isto é, de uma violência original feita ao pensamento, de
uma estranheza, de uma inimizade, a única a tirá-lo de seu estupor
natural ou de sua eterna possibilidade” (DELEUZE, 1993, p. 181).
Mais importante que o conceito é o problema que o determina.
Portanto, pensar pela representação não é o mesmo que pensar como
problematização. E tal diferença sobrevém ao ensino, tanto quanto
à própria filosofia.
Voltemos ao problema dos postulados. É como se tudo o que
há para pensar fosse conforme à ordem das soluções, restando apenas
encandeá-las segundo premissas mais ou menos universalmente
compartilhadas. Mas este é o caso dos pressupostos implícitos. Por
outro lado, os pressupostos objetivos estão dados explicitamente, são
comunicáveis segundo regras bem conhecidas. Este é o caso da
ciência, mas também do ensino em certo sentido. Neste segundo,
eles estão dados publicamente: os projetos pedagógicos, os
currículos, as políticas públicas, as novas tecnologias etc. Poderíamos
até dizer que são, portanto, universais de comunicação. Ora, não há
ensino escolar que possa ignorá-los, embora seja sempre possível
modificá-los de acordo com regras bem definidas e irredutíveis a um
modelo ou outro. O que há, em contrapartida, é uma profusão de
modelos e metodologias de ensino, das tradicionais às ativas ou
centradas no estudante. Contra nada disso fazemos oposição. O
problema reside em pressupostos de outro tipo, subjetivos ou
implícitos. Voltamos de certo modo ao ponto de início.
446
Assim pois a questão... O que o ensino de filosofia tem a ver
com o pensamento segundo a forma da representação? Quais são as
correspondências? Antes de tudo, tem a ver com o que foi explicado:
o problema dos pressupostos implícitos. Eles correspondem a uma
ortodoxia do pensamento que remete a filosofia à representação, e
esta, ao ensino da filosofia. Repetidamente, uma coisa e outra são
lançadas em uma circularidade onde a diferença é impossível, já que
tomaram o seu lugar o duplo aspecto do ideal do senso comum e do
bom senso: “O bom senso ou o senso comum são, pois, tomados
como a determinação do pensamento puro. É próprio do sentido
prejulgar sua própria universalidade e postular-se como universal de
direito, comunicável de direito” (DELEUZE, 1993, p. 173-174).
Ora, o pensamento segundo a forma da representação, além
de pressupostos, também tem um modelo: a recognição. Ela se
define pelo “exercício concordante de todas as faculdades sobre um
objeto suposto como sendo o mesmo: é o mesmo objeto que pode
ser visto, tocado, lembrado, imaginado, concebido...” (DELEUZE,
1993, p. 174). Examinemos bem a questão. Isso quer dizer, em
outras palavras, que cada faculdade tem seus próprios dados e seu
próprio modo de operar, seu estilo. Assim, não é do mesmo modo
que o sensível, o imaginável, o inteligível... são representados, sendo
cada qual atos particulares de faculdades distintas: a sensibilidade, a
imaginação, a inteligência etc. Contudo, o objeto é apenas
reconhecido ou representado no pensamento, reitera Deleuze,
quando cada faculdade o visa como idêntico, ou seja, “quando todas
as faculdades em conjunto referem seu dado e referem a si mesmas a
uma forma de identidade do objeto” (DELEUZE, 1993, p. 174).
Nisso consiste, afinal, o modelo: o ideal do senso comum como
447
princípio subjetivo de colaboração entre faculdades, isto é, como
concordia facultatum (a forma de identidade do objeto) e, por outro
lado, o bom senso como o que determina a contribuição das
faculdades conforme cada caso, agindo como uma espécie de
unidade para o pensamento, potentiam cogitandi (potência de
pensamento).
No caso do ensino, igualmente, tanto uma quanto outra
instância conservam o essencial do modelo da recognição: a norma
da identidade e a norma da partilha. Inclusive, porque, há uma
correspondência entre elas que precisa ser sempre retomada. Deleuze
(1993, p. 175) explica que: “é aqui que se deve fazer com que
intervenha a diferença precisa de duas instâncias complementares,
senso comum e bom senso, pois se o senso comum é a norma de
identidade, do ponto de vista do Eu puro e da forma de objeto
qualquer que lhe corresponde, o bom senso é a norma de partilha”.
Na medida em que tais coisas valem de direito à filosofia, o
pensamento segundo o postulado da recognição pressupõe tal
repartição, e era isso o que restava ser explicado.
Nisso consiste a correspondência com o ensino. O ideal do
senso comum confere ao ato de ensinar a regra da identidade para
pôr em concordância as faculdades que atuam no aprendizado do
conteúdo ou matéria. Sem muito esforço, podemos inferir que
embora determinado tema filosófico, por exemplo, a dialética, seja
ensinado segundo filósofos, escolas ou correntes de pensamento
distintas, às vezes antagônicas, há certa universalidade
compartilhável extraída da forma de identidade do objeto. Ou seja,
não obstante os diferentes pontos de vista sobre o tema, há ainda a
identidade formal que os reúne em uma concordia, e isso a despeito
448
de suas diferenças. Por outro lado, tal identidade formal não
produziria seus efeitos sem que outra regra fosse explicada: a
repartição. O bom senso, enquanto norma da partilha, corresponde
à potência de pensamento que define a contribuição de cada parte
ou faculdade segundo os casos. Assim, por exemplo, não é da mesma
forma que a dialética é ensinada em História da Filosofia, em
Estética ou em Lógica. Há sempre uma certa repartição, observada a
norma da partilha e da colaboração entres as faculdades, tanto
quanto há identidade formal do objeto como universalidade do
conceito.
Isso explica por que em grande parte o ensino da filosofia
corresponde ao modelo da recognição. Por outro lado, não explica
completamente por que no mundo da representação só há
pensamento da generalidade. Recorremos uma vez mais a Deleuze:
“A generalidade apresenta duas grandes ordens: a ordem qualitativa
das semelhanças e a ordem quantitativa das equivalências. Mas, de
toda maneira, a generalidade exprime um ponto de vista segundo o
qual um termo pode ser trocado por outro, substituído por outro”
(DELEUZE, 1993, p. 7). A primeira está compreendida
inteiramente pelo modelo da recognição. Quanto à ordem das
equivalências, há um aspecto que nos remete ao saber filosófico e
explica por que o ensino permanece à sombra da representação. O
que define a ordem das equivalências é a troca ou a substituição dos
particulares em correspondência com a generalidade ou a
universalidade do conceito. Tal conduta descreve bem a situação do
ensino. Ensinar é uma prática que arregimenta outras práticas, não
tão somente um exercício, mas uma técnica que as coloca para operar
em séries lineares, isto é, por segmentaridade, ou em conjuntos que
449
funcionam mais ou menos em paralelo ou por interseccionalidade.
Portanto, um dispositivo que age conforme a regra das equivalências.
“Ensinar” é instruir, que equivale a transmitir, que equivale a
explicar, que equivale a dar a conhecer, que equivale a... O
pensamento está, assim, concebido de princípio como
representação. Não é mais um possível, nem diferença interna,
converteu-se em outra coisa... algo de semelhante à generalidade,
como se só houvesse pensamento do geral. Ensinar, desse modo, está
inteiramente recoberto pela representação: por seu elemento, os
pressupostos; por seu modelo, a recognição; por sua forma, o ideal
do senso comum e o bom senso. Por essa razão é que existem tantos
modelos, metodologias, esquemas ou regras de ensino. Sempre a
equivalência e seus juízos.
E já o que estamos a fazer não é precisamente uma
problematização do pensamento?
2. Pensar é experimentar, é problematizar
No livro Conversações, ao explicar a contribuição
indispensável para a sua filosofia o que escrevera em Foucault (1988),
Deleuze comentou belamente que: “O livro que fiz não é de história
da filosofia, é um livro que eu gostaria de ter feito com ele, com a
idéia que tenho dele e com minha admiração por ele” (DELEUZE,
1992, p. 188). Sobretudo, porque, quando perguntado sobre o
motivo de escrever um livro a respeito de Foucault apesar de ter
comentado outras vezes a filosofia de seu amigo e se agora haveria
ou não algo de simbólico na publicação desse livro, Deleuze
450
respondeu que seus esforços estavam concentrados em conhecer a
lógica de pensamento do filósofo, que “não cessa de crescer em
dimensões, e nenhuma das dimensões está contida na precedente.
Então o que o força a lançar-se em tal direção, a traçar tal caminho
sempre inesperado?” (DELEUZE, 1992, p. 118)
5
. Com efeito, o
que interessava a Foucault e que foi enfatizado por Deleuze é a
renovação do pensamento. A propósito disso, ele próprio reiterava o
quanto o pensamento contemporâneo era devedor da filosofia de
Nietzsche, na esteira da qual destacava-se Foucault, que fez de sua
própria filosofia um ato de pensamento. Isto é, uma experimentação
e uma problematização do pensamento. Como disse Deleuze no
livro que com Foucault gostaria de ter escrito:
Certamente, uma coisa perturba Foucault, e é o pensamento.
“Que significa pensar? O que se chama pensar?” a pergunta
lançada por Heidegger, retomada por Foucault, é a mais
importante de suas flechas. Uma história, mas do pensamento
enquanto tal. Pensar é experimentar, é problematizar. O saber,
o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do
pensamento (DELEUZE, 1988, p. 124).
5
E com uma escrita livre, quase experimental, completou o que mais despertava nele a
admiração por Foucault: “Ele suscitava medo, isto é, só com sua existência impedia a
impudência dos imbecis. Foucault preenchia a função da filosofia definida por Nietzsche,
‘incomodar a besteira’. Nele, o pensamento é como um mergulho que traz sempre algo à
luz. É um pensamento que faz dobras, e de repente se distende como uma mola. No
entanto, não creio que Leibniz tenha tido alguma influência especial sobre ele. Mas uma
frase de Leibniz lhe convém particularmente: eu acreditava ter chegado ao porto, mas fui
lançado de volta ao mar. Os pensadores como Foucault procedem por crises, abalos, há
neles algo de sísmico” (DELEUZE, 1992, p. 188).
451
Com isso, damos lugar à passagem da crítica da filosofia e
seu ensino segundo a forma da representação para a perspectiva de
um estudo dos modos de problematização. Apenas desse modo
poderíamos relacionar o ensino de filosofia ao campo problemático
das ideias, e não à transmissão de saberes formalizados.
***
Foucault entendia o trabalho da filosofia como uma forma
de jornalismo que investiga os eventos atuais, sobretudo depois de
Nietzsche. É o que podemos depreender, por exemplo, do texto O
mundo é um grande asilo, que veio a público em junho de 1973:
Eu me considero um jornalista, na medida em que o que me
interessa é a atualidade, o que se passa ao nosso redor, o que nós
somos, o que acontece no mundo. A filosofia, até Nietzsche,
tinha por razão de ser a eternidade. O primeiro filósofo
jornalista foi Nietzsche. Ele introduziu o hoje no campo da
filosofia. Antes, o filósofo conhecia o tempo e a eternidade. Mas
Nietzsche tinha obsessão pela atualidade. Eu penso que o
futuro, somos nós que o fazemos. O futuro é a maneira com a
qual reagimos ao que se passa, é a maneira pela qual
transformamos em verdade um movimento, uma dúvida. Se
queremos ser mestres de nosso futuro, nós devemos colocar
fundamentalmente a questão do hoje. Isso porque, para mim,
a filosofia é uma espécie de jornalismo radical (FOUCAULT,
1994a, p. 434).
452
É aqui que a via filosófica da problematização desempenha
um papel especial, pois, como argumentava Foucault, à diferença de
uma longa tradição que fez do universal e da verdade objetos do
pensamento, Nietzsche introduziu o hoje no campo da filosofia (isto
é, a irrupção de relações de forças que introduziram, no campo do
pensamento, o valor, a vontade e o sentido)
6
. Reconhecemos em
Foucault, portanto, a referência ao trabalho da filosofia como uma
forma de jornalismo, um jornalismo filosófico que investiga os
eventos atuais. Consoante a essa hipótese, é tarefa da filosofia fazer
um diagnóstico da atualidade: sobre o presente, mas com o
propósito de elaborar o futuro.
Isso nos leva a crer que Foucault tenha sido, entre os filósofos
de sua geração, aquele que melhor compreendeu que a tarefa da
filosofia deveria assumir as feições de um trabalho crítico do
pensamento como diagnóstico da atualidade, o que ele chamou de
“ontologia do presente” (FOUCAULT, 1994c, p. 687) ou
ontologia crítica de nós mesmos” (FOUCAULT, 1994c, p. 577).
Enquanto atividade de investigação do presente, tal tarefa apenas
poderia se apresentar na forma de uma crítica como
problematização do pensamento. Em nosso entender, esta seria a
única contribuição que Foucault poderia esperar de uma filosofia
lastreada por um estudo dos modos de problematização: a
possibilidade de enfretamento das questões, das práticas históricas e
dos acontecimentos implicados na constituição dos saberes e dos
poderes, tanto quanto dos sujeitos. Por esse motivo, também, uma
ontologia histórica de nossa constituição ética como sujeitos de
experiência. Além daquelas duas expressões, ele utilizou também
6
FOUCAULT (1994a, p. 434; 1994b, p. 431 e 573).
453
“ontologia da atualidade” (FOUCAULT, 1994c, p. 688), e é quanto
a esta última indicação que o vemos afirmar precisamente: “a
filosofia como problematização de uma atualidade e como
interrogação pelo filósofo desta atualidade da qual ele faz parte e com
relação à qual ele tem que se situar” (FOUCAULT, 1994c, p. 680-
681).
Sobre isso, o próprio Foucault reconheceu, ao fazer uma
remissão às suas publicações, que a noção que unificava todos os
estudos realizados desde História da loucura era a de
problematização”, embora não a tivesse destacado suficientemente,
tal como viria a fazer, depois, nos trabalhos da década de 1980. O
cuidado com a verdade é um caso exemplar disso:
Problematização não quer dizer representação de um objeto
preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um
objeto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou
não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do
verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o
pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do
conhecimento científico, da análise política etc.)
(FOUCAULT, 1994c, p. 670).
Outros trabalhos, destacadamente O que são as Luzes?
7
e
Polêmica, política e problematização
8
, atestam que a atividade
filosófica como o estudo dos modos de problematização norteara as
escolhas e a conduta de Foucault em face dos desafios supervenientes
7
FOUCAULT (1994c, p. 562-578).
8
FOUCAULT (1994c, p. 591-598).
454
de seu problema geral de pesquisa. Por força deste esclarecimento, se
o trabalho do filósofo se voltava, pois, ao problema das relações entre
o sujeito, a verdade e a constituição da experiência como fica
evidente em Uma estética da existência
9
–, tanto mais importa
destacar a questão do sujeito e as práticas históricas de constituição
da subjetividade como problema central de sua filosofia.
No tocante à concepção de uma ontologia crítica de nós
mesmos, Foucault delineava em A propósito da genealogia da ética:
uma visão geral do trabalho em curso, em sentido remissivo e ao modo
de uma revisão, três domínios de estudo possíveis à via filosófica da
problematização, admitida a forma da pesquisa como diagnóstico da
atualidade:
Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à
verdade, por meio da qual nos constituímos como sujeitos de
conhecimento; em seguida, uma ontologia histórica de nós
mesmos em relação a um campo de poder por meio do qual nos
constituímos como sujeitos de ação sobre os outros; enfim, uma
ontologia histórica em relação à moral por meio da qual nos
constituímos como agentes éticos.
Portanto, três eixos são possíveis para a genealogia. Todos os
três estavam presentes, embora de uma forma um tanto
confusa, em História da loucura. Eu estudei o eixo da verdade
em Nascimento da clínica e em As palavras e as coisas. Eu
desenvolvi o eixo do poder em Vigiar e Punir, e o eixo moral
em História da sexualidade (FOUCAULT, 1994c, p. 393).
9
FOUCAULT (1994c, p. 731).
455
Com efeito, lembramos o que Deleuze destacou de
fundamental no estudo dedicado à filosofia de Michel Foucault:
que, apesar das idas e vindas sobre o estudo do sujeito com relação à
verdade, ao poder e consigo, era o pensamento, o exercício do
pensamento como problematização e experimentação que o
interessava e que o levou a esclarecer, sobretudo nos dois últimos
anos de sua vida, que seu trabalho filosófico tinha a ver precisamente
com isso: “O estudo dos (modos de) problematizações (isto é, do
que não é constante antropológica nem variação cronológica) é,
portanto, a maneira de analisar, em sua forma historicamente
singular, as questões de alcance geral” (FOUCAULT, 1994c, p.
577).
Consoante a essa argumentação, a questão que é urgente
analisar não é aquela em que uma determinada situação histórica, ou
em relação a algo que experimentamos como contemporâneo,
delinearia a razão e a justificativa para uma reflexão filosófica. Não
se trata, inclusive, de encontrar ou reconhecer em dada situação
histórica atual a razão para a tomada de uma decisão filosófica. A
questão tem outra importância e, igualmente, uma natureza
diferente.
A questão tem por objeto o que é este presente, ela tem por
objeto inicialmente a determinação de certo elemento do
presente que se trata de reconhecer, de distinguir, de decifrar
entre todos os outros. O que é que, no presente, faz sentido
atualmente para uma reflexão filosófica? (FOUCAULT, 1994c,
p. 680).
456
É importante esclarecer que toda essa concepção de filosofia
como diagnóstico da atualidade e como modo de problematização
tem a ver diretamente, estando inclusive por ela compreendida, com
a elaboração de uma história do pensamento. Aliás, Foucault
empregou a noção de problematização para distingui-la, no
essencial, de uma história das ideias, ou seja, a análise dos sistemas
de representação; e de uma história das mentalidades, isto é, a análise
das atitudes e dos esquemas de comportamento. Uma história do
pensamento, por sua vez, se interessa, sobretudo, pela maneira com
que se constituem os campos de experiência e os problemas que são
colocados para o pensamento, ao mesmo tempo que procura
discernir as estratégias com as quais são desenvolvidas as respostas
possíveis. Com efeito, a um mesmo conjunto de dificuldades
diversas respostas podem ser dadas, e na maior parte do tempo elas
são efetivamente propostas. Contudo, como esclarece Foucault, “o
que é preciso compreender é aquilo que as torna simultaneamente
possíveis; é o ponto no qual se origina sua simultaneidade; é o solo
que pode nutrir umas e outras, em sua diversidade, e, talvez, a
despeito de suas contradições” (FOUCAULT, 1994c, p. 597-598).
O trabalho de Foucault está, nesse sentido, apresentado em
termos de uma pesquisa sobre a forma geral de problematização, que
é, do mesmo modo, a forma da investigação filosófica como
diagnóstico da atualidade.
O que distingue o pensamento é que ele é totalmente diferente
do conjunto das representações implicadas em um
comportamento; ele também é completamente diferente do
campo das atitudes que podem determiná-lo. O pensamento
457
não é o que habita uma conduta e lhe dá um sentido; é,
sobretudo, aquilo que permite tomar uma distância em relação
a essa maneira de fazer ou de reagir, e to-la como objeto de
pensamento e interrogá-la sobre seu sentido, suas condições e
seus fins. O pensamento é liberdade em relação àquilo que se
faz, o movimento pelo qual dele nos separamos, constituímo-
lo como objeto e pensamo-lo como problema (FOUCAULT,
1994c, p. 597).
Igualmente, é preciso dizer que o entendimento de Foucault
sobre a filosofia como atitude crítica não decorre de uma acepção
geral de crítica que, a pretexto de um exame metódico, recusaria
todas as soluções possíveis, exceto aquela que seria a verdadeira, certa
e adequada às condições do problema. Como Foucault procurou
esclarecer, e o fez de modos diversos, ela está de preferência afeita ao
modo de uma problematização do pensamento; ou seja, à
elaboração de um domínio de fatos, de práticas discursivas e não
discursivas que efetivamente colocam problemas para a investigação
filosófica no seu projeto de diagnosticar a atualidade.
O trabalho de uma história do pensamento seria encontrar na
origem dessas diversas soluções a forma geral de
problematização que as tornou possíveis até em sua própria
oposição; ou, ainda, o que tornou possíveis as transformações
das dificuldades e obstáculos de uma prática em um problema
geral para o qual são propostas diversas soluções práticas. É a
problematização que corresponde a essas dificuldades, mas
fazendo delas uma coisa totalmente diferente do que
simplesmente traduzi-las ou manifes-las; ela elabora para suas
propostas as condições nas quais possíveis respostas podem ser
dadas; define os elementos que constituirão aquilo que as
458
diferentes soluções se esforçam para responder. Essa elaboração
de um dado em questão, essa transformação de um conjunto de
complicações e dificuldades em problemas para os quais as
diversas soluções tentarão trazer uma resposta é o que constitui
o ponto de problematização e o trabalho específico do
pensamento (FOUCAULT, 1994c, p. 598).
Por fim, tal concepção de análise crítica está muito distante
de uma análise em termos de desconstrução, refutação ou avaliação
lógico-linguística do conteúdo e do método de certas teorias. Ao
contrário, trata-se de uma pesquisa com a qual se procura ver como
foram constituídas as diferentes soluções para um determinado
problema, tanto quanto se procura saber como essas diferentes
soluções decorrerem de uma forma específica de problematização.
“O trabalho de reflexão filosófica e histórica é retomado no campo
de trabalho do pensamento com a condição de que se compreenda
bem a problematização não como um ajustamento de
representações, mas como um trabalho do pensamento”
(FOUCAULT, 1994c, p. 598).
Notas para uma conclusão
Em O cuidado com a verdade, o tratamento que Foucault
imprimiu aos temas analisados nessa entrevista à Magazine littéraire,
em maio de 1984, nos faz lembrar que “sempre se chega ao essencial
retrocedendo”
10
. Oportunamente, isso se aplica aqui. Ora, essa
10
Cf. FOUCAULT (1994c, p. 669).
459
maneira de entender o trabalho e a escrita filosófica revela o
pensamento ao modo de uma regressão e de uma proliferação.
Primeiramente, revisar os conteúdos trabalhos, e antes deles o
projeto delineado para a pesquisa, é dar ciência ao que foi
modificado no modo de pensar os problemas, tanto quanto
descobrimos que esse exercício de pensamento não deixou de alterar
a experiência, em virtude da qual somos inteiramente modificados
ao final do processo. Em segundo lugar, escrever, no caso da escrita
filosófica, não é uma decisão premeditada. Por essa razão é que o
pensamento filosófico está destituído do sentido de progresso ou
mesmo teleológico, porquanto sua condição é a de ser revisado em
suas próprias bases, interpelado permanentemente em seu processo.
Talvez, o exercício de pensamento tenha a ver
verdadeiramente com a realização de uma viagem, na qual não é
levado consigo provisões ou um destino certo, mas a experiência de
um deslocamento, a experiência de uma démarche. É a experiência,
despida de decisão premeditada, que ameaça o pensamento em suas
próprias certezas.
11
Mas também tem muito a ver com a viagem
como aventura, porque não se sabe bem o que se vai encontrar ao
final nem no percurso do trajeto. Há muito de indeterminado em
11
A propósito, essa situação paradoxal é mais evidente ainda com a educação, quando
pensada entre a memória e a experiência do novo: “A memória da educação remete para a
experiência de uma viagem e de um acompanhamento: o escravo pedagogo que conduz a
criança à escola. A partir desta figura fundadora, poder-se-ia pensar que qualquer tentativa
de pensar a educação não é mais do que a elaboração de um discurso de um saber, de
práticas, o desenho de acções ou a construção de regras cujo objecto é essa experiência
primordial do acompanhamento e da viagem. No entanto, essa experiência não é a mesma
no momento da sua manifestação original e de sua específica singularidade, ou no momento
da sua explicitação num discurso que se pretende racional e no contexto de uma particular
escrita pedagógica. Assim como não há filosofia sem escrita (e sem textos que argumentem),
também não há escrita sem escrita pedagógica (e sem argumentos sobre a educação)
(VILELA; BÁRCENA, 2006, p. 17).
460
ensaiar o pensamento como problematização, mas isso ainda não
quer dizer tudo. Quer dizer, inclusive, que ao método da ironia
socrática podemos opor o riso e o humor dos estoicos. Pensar desse
modo tem algo de arriscado, mas também de lúdico: “trata-se
sempre de cortar na espessura, de talhar superfícies, de orientá-las,
de acrescê-las e de multiplicá-las, para seguir o traçado das linhas e
dos cortes que se desenham sobre elas” (DELEUZE, 1969, p. 168).
Pois bem. Essa atividade de crítica filosófica é um exercício
dos mais difíceis. Vemo-lo como um desafio, que não parece vir do
desenvolvimento natural dos argumentos, mas do fora ou do duplo
do pensamento o não pensado ou o impensado , talvez um devir
que avança em direção ao trabalho do pensamento para, no instante
seguinte, despojá-lo de suas certezas. O “pensamento só pensa
coagido e forçado, em presença daquilo que ‘dá a pensar’, daquilo
que existe para ser pensado e o que existe para ser pensado é do
mesmo modo o impensável ou o não pensado, isto é, o fato perpétuo
que ‘nós não pensamos ainda’” (DELEUZE, 1993, p. 188). É,
assim, um ponto de desestabilização. É preciso ver com clareza que
o que é mais importante à perspectiva do ensino de filosofia como
problematização do pensamento é a desvinculação dessa imagem que
o pressupõe implícito na forma da representação, em seus elementos
bem como no modelo da recognição. Por outro lado, é a abertura
para a experimentação como prática filosófica, isto é, como
experimentação do conceito. Em resumo, tudo isso corresponde a
uma aprendizagem filosófica.
Propomos um uso paradoxal da equivalência. Deleuze
gostava de lembrar que “Mais importante do que o pensamento é o
que ‘dá a pensar’; mais importante que o filósofo é o poeta”
461
(DELEUZE, 1998, p. 117). E poderíamos completar dizendo que
mais importante que ensinar é aprender. Isso é certo, mas ainda
assim não menos paradoxal. Em Proust e os signos, Deleuze põe à
prova o limite da interpretação filosófica: a gênese do pensar no
pensamento. Explica que sem algo que o force a pensar, o
pensamento nada seria além de uma possibilidade abstrata. Aqui
vemos enunciada uma equação com variações e diferentes gradientes
de intensidade: se pensar é problematizar, então problematizar é
experimentar. Mas não é do mesmo modo que cada filósofo a faz
surgir, alguns talvez nunca a tenham formulado. Vejamos bem no
que isso consiste. Por que mais importante do que o pensamento é
o que dá a pensar? Por que mais importante do que o filósofo é o
poeta? Ora, porque “o essencial está fora do pensamento, naquilo
que força a pensar”, explica Deleuze (1998, p. 117). O poeta é capaz
de disso, ao contrário do filósofo que se contenta apenas em
interpretar. Já, aprender tem outro destino: “a aprendizagem está,
antes de mais nada, do lado do rato no labirinto, ao passo que o
filósofo fora da caverna considera somente o resultado o saber
para dele extrair os princípios transcendentais” (DELEUZE, 1998,
p. 215).
E por que mais importante do que ensinar é aprender? Pois
bem, aqui está a alternativa ou a formulação do problemático. Na
verdade, nós a encontramos na tensão gerada pela passagem do
pensamento do mundo da representação para a filosofia como
problematização. Todo esse campo das ideias é problemático porque
não está sujeito ao regime das soluções, tampouco ao postulado do
saber. De acordo com Deleuze (1993, p. 214), o “saber designa
apenas a generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das
462
soluções, ao passo que aprender não detém regra alguma para
determinar as soluções em cada caso. Assim, ele não corresponde à
generalidade tanto quanto não emana da recognição. Aprender é
dispor da vontade, do sentido e dos meios para pensar os problemas.
“Aprender é penetrar no universal das relações que constituem a
Ideia e nas singularidades que lhes correspondem” (DELEUZE,
1993, p. 214). Sim, é verdade que é difícil aprender, mas não vamos
desenvolver esse tema aqui. Já seria outro trabalho. Contudo, há
uma belíssima passagem de Diferença e repetição que lança um ponto
de luz onde o saber projeta sombras:
A Ideia de mar, por exemplo, como mostrava Leibniz, é um
sistema de ligações ou de relações diferenciais entre partículas e
de singularidades correspondentes aos graus de variação destas
relações, o conjunto do sistema encarnando-se no movimento
real das ondas. Aprender a nadar é conjugar pontos relevantes
de nosso corpo com os pontos singulares da Ideia objetiva para
formar um campo problemático (DELEUZE, 1993, p. 214).
Contudo, o problemático não é um estado provisório do
conhecimento. Há um grande equívoco em pensar que na ausência
de resolubilidade o problemático permanece como um estado de
indeterminação do problema. Assim como ele não pode ser
explicado pelas séries categoriais, tampouco pode ser assimilado à
forma lógica das hipóteses. A mesma coisa se passa com os
problemas. “Um problema não existe fora de suas soluções. Mas, em
vez de desaparecer, ele insiste e persiste nas soluções que o recobrem.
Um problema se determina ao mesmo tempo em que é resolvido;
mas sua determinação não se confunde com a solução: os dois
463
elementos diferem por natureza” (DELEUZE, 1993, p. 212). O
problemático pertence completamente às condições do problema, às
suas repartições e às conjunções de pontos singulares, ao passo que
sua especificação remete o problema às soluções construídas. Ainda
assim, aprender não é o resultado de uma solução apresentada ao
problema, o saber, mas a sua prova. Assim como o saber está
compreendido pela modalidade das soluções, o aprender es
inteiramente assimilado pelo problemático.
O essencial está dito aqui. Pensamos concluir dando para o
texto esse fim, talvez com algo de indeterminado, mas não sem
esperança. Contudo, isso nos mostra que se temos de pensar nessas
coisas como algo a realizar, como tarefa, é porque estamos ainda
afeitos ao pensamento em termos de representação. Talvez porque
ainda não fazemos algo de diferente em filosofia do que uma
analítica da verdade; talvez dissimulemos, tentamos nos
desvencilhar, ao invés de romper e arcar com tudo o que isso
acarreta. O perigo da renovação do pensamento é real.
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464
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RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. 2. ed. Rio de
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VILELA, E.; BÁRCENA, F. Acontecimento. In: CARVALHO, A.
D. (Coord.). Dicionário de filosofia da educação. Porto: Porto
Editora, 2006. p. 14-19.
Pareceristas
Este livro foi submetido ao Edital 001/2021 do Programa de Pós-
graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, câmpus
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