Jonas Rangel de Almeida
A analítica do texto percorre três campos teóricos [...] do reconhecimento. Taylor,
Honneth e Butler [...] abordados para se fazer emergir a hipótese que tais teorias não
são sucientes para se chegar a um corpo utópico, ou seja, a uma mobilidade polí-
tica outra em decorrência das atualizações demandadas no mundo contemporâneo.
É aqui que se irrompe o pensamento de Foucault. [...] o que se delineia, arma-se
e se deseja no texto são outros corpos para reconhecimentos em franco devir. [...]
o que está em cena é uma genealogia de uma longa Erndung, ou seja, de uma
longa invenção do Reconhecimento, com R maiúsculo. Tal invenção, por sua vez,
interpõe-se entre o vôo fugaz da Minerva na penumbra que insiste em se anunciar
e as auroras que restam por acontecer Nietzsche, recordando Rigveda, dizia: “Há
tantas auroras que não brilharam ainda”. Que auroras possíveis para outra política de
reconhecimento? O que se suscita, a partir daí, para a arte de governo, a educação
e as vidas? Desde a Bildung ocidental, talvez cansada demais por não reconhecer a
si mesma, indaga-se: por onde, como e por que circunscrever-se-ia a inclusão de
corpos que não são reconhecidos? [...] Quantos recipientes para losoa da educa-
ção existem? E para o pensamento? E para a subjetividade? E para o neoliberalismo?
E para a consciência que reconhece? E para o rosto tipicado que tipica o rosto
alheio? E para o corpo que será abjetado? E para o gesto mórbido da repetição do
gozo burocrático? E para tantos desconhecidos e excluídos desta sociedade?
As lutas por inclusão e por reco-
nhecimento orbitam as políticas da vida.
São lutas pela existência de sujeitos vivos,
corporais, capazes de engendrar resistên-
cias a tanatopolítica moderna. Conitos
vitais que se levantam contra o agrava-
mento da precariedade da existência hu-
mana e, em contrapartida, assentam-se
em modos de subjetivação que se efetu-
am de um modo quase jurídico. Escrito
em interface com o campo da losoa da
educação este livro procura presenticar
o diagnóstico de Foucault das lutas pelo
governo de si mesmo em estreita corre-
lação com as teorias do reconhecimento
atuais que se tornaram verdadeiros con-
ceitos guia para o estabelecimento de vi-
sões normativas do sujeito, da educação
e da sociedade. Em diálogo com as vi-
sões de Charles Taylor, Axel Honneth e
Judith Butler investiga-se a recorrência
da noção de reconhecimento em Fou-
cault como um dispositivo de formação
dos sujeitos: primeiro com a emergência
do corpo humano como lócus do poder
sobre a vida servindo de condição para
estabelecer nas práticas divisoras relações
entre a normalização e as resistências; se-
gundo, uma genealogia que toma como
o condutor as técnicas de si mostrando
como moldaram historicamente a noção
do sujeito de desejo. Erótica e retórica
que podem ser sintetizados como hon-
rar o desejo e transgurar-se ante o discur-
so verdadeiro. Jonas Rangel de Almeida,
Cientista Social (UNESP) e Doutor em
Educação pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências, UNESP campus de
Marília. Atualmente é professor da rede
pública estadual de ensino.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0798/2018
Processo 23038.000985/2018-89
FOUCAULT E AS TEORIAS DO RECONHECIMENTO
Jonas Rangel de Almeida
ALEXANDRE FILORDI DE CARVALHO | UFLA - UNIFESP
interfaces com a Filosofia da Educação
FOUCAULT
E AS TEORIAS DO RECONHECIMENTO
FOUCAULT E AS TEORIAS DO RECONHECIMENTO:
INTERFACES COM A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Jonas Rangel de Almeida
FOUCAULT E AS TEORIAS DO RECONHECIMENTO:
INTERFACES COM A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
Jonas Rangel de Almeida
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
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Vice-Diretora
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Conselho Editorial
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Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
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Auxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
Imagem da capa: O cambista e sua mulher (Quentin Massys) domínio público
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Massysm_Quentin_%E2%80%94_The_Moneylender_and_his_Wife_%E2%80%
94_1514.jpg)
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Almeida, Jonas Rangel de.
A447f Foucault e as teorias do reconhecimento: interfaces com a filosofia da educação / Jonas
Rangel de Almeida. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
292 p.: il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-121-8 (Digital)
ISBN 978-65-5954-120-1 (Impresso)
1. Foucault. Michel – 1926-1984. 2. Educação - Filosofia. 3. Reconhecimento (Filosofia).
4. Inclusão em educão. I. Título.
CDD 370.1
Copyright © 2021, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
DOI: https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-121-8
Agradecimentos
Ao Pedro Ângelo Pagni, pela amizade, o respeito, o exemplo de
dedicação e a orientação ao longo do caminho.
À Karina Cássia Oliveira Reis, minha esposa, companheira e
amante que tem trilhado e sonhado um projeto de vida comigo.
Aos professores Alexandre Simão de Freitas, Alexandre Filordi de
Carvalho, Divino José da Silva e André de Macedo Duarte pelas
contribuições, correções e sugestões.
Aos colegas do GEPEF que compartilharam suas ideias,
pensamentos e experiências em todos esses anos de pesquisa.
À Unesp e ao Programa de Pós-Graduação em Educação.
Agradeço a todos os servidores pelo apoio institucional.
O presente trabalho resultado da tese de doutorado em Educação
foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001,
processo nº 88882.180675/2018-01.
Sumário
Prefácio..................................................................................................9
Introdução...........................................................................................15
Capítulo 1 | Políticas de Identidade e Lutas por Reconhecimento........29
Identidades e políticas de reconhecimento
Moral e luta por reconhecimento
Educar e formar na esfera do reconhecimento
Curvas sinuosas entre Foucault e a teoria crítica
Capítulo 2 | Reconhecimento e Vulnerabilidade...................................89
Desejo de reconhecimento
Desejo, linguagem e sujeição psíquica
Reconhecimento, precariedade e despossessão de si
Educação entre a autorrealização e a despossessão de si
Capítulo 3 | Reconhecer e Incluir Como Dispositivos de Individualização
do Poder.............................................................................................145
Do governo dos corpos
O discurso e o sexo
Animal confessante
Estratégias e dispositivos de poder
A família incestuosa
A irrupção da infância
Entre a vida e poder
Capítulo 4 | Cuidado com o Homem Interior....................................213
Aleturgia, do governo da verdade ao si-mesmo
Erótica, da honra do rapaz à pureza da mulher
Considerações Finais...........................................................................261
Referências.........................................................................................273
9
Prefácio
Este livro aborda um tema relevante para as políticas de inclusão
em curso e para se discutir nos campos filosófico e educacional o sentido
estratégico das tecnologias do reconhecimento nas lutas em prol de uma
governamentalidade biopolítica da população, especialmente, com o
avanço do neoliberalismo. O autor parte para tanto de um problema
enfrentado em sua trajeria como proveniente de setores dessa
população que, ao ingressar na universidade após décadas de lutas, se
defronta com uma regulamentação jurídica que os reconhece como novo
sujeito da justiça social, mas que exige que abram mão das diferenças
constitutivas de seu ethos em formação que potencialmente poderiam
produzir subjetivações outras - para se adequar aos seus jogos
produtivistas e, porque não dizer, à certa qualificação como sujeito
econômico. Esse processo ocorre conjuntamente com a introdução de
uma série de dispositivos que os individualiza de uma forma totalizante,
ao mesmo tempo em que distribui esses setores da população no ensino
superior. Partindo desse testemunho e de certa indignação de que fora
neutralizada por esse processo qualquer interpelação de uma cultura
acadêmica elitista, outras vezes excessivamente pragmática, o livro explora
as fontes filosóficas apropriadas na discuso proposta para respaldar essa
micropolítica de reconhecimento e para sugerir outros usos de suas
tecnologias nas lutas por inclusão: como afirmação das diferenças e como
focos de resistência aos devires majoritários em circulação na
universidade brasileira.
10
Em torno desse eixo o seu autor elabora um percurso bastante
produtivo e impressionante por se tratar dos resultados de uma tese de
doutorado , abarcando o pensamento de filósofos como Charles Taylor,
Axel Honneth, Judith Butler e, especialmente, Michel Foucault. Não por
coincidência o embate produzido por esses filósofos é similar aquele que
emerge no campo das pesquisas em filosofia da educação, demonstrando
haver aí mais do que uma complementaridade de argumentos que
sustentam as políticas de inclusão no Brasil, mas um dissenso claro, no
que se refere à temática do reconhecimento, ainda que inadvertido.
Nesse sentido, os argumentos do livro são o de que as teorias do
reconhecimento que se apóiam numa esfera jurídico-política e que
vislumbram em suas lutas a construção de sociedades inclusivas, como as
de Taylor e de Honneth, conferem às diferenças constitutivas dos setores
mais vulneráveis da população a necessidade de serem respeitados e
tratados com certa concessão de um lugar de direitos sociais. Eles são
analisados quanto à sua importância no que se refere aos aspectos táticos,
mas não estratégicos dessas lutas. São também criticados por produzirem
formas de reconhecimento que concorrem para determinadas políticas
identitárias e, portanto, para uma governamentalidade biopolítica que,
com o avanço global do neoliberalismo, passou a atuar por distribuição e
cooptação dessas identidades aos jogos de biopoder e à racionalidade
econômica cujo fim último é medido pela prosperidade econômica, pela
renda adquirida com o capital humano e, principalmente, com o
consumo. Por fim, tendo o reconhecimento da diversidade cultural como
uma garantia dessa racionalidade governamental, essas teorias
respaldariam ações no campo jurídico que, não obstante sua importância,
não seria suficiente para promover a afirmação da diferença e, em
especial, a sua expressão aletúrgicas, justamente pelo modo como a
consciência e a pragmática da linguagem se sobrepõem ao sujeito de
11
desejo. Esta é a principal ressalva feita neste livro às teorias do
reconhecimento de Taylor e de Honneth.
Para abordar esse terreno, a discussão apresentada pelo autor do
livro reporta o seu leitor aos pensamentos de Judith Butler e de Michel
Foucault. Para esses filósofos o desejo ocuparia o centro do uso das
tecnologias de reconhecimento nas lutas em prol da inclusão. Isso porque
para a filósofa estadunidense o desejo seria a parte oculta dos relatos de si,
responsáveis pela expressão dos corpos e das possibilidades de criação das
alianças políticas propiciadas pelos setores da população governável,
anteriormente mencionados. Vistos como uma falta, decorrente de uma
ontologia da vulnerabilidade e parte constitutiva das existências precárias
que a reúnem, o desejo seria o móvel para que essas lutas se processassem
em prol de um reconhecimento que abrangesse a minimização dessa
precariedade, a amenização da violência resultante dos jogos de
dominação e a radicalização das formas de vida democráticas. Dessa
perspectiva, à luz dessas reflexões poder-se-ia dizer que se, anteriormente,
esses setores teriam sido excluídos em razão de sua vulnerabilidade, ao
menos há uma década acedem ao ensino superior e nele poderiam criar
formas de existência comuns insurgentes na universidade e,
consequentemente, utilizar as tecnologias de reconhecimento para que a
afirmação de suas diferenças de modo tal que aprimorasse politicamente a
democracia, tornando-a mais radical em nossa sociedade.
Essa perspectiva seria vista neste livro como uma afronta ao
neoliberalismo, sobretudo, porque conferiria à democracia um caráter
ilimitado pelas lutas sociais por inclusão, advindas de setores da
população que, em função de sua precariedade, demandaria o
atendimento de suas necessidades vitais e de seus desejos como parte de
uma racionalidade governamental mais plural e democrática, assegurando
pelas políticas sociais, certa igualdade de condições, para ampliar as lutas
12
por mais liberdade. Contudo, não tratar-se-ia apenas de utilizar o
reconhecimento apenas como uma tecnologia social respaldada numa
noção de desejo como falta ou como luta de suprir primeiro a
necessidade para então que o sujeito lutasse por liberdade.
Diferentemente dessa postura em relação ao reconhecimento, o autor do
livro sustenta que ele pode ser compreendido como uma tecnologia de si,
que afirma as diferenças enquanto signo não somente de vulnerabilidade,
de falta e de violência, como também de força, de uma atitude crítica
afirmativa e insurgente, produtora de modos outros de subjetivação.
Com vistas a abordar essa perspectiva, o livro recorre ao pensamento de
Michel Foucault, particularmente, a alguns de seus últimos cursos para
abordar o desejo, não como falta, mas como potência, reportando o leitor
a uma economia do prazer em que os dispositivos de sexualidade são
desmontados para que uma erótica possa ser vislumbrada e nos auxilie a
desnaturalizar as condições pelas quais os dispositivos de inclusão atuam
no sentido de aplacar, neutralizar e despotencializar as nossas forças, por
assim dizer, ingovernáveis.
Esta é ao meu juízo a sua contribuição original e o seu impacto
acadêmico mais relevante, seja para as pesquisas em Filosofia da
Educação, seja para outros campos que abordam o tema, seja para as
políticas inclusivas do ensino superior, seja ainda para jovens estudantes
que, ao ingressarem nesse grau de ensino, podem se inspirar em ensaios
de si como este, recriando sua cultura, mediante a potencialidade de suas
diferenças. Isso porque é sobre essa ingovernabilidade que faz muito
desses estudantes que provieram de situações como as retratadas se
sentirem “menos”, ontologicamente falando, começarem a se sentir
“mais”, como um sujeito indelével, insubstituível, com um papel
histórico a cumprir. Não se trata de dizer que esses estudantes seriam os
novos sujeitos da revolução, mas que o agenciamento das diferenças e dos
13
devires que a produzem no interior dessa instituição poderia fazê-los criar
coletivamente modos de existências outros, na micropolítica que a
compreende, propondo espaços cada vez mais livres a serem ocupados
por esses atores, sem desmerecer os demais nem cair na armadilha
identitária ou universal dos protagonismos.
É esse retrato do reconhecimento e das políticas de inclusão e
elaboração que nos convida a refletir, como leitores, e, quem sabe, a nos
engajar, como atores, a sair de nossa condição como meros elementos de
uma instituição como a universidade ou, mesmo, das lutas sociais por
inclusão. Para nelas existir é preciso resistir e recriá-las! Esta é a
provocação ou, ao menos, o foi para mim , uma vez que abrir o
caminho para esse outro que vem tem se apresentado como uma
exigência histórica e política de nosso presente, conjuntamente com os
desafios acadêmicos de uma cartografia por vir, da qual este livro me
parece ser só um começo.
Para finalizar este prefácio, gostaria de expressar o quanto me
sinto honrado de fazer parte deste começo. Agradeço também ter
acompanhado como orientador e amigo o trajeto de Jonas Rangel de
Almeida e todo aprendizado, ao longo de mais de uma década, para
enxergar a clandestinidade dos devires que habitam as lutas pelo
reconhecimento.
Pedro Ângelo Pagni
Professor Associado do DASE-FFC/UNESP
Pesquisador do CNPq
15
Introdão
Escrito em interface com o campo da filosofia da educação este
livro procura presentificar o diagnóstico de Foucault das lutas pelo
governo de si mesmo em estreita correlação com as teorias do
reconhecimento atuais que se tornaram verdadeiros conceitos guia para o
estabelecimento de visões normativas do sujeito, da educação e da
sociedade. Em diálogo com as visões de Charles Taylor, Axel Honneth e
Judith Butler investiga-se a recorrência da noção de reconhecimento em
Foucault como um dispositivo de formação dos sujeitos: primeiro com a
emergência do corpo humano como lócus do poder sobre a vida servindo
de condição para estabelecer nas práticas divisoras relações entre a
normalização e as resistências; segundo, uma genealogia que toma como
fio condutor as técnicas de si mostrando como moldaram historicamente
a noção do sujeito de desejo.
Desde meados dos anos de 1990, acompanhando a tendência
global, ocorre um movimento na educação brasileira que procura pensar
sob os mais diversos aspectos à nossa diversidade cultural e humana, seja
por meio das desigualdades econômicas, pelo recorte étnico, racial e de
nero, ou através das inúmeras diferenças individuais, acidentes e
deficiências. A começar com o processo de redemocratização,
principalmente, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso as
primeiras políticas de inclusão escolar sobretudo, políticas de inclusão
para pessoas com deficiência e de reconhecimento cultural começaram
a ser gestadas e têm adquirido grande visibilidade pública e acadêmica
16
desde então (RECH, 2010). Atualmente, movimentos sociais, entidades
de proteção, organizações de direitos humanos, as mídias sociais, a
imprensa e a televisão promovem a luta contra a intolerância recorrente
em relação aos grupos minoritários. O acirramento das tensões tem
conduzido um debate intenso sobre valores, a vida política, os privilégios
e as desigualdades existentes no Brasil. O dilema do caso brasileiro,
apresenta-se, acima de tudo, nas dificuldades de implementar uma
agenda de políticas sociais voltada às minorias políticas, econômicas e
sociais.
Habitualmente, quando se fala em inclusão se pensa em políticas
econômicas e sociais dirigidas às pessoas com deficiência. No entanto,
nesta pesquisa é preciso enfatizar o que se entende por inclusão constitui
um arranjo tecnológico mais amplo de técnicas políticas, econômicas,
sociais e culturais, cujos alvos são grupos, setores e classes marginalizadas
historicamente, e que recentemente emergiram na cena pública como:
elementos e atores em luta contra o ‘neoliberalismo’, cujo exemplo pode
ser observado no movimento de mulheres, movimento negro, indígena,
de jovens pobres da periferia, de pessoas deficientes e LGBT’s.
O estatuto da alteridade, do outro e do reconhecimento
intersubjetivo ocupam um lugar importante nas pesquisas em Educação,
programas de governo, nos dispositivos e práticas educacionais de
inclusão do mundo globalizado que congregam esforços para tornar
efetivos os direitos humanos nas mais diversas sociedades (PALACIOS,
2008). À agência do professor ação e formação o reconhecimento do
outro, da diferença, foi elevado como uma exigência básica à
transversalidade das teorias da aprendizagem e do ensino, sendo
perspectivado como requisito para se atuar em uma sociedade pluralista e
diversa. Isto é, torna-se preciso reconhecer para incluir, assim como
incluir para reconhecer, para solidificar os pilares da educação no mundo
17
globalizado aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser (DELORS,
1998).
Na obra El modelo social de discapacidad, Agustina Palacios
(2008) reconstituiu a história das práticas de inclusão e exclusão desde as
práticas arcaicas com caractesticas eugênicas até o modelo social vigente.
Aquilo que a princípio envolvia uma série de práticas hoje consideradas
bárbaras passou no decorrer da história por uma série de transformações.
Primeiro, houve o modelo arcaico das civilizações gregas e romanas;
segundo, um período de marginalização, bem explorado por Foucault em
História da loucura na figuras históricas do “grande encarceramento”
(FOUCAULT, 2008) e nos cursos no caso da “exclusão do pestilento”
(FOUCAULT, 2001); seguido, por um terceiro, o modelo reabilitador
baseado na sociedade disciplinar; e, por fim, o atual assentado no ideário
político do pós-guerra, de defesa dos direitos humanos, portanto, um
modelo social de inclusão. No vocabulário político atual, para Palacios
(2008), a inclusão social figura como política do Estado à medida que
pretende realizar os ‘direitos humanos’ com vistas a garantir a ‘dignidade
humana’. A incluo pode ser considerada uma vontade de estar dentro,
integrado à comunidade e realizado como pessoa humana. Podemos
conjugar a inclusão junto com a luta em torno do poder e do
reconhecimento. É o caso de incluir para igualar, pois, o que anima a
vontade de ser incluído é a mesma vontade de ser igual. Incluído no
convívio dos homens, na sociedade e na assembleia dos iguais. E para
garantir isso, a inclusão tem sido pensada como uma demanda por justiça
(NUSSBAUM, 2013).
No Brasil, as chamadas políticas de igual-dignidade e de diferença
segundo os termos cunhado por Taylor (1998) têm suscitado grande
discussão na sociedade civil. A estabilização política alcançada durante o
governo FHC, depois, as políticas sociais perpetradas contra a pobreza no
18
governo Lula, somado, às políticas educacionais, isto é, a explosão do
número de vagas no ensino superior criação dos Institutos e
Universidades Federais , bem como, as políticas de ação afirmativa
parece recrudescer hoje em dia diante da falência do consenso social.
Sem dúvida, é possível apontar as jornadas de junho de 2013,
como um acontecimento decisivo para o crescente engajamento e reação
entre os brasileiros. A nova república marco constitucional em 1988
nasceu com a pretensão de abafar os ânimos, anistiar os “antagonistas” de
“um dueto desarmônico” (CUNHA, 2010), e dar início a um grande
pacto conciliador entre as classes subalternas e a elite do país. Junho de
2013 teve o mérito de nos mostrar o horizonte fraturado. A nova
república e sua constituição social foram de alguma forma uma grande
promessa de reconhecimento, porém, apresenta sintomas de fracasso
diante dos desafios enfrentados. De fato, perante os sinais de falência da
democracia, do Estado de direito e o anúncio de arrefecimento das
políticas sociais se pode até pensar que “a nova república acabou”.
(SAFATLE, 2015a).
Na interpretação do filósofo Vladimir Safatle, as lutas por
reconhecimento e justiça social notabilizaram-se desde a década de 1970
até os dias atuais a julgar pelo “[...] seu potencial de defesa de minorias
étnico-culturais [...]” (SAFATLE, 2015c, p. 84). Nos países
desenvolvidos esses conflitos ocorrem diante do processo de
desmantelamento do Estado de bem-estar social e das novas regras de
política econômica oriundas da concepção neoliberal. Perante esse
quadro transnacional de novos sujeitos que se colocam em luta, os
filósofos, sociólogos, pedagogos e intelectuais empenharam-se em
explicar esses fenômenos a partir de diversas matrizes inteligíveis e
tradições filosóficas.
19
De acordo com Safatle (2015c), pensadores como Michel
Foucault e Gilles Deleuze, ainda que não tenham responsabilidade direta
na recuperação da teoria do reconhecimento, contribuíram para a criação
de um quadro filosófico propício à centralidade política do problema do
reconhecimento e da alteridade nas sociedades atuais, quer por suas
críticas à ortodoxia marxista de lutas de classes, quer pela defesa ética do
primado da diferença. Em razão disso foram criadas as condições para
que a compreensão das lutas políticas fosse conduzida do enfoque
centrado na “[...] redistribuição de riquezas a outra mais ampla, centrada
em múltiplas formas de reconhecimento no campo da cultura, da vida
sexual, das etnias e no desenvolvimento das potencialidades individuais
da pessoa.” (SAFATLE, 2015c, p. 85).
Para aglutinar todos esses lugares de luta e de conflito, partes da
filosofia contemporânea e da teoria social resgataram a categoria
hegeliana de reconhecimento (SAFATLE, 2015c) como uma categoria
capaz de pensar as demandas dos sujeitos da contemporaneidade. Para
Honneth (1997) um dos mais proeminentes representantes da teoria
intersubjetiva do reconhecimento, ao lado de Charles Taylor e sua leitura
do moderno expressivismo romântico, essa categoria ressoa
simultaneamente à ideia de dignidade e respeito kantiana, bem como, a
eticidade dos costumes, ou normatividade social hegeliana.
Safatle (2015b) oferece-nos um indício importante ao mostrar
que os discursos de reconhecimento têm sido nas últimas décadas uma
categoria central para pensar as demandas dos sujeitos contemporâneos
identidade, dignidade e respeito. Isso implica que os discursos de
reconhecimento aparecem como uma categoria política que visa suprir,
em alguns casos suplantar (como pode nos levar a crer os argumentos de
FUKUYAMA, 1992), ou, em alguma medida complementar os discursos
anteriores sobre classe social, raça e gênero (HONNETH, 2003).
20
Portanto, sua pretensão é de responder às necessidades e aspirações dos
movimentos sociais e políticos de nossa época, convertendo-se em uma
espécie de paradigma de formação.
Com isso parte importante da teoria social tem recorrido ao
conceito de reconhecimento como o “[...] operador central para a
compreensão da racionalidade das demandas políticas [...]” (SAFATLE,
2015c, p. 79) do tempo presente. Seguindo a perspectiva inaugurada por
Taylor (1998), autores como Habermas (1998), Fraser (2000), Honneth
(2003) e Ricoeur (2006) procuram, mutatis mutandis, dar uma
contribuição específica e ampliar o debate em torno do reconhecimento
nas democracias liberais. À vista disso, Honneth (2003), a partir da
leitura do jovem Hegel, propôs que a força motriz que movem os
conflitos que eclodem em nossa modernidade são moralmente motivados
pela busca de reconhecimento intersubjetivo amor, solidariedade e
direitos por parte dos indivíduos e dos grupos que compõe a sociedade.
Ainda que este não seja o objetivo dessa teoria, parece-me que ao colocar
a busca por reconhecimento sob esses padrões psicossociais isso não
significa outra coisa senão a assunção de certos ideais transcendentais e
antropológicos à elaboração de uma perspectiva que permite reconstruir
as lutas do cotidiano e as alocar sob o prisma único da “dialética da
identidade” (PELBART, 2019).
Na Filosofia da Educação, essa ideia de que os indivíduos e os
grupos buscam, sobretudo, por reconhecimento se articula com as
correntes que têm afinidade com a teoria crítica e com a hermeutica,
justamente pela importância da dialogicidade, da comunicação e de uma
experiência que pretende conduzir o sujeito à autonomia. A ideia de que
o sujeito se forma estritamente ao passo que reconhece a si mesmo na
relação com os outros ocupa um lugar importante nas investigações
atuais. No campo da Filosofia da Educação, pode-se localizar a entrada
21
da teoria do reconhecimento no alvorecer dos anos 2000
(FLICKINGER, 2000). Em sua maioria, esses estudos, ora se
concentram sobre a interpretação hegeliana da dialética do senhor e do
escravo, que trata da origem da consciência de si (FLICKINGER, 2004,
2011a, 2011b; TREVISAN, 2011), ora provém, principalmente, de
matrizes da teoria crítica da sociedade presentes no pensamento de
Habermas; e Honneth; da hermenêutica filosófica de Gadamer; e de
Taylor (CENCI; DALBOSCO; MÜHL, 2013). Também, há estudos
sobre a filosofia social de Rousseau (DALBOSCO, 2011; 2014). Pode-se
dizer que tais visões têm um compromisso fortíssimo com o
estabelecimento de normas sociais capazes de regular a vida social, ou,
pretendem estabelecer a reconstrução de um tipo de conhecimento
emancipatório aqueles capazes de salvar o sujeito. Nessas questões
ressoam os estudos que se debruçam sobre a formação do sujeito,
especialmente depois do crescimento e fortalecimento de teticas
voltadas à ética, alteridade, diferenças e diversidade cultural
(HERMANN, 2014). Desse modo, o reconhecimento foi elevado a uma
categoria fundamental para a formação humana. Tudo se passa como se o
sujeito emergisse da mais insana obscuridade e passasse à razoável
claridade, como se no contato com a normatividade do social o sujeito
aparecesse em toda a sua plenitude num movimento de elevação da
heteronomia à autonomia, do desconhecimento ao reconhecimento e do
não pertencimento à identidade.
Perante isso se torna razoável interrogar se certos modos de
reconhecimento não podem conduzir o sujeito a uma “estilística da
obediência” (GROS, 2018). Nesse gradé, nesse jogo de luz e sombras,
existem certas nuances que a noção normativa de reconhecimento deixa
escapar, ou, simplesmente ignora, especialmente os efeitos de poder. Um
otimismo innuo que oferece muita atenção à dimensão intersubjetiva
22
do reconhecer e pouca sobre a subjugação e subordinação (JAEGGI,
2013). Entretanto, não creio que se trata de simplesmente inverter as
relações de reconhecimento para sublinhar processos de sujeição.
Interessa, sobretudo, acentuar elementos subjetivantes correlatos das
técnicas de si nessa dinâmica capaz de nos mobilizar para o cuidado
ético-político com os outros, com o mundo e conosco mesmo. Ao
mesmo tempo, fazer a genealogia dos modos de construção de si e uma
crítica do homem interior.
Para isso, se faz necessário mover-nos em direção a zona nebulosa
e incerta que entremeia a subjetivação, que aparece inúmeras vezes no
pensamento de Foucault como uma espécie de ‘espaço vazio’ que
pertence ao campo do acontecimento. Objeto que alguns filósofos e
filósofas entre as quais, podemos citar Butler e Agamben se debruçam.
No pensamento de Butler (2015), habita-nos a cada tentativa de oferecer
um relato de si uma dimensão propriamente obscura, primária, muitas
vezes inacessível à narrativa do sujeito. De acordo com Agamben (2016)
há algo da ordem de um hiato que permanece entre a subjetivação e a
dessubjetivação. Desse modo, a categoria de reconhecimento aparece
como um problema, uma experiência incerta que coloca sob suspeita o
ideal da identidade. No testemunho de Agamben:
[n]os últimos trabalhos de Foucault, existe uma aporia [...] Por um
lado, há todo o trabalho sobre o ‘cuidado de si’: é preciso cuidar de si,
em todas as formas de prática de si. Mas, ao mesmo tempo, ele parece
enunciar o tema oposto: é preciso se desprender de si. [...] ‘Na vida,
estamos acabados se nos interrogamos sobre sua identidade; a arte de
viver é destruir a identidade, destruir a psicologia’. Portanto,
uma aporia: um cuidado de si que deve levar a um abandono de si.
Uma outra maneira de colocar a questão é: o que é uma prática de si,
não como processo de subjetivação mas como abandono, que
23
encontraria sua identidade unicamente no abandono de si? [...] duplo
movimento ao mesmo tempo, dessubjetivação e subjetivação. Claro,
esse é um terreno difícil de se manter. Trata-se de identificar essa
zona, essa no man’s land,que estaria entre um processo de subjetivação
e um contrário de dessubjetivação, entre a identidade e a não
identidade. (AGAMBEN, 2016, p. 7, aspas do autor).
Tendo em vista esse pequeno trajeto que tentei retraçar,
especialmente essa ideia que problematiza os limites da noção de
reconhecimento à experiência de subjetivação, pretendo doravante
explorar as dimensões dos processos subjetivantes da relação entre
verdade e subjetividade, no pensamento de Foucault. Para Agamben
(2016) essa zona incerta de não conhecimento entre a subjetivação e a
dessubjetivação é o meio propício para emergir um novo tipo de ‘uso’.
Mas deixemos, por enquanto, essa relação entre uso e cuidado de si, pois,
apesar da inestimável contribuição que oferece Agamben à interpretação
de Foucault, creio, seguindo Pelbart (2013), que há certos detalhes na
noção foucaultiana de “vidas capazes de condutas subjetivas” que não
correspondem apenas às figuras limítrofes apontadas pelo filósofo
italiano.
Diante desse debate, este texto limita-se a explorar ‘entre’ o
espaço do problematizável necessário para entender o redirecionamento
das artes de governo para os processos de subjetivação. A escolha desse
tema justifica-se porque conta com pouquíssimos estudos no campo da
Filosofia da Educação (FREITAS, 2014), a chamada tematização de si
mesmo. Além do mais, com esse tipo de reflexão pode-se criar conexões
entre a teoria crítica, hermenêutica e filosofia da diferença, tensionando a
equação no campo entre o reconhecimento forma positiva e a
subjugação as dinâmicas de sujeição , haja vista que talvez seja nesse
‘entre’ que irrompe nosso fundo, embora, indeterminado, comum.
24
Para garantir maior clareza privilegia-se uma exposição partindo a
princípio de uma descrição sumária da noção normativa de
reconhecimento e suas possibilidades no presente a partir de autores
como Taylor, Honneth e Butler. Em seguida, esforço-me em esmiuçar
algumas análises genealógicas de Foucault argumentando em favor de
uma compreensão do reconhecimento e da inclusão ligada à proliferação
de mecanismos normalizadores do corpo. Com isso, tem-se passa-se de
um ponto de vista normativo da subjetividade, uma linguagem
significante e representacional, para uma analítica de técnicas irredutíveis
a lei, que atuam diretamente sobre os corpos investindo-os de códigos de
conduta biopolíticos.
Com efeito, o que o leitor encontrará daqui em diante é uma
série de análises, onde exponho os resultados e as discussões que tentarão
se aproximar desse grau zero de significado. Não me interesso em
confrontar as diferentes teorias para determinar seu lugar de verdade, ou,
falsidade. O que pretendo na realidade é margeiá-las, distinguir diferentes
registros de inscrição da subjetividade, econômicos, semióticos,
estratégicos, dramáticos, e graças às diversas intensidades, criar conexões,
mesmo improváveis, mobilizando-as para crítica de uma interioridade
apática, covarde e reificada, construindo uma problematização
preocupada com a vida, com o mundo, com o cuidado de si e dos outros.
Um pensamento comprometido com a formação e a Filosofia da
Educação.
No primeiro capítulo que se intitula “Políticas de identidade e
luta por reconhecimento” procura-se reconstituir a categoria normativa
de reconhecimento como uma noção que pretende pensar as demandas
de um sujeito contemporâneo nas sociedades multiculturais. Com isso,
procura-se, primeiro, retraçar o modo como Taylor propõe sua
interpretação da política de reconhecimento a partir da ideia de
25
expressivismo romântico próprio a construção do nosso espaço moral e a
ética da autenticidade. Após isso, reconduz-se a questão à reconstrução da
gramática moral do reconhecimento e da liberdade social no pensamento
de Honneth cuja proposta se assenta na ideia de que os conflitos não
ocorrem em função de interesses econômicos, mas, devido ao
compartilhamento de semânticas coletivas que se formam contra o
desrespeito. Com isso, têm-se as bases para compreender a recepção do
tema no campo da Filosofia da Educação brasileira e seu giro em direção
ao reconhecimento. Por fim, tudo isso torna possível uma correlação
improvisada entre as lutas por reconhecimento e as lutas transversais
concebidas por Foucault. Todavia, existem nuances em relação ao ponto
de vista foucaultiano que são incompatíveis com a gramática
honnethiana, a hermenêutica tayloriana.
No segundo capítulo intitulado de “Reconhecimento e
vulnerabilidade trata-se de reconstituir a dimensão de subjugação do
reconhecimento no pensamento de Judith Butler. Nesse sentido, a teoria
do reconhecimento enquanto reconciliação apesar de assentar dinâmica
na ideia de conflito, deixa escapar certa dimensão de subjugação que os
atos de reconhecimento consolidam nas relações sociais. Desse ponto de
vista, procede-se a reconstituição da noção butleriana de reconhecimento
no decorrer do percurso teórico da autora que a princípio se desenha
como uma crítica às teorias psíquicas do poder e conforme o passar dos
anos culmina com uma ontologia geral da precariedade. Desse modo,
Butler procura forjar a categoria de vida vivível como uma maneira de
reabilitar as relações de solidariedade social. As formas de acesso à cultura
e educação estão divididas entre aqueles que têm uma boa educação e
aqueles que estão reservados apenas às formas de adestramento corporal.
O terceiro capítulo nomeado como “Reconhecer e incluir como
categorias de individualização do poder”, detém-se em analisar consoante
26
a genealogia do poder de Foucault, tanto, o desbloqueio das técnicas de
normalização, quanto, às técnicas de regulação social. O argumento que
se ambiciona construir é que os padrões de reconhecimento não se
separam da “[...] entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie
humana na ordem do saber e do poder - no campo das técnicas
políticas. (FOUCAULT, 2007a, p. 154). Reconhecimento e inclusão
são elementos biopolíticos. Por isso, as condições de possibilidades das
gramáticas múltiplas de reconhecimento não devem ser buscadas nas
estruturas cognitivas e sociais subjacentes à formação do sujeito, mas, no
desbloqueio tecnológico de mecanismos de controle do corpo. Os
dispositivos de reconhecimento não funcionam sem apelar para a
formação da pessoa, da personalidade. Assim, as semânticas de
reconhecimento constituem um amálgama dos dispositivos jurídicos e
familiares próprios ao século XVIII e XIX, por ocasião da emergência do
corpo e da vida como objetos de problematização. Quer dizer, não se
pode reconhecer e incluir o outro sem apelo a uma lei, a um desejo que
precisa ser organizado, um corpo interditado como o do pai ou da mãe.
E, ao mesmo tempo, foi no interior das relações atravessadas pelo
processo de disciplinamento, de exame, de escrutínio das técnicas
pastorais que começou a serem gestadas as ideias chave que serão
mobilizadas na luta por reconhecimento, como o corpo da criança, da
mulher, o problema da raça e da sexualidade.
O quarto capítulo “O cuidado com o homem interior” tem por
objetivo pensar a arte de viver como uma provocação às diversas formas
de reconhecimento relação entre sujeito e verdade. As artes de viver
como Foucault procurou investigar não seria um caminho para retraçar
genealogicamente esse homem que luta por reconhecimento? Para
responder essa questão toma-se como chave de leitura os últimos cursos
de Foucault no Collège de France, pronunciados entre 1980 e 1984. Essa
27
imersão de Foucault ao mundo antigo compõem parte fundamental do
seu projeto de uma história crítica da subjetividade, quer seja, o universo
das técnicas de si, da ética do cuidado de si mesmo e da espiritualidade
como uma atitude diante da vida. O que atravessa os cursos é a
disposição de se distanciar do sujeito moderno, cujo marco é o
“momento cartesiano”. Na genealogia das veridicções esse momento não
diz respeito apenas a Descartes, mas, com toda uma confluência que se
arrasta desde a aurora das artes de governo e das chamadas revoluções
científicas. Uma crítica que ecoa as célebres páginas de A história da
loucura lembrando: aqueles acontecimentos importantes como o grande
encarceramento dos loucos; e, a existência de um grande medo no
Ocidente, caso a loucura se espalhasse, fazendo reinar o caos sobre o
mundo social e do trabalho. A objetivação do sujeito moderno constitui
o acontecimento nevrálgico, uma vez que, toda a educação como arte de
governar os homens conflui a partir de processos inteiramente assentados
na transformação das antigas “artes de viver” em conhecimento
produzido por um sujeito.
Se no capítulo terceiro a análise deteve-se ao escopo genealógico
das técnicas de individualização próprio ao modo de sujeição moderno,
por outro lado, no último capítulo enfoca-se principalmente na
problematização da ética grega, especialmente a relação entre mestre e
discípulo por intermédio da tematização do prazer dos rapazes (eufebia) e
a emergência da amizade. Dessa maneira, atentando para interpretação
que sugere Fimiani (2008), entende-se que os efeitos produzidos pelo
devir ético do cuidado conseguem tencionar as familiaridades com as
dinâmicas de reconhecimento e gerar novas modalidades de experiência.
29
Capítulo 1
Políticas de Identidade e Lutas por Reconhecimento
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade,
da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer
uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O
homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se
encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem
de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem
coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do
esclarecimento [Aufklärung] (KANT, 1999, p. 100).
De Hegel a Horckheimer ou a Habermas, passando por Nietzsche ou
Max Weber, não existe quase nenhuma filosofia que, direta ou
indiretamente, não tenho sido confrontadas com essa mesma questão:
qual é então esse acontecimento que se chama Aufklärung e que
determinou, pelo menos em parte, o que somos, pensamos e fazemos
hoje? (FOUCAULT, 2005c, p. 335).
Este capítulo trata da luta diária que os indivíduos e as
comunidades engajam-se. Discute como, porque e quais são essas
batalhas de vida e morte em jogo na contemporaneidade. Sem perder de
vista os estudos de Filosofia da Educação, pretendo refletir sobre a
formação humana levando em consideração as diferentes estratégias
políticas que são engendradas nas diferentes práticas históricas. Luta-se
30
por formação posto que a vida não nunca seja uma matéria informe.
Mas, afinal, no que consiste esse reconhecimento? O que significa ser
reconhecido?
De acordo com Safatle (2013; 2015b) a recuperação da categoria
do reconhecimento no século XX ocorreu em dois momentos
fundamentais. O primeiro deve-se às lições da filosofia de Hegel por
Alexandre Kojève na década de 1930 que marcou a geração de
pensadores como Lacan, Bataille, Merleau-Ponty e Hyppolite; o segundo
surge entre o debate liberal-comunitário e os membros da terceira geração
da Escola de Frankfurt. A seguir me concentrarei em tratar desse segundo
momento. Essa escolha deve-se ao fato de que a grande maioria das
reflexões do campo da Filosofia da Educação possui o compromisso
teórico nessa chave.
Autonomia e reconhecimento, segundo Flickinger (2011a) são
categorias chaves no ideário de formação moderna, sendo uma
responsável por sedimentar a autodeterminação e a outra a solidariedade.
Oriundas do arcabouço iluminista esses conceitos ressoam as vozes de
Kant e Hegel, do primeiro desprende-se a ideia do ato corajoso de “ousar
saber”, do “fazer uso da própria razão”; e do segundo, a famosa fórmula
da “consciência-de-si” como algo reconhecido. O sujeito legislador de si
mesmo é aquele que chegou a maturidade e reconhece que sua existência
só adquire significado conjuntamente com a dos outros. A formação
iluminista arregimenta uma arte de governo que repousa sobre o
consequente domínio racional das paixões infantis, pois, é a constituição
de uma sociedade adulta. Implica, em termos foucaultianos, adentrar a
ordem do discurso, assumir um papel social e representar o drama da
cidadania.
Entende-se por teoria normativa aquela que procura assentar-se
em modelos reconstrutivos comunicacionais, ou narrativos. Na obra
31
Percurso do reconhecimento Ricoeur (2006) procurou ao seu próprio estilo
fenomenológico contribuir para uma reconstituição filosófica do discurso
de reconhecimento. Para Ricoeur (2006) existem ao menos três sentidos
de reconhecimento: a identificação inteligível de objetos; a afecção de si
mesmo como sujeito moral; e o assentimento que procura um sentido na
vida em comum com os outros, na dádiva, na troca e no laço social.
Desse modo, o primeiro sentido de reconhecer aborda a questão da
inteligibilidade fenomenológica do mundo como apreensão da realidade,
como representação, seja em Descartes para distinguir claramente as
ideias verdadeiras das falsas, ou, com Kant para mostrar os limites da
representação da coisa sensível; no segundo sentido, tratar da formação
da identidade, diz respeito ao homem capaz de conquistar a ipseidade
que reconhece a si mesmo, tanto em suas características perenes, idem,
quanto em relação à narratividade da identidade, com suas mudanças
ipse. Neste registro, apreender a condição humana significa observar-nos
como aqueles capazes de reconhecerem-se a si mesmo, implica na
capacidade de julgar, narrar, dizer, poder, imputar, prometer e esquecer.
E por fim, no terceiro estudo, Ricoeur trata do reconhecimento dos
outros, principalmente, por meio da herança hegeliana da Anerkennung.
Doravante, pretendo analisar as pressuposições filosóficas de
caráter normativo, indexadas à moderna teoria do reconhecimento nos
pensamentos de Taylor e Honneth. Creio, guardadas as devidas
distinções que essa via projeta sua teoria do reconhecimento com base na
ideia de que nos reconhecemos como sujeitos dotados de identidade,
moralidade e dignidade conforme vivenciamos a família, o mercado e
nossa própria interioridade de forma confiante, respeitosa e estimada.
Quando isso não ocorre somos violentados, humilhados e desprezados.
Por isso temos o impulso de buscar formas de cuidado, respeito e estima.
Essa semântica de que fala Honneth (2003) constitui um dispositivo
32
no sentido do jovem Hegel que quando acionada leva-nos à luta por
reconhecimento.
Essas reflexões serão acompanhadas pelo campo da Filosofia da
Educação, particularmente, os estudos dedicados à formação do sujeito
moderno. Destarte, será necessário seguir de perto os argumentos
apresentados pelos autores. Com isso, espera-se sumarizar uma primeira
entrada em direção à crítica filosófica dos dispositivos de inclusão no que
se refere ao âmbito escolar e as políticas educacionais.
Concomitantemente, pretendo mostrar o compromisso dessas
perspectivas com a criação de normas capazes de gerir a vida social.
Chama-se de matriz, ou, de fontes normativas tais teorias que repousam
na explicitação de arranjos sociais que são orientados para encontrar
assentimento entre os indivíduos que compõem uma determinada
sociedade.
Para fins de maior clareza, o capítulo está organizado do seguinte
modo: no primeiro momento, aborda-se, a teoria da identidade e a
política do reconhecimento nos termos de Taylor (1998), elucidando
como essas lutas emergem no limiar das sociedades multiculturais.
Segundo, fornece algumas chaves de leitura sobre a revitalização da teoria
do reconhecimento proposta por Honneth (2003), em particular no livro
Luta por reconhecimento. Terceiro, trata das relações sinuosas entre
Foucault e a teoria crítica propondo uma alternativa para compreensão
das lutas contemporâneas. E por fim, encerra com um pequeno
panorama da recepção da teoria do reconhecimento no campo filosófico
educacional.
33
Identidades e políticas de reconhecimento
Considerado o proponente contemporâneo da teoria do
reconhecimento e do liberal-comunitarismo, o filósofo quebequense
Charles Taylor tem contribuído há algumas décadas para pensar o
destino das políticas de identidade, os conflitos culturais e religiosos do
cenário atual. Para Taylor (1996), as atividades políticas devem levar em
consideração as tensões morais, a contraposição e rivalidade cultural
existente que marcam determinado país, ou grupo. De acordo com esse
autor, a democracia introduziu a plataforma política multicultural que
doravante deve ser centrada nas reivindicações de reconhecimento
igualitário da identidade de grupos considerados minoritários diante
daqueles que são maiorias culturais, políticas e econômicas.
A noção de reconhecimento põe em jogo complexos mecanismos
atuantes na prodão de um sujeito que, por sua vez, só pode alcançar
consciência de si mesmo na sua dependência constitutiva com os outros.
No entanto, nem sempre esse processo resulta em aceitação da diferença
do outro, para Taylor (1998) existe também algo como um falso-
reconhecimento, a imposição de uma imagem depreciativa e até a
exclusão do diverso do espaço moral.
Na obra As fontes do Self, seguindo a tradição filosófica
interpretativa, Taylor (2005), propõe uma genealogia da interioridade,
autonomia e individualidade moderna. Argumenta o autor que o longo
desenvolvimento da consciência moderna dos homens nos levou à ideia
de falar sobre direitos humanos universais, naturais, incluindo o respeito
pela vida e integridade humana à noção de autonomia. Nesse nível foi
34
preciso uma lenta construção da ideia de Self
1
para concebermos as
pessoas como colaboradores ativos no estabelecimento e garantia do
respeito que lhes é devido. Isso exprime uma das características centrais
de nossa perspectiva moral moderna. Essa mudança fez-se na forma de
uma alteração de conteúdo, da concepção do que é respeitar alguém e do
que é ser alguém. Escreve:
[o] que eu chamo de mudança na ênfase moral surge quando a
atenção que damos aos nossos sentimentos assume a importância
moral independente e essencial. Acaba por ser aquilo a que temos de
nos agarrar se quisermos assumir-nos como seres humanos
verdadeiros e de direito. [...] agora, a fonte encontra-se bem no fundo
do nosso ser. [...] Rousseau apresenta frequentemente a questão da
moralidade como tratando-se de uma voz da natureza dentro de nós e
por nós seguida. Essa voz é, muitas vezes, abafada pelas nossas paixões
suscitadas pela nossa dependência dos outros, das quais destaca o
amour propre, ou orgulho. A nossa salvação moral está na recuperação
do contato moral connosco mesmos (TAYLOR, 1998, p. 49, itálico
do autor).
1
Na primeira parte da obra intitulada “A identidade e o bem”, Taylor (2005) argumenta que para
compreendermos o agente humano, ou seja, a pessoa, ou, o self é indispensável pensar em
configurações incontornáveis no qual a identidade estrutura-se a partir de um eixo atitudinal,
distinguindo, diversos graus nas esferas de valores sobre o que é o bem a dignidade da pessoa
humana, o direito à vida e a liberdade. Desse modo, o self aparece no espaço moral como uma
categoria que existe em extrema dependência em relação à identidade. Não basta ser um self, é
necessário ter um self, assim, Taylor argumenta que o self como categoria pertence tanto à
psicologia quanto à sociologia, quer dizer, diz respeito ao Ego e a maneira como organizamos as
relações sociais. Segundo Taylor (2005, p. 52) “[...] somos um self na medida em que nos
movemos num certo espaço de indagações, em que buscamos e encontramos uma orientação para
o bem”. Desse ponto de vista conclui Taylor que: as configurações do self só se tornam possíveis
de serem constituídas ao passo que compreendemos o agente humano como ser dotado de
complexidade e profundidade, no interior de uma determinada comunidade linguística.
35
Quando isso não ocorre, quando não guardamos aquele
sentimento da existência que nos impele a seguir a nossa consciência,
então, deixamos de lado a conciliação moral conosco mesmo, perdemos a
capacidade de ouvir essa voz interior e assumimos uma postura
instrumental.
A autenticidade, o respeito e a autonomia tornam-se agora central
para estabelecermos nossa própria identidade. Para Taylor (2005), o
respeito à personalidade envolve como elemento fundamental o zelo pela
autonomia moral da pessoa. Com o desenvolvimento da noção pós-
romântica de diferença individual, isso se amplia até a exigência de
darmos às pessoas a liberdade de desenvolver sua personalidade à sua
própria maneira. Esse processo culminou no desenvolvimento cultural de
relações com espaço no qual as possibilidades de cada um poderiam
florescer, justamente pela crença no seu potencial liberador do
desenvolvimento da autonomia individual. Num movimento amplo da
cultura, vemos surgir novas ideias e entendimentos do que é bem viver,
como, por exemplo, no século XIX, o da família amorosa e íntima.
De acordo com Taylor (2005, p. 396), em uma cultura
individualista são valorizados três sentidos para construção da identidade:
primeiro, valoriza a autonomia; segundo, atribui um papel importante à
auto-exploração, em particular dos sentimentos; terceiro, ela possui uma
visão de que o bem viver implica envolvimento pessoal. Essa cultura
atribui importância ao trabalho produtivo e também à família, que é
idealmente uma comunidade fechada baseada no amor, em que os
membros encontram uma parte significativa de sua realização humana.
Segundo Taylor (2005, p. 70) para entendermos minimamente
nossa vida e para termos uma identidade é preciso ter uma orientação
para o bem. Isso significa em algum sentido operar a partir de padrões
fixos, discriminando aqueles valores que são incomparavelmente
36
superiores daqueles considerados qualitativamente inferiores as
chamadas avaliações fortes. Esse sentido do bem tem que ser incorporado
como uma história em andamento. Isso supõe afirmar uma condição
básica do processo de encontrar sentido em nós mesmos, de compreender
nossa vida numa narrativa que tenha propósito.
No texto Identidad y reconocimiento, Taylor (1996) oferece-nos
ainda maiores subsídios para discutir a complexa trama que envolve as
políticas de identidade. De acordo com Taylor (1996), a identidade
costuma ser evocada, tanto no plano individual (minha identidade
pessoal), quanto no plano do grupo (a identidade quebequense,
canadense, brasileira). Sem identidade nos sentimos em crise, perdemos
as referências e nada em absoluto possui importância alguma. Continua o
autor, “[...] minha identidade define de alguma maneira meu mundo
moral” (TAYLOR, 1996, p. 10), ela é o que eu sou.
Com efeito, o caso é diferente se pensarmos a identidade dos
povos pré-modernos porque dependiam antes da estrutura hierárquica
entre castas. O horizonte moral não era o indivíduo, mas, seu grupo, sua
posição social as famosas préférences, de Rousseau. Os horizontes no
Antigo Regime estavam estabelecidos e inteiramente dados. Contra essa
sociedade fortemente hierarquizada, baseada no modelo da honra e nas
relações de famílias surge a noção moderna de dignidade. Isso abriu o
caminho para que a identidade moderna fosse pensada como uma noção
assumida pelo indivíduo. Sobre isso, escreve Berger (2015, p. 8-11):
[a] idade que viu o declínio da honra também foi a do surgimento de
novas moralidades e de um novo humanismo e, mais especificamente,
de uma preocupação historicamente sem precedente para a dignidade
e os direitos dos indivíduos. Os mesmos homens que não conseguem
entender uma questão de honra estão imediatamente dispostos a
37
ceder às demandas de dignidade e de direitos iguais em quase todo
novo grupo, que os torna, entre outros, minorias raciais ou religiosas,
classes exploradas, os pobres, os desviantes, e assim por diante. [...] O
conceito de honra implica que a identidade é essencialmente, ou pelo
menos consideravelmente, ligada a papéis institucionais. O conceito
moderno de dignidade, pelo contrário, implica que a identidade é
essencialmente independente de papéis institucionais. [...] Ambos
demandam um esforço deliberado da vontade para a sua manutenção,
isto é, alguém deve esforçar-se por eles, muitas vezes contra a
oposição malévola de outros: assim, a honra e a dignidade se tornam
metas de um empreendimento moral. A sua perda, sempre uma
possibilidade, possui consequências de longo alcance para o self.
Nesse registro a marca da identidade moderna repousa sobre o
igualitarismo. Todavia, para que a desenvolvêssemos em sua plenitude,
segundo Taylor (1996), foi preciso algo mais que a revolução
igualitarista, necessitou também, de uma revolução expressiva que
reconhece que em cada indivíduo, em seu próprio modo de ser humano,
que existe uma originalidade que não pode ser imposta desde o exterior.
Isso outorga um novo sentido à identidade moderna e, ao mesmo tempo,
um ideal de autenticidade e fidelidade a si mesmo. (TAYLOR, 1996, p.
12). Graças a esse novo expressivismo, o indivíduo assume um papel em
sua autodefinição. Isso quer dizer que, por exemplo, se participo por
direito dessa invenção, todas as soluções propostas devem antes me
satisfazer do que me obriga a aceitá-las. Enquanto não reconheço certas
características próprias à minha originalidade, não posso acei-las como
minha. A identidade deve ser assumida. Desse modo, contemporâneo à
revolução expressiva vê-se o nascimento de outro discurso, o do
reconhecimento.
O reconhecimento do outro é a condição para realizar a
identidade. Atribui-se a Hegel com frequência a origem do discurso de
38
reconhecimento, no entanto, o fato é que Fichte o precedeu, e, antes dele
Rousseau (NEUHOUSER, 2013; 2016). Começou-se a falar sobre
reconhecimento no momento em que se colocaram as bases expressivas
da concepção de identidade moderna. Este fato dá testemunho da radical
falta de autossuficiência do ser humano nesse terreno. Não podemos nos
definir a nós mesmos, temos a necessidade de construir nosso espaço
moral com vista a ser reconhecido pelos outros. (TAYLOR, 1996, p. 13).
A partir do momento em que se aspira a definir-se, reconhecer-se,
sobretudo de forma original se abre uma falha (ou, talvez uma brecha)
possível entre o que pretendemos e o que os demais estão dispostos a nos
outorgar (entregar, dar, oferecer). É o espaço do reconhecimento exigido,
porém, suscetível de ser rejeitado, ou distorcido.
Segundo Taylor (1998) para compreender a relação entre
identidade e reconhecimento é preciso observar o aspecto distintivo da
condição humana: o papel da linguagem na constituição da
intersubjetividade. Nessa visão, só nos tornamos agentes verdadeiramente
humanos, configuramos nosso espaço moral, compreendemos bem nossa
identidade e reconhecemos os outros à proporção que adquirimos
linguagens ricas em significado e somos introduzidos no mundo das
representações. A subjetividade repousa sob caráter essencialmente
dialógico. Por essa dimensão Taylor entende:
[...] defino linguagem no sentido lato, abarcando não só as palavras
que proferimos, mas também outros modos de expressão, através dos
quais nos definimos, incluindo ‘linguagens’ da arte, do gesto, do
amor, e outras do gênero. As pessoas não aprendem sozinhas as
linguagens necessárias à autodefinição. Pelo contrário, elas são-nos
dadas a conhecer através da interacção com aqueles que são
importantes para nós os ‘outros-importantes’, como George
Herbert Mead lhes chamou. A formação da mente humana é, neste
39
sentido, não monológica, não algo que se consiga sozinho, mas
dialógica (TAYLOR, 1998, p. 53).
Apoiando-se na contribuição de autores como Mead, Gadamer e
Bakhtin, Taylor (1998) aposta em uma noção dialógica da identidade,
argumentando que a formação humana não pode ser entendida como
uma entidade homogênea e monológica. A contribuição dos outros-
importantes que começa quando nascemos no mundo, prolonga-se
durante toda nossa vida. Nossos pais ou tutores com os quais
aprendemos a negociar nossa identidade nos acompanham mesmo depois
de nos terem deixado. O diálogo nunca está sempre recomeçando. Por
isso, a identidade não é algo que nos dedicamos sozinhos, mas um ideal,
por vezes, compartilhado, dialogado e negociado.
A identidade constitui horizonte moral, sendo, simultaneamente,
uma forma assumida voluntariamente pelo indivíduo e um objeto de
busca por reconhecimento. Para Taylor (1996) o ideal de
reconhecimento como objeto da identidade, pertence, ao mesmo tempo,
ao indivíduo e à coletividade, pois, ambos são inseparáveis, só temos uma
identidade histórica, situada dentro de uma cultura. As identidades
coletivas guardam a dimensão do Volk, do povo como entidade formada
por um ethos. Os Volker, assim como os indivíduos, são chamados para
reconhecer-se mutuamente em suas diferenças irredutíveis, porém
complementares, formando juntos uma coletividade inteira. A identidade
coletiva se converte em uma espécie de ficção permeada pelas tradições,
linhagens e convívio comum (TAYLOR, 1996, p.14). Portanto, existe
um jogo de reciprocidade entre a identidade nos dois planos. Pertencer
ao grupo proporciona detalhes importantes da identidade dos indivíduos.
Ao mesmo tempo, quando há indivíduos suficientes que se identificam
40
de modo sólido com o grupo, este adquire uma identidade coletiva que
ressalta uma ação comum na história.
Para Taylor (1996) o funcionamento dos modernos Estados-
Nações, assentados na ideia de soberania popular, de consenso e do
governo da maioria pode conter alguns equívocos que conduzem ao seu
contrário. Isso ocorre quando um subgrupo, ou, uma minoria não é
escutado pelo conjunto da sociedade política, não tem voz, participação
nas deliberações da nação. O drama do reconhecimento ocorre, tanto, no
plano individual, quanto, no coletivo, pois, assim como os indivíduos
carecem de reconhecimento, certos grupos minoritários também. E não
ser reconhecido é um obstáculo para construção autêntica da identidade,
visto que impede o pertencimento e fidelidade a si mesmo dos indivíduos
e grupos. A lógica desenvolvida por Taylor (1998) aplica-se eficazmente
quando se tem em mente a resolução do conflito em Quebeque, Canadá,
especificamente a situação dos falantes de língua francesa católica em
relação à maioria protestante que fala inglês.
Por necessidade ou exigência, os aspectos da política atual
estimulam as políticas por reconhecimento. Necessidade à medida que o
reconhecimento é vital para o desenvolvimento humano; e, exigência, ao
passo que, tanto, o ideal de autenticidade individual, quanto, a vontade
de certos grupos de escaparem às opressões sofridas historicamente ou de
preservar as tradições culturais. É justamente para evitar o esmagamento
das minorias, ou, a tendência ao particularismo que Taylor (1998) nos
mostra em A política do reconhecimento, um dos textos mais brilhantes já
escritos sobre a questão do multiculturalismo. O não reconhecimento
marca suas vítimas, subjugando-as ao sentimento de ódio contra elas
mesmas. Esses aspectos podem ser observados nas lutas feministas, que
denunciam como as sociedades patriarcais e que nutrem uma imagem de
inferioridade para a mulher; também, nas relações raciais, na qual a
41
sociedade branca projeta a imagem de inferioridade sobre a raça negra
que acaba sendo adotada pelos indivíduos vulneráveis; e, na questão
indígena e dos povos colonizados em geral à medida que se tem a
projeção de uma cultura superior sobre outra considerada inferior e
primitiva. Portanto, a política de reconhecimento envolve uma superação
ao nível da auto-imagem, danificada e degradada por outrem.
A subjugação das minorias, diz Taylor (1998), faz-nos lembrar a
dialética hegeliana do senhor e do escravo. Lutar para ser reconhecido é
envolver-se em um embate pelo direito de determinação da própria
identidade. Como mencionado a pouco, a ideia de dignidade universal e
de igualdade são valores fundamentais na era moderna. O
reconhecimento então se passa em dois níveis: primeiro, na esfera íntima,
em diálogos e conflitos incessantes com outros-importantes; e, na esfera
pública, com a exigência de igualdade. Desse modo, as lutas por
reconhecimento envolvem, tanto, políticas de igual dignidade ideia de
que todos os seres humanos são dignos de respeito bem como, políticas
de diferença direito de formar e definir sua própria identidade.
Em conformidade com esse caráter, a exigência por
reconhecimento passa assumir um papel central no projeto das sociedades
atuais que estão se tornando cada vez mais multiculturais e permeáveis.
Escreve o autor:
[o] principal locus desse debate é o mundo da educação (no sentido
amplo). Um foco são os departamentos de humanidades das
universidades, em que se fazem exigências para que se alterem, se
ampliem ou se excluam os cânones de autores acreditados com base
na idéia de que os cânones atualmente favorecidos consistem quase
inteiramente em "brancos machos mortos". Deve-se dar um lugar
maior às mulheres e às pessoas de raças e culturas não-européias. Um
segundo foco são as escolas secundárias, em que se faz, por exemplo, a
42
tentativa de desenvolver currículos afrocêntricos para alunos em
escolas preponderantemente negras (TAYLOR, 1998, p. 86).
E completa o raciocínio o autor:
[a] razão dessas mudanças propostas não é a de que, ou não é
principalmente a de que, todos os alunos possam estar perdendo
alguma coisa importante com a exclusão de um certo gênero ou de
certas raças ou culturas, mas a de que as mulheres e os alunos dos
grupos excluídos estão recebendo, diretamente ou por omissão, um
quadro desfavorável de si mesmos, como se toda a criatividade e todo
o valor fossem inerentes aos homens de origem européia. Aumentar e
modificar o currículo é essencial não tanto em nome de uma cultura
mais ampla para todos quanto para dar o devido reconhecimento aos
até agora excluídos. A premissa de base dessas exigências é a de que o
reconhecimento forja a identidade, em particular na aplicação
fanonista: os grupos dominantes tendem a consolidar sua hegemonia
ao inculcar no subjugado uma imagem de inferioridade. A luta pela
liberdade e pela igualdade tem, portanto, de passar por uma revisão
dessas imagens. Os currículos multiculturais pretendem ajudar nesse
processo de revisão (TAYLOR, 1998, p. 86).
Apesar de Hegel ser considerado o grande proponente da
doutrina do reconhecimento na modernidade, quando se trata dessas
lutas multiculturais mostradas por Taylor (1998), os intelectuais
favoráveis à política da diferença denunciam esse tipo de racionalidade
totalizante por relegar a África a um continente sem História. Entre os
principais autores dessa estirpe está Franz Fanon, psiquiatra martinicano
e filósofo marxista que defendia que a maior arma que os colonizadores
usam contra os povos locais era a imposição de uma imagem distorcida
de si mesmo.
43
Na obra Pele negra, máscaras brancas, Fanon (2008) crítica o
reconhecimento do negro. Segundo Fanon (2008) o negro antilhano
legou graves problemas para constituir sua autoimagem que só consegue
se afirmar no jogo agressivo onde prepondera o complexo adleriano de
inferiorização. Diz Fanon:
[n]ão há luta aberta entre o branco e o negro.
Um dia o senhor branco reconheceu sem luta o preto escravo.
Mas o antigo escravo quer fazer-se reconhecer.[...]
O único método de ruptura com este círculo infernal que me reenvia
a mim mesmo é restituir ao outro, através da mediação e do
reconhecimento, sua realidade humana, diferente da realidade
natural.[...]
Para obter a certeza de si-mesmo, é preciso a integração do conceito
de reconhecimento. [...]
Aquele que hesita em me reconhecer se opõe a mim. Em uma luta
feroz, aceito sentir o estremecimento da morte, a dissolução
irreversível, mas também a possibilidade da impossibilidade.
O outro, entretanto, pode me reconhecer sem luta: “O indivíduo que
não arriscou a vida pode muito bem ser reconhecido como pessoa,
mas ele não atingiu a verdade desse reconhecimento através de uma
consciência de si independente.”
Historicamente, o negro, mergulhado na inessencialidade da servidão,
foi alforriado pelo senhor. Ele não sustentou a luta pela liberdade.
Enquanto escravo, o preto irrompeu na liça onde se encontravam os
senhores. Como esses domésticos a quem, uma vez por ano,
permitem-se dançar no salão, o preto procurou um apoio. O preto
não se tornou senhor. Quando não há mais escravos, não há mais
senhores (FANON, 2008, p. 180-182 aspas e itálico do autor).
44
Nessa altura do seu argumento, Taylor (1998) identifica o
paradoxo que os discursos de reconhecimento podem levar. Primeiro, as
políticas de igual dignidade exigem que as pessoas sejam tratadas sem
distinção; por sua vez, as políticas que objetivam o respeito às diferenças
necessitam que se encoraje a particularidade e a singularidade de
determinado grupo, ou, indivíduo. Ou seja, o problema reside nessa
dinâmica entre igualdade e diferença, pois, certas estratégias ao serem
implementadas, por exemplo, ao nível da redefinição de políticas
socioeconômicas, as políticas de ação afirmativas, geram conflitos na
sociedade que passa a ver essas medidas como favorecimento para
determinado grupo.
[...] a redefinição socioeconômica justificou a elaboração de
programas sociais que deram azo a grandes polémicas. Isto porque,
para aqueles que não concordam com esta definição alterada de
estatuto igual, os diversos programas de compensação social e as
oportunidades especiais concedidas a determinadas populações eram
considerados como uma forma de favoritismo não merecido
(TAYLOR, 1998, p. 59).
Para criar uma ponte com nossa realidade, no Brasil, esse
paradoxo ressoa quando as acusações de favoritismo e de parasitismo
formam o corolário das disputas pelo sentido das políticas públicas.
Parcelas das classes médias que nutrem preconceito histórico contra
segmentos marginalizados e populações do norte acusam os governos
democráticos de manter domínio cabrestosobre as classes subalternas
através de programas sociais. Talvez, a sedimentação de um imenso
depósito formado por sentimentos de repugnância em relação à ralé
brasileira seja a alma de uma parte dos revoltados de junho 2013 que
45
após isso se ergueram em um engajamento reativo a tudo o que possa ser
chamado justiça social.
Para Taylor (1998) as formulações das políticas de
reconhecimento, ao nível da ação cultural podem gerar uma série de
complicações danosas se ao invés de garantir respeito criarem seu oposto:
a condescendência. Apesar disso, a política de diferença tem espaço na
moderna cultura de revisão jurídica desde que coexistem no escopo das
culturas que formam o liberalismo. O fato é que as sociedades estão se
tornando cada vez mais multiculturais, o que não apaga os problemas
sociais. Aliás, como seus críticos demonstram, essas modificações criaram
um verdadeiro “multiculturalismo empresarial” (GILROY, 2007)
fortalecendo um regime pós-racial do capitalismo inteiramente
compatível com o programa do neoliberalismo (MELAMED, 2006).
Entretanto, escreve Taylor (1998) que é necessário encontrar um meio-
termo entre uma exigência inautêntica e homogeneizante de
reconhecimento e o auto-isolamento em padrões eurocêntricos do outro.
A existência de inúmeras culturas nos força a viver juntos e em escala
mundial. Portanto, a crítica deve ser endereçada às diversas situações de
inferiorização social geradas em contextos nos quais grupos dominantes
impõem seus modos de ver o mundo, seus modos de vida sobre minorias
culturais coesas.
Por fim, Taylor (1998) encerra seu ensaio, criticando aquilo que
designa como “teorias subjetivistas” pretensamente inspiradas em
Foucault e Derrida que reduzem todos os “juízos de valor” a questão de
estruturas de poder:
[o]s defensores das teorias neo-nietzscheanas esperam escapar a todo
este nexo de hipocrisia transformando tudo isto numa questão de
poder e contrapoder. Assim, em vez de respeito, passa a ser um
46
questão de tomar partido, solidariedade. Mas esta está longe de ser
uma solução satisfatória, porque, ao tomarem partido, os defensores
perdem a força motriz deste tipo de política e que é, precisamente, a
procura de reconhecimento e de respeito (TAYLOR, 1998, p. 91).
Ou, para fazer eco com outro crítico:
[q]ualquer pessoa que denuncia o mundo moderno tout court deveria
fazer uma pausa e perguntar se deseja incluir na denúncia as
descobertas especificamente modernas da dignidade humana e dos
direitos humanos. A convicção de que até mesmo os membros mais
fracos da sociedade têm o direito inerente de proteção e dignidade; a
proscrição da escravidão, em todas as suas formas de opressão racial e
étnica; a descoberta assombrosa da dignidade e dos direitos da
criança; a nova sensibilidade para a crueldade, a partir da aversão a
tortura até a codificação do crime de genocídio, - uma sensibilidade
que se tornou politicamente significativa na indignação contra as
crueldades da guerra no Vietnã; o novo reconhecimento da
responsabilidade individual para todas as ações, mesmo aquelas
designadas para o indivíduo com papéis institucionais específicos, -
um reconhecimento que alcançou a força de lei em Nuremberg;
todos esses e outros mais, são conquistas morais, impensáveis, sem as
constelações peculiares do mundo moderno (BERGER, 2015, p. 14-
15).
A crítica implícita que Taylor (1998) faz a Foucault em relação à
política de diferença não é nova, pois, em As fontes do Self, o autor já
direcionava críticas similares ao que chamava de naturalismo moral, isto
é, a ideia de que não existem ordens ou valores humanos transcendentais
as quais possamos recorrer para julgar outras culturas. Para Taylor (1998)
essa sentença se autoengana já que é impossível fazer qualquer avaliação
47
moral das culturas se aceitarmos que todas as formas de vida colocam em
jogo imposições de poder. Costa (1995) sintetiza do seguinte modo as
críticas do pensador canadense:
Por que considerar a dominação e a sujeição como coisas más? [...]
Das duas uma: ou Foucault enuncia coisas sem sentido ou utiliza
implicitamente uma moral cujos pressupostos desconhece ou tenta
esconder. [...] Pressupor que a liberdade de auto-criação é melhor do
que a dominação e a sujeição, implica ou não na admissão de noções
morais universalmente válidas? [...] Foucault, portanto, ilude-se,
imaginando que é um zero identitário, flutuando acima da história ou
da cultura. Sem a idéia de “vontade” como algo produzido por nossa
autonomia “interior”, sem os valores do humanitarismo moderno,
como o desejo de preservar a vida, de satisfazer as necessidades do
homem e de aliviar seus sofrimentos, sem a idéia de satisfação
emotiva ou a de que “nossos sentimentos são uma das chaves para
uma vida de qualidade”, enfim, sem a preocupação com a “vida
ordinária”, e não com a contemplação, as virtudes cívicas, a honra de
casta, os valores espirituais, etc., das sociedades antigas, será que
Foucault poderia pensar em sua estética da existência ou ética dos
prazeres? Taylor responde pela negativa, concluindo que Foucault é
filho da ética ocidental, cuja genealogia quer fazer e cuja legitimidade
quer negar (COSTA, 1995, p. 122).
Taylor (2014) argumenta em defesa do chamado liberal
comunitarismo. Há uma denúncia em particular, aliás, muito mais sútil
que Taylor (1998) insinua quando retraça as origens da política de
dignidade em Rousseau. Na visão de Taylor (1998, p. 65), se de uma
parte, Rousseau pode ser considerado o precursor do discurso de
reconhecimento porque produziu “[...] as primeiras reflexões sobre a
importância do respeito igual”; de outra, o filósofo genebrino em virtude
de sua defesa radical da igualdade suscitou, desde o terror jacobino
48
estendendo-se em direção a outros movimentos políticos, o desprezo pelo
orgulho e pela diferenciação dos cidadãos
2
. De modo sub-reptício, Taylor
(1998) sugere que essa homogeneização continua a ser um gênero
tentador no pensamento político, podendo, inclusive, converter a
aspiração das políticas de diferença no seu contrário. Esse apontamento
me parece digno de atenção, já que, Taylor procura harmonizar os
conflitos que surgem dessa tensão horizontal da política de
reconhecimento apelando à comunidade, a cultura liberal, como fonte
moral capaz de mobilizar uma força vertical de diferenciação que
permite que façamos certos juízos na ordem dos valores morais.
2
O filósofo paulista Vladimir Safatle, possui contribuições interessantes ao debate do
reconhecimento. No livro A esquerda que não teme dizer seu nome, Safatle (2012) procura
sustentar um programa de transformação orientado à esquerda. A questão mais decisiva do
pensamento de esquerda é a defesa radical do igualitarismo. Isso significa duas coisas, em primeiro
lugar a luta contra a desigualdade social e econômica que é a principal causa de opressão. Em
segundo, se refere também às demandas de reconhecimento. O que não se traduz em
identitarismo, ao contrário, significa que a esquerda deve ser “indiferente às diferenças”. A política
atual da esquerda só pode ser uma política da indiferença. De acordo com Safatle (2012, p. 23) o
Estado é a única instituição que é capaz de submeter toda extensão da sociedade, por isso, é
fundamental a esquerda garantir o fortalecimento da intervenção do Estado. Nessa visão, vivemos
atualmente o esgotamento das políticas da diferença. Escreve o autor: “[d]urante certo tempo,
embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na diferença o valor supremo de
toda crítica social e ação política. Assim, os anos de 1970 e 1980 foram palco da constituição de
políticas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daqueles que exigiam
o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc.[...]” (SAFATLE, 2012, p.
27). Isso minou a compreensão do campo de lutas tradicionais e secundariza as questões
marxistas
ligadas à luta de classes. Nesse sentido, apesar de importante para proteger grupos minoritários, a
política de diferença pode ser usada como força motriz contra grupos estrangeiros como contra os
árabes da Europa, os bolivianos no Brasil, ou, contra mexicanos nos EUA, pois, “[...] aqueles que
não se adaptam ao nosso campo de diferenças não são diferentes, mas simplesmente
irrepresentáveis, objetos de perpétua exclusão. [...]” (SAFATLE, 2012, p. 29). Por isso, ao passo
que se valoriza os comunitarismos e os multiculturalismos ocorrem também às ondas
conservadoras, quando não, a reativação de ideologias autoritárias e reacionárias. Conclui esse
autor: "[...] onde há a insistência em compreender a sociedade como um mero conjunto de
indivíduos sempre surge [...] a necessidade de expulsar, de levantar as fronteiras contra tudo o que
não porta a minha imagem. O que nos explica por que sociedades fortemente individualistas [...]
são sempre assombradas pelo fantasma do corpo estranho que está prestes a invadi-las [...]”
(SAFATLE, 2012, p. 70-71).
49
Assim, a teoria do reconhecimento de Taylor apóia-se na
presumida natureza dialógica do self, identificando, tanto, a comunidade,
como, o ideal de autenticidade como instâncias de mediação
intersubjetiva que sustentam a ideia de complementaridade das
diferenças. No entanto, não se pode deixar de notar que essa admissão
por parte de Taylor de um ideal transcendente de comunidade acarreta
inúmeros problemas políticos. A abordagem de Taylor (1996) sem
dúvida lança luz sobre as lutas por direitos sociais e culturais, porém, o
tipo de complementaridade que supõe é perigoso na medida em que
admite a priori a comunidade como fonte da identidade. A essa altura é
necessário lembrar a entrevista O sujeito e o poder no qual Foucault
(1995) entende que ser sujeito significa basicamente duas coisas, a saber:
“[...] sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria
identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem
uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a” (FOUCAULT, 1995,
p. 235). A crítica deve dirigir-se tanto às tradições que submetem pelo
peso da história e contra a tendência individualista que corrói a
solidariedade e nos submete a uma identidade auto-referenciada. Como
explicita Costa (1995) inspirado na filosofia de Rorty:
[b]uscar a identidade do sujeito ou de valores morais no que é perene
é uma tarefa fútil. Nenhuma de nossas crenças vem de uma fonte de
sentido prévia à ação humana. A história mostrou que inúmeros
candidatos ao papel fundacional não resistiram ao teste do tempo. Ou
perderam completamente a plausibilidade intelectual ou retraíram-se
e converteram- se em crenças opcionais, de grupos ou pessoas, como
no caso das convicções religiosas. Podemos tratar certas imagens do
mundo e do sujeito como universais. Mas isto quer dizer,
simplesmente, que certas formas de vida nos são de tal modo
familiares que não conseguimos pensar em descrições alternativas do
que consideramos natural e universal. Os universais mudam quando
50
mudam as formas de vida. Por conseguinte, tudo o que podemos
fazer é aceitar a tradição ética que herdamos, procurar transformá-la
ou abandoná-la por outra tradição. Não temos saída: falamos de
crenças sempre do interior de outras crenças. A preferência atual é um
simples produto da persuasão cultural tornada convicção.
Justificamos nossas crenças porque acreditamos que são superiores às
outras. Superioridade que não se funda na maior ou menor
racionalidade da crença aceita - todas são racionais - mas na força
performativa dos meios de transmissão da cultura de cada um
(COSTA, 1995, p. 125).
Destarte, há na teoria de Taylor (1998) uma verdadeira aporia no
que diz respeito às possibilidades de diferenciação ética, pois, essas não
podem se reduzir a acordos, diálogos, comunicação, já que, se trata
propriamente de atitudes que exigem uma tensão vertical. Talvez, essa
aporia que aparece no pensamento Taylor (1998) especialmente no que
se refere às políticas de reconhecimento da diferença que defendam uma
igualdade radical possam ser perspectivadas de outro ângulo.
Especialmente, quando analisadas à luz do curso de 1984, publicado
como A coragem da verdade, no qual Foucault (2011) levanta a questão
da diferenciação ética no contexto da proveniência da parresía a
coragem da verdade, a fala franca ou como ficou conhecido no mundo
latino em seus desenvolvimentos posteriores: libertas na democracia
grega e da constituição da vida filosófica.
Moral e luta por reconhecimento
Ressonante com a proposta comunitarista de Taylor, o sociólogo
alemão Axel Honneth, um herdeiro das bases da teoria crítica da
51
sociedade, possui uma obra em construção, porém, bem consolidada,
gozando de boa reputação entre os filósofos e sociólogos
3
. Consoante
com a reconstrução teórica realizada por Teixeira (2016), entendo a obra
de Honneth como uma expressão própria aos embates vividos pela
tradição democrática da esquerda alemã. Honneth é um defensor das
potencialidades emancipatórias das instituições e um crítico do
capitalismo tardio (HARTMAN; HONNETH, 2009). Em seus últimos
textos, notoriamente em O direito a liberdade, o autor argumenta com
veemência contra a ideia de uma liberdade negativa preconizada pelo
mercado, opondo o conceito de liberdade social oriunda da
intersubjetividade própria à gramática do reconhecimento (HONNETH,
2015). No entanto, não constitui preteno desta pesquisa esgotar as
possibilidades do pensamento honnethiano, um empreendimento
vastíssimo e que se encontra em constante processo de reconstrução. Ao
invés disso, o intento que nos move baseia-se na operação de uma livre
interpretação, uma leitura receptiva, aberta, experimental e imaginária
com vistas à criação de uma ficção capaz de responder à ânsia das práticas
de liberdade e da constituição ética do sujeito. Digo isso, pois, ao datar
da publicação no início da década de 1990 o conceito de reconhecimento
passou por dezenas de reformulações, adições teoréticas e
complementações necessárias realizadas pelo próprio autor e
materializadas com a publicação de centenas de páginas escritas. Com
frequência Honneth testa suas teorias, procura estender seu escopo ao
âmbito de questões da antropologia filosófica, da justiça (HONNETH,
3
Dentre seus escritos de maior destaque pode-se sublinhar a importância de Kampf um
Anerkennung - Luta por reconhecimento, publicado originalmente em alemão no ano de 1992.
Além desse livro, destacam-se outras obras como Kritik der Macht - Critique of power, publicado
originalmente em 1984, como resultado de sua tese de doutoramento, bem como, seus recentes
trabalhos, o Das Recht der Freiheit- O Direito da liberdade, publicado em 2011, além das
conferências publicadas sob o título Verdinglinchung ou Reificação.
52
2007; 2009c; 2015) e do trabalho (HONNETH, 2008). Perante isso,
este trabalho circunscreve-se ao âmbito da moral do reconhecimento.
Para acessar essa moral, esta exposição divide-se em dois
momentos fundamentais: o primeiro tem o objetivo de reportar como
ocorreu a necessidade de revisão da teoria crítica em Crítica ao poder em
direção à reconstrução das semânticas do respeito baseado nos padrões de
reconhecimento em Luta por reconhecimento; e, o segundo momento
decorre da revisão desses padrões de reconhecimento no qual Honneth
expressa à necessidade de reconstrução da liberdade social a partir do
diagnóstico das patologias da razão.
Em Critique of power, Honneth (1991) teve como objetivo
reavaliar a tradição da teoria crítica de modo a reconstruir todo o
programa da Escola de Frankfurt, desde a primeira geração com Adorno
e Horkheimer até seus desenvolvimentos recentes. Honneth baseia-se
principalmente, pela tinta de Horkheimer, particularmente, explorando
os textos “Teoria tradicional e teoria crítica” e “A situação atual da
Filosofia social e a tarefa de um Instituto de Investigação Social”. A
principal crítica de Honneth a primeira geração se refere ao seu modelo
de “dominação da natureza” que não permite uma crítica ordinária do
cotidiano. Além disso, Honneth também avalia as contribuições de
Foucault à teoria crítica, dizendo que este ao lado de Habermas constitui
dois desenvolvimentos rivais dentro do âmbito de questões que foram
abertos pela teoria crítica.
A grande contribuição de Critique of power deve-se a elaboração
da noção de déficit sociológico sobre o qual repousaria na primeira geração
da escola de Frankfurt. Isto é, para Honneth (1991) havia algo de
incongruente no programa da teoria crítica, originalmente
interdisciplinar e que tinha como objetivo a fundamentação de uma
ciência social que explicasse a subjetividade dos homens no capitalismo.
53
Tal programa, deveria necessariamente considerar as três dimensões da
existência humana, a saber: uma crítica à economia política (Economia),
uma crítica a constituição da vida psíquica (Psicologia), e uma crítica às
formas culturais (Cultura). Contudo, o projeto ficou inacabado, nunca se
concretizou inteiramente, particularmente, em relação aos aspectos
atinentes à ação cultural. Apesar disso, inúmeros colaboradores menores
desenvolveram suas pesquisas sobre os mais diversos aspectos da
existência humana.
Após esse diagnóstico inicial, Honneth (1991) concentra seus
esforços em reconstituir, atentamente, as novidades conceituais
desenvolvidas por Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento,
publicada originalmente em 1942. Um diálogo profícuo entre psicanálise
e o marxismo. Um escrito notório, por descortinar, entre outras coisas, os
processos barbarizantes no interior da racionalidade do iluminismo e as
dinâmicas de produção massiva da conscncia padronizada pela indústria
cultural. Sob os efeitos da aliança entre psicanálise e marxismo, a dialética
do iluminismo demonstra como se assentam as operações históricas de
domínio da natureza externa e interna. No dizer de Honneth (1991) com
a negação da natureza no homem o que se torna confuso e obscuro não é
somente o telos de domínio da natureza exterior, mas aquele que se
mantém com a própria vida da natureza interna. Assim que o homem
amputa a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins pelos
quais mantém a vida o progresso social, o incremento de todas as forças
materiais e intelectuais, inclusive a consciência mesma perdem todo o
valor. Temos, portanto, o triunfo da razão instrumental, a entronização
do meio como fim que adquire no capitalismo a característica de aberta
loucura. O domínio do homem sobre si mesmo que fundamenta sua
autoconsciência é virtualmente sempre a destruição do sujeito.
54
Na interpretação de Honneth (1991), a primeira geração acabou
criando uma filosofia reducionista da história que lhe impediu de
desenvolver outra possível categoria de ação que não fosse a do trabalho
social. Na visão de Honneth (1991) essa concepção de teoria crítica da
sociedade estritamente vinculada à economia-política e a psicanálise
assume o risco de perder de vista a ação cultural cotidiana dos grupos
sociais. A ideia originária do projeto de Horkheimer e a teoria social
tardia de Adorno marcam, dessa forma, de algum modo o começo e o
final de uma época clássica da Teoria Crítica que nunca pôde encontrar
um acesso produtivo nas Ciências Sociais, posto que, sob o pressuposto
dominante de uma filosofia da história simplificadamente unilateral, não
podia deixar espaço algum para uma possível análise da ação social.
A armadilha conceitual que a ideia de “dominação da natureza”
implicou um dualismo estéril entre psicologia e economia, atando a
Escola de Frankfurt em todas as fases do seu desenvolvimento. De acordo
com Honneth (1991), esse problema não pode ser superado do ponto de
vista de uma análise imanente, mas partindo para um novo marco teórico
de orientação que prometa ser justo com a “peculiaridade do social”.
Nesse sentido, Honneth acredita que entre ascadas de 1960 e 1980
autores como Habermas e Foucault desenvolveram suas teorias para
superar os impasses gerados pelo modelo de dominação da natureza.
Segundo Honneth (1991), a teoria social de Foucault nasce a
princípio no contexto de crítica estruturalista às ciências humanas,
assentado na filosofia do sujeito. Os objetivos da arqueologia de Foucault
era decifrar as formas sociais do saber como figuras textuais discursos
que existiam independentemente do sujeito. Porém, para Honneth
(1991) a contribuição original do filósofo francês ocorreu somente à
medida que esse se tornou capaz de superar os paradoxos de tal
programa. Somente com as investigações genealógicas pode-se dizer que
55
se abre um âmbito de fenômenos na esfera social, entendido agora como
uma rede de ações estratégicas. A nova rede de ações estratégicas deu
forma ao núcleo teórico da segunda fase do pensamento de Foucault, que
se ocupou de uma teoria do poder (CUNHA; HILÁRIO, 2012).
Para Honneth (1991) o pensamento de Foucault encontra-se de
saída ligado à escola de Durkheim conforme atribui à etnologia uma
posição especial entre as ciências humanas. Ademais, desde o começo
pode-se considerar o conceito foucaultiano de discurso como uma
conquista teórica de análise da sociedade; não somente considerado como
um instrumento mais adequado para uma renovação da Teoria Crítica,
senão também, proporcionando um impulso para desenvolver uma
concepção independente do que representa a teoria. Inicialmente,
Foucault foi influenciado pelas experiências das vanguardas pós-
surrealistas e apoiado por investigações específicas desenvolvidas no
âmbito da história das ciências, defende a tese de que o modelo de
pensamento que determinou a modernidade cultural tem suas raízes no
pressuposto filosófico de um Eu (selbts ou self) constitutivo, de um sujeito
vinculado ao fato do sentido e criador de significado.
Ao passo que Foucault se interessou pelas questões das relações de
poder, sua análise alcança inovação necessária para demonstrar como as
formas de dominação social eram produtos de arranjos sociais específicos
gerados por conflitos. Assim, caso se aceite essa proposta estratégica das
relações de poder, é necessário se questionar, como essas relações podem
em realidade se estabilizar criando uma ordem de poder temporária. Em
sua interpretação, Foucault tentou resolver esse problema de
estabilização, chamando-o de institucionalização das relações de força.
Porém, isso também lhe acarretou outras séries de dificuldades, uma vez
que se partir da ideia de uma conflitualidade incessante das relações de
poder, nem mesmo, os consensos gerados comunicativamente
56
conseguirão pôr fim às lutas, correndo o risco desses embates se
arrastarem num conflito ilimitado.
Nesse registro, Honneth (1991) se pergunta: como pode uma
estrutura de poder qualquer, cujo requisito, deriva-se da condição social
de uma luta ininterrupta surgir dos processos em conflito quando a
possibilidade de consenso normativamente orientado entre os sujeitos
está excluída desde o princípio?
A distinção entre Foucault e Adorno, apesar de ambos,
compartilharem do problema do caráter instrumental das ciências, diz
respeito ao fato que, ao contrário de Adorno, Foucault deduz as
condições do conhecimento científico não a partir da referência orientada
e disposta para o controle instrumental da natureza, mas dentro de um
marco estratégico de lutas sociais. Quer dizer, Foucault não está
interessado na conexão oculta entre a experiência científica e a
dominação da natureza, e sim, nas relações existentes entre a experiência
científica e as ações estratégicas. É necessário ressaltar que o tipo de teoria
do conhecimento que Foucault apresenta como base de sua crítica às
ciências o faz enredar-se na seguinte contradição: Foucault não é capaz de
justificar, epistemologicamente, sua própria atividade de investigação
acadêmica, e pode, ao mesmo tempo, ser objeto das mesmas críticas que
ele mesmo faz.
O conceito de poder se desenvolve partindo do fato da
intersubjetividade prática da luta social, sem poder explicar
suficientemente os processos de estabilização das relações de poder, e, as
técnicas de poder norma, corpo, saber fazem o uso descuidado de
uma ideia de instituição de poder sem fazer referências aos processos
relativos à sua fundação social. Assim, conclui Honneth (1991), dizendo
que ao utilizar o conceito de luta como marco exclusivo de uma teoria
social, Foucault não está isento em absoluto de contradições. Qualquer
57
estabilização social de uma posição de poder pressupõe uma interrupção
da luta sob a forma de um acordo normativamente motivado, ou, de um
compromisso de orientação final pragtica. Honneth (1991) interpreta
Foucault como um sociólogo, não como genealogista, como teórico do
poder e não como crítico das relações de poder.
Essa mesma crítica que Honneth (1991) chama de déficit
sociológico, também recai sobre o autor da teoria da ação comunicativa,
Jürgen Habermas
4
. Em sua análise, apesar dos seus esforços intelectuais
para fundamentar uma teoria da ação intersubjetiva, Habermas oblitera
as dimensões de conflito inerentes ao mundo da vida. Tudo se passa na
proposta de Habermas como se não houvesse dimensão conflituosa
inerente a reprodução do mundo da vida. Entretanto,
independentemente dos desarranjos pontuais, o pensamento de Honneth
não é apenas herdeiro, mas, continuador, senão da teoria habermasiana,
do seu modo de pensar. Inclusive as denúncias de ausência de consenso
no pensamento de Foucault ecoam as análises que Habermas (2000)
4
Segundo Schumacher (2000), pode-se chamar de ação comunicativa toda ação que se constitui
por oposição às ações que possuem um fim instrumental. Ao contrário da racionalidade de
cálculo, de domínio econômico e sistêmico do mundo da vida, a racionalidade comunicativa
direciona-se ao consenso, entendimento, diálogo e constituição intersubjetiva dos sujeitos
humanos. A elaboração da teoria do agir comunicativo se assenta na ideia de uma passagem de
um sujeito autocentrado na consciência, para um sujeito constituído intersubjetivamente pela
linguagem, isto é, consiste em uma virada lingüística na qual se abandona o paradigma da
‘filosofia do sujeito’ e da ‘consciência’ para um paradigma comunicativo. Habermas acredita
firmemente na possibilidade de criação de condições nas quais seja possível nos termos de
desenvolvimento da competência de uso da linguagem alcançar acordos sobre os fins, meios e
normas sociais capazes de regular e gerir a vida em comunidade. A elaboração dessa competência
de uso da linguagem está circunscrita a ‘situação ideal de fala’, que, graças aos seguintes critérios:
a) pessoas que sejam capazes de utilizar a linguagem de modo correto e razoável; b) q pessoas
tragam informações que tenham pretensão de validade, ou, condições de verificação de serem
verdadeiras; c) que sejam completamente sinceras no proferimento dos discursos, proposições,
frases, e normas sociais consideradas justas e racionais; tornam possível um uso comunicativo da
linguagem com vistas à criação de acordos intersubjetivos. Quando essas condições encontram-se
ausentes, ocorre nessa visão uma distorção na comunicação que acarreta grave incongruência nas
pretensões de validade postuladas pela ação.
58
realizou no Discurso filosófico da modernidade. Quanto a isso cabe reforçar
que o pensamento de Foucault não possui compromisso com a fabricação
de consensos.
A revisão sociológica das teorias críticas do poder culmina com a
necessidade de explicitação de bases normativas para a ação cotidiana das
lutas sociais. Portanto, o diálogo honnethiano com as pesquisas do
instituto de investigação social se manteve contínuo, se estendeu e se
modificou. Em seu estudo Bressiani (2015) relata minuciosamente como
a partir desse contato surge o diagnóstico das patologias sociais,
materializado em obras como Patologías de la razón (2009); e La sociedad
del desprecio (2011) entre outras.
Na obra Luta por reconhecimento, Honneth (2003) atualiza a
intuição hegeliana de luta por reconhecimento, procurando revelar uma
gramática moral dos conflitos sociais da modernidade. Ressoando sua
revisão crítica das teorias do poder, a questão doravante é mostrar as
bases motivacionais que impelem os indivíduos à luta. A dimensão mais
fundamental, a chave para compreender os embates da modernidade deve
ser buscada na conflitualidade intramundana. Para construir essa teoria o
sociólogo alemão precisou se lançar em um profundo diálogo com toda a
tradição já constituída e revisar as próprias bases da teoria crítica da
sociedade, levando-o a reconstruir uma propositura filosófica muito
distinta de seus precursores.
No prefácio de Luta por reconhecimento, originalmente publicado
em 1992, Honneth (2003) ao desenvolver os fundamentos de uma teoria
social não deixa de mencionar que seus resultados de pesquisa vinculam-
se à investigação de Critique of power. Explicitamente, o autor diz
59
[...] quem procura integrar os avanços da teoria social representados
pelos escritos históricos de Michel Foucault se vê dependente do
conceito de uma luta moralmente motivada, para o qual os escritos
hegelianos do período de Jena continuam a oferecer, com sua ideia de
uma ampla “luta por reconhecimento”, o maior potencial de
inspiração (HONNETH, 2003, p. 23).
Para suprir esse déficit, Honneth (2003) vai propor uma nova
teoria do reconhecimento que tem por base a ideia que os conflitos da
modernidade são moralmente motivados por uma gramática que é
acionada pelas expectativas frustradas de reconhecimento intersubjetivo.
Por esse motivo o desrespeito está na base de toda teoria social
verdadeiramente emancipatória. Com efeito, Honneth (2003) busca em
primeiro lugar atualizar a teoria da intersubjetividade do jovem Hegel,
por intermédio da semântica coletiva presente na psicologia social de
George Herbert Mead para quem as interações reguladas
normativamente, mediadas linguisticamente possibilitam o aprendizado,
a socialização e o desenvolvimento da personalidade. Segundo Mead
(1992) nos tornamos pessoas ou personalidades (self e selves) à medida
que somos entrelaçados por interações simbólicas.
Lutar por reconhecimento significa: engajar-se em um conflito
social, no qual estão em jogo as próprias expectativas de autorrealização
dos indivíduos. Como indivíduos com uma história pessoal, somos
marcados por uma gramática moral, na qual a violação, o desrespeito, a
injustiça e a humilhação afligem nossas expectativas motivacionais de
constituição de uma identidade positiva. Inspirado em Hegel, o autor
escreve:
60
[...] a formação do Eu prático está ligada à pressuposição do
reconhecimento recíproco entre dois sujeitos: só quando dois
indivíduos se vêem confirmados em sua autonomia por seu respectivo
defrontante, eles podem chegar de maneira complementária a uma
compreensão de si mesmos como um Eu autonomamente agente e
individuado (HONNETH, 2003, p. 119‐ 120).
Na primeira parte do seu trabalho chamado de presentificação
histórica, Honneth (2003) parte da intuição originária do jovem Hegel,
primeiramente no Sistema de Eticidade para mostrar que, Hegel vê na
Grécia “[...] os costumes e os usos comunicativamente exercidos no
interior de uma coletividade como medium social no qual deve se efetuar
a integração de liberdade geral e individual [...]” (HONNETH, 2003, p.
41). Desse ponto de vista, salienta o autor que Hegel “[...] acaba dando
um passo decisivo além de Platão e Aristóteles, ao incluir na organização
institucional da eticidade absoluta uma esfera que ele define
provisoriamente como um sistema de propriedade e direito.”
(HONNETH, 2003, p. 41). Sob esse registro, a intuição do jovem
Hegel, sustentava que o movimento de reconhecimento refere-se “[...]
aquele passo cognitivo que uma consciência já constituída ‘idealmente’
em totalidade efetua no momento em que ela se reconhece a si mesma
em outra totalidade, em uma outra consciência [...]” (HONNETH,
2003, p. 63, aspas do autor).
Depois na fase da Realphilosophie, Hegel retoma a luta por
reconhecimento como categoria fundante à formação do sujeito. De
acordo com Honneth, Hegel invoca a doutrina do estado de natureza,
primeiramente porque ela contém um modelo social que reproduz de
maneira correta a situação social que ele procurou introduzir,
sistematicamente, no campo da experiência individual como uma luta
61
por reconhecimento. Nas palavras de Honneth, o argumento de Hegel
pode ser compreendido da seguinte maneira:
[...] em contraposição à tradição predominante, deve ser mostrado
que os sujeitos, mesmo sob condições sociais da concorrência hostil,
alcançam uma solução judica do conflito como a formulada na ideia
de um contrato social, então a atenção teórica deve ser deslocada para
aquelas relações sociais intersubjetivas através das quais um consenso
normativo mínimo é previamente garantido desde o começo; pois,
apenas nessas relações pré-contratuais de reconhecimento recíproco,
ainda subjacentes às relações de concorrência social, pode estar
ancorado o potencial moral, que depois se efetiva de forma positiva
na disposição individual de limitar reciprocamente a própria esfera de
liberdade [...] O reconhecido é reconhecido como válido
imediatamente, por seu ser, mas precisamente esse ser é gerado a
partir do conceito; é ser reconhecido. O homem é necessariamente
reconhecido e é necessariamente reconhecente. Essa necessidade é a
sua própria, não o nosso pensamento em oposição ao conteúdo.
Como reconhecer, ele próprio é o movimento, e esse movimento
supera justamente seu estado de natureza: ele é reconhecer
(HONNETH, 2003, p. 85-86).
Nessa tentativa de reproduzir a situão inicial do estado de
natureza, tudo se passa como se:
[...] o significado social do conflito nascente só pode ser entendido
adequadamente se for imputado às duas partes um saber sobre a
dependência em relação ao respectivo outro, então os sujeitos
cindidos não devem ser aprendidos como seres que agem apenas
egocentricamente, isolados uns dos outros [...] (HONNETH, 2003,
p. 85-86).
62
Dessa maneira, Hegel na interpretação de Honneth, acerta o alvo
de sua crítica - a tradição do contrato social- e, apesar de valorizar a ideia
de um conflito originário hobbesiano, substitui a noção de contrato
social pela intuição do reconhecimento. Contudo, Honneth não deixa
Hegel ileso em sua reconstrução, ao contrário, segundo esse autor, Hegel,
não consegue oferecer uma resposta satisfatória sobre quais devem ser as
qualidades especiais dessa experiência que conferem à luta uma força
prático-moral (HONNETH, 2003, p. 92). Da mesma forma, nem
mesmo seus intérpretes, como Alexandre Kovèje, que acreditavam que a
antecipação da própria morte, ou, de outrem devem levar ao
reconhecimento das pretensões individuais, conseguem responder
satisfatoriamente a questão (2003, p. 93). Honneth crê que uma
atualização filosófica do reconhecimento intersubjetivo deva passar por
uma reconstrução crítica pós-metafísica.
Nesse ponto, inicia-se a segunda parte da obra, isto é, uma
atualização sistemática da estrutura de relações sociais de
reconhecimento. Portanto, partindo dessa ideia original de Hegel,
Honneth encontra na psicologia social de George Herbert Mead os
subsídios necessários que permitem traduzir a teoria hegeliana em uma
linguagem pós-metafísica, preparando o caminho para uma nova teoria
do reconhecimento mais próxima das ciências humanas e de suas
aplicações empíricas. Diz esse autor:
[c]om referências aos vários Mes, que se formam no processo de
reação contínuo, Mead já dá a conhecer a direção que devem tomar
na sequência suas investigações acerca do desenvolvimento humano
da identidade humana. Até aqui seus estudos, em grande parte
ligados ainda às questões de fundamentação da psicologia, fizeram-no
chegar a uma concepção intersubjetiva da autoconsciência humana:
um sujeito só pode adquirir uma consciência de si mesmo na medida
63
em que aprende a perceber sua própria ação da perspectiva,
simbolicamente representada, de uma segunda pessoa. Essa tese
representa um primeiro passo para uma fundamentação naturalista da
teoria do reconhecimento de Hegel, no sentido de que pode indicar o
mecanismo psíquico que torna o desenvolvimento da autoconsciência
dependente da existência de um parceiro de interação que reagisse,
um indivíduo não estaria em condições de influir sobre si mesmo
com base em manifestações autopercepctíveis, de modo que
aprendesse a entender aí suas reações como produções da própria
pessoa. Como o jovem Hegel, mas com os meios das ciências
empíricas, Mead inverte a relação de Eu e mundo social e afirma uma
precedência da percepção do outro sobre o desenvolvimento da
autoconsciência [...] (HONNETH, 2003, p. 131).
Com isso, Honneth (2003) procura, graças aos meios
construtivos de Mead, uma inflexão materialista da teoria do
reconhecimento do jovem Hegel. De acordo com Honneth (2003, 158),
os dois pensadores, Mead e Hegel, coincidem na tentativa de localizar os
diversos modos de reconhecimento nas esferas de reprodução social a
família, a sociedade civil e o Estado -, distinguindo amor, solidariedade e
direitos como formas elementares das autorrelações fundamentais:
confiança, respeito e estima. Desse modo, a estrutura das relações sociais
desvela-se em três formas fundamentais de reconhecimento amor,
solidariedade e direitos mas, também, em três autorrelações
correspondentes autoconfiança, autorrespeito e autoestima que
afetam as três dimensões de formação da personalidade a natureza
afetiva, a imputabilidade moral e a dimensão das capacidades e
propriedades bem como seus componentes ameaçados a integridade
física, social e a dignidade. No dizer de Honneth:
64
[...] as formas de reconhecimento do amor, do direito e da
solidariedade formam dispositivos de proteção intersubjetivos que
asseguram as condições da liberdade externa e interna, das quais
depende o processo de uma articulação e de uma realização
espontânea de metas individuais de vida; além disso, visto que não
representam absolutamente determinados conjuntos institucionais,
mas somente padrões comportamentais universais, elas se distinguem
da totalidade concreta de todas as formas particulares de vida na
qualidade de elementos estruturais (HONNETH, 2003, p. 274).
Para Honneth (2003) esses modos de reconhecimento são
acionados em virtude da formação e compartilhamento de uma
semântica coletiva que se forma à medida que ocorrem as situações de
desrespeito, violação, humilhação e ataques à dignidade da pessoa
humana. Isto é, Honneth considera que as violações das esferas do
respeito e da estima podem se constituir como forças motrizes capazes de
levarem os movimentos sociais à luta e ao desenvolvimento de uma
semântica coletiva de reconhecimento. Como a primeira esfera de
reconhecimento que o indivíduo lida em sua vida é amor no qual somos
nutridos desde o útero de nossa genitora, passando pelos cuidados que
recebemos durante a infância; então a primeira forma de desrespeito
inscreve-se em maus-tratos corporais, formas de privação básica que
destroem a autoconfiança elementar que o sujeito poderia adquirir
intersubjetivamente na fusão íntima e amorosa com outros. A segunda
esfera que diz respeito aos direitos, quer seja, o modo como esperamos ser
tratado pelos outros no mundo social, como parceiro de interação em pé
de igualdade, como sujeito capaz de entrar em sociedade, contribuir
positivamente para a comunidade; em contrapartida, a forma de
desrespeito ocorre ao passo que lhe é negado justamente esse status de
igualdade, assim, fracassa sua expectativa intersubjetiva de ser
reconhecido como um sujeito capaz de formar um juízo moral. A última
65
forma de ofensa moral diz respeito à estima do próprio sujeito em seu
horizonte comunitário e cultural. Honneth (2003, p. 218) aloca em três
grupos as experiências de desrespeito: a morte psíquica; a morte social; e a
vexação (Kränkung análogo a expressão latina vexatio). No cerne, a tese
honnethiana consiste em mobilizar essas reações emocionais negativas de
vergonha, de ira, de vexação e de desprezo, ou seja, os sintomas psíquicos
de um reconhecimento negado e injustificado que atingem o ideal de
ego, a base motivacional capaz de mover o sujeito para a luta social.
Os sujeitos humanos não podem reagir de modo emocionalmente
neutro às ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos, pela
privação de direitos e pela degradação. Os padrões normativos do
reconhecimento recíproco têm a possibilidade de realização no interior
do mundo da vida social em geral formando o horizonte de expectativas
para a autorrealização individual. Toda experiência que, desrespeite as
pretensões de reconhecimento, contém em si a possibilidade de fazer com
que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se
torne o motivo da resistência política. Por isso, “[...] uma análise das
experiências morais instrui acerca da lógica que segue o surgimento desses
movimentos coletivos” (HONNETH, 2003, p. 224).
Todavia, Honneth (2003) chega a essa conclusão com certas
dificuldades teóricas. Existe algo de meandroso nessa passagem da teoria
dos padrões morais de (des)respeito à luta política. Isso porque não há
elementos suficientes no pensamento de Mead que permitam Honneth
(2003, p. 214) dar o passo necessário em direção ao conflito moralmente
motivado, pois não oferecem as bases empíricas para isso. Para ultrapassar
esse problema o autor opera toda uma reconstrução social das lutas
históricas revisando parte importante da tradição revolucionária que
irrompe com os escritos de juventude de Marx, passando por Sorel,
Sartre até chegar a Fanon e as lutas anticoloniais. Como expressa o autor:
66
[c]om a distinção, ainda muito provisória, de violação, privação de
direitos e degradação, foram dados a nós os meios conceituais que nos
permitem agora tornar um pouco mais plausível a tese [...] que é uma
luta por reconhecimento que, como força moral, promove
desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser
humano. Para dar a essa ideia forte, soando às vezes filosofia da
história, uma forma teoricamente defensável, seria preciso conduzir a
demonstração empírica de que a experiência de desrespeito é a fonte
emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos; mas
isso eu tampouco posso fazer aqui de modo direito e tendo de
contentar-me com a via indireta de uma aproximação histórica e
ilustrativa de uma tal demonstração (HONNETH, 2003, p. 227).
Nesse ponto de vista, as diversas lutas históricas que eclodiram na
modernidade podem ser relidas como tentativas de superação de
situações de inferiorização social e desrespeito. Por si só, quer dizer,
vividas isoladamente no horizonte da experiência individual as formas
elementares de reconhecimento não impelem a luta. Mas, quando as
esferas passam a se tornar base de um movimento coletivo, essas geram
um processo prático de interpretação das ofensas morais como sendo as
de um grupo inteiro de pessoas que as catalisam para certos objetivos
sociais e exigências coletivas de relações ampliadas de reconhecimento.
Com base nos trabalhos de Thompson e Barrington Moore, entre outros,
Honneth (2003, p. 260-262), procura distinguir esse modelo de lutas
moralmente motivadas daqueles baseados em interesses econômicos, ou,
estratégicos, pois, apesar de ser um desafio empírico precisam de
complementação e correção para constituir uma descrição justificada para
reação moral. Escreve:
67
[...] as lutas e os conflitos históricos, sempre ímpares, só desvelam sua
posição na evolução social quando se torna apreensível a função que
eles desempenham para o estabelecimento de um progresso moral na
dimensão do reconhecimento. [...] os sentimentos de injustiça e as
experiências de desrespeito, pelos quais pode começar a explicitação
das lutas sociais, já não entram mais no campo de visão somente
como motivos de ação, mas também são estudados com vista ao papel
moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramento de
relações de reconhecimento (HONNETH, 2003, p. 265).
Os padrões de reconhecimento intersubjetivo que atuam na
construção de uma imagem e uma atitude positiva diante de si mesmo
por parte do sujeito expressam de alguma maneira o progresso moral e
sua normatividade. As chaves para compreender esse processo
encontram-se nas já mencionadas relações entre autonomia e
reconhecimento, a soma que realiza os ideais de respeito moral kantiano e
a concepção formal de eticidade hegeliana (FLICKINGER, 2011a). Cabe
dizer que a tripartição dos padrões autoconfiança baseada no amor,
autorrespeito na igualdade e autoestima pela solidariedade alcança êxito
sob as condições sociais modernas. Pois somente sob certas condições que
se tornou possível submeter concomitantemente às relações jurídicas as
pretensões de uma moral pós-convencional, a programação de uma
política democrática e a estrutura normativa igualitária de
individualização. Perante isso se pode reconstituir o núcleo da ética do
reconhecimento a começar pela ideia de uma reação emocional diante de
ofensa moral que fere as expectativas de reconhecimento. A noção de
progresso também participa desse núcleo ao passo que desvela para nós o
sentido moral dos conflitos por reconhecimento na modernidade
(HONNETH, 2006b; 2009d). De acordo com Cenci (2013) em Luta
por reconhecimento, Honneth já esboçava uma clara concepção de
68
progresso sem recorrer à filosofia da história, como fizeram Kant e Hegel.
Segundo esse autor:
[...] a sociedade moderna é concebida honnethianamente como
resultado de um processo de diferenciação das esferas de
reconhecimento amor, direito e estima social e de seus princípios
amor, igualdade e êxito [...] tal processo pode ser vinculada uma
ideia de progresso moral. Sob um ponto de vista normativo, essa
concepção de progresso moral é possibilitada, sobretudo, pelo fato de
que cada uma das esferas comporta um excedente de validez que
proporciona o desenvolvimento de potenciais internos capazes de
levar a novos desenvolvimentos no plano individual e social. [...] para
Honneth, o progresso moral caracteriza-se como uma ampliação no
âmbito do reconhecimento mediante a socialização dos sujeitos e da
inclusão social (CENCI, 2013, p. 282).
Embora a noção de progressão moral provenha do solo de debates
próprio ao idealismo alemão, como sublinha Nobre (2012, p. 23) não se
trata de uma volta a Kant e a Hegel, mas, de pensar os pontos de vistas
um contra o outro em um diálogo incessante. Nesse sentido, Honneth
(2003) mostra-se um autêntico teórico crítico, esboça confiança em um
diagnóstico preciso das patologias sociais, disposição para reconstruir um
conhecimento emancipatório e crença justificada no uso da razão para
construir a normatividade e uma esfera blica democrática. Segundo
Cenci (2013, p. 278):
[c]om o advento da modernidade, a ordem hierárquica da estima
social passa por uma mudança estrutural. A compreensão da ordem
social de valores deixa de dar-se mediante um sistema referencial
objetivo e tal ordem perde tanto o fundamento metafísico de sua
validade quanto a capacidade de normatizar o comportamento e,
69
pois, também de determinar a escala de prestígio social. O sujeito
converte-se numa grandeza biograficamente individuada. Parte
considerável do que os princípios de honra asseguravam ao indivíduo
migra para o âmbito da relação jurídica, alcançando validade com o
conceito de dignidade humana. Porém, tal âmbito não é capaz de
recolher todas as dimensões da estima social. Ocorre que, para sentir-
se valiosa, a pessoa necessita ser reconhecida em realizações que ela
não partilha de modo indistinto com todos os demais sujeitos. O
conceito de honra é deslocado para a esfera privada, dando,
gradativamente, lugar ao de prestígio social. As noções de prestígio ou
reputação passam a indicar a medida de estima que o indivíduo goza
socialmente, mas no que se refere a suas realizações e capacidades
individuais. Em termos da nova forma que a estima social assume
como padrão de reconhecimento, tem-se um duplo processo em
relação ao conceito de honra: a sua universalização até tornar-se
dignidade e a sua privatização até tornar-se integridade
subjetivamente reconhecida.
No cerne da moral do reconhecimento encontra-se o conceito de
integridade pessoal capaz de ser motivo para uma reconstrução normativa
e que só pode ser efetivada na relação intersubjetiva forte (HONNETH,
2010). A integridade é o anverso da relação que se tem no desrespeito,
pois, os seres humanos são incapazes de reagir às ofensas sociais com
sentimentos neutros. As reações emocionais são decorrentes das
experiências de desrespeito ante as demandas de reconhecimento negadas,
ou, frustradas. Escreve o autor:
[...] o sentimento de indignação moral pelo qual os seres humanos
reagem à ofensa e ao desrespeito contém o potencial para uma
idealização antecipada de condições de sucesso, de um
reconhecimento não distorcido. A assumida fragilidade dessa base
prática da moralidade se torna evidenciada dentro da realidade social
70
pelo fato de que essas reações emocionais não revelam
automaticamente a injustiça que o desrespeito gera, mas apenas
sustentam o potencial para fazê-lo. Para o potencial cognitivo
inerente ao sentimento de vergonha e ofensa social evoluir para uma
convicção moral dependerá, em grande medida, da forma que o
ambiente político e cultural dos indivíduos em questão o
enfrentarem. Se a experiência de desrespeito se tornar uma fonte de
motivação para os atos de resistência política, então um movimento
social deverá existir de modo que possa se articular e, assim,
manifestar-se de forma positiva. Uma vez que a condenação
emocional de desrespeito e ofensa toma a forma de luta social, isso
representará, no entanto, um interesse empírico que corresponde às
preocupações teóricas da moralidade. Um conceito de moralidade
baseado na teoria do reconhecimento conta, portanto, com o apoio
de estudos sociológicos e históricos capazes de demonstrar que o
progresso moral é nascido da luta pelo reconhecimento
(HONNETH, 2010, p. 131-132).
Todavia, os debates de Honneth em torno do húmus das lutas
sociais não estacionam nesse ponto. Desde a publicação de Lutas por
reconhecimento o sociólogo alemão não cessou de oferecer novos
contornos para sua teoria, inclusive travando intensos diálogos a respeito
das críticas que lhes foram endereçadas e das dificuldades geradas na
recepção de seu trabalho. O livro Redistribuicíon o reconocimiento registra
uma parte fundamental desse momento. Diante do perigo de redução
dos problemas sociais do poder a uma psicologia moral; e do risco de
minimizar os conflitos das classes econômicas e dos limites da noção
liberal de justiça, apontados por Nancy Fraser
5
(FRASER; HONNETH,
5
Para Fraser (2006) as lutas contemporâneas precisam ser articuladas entre as demandas por
reconhecimento e políticas de redistribuição econômica: “A ‘luta por reconhecimento’ está
rapidamente se tornando a forma paradigmática de conflito político no final do século XX.
Demandas por ‘reconhecimento da diferença’ dão combustível às lutas de grupos mobilizados sob
as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, ‘raça’, gênero e sexualidade. Nestes conflitos ‘pós-
71
2006), o autor alemão mostra-se receptivo e atento aos limites de sua
teoria. Reconhece inclusive que existem outros modos mais elementares
de reconhecer, anteriores aos padrões intersubjetivos expressos na
gramática do reconhecimento. Em acordo com Bressiane (2015) e
Teixeira (2016) pode-se observar dois desenvolvimentos posteriores de
Honneth em relação a sua teoria. O primeiro consiste em uma espécie de
remodelagem crítica da revisão sociológica em direção a um diagnóstico
das patologias sociais. Desse modo, a análise passa a enfocar os sintomas
sociais, as patologias do contemporâneo em virtude de um sofrimento
que advém sobre o sujeito em rao da indeterminação no qual está
submetido. Tais fenômenos estão descritos em textos como Sofrimentos
por indeterminação, A sociedade do desprezo e Reificação
6
. Em segundo
socialistas’, a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como o meio principal da
mobilização política. [...] E o reconhecimento cultural toma o lugar da redistribuição
socioeconômica como remédio para a injustiça e objetivo da luta política. [...]Essa virada
representa um lapso de “falsa consciência”? [...] Ao invés de simplesmente endossar ou rejeitar o
que é simplório na política da identidade, devíamos nos dar conta de que temos pela frente uma
nova tarefa intelectual e prática: a de desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento, que
identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que
possam ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade” (FRASER, 2006,
p.231).
6
Para não fugir do escopo desta pesquisa não abordarei esses temas. Elenquei-os unicamente com
o propósito de situar a reflexão sobre a moral do reconhecimento no contexto de uma obra mais
ampla, complexa e inacabada. O tema da reificação possui relevância especial, uma vez que
desvela uma dimensão mais elementar do reconhecimento (Der existentielle Modus der
Anerkennung). Em Reificação (2018), Honneth revisita as contribuições do teórico marxista
húngaro Georg Lukács em seu famoso livro História e consciência de classe (2003). Da teoria da
ideia de reificação social do capitalismo, Honneth (2003) irá reformular o conceito de que a
reificação é o esquecimento do reconhecimento. Enquanto Lukács projeta sua teoria
revolucionária de tomada de consciência do proletariado e vê os processos de reificação como
correlatos do fenômeno de alienação, Honneth toma o conceito para lançar luz sobre fenômenos
nos quais o mundo e a nossa subjetividade são subsumidos à neutralidade e ao pensamento
instrumental. Honneth (2003) mostra-se preocupado com a reificação porque ela afeta os
indivíduos, primeiro, ao nível das relações intersubjetivas, quer dizer reifica o outro; segundo, os
afeta em sua relação com a natureza, pois, reifica o mundo; e, em terceiro, reifica-os no nível das
autorrelações que os sujeitos estabelecem consigo mesmos. Para sustentar essa intuição, o autor
soma ao conceito de Lukács os conceitos de cuidado (Sorge) em Heidegger e de experiência
qualitativa em Dewey. Desse modo, recolhe dos principais representantes da vertente do
72
lugar, com obras como O direito a liberdade, o autor tem procurado
reconstruir a ideia de liberdade social concomitante a uma crítica das
instituições, dos limites da justiça e da liberdade negativa apregoada pelo
mercado.
Educar e formar na esfera do reconhecimento
Ao atualizar as intuições do jovem Hegel, Honneth propõe uma
teoria das lutas sociais moralmente motivadas pela busca de
reconhecimento intersubjetivo. Na conferência publicada como:
Educação e a esfera pública democrática: Honneth (2013b) argumenta que
as relações entre o ensino público e a política republicana foram
negligenciadas nas últimas décadas com os novos modelos de
gerenciamento capitalista (HARTMAN; HONNETH, 2009). E,
informado pela concepção de autores modernos como Durkheim e
Dewey, sustenta uma visão de formação democrática. Comentando Kant,
diz:
pensamento do período entreguerras para mostrar que a reificação relida nesses termos auxilia-o
entender os episódios de barbárie que se seguiram no horror nazista. Na trilha desses autores,
Honneth pensa ser qualidade fundamental dessa experiência: engajar-se existencialmente no
mundo. Ao passo que Heidegger conceitua o cuidado em resposta à angústia de ser lançado no
mundo e Dewey concebe a experiência como qualidade do ser social; Honneth atribui ao
reconhecimento à condição mais elementar de engajamento mundano. Com isso, dá um passo em
direção à sua proposição seminal do primado do reconhecimento sobre o conhecimento. Além
disso, apoia-se em pesquisa sobre o desenvolvimento infantil, especialmente, nas teorias que visam
à gênese das emoções antes da cognição. Seu objetivo com isso é demonstrar que o
reconhecimento é anterior às formas de conhecer. Por isso, a categoria de reificação relida nos
termos dos padrões morais torna-se relevante para diagnosticar as distorções e patologias sociais.
Submetidos à reificação, os indivíduos se esquecem dos laços mais fundamentais que os ligam uns
com os outros e tornam-se capazes de cometer os piores horrores. Dessa maneira, a denúncia de
reificação da subjetividade soma-se à ética do reconhecimento na crítica às ofensas morais ao
desrespeito à violação do outro, à sua humilhação e, no extremo, aniquilação.
73
[...] o futuro cidadão deve poder dispor primeiramente do bem
central da “autoestima”, antes de poder participar como igual entre
iguais da autolegislação republicana. Por conseguinte, aptidões
profissionais, conhecimento para se orientar na sociedade civil e
princípios morais justamente não são compreendidos de maneira
primordial como recursos passíveis de aprendizado para assegurar
renda no futuro, mas como meios de reconhecimento social
universalizados pela sociedade, e através de sua apropriação mediada
pela pedagogia o jovem deve chegar paulatinamente à consciência de
ter um “valor” aos olhos das demais pessoas. (HONNETH, 2013b,
p. 554, aspas do autor).
A boa educação, por sua vez, seja por parte da família, como dos
próprios indivíduos, tornou-se modernamente um lugar onde as
expectativas morais de auto-respeito podem ser reconhecidas ou negadas.
A aspiração por uma educação universal, que possibilite a todos o
exercício pleno da cidadania e do uso da autonomia é impulsionada pela
superação das situações de inferiorização social, de injustiça e desrespeito
que minam a autoestima. A escola, sendo uma das instituições da
sociedade é responsável por promover a ordem democrática e equitativa
aos indivíduos.
A despeito da articulação nítida entre os discursos de
reconhecimento de Taylor e Honneth, é necessário ressaltar que os
autores possuem projetos muito diferentes. Enquanto Taylor propõe uma
espécie de hermenêutica filosófica mais vinculada à ideia de um amplo
diagnóstico cultural, cujos aspectos da potica atual suscitam exigências
de reconhecimento; Honneth procura lançar as bases intersubjetivas para
uma reconstrução empírica da gramática do reconhecimento. Todavia,
interessa-me salientar alguns pontos que confluem, pois ambos os autores
assentam seus projetos na ideia de uma intersubjetividade fundamental.
A comunidade linguística é valorizada como uma dimensão indispensável
74
à formação do sujeito, seja à medida que decorre da negação de uma
estrutura monológica da subjetividade, seja como o canal por meio dos
quais os indivíduos compartilham uma sentica de desrespeito.
Se, retomarmos Taylor, atualmente existe tensão entre as políticas
de diferença orientadas para o fomento das particularidades individuais
(gênero, deficiência) e de grupos (raça, etnia, nacionalidade). Em
contraposição, às políticas de igual dignidade são herdeiras da tradição
dos direitos naturais, dirigem-se assim, a todos os indivíduos, abstraindo
suas condições singulares. A pista que Taylor (1998) nos oferece é que as
diferenças, ao entrarem em conflito com o princípio da igualdade,
desencadeiam em determinadas camadas sociais a acusação de favoritismo
em prol das minorias. No Brasil todos os governos democráticos
convivem com as agruras de uma sociedade desigual cujo passado não foi
resolvido. De certo modo, o diagnóstico pode ser observado nas críticas
que foram dirigidas aos programas sociais propugnados pelos governos
das últimas décadas.
O governo de Fernando Henrique Cardoso é um marco para
entendermos a elaboração das políticas públicas de inclusão de pessoas
deficientes (RECH, 2010). No que se refere à questão racial assumiu
iniciativas importantes. Em 1996, o governo brasileiro promoveu o
Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo que discutiu o papel
das ações afirmativas com o objetivo de combate ao preconceito e
redução da desigualdade racial. Oscilando entre medidas neoliberais de
uma economia de mercado e a implantação de políticas de inclusão social
os governos pós-redemocratização conseguiram a duras penas promover o
crescimento econômico e algumas melhorias sociais avançando na pauta
de redução da desigualdade (COSTA; WERLE, 1997).
Tomado como paradigma para o caso brasileiro, a exigência por
reconhecimento toca em características imprescindíveis das situações
75
vivenciadas, seja ao nível das ações culturais, seja o das políticas
educacionais. A começar principalmente com os dispositivos jurídicos
criados após anos de 1990, tanto, em nível de políticas de igual
dignidade, como no caso das políticas de inclusão de pessoas com
deficiência que atravessa transversalmente todas as classes sociais, o
problema nero e de raça; quanto na crescente valorização das políticas
de diferença: a saber, as questões feministas, desde lei de proteção contra
violência até cotas na política; a cultura afro-brasileira e seu ensino, bem
como, a questão do combate ao preconceito racial viabilizada com as
cotas no ensino superior e no serviço público; e, e não menos importante
a sobrevivência cultural dos povos indígenas e das águas.
Já Honneth (2003) oferece uma teoria mostrando as bases
motivacionais, morais que fizeram com que, historicamente, os grupos
desenvolvessem uma gramática coletiva contra as situações de desrespeito.
Elucidando assim, os pressupostos normativos para discutirmos as
políticas de proteção à infância, de igualdade no mercado de trabalho e
de promoção do bem-estar geral dos indivíduos consigo mesmos.
Certamente, se pode dizer que apesar da teoria do reconhecimento não
contar com mais de duas décadas de penetração na filosofia da educação
brasileira, seu impacto sobre a produção nacional é relevante
(FLICKINGER, 2000, 2004, 2011a, 2011b; CENCI; DALBOSCO;
MÜHL, 2013; TREVISAN, 2011). Deve-se levar em consideração, que
a esteira do ideário iluminista propugnado por filósofos como Anísio
Teixeira e sua leitura deweyana da democracia como modo de vida, o
terreno de uma experiência reflexiva já estava sendo preparado. Também,
soma-se nesse âmbito às contribuições das reflexões marxistas e
fenomenológicas de autores como Dumerval Trigueiro Mendes. Ou
mesmo, graças à atuação de intelectuais como Eduardo Portella, ministro
atuante nos processos da anistia irrestrita na chamada abertura
76
democrática do regime militar e fundador da revista Tempo Brasileiro, a
grande divulgadora do trabalho de Habermas no Brasil. No entanto, a
entrada da teoria do reconhecimento no campo filosófico educacional
ocorreu graças aos círculos intelectuais ligados à teoria crítica e
hermenêutica. A teoria da ação comunicativa de Habermas e a
hermenêutica de Gadamer são antecedentes obrigatórios para entender
essa recepção da obra honnethiana. Em sua grande maioria, os estudos
que recorrem às reflexões sobre reconhecimento versam sobre a formação
humana. Nesse registro, a gramática do reconhecimento aparece,
justamente, no momento em que se verifica uma espécie de lacuna na
ética do discurso e na situação ideal de fala da ordem da conflitualidade
inerente do mundo da vida, ou, como diz um comentador “[...] Honneth
concorda com [...] construir a Teoria Crítica em bases intersubjetivas e
com marcados componentes universalistas, defende também,
contrariamente a este, a tese de que a base da interação é o conflito, e sua
gramática, a luta por reconhecimento” (NOBRE, 2003, p. 17).
O conceito de formação encontra-se no centro das preocupações
da filosofia da educação. Complexo, polissêmico e de alcance
longuíssimo formar o humano ressoa de diversas maneiras na história do
pensamento (VALÉRIO, 2018). É possível, por exemplo, tomar a ideia
de uma tradição judaico-cristã verificar a recorrência do conceito de
formação em, pelo menos, três momentos distintos. O primeiro, com a
paidéia grega e o ideal de formação do homem grego que passa por
Homero, Platão e Aristóteles chegando às escolas helenísticas. A segunda,
expresso na ideia latina de humanitas que percorre todo o humanismo
Ocidental e sua ideia de formação do homem virtuoso. Por fim, uma
terceira noção formulada nos termos da bildung, uma formação
concebida na esteira dos ideais iluministas e românticos, presentes no
século XVIII e XIX.
77
Sem dúvida, a teoria do reconhecimento contribui de diversas
formas para pôr em evidência as experiências de formação que colocam
em jogo às expectativas de uma constituição de si, autônoma, positiva e
solidária. Que dizer: a reconstrução de conhecimentos emancipatórios
capaz de dar um giro em direção ao reconhecimento do outro, isto é:
[...] um deslocamento do eixo de gravidade da discussão da história e,
principalmente, da filosofia da história para o ângulo de compreensão
dos processos sociais como sistema normativo capaz de revelar novas
possibilidades para a teoria crítica. Ela deixa de acontecer em torno da
relação sujeito conhecedor e objeto a ser conhecido, em favor das
relações intersubjetivas dos sujeitos que buscam se entender sobre
algo no mundo. Nesse sentido, o giro do reconhecimento aludido
refere-se à retomada do aspecto normativo da teoria em direção ao
outro, advogado enquanto instância capaz de produzir entendimentos
para estabelecer as condições de uma vida boa ou não fracassada. [...]
A partir da elevação do “outro” à categoria central para pensar os
procedimentos pedagógicos, muda-se o tratamento dado à história do
conhecimento, à perspectiva da inclusão social e ao desenvolvimento
de identidades, tornando mais sensíveis às experiências de não
reconhecimento (TREVISAN ET AL., 2015, p. 863-864, aspas
preservadas).
Certamente, deve-se observar que os autores desse giro ante o
reconhecimento dão ênfase ao entendimento, à abertura para alteridade e
ao florescer das identidades. Sob esse ponto de vista, Trevisan et al.
(2015, p. 863) “[...] o escravo se submete ao seu senhor não apenas pelas
relações de dominação e servilismo, mas também de estima, consideração
e reverência [...]”. Reinterpretada, a dialética da servidão alcança sua
supressão no entendimento e valorização do outro. Desse modo, as lutas
por inclusão e reconhecimento tornaram-se decisivas à criação de campos
78
intelectuais e políticas sociais. Constituem verdadeiros espaços de atuação
e expressão de certos movimentos sociais e engajamento ético-político.
Porém, como aponta Merle (2011) a ética do reconhecimento enquanto
apelo (Aufforderung) à estima falha em sua própria ambição normativa
haja vista que existem certas esferas relacionais nas quais a recusa ou
ausência de reconhecimento não implicam em degradação, humilhação
ou desrespeito como no caso do amor ou da amizade especialmente
quando tal recusa é fruto das escolhas e decisões dos indivíduos.
Além disso, parece-me que atada à normatividade do direito, bem
como, pensada como experiência de constituição da identidade a
formação pressuposta na busca por reconhecimento encerra-se nos
quadros estritos de uma cidadania. Carece, nesse sentido, de dupla
dimensão da subjetivação, pois, reconhecer também implica na admissão
de relações de poder, de autoridade. Implica estar sujeito a alguém, sob
direção de outrem e ainda sim existir como consciência de si. A pretensão
de reconhecimento, às lutas que suscitam podem resistir à domesticação
neoliberal? Sob predomínio neoliberal a ideia de uma cidadania baseado
na representação do sujeito de direito sofre um eclipse, pois, como
demonstram Guattari (2013), Lazzarato (2014), a modelização do
capitalismo financeiro baseia seus agenciamentos antes na servidão
maquínica do que na sujeição significante.
Curvas sinuosas entre Foucault e a teoria crítica
Se em a Critique of power, Honneth (1991) procurou revisar o
legado da teoria crítica e se aproximou da genealogia dos micropoderes
de Michel Foucault foi sem dúvida para formular sob as bases da
intersubjetividade novas categorias que pudessem explicar as ações
79
ordinárias dos homens, particularmente, àquelas que dizem respeito ao
porquê das pessoas se engajarem em lutas contra o poder. A crítica de
Honneth (1991) à Foucault procura apontar uma insuficiência
sociológica na explicação das estabilizações nas relações de poder. Se os
poderes são incessantes e imanentes ao corpo social, os consensos
tornam-se impossíveis, e, se são alcançados, o poder não é tão
evanescente assim. A questão que parece escapar de Honneth é o fato de
Foucault ser um crítico mordaz do consenso e da busca desastrosa por
uma moral universal. Além disso, Honneth (2003) não é capaz de
sustentar sua teoria das lutas por reconhecimento motivado somente
pelos padrões intersubjetivos sem recorrer a um contexto externo a esses
conflitos. Por isso, fundamenta-se em uma noção de progresso que só a
modernidade pode oferecer. Estão ausentes as condições de possibilidade.
A perspectiva de Foucault sobre as lutas históricas recusa essa ânsia pela
teorização e pelo lugar de origem que se assenta em uma noção jurídica
de poder.
Ademais, tanto Taylor, quanto Honneth assumiram a imagem de
Foucault como um teórico do poder, quando não como uma espécie de
discípulo relativista de Nietzsche, o primeiro acusando de refutar a si
próprio por ocasião da crítica aos valores das sociedades liberais dos quais
seus argumentos dependem, e o segundo, ignorando o ineditismo da
última parte de sua obra, relegando-o a um crítico reprodutivista das
relações de dominação. Sem dúvida a análise das relações de poder ocupa
lugar importante no pensamento de Foucault, porém, não define seu
projeto, tampouco, elucida os problemas contemporâneos se limitados se
circunscritos ao campo das práticas divisoras.
Nesse terreno, existem nuances que precisam ser esclarecidas e
curvas sinuosas nas quais é preciso redobrar a atenção. O fato é que nos
últimos anos de sua vida, Foucault juntamente com os cursos sobre a
80
ética, dedicou parte considerável de seus ensaios à modernidade como
uma questão e do iluminismo como objeto de uma ontologia do
presente. Interrogar-se acerca do que está acontecendo na atualidade é
central nessa visão. Kant adquire grande importância por seu gesto
acontecimental. Na entrevista publicada como Estruturalismo e Pós-
estruturalismo, Foucault (2005b) ao fazer um balanço de sua trajetória
sugeriu que alguns problemas e descaminhos poderiam ter sido evitados
se tivesse lido antes os autores da escola de Frankfurt. Contudo, assevera
corretamente Butler (2015) apesar de situar-se nessa tradição de
questionamento da modernidade, Foucault (2005b) a ideia de denúncia
da irrazão como oposto a razão, ou seja, recusa a bifurcação de uma única
história da razão em duas faces:
[...] ele se opõe ao que define como uma forma de chantagem que
busca igualar toda a crítica da razão à negação da própria razão, ou
ameaça castigar a crítica como uma forma de irracionalismo. Todo
regime de verdade recorreu a essa chantagem, ou seja, a chantagem
não pertence a um regime particular e, com efeito, pode funcionar
em qualquer um deles. Isso quer dizer que a própria operação da
chantagem contraria a tese para a qual foi concebida. A tese é que
existe um único regime, mas a repetição da tese em relação a
diferentes regimes estabelece a pluralidade destes e revela que a
chantagem busca forçar o reconhecimento de um único regime de
verdade, que, em sua repetição, demonstra não ser o único em
absoluto (BUTLER, 2015, p. 150).
Não existe um apenas único caminho para atitude crítica, assim
como não existe uma única forma de possível de razão e racionalidade,
mas, bifurcações múltiplas e incessantes. Na confencia O que é a
Crítica? (FOUCAULT, 2000), o filósofo mostrou as relações entre o
81
desenvolvimento do pensamento crítico na Alemanha Aufkarüngque
denunciou a conivência das estruturas de racionalidade com as formas de
dominação e o pensamento francês que colocou o problema a partir da
tradição de fenomenologia e das ciências da vida, desvelando por sua vez,
a sobreposão da técnica sobre o conhecimento.
Nesse contexto, Foucault (2000) reconhece que é necessário
mobilizar outra noção capaz de descrever em um quadro inteligível de
que modo os homens estabelecem uns com os outros as relações de
poder, de obediência e de autoridade. A essa nova noção Foucault chama
de governo, isto é, uma verdadeira arte de conduzir os homens, suas
condutas, pensamentos e desejos. Sobre isso, Foucault dedicou os últimos
cursos da década de 1970. Nesses cursos é possível observar um
deslocamento de ênfase que, até então, era colocada nas relações de poder
que assujeita os indivíduos em uma relação de governo mais reflexiva, no
qual podemos perceber, inclusive, uma aproximação com o pensamento
crítico, capaz de se distanciar e de mudar de estratégia (COLLIER,
2011). Essas análises tiveram impactos significativos na compreensão das
lutas históricas e estão relacionadas com o engajamento político de
Foucault como um intelectual (ALMEIDA, 2016).
Isso, no entanto, não significa que Foucault retomou o
paradigma do sujeito. Ao contrário, esse autor passou a considerar sob o
prisma das artes de governo modos de ação reflexivos de autogoverno.
No curso O nascimento da biopolítica, de 1979, Foucault (2008b) nos
oferece bons exemplos acerca dessas artes de governo. Após analisar todo
o desdobramento que o liberalismo terá como artes de governo que
colocou o mercado como um lugar de verdade e, posteriormente, a
racionalidade de governo neoliberal que ambiciona, intencionalmente,
inverter a relação de Estado e Economia para Mercado e Estado,
Foucault faz uma análise contundente sobre a situação do sujeito. Em sua
82
visão, nenhuma prática social nasce dela mesma, mas, de relações
exteriores. Diferentemente de Marx que em A questão judaica resolveu o
falso dilema da emancipação política dos Judeus, através do conceito de
emancipação humana, Foucault diz que no século XVIII temos a
emergência de dois sujeitos completamente opostos, de um lado, um
sujeito egoísta que age unicamente guiado pelos seus interesses, alinhado
à Economia e, de outro lado, um sujeito renunciante que abdica do seu
poder para dar forma ao modelo do Direito, um sujeito legalis. Para
resolver essa dissimetria entre dois sujeitos opostos, Foucault reporta-se a
uma tecnologia de poder capaz de unir as incongruências desses sujeitos:
a chamada sociedade civil. Essa tecnologia funciona como um elemento
de ligação entre as diferentes esferas da Economia e do Direito, do
Mercado e da Soberania, garantindo assim, certa solidariedade e ideia de
comunidade à sociedade política nascente. No entanto, essa nova
tecnologia com a ascensão da racionalidade neoliberal, encontra-se
ameaçada, uma vez que nesta, os sujeitos vão ser interpelados para
tornarem-se empresários de si mesmos.
Tal análise demonstra, ao mesmo tempo, o afastamento da ideia
de sujeito fundante e a necessidade de se instaurar uma crítica radical nos
modos de governo do presente. É por isso que em seus últimos cursos
torna-se abundante referências à reflexividade, à ética, ao governo de si
mesmo como formas de resistência ao apoderamento que a racionalidade
de governo neoliberal submete os modos de vida.
Na década de 1970, Foucault (2007a) analisou a sexualidade
como um dispositivo herdeiro das práticas de confissão da igreja. Em
resumo sua ideia consistia em demonstrar que na exterioridade das
relações de saber-poder as novas técnicas de se extrair as verdades últimas
do sujeito, a psicologia e a psicanálise possuem proveniência junto aos
inquéritos religiosos. As técnicas disciplinares estabeleciam uma relação
83
de necessidade de reconhecimento como uma forma de extrair
conhecimento e exercer poder através da anátomo-política do corpo
individual e da biopolítica das populações. Trata-se, ao invés de partir de
um horizonte hermenêutico, de uma situação no espaço moral, de
verificar as condições que tornaram possíveis a emergência de uma
“racionalidade governamental” que acentua a “obrigação de dizer-a-
verdade sobre si” de “governar-se” em vista de um regime de verdade que
tem seu lugar de veridicção no mercado e que dá forma ao sujeito-
empresa.
Afinal, é possível pensar uma genealogia do reconhecimento no
pensamento de Foucault? A resposta a essa questão é afirmativa. Para
demonstrar isso me apoiarei nos trabalhos de Fimiani (2004; 2008), e em
menor grau nos de Butler (2015) dentre outros. Dar-lhe uma resposta
adequada supõe relacionar, primeiro, duas noções fundamentais que
atravessam empenho filosófico de Foucault, a saber, a relação entre a vida
e a norma; e, segundo, problematizar as duas noções que estão no cerne
do projeto de uma história crítica da subjetividade, isto é, a relação entre
sujeito e verdade.
Na conferência O que é um dispositivo? Agamben (2005) traçou
no interior da obra de Foucault a genealogia da noção de dispositivo. De
acordo com Agamben (2005), o dispositivo corresponde ao pensamento
de Foucault ao conceito de positividade da religião natural do jovem
Hegel. Pode-se supor uma ressonância nesse momento entre a noção de
dispositivo em Foucault e, o trabalho de presentificão histórica que
Honneth (2003) faz em Luta por reconhecimento, aliás, o próprio
Honneth afirma que o reconhecimento é um dispositivo tridimensional,
de amor, solidariedade e direitos, o que guarda proximidade, com aquilo
que Foucault chamou de tecnologia da sociedade civil. Em que medida a
análise dos dispositivos nos auxilia na compreensão das lutas por
84
reconhecimento? Quais são as lutas passadas e atuais na visão de
Foucault? E qual o papel que a crítica e a filosofia assumem nesse
horizonte?
Em diversas ocasiões o filósofo francês relacionou as lutas com
formas de resistência ao poder. Foucault (1995) elenca três tipos de lutas
principais contra os dispositivos de poder. As lutas históricas contra
formas de dominação (étnica e religiosa) que eclodiram desde o mundo
antigo passando pela Idade-Média até as revoluções burguesas. Os
conflitos contra a exploração do trabalho que atravessaram o século XIX e
a nascente sociedade industrial. E, em terceiro, as lutas contra aquilo que
liga o indivíduo a si mesmo e o submete aos outros, embates contra a
sujeição. Lutas contra a dominação, contra a exploração e contra a
sujeição. Na conferência A filosofia analítica da política Foucault (2004a)
escreve que se a exploração, a pobreza e a miséria foram os grandes
problemas colocados em questão nas lutas do século XIX, no século XX a
questão foi repousou sobre excrescência, ou, superprodução de poder por
parte dos Estados totalitários, principalmente do nazismo e o stalinismo.
Não se deve pensar que essas doenças do poder, constituíram-se a
condição de casos isolados, ao contrário, “[...] o desenvolvimento de
aparelhos policiais, a existência de técnicas de repressão como o campo de
trabalho, tudo isto foi instituído nas sociedades ocidentais liberais, e que
o stalinismo e o fascismo apenas incorporaram” (2004a, p. 38). Contra
isso, cabe a filosofia:
[...] desempenhar um papel em relação ao poder, que não seria um
papel de fundação ou recondução do poder. Talvez a filosofia possa
ainda desempenhar um papel do lado do contrapoder, com a
condição de que esse papel não consistia mais em impor, em face do
poder, a própria lei da filosofia, com a condição de que a filosofia
deixe de se pensar como profecia, como condição de que a filosofia
85
deixe de se pensar como pedagogia, ou como legislação, e que ela se
dê por tarefa analisar, elucidar, tornar visível e, portanto, intensificar
as lutas que se desenrolam em torno das relações de poder, as táticas
utilizadas, os focos de resistência, em suma com a condição de que a
filosofia deixe de colocar a questão do poder em termos de bem e
mal, mas sim em termos de exisncia (FOUCAULT, 2004a, p. 43).
Em O sujeito e o poder, ao convocar a crítica como elemento
catalisador dos pontos de resistência, Foucault (1995) adverte-nos quanto
às características das lutas atuais. São lutas transversais, isto é, não se
limitam a um país. Seus objetivos procuram combater os efeitos que as
relações de poder produzem sobre o indivíduo. São lutas anárquicas, pois,
não tomam um inimigo permanente, mas, um adversário imediato.
Envolvem batalhas pelo governo da individualização, questionam o
regime de saber dos especialistas que não possuem responsabilidade com
o conhecimento de vida e morte que carregam. Por fim, lutas pela
subjetividade, quer dizer, diretamente vinculadas a quem somos nós. É
contra aquilo que nos assujeita, que transforma os seres humanos em
sujeitos de uma identidade possessiva. Finalmente, podem as lutas por
reconhecimento e respeito serem compreendidas nessa chave analítica,
como batalha contra a sujeição?
Parece-me que é sobre esse aspecto que reside a atualidade do
esfoo de Honneth (2003), ao passo que consegue descortinar o
dispositivo da pessoa a individualidade, a honra, o respeito e a
dignidade - como foco dos conflitos no presente. A gramática do
reconhecimento catalisa uma parte da alma dos indignados, diz respeito,
à representação significante do indivíduo para si mesmo. Porém,
Honneth (2003) incorre no mesmo problema dos filósofos que apostam
em uma analítica da verdade, por exemplo, Kant, a saber, uma teorização
infrutífera ao fundamentar sobre base antropológica o conflito.
86
Carecendo da dimensão de subjugação, o indivíduo que luta por respeito
enquanto representação não suporta, nem comporta outras experiências
fora da racionalidade de governo.
É bem verdade que se pode mobilizar a noção de reconhecimento
para reconstruir os saberes pré-teóricos capazes de impulsionar os negros,
as populações vulneráveis, as pessoas deficientes e as minorias de gêneros
com vistas a pensar suas lutas como embates moralmente motivados por
expectativas de reconhecimento de suas identidades, ou, sua condição de
subalternidade. Em contrapartida, com a nova racionalidade neoliberal,
tendo em vista que se apóia em potências impessoais, ocorre a
reapropriação dessas lutas à lógica do empresário de si mesmo; e o
aprofundamento das dinâmicas de precarização da vida dessas populações
(BUTLER, 2017c). O multiculturalismo que a princípio se colocou
como a necessidade de pensar uma sociedade constituída por culturas e
grupos diversos, degenerou-se na segmentação de políticas econômicas,
subsumindo as identidades culturais ao jogo do mercado.
Para Honneth (2003) a busca por reconhecimento intersubjetivo
culmina com a constituição de uma identidade, de uma imagem positiva
de si mesmo, quer dizer, o trabalho da subjetividade volta-se à construção
da interioridade, a individualidade e a autorrealização. No pensamento
Foucault: primeiro, o reconhecimento pertence às relações com certos
dispositivos, não está em uma posição de exterioridade, mas, é imanente
às relações de saber e poder, pois, implica num jogo com a sujeição;
segundo, não constitui algo como uma estrutura elementar da ‘natureza
humana’; terceiro, o dispositivo de reconhecimento estabelece uma
relação íntima do sujeito com a verdade. E, como elemento de ligação do
sujeito com a verdade, o dispositivo de reconhecimento que revela não
apenas sua potência de luta, de afirmação de si mesmo, mas, também,
um risco de se deixar capturar por uma identidade única e estática. É
87
importante ressaltar que toda constituição de uma identidade pressupõe,
simultaneamente, a exclusão de uma série de características obscuras que
permanecem inacessíveis aos sujeitos (BUTLER, 2015). De acordo com
Safatle (2012, p. 69-70):
[...] não foram poucos aqueles que, no século XX, insistiram que o
indivíduo moderno é, na verdade, produzido pela internalização de
profundos processos disciplinares e repressivos. A boa questão é: com
que eu preciso me conformar para poder ser reconhecido como
indivíduo de interesses 'próprios'? [...] sofre-se também por ser apenas
um indivíduo. Há um sofrimento vindo da incapacidade em pensar
aquilo que, dentro de si mesmo, não se submete à forma coerente de
uma pessoa fortemente individualizada com sua identidade
compulsivamente afirmada.
Apesar disso, os pensadores mencionados valorizam a dimensão
conflituosa da existência. Do lado de Honneth, de uma indeterminação
que gera uma gramática moral que é acionada quando às expectativas de
reconhecimento são frustradas; e, de outro lado, quando Foucault nos
mostra o jogo agonístico das relações de poder e a possibilidade incerta de
uma estética da existência. As coisas complicam-se ainda mais, quando
consideramos o quê eles nos trazem para pensar nossa atualidade,
particularmente, às práticas educacionais de professor e aluno e as
políticas de inclusão social, ao passo que, o indivíduo não é apenas uma
fabricão jurídico-política da sociedade, mas, o efeito de arranjos
tecnológicos irredutíveis a experiência intersubjetiva.
89
Capítulo 2
Reconhecimento e Vulnerabilidade
A submissão (Unterwerfung) do egoísmo do escravo forma o início da
verdadeira liberdade dos homens. A dissolução da singularidade da
vontade, o sentimento de nulidade do egoísmo, o hábito da
obediência (Gehorsams) é um momento necessário da formação de
todo homem. Sem ter a experiência deste cultivo (Zucht) que quebra
a vontade própria (Eigenwillen), ninguém advém livre, racional e apto
a comandar. E para advir livre, para adquirir a aptidão de se auto-
governar, todos os povos tiveram que passar pelo cultivo severo da
submissão a um senhor. (HEGEL,1995, apud SAFATLE, 2008, p.
119).
Uma alma nobre se sentirá de boa vontade obrigada ao
reconhecimento e não evitará ansiosamente as ocasiões em que se
sente obrigada: enquanto que as almas mesquinhas se guardam de
toda obrigação ou, mas tarde, na expressão de seu reconhecimento,
são exageradas e demasiado obsequiosas.
É o que se produz de resto também nas pessoas de baixa extração
social ou de situação oposta: um favor que lhes é feito lhes parece um
milagre de generosidade. (NIETZSCHE, 2013, p. 312).
90
No capítulo anterior a análise se atentou nas concepções teóricas
de Honneth e Taylor sobre a busca moderna por reconhecimento e na
recepção desse tema no cenário brasileiro. Em virtude desse percurso foi
possível: primeiro, demarcar o debate acerca das exigências políticas no
multiculturalismo; e, segundo, mostrar a entrada da teoria do
reconhecimento no campo da Filosofia da educação. Perante o exposto,
pretendo discutir algumas contribuições filosóficas à teoria social e as
lutas sociais que possam viabilizar a criação de uma perspectiva crítica
sobre o reconhecimento e a inclusão escolar. Para isso, a seguir reflito
sobre alguns aspectos da obra filosófica de Judith Butler, especialmente,
as ideias que dizem respeito às relações entre reconhecimento e
vulnerabilidade.
Antes de prosseguir cabe reforçar que o ponto de chegada do
discurso filosófico de reconhecimento encontra-se no pensamento de
Hegel (2007). Inclusive de uma intersubjetividade potente em suas obras
de juventude, como nos oferece testemunho Honneth (2003). Contudo,
Taylor (1998); depois Honneth (2013a) com certa reserva; e,
notoriamente Neuhouser (2013; 2016) apontam que o precursor de uma
teoria do reconhecimento foi o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau
graças à sua elaboração da ideia de amor próprio (amour propre). No
contexto desta tese esse é um ponto relevante, especialmente porque
Rousseau é um dos primeiros filósofos a formular, sistematicamente, uma
filosofia da educação.
De acordo com Dalbosco (2011; 2014) a obra de Rousseau
contém as potencialidades para uma noção de educabilidade capaz de
abrigar uma constituição intersubjetiva do sujeito humano. Em sua obra
Emílio ou da Educação, Rousseau (1995), inventa seu pupilo, um infante
de boa compleição física e disposição de espírito que doravante deveria
ser educado por um tutor para que fosse formado, desde os primeiros
91
anos de vida, em contato com a virtude da sinceridade, ouvindo sempre a
voz do seu próprio coração, que não era outra coisa que a natureza
humana falando nele. A educação deve tornar Emílio senhor de si, um
sujeito capaz de dominar o amour propre. Desse modo, Rousseau abriu o
caminho para a posteridade, principalmente para o florescimento de uma
cultura da autenticidade. Contudo, como salienta Safatle (2015c), o
conceito de reconhecimento só alcança um grau de formalização teórica
suficiente para expressar a complexidade da formação da subjetividade
moderna com o pensamento de Hegel que formulou seu conceito com
base na crítica tanto da ideia de estado de guerra permanente em Hobbes,
quanto da boa natureza do homem solitário de Rousseau. Segundo
Safatle (2015c), no século XX, o tema do reconhecimento é recuperado,
pela primeira vez, na década de 1930, com as lições do professor Kojève
(2002) publicada como Introdução à leitura de Hegel. Como demonstra
Descombes (1979), Kojève, juntamente com o historiador das ciências
Koyré (2006) foram os propugnadores do pensamento hegeliano na
França. Foram esses que ofereceram uma alternativa ao neokantismo e
introduziram o idealismo especulativo na instituição universitária
francesa. Pensador russo, Kojève possui papel de destaque nesse meio,
pois, foi através de suas lições introdutórias que pensadores como
Merleau-Ponty, Jean Hyppolite, Georges Bataille e Jacques Lacan
tiveram acesso integral ao pensamento de Hegel. Dessa maneira, a ideia
de luta por reconhecimento ressoou, primeiramente, na França no entre-
guerras, particularmente na psicanálise de Lacan, e, somente depois, entre
as décadas de 1970 e 1990 foi recuperada nas figuras de Charles Taylor,
Jürgen Habermas, Axel Honneth, Nancy Fraser, Paul Ricoeur e Judith
Butler.
92
Desejo de reconhecimento
Composta em sua grande parte de anotações realizadas pelos
alunos, na obra Introdução à leitura de Hegel, Kojève (2002) oferece uma
verdadeira topologia da fenomenologia entenda-se ciência da
experiência da consciência hegeliana. Especialmente, na seção À guisa
de introdução, Kojève (2002) desenvolve a partir de Hegel (2007) os
prolegômenos para compreender a luta por reconhecimento contida no
capítulo quatro da Fenomenologia do espírito intitulado Independência e
dependência da consciência de si: dominação e escravidão. Kojève (2002)
situa-se sob a hipótese de uma antropogênese. Inicia seu texto dizendo
que “[...] o Ser do homem, o Ser consciente de si, implica e supõe o
desejo” (KOJÈVE, 2002, p. 11). E esse desejo, estende-se para além das
necessidades biológicas; é um desejo que torna o homem um animal
inquieto e o leva à ação. Em sua interpretação, para que haja consciência-
de-si é preciso que o desejo ultrapasse a realidade dada, ou seja, deixe de
ser apetite, e, a única coisa que ultrapassa o real dado é o próprio desejo.
Portanto, “[o] desejo que se dirige a outro desejo, considerado como
desejo, vai criar pela ação negadora e assimiladora que o satisfaz, um Eu
essencialmente diferente do “Eu” animal” (KOJÈVE, 2002, p. 12, aspas
preservadas). Ultrapassando o “Eu” animal e sua condição de identidade
e igualdade consigo esse Ser será negatividade-negadora, será sua própria
obra, ele será (futuro), o que se tornou (presente) e o que foi (passado).
Sendo assim, em seu Ser o ser humano é um devir intencional, uma
evolução desejada, um progresso consciente e voluntário.
Nesse quadro antropogenético, Kojève (2002) identifica esse Eu
como o indivíduo humano, livre, consciente de si e histórico que
somente alcança consciência à medida que é para os outros como ser
93
reconhecido. Assim, o desejo nasce conjuntamente com uma
multiplicidade de desejos que desejam os desejos dos outros. Dessa
maneira, nas palavras do Kojève “[...] o desejo antropogênico difere,
portanto, do desejo animal [...] pelo fato de não buscar um objeto real,
“positivo”, dado, mas, um outro desejo” (2002, p. 13 aspas preservadas).
Portanto, o desejo é um medium, uma vez que, os objetos naturais só se
tornam humanos à medida que são objeto de desejo do desejo dos outros.
Enquanto os outros animais desejam conservar a vida e satisfazer seu
apetite com objetos reais, o animal humano deseja o desejo dos outros, e,
apenas tornam-se verdadeiramente humano, ou seja, supera o desejo de
conservação e adquire consciência-de-si à proporção que arrisca sua vida
para satisfazer esse desejo. Isso significa essencialmente que o desejo busca
a qualquer preço se colocar no lugar do valor desejado. No dizer do
autor:
[d]esejar o desejo do outro é, em última análise, desejar que o valor
que eu sou ou que represento seja o valor desejado por esse outro:
quero que ele reconheça meu valor como seu valor, quero que me
reconheça como um valor autônomo. Isto é, todo o desejo humano,
antropogênico, gerador da consciência-de-si, da realidade humana é,
afinal, função do desejo de reconhecimento. E o risco de vida pela
qual se confirma a realidade humana é um risco em função desse
desejo. Falar da origem da consciência-de-si é, pois, falar de uma luta
de morte em vista do reconhecimento (KOJÈVE, 2002, p. 14).
Instala-se assim, na interpretação de Kojève (2002) um processo
dialético exemplificado na dialética entre o senhor e do servo no qual
dois desejos que desejam reconhecimento lutam uma luta de vida e morte
em busca de puro prestígio. Todavia, para que esta luta não culmine com
a eliminação do outro é necessário que um dos adversários seja
94
dominado, rendido, vencido, e, que ele pprio aceite diante do medo da
morte sua derrota, por isso, segundo o autor, Hegel identifica que o
início da dialética histórica deve começar como dependência e escravidão;
seguida pela consciência infeliz; e, finalmente pelo momento de supressão
no qual o senhor reconhece no servo as qualidades que lhe faltam para
criar mundo e o servo à liberdade necessária para ser um sujeito desse
mundo que ele cria.
No dizer de Kojève (2002) em seu estado nascente o homem
passa necessariamente pela condição, ou, de senhor, ou, de escravo. Esse
movimento subscreve a dialética histórica como dominação e sujeição.
Entretanto, para Hegel a interação do senhor e do escravo deve levar
finalmente a supressão dialética entre eles. Para esse intérprete isso reforça
a condição de que o homem somente ao ser reconhecido pelos outros,
pode tornar-se verdadeiramente humano. Como argumenta Hegel:
[a] consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para
si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido. O
conceito dessa sua unidade em sua duplicação, [ou] da infinitude que
se realiza na consciência-de-si, é um entrelaçamento multilateral e
polissêmico. Assim seus momentos devem, de uma parte, ser
mantidos rigorosamente separados, e de outra parte, nessa diferença,
devem ser tomados ao mesmo tempo como não-diferentes, ou seja,
devem sempre ser tomados e reconhecidos em sua significação oposta
(HEGEL, 2007, p. 126).
É a partir das exposições de Kojève que os filósofos franceses
fizeram a incursão no interior do projeto hegeliano. Por intermédio de
suas aulas o conceito de luta de vida e morte pelo reconhecimento torna-
se acessível, principalmente pelo viés de uma leitura existencialista.
95
Pensadores como Bataille e Lacan mutatis mutandis ajudaram a
consolidar essa interpretação. Ressaltando a importância da teoria do
reconhecimento no contexto da psicanálise de Lacan, Dunker (2015, s/p)
diz:
[...] luta pelo reconhecimento. Essa luta não é apenas, como se pode
pensar, pela posse das imagens e pelo reconhecimento de si, como
realização do amor-próprio, é principalmente uma luta para definir a
lei pela qual o desejo se distribuirá entre os participantes. E ela só será
a lei estabelecida e vitoriosa quando for realizada. A realização da lei é
o que está em jogo na luta real, que tem a morte e a desaparição
como horizonte. [...] Quer seja pela matriz da experiência amorosa (o
poder da natureza), quer seja pelos impasses do contratualismo
jurídico (o poder da universalidade) ou das exigências imponderáveis
de realização de uma forma de vida (o poder do viver desigual),
estamos às voltas com o reconhecimento de uma pluralidade
ordenada de gramáticas de reconhecimento. A passagem pelo
simbólico envolve o reconhecimento de leis de reconhecimento. É
essa torção do reconhecimento sobre si mesmo e sobre a alteridade
que permite a Lacan descrever as diferentes montagens da necessidade
de discurso, da demanda e da transferência, incluindo aqui seu
momento interno de separação, que é o desejo.
A notável fórmula de Lacan (NASIO, 1995) consiste em dizer
que o desejo do homem é o desejo do Outro, o desejo se constitui como
desejo de um desejo, essa é sua origem. Assim, diz-nos Lacan “[...] o
desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto
porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu
primeiro objeto [do desejo do homem] é ser reconhecido pelo outro”
(LACAN, s/a, apud NASIO, 1995, p. 284). Lacan (1996), por exemplo,
no famoso texto O estádio do espelho como formador da função do Eu
argumenta que o infante entre o período que compreende dos seis aos
dezoito meses passa a se reconhecer ser relativamente independente.
96
Nesse período, a criança que se olha no espelho pela primeira vez não se
vê mais como um ser indiferenciado, fundido com o mundo e a mãe,
tampouco como um ser fragmentado, mas, como autônomo e inteiro.
Para Lacan (1996) esse processo de reconhecimento é assentado na
imagem que, por sua vez, também é uma forma de alienação que garante
uma sensação ilusão de autonomia e inteireza por meio da ficção, da
imago. Isso supõe ao mesmo tempo compreender o estádio do espelho
como uma identificação e como “[...] a matriz simbólica em que o Eu se
precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no
universal, sua função de sujeito” (LACAN, 1996, p. 98).
Desse modo, aparece a ideia do reconhecimento como
identificação, essa noção estará presente, também, na noção de
interpelação de Althusser que dizia que a Ideologia interpela os indivíduos
em sujeitos concretos. Para Althusser (1985, p. 93) a ideologia funciona
de tal forma que ela recruta sujeitos entre os indivíduos através de uma
operação precisa de chamado e nomeação que se chama interpelação.
Este mecanismo deve ser entendido através dos tipos mais banais de
perguntas, como a de um policial “ei você aí? ou!”, ou, quando alguém
bate à nossa porta e perguntamos “quem é?” e recebemos uma resposta
evidente “sou eu!”. Pela essa simples conversão física a 180º, ele se torna
sujeito. Por quê? Porque reconheceu que a interpelação de fato se dirigia
a ele e, em particular, que era ele interpelado e não outro. A ideologia
interpela o indivíduo em sujeito antes mesmo dele nascer, ela nos precede
e nos espera no mundo da linguagem. Com efeito, o caso concreto é que
quando reconhecemos a interpelação do policial e nos viramos, ou,
quando um amigo nos responde, o ritual de interpelão opera
transformando os indivíduos concretos sempre-já em um sujeito
concreto. Althusser (1985) ainda lembra que a palavra sujeito (sujet) em
97
francês tem dois sentidos: é ao mesmo tempo, uma subjetividade livre,
um centro de iniciativas, autor e responvel por seus atos e um ser
submetido, assujeitado à autoridade superior, logo desprovido de toda
liberdade, exceto de aceitar livremente sua sujeição.
O reconhecimento opera então como um dispositivo de
identificação dos indivíduos, sendo responsável pela dialética que
identifica e reconhece o outro como sujeito. De certo modo, pode-se
dizer que toda a recusa dos filósofos da diferença contra o pensamento de
Hegel, por parte de autores como Foucault, Lyotard, Deleuze e Guattari
7
se deve a essa leitura que identifica o desejo como falta, isto é, como
ausência e que procura reconduzir o desejo de reconhecimento por meio
das figuras da Lei, do Outro e do Negativo.
Desejo, linguagem e sujeição psíquica
É com vistas a esse panorama complexo da tradição francesa e de
crítica ao multiculturalismo americano que surge a obra de Judith Butler.
A ideia de reconhecimento encontra-se no âmago das reflexões de Butler.
Embora essa noção atravesse as preocupações da escritora, o diálogo com
as teorias normativas de reconhecimento em seus trinta anos de atividade
intelectual ocorreu somente após o alvorecer do século XXI. Graças a esse
intercâmbio Butler (2018a), pode colocar algumas questões ao debate
sobre a reificação de Honneth. Por sua vez, o sociólogo alemão também
7
Sobre esse tema, Guattari declara[e]stamos girando em torno da questão da identidade e do
reconhecimento, o que aliás não é de se espantar: a identidade está frequentemente vinculada ao
reconhecimento. Quando a polícia pede a carteira de identidade de alguém, é justamente para
poder identificá-lo, reconhecê-lo socialmente. A meu ver, o ponto em que as problemáticas do
inconsciente se entrelaçam com as problemáticas políticas está exatamente na ideia de que não se
trata apenas de subjetividades identificáveis ou identificadas, mas de processos subjetivos que
escapam às identidades” (GUATTARI, 1996, p. 68).
98
dedicou um texto para tratar do que chamou “reconhecimento
ideológico” (HONNETH, 2006b). Contudo, ao contrário dessa
tendência teórica que privilegia o viés de reconstrução normativa dos
laços sociais, Butler propõe uma genealogia das práticas de legitimação do
reconhecimento que toma em conta sua relação especial com o desejo de
subordinação psíquica e a vulnerabilidade linística como maneiras de
assujeitar os indivíduos a determinada economia de afetos, ou, para
utilizar outra expressão, um determinado “circuito de afetos” (SAFATLE,
2015b).
Essa tarefa justifica-se por duas razões. Em primeiro lugar, na
medida em que a recepção da teoria do reconhecimento no campo
filosófico educacional deu-se por meio da leitura de autores vinculados à
teoria crítica, majoritariamente nos círculos hermenêuticos. Desse ponto
de vista, é possível reavaliar os excessos normativos das interpretações no
interior do campo da Filosofia da Educação e aprender com Butler a
desenvolver uma ideia crítica das normas e procedimentos de
reconhecimento atualmente. Butler não dispensa em absoluto o
estabelecimento de prinpios que encontrem assentimento dos cidadãos,
mas, utiliza-se do pensamento negativo para criticar os limites do
reconhecimento.
Em segundo lugar, justifica-se, pois, ao manter uma incessante
interlocução com o pensamento foucaultiano, Butler oferece inúmeros
indícios para pensar de um lado: as relações entre reconhecimento e
vulnerabilidade na analítica do poder, por intermédio de uma teoria da
subordinação psíquica; e, de outro a interpenetração de uma ética
emergente na relação entre estética e política presente nas investigações
sobre sujeito e a verdade graças às noções de relato de si e a experiências
de despossessão. O primeiro pode ser reconstruído por meio da análise dos
textos publicados na década de 1990, especialmente em Lenguaje, poder e
99
identidad (BUTLER, 2004) e A vida psíquica do poder (BUTLER,
2017a); e, o segundo, nos textos mais recentes, notadamente, Vida
precária (BUTLER, 2006), Relatar a si mesmo (BUTLER, 2015),
Desposesíon (BUTLER, 2017b) e Quadros de guerra (BUTLER, 2017c).
Apesar de Butler possuir interlocução com diversos autores da
modernidade, neste texto, procura-se criar pontos de conexão com o
pensamento de Foucault. Uma tarefa que será acompanhada por alguns
comentadores como Salih (2015), Cyfer (2013), Safatle (2015d) e Bretas
(2017).
No pensamento de Butler o sujeito nunca é um ponto de origem,
mas sempre o resultado de determinados processos. Sempre um sujeito-
em-processo. Atravessado pela linguagem que o precede e o excede, por
um poder que inscreve as normas nas dobras pulverizadas do seu corpo,
e, pela relação de cumplicidade com as leis que não param de fazer
retornar o afeto melancólico sobre si, a formação da subjetividade
assenta-se sob uma ordem simbólica.
Em princípio, para se compreender a força dos argumentos dessa
pensadora é necessário situar o trabalho, a linguagem e o desejo no
escopo de uma intersubjetividade fundamental. A escrita como
qualquer outra atividade está circunscrita a uma relação de dependência
constitutiva para com os outros, seja, pessoal, social e institucionalmente.
Iniciar um diálogo com Butler pode ser perigoso, pois pressupõe
reconstruir inúmeras categorias já preestabelecidas. E não se deve pensar
naquelas categorias abstratas apriorísticas e não revisadas historicamente
, mas, aquelas nas quais nos reconhecemos como portadores de certa
identidade, linguagem e responsabilidade. Acerca do legado de Butler,
Safatle expressa o seguinte:
100
[...] Butler, foi capaz de recolocar o problema dos vínculos entre
política e moral através de uma radicalização da teoria do
reconhecimento na qual as limitações das matrizes normativas da
individualidade liberal eram denunciadas. Pelas suas mãos, uma teoria
do sujeito fortemente marcada por aportes da psicanálise e por certa
leitura da tradição hegeliana serviu de fundamento para pensarmos
problemas de reconhecimento para além da afirmação normativa do
indivíduo moderno com suas exigências de possessão de si, seu
individualismo possessivo, sua autoidentidade e sua redução egológica
da experiência (SAFATLE, 2015d, p. 173).
No livro Judith Butler e a teoria queer, Salih (2015) agrupou em
uma sequência cronológica os textos e conceitos recorrentes no
pensamento Butler na seguinte ordem: desejo; gênero; sexo; linguagem;
e, psique. Apesar de Salih (2015) indicar debates importantes de Butler
no início dos anos de 2000, como os de O clamor de Antígona, o escopo
de sua análise atém-se A vida psíquica do poder. Por isso, é interessante
continuar o trabalho de Salih (2015), indo além desses textos iniciais,
penetrando nas obras e intervenções recentes da filósofa norte-americana,
passando pelas questões relacionadas às vidas precárias chegando até a
experiência de despossessão de si.
Butler ficou conhecida no Brasil gras ao seu livro Problemas de
Gênero, mas, quando lemos o livro Quadros de Guerra é possível observar
um deslocamento em seu pensamento que apesar de ainda estar
atravessado pelas reflexões do gênero tocam em outras questões: como
ética e filosofia moral. Afinal, através de quais chaves se podem entender
esses deslocamentos de Butler?
Nesse caminho algumas questões que animam o intento de Butler
serão úteis para reconstruir a linha argumentativa, a saber: O que é o
sexo? O que é a linguagem? Quem é o outro? Como devo tratar o outro?
101
Em que medida, o outro, participa, ou, é dispensável para a constituição
de nós mesmos? Por que somos constantemente trdos pela linguagem
que acreditamos ser a nossa? Em qual medida podemos ser fiéis ao
oferecermos um relato de nós mesmos? Por qual razão determinadas
vidas possuem mais valor que outras? E, por que algumas vidas são dignas
de luto enquanto outras padecem à abjeção?
Em sua obra Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade, publicada originalmente em 1989, Butler (2003) inspira-se
em determinadas ferramentas da analítica do poder foucaultiana para
questionar se o sexo teria uma história ou se seria uma estrutura dada,
isenta de questionamentos em vista de sua indiscutível materialidade.
Butler (2003) discorda da ideia que o gênero pertença à cultura e o sexo à
natureza. Questiona-se porque só ser possível fazer teoria social sobre o
gênero, enquanto que o sexo parece pertencer exclusivamente como
objeto de domínio do corpo e da natureza.
A crítica de Butler (2003) dirige-se aos fundamentos
epistemológicos do feminismo no binarismo sexo/gênero. Para a filósofa,
a tradicional divisão sexo/gênero funciona como uma espécie de pilar
fundacional da política feminista endossando a ideia de que o sexo é
natural e, o gênero é socialmente construído. Escreve Cyfer (2013, p.
237) “[...] Judith Butler ataca o alvo preferencial da segunda onda
feminista, o essencialismo biológico, de acordo com o qual a distribuição
de papéis e oportunidades entre homens e mulheres é biologicamente
determinada”.
Segundo Butler (2003) a categoria ‘gênero’ foi concebida
originalmente para questionar a formulação da biologia como destino. A
distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo
pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente
construído. Consequentemente, o gênero não é uma categoria causal do
102
sexo, tampouco, fixo como ele. Para Butler (2003), ao contrário disso, o
gênero não estaria para a cultura da mesma forma que o sexo para a
natureza; não é apenas o meio discursivo/cultural pelo qual a natureza
sexuada ou um sexo natural é produzido e estabelecido como pré-
discursivo anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a
qual age a cultura. Argumenta Safatle (2015d, p 185) lendo Butler, as
identidades sexuais não devem ser pensadas como representações
suportadas pela estrutura binária dos sexos, mas ser o meio através do
qual somos constantemente despossuídos de nós mesmos. Com isso, nem
a multiplicação das identidades multiculturais, tampouco, retorno às
experiências comunais perdidas com a modernização capitalista. Na
interpretação de Safatle (2015d, p. 178), Butler aposta na “[...]
constituição de relações intersubjetivas fundadas na desarticulação de um
princípio de identidade definido como posse”.
É preciso ir além e desconstruir a concepção de gênero na qual
este seja concebido como o sentido, a essência e a substância, categorias
que para Butler (2003, p. 26) funcionam no interior de uma metafísica
da substância. Da mesma forma como o sexo, delimitado pelos
horizontes da biologia, recoloca o discurso do que é, ou não, natural; a
premissa do binarismo sexo natural e gênero construído implicaria “[...]
nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino (p. 26).
Neste registro, de acordo com Butler (2003) uma teoria feminista que
defenda a identidade dada pelo gênero e não pelo sexo escondia a
aproximação entre gênero e essência, entre gênero e substância. De
acordo com Cyfer (2013, p. 238):
103
[...] Butler afirma que a identidade de gênero é produzida sem
qualquer referência à biologia, ou seja, que ser mulher não tem
relação necessária com ter um corpo biologicamente feminino. Desse
modo, a autora critica a clássica divisão entre sexo e gênero da qual o
feminismo se valeu desde meados da década de 1970, defendendo
que tanto o gênero como o sexo são igualmente construídos por
normas sociais.
Para a teoria política feminista o sujeito é uma questão crucial,
pois os sujeitos jurídicos são invariavelmente produzidos por via de
práticas de exclusão que não aparecem uma vez estabelecidas à estrutura
jurídica. A construção política do sujeito procede vinculada a certos
objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são
efetivamente ocultadas e naturalizadas por uma análise política que toma
as estruturas jurídicas como seu fundamento. Portanto, a crítica feminista
deve compreender como a categoria das mulheres, o suposto sujeito do
feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder
por intermédio das quais busca a emancipação. Com efeito, a insistência
num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria
unitária das mulheres gera, inevitavelmente, recusas em aceitar essa
categoria.
A categoria das mulheres não deve ser tomada como a identidade
do sujeito feminista, tampouco, deve ser o fundamento da política
feminista, pois a formação de um sujeito ocorre no interior de um campo
de poder encoberto pela afirmação desse fundamento (BUTLER, 2003,
p. 25). Paradoxalmente a ideia de representação, talvez, só venha fazer
sentido para o feminismo quando o sujeito mulheres não for presumido
em parte alguma. Na interpretação de Bretas (2017, p. 231, aspas da
autora), Butler mostra-se:
104
[...] atenta à tautologia implícita nesta operação, a filósofa observa
que se Foucault tem razão em suas análises, a articulação responsável
por configurar a categoria “mulheres” como o sujeito do feminismo é,
em si mesma, efeito de uma dada versão de biopolítica tendenciosa e
autorreferencial.
Finalmente assegura Butler (2003) que a tarefa política não é
simplesmente de recusar a política representacional, por exemplo, as
políticas públicas direcionadas à situação das mulheres. As estruturas
jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo
do poder; consequentemente, não há posição fora desse campo, mas
somente uma genealogia crítica de suas próprias práticas de legitimação.
Segundo Bretas (2017), a complexidade do conceito de gênero
requer um conjunto interdisciplinar e pós-disciplinar de discursos, com
vistas a resistir à domesticação acadêmica dos estudos sobre o gênero ou
dos estudos sobre as mulheres, e de radicalizar a não de crítica
feminista. Novamente, na visão de Bretas (2017, p. 233, aspas da
autora):
[e]vitando, pois, as ciladas inerentes a posicionamentos insensíveis aos
efeitos performativos dos discursos sobre a economia dos corpos
“gendrados” (gendered), Butler lança uma questão crucial para os
queer como estratégia de resistência às políticas identitárias focadas
unilateralmente nos marcadores de gênero: será que esta classificação
binária do gênero é dada como necessária apenas dentro de um
quadro de referências específico? Em outras palavras, será que a
própria categoria “mulheres” só faria sentido no interior da matriz
heteronormativa? Como resultado, será que não seriam as próprias
tecnologias discursivas do poder responsáveis por estabilizar a
distinção normativa entre os sexos? Se esse é o caso, trata-se então de
criar condições para que tais coordenadas sejam desarticuladas, a fim
105
de tornar possível a emergência de outros modos de subjetivação,
afirmação e reconhecimento pessoal e social.
Em seu primeiro livro, resultado de sua tese de doutoramento
pela Yale University, publicado em 1987, intitulado Subjects of Desire:
Hegelian Reflections in Twentieth-Century France (tradução literal Sujeitos
de desejo: reflexões hegelianas na França do século XX), Butler ao
reconstituir a recepção hegeliana na filosofia francesaambicionava,
previamente, os contornos posteriores que sua obra iria assumir. Escreve
Butler:
[e]m certo sentido, todos meus trabalhos permanecem no interior da
órbita de um certo número de questões hegelianas: o que é a relação
entre desejo e reconhecimento e como a constituição do sujeito
implica uma relação radical e constitutiva à alteridade? (BUTLER,
2012, p. 19, tradução literal
8
).
A referência é perene: por um lado, desejo e reconhecimento; de
outro, uma relação radical e de dependência constitutiva do sujeito para
com a alteridade. Não obstante, apesar de constituir um eixo importante
de seu trabalho, redesenhar o lugar e os usos que Butler faz do
reconhecimento, não é uma tarefa simples, uma vez que a noção sempre
aparece atravessada pelo desejo, a linguagem e o poder. Nesse livro
Sujeitos de desejo a análise incide sobre a recepção do pensamento
hegeliano no cenário francês, notadamente em pensadores como Sartre,
8
[e]m cierto sentido, todo mi trabajo sigue inscripto dentro de la órbita de un conjunto de
preguntas hegelianas: ¿Cuál es la relación entre deseo y reconocimiento, y a qué se debe que la
constituición del sujeto suponga una relación radical y constitutiva como la alteridad? (BUTLER,
2012, p. 19).
106
Foucault, Deleuze et al. Marcada pela interpretação de Kojève de uma
história dos desejos desejados, Butler (2012) sustenta a tese de que
mesmo entre os autores críticos da dialética, Hegel permanece como um
enigma, capaz de mobilizá-los sub-repticiamente. Com isso, a jovem
autora repõe o desejo de reconhecimento como eixo fundamental para
compreender a formação do sujeito contemporâneo. Diz Safatle (2015d,
p. 179):
[...] a descoberta do desejo é a descoberta de uma fratura ontológica
que faz do meu ser um espaço de questionamento contínuo a respeito
do lugar que ocupo e da identidade que me define. Um
questionamento que faz de meu ser um modo contínuo de
interpelação ao Outro, já que não há desejo sem que haja Outro.
A vida desejante não leva à reconciliação interior entre razão e
afetos, mas, fratura o eu, metafisicamente, integrado. Dessa maneira, a
crítica do desejo abre-se ao campo das experiências de indeterminação e
permitem a Butler lançar-se em uma audaciosa genealogia do sujeito
frente à ambivalência das normas. Safatle (2012, p. 45) ajuda-nos a
entender como se estabelece o processo de formação do sujeito frente à
“[...] inadequação entre as expectativas de reconhecimento de sujeitos e as
possibilidades disponíveis de determinação social de si [...]” no
pensamento Butler, quando escreve que:
[...] Hegel acharia simplesmente incorreta essa maneira tão própria a
nós, contemporâneos do pós-estruturalismo, de contrapor a
negatividade do desejo à positividade de uma potência que se expressa
de maneira imanente, tal como a relação entre a substância spinozista
e seus modos. Pois, de certa perspectiva, o desejo é sempre destrutivo
(ele sempre afirma sua inadequação às determinações finitas) e, de
107
outra, sempre é produtivo (sua verdade é afirmar-se como vontade
livre que constitui quadros institucionais para seu reconhecimento
através das relações de trabalho e linguagem) (SAFATLE, 2012, p.
46).
Dessa maneira, nas primeiras obras o desejo, a linguagem e o
poder oferecem à tônica do reconhecimento, no entanto, a partir de Vida
precária serão os enquadramentos, a vulnerabilidade e a despossessão de
si que fornecerão o arranjo teórico capaz de tornar possíveis as políticas
de aliança. O que ocorre nesse deslocamento não é uma modificação
teórica sem precedentes nas obras anteriores, na verdade a questão da
vulnerabilidade que nos constitui como sujeitos falantes, os apegos
apaixonados que contraímos inevitavelmente ao adentrar no mundo das
normas sociais e o afeto melancólico de um desejo impossibilitado de se
realizar prefigurava a ampliação proporcionada com a problematização
das vidas precárias. Em Corpos em aliança e a política das ruas, Butler
sintetiza a sua trajetória dizendo que:
[u]ma questão com a qual muitas vezes me defronto é a seguinte:
como transitar de uma teoria da performatividade do gênero para
uma consideração sobre as vidas precárias? [...] Parece que eu estava
preocupada com a teoria queer e com os direitos das minorias sexuais
e de gênero, e agora estou escrevendo de modo mais geral sobre as
maneiras pelas quais a guerra ou outras condições sociais designam
determinadas populações como não passíveis de luto. Em Problemas
de Gênero (1989), algumas vezes parecia que certos atos que os
indivíduos podiam executar tinham ou podiam ter um efeito
subversivo em relação às normas de gênero. Agora estou trabalhando
a questão das alianças entre várias minorias ou populações
consideradas descartáveis [...] É provável que uma questão política
tenha permanecido praticamente a mesma, ainda que o meu foco
108
tenha mudado, e essa questão é que a política de identidade não é
capaz de fornecer uma concepção mais ampla do que significa,
politicamente, viver junto, em contato com as diferenças, algumas
vezes em modos de proximidade não escolhida, especialmente
quando viver juntos, por mais difícil que possa ser, permanece um
imperativo ético e político (BUTLER, 2018b, p. 34).
Com esse deslocamento pode-se verificar uma mesma referência
em comum que ajuda-nos a compreender o esforço intelectual e ético
que Butler despendeu após os anos 2000, notadamente, em Quadros de
Guerra e em Relatar a si mesmo (2015), qual seja, tanto a subordinação ao
poder como desejo de reconhecimento, quanto, a vulnerabilidade
lingüística como fonte primária de dependência em relação ao Outro.
Assim, as questões relativas à vida vivível e as existências precárias não
podem ser separadas das dimensões da linguagem, do desejo e do poder,
pois, essas aparecem simultaneamente, chocam-se, imbricam-se e
mantêm relações de dependência entre si.
Na obra Lenguaje, poder e identidad, Butler (2004) procura
detalhar sua visão da linguagem performativa, notadamente, delimitando
os efeitos de abjeção que a injúria e o insulto verbal trazem ao sujeito, em
especial sobre sua autoidentidade e agência. Se em Corpos que importam
(2019), a autora nos conduz, inspirada nas análises de Austin, Althusser,
Foucault e Derrida, a uma espécie de inversão copernicana a partir da
ideia de performatividade: a identidade sexual não é algo natural, ou,
dado, mas o resultado de práticas discursivas e teatrais do gênero; nesse
texto em particular procura mostrar o quanto a linguagem dimensiona os
comportamentos e a agência do sujeito a partir de normas lingüísticas.
Estas normas de gênero, estes atos e gestos que nos esperam desde antes
do nascimento são interpretados em termos similares a ordem simbólica
109
lacaniana, uma linguagem, uma estrutura que está aí, e que será
determinante na produção da subjetividade.
A filósofa inicia seu argumento dizendo que “[...] se fomos
formados na linguagem então este poder constitutivo precede e
condiciona qualquer decisão que poderíamos tomar sobre ela”
(BUTLER, 2004, p. 16). Assim, “[...] ser chamado por um nome é
também uma das condições pelas quais um sujeito se constitui na
linguagem; mais ainda, é um dos exemplos que Althusser propõe para
explicar a interpelação...” (BUTLER, 2004, p. 17). A linguagem possui
essa capacidade performática, inclusive para ferir, insultar, excluir
alguém. Ser insultado é uma das primeiras formas de agressão que se
aprende. E quando somos feridos pela linguagem? Responde-nos Butler,
quando ela atua contra nós, quando tentamos contrar-la, nesse
momento, sentimos sua força.
Inspirando-se na filosofia dos atos de fala de Austin, Butler
(2004, p. 17) argumenta que “[...] o dano lingüístico parece ser o efeito
não só das palavras que se referem a alguém, mas também do tipo de
elocução, um estilo - uma disposição ou um comportamento
convencional que interpela e constitui um sujeito [...]”. Ao sermos
insultados, somos ao mesmo tempo, menosprezados e degradados.
Contudo, o insulto nos oferece outra possibilidade paradoxal proveniente
da própria existência social. A alocução ‘insultante’ não apenas fixa e
paralisa, mas, pode produzir respostas inesperadas e abre outras
possibilidades, inclusive de subversão. Quando dizemos que o insulto
exerce efeitos a quem se dirige, de que força se trata, e, como ela pode
falhar?
Partindo da distinção entre atos ilocutórios que expressam uma
ação enquanto se fala; e, atos perlocutórios que procuram exercer
determinados efeitos sobre o ouvinte, Butler diz que ser magoado pela
110
linguagem é sofrer uma perda de contexto, isto é, padecer de uma
experiência de perda das referências. Isso ocorre porque, os enunciados da
linguagem têm a capacidade constitutiva de ritualizar certos
comportamentos:
[o]s enunciados fazem algo quando dizem que não são simplesmente
convencionais, mas sim, nas palavras de Austin, “rituais e
cerimônias”. Como enunciados, eles trabalham na medida em que
eles aparecem sob a forma de um ritual, isto é, repetido no tempo, e
por consequência, eles têm um campo de ação que não é limitado no
momento da declaração em si. O ato de discurso ilocucionário
executa sua ação, ao mesmo tempo, que o enunciado é pronunciado
e, no entanto, na medida em que o momento é ritualizado, nunca é
simplesmente um momento único. O “momento” em um ritual é
uma historicidade condensada: excede-se ao passado e para o futuro, é
um efeito de invocações anteriores e que, ao mesmo tempo,
constituem e escapam da enunciação (BUTLER, 2004, p. 18,
tradução própria, aspas preservadas).
É precisamente essa forma evocativa de ritual dos enunciados
que excedem seu contexto que a linguagem ferina se utiliza para causar
efeitos degradantes nos sujeitos. Isso é devastador, mostra uma total
volatilidade do lugar, do deslocamento resultante do discurso ofensivo.
Butler relata os efeitos de violência, de dor, física e emocional que os
insultos podem trazer. Para compreendermos os efeitos dessa linguagem
constitutiva, Butler (2004) convida o leitor a imaginar uma cena
impossível em que um corpo que ainda não possui nenhuma definição
previamente estabelecida, um corpo inacessível, torna-se imediatamente
acessível quando nos dirigimos a ele com uma interpelação que não
apenas descobre esse corpo, mas o constitui fundamentalmente.
111
[a] chamada [interpelação] constitui um ser dentro do circuito
possível de reconhecimento e, consequentemente, quando esta
constituição é dada fora deste circuito, que se torna algo abjeto
(BUTLER, 2004, p. 21, tradução própria).
Ainda,
[...] ser o destinatário de uma alocução linguística não é apenas ser
reconhecido pelo que se é, mas um receber um termo pelo qual o
reconhecimento de sua existência se torna possível (BUTLER, 2004,
p. 22, tradução própria).
Por conseguinte,
[s]e chega a existir em virtude dessa dependência fundamental do
chamado do Outro. E existimos não apenas em virtude de sermos
reconhecidos, mas, em um sentido anterior, porque somos
reconhecíveis. Os termos que facilitam o reconhecimento são eles
próprios convencionais, são os efeitos e instrumentos de um ritual
social que decide, muitas vezes através da violência e exclusão, as
condições linguísticas dos sujeitos aptos para a sobrevivência
(BUTLER, 2004, p. 22, tradução própria).
A ameaça que a linguagem traz ao corpo revela nossa relação de
dependência primária com o outro
9
. Assim como em Relatar a si mesmo,
9
Esse argumento nos reconduz de volta à "psicopolítica" do poder, a relação entre subordinação e
agência. Escreve Butler sobre os apegos apaixonados: “[e]mbora a dependência da criança não seja
uma subordinação política de nenhuma forma, a formação da paixão primária na dependência
112
Butler (2015) estabelece uma interlocução com Shoshana Felman para
tratar da relação entre a fala e corpo como uma relação escandalosa,
aberrante, ao mesmo tempo, de incongruência e inseparabilidade. O que
permanece inconsciente em uma ação corporal como a fala pode ser
interpretado como o ‘instrumento’ através do qual se faz a afirmação. Da
mesma maneira, esse corpo que desconhece, assinala o limite da
intencionalidade no ato de fala. O ato de fala diz, mas o faz de um modo
diferente do que pretende dizer. Assim, lendo Felman, Butler (2004)
argumenta que o ato de linguagem como a produção de um corpo falante
destrói a dicotomia metafísica entre o que chamamos de domínio mental
e o domínio físico, desmantela a oposição entre corpo e espírito, entre
matéria e linguagem. Existe o que é dito, mas existe também um modo
de dizer que o “instrumento” corporal da enunciação executa. As ameaças
que sofremos emergem precisamente através dos atos que os corpos
realizam ao falarem. No entanto, toda ameaça, solicita sempre uma
resposta e a resposta às vezes é imprevista.
Inspirado em Althusser, Derrida e Foucault, Butler (2004)
acredita que a linguagem justamente por implicar uma dinâmica de
vulnerabilidade, possibilita-nos uma recitacionalidade capaz de subverter
e ressignificar a linguagem insultuosa, excitável, os discursos de ódio, as
ofensas raciais contra minorias sexuais e outros grupos subalternizados.
Um exemplo de subversão dessa linguagem pode ser observado quando a
“[...] reavaliação de termos como “queer” sugere que a fala pode ser
“devolvida” para o falante de uma maneira diferente, que pode ser citada
torna a criança vulnerável à subordinação e à exploração, um assunto que tem preocupado o
discurso político recente. Além disso, essa situação de dependência primária condiciona a
formação política e a regulação dos sujeitos e se torna o meio de sua sujeição. [...] o desejo de
sobrevivência, o desejo de ser, é um desejo amplamente explorável [...]” (BUTLER, 2017, p. 15-
16).
113
contra seus propósitos originais e produzir a inversão dos seus efeitos
[...]” (BUTLER, 2004, p. 35).
Butler (2004) arroga sua hipótese de subversão linguística com
objetivos claramente políticos, como uma maneira de lidar com o
discurso ofensivo sem pressupor, de outra parte, a ideia de um sujeito
individualista que se encontra como fundamento jurídico e político do
liberalismo. Um exemplo disso são as acusações que pairavam sobre as
letras de gangsta rap mostrando que a melhor maneira de lidar com certa
violência generificada nas músicas não podiam ser atribuídas, somente,
ao agente enunciador, mas, a um discurso que o precedia e o excedia. Isto
é, o esforço legal para controlar a linguagem ofensiva tende a isolar o
falante como agente culpável, como se o falante fosse a origem de tal
linguagem. Escreve a autora:
[o] discurso de ódio manifesta uma vulnerabilidade anterior [...] a
respeito da linguagem, uma vulnerabilidade que possuímos em
virtude de sermos interpelados, seres que dependem do chamado do
Outro para existir. A hipótese tanto hegeliana quanto freudiana
segundo a qual só se chega a ser graças à dependência com respeito ao
Outro deve ser reformulada em termos lingüísticos na medida em
que os termos mediante os quais se regula, se aceita ou nega-se o
reconhecimento formam parte de um ritual mais amplo de
interpelação (BUTLER, 2004, p. 52, tradução própria).
O ato de reconhecimento se converte em um ato de constituição:
a chamada traz o sujeito à existência. Nesse sentido, a estratégia de Butler
(2004) consiste em criar condições para que haja uma resistência no nível
da subversão das injúrias, evitando assim, a produção jurídica do crime e
do criminoso diante da lei. Em outras palavras, trata-se de não oprimir
quem já é oprimido. Butler (2004) reconhece que a justiça dos tribunais
114
se faz necessária diante dos discursos de ódio quando pronunciados por
pessoas que gozam de posições de poder e que são capazes de subordinar
aqueles para os quais se dirige, ou, perante problemas como os do
racismo institucionalizado. Mas, seu foco é criar condição, em virtude da
ideia de recitação e ressignificação, de que os atos de resistência possam
surgir da subversão do discurso de ódio no próprio nível performativo da
linguagem. No entanto, as coisas não são tão simples, afinal: como fazer
com que os grupos vulneráveis e ofendidos com toda fragilidade a que
estão expostos possam assumir e subverter o discurso de sua própria
sujeição?
Com o intuito de encontrar as maneiras pelas quais o sujeito
resiste ao poder constitutivo, no livro A vida psíquica do poder, Butler
(2017a) parte, precisamente, da questão da vulnerabilidade linguística
para colocar em cena o problema da subordinação psíquica. Para isso,
Butler (2017a) reposiciona a ideia de assujeitamento em Althusser e
Foucault para demarcar a emergência do sujeito em sua relação com o
discurso da lei. A ideia de um desejo de reconhecimento subjaz toda sua
argumentação de modo que a autora propõe uma releitura da consciência
infeliz de Hegel à luz das teorias de sujeição que vão de Nietzsche, passa
pelas questões da psicanálise e chegam até Foucault. Segundo Butler
(2017a) o diagnóstico dos autores da modernidade aponta para uma
relação de ambivalência do sujeito em relação às suas normas
constitutivas. O sujeito moderno está:
[f]adado a buscar reconhecimento de sua própria existência em
categorias, termos e nomes que não criou, o sujeito busca o sinal de
sua própria existência fora de si, num discurso que é ao mesmo tempo
dominante e indiferente. [...] Em outras palavras, o preço de existir
dentro da sujeição é a subordinação. Precisamente no momento em
115
que a escolha é impossível, o sujeito busca a subordinação como a
promessa da existência (BUTLER, 2017a, p. 30).
Após enunciar que pretende compreender como o poder forma o
sujeito, o que implica discutir simultaneamente os gestos que delimitam
suas próprias condições de existência e a trajetória do desejo, a filósofa
pondera que “[...] Foucault quase deixa passar em branco todo o campo
da psique” (BUTLER, 2017a, p. 10). Para a autora é como se Foucault,
embora mostrasse a ambivalência que existe na submissão, não detalhasse
suficientemente “[...] os mecanismos específicos de como o sujeito se
forma na submissão” (BUTLER, 2017a, p. 10). Partindo dessa questão,
Butler propõe pensar a teoria do poder conjuntamente com uma teoria
da psique. Perfazendo um determinado número de autores,
principalmente, Hegel, Nietzsche, Freud, Althusser e Foucault, a filósofa
sustenta a noção que “[...] o poder que a princípio aparece como externo,
imposto ao sujeito, que o pressiona à subordinação, assume uma forma
psíquica que constitui a identidade pessoal do sujeito” (BUTLER, 2017a,
p. 11). Para Butler o fato incontornável da sujeição significa que o poder
que subordina, delimita e estabelece as condições de existência,
aparecendo como coisa externa ao sujeito, é o mesmo que retorna sobre o
si-mesmo ou contra o si-mesmo na forma da reflexão e da
(auto)consciência. É o poder como modo de inscrição corporal das
normas. Com efeito, “[a] sujeição consiste precisamente nessa
dependência fundamental de um discurso que nunca escolhemos, mas
que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa ação” (BUTLER, 2017a, p.
10).
Explicar como é possível forjar o sujeito a partir de uma torção
ontologicamente vaga exige ir além de um “relato sobre a formação do
sujeito”, requer demonstrar como ocorre esse processo de internalização
116
do poder, um dilema que busca “[...] descobrir como o poder produz seu
sujeito, como o sujeito recebe o poder pelo qual é inaugurado.”
(BUTLER, 2017a, p. 12). Um paradoxo de referencialidade, afinal,
refere-se ao que ainda não existe. É na relação com a linguagem que se
torna possível uma gramática do sujeito. Assim, Butler (2017a) procura
aproximar a cena de interpelação de Althusser com a produção discursiva
do sujeito em Foucault no que concerne a ideia de assujettissement
assujeitamento, na qual ser sujeito significa, ao mesmo tempo, existir em
uma relação de subordinação com a autoridade e possuir uma consciência
reflexiva. No dizer da autora:
[...] a subordinação do sujeito acontece pela linguagem como efeito
de uma voz de autoridade que chama o indivíduo. No exemplo
infame oferecido por Althusser, um policial chama um transeunte na
rua, ao que se vira e reconhece como aquele que é chamado. A
interpelação- a produção discursiva do sujeito social - acontece nessa
troca pela qual o reconhecimento é oferecido e aceito (BUTLER,
2017a, p. 14).
A interpelação é uma forma de encenar o chamado. E o chamado
é uma exigência para se alinhar à lei, a encarar o rosto da lei. Para Butler
(2017a), por mais contraintuitivo que possa parecer essa virada, é algo
que antecede a formação do sujeito, é uma cumplicidade prévia com a lei,
inscreve-se em sua constituição prévia. Neste sentido, Butler não segue
Foucault (2007a) em sua crítica à psicanálise, principalmente na sugestão
de que Freud não entende como a lei produz o desejo.
Para Butler (2017a) a lei assim como o poder é produtiva. A
repressão da libido nesse caso é entendida como uma repressão investida
de libido. Por conseguinte, a repressão é uma atividade libidinal. A
117
proibição é o lugar deslocado da satisfação das pulsões ou desejos
proibidos. Oferece sempre a oportunidade de retomá-los e vivê-los sob a
rubrica ordenadora da lei.
Apesar disso, Butler (2017a) ressalta que a dinâmica de sujeição
em Foucault permite redescrever à consciência infeliz na dialética entre o
senhor e o servo, nos termos de uma subordinação psíquica. De acordo
com a autora, a consciência infeliz aparece como uma liberdade
interiorizada porque não consegue suprimir o corpo das relações de
servidão. O senhor e o servo envolvem-se em uma luta por
reconhecimento. O senhor usa o corpo do escravo como uma ferramenta
de gozo; enquanto o escravo apega-se ao instinto de preservação da
própria vida e os objetos que produz. Para Butler (2017a) o senhor está
atado a um ciclo de consumo transitório e o servo vê desaparecer, diante
de si, todo fruto do seu trabalho. O trabalho é como um desejo retido.
Na equação de Butler (2017a) a supressão do corpo nessa relação de
sujeição é incompleta. O corpo permanece como residual, abjeto.
Vivemos as normas como uma supressão inacabada do corpo.
[o] corpo não é um lugar onde acontece uma construção; é uma
destruição em cuja ocasião o sujeito é formado. A formação desse
sujeito é, ao mesmo tempo, o enquadramento, a subordinação e a
regulação do corpo, e o modo como essa destruição é preservada [...]
na normalização (BUTLER, 2017a, p. 99).
Essa subordinação da consciência traduz o que Butler (2017a)
entende por sujeição psíquica. Ser sujeito nesse caso implica uma relação
fundamental com a lei e as normas sem as quais não podemos sequer
existir. Entramos neste mundo pela via da sujeição e permanecemos nele
118
graças ao desejo de continuar perseverando no nosso próprio ser. Isso
significa que:
[...] o desejo de desejar é uma vontade de desejar justamente aquilo
que forcluirá o desejo, ainda que pela simples possibilidade de
continuar a desejar. Esse desejo pelo desejo é explorado no processo
de regulação social, pois se os termos pelos quais adquirimos
reconhecimento social para nós mesmos são aqueles pelos quais
somos regulados e ganhamos existência social, então a afirmação da
existência implica render-se a subordinação - uma ligação lamentável
(BUTLER, 2017a, p. 84).
Para oferecer contornos bem delineados à sua teoria da sujeição,
Butler (2017a) alinha a alma-sujeito, produzida pelos mecanismos
disciplinadores de Foucault, com a ordem simbólica do inconsciente de
Lacan. Com isso, Butler (2017a) pensa a gênese psíquica a partir da
interiorização das relações de poder.
[...] enquanto Lacan restringe a noção de poder social ao campo
simbólico e delega a resistência ao imaginário, Foucault reformula o
simbólico como relações de poder e entende a resistência como um
efeito de poder. [...] Para Foucault, o simbólico produz a
possibilidade de suas próprias subversões, e essas subversões são
efeitos inesperados das interpelações simbólicas (BUTLER, 2017a, p.
106).
Para ilustrar Butler (2017a) toma como exemplo a subjetivação
do prisioneiro descrito em Vigiar e punir, especialmente, a figura de
Damiens, o supliciado. O discurso produz identidade ao prover um
princípio regulador que invade o indivíduo, por sua vez, a identidade age
119
como uma alma que encarcera o corpo. Desse modo, essa autora
aproxima a sujeição foucaultiana à ordem simbólica lacaniana,
argumentando que Lacan redefiniu o ideal do sujeito como uma posição
dentro do simbólico, a norma que instala o sujeito dentro da linguagem.
Assim, Foucault teria transformado a interioridade do corpo em uma
superfície maleável para efeitos de poder.
Por fim, A vida psíquica do poder, apesar de recolocar complexos
argumentos a respeito da resistência do sujeito ao poder, ou, de
resistência psíquica, limita-se em indicar as possibilidades de subversão à
cena de interpelação. Butler (2017a) encerra suas reflexões com a
problematização do gênero melancólico na qual a homossexualidade
funciona como princípio regulador e tabu da matriz heterossexual, uma
vez que, a “[...] proibição da homossexualidade impede o processo de
luto e provoca uma identificação melancólica que efetivamente faz o
desejo homossexual se voltar sobre si mesmo.” Para Butler (2017a)
anterior a interdição do incesto parental existe a interdição da
homossexualidade como cesura fundamental na vida psíquica. É
precisamente tal dinâmica que garante a abjeção a outras vivências sexuais
e que induz a melancolia.
Reconhecimento, precariedade e despossessão de si
Com a publicação de Vida precária a dimensão da sexualidade
abjeta passa a ser polemizada como a vida não passível de luto. A
melancolia do poder se torna o afeto que impele a imprecação das vidas
precárias. É o caso da rebeldia de Antígona. Mas, como Butler (2019b)
transitou entre a melancolia como economia psíquica de corpos
gendrados para a produção dos circuitos de melancolia como parte do
120
poder regulador das sociedades? De acordo com Butler (2017a), a
devastação causada pela AIDS nos anos de 1980, funcionou para
produzir nas minorias as instituições coletivas para o luto. Assim, o
tratamento recebido diante da doença apareceu como uma dessas formas
trágicas de experiência coletiva capaz de ligar diversas modalidades abjetas
de gênero às vidas não pranteáveis de outros setores marginalizados como
imigrantes, negros, etc. No luto, perde-se alguém, um objeto real. Na
melancolia, sofre-se pela perda de algo que nunca tivemos e que fomos
impossibilitados de viver. No entanto, é precisamente essa
vulnerabilidade do sujeito e esses afetos inelutáveis que compeliram os
indivíduos e os grupos precarizados a se lançar nas políticas improváveis
de alianças. Escreve Butler (2017a, p. 198): “[a] melancolia é uma
rebelião que foi derrubada, esmagada. [...] O poder do Estado para evitar
a fúria insurrecional faz parte das operações da psique. A instância do
melancólico é um instrumento ao mesmo tempo social e psíquico.”
No alvorecer do dia 11 de setembro de 2001, a cidade Nova
York, símbolo do poder econômico e da hegemonia cultural do Ocidente
no mundo, sofreu o ataque às torres meas. Imediatamente, o governo
americano, por meio do seu presidente G. W. Bush declarou guerra ao
oriente, a chamada ao terror. É nesse contexto, de luto, entre os anos de
2001 e 2003, que Butler (2019b) escreve os ensaios de Vida precária. Sob
a força desse acontecimento a tônica do trabalho de Butler não foi mais a
mesma, doravante, das vidas marginalizadas até então materializadas nas
formas de vida abjetas cuja luta se firmava graças às instituições de luto
geradas pelas vidas perdidas pela Aids e pela intolerância, passaram a ser
pensadas alianças improváveis com as populações precarizadas, juntos aos
semblantes dos povos emigrados por conta da guerra e da violência brutal
que foram submetidos. A melancolia já não é do desejo foracluído, mas,
121
das vidas incapazes de gerar qualquer comoção, dos rostos
desumanizados, da vida que não vale o luto. No dizer da autora:
[s]e me percebo dentro do modelo humano, e se os tipos de luto
público que estão disponíveis tornam claras as normas pelas quais o
humano é constituído para mim, então me parece que sou
constituída tanto por aqueles que enluto quanto por aquelas cujas
mortes nego, cujas mortes sem nome e sem rosto formam um
histórico melancólico do meu mundo social [...] Antígona, correndo
risco de morte ao enterrar seu irmão e contrariar o decreto de
Creonte, exemplificava os riscos políticos de desafiar a proibição
contra o luto público em tempos de crescente poder soberano e
unidade nacional hegemônica. Quais são as barreiras culturais contra
as quais lutamos quando tentamos descobrir sobre as perdas que nos
pedem para não enlutarmos, quando tentamos nomear e, assim,
colocar sob a rubrica do humano aqueles que os Estados Unidos e
seus aliados mataram? (BUTLER, 2019b, p. 48).
Símile ao gesto heroico e desobediente de Antígona, para Butler o
afeto que pode nos levar a desfazer as normas que classificam certas vidas
como humanas e outras como o produto de abjeção é o luto. A partir
desse contexto Butler redirecionou seus esforços para refletir sobre a
suscetibilidade e vulnerabilidades primárias em virtude analítica dos
enquadramentos de poder e das normas que garantem o reconhecimento.
As dencias da filósofa dirigem-se às prisões indefinidas, a prodão
social de rostos estereotipados nos jornais, as ausências de biografia nos
obituários, bem como, denúncia contra a perseguição injustificada do
ocidente enfurecido sobre aqueles que insistiram em não abandonar ao
terreno da reflexão ética e responsável.
122
Apoiando-se nas investigações de Foucault sobre a
governamentalidade, Butler (2019b) alerta para o perigo de reativação da
soberania, do poder sobre a vida, especialmente, sobre as vidas dos
prisioneiros detidos na baía de Guantánamo, sem direito a julgamento,
presos indefinidamente. Alerta-nos para o fato de estarmos diante de uma
configuração da governamentalidade modo de gestão, por excelência,
das populações que suspende as leis e os direitos humanos em nome da
segurança nacional. Nessa cena emerge um rosto que encarna o
semblante do inimigo. A pessoa muçulmana, de proveniência árabe, o
imigrante, o estrangeiro configuram-se automaticamente como
indivíduos suspeitos, por vezes, associados aos terroristas.
Para atuar nesse terreno arenoso, Butler (2019b) assume o
conceito do filósofo lituano Lévinas, para quem o rosto revela uma
exigência ética fundamental que nos impede de esquivar ante o encontro
com o estranho, com a perseguição do outro. Porém, Butler (2019b) não
deixa de notar que existe uma série de enquadramentos cujo objetivo é
desumanizar o rosto, modelagens que recusam a comoção e o luto, que
invisibilizam seu sofrimento e reduz esse rosto a menos do que humano.
Uma comentadora escreve:
[...] o que realmente atesta a falta de reconhecimento em Butler não é
a visibilidade ou invisibilidade pública de um grupo ou de uma
pessoa, mas sim a invisibilidade de seu sofrimento. A proibição do
luto público é, por isso, o sintoma mais grave da falta de
reconhecimento, uma vez que simboliza a falta de empatia com a
causa de um dos sofrimentos humanos mais profundos: a morte
(CYFER, 2013, p. 252).
123
Esses temas reapareceram em Quadros de Guerra em razão da
análise crítica dos diferentes enquadramentos que governam a
reconhecibilidade das formas de vida, seja nas fotografias, nas notícias de
jornais ou nas poesias. Para Butler (2017c) as formas de
reconhecibilidade precedem os modos de reconhecimento, quer dizer,
uma vida para “[...] ser inteligível como uma vida, tem de se conformar a
certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar reconhecível [...]”
(BUTLER, 2017c, p. 21). Entender isso supõe partir de uma ontologia
geral da precariedade que entende que todas as formas de vida são
inerentemente vulneráveis e necessitam de certas condições para florescer,
pois, ser um corpo implica sempre em ter a vida entregue aos outros e a
normas que não foram criadas por nós, mas, não obstante são vitais para
nossa existência. Uma ontologia corporal atenta “[...] a vulnerabilidade, a
dor, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o desejo, o
trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social
(BUTLER, 2017c, p. 15).
A alegação butleriana insiste que existem sujeitos que não são
reconhecidos como sujeitos e vidas que não são reconhecidas como vidas.
Assim, a questão ética que define o que significa reconhecer é precedida
por uma produção normativa da ontologia. Existir, pois, nessa visão,
implica estar enquadrado em recortes políticos e epistemológicos, que por
sua vez, determinam quais são, e, sob que condições devem existir a vida,
e, quais não são as vidas dignas de serem vividas. De acordo com Butler
(2017c, p.19):
[s]e o reconhecimento caracteriza um ato, uma prática ou mesmo
uma cena entre sujeitos então a condição de ser reconhecido
caracteriza as condições mais gerais que preparam ou modelagem um
sujeito para o reconhecimento os termos, as convenções e as normas
gerais que atuam do seu próprio modo, moldando um ser vivo em
124
um sujeito reconhecível, embora não sem falibilidade ou, na verdade,
resultados não previstos. Essas categorias, convenções e normas que
preparam ou estabelecem um sujeito para o reconhecimento, que
induzem um sujeito desse tipo, precedem e tornam possível o ato de
reconhecimento propriamente dito.
No entanto, as operações da norma não devem ser
compreendidas de maneira determinista. As normas têm um tempo de
vida, assim como, para Foucault “[...] o discurso não é a vida; o tempo
dele não é o nosso” (BUTLER, 2015, p. 51). E a vida sempre excede as
normas, já que, nem sempre cabe nos esquemas reconhecidos. Há sempre
uma dimensão que escapa ao reconhecimento, mas que pode ser
apreendida sem prévio conhecimento em sua precariedade. Para Butler
(2017c, p. 20), ao invés de pressupor o reconhecimento como
potencialidade universal que pertence a todas as pessoas trata-se de “[...]
saber como essas normas operam para tornar certos sujeitos pessoas
reconhecíveis e tornar outros decididamente mais difíceis de
reconhecer.”. De acordo com essa autora:
[s]e uma vida é produzida de acordo com as normas pelas quais a vida
é reconhecida, isso não significa nem que tudo que concerne uma
vida seja produzido de acordo com essas normas nem que devamos
rejeitar a ideia de que há um resto de vida suspenso e espectral
que ilustra e perturba a cada instância normativa da vida. Na
realidade, cada instância normativa é acompanhada de perto por seu
próprio fracasso, e com muita freqüência esse fracasso assume a forma
de uma figura. A figura reivindica um estatuto ontológico
determinado e, embora possa ser apreendida como viva, nem sempre
é reconhecida como uma vida (BUTLER, 2017c, p. 22).
125
Para Butler (2017c, p. 51) a crítica pode fissurar esses
enquadramentos e levar a uma situação de ruptura com as normas
vigentes. Reconhecer a precariedade como condição incontornável e sua
distribuição diferencial entre grupos, “[...] a exploração específica de
populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são
consideradas destrutíveis eo passíveis de luto [...]” é crucial para iniciar
esse trabalho de reflexão. As críticas de Butler (2017c) se dirigem tanto
ao multiculturalismo e seu enquadramento no Estado, quanto ao
pluralismo, porquanto se baseiam em uma ontologia da vida individual
incapaz de oferecer uma resposta para a interdependência global e as
redes interconectadas de poder na vida contemporânea. Uma visão crítica
precisa: primeiro, partir de uma crítica política da violência do Estado e
as formas excessivas de poder sobre as populações; e, segundo, escapar às
pretensões identitárias indo à direção da precariedade compartilhada e
suas distribuições diferenciais. Precisamente nesse mesmo horizonte que
os ensaios de Corpos em aliança e política das ruas conjugam sob a noção
de uma performatividade política as alianças improváveis de corpos
reunidos em assembleia, marchando pelas ruas, protestando contra as
medidas neoliberais e o aumento da precariedade. Mas, o que é a crítica
para Butler? De que modo ela pode gerar ruptura com as normas? Qual
relação entre a crítica e os atos de reconhecimento? Se a política
identitária não traduz o anseio das lutas atuais como entender os modos
de reconhecimentos, do que se trata então?
Essas questões tocam no âmago do intento deste trabalho, para
respondê-las com clareza é preciso citar dois textos escritos na mesma
época em que Butler se lançava na reflexão sobre a vida precária. O
primeiro, intitulado como: O que é a crítica? no qual Butler (2013)
recupera a noção de atitude crítica como uma virtude ligada ao
desbloqueio da imaginação em Foucault; e o segundo, resultado de um
126
ciclo de conferências pronunciadas no alvorecer do milênio chamado
Relatar a si mesmo. É no jogo entre aproximação e distanciamento de
Foucault que a filósofa produzirá sua versão da crítica.
No ensaio, Butler (2013), estabelece conexões com o ethos da
crítica em Foucault investindo-o com seu próprio estilo performativo de
pensar. Na visão dessa autora, a gestualidade da crítica abre o campo da
liberdade como uma espécie de fião de si. A virtude da crítica reside
justamente por ser um gesto de ruptura com o pensamento normativo.
Diferentemente de Habermas que tornou a crítica problemática, ao
passo, que inseriu em suas operações certos juízos avaliadores acerca das
condições e metas sociais que devem encontrar assentimento dos
cidadãos, no entendimento de Foucault a “[...] virtude não é [...] um
modo de consentir ou de se conformar com normas preestabelecidas. Ela
é, mais radicalmente, uma relação crítica com essas normas que se
delineia [...] como uma estilização específica da moralidade” (BUTLER,
2013, p. 164).
Em suas investigações sobre a ética do cuidado de si Foucault
problematiza uma experiência moral que não se define em uma relação
de submissão, seja, a lei ou a regra, ainda que alguns anos antes, o filósofo
tenha dito que a crítica está condenada à dispersão, à dependência, e à
heteronímia, existindo em relação à outra coisa que ela própria.
A crítica posiciona os direitos, os saberes, os poderes e os corpos
com a finalidade de fissurar, de romper com certo ponto de vista, ou,
certo modo de governar, de exercer a autoridade e com a violência das
normas. Foucault (2000) a define como um movimento pelo qual o
sujeito se dá o direito (le sujet se donne le droit) de interrogar a verdade
sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus efeitos de verdade. Butler
(2013) acredita que Foucault (2000) nessa ocasião realizou uma espécie
de ato de fala, que ele provocou intencionalmente, fez com que a
127
liberdade originária surgisse para em seguida retroceder aos limites da
razão, do pensável. Assim, a crítica se liga ao performativo e o gesto
foucaultiano é extraordinariamente valente à medida que sabe que não
pode fundamentar sua pretensão à liberdade original, entretanto, persiste
e forma o sujeito no jogo de dessassujeitamento. A crítica implica em um
trabalho de acontecimentalização. E nesse interrogar algo como uma
liberdade originária surge, pois, “[a] cena inaugural da crítica implica a
arte da inservidão voluntária e, como efeito [...] na forma de uma
conjectura, na forma de uma arte que suspende a ontologia e que nos
conduz para dentro da suspensão da descrença” (BUTLER, 2013, p.
175-176).
Alguns anos depois, em Relatar a si mesmo (Giving an Account of
Oneself), Butler (2015), traz contribuições significativas para pensar as
relações entre ética e responsabilidade mantendo-se em consonância com
esse ethos crítico. Butler (2015) conduz sua interrogação refletindo sobre
os limites do relato que um sujeito é capaz de oferecer de si mesmo
quando é encontrado na cena de interpelação. Uma cena de encontro que
excede a díade e que nos leva a questão: quem és tu. Em diálogo com
seus trabalhos anteriores e avançando com Adorno, Foucault, Lévinas e a
psicanálise a tese fundamental de Butler (2015) é a de que existe um
preço a ser pago para se constituir como sujeito capaz de narrar sua
biografia e ser agente de deliberação moral que diz respeito a uma
opacidade primária em relação ao si-mesmo que não pode ser recuperada,
pois, precede e excede sua constituição nos níveis do desejo, da
linguagem e das normas. Com isso, a autora nos direciona para refletir
criticamente sobre a ambivalência das normas que regem o
reconhecimento e disserta sobre maneiras de articular a crítica do sujeito
com a agência humana em razão das experiências extáticas de
despossessão de si. Escreve a filósofa:
128
[q]uando o eu busca fazer um relato de si mesmo, pode começar
consigo mesmo, mas descobrirá que esse si mesmo já está implicado
numa temporalidade social que excede suas capacidades de narração;
na verdade, quando o eu busca fazer um relato de si mesmo sem
deixar de incluir as condições de seu próprio surgimento, deve, por
necessidade, tornar-se um teórico social. [...] o eu não tem história
própria que não seja também a história de uma relação ou conjunto
de relações para com um conjunto de normas. [...] as condições
sociais de seu surgimento sempre desapossam o eu. Essa despossessão
não significa que tenhamos perdido o fundamento subjetivo da ética.
Ao contrário, ela pode bem ser a condição para a investigação moral,
a condição de surgimento da própria moral (BUTLER, 2015, p. 18-
19).
Sob tal ponto de vista, a deliberação ética está amalgamada à
operação da crítica, porquanto, não é possível se livrar dessa condição
paradoxal de ser agente na ação moral e da tarefa de relatar a si mesmo.
Ao sujeito cabe se relacionar de maneira vital e reflexiva com as normas,
principalmente, porque é constantemente interpelado sobre suas ações e
os efeitos delas, sobre o bem e o mal que é capaz de causar. Inspirada na
Genealogia da moral de Nietzsche, Butler (2015) argumenta que a
memória resultante dos castigos, a consciência das imposições e a
obrigação de comparecer diante dos outros sobre alegação de justiça nos
coloca na cena inescapável do relato. Nesse contexto, mesmo a recusa em
narrar não deixa de ser uma relação com a narrativa, aliás:
[...] é possível apenas “assentir com a cabeça” ou usar outro gesto
expressivo para reconhecer que se é o autor da ação de que se fala. O
“assentir com a cabeça” funciona como precondição expressiva do
reconhecimento. Um tipo de força expressiva semelhante coloca-se
em jogo quando nos mantemos em silêncio frente à pergunta “Você
129
tem algo a dizer em sua defesa? (BUTLER, 2015, p. 24, aspas
preservadas).
Essa cena descreve perfeitamente o poder de sujeição das normas,
porém, Butler (2015) pondera que é preciso se distanciar da ideia
nietzschiana de uma agressão originária que faz parte de todo ser humano
e coexiste com a própria vida na forma da interiorizada da má
consciência aproximando-se da problematização foucaultiana dos códigos
e das técnicas de conduta capazes de circunscrever o si-mesmo como
objeto de uma prática moral. Técnicas segundo as quais o indivíduo
procura agir sobre si mesmo, conhecer a si mesmo, controlar-se, a se pôr
a prova aperfeiçoando-se e transformando-se em sujeito da conduta
moral. Nesse registro, diz Butler (2015, p. 29):
[n]ão há criação de si (poiesis) fora de um modo de subjetivação
(assujettisement) e, portanto, não há criação de si fora das normas que
orquestram as formas possíveis que o sujeito deve assumir. A prática
da crítica, então, expõe os limites do esquema histórico das coisas, o
horizonte epistemológico e ontológico dentro do qual os sujeitos
podem surgir.
Para Butler (2015) é necessário levar a sério a maneira como
Foucault recorre à agência ação e deliberação sem postular um sujeito
fundante. Os sujeitos formam-se no contexto de relações parcialmente
irrecuperáveis, sob circunstâncias anteriores que escapam completamente
ao seu domínio. O que revela uma opacidade que precisa ser embutida na
formação do sujeito, haja vista que, não sendo totalmente translúcido
para si, tampouco, conhecível para si mesmo, tais relações não o
autorizam a ignorar as obrigações que contrair com os outros. Ao
130
contrário, essa vulnerabilidade primária funda a obrigação ética. Um
tema importante que ecoa entre as análises de Vida precária, Quadros de
Guerra e de Corpos em aliança e a política das ruas justamente por evocar
uma ética da convivência entre seres precários. Com efeito, talvez seja
possível dizer que a
[...] ética surge precisamente nos limites de nossos esquemas de
inteligibilidade, lugar onde nos perguntamos o que significa
continuar um diálogo [...] nos limites do que conhecemos, mas onde
ainda nos é exigido dar e receber reconhecimento: a alguém que es
ali para ser interpelado e cuja interpelação deve ser acolhida
(BUTLER, 2015, p. 34).
Os esquemas de inteligibilidade, de aceitabilidade podem ser
descritos minuciosamente graças à noção de regime de verdade por
Foucault para quem o reconhecimento permanece sendo uma forma de
poder. Inclusive, Butler (2015, p. 35-37) diz que os termos que
possibilitam o reconhecimento são dados pelos regimes de verdade, que
por sua vez, orquestram as normas disponíveis que delimitam de antemão
quais as formas de ser reconhecíveis e quais não. Porém, esse quadro que
o regime de verdade estabelece para o reconhecimento não é invariável,
na verdade, existe sempre a possibilidade de transformação ou
contestação das normas de reconhecimento tanto no ato como na cena
interpelativa. Às vezes a falta de reconhecimento provoca uma crise das
normas. O questionamento das normas é consequência da crítica que
envolve colocar-se em risco, a princípio um risco de não ser reconhecido,
de curto-circuitar as normas, e depois risco de vida. Apesar disso, parece
correto criticar Foucault por não conceder mais espaço para o outro em
suas considerações sobre a ética. Adverte a autora que é inútil diluir o
131
outro na sociabilidade das normas. As fraturas nos horizontes de
reconhecimento são inevitáveis, no pensamento de Butler (2015),
resultam da inadequação entre as normas de identidade e as modelagens
subjetivas em relação ao desejo de reconhecer e ser reconhecido.
Desejo portador de uma negatividade que excede a determinação
de seus objetos. Nessa visão: “[...] ligar-se a outros não é apenas
confirmar-se em suas predicações supostas, mas é estar em contínua
despossessão por ter algo fundamental de si em um outro que não
controlo, que não saberei como responderá e se responderá” (BUTLER,
2015, p. 41). E ser despossuído significa “[...] encontrar no outro a
opacidade da infinitude que me constitui ao mesmo tempo que me
escapa e a respeito da qual posso voltar a ter alguma experiência à
condição de me aceitar ser despossuído” (SAFATLE, 2015d, p. 182).
Portanto, um desejo de reconhecimento que não pode ser satisfeito e cuja
insatisfabilidade estabelece um ponto crítico de partida para o
questionamento das normas disponíveis.
De acordo com Butler (2015) Foucault permanece atado à
questão “Quem eu posso ser, dado o regime de verdade que determina
minha ontologia?”, e não questiona “Quem és tu?”. A visão de Foucault
sobre a abertura crítica das normas passa pela virtude da crítica, pelo
risco, mas, o que o filósofo francês não diz é que por em questão o
regime de verdade pode ser motivado pelo desejo de reconhecer o outro e
de ser reconhecido pelo outro. Já se pode presumir que Butler (2015)
supre isso que enxerga como lacunar argumentando sobre a natureza
negativa e indeterminada do próprio desejo. Mas, distante da imagem
positiva de si proposta por Honneth (2003), esse reconhecimento implica
em uma perda constitutiva, como escreve a autora.
132
[...] se seguirmos a Fenomenologia do Espírito, sou invariavelmente
transformada pelos encontros que vivencio; o reconhecimento se
torna o processo pelo qual eu me torno outro diferente do que eu já
fui e assim deixo de ser capaz de retornar ao que eu era. [...] Desse
modo, há uma perda constitutiva no processo de reconhecimento,
uma vez que o “eu” é transformado pelo ato de reconhecimento
(BUTLER, 2015, p. 41, aspas preservadas).
O sujeito hegeliano do reconhecimento hesita sempre entre a
perda e o êxtase. O si-mesmo é concebido primeiramente como fora de
si, depois é reconhecido como constitutivo. Dito de outro modo, a única
maneira do si-mesmo se conhecer é aceitando a mediação que acontece
fora de si, em razão das normas que ele não criou, mas cuja relação é
vital. Conforme Butler (2015) a fenomenologia de Hegel passa do
cenário da díade para a teoria do reconhecimento, revelando sua
impropriedade social, no entanto, é fundamental retomar esse “Tu” do
encontro ainda que seja incerto e imprevisível. Aliando-se a Cavarero, a
autor diz que:
[a] pergunta mais central para o reconhecimento é direta e voltada
para o outro: ‘Quem és tu’. Essa pergunta pressupõe que diante de
nós existe um outro que não conhecemos e não podemos apreender
totalmente, alguém cujas unicidade e não substituibilidade impõem
um limite ao modelo de reconhecimento recíproco oferecido no
esquema hegeliano e, em termos mais gerais, à possibilidade de
conhecer o outro (BUTLER, 2015, p. 45).
Perante essa problematização parece-me que não é necessário
seguir todos os argumentos apresentados por Butler (2015), já que são
muito similares entre si e que ressoam no conjunto da sua obra. Resta-
133
nos somente enfatizar as características gerais atribuídas ao relato de si.
Essas características anunciam a estrutura narrativa e implicam numa
despossessão de si-mesmo na linguagem. A exposição de si que estabelece
a singularidade do sujeito na tentativa de narrar; as relações primárias e
irrecuperáveis que formam impressões duradouras e recorrentes em sua
história de vida; a opacidade parcial para consigo mesmo; a
inevitabilidade das normas - que facilitam o ato de contar e que não
foram criadas pelo sujeito. Ainda sim, existem partes corporais que
condicionam o relato de si e que não são totalmente narráveis. De certo
modo só somos realmente reconhecidos à medida que experimentamos
uma descentralização e fracassamos na tentativa de alcançar uma
identidade pessoal.
Educação entre a autorrealização e a despossessão de si
Como se pode observar, Butler e os outros autores conferem a
mesma cardinalidade e reciprocidade ao processo de reconhecimento.
Todavia, enquanto que a os padrões de reconhecimento em Honneth
(2003) têm a pretensão de formar o sujeito cuja identidade pessoal
repousa sobre a autorrealização de suas possibilidades psicossociais, as
consequências do trabalho de Butler (2015; 2017c) parece nos colocar
diante de um cenário de precariedade brutal da formação humana e a
distribuição diferencial vida precária tendo em vista que a
reconhecebilidade precede o reconhecimento. Como se interroga uma
comentadora:
134
Propor a precedência da reconhecibilidade não seria apenas outro
modo de apontar para o que Honneth descreve como situações de
exclusão ou experiências de déficit de reconhecimento? [...] Ao cuidar
da reconhecibilidade ela abre espaço para um conceito que não cabe
na teoria honnethiana: referimo-nos ao conceito de abjeção. [...]
palavra abjeção deriva do latim ab-jicere, que significa jogar fora. Este
conceito aparece ao lado de reflexões sobre o corpo (refere-se a algo
que é expelido do corpo, como excremento) e está, sobretudo, ligado
ao conceito freudiano de foraclusão (Verwerfung), especificamente à
foraclusão no processo de constituição do sujeito. [...]Butler
argumenta que operações de foraclusão ocorrem também em
formações sociais. Mecanismos de abjeção produzem
irreconhecibilidade, geram vidas cujas mortes não podem ser sentidas
ou, nas palavras da filósofa, vidas incapazes de produzir luto
(ungrieveble) (PACHECO, 2018, p. 215).
Certos signos tornam certos grupos mais reconhecíveis do que
outros. Nas esferas da educação e da formação humana essa ambivalência
das normas traz inúmeras consequências. Não é possível desconsiderar a
existência das formas de vidas abjetas e não consideradas como humanas
que são produzidas paradoxalmente nas instituições que deveriam
salvaguardar a dignidade humana como a escola.
Certamente é desejável para um professor ter as condições
mínimas de controle de seu próprio tempo e ambiente de trabalho, bem
como, encontrar nos alunos a disposição para o florescimento de suas
capacidades humanas. Ter uma família e a confiança que ela
proporciona. Ter oportunidades e acesso à educação, à cultura e ao
trabalho. E reconhecer-se nos valores culturais de sua comunidade, de seu
povo é humanamente desejável. Isso significa tornar as instituições
educacionais e os ideais de formação como a ponta de lança para a
criação das formas de vida democrática.
135
A escola, ao lado dos mecanismos securitários, se responsabilizaria
por acompanhar os indivíduos em sua jornada rumo a uma compreensão
positiva e estimada de si mesmo. Nessa visão, a formação escolar poderia
oferecer aos alunos subsídios intelectuais e emocionais suficientes a fim
de que possam encarar as complexidades da nova sociedade do trabalho,
bem como, os introduziria de forma segura na constelação dos
conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade.
Dito de um modo mais explícito, os padrões de reconhecimento
podem satisfazer a representação do sujeito cidadão ainda que não
suporte o agonismo das relações de poder.
Em tal horizonte os padrões de reconhecimento delineiam uma
forma de vida digna para o sujeito. Porém, não é essa a realidade que se
vive na maior parte dos países do mundo globalizado. A experiência no
capitalismo tem-se revelado como a da forma de vida fracassada. A crítica
que procura um conhecimento emancipatório imanentes às formas de
vida, não pode se reduzir ao realismo honnethiano da moral de
reconhecimento. A vida boa que esse autor projeta já existe e é vivida nos
países capitalistas avançados, ainda que para uma pequena parcela da
população
Ao contrário, a crítica de Butler (2015) mostra-nos que a
identidade é parte do problema. Os indivíduos não sofrem pela falta de
possuírem uma identidade autêntica, mas, porque são sujeitos a um tipo
de identidade normativa, empobrecida que os impedem de viverem
outras formas de vida. Por isso, a obra de Butler (2015) é uma
provocação necessária ao sujeito representacional de Honneth. Em Butler
a formação do sujeito passa à ordem simbólica. O desejo de
reconhecimento é desses afetos altamente exploráveis pelas técnicas de
poder. Um desejo que nos torna escravos de uma incorporação
melancólica. Passar a ordem do símbolo envolve submeter-se e constituir-
136
se em razão da inscrição corporal de desejos, leis e normas sem as quais
não pode agir e existir neste mundo, mas, que também exigem um alto
preço como a subordinação e a melancolia. Desse modo, Butler (2017c)
nos lembra que os ideais de formação sobre o qual assentamos nossas
práticas educacionais e pedagógicas repousam sobre exclusões e abjeções
de modos de vida precários. A identidade que almejamos criar para nós,
para nossos alunos, é resultado de uma relação complicada com o desejo
de reconhecimento.
Contudo, imaginando um diálogo, Honneth (2006) ponderaria a
questão, convidando-nos de modo parcimonioso para compreender o
progresso que os padrões de reconhecimento nos proporcionam.
Honneth (2018) crê que as diferenças com sua colega não sejam tão
abissais, afinal, ambos atribuem a certas foas destrutivas presentes em
nós as potencialidades de transformação social. Inclusive, são as situações
de violação, privação e desrespeito que produzem uma semântica
compartilhada de luta contra as injustiças. Para Butler (2018b), a
precariedade das vidas e os afetos impossíveis de serem vividos suscitam e
impelem os grupos vulneráveis a travarem as políticas de aliança. Assim,
o que fazer com essas experiências de indeterminação, como canalizá-las à
luta determina não só os limites, mas o tipo de engajamento intelectual
na atualidade.
Sem dúvida o pensamento de Butler oferece inúmeras
possibilidades que neste espaço é possível indicar somente algumas pistas.
Se entendermos a performatividade em seu sentido pragmático,
intersubjetivo e geral é possível discutir a questão do reconhecimento na
esfera educacional sob outro ângulo, além da criação de normas de
regulação das condutas e de inclusão social. Afinal quais são as
contribuições possíveis de Butler para pensar a escola, a formão dos
alunos, dos professores, e, as relações educativas? De que modo seus
137
livros nos ajudam a entender e atuar nos dispositivos concretos que
operam na escola?
Em primeiro lugar, Butler (2004) nos ajuda a pensar que a
performatividade na escola produz determinadas identidades sociais e de
gênero cuja existência baseia-se em um desejo impossível de ser vivido. E
a educação, enquanto um conjunto heterogêneo de dispositivos e
práticas, bem como a escola, como uma instituição formadora dos
indivíduos, operando com base na precariedade ontológica. Isso significa
que ao lado da família, a escola e seu quadro profissional de pedagogos,
educadores, inspetores e mais servidores subordinam o indivíduo à
interpelação. A escola é ao mesmo tempo uma máquina de sujeição e
subjetivação.
Tal fato pode parecer um tanto inescapável, mas, é justamente
nessa dinâmica precedente e excedente à formação do sujeito que residem
as possibilidades de resistências. Na escola o professor tem que lidar com
os mais diversos tipos de alunos e suas histórias. Alguns, sem dúvida,
tiveram a sorte de vir de uma família amorosa e que contava com
condições mínimas de nutrição corporal. Outros, são oriundos de
contextos de violência estrutural, por vezes, tiveram uma história de
privação de afetos e nutrição básica. Pensar a pragtica linguística,
especialmente, a interpelação incessante que se dirige à comunidade
escolar, professores, alunos e servidores implicam-nos em uma
compreensão crítica dos discursos de ódio, da linguagem ofensiva e
excitável que circula dentro e fora dos muros da instituição. Como reagir,
dar conta da interpelação que vem ao encontro de nossas vulnerabilidades
é um dos grandes desafios atuais, principalmente, quando a autoridade
do professor parece sucumbir ante uma sociedade informatizada e
neoliberal.
138
O educador deve reconhecer os atravessamentos de desejo, ser
compassível com a vulnerabilidade de si e dos outros. Ser professor
implica em aprender a cultivar uma lealdade terrível com a cumplicidade
que nos torna sujeitos. Isso não nos coloca na obrigação de cumprir com
certa interpretação da máxima kantiana que diz ser preciso ensinar a
obedecer e depois a pensar. Talvez haja uma inspiração de Kant, mas, só
à medida que reconhece, ao lado da arte de governar os homens, a arte de
educá-los como uma das tarefas mais complexas ao espírito humano. A
filosofia da educação é irmã da filosofia política. Nesse sentido, pensar a
performatividade potica na educação supõe assumir a postura de um
intelectual que tem por tarefa tecer as relações entre as vidas que não
possuem quase nada em comum, acompanhar as alianças improváveis dos
corpos em assembleia e interpelar os outros para uma experiência e
radical com alteridade e despossessiva com os outros.
Com Butler ainda estamos sob o império do regime
representacional, mas, existe uma dimensão simbólica, uma depenncia
primária aos outros capazes de nos empurrar para experiências extáticas
de despossessão. Algo como a força da linguagem que nos precede e nos
empurra para nos constituir a partir do chamado da lei. Reconhecer não
significa o reencontro permanente da subjetividade com a identidade,
mas, uma experiência com o estranho, um retorno da diferença. Porém, é
preciso perguntar: quais os limites do ponto de vista de Butler em relação
à compreensão das políticas de subjetividades e ao capitalismo?
Para um espírito crítico como o de Lazzarato (2019, p. 94) a
filosofia mais original do pensamento 68 foi a do acontecimento.
Porventura, pode a análise da ambivalência da normatividade social
escapar ao registro da sujeição em direção a servidão atual. Parece-me que
diferentemente de Butler para quem a cena do relato se passa na
interpelação do desejo, da lei e da linguagem, para Lazzarato (2014) a
139
cena deve ser capaz de chegar e traduzir o ponto inominável do discurso,
pois, deve desencadear uma atitude de ruptura e estar à altura do
acontecimento. Em Butler (2015) negar o reconhecimento significa
abnegar do desejo de reconhecer.
A cena butleriana possui supõe e valoriza a díade, a relação direta
com o ‘Tu’, pois, nessa visão estamos sempre nos constituindo com base
em uma dívida que possuímos com os outros. Isso pode ser verificado nas
implicações que a noção de rosto inspirado em Lévinas possui. Um
contraponto interessante a essa visão é a noção de rostidade proposta por
Guattari e Deleuze, na qual o rosto pertence a um registro máquinico.
Na terceira parte de neas de fuga, Guattari (2013) dedica-se
inteiramente ao estudo do rosto. Resultado de agenciamentos complexos
os traços de rostidade na medida em que são trabalhados pelos
equipamentos coletivos tornaram-se componentes semióticos de grande
importância no capitalismo. Para Guattari (2013), esses traços indexam
constantemente um rosto do poder que atua a partir do olhar, da imagem
e da observação, como o olhar do chefe de Estado, do professor, do padre
e do patrão. Diferentemente de Butler (2015) que arroga sua noção a
partir da articulação entre a psicanálise laplancheana e a fenomenologia
levinasiana, para Guattari (2013),
[n]ão é uma questão aqui então de funções como o ‘estágio do
espelho’ lacaniano, concebido como matriz geral da entrada do
sujeito na ‘ordem simbólica’. Não existe rosto em geral ou uma
entrada em geral na ordem do rosto. Os rostos específicos com os
quais lidamos estão ligados a formações de poder, eles próprios
inseparáveis do conjunto de interações do campo social. São
montagens particulares de rosto que dão aos rostos uma importância
maior ou menor conforme a evolução das relações de força na
presença ou de acordo com a natureza das opções micropolíticas
140
adotadas pelos conjuntos de enunciação envolvidos (GUATTARI,
2013, p. 237, tradução própria).
O rosto é da ordem de uma semiótica a-significante. Mediante
uma triangulação olhos-nariz-boca a máquina de rostidade funciona
como um centro de ressonância para os micro-buracos negros que
existem no nível dos vários componentes semióticos. Como tal sua
política consiste em identificar e ser identificado em uma totalização
semiótica que culmina na constituição da pessoa. Como escreve o autor
uma voz está sempre ligada a um rosto, mesmo quando dito rosto não é
manifestado. Certa forma de falar ativa um sentimento que estamos
lidando com alguém como nós, e outro jeito com um estrangeiro, ou
mesmo com estranho. A territorialização de significados funciona em
uma máquina capaz de colocar em jogo tanto conteúdos estereotipados
como tipos de acentos, entonação, timbre, ritmo e gestos. Por fim, para
Guattari (2013) essa máquina funciona como uma política do vazio, do
binário figura-fundo, produzindo um cotidiano é constantemente
modulada pelos rostos que vão e vêm e manifestam, através da sua
indiferença, que não há nada de errado, que tudo está normal. O rosto
comum funciona como um lampejo de normalidade.
Reconhecendo esse outro, o apreendendo e o interrogando será
possível atingir o ponto de ruptura com nossas servidões atuais? Escreve o
crítico italiano:
[...] Butler só pode conceber a linguagem como uma transcendência
que nos precede e nos excede porque nós nos tornamos sujeitos
quando entramos na normatividade e seguimos as suas regras
linguísticas. [...] Contrariamente às preocupações de Butler, podemos
conceber um pensamento “não essencialista” sem postular a
141
preexistência da linguagem como “dependência radical e originária”.
[...] Não há subjetividade originária, porque o sujeito e as relações
que prevalecem no processo de subjetivação ainda estão sempre por
fazer, por se realizarem e serem construídas. O sujeito não é um efeito
de linguagem, a linguagem não é a causa do sujeito. Pois o sujeito
não é constituído por uma estrutura linguística preexistente, mas
através de um autoposicionamento, de uma autoafirmação que se
combina com as palavras, com os outros e com o mundo
(LAZZARATO, 2014, p. 164-165).
Ao juízo de Butler o sujeito não pode se esquivar do desejo e da
lei, da normatividade social. Nesse sentido Lazzarato (2014) aponta
corretamente os limites da “força do performativo” em suas críticas à
filósofa. Butler segue Lacan, postula o negativo desejo, lei, castração,
falta como necessidade universal da condição humana. Butler (2015, p.
29), ao passo, que sinaliza que para Foucault não haver o sujeito e a
verdade fora da imanência das relações de poder, obscurece a
contingência do nexo saber-poder ao integrar o processo de subjetivão
a dependência do desejo originário. Como observa Foucault (2004c, p.
229):
[...] não recorro a nenhum nós a nenhum desses nós cujo consenso,
valores, tradição formam o enquadre de um pensamento e definem as
condições nas quais é possível validá-la. Mas o problema é justamente
saber se efetivamente é dentro de um nós que convém se colocar para
defender os princípios que são reconhecidos e os valores que são
aceitos: ou se não é preciso, ao elaborar a questão, tornar possível a
formação futura de um nós. Creio que o nós não deve ser prévio à
questão: ele só pode ser o resultado e o resultado necessariamente
provisório da questão, tal como ela se coloca nos termos em que é
formulada.
142
A ontologia do presente em Foucault persevera no trabalho de
problematização. Para Rabinow (1999) Foucault ofereceu uma atitude de
maturidade em relação ao Iluminismo. Isso pode ser observado na leitura
dos últimos cursos e entrevistas, nas quais o entusiasmo em procurar o
signo do presente em virtude do trabalho de problematização do
acontecimento não deve ser compreendido como a busca por um
fundamento. Como observa esse intérprete:
[...] maturidade consiste em pelo menos estar disposto a enfrentar a
possibilidade de que a ação não possa ser fundamentada em uma
teoria universal e a-histórica do sujeito individual e da escrita, ou nas
condições necessárias à comunidade e à fala; e que, de fato, estas
tentativas fomentam exatamente aquilo que todos os pensadores
concordam ser o mais problemático na nossa situão atual. Nesta
interpretação, nossa modernidade começa com a tentativa de Kant de
fundamentar as normas morais e as pretensões teóricas de verdade na
estrutura vazia, formal, da finitude humana. Contudo, a heróica
ruptura de Kant com a lei natural e a ordem cósmica, longe de
possibilitar a diversidade, mudou o debate para a procura da estrutura
da finitude humana que forneceria normas universais à ação humana.
As últimas versões desta tentativa, agora lingüística, continuam a ser
universais e prescritivas. Por um lado os antipensadores,
fundamentados em uma teoria a-histórica do sujeito como desejo
vazio constituído pelo jogo arbitrário dos significantes, condenam a
seriedade e insistem que todos sejam inflexivelmente irônicos; por
outro lado os heróicos defensores da seriedade, fundamentados em
uma teoria da comunicação, condenam o que consideram ironia
irresponsável, e, em tom exasperado, procuram lembrar a todos o seu
dever de conformar-se aos imperativos universais implícitos em todo
ato da fala. Foucault resistia a ambas as posições filosóficas
universalizadoras (RABINOW, 1999, p. 65-66).
143
Na entrevista Polêmica, política e problematizações, Foucault
(2004c, p. 225) se recusa a assumir o espírito de polemista, ao invés
disso, defende que no jogo sério de perguntas e respostas, de educação
mútua, é preciso respeitar os direitos de cada um que são imanentes à
discussão. Para Foucault trata-se do engajamento em uma história do
pensamento que busca “[...] a elaboração de um domínio de fatos,
práticas e pensamentos que me parecem colocar problemas para a política
[...]” (FOUCAULT, 2004c, p. 228). Pensamento capaz de se distanciar
do objeto, de interrogá-lo, e assim encontrar “[...] nessas diversas soluções
a forma geral de problematização que as tornou possíveis até em sua
própria oposição [...] (FOUCAULT, 2004c, p. 233).
Por isso, da teoria de Honneth e Taylor, sem dúvida, deve-se
guardar o elemento acontecimental do respeito ligado à honra, à
dignidade e a liberdade. De Butler desprende-se essa noção de sujeito de
desejo que coloniza o que somos e pensamos, bem como, a crítica à
ambivalência das normas de reconhecimento. Não se trata de uma
simples equalização do jogo entre autorrealização e sujeição, mas de
passar pelos diferentes registros, das forças da representação e do
inconsciente para o do acontecimento. Perante essas duas elaborações é
necessário fazer intervir uma terceira capaz de reconduzi-las a genealogia
do sujeito: a noção de problematização que Foucault utiliza em seus
últimos escritos. Tomando o caminho de uma problematização, ou, de
como as coisas se tornaram uma questão para elaboração ética, é possível
articular como os diversos regimes do verdadeiro, as tecnologias de
governo e as práticas regradas de autoconstituição atuam na formação do
sujeito ao longo da história. Desse modo, passa-se da representação
horizontal do sujeito de respeito e reconhecimento à prática de si; e, do
desejo de reconhecimento como símbolo vertical dos outros que nos
precedem para o acontecimento do reconhecimento da verdade.
145
Capítulo 3
Reconhecer e Incluir Como Dispositivos de
Individualização do Poder.
Desde o século XVIII até o presente, as técnicas de verbalização foram
reinseridas em diferentes contextos pelas denominadas ciências humanas
com o objetivo de utilizá-las sem a renúncia de si, mas para constituir,
positivamente, um novo sujeito. Utilizar essas técnicas sem renunciar a si
mesmo constitui uma ruptura decisiva. (FOUCAULT, 2004b, p. 360).
[...] em vez de indagar como a psique individual pôde interiorizar códigos
prévios que lhes foram impostos de cima, não seria melhor indagar qual a
experiência foi definida, proposta, prescrita para os sujeitos e levou-os a
fazer determinada experiência de si mesmos a partir do qual precisamente
a codificação de sua conduta, de seus atos, de seus pensamentos se tornou
possível, legítima e, na visão deles, quase evidente? (FOUCAULT,
2014b, p. 91-92).
Na vida política, no trabalho, nos arranjos domésticos e conjugais, no
consumo, no mercado, na publicidade, na televisão e no cinema, no
complexo judico e nas práticas da polícia, nos aparatos da medicina e da
saúde, os seres humanos são interpelados, representados e influenciados
como se fossem eus de um tipo particular: imbuídos de uma
subjetividade individualizada, motivados por ansiedades e aspirações a
respeito de sua auto-realização, comprometidos a encontrar suas
verdadeiras identidades e a maximizar a autêntica expressão dessas
identidades em seus estilos de vida. As imagens de liberdade e autonomia
que inspiram nosso pensamento político operam, da mesma forma, em
termos de uma imagem do ser humano que o vê como o foco
146
psicológico unificado de sua biografia, como o locus de direitos e
reivindicações legítimas, como um ator que busca “empresariar” sua vida
e seu eu por meio de atos de escolha. (ROSE, 2001, p. 140).
Nos capítulos anteriores a análise deteve-se em explorar nos
pensamentos de Taylor, Honneth e Butler a conceitualização do
reconhecimento. Na narrativa de Taylor (2005), o conceito de
reconhecimento aparece como uma exigência da individualidade
moderna. Para Honneth (2003) as lutas por reconhecimento traduzem a
gramática moral da constituição intersubjetiva. Com Butler, o
reconhecimento repousa nas dinâmicas de sujeição psíquica e social do
desejo de modo que se torna uma fonte para a aceitação e normalização
da identidade. Em todo caso, primeiro, a linguagem ocupa lugar especial
nas interações que estruturam a subjetividade; segundo, a formação do
sujeito é atrelada à psicologia social e a antropologia filosófica; e, terceiro,
a dinâmica do reconhecer repousa no apelo à consciência moral.
Nesse sentido, pretendo demarcar as razões através das quais as
técnicas de reconhecimento e os dispositivos de inclusão figuram como
dispositivos de individualização do poder. Isso sem pressupor a existência
de universais antropológicos, ou, o sujeito constituinte como
fundamento de toda a experiência possível. Nem mesmo, de um desejo
de reconhecimento anterior a inscrição na experiência de sujeição.
Procuro sustentar que esses dispositivos irredutíveis à consciência são
correlatos às relações de poder e saber que foram desbloqueadas pela
liberação do corpo na biopolítica assunção do corpo vivo aos domínios
do poder (FOUCAULT 2007a, ESPOSITO 2010, FEHER; HELLER
1995). Sob tal registro, a produção dos sujeitos em campos como
147
sexualidade, a família e a escola constituem pontos de aplicação
privilegiados para se observar a penetração desses mecanismos.
Nesse percurso minha atenção será dispensada sobre as seguintes
questões: qual a relação entre as tecnologias do reconhecimento de si e os
dispositivos de inclusão? De que modo estão ligados aos modernos
modos de subjetivação e artes de governo? Serão eles pressupostos
necessários e suficientes para a formação política e moral do sujeito na
atualidade?
A partir dessas questões espera-se refletir de que modo tais noções
atravessam a constituição de um corpo normalizado, por um lado, e,
operam em um plano jurídico-abstrato com a dimensão moderna do
poder da e sobre a vida (ESPOSITO, 2010), por outro. Trata-se, em
primeiro lugar, de perseguir o programa foucaultiano de uma história das
técnicas e tecnologias por meio das quais os seres humanos se
reconhecem como sujeitos em uma determinada cultura. Em segundo
lugar, refere-se ao limiar da nossa própria atualidade, das transformações
ocorridas em nossa modernidade, isto é, de um diagnóstico do presente.
E, em terceiro lugar, diz respeito às questões circunscritas à filosofia que
toma como objeto de reflexão as relações educativas, a formação humana,
os sistemas de ensino e a cultura escolar.
Doravante, torna-se imperativo pensar que formas de
cumplicidade existem entre os discursos de reconhecimento e os
dispositivos de inclusão, tendo a modernidade como uma questão. Ao
responder isso, tornar-se-á mais claro o enunciado inicial acerca de sua
presença nos modos de subjetivação, possibilitando uma compreensão
mais aguçada do papel que essas categorias históricas cumprem como
dispositivos de formação do sujeito, e/ou, da pessoa.
148
Sem demora, pode-se dizer que as prerrogativas, como a de
incluir e de reconhecer, circunscrevem-se inteiramente sob as operações
do que Foucault designou como o limiar de uma “modernidade
biológica”. De modo que, possuem uma dimensão abstrata, e,
especulativa que provêm das categorias forjadas pelo pensamento
moderno; e, em contrapartida repousam concretamente na história das
técnicas e tecnologias de poder responsáveis pela produção dos sujeitos.
O campo de batalha a partir do qual se desenrolam esses processos é o
corpo humano. Portanto, para seguir com este argumento proponho três
movimentos espirais e simultâneos: a) reconstituir cenas da genealogia do
poder com ênfase nas técnicas de individualização evidenciando o
nascimento de instituições como família, escola e o dispositivo da
sexualidade; b) analisar como esse desbloqueio tecnológico vincula-se a
uma transformação histórica da relação entre a vida e o poder; c) mostrar
como se inscrevem no interior desse pensamento o reconhecimento e a
inclusão como dispositivos vinculados a arte de governo.
Para realizar essa tarefa enunciada, utilizarei as noções elaboradas
entre a publicação do primeiro e do último volume de A história da
sexualidade, bem como, de algumas entrevistas com a finalidade explícita
de mostrar que a chave de acesso para uma compreensão do par
reconhecimento-inclusão encontra-se nas transformações sobre aquilo
que chamamos de vida e com os diferentes usos que estabelecemos dos
nossos corpos no nível das problematizações. Apesar de A vontade de
saber desenvolver um conteúdo e problematização singular no
pensamento de Foucault, grande parte de sua temática pode ser
encontrada nos cursos entre 1974 e 1976, notadamente Os anormais e
Em defesa da sociedade. Por isso, quando julgar necessário irei recorrer aos
cursos, eventualmente, com o objetivo de articulá-los com o tema geral.
E para mostrar de que modo esse par se constituiu como categorias
149
explicativas do pensamento moderno, estabelecerei uma interlocução
com certo número de intérpretes do filósofo francês, tais como, Agamben
(2015; 2016), Butler (2017a), Deleuze (2016), Esposito (2010). Cada
qual à sua maneira, reconduzido aos objetivos desta pesquisa, oferece-nos
elementos para criar uma conjectura consistente e as respostas adequadas
a problematização. Deve-se dizer que as discussões que serão
desenvolvidas encontram ressonâncias, tanto, no pensamento filosófico
educacional, quanto, nos intérpretes foucaultianos como: Freitas (2014);
Nalli (2012; 2019) e Pagni (2010; 2014; 2016).
Os filósofos da educação (AQUINO, 2013; FREITAS, 2013;
2014) chamam atenção para o fato de que depois das publicações dos
cursos proferidos no Collège de France novos domínios até então
inacessíveis tornaram-se objetos de investigação. Durante muito tempo
houve certo mistério, e discussões acaloradas em torno do hiato entre a
publicação do primeiro, segundo e terceiro volume de História da
sexualidade. Para Deleuze (1988) foi um momento em que Foucault
passou por uma crise muito intensa, criadora, que modificou sua maneira
de pensar e culminou com a imero no mundo antigo. Sem necessidade
de contradizer Deleuze (1988) a publicação dos cursos permitiu aos
investigadores acompanhar mais atentamente os inúmeros deslocamentos
do pensamento de Foucault, indo além das conjecturas e análises de
resumo dos cursos. Contudo, as coisas não são cristalinas como se pode
ingenuamente pensar, reconstituir aqueles fios, aquela tessitura entre os
livros e os cursos é uma tarefa que requer disposição hercúlea. Entre as
dificuldades está a crise no sentido que Deleuze apregoou, ou, a situação
crítica diante da qual Foucault operou modificações e inaugurou novos
domínios de problematização para a história do pensamento. É
indispensável refletir sobre esses deslocamentos, pois, ajuda-nos a dissipar
150
certas impressões aprofundadas pela periodização mais tradicional da
obra de Foucault.
Em um dos seus famosos textos no qual comenta a filosofia de
Foucault, intitulado: O que é um dispositivo?, Deleuze (2016) propõe que
devemos atentar não apenas para as linhas de criatividade dos seus livros,
mas, observar a importância que Foucault dava as entrevistas, justamente,
porque, eram nelas que ocorrem as linhas de atualização do seu trabalho.
Para Deleuze (2016), interrogar, flexionar, ou, dobrar as linhas dos
dispositivos ajuda-nos a entender a sutil diferença entre o histórico e o
atual, sendo o primeiro, as transformações que passamos para nos tornar
o que somos e o segundo aquilo que estamos nos tornando. Como foi
que convergiu as linhas de atualização do diagrama disciplinar e suas
lutas históricas à gramática do reconhecimento e dos direitos humanos?
Do governo dos corpos
Seguir essas linhas de criatividade em direção as atualizações
supõem primeiro, perceber certo número de temas e problemas que
atravessam o pensamento de Foucault; e, concomitantemente, observar
como ressoam no pensamento dos intérpretes e experimentadores de sua
obra.
A loucura, o crime e a sexualidade ocupam nesse quadro lugar de
destaque como temas que se interpenetram e implicam-se, mutuamente,
na pesquisa genealógica. Além disso, esses focos de experiências são
lugares nos quais é possível verificar uma incidência maior do
predomínio das relações de poder. A vida, a norma, o sujeito e a verdade
são constantemente tencionados nesses focos de experiências. Por
intermédio deles, pode-se criar um canal de acesso às normas que regem
151
o reconhecimento do sujeito e as políticas de inclusão que atuam no
governo da vida. E a noção que aparece como lugar de perpétua
pulverização, como ponto de contato para inscrição de todos esses
acontecimentos é o corpo. Tendo em vista essa caracterização e os
objetivos enunciados, pretendo neste capítulo analisar a relação entre
reconhecimento e inclusão, reconstruindo seu papel em correlação com o
dispositivo da sexualidade, principalmente à medida que se
interpenetram na família e na escola.
A noção de corpo como “superfície de inscrição dos
acontecimentos”, “como campo de batalha” é atravessada por uma
história de técnicas de individualização e tecnologias de subjetivação
reveladoras das nuances entre a vida e os poderes que se investem nela.
Por enquanto, é oportuno chamar atenção para um dos parágrafos finais
de O uso dos prazeres, no qual Foucault (2007b) oferece um indício que
permite articular o momento da “[...] entrada dos fenômenos próprios à
vida da espécie humana na ordem do saber e do poder [...]”
(FOUCAULT, 2007a, p. 155) com a história de uma ética dos prazeres,
que perpassa os diferentes domínios das problematizações.
Após detalhar a emergência de uma ética dos prazeres entre os
gregos que implicava a constituição de modalidades de problematização
com o corpo, a saúde, a dietética e a erótica, Foucault diz:
[...] podemos ver um novo deslocamento do núcleo de
problematização (dessa vez da mulher para o corpo) no interesse que
foi manifestado a partir dos séculos XVII e XVIII pela sexualidade da
criança e, de uma maneira geral, pelas relações entre o
comportamento sexual, a normalidade e a saúde (FOUCAULT,
2007b, p. 220).
152
Deixarei uma análise pormenorizada da história da ética que
Foucault trabalhou nos anos de 1980, para o próximo catulo,
particularmente quando for necessário fazer uma releitura da cena do
reconhecimento inspirada na erótica e na amizade entre mestre e
discípulo. O que realmente importa neste momento é mostrar que há um
vínculo entre aquilo que se designa de biopolítica e um determinado
campo de problematização que possibilita entender a relação entre vida e
poder como a organização de processos de subjetivação. Com isso, tem-se
o primeiro ponto de apoio para adentrar a questão enunciada, a saber:
como as noções de inclusão e reconhecimento se tornaram dispositivos de
subjetivação para os nossos modos de governo atuais? Isso implica
interrogar os tipos de práticas assumidas isto é, que adentrou no campo
do pensamento em virtude dos quais passamos a nos problematizar
como seres dotados de dignidade e de igualdade.
No curso Os anormais, Foucault (2001) nos oferece um forte
elemento para responder essa questão, segundo o filósofo:
[...] a Idade Clássica costuma ser louvada por ter sabido inventar uma
massa considerável de técnicas científicas e industriais. Inventou
também, como se sabe, formas de governo; elaborou aparelhos
administrativos, instituições políticas [...] Mas, [...] a Idade Clássica
também inventou técnicas de poder tais, que o poder não age por
arrecadação, mas por produção e maximização da produção. Um
poder que não age por exclusão, mas sim por inclusão densa e
analítica dos elementos. Um poder que não age pela separação em
grandes massas confusas, mas por distribuição de acordo com
individualidades diferenciais. Um poder que não é ligado ao
desconhecimento, mas, ao contrário, a toda uma série de mecanismos
que asseguram a formação, o investimento, a acumulação, o
crescimento do saber. [...] A Idade Clássica, portanto, elaborou o que
podemos chamar de uma “arte de governar”, precisamente no sentido
153
em que se entendia, nessa época, o “governo” das crianças, o
“governo” dos loucos, o “governo” dos pobres e, logo depois, o
“governo” dos operários. E por “governo” cumpre entender, tomando
o termo no senso lato, três coisas. Primeiro, [...] uma teoria jurídico-
política do poder, centrada na noção de vontade, na sua alienação, na
sua transferência, na sua representação num aparelho governamental
[...] E depois [...] aperfeiçoou uma técnica geral de exercício do
poder, técnica transferível a numerosas e diversas instituições e
aparelhos. Essa técnica constitui o reverso das estruturas jurídicas e
políticas da representação, e a condição de funcionamento e de
eficácia desses aparelhos. Essa técnica geral do governo dos homens
comporta um dispositivo típico [...] algo que podemos chamar [...] de
“normalização” (FOUCAULT, 2001, p. 61, aspas do autor).
Uma técnica de poder que age por inclusão. Uma arte de governo
que inclui como objetos privilegiados de governo o corpo-infantil, corpo-
feminino e o corpo-selvagem. Com efeito, quando se pensa nos modos
de inclusão o que está em jogo é uma política dos corpos. Do mesmo
modo, é impossível pensar o reconhecimento fora da imanência dos
corpos que estão em uma relação de poder. Refletir sobre esses processos
supõe realizar uma análise da entrada do corpo no campo das
problematizações. Nessa visão, não se deve crer que corpo corresponde
somente ao corpo do indivíduo, mas, supõe uma multiplicidade de
superfícies de inscrição de acontecimentos, logo, corpo-biológico, corpo-
individual, corpo-espécie, corpo-social, corpo-histórico, corpo-fenômeno
e corpo-acontecimento. O corpo é, simultaneamente, alvo das estratégias
de poder e espaço-tempo a partir da qual se irrompe as diferentes
maneiras de resistência. Portanto, os dispositivos de inclusão e as
tecnologias discursos de reconhecimento somente se tornam inteligíveis
quando atravessados inteiramente pelo corpo e a vida.
154
Em A vontade de saber, Foucault (2007a) concebe a sexualidade
como um dispositivo histórico de saber e poder, ao mesmo tempo, capaz
de produzir um corpo normalizado e ser o canal por meio do qual se
extrai a verdade última sobre um indivíduo. Interrogar-se sobre as
relações históricas que o Ocidente mantém com esse tema faz aparecer
todo um campo de liberações de relações de poder que colocam o corpo
como lugar de proliferação dos discursos, entre uma história das técnicas
de poder e das tecnologias de produção do indivíduo. Stoler (1995)
ressalta que dentre as leituras que fazem desse livro, as análises mais
conhecidas versam sobre as técnicas de confissão e o poder sobre a vida,
porém, é preciso atentar para outra questão: a analítica da sexualidade
conta-nos também a história de como a “burguesia”, ou, as
tradicionalmente chamadas “classes dirigentes”, produziram “[...] um
corpo específico, um corpo de classe com uma saúde, uma higiene, uma
descendência, uma raça [...]” (FOUCAULT, 2007a, p. 136), uma
vitalidade e normalidade investindo nas estratégias do dispositivo de
sexualidade. Portanto, parece-me que sexualidade se correlaciona com
aquilo que Esposito (2010) chama de paradigma de imunização, isto é,
processos de constituão, proteção e conservação da vida.
O discurso e o sexo
Foucault (2007a) inicia seu projeto de uma história da
sexualidade questionando a ideia de que historicamente a relação que
possuímos com o sexo seja primariamente da ordem de uma repressão.
Não somos uma sociedade que primariamente reprime o sexo, ao
contrário, nossa sociedade o produz constantemente. Por isso, as
denúncias que se fazem em torno dele: as obscenidades, as confissões, os
155
segredos, as reivindicações pertencem a um mesmo jogo, o de
proliferação incessante de discursos que falam da relação com o sexo.
No curso Os anormais, Foucault chama-nos atenção para o
seguinte:
[s]e as pessoas vão tanto ao psiquiatra, ao psicanalista, ao sexólogo,
para enunciar a questão da sua sexualidade, revelar o que é sua
sexualidade, é porque há em toda parte, na propaganda, nos livros,
nos romances, no cinema, na pornografia ambiente, todos os
mecanismos de apelo que remetem o indivíduo, desse enunciado
cotidiano da sexualidade, à revelação institucional e custosa da sua
sexualidade ao psiquiatra, ao psicanalista e ao sexólogo. Temos então
aí, atualmente, uma figura na qual a ritualização da revelação tem por
vis-à-vis e por correlativo a existência de um discurso proliferante
sobre sexualidade (FOUCAULT, 2001, p. 215).
Para Foucault, ao contrário da recusa e ausência de palavra,
assiste-se no Ocidente, há séculos, um movimento que põe o sexo numa
ordem discursiva gras à proliferação de dispositivos de incitação a
verbalização, a produção de poderes e de saberes que o governam mesmo
em seus gestos mais ordinários, no dizer do autor:
[...] o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no
próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar
do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação do poder a ouvir falar
e fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do
detalhe infinitamente acumulado (FOUCAULT, 2007a, p. 24).
156
Assim, "[...] a sexualidade, no Ocidente, não é o que se cala, não
é o que se é obrigado a calar, mas é o que se é obrigado a revelar [...]
(FOUCAULT, 2001, p. 213) e a reconhecer. Revelação imbricada em
uma história das técnicas e mecanismos que incitam discursos sobre o
sexo, Foucault (2007a) assinala o papel que a pastoral cristã possui em
oferecer as técnicas de escrutínio necessárias para revelar os segredos, as
infâmias, os pensamentos escondidos, desejos voluptuosos, o exame
incessante da conduta moral pelo sacramento confessional. Um jogo
muito peculiar no qual o Ocidente entrou e assumiu a tarefa infinita de
dizer de si e para a outrem tudo o que se relaciona com a fruição dos
prazeres, sensações e pensamentos que possuam alguma afinidade com o
sexo. No âmbito de uma proveniência técnica coube a pastoral cristã
inscrever “[...] como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o
que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra”
(FOUCAULT, 2007a, p. 27).
De acordo com Foucault (2001) um evento importante nesse
período foi o Concílio de Trento que imprimiu novos rumos a pastoral,
marcado pela intensificação da confissão, o emprego extensivo de todo
um imenso dispositivo de discurso e exame, de análise e controle, no
interior e em torno da penitência. Soma a isso, a acentuação do poder do
confessor como senhor da absolvição a partir do direito do
exame. Certamente, isso não foi uma exclusividade católica:
[...] na mesma época em que se constitui essa grande prática da
confissão-exame da consciência e da direção de consciência como
filtro discursivo perpétuo da existência, vemos surgir, por exemplo,
nos meios puritanos ingleses, o procedimento da autobiografia
permanente, em que cada um conta a si mesmo e ao outros, a seu
entourage, às pessoas da sua comunidade, sua vida, para que se possa
detectar nela os sinais da eleição divina. É a instauração no interior
157
dos mecanismos religiosos desse imenso relato total da existência que
constitui, a meu ver, de certo modo, o pano de fundo de todas as
técnicas de exame como de medicalização, a que vamos assistir em
seguida (FOUCAULT, 2001, p. 233).
Porém, as coisas não param por aí, também, os autores libertinos
por sua parte, assumiram a tarefa de dizer em detalhes a verdade sobre
sua conduta, em escrutinar o mais recôndito pensamento para revelar a
verdade sobre si mesmo. Diversas faces de um mesmo processo de
individualização que operam com base no dispositivo veridiccional. O
que demonstra que as transformações que estavam ocorrendo diziam
respeito a um processo no qual:
[...] o corpo com suas diferentes partes, o corpo com suas diferentes
sensações, e não mais, ou em todo caso muito menos, as leis da união
legítima, que vai constituir o princípio de articulação dos pecados de
luxúria. O corpo e seus prazeres é que se tornam, de certo modo, o
código carnal, muito mais que a forma requerida para a união
legítima (FOUCAULT, 2001, p. 236).
Para Foucault (2007a, p. 29) o homem ocidental permanece há
três séculos atado à tarefa de dizer tudo sobre seu sexo. A vontade de
verdade dirigiu-se à incitação da palavra, tudo se deve dizer, mesmo o
silêncio guarda uma distribuição rigorosa, diz Vilela (2010), um
murmúrio da ordem do discurso. Nas palavras de Foucault:
[o]s discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por
todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo
complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo,
instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de
158
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso
veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe,
debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo
dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também afrouxam
seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras
(FOUCAULT, 2007a, p. 112).
Com essa constatação pode-se dizer que há no pensamento de
Foucault uma separação entre a história das técnicas e das tecnologias de
tal modo que a confissão permaneceu como uma técnica muito
importante que forma o sujeito. Importante para compreender a
formação, pois pertence ao ramo das tecnologias de si. No entanto, o que
se observa a começar pelo século XVI é a instauração de um processo
tecnológico que reinscreve a episteme clássica e a própria condição
humana a um nível inédito na história. O que acontece é que essas
técnicas desenvolvidas pela pastoral serão recodificadas; e, o sexo, sua
incitação pelos discursos, com tudo o que isso implica, se tornará assunto
de interesse público. É a emergência da população como um fenômeno
de governo, um problema de polícia (2007a, p.31). Desse modo, os “[...]
governos percebem que não têm que lidar simplesmente com sujeitos,
nem mesmo com o povo, porém com uma população [...]
(FOUCAULT, 2007a, p. 31).
10
Na conferência A ordem do discurso, Foucault (1996) chamava
atenção para a produção, seleção, controle e distribuição dos papéis do
discurso. Disse-nos inclusive, na ocasião, que o sistema de educação é um
modo político de apropriação desse discurso e o ensino, nada mais, do
10
Apesar de temas como a polícia, a população, o povo e a economia possuírem um lugar de
menor destaque em A vontade de saber, eles serão objetos de análise cuidadosa durante o curso de
1978, Segurança, território e população. Aparentemente, o objetivo de Foucault nesse ponto
consistiu em mostrar que a valorização das técnicas de confissão, extração, perscrutação da
verdade do sexo repousavam sobre uma reconversão das tecnologias de governo da vida.
159
que uma ritualização da palavra e a qualificação dos sujeitos que falam.
Em A vontade de saber, pode-se observar que no século XVIII coloca-se
em marcha toda a constituição de uma rede de incitação à fala que irá
atravessar as instituições pedagógicas de tal modo que imprimiu seu
caráter moderno e expressivo
11
. Nos colégios, mesmo que a ordem fosse
afastar, ou seja, não falar sobre sexo, a própria arquitetônica, a disposição
das salas, das mesas, dos lugares, os regulamentos e a vigilância durante o
sono, “[...] tudo fala da maneira mais prolixa da sexualidade das crianças”
(FOUCAULT, 2007a, p. 34). À medida que o sexo do colegial passa a
ser assunto de interesse público, forma-se em torno da criança, do aluno,
uma sociedade constituída de pais, diretores, professores, pedagogos,
médicos a fim de garantir a correção moral, a higiene, eliminar o risco e o
perigo através da instrução pública e exortação à família. É a produção do
corpo da criança, mas, não de um corpo reprimido, ao contrário,
saudável e normalizado. Escreve o autor:
[f]alar do sexo das crianças, fazer com que falem dele os educadores,
os médicos, os administradores e os pais. Ou então, falar de sexo com
as crianças, fazer falarem elas mesmas, encerrá-las numa teia de
discurso que ora se dirigem a elas, oram falam delas, impondo-lhes
conhecimentos canônicos ou formando, a partir delas, um saber que
lhes escapa tudo isso permite vincular a intensificação dos poderes à
multiplicação do discurso. A partir do século XVIII, o sexo das
crianças e dos adolescentes passou a ser um importante foco em torno
do qual se dispuseram inúmeros dispositivos institucionais e
estratégias discursivas (FOUCAULT, 2007a, p. 36).
11
Charles Taylor (1996) nomeia como expressiva herdeira do romantismo a dimensão da
identidade na qual o indivíduo busca para si elementos de autenticidade, ou, variedade individual
que mais se adequa às expectativas de autorrealização do self.
160
Não se deve esquecer que, na lição inaugural no Collège de France,
Foucault (1996) pensava existir, em torno da sexualidade, uma grande
interdição, entretanto, após suas investigações sobre as disciplinas e o
papel que desempenharam na formação das instituições modernas, suas
análises reorientam-se para a produtividade dos discursos e poderes.
Assim, a sexualidade torna-se um lugar privilegiado na sociedade
ocidental para entender a própria identidade do indivíduo. Um lugar de
verdade e de individualização. Guardando dimensões técnicas e
tecnológicas se produz um corpo que se deleita em falar a verdade.
Aquilo que era muito comum de se pensar, que reprimíamos o nosso
sexo, revela-se falso, pois, ao contrário, das opiniões habituais “[...] a
característica de nossos últimos três séculos é a variedade, a larga
dispersão dos aparelhos para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que
fale de si mesmo, para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que
dele se diz” (FOUCAULT, 2007a, p. 40).
Todavia, mesmo admitindo a proliferação incessante de discursos
sobre o sexo, deve-se notar que há uma relação complexa entre o poder, o
corpo e os prazeres, de tal modo, que para constituir-se foi preciso,
concomitantemente, desqualificá-los e gerar outras classificações
reconvertendo certas modalidades de relação com o desejo, mais
legítimas. Para Foucault (2007a) a implantação desses aparelhos de
produção da sexualidade integrou ao menos quatro operações de poder
que constituem pontos de aplicação de técnicas de saber e poder.
Primeiro, houve uma verdadeira cruzada sobre a sexualidade
infantil. Campanhas públicas nas quais médicos, pedagogos combateram
o onanismo das crianças, instalando um regime médico-sexual,
organizando “[...] em torno da criança, linhas de penetração infinitas”
(FOUCAULT, 2007a, p. 50).
161
Em segundo lugar, houve uma incorporação das perversões e uma
nova especificação dos indivíduos, criação de mecanismo de vigilância
sobre sexualidades periféricas que passam por um processo de
taxionomização como uma maneira de psiquiatrização e desqualificação
dos prazeres perversos.
A terceira operação repousa na intensificação da relação entre
poder e prazer. Quanto mais poder mais prazer, em uma espiral perpétua
de reforço mútuo, uma vez que, ao passo que se aumenta a eficácia dos
procedimentos de poder e se estende seu controle sobre a sexualidade,
tem-se o efeito de eletrização dos corpos, aumentando o prazer.
E a quarta operação consiste na preponderância dos dispositivos
de saturação sexual, primeiramente em torno da família, sua organização
interna, relação com os filhos, com a intimidade do casal; depois, com as
instituições escolares, psiquiátricas que distribuem de outra maneira o
jogo de poderes e prazeres. Trata-se para Foucault de um tipo de poder
que não se exerce na forma da lei nem da interdição, mas, que procede
por inclusão do corpo, especificando os indivíduos, penetrando em seus
corpos, multiplicando o jogo com os prazeres, por meio, de mecanismos
de excitação e incitação.
Esses dispositivos e práticas de incitação a produção de discursos
sobre a sexualidade constituem verdadeiras “[...] tecnologias dos sistemas
de signos, que permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou
significação [...]” (FOUCAULT, 2004a, p. 323) que se mesclam com
tecnologias de poder capazes de dirigir a conduta. Para Foucault (2007a)
inventamos um prazer paradoxal ante a excitação contínua do discurso.
Desse modo, a sexualidade, o erotismo, sua mecânica, a fruição dos
prazeres e sua economia são elementos fundamentais para acessar a
dimensão significativa da subjetividade.
162
Emprestando os termos que a socióloga israelense Eva Illouz
(20011) confere à comunicação, trata-se de uma tecnologia de formação
do ‘eu’. De acordo com Illouz (2011) às emoções no capitalismo
contemporâneo passam desde o fim doculo XIX por uma revolução
terapêutica produzindo aquilo que se pode chamar de homo sentimentalis.
Tomando como referências históricas o aparecimento à psicanálise de
Freud, as demandas do feminismo igualitário pela inserção das mulheres
no mercado de trabalho e os desenvolvimentos da psicologia aplicados à
gestão de pessoas, Illouz (2011) argumenta que ocorre a proliferação de
técnicas terapêuticas, de comunicação interpessoal contribui para alinhar
nossas emoções com a cultura empresarial. Para Illouz (2011) o modelo
de comunicação é uma tecnologia de manejo do ‘eu’ apoiada em uma
linguagem administrativa e na gestão adequada dos sentimentos
exigência de neutralidade, empatia, responsabilidade, etc. Esse modelo
penetrou profundamente nas relações de trabalho e nas relações
conjugais, engendrando as demandas de que o sujeito seja reconhecido
pelos outros e os reconheça. Escreve essa autora:
[a] “comunicação” instila técnicas e mecanismos de “reconhecimento
social”, criando normas e técnicas para aceitação, validação e
reconhecimento dos sentimentos alheios. [...] A comunicação,
portanto, é um repertório cultural que pretende fomentar a
cooperação, prevenir ou resolver conflitos e respaldar o sentimento de
individualidade e identidade. Em outras palavras, ao mesmo tempo
que as interações sociais no trabalho exigem cada vez mais que o eu
exerça sua interioridade autêntica (sob a forma de sentimentos e
necessidades), o credo terapêutico instaura um mecanismo de
reconhecimento social mediante o qual o eu assim exposto possa ser
protegido. Portanto, a comunicação é um modo de definir uma
forma de sociabilidade na qual um senso sempre precário do eu deve
ser preservado. Com isso, a comunicação define uma nova forma de
163
competência social em que o manejo afetivo e linguístico do eu visa
estabelecer padrões de reconhecimento social (ILLOUZ, 2011, p. 17,
aspas preservadas).
Para Illouz (2011) essa exigência de reconhecimento social, por
vezes, significa apenas não discutir e não contestar a fundamentação de
seus sentimentos. Significa simplesmente validá-los a qualquer preço,
pois, trata-se, sobretudo, de uma técnica de refrear emoções negativas, de
evitar os conflitos, produzindo bem-estar e maior produtividade no
campo do trabalho e nas relações interpessoais. Com isso, a condição da
comunicação passou a ser a suspensão dos próprios vínculos emocionais
nas relações sociais. Illouz (2011) salienta que antes de conduzir a um
processo real de reconhecimento, que como entende Butler, começa com
a percepção de que se está perdido no outro, ou, imerso na experiência
extática de despossessão de si, essa cultura terapêutica de autoajuda tem
produzido diversas formas de sofrimento psíquico.
Animal confessante
Na conferência Sexualidade e poder, Foucault (2004d) chama essa
produção incessante de saber sobre a sexualidade de “supersaber”. N’ A
ordem do discurso, a vontade de saber que anima o mundo ocidental é
atravessada pela cisão platônica de um conhecimento aparentemente
neutro. É precisamente nesse sentido que se deve entender toda essa
descrição de mecanismos, discursos, aparelhos que se arrogam construir
um conhecimento científico sobre a sexualidade. Para Foucault (2007a)
essa é uma característica peculiar das sociedades europeias, em ruptura
164
com as sociedades antigas desenvolve-se no Ocidente uma scientia
sexualis.
Por ocasião de sua visita ao Japão, diz Foucault:
[n]o ocidente, não temos a arte erótica. Em outras palavras, não se
ensina a fazer amor, a obter prazer, a dar prazer aos outros, a
maximizar, a intensificar seu próprio prazer pelo prazer dos outros.
Nada disso é ensinado no Ocidente, e não há discurso ou iniciação
outra a essa arte erótica senão clandestina e puramente
interindividual. Em compensação temos ou tentamos ter uma ciência
sexual scientia sexualissobre a sexualidade das pessoas, e não sobre
o prazer delas, alguma coisa que não seria como fazer para que o
prazer seja o mais intenso possível, mas sim qual é a verdade dessa
coisa, que, no indivíduo, é seu sexo ou sua sexualidade: verdade do
sexo, e não intensidade do prazer (FOUCAULT, 2004d, p. 61).
Para Foucault (2007a) essa ciência sexual que se desenvolve no
século XIX se inscreveu sob dois registros distintos, ao mesmo tempo,
uma biologia da reprodução e uma medicina do sexo, porém, que
serviram somente para reescrever os medos e credulidades da época num
vocabulário de consonância científica. Na base desse desconhecimento,
achava-se uma relação com a verdade, pois, o que se investe sobre o sexo
é um tipo de procedimento de produção da verdade. É desse ponto de
vista que se deve compreender a diferença entre ars erótica e a scientia
sexualis.
Nas sociedades antigas como China, Roma, Japão e Índia a arte
erótica extraia a verdade do prazer. Essa não existia em função de uma lei
do permitido ou do proibido, nem mesmo, sob o critério de utilidade,
mas, unicamente, em relação ao prazer consigo mesmo. Iniciar-se nessa
arte requer ter o contato com o mestre, submeter-se ao seu ensino e
165
guardar os seus segredos. Talvez, esteja aqui uma pista para compreender
as investigações ulteriores de Foucault no âmbito da sexualidade antiga,
principalmente, entre gregos e romanos. O caso é que as sociedades
ocidentais relegaram à marginalidade ars erótica e desenvolveu
procedimentos para dizer a verdade do sexo “[...] em função de uma
forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao
segredo magistral, que é a confissão” (FOUCAULT, 2007a, p.66).
A marginalização da ars erótica exprime o processo de
deserotização ou desqualificação dos prazeres em prol de uma analítica da
verdade assumida pela ciência sexual. Esse processo assume outras
proporções e torna-se ainda mais importante nas lições proferidas no
curso Subjetividade e verdade, em 1981, quando Foucault (2016b)
retornou novamente ao tema da sexualidade, vinculando-o às artes de
viver. Espero elucidar esse processo durante a tese, por enquanto basta
dizer que as relações entre a subjetividade, a operação de produzir a
verdade e o regime dos prazeres ocupam um lugar importante na
problematizão da estética da existência.
Entretanto, em A vontade de saber o que está em jogo é um tipo
de procedimento diferente de vincular a verdade do sexo ao sujeito,
oposto as antigas artes de viver, que é a confissão. A confissão liga o
sujeito à verdade, e a verdade ao poder como dispositivo por meio do
qual se obtém a constituição de uma identidade, isto é, como modo de
sujeição. Escreve Foucault:
[a] própria evolução da palavra confissão e da função jurídica que
designou já é característica: da confissão, garantia de status, de
identidade e de valor atribuído a alguém por outrem, passou-se a
confissão como reconhecimento, por alguém, de suas próprias ações
ou pensamentos. O indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado
166
pela referência dos outros e pela manifestação de seu vínculo com
outrem (família, lealdade, proteção); posteriormente passou a ser
autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a)
ter sobre si mesmo. A confissão se inscreveu no cerne dos
procedimentos de individualização pelo poder (FOUCAULT, 2007a,
p. 67).
O ato de reconhecer os outros e a si mesmo adquire uma nova
dimensão graças às técnicas de confissão que ligam de uma só vez o
sujeito, a verdade e o poder. No âmago de A vontade de saber, sem dúvida
habita o trabalho de ruptura, de descontinuidade e de transformação do
Ancien Régime nas sociedades modernas. Charles Taylor (2004) soube
explorar muito bem esse ponto analisando o valor da honra para as
sociedades antigas. Foucault (2007a) chama de sanguíneas essas
sociedades antigas que eram soldadas nas relações de aliança de sangue,
honra e soberania:
[s]ociedade de sangue [...] 'sanguinidade': honra da guerra e medo das
fomes, triunfos da morte, soberano com gládio, verdugo e suplícios, o
poder fala através do sangue; este é uma realidade com função
simbólica. Quanto a nós, estamos em uma sociedade do 'sexo', ou
melhor, 'de sexualidade': os mecanismos de poder se dirigem ao
corpo, à vida, ao que faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor,
sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada
(FOUCAULT, 2007a, p. 160-161, itálicos e aspas preservadas).
Essa transformação é capital na história do reconhecimento.
Aquilo que Taylor chama de expressivismo romântico, para Foucault se
liga aos efeitos da liberação do corpo a partir das técnicas de confissão,
das disciplinas do corpo e do poder sobre a vida.
167
A confissão ocupa um lugar perene na obra do filósofo francês,
ressoando desde sua juventude com as análises acerca da loucura no
mundo ocidental até o fim prematuro de sua vida. Na História da
loucura, Foucault (2008a) não cessou de examinar, descrever e decompor
o funcionamento das técnicas de interrogação, cura, tratamento e
correção dos loucos. Texto que ressoa como acontecimento ao
pensamento e mediante o qual se pode perceber que o grande laboratório
da loucura, a produção da loucura como doença mental, como categoria
psicológica, psiquiátrica ocorreu graças a uma série de experiências de
confinamento, de exclusão e internamento dos mais variados tipos de
desviantes sociais, como libertinos, homossexuais, maníacos, histéricas,
bruxas, deficientes mentais, vagabundos, hereges etc. A arqueologia de
Foucault (2008a) parte da consciência cósmica e trágica do desatino
humano, passa pelo chamado grande medo do ocidente e chega à loucura
como categoria psicológica. A experiência da loucura que emerge nesse
cenário não se dissocia como produto, da ciência, ou, da moral, pois, as
articula repousando na produção visível da aplicação das sanções morais
sobre aqueles que os bons costumes sociais de uma determinada época
não podiam aceitar com base no positivismo que faz surgir à figura e
poder do médico como taumaturgo detentor dos segredos da natureza
humana. A figura do louco aparece como problema para a sociedade do
trabalho e para a família, como escreve Foucault (2008a, p. 92):
[n]o século XIX, o conflito entre o indivíduo e sua família torna-se
assunto particular, e assumirá o aspecto de um problema psicológico.
Durante todo o período do internamento, esse assunto esteve ligado à
ordem pública; punha em causa uma espécie de estatuto moral
universal: toda a cidade interessava-se pelo rigor da estrutura familiar.
Todo aquele que feria essa estrutura passava para o mundo do
168
desatino. E foi assim [...] que a família, um dia, poderá constituir-se
no topos dos conflitos onde nascem as diversas formas de loucura.
Nesse quadro analítico, reconhecimento e confissão caminham
lado a lado. Fato que pode ser exemplificado, primeiro, no caso de um
maníaco tratado por Pinel, a respeito do qual Foucault (2008a, p. 492)
afirma:
[i]dentificado presunçosamente com o objeto de seu delírio, o louco
se reconhece como num espelho nessa loucura cuja ridícula pretensão
ele mesmo denunciou. Sua sólida soberania de sujeito se esboroa
nesse objeto que ele desmistificou ao assumi-la. Ele é agora
impiedosamente encarado por si mesmo. E no silêncio daqueles que
representam a razão, e que apenas seguraram o espelho perigoso, ele
se reconhece como objetivamente louco.
Segundo, no caso de uma jovem eufórica de 17 anos submetida
ao tratamento por Tuke. O médico agora encarna a autoridade do pai,
do juiz e da lei graças ao qual pode extrair a verdade. -se:
[a]pós essa primeira confissão, a cura se torna fácil: Efetuou-se uma
mudança das mais favoráveis...; ela se sente agora aliviada e não
consegue expressar, como gostaria, todo o seu reconhecimento ao
vigilante que fez cessar suas contínuas agitações e devolveu a
tranqüilidade e a calma ao seu coração (FOUCAULT, 2008a, p.
499, aspas preservadas)
Dez anos depois, no curso O poder psiquiátrico, retorna a esse
tema, explorando detalhadamente por meio da proveniência das técnicas
169
e disciplinas monásticas como se fabricou peça por peça o poder sobre o
corpo e a alma. Em Vigiar e punir ela é constantemente evocada como
peça jurídica e prova de verdade na produção do crime e da alma do
delinquente. Nos últimos cursos sua recorrência possui inclusive efeito de
ensino, didático, a exemplo de diferenciação entre as subjetivações gregas
e cristãs. Em 1981, na Faculdade Católica de Louvain, Foucault (2018)
ofereceu algumas conferências traduzidas recentemente como Malfazer,
dizer verdadeiro. Nessas, dedica-se a maior parte do tempo para tratar da
questão da confissão.
Transpassando todo esse conjunto de análises em torno da
confissão estão as relações entre a subjetividade e a verdade. Portanto, as
tecnologias de reconhecimento pertencem ao âmbito das obrigações de
dizer a verdade. Como nas conferências em Dartmouth, na conferência
inaugural relata-nos a história do médico psiquiatra Leuret o qual afirma
ter curado certo sr. A. que sofria de delírio de perseguição e alucinações:
[...] Certa manhã, Leuret o levou ao banheiro e o pôs em pé debaixo
do chuveiro [...] O médico pediu ao paciente que contasse
detalhadamente o seu delírio. [...] Dr. Leuret Não há uma palavra
de verdade em tudo isso; o que o senhor diz são loucuras. E é por ser
louco que o mantenho em Bitre. Paciente Não acho que sou
louco. Sei o que vi e ouvi. Médico Se quer me deixar contente,
obedeça, porque tudo o que lhe peço é razoável. Promete que não vai
mais pensar em suas loucuras, promete que não vai mais falar delas?
O paciente prometeu com hesitação. Dr. Leuret O senhor faltou
muitas vezes à palavra quanto a isso: não posso contar com suas
promessas; o senhor vai receber uma ducha até confessar que todas as
coisas que diz não passam de loucuras. E despejaram uma ducha
gelada sobre a sua cabeça. O paciente reconheceu que suas
imaginações não passaram de loucuras, e que ia trabalhar. Mas
acrescentou: estou reconhecendo ‘porque sou forçado’. Outra ducha
170
gelada. Sim, senhor, tudo o que [eu] disse é loucura. Então o
senhor é louco? perguntou o médico. O paciente hesitou: Acho
que não. Terceira ducha gelada. Foi louco? Paciente É ser louco
ver e ouvir? É. Então o paciente acabou dizendo. Não havia
mulheres me xingando nem homens me perseguindo. Tudo isso é
loucura. Paro por aqui. À força de duchas, à força de confissão, o
doente como os senhores podem supor, ficou curado (FOUCAULT,
2018, p. 3-4).
No exemplo vê-se a confissão como peça na operação terapêutica
com a loucura, mas, tal técnica estende-se por toda espessura do social,
especialmente na pedagogia e no direito. A importância da confissão é
tamanha a essa altura do projeto genealógico que Foucault diz: “[o]
homem, no ocidente, tornou-se um animal confidente” (FOUCAULT,
2007a, p. 68).
Retraçar a história de como o Ocidente se tornou uma sociedade
confessanda correlaciona-se com realizar uma genealogia da alma
moderna. O grande ardil da confissão é que essa penetra o homem
produzindo seu mundo interior. Os produtos da vida ruminante,
reflexiva, as faltas, os pensamentos, os desejos, os sonhos, todos devem ser
escrutinados e manifestar-se por meio da verbalização. À medida que
houve a secularização do pastorado cristão, conforme aparece nas lições
de Segurança, território e população, a confissão tornou-se uma das
técnicas mais valorizadas na produção da verdade. Seus efeitos se
difundem sobre as mais diversas práticas e instituições, quais sejam: “[...]
na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações
amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes”
(FOUCAULT, 2007a, p. 68). Para Foucault, isso explica as
transformações da literatura que dantes centrava-se sobre a narrativa
heróica, ou, nas provas de bravura, passou a buscar no fundo de si
171
mesmo uma verdade que até para confiso permanece inacessível. E na
filosofia seus efeitos marcam
[...] essa outra maneira de filosofar: procurar a relação fundamental
com a verdade, não simplesmente em si mesmo em algum saber
esquecido ou em certo vestígio originário mas no exame de si
mesmo que proporciona através de tantas impressões fugidias, as
certezas fundamentais da consciência (FOUCAULT, 2007a, p. 68).
Interrogando-se acerca das aspirações da época iluminista, Taylor
(2014), entende que essa demanda pela experiência interior foi elaborada
como uma espécie de reação romântica ao programa da razão. O homem
contemporâneo herda desse momento um verdadeiro ideário expressivo
que formará um traço importante para a noção de self, de vida interior,
de autenticidade e de diferença. Tanto as transformações que Foucault
(2007a) apontou sobre a literatura em sua busca infinita pela verdade
inacessível
12
, quanto, as da filosofia, em torno do exame para radicar a
certeza da consciência, descreve com exatidão aquilo que Taylor (2014)
entende ser o movimento cultural imediatamente após o iluminismo,
encarnados no cerne do projeto hegeliano: “[...] combinar a liberdade
racional, autolegisladora do sujeito kantiano com uma unidade expressiva
12
Essa verdade é inacessível em razão de sua pretensão arcaica que busca a origem do ser em si
mesmo. Durante toda a década de 1960, Foucault sustentou que a literatura era a proliferação dos
signos ao infinito sendo seu limite a morte. em Nietzsche, a genealogia e a história, o filósofo
francês entende que nossa essência é construída peça por peça de elementos que lhe são
completamente estranhos. Nesse sentido, a origem da subjetividade, a verdade de sua origem está
no fora (dehors), no espaço exterior e selvagem que dissolve qualquer soberania do sujeito. Por sua
vez, o pensador italiano Giorgio Agamben, no ensaio: Bataille e o paradoxo da soberania teve uma
belíssima intuição, dizendo que a ideia de uma comunidade negativa de Bataille torna inoperante
toda noção de sujeito soberano. Aproximando então, o problema da literatura de Foucault e o
paradoxo da soberania de Bataille, não poderíamos pensar esse inconfessável como uma figura que
denota uma espécie de comunidade negativa no pensamento de Foucault, ao menos nesse
momento?
172
no interior do ser humano e com a natureza, pela qual ansiava aquela
época” (TAYLOR, 2014, p. 578). Nesse sentido, Hegel é o filósofo que
ofereceu os contornos filosóficos mais bem delineados para a realização
do reconhecimento. É o ponto de chegada e não de partida,
principalmente porque o filósofo alemão subsume a experiência do
reconhecimento à dialética, a obrigação e dádiva a juridificação com o
Estado.
Na obra Biopolítica: la modernidad y la liberacíon del cuerpo,
Féher e Heller (1995, p. 8-21) analisam o fracasso moderno ante as
expectativas de liberação do corpo. Escrevendo desde o interior dos
movimentos contestatórios, isto é, compartilhando com esses grupos
aquele horizonte comum da modernidade que viam nela prementes as
potencialidades de realização da emancipação, dirão que na verdade, por
ódio contra a doutrina da dualidade corpo-alma sob qual se assenta o
cristianismo, ignoram a advertência de Hegel. De todas as rapsódias
líricas e filosóficas aflorou-se certo postulado que apregoava a necessidade
de abolir a dualidade corpo-alma cristã para que com isso pudesse nascer
finalmente a liberdade dos modernos. Segundo Féher e Heller (1995),
para Hegel a cultura ocidental desde sua gênese padece de um grande
cisma não reconciliado na História, no qual se vê forçada, de tempo em
tempo, em atender exclusivamente às necessidades do sensorial
continuamente insatisfeito e, por isso, em uma explosão alternativa,
pretende subir ao nível do espírito e deixar completamente o corpóreo
para trás. Isso significa que, para Hegel, estamos obrigados a entrar na era
da dualidade corpo-alma.
Féher e Heller (1995) comparam a proposição hegeliana com as
análises genealógicas de Foucault. Em Vigiar e punir, Foucault (2014c)
entre outras coisas sustenta a tese de que a passagem do Ancien Régime
para a sociedade disciplinar foi marcada pelo fim dos suplícios públicos
173
que demonstravam a soberania do Rei, em seu lugar, surgiu um novo
aparato jurídico inspirado pelos humanistas que acreditavam serem
desnecessárias além de cruéis as demonstrações públicas de poder. Temos
assim, o surgimento da prisão como efeito desse processo de mitigação
das penas. A questão já não era mais punir o corpo, ou seja, fazer dele um
exemplo de escândalo e escárnio para os demais, mas, tratava-se agora de
decompor e multiplicar de modo a fazer a alma purgar pelos seus delitos.
Como resultado desse processo diz Foucault:
[a] história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma
genealogia ou uma peça para uma genealogia da “alma” moderna. A
ver nessa alma os restos reativados de uma ideologia, antes
reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do
poder sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou
um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma
realidade, que é produzida permanentemente, em tomo, na
superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que
se exerce sobre os que são punidos de uma maneira mais geral sobre
os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as
crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um
aparelho de produção e controlados durante toda a existência.
Realidade histórica dessa alma, que, diferentemente da alma
representada pela teologia cristã, não nasce faltosa e merecedora de
castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância,
de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é
absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos
de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem
pela qual as relações de podero lugar a um saber possível, e o saber
reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência,
vários conceitos foram construídos e campos de análise foram
demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.;
sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir
dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não
174
devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída
por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de
intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam
a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais
profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à existência, que é ela
mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A
alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão
do corpo (FOUCAULT, 2014c, p. 32-33).
Dessa dualidade não superada entre o corpo e alma, os
pensadores iluministas conceberam a ideia de um governo racional e
benigno do corpo e suas paixões. Todo o processo educacional dessa
época, e, nesse contexto se pode pensar em Kant e sua pedagogia,
baseiam-se em um progressivo domínio sobre as tendências antissociais,
irracionais e fantasiosas próprias à meninice, ao espírito infantil, ou, aos
povos incivilizados. Com isso, Féher e Heller (1995) propõe a tese de que
na modernidade há um verdadeiro processo de autonomização do corpo
na modernidade:
[...] mas a ironia do processo moderno foi justamente que esse ato de
liberação, cujo objetivo proclamado era acabar com a corporeidade
abstrata, preparava o caminho para a biopolítica. Não havia nada
assim antes da modernidade. Nada teria legitimado a busca por uma
política diferenciada do Corpo em um mundo em que o Corpo (sua
autonomia e sua sobrevivência física) estivesse de um modo ou de
outro ligado a todo o tipo de política. Somente na modernidade se
chegou, e mesmo nele, especialmente como em princípio, à aceitação
de máximas cujo cumprimento atenuou o rigor do adágio romano:
vae victis! (ai dos vencidos!). Até a modernidade, se você tivesse
perdido, havia perdido primeiro ‘seu Corpo’. No mundo moderno,
no qual o corpo foi legalmente reconhecido pela lei do habeas corpus,
e onde, ao mesmo tempo, as principais tendências da vida social
175
visavam oprimir, eliminar, silenciar, sublimar e substituir essa
entidade legalmente existente, um espaço social foi aberto à
biopolítica (FEHER; HELLER, 1995, p. 19 tradução nossa).
13
Para Foucault, a genealogia da alma moderna localiza-se nas
transformações por meio das quais as maneiras como o próprio corpo é
investido pelas relações de poder. Para Féher e Heller (1995) a cisão entre
o corpo e a alma, que mais tarde será assumida como objeto da
psicologia, da pedagogia e do direito, marca o aparecimento do espaço da
biopolítica. Sob esse ponto de vista, a confissão como modo de produção
da verdade atravessa todo o campo da alma moderna, especialmente a
partir do momento que assume a forma da verdade científica. Por isso,
para elucidar a relação entre a confissão e o corpo como objeto
problematizável, principalmente no que isso traz de novidade, faz-se
necessário situar o contexto em que se tem uma mudança de direção das
técnicas de produção da verdade. Outrora orientada para purificação da
carne mediante as técnicas de purgação do monasticismo, reconvertem-se
no interior do dispositivo da sexualidade que passou a ser responsável
pela normalização dos corpos, isto é, seu governo enquanto vivo.
No curso Malfazer, dizer verdadeiro, Foucault (2018) ajuda-nos a
entender os nexos entre a confissão, o reconhecimento e o sujeito de
13
“[...] lo irónico del proceso moderno fue precisamente que este acto de liberación, cuyo objetivo
proclamado era acabar con la corporeidad abstracta prepararse el camino para la biopolítica. No
existía nada parecido a esi antes de la modernidad. Nada habría legitimado la búsqueda de una
política diferenciada del Cuerpo en um mundo en el que el Cuerpo (su autonomía y su
supervivencia física) estava de ub modo u outro vinculado a todo tipo de política. Solo en la
modernidad se lhegó, e incluso en ella sobre todo como principio, a la aceptación de máximas
cuyo cumplimento atenuase el rigor del adagia romano: vae victis ! (!ay del vencido!). Hasta la
modernidad, si habías perdido, habías perdido en primer lugar <<tu Cuerpo>>. En cambio, en el
mundo moderno, en el que el cuerpo estaba legalmente reconocido por la ley de habeas corpus, y
donde al mismo tiempo las principales tendencias de la vida social apuntaban a oprimir,
eliminar, silenciar, sublimar y reemplazar esa entidad legalmente existente, se abría
un espacio social a la biopolítica.” (FÉHER; HELLER, 1995, p. 19).
176
direito. Ou, dito de outro modo, como a confissão se liga à alma-sujeito,
especialmente porque, é uma técnica que funciona como “superfície de
refração”, por meio da qual podemos estudar algumas modalidades
históricas de relações consigo. Semelhante às conferências de A verdade e
as formas jurídicas, o curso na Universidade Católica de Louvain
interroga desde o início até o fim a relação entre o sujeito e a verdade.
Foucault (2018, p. 8) começa suas preleções dizendo que “[...] a
confissão é o ato verbal por meio do qual o sujeito faz uma afirmação
sobre o que ele é, vincula-se a essa verdade, coloca-se numa relação de
dependência perante outrem e modifica ao mesmo tempo a relação que
tem consigo mesmo.”. No decorrer das conferências, Foucault (2018)
minuciosamente discute as inovações que o cristianismo trouxe ao
problema da veridicção em relação ao pensamento grego e as antigas
escolas helenísticas. Foucault (2018) argumenta acerca da influência que
a Igreja teve no período de constituição do Estado. No fim da Idade-
dia a confissão se consolidou como prática no direito penal. Para o
filósofo, a primeira forma de Estado moderno foi o Estado de justiça. De
acordo com Foucault (2018, p. 176) necessidade de veridicção de
estabelecer a prova de verdade levou a justiça penal a passar da solução
do conflito na forma de confronto entre dois indivíduos para a solução
do conflito na forma de decisão de uma corte soberana ou de decisão do
soberano. O estabelecimento da verdade se torna elemento essencial.
Nesse processo afirmação da verdade pelo próprio inculpado, ou, a
confissão de culpa constitui uma peça importante no sistema de provas
legais: “Habemus reum confitentem”. Diz o autor:
[...] nesses códigos modernos e contemporâneos, como sabem bem, o
que fundamenta [...] a lei é a vontade de todos, que supostamente se
expressa nessa lei decidida e validada por um ato do corpo legislativo
na qualidade de corpo soberano. [...] aquele [...] que cometeu um
177
crime [...] deu seu consentimento [...] ele mesmo se pune, e se pune
pela instituição do tribunal que profere a sentença em conformidade
com a lei que ele supostamente quis. [...] O dever de nos
reconhecermos na lei que nos atinge é uma ficção - aliás, tamm
uma exigência -, é uma ficção que explica a posição ao mesmo tempo
simbólica e central da confissão (FOUCAULT, 2018, p. 180).
No contexto indicado, a confissão a cada vez que acontece
relembra o pacto social, reforça a lei que em tese todos aceitamos,
ratificamos e nos submetemos por nossa própria vontade e pela vontade
de todos. Vontade geral, união dos particulares, em razão do qual se
forma o corpo da sociedade. Ela é um contrato de veracidade e dá sentido
a punição, pois, se assenta no compromisso punitivo daquele que aceita
as leis, continua:
[...] é uma espécie de rito de soberania por meio do qual o culpado dá
a seus juízes fundamentos para condená-lo e reconhece na decisão dos
juízes sua própria vontade. [...] é um lembrete do pacto social [...] é
um ato que ganha sentido na própria raiz do sistema punitivo. É um
ato teórico e funcional. [...] Todo cidadão, desde que seja adulto, que
tenha o uso da razão, claro [...] deve poder reconhecer o que é
verdadeiro ou falso em sua alma e consciência: soberania, portanto,
da consciência qualquer em relação à soberania [...] (FOUCAULT,
2018, p.180-181).
Foucault (2018, p. 6) inicia o curso dizendo querer tratar da
confissão como espeech act, no entanto, ao longo das investigações torna-
se muito claro que se trata de um dispositivo cujo registro estende-se para
além dos marcos institucionais de qualquer ato da fala. Há algo de
performativo, mas não se pode reduzi-la ao ato performativo. Além disso,
178
também não se reduz àquilo que se entende por simbólico, pois, a
confissãoo remete a outra coisa que não seja o que ocorre na cena
judiciária. Conforme o autor:
[n]em performativa nem simbólica: adaptando um pouco o sentido
habitual da palavra, eu diria que a confissão, no fundo, é de ordem do
dramático ou da dramaturgia. [...] a confissão faz parte da dramática
judiciária e penal. [...] diferentemente do simbólico e do
performativo, que não tem gradação, a dramaturgia - o dramático - é
passível de intensidades diversas [...] (FOUCAULT, 2018, p. 183).
Uma peça dramática e expressiva cujas intensidades são capazes
de comover, redimir e condenar, arrancar suspiros de raiva, de clemência.
Contudo, na história do pensamento judiciário a confissão oscila de
importância. Foucault (2018) adverte-nos quanto à insuficiência, ou,
impasse hisrico da técnica da confissão para determinar a
responsabilidade de certos indivíduos que por sua “raça” ou condição
patológica são considerados inculpáveis nos tribunais. Para esses
indivíduos é preciso alguma coisa para substituir ou complementar essa
confissão deficiente ou insuficiente, já não basta que se extraia uma a
veridicção da confissão, requer-se a instauração de outro procedimento
de heteroveridicção capaz de determinar em razão de uma intervenção
psiquiátrica, ou de exame psicológico que determine sua condição
anormal ou criminosa. Portanto, retiram-se desses, ao mesmo tempo, sua
imputabilidade jurídica excluindo da categoria de sujeito de direito e lhes
confere a determinação de anormais, colocando-os diretamente sob a
tutela das instituições de sequestro, seja, como riscos à saúde ou perigos a
serem eliminados contra os quais a sociedade precisa ser defendida. Para
Foucault (2018) além de estabelecer mecanismos de governo dos
179
anormais e criminosos essa crise judiciária da confissão e a questão dos
indivíduos que necessitam ser tutelados relaciona-se diretamente com a
questão dos seguros contra acidentes no trabalho. Pode-se apontar nessas
investigações os elementos que configuram as políticas de inclusão de
pessoas deficientes como foi retratado por Muel (1991) em seu trabalho
sobre a consolidação da escola obrigatória e a invenção da infância
anormal.
Há pouco, analisava, reconstituindo os passos de Foucault
(2007a) em A vontade de saber, como a confissão acabou por inscrever
nas dobras da formão do sujeito moderno uma maneira peculiar de se
relacionar com a própria interioridade. Ao passo que assumimos seu
modo de perscrutação como nosso, seus efeitos coercitivos foram quase
que esquecidos, ela aparece, inclusive como aliada da verdade. A
obrigação da confissão foi de tal modo incorporado em nossos gestos,
hábitos e comportamentos que “[...] a verdade, na região mais secreta e
nós próprios, não demanda nada mais que revelar-se [...]” (FOUCAULT,
2007a, p. 69). A relão que historicamente estabelecemos com o sexo,
diga-se de passagem, uma relação que não é da ordem de um contrato
social, mas, de sujeição, ou seja, a que estamos submetidos contra e por
nossa vontade. Desde os austeros métodos de penitência da pastoral
cristã, passando pelo moralismo humanista e chegando à psicologia e
pedagogia moderna, o sexo vincula-se como matéria privilegiada de
confissão como modo de produzir a verdade e a identidade do indivíduo.
Logo compreendemos a necessidade de colocação do sexo em discurso.
Na confissão, diz Foucault “[...] o sujeito da fala coincide com o
sujeito do enunciado [...]” (2007a, p.70). E não se deve esquecer que
como ato dirige-se sempre para outrem, pois, fala-se, confessa-se e revela-
se sempre na presença de outrem. No curso O governo dos vivos proferido
em 1980 o lugar dessa técnica que requer um parceiro elucida-se ainda
180
mais ao passo que é pensada conjuntamente com o problema da direção
da consciência, quer dizer, a organização dos processos de subjetivação.
Enquanto que no mundo grego a verdade e o sexo se ligavam na forma
da pedagogia e da iniciação, nós ligamos a verdade e o sexo na confissão
por meio da expressão obrigaria dos sentimentos e dos segredos da vida
individual. O sexo foi encerrado nesse discurso, nem uma educação,
tampouco uma iniciação. A confissão vem de baixo, não pode ser ars
erotica cujos segredos provinham da vontade soberana de um mestre. Isso
não significa que a instância de dominação esteja do lado daquele que
confessa e fala aquilo que faz, mas, daquele que ouve, extorque e
interroga.
O cristianismo constitui um tema importante no pensamento
genealógico de Foucault e pode ser sintetizado da seguinte forma. A
começar pela genealogia das disciplinas monásticas estudadas em O poder
psiquiátrico; depois, pela técnica de confissão em A vontade de saber;
seguida das análises sobre o pastorado cristão; chegando ao problema da
direção de consciência já na década de 1980. Um conjunto de
tecnologias compõe as peças daquilo que se pode designar como modo de
subjetivação cristão. Escreve Foucault (2018, p. 80): “[...] uma das
características mais fundamentais do cristianismo é ter vinculado o
indivíduo à obrigação de buscar em si mesmo a verdade do que ele é.”
Gros (2018) chama todo esse complexo de dispositivo milenar de
obediência cuja estilística existencial assenta-se na solicitude.
De modo geral, diz Foucault (2007a) a tecnologia da confissão
permanece até hoje como matriz que rege a relação entre sexo e a verdade
e da individualidade. Contudo, conforme já mencionado, nos cursos de
1978 e 1979, Foucault já não pensa mais segundo a hipótese Nietzsche,
pois, introduz a noção de arte de governo para tratar das relações de
poder. Com isso, entende-se melhor esse processo de espraiamento,
181
porque, a confissão é um ponto de apoio para as artes de governo dos
homens, sendo elemento indispensável no momento de produção do
verdadeiro. Desse modo, a pedagogia e a medicina, mesmo
reconvertendo-a cada qual ao seu domínio, incorporaram a confissão,
reforçando seus efeitos, multiplicando seus modos de agir e
arregimentando a conduta humana.
Escreve Foucault, nasce uma nova ciência, “[...] ciência-confissão,
ciência que se apoiava nos rituais de confissão e em seus conteúdos,
ciência que supunha essa extorsão ltipla e insistente e assumia como
objeto o inconfessável-confesso” (FOUCAULT, 2007a, p. 73). Porém,
ao invés dessa ciência se ocupar com a situação do pecado ou da
eternidade, seu objeto é o corpo e a vida. Segundo Foucault (2007a)
alguns procedimentos fazem funcionar os rituais de confiso nos
esquemas de regularidade científica, são eles: a codificação clínica do
falar; o postulado de uma causalidade difusa; o princípio de latência da
sexualidade; os métodos de interpretação; e a medicalização dos efeitos da
confissão. Não nos interessa explorar ponto a ponto esses procedimentos,
basta apenas salientar seus efeitos de multiplicação e de reforçotuo
para a colocação do sexo em discurso.
Nas conferências em Dartmouth em 1980, Foucault (2016a)
analisa a proveniência desses dispositivos sob a rubrica de uma
hermenêutica de si. Aquilo que se designa como scientia sexualis,
portanto, consiste na correlação entre interrogação e problematização,
confissão e racionalização do sexo como uma questão. Interroga-se o
sexo, seus segredos, perigos e prazeres; problematiza-se o corpo como
lócus de onde provêm os desejos; estabelecem-se os métodos para
determinar a sua verdade; e, atribui-se a causa das doenças, sintomas e
desvios ligando a identidade do sujeito. Assim na sexualidade estão
guardadas as chaves para se acessar a alma moderna.
182
O projeto genealógico de Foucault culmina com a publicação de
A vontade de saber e a elaboração de uma analítica do poder. A análise da
alma moderna que Foucault concebe como efeito de um complexo
arranjo dos dispositivos disciplinares e normalizadores parece encerrar-se
no ardil sem fim das relações de poder. Mas se prestar um pouco mais de
atenção nos detalhes é possível perceber que existem alguns pontos de
fragilidade, de reversões possíveis no discurso sexual. Não se deve
esquecer que é precisamente nesse ensaio que o filósofo francês arroga a
hipótese da resistência. Ao mostrar as transformações na literatura,
Foucault menciona algo como a busca de uma verdade que não é
acessível, o mesmo caso ocorre com a confissão que assume como objeto
um incofessável-confesso. O que isso pode significar? Estaríamos diante
de um retorno da temática da transgressão, da experiência-limite, do fora
(dehors)? Certamente esses murmúrios e silêncios beiram a noção de
múnus (ESPOSITO, 2010), revela-nos a proximidade de Foucault com
autores como Blanchot e Bataille.
Uma pista para entender melhor esse “inconfessável” esteja nos
fragmentos da arte erótica. De acordo com Foucault (2007a) a ars erotica
não desapareceu completamente, apesar de todos os esforços
normalizadores da scientia sexuali. Ela sobrevive como uma dimensão
clandestina na economia política dos prazeres. A sexualidade não é sã
como sonhou a medicina, tampouco, plena e realizada como queriam os
humanistas. Não soubemos inventar novos prazeres, mas inventamos o
prazer da verdade do prazer.
[o]s livros científicos, escritos e lidos, as consultas e os exames, a
angústia de responder às questões e as delícias de se sentir
interpretado, tantas narrativas feitas a si mesmo e aos outros, tanta
curiosidade, confidências tão numerosas e cujo escândalo é sustentado
(não sem algum tremor) por seu dever de verdade, a irrupção de
183
fantasias secretas, cujo direito de murmurar para quem sabe ouvi-las
se paga tão caro, em suma, o formidável ‘prazer na análise’ (no
sentido mais amplo deste último termo) que o Ocidente desde há
vários séculos fomentou sabiamente, tudo isso forma como que
fragmentos errantes da arte erótica, veiculados na surdina pela
confissão e a ciência do sexo (FOUCAULT, 2007a, p. 81).
Todo o esforço de Foucault (2007a) até esse momento repousa
na tentativa de fazer uma análise histórica da sexualidade sem colocá-la
necessariamente sob o signo da repressão primária. Sob esse ponto de
vista, a crítica de Foucault dirige-se a Reich, Marcuse e o chamado
freudo-marxismo. Nesse percurso, interessou-me mostrar que a noção
moderna de reconhecimento guarda relações com uma história política
da verdade. Todavia, parece-me ao mostrar as transformações que a
tecnologia da confissão traz a relação entre o sujeito e a verdade,
especialmente na literatura, e, depois, ao insinuar as sobrevivências de
fragmentos de arte erótica no “prazer da verdade do prazer”, o filósofo
francês está sugerindo que essa verdade produzida pelos rituais modernos
não é completamente iterável, e, como entende Butler (2015)
14
as
normas de reconhecimento são contestáveis.
Essa contestação ocorre no caso de Foucault justamente pelo
caráter enigmático desse inconfessável. Como argumenta o autor: “[...]
veridicção do sujeito é ao mesmo tempo o espinho, a lasca, chaga, a linha
de fuga, a brecha de todo o sistema penal [...]” (FOUCAULT, 2018, p.
199) e, se pode acrescer, de todo o foco de experiência moderna.
14
No sentido que Butler (2015) entende que as normas não são completamente infalíveis, em
algum nível, tende a sofrer resistência, desgaste, e engendrar processos de contestação e geração de
outras normas. Quando as normas tornam-se frágeis, inconsistentes, criticáveis surgem
possibilidades de uma problematização capaz de gerar outros modos de existência.
184
Estratégias e dispositivos de poder
Enunciou-se no início do capítulo que o esforço seria despendido
para analisar como os atos de reconhecimento e as práticas de inclusão
adentraram o espaço de governo. Para isso resolveu-se, desde o interior da
obra de Foucault, por meio da leitura atenta verificar os nuances que
marcam os deslocamentos do filósofo, entre 1976 e 1984, ano de
publicação do primeiro, segundo e terceiro volumes de A história da
sexualidade. O caminho que privilegiado foi o de problematizar a
liberação do corpo e o papel do dispositivo da sexualidade na formação
do sujeito. Ao retraçar a maneira como Foucault compreendeu a questão
do discurso sexual, foi possível ter uma primeira impressão sobre os atos
de reconhecimento, no entanto, a noção de inclusão parece ter sido
secundarizada. Mas a verdade é que não se pode dissociar o
reconhecimento dos mecanismos de inclusão, justamente, porque essa
última está na gênese da emergência de uma política dos corpos na
modernidade.
Para Foucault a obra (ergon) do Ocidente moldou a nossa relação
com o sexo, não tanto com o sexo-natureza, mas, com o sexo-história, o
sexo-significação. Assim, se construiu uma verdadeira lógica do sexo.
Constitui-se o campo das oposições binárias, porém, colocamo-nos,
inteiramente, no nosso corpo, alma e individualidade sob o signo do
desejo e da concupiscência.
O sexo é como uma jóia. Foucault (2007a) utiliza a fábula da jóia
indiscreta de Diderot, um pequeno e aparentemente simples anel que
tem o poder de fazer falar a verdade aqueles que o colocam;
analogamente a tal fábula, nos diz que a vontade de verdade atravessando
185
o dispositivo da sexualidade colabora para produção do corpo
normalizado. A sexualidade é nossa jóia da individualidade.
Mas como explicar então a queixa recorrente de que a relação
subjacente a poder e sexo é da ordem de uma repressão? Para Foucault o
que está em jogo consiste em uma série de premissas segundo as quais o
poder e sexo estão relacionados de maneira negativa, pela rejeição ou
exclusão, e que, também assumem a forma de uma instância da regra no
qual o poder fala e faz a regra. Isso significa falar em um poder que se
encerra no ciclo de interdição ou em uma lógica de censura. E, por fim, a
noção jurídico-discursiva supõe a unidade do dispositivo, de modo que o
poder se exerce, da mesma maneira, em todos os níveis. O poder reprime
o sexo assim como a lei constitui o limite do desejo.
Contra essa tendência, Foucault acredita que é preciso se desfazer
dessa ideia do poder enquanto instância no não e ver em seu modo de
funcionamento toda uma mecânica de produção. Uma sociedade como a
européia, uma sociedade Ocidental, no qual os aparelhos de poder são os
mais diversos e numerosos, seus rituais visíveis e seus instrumentos
seguros; interroga-se o filósofo: “[...] por que essa tendência a só
reconhe-lo sob a forma negativa e desencarnada da interdição? Por que
reduzir os dispositivos da dominação ao exclusivo procedimento da lei e
da interdição” (FOUCAULT, 2007a, p. 96).
Foucault (2007a) oferece duas respostas para estas questões que
no fundo estão ligadas a um único dilema: da relação entre poder e lei.
Primeiro, em termos gerais, isso acontece por uma questão tática, o
sucesso do poder está em proporção direta com aquilo que ele consegue
ocultar dentre os seus mecanismos. Segundo, o autor sugere uma razão
histórica para explicar esse dilema remete-nos a uma longa construção
jurídica ocorrida desde a Idade Média em meio às lutas políticas para
unificação dos Estados no qual o exercício do poder foi formulado de
186
acordo com a ideia de direito fundamental. Desse modo, apesar dos
esforços, a representação do poder permaneceu marcada pelo sistema
monárquico “[n]o pensamento e na análise política ainda não cortaram a
cabeça do rei” (FOUCAULT, 2007a, p. 99).
É necessário ultrapassar essa representação jurídica e negativa do
poder. A modernidade e a irredutibilidade de suas relações de poder
somente se explicam com a introdução de novos procedimentos de poder
que ultrapassam o funcionamento de uma lei e de um direito sendo
marcadas pela técnica e pela normalização. Nas palavras do autor:
[n]ossa linha de fuga nos afasta cada vez mais de um reino do direito
que já começava a recuar para o passado, à época em que a Revolução
Francesa e, com ela, a Idade das constituições e dos códigos, pareciam
prome-lo para um futuro próximo” (FOUCAULT, 2007a, p. 100).
Na perspectiva de Foucault (2007a) as explicações sobre poder e
o discurso sobre o sexo são atravessadas pela ideia de que o desejo é uma
lei que se interpõe à formação do sujeito. E nesse caso o problema não é a
realidade do desejo, mas, sua imagem atrelada à enunciação da lei e
correlata soberania. A imagem que é preciso liberar-se repousa sobre o
privilégio dado a noção de poder-lei e poder-soberania. Contra isso,
propõe Foucault (2007a, p. 101) que é preciso “[p]ensar, ao mesmo
tempo, o sexo sem lei e o poder sem rei”.
Por isso, em termos de método não se pode encerrar o poder
como um conjunto de instituições e aparelhos que garantem a sujeição
dos cidadãos ao Estado, mas, compreen-lo como uma “[...]
multiplicidade de correlação de forças imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e
187
afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte [...]” (2007a, p.
102). Chama-se poder o nome dado a uma “[...] situação estratégica
complexa numa determinada sociedade” (2007a, p. 103). Desse modo, o
poder não é nem uma propriedade, algo que se possa adquirir, pois, se
exerce a partir de relações desiguais e móveis; não está em posição de
exterioridade com outros tipos de relações, mas lhe são imanentes; não se
estabelece como uma oposição binária e global entre dominadores e
dominados, o poder vem de baixo, funciona graças à correlação de forças
múltiplas que formam e atuam nos aparelhos e instituições; e, não há
poder que não tenha mira e objetivos, as relações de poder são ao mesmo
tempo intencionais e não subjetivas. Com isso, Foucault apresenta sua
proposição mais importante “[...] onde há poder há resistência” (2007a,
p.105).
Para Foucault (2007a) toda relação de poder implica e supõe
resistência de modo que não estão em relação de exterioridade, mas,
correlacionam-se. Estamos no poder, e imersos nas relações de poder os
inúmeros pontos de resistência cumprem o papel de adversário, de outro
termo irredutível da relação de poder. Escreve o autor
[e]sses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder.
Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar de grande
Recusa alma da revolta, foca de todas as rebeliões, lei pura do
revolucionário. Mas sim resistências no plural, que são casos únicos:
possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias,
planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao
compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não
podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder
(FOUCAULT, 2007a, p. 106).
188
As resistências atravessam as estratificões sociais e unidades
individuais tornando possíveis as mudanças sociais e revoluções,
[...] distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de
resistência disseminam-se com mais e ou menos densidade no tempo
e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos
de maneira definitiva inflamando certos pontos do corpo, certos
momentos da vida, certos tipos de comportamentos (FOUCAULT,
2007a, p. 106-107).
Nesses termos a proposição sobre resistência nas relações de poder
permite-nos escapar ao sistema Soberano-lei, quer seja, a concepção do
poder como representação jurídica. Destarte é preciso atentar, tanto para
o tema do sujeito de desejo, isto é, da história de como foi construída essa
modalidade de organização da consciência de si que se reconhece,
unicamente, na lei do desejo, quanto para hipótese de resistência
pressuposta na analítica do poder, pois, adquiriram dimensões ainda mais
contundentes no pensamento de Foucault.
As relações históricas entre desejo e resistência ocupam lugar
importante no texto que Gilles Deleuze escreve para Foucault intitulado
Desejo e prazer. Prova disso é que em O uso dos prazeres Foucault ao
reavaliar e inserir modificações em seu projeto de A história da
sexualidade escreve que sua tarefa foi de realizar uma genealogia do
homem de desejo
15
. Por sua vez, a proposição de resistência face ao poder
15
Diferentemente de Kojeve que inscreve o desejo na estrutura antropogenética no qual o desejo
não se dirige a satisfação de uma necessidade, mas, a outro desejo, como uma ‘história dos desejos
desejados’; ou, de Lacan que o pensa análogo ao significante da falta; para Deleuze o desejo é um
criador de mundo, um afeto que precisa ser liberado das estruturas repressivas que o organizam.
Foucault, nesse sentido, não é lacaniano, ou seja, faz funcionar o desejo como casa vazia, mas
também, não expressa uma noção delimitada como afeto tal como Deleuze empresta de Espinosa.
Em Foucault o desejo é um elemento agenciável e móvel dos dispositivos compondo uma de
189
é analisada nos curso de 1978-79, especialmente, com a introdução da
noção de governo como um prisma reflexivo e da atitude crítica como
uma modalidade de relação estratégica entre governo.
Segundo Foucault (2007a) para entender como e por que o poder
precisa instituir um saber sobre o sexo é preciso ater-se a certas
prescrições de prudência a fim de não recair na ideia de um Grande
Poder. Primeiramente, a regra de imanência segundo a qual o domínio
da sexualidade não existe desinteressadamente, mas em consoncia
estrita com os investimentos de poder que a fizeram um objeto possível
de conhecimento; também, observar a regra das variações contínuas a
distribuição de poder e apropriações de saber; a regra do duplo
condicionamento das estratégias; e, por fim regra da polivalência tática
dos discursos no qual analisa como no discurso como se articula saber e
pode. Sobre isso escreve o autor:
[n]ão existe discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro
contraposto. Os discursos são elementos ou blocos táticos no campo
das correlações de força; podem existir discursos diferentes e mesmo
contraditórios dentro de uma mesma estratégia podem, ao contrário,
suas peças na montagem de nossa essência estranha de sujeição e subjetivação. O desejo não
dado natural, ou, uma pulsão básica, pois, só se chega a pensar desse modo graças a uma longa
história de elaboração, ao passo que, que dispositivos organizam um saber possível do desejo
como pulsão do corpo, como entende Rose (2001, p. 193) “[...] para o genealogista, o desejo é
apenas um dos vetores da maquinação psicológica contemporânea do ser humano, de nosso atual
‘efeito psi’.”. Desse modo, o desejo é uma peça econômica agenciada pelas tecnologias de governo
para a produção de um público, uma população, sujeitos, identidades como mostra Foucault no
curso Segurança, território e população. No projeto de história da sexualidade, Foucault opõe o
desejo ao prazer como um operador capaz de desestabilizar os jogos de força. Não se trata de
liberar o desejo, mas, de mostrar, concomitantemente, a história de como o desejo tornou-se peça
fundamental de uma hermenêutica de si amparada na ideia da carne e escrutínio da interioridade
e motor na liberação de campos de poder capaz de adentrar o espaço da problematização de uma
economia política dos prazeres como campo ativo de geração de estilos de existência.
190
circular sem mudar de forma entre estratégias opostas (FOUCAULT,
2007a, p. 112-113).
Substituir o privilégio da lei pelo objetivo, a interdição pela
eficiência tática, a soberania pelas correlações de força. Trata-se de
analisar o dispositivo por meio de um modelo estratégico, ao invés do
modelo do direito.
O que está em jogo consiste em colocar sob suspeita a noção
jurídico-repressiva, substituindo-a por uma análise estratégica das relações
de poder que induzem efeitos de dominação. Desse modo, não se trata de
opor uma sexualidade rebelde a um poder que não consegue esgotá-la,
mas, de mostrar que a articulação entre poder e sexo possui toda
densidade e instrumentalidade tática das relações de poder.
A família incestuosa
A descrição do dispositivo da sexualidade recobre quatro
conjuntos estratégicos que se inscrevem necessariamente no corpo
constituindo seu domínio. O corpo da mulher, da criança, a vida
população e o prazer homossexual são figuras atravessadas nessas
estratégias, os pontos mais densos das relões de poder. A histerização
do corpo feminino; a pedagogização do sexo da criança; a socialização das
condutas de procriação; e, a psiquiatrização do prazer perverso, ainda que
não tenham nascido em bloco, aos poucos desenvolveram coerência entre
si. Sob esse ponto de vista, escreve Foucault (2007a, p. 117):
191
[a] sexualidade é nome que se pode dar a um dispositivo histórico:
não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à
grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a
intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos
conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-
se uns aos outros segundo algumas grandes estratégias de saber e de
poder.
Esse novíssimo dispositivo de sexualidade ao mesmo tempo se
articula e recobre as antigas relações de sexo. Os chamados dispositivos de
aliança estabelecem-se em sistemas de matrimônio, de parentela, de
transmissão de bens e nomes; estruturam-se em torno de um conjunto de
regras que definem o permitido e o proibido, o lícito e o ilícito. A partir
do século XVIII esses dispositivos de aliança começaram a perder
importância ao passo que os processos ecomicos e estruturas políticas
passaram a apoiar suas estratégias no dispositivo de sexualidade que
funcionava de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de
poder. Na visão de Foucault (2007a, p 117), as relações tradicionais
baseiam-se no status entre parceiros, já para o dispositivo de sexualidade o
que importa “[...] são as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a
natureza das impressões [...]”. Ambos possuem um papel na economia,
cabendo a o primeiro a transmissão e reprodução das riquezas e o
segundo a produção de um corpo que produz e consome.
Historicamente, escreve Foucault, o dispositivo de sexualidade se
instalou junto às relações tradicionais de aliança, pois, apesar da scientia
sexualis recobrir os dispositivos de aliança, esses não são anulados. Nesse
sentido, o dispositivo de sexualidade indica a passagem à biopolítica. No
dizer desse autor:
192
[a] sexualidade estava brotando, nascendo de uma técnica de poder
que, originalmente, estivera centrada na aliança. Desde então não
parou de funcionar em atinência a um sistema de aliança e apoiando-
se nele. A célula familiar, assim como foi valorizada durante o século
XVIII, permitiu que, em suas duas dimensões principais o eixo
marido-mulher e o eixo pais-filhos se desenvolvessem os principais
elementos do dispositivo de sexualidade (o corpo feminino, a
precocidade infantil, a regulação dos nascimentos e, em menor
proporção, sem dúvida, a especificação dos perversos) (FOUCAULT,
2007a, p. 119).
Para Foucault (2007a) a família possui um papel estratégico
importante para a implantação da sexualidade, pois, longe de excluir e
refreá-la serviu como suporte permanente para as novas configurações do
dispositivo. De certo modo, a família passou a funcionar como um
elemento que solda entre a dimensão jurídica da aliança e os novos
mecanismos polimórficos de poder. Escreve o autor, a célula familiar
“[...] é o permutador da sexualidade com a aliança: transporta a lei e a
dimensão do jurídico para o dispositivo da sexualidade; e a economia do
prazer e a intensidade das sensações para o regime da aliança”
(FOUCAULT, 2007a, p. 119). Além do mais, isso explica o fato da
família tenha se tornado a partir do século XVIII “[...] o lugar obrigatório
de afetos, de sentimentos, de amor [...](FOUCAULT, 2007a, p. 120).
Família amorosa e íntima, mas também incestuosa. No curso Os
anormais Foucault (2001) retrata com mais acuidade essa questão, pois,
nessa época concomitante a elaboração do problema do instinto na
psiquiatria aparece também à questão do incesto como um espinho que
habita as relações entre pais e filhos. O surgimento da família íntima é
precedido por intensa proliferação de técnicas de disciplinas corporais,
pois havia algo de perigoso que provinha do prazer e do desejo,
193
enraizados no corpo da criança, cuja necessidade forjou uma aliança
medicina e sexualidade:
[...] postas em contato por intermédio da família: a família - apelando
para o médico, recebendo aceitando e aplicando se necessário as
medicações prescritas pelo médico [...] agente de medicalização da
sexualidade em seu próprio espaço. [...] de um lado, a vigilância
muda, o investimento não discursivo do corpo da criança pelos pais e
[...] esse discurso científico da confissão, que é localizado apenas na
prática médica [...] (FOUCAULT, 2001, p. 321).
Instituão, par excellence, da expressão obrigatória dos
sentimentos e de gestação das expectativas de reconhecimento burguês a
família converte-se em dispositivo essencial para o governo das
populações, ao mesmo tempo, que é o laboratório das neuroses
modernas.
A irrupção da infância
Em A vontade de saber, Foucault (2007a) condensa parte de suas
pesquisas que realizou no Collègè em um grande projeto. Sob esse ponto
de vista, o curso Os anormais ocupa posição de destaque, justamente,
porque, permite-nos antecipar certas investigações do projeto audacioso
d’A história da sexualidade, previsto em seis volumes e que não se
concretizou em parte por causa da morte prematura do filósofo. Por
exemplo, podem-se observar as transformações em torno do problema da
carne cristã que constitui um elemento crucial no desenvolvimento das
técnicas de conduta. Além desses, existe um fenômeno em particular
194
muito importante para os propósitos desta pesquisa: a irrupção da
infância.
A emergência da infância ajuda-nos a situar com mais clareza seu
lugar nos dispositivos de condução subjetiva, que, por sua vez, é
imprescindível para entender as políticas de inclusão e reconhecimento
de uma educação moderna. Em A vontade de saber a condução dos
infantes recebe um tratamento cujo horizonte repousa sobre a
constituição das artes de governo, porém, o filósofo não desenvolve as
implicações desse diagnóstico. Foucault (2007a) limita-se a dizer que o
dispositivo da sexualidade o sexo como assunto de Estado que escapa
a condução eclesiástica nasceu às bordas da pedagogia, da medicina e do
direito. Desenvolveu-se graças a três arranjos “[...] o da pedagogia, tendo
como objetivo a sexualidade específica da criança; o da medicina, com a
fisiologia sexual própria das mulheres como objetivo; e, enfim, o da
demografia, com o objetivo da regulação espontânea ou planejada dos
nascimentos” (FOUCAULT, 2007a, p. 127-128).
Entender como a infância se tornou objeto de governo da
pedagogia, ou, da prática psiquiátrica requer uma breve digressão no
curso Os anormais. O curso de 1975 dedica-se a genealogia do anormal,
graças ao aparecimento de três antecedentes: o monstro judiciário, o
pequeno masturbador, ou, a criança onanista e o sujeito indisciplinado e
incorrigível ao sistema escolar. Foucault (2001) aborda essas figuras
enquanto entidades históricas casos exemplares, inquéritos, temores
populares, acontecimentos que desafiaram o saber médico da época que
engendraram no espaço das práticas divisoras os mecanismos e técnicas
de normalização das condutas, do patológico ao normal.
195
Foucault (2001) mostra-se atento a literatura
16
que insere a
invenção da infância como uma peça fundamental das tecnologias
políticas de individualização do sujeito moderno. Embora a infância
despertasse grande curiosidade no filósofo francês, desde as suas obras de
juventude, foi com as análises do poder psiquiátrico e com a genealogia
da anormalidade que essa adquiriu contornos cada vez mais específicos de
modo a ser vista como “[...] uma das condições históricas da
generalização do saber e do poder psiquiátricos” (FOUCAULT, 2001, p.
387).
Aplicando a lógica de retrogação ao projeto de A história da
sexualidade: a honra do rapaz, a pureza da mulher e a liberação do corpo
constituem os trêscleos de problematização no pensamento de
Foucault. A liberação da infância acompanha o desbloqueio tecnológico
de relações de poder e a crescente intervenção da medicina no espaço
social na passagem da Idade Clássica à episteme moderna. Em Os
anormais,o filósofo relata que a condução eclesiástica transferiu os casos
de possessão que estavam causando transtornos à Igreja com as
convulsões incontroláveis para medicina psiquiátrica. Fim do
exorcismo e passagem da carne que até então se constituía como lócus de
investigação, inquirição e escrutínio da teologia do pecado para uma nova
realidade baseada na mecânica instintual e na doença mental. Contexto
de mudança no regime de problematização, passando da carne para o
corpo biológico, da confissão pastoral à anamnese médico-psiquiátrica,
16
No campo de estudos da infância não se pode deixar de lado a História social da criança e da
família de Philippe Ariès (1986), e A polícia das famílias, de Jacques Donzelot (1980). O primeiro
por tratar da mudança de mentalidade que ocorreu do século XVII que levou à descoberta do
sentimento de infância; e, o segundo, por trabalhar toda a malha de relações institucionais desde a
criação das leis, dos tribunais de menores, as associações filantrópicas, lar de crianças órfãs e
desabrigadas, até os serviços de assistência social para famílias de operários.
196
enfim, momento no qual as diversas tecnologias investem-se no corpo
vivo
17
.
Em O saber gay (Le gay savoir), julho de 1978, Foucault é
entrevistado por Jean Le Bitoux. A conversa gira em torno da recepção
do livro A vontade de saber. Entre os assuntos abordados encontram-se as
relações entre desejo e prazer e a interdição da masturbação. Poucos
meses antes, no mesmo ano dessa entrevista, nas classes de Segurança,
território e população, Foucault (2008c) tratava do retorno do estoicismo
no século XVI e de suas relações íntimas com a problematização da
conduta, do conduzir os outros e de conduzir-se a si mesmo. Movimento
tão importante para se entender o florescimento das artes de governar nos
séculos posteriores, e que determinou os desenvolvimentos da pedagogia
como a arte de governar a infância. Em certo momento da entrevista
Foucault responde:
[o] que se vê aparecer no século XVI, com toda a grande reforma da
pedagogia e o que se poderia chamar [...] a colonização da infância,
17
A carne passa a ser vista como prazer do corpo. Ocorreu, assim, identificação do corpo com a
carne. Saber que encontrou no corpo o ponto de junção com a alma. Com isso, desejo e prazer
passaram a ser habitantes no espaço do corpo e na raiz da consciência. Nas palavras de Foucault:
“[...] essa fisiologia moral da carne, ou do corpo encarnado, da carne incorporada, veio se somar
aos problemas da disciplina do corpo útil no fim do século XVIII; como se constitui o que
poderíamos chamar de uma pedagógica da masturbação levou esse problema do desejo de volta ao
problema do instinto, esse problema do instinto é precisamente a peça central da organização da
anomalia. Portanto é a masturbação assim recortada na revelação penitencial no século XVII, essa
masturbação que se torna problema pedagógico e médico, que vai trazer a sexualidade para o
campo da anomalia” (FOUCAULT, 2001, p. 245). Na visão de Foucault (2001, p. 270) “[o] que
a feitiçaria foi no tribunal da Inquisição, a possessão foi no confessionário.”. O corpo convulsivo
do possesso opunha-se a direção obediente mediante uma revolta involuntária. Esse problema
atenuou-se com adoção de novos procedimentos mais discretos estilisticamente trabalhados para
dizer as coisas sem nunca nomear bem como, com a questão da carne sendo transferida para o
organismo, ou, na medida em que a convulsão tornou-se objeto médico. Por este motivo a
medicina herda da condução cristã o problema da carne, e, por conseguinte, da sexualidade. O
ponto de contato a ser inquirido é a carne viva do indivíduo, seu corpo e seus prazeres.
197
ou melhor, o recorte da infância como categoria cronológica especial
na vida dos indivíduos, a partir desse momento se vê aparecer nos
manuais de confissão, nos tratados de direção da consciência etc., o
seguinte problema essencial: “Teu desejo não incide, antes de tudo e
essencialmente, sobre ti mesmo?” E é muito curioso ver como, nos
manuais de confissão, a questão fundamental não é mais “tu enganas
tua esposa?”ou “tu cobiças uma mulher que não é a tua?”. O que a
primeira pergunta almeja saber é: “Acontece que te toques a ti
mesmo?”. De tal forma que a relação de si a si é o primordial
(FOUCAULT, 2015, p. 9-10, aspas preservadas).
Essa relação de si a si que Foucault ressalta no retorno do tema da
condução encontra-se no cerne do problema. A infância para Foucault
(2001) não se refere somente às etapas iniciais da vida de um indivíduo,
mas ao desbloqueio de relações de saber e poder que conformam a noção
científica que se tem sobre desenvolvimento normal do indivíduo. Por
isso, a infância não pertence como objeto privilegiado ao domínio da
pedagogia mais do que a psiquiatria e ao saber médico. De fato, para
obtenção de efeitos de normalização ambos funcionam como dispositivos
de apoio mútuo. Com a problematização da infância e da infantilidade,
integram-se três elementos até então separados: o prazer e sua economia;
o instinto e sua mecânica; a imbecilidade ou, o retardo, com sua inércia e
suas carências. Desse modo:
[a] infância como fase histórica do desenvolvimento, como forma
geral de comportamento, se torna o instrumento maior da
psiquiatria. E [...] é pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar
do adulto, e da totalidade do adulto. A infância foi o princípio de
generalização da psiquiatria; a infância foi, na psiquiatria como em
outros domínios, a armadilha de pegar adultos (FOUCAULT, 2001,
p. 386-387).
198
De acordo com Pagni (2014):
[d]iferentemente da psiquiatria, que se ocupa mais da infantilidade do
que da infância, a arte de governo pedagógica, desenvolvida na
instituição escolar, a partir do século XVIII, passou a se ocupar
especificamente de uma idade particular, distinta da do adulto, em
que tanto as forças que emanam do corpo quanto aquilo que as
anima se encontram desregulados pelo que dela se pode imaginar
socialmente, representar conscientemente e prescrever moralmente.
[...] como demonstrado [...] em sua gênese essa diferenciação, que
começou a aparecer no século XVI, entre filósofos, moralistas e
educadores e que se denominou sentimento de infância, graças a esse
processo de normatização exercido na arte pedagógica pela escola,
alcançado em seu desenvolvimento no século XVIII e XIX, concorreu
para que fossem concebidas como um conjunto de práticas e
instituições responsáveis pela subjugação das crianças às normas do
mundo adulto, abandonando o pressuposto do cuidado dispensado
em relação à infância para assunção da necessidade de seu governo ou
de sua governança. Dessa forma, a arte pedagógica emerge [...] com a
finalidade de transformar a resistência que se lhes oferecem em um
governo de si [...] próprio do adulto e do cidadão, que obedece ao
instituído e [...] o reforma (PAGNI, 2014, p. 186).
Para Foucault (2001) foi em razão da interdição histórica da
masturbação que a infância tornou-se governável. Foi graças a essa
interdição que tornou possível a criação da arte pedagógica como a
maneira de conduzir a conduta humana da qual escreve Pagni (2014).
Com efeito, a intensificação dos efeitos de poder diretamente sobre o
corpo permitiu a proliferação de técnicas de governo e a produção de
conhecimentos como os da psiquiatria e da pedagogia. Deve-se
compreender o sentido da interdição com clareza, não se trata de
recuperar hipótese da sexualidade reprimida, o que ocorre é o
199
investimento em relação de saber e poder com o objetivo de aumentar a
saúde do corpo, sua força e vigor. Por isso, a masturbação instaura,
simultaneamente, uma relação de constrangimento quanto à sexualidade,
com o prazer do corpo, e constitui um ponto de acesso privilegiado para
se interrogar o sujeito sobre seu desejo. Com a masturbação tem-se a
sexualidade revelável de um corpo solitário e desejante. Diz Foucault:
[...] da carne incorporada, veio se somar aos problemas da disciplina
do corpo útil no fim do século XVIII; como se constitui o que
poderíamos chamar de uma pedagógica da masturbação levou esse
problema do desejo de volta ao problema do instinto, esse problema
do instinto é precisamente a peça central da organização da anomalia.
Portanto é a masturbação assim recortada na revelação penitencial no
século XVII, essa masturbação que se torna problema pedagógico e
médico, que vai trazer a sexualidade para o campo da anomalia
(FOUCAULT, 2001, p. 245).
Foucault (2001) conta-nos que nos séculos XVII e XIX houve
grandes cruzadas contra a masturbação, vista pelas autoridades como uma
epidemia. Essa campanha envolveu médicos, pedagogos e moralistas na
admoestação acerca dos perigos contidos no ato auto-erótico que podiam
variar desde degenerescência do organismo, a preguiça, a inabilidade
chegando até a imbecilidade e a morte do indivíduo. Para mitigar a
situação ocorreu a intensificação da vigilância sobre os indivíduos, tanto
por mecanismos de exames médicos contínuos via intervenção
psiquiátrica, quanto, pelo aumento da presença física no seio da família.
Procedimentos que implicam “[...] interpenetração entre a descoberta do
auto-erotismo e a responsabilização patológica: uma autopatologização
[...]” (FOUCAULT, 2001, p. 307). Momento em que a individualização
se encerra na família celular, espaço afetivo denso, uma família-canguru
200
que reflete preocupação dos pais com o destino dos filhos em função dos
perigos que emanam dos seus corpos e desejos. Nasce assim, uma nova
física do espaço familiar, baseada na eliminação dos intermediários,
vigilância estreita dos empregados domésticos com o objetivo de tornar o
espaço familiar sexualmente asséptico. Neste registro:
[q]uando se reivindica, no fim do século XVIII, a instituição de uma
educação natural, trata-se ao mesmo tempo desse contato imediato de
pais e filhos, dessa substantivação da pequena família em torno do
corpo da criança e, ao mesmo tempo, da racionalização ou da
penetrabilidade da relação pais-filhos por uma racionalidade e uma
disciplina pedagógica ou médica (FOUCAULT, 2001, p. 324).
A individualização do poder que se instalou com o governo da
infância pode ser sentido ante as diferenças entre uma educação
apropriada à nobreza e uma educação de inspiração burguesa. Montaigne
no famoso ensaio Da educação das crianças oferece testemunho da
formação do seu tempo, cheia de gramática e retórica, mas vazia em ações
e de relação com a vida
18
. Uma educação útil para a contemplação, mas,
desajustada às necessidades da política. Para Montaigne seria mais
18
“[p]ossuímos os regulamentos dos colégios por volta de 1580, época em que Montaigne escreve:
verifica-se que a duração dos estudos era de quinze a dezesseis anos em teoria, de oito ou nove na
prática: o dia de trabalho variava de oito a treze horas; acrescentem-se as arengas durante as
refeições, os ofícios religiosos e os exames de consciência. Pouca recreação e férias curtas. Quanto
à substância do ensino, atinham-se ao trívio da Idade Média; gramática, retórica e dialética,
divisão que, com outros nomes, se perpetuou até os nossos dias. Nas classes de gramática, o
rudimento aprendia-se de cor e os alunos não faziam senão recitar; as classes de retórica e dialética
comportavam exercícios menos fastidiosos, como essas disputationes, que tinham aspecto de
competições esportivas. [...] Naturalmente, todo o ensino era em latim, sendo o fim visado a
compreensão e o emprego corrente dessa língua. [...] Dir-se-ia que se tratava antes de tudo de
aprender a discorrer e argumentar, não se preparava para a vida, não se pensava em formar
homens” (WEILER, 1987, p.59)
201
proveitoso se ao invés de encerrar a criança em uma cela de leitura,
apresentasse-a ao mundo, a novas línguas, ensinasse-o filosofia, bem
como, a suportar o frio e a fome. A descrição de Montaigne caso
pronunciada hoje certamente deixaria nossos contemporâneos com olhar
de desprezo, especialmente, porque sacrifica o afeto familiar tão
valorizado por nossa pedagogia e pela sociedade moderna. Rousseau com
seu Emílio, também não aprovaria formar a criança entre homens da
corte e viajantes para não corromper sua inclinação original. Na visão do
genebrino a criança deveria ser criada no campo, ao abrigo das
intempéries da natureza, mas, sobretudo, longe da influência corruptora
dos homens. O mais apropriado para Emílio é a descoberta das leis da
natureza, do ciclo das estações, do valor do cultivo da terra, e, acima
disso, da sinceridade do coração e a lealdade consigo mesmo. Sem
reservas, pode-se dizer que a pedagogia de Kant é herdeira dessa educação
natural de Rousseau ao passo que valoriza também o desenvolvimento
das capacidades físicas do indivíduo.
Como demonstrado por Aquino (2013) existem diversos estudos
que tratam dessas questões relativas ao caso brasileiro. Certamente, entre
os pioneiros é necessário destacar Danação da norma coordenado por
Roberto Machado que trata da penetração da medicina social e da
psiquiatria no Brasil com ênfase nas técnicas disciplinares e no governo
da população. Nesse contexto, as escolas possuem grande importância
estratégica para implantação do dispositivo de sexualidade. Tratando do
olhar médico de Manoel Antonio de Almeida ao problema educacional
em meados século XIX, escrevem os autores:
[a]tenção do médico-escritor ao local e ao funcionamento da escola,
ao nível material e ao nível da relação entre mestre e alunos. [...]
nelas, as crianças não encontram as condições que permitiam seu
202
sadio desenvolvimento. Reunidas geralmente em grande número, são
jogadas por um diretor ignorante da higiene em uma mesma casa
pouco asseada, situada em ruas acanhadas e tortuosas, no centro da
cidade, muitas vezes próxima a hospitais cujas emanações mórbidas
infectam o ar [...] Crítica que aponta para uma nova exigência: o
controle positivo da vida da criança [...] A criança é objeto
privilegiado da medicina, tematizada como fase específica e como fase
primeira de uma existência. [...] Um dos veículos desta transformação
é a escola. Para que se cumpre seu objetivo, ela deve estar longe da
cidade e organizada de acordo com as determinações médicas,
condição para que haja uma investida total sobre a vida infantil. [...]
(MACHADO ET AL., 1978, p. 297-298).
Organização do espaço e enfrentamento dos problemas:
[r]egime que deve enfrentar duas desordens: a desobediência e a
masturbação. Momentos de quebra da grande monotonia escolar. À
desobediência, reponde-se com castigo [...] que [...] significa
basicamente tornar público o ato desobediente para causar no infrator
o necessário constrangimento disciplinador. [...] A masturbação [...] é
vista com medo. Perigo que estende como as epidemias [...] provoca a
sica, a loucura, a epilepsia, a hipocondria, a flegmasia crônica de
todos os órgãos e finalmente a morte. [...] A mais indicada das
medidas médicas para prevenir o onanismo é a ginástica [...] Trata-se,
portanto, de uma nova escola. Que faz de cada minuto da vida do
estudante objeto de conhecimento, intervenção e controle [...]
(MACHADO ET AL., 1978, p. 303-305).
No cerne deste percurso que se estende desde o renascimento à
idade moderna é preciso introduzir o governo da infância com todas as
implicações que Foucault analisa. As multiplicações dos poderes sobre o
corpo infantil, a interdição da masturbação, a aplicação do exame e das
203
técnicas análogas à confissão, acompanham, necessariamente, a
multiplicação das forças, a maximização da saúde e da vida do corpo. Diz
o filósofo de Poitiers:
[...] é necessário admitir toda uma série de elementos que são
circularmente ligados, em que encontramos a valorização do corpo da
criança, a valorização econômica e afetiva da sua vida, a instauração
de um medo em torno desse corpo e de um medo em torno da
sexualidade enquanto detentora dos perigos corridos pela criança e
pelo corpo da criança; culpabilização e responsabilização simultâneas
dos pais e dos filhos em torno desse corpo mesmo, arranjo de uma
proximidade obrigatória, estatutária, dos pais e dos filhos; logo
organização de um espaço familiar restrito e denso; infiltração da
sexualidade através de todo esse espaço e investimento desse espaço
por controles ou, em todo caso, por uma racionalidade médica
(FOUCAULT, 2001, p. 337).
Não se trata de repressão, Foucault rejeita argumentos como os
utilizados por Ussel (1980). Seguindo as ideias primeiramente
desenvolvidas por Marcuse de uma sexualidade reprimida e transformada
de “órgão de prazer” em “instrumento de desempenho”, o livro Repressão
sexual, de Jos Van Ussel não pode explicar satisfatoriamente a cruzada
contra a masturbação infantil.
Para Foucault (2001, p. 300) se o foco da campanha fosse à
transformação do corpo em prol do desempenho, de uma sociedade do
trabalho, os mecanismos deveriam se investir primariamente sobre a
sexualidade adulta e operária. Ao contrário, o que se observou foi que a
cruzada contra a masturbação elegeu como alvo as crianças e adolescentes
de meios burgueses. Escreve:
204
[...] as técnicas mais rigorosas foram formadas e, sobretudo, aplicadas
em primeiro lugar com mais intensidade nas classes economicamente
privilegiadas e politicamente dirigentes. A direção espiritual, o exame
de si mesmo, toda longa elaboração dos pecados da carne, a detecção
escrupulosa da concupiscência - todos processos sutis que
praticamente não podiam ser acessíveis senão a grupos restritos. [...]
não era o filho, do povo, o futuro operário a quem se deveria ensinar
as disciplinas do corpo; era o colegial, a criança cercada de serviçais,
de preceptores e de governantas [...] que tinha o dever moral e a
obrigação de conservar para sua família e classe, uma descendência
sadia (FOUCAULT, 2007a, p. 131-132).
Portanto, posto em questão está o desenvolvimento inédito de
tecnologias políticas de individualização perpetrada a princípio nos meios
burgueses colégios e famílias e gradativamente foi penetrando na
malha social e nas classes subalternas. No início do século XIX,
paralelamente a cruzada antimasturbação que se dirigiu a família
burguesa tem-se a campanha de normalização da família proletária. A
pauta nas classes operárias era diversa, tratava-se de campanhas contra o
abandono dos filhos e contra a união livre. O risco não viria do desejo
dos filhos pelos pais, mas do incesto irmão-irmã, bem como, do perigo
do incesto pai-filha. Nas classes subalternas o perigo vem do desejo
adulto. Foucault (2007a) mostra que existe uma simultaneidade no
aparecimento da psicanálise - técnica de gestão do incesto infantil e de
todos seus efeitos perturbadores no espaço familiar e das instituões de
policiamento das famílias populares que tinham por função proteger as
crianças do desejo incestuoso do pai e da mãe. Enquanto que as classes
privilegiadas recorrem à psicanálise para resolver as interferências infelizes
entre a sexualidade e a aliança, as camadas inferiores lidam com a polícia
e os tribunais.
205
Com isso, torna-se evidente a articulação estratégica entre
sexualidade e a política, dado que, uma das primeiras maneiras
reconhecíveis de consciência de classe é a afirmação do próprio corpo. Se
as aristocracias nobiliárquicas do Ancien Régime afirmavam seu corpo
através da antiguidade das ascendências e do valor das alianças, associadas
a valores de honra, nobreza e no valor simbólico do sangue; as classes
burguesas valorizam sua descendência e da saúde do seu organismo
convertendo o sangue azul dos nobres na constituição de uma
sexualidade sadia. Já, nas classes operárias e camponesas, como se pode
observar no exemplo da polícia das famílias, esse dispositivo da
sexualidade implantou-se lentamente com as artes de governar
populações políticas habitacionais e campanhas de higiene pública e
por instituições como as escolas e as prisões.
Entre a vida e poder
Em vista disto, chega-se ao tópico mais comentado da analítica
dos poderes de Foucault. Trata-se da relação instaurada entre a vida e o
poder, problematizada a partir de chaves conceituais como os de
“biopolítica das populações”, de “bio-história” ocidental e de hipótese do
“biopoder”. Um arranjo tecnológico de disposições heterogêneas que
operaram uma modificação radical, ou, imanentização dos modos de
existência modernos. De Agamben (2016) a Sloterdijk (2013) não se
passou em branco por essa formidável conceituação foucaultiana, ora por
sua importância, ou, pelo dilema ético-político que nos enreda ao passo,
que define nossa condição no limiar da modernidade biológica. Por isso,
seja na condução de um governo da infância, ou, no ordenamento do
dispositivo da sexualidade, e mesmo, na sobredeterminação da
206
hermenêutica do desejo a qual nos submetemos. Ou, da inclusão como
política dos corpos e do reconhecimento como gramática que traduz as
novas lutas em torno da vida. Um palco de acontecimentos que coloca
em jogo as vidas humanas como campo de ação do poder:
[f]oi a vida, muito mais do que o direito, que se tornou o objeto das
lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de
afirmações de direito. O direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade,
à satisfação das necessidades, o direito, acima de todas as opressões ou
alienações, de encontrar o que se é e tudo o que pode ser, esse direito
tão incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica
política a todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez,
também não fazem parte do direito tradicional da soberania
(FOUCAULT, 2007a, p. 158).
Todo o movimento deste capítulo deve ser estrategicamente
compreendido como parte dessa operação fundamental que faz com que:
“[...] a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos
explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida
humana [...]” (2007a, p. 156). É precisamente nesse registro que se
tornou notória a distinção formulada por Foucault segundo o qual, ao
mesmo tempo em que se têm os desbloqueios da anátomo-política do
corpo humano que visam disciplinar, docilizar e aperfeiçoar o corpo no
nível da existência individual; ocorre também o desenvolvimento de
outra tecnologia de poder que captura as populações ao nível do corpo-
espécie com o objetivo de governar seus processos de vida e morte. É a
passagem para o mundo moderno, na qual, descreve o filósofo:
[a] velha potência de morte em que se simbolizava o poder soberano é
agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e
207
pela gestão calculista da vida. [...] Do lado da disciplina as instituições
como o Exército e a escola [...] Do lado das regulações da população a
demografia, a estimativa da relação entre recursos e habitantes [...]
limiar de modernidade biológica [...] a espécie entra como algo em
jogo em suas próprias estratégias políticas. O homem, durante
milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo, e,
além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um
animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão
(FOUCAULT, 2007a, p. 152-156).
No curso de 1978, Foucault mostra que a ascendência do
biopoder tem suas raízes longínquas no poder pastoral expresso na
fórmula Omnes et Singulatim. Conduz sobre todos e sobre cada um em
particular. Com a secularização do pastorado cristão o Estado moderno
legou ao menos dois movimentos distintos de governo: a totalização e a
individualização. No curso Em defesa da sociedade, Foucault (1999, p.
285-315) argumenta que a biopolítica das populações implica no
paroxismo. Ao mesmo tempo em que promove o crescimento das forças
da vida e da vitalidade de determinadas populações, funciona como
estratégia de racialização, enquadramento e brutalização de certos setores
da população considerados como indesejáveis ou perigosos. Em uma
sociedade da normalização “[...] o racismo é indispensável como condição
para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros”
(FOUCAULT, 1999, p. 306). Isso pode ser observado no modo como o
dispositivo de sexualidade foi, estrategicamente, penetrando desde as
camadas mais abastadas de ascendência burguesa até as classes subalternas
de operários urbanos. E no modo como os dispositivos de polícia
recobrem a ilegalidade dos marginalizados. Além disso, o paradoxo
biopolítico estende-se para além do uso repressivo das instituições
policiais e judiciárias. A era do biopoder estabelece uma cesura mais
fundamental no tocante à vida e suas relações com as potências a-
208
orgânicas como as que são postas em jogo pela sociedade do controle
(LAZZARATO, 1999). Com Foucault adentramos o coração do nosso
tempo onde sob o imperativo de proteger a vida, assistiu-se às guerras
mais brutais da história. É a era da divisão do átomo, da sequenciação do
DNA, do genoma, mas, também séculos de multiplicação dos massacres,
das guerras coloniais, do racismo e das catástrofes ecológicas.
[o] princípio: poder matar para poder viver, que sustentava a tática
dos combates, tornou-se princípio de estratégia entre Estados; mas a
existência em questão já não é aquela - jurídica - da soberania, é outra
- biológica- de uma população. Se o genocídio é, de fato, o sonho dos
poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito
de matar; mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida, da
espécie, da raça e dos fenômenos maciços da população
(FOUCAULT, 2007a, p. 149-150).
No artigo “O conceito de biopoder hoje”, Rabinow e Rose
(2006) advertem-nos quanto à existência de diversos usos possíveis da
hipótese do biopoder. Alguns são mais próximos da utilização que
Foucault fazia, outros, acabaram incorporando matizes distintos,
ressignificando seus usos como nos projetos de Agamben e Negri.
Embora nos sejam úteis as preocupações de Rabinow e Rose (2006)
quanto à má utilização do conceito, tal fato, não deve ser transformado
em uma chantagem que imobilize a imaginação nossa política e ética.
Intérpretes contemporâneos do pensamento de Foucault, como Roberto
Esposito (2010) e Achille Mbembe (2016) desenvolveram suas
investigações com a finalidade de nos mostrar como a política de vida da
modernidade tem-se revelado uma tanatopolítica. Esposito (2010)
analisando como a tendência moderna de imunização consiste em uma
proteção negativa da vida; e, Mbembe (2016), mostrando como as
209
estratégias de poder na colônia consolidaram uma verdadeira
necropolítica que expõe as populações à morte. Isso nos leva a repensar as
estratégias de reativação do poder soberano de vida e morte sobre as
populações. Ou, para usar os termos de Butler (2017a) os diferentes
enquadramentos que qualificam certas vidas vivíveis e passíveis de luto,
das vidas precárias e descartáveis.
Na obra Bios, Esposito (2010) oferece-nos um diagnóstico do
tempo presente a partir dos desdobramentos da biopolítica de Foucault.
Em Foucault o biopoder bifurca-se em duas direções divergentes, ou,
produz subjetividade ou produz morte. No âmago da crítica de Esposito
(2010) está aquilo que ele vê como uma indecisão de Foucault reativar
novamente a política sobre a vida. O filósofo francês teria sido oscilante
sobre esse tema, pois, ao mesmo tempo em que mostra que o poder de
soberania pertencia ao antigo regime, mostra que em certos momentos o
discurso do soberano é reativado de modo a gerar uma grande
mobilização bélica contra os indivíduos e populações indesejadas. Com
freqüência a política de vida ameaça transformar-se numa obra de morte.
Afinal, “[...] se a vida é mais forte do que o poder que no entanto a
assedia, se sua resistência não se deixa vergar pelas pressões dele, como é
que o resultado a que a modernidade chegou é a produção em massa da
morte?” (ESPOSITO, 2010, p. 63-64).
Apesar do poder soberano ser a marca do antigo regime, o nosso
tempo não cessa de reativá-lo com o objetivo de travar guerras contra as
populações. Nisso reside uma das razões porque somos incapazes de
explicar o terrorismo contemporâneo. Desse ponto de vista Esposito
(2010) lança-se em uma interpretação, segundo a qual a especificidade do
poder moderno repousa sobre o seu caráter imunitário de proteção
negativa da vida. Diferentemente da política agrária epcia, ou, a política
higiene sanitária de Roma que mobilizaram grandes agrupamentos
210
humanos, a biopolítica moderna revela a sua peculiaridade ao passo que
implica na negação da communitas. Onde reina a indecisão de Foucault,
Esposito (2010) introduz a dialética da imunização. Escreve:
[...] no paradigma imunitário, bios e nomos, vida e política, resultam
ser dois componentes de um único, incindível, conjunto que só
adquire sentido a partir da relação entre elas. A imunização não é
apenas a relação que liga a vida ao poder, mas o poder de conservação
da vida [...] (ESPOSITO, 2010, p. 74, itálicos do autor).
Para Esposito (2010) o paradigma imunitário funciona como
uma charneira que permite articular o pólo positivo e produtivo e o pólo
negativo e destrutivo da biopolítica, entre o próprio e o comum.
[...] a immnunitas revela-se como a forma negativa, ou privativa da
communitas: se a communitas é aquela relação que, vinculando os seus
membros a objectivo de doação recíproca, põe em perigo a identidade
individual, a immunitas é a condição de dispensar as obrigações e por
conseguinte de defesa antes seus esforços expropriatórios
(ESPOSITO, 2010, p. 80, itálicos do autor).
Desse modo, ser imune é não ser ou não ter nada em comum.
Para Esposito (2010) a immunitas protege aquele que dela é portador do
contato com aqueles que estão privados dela e que pode lhe ser um risco.
A imunização vigia as fronteiras do “próprio”, colocadas em perigo pelo
comum. E o corolário, ou, o invólucro das políticas de imunização pode
ser visto nas relações crescentes entre o individualismo e os direitos de
propriedade. Tais construtos mostram sua face mais perversa diante de
excrescências históricas como no nazismo, nacionalismo e colonialismo
211
onde são mobilizados enquanto recursos imunitários. Neste mesmo
sentido, Mbembe (2016) mostrou como o funcionamento da biopolítica
nas colônias segue a lógica organizacional de imensos campos de
extermínio de populações consideradas como subumanas. De acordo
com esse autor:
[u]m traço persiste evidente: no pensamento filosófico moderno e
também na prática e no imaginário político europeu, a colônia
representa o lugar em que a soberania consiste fundamentalmente no
exercício de um poder à margem da lei (ab legibus solutus) e no qual
tipicamente a paz assume a face de uma guerra sem fim (MBEMBE,
2016, p. 132).
Tanto para Esposito (2010) quanto para Mbembe (2016) as
relações entre a vida e o poder oscilam entre o sujeito e a morte.
Constituir-se como sujeito, gozar dos prazeres do consumo, ter um corpo
saudável, acesso à justiça e a educação necessária depende da produção
biopolítica dos corpos. Em suma, desfrutar de todas as imunidades
biopolíticas e ser reconhecido como uma pessoa humana está
condicionada a uma distribuição diferencial que separa as vidas desejáveis
que podem ser vividas, daquelas que estão expostas à morte.
No pensamento de Foucault os modos de reconhecimento são
articulados com as técnicas de confissão. Tal dispositivo enquanto
subjetivação ligada a uma forma de poder não tem outra finalidade que a
produção da imunidade. Desse ponto de vista, quando se dispõe de
políticas de inclusão, ou, de demanda por direitos humanos, tem por
finalidade o governo dos “[...] indivíduos que não se definem por outra
coisa que não seja a sua simples categoria de seres vivos.” (ESPOSITO,
212
2010, 29-30). Isso ocorre porque as políticas de imunização operam
como verdadeiros dispositivos de produção de pessoas.
Em A vontade de saber, Foucault (2007a, p. 130) salienta que a
psicanálise foi “[...] até os anos de 1940, a única que se opôs,
rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão-
hereditariedade-degenerescência.” A psicanálise retomou o esquema do
instinto, porém, o liberou da armadilha de suas correlações com a
hereditariedade e com todos os racismos e eugenismos. Como tecnologia
do sexo, a disciplina psicanalítica introduz a relação entre desejo e a lei
como elemento constitutivo para explicar as dinâmicas de constituição do
aparelho psíquico. Para Foucault (2007a) a psicanálise ameniza os
sintomas daqueles que conseguem ter acesso a ela em virtude de um
trabalho realizado à lógica de uma hermenêutica do desejo.
Mas, o que significa ser sujeito de desejo? Por que o desejo é a
peça mais fundamental da hermenêutica de si? E como o desejo foi
capturado nessa estrutura discursiva? Como foi que o desejo de
reconhecimento adentrou nas estratégias de sujeição biopolítica?
213
Capítulo 4
Cuidado com o Homem Interior
[...] nossa época, quer pela lógica ou pela epistemologia, quer por Marx
ou por Nietzsche, procura escapar a Hegel: e aquilo que há pouco
procurei dizer a propósito do discurso é muito infiel ao logos hegeliano.
[...] Mas para que se escape realmente a Hegel é necessário que se aprecie
exactamente o que nos custa esse afastamento; é necessário que se saiba
até onde, insidiosamente talvez, ele se aproximou de nós; é necessário que
se saiba o que há ainda de hegeliano naquilo que nos permite pensar
contra Hegel ; e é necessário que se avalie em que medida é que a nossa
acção contra Hegel não será talvez ainda uma armadilha que o próprio
Hegel nos coloca e no termo da qual ele nos espera, imóvel, noutro lugar.
(FOUCAULT, 1996, p. 68)
Esta é uma questão propriamente espiritual, e acho que o tema da
reforma do entendimento no século XVII é inteiramente característico
dos laços ainda muito estritos, muito estreitos, muito cerrados, entre,
digamos, uma filosofia do conhecimento e uma espiritualidade da
transformação do ser do sujeito por ele próprio. Se tomarmos agora a
questão, não na direção ascendente mas na descendente, se passarmos
para o outro lado, a partir de Kant, creio que também aí veremos que as
estruturas da espiritualidade não desapareceram, nem da reflexão
filosófica nem mesmo talvez do saber. Haveria [...] mas quanto a isto não
quero agora sequer fazer um esboço, apenas algumas indicações.
Retomemos toda a filosofia do século XIX - enfim, quase toda: Hegel
certamente, Schelling, Shopenhauer, Nietzsche, o Husserl da Krisis,
também Heidegger - e veremos precisamente que, seja desqualificado,
desvalorizado, considerado criticamente, seja, ao contrário, exaltado
como em Hegel, de todo modo porém, o conhecimento, o ato de
214
conhecimento permanece ainda ligado às exigências da espiritualidade.
Em todas estas filosofias, há uma certa estrutura de espiritualidade que
tenta vincular o conhecimento, o ato de conhecimento, as condições
deste ato de conhecimento e seus efeitos, a uma transformação no ser
mesmo do sujeito. Afinal, não é outro o sentido da Fenomenologia do
espírito. E podemos considerar, creio eu, toda a história da filosofia do
século XIX como uma espécie de pressão pela qual se tentou repensar as
estruturas da espiritualidade no interior de uma filosofia que, desde o
cartesianismo, ou em todo caso, desde a filosofia do século XVII, se
buscava desprender destas mesmas estruturas. (FOUCAULT, 2006b, p.
38).
Até esse momento as análises se concentraram em reconduzir a
emergência dos dispositivos de reconhecimento e inclusão observando
sua participação na relação inédita que se estabeleceu na modernidade
entre a vida e o poder. A opção por essa leitura se deve a busca de uma
alternativa capaz de descrever sem supor uma representação normativa e
antropológica de sujeito constituinte, ou, uma ideia de desejo de
reconhecimento como experiência originária, mas, processos práticos que
repousam sobre a contingência histórica e imanência das relações de
poder. Para isso examinou-se a partir da genealogia das técnicas
biopolíticas que uma nova relação entre a vida, a norma e o corpo
humano colocou em funcionamento uma série de técnicas e tecnologias
responsáveis por gerir a vida humana. Esse resultado foi obtido em
virtude da análise das tecnologias de poder em Foucault, com ênfase no
crescimento das técnicas de exame e escrutínio que penetraram nas
instituições modernas. Sob o ponto de vista de uma ontologia histórica
de nós mesmos nas relações de poder que nos constituem sujeitos
atuando sobre os outros dispositivos que nos convidam a reconhecer e a
incluir pertencem aos imperativos de produção de um corpo imunizado,
215
saudável e normalizado. Constituem, pois, maneiras refletidas de
governar tanto ao nível dos indivíduos, quanto das populações.
Com isso, chega-se ao momento em que as análises realizadas
podem confluir, porém, não sem risco, nem mesmo sem invocar o perigo
a uma genealogia do sujeito de desejo. Os momentos anteriores serviram
a esse propósito para transgredir a finitude da representação do sujeito
humano para reconduzir as experiências de desprendimento de si críveis
de nos conduzir à exploração da dimensão do acontecimento.
Antes de prosseguir, cabe dizer que o título deste capítulo não é
um convite para celebrar e cultivar o homem interior, mas uma placa de
aviso, um sinal de perigo, de alerta e uma advertência. Coerente com o
ponto de vista que se tem argumentado até aqui seria equívoco supor
qualquer coisa como uma cidadela interior, ou, essência reencontrada. A
obra de Foucault é uma crítica radical à interioridade. Como disse certa
vez Valéry “o mais profundo é a pele”, e completa Deleuze (1988) “o
lado de dentro é uma dobra do lado de fora”.
Por intermédio dos estudos de Foucault outra leitura dos
discursos de reconhecimento torna-se possível, especialmente quando se
considera que uma inusitada relação se estabeleceu entre a vida e o poder,
produzindo assim, sujeitos cuja liberdade e cujas batalhas envolvem o uso
do corpo (AGAMBEN, 2016; BUTLER, 2017a). Nas primeiras seções,
argumentou-se no que à medida que as artes de governo se constituíam
como condição de possibilidade à biopolítica, essas converteram o bios
em zoé, o que implicava em uma política de subjetivação voltada ao uso
do corpo. Enquanto crítica do estado policial, o liberalismo se
desenvolveu com o objetivo de limitar o governo do estado sobre a
sociedade. Com o surgimento do neoliberalismo tem-se a radicalização
desse processo, o que somado a uma espécie de fobia contra o Estado,
própria a essas perspectivas, corroboraram para o agravamento de um
216
sujeito proprietário, possessivo (BUTLER; ATHANASIOU, 2017b;
ESPOSITO, 2010; SAFATLE, 2015b). Uma espécie de economicismo
que pretende reestruturar todas as instituições sociais, políticas e
econômicas à lógica do sujeito-empresa, aprofundando assim, as
chamadas “batalhas pelo governo de si mesmo”, as lutas por
“individualização”.
No entanto, existe um impasse no que diz respeito à proposição
foucaultiana das resistências ao poder justamente por não conseguir
explicar a natureza desse outro em uma relação de poder. Foucault
aparentemente interrompeu seu projeto da história da sexualidade,
retomando-o somente em 1984, o ano de sua morte. Nesse período, com
exceção de 1977, o filósofo francês proferiu, anualmente, seus cursos no
College de France. Reelaborando a hipótese, Nietzsche passa a sustentar
graças a uma genealogia que, antes de qualquer definição, poder significa
governar a conduta dos homens.
Em O sujeito e o poder, ao aproximar-se do problema da formação
do sujeito Foucault faz a seguinte afirmação: “[...] não é o poder, mas o
sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa” (FOUCAULT,
1995, p. 232). Ser sujeito significa estar “[...] sujeito a alguém pelo
controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma
consciência ou autoconhecimento” (FOUCAULT, 1995, p. 235).
Segundo Foucault (1995) o modo de funcionamento do poder não é da
ordem do enfrentamento entre adversários, nem da violência, tampouco
da servidão voluntária, mas do governo. No curso de 1978, fundamental
para entender o papel da crítica, da razão de Estado e das artes de
governo, Foucault (2008c) percorre longas análises tratando da
genealogia do pastorado cristão e suas eventuais contracondutas, para
finalmente chegar à compreensão do poder totalizante e individualizante
do Estado. Essa concepção ressoa diretamente em seu entendimento
217
sobre as lutas históricas, particularmente sobre os embates contra a
sujeição ligados ao tipo de individualização promovida em nossa época.
Para Gros (2006, p. 659) deve-se reconhecer nessas lutas a dimensão
individualizante do poder pastoral. Os embates contemporâneos se
defrontam em torno das técnicas de poder que “[...] aplica-se a vida
cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria
individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de
verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer
nele” (FOUCAULT, 1995, p. 235).
É preciso tentar se liberar do Estado e do tipo de individualização
que a ele se vincula. Devem-se promover novas formas de subjetividade.
Para isso, a partir dos anos 1980, Foucault determinará com clareza o
que se deve opor ao Estado, em seus propósitos gestores e
normalizadores, individualizantes e identificadores. Trata-se precisamente
das práticas de si, tomadas na dimensão relacional, na eleição dos modos
de vida, na construção da estilística da exisncia.
Doravante tratar-se-á das seguintes questões: o que significa
reconhecer-se e ser reconhecido como sujeito para Foucault? Qual a
imporncia dessas técnicas de si que interpelam os seres humanos a se
reconhecerem como sujeitos? Para responder essas questões é preciso
demarcar os momentos de emergência do problema no interior dos
últimos cursos de Foucault, analisando na relação entre o sujeito e
verdade aquela dimensão que convida os indiduos a se reconhecerem
como sujeitos. Nessa perspectiva o reconhecimento aparece como peça
importante do processo subjetivação mediante a “[...] qual se obtém a
constituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que
evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de organização
de uma consciência de si” (FOUCAULT, 2006c, p. 262).
218
Diante da acusação da impossibilidade de escapar da sujeição do
poder, Foucault faz uma gradual imersão no mundo antigo. Embora
existam inúmeras análises nos cursos materializados, talvez, em milhares
de páginas há temas comuns que atravessam o esforço de Foucault e que
nos permitem relacionar os cursos e os últimos volumes de História da
sexualidade. Os temas são: o governo dos homens pela verdade; a questão
do prazer dos rapazes; o surgimento do casal; e o exame de si mesmo. De
certo modo, se essa conjectura estiver correta, os últimos cursos se não
responderem essas questões, ao menos, dar-nos-á uma dimensão do
problema enfrentado. Para atingir meu propósito neste capítulo, tomarei
como chave de leitura os últimos cursos de Foucault, no Collège de
France, pronunciados entre 1980 e 1984. Essa leitura será articulada com
o conteúdo dos três derradeiros volumes de História da sexualidade e das
entrevistas que ele ofereceu na época. Por isso, pretendo, neste texto,
conjurar a dimensão ética do cuidado diante do que entendo ser a
constituição histórica do homem interior. Em especial, quero avaliar de
que modo esse último ensino nos faz pensar em outra política de
subjetivação em face dos discursos de reconhecimento. Nesse caminho,
acompanharei as investigações de Butler (2015), Freitas (2018), Fimiani
(2004; 2008), Gros (2006), Halperin (2000) e Rajchman (1993) dentre
outros que me auxiliaram a construir estratégias de reconstituição do
problema.
Em A vontade de saber, a sexualidade interessou a Foucault
(2007a) como referencial privilegiado da grande empresa de
normalização e individualização no Ocidente moderno, no qual a
Medicina, a Pedagogia e o Direito assumem papéis essenciais. Nos anos
de 1970, Foucault mostra como o poder disciplinar talha os indivíduos à
sua medida, fixando-lhes identidades predefinidas. Enquanto Foucault
permanecia no estudo dos séculos XVIII-XIX, o sujeito era pensado
219
como o produto dos sistemas de saber e de poder, o correlato dos
dispositivos. Esse recorte histórico constituiu para Foucault um
importante lugar onde se formou o domínio de saber que diz respeito à
sexualidade como modo de objetivação do ponto de vista biológico,
médico, psicopatológico, sociológico, etnológico. É nesse momento que
se pode observar o papel determinante a ser desempenhado pelos sistemas
normativos, imposto ao comportamento sexual, por intermédio da
educação, do internamento e da justa. Nesse âmbito, a confissão ocupa
lugar estratégico na forma e nos efeitos da relação consigo na constituição
da experiência de formação do sujeito. Contudo, para analisar as formas
da relação que o sujeito mantém consigo mesmo, Foucault é levado a
retroceder no tempo cada vez mais longe do quadro cronológico que
fixou, chegando até a antiguidade grega e ao helenismo, uma vez que, na
hermenêutica cristã o que se percebia mantinha uma continuidade com o
projeto de normalização ocidental, e o que lhe interessa era analisar os
efeitos de ruptura. Gros (2006) ressalta que tal razão despertou no
filósofo:
[...] o projeto de escrever uma história da sexualidade antiga,
reorientada para a problemática das técnicas de si e, de outro, a
tentação crescente de estudar estas técnicas - agora por elas mesmas,
em suas dimensões histórico-éticas, e em domínios de efetivação
diferentes da sexualidade, como nos problemas da escrita e da leitura,
dos exercícios corporais e espirituais, da direção de existência, da
relação com o político (GROS, 2006, p. 623).
A sexualidade não integra a scientia sexualis, mas, constitui uma
prática regrada de si, uma economia dos prazeres cujo fim é dar forma à
prática de liberdade no registro do governo de si mesmo e dos outros.
Retroagindo sobre o marco histórico dos séculos V d.c ao IV a.c, os
220
volumes II, Uso dos prazeres (FOUCAULT, 2007b), III, Cuidado de si
(FOUCAULT, 1994) e IV, Confissões da carne (FOUCAULT, 2020), o
último publicado recentemente, o pensamento foucaultiano concentra-se
sobre dois domínios de problematização, o prazer do rapaz e a pureza da
mulher. Enquanto que no segundo volume a reflexão de Foucault voltou-
se para as práticas sexuais gregas do século IV a.C, no terceiro o autor
concentra-se nos escritos helenísticos do século II da era cristã. Por fim,
no quarto volume trata da reinscrição da moral apropriada pelos cristãos
a experiência da carne. Esse arranjo permite-nos agrupar esses temas em
torno de duas esferas capazes de interseção entre os cursos e as obras.
Primeiro, a esfera que Fimiani (2008) designa de erótica, compondo o
regime dos aphrodisia, a conjugalização da vida privada no estoicismo e o
guiamento espiritual no cristianismo. E, segundo, a face retórica, que
abrange os cursos pronunciados entre 1982 e 1983, haja vista que
enfatizam o cuidado de si e dos outros mediante o inventário dos
exercícios espirituais das escolas antigas, principalmente, no que se refere
à questão do dizer-verdadeiro.
É importante destacar que essa imersão de Foucault ao mundo
antigo compõe parte fundamental do seu projeto de uma história crítica
da subjetividade, quer seja, o universo das técnicas de si, da ética do
cuidado de si mesmo e da espiritualidade como uma atitude diante da
vida. O que atravessa os cursos é a disposição de se distanciar do sujeito
moderno, cujo marco é o “momento cartesiano”. Na história da filosofia
esse momento não diz respeito apenas a Descartes, mas, com toda uma
confluência que se arrasta desde a aurora das artes de governo e das
chamadas revoluções científicas. Uma crítica que ecoa as célebres páginas
da História da loucura lembrando: aqueles acontecimentos importantes
como o grande encarceramento dos loucos e a existência de um grande
221
medo que caso a loucura se espalhasse reinaria o caos sobre o mundo
social e do trabalho.
Para isso, torna-se necessário fazer uma experiência colocando a
prova a grade de leitura que Morey (1990) nos forneceu averiguando em
que medida está correta, a respeito dos grandes eixos, que dividem o
pensamento foucaultiano. Refiro-me a ideia que entre os cursos da
cada de 1970 temos uma “ontologia que constitui o sujeito atuando
sobre os demais”, teríamos nos cursos sobre os antigos uma “ontologia
que constitui o sujeito moral”. Nesse sentido, é preciso dizer que na
imersão ao mundo grego e romano, Foucault não abandona sua
metodologia arqueológica e genealógica, mas, reescreve-se em um projeto
mais amplo de uma história crítica da subjetividade que tem por objeto
as incidências dos jogos de verdade nas relações consigo mesmo.
Citando novamente a obra Percurso do reconhecimento, de Ricoeur
(2006), é intrigante a reflexão que esse filósofo faz acerca dos vocábulos
ligados ao reconhecimento, uma análise linguística, ou melhor,
lexicográfica. A princípio os argumentos de Ricoeur são dois: primeiro
que a aparente polissemia da palavra ‘reconhecimento’ e os usos do verbo
‘reconhecer’ possuem um ordenamento aceitável; segundo, a discordância
entre os lexicógrafos o faz pensar que “[...] um principio organizador da
polissemia, depende de outra ordem que a prática linguística” (2006,
p.14). Ricoeur confronta duas grandes obras da lexicologia francesa: o
Dictionnaire de la langue française de Émilie Littré e o Grand Robert de la
langue française. Com isso, o autor propõe um itinerário acerca dos
diferentes significados que o vocábulo adquiriu ao longo do tempo,
mostrando suas ligações com as diversas práticas sociais como reconhecer
uma falta, uma autoridade ou uma dívida de gratidão. Entretanto,
Ricoeur (2006, p. 30) não deixa de notar que na ordem do pensamento
filosófico “[...] a recognição kantiana tem prioridade sobre o
222
reconhecimento bergsoniano e sobre a Anekennung hegeliana.” Desse
modo, o filósofo atêm-se a uma perspectiva gnosiológica, oferecendo
primazia ao sujeito do conhecimento. Ricoeur (2006) se mantém naquilo
que Foucault (2006b) designa como momento cartesiano. Doravante,
argumentar-se-á a partir do pensamento foucaultiano algo diverso, a
saber, que o dispositivo de reconhecimento é antes de qualquer coisa uma
relação com a verdade, é da ordem de uma aleturgia.
Parece-me que, destarte, as ressonâncias dialéticas e
fenomenológicas de seus primeiros escritos, geralmente Foucault emprega
o verbo reconhecer no sentido de admissão, ou, adesão do verdadeiro.
Desde o livro História da loucura na idade clássica, publicado
originalmente em 1962, é possível acompanhar um tema persistente na
trajetória de Foucault (2008a), a saber, a relação entre subjetividade e
verdade. Por sua vez, não é possível dissociar sujeito e verdade de suas
operações elementares de reconhecimento. Neste sentido, Morey
(1990) tem razão, tanto, ao identificar nos textos de História da loucura
aqueles elementos que prefiguram os temas de enfoque na genealogia,
quanto, ao dizer, que em Foucault o que está em jogo, aliás, a própria
característica do jogo, implica a constituição de um domínio reconhecível
de certos objetos e de determinados sujeitos que se reconhecem na
relação com a verdade, com o poder e como agentes morais. Para os
objetivos desta tese, esse momento de objetivação do sujeito moderno
constitui acontecimento nevrálgico, uma vez que, toda a educação como
arte de governar os homens conflui a partir de processos inteiramente
assentados na transformação das antigas “artes de viver” em
conhecimento produzido por um sujeito.
223
Aleturgia, do governo da verdade ao si-mesmo
A genealogia do sujeito com todas as minúcias que apresenta deve
ser entendida também como uma crítica da cultura. Principalmente, em
relação aquilo que pensamos serem nossos grandes marcadores culturais
como os gregos, os romanos e cristãos. Não se pode negar que algo da
linguagem, dos símbolos, das instituões e das técnicas reputam esse
período. Na Filosofia da Educação é comum retraçar as origens do ideal
de formação do ser humano, repontando-o a esse substrato cultural
(GOERGEN, 2009). Durante todo seu percurso Foucault foi um crítico
da cultura. Aliás, crítico, foi uma das poucas designações que vemos
Foucault (2000) assumir, sem constrangimento, um historiador crítico
do pensamento.
Na ocasião, a crítica remetia à ideia de uma atitude de não ser de
tal forma governado. Com exceção das Aulas sobre a vontade de saber, a
década de 1970 teve como grande operador histórico os séculos XVI e
XVII, mas, nos anos de 1980 o pensador desloca-se entre o cristianismo
primitivo e o mundo helênico. É muito curioso observar a aparente
ruptura entre o curso de 1979, dedicado às artes de governar neoliberais
em relação à distância histórica e mudança temática realizada no curso de
1980, que se deteve em grande medida à cultura antiga e às instituões
arcaicas do cristianismo primitivo. O leitor não habituado com a
obstinação genealógica de encontrar pistas para acessar o presente pode
achar estranho esse recuo histórico. O fato é que notabilizado pelas
análises do poder, o público em geral esquece que o primeiro curso que
Foucault oferece no Collège de France chamado Aulas sobre a vontade de
saber aborda precisamente a temática do saber antigo, passando pelas
análises sobre o Édipo e Aristóteles até o pensamento Nietzsche.
224
Também, em 1975, no Rio de Janeiro, durante as conferências que
ficaram conhecidas como A verdade e as formas jurídicas, o filósofo
francês revisita esses mesmos temas, ou seja, o problema da genealogia em
Nietzsche, a questão da origem da prova de verdade em Sófocles,
passando pelos métodos brutais de julgamento das feiticeiras, chegando
até os métodos baseados nos exames e na observação da sociedade
disciplinar. A julgar também pelo conteúdo dos cursos, a precisão
analítica de demonstrar a proveniência das técnicas disciplinares, nos
monastérios cristãos, graças às suas pequenas celas de oração,
confessionários e rituais de purgação que não se pode, de maneira
alguma, menosprezar um pacto da cultura cristã na composição dos
modos de subjetivação. Porém, diferentemente dos cursos da década de
1970, Do governo dos vivos introduz uma nova dimensão ao seu
pensamento que passa a se interessar por fenômenos para além das
noções de verdade e poder. Os atos de verdade retratados por Foucault
(2014b) contam a história de obediência dos homens à verdade. Não se
trata de um sujeito consubstancializado, mas de uma genealogia das
técnicas que ligam o sujeito à verdade. Nesse mesmo ano, Foucault
ofereceu dois seminários, o primeiro, em conjunto com o sociólogo
Richard Sennett, tratou da relação entre sexualidade e solidão no
Ocidente (FOUCAULT, 2006e); o segundo consistiu em algumas
conferências pronunciadas na Universidade de Dartmouth que abordou
o tema do exame na cultura antiga romana e cristã (FOUCAULT,
2016a). É nesse período que o autor torna público a inédita noção de
técnica de si.
Em sua conversa com Sennett, Foucault (2006e) justifica o
recurso metodológico às tecnologias de si dizendo se tratar de uma matriz
de razão prática deflacionada na filosofia social contemporânea. Se para
Habermas as três esferas fundamentais do mundo da vida distinguem-se
225
como: cultura, sociedade e personalidade; Foucault elenca quatro
tecnologias como matrizes que atuam na produção do sujeito humano.
Ao lado das tecnologias de produção, de significação e de poder existem
às tecnologias de produção de si mesmo (self). E essa é uma matriz
relativamente independente, mesmo que não opere separadamente das
outras. Nesse sentido, Do governo dos vivos conforme relata os
procedimentos que são adotados na relação do sujeito com os atos de
verdade pré-configuram essa dimensão das técnicas de si mesmo. E por
sua vez essa dobra (DELEUZE, 1988) do sujeito sobre si diz respeito à
noção de artes de viver. Com isso chega-se ao problema do curso de
1981, intitulado de Subjetividade e Verdade. Portanto, sucessivas
passagens, das artes de governo liberais aos atos de verdade, da
tematizão das tecnologias de si às artes de viver.
A primeira vez que a expressão “arte de viver” aparece, no
pensamento de Foucault, que por ocasião do prefácio que escreveu a obra
Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari. Foucault compara esse livro a um
pequeno manual de ética para viver uma vida não fascista. Entre os
preceitos éticos estavam não amar o poder, prezar pela alegria na
militância e não deixar se guiar pela lei e pelo negativo. Nesse contexto, a
arte de viver significava viver de maneira tal a não se tornar fantoche do
poder que nos explora. Se da parte de Deleuze e Guattari existe a
denúncia de que a psicanálise encerrou o desejo em um teatro de
representações, sendo o Édipo à encenação familiarista que organizam
esse desejo; de outra parte Foucault em A verdade e as formas jurídicas vê
na tragédia de Édipo uma peça jurídica importante na história política da
verdade.
A história de Édipo, sem dúvida, conta-nos um processo de
reconhecimento. Mas, esse reconhecimento não diz respeito a um desejo
que encontrou a sua lei nem mesmo a sua realização; esse
226
reconhecimento trata antes de qualquer coisa da manifestação da verdade
- aleturgia.
Se, em 1975, Foucault (2002) nos mostra que a verdade que se
liga a um poder que vem debaixo, que sai da boca de um simples pastor
de ovelhas e é capaz de constranger até um tirano; em Do governo dos
vivos o grande operador do reconhecimento da verdade é o próprio
Édipo. Temos, então, para além de um reconhecimento do poder o
reconhecimento de si mesmo, testificado em um ato de verdade.
Assumindo a acepção de Aristóteles que sustenta que há sempre dois
elementos fundamentais em toda a tragédia, primeiro, a peripécia, que
inverte a fortuna dos personagens e, depois, o reconhecimento
(anagnórisis) a revelação da identidade real de um personagem, Foucault
diz:
[e]m Édipo rei [...] é o próprio mecanismo do reconhecimento, é o
caminho e a verdade que vão, em si, acarretar a reviravolta de fortuna
dos personagens. Portanto, Édipo rei é, como toda tragédia, uma
dramaturgia do reconhecimento, uma dramaturgia da verdade, uma
aleturgia, mas uma aleturgia particularmente intensa e fundamental,
já que é o próprio motor da tragédia. Tudo é bem conhecido.
Costuma-se salientar, no que concerne ao άναγνωρισις, o
reconhecimento em Édipo, que esse reconhecimento - é nisso,
justamente, que ele é o motor da tragédia - tem um caráter que
podemos dizer refletido: é o mesmo personagem que procura saber
que faz o trabalho da verdade e que descobre ser o próprio objeto da
procura [...] (FOUCAULT, 2014b, p. 25).
Foucault se refere à peça como uma dramaturgia da cegueira, que
segue a lei das metades, pois, é precisamente revelação da verdade:
227
[...] a anagnórisis, o reconhecimento do personagem em sua
identidade real que constitui a peripécia que vai acarretar a queda de
Édipo e transformar esse homem enviado, cuja sorte parecia mais
invejável que a sorte de qualquer outro, num homem fadado à
abominação e à infelicidade definitiva. Portanto, é uma peça
inteiramente baseada no mecanismo do reconhecimento,
da anagnórisis (FOUCAULT, 2018, p. 50).
Em um dos seus depoimentos sobre Foucault, o historiador Paul
Veyne destaca o fascínio que Édipo Rei exercia sobre o filósofo. De fato,
Foucault dedica longas análises explorando a aleturgia na tragédia de
Édipo. Em Malfazer, dizer-verdadeiro, Foucault distingue dois
reconhecimento que existem em correlação perpétua, o do próprio
Édipo, da ignorância do personagem em relação à consciência do crime e
do coro formado pela assembléia dos justos, o tribunal que vai decidir o
que é verdadeiro e o que é falso, quem é culpado e quem não culpado.
Um reconhecimento depende do outro e que atesta no plano das provas
de verdade a substituição da fala voraz pela fala-diálogo, a passagem da
noção mágico-religiosa para o pensamento racional. Foucault (2014b;
2018) insiste que a anagnórisis de Édipo tem a particularidade de ser um
processo refletido, aquele que procura é o objeto da procura; o ignorante
é aquele a respeito do qual é preciso saber, o descobridor é o objeto da
descoberta, sendo ele mesmo descoberto.
Com efeito, a anagnórisis produz aquilo que Aristóteles designava
como inversão que leva da ignorância ao conhecimento, ou que, conduz
do amor ao ódio dos seres destinados à felicidade ou à infelicidade. O
fundamental da questão começa a se configurar quando o filósofo a partir
dessa tragédia destaca o elemento do “si mesmo”, do “autós”, o
“elemento da primeira pessoa” nos procedimentos de aleturgia ou de
veridicção. De acordo com o autor:
228
[o] problema é saber como e por que razões chegou o momento em
que o dizer-a-verdade pôde autenticar sua verdade, pôde se afirmar
como manifestação da verdade, na medida em que, justamente,
aquele que fala pode dizer: sou eu que detenho a verdade, e sou eu
que detenho a verdade que eu vi e, porque a tendo visto, eu a digo.
Essa identificação do dizer-a-verdade e do ter-visto-a-verdade, essa
identificação entre aquele que fala e a fonte, a origem, a raiz da
verdade, é sem dúvida um processo múltiplo e complexo que foi
capital para a história da verdade em nossas sociedades. [...]
constituição de uma aleturgia que gira em torno do αύτός, do eu
mesmo, do ele mesmo, do eu [...] tudo isso é uma longa história [...]
que vai [...] encontrar um ponto culminante quando, a propósito das
verdades evidentes da própria matemática, Descartes poderá dizer 'eu
mesmo'. E é portanto toda essa história das relações entre αύτός e a
aleturgia, entre o eu mesmo e o dizer-a-verdade, é isso que me
interessa na história da verdade no Ocidente (FOUCAULT, 2014b,
p. 47, aspas do autor).
Os atos de verdade conduzem Foucault a uma genealogia dos
procedimentos de obediência. O problema já não reside mais nos regimes
de verdade como as que aparecem na entrevista “Verdade e poder
(1998) que indexava certos efeitos de poder na circulação de discursos
verdadeiros. O que está em jogo nos atos de verdade é uma relação de
obediência que forma o sujeito em uma relação de si a si no vínculo
manifestado com a verdade. Para Foucault (2014b) há uma maneira
tradicional de encarar a ligação entre a verdade e o poder, essa supõe que
o sujeito se submete voluntariamente ao vínculo da verdade numa relação
de conhecimento, de justificação, de fundamentação, em uma espécie de
contrato de direito que lhe garante o acesso ao verdadeiro. Essa maneira
não condiz com o método de Foucault cujo objetivo é gerar efeitos de
ruptura com a obrigação de aceitar com conaturalidade o poder da
verdade. Não se trata de dizer “[...] dado o vínculo que me vincula
229
voluntariamente à verdade, o que posso dizer do poder? Mas: dada a
minha vontade, a decisão, o esforço de desfazer o vínculo que me liga ao
poder, como ficam o sujeito de conhecimento e a verdade?
(FOUCAULT, 2014b, p. 71). A ctica foucaultiana dirige-se contra a
auto-evidência, ou, necessidade inconteste do poder, pois, nenhum poder
possui legitimidade intrínseca.
Em Subjetividade e verdade, Foucault (2016b, p. 211), oferece
contornos mais específicos a essa arbitrariedade da combinação entre
poder e verdade reportando a uma surpresa, algo como um espanto
epistemológico em relação à existência do jogo da verdade e do erro, “[...]
afinal, por que ademais do real há o verdadeiro?” (FOUCAULT, 2016b,
p. 212). No curso de 1980, o acontecimento espantoso para Foucault
consiste em saber:
[...] por que e como o exercício do poder em nossa sociedade, o
exercício do poder como governo dos homens requer não apenas atos
de obediência e de submissão, mas também atos de verdade em que
os indivíduos, que são sujeitos na relação de poder, sejam também
sujeitos como atores, espectadores testemunhas ou como objetos no
procedimento de manifestação de verdade? [...] Por que o poder [...]
pede para os indivíduos dizerem não apenas 'eis-me aqui, eis-me aqui,
que obedeço', mas lhes pede, além disso, para dizerem 'eis o que sou,
eu que obedeço, eis o que sou, eis o que vi, eis o que fiz'
(FOUCAULT, 2014b, p. 76, aspas do autor).
Foucault chama de actus veritatis a manifestação da verdade na
forma da subjetividade. Trata-se de mostrar como certas sociedades se
desenvolveram de modo a requerer dos indivíduos que sejam atores
essenciais nos procedimentos de aleturgia. O papel da crítica nesse
terreno é desfazer a auto-evidência que garante a adesão ao regime do
230
verdadeiro e falso, exprimido na sentença “é verdade, logo me inclino”.
Nesse âmbito, o cristianismo ademais dos atos de verdade produziu algo
como os atos de fé muito importantes nessa história que vinculou o
indivíduo à obrigação de manifestar em verdade o que ele é. No entanto,
adverte-nos Foucault:
[é] comum dizer que o cristianismo introduziu o senso da falta, do
pecado numa cultura greco-romana que não o possuiria. [...] não é
exato [...] uma civilização que conheceu, que codificou, refletiu,
analisou o que podia ser a falta, a infração e as consequências que isso
podia ter, esse mundo é o mundo grego e romano. As regras de
direito, as instituições e as práticas judiciais, a ideia de uma filosofia
que seria essencialmente moral, moral da vida cotidiana, com regras
de existência [...] o mundo greco-romano é um mundo da falta. [...]
da responsabilidade, é um mundo da culpa. Da tragédia grega ao
direito romano, em certo sentido só se trata disso. E a filosofia
grega [...] é uma filosofia da falha, da responsbabilidade, das relações
do sujeito com sua falta (FOUCAULT, 2014b, p. 171).
No mundo antigo, na cultura e na religião popular eram muito
comuns os processos de confissão, o reconhecimento da falta e as
purificões. Foucault se interessa, sobretudo, por duas grandes práticas
de veridicção: o exame da consciência e a exposição da alma (expositio
animae). Portanto, além dos procedimentos arcaicos, testemunhados na
tragédia, em Do governo dos vivos, Foucault (2014b) toma como
exemplarmente as obrigações de verdade que imporiam atos de crença,
profissões de fé como função de remissão das faltas, especialmente nas
instituições do cristianismo dos primeiros séculos, notadamente, o
batismo, a penitência e a direção da consciência. Chamados de
catecúmenos, por realizarem suas práticas religiosas, o ensino das
231
doutrinas e os seus rituais nas catacumbas romanas, os cristãos primitivos
apropriaram-se à sua maneira dos procedimentos greco-romanos de ligar
o sujeito à verdade.
Inicialmente, Foucault sublinha o papel dos atos de fé como os
encontrados em Tertuliano que gradativamente dão lugar a exomológesis e
a exagóreusis a exposição pública de si e a confissão permanente dos
pecados. Isso ocorreu porque a recondução cristã de técnicas como as de
exame da consciência se relaciona diretamente com a questão da
conversão (metanoia) e da salvação. Assim, o batismo como a tipificação
do novo nascimento e da mortificação do velho homem gera outra
questão que é a recaída no pecado. Posto que se o batismo sela o
pertencimento a Deus, sendo também uma forma de iluminação, como
alguém que reconheceu a verdade última pode recair no pecado
novamente? Por que os salvos não permanecem na graça? A penitência foi
o recurso que o cristianismo encontrou para reabilitar o pecador
arrependido novamente ao estado de graça. Por essa via, diz o autor:
[o] cristianismo não é, portanto, uma religião que teria introduzido a
falta, o pecado, o peccatum, na inocência de um mundo sem culpa.
Ele fez uma coisa bem diferente. Introduziu o problema do peccatum,
do pecado, da falta, não na inocência, mas em relação a ela. [...] em
relação à libertação e em relação à salvação [...] qual a situação da falta
e como é possível cometer uma falta depois de se ter acesso a
verdade? [...] no fundo, a queda era um tema bastante corrente, tanto
na filosofia grega como na religião hebraica e na maioria das religiões
de iniciação e de salvação que preexistiam ao cristianismo. O
cristianismo pensou a recaída (FOUCAULT, 2014b, p. 171-172).
Em resposta a esse problema da salvação, do sistema de perfeição,
da realidade da apostasia, o cristianismo elaborou uma espécie de
232
paenitentia secunda - segunda penitência, portanto a reiteração não
reiterável. O pensador acompanha o investimento a começar pela
disciplina penitencial, a partir da segunda metade do século II, até a
ascese monástica, a partir do fim do século III. Dos procedimentos de
veridicção destacam-se dois: exomológesis e a exagoreusis. De acordo com
Foucault (2014b, p. 92) o vocábulo exomologeîn significa reconhecer
alguma coisa ou algo, ou, dar seu acordo, é um termo regular no grego
clássico. O pastor de Corinto, em Édipo, diz: exomologéo - reconheço,
sim, confesso. O verdadeiro sentido da exomológesis é o martírio, a
penitência como uma mortificação, por isso, apresenta-se como a
exposição do pecador à comunidade como prova de arrependimento, de
contrição. Na exomológesis “[...] toda a produção da verdade ocorre numa
espécie de grande teatralização da vida, do corpo, dos gestos, com uma
parcela verbal ínfima [...]” (2014b, p. 98), todavia, a partir dos séculos IV
e V, a automortificação se liga à veridicção, mas, por intermédio de algo
novo: a verbalização, a linguagem, a chamada exagoreusis. Para Foucault
(2014b, p. 204), o aparecimento dos procedimentos de verbalização
detalhada das faltas e de exploração de si mesmo é um fenômeno
importante no cristianismo e no mundo ocidental no que diz respeito à
formação da subjetividade.
Fimiani sintetiza esse movimento quando que escreve:
[n]a direção cristã, temos um dispositivo [...] que possui em conjunto
três elementos: o princípio da obediência sem fim, o princípio do
exame sem trégua e o princípio da confissão exaustiva. Aqui vemos
como o sentido de consciência, o exame de consciência e a confissão
se combinam numa triangulação sobre a qual é necessário refletir:
escute o outro, olhe para si mesmo, fale ao outro de si [...]
(FIMIANI, 2008, p. 22)
233
A exagoreusis é remanescente dos exercícios verbais próprios da
relação mestre e discípulo das escolas filosóficas pagãs e ocupou papel
preponderante na direção de consciência cristã. Para Foucault (2014b,
208) o acoplamento verbalização da falta-exploração de si não pode ser
compreendido sem situá-lo no interior das práticas do qual surgiu, a
direção antiga. Inspirando-se, sobretudo, em historiadores como Paul
Veyne e Peter Brown, Foucault mostra que o cristianismo introduz certas
modificações nesses procedimentos que dizem respeito à questão da
carne, do escrutínio sistemático dos pensamentos e da interioridade in
interiore homine. É preciso ter certo cuidado para não incorrer na ideia de
que o cristianismo elaborou uma nova moral. Para Foucault a novidade
cristã refere-se à reinscrição de técnicas da moral pagã ao seu campo de
pensamento, especialmente desde a problematização da carne entendida
“[...] como um modo de experiência, isto é, como um modo de
conhecimento e de transformação de si por si, em função de uma certa
relação entre anulação do mal e manifestação da verdade” (FOUCAULT,
2020, p. 47). Desse modo, apesar da recorrência de certas técnicas,
existem descontinuidades e rupturas acontecimentais que permitem fazer
distinção entre o modo de subjetivação grego-romano e o cristão.
É precisamente, em contraposição ao modelo de obediência cristã
orientado para o código que Foucault (2007b) explora em O uso dos
prazeres, a moral grega como uma orientação para a estética da existência.
Uma leitura atenta acompanhando os temas desenvolvidos nos
últimos cursos e seminários oferecidos por Foucault permitem-nos ter
uma noção dessa distinção entre os modos gregos e cristãos de produção
da subjetividade. A começar por Governo dos vivos e as conferências de
Dartmouth, o curso Subjetividade e verdade; Malfazer, dizer verdadeiro na
universidade de Louvain, chegando à Hermenêutica do sujeito e A coragem
234
de verdade é possível ter uma noção clara do que o autor entendia pela
direção de consciência cristã.
Dentre esses cursos, Do governo dos vivos destaca-se por oferecer a
análise mais penetrante sobre o tema. De outra parte, os cursos de 1982-
84 nos auxiliam a uma melhor apreensão do que o filósofo entendia ser o
modo grego de subjetivação. Ainda assim, é preciso ter cuidado para não
reduzir essa problematização à questão de uma história das técnicas de si.
Quero dizer, não se pode ater à questão do sujeito e de sua
espiritualidade sem vinculá-la ao problema da formação do corpo. Nesse
registro, o curso Subjetividade e verdade traz às lições fundamentais para
articular o registro da problematização da subjetividade com a história
política do corpo. E, é precisamente, nesse nuance que a arte de viver se
coloca como uma provocação para os modernos modos de vida, isto é,
como uma maneira de acessar o próprio presente. Dessa maneira se pode
dizer que foi pelo caminho do governo dos homens pela verdade, das
obrigações de vincular a si mesmo nos procedimentos aletúrgicos que
Foucault encontrou o caminho para as tecnologias do sujeito, ou seja,
aquelas “[...] técnicas por meio das quais o indivíduo, por si mesmo ou
com a ajuda ou a orientação de outro, é levado a transformar-se e a
modificar sua relação consigo mesmo” (FOUCAULT, 2014b, p. 14).
Erótica, da honra do rapaz à pureza da mulher
Na conferência Tecnologias de si, o problema da sexualidade é
anunciado conjuntamente com o das técnicas de si. Para Foucault
(2004b) as interdições da sexualidade possuem uma característica
peculiar de estarem constantemente ligadas à obrigação de dizer a
verdade sobre si. Semelhante a essa observação, no curso Subjetividade e
235
verdade, que pode ser visto como uma escie de manuscrito de Uso dos
prazeres e Cuidado de si, o autor se questiona: “[...] que experiência o
sujeito pode fazer de si mesmo, a partir do momento em que se vê na
possibilidade ou na obrigação de reconhecer, a propósito de si mesmo,
algo que passa por verdadeiro?” (FOUCAULT, 2016b, p. 11). Dito de
outro modo trata-se de examinar “[...] de que maneira o sujeito foi
chamado a manifestar-se e a reconhecer a si mesmo, em seu próprio
discurso, como sendo em verdade sujeito de desejo” (FOUCAULT,
2016b, p. 15).
O dispositivo de sexualidade moderno carrega consigo a herança
aletúrgica dos atos de verdade, por isso, constitui foco de experiência tão
importante para problematizar as técnicas de si e entrever novas
possibilidades para geração de outros processos de subjetivação.
De acordo com Freitas (2014; 2017; 2018) uma maneira de se
esterilizar as contribuições éticas dos últimos ensinos de Foucault consiste
em desprezar a cumplicidade estreita entre o cuidado e o projeto de
História da sexualidade. Isto equivale a desvincular as questões
desenvolvidas durante os cursos da vivência do modo de vida de
Foucault, da atividade intelectual e política, de modo a torná-lo mais um
pensador das estruturas. Confunde-se o caráter ascético da espiritualidade
política com asséptico, eliminando as referências e incursões no campo
das sexualidades marginais, das experimentações sadomasoquistas com
objetivo de torná-lo mais palatável. Segundo Rajchman (1993, p.13 aspas
do autor) “[...] há quem julgue o 'auto-interesse' final de Foucault um
interesse autocentrado, individualista e, portanto, associal e apolítico.”.
Tem-se, então, à revelia uma espécie de resgate neoestóico de certos
exercícios espirituais, com o objetivo de alcançar certos estados de alma
ou autoaperfeiçoamento, mas, cujo diálogo com o tempo presente é de
236
curto alcance, posto que circunscreve as diversas práticas ao domínio do
pedagogizado.
Como aponta corretamente o comentador “[...] o cuidado de si
não se encerra em uma instructio preventiva ou defensiva [...]”, mas, “[o]
que é próprio de um pensamento inspirado na epimeleia é o deixar-se
conduzir por um caminho de dissociação de si mesmo e logo de
desprendimento de si” (FREITAS, 2017, p. 72). Não se pode esquecer
que o desafio foucaultiano de problematização da moral antiga tinha
como objetivo traçar uma genealogia do homem de desejo e com isso
encontrar o caminho para a atualidade. Na conferência de Toronto,
Foucault (2004b) afirma:
[n]ós acreditamos ser difícil basear moralidade rigorosa e princípios
austeros no preceito de que devemos cuidar de nós mesmos mais do
que qualquer outra coisa no mundo. Estamos mais inclinados a
entender o cuidado de si como imoralidade, como uma forma de
escapar de todas as regras possíveis. Herdamos a tradição da
moralidade cristã que faz da renúncia de si condição para a salvação
(FOUCAULT, 2004b, p. 328).
Em suas últimas entrevistas, Foucault frequentemente se deparava
com a suspeita em relação à tematização de si mesmo. Por sua vez, o
filósofo não deixa de se colocar em questão, afinal: “[...] como o respeito
de si poderia então ser a base para a moralidade? (FOUCAULT, 2004b,
p. 329, inserção de itálico). Para o filósofo, desde o século XVI, as críticas
à moralidade têm sido feitas em nome da importância de reconhecer e
conhecer a si mesmo. Como salienta Freitas (2014) esse processo é
inteiramente subscrito as tecnologias de governo próprias ao pastorado
cristão e desespiritualizado no nível das tecnologias de subjetivão, posto
237
que o cuidado de si mesmo, nessa época, foi “[...] denunciado [...] como
uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo ou de interesse
individual em contradição com o interesse que é necessário ter em relação
aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo” (FOUCAULT,
2006a, p. 268).
O sujeito ético ocupa lugar marginal no pensamento
contemporâneo. Relegado ao amor-próprio, o cuidado acabou cedendo
lugar ao sujeito de conhecimento, bem como, seus correlatos
governamentais, o sujeito de direito e sujeito de interesse. Por isso, o
pensamento educacional, pedagógico não consegue lidar com os afetos
que surgem dos encontros entre corpos, como resultado:
[a]s paixões e os afetos permanecem, portanto, sendo configuradas
como forças transgressivas, representando o que é passível de ser
expurgado por nossos sistemas de pensamento. A própria emergência
do que chamamos homem ou sujeito é de muitas maneiras uma
batalha levantada contra as paixões, uma vez que elas apontam para
nossa inquietante e perturbadora herança animal, desvelando os
limites do funcionamento da máquina que define nossa suposta
excepcionalidade antropológica. Nesse sentido, expressões como
perturbação do espírito, doença da alma, loucura, perversidade,
anormalidade, falha moral tornaram-se comuns na designação da
perda do domínio reflexivo provocada pelas paixões, funcionando
como catalisadores de nossa autocompreensão. [...] as histórias
edificantes que contamos acerca de nós mesmos quase sempre
padecem de uma espécie de afasia pática. São histórias que admitem
apenas um único desfecho: saber responder emocionalmente, de
forma correta, a uma situação inesperada configura-se como uma
característica do homem virtuoso, base da nossa Paideia moral, o que
torna o pathos um protagonista problemático em um amplo espectro
de reflexões que recobre da política à estética, da ética à ontologia
(FREITAS, 2017, p. 53).
238
As provocações de Freitas (2014; 2017) interpela-nos para aderir
à proposição foucaultiana de que há algo perturbador no princípio do
cuidado de si. As lições do professor Foucault são perigosas, ousadas, não
podem ser confundidas com prescrições. As experiências singulares do
pensador francês e seu último ensino conjuram a álea do acontecimento
com o que há de arriscado e de inventivo nisso já que nem o binômio o
corpo-prazer, a carne-concupiscência, ou sexo-desejo delimitam quem
somos nós. No entanto, independentemente de não serem passíveis de
generalização, essas experiências nos convidam a pensar sobre o jogo
entre o singular que procura conectar-se com um comum que escapa,
tanto, ao sujeito representacional, como a noção de sujeito de desejo de
reconhecimento. É preciso vencer a chantagem moderna, pois como
entende Halperin (2000, p. 17) “[...] o que Foucault queria fazer: era
tornar impossível a política para fazer uma nova política que até esse
momento era impensável e que englobaria aqueles cuja exclusão havia
sido fundada a própria definição de política.
Nesse registro, se deve entender essa disposição ética e política
como um tornar possível a transgressão da finitude, ou, uma
ultrapassagem dos limites impostos pela experiência moderna
(FOUCAULT, 2005b). Nisso reside o pragmatismo de Foucault, nem
comunicação, nem poder, mas práticas, pois “[q]uem somos, [...] embora
historicamente determinado, nunca é, [...] historicamente exigido. Nossa
liberdade reside na contingência de nossa determinação histórica [...]”
(RAJCHMAN, 1993, p. 116).
Na obra de Fimiani (2008) Erótica y retórica há o esforço inédito
em reescrever a luta por reconhecimento (Anerkennung) entre senhor e o
servo de matriz hegeliana à tematização dos modos de vida greco-
romanos de Foucault. De acordo a autora: “[...] não há dúvida de que a
deflão explícita de todo absoluto, de toda identidade ou síntese
239
distância Foucault de Hegel. Mas ainda podemos nos perguntar se não
há, em Foucault, insuspeitáveis momentos de convergência e de analogia
[...]” (FIMIANI, 2004, p. 89) com a tematização hegeliana. Isso se torna
possível, diz Fimiani (2008), por um lado, na exploração da erótica entre
os gregos, notadamente a dimensão do verdadeiro amor problematizado
mediante o prazer pelos rapazes, qual seja, da invenção da amizade como
prática da liberdade, e, de outro, pela análise da retórica, englobando os
exercícios espirituais em face às transformações ocasionadas pela fala
verdadeira (parresía).
Fimiani (2008) ressalta que o retorno de Foucault ao mundo
antigo ocorre concomitantemente com a redescoberta de Kant e a
intensificação da problemática das Luzes. Nessa visão, “[...] o convite a
atualizar o mundo, que Foucault extraiu da divisa kantiana do sapere
aude, se combina com a coragem de verdade e com o tema da parrhesia
grega” (FIMIANI, 2004, p. 120). Próxima a Gros (2006), Fimiani
(2004) argumenta que o sujeito ético de Foucault é uma espécie de
resposta a predominância do governo pastoral da vida, nesse sentido,
O uso dos prazeres empreende a construção de uma estratégia da
resistência, a atribuição ao acontecimento do estatuto de elemento
que resiste à ocupação dos dispositivos e a criação de um vínculo
possível entre os momentos que os estratégicos esboçam no seio dos
movimentos reais (FIMIANI, 2004, p. 94, itálico da autora).
Embora sejam inegáveis as contribuições greco-romanas para a
compreensão tradicional da civilização ocidental, é preciso examinar
detidamente o que Foucault enxergou como novidade grega cuja força se
introduz como questão à ontologia do presente. Em Do governo dos vivos,
Foucault (2014b) diz que o universo greco-romano não era estranho à
240
ideia de falta, ou, alheio à responsabilidade. Porém, diferentemente dos
modernos, os antigos não definiam seus processos de subjetivação em
referência a uma lei ou um desejo. Isso não significa que era um mundo
de inocência, ou, plenitude, muito pelo contrário, os antigos souberam
inventar e investir o bios de uma arte de vida.
Interpretando esse momento, Deleuze (1988, p. 108) diz: “[...]
eis o que fizeram os gregos: dobraram a força, sem que ela deixasse de ser
força. [...] Longe de ignorarem a interioridade, a individualidade,
a subjetividade, eles inventaram o sujeito, mas como uma derivada, como
o produto de uma ‘subjetivação’” (DELEUZE, 1988, p. 108). Por sua
vez, Foucault (2016b) inicia o curso Subjetividade e verdade descrevendo
alguns fragmentos da arte de viver.
[...] Essa literatura sobre as artes de viver, sobre a arte de conduzir-se
perdurou muito tempo e agora desapareceu. [...] em sociedades como
as nossas, uma arte da conduta [...] perdeu absolutamente sua
autonomia. Agora só encontramos esses modelos de conduta
investidos, embalados no interior é claro, da grande, grossa, maciça
prática pedagógica. É a pedagogia que veicula grande parte dessas
instruções de existência. [...] o que chamamos ciências humanas [...]
veicula [...] esquemas considerados [...] bons modelos de conduta [...]
(FOUCAULT, 2016b, p. 27).
Em grego existem dois termos principais para designar a vida, z,
vida natural e bios, vida qualificável, a maneira de viver, ou como diz
Foucault (2016b, p. 33) “[...] a vida tal como podemos fazê-la
pessoalmente, decidi-la pessoalmente [...]”. O bios, assevera Foucault
(206b), guarda a expressão que mais se aproxima daquilo que se
compreende por subjetividade. Com efeito, o cuidado enquanto
241
dimensão das artes de viver diz respeito a uma técnica (tékhne) de
transformação refletida e racional a respeito do bíos.
Na aula de 25 de março de 1981, o autor diz que os antigos
definiam essa arte de viver do seguinte modo:
[é] a forma de relação que ele mesmo decide ter com as coisas, a
maneira como se coloca com relação a elas, a maneira como as finaliza
com relação a si mesmo. É ainda a maneira como insere sua própria
liberdade, seus próprios fins, seu próprio projeto nas coisas em si, a
maneira como, por assim dizer, as coloca em perspectiva e as utiliza.
[...] (FOUCAULT, 2016b, p. 226).
o sem motivo que as primeiras aulas de Hermenêutica do
sujeito, Foucault (2006b) caracteriza o cuidado de si (epimeleia heautou)
como um modo de atenção. Por isso, dois meses depois das aulas de
Subjetividade e verdade, em Malfazer, dizer-verdadeiro, o filósofo declara:
[...] o bios - a vida - não pode ser devidamente vivido sem que, a cada
instante, em todos os aspectos, em todos os momentos, seja qual for a
atividade realizada, haja uma regra que nos diga o que fazer. Não se
pode viver, o bios não pode ser vivido sem um sistema de regulação,
sem uma codificação extraordinariamente rigorosa que possibilite a
cada instante decidir o que fazer e o que não fazer (FOUCAULT,
2018, p. 114).
Portanto, o objeto de preocupação fundamental é precisamente
esse bios imanente, a subjetividade modelada como arte de viver. Assim
como em Do governo dos vivos, nas aulas de 1981 o autor evoca com
frequência o chamado de adesão, o constrangimento e a obrigação de
242
manifestar a verdade pelo autos, com a particularidade que o objeto de
investigação nesse contexto é a conduta moral em vista da atividade
sexual. Nesse projeto, existem três modalidades de relacionamento
consigo que assumem como objeto de problematização o sexo: primeiro,
a experiência dos aphrodísia grega; depois, a experiência da carne cristã; e,
enfim, a experiência da sexualidade moderna.
Para Foucault (2007b) os processos de subjetivação dos gregos
não eram juridificados dominados pelo código como a dos
modernos, organizada pela confissão, condição de discurso obrigatório
sobre uma parte indissociável do sujeito sobre si mesmo. Em Louvain, o
filósofo destaca que o cristianismo se organizou em torno de duas
principais formas de veridicção, fundamentais à hermenêutica do sujeito,
a verdade do texto e a verdade de si cujo vínculo era o de obediência e
obrigação de manifestar pelo exame exaustivo e mortificação de si,
portanto, elo fundamental entre leitura do texto e verbalização de si
mesmo. Na religião do livro o dogma e a direção de consciência eram os
guias que permitiam ao cristão escapar das ilusões da carne, já que, as
possibilidades de ser enredado pela ilusão exigiam vigilância constante.
De acordo com Foucault (2018), os filósofos modernos
deslocaram o problema da verdade do texto para a convergência entre
verdade da razão e a verdade do si-mesmo, escapando das ilusões graças à
evidência do cogito, a exclusão da loucura e do sonho. O retorno da
inevitabilidade da ilusão sobre si mesmo ocorreu com a crítica kantiana
de Schopenhauer e, principalmente, com o pensamento de Freud, haja
vista que a constituição do sujeito passou a gravitar ao redor do princípio
do desejo. Conforme Rajchman (1993, p. 41) Freud religou a ética
novamente ao éros, mostrando, tanto, o conhecimento da boa vida,
quanto, a racionalidade mais abstrata, gira em torno do desejo, ou, para
ser mais explícito, o autor “[...] ofereceu uma nova imagem do que é
243
alguém viver sua vida, habitar seu mundo e manter relações consigo
mesmo e com os outros: esse mundo unheimlich em que o ego não é o
senhor da casa, ou em que o sujeito está chez lui no inconsciente
(RAJCHMAN, 1993, p. 41).
Não por acaso em O uso dos prazeres, Foucault (2007b, p. 10,
aspas do autor), escreve “[...] experiência da sexualidade pode muito bem
se distinguir, como figura histórica singular, da experiência cristã da
'carne': mas elas parecem ambas dominadas pelo princípio do 'homem de
desejo'.” Sob esse ponto de vista, o retorno ao mundo greco-romano no
contexto do projeto de História da sexualidade possui como objetivo
mostrar como foi que o desejo deixou de ser apenas um elemento nos
processos de subjetivação para ocupar centralidade nos dispositivos
modernos. Isso nos reconduz diretamente para o tema desta pesquisa,
como observa Chaves (2019, p. 263, aspas do autor):
[t]ema hegeliano por excelência, atualizado na França pela psicanálise
lacaniana, o tema do “reconhecimento” de si é indissociável da
questão da verdade do sujeito. As palavras-chave estão dadas: “prestar
atenção a si”, “se decifrar”, “se reconhecer”, “se confessar”. Nessa
perspectiva, o deslocamento radical de uma análise centrada no século
XIX em “A vontade de saber” para uma análise da Antiguidade greco-
romana em “O uso dos prazeres” e “O cuidado de si” encontra agora
seu motivo e fundamento: só é possível compreender de que maneira
o “indivíduo” moderno passa a se reconhecer como “sujeito” ao
indagar sobre sua sexualidade, na medida em que se torna imperioso
mostrar, genealogicamente, como o “homem ocidental”, num
trabalho que durou séculos, pode se reconhecer como “sujeito do
desejo”. Era preciso, então, fazer uma “história do homem do desejo”.
244
Buscando as linhas de descontinuidade nessa história, Foucault
(2007b) assume como eixo de problematização as práticas regradas de si,
isto é:
[...] práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não
somente se fixam regras de conduta, como também procuram se
transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma
obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos
critérios de estilo. Essas 'artes da existência', essas 'técnicas de si',
perderam, sem dúvida, uma certa parte de sua importância e de sua
autonomia quando, com o cristianismo, foram integradas no
exercício de um poder pastoral e, mais tarde, em práticas do tipo
educativo, médico ou psicológico (FOUCAULT, 2007b, p. 15).
Ademais, os gregos não se definiam com referência a uma
sexualidade, termo que surgiu tardiamente, no início do século XIX, com
a elaboração da moderna scientia sexualis, mas, mediante o uso regrado
dos prazeres (chrèsis aphrodision). Por isso, ao ins de partir de
interdições de base, Foucault (2007b, p. 25) pesquisa regiões na qual o
comportamento sexual foi tomado como objeto de preocupação, de
estilização individual. Na sociedade do culo IV a.c, predominava o
ponto de vista dos homens livres e suas atividades. E sua moral foi
pensada, escrita, ensinada por homens e endereçada a homens, voltada
essencialmente a partir do pólo masculino da atividade e da penetração
de modo que “[...] a conduta sexual de um homem cuidadoso de si: eles
reconheciam, na maneira de ter essa espécie de prazer, um problema
(2007b, p. 36). Isso o significa que se reconheçam como
homossexuais, uma construção tardia da scientia sexualis, logo,
inadequada para descrevê-los. Os gregos não percebiam nas práticas
sexuais duas espécies de desejos, ou de pulsões divididas, ao contrário
245
disso, seja qual fosse “[...] o que fazia com que pudesse desejar um
homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza tinha
implantando no coração do homem para aqueles que são belos qualquer
que seja o seu sexo” (FOUCAULT, 2007b, p. 168).
Como questão ética, por um lado, era uma sociedade que
desconfiava dos perigos do sexo, especialmente, do dispêndio, do excesso,
da passividade e da intemperança, percebendo o parentesco do sexo com
a morte, a doença e até com a guerra. Por outro lado, valorizavam a
atividade sexual ligando-a ao domínio de si (enkrateia). Além disso, é fato
que “[...] por meio {da atividade sexual} que os seres vivos podem se
reproduzir, que a espécie em seu conjunto escapa à morte e que as
cidades, as famílias, os nomes e os cultos podem se prolongar muito além
dos indivíduos destinados a desaparecer” (FOUCAULT, 2007b, p. 46,
inserção entre colchetes). Entretanto, o regime dos prazeres abarcava
outras atividades como a Diétetica que regrava a ingestão de alimentos, os
cuidados com a saúde, o sono e a ginástica; e, a Econômica que se referia
ao governo político da casa (oikos), composto pela mulher, os escravos e
os filhos.
Diferentemente da experiência cristã da carne na qual o sujeito é
levado a desconfiar, decifrar e reconhecer para revelar o mal que provém
dos pensamentos e desejos, dos aphorodisia o ato, desejo e prazer formam
um conjunto, posto que “[...] o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado
ao prazer, e o prazer que suscita o desejo [...]” (FOUCAULT, 2007b, p.
42). De acordo com Fimiani (2004, p. 96) esse círculo dos aphorodisia
torna-se muito importante à medida que “[...] desejo e prazer não se
limitam simplesmente a existir; eles estão dispostos à elaboração de uma
prática de si capaz de tornar efetiva a força enquanto poder ético ou uso
refletido da liberdade.”. Assim como na fenomenologia hegeliana, o
desejo não se traduz em puro apetite, mas, se dirige para outro desejo, no
246
círculo aphorodisíaco o desejo acompanhado pelo prazer e o ato está
ligado à realização da arte de viver. Foucault (2007b) explora isso em sua
quadritemática no qual substância ética, tipos de sujeição, formas de
elaboração de si e de teleologia moral que correspondem ao corpo, às
instituições, o prazer dos rapazes e a sabedoria. Para Fimiani (2004, p.
99) esses sucessivos deslocamentos culminam no combate de vida e
morte que é a luta por reconhecimento.
Fimiani (2008) correlaciona a inversão da dominação na dialética
da servidão com os estados de dominação e relações estratégicas que
Foucault menciona na entrevista A ética do cuidado de si como prática da
liberdade na qual se pode ler:
[...] é preciso distinguir as relações de poder como jogos estratégicos
entre liberdades jogos estratégicos que fazem com que uns tentem
determinar a conduta dos outros, ao que os outros tentam responder
não deixando sua conduta ser determinada ou determinando em
troca a conduta dos outros e os estados de dominação, que são o
que geralmente se chama de poder. E entre os dois, entre os jogos de
poder e os estados de dominação, temos as tecnologias
governamentais, dando a esse termo um sentido muito amplo trata-
se tanto da maneira com que se governa sua mulher, seus filhos,
quanto da maneira com que se dirige uma instituição. A análise
dessas técnicas é necessária, porque muito frequentemente é através
desse tipo de técnicas que se estabelecem e se mantêm os estados de
dominação. Em minha análise do poder, há esses três níveis: as
relações estratégicas, as técnicas de governo e os estados de dominação
(FOUCAULT, 2006a, p. 286).
Para Fimiani (2008) no pensamento de Hegel a liberdade
subjetiva e a reflexividade da pessoa exprimem-se na presença corporal,
no enigma da relação entre a alma e o corpo, enquanto que para Foucault
247
a reflexividade consiste na produção da dimensão ética do sujeito. Em
suas últimas entrevistas, Foucault (2006a) não cessa de relacionar esse uso
regrado dos prazeres ao preceito do cuidado de si que no mundo greco-
romano consistia no modo como a liberdade individual foi pensada
como uma ética. Ao contrário de Hegel para quem o indivíduo tinha
pouca importância diante da totalidade da polis, para Foucault (2006a) os
gregos entendiam a liberdade como um problema inteiramente ético e
político, significando para eles não-escravidão. Ser livre é não ser escravo
dos outros, nem de si mesmo, como entende Fimiani (2004, p. 100): “[a]
experiência do domínio suscita imediatamente o reconhecimento
desigual, mas também dá nascimento à experiência da inversão.”
Na Antiguidade, a ética como prática da liberdade girou em
torno desse imperativo fundamental: cuida-te de ti mesmo. Para Foucault
(2006a, p. 271) o cuidado implica uma série de relações complexas com
os outros, uma vez que esse êthos da liberdade é também uma maneira de
cuidar dos outros. Para os gregos requer-se do homem livre, que se
conduz prudentemente, que saiba governar sua mulher, seus filhos e sua
casa. Nisso reside essa arte de governar que envolve a um só tempo o
governo de si e dos outros. O êthos implica uma relação com os outros e
com a cidade, seja para exercer a cidadania, ou, para nutrir as amizades.
Sobretudo, o uso dos prazeres (chrèsis aphrodision) exige o
conhecimento de si mesmo a fim de praticar a virtude e dominar os
desejos para assim chegar à temperança (sophorosune), que caracteriza o
sujeito moral em sua realização. Nesse jogo, admite-se um único sujeito
do prazer: o homem livre. A mulher, o escravo e o rapaz são vistos como
os correlativos naturais da penetração, portanto, objetos de prazer. Em
contrapartida, a relação homem-rapaz é difícil e complexa, pois, o prazer
do escravo não chega a constituir um problema moral, e, o prazer da
mulher é tido como princípio de excesso, além do mais, a cidadania era
248
reservada aos homens, já o estatuto do rapaz é diferente, porque, que se
espera que um dia ele se torne um cidadão livre e sujeito ativo nas
relações sociais. Escreve Fimiani (2004, p. 108): “[...] irredutibilidade do
outro, que constitui o início do verdadeiro movimento amoroso. O
caráter antinômico do rapaz grego deriva do fato de ele ser, ao mesmo
tempo, objeto e sujeito.”.
Devido a isso, a questão do rapaz se apresenta como a grande
linha de fragilidade nos modos de subjetivação grega se constituindo
objeto de intensa problematização moral. Para resolver esse dilema os
gregos inventaram todo um jogo de corte, de galanteio, de conquista e
caça ao rapaz que seguia os critérios de isomorfismo social e de atividade,
visto que, ao contrário, da relação com as mulheres que se desenrolam no
espaço da casa, a relação com os rapazes ocorria nos espaços comuns, da
rua, nos lugares de reunião. Essas regras:
[...] fixam o papel do erasta e do erômeno. O primeiro tem a posição
de iniciativa, ele persegue, o que lhe dá direitos e obrigações: ele tem
que mostrar seu ardor, e também tem que moderá-lo; ele dá
presentes, presta serviços; tem funções a exercer com relação ao
amado; e tudo isso o habita a esperar a justa recompensa; o outro, o
que é amado e cortejado, deve evitar ceder com muito facilidade;
deve também evitar aceitar demasiadas honras diferentes, conceder
seus favores às cegas e por interesse sem pôr a prova o valor de seu
parceiro; também deve manifestar reconhecimento pelo que o amante
fez por ele (FOUCAULT, 2007b, p. 174-175).
A passagem da adolescência para a vida adulta carrega incerteza,
depende da formação (paideia). De acordo com Cin Falchi (2013, p. 72)
cabe ao efebo “[...] recordar sua origem e status, guardando em sua
memória aqueles que puderam preservar sua honra a fim de não frustrar
249
suas esperanças [...]” em relação ao futuro. Nesse “[...] um momento de
alta fragilidade e que se constitui em um período de prova [...]”, se
encontra em risco sua reputação “[...] o jovem deve se formar, no sentido
de se exercer e de se medir para que, posteriormente, quando velho, possa
velar pelos mais jovens, assim como foi feito com ele.” (FALCHI, 2013,
p. 73). Por essa razão, a honra ocupa lugar importante na erótica, pois,
para que essa relação não se degenere, torne-se causa de escândalo e
vergonha, os gregos dispunham de uma casuística dos sinais de futura
virilidade, havia uma estética moral do corpo que revelava o valor pessoal
e o amor do rapaz. Esse ponto é nevrálgico para a formação do jovem,
escreve Foucault (2016b, p. 85):
[...] Daí a necessidade [...] de fazer surgir outro elemento, que não é
nem o do isomorfismo nem o da atividade, e que é o da erótica. [...]
O que é o erós? É precisamente aquele sentimento, aquela atitude,
aquela maneira de ser que vai fazer com que, até nessa atividade
sexual, se leve em conta o outro enquanto está se tornando sujeito.
Diz a autora italiana que é “[...] na Erótica que a produção de si
se realiza em uma atitude especial de pensamento, elaborada
na epimeleia ou no 'cuidado socrático' como desdobramento essencial dos
poderes éticos” (FIMIANI, 2004, p. 104, aspas da autora). Assim, o
vínculo de amor (éros) está destinado a desaparecer e dar lugar à amizade
(philia), doravante, privilegiando a relação de cuidado com a verdade.
Continua o autor, nessas circunstâncias:
[...] o éros comportaria a renúncia do mais velho a toda atividade
sexual referente ao mais jovem [...] Renúncia à atividade sexual, mas
ao mesmo tempo, é claro, espaço cada vez mais considerável
250
concedido ao jogo de verdade, na medida em que a verdade que o
adulto transmite ao rapaz na relação pedagógica vai pouco a pouco
fazer do rapaz um sujeito (FOUCAULT, 2016b, p. 86).
Como objeto de preocupação filosófica, a erótica é tematizada no
último capítulo de Uso dos prazeres, dedicado justamente ao verdadeiro
amor dos filósofos. Foucault (2007b) permanece em torno do corpus
platônico, notadamente do Banquete, entre as famosas disputas e belos
discursos sobre o amor até as lições da sacerdotisa Diotima. Sócrates nos
é apresentado como o mestre que cuida do cuidado. Dentre os elementos
de intersecção desta obra com os cursos proferidos no Collége cabe
enfatizar que o momento platônico do cuidado de si é aquele no qual o
conhecimento de si adquire preponderância na ascese filosófica.
Conforme Fimiani (2004; 2008) é a partir dessa prática etica
elabora em face da antinomia do rapaz que se produz a experiência da
inversão capaz de reescrever o trabalho fatigante e a luta por
reconhecimento (Anerkennung), já que:
[...] a certeza da liberdade, ao se pôr de maneira imediata, indica de
fato uma dissimetria essencial e uma dominação inconteste. Só se
conhece a liberdade como o oposto de si mesma. Tal dissimetria
incita então a repor a pergunta pelo domínio num campo onde ela
possa reencontrar o outro como um outro senhor potencial, um
outro sujeito livre, por seu estado e por sua finalidade. Tal campo é
representado pelo amor pelo jovem grego. É no 'amor grego pelos
rapazes' que se abre o lugar de emergência do movimento da Erótica
(FIMIANI, 2004, p. 107).
Embora envolvesse inicialmente uma luta desigual, o desafio da
erótica vincula modalidades diversas de sujeitos livres, por intermédio de
251
uma agonística nutrida pelos afetos corporais, pelos desejos e prazeres da
atividade, cujas regras são: a moderação, o respeito, a doação e finalmente
a inversão. De acordo com Foucault (2007b) o verdadeiro amor do
mestre filósofo enfrenta a antinomia do rapaz operando alguns
deslocamentos nesse jogo de éros, a começar, substituindo a questão da
conduta amorosa adequada pela interrogação do ser do amor.
Na erótica platônica a ênfase já não se encontra na honra, mas,
no amor da verdade; não mais dissimetria dos parceiros e, sim,
convergência entre os amantes; e, por fim, passagem da virtude do rapaz
para o amor do mestre e sua sabedoria. Continua o pensador, dizendo:
“[n]a erótica platônica, o amado não poderia manter-se na posição de
objeto em relação ao amor do outro, esperando simplesmente
recolher, em nome da troca à qual ele tem direito (posto que é
amado), os conselhos de que necessita e os conhecimentos aos quais
aspira. Convém que ele se torne efetivamente sujeito nessa relação de
amor. Esta é a razão pela qual [...] a inversão faz passar do ponto de
vista do amante ao do amado. [...] Esse momento é importante:
diferentemente do que se passa na arte de cortejar, a dialética do amor
exige aqui nos dois amantes dois movimentos exatamente
semelhantes; o amor é o mesmo, posto que é, tanto para um como
para o outro, o movimento que os arrebata para o verdadeiro
(FOUCAULT, 2007b, p. 210).
Não se pode tornar o episódio da erótica, uma interdição de si,
episódio análogo a queda, ou, do esquecimento do ser. Os gregos não se
percebiam como sujeitos de desejo atrelado à falta. As escolhas em
problematizar o amor dos rapazes decorreram da elaboração de uma
ética, da invenção de um modo de vida. Portanto, o éros que dá lugar a
philia é expressão do cuidado de si que privilegia o conhecimento e o
252
reconhecimento de si, quer dizer: “[é] necessário saber em que consiste a
alma. A alma não pode conhecer a si mesma, a não ser ao olhar para si
em um elemento similar, um espelho. Assim, ela deve contemplar o
elemento divino” (FOUCAULT, 2004a, p. 332). As primeiras aulas de
Hermenêutica do sujeito são dedicadas inteiramente a tratar da ascese
platônica como um estado político e etico ativo. Em debate encontra-
se o jovem Alcibíades, que prestes a ingressar em sua vida pública e
política, deseja falar ao povo e ser o todo-poderoso na cidade. Não
contente com seu status atual, com seus privilégios de nascimento e de
herança, Alcibíades almeja adquirir poder pessoal sobre todos os outros,
dentro e fora da cidade. É nesse ponto que Sócrates intervém e declara
seu amor por Alcibiades que já não pode ser o amado, mas deve se tornar
o amante. Ele precisa tornar-se ativo no jogo político e no jogo do amor e
o caminho para isso é cuidando de si. Alcibiades precisa submeter-se ao
seu amante, Sócrates, mas, não no sentido físico, e sim, espiritual.
Segundo Fimiani “[c]om Sócrates, aparece o verdadeiro objeto do
amor, ou seja, a própria prática do Eros e do ethos que coincide com a
epimeleia, a modalidade ética do ato de amor” (2004, p. 112). De amado
Alcibíades deve se tornar amante do verdadeiro amor. O encontro com o
cuidado coloca em jogo as forças capazes de produzir dois amantes, dois
sujeitos de Eros.
O uso dos prazeres analisa o problema dos prazeres dos gregos em
termos de penetração e do status culminando na antinomia do rapaz, seu
escopo pertence ao momento soctico-platônico do cuidado. No
entanto, é preciso se perguntar, se para Foucault não foram os gregos que
revestiram o desejo de falta, como ocorreu essa passagem para a
hermenêutica do desejo? Como se tornou possível tratar o problema
mediante a ligação entre libido e vontade, e depois, entre o princípio do
desejo e da doea mental? Em Subjetividade e verdade Foucault (2014b)
253
mostra que com o declínio das cidades gregas e o fenômeno cultural
maciço do helenismo ocorre no nível das tecnologias de si o
questionamento continuum sociossexual e inicia o processo de localização
exclusiva a relação sexual na conjugalidade: é a invenção do casal, a
valorização do casamento. Esse processo modifica a compreensão dos
princípios de isomorfismo e de atividade convertendo-se em uma crítica
do prazer. Nesse período intermediário, a própria personagem do filósofo
passa a manter analogia com a posição do rapaz, haja vista que na
condição de sujeito de verdade ele não pode ser sujeito da atividade no
campo social. O casamento constitui problema, tanto, à vida
contemplativa, ou, como, na vida nica, de batedor da verdade, dado
que, “[...] o cínico, aquele que vive cinicamente, ou seja, o militante
filósofo, é alguém que [...] é sem cidade, sem vestimentas, sem casa, sem
mulher, sem filhos, sem pátria” (FOUCAULT, 2014b, p. 105).
Em O Cuidado de si, Foucault (1994) concentra-se nos escritos
helenísticos do século II da era cristã, mostrando que a questão da
atividade sexual do filósofo, a proximidade entre o filósofo e o rapaz se
desvaneceu em proveito de outra questão, qual seja: como efetivamente
se conduzir filosoficamente no interior do casamento? No período
helênico as artes de viver edificam-se em torno da cultura de si.
Por essa expressão, é necessário entender que o princípio do cuidado
adquiriu um alcance bastante geral: o preceito de que é necessário
ocupar-se de si é, em todo caso, um imperativo que circula entre
numerosas doutrinas diferentes; assumiu também a forma de uma
atitude, de uma maneira de se comportar, impregnou os modos de
viver; desenvolveu-se em processos, em práticas e receitas que foram
reflectidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas; constituiu, assim, uma
prática social que deu lugar a relações interindividuais, a trocas e
comunicações e por vezes mesmo a instituições; originou, finalmente
254
um certo modo de conhecimento e elaboração de um saber
(FOUCAULT, 1994, p. 55).
O cuidado torna-se, assim, o princípio capaz de intensificar as
relações sociais. Isso significa que as relações de cuidado (epimeleia)
adquiriram contornos de um princípio universal. Diferentemente, da
ascese platônica, não repousa mais em exortação sobre uma fase da vida e
da educação, pois, o cuidado de si arrasta-se por toda a existência, “[...] é
um princípio válido para todos, a todo o momento e durante toda a
vida” (FOUCAULT, 1994, p. 59). Porém, mesmo que os filósofos
pretendessem dirigir-se a todo mundo e à humanidade em geral -
podiam ser compreendidos e seguidos por um grupo social muito
pequeno, por uma elite cultural. Esses grupos sociais eram as aristocracias
de concorrência senatoriais, muito limitadas em número, portadores de
alta cultura e para quem uma techne tou biou podia ter sentido e uma
realidade.
E mesmo o conhecimento de si assume as particularidades do
exame de consciência distanciando-se da dialética socrático-platônica. O
modelo pedagógico (que comportava uma relação com éros) foi
substituído pelo modelo médico (pathos). Nessa ascese:
[a] relação consigo torna-se a condição prévia para se ter direito ao
domínio sobre os outros. [...] dominar a si mesmo [...] ter domínio
sobre seu desejo [...] O exemplo exato, aquele sobre o qual os estóicos
refletirão e depois em seguida toda a literatura patrística, é o famoso
exemplo de Sócrates com Alcibíades. Sócrates não consuma uma
relação sexual com Alcibíades, não porque não o deseje, mas porque
desejando Alcibíades, considera que, se quiser ter com ele as relações
pedagógicas que pretende, precisa renunciar a esse prazer sexual. Mas
o desejo permanece. Para Sócrates, portanto, não está em causa
255
arrancar do fundo de si mesmo seu próprio desejo
[...] epithymía [...] (FOUCAULT, 2014b, p. 238).
A valorização da velhice que é a coroa da vida assume o lugar da
preparação da juventude. Desenvolvida no quadro das reflexões sobre a
moral dos prazeres, nessas artes de existência “[o] prazer sexual enquanto
substância ética ainda é [...] da ordem da força da força contra a qual é
necessário lutar e sobre a qual o sujeito deve assegurar o seu domínio
[...]” (FOUCAULT, 1994, p. 81). Apesar disso, não se verifica, no
desenvolvimento dos temas da austeridade estóica um “adensar das
interdições”, ou seja, não se reforçou aquilo “que poderia impedir a
realização do desejo”. Ao contrário, conforme Foucault, a “[...] mudança
incide muito mais no modo como o indivíduo deve constituir-se
enquanto sujeito moral (1994, p. 81). A moral sexual das escolas
helenísticas exigia do indivíduo se submeter a uma arte de viver capaz de
definir os critérios estéticos e éticos da existência, que por sua vez, referia-
se aos princípios universais da natureza ou da razão a qual todos devem se
submeter independentemente do seu estatuto.
Direcionado, por filósofos, pedagogos, diretores de consciência
ou condutores de vida, a uma elite que sabia ler e escrever os conselhos
sobre o casamento adquire grande importância no pensamento estóico.
Diferentemente, da concepção tradicional de Aristóteles na qual a relação
entre homem e mulher era da ordem de uma fortíssima amizade, os
estóicos acreditavam que o casamento implicava uma relação de fusão
(krâsis) entre os parceiros. Para Aristóteles o homem era um animal
sindiástico (syndyastikós) inclinado a viver a dois, ou seja, a relações duais
no interior da polis. O filósofo grego também ensinou que era preciso
distinguir os laços de amizade entre camaradas (phília hetairiké) que se
constitui por homologia de uma comunidade de interesses (en koinonía
256
pâsa philía estín) e a amizade que se baseia na relação de parentesco
(syngeniké), aquela liga os pais aos filhos, irmãos e primos entre si.
Embora, seja mais que companheirismo, a relação marital não difere em
grau de natureza da relação de amizade. Já para os estóicos a relação
conjugal implica uma unidade orgânica, a constituição de um único
corpo (Antípatro), uma mistura de corpos (krâse), uma comunidade de
corpo e alma. Por consequência, é no interior do casamento que se
acham os únicos prazeres sexuais legítimos. Aliás:
[...] o prazer sexual se acha ou eliminado radicalmente pelos estóicos
ou então subordinado, na qualidade de puro instrumento ou de puro
intermediário, a objetivos que são a procriação de filhos, a
descendência e a constituição, a reconstituição, o revigoramento do
vínculo entre os esposos (FOUCAULT, 2014b, p. 149).
Para Foucault (2014b) nesse período intermediário do helenismo
ocorreu uma conjugalização do regime dos aphrodisia, que foi reinvestida
pelo cristianismo e pela experiência da carne cristã. O verdadeiro amor, a
erótica dos rapazes é desqualificada, pois, o rapaz não pode aquiescer
docemente na relação sexual, não pode dar lugar a kháris, tendo em vista
que seu paradoxo reside em não consentir ser objeto de prazer. Portanto,
o amor por rapazes, tornou-se áneu kharíton, um amor desgraçado, se
desvaneceu para dar lugar à ética do casamento. Nessas artes de viver, a
relação do homem com a mulher não é o avesso do que acontece na vida
pública, mas a condição para a existência da vida pública. Foucault
(2014b, p. 192-193), retoma as cartas de Plínio, principalmente os
termos associados ao desejo (desiderium) que atuam nelas, na qual se
pode ler, por exemplo, [...] o amor que tenho por ti e que me faz sentir
tu falta [...] tua ausência faz nascer um desejo, um desiderium que tem
257
como fundamento o fato de tua presença física me fazer falta, de me
fazeres falta sexualmente (FOUCAULT, 2014b, p. 192). Desse modo, o
filósofo localiza o nascimento da problemática ocidental do desejo no
interior da imagem ideal da família conjugal, da conjugalidade como
condição da vida comunitária, dessa relação entre homem e mulher tal
como é definida nesse momento, e sob a qual o desejo marca sua solidez
e força. Continua Foucault (2014b) na modelagem helenística:
[...] o elemento necessário a ser controlado [...] é a epithymía, o desejo
que incessantemente faz com que eu, como sujeito da atividade
sexual, seja tentado, levado, impelido a fazer minha atividade sexual
extravasar para o meu status de indivíduo dotado de um sexo. É esse
desejo, é essa epithymía que devo controlar e dominar, que devo
observar e levar com conta já em sua origem para me assegurar de que
vou poder estabelecer, manter e renovar ao longo de todo meu
comportamento a cesura necessária para a relação que tenho com
meu próprio sexo. O desejo é isolado como o elemento que vai
ancorar a subjetivação dos aphrodísia: é em forma de desejo que vou
estabelecer a relação permanente que tenho com meu próprio sexo. E
é em forma de desejo, de epithymía , que vai ser objetivado em mim o
que pede para ser controlado, dominado e conhecido.[...] O desejo
era apenas um aspecto da manifestação de um mecanismo orgânico:
acumulação dos humores. Esse desejo estava ligado a um prazer,
prazer que por sua vez era a vertente, no campo da alma, de uma
atividade, de um mecanismo que era da expulsão espermática. [...]
Corpo, alma, prazer, desejo, sensação, mecanismo do corpo [...]
formava [...] um bloco paroxístico [...] dos aphrodísia. O que a
tecnologia de si faz [...] é [...] extrair, isolar desse conjunto [...]
a epithymía (o desejo), diminuindo consideravelmente a importância
do ato [...] (FOUCAULT, 2014b, p. 258-259).
258
Extraído e isolado do círculo aphorodisíaco o desejo passa a
predominar nos modos de subjetivação. Por conseguinte, não é exagerado
dizer então que se tem a emergência do homem de desejo, uma vez que,
o discurso estóico antecipa certos elementos da experiência da carne. Essa
temática permeia todo Ocidente, de Tertuliano a Freud, incidindo em
toda malha tecnológica de escrutínio da subjetividade, tipificada na
metáfora do cambista. De acordo com Rajchman (1993, p. 108) no
cristianismo acontece uma internalização de Eros, em virtude do
reinvestimento das técnicas de exames cujo resultado é o processo pelo
qual as pessoas foram levadas a encontrar a verdade da sua sexualidade
dentro de si, como mal revelado. Entre o período de problematização do
corpo dos rapazes e o corpo biopolítico, houve uma valorização da pureza
da mulher. O saber de Diotima foi relegado à feitiçaria, torna-se signo do
perigo e da abjeção.
Por fim, o caso da erótica permite-nos traçar uma relação
diagnóstica tanto em relação ao elemento da honra, quanto do desejo. De
um lado, pode-se observar como a questão da honra circunscrita ao
âmbito das tecnologias de si participa dos processos de subjetivação e
gradativamente sofre uma série de modificações até converter-se na
questão da dignidade moral tal como pode ser encontrado em Kant,
Taylor e Honneth. E de outro, como o desejo passa a predominar na
gramática das artes de viver até assumir centralidade na experiência cris
da concupiscência. A honra do rapaz e posteriormente a pureza da
mulher aparecem como objetos de preocupação moral revelando-nos os
epidios da genealogia do reconhecimento. E no mundo moderno, tal
dinâmica assenta-se na questão da emergência do corpo como espaço de
problematização.
Foucault (2014b) termina as aulas do curso 1981 mencionando o
problema do príncipe devasso, daquele que é tomado pelas paixões e que
259
não domina a si mesmo. Denúncias contra a intemperança do soberano
eram comuns às artes de viver próprias as aristocracias senatoriais que
lutavam pelo poder político nesse período. Em questão encontra-se a
própria alma do príncipe, enquanto instância suscetível de ser
modificada, em seu ser, pela relação com a verdade, um problema
transversal que atravessa a história de Platão até Kant. Por isso, é
compreensível que nos anos seguintes os cursos sejam dedicados ao
governo e cuidado de si e dos outros que Fimiani (2008) congrega sob a
designação de retórica, isto é, da transformação do sujeito de verdade
ante o discurso verdadeiro.
261
Considerões Finais
Apesar de tudo e mesmo fora de referências cristãs explícitas, temos um
grande modelo da subjetividade. [...] constituído, em primeiro lugar, por
uma relação com um além-mundo; em segundo lugar, por uma operação
de conversão; em terceiro lugar, pela existência de uma autenticidade, de
uma verdade profunda a ser descoberta e que constituiria o fundo, o
alicerce, o solo de nossa subjetividade. Sem dúvida foi isso que o
cristianismo construiu no decorrer dos séculos. [...] nós, nos vínculos
epistemológicos que temos com nós mesmos colocamos a relação que
temos com nossa própria subjetividade mais no lado da descoberta de
uma autenticidade. (FOUCAULT, 2014b, p. 227).
Considerando o que foi discutido neste livro, parece-me razoável
prosseguir com algumas indicações a fim de retomar o percurso e as
questões que foram matizadas, pois, talvez assim, seja possível arriscar
algumas hipóteses para empreendimentos futuros. Todo esforço de
pesquisa despendido deve ser situado no campo da Filosofia da Educação
sendo uma reflexão comprometida com a formação humana. Por isso,
discuti as relações entre a inclusão escolar e as lutas por reconhecimento
desde a perspectiva crítica e genealógica dos processos de subjetivação.
Certamente, as questões que foram levantadas, apresentam grandes
lacunas e precisam de maiores desenvolvimentos, mesmo as
interpretações mais consistentes não são mais do que pontes, caminhos
possíveis que um investigador atento possa averiguar ou desfazer.
262
Diante do predomínio da racionalidade neoliberal, cujo
imperativo ao campo educacional é a composição de capital humano e a
produção do empresário de si, pareceu-me uma maneira de desdobrar as
questões que competem ao papel do intelectual significava correlacionar
as lutas, por respeito e dignidade, que acontecem atualmente com as lutas
transversais que Foucault (1995) via eclodindo em sua época. Ou, dito
de outro modo, tratou-se de desvendar as práticas e técnicas de governo
de si e dos outros sobre qual se assentam as chamadas lutas por
reconhecimento. No pensamento de Foucault, nossa referência
inegociável durante todo o caminho, o reconhecimento participa da
relação do sujeito com a verdade e, por isso, precisa passar pelo crivo da
crítica, por vezes da rejeição e assim da inovação.
A promessa de reconhecimento que se traduziu em entusiasmo
em 2013 e que se tornou, depois, oximoro. O século XXI, desse ponto de
vista, se parece muito com o século XIX, nem tanto por conta da miséria,
da fumaça e do progresso, mas, porque a sociedade liberal demonstra
sintomas de decomposição capazes de nos levar ao ponto de rupturas. O
neoliberalismo procura hoje reviver as comunidades imaginadas,
convertendo as lutas por reconhecimento em uma espécie de
identitarismo multicultural empresarial. A utopia tecnológica já colapsou
antes mesmo de sequer se apresentar como via possível e a máquina social
dirige processos de reconhecimento graças a complexos algoritmos, do
qual nos tornamos consumidores e produtores.
Desse ponto de vista, no primeiro capítulo análise explorou as
compreensões de Taylor e Honneth acerca do reconhecimento. Para
Taylor (1998) as exigências por reconhecimento sãopicas de sociedades
complexas e multiculturais. A busca por reconhecimento do homem
moderno reflete a construção gradual da idéia de individualidade (self) ao
longo de mais de dois milênios. Próprio à modernidade, a ideia de
263
reconhecimento conjuga-se com valores como a dignidade, a autonomia
e a individualidade, sendo correlatas à cultura da autenticidade. No
mundo contemporâneo essas exigências se traduzem em dois aspectos,
políticas de igual dignidade e políticas da diferea. Por vezes em conflito
essas tenncias coexistem no interior da sociedade liberal. De outra
parte, símile a visão de Taylor (1998), Honneth (2003) presentificando
uma interpretação pós-metafísica do jovem Hegel e o aproximando à
psicologia social propõe que os conflitos atuais são moralmente
motivados por expectativas de reconhecimento frustradas. Os sujeitos
contemporâneos se engajam em lutas por respeito e autorrealização
individual. Um e outro rejeitam uma concepção monológica da
subjetividade que, por sua vez, assenta-se na interação comunicativa entre
sujeitos. E desse modo, somam, a sua perspectiva teórica, certas
características antropológicas com pretensão de validade universal. No
entanto, essa exigência antropológica produz alguns impasses ao passo
que não explica as condições que tornaram possível a luta por
reconhecimento. Além disso, se mantém no nível de uma representação
do sujeito humano que entrou em colapso com os novos fluxos
tecnológicos da sociedade neoliberal.
A recepção da teoria do reconhecimento no Brasil,
especificamente, no campo da Filosofia da Educação, necessita ser
entendida nesse giro normativo próprio das perspectivas de Taylor e
Honneth. Nesse ínterim, chama-nos atenção que a identidade é lida
como um bem para o indivíduo. Aliás, a realização do reconhecimento
não é outra coisa senão a constituição de uma identidade autêntica e de
uma personalidade autônoma. Como escreve Jaeggi (2013) a
subjetividade modela-se em uma perspectiva de reconciliação. Porém,
ocorre-nos que escapa a esta perspectiva os processos de sujeição
264
notadamente quando o próprio reconhecimento da identidade implica na
submissão aos poderes e normas existentes.
Pensando, justamente, nesse duplo vínculo do sujeito com a
gramática, no segundo capítulo discorreu-se sobre uma noção não-
normativa do reconhecimento e da crítica. Para isso, aproximei-me do
pensamento da filósofa feminista Judith Butler que sustenta, de um lado,
a existência de um desejo de reconhecimento indeterminado e que não
pode ser totalmente contido e, de outro, a ambivalência no campo das
normas que precedem e excedem o sujeito. Leitora voraz da tradição
francesa de filosofia e da psicanálise, no entendimento de Butler não se
pode prescindir das normas de reconhecimento, contudo, é preciso
observar que a norma também produz abjeção. Essa tônica encontra-se
presente em toda a extensão do seu trabalho, desde aqueles que tratam da
constituição do gênero melancólico, passando pelos circuitos de sujeição
psíquica, chegando à melancolia do poder, na denúncia da produção de
vidas não passíveis de luto e comoção. O reconhecimento é um bem,
contudo, distribuído segundo certos enquadramentos políticos e sociais,
produzindo desse modo, sujeitos mais reconhecíveis do que outros,
alguns inclusive, abjetos e irreconhecíveis. Ter um rosto legível,
reconhecível, capaz de suscitar comoção, depende de normas anteriores
através das quais os diferentes sujeitos se constituem. Com isso, a
escritora se mantém crítica às lutas estritamente identitárias, sua reflexão
chama atenção para a existência dos performativos políticos das alianças
entre populações precárias e para a formação de assembleias que gerem
algum espaço de aparecimento.
No pensamento de Butler a condição humana é marcada por
uma vulnerabilidade primária posto que os seres humanos sejam
atravessados pelo desejo de serem reconhecidos. Dessa maneira, essa
autora nos reconduz a noção de falta, a subjetividade como escritura da
265
lei, ao corpo como campo de inscrição das normas. Independentemente
disso, não há dúvida de que o pensamento de Butler explora o duplo
vínculo entre a sujeição e a subjetivação, o que precisa ser encarado com
heroísmo é contingência radical do sujeito de desejo. Rejeitar as noções
auto-evidentes. No ensaio O que são as luzes? Foucault (2005c) escreve
[...] essa crítica não é transcendental e não tem por finalidade tornar
possível uma metafísica: ela é genealógica em sua finalidade e
arqueológica em seu método. Arqueológica e não transcendental --
no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas
universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral
possível; mas tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos,
dizemos e fazemos como os acontecimentos históricos. E essa crítica
será genealógica no sentido de que ela não deduzirá da forma do que
somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela
deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos a possibilidade
de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos
(FOUCAULT, 2005c, p. 347-348).
Consoante com a advertência do filósofo de uma crítica
arqueológica e genealógica pareceu razoável revisitar outra vez sua obra
para elaborar um olhar sem recorrer a uma constante antropológica, ou, a
um vazio do desejo. Para cumprir esta tarefa dediquei esforços com vistas
a recolocar a questão do reconhecimento, seja no nível da representação
do sujeito humano ligado ao respeito, como no nível simbólico do desejo
na chave da genealogia das práticas de poder divisoras e na história dos
processos de subjetivação.
No terceiro capítulo assumiu-se como paradigma a análise do
dispositivo de sexualidade já que guarda relações com a individualidade
moderna e com o desejo. Nesse registro foi possível acompanhar como as
266
sociedades ditas ocidentais assumiram certas obrigações de dizer a
verdade sobre seu sexo e sobre si mesmo graças a uma hermenêutica
herdeira das práticas de confissão cristã. Observou o quanto essas técnicas
penetraram, gradualmente, as instituições, os saberes e as práticas,
notadamente, na medicina, no direito, na pedagogia, de modo a produzir
efeitos de normalização. Longe de se tratar de um processo de repressão,
Foucault (2007a) nos mostrou que esse redirecionamento tecnológico
produz efeitos positivos na criação de um corpo individual e social
saudável, imunizado, produtivo e paradoxal. Portanto, o esforço se
dirigiu em argumentar a favor de uma compreensão do reconhecimento e
da inclusão ligada à proliferação de mecanismos normalizadores do
corpo. Com isso, tem-se um deslocamento, passa-se de um ponto de vista
normativo da subjetividade, uma linguagem significante e
representacional, para uma analítica decnicas irredutíveis à lei e à
consciência que atuam diretamente sobre os corpos investindo-os de
códigos de conduta biopolíticos. Especialmente, procurou-se averiguar
como os mecanismos de “inclusão” e de “reconhecimento” marcam uma
entrada originária dos corpos ao dispositivo de governo da vida às
populações e os indivíduos. Como entende Deleuze (2016) os
dispositivos sempre surgem para atender uma determinada urgência
histórica. Nesse caso, não é surpreendente o fato que, de um lado, as
chamadas políticas de inclusão social que emergem conjuntamente com
plano de reconstrução econômica do pós-guerra e, de outro, a declaração
universal dos direitos humanos, exemplificam perfeitamente o tipo de
urgência histórica que aciona os dispositivos nos mostrando inclusive
aquilo que virá depois, isto é, a passagem de uma sociedade disciplinar,
moderna, liberal à sociedade de controle, dos mecanismos de segurança,
multicultural, contemporânea e neoliberal.
267
Todavia, para Foucault a análise das tecnologias de poder não
pareceu suficiente para abarcar as possibilidades no campo das
resistências. Certamente, a presente pesquisa não corroborou com uma
leitura periodista e etapista do pensamento do filósofo. No fundo, junto
àquele aparente vácuo entre as publicações de História da sexualidade
existem um bom número de cursos oferecidos por Foucault que mostram
o deslocamento gradual da análise do poder para as técnicas de condução
das condutas e, dessas, para o universo das tecnologias de si. Dessa
maneira, pode-se averiguar que Foucault não abandona o seu diagnóstico
do poder, mas, torna-o mais complexo. Por consequência, a emergência
do corpo na modernidade é precedida por outras formas de
problematização como a honra do rapaz e a pureza da mulher. É
precisamente esse novo domínio que possibilita uma leitura aletúrgica da
questão do reconhecimento.
Por isso, no quarto capítulo almejou-se seguir a trilha das artes de
viver como uma provocação aos modos de reconhecimento e aos atuais
modelos de inclusão. Baseei-me, principalmente, em uma interpretação
panorâmica e interseccionada entre os cursos oferecidos na década de
1980 e os últimos volumes de História da sexualidade com a finalidade de
mostrar como Foucault em sua imersão ao mundo greco-romano passou
do governo dos homens pela verdade ao tema do cuidado de si. A
discussão tomou como eixo norteador a questão do exame de si e, a partir
disso, correlacionou temas como a relação entre mestre e discípulo, o
prazer dos rapazes e o nascimento do casal. No ponto de vista de
Foucault (2007b) os modos de subjetivação na cultura antiga diferem,
substancialmente, dos modernos, haja vista que esses últimos orientam-se
para códigos morais altamente juridificados. Apesar disso, não deixa de
ser interessante notar a inscrição de elementos como a honra e o desejo
que comparecem nos processos de subjetivação como peças importantes
268
na elaboração de uma estética da existência que não reduz a lei ou a falta.
Tais artes de viver assentam-se no governo de si e dos outros e buscam
uma relação de transformação com a verdade capaz de mudar o ser do
sujeito.
Entender a moderna busca por reconhecimento social e as
políticas de inclusão escolar significa a um só tempo, pen-las como
estratégias biopolíticas de entrada da vida aos cálculos do poder, como
vida normalizada e sob risco. Reconhecer-se implica na adoção de certa
bioidentidade (RABINOW, 1999) e bioascese (ORTEGA, 2005) por
intermédio de um conjunto de práticas autorreguladoras de si mesmo,
segundo um regime de veridicção sujeito e verdade para gerir seu
capital humano, sua conduta econômica, política e moral. Dinâmica que
pode ser resumida como: incluir para reconhecer, reconhecer-se para ser
incluído.
Ao mostrar que a ideia de reconhecimento não repousa apenas
em uma dinâmica prático-moral de luta por auto-respeito, nem no desejo
de reconhecimento, mas, que guarda uma relação especial com o
dispositivo da confissão e com o exame Foucault presentifica as relações
que foram abandonadas e podem gerar outras possibilidades. O modo de
subjetivação assentado nos atos de verdade, ou, governo dos homens pela
verdade (FOUCAULT, 2011) imperante em nossos regimes de
verdade interpela os indivíduos à luta pela constituição de uma
identidade única, mostrando os limites dos embates no que diz respeito à
criação de outros modos de vida.
Da perspectiva genealógica interessa fazer aparecer a exterioridade
das instituições às artes de governo que tornam possível a emergência de
um Estado governamentalizado. Quer dizer, é preciso observar que as
práticas de governo tornaram possível o tipo de sociedade que vivemos
hoje, ou como entende um comentador: “[...] deve-se buscar a
269
inteligibilidade das relações de poder em um âmbito anterior ao Estado:
esse âmbito é o das práticas de governo, entendidas não como exercício
da soberania, mas como condução das condutas” (AVELINO, 2017, p.
11).
Dessa maneira, as políticas de inclusão não respondem
necessariamente a conflitos, moralmente motivados, pois estão ligados à
lógica de uma racionalidade governamental que converte as demandas de
luta por governo de si e dos outros em uma gestão dos riscos e o sujeito
em um empresário de si mesmo.
Diante desse dispositivo de obediência que submete às demandas
do reconhecimento de si e dos outros à arte de governo neoliberal, é
preciso fortalecer as lutas pelo comum como forma de resistência perante
a captura das lutas identitárias. Com efeito, Foucault concordaria que,
nem a identidade, tampouco as tecnologias de reconhecimento devem ser
descartadas, porém, assumidas como pontos de partida, como problemas,
capazes de nos conduzir a processos de criação de outros modos de
existência.
Na entrevista O triunfo social do prazer sexual, Foucault (2006d),
ao responder questões sobre o modo de vida gay e a necessidade de
regulação jurídica das relações interpessoais e matrimoniais, sublinha a
importância das demandas afetivas dos sujeitos dizendo que o: “[...]
reconhecimento pelos próprios indivíduos desse tipo de relação, no
sentido de eles lhe atribuírem uma importância necessária e suficiente
que eles a reconheçam e a realizem para inventar novos modos de vida.
Isso sim é novo” (FOUCAULT, 2006d, p. 125).
No entanto, para Foucault cabe inverter as coisas, e ao invés de
introduzir a homossexualidade na normalidade geral das relações, ou,
reconhecê-la, o mais essencial é deixar com que esse foco de experiência
270
escape “[...] ao tipo de relações que nos é proposto em nossa sociedade, e
tentemos criar no espaço vazio em que estamos novas possibilidades de
relações” (FOUCAULT, 2006d, p. 122).
Trata-se de tentar enriquecer a vida de pessoas graças a um novo
direito relacional. Esse direito não tem nada a ver com os direitos do
homem e do cidadão, mas, com aquilo que Foucault designou “direitos
dos governados” (GROS, 2010), uma espécie de direito relacional.
Continua o filósofo:
[o] direito relacional é a possibilidade de fazer reconhecer, em um
campo institucional, relações de indivíduo para indivíduo que não
passem necessariamente pela emergência de um grupo reconhecido.
[...]. Trata-se de imaginar como a relação entre dois indivíduos pode
ser validada pela sociedade e se beneficiar das mesmas vantagens que
as relações perfeitamente honrosas que são as únicas a serem
reconhecidas: as relações de casamento e de parentesco
(FOUCAULT, 2006d, p. 125).
Parece-me que a ideia moderna de reconhecimento precisa passar
pelo dispositivo de conversão jurídica para ter seus efeitos de
subjetivação, quer dizer: reconhecer-se é ato de verdade que nos reconduz
à identidade. Nesse sentido, se retornarmos a tese do último Foucault,
acerca de uma arte de viver techne tou biouao modo como os gregos a
entendiam é possível problematizar a criação de outros modos relacionais
mais ricos que não se submetam a forma geral de uma identidade. Sob a
perspectiva de Foucault:
271
[v]ivemos, de fato, em um mundo legal, social, institucional no qual
as únicas relações possíveis são muito pouco numerosas,
extremamente esquematizadas, extremamente pobres. Há
evidentemente a relação de casamento e as relações familiares, mas
quantas outras relações deveriam poder existir, poder encontrar seu
código o nas instituições, mas em eventuais suportes; o que não é
absolutamente o caso [...] (FOUCAULT, 2006d, p. 120).
E completa sua resposta dizendo:
[a] sociedade e as instituições que constituem sua ossatura limitaram a
possibilidade de relações, porque um mundo relacional rico seria
extremamente complicado de administrar. Devemos lutar contra esse
empobrecimento do tecido relacional. Devemos obter
reconhecimento das relações de coexistência provisória, de adoção
[...] (FOUCAULT, 2006d, p. 120).
Os indivíduos e os grupos não se engajam somente em lutas por
reconhecimento, e, por políticas de inclusão social, mas resistem ao
mundo relacionalmente empobrecido para criar novos modos de vida.
Desse ponto de vista, cabe a nós tornar visível, tantos os embates
agônicos em torno das demandas do governo de si e dos outros, quanto
mostrar os limites de uma política institucionalizada. Isso requer que se
assuma uma ética intelectual e uma atitude experimental que se coloca
em consonância com os problemas concretos, vivenciados nas instituições
educacionais. Trata-se de criar canais e explorar o poder da conexão entre
as pessoas e pensar alternativas relacionais mais ricas para que os
diferentes segmentos se engajem nas lutas pelo comum e na criação de
outros modos de vida.
273
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Brasília, Hucitec, p. 3-132, 1987.
SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Nathanael da Cruz e Silva Neto
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Jonas Rangel de Almeida
A analítica do texto percorre três campos teóricos [...] do reconhecimento. Taylor,
Honneth e Butler [...] abordados para se fazer emergir a hipótese que tais teorias não
são sucientes para se chegar a um corpo utópico, ou seja, a uma mobilidade polí-
tica outra em decorrência das atualizações demandadas no mundo contemporâneo.
É aqui que se irrompe o pensamento de Foucault. [...] o que se delineia, arma-se
e se deseja no texto são outros corpos para reconhecimentos em franco devir. [...]
o que está em cena é uma genealogia de uma longa Erndung, ou seja, de uma
longa invenção do Reconhecimento, com R maiúsculo. Tal invenção, por sua vez,
interpõe-se entre o vôo fugaz da Minerva na penumbra que insiste em se anunciar
e as auroras que restam por acontecer – Nietzsche, recordando Rigveda, dizia: “Há
tantas auroras que não brilharam ainda”. Que auroras possíveis para outra política de
reconhecimento? O que se suscita, a partir daí, para a arte de governo, a educação
e as vidas? Desde a Bildung ocidental, talvez cansada demais por não reconhecer a
si mesma, indaga-se: por onde, como e por que circunscrever-se-ia aí a inclusão de
corpos que não são reconhecidos? [...] Quantos recipientes para losoa da educa-
ção existem? E para o pensamento? E para a subjetividade? E para o neoliberalismo?
E para a consciência que reconhece? E para o rosto tipicado que tipica o rosto
alheio? E para o corpo que será abjetado? E para o gesto mórbido da repetição do
gozo burocrático? E para tantos desconhecidos e excluídos desta sociedade?
As lutas por inclusão e por reco-
nhecimento orbitam as políticas da vida.
São lutas pela existência de sujeitos vivos,
corporais, capazes de engendrar resistên-
cias a tanatopolítica moderna. Conitos
vitais que se levantam contra o agrava-
mento da precariedade da existência hu-
mana e, em contrapartida, assentam-se
em modos de subjetivação que se efetu-
am de um modo quase jurídico. Escrito
em interface com o campo da losoa da
educação este livro procura presenticar
o diagnóstico de Foucault das lutas pelo
governo de si mesmo em estreita corre-
lação com as teorias do reconhecimento
atuais que se tornaram verdadeiros con-
ceitos guia para o estabelecimento de vi-
sões normativas do sujeito, da educação
e da sociedade. Em diálogo com as vi-
sões de Charles Taylor, Axel Honneth e
Judith Butler investiga-se a recorrência
da noção de reconhecimento em Fou-
cault como um dispositivo de formação
dos sujeitos: primeiro com a emergência
do corpo humano como lócus do poder
sobre a vida servindo de condição para
estabelecer nas práticas divisoras relações
entre a normalização e as resistências; se-
gundo, uma genealogia que toma como
o condutor as técnicas de si mostrando
como moldaram historicamente a noção
do sujeito de desejo. Erótica e retórica
que podem ser sintetizados como hon-
rar o desejo e transgurar-se ante o discur-
so verdadeiro. Jonas Rangel de Almeida,
Cientista Social (UNESP) e Doutor em
Educação pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Faculdade de
Filosoa e Ciências, UNESP campus de
Marília. Atualmente é professor da rede
pública estadual de ensino.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
FOUCAULT E AS TEORIAS DO RECONHECIMENTO
Jonas Rangel de Almeida
ALEXANDRE FILORDI DE CARVALHO | UFLA - UNIFESP
interfaces com a Filosofia da Educação
FOUCAULT
E AS TEORIAS DO RECONHECIMENTO