O livro de George Amaral Pereira,
trata, corajosamente, da polêmica reforma
da Educação Prossional e de seus efeitos
sobre o Ensino Médio, apreendida, por sua
vez, no mandato petista de Lula da Silva.
O Ensino Médio é uma etapa impor-
tante na formação de uma pessoa, jovem ou
adulta. Na moldura da crise do capitalismo
contemporâneo, a última fase da educação
básica assume o caráter de ser terminal para
uma classe e dar prosseguimento aos estudos
para outra. Naturalmente que, pela natureza
dialética da sociedade, não se excluem aqui
as exceções. As possibilidades de continui-
dade dos estudos no Ensino Superior, para
a classe trabalhadora, são incertas. A maioria
da juventude trabalhadora, por isso, é im-
pelida a abandonar os estudos e se dedicar
ao também incerto emprego no mercado de
trabalho capitalista.
Na superfície do fenômeno, essa
questão tornaria ambígua a nalidade da es-
cola básica, sobretudo aquela que se dedica
ao ensino médio, uma vez que essa fase teria
como função precípua o seguinte: por um
lado, treinar os jovens-trabalhadores-estu-
dantes para o Ensino Superior e, por outro,
para as oscilações do emprego-desemprego
do mercado de trabalho brasileiro, inserido,
pela própria dinâmica social, no capitalismo
que orbita na periferia do grande capital.
Em ns do século XX, o gover-
no tucano de Fernando Henrique Cardoso
decretou, usando as artimanhas peculiares
ao pugilato da política sufragista, o m da
integração entre educação prossionalizan-
te e ensino médio. Por meio do Decreto nº
2.208/1997, o professor universitário imple-
mentou ocialmente o divórcio entre a últi-
ma etapa do ensino básico e a modalidade de
Educação Prossional.
Com a vitória de Lula da Silva,
nas eleições presidenciais de 2002, o mo-
vimento de entidades educacionais, bem
como os intelectuais alinhados à assim de-
nominada esquerda progressista, mobi-
lizaram-se para a revogação do Decre-
to assinado pelo presidente antecessor.
O movimento teve como retorno a ocia-
lização do também Decreto 5.154/2004.
O que se concretizou com a sanção do novo
documento, não obstante, foi um imbróglio
permissivo. Haja vista a parte mais criticada
do Decreto anterior ter sido absorvida pelo
novo dispositivo.
Na prática, o governo petista e seus
defensores alinhados ao liberalismo de es-
querda, abraça a dualidade educativa. Pior,
institucionaliza novas possibilidades de ar-
ranjos para as diversas expressões da dico-
tomia educacional: público versus privado;
propedêutico versus prossionalizante; te-
órico versus prático, entre outros caprichos
capitalistas.
Em resumo: se por uma parte recu-
pera-se a possibilidade da integração entre
o Ensino Médio e o Prossionalizante, por
outra, ocializam-se as condições para que
os empresários do setor educativo lucrem
com a venda da formação prossionalizante
aligeirada, fragmentada e ideologicamente
cabível confortavelmente na ideia dos atra-
sados empresários brasileiros. Esse fato pode
ser comprovado por intermédio do cresci-
mento abissal dos cursos subsequentes, in-
clusive na esfera pública, como no caso dos
Institutos Federais (IFs).
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
O presente livro procura desenvolver uma análise sobre a relação Trabalho e
Educação, preenchendo uma lacuna que circunscreve a Educação Prossio-
nal e sua relação com o Ensino Médio. Na virada do milênio, a reforma do
ensino prossionalizante ocorre em meio às lutas sociais entre as classes com
projetos societais diferenciados, buscando regulamentar o projeto de Ensino
Médio Integrado. E uma das questões controversas que abordamos foi opção
governamental de realizar as reformas via decretos.
Um outro aspecto, diz respeito ao complexo de mudanças que as reformas
implicaram, tocando no problema da conguração da educação, qual seja
o caráter dual e a dicotomia que se efetiva no quadro da reprodução social
no capitalismo, sendo a educação brasileira marcada pela dualidade estrutural
desde o processo colonizador. Nesse contexto, a escola pública pode abrigar
um ensino propedêutico ou prossional a depender a qual classe se destina
aquele saber tanto de entes das esferas pública e privada.
Para tratar desse complexo debate recorremos aos clássicos do marxismo, ten-
do em vista desnudar a aparência do fenômeno, considerando o contexto de
crise estrutural do capital e as determinações que exigem novas funcionalida-
des da educação, mediadas pelas políticas públicas.
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, ENSINO
MÉDIO E CRISE DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
ENSINO MÉDIO NO BRASIL
George Amaral
nos marcos da crise do capitalismo
DERIBALDO SANTOS - UECE
George Amaral
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, ENSINO MÉDIO E CRISE DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
George Amaral
EDUCÃO PROFISSIONAL,
ENSINO MÉDIO E CRISE DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
George Amaral
EDUCÃO PROFISSIONAL,
ENSINO MÉDIO E CRISE DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
George Amaral
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
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Marcelo Fernandes de Oliveira
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Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
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Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
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Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Auxílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
Capa: George Amaral
Ficha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Amaral, George.
A485e Educação profissional, ensino médio e crise do capitalismo contemporâneo no Brasil /
George Amaral. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
420 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5954-126-3 (Digital)
ISBN 978-65-5954-125-6 (Impresso)
1. Educação - Brasil. 2. Ensino médio. 3. Neoliberalismo. 4. Ensino técnico. I. Título.
CDD 370.193
Copyright © 2021, Faculdade de Filosofia e Ciências
Editora afiliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
DOI: https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-126-3
À minha mãe, Francisca Pereira (Ilma), pela
sua jornada de vida, buscando sua existência
e seus sonhos. Também ao meu tio João.
À todxs que compartilham a luta por uma
sociedade melhor.
Agradecimentos
Ao Professor Dr. Henrique Tahan Novaes, orientador deste
trabalho, por me acompanhar nessa jornada, concedendo-me autonomia e
incentivando a produção, com atenção e generosidade, indicou os
caminhos da pesquisa, abrindo perspectivas para evolução e êxito do
trabalho.
De modo especial, agradeço ao Professor Dr. Deribaldo Santos,
por toda a dedicação em humanizar-se e abrir caminhos para humanização
dos outros. Seus estudos e inquietações, conhecimentos, somados às suas
abordagens críticas permitiram grandes avanços nesta pesquisa.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Unesp de Marília, São Paulo.
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FUNCAP)
À Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC).
Ao Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade
(GPTREES) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Sertão Central
(FECLESC-UECE).
“O verdadeiro desafio não consiste, para um pesquisador, em elevar-se a uma
perspectiva universal, abandonando suas raízes na singularidade, sua dimensão
ineliminavelmente particular. Por ser inviável, essa operação resulta sempre em
mistificação. O desafio é outro. O pesquisador, o crítico, o sujeito que trabalha
na construção do conhecimento, em suma, procura enriquecer seu quadro de
referências, tornando-se o mais universal possível. E é por fidelidade a esse
esforço de universalização que o sujeito não pode deixar de levar em conta
aquilo que ele com sua particularidade está sempre inovando, inventando,
modificando, suprimindo ou acrescentando na realidade constituída”
(KONDER, 2005, p. 8)
Lista de Siglas
AID Agency for International Development (Agência de
Desenvolvimento Internacional)
AI Ato Institucional
ANPED Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
ARENA Aliança Renovadora Nacional
BID Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento
BM Banco Mundial
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CEB Câmara da Educação Básica
CEDES Centro de Estudos de Educação e Sociedade
CEFAMs Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério
CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica
CENTEC Instituto Centro de Educação Tecnológica do Ceará
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CLT Consolidação das Leis Trabalhistas
CNE Conselho Nacional de Educação
CNI Confederação Nacional da Indústria
CP Conselho Pleno
CREDE Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação
CUT Central Única dos Trabalhadores
DEM Democratas
EaD Educação à Distância
EEEPs Escolas Estaduais de Educação Profissional
EMI Ensino Médio Integrado
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
EPT Educação para Todos
EPTb Educação Profissional e Tecnológica brasileira
EREM’s Escolas de Referência em Ensino Médio
FIESP Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FHC Fernando Henrique Cardoso
FNDEP Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública
FMI Fundo Monetário Internacional
FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
IF-CE Instituto Federal de Educação Tecnologia do Ceará
IFET Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MEC Ministério da Educação
OEA Organização dos Estados Americanos
OMIs Organismos Multilaterais Internacionais
ONU Organização das Nações Unidas
PDDE Programa de Dinheiro Direto na Escola
PDE Plano de Desenvolvimento da Educação
PDT Partido Democrático Trabalhista
PFL Partido da Frente Liberal
PIPMO Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra
PL Projeto de Lei
PNE Plano Nacional de Educação
PPE Projeto Principal de Educação
PRE Projeto Regional de Educação
PRELAC Projeto Regional de Educação para a América Latina e o Caribe
PROEP Programa de Expansão da Educação Profissional
PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
PROUNI Programa Universidade para Todos
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SEDUC Secretaria da Educação do Estado do Ceará
SEMTEC Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
SPAECE Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará
TEO Tecnologia Empresarial Odebrecht
TPE Todos pela Educação
TESE Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional
TIC Tecnologias da Informação e Comunicação
UAB Universidade Aberta do Brasil
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO)
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
USAID United State Agency for International Development (Agência dos
Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional)
Sumário
Prefácio | Henrique Tahan Novaes.......................................................17
Introdução | O Objeto e seu Labirinto.................................................21
Capítulo 1 | Crise Estrutural do Capital, Estado e Neoliberalismo: Novas
Determinações Históricas sobre Complexo Educativo.........................43
A crise estrutural do capital e seus reflexos na produção e organização
do trabalho
O Estado e a opção neoliberal de gerir a crise: desdobramentos no
complexo educativo
Capítulo 2 | O Panorama da Educação e a Escola: Os Fundamentos
Históricos e o Problema da Dualidade Educacional.............................87
Educação lato versus educação restrita e o papel educacional da escola
O contexto histórico da ascensão capitalista e o escravismo colonial.
A industrialização da produção capitalista, a luta de classes e seus
reflexos educacionais
A dualidade educativa transplantada na particularidade brasileira
Capítulo 3 - Estado e Educação no Brasil: Entre a Fuão Modernizadora
e a Dominação Político -Ideológica...................................................173
Breves apontamentos sobre a relação entre a industrialização atrasada e
as bases da educação profissionalizante
Estado brasileiro e as políticas educacionais para a educação profissional
no contexto da autocracia burguesa
Capítulo 4 | Meandros e Contradições da Reforma da Educação
Profissional no Brasil na Virada do Milênio.......................................217
O Estado brasileiro e as diretrizes estabelecidas pelos Organismo
Multilaterais Internacionais (OMIs) à educação: desdobramentos
sobre a Lei 9.394/1996
A LDB, a educação profissional e os artifícios autocráticos como
instrumento de mudar para permanecer.
O debate sobre a re-vogação do Decreto 2.208/1997 e sua absorção
pelo 5.154/2004: meandros e contradições da educação profissional
pela via da conciliação
Capítulo 5 | As Políticas de Educação Profissional e Ensino Médio após
o Decreto 5.154/2004: O Complexo de Mudanças entre uma Escola da
Travessia e a Escola que Atende o Capital..........................................305
O Ensino Médio e Educação Profissional após Decreto 5.154/2004
O projeto de EMI no Ceará: implantação e consolidação
Ensino Médio Integrado no Ceará e a escola na teia da ideologia do
capital
Considerações Finais | O Debate que Não se Encerra.........................383
Referências Bibliográficas.................................................................399
17
Prefácio
Me permitam começar este prefácio de uma maneira bastante
informal. Conheci o George Amaral em Caxias-MA, num congresso do
Histed-BR. Naquela ocasião trocamos muitas figurinhas e ele me
perguntou se poderia fazer o doutorado em Marília. No dia da seleção da
pós aqui em Marília, devia estar fazendo uns 8 graus, com uma chuva fina
e um vento insuportável. Perguntei: você tem certeza que quer vir para
Marília?
George é um daqueles alunos que chegou pronto no nosso
programa de Pós Graduação em Educação. Os alunos que vêm do Ceará
em geral já chegam muito bem formados, trazem muito conhecimento
para nossos grupos de pesquisa e já possuem uma formação sólida no
marxismo. Ainda não sei explicar, mas quase todos se tornam lideranças
políticas.
A vinda de George a Marília abriu muitas oportunidades de
diálogo solidário entre amigos com o grupo de pesquisa do Prof.
Deribaldo Santos (UECE), hoje um grande amigo. Espero que tenha
havido o enriquecimento do marxismo de George, ao estar conosco em
Marília, num ambiente favorável ao florescimento do marxismo.
A pesquisa de doutorado de George Amaral agora apresentada ao
público na forma de livro traz uma contribuição fundamental para a
compreensão da relação trabalho-educação nos países de capitalismo
dependente, especialmente nos anos 2000.
A mundialização do capital sacudiu a relação trabalho-educação
baseada no regime de acumulação taylorista-fordista, que de alguma forma
18
prometia um emprego estável e algum tipo de ascensão social. Desde os
anos 1970 o capitalismo caminha para a geração de subemprego
estrutural, a promoção da abertura comercial e ampla liberdade para o
capital financeiro circular, além de outras contrarreformas do Estado.
Estas mudanças profundas estão levando as personificações do
capital nos países dependentes (presidentes, governadores, secretários de
educação, presidentes de ONGs, Institutos e Fundações, etc.) a mudar o
discurso, sem mudar a essência da relação trabalho-educação. Pedagogia
da qualidade total, competências educacionais para a sociedade do
conhecimento, empreendedorismo, empregabilidade, gestão da sala de
aula passam a fazer parte do repertório ou melhor, do novo dicionário
do capital - a ponto da Unesco pregar a educação para o
empreendedorismo. As pedagogias do capital como não poderia deixar
de ser só podem oferecer soluções epiteliais para os graves problemas
criados pela mundialização do capital. Não poderá vir das pedagogias do
capital, atualizadas desde 1970, soluções radicais e abrangentes para as
questões sociais do século XXI.
O estudo de George Amaral está em sintonia com as teorias que
afirmam que as classes proprietárias brasileiras abandonaram
completamente a proposta de uma escola pública de massas de qualidade.
No máximo, o capital através do Estado capitalista tem oferecido
escolas integrais para uma pequena parcela da classe trabalhadora, que
poderíamos chamar provisoriamente de aristocracia da classe trabalhadora.
Mas é preciso lembrar o fundamental: por trás da névoa do novo dicionário
do capital e da escola integral para alguns, é possível perceber que não há
mais um pingo de compromisso das classes dominantes brasileiras com a
escola pública de massas. Ao contrário, a escola pública de massas vem
sendo profundamente precarizada, deteriorada, sem condições mínimas
para o exercício do trabalho docente. Neste contexto, os filhos da classe
19
trabalhadora ficam aos deus dará, sem futuro, sem possibilidades de viver.
Se não temos mais a dualidade clássica que vigorou até os anos 1970, agora
temos a dualidade complexificada, uma vez que parcelas da classe
trabalhadora até chegam a entrar no ensino superior, mas no ensino
superior privado, de baixa qualidade.
Existem várias determinantes para a criação um sistema
educacional estatal de baixa qualidade, mas se permitem, há um
determinante principal: a inserção subordinada e dependente das nossas
classes proprietárias na divisão internacional do trabalho resulta na não
necessidade de criar uma escola pública de qualidade para as maiorias e
muito menos centros de qualificão, como nos países imperialistas. Para
piorar, nossa indústria foi destruída. Estamos passando por uma reversão
neocolonial, e as colônias não precisam de muita mão de obra qualificada.
As competências requeridas nos países neocoloniais como o Brasil são
mínimas, numa produção de baixa tecnologia. Serventes de pedreiro,
atendentes de telemarketing, garçons e empregadas domésticas não
precisam de muita qualificação.
O livro de George Amaral nos mostra em alguns momentos nas
entrelinhas e outros de forma mais explícita, que na ausência de alterações
radicais e concomitantes no mundo da escola e no mundo do trabalho,
tendo em vista a construção da sociedade para além do capital, reformas
positivas no Estado se tornam pífias e podem ser rapidamente revertidas.
As políticas educacionais do lulismo para a educação, especialmente o
decreto de 2004, na prática não substituiu o decreto de Fernando
Henrique Cardoso de 1997.
A mercantilização da educação continuou a pleno vapor, não
foram criadas políticas de integração que de fato integrassem a educação
profissional com a educação geral. Nos Institutos Federais não foram
selecionados e formados professores dentro da perspectiva da educação
20
omnilateral, politécnica ou integral. Chega a ser curioso, mas muitos destes
professores doutores que conseguiram um emprego estável como nos
Institutos Federais, votaram contra o lulismo nas últimas eleições. Não
sequer uma identidade com a proposta melhorista do lulismo.
George Amaral realizou uma pesquisa de grande envergadura,
recuperou os determinantes históricos mais importantes da história do
Brasil - se apoiando em clássicos do pensamento social marxista brasileiro
e internacional - para chegar ao debate da educação profissional nos anos
2000, sempre dialogando com nossos melhores intérpretes. Ele analisou o
decreto de 2004 sem cair na armadilha da análise das leis, decretos e
normas do Estado capitalista. Levou em conta as forças sociais que os
sustentam, as possibilidades alternativas e as aberturas históricas, buscando
a análise concreta da realidade educacional concreta.
Espero que vocês tenham a mesma alegria que eu tive ao orientar e
debater com George Amaral nos últimos 4 anos. Boa leitura em tempos de
pandemônios e pandemias.
5 de maio de 2021
Mais um dia frio em Marília, com no mínimo 400 mil
mortos no Brasil pela gestão criminosa do coronavírus
Henrique Tahan Novaes
PPGE-UNESP-Marília
21
Introdução
O Objeto e Seu Labirinto
Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la.
Bertolt Brecht
Como professor da rede de educação pública do Ceará,
trabalhando na Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP) Amélia
Figueiredo de Lavor, na cidade de Iguatu-Ceará, despertei o interesse em
conhecer e aprofundar o estudo sobre a educação profissional em nível
médio. Nesta escola vivenciei a experiência docente, entre os anos de 2009
e 2013, da implantação e consolidação do modelo de educação profissional
para o nível médio da educação básica. As EEEPs, com sua proposta de
ensino em tempo integral, visavam ao mesmo tempo em que o aluno cursa
o ensino médio, capacitá-lo para uma profissão, habilitando o discente
para um trabalho.
Entre tantas novidades do projeto de EEEP na rede estadual,
podemos indicar duas que logo despertaram indagações: a forma de seleção
dos professores para atuar na escola e a exigência da formação continuada
como parte da carga horária de trabalho voltada a entender e aplicar a
filosofia de gestão das EEEPs, a TESE Tecnologia Empresarial
Socioeducacional, inspirada na ideologia da Odebrecht. A partir das
experiências quanto à seleção e à formação continuada docente,
22
levantamos indagações que resultaram na pesquisa de dissertação de
mestrado, pelo Programa de Mestrado Acadêmico em Educação e Ensino
(MAIE), da Universidade Estadual do Ceará (UECE), intitulada Formação
de professores para educação profissional no Estado do Ceará: crítica à
pedagogia do empreendedorismo (2015).
Nos estudos e pesquisas que levantamos para a dissertação, abriu-
se um novo leque de indagações sobre a política de educação profissional,
via reformas neoliberais implantadas na educação brasileira, na virada do
milênio. O nosso interesse ficou mais aguçado e decidimos aprofundar a
pesquisa, resultando na presente obra. A pesquisa foi acolhida pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e
Ciências (FFC) da Unesp, campus de Marília -SP e minha tese de
doutorado. Na investigação, observamos que as reformas para o ensino
profissionalizante no nível médio da educão básica foram efetuadas por
decretos presidenciais, tanto no Governo Fernando Cardoso, com o
decreto 2.208/1997, quanto no Governo Lula da Silva, através do decreto
5.154/2004. O interesse em torno dessa temática tem despertado muitas
posições e debates, revelando posicionamentos políticos e mobilizando
frações de classe e grupos políticos (também partidários), intelectuais e
organizações sindicais, entidades e empresas privadas, instituições do
patronato voltados a influenciar a política estatal para a educação
profissional.
A educação brasileira é portadora de uma dualidade estrutural,
característica da divisão social do trabalho, da propriedade privada e do
caráter classista que se atribuiu ao ensino público. Muitos autores analisam
historicamente a dualidade na educação brasileira, exemplo de Romanelli
(2013), Kuenzer (1997, 2002), Frigotto (2005, 2012), Ramos (2008,
2010), Ciavatta e Ramos (2011), Cunha (2000a,b; 2005), Manfredi
(2002, 2016) etc. Para o entendimento desses autores, a dualidade, que
23
separa a educação propeutica e profissional, se configura ao longo da
história através das relações de produção e assume novas configurações
quando o modo de produção capitalista se torna predominante na
sociedade. Essas relações podem se desenvolver durante a revolução
industrial de tal modo que a burguesia chame para si a formação escolar
propedêutica e, através do Estado, reserve a escola pública à formação
profissional de um lado e propedêutico de outro (MANACORDA, 2010a;
PONCE, 2010). Em função da luta entre as classes sociais e as disputas
políticas entre as frações de classe, o Estado acabou por viabilizar e
conservar, de alguma forma, o caráter propedêutico do ensino, tendo em
vista a classe que a frequenta e é atendida por essa escola. Atentos ao debate
teórico, observamos a publicação de Santos (2017), indicando existir não
apenas uma dualidade, mas uma relação entre dualidade e dicotomia. A
partir daí, buscamos compreender historicamente a relação entre essência
e aparência do fenômeno da relação entre dualidade e dicotomia que
perpassa o objeto para entender melhor seu desenvolvimento e efetivação
no processo histórico. Essa abordagem, possibilita compreender por que a
reforma do ensino e educação profissional viabilizadas por decretos
presidenciais, reformaria os mecanismos da relação entre dualidade e
dicotomia. Por isso, optamos pela abordagem ontológica da relação entre
trabalho e educação a partir Lukács (2013), Lima e Jimenez (2011), Lima
(2014), Ponce (2010), Manacorda (2010), Maceno (2017), Tonet (2011),
Santos (2017, 2019) para assim desvelar melhor o objeto e compreender
melhor o processo sócio reprodutivo que o rege.
Embasado nesses autores, podemos entender que no interior da
escola pública podem se manifestar um ensino propedêutico ou
profissional a depender a qual classe se destina aquele saber. O ensino pode
se apresentar como dicotomia entre uma formação geral, resguardando um
caráter propeutico, e outro que se manifesta profissionalizante. Essa
24
dicotomia mantém a diferenciação na reprodução das relações sociais,
desse modo, temos especificada a educação destinada às classes
trabalhadoras, enquanto um outro tipo de educação é acessível apenas às
elites que advogam a ocupação das mais elevadas posições da hierarquia
social. A estrutura dual como base, essência do fenômeno, e a dicotomia
como forma de manifestação que assume os contornos históricos das
relações de produção, das manifestações da luta de classes e da ideologia,
tendem a formar o indivíduo em determinada direção ou em uma posição
subalterna nas relações sociais.
Destacamos que as contradições de uma educação profissional
oferecida a uma classe específica, a trabalhadora, que se dá no palco da luta
de classes, relaciona-se com o desenvolvimento de lutas por uma outra
formação social, que não seja opressiva. O projeto de luta dos trabalhadores
contra o capital se converteu, ao longo da história, no projeto de uma
escola que busque atender às suas necessidades, apontando as coordenadas
da sua emancipação. Com efeito, apresenta-se, como alternativa ao projeto
de educação do capital, a educação integral, que exige uma escola de base
única, educadora da mente e das mãos, da teoria e da prática do trabalho,
no seu sentido ontológico, como valor de uso, não se limitando a ele,
contemplando a formação de todos os sentidos, a formação omnilateral do
ser social.
No campo da correlação de forças entre o capital e o trabalho, não
são poucas as vezes que as relações de produção e a atuação dos agentes do
capital tendem a obscurecer o processo de luta de classes, ora negando
demandas da classe trabalhadora, ora reprimindo ou mesmo absorvendo-
as, mas atribuindo-lhe um sentido próprio. Nesse processo, a classe
trabalhadora tende a se apassivar e as tensões são administradas muitas
vezes pelas políticas que o Estado adota. A apropriação das ideias deste
conjunto de formulações da classe trabalhadora, efetivadas pelo Estado
25
capitalista, obscurece o teor essencial das suas propostas: a superação
radical da sociedade do capital.
No Brasil, as reformas do Estado capitalista e, com efeito, suas
reformas educacionais ocorrem numa intrincada teia de relações e
determinações, das necessidades de hegemonia burguesa e das
determinações da reestruturação da produção e acumulação capitalista
(ANTUNES, 2010). No anseio de atendê-las, as lutas políticas e sua
correlação de forças encaminham processos e reformulações que
transbordam a arena do campo democrático, recorrendo a antigas práticas
repressivas, impedindo qualquer projeto alternativo que venha a colocar,
na ordem do dia, a modernização e/ou mesmo a superação das concepções
e práticas de uma elite que se moderniza na aparência e se conserva na
essência (MAZZEO, 2015; DEO, 2011). Na esteira dos autores, a
modernização que se dá conservando o status quo burguês dominante
institui uma forma de dominação que se efetiva também pela via estatal.
Uma das formas de dominação intrínsecas ao processo de hegemonia
burguesa, nas condições históricas da particularidade brasileira, é sua
condição periférica e dependente de desenvolvimento associado e
politicamente autoctico que liga Estado e burguesia umbilicalmente
(FERNANDES, 1976; 2008b).
Essas características assumem novas formas no período
denominado redemocratização na década de 1980. As mobilizações nas
ruas determinavam uma nova forma de relacionamento entre o Estado, a
burguesia e as classes que compõem a formação social brasileira. Após um
ciclo de manobras e disputas políticas, formou-se um bloco histórico
burguês que se compactou em torno da via neoliberal de integração com o
capitalismo internacional. Na esteira, como não poderia deixar de ser,
atribui-se ao Estado uma forma de organização do poder que busque o
consenso democrático, porém preservando práticas autocráticas no âmbito
26
da burocracia administrativa. Isso se revelou mais evidente no processo que
culminou com a Lei 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação (LDB),
marcado por manobras políticas institucionalizadas que impediu a votação
e possivelmente a aprovação do projeto de LDB de autoria do deputado
Otávio Elísio, do Substitutivo Jorge Hage, para aprovar um outro projeto
que não foi debatido com a sociedade civil, mobilizada desde a constituinte
de 1988
1
.
No mesmo percurso, a reforma de ensino profissionalizante
atropela os trâmites democráticos, mesmo estes no campo da democracia
representativa restrita. Ao sancionar o Decreto 2.208/1997, o Governo de
Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) recorre a uma
artimanha autocrática institucional que impede o debate da medida com
os grupos sociais, entidades representativas e sociedade civil sobre o que se
encaminha com tal medida. A reforma impositiva não apenas separava o
ensino médio e ensino “técnico”-profissionalizante
2
, mas impossibilitava
qualquer forma de integração entre as modalidades educacionais e níveis
de ensino. Essa medida ignorava as discussões desenvolvidas desde a década
de 1980, no âmbito da educação, que projetou para sua modernização uma
proposta inspirada na concepção de politecnia e de escola unitária no que
1
O Projeto de Lei 1.258/88, do Deputado Otávio Elísio, está situado no contexto da
redemocratização dos anos 1980, apanhando uma grande mobilização social para o fim da ditadura
civil-empresarial-militar. Depois de muitas audiências públicas itinerantes em todo o país, ouvindo
opiniões e debatendo com instituições da sociedade civil e setores organizados dos profissionais da
educação, o projeto não iria resolver todos os problemas educacionais, mas teria possibilitado uma
série de avanços. Diferentemente dos projetos de LDB anteriores, todos elaborados pelo poder
Executivo, a iniciativa parlamentar refletiu o dinamismo das mobilizações sociais. O projeto
parlamentar tomou como base as propostas do professor Dermeval Saviani, o que deu contornos
ainda mais específicos quanto ao vínculo com a sociedade civil. O livro A nova Lei da educação:
trajetória, limites e perspectivas, de Dermeval Saviani, retrata muito bem o processo que resultou na
nova LDB.
2
A expressão “ensino técnico” é um conceito bastante utilizado nos documentos legais e políticos
do Estado brasileiro, porém seu significado foi esvaziado. Por isso, optamos por destacar o uso da
expressão técnica com aspas.
27
tange às necessidades da educação dos trabalhadores. A reforma do Ensino
Médio e a Educação Profissional assimilaram as reivindicações dos setores
privados que almejam vultosos lucros com a mercantilização da educação
profissionalizante.
As mobilizações dos educadores organizados e inseridos na
esquerda do campo progressista da política brasileira se mantiveram
durante o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. Com a
conjuntura política nacional modificada pela eleição de Luiz Inácio Lula
da Silva em 2002, em um projeto político de coalização
3
. Composto por
diversos grupos partidários liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT),
setores do campo progressista da educação passam a pressionar o governo
pelas mudanças educacionais historicamente defendidas desde a década de
1980. Em defesa de uma educação profissional que implantasse uma
identidade mais próxima aos interesses da esfera dos trabalhadores, o
campo progressista defendia a revogação do Decreto 2.208/1997, o qual
considerava portador de uma lógica perversa ao atender amplamente os
interesses do capital.
O cenário histórico em que foi gestado o Decreto 2.208/1997
amplificava o alcance das forças do mercado sobre a formação do
trabalhador, por isso, educadores do campo progressista contestavam a
estrutura dual da oferta educativa que separou ainda mais o ensino médio
do profissionalizante, com acentuada fragmentação do saber, portanto,
distante dos interesses da esfera do trabalho, princípios e conceitos que
3
A coalizão partidária que compôs o Governo Lula reunia partidos de esquerda (Partido Comunista
do Brasil- PC do B, Partido Comunista Brasileiro -PCB), de centro e liberal (Partido Liberal-PL,
Partido da Mobilização Nacional-PMN). No segundo turno das eleições de 2002 ocorre um
realinhamento político em torno da candidatura de Lula, atraindo outros partidos de esquerda
como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), os tradicionais partidos trabalhistas (PDT, PTB), os
liberais de centro, como Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, bem como os
conservadores do Partido Progressista (PP).
28
compõem a relação trabalho e educação, ciência e tecnologia, neste início
de século.
A luta que se travou para que fosse modificada a estrutura
estabelecida pelo dispositivo anterior culminou em sua revogação parcial
no início do governo Lula da Silva (2003-2010). Um novo decreto foi
sancionado pelo então Governo, sob o número 5.154/2004, que prevê o
restabelecimento da oferta de curso profissionalizante integrado ao ensino
médio. A expectativa dos envolvidos era a de que a implantação de um
projeto de Ensino Médio Integrado superasse a dualidade estrutural da
educação e a forma dicotômica que ora se manifestava pela vigência do
Decreto 2.208/1997.A reboque das reformas de Estado na década de
1990, a educação foi marcada pela correlação de forças entre as classes
sociais e suas representações políticas, sobressaindo o projeto das elites
dominantes brasileiras pelo neoliberalismo.
O interstício entre 1996 e 2004, na política educacional de ensino
médio e educação profissional, traçaria as coordenadas das reformas que
reforçou novas dicotomias, erguidas sobre a base histórica educacional
dual. As disputas políticas nesse campo fizeram parte da correlação de
forças que inaugurou uma nova forma de poder no aparato democrático
burguês, que era a democracia representativa restrita, como proposta de
modernização, sem abrir mão da reposição conservadora das velhas
práticas.
Na teia de relações, o grupo de intelectuais da esquerda
progressista, das entidades representantes dos profissionais da educação,
criticava, de forma contundente, o avanço neoliberal e apontava o
desmantelamento do Ensino Médio Técnico, no âmbito das Escolas
Técnicas Federais, assim como a autocrática forma de separação
implantada pela reforma do ensino médio e profissionalizante. A dita
(re)vogação do decreto 2.208/1997 ocorreu sob a liderança de intelectuais
29
desse campo político-educacional, mas que na prática o fizeram por um
novo decreto. Os projetos de Ensino Médio Integrado (EMI), após a
sanção do Decreto 5.154/2004, do Governo Lula, apontam a relevância
da educação profissional em nível médio para as políticas sociais do Estado
brasileiro, principalmente, como remediadora, dentre outras moléstias
sociais, do problema do desemprego.
Para o governo de coalizão petista e esse conjunto de intelectuais
do campo político progressista, a aprovação do Decreto nº 5.154/2004
aponta para uma tentativa de se implantar a base unitária do ensino médio
ao incluir a possibilidade de formação específica para o exercício de
profissões técnicas. Argumenta Frigotto et al (2012, p. 37): “o Decreto
5.154/2004 tenta restabelecer as condições jurídicas, políticas e
institucionais que se queria assegurar na LDB na década de 1980”. Nesse
caso, pretendia-se uma articulação do ensino médio com a formação
profissionalizante, contemplando no campo educativo a educação geral e
específica, denominada no dispositivo legal de “integrada”.
Lembremos que, para os intelectuais marxistas, a educação integral
ou omnilateral integra a luta histórica, revolucionária e emancipadora da
atual sociedade de classes, portanto, constitui-se um projeto de educação
que se contrapõe à alienação efetivada pela educação burguesa na sociedade
capitalista. Para setores campo progressistas da esquerda, a educação
integral visa atender, de modo mais preciso, às reais necessidades
humanistas. Essa proposta tem a função de formar integralmente todo
indivíduo e inseri-lo na generidade humana visando a seu desenvolvimento
de tal modo que favoreça a superação da barbárie na qual a sociedade
hodierna se encontra, sem, contudo, renunciar ao deleite das conquistas
culturais mais refinadas, feitas ao longo da história pela humanidade.
No processo de revogação das políticas do projeto neoliberal, o
grupo de intelectuais progressistas encampou lutas políticas importantes
30
para a esfera do trabalho. Entretanto, a correlação de forças do campo
conservador veio mais uma vez se afirmar pela via institucionalizada da
autocracia burguesa. Na contramão, o lulismo não fez alterações
substantivas nesse quadro e nem na esfera do trabalho que combatesse o
oligopólio das corporações, antes fez alianças que abriram caminho para
que elas acumulassem vultosos lucros.
Para os defensores de uma escola omnilateral a ser implementada a
conjuntura social deveria estar associada a uma revolução na sociedade
brasileira, o que parecia pouco provável, pois o lulismo se declarou “amigo
dos negócios”. Disso decorreu uma certa ilusão de setores intelectuais do
campo progressista de que este projeto iria vingar uma escola voltada para
a emancipação do trabalho. Em diversas ocasiões, a luta de classes no
interior da composição do Governo Lula foi mais amena e o capital se viu
muito mais atendido, produzindo uma expectativa frustrada para
transformações mais profundas no tecido social, principalmente para
aqueles que achavam que Lula iria reformar o capitalismo.
O que orienta essa investigação é que o Decreto 5.154/2004,
gestado nos meandros de um governo de origem histórica, vinculado aos
movimentos de massa da classe trabalhadora e de cunho político-
ideológico de esquerda, porém coligado com setores da burguesia nativa e
do capital internacional, almejava a mudança estrutural da complicada
dualidade da educação brasileira, isto é, de um ensino propedêutico versus
o ensino profissionalizante. Nesse sentido, levantamos algumas questões:
no âmbito da relação trabalho e educação, esse processo promoveu uma
nova configuração da dualidade educativa? Quais seus principais
elementos? Que tipo de “integração” é resultante desse dispositivo legal?
Quais políticas educacionais para o campo da formação profissionalizante
tomaram forma no Brasil a partir da sanção do Decreto 5.154/2004?
31
A hipótese que sustenta nosso trabalho é a de que a educação
profissional, reformada pelo decreto nº 5.154/2004 que supostamente
revogaria o decreto nº 2.208/1997, na verdade, ao invés de resolver a
problemática da dualidade educativa, criou mecanismos de uma nova
reconfiguração da mesma e abriu novas possibilidades para a dicotomia
que se ajusta às necessidades do capitalismo em formar a força de trabalho
para o mercado. A partir da hipótese buscamos compreender a proposta
de integração entre ensino médio e educação profissionalizante, ali
contida, e se ela resolve a tendência estrutural da dualidade e/ou seus efeitos
nas dicotomias do ensino. Se de alguma maneira a proposta de uma outra
normativa corrigiria as distorções na estrutura de ensino perversa do
decreto anterior, trazida à baila pelo decreto nº 5.154/2004.
No embalo de muitas contradições, o novo dispositivo legal alterou
vários conceitos da chamada Educação Profissional e Tecnológica e a
relação desta com a educação básica. Os projetos educacionais de Ensino
dio Integrado puderam ser viabilizados a partir de iniciativas estaduais.
Os discursos políticos, entre outros, aclamaram essa alternativa, pois as
propostas de EMI bloqueadas pelo Governo FHC seriam agora o remédio
para os males do desemprego, entre outras moléstias sociais, pois formaria
mão de obra mais qualificada.
Alguns Estados da Federação, já ansiosos com essa possibilidade,
logo implantaram suas propostas, o que ocorreu por ordem: Paraná,
Pernambuco e Ceará. Os novos conceitos, politecnia, trabalho como
princípio educativo, escola unitária, introduzidos no dispositivo para
servirem de coordenadas para as propostas, acabaram por misturar-se a
todo um léxico de termos que estão mais afinados aos interesses do
mercado de formação de trabalhadores condizentes com um projeto
educativo do capital do que com uma proposta emancipadora da classe
trabalhadora. Na conjuntura que se edificou no Governo Lula se viu, por
32
um lado, o amortecimento nas tensões entre as classes na esfera política,
arrefecendo pressões dos movimentos sociais sobre o Estado e, por outro,
a continuidade de macropolíticas econômicas, bem como sinalização da
política governamental ao cumprimento de contratos e diretrizes das
agências internacionais multilaterais, na educação, por exemplo, o governo
reafirmou compromissos com o movimento de Educação para Todos
(EPT).
Com o movimento das políticas educacionais para a educação
profissional, o processo de avanço de incorporação de preceitos ideológicos
do empreendedorismo empresarial foi mais evidente (FREITAS, 2012). A
esfera escolar passou a incorporar cada vez mais o ethos do setor privado,
exigindo que os indivíduos estejam em constante formação para atenderem
às demandas do mercado. O empreendedorismo, por exemplo, é elevado
à categoria balizadora da gestão pedagógica, na qual gestores, professores e
alunos estão buscando o êxito profissional, através do ideário empresarial
(KRAWCZYK, 2008). Aprender a empreender se constitui em um dos
pilares da educação neste início de século, de acordo com interlocutores do
capitalismo para a educação. Nossa discussão trata de um duplo
movimento das políticas educacionais que gira a partir do eixo entre o
público e o privado: o primeiro voltado à transformação da educação em
mercadoria e o segundo direcionado à criação de um mercado educacional.
A tendência de implantação da proposta de Ensino Médio
Integrado no Brasil, como aponta a evolução das políticas educacionais nos
Governos Lula-Dilma, foi de fortalecer a expansão da educação
profissional, vinculando-a à parceria público-privada. A partir dessa
tendência, o Estado do Ceará implantou a rede de Escolas Estaduais de
33
Educação Profissional, as chamadas EEEPs
4
. Elas basearam sua proposta
pedagógica nas diretrizes internacionais do movimento de Educação para
Todos e nos fundamentos legais do Estado brasileiro, no que se refere ao
aporte financeiro para a educação profissional através do Programa Brasil
Profissionalizado. Durante o governo Lula (2003-2010), mudanças
complementares à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei
9.394, de 20 de dezembro de 1996) foram feitas, alterando o Decreto
2.208, de 17 de abril de 1997, pelo Decreto 5.154, de 23 de julho de 2004.
Com isso, o governo federal repassa recursos adicionais aos estados que
investem na criação, modernização e expansão das redes públicas de ensino
médio integrado à educação profissional.
Com a regulamentação feita pelo decreto 5.154/2004, os estados
da federação implantaram sua política de EMI, criando escolas para
atender às demandas de formação profissionalizante. O Ceará, seguindo a
experiência de Pernambuco, cria uma rede de escolas que estão assentadas
não em uma pedagogia do trabalho, mas totalmente mergulhada no
ideário do empreendedorismo empresarial. De forma sagaz, une-se na
escola, ensino médio e ensino profissionalizante. Na contramão, elas têm
sido orientadas pelos pressupostos da Tecnologia Empresarial
Socioeducacional (TESE)
5
. Este documento foi inspirado, por sua vez, na
Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO), adaptado à educação cearense
a partir da experiência do Estado de Pernambuco. Neste, foram criadas
políticas educacionais que firmaram parcerias com o setor privado através
do Ensino Profissionalizante e Escolas de Referência em Ensino Médio
4
Utilizaremos nesse trabalho a forma simplificada EEEPs para nos referir à rede de Escolas
Estaduais de Educação Profissional implantada pelo Executivo do Estado do Ceará, na gestão de
Cid Ferreira Gomes (2007-2014).
5
Documento que é adotado nas EEEPs como filosofia de gestão do processo pedagógico, adaptado
a partir da Tecnologia Empresarial Odebrecht, isto é, a escola passa a ser vista como empresa
trabalhando por metas e direcionando a formação para o mercado de trabalho.
34
(EREM’s). As EREM’S foram implantadas no âmbito do Ginásio
Pernambucano, revelando um modelo de gerenciamento da educação
pública para o ensino médio, mediante contratos de gestão compartilhada
com o setor privado.
O modelo implantado no Estado do Ceará, por exemplo, busca
sintonizar o projeto de EMI com as orientações que emanaram da política
educacional a partir do decreto 5.154/2004. Sem constrangimento,
incorporou todo um ideário pedagógico oriundo da gestão empresarial,
privilegiando, na formação dos estudantes trabalhadores, a ideologia mais
confortável possível ao setor privado. O que pode ser caracterizado como
uma pedagogia do empreendedorismo, em tempos de neoliberalização das
funções do Estado, para as quais é exigido, dos espaços públicos, um
verdadeiro processo de adequação às demandas da esfera privada.
Isso escrito, tratamos de buscar o objetivo principal da investigação
que é compreender as determinações e as contradições que gestaram o
dispositivo legal e ampararam um complexo de mudanças instituídas sobre
a educação profissional no Brasil, de modo específico, a partir da sanção
presidencial do Decreto 5.154/2004, no que se refere à criação e
implantação de propostas de Ensino Médio Integrado (EMI) e outras
formas de articulação entre ele e o ensino profissionalizante. Analisamos
até que ponto e por quais mediações a dualidade educativa reformada pelas
mudanças instituídas reconfiguraram a dicotomia entre ensino médio
regular e ensino profissionalizante.
Isso escrito, colocamos como objetivos específicos 1) analisar as
relações trabalho e educação, considerando seu desenvolvimento histórico
e identificar a trajetória da dualidade educativa mediante as relações
capital-trabalho-Estado no Brasil, recortando a dicotomia do ensino
público; 2) examinar as reformas educacionais do ensino médio, a partir
dos anos 1990, implementadas pelo Estado, sob o viés neoliberal,
35
recortando a particularidade brasileira; 3) identificar as mediações que
possibilitam a reforma do Ensino Médio e Educação Profissional por meio
dos Decretos 2.208/1997 e 5.154/2004; 4) verificar se a possibilidade de
ensino integral efetivou políticas educacionais que se aproximam das
necessidades do trabalho ou até que ponto, e por quais mediações, são
direcionadas para atender às exigências do regime de acumulação flexível
do capital.
Para atender aos objetivos a investigação foi organizada em três
eixos principais: 1) a relação Trabalho-Educação e o problema da
dualidade educacional e as formas dicotômicas que ela assume para fazer
frente às demandas do modo de produção capitalista; 2) a reconfiguração
da educação como resposta à crise estrutural do capital e seu movimento
pela reestruturação produtiva, política e ideológica; 3) o papel do Estado
frente às lutas políticas entre as forças do capital e do trabalho, bem como
seus desdobramentos em reformas educacionais, considerando ocleo
desta obra.
Dessa forma, a exposição será organizada em cinco capítulos,
considerando a totalidade do modo de produção e suas determinações e
reciprocidades sobre as particularidades sociais. Do mais desenvolvido ao
menos desenvolvido, da universalidade da educação ao microcosmo
escolar, as variações e combinações de processos, considerando o atual
estágio do modo de produção capitalista de crise estrutural, implica em
determinações e reconfigurações sobre processos sociorreprodutivos, bem
como em reordenações de complexos sociais.
O capítulo I - Crise estrutural do capital, Estado e neoliberalismo:
seus desdobramentos sobre o complexo educativo, contemplamos a análise da
relação Trabalho-Educação no atual estágio do capitalismo. A crise estrutural
do capital é a expressão da totalidade do modo de prodão capitalista na
qual se move o complexo de complexos no processo de reprodução social,
36
entre os quais, a educação. A crise exige que o movimento do capital seja
pela recuperação da lucratividade, mesmo que seu movimento destrutivo
amplifique a reestruturação dos complexos sociais, ativando sua
remodelação. Para se integrar aos padrões que são estabelecidos pelo capital
internacional, a burguesia brasileira se movimenta para adequar a
economia periférica aos novos padrões. O Estado, embora conceituado de
mínimo pelos neoliberais, é reformado para atender a tal ajuste, porém
precisa garantir institucionalmente a hegemonia burguesa no processo
histórico decisório das políticas sociais. Por isso, o Estado implementa
reformas no âmbito da educação que tendem a atuar para a conformação
da força de trabalho às necessidades de moldar a força de trabalho para a
extração de trabalho excedente. A educação, em seus vários níveis e
modalidades, atenderia à burguesia brasileira, sócia menor, das elites
dominantes internacionalmente.
O capítulo II - O panorama da educação e a escola: os fundamentos
históricos e o problema da dualidade educacional, apresentamos o
desenvolvimento histórico da dualidade educacional e recortamos a
particularidade brasileira, como formação social de determinado modo de
organização da produção capitalista. Nela, a dualidade assumiu os traços
particulares da colonização, reservados pelo desenvolvimento das relações
de produção. Consideramos, após estudos e reflexões, que existe uma
relação entre uma dualidade estrutural, reflexo da estrutura da divisão
social do trabalho e propriedade privada, relacionada às classes sociais e, a
partir do capitalismo, notamos que a esfera restrita da educação se divide
numa expressão dicotômica dessa dualidade: ensino propedêutico versus
ensino profissionalizante. Abordamos esse aspecto, neste capítulo, levando
em consideração a historicidade.
No capítulo III - Estado e educação no Brasil: entre a função
modernizadora e a dominação político-ideológica, demonstraremos
37
histórica-mente como a relação entre o Estado e a burguesia foi
instrumento para viabilizar seu projeto de hegemonia e impedir que, na
correlação entre as forças políticas, se abrisse espaço para qualquer
alternativa de base popular, principalmente se contemplasse em
perspectiva a ruptura com a ordem institucional dominante. Nesse
sentido, a dualidade educacional é implementada e assegurada pelo Estado
como forma de atender às necessidades produtivas frente à industrialização
que ocorria no país. No caso a relação entre a dualidade e sua expressão
dicotômica assume os contornos da particularidade brasileira, revelando os
traços da dominação burguesa nas reformas implementadas na esfera
educativa com rebatimentos na virada do milênio.
No capítulo IV Entre a LDB e os decretos: meandros e contradições
da reforma da educação profissional no Brasil na virada do milênio,
pretendemos contextualizar e analisar a política de educação profissional,
relacionada ao ensino médio, que se desenvolveu a partir da década de
1990. Na exposição apresentamos os elementos histórico-políticos que
compuseram as disputas pela hegemonia institucional do Estado. Em
seguida, delinearemos as políticas que culminaram na reforma do ensino
médio profissionalizante entre 1997 e 2004. A educação se desenvolveu na
particularidade brasileira e, por isso, absorve e se relaciona reciprocamente
com os complexos que compõem as características dessa sociedade, sem
deixar de expressar os elementos da universalidade histórica da
humanidade. O processo de reformismo no Brasil é acompanhado por um
duplo movimento político-econômico, tanto no cenário interno quanto
no externo. A luta de classes entre os setores conservadores e a esquerda
progressista desenvolveu-se de forma particular e contraditória, resultando
em resoluções que mais se inclinaram para o ajuste educacional à
necessidade capitalista do que encaminharam uma resolução que
vislumbrasse uma educação visando às lutas emancipatórias da classe
38
trabalhadora. A dualidade se fragmenta e a dicotomia expressa as
contradições das distintas concepções da correlação de forças políticas no
âmbito do Estado e da institucionalização da autocracia burguesa.
No capítulo 5 As políticas de educação profissional e o ensino médio
após o decreto 5.154/2004: o complexo de mudanças entre a escola da travessia
e a escola que atende ao capital, abordaremos as iniciativas do Ensino Médio
Integrado (EMI) e outras modalidades de articulação com a educação
profissional. Verifica-se em que sentido houve avanços das propostas que
ensejaram as alterações conceituais em um novo dispositivo, sem alterar,
contudo, a estrutura do decreto anterior. Essa análise buscará demonstrar
se a expectativa para uma escola unitária e tecnológica, isto é, a escola da
travessia, foi alcançada pelas políticas educacionais subsequentes ao
Decreto. Entre tantas iniciativas, o Projeto de EMI do Ceará receberá uma
atenção especial.
Nota sobre o Método
A opção por determinado método pressupõe um estudo sobre as
concepções ou arcabouço teórico que envolvem seu episteme. Para amparar
as reflexões emergentes propostas por esta investigação, com finalidade de
compreender as relações diversas que influenciam objeto e a múltiplas
determinações sobre as políticas educativas de ensino profissionalizante,
apoiamos a pesquisa no materialismo histórico-dialético
6
. Isso implica uma
6
Compreendemos a dificuldade deste método tendo em vista Marx não legar um tratado específico,
mas ao longo de 170 anos muitos estudos feitos intérpretes que se tornaram clássicos: Lênin, Lukács,
Gramsci, Adorno, Benjamin, Kosik, Hobsbawn, Anderson, Thompson, Mészáros e, no plano
nacional, Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodré, Jacob Gorender, Chico de Oliveira, Carlos
Nelson Coutinho, José Chasin, Florestan Fernandes, José Paulo Netto e outros. Esses intelectuais
evidenciaram o vigor e a importância da teoria marxista para a compreensão dos problemas que
39
determinada concepção de homem, sociedade e Estado. Isso implica em
abordar o fenômeno educativo tomando a relação entre a aparência e a
essência que o constituem. Através dessa premissa marxiana teremos
condições de desvelar o objeto em sua totalidade e captar a forma
fenomênica de sua efetivação histórico-concreta (LUKÁCS, 2012; 2013).
Na totalidade das relações de produção, a educação é parte da
estrutura social que está inserida no modo de produção capitalista. O
capital, ao mergulhar em sua crise estrutural, como assinala Mészáros
(2011), aciona um conjunto de ações reestruturantes da relação capital-
trabalho, buscando assegurar a reprodução da lucratividade, tanto nas
economias mais avançadas quanto nos países da periferia capitalista. Nessa
periferia, os rebatimentos são ainda mais agudos em processos cuja
precarização do trabalho é imposta pelo capital, tendo à frente do processo
uma burguesia satélite que se associa ao capital externo para extrair um
tipo de mais-valia, baseada na superexploração da força de trabalho. Como
explica Prado Jr. (2014, p. 146), “já se observou que uma parte
seguramente da grande exploração se mantém graças unicamente ao baixo
custo da mão de obra empregada, baixo custo esse fruto da exploração
intensiva do trabalhador, inclusive através de formas semiescravistas”. Para
o autor, a abolição do escravismo não constituiu obstáculo ao processo de
acumulação capitalista, pois a permanência dos traços escravistas à margem
do trabalho assalariado contribui para comprimir a remuneração do
trabalho, ampliando a parte da mais-valia que é apropriada pela burguesia
imperialista e sua sócia local.
Esse processo histórico se mantém nos traços particulares da luta
de classes na realidade brasileira. Para compreen-lo melhor,
afligem a humanidade enquanto ser social e contribuíram para o desenvolvimento de um campo
científico nos mais variados segmentos.
40
considerando a relação entre essência e aparência do nosso objeto de
estudo, o método materialista hisrico-dialético possibilita a
contextualização dos elementos do todo e suas partes, seu movimento na
histórica, considerando a particularidade histórica brasileira, a
universalidade do complexo da educação e sua relação com singularidade,
isto é, a escola enquanto espaço onde se efetivam as políticas educacionais.
E para entendermos melhor essa relação partimos da concepção de que a
educação é ato histórico, próprio dos homens e mulheres vivendo em
sociedade dividida em classes, marcadas pelo antagonismo da divisão social
do trabalho e da propriedade privada na sociedade contemporânea. Marx
e Engels (2013) concebem que as transformações que movimentam a
história da sociedade de classes são precipitadas pela correlação de suas que
emanam das lutas entre essas classes, possibilitadas pelas contradições e
oposições da ordem hodierna do modo de produção capitalista.
Através do método materialista histórico-dialético o sujeito é capaz
de desvendar a realidade, de buscar as relações e as conexões, as
contradições, a conservação e as sínteses que a compõem. Por isso,
buscamos analisar a educação profissional como uma esfera do complexo
educativo, por sua vez, fundada e determinada em última instância pelo
complexo do trabalho, conforme Lukács (2013), Tonet (2011, 2015),
Lima e Jimenez (2011), Maceno (2017). De acordo com esses autores,
estabelecemos a partir do método, análise sobre o nosso objeto de estudo
tomando a relação trabalho e educação, isto é, a relação entre o complexo
fundante e o complexo fundado e suas reciprocidades dialéticas para
compreender os rebatimentos da crise estrutural do capital sobre o trabalho
e deste com a educação, ao mesmo tempo, a autonomia relativa do
complexo educativo frente ao complexo do trabalho, recuperando a
historicidade que pôs em marcha a divisão social do trabalho e a divisão da
sociedade em classes sociais e seus reflexos no surgimento da dualidade
41
educativa e sua evolução até o capitalismo. A partir do capitalismo, que
não abandona as dualidades estruturais e antagônicas, antes as absorve, da
divisão trabalho intelectual versus trabalho manual, da educação lato versus
educação restrita, promove-se uma nova separação no interior da esfera da
educação restrita. Nela, o ensino foi separado em propedêutico e
profissionalizante, tendo em vista a incapacidade da antiga divisão lato e
restrita em atender às demandas das classes sociais, burguesia e
proletariado, sob comando da primeira, da nova ordem sociorreprodutiva
do capital
7
.
7
O leitor poderá ver a discussão metodológica que desenvolvemos no subtítulo “Sobre o método”
na tese A Educão Profissional e o Ensino Médio no Brasil: meandros, contradições e descaminhos da
proposta de integração no Ceará (AMARAL, 2020).
43
Capítulo 1
Crise Estrutural do Capital, Estado e Neoliberalismo:
Determinações Históricas sobre Complexo Educativo
No Brasil, as reformas do Estado capitalista e, com efeito, suas
reformas educacionais do ensino médio e educação profissional, a partir
dos anos 1990, redefiniram a configuração da dicotomia histórica do
ensino público, marca da dualidade educacional. Isso indica o nosso objeto
como elemento de uma intrincada teia de determinações e relações, desde
a reestruturação da produção e o regime de acumulação flexível até as
necessidades de hegemonia burguesa, via Estado, investindo em mudanças
que atendem às necessidades de classes nesse novo regime de acumulação.
Nas análises de Mészáros (2011), o atual estágio do capitalismo é de crise
estrutural, resultando, desde a década de 1970, em um processo de
reestruturação produtiva, potica e ideológica com imperativos que
avançam sobre os complexos sociais, como a educação. Essas novas
condições históricas irão desencadear mudanças nas relações trabalho e
educação e exigir que a sociedade brasileira, como parte desse processo,
busque respostas às demandas sócio reprodutivas da nova fase capitalista.
Convém considerar, nesse processo, que estamos tratando da
sociedade brasileira “enquanto particularidade histórico-concreta” e sua
relação dialética com a “universalidade modo de produção capitalista”
(MAZZEO, 2015, p. 25). Enquanto particularidade que se insere no
modo de produção capitalista, ela materializa e contém os elementos da
44
universalidade desse modo de produção, bem como os elementos de seu
processo histórico-particular (idem). Nesse caso, a sociedade brasileira, em
relação com a universalidade do capitalismo, comporta tanto os elementos
de seu estágio atual quanto os de sua particularidade histórica (ibidem).
Para deslindar essa complexidade teremos que analisar a educação
a partir do atual estágio do modo produção capitalista. Com ele surgem
novas condições históricas que desencadeiam mudanças nas relações de
produção e forças produtivas (classes sociais), redefinindo o papel do
Estado e as políticas voltadas à educação, nosso interesse principal. Como
indica Santos (2019), esse processo de reestruturação do capital e as
políticas educativas encaminhadas pelo Estado nesse contexto refletem
investidas cada vez mais intensas para transformar o processo pedagógico
em mercadoria.
Quando analisamos o quadro das reformas educacionais,
recortando o Estado brasileiro na década de 1990, podemos entender o
movimento desse processo em dois aspectos: a conversão da educação em
mercadoria e, por sua vez, a criação de um mercado educacional. Esse
movimento, combinado com as lutas de classes, é uma das premissas do
nosso estudo para verificar o movimento de reconfiguração da dicotomia
ensino médio e da educação profissional, expressadas pelas formas
desintegradas em escolas e cursos, públicos ou privados, gestadas pelas
reformas educacionais via decretos, resultando em políticas educacionais,
potencializando uma mudança na configuração da relação entre ensino
médio e educação profissional, seja na esfera pública ou privada. Esse será
o nosso objeto de estudo.
45
A crise estrutural do capital e seus reflexos na produção
e organização do trabalho
O século XX marcou a história, segundo Hobsbawm (1995), como
uma era de extremos. A Revolução Industrial consolidada impulsiona o
capitalismo, prenhe de contradições, incessantemente, para a expansão,
submetendo a tudo e a todos perante si. Para compreendermos a educação
no contexto histórico contemporâneo, e nela o papel do ensino
profissionalizante, acentuamos a necessidade de discorrer sobre as
transformações econômicas, sociais e políticas processadas na última
quadra histórica do século XX. Um processo histórico que ocorre na
abrangência do cenário de crise estrutural do capital, deflagrada a partir da
década 1970, quando é iniciada uma reestruturação produtiva, política e
ideológica para a recuperação da lucratividade. Esse processo envolve, entre
outros elementos, as reformas do Estado, a reconfiguração do campo
educacional, do papel do conhecimento, a formação da força de trabalho,
entre outros aspectos.
Apesar da temática da crise do capital ser centro de um volume
considerável da produção teórico-acadêmica e de ter despertado muitas
polêmicas e divergências, acreditamos que as reflexões em torno da análise
de Istvánszáros, partindo de Marx, permita-nos uma boa aproximação
do estado real em que se encontra o contexto capitalista na
contemporaneidade.
O capital, como ressalta Marx (2011, p. 199), deve ser
compreendido como uma relação social, “não como uma relação simples,
mas um processo, nos diferentes momentos do qual é sempre capital”, mas,
também, como valor que busca valorizar-se. Toda a produção das
mercadorias visa às trocas pelo dinheiro, à expressão do valor, e, por
conseguinte, ao consumo que satisfaz a uma necessidade. Para preencher
46
os requisitos do lucro, o modo de produção busca a constante articulação
de três esferas: a produção, a circulação e o consumo. A produção contínua
do lucro, sua acumulação ampliada, depende do fluxo entre produção,
circulação e consumo. Qualquer interrupção nessa dinâmica perturba
profundamente o processo de reprodução ampliada do capital, abrindo as
vias das crises (NETTO, BRAZ, 2012).
As crises, conforme os postulados marxianos, são inerentes ao
capitalismo, pois suas contradições imanentes se movem sempre para a
autoexpansão do capital, realizando seu ímpeto de acumular riqueza, na
forma de lucro, extraindo o trabalho excedente, produtor de mercadorias.
Sua existência pressupõe duas coisas básicas: a divisão social do trabalho e
a propriedade privada dos meios de produção. A separação e o
antagonismo entre os trabalhadores assalariados e os empresários
capitalistas pressupõem a extração de trabalho excedente, diz Marx (2011),
cria valores excedentes, isto é, as mercadorias. Estas, por sua vez, só terão
sentido para o capitalista se forem trocadas com vistas à produção do valor,
por isso entram na esfera da circulação para serem vendidas. Realizado
todo o processo, o dinheiro retorna ao capitalista numa quantidade maior
que a inicialmente investida: o lucro.
O objetivo do capitalista é aumentar sempre a taxa de lucro. Para
isso é preciso que converta mercadoria em dinheiro e dinheiro em
mercadoria, processo consumado pela venda ao consumidor. Só que isso
não se dá de forma direta (produção e consumo). A relação entre produção
e consumo só será realizada por meio da troca que produz valor, na esfera
da circulação. A metamorfose da mercadoria em dinheiro encontra um
obstáculo, pois, segundo Marx (2011, p. 336), “a produção não coincide
com a valorização, logo, que é superprodução, ou, o que dá na mesma, que
ela não é convertível em dinheiro, produção não convertível em valor, que
não se confirma na circulação”. Segundo Mészáros (2011), a produção e o
47
consumo, sujeitos ao domínio da circulação, tornam a unidade entre
ambos insuperavelmente problemática, trazendo, como necessidade,
alguma espécie de crise para reajustar o modo de acumulação, pois
A desvalorização periódica do capital existente, que é um meio
imanente ao modo de produção capitalista para conter a queda da taxa
de lucro e acelerar a acumulação do valor-capital pela formação de
novo capital, perturba as condições dadas em que se efetua o processo
de circulação e reprodução do capital, e, por isso, é acompanhado por
paralisações súbitas e crise do processo de produção (MARX, 1986, v.
3, Tomo I, p. 188)
Como o movimento da reprodução do capital é autoexpansivo em
sua essência, as crises são inerentes para o deslocamento de contradições da
esfera produtiva para outros setores da sociabilidade humana, visto que o
“capital persegue de maneira desmedida o trabalho excedente, a
produtividade excedente, o consumo excedente etc com um contínuo
marche, marche!” (MARX, 2011, p. 337-338). Em contrapartida, o
esgotamento da valorização em determinado setor faz com que o capital se
retire dele e se lance a outro ponto onde encontrará terreno necesrio para
repor valor. Este movimento de contratendências do capital põe em
marcha as vias de recuperação das perdas, sem medir as consequências para
a humanidade. A estagnação econômica em países centrais do capitalismo
obriga seus investidores a buscar novas alternativas de mercado à
acumulação lucrativa. A concentração de capitais, o “rentismo”, a
financeirização, as bolhas especulativas são meios para acumulação
expansionista.
As contingências de cada uma das dimensões produção,
circulação, consumo são determinações a serem ultrapassadas, mas que
48
estão sempre postas. O capital luta a todo momento para solucionar o
problema da tendência de queda da taxa de lucro. A superação das barreiras
é um constante movimento de expansão do capital em direção à
reprodução ampliada, submetendo a si tudo e a todos. O próprio capital é
ponto de partida e de chegada como motivo e finalidade da produção.
Reforça Marx (1986, p. 189) “que a produção seja apenas a produção
voltada para o capital e não inversamente.” A base de superação das
barreiras assenta-se na expropriação do trabalho excedente e na
pauperização das massas trabalhadoras, que entram em contradição com
os métodos de produção, pois dependem delas para acionar a produção
ampliada do lucro (MARX, 2011). Sobre as consequências desse
movimento de crise do capital, advertem Marx e Engels (2013, p. 33) que
“a sociedade vê-se bruscamente de volta a um estado de barbárie
momentânea: dir-se-ia que a fome ou a guerra geral tolheram-lhe todos os
meios de subsistência”. Por isso, o capitalismo, pelas próprias contradições
internas que lhes são inerentes, precisa lidar com a superacumulação de
capitais e a tendência da queda da taxa de lucro; com a superprodução de
mercadorias e a desvalorização do capital.
Na linha desses autores, Mészáros (2011, p. 800), analisa que o
modo normal do capitalismo lidar com as contradições é “intensificá-las,
transferi-las para um nível mais elevado, deslocá-las para um plano
diferente, suprimi-las quando possível e, quando elas não puderem mais
ser suprimidas, exportá-las para outra esfera ou um país diferente”. Esse
deslocamento pode se dar na esfera política, isto é, para o Estado,
configurando a “ajuda externa” ao capital, com a privatização ou a
estatização de empresas falidas e sua recuperação com fundos públicos.
Esse movimento é apontado por Foster (2013, p. 86), ao passo que o lento
crescimento econômico obriga as grandes corporações
49
A procurar novos mercados para investimento, fora de suas áreas
tradicionais de atuação, levando à aquisição e à privatização de
elementos-chave da administração do Estado. A contrapartida política
do capital monopolista-financeiro é, portanto, a reestruturação
neoliberal, em que o Estado é cada vez mais canibalizado por interesses
privados.
Esses movimentos constituem as contratendências do capital para
superar a queda da taxa de lucro. Desse modo, deduzimos que as crises
cíclicas exercem a função de encerrar um ciclo de acumulação do capital,
em boa parte, deslocando as contradições para as esferas sociais, políticas,
culturais, deflagrando processos de barbáries, guerras, fome diferenciando-
se de outros momentos históricos quando tudo isso estava associado à
escassez, especialmente, alimentar.
No final dos anos 1960, as economias das potências capitalistas
iniciaram um processo de declínio sedimentando o mercado financeiro
internacional. A taxa de lucro em queda degradou-se ainda mais com a
crise do petróleo. A década de 1970 encerra um período de
desenvolvimento econômico capitalista iniciado após a II Guerra. Para o
historiador Eric Hobsbawm (1995, p. 393), a história após 1973 é “a de
um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade e a
crise”. Registra o historiador que o mundo não desabou, mas viu a redução
drástica das taxas de lucro e da produção industrial histórica chegarem a
10% em um ano, e o declínio do comércio internacional chegar a 13%
entre 1973-5 (idem). Problemas socioeconômicos referentes a períodos
anteriores à guerra retornaram ainda mais fortes, entre os quais:
desemprego em massa, pobreza, miséria, instabilidades sociais, pouco
amplificadas durante a chamada “era de ouro”, vieram à tona no momento
da crise.
50
Esse contexto é interpretado por Mészáros (2011), como de
depressão econômica e esgotamento do próprio sistema sociometabólico,
que produz e reproduz o capital na esfera da sociabilidade. Esses elementos
se caracterizaram nas economias, variando de um país para outro, através
da estagnação econômica ou baixíssimo crescimento, financeirização e
monopolização, concentração de renda, desemprego e subemprego
crônicos, esgotamento ambiental, privatizações e mercantilização dos
serviços públicos de assistência social. Como esses elementos se estendem
ao longo de décadas, Mészáros (2000) conceitua a crise inaugurada na
década de 1970 como crise estrutural do capital. O autor esclarece que ela
é a “manifestação do encontro do sistema com seus próprios limites”,
resultando das contradições e tentativas de superação que ao longo do
século XX se mostraram incapazes de tal feito (idem, p. 14).
O apogeu do modo de acumulação do capital, baseado no
keinesianismo
8
, no fordismo e na política de consensos da social
democracia, deu sinais críticos cujos traços podem ser assim colocados: 1)
queda da taxa de lucro, em decorrência do período do aumento da força
de trabalho, efeito das lutas sociais dos anos 1960 com alguns êxitos da
classe trabalhadora; 2) esgotamento do padrão de acumulação
taylorista/fordista; 3) hipertrofia da esfera financeira, expressando
prioritariamente o capital financeiro especulativo frente ao capital
produtivo; 4) fusões entre empresas monopolistas que formaram
oligopólios e aumentaram a concentração de capitais; 5) crise do
WelfareState ou Estado de bem-estar social, acarretando a crise fiscal do
Estado capitalista, necessidade de cortes drásticos nos gastos públicos e sua
transferência para o capital privado e 6) incremento acentuado das
8
Teoria econômica elaborada por John Maynard Keynes que defende a intervenção do Estado na
economia, objetivando a expansão do capital para áreas em que a iniciativa privada não atua.
Pressupõe o Estado como regulador da relação capital-trabalho e agente condutor do sistema que
levasse ao pleno emprego.
51
privatizações, generalizando as desregulamentações e a flexibilização de
processos produtivos, dos mercados e da força de trabalho (MÉSZÁROS,
2011; ANTUNES, 2009).
Para que se chegasse até essa crise, o século XX, já sob a ótica
impulsionadora de um mercado mundial imperialista, não possibilitou ao
capital resolver seus antagonismos estruturais, entre os quais Mészáros
(2011) sublinha: 1) monopólio e competição; 2) a crescente socialização
do processo de trabalho e a discriminadora apropriação de seus produtos e
3) a divisão internacional do trabalho, ininterrupta e crescente,
impulsionada para o desenvolvimento desigual das maiores poncias
nacionais hegemônicas do sistema global. Desse modo, temos uma
estrutura global totalizadora do sistema metabólico do capital como a mais
abrangente e poderosa de toda a história, constituindo-se de um núcleo
formado pelo tripé capital, trabalho e Estado (idem). Conforme Mészáros
(ibidem, p. 799), a crise estrutural do capital, que começamos a
experimentar nos anos 1970,
Significa simplesmente que a tripla dimensão interna da autoexpansão
do capital exibe perturbações cada vez maiores. Ela não apenas tende a
romper o processo normal de crescimento, mas também pressagia uma
falha na sua função vital de deslocar as contradições acumuladas do
sistema.
O autor analisa que o rompimento da tripla fratura interna do
capital (produção, circulação e consumo) expõe o caráter estrutural da
crise. Essas três dimensões são fundamentais para o ciclo de acumulação
da riqueza capitalista, como visto anteriormente. Enquanto elas
funcionarem normalmente, não há crise estrutural. Porém,
52
A situação muda radicalmente, quando os interesses de cada uma
deixam de coincidir com os das outras, até mesmo em última análise.
A partir deste momento, as perturbações e disfunções antagônicas, ao
invés de serem absorvidas/dissipadas/desconcentradas e desarmadas,
tendem a se tornar cumulativas e, portanto, estruturais, trazendo com
elas o bloqueio ao complexo mecanismo de deslocamento das
contradições. Desse modo, aquilo com que nos confrontamos não é
mais simplesmente disfuncional, mas potencialmente explosivo. Isso
porque o capital nunca, jamais, resolveu sequer a menor de suas
contradições (MÉSZÁROS, 2011, p.799-800, itálicos do autor).
Portanto, a crise estrutural diminui a margem de manobra do
capital e desperta o seu caráter destrutivo, não limitando-se apenas à esfera
econômica, mas estendendo-se a todos os complexos sociais, que
encontram-se atualmente sob regência do capital, “em todas as relações
com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros
complexos aos quais estão articuladas” (MÉSZÁROS, 2011, p. 797).
Como podemos observar na análise de Mészáros, essa crise do capital põe
em risco a sobrevivência da humanidade, devido à destrutividade do meio
ambiente, ao acionamento do complexo industrial militar como forma de
absorver/resolver os entraves da expansão capitalista e à precarização da
vida para grandes contingentes da humanidade, condição para a barbárie
social.
Ao contrário das crises cíclicas, a novidade da crise estrutural
manifesta-se em quatro aspectos: 1) seu caráter é universal, em lugar de
restrito a uma esfera particular, por exemplo, financeira ou comercial, ou
afetando um ramo particular da produção; 2) seu alcance é
verdadeiramente global, em lugar de limitar-se a um conjunto de países;
3) sua escala de tempo é extensa, contínua, permanente, em lugar de cíclica,
como em crises anteriores do capital; 4) desdobra-se de modo rastejante,
53
isto é, a crise manifesta-se de forma insinuante e persistente, embora
ressalve-se que as convulsões veementes e precipitações virulentas podem
acontecer (MÉSZÁROS, 2011).
Em vez de, conforme assina Marx (2011, p. 411), “descarregar
tempestades econômicas sobre si mesmo”, o capital propõe-se a
administrar a crise, seus limites últimos, manifestados como limites
pertencentes à mais íntima natureza do capital. O continuum depressivo
exibe as características de uma crise endêmica, cumulativa, rastejante, que
se insinua em todo o complexo social, persistentemente a confrontar-se
com o estopim de convulsões periódicas inseridas na própria natureza da
crise, que é profunda e estrutural (idem). Sob tais aspectos, a referida crise
afeta a totalidade do complexo social, diferentemente das crises cíclicas, e
seus efeitos não indicam um estágio temporário do capitalismo, mas
estendem-se para o cotidiano dos complexos sociais em várias dimensões
da vida humana: na economia, no Estado, na família, na cultura, na
educação, nas relações trabalhistas etc. (ibidem).
O capitalismo encerra sua fase ascendente e inicia a curva
descendente ao ativar seus limites
9
últimos ou estruturais do sistema global
(MÉSZAROS, 2011). Isso ocorre porque o sistema de reprodução
sociometabólico alcança um desenvolvimento histórico e, como tal, “é
forçado a transformar os parâmetros estruturais da ordem estabelecida”
(idem, p. 217). O movimento do capital para a expansão, movido pela
acumulação, encontra os limites estagnadores, entrando numa fase
9
Para Mészáros (2011, p. 175), o sistema do capital possui limites que podem ser absolutos ou
relativos. Os limites relativos são aqueles passíveis de serem redefinidos e estendidos, permitindo que
o sistema do capital prossiga no seu caminho sob determinadas circunstâncias, que mudam, mas
mantêm o mais alto grau de extração de mais-valia, razão histórica do capital. Já os limites absolutos,
em contraste, colocam “em ação a própria existência causal, isto é, as determinações estruturais mais
internas vêm à tona”. O autor (2011, p. 526) chama a atenção para o temor de que o capital ative
os limites absolutos: “esta questão sempre assombrou a teoria liberal burguesa, desde Adam Smith,
por uma razão: o medo de que o capital possa um dia encontrar seu limite absoluto.
54
histórica em que se torna imperativo buscar alternativas de mercado não
convencionais para acumulação. Para isso, alerta o filósofo húngaro, as
premissas objetivas componentes da estrutura reprodutiva global devem
ser ajustadas sob as circunstâncias existentes.
A ativação dos limites absolutos expressa o movimento
descendente do sistema do capital, expõe quão inconciliáveis são as grandes
contradições do capital: capital transnacional e Estados nacionais;
racionalização dos recursos naturais disponíveis e destruição/devastação do
meio ambiente; mercado de livre concorrência e monopólio;
desenvolvimento e subdesenvolvimento; produção e destruição;
dominação estrutural do capital sobre o trabalho e sua insuperável
dependência do trabalho vivo; desemprego crônico e liberação das
mulheres (MÉSZÁROS, 2011). Esses elementos da crise do capital,
“ativados nas atuais circunstâncias, não estão separados, mas tendem,
desde o início, a ser inerentes à lei do valor”; eles correspondem “à
maturação da lei do valor sob condições marcadas pelo encerramento da
fase progressista de ascendência histórica do capital” (MÉSZÁROS, 2011,
p. 226).
A mudança no ciclo de reprodução capitalista ativou o
deslocamento de contradições e a “guerra de atritos”, realçando os
problemas estruturais do capital, entre os quais, a produção voltada para o
consumo destrutivo; a taxa de utilidade decrescente; a expansão do
consumo para o conjunto dos “pobres que trabalham”; a produção
militarista para o desenvolvimento capitalista; a reestruturação da
produção e da relação capital e trabalho e do Estado capitalista com a
produção, que se dá tanto na esfera política como na ideológica, são
“limites potencialmente explosivos, além de intensificarem o espectro da
incontrolabilidade do sistema social do capital” (MÉSZÁROS, 2011, p.
697). Um dos limites é vinculado ao movimento monopolista de
55
concentração e centralização da riqueza, que efetua apenas uma drenagem
de recursos do sistema com perdas enormes à classe operária em todas as
partes do mundo, gerando a tendência crescente de desemprego crônico.
Sobre essa questão, adverte Mészáros (2011, p. 342):
Estamos testemunhando: 1) um desemprego que cresce cronicamente
em todos os campos de atividade, mesmo quando é disfarçado como
“práticas trabalhistas flexíveisum eufemismo cínico para a política
deliberada de fragmentação e precarização da força de trabalho e para
a máxima exploração administrável do trabalho em tempo parcial e 2)
uma redução significativa do padrão de vida até mesmo daquela parte
da população trabalhadora que é necessária aos requisitos operacionais
do sistema produtivo em ocupações de tempo integral.
O aumento do desemprego e da precarização do trabalho humano
expressa a lógica destrutiva de reconfigurar a divisão internacional do
sistema do capital. O desmonte da ordem econômica de Bretton Woods
10
gerou, em grande parte dos países periféricos, um verdadeiro desmonte
industrial e produtivo, pois além de se verem derrotados na concorrência
mundial, viram multiplicado o quadro de endividamento externo. No
processo de reestruturação, os países da periferia do capitalismo são
obrigados a se adequarem à nova ordem sob pena do “agudizamento” das
condições sociais, forte componente político para questionar o status quo
do poder vigente.
10
O Acordo de Bretton Woods, como ficou conhecido, refere-se ao conjunto de medidas
econômicas adotadas pelos países capitalistas aliados dos Estados Unidos da América. A partir desse
acordo, o dólar-ouro foi transformado em moeda de reserva mundial, vinculando o
desenvolvimento da economia capitalista internacional à política fiscal e monetária norte-
americana. Para regular esse sistema foram instituídos o Banco Internacional para a Reconstrução
e Desenvolvimento (BIRD), mais conhecido como Banco Mundial, e o Fundo Monetário
Internacional (FMI). Ambos entraram em operação em 1946 (HARVEY, 2012).
56
Diante da gravidade do quadro histórico, visando à sua reprodução
ampliada, o capital intensifica sua destruição à natureza e à humanidade,
desemprega e precariza a força humana de trabalho, o que não é uma
novidade. A intensidade de exploração desses elementos mostra o quão tem
sido descartável a humanidade, através da “obsolescência programada”
pelo capital a fim de descartar o mais rápido possível a produção de um
curto período e pôr outro em seu lugar (MÉSZÁROS, 2011).
A crise estrutural do capital exigiu uma reestruturação produtiva,
política e ideológica, visando à recuperação da lucratividade. O modo de
acumulação celebrado no pós-guerra estava assentado no
taylorismo/fordismo, com forte intervencionismo do Estado keynesiano.
A crise o atingiu em cheio, desencadeando, por sua vez, a crise na esfera
política quando os representantes da direita radical romperam com a forma
keynesiana do Estado capitalista.
Nessa trajetória, as novas demandas se impuseram sobre a esfera do
trabalho. A implantação de um regime de acumulação mais flexível é fruto
de novas configurações produzidas pela concorrência intercapitalista para
a qual o toyotismo japonês se tornou o modelo de nova forma de
organização da produção (ALVES, 2014). Ele é um modo de produtivo
organizacional que combina tecnologias avançadas altamente complexas
das áreas da informática e da microeletrônica, promove a desconcentração
produtiva ao recorrer a empresas terceirizadas e utiliza novas técnicas de
gestão do trabalho, envolvendo a participação dos trabalhadores, pelo
menos no plano do discurso e na gestão do trabalho, porém, sem eliminar
a estrutura de controle hierárquica nem o caráter alienado e estranhado do
trabalho, o trabalho “polivalente”, “multifuncional”, “qualificado”
(ANTUNES, 2009).
Esse processo objetiva a intensificação das condições de exploração
do trabalho, diminuindo o seu tempo “improdutivo”, acrescentando ao
57
trabalhador, além da produtividade, a inspeção da qualidade do produto.
Na fase atual, lembramos, a “qualidade” é intensificada pela taxa de
utilização decrescente do valor de uso das mercadorias, portanto as
mercadorias são depreciadas aceleradamente (MÉSZÁROS 2011). A
produção é vinculada à demanda; a contratação da força de trabalho se dá
por tempo determinado; a estrutura é mais flexível com o aumento da
terceirização, atrela-se ao just in time a fim de reduzir o tempo de produção;
há introdução de Centros de Controle de Qualidade onde os próprios
trabalhadores são levados, instigados pelo ideário do capital, a discutir seu
trabalho, seu desempenho e o condicionamento dos ganhos salariais,
intimamente vinculados à produtividade (ANTUNES, 2009). Desse
modo, o estabelecimento de “regras flexíveis quer dizer a precarização da
força de trabalho no mais alto grau praticável, na esperança de melhorar as
perspectivas de acumulação lucrativa do capital” (MÉSZÁROS 2011, p.
330).
Na esteira, os agentes do capital passaram a explorar novos
mecanismos que garantissem a extração de sobretaxas de trabalho
excedente, explorando trabalho vivo, fonte da mais-valia, ao mesmo
tempo, que precisam fechar o circuito com sua realização. Ao ingressar em
sua descendente, o capital põe em movimento novas formas de acumulação
que aprofundam o que, para Marx (2013), está posto desde o início: a
subsunção do trabalho ao capital. Nessa nova fase,
A ofensiva do capital na produção por meio do novo complexo de
reestruturação produtiva significa a reposição da subsunção real do
trabalho ao capital. Em seu movimento sócio ontológico, o sujeito
capital tende a debilitar, a longo prazo, o trabalho assalariado,
atingindo a classe dos trabalhadores assalariados. As tendências de
mundialização do capital, neoliberalismo e acumulação flexível,
apontam que o sujeito capital tende a desenvolver, no plano
58
contingente, a negação das barreiras, constituída pelo trabalho no
interior da vigência do capital contra a sanha da valorização exacerbada
(ALVES, 2011, p. 26).
Nessa nova fase, o trabalho tem que ser ainda mais produtivo,
flexível e adaptável às exigências do mercado e, por conseguinte, aos
trabalhadores-consumidores-cidadãos. Por outro lado, o padrão adotado
para recuperar a lucratividade é o ataque à esfera do trabalho, aviltando as
condições de vida dos trabalhadores através da terceirização e
informalidade. As privatizações e as contra-reformas trabalhistas impõem
perdas de emprego e de certas garantias sociais, perfazendo um quadro de
regressividade e potencialmente da desigualdade e miséria, difusores do
espectro da barbárie social (MÉSZÁROS, 2011).
Na análise deste autor, constatamos o que passou a ser suprassumo
da ordem do capital: a recuperação da reprodução ampliada da acumulação
valor-lucro, fundamento do sujeito capitalista. O capital, ao encontrar
dificuldades para se manter e ampliar sua margem de reposição do valor,
passou a difundir ainda mais a mistificação ideológica. Esta esconde sua
verdadeira face expansionista, que o impulsiona em busca de lucro,
movendo seu ímpeto na abertura de novos mercados, novas formas de
concentração e acumulação de riquezas.
Em uma análise distinta da Mészáros
11
, Harvey (2005) indica que
a necessidade de reestruturar sua base produtiva e criar formas de
11
Mészáros e Harvey analisam a crise que sobreveio no modo de produção capitalista a partir da
década de 1970. Sumária e panoramicamente, podemos afirmar a tese principal de Mészáros
(2011), quanto ao prolongamento da crise e seus efeitos, como uma fase histórica na qual o capital
encontra os limites estruturais, para reproduzir e ampliar, um novo padrão de acumulação e
expansão de seu sociometabilismo. A partir da década de 1970, o modo de produção do capital
inicia uma curva descendente na história, ativando relações de produção destrutivas que acirram
ainda mais a luta de classes e põem em risco a sobrevivência da humanidade. Já Harvey (2005;
2012), analisando as mutações e compressões do tempo e espaço a partir da década de 1970, aponta
59
acumulação faz parte da criação de novos mecanismos de exploração (o
incremento de novas tecnologias e formas de organização do trabalho) e
renovação de outros, remete à fase da acumulação primitiva.
Alguns dos mecanismos da acumulação primitiva que Marx enfatizou
foram aprimorados para desempenhar hoje um papel bem mais forte
do que no passado. O sistema de crédito e o capital financeiro se
tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no
começo do século XX, grandes trampolins de predação, fraude e roubo.
A forte onda de financialização, domínio pelo capital financeiro, que
se estabeleceu a partir de 1973, foi em tudo espetacular por seu estilo
especulativo e predatório (HARVEY, 2005, p. 122).
A acumulação flexível e a reestruturação produtiva, as
transformações que afetaram a divisão social do trabalho, o acirramento da
luta de classes, a destruição do meio ambiente, a redefinição do papel do
Estado etc. fazem parte da crise estrutural do capital como indicou
Mészáros. Todos esses elementos se relacionam com o processo de
reprodução social que, por sua vez, modifica a função social do complexo
educativo. Para nossas reflexões, de acordo com a síntese de Alves (2011,
p. 13),
um novo ciclo na organização do capitalismo para resolver a crise crônica de acumulação e expansão.
A emergência do capital em recuperar padrões de acumulação lançou um modo predatório similar
à fase de acumulação primitiva, indicada por Marx. Para Harvey (2005), essa fase de crise assume a
investida do capital financeiro na busca pela hegemonia, ativando a acumulação com relações de
produção flexíveis para o capital e modos espoliativos caracterizados por serem especulativos e
predatórios. Considerando as distinções entre as teses de Mészáros e Harvey, entendemos que suas
contribuições são válidas para compreender a intrincada teia de relações em que nosso objeto de
estudo está inserido.
60
A acumulação flexível surge como estratégia corporativa que busca
enfrentar as condições críticas do desenvolvimento capitalista na etapa
da crise estrutural do capital, caracterizada pela crise de
sobreacumulação, mundialização financeira e o novo imperialismo.
Constitui um novo ímpeto de expansão da produção de mercadorias e
de vantagem comparativa na concorrência internacional, que acirra a
partir de meados da década de 1960, compondo uma nova base
tecnológica, organizacional e sociometabólica para a exploração da
força de trabalho.
O autor, apoiado nas análises de Mészáros e Harvey, indica que
esses elementos são tentativas de conter a crise, reestruturar a produção
para um novo regime de acumulação e estender o domínio do capital. A
acumulação flexível e o neoliberalismo seriam elementos que têm um
impacto direto sobre a força de trabalho, inclusive na sua
formação/qualificação. Esses processos implicam diretamente na
correlação de forças político-ideológicas no interior da luta de classes.
Submeter segmentos inteiros, no interior dos complexos sociais, à lógica
da financeirização implica convertê-los em mercadoria e mercantilizá-los.
A partir da reestruturação produtiva, uma nova divisão social do
trabalho precisa ajustar-se às novas relações de produção que amparam o
regime de acumulação, sem deixar de atuar como forma de poder e
justificativa ideológica. Para Mészáros (2011), esse processo implica na
prerrogativa, sob domínio do capital, de que todo indivíduo deve provar
continuamente sua viabilidade produtiva e conformação ideológica. O
antagonismo entre capital e trabalho, controle e produção não poderia
funcionar se não existisse uma classe trabalhadora que, “por educação,
hábito e costume, reconhecesse as exigências do capital e desse modo de
produção como leis naturais evidentes por si mesmas” (MARX, 2013, p.
808).
61
Como a crise estrutural do capital avança com força extrema, a
expansão e acumulação precisam de uma divisão social do trabalho
ajustada a esses padrões. Nessas circunstâncias, a segmentação e
fragmentação na divisão social do trabalho tende a reforçar o capital com
o qual já está dado, conforme Marx e Engels (2007, p. 72).
Por meio da divisão do trabalho, já está dada desde o princípio a divisão
das condições de trabalho, das ferramentas e dos materiais, o que gera a
fragmentação do capital acumulado em diversos proprietários e, com
isso, a fragmentação entre capital e trabalho, assim como as diferentes
formas de propriedade. Quanto mais se desenvolve a divisão do
trabalho e a acumulação aumenta, tanto mais aguda se torna essa
fragmentação. O próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto
dessa fragmentação.
A divisão social do trabalho tornou-se cada vez mais social com o
capitalismo. Para o autor, a segmentação e fragmentação no interior da
divisão do trabalho é fonte de tensões, pois as dualidades separam e opõem
controle e produção. De acordo com Harvey (2016), essas tensões podem
ser transferidas para o interior da esfera do trabalho. A separação entre as
esferas de controle e prodão é conveniente ao sistema do capital, pois a
uns cabe o controle e a outros execução técnica, mais ou menos complexa,
do processo de trabalho em si. Essa separação fundamenta a divisão da
sociedade em classes sociais. Esse aspecto é regulado, de modo geral, pelo
mercado de trabalho, as funções divididas em segmentos e categorias
profissionais assalariadas, distinguindo e opondo os trabalhadores entre si,
já que estão concorrendo por melhores remunerações, como indica Harvey
(2016, p. 124),
62
As lutas por status dentro da divisão do trabalho e pelo reconhecimento
das qualificações, na verdade, são lutas por oportunidades de vida para
o trabalhador e, como tal e esse é o cerne do problema por
lucratividade para o capitalista. Do ponto de vista do capital, é útil, ou
até mesmo crucial, que haja um mercado de trabalho segmentado,
fragmentado e extremamente competitivo. Isso cria barreiras à
organização coerente e unificada dos trabalhadores. Os capitalistas
podem aplicar e muitas vezes aplicam uma política de divisão e
controle, promovendo e incitando tensões interétnicas, por exemplo.
Na fase da crise estrutural do capital, o processo de fragmentação
e flexibilização avança para as esferas sociais que gozavam de certa
autonomia, na “fase de ascendência do capital”, em relação aos
componentes centrais da produção valor-mercadoria. Os serviços sociais,
direitos conquistados pela classe trabalhadora, entre os quais a educação
pública, ofertados pelo Estado, passam a ser reivindicados pelo capital. Os
neoliberais operam a desregulamentação do Estado keynesiano, visando
transferir esses serviços para a esfera privada.
Essa investida visava não apenas a aumentar o mercado
educacional, ela também consistia em adequar a educação aos novos
padrões de acumulação flexíveis, especificamente, porque o currículo
escolar fundamentado em concepções da administração científica
tayloristas-fordistas seriam insuficientes para as novas necessidades
produtivas e conformações ideológicas requisitadas pelo capital
(ANTUNES, 2017).
Como indica Antunes (2017), a educação sob o princípio do
americanismo-fordismo constituiu-se de forma parcelada,
compartimentada em disciplinas, hierarquizada, conectada à divisão e
antagonismo entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esse aspecto
condiz com o que Taylor indicava ser o “gorila mestrado”, um novo tipo
63
de trabalhador e de homem, tratado por Gramsci (2014, p. 266) no texto
sobre americanismo e fordismo.
Com efeito, Taylor expressa com brutal cinismo o objetivo da
sociedade americana: desenvolver em seu grau máximo, no
trabalhador, os comportamentos maquinais e automáticos, quebrar a
velha conexão psicofísica do trabalhador profissional qualificado, que
exigia uma certa participação ativa da inteligência, da fantasia, da
iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao
aspecto físico maquinal.
Esse papel social da educação estava assentado na concepção de que
o trabalhador deveria estar instrumentalizado para a tarefa “rotinizadora”
do processo fabril fordista (ANTUNES, 2017). Para este autor, no
contexto da crise estrutural, a posição hegemônica assumida pelo capital
monopolista-financeiro, no regime de acumulação flexível, a
reestruturação produtiva e o neoliberalismo mobilizam antigos e novos
elementos da nova divisão internacional do trabalho (idem). Antunes
(ibidem, 2017, p. 6) conceitua essa investida com “uma contrarrevolução
burguesa de amplitude global que afetou todos os espaços produtivos do
mundo, da China ao México, dos EUA à Índia, do Brasil à Coreia etc.”
A partir da crise estrutural,
toda a estrutura socioeconômica, dentre
elas a esfera da educação, pois a reestruturação política apoiada na
concepção neoliberal de “Estado mínimo”, investe no crescente processo
de mercantilização do ensino, atrelando-o à lógica de mercado, portanto,
esferas da reprodução social, como o complexo da educação, passaram a
ser alvo da investida do mercado para serem incorporadas como
empreendimento comercial. O regime de acumulação flexível, na qual
prevalece a lógica da financeirização, a relação trabalho e educação
administradas pela direção estatal, incorporou um léxico da esfera de
mercado do capital competitivo. Na síntese de Antunes (2017, p. 6),
64
“Sociedade do conhecimento”, “capital humano”, “trabalho em
equipe”, “times ou células de produção”, “salários flexíveis,
“envolvimento participativo”, “trabalho polivalente”, “colaboradores”,
“pj” (pessoa jurídica, denominação falsamente apresentada como
“trabalho autônomo”), “empreendedorismo”, “economia digital”,
“trabalho digital”, “trabalho on-line”, tornaram-se o novo léxico do
mundo do capital corporativo (aspas do original).
Esse processo na educação revela o que Mészáros (2011) analisa
quanto ao modus operandi do capital sobre os complexos sociais e seus
microcosmos. A escola é um desses microcosmos, inseridos nas mediações
do complexo da educação escolar que, em suas mais variadas formas
ofertadas pelo mercado, reforça os estabelecimentos empresariais como
unidades do microcosmo, representando um nicho de mercado, parte do
processo de acumulação flexível. Como as empresas, as escolas, ao vender
seus serviços, devem estar integradas ao domínio da circulação do capital,
assim, a educação pode ser desintegrada, conforme os serviços que oferta,
o processo de escolarização, os sujeitos que integram escola, postos à venda
como seu capital humano. Nesse sentido, a modalidade da educação
profissional, pode se apresentar de formas muitas vezes desintegradas
conforme o estabelecimento de ensino e seus serviços, porém deve ser
administrável de maneira que o capital possa penetrar e se reproduzir na
forma de lucro. Esse processo de mercantilização é explicado porszáros
(2011, p. 105).
No sistema do capital, esses defeitos estruturais são claramente visíveis
pelo fato de serem os novos microcosmos que o compõem
internamente fragmentados de muitas formas. [...] Os novos
microcosmos do sistema do capital combinam-se em alguma espécie
65
de conjunto administrável, de maneira que o capital social total seja
capaz de penetrar porque tem de penetrar no domínio da circulação
global (ou, para ser mais preciso, de modo que seja capaz de criar a
circulação como empreendimento global de suas próprias unidades
internamente fragmentadas), na tentativa de superar a contradição
entre produção e circulação (MÉSZÁROS, 2011, p. 105).
O capital monopolista-financeiro abriu um novo nicho para
manter as condições de acumulação com a criação de um mercado
educacional que pode ser fragmentado em vários níveis, modalidades e
cursos desde que atendam ao chamamento do capital financeiro movido
pela acumulação. Isso quer dizer que um mercado educacional é um setor
estratégico para os investimentos do mercado que busca áreas para
reprodução do lucro.
Diante disso, temos duas situações em nosso horizonte que nos
levam ao nosso objeto de estudo. A primeira se refere ao sentido econômico
que é atribuído à educação escolar, sendo ofertada como uma mercadoria,
assimilada e integrada como uma vantagem econômica para o capital. A
fragmentação da educação e, por sua vez, da relação entre o ensino médio
e a educação profissional têm relação com as novas configurações dadas
pela divisão social do trabalho e luta de classes, no âmbito da disputa entre
capital e trabalho. Com a margem de manobra do capital, as mudanças
alcançam a função social da educação que deve responder ao mercado
financeiro. Esse processo abre uma segunda frente que é a reconfiguração
da dualidade e dicotomia educacional.
Santos (2019) infere, a partir de Lukács e comparando a
conceituação do termo dualidade e dicotomia, partindo do conceito
filosófico de Abbagnano (2007), que o complexo da educação se configura
como estrutura dual e sobre essa base se divide em ramificações
66
dicotômicas. É a partir dessa reflexão que entendemos que a relação entre
dualidade e dicotomia assume as características do capitalismo. Sendo a
dicotomia uma expressão da dualidade. A dualidade é base dessa estrutura
educacional e as dicotomias são as formas de manifestações que atendem
as demandas da ordem capitalista. Assim expressando, a dualidade surge a
partir da divisão social do trabalho, da estruturação da sociedade em classes
e da propriedade privada, enquanto a dicotomia entre ensino propedêutico
e profissionalizante é forma que essa dualidade passa a se expressar para
atender demandas emergentes da ordem capitalista. Com a transformação
promovida pelas revoluções liberais e industrial burguesas na divisão social
do trabalho, a divisão educacional entre as esferas lato e restrita se tornavam
insuficientes. A demanda do capital e a burguesia no comando, demandam
do processo educativo formar trabalhadores aptos ao processo produtivo
info-maquinizado e, por outro, lado, formar os dirigentes, os que ocuparia
os cargos de comando, administração e vigilância na hierarquia da divisão
social do trabalho sob o capitalismo. Doravante, em capítulo próprio,
exploraremos o percurso histórico que indicamos aqui.
Para este momento da análise, o atual estágio do capitalismo
inserido na crise estrutural do capital, desperta novos elementos que
alteram as relações entre trabalho e educação. Os elementos que
apontamos acima sobre a crise reverberam sobre os complexos sociais do
processo sociorreprodutivo. A reestruturação do processo produtivo, a
investida neoliberal sobre o Estado, a financeirização mundializada e sua
investida sobre os complexos sociais, a fim de converter direitos
conquistados pelos trabalhadores em bens e serviços à disposição da
acumulação lucrativa. O capital em crise estrutural demanda maior
flexibilidade que, por sua vez, resulta em maior fragmentação e
desintegração dos microcosmos societais in lócus para exploração
mercadológica, como as escolas.
67
Por isso, a estrutura dual como base, essência do fenômeno, e a
dicotomia como forma de manifestação que assume os contornos
históricos das relações de produção, das manifestações da luta de classes e
da ideologia, tende a formar o indivíduo em determinada direção ou em
uma posição subalterna nas relações sociais. Essa configuração passa a ter
novos arranjos a partir da crise estrutural do capital, pois esta modificou a
divisão social do trabalho.
A fragmentação não elimina a dualidade, ao contrário, reforça-a
por meio da “capilarização” de novas dicotomias que podem ser mais ou
menos profissionalizantes, conforme o interesse do mercado. Essa relação
será tratada quando do movimento de reforma do ensino profissionalizante
por meio de decretos. É um processo dialético de mudança pela
permanência. Como a dualidade que serve de base à dicotomia não é
transformada, o ensino propeutico versus profissionalizante,
preferencialmente este último, pode ser flexibilizado e desintegrado em
segmentos educacionais, com cursos mais rápidos e de baixo custo. A esfera
privada, ansiosa para abrir novas áreas para investimento, exerce pressão
sobre o Estado a fim de vender serviços de ensino no mercado educacional,
por outro lado, temos o acirramento entre as novas demandas do capital
(acumulação flexível e neoliberalismo) e a luta de classes, cujos
movimentos reivindicatórios da classe trabalhadora se contrapõem a perdas
de direitos, entre os quais, acesso à educação de qualidade. Nesse jogo, o
Estado é pressionado, entre outros aspectos, a redirecionar seu papel sem
perder de vista a necessidade política de proteger a propriedade privada.
Para operar em frentes não-convencionais, o ataque neoliberal ao
Welfare State abriu o caminho para esta e outras investidas do capital sobre
as esferas sociais. A reordenação do papel do Estado para atuar em favor,
ainda mais amplamente, ao capital, demanda uma rearticulação das
relações entre as esferas pública e privada, eixo da atuação estatal frente às
68
demandas de uma sociedade de classes. Esse modo de produção, que
entrou na fase de crise estrutural, tem privilegiado ainda mais espaços para
reposição da lucratividade, amortecendo a esfera privada de contingências
crônicas causadas pela tendência decrescente da taxa de lucro. Para isso,
tem desmantelado os serviços públicos, entre os quais a educação,
direcionados às classes mais vulneráveis, particularmente os estratos mais
pobres da classe trabalhadora, os mais afetados. Contudo, não é apenas o
desmantelamento dos serviços públicos, que atendem aos direitos sociais,
que estão sendo desmantelados. A investida do capital tem sido também,
no sentido de conversão da educação, um serviço que, como qualquer
outro bem de valor à humanidade, deve ser comercializado pelo mercado.
Ativando a esfera política estatal e sua atuação socioeconômica,
reorientando as relações entre capital, trabalho e Estado, tanto nos países
centrais quanto nos de capitalismo periférico, o neoliberalismo ganha
espaço nessas relações e se torna o azimute que reorienta as funções do
Estado a quem cabe assegurar a dominação do capital sobre o trabalho. A
reestruturação produtiva atinge de sobremaneira a esfera do trabalho,
podendo gerar contestações ao domínio do capital. Essa condição, segundo
Mészáros (2011), foi administrada nos países centrais por meio de garantia
aos segmentos médios da classe trabalhadora, com salários um pouco acima
da média em relação aos países subdesenvolvidos, elevando os padrões de
consumo. O que era possível através da taxa diferencial de lucro extraída
das regiões periféricas da economia mundial. Nesses países de capitalismo
mais avançado, o Estado de bem-estar arrefecia a luta de classes, enquanto
as garantias trabalhistas eram integráveis ao circuito de reprodução do
capital. Nas regiões periféricas do capitalismo, a extração da taxa diferencial
de lucro, a partir da superexploração do trabalho, tornou-se ainda mais
fundamental para as regiões metropolitanas (idem).
69
Podemos indicar sinteticamente os pilares mais importantes
acionados nesse processo e que foram direcionados para a periferia
capitalista: a) a reestruturação financeiro monopolista-imperialista,
combinando acumulação de capitais nas economias centrais de capitalismo
mais avançado e dependência cada vez maior nas economias nacionais
periféricas; b) reestruturação produtiva que incrementa, por meio de
inovações tecnológicas, e requer da força de trabalho relações flexíveis e
autônomas em favor da acumulação capitalista; c) a reformulação do papel
do Estado frente às necessidades sociorreprodutivas do capital, culminando
com a ascensão (neo)liberal; d) ativação de novos dispositivos ideológicos
que reforcem, de forma inquestionável, a ordem estabelecida
(MÉSZÁROS, 2011; ANTUNES, 2009; ALVES, 2011).
Nas economias periféricas, a agenda do capital sobre o trabalho é
ainda mais violenta. A superexploração do trabalho produz desigualdades
ainda mais destrutivas para a classe trabalhadora, pois as garantias de
transferência do lucro são assumidas pelo Estado através do endividamento
público. Entre outras exigências, para acesso ao crédito financeiro
internacional, o Estado precisa se comprometer com o ajuste fiscal,
contingenciando os gastos públicos em áreas essenciais para assegurar
assistência social aos seus cidadãos. Muitos países da periferia capitalista,
entre eles o Brasil, tiveram que se tornar consignatária(o) do Consenso de
Washington
12
,que em 1990, torna-se a política oficial do Fundo Monetário
Internacional (FMI), passando a ser “receitado” para promover o
“ajustamento macroeconômico” dos países periféricos, que passam por
dificuldades, em especial, financeiras (SAVIANI, 2010).
12
O Consenso de Washington é um documento produzido pelos representantes do capital central,
sob a liderança dos Estados Unidos, em novembro de 1989. Ele contém um conjunto de medidas
de ajustes, fundamentadas num texto do economista John Williamson, direcionados aos países
dependentes para se adequarem aos objetivos do sistema capital mundial.
70
As reformas, encaminhadas pelos Organismos Multilaterais
Internacionais aos Estados nacionais da periferia capitalista, têm a
educação escolar como um setor estratégico para que, sobretudo, elas
possam impulsionar o desenvolvimento econômico (LEHER, 1999). No
capítulo 4 trataremos da relação entre esse processo e as reformas que
culminaram na reconfiguração da relação entre ensino médio e educação
profissional, portanto, da reconfiguração da relação entre dualidade e
dicotomia.
Nos países de economia periférica, e dependentes, esse processo
tem sido dado por intermédio da administração do Estado. De certa forma,
o desmantelamento dos serviços blicos já favorece a expansão da esfera
privada, pois a precarização do serviço pressiona o indivíduo a buscar uma
alternativa. Essa lógica tem sido difundida, mas primeiro precisamos
entender que mesmo os serviços mantidos pelo Estado podem gerar lucros
às organizações financeiras, mesmo que não ocorram privatizações. Na
seção seguinte vamos analisar a opção neoliberal para reordenar o papel do
Estado frente à crise e como esse processo atinge o complexo da educação.
O Estado e a opção neoliberal de gerir a crise: desdobramentos
no complexo educativo
A crise do Estado capitalista, no contexto da crise experimentada
na década de 1960 nas economias centrais do capitalismo, pôs o
keynesianismo sob ataque. As políticas, nas quais se erguia o Welfare State
ou Estado de bem-estar social, perderam espaço para as concepções
neoliberais. A crise fiscal do Estado capitalista atingiu a relação com setores
financeiros que administram novas relações a partir de um regime de
acumulação flexível. A principal exigência do capital era a necessidade de
71
cortes drásticos nos gastos públicos e sua transferência para o capital
privado como mecanismo para recuperar a lucratividade. Para Wood
(2014), esse cenário histórico permite uma nova fase do imperialismo
tendo em vista os Estados Unidos romperem o acordo de Bretton Woods,
desvinculando o dólar do ouro, como lastro do mercado financeiro global.
Quando as duas grandes potências imperialistas Estados Unidos
e Inglaterra passaram a ser governadas por, respectivamente, Ronald
Reagan (1981-1989) e Margareth Thatcher (1979-1990), temos a
ascensão conservadora retomando preceitos ideológicos (neo)liberais.
Podemos indicar Hayek e Friedman como os principais defensores do
neoliberalismo. As teorizações ídeo-políticas dos dois se fortaleceram a
partir da crise. A direita conservadora empunhava fervorosamente a
bandeira do Estado mínimo, dos cortes de gastos em serviços sociais e, de
modo incisivo, culpava o aparelho estatal pelo atraso no processo de
globalização. Entraram na agenda política a retração do capital estatal na
esfera produtiva ou mesmo sua extinção, a privatizão de todos os serviços
mantidos na esfera do Estado, a desregulamentação das condições e
legislações trabalhistas, isto é, a flexibilizão dos direitos sociais. Essas
investidas intensas e virulentas são conectadas ao capital financeiro
monopolista onde prevalecem as empresas transnacionais (ANTUNES,
2009).
Netto e Braz (2012, p. 238) demonstram a base do pensamento
neoliberal através da concepção do homem como “um ser possessivo,
egoísta e calculista e a sociedade como um agregado fortuito, meio para
que o homem realize seus objetivos privadamente”. Esse pensamento é
fundamentado “na ideia de desigualdade natural e necessária entre os
homens que concorrem entre si nas suas realizações, requerendo, portanto,
a liberdade individual” (idem). Os teóricos neoliberais do capital defendem
a elevação do “mercado à instância mediadora societal: a liberdade
72
econômica, que só é possível mediante o mercado livre, funda a liberdade
civil e política. Sem ele não haveria nenhuma forma de liberdade”
(NETTO, 2012, p. 86).
De acordo com os neoliberais, é o mercado, e não o Estado, a
instância que deve embasar as relações socioeconômicas, pois a liberdade
civil é fundada na “indivisibilidade da liberdade individual”. O principal
objetivo dos neoliberais era desmontar o estado de bem-estar, a fim de
eliminar barreiras restritivas ao movimento do capital. Contudo, o capital
não pretende se livrar de vez do Estado, mas delimitar sua esfera de ação
ao mínimo possível, com efeito, reduzindo sua função de satisfação dos
direitos sociais que oneram o capital. Friedman advoga a existência de um
mercado livre, porém sem eliminar a necessidade do Estado (NETTO,
2012). Acrescenta Mészáros (2009, p. 29) que, “apesar de todos os
protestos em contrário, combinados com fantasias neoliberais relativas ao
'recuo das fronteiras do Estado', o sistema do capital não sobreviveria uma
única semana sem o forte apoio que recebe do Estado”.
A crise profunda se espalhou por todas as esferas da sociabilidade,
inclusive para a educação. O capital, ao ativar seus limites absolutos, aciona
uma profunda reestruturação produtiva e ideológica com rebatimentos
sobre os sistemas educacionais. Essa reestruturação compreende a esfera do
trabalho com o esgotamento do modo taylorista/fordista de organizar a
produção e as relações trabalhistas, possibilitando a implantação modo de
acumulação flexível ou Toyotismo. Na esteira, o desmantelamento do
estado de bem-estar social para a implantação do Estado mínimo abre o
caminho para privatização de empresas estatais e desregulamentação dos
principais serviços ofertados pelo Estado. Acompanha esse movimento um
conjunto de teorias ou formulações apologéticas, “modelos abrangentes”,
por mais científicos que sejam, mais se aproximam de uma reorientação
73
ideológica que colaboram para falsear a realidade do que propriamente
para desvendá-la, segundo Mészáros (2006).
Dadas as determinações inevitáveis do “círculo mágico do capital”,
ressalta Mészáros (2011, p. 800): “a crise não ficou confinada na esfera
socioeconômica”; atinge toda a sociedade, inclusive a educação, tanto no
sentido amplo da formação do indivíduo como no sentido estrito, escolar.
A esse respeito, destaca o autor: “a crise estrutural da educação tem estado
em evidência há já um número de anos nada desprezível. E aprofunda-se a
cada dia, ainda que esta intensificação não assuma a forma de
confrontações espetaculares” (idem, p. 995).
O desmonte do estado de bem-estar nas economias mais avançadas
também afetou os parcos recursos que são destinados à manutenção dos
sistemas educacionais. A escola pública estatal terá que se adaptar aos cortes
de gastos das políticas neoliberais. A redução do papel estatal na garantia
dos direitos sociais abre os setores de serviços sociais para o capital investir
e conter a queda tendencial da taxa de lucro, sintoma estrutural do modo
de acumulação e reprodução da riqueza capitalista.
Decorre desse quadro a crise dos sistemas estatais de ensino, que
sofrem forte pressão das demandas capitalistas em crise, trazendo como
consequência o esmagamento dos cortes dos orçamentos destinados aos
serviços públicos. Para Mészáros (2008, p. 16), “talvez nada exemplifique
melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que 'tudo se vende',
'tudo se compra', 'tudo tem preço’, do que a mercantilização da educação”.
No cenário de crise, adequar a escola à lógica do mercado pressupõe
concebê-la como uma empresa que tem a tarefa de formar os indivíduos
aptos a lutarem por uma vaga no mercado de trabalho capitalista, bem
como difundir os valores para o exercício da cidadania empreendedora
dentro das fronteiras do capital.
74
Para indicarmos os desdobramentos da crise sobre o complexo
educacional, precisamos considerar que a escola, segundo Mészáros (2006,
p. 275), cumpre duas funções específicas numa sociedade capitalista: “1)
produção de qualificações necessárias ao funcionamento da economia e 2)
a formação dos quadros e a elaboração dos métodos de controle político”.
A investida do capital na era da crise estrutural não se limitaria a
esse quadro indicado por Mészáros, segundo Alves (2014), aprofundando
a análise, o capitalismo requer cada vez mais mecanismos ideológicos
manipulatórios, visando capturar a subjetividade do trabalhador. Para o
autor (ALVES, 2014, p. 57), a implantação de conceitos gerenciais
advindos do Toyotismo reforça esse aspecto: “na medida que o Toyotismo
possui um nexo essencial que busca pela “captura” da subjetividade do
trabalho vivo, ela torna-se ideologia orgânica das estratégias empresariais
sob o capitalismo global”.
As análises de Mészáros (2006; 2008; 2011), Antunes (2009;
2017) e Alves (2011; 2014) permitem entender que a formação das novas
gerações de trabalhadores serão alvo das investidas do capital para se forjar
um perfil que esteja em sintonia com as demandas do capital em crise
estrutural. A reestruturação produtiva vem descortinando mudanças na
relação capital e trabalho intermediada pela ação política do Estado. Neste
último, a preponderância das concepções neoliberais abre o caminho para
que o Estado adote medidas que aplainem o caminho para esses novos
mecanismos ideológicos. Estes estão relacionados à formação de
qualificações aptas a atuar no funcionamento da economia cuja
consciência deve estar direcionada a se comportar como trabalhador-
cliente-cidadão-empreendedor.
A educação formal integra o aparelho estatal e, por isso, as políticas
de reajuste estrutural do capital e modificação do papel do Estado
capitalista atingem a escola, já que ela “não pode funcionar
75
tranquilamente, se não estiver de acordo com a estrutura educacional
geral” (idem). A educação e, especificamente, o ensino profissionalizante,
assume o importante papel nessas circunstâncias, como revela o diretor-
geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Roberto Azevedo
(20/09/2018), em uma entrevista à Globonews.
O grande desafio, nessa “revolução estrutural” que está acontecendo na
economia moderna, que os governos terão é: como ele vai facilitar a
inserção da mão de obra que está sendo dispensada na indústria
tradicional e fazer com que ela ocupe um lugar nas áreas mais
dinâmicas da economia? E não é uma coisa que se faz da noite para o
dia, não se treina uma pessoa para transitar de um setor tradicional para
um setor que é dinâmico. Será preciso programas, inclusive programas
sociais para apoiar essa pessoa. Uma coisa interessante é que o custo
para treinar uma pessoa e colocar em outro lugar e até apoiar pagando
salário enquanto isso ocorre, é um custo menor que preservar aquele
emprego que não é mais competitivo.
O diretor-geral da OMC põe em relevo uma série de elementos
que a dinâmica do capital em crise estrutural despertou. Apoiadas no
regime de acumulação flexível, as empresas incrementam a produção com
inovações oriundas de avanços na telemática e microeletrônica. Os robôs
que assumem funções no processo de trabalho desempregam milhões de
trabalhadores no setor tradicional da produção. A ideia do capital, revelada
por Azevedo na entrevista acima, é que determinados postos de trabalho
desapareçam na cadeia produtiva por deixarem de ser competitivos. O
trabalhador agora desempregado terá, diante do desemprego, agruras para
ser realocado no mercado de trabalho. Com a drástica redução dos postos
de trabalho, restará adequar-se à realidade se requalificando ou aceitando
76
emprego na área de serviços, na condição de terceirizado, com salário mais
baixo, ou até mesmo na informalidade.
Essas funções realçam o caráter dual da estrutura educacional. A
escola profissionalizante para qualificar a força de trabalho, das atividades
simples às mais complexas, segmentando-se conforme a estrutura da
divisão social do trabalho. Em outro segmento, a escola propeutica,
destinada aos que receberão instrução ampla e poderão ser alocados em
funções de comando da sociedade ou promovidos a ela conforme os
interesses do capital. Com a crise estrutural do capital, a maior
segmentação e fragmentação das funções na divisão social do trabalho
exigem que a escola adeque a dicotomia educativa para novos parâmetros,
mais flexíveis e diferenciados conforme a necessidade do mercado de
trabalho.
A formação escolar à disposição dos filhos da classe trabalhadora
assume cada vez mais a necessidade do capital, assim como obriga o
próprio indivíduo-trabalhador a se tornar força de trabalho para que possa
substituir as gerações de trabalhadores que estiverem desgastadas ou
mortas. Acentua Marx (2013, p. 246-247):
Para modificar a natureza humana de modo que ela possa adquirir
habilidade e aptidão num determinado ramo do trabalho e se torne
uma força de trabalho desenvolvida e específica, faz-se necessário uma
formação ou treinamento determinados, que, por sua vez, custam uma
soma maior ou menor de equivalentes de mercadorias (dinheiro). Esses
custos de formação variam de acordo com o caráter mais ou menos
complexo da força de trabalho. Assim, os custos dessa educação [...]
são incluídos no valor total gasto em sua produção.
77
A reestruturação do capital estabelece novos imperativos ao sistema
educacional, qual seja de instruir os indivíduos técnica, política e
ideologicamente mediante as necessidades sociorreprodutivas em estágio
de crise profunda. A necessidade de formar qualificações necessárias à
economia só reforça o estreito vínculo entre a escola e o setor produtivo e
nela está inserida a educação profissionalizante.
A qualificação e a requalificão profissional capitalista,
entendemos, são um requisito técnico e um preceito ideológico. Isto
porque quanto mais trabalhadores qualificados, maior a concorrência pelos
postos de trabalho, aumentando a pressão pela produtividade dos
ocupantes das vagas. Ao mesmo tempo, essas circunstâncias tornam-se um
terreno propício ao capital para impor condições precárias à classe
trabalhadora, tendo em vista a redução drástica dos postos de trabalho bem
como a difusão de componentes ideológicos favoráveis à extração de
trabalho excedente. O trabalho regulamentado e contratado, típico do
modo taylorista/fordista de produção, foi substituído pelo modo de
acumulação flexível nas formas mais distintas de informalidade e
precarização. São trabalhos temporários, terceirizados, “voluntarismo”,
“cooperativismo”, “empreendedorismo” e os mais variados parcelamentos
de trabalho (ANTUNES, 2009).
Essas mudanças estendem-se à esfera da oferta de ensino
profissionalizante que, em tempos de desemprego crônico, haja vista a
crescente lógica de mercado que rege a relação capital e trabalho e, por sua
vez, trabalho e educação, está cada vez mais permeado pelo ideário
empresarial. Esses novos arranjos visam integrar a educação escolar ao
sistema financeiro global do capital.
78
O movimento do capital em processo de reestruturação intenta
submeter a educação, de forma mais intensa, ao circuito da produção do
mais valor, explorando-a em todos os níveis, seja privatizando o ensino,
camuflando-o pelo zelo ideológico do Estado, seja pela necessidade de
formar os indivíduos para a perpetuação da sociedade das mercadorias
(MÉSZÁROS, 2008). Diante disso, a educação pública estatal é alvo
constante das investidas do capital, tentando abar-la, onde se vê a lógica
do gerencialismo empresarial capitalista invadindo espaços públicos,
argumentando a favor do mercado. Atacam os apologetas do capital, a
ineficiência e ineficácia dos serviços prestados pelo Estado, como expressa
Mészáros (2011, p. 916).
No atual mundo capitalista, os argumentos a favor do mercado revelam
a função ideológica apologética, na medida em que fazem uma total
inversão da situação real. Pretende-se que o mercado demande no
serviço de saúde, no sistema educacional etc. “disciplina”,
“eficiência”, “crescimento da economia” e outras coisas do gênero e
que, portanto, o mercado “demanda cortes” em todas as esferas dos
serviços de assistência social.
O processo de reformismo, encaminhado aos Estados nacionais da
periferia capitalista, visa à eliminação das barreiras nacionais ao capital
transnacional a fim de integrar os serviços estatais ao capital produtivo e
financeiro nas esferas privadas monopolizadas, ajustando-os aos
parâmetros do mercado. E comoszáros (2011) apontou acima,
constitui-se num movimento de integração de esferas pouco exploradas,
em fases históricas, anteriores à produção de lucros.
Ao mesmo tempo, o imperativo de acumulação lucrativa do
capital, a expansão do sistema de educação, dicotômico e fragmentado,
79
interessa ao mundo empresarial como campo de investimentos e a difusão
das relações sociais alienadas. Nesse sentido, o neoliberalismo concebe a
educação como atividade potencialmente lucrativa em que o ensino é um
negócio, e o conhecimento a principal mercadoria. Diante de tal lógica, o
gerencialismo empresarial capitalista invade espaços públicos
argumentando em favor do mercado. A adesão a esse ideário educacional
implica o afinamento, necessariamente, à lógica capitalista contemporânea
em defesa da liberdade plena ao capital. Sob os auspícios da tese neoliberal
da “indivisibilidade da liberdade”, o que existe por trás do discurso da
liberdade individual é a mistificadora imagem do indivíduo empreendedor
e “criativo” (JIMENEZ, 2010).
A reestruturação da esfera do trabalho pressupõe a formação escolar
no atendimento a um “novo” perfil de trabalhador, ou do “sujeito
neoliberal”, como indicam Dardot e Laval (2016), para o qual se requer
novas qualificações e habilidades em todos os níveis e modalidades da
educação (não somente na EP) e demais espaços de sociabilidade.
Necessidade, esta, atendida pela difusão do ensino profissionalizante, que
permite servir aos interesses do capital cuja formação escolar consiste em
formar “uma força de trabalho obediente, aceitando com satisfação ser
dominada pelo poder global” (MÉSZÁROS, 2011, p. 242). Enquanto o
mercado registra a expansão do desemprego crônico, rebatimento da crise
estrutural do capital, nada mais confortável ao capital que poder contar
com trabalhadores conformados com salários baixos, subemprego,
emprego informal, contratos temporários flexíveis às obrigações
trabalhistas, característico da reestruturação produtiva posta em
andamento pelo capitalismo. O empreendedorismo é o instrumento do
capital humano para formar trabalhadores, adaptando-os à
empregabilidade. Para a ideologia neoliberal, a problemática do
desemprego depende dos indivíduos, do quanto investem na produção
80
de sua empregabilidade, isto é, se o seu perfil está alinhado à flexibilidade
das relações trabalhistas e se ele é empreendedor nas atividades que
desempenha.
A ideologia neoliberal é uma “espécie de cada um por si”, como
demonstra a análise de Saviani (2010, p. 430):
Agora é o indivíduo que terá de exercer sua capacidade de escolha
visando adquirir os meios que lhe permitam ser competitivo no
mercado de trabalho. E o que ele pode esperar das oportunidades
escolares já não é o acesso ao emprego, mas apenas a conquista do status
de empregabilidade. [...] O acesso a diferentes graus de escolaridade
amplia as condições de empregabilidade do indivíduo, o que,
entretanto, não lhe garante emprego, pelo simples fato de que, na
forma atual do desenvolvimento capitalista, não há emprego para
todos.
O discurso da empregabilidade, segundo Freres (2008), confere ao
trabalhador a responsabilidade de desenvolver suas próprias capacidades
para que se torne empregável. Atribuindo-lhe também a responsabilidade
do emprego ou desemprego, problema este inerente às condições
estruturais do capitalismo. Para amenizar os efeitos da queda tendencial da
taxa de lucro, o capital investe na introdução de tecnologias avançadas,
aumentando a composição orgânica do capital, isto é, a introdução de
equipamentos que possam tornar o trabalho mais produtivo, objetivando
substituir os trabalhadores por máquinas. O aumento do contingente de
trabalhadores desempregados cria o exército de reserva, induz o
crescimento da concorrência e pressiona os salários para baixo. O acesso ao
emprego torna-se cada vez mais difícil e, com isso, o capitalismo dissemina
meios ideológicos de combatê-lo. O empreendedorismo constitui-se numa
dessas formas.
81
Cêa (2007a, p. 310) aponta em seus estudos que
[...] a noção de empreendedorismo serve de mediação entre a
possibilidade de conseguir emprego ou ocupação e a persistência de um
contexto marcado pela restrição de empregos formais, regulamentados,
fundados em direitos do trabalho. Tal noção, dessa forma, enraíza e
sentido à ideia de empregabilidade, porque traduz, de fato e mais
fielmente, a impossibilidade de reversão do tímido papel do mercado
formal, mantidas as características do padrão de acumulação
predominante do capitalismo mundializado, e lança aos próprios
indivíduos a responsabilidade sobre sua condição social. “Ter
emprego” sucumbe ante a noção de “ser empreendedor”.
A ideologia empreendedora ocupa cada vez mais espaço na
educação pública brasileira. A educação profissionalizante é apresentada
muitas vezes como tábua de salvação para o problema do desemprego. A
relação entre empreendedorismo e educação não é fortuita; ela emana das
teorias liberais clássicas adaptadas ao contexto atual de crise pelos teóricos
neoliberais.
Os fundamentos do empreendedorismo vêm, conforme Cêa
(2007a), das ideias clássicas do liberalismo e que são atribuídas, na
contemporaneidade, a Shumpeter, porém a autora alerta que há uma
diversidade de pensadores que abordam o assunto. Por isso, é problemático
esgotar os elementos que corporificam a questão. Nos estudos de Cêa
(idem), a Teoria do pensamento econômico de Schumpeter é constituída de
uma visão na qual a estrutura capitalista é feita de rupturas de rotinas e
transformação das estruturas existentes. Ao observar a realidade, o
economista austríaco, com base na ideia de mercado livre, designa a
atuação individual como sendo a melhor forma de satisfazer as
necessidades. O empreendedor é aquele que realiza novas combinações dos
meios produtivos, capazes de propiciar desenvolvimento econômico
(CÊA, 2007a).
82
Como sublinha Cêa (2007a, p. 311), “o empreendedorismo passa
a se constituir um conceito chave para a compreensão da atual forma de
articulação entre economia e educação, proposta pelos ideólogos do
capital”. Por sua vez, destacadamente, a educação atende ao chamamento
empresarial. Na nova configuração das relações capital-trabalho, são
determinados processos de mercantilização da educação, ocorrendo a
importação das ideias gerenciais da esfera empresarial para as escolas
públicas estatais, tratando a formação do aluno em conformidade com as
necessidades do mercado. Como mercadoria, a educação pode ser
privatizada e o saber historicamente produzido pela humanidade fica
condicionado aos ditames do capital. Por essa lógica, a formação humana
ocorrerá, em uma variedade de cursos e modalidades, apoiada no saber
fragmentado. No que tange ao nosso objeto, o complexo econômico
determina o estreitamento entre processo de ensino, consequentemente, o
saber que deve ser apreendido pelo trabalhador em sua formação.
No regime de acumulação flexível, assentado por políticas baseadas
sob o neoliberalismo, a trama revela a escola concebida como uma
empresa. Usando o conceito de Lukács (2013), a educação como um
complexo de complexos, a escola é um complexo de empresas. Ela mesma
deve vender seu produto: escolarização, isto é, os sujeitos da escola, isto é,
estudantes e professores são convertidos em empresas de si mesmos,
adaptados e responsabilizados à própria venda competitiva de seu capital
humano. O ensino é sua principal mercadoria, abrindo um mercado em
que proliferam cursos à distância
13
, contratando empresas para elaboração
de material didático, apostilas, enquanto outros profissionais são
13
Ver essa tendência in FREIRE, Leiliane Rebouças. O Ensino Superior Brasileiro Mercantilizando:
PROUNI e FIES no contexto da crise estrutural do capital. Dissertação de mestrado. Mestrado
Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE-FAFIDAM-FECLESC/UECE), Limoeiro
do Norte, 2015. Também ver PEREIRA, Maria de Fátima Rodrigues; MORAES, Raquel de
Almeida; TERUYA, Teresa Kazuko. (Orgs) Educação a distância (EaD): reflexões críticas e práticas.
Uberlândia: Navegando Publicações, 2017.
83
contratados para retransmitir seu conteúdo. Na esteira, estabelece-se o
ideário a partir de concepções de que educador e educando devem ser os
empreendedores tanto de sua formação quanto de seu emprego, sob o risco
de não atenderem aos requisitos da empregabilidade do mercado. A
formação profissional, jovem trabalhador, atendido pela escola pública,
deve seguir a lógica da reestruturação produtiva das atividades
ocupacionais.
A acumulação flexível potencializou novas relações entre trabalho
e educação, assim como instrumentos de exploração das atividades, sejam
elas produtivas ou ideológicas. A partir dela, acirra-se a luta de classes
referente ao que a escola faz em seu interior, qual seja, para os agentes do
capital, o adequar trabalhadores, nos conteúdos e práticas, sua “formação”
ou conformação às exigências de produtividade; em outro aspecto, a luta
de classes direcionando o que escola deve encaminhar para uso externo:
vender seus serviços, isto é, escolarização da força de trabalho como parte
do processo de acumulação da mais-valia.
Passou-se a exigir a formação continuada e permanente dos
profissionais das diversas áreas da hierárquica divisão do trabalho, e não é
diferente, no âmbito da escola pública, antecipar para o ensino médio a
formação profissionalizante. Para os defensores da proposta de formar
precocemente estudantes-trabalhadores, no último nível da educação
básica, traduz que a profissionalização precoce foi estrategicamente
posicionada no ensino médio para antecipar a disponibilidade da força de
trabalho jovem para o mercado de trabalho. Por outro lado, os defensores
de uma proposta de educação integral, acentuada pelos clássicos do
marxismo, só pode ter o significado de formar os indivíduos teórica e
praticamente com construção de uma forma de sociabilidade o
comunismo em que a formação integral possa efetivamente se realizar
(TONET, 2008). Uma educação apta a desenvolver a capacidade de
84
participação crítica e autônoma, de desenvolvimento intelectual, de
formação para o trabalho e para a construção de uma autêntica
comunidade humana precisa ser alinhada à superação radical dos interesses
do capital (idem). Nesse sentido, a formação como via para emancipação
humana só pode se concretizar plenamente para além do capital.
Por isso, para dar conta de expor nosso objeto, a análise exige que
apresentemos o as conexões e mediações históricas da relação trabalho e
educação, o papel do Estado, contexto histórico brasileiro da década de
1990, seus elementos socioeconômicos e políticos e, por seu turno, o
processo de integração ao padrão, dito, global de acumulação que na
verdade é a expressão do capital mergulhado em crise estrutural. Nesse
cenário, as relações entre o Estado brasileiro e o capital, no contexto de sua
crise estrutural, e suas determinações em estabelecer diretrizes à educação,
como mecanismo de ajuste ao padrão de reestruturação produtiva da
relação capital-trabalho. Como alvo dessas políticas, a reconfiguração da
educação profissionalizante com o ensino médio, através das reformas
educacionais, desperta uma correlação de forças políticas que expressam a
luta de classes e, com efeito, as disputas sobre que tipo de ensino se
ofertado à classe trabalhadora.
A hipótese levantamos é a de que a educação profissional,
reformada pelo decreto nº 5.154/2004, que supostamente revogaria o
decreto nº 2.208/1997, na verdade, ao invés de resolver a problemática
dualidade educativa, criou novos mecanismos que a ajustam para as
necessidades de formação da força de trabalho para o mercado,
demandando a incorporação da escola, flexibilizando a formação ofertada
por ela, à lógica da lucratividade em tempos de crise estrutural do capital.
A proposta de integração entre ensino médio e educação profissionalizante,
contida nos decretos, aponta para uma tendência estrutural à dualidade e
possibilita a existência de dicotomias na estrutura de ensino. Nisso se
85
concentrava o esforço dos defensores da revogação do decreto
2.2008/1997 com objetivo de corrigir distorções históricas da educação
pública brasileira, assim como a superação da dualidade educacional.
Apoiados nesses pressupostos, buscamos compreender as
determinações que movem nosso objeto no real, como indicam nossas
reflexões, ao mesmo tempo em que esse processo contribui para desvelar o
complexo educativo em que se insere a educação profissional numa
trajetória articulada entre o complexo educativo e o modo de produção.
Dessa maneira, o ensino público perpassa pela função social e pela
trajetória da escola, situada historicamente e com a finalidade de atender a
determinados interesses.
Não obstante, precisamos adiantar que, entre as determinações do
capital em crise e seus efeitos sobre a educação, temos o conjunto de
reformas empreendidas com a finalidade de reestruturar o Estado,
redefinindo o papel que o complexo educativo deve seguir. Essa temática
será abordada posteriormente, quando buscaremos situar a relação entre
ensino médio e educão profissional no quadro reformista educacional do
final século XX.
87
Capítulo 2
O Panorama da Educação e a Escola:
Os Fundamentos Históricos e o Problema
da Dualidade Educacional
No contexto educacional, com a evolução da industrialização da
produção, a escola média acessível à classe trabalhadora foi atrelada, cada
vez mais, ao mundo produtivo e ao contexto da luta de classes. Nesse
processo, a escola foi vinculada ao Estado burguês, cujo papel foi se
tornando central na implementação de políticas públicas, estreitando a
relação entre a esfera produtiva e a educação. No percurso histórico do
desenvolvimento desigual, a educação profissional foi atrelada a um nível
de ensino no processo de formação de jovens trabalhadores, tornando
ainda mais complicada a tarefa de definir o papel do Ensino Médio.
Porquanto, o ensino de uma profissão no nível médio de escolarização
significaria antecipar, para a classe trabalhadora, o processo de formação
para o mercado de trabalho, visto que são esses jovens a nova força de
trabalho que renovaria o mecanismo de produção e acumulação do capital.
Nesse caso, as possibilidades de seguimento dos estudos dos jovens
trabalhadores são estreitadas historicamente, pois as necessidades humanas
no modo de produção capitalista estão subjugadas às necessidades
reprodutivas do capital. Isso não implica que os indivíduos não façam suas
escolhas e modifiquem sua história e da sociedade na qual vivem. Pelo
contrário, as grandes transformações históricas são resultado das escolhas
88
feitas individual e coletivamente. No entanto, lembramos Marx (2011, p.
25): “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de
livre espontânea vontade, poiso eles quem escolhem as circunstâncias
sob as quais ela é feita, mas lhes foram transmitidas assim como se
encontram”.
No contexto atual estamos socialmente sob o modo capitalista de
produção e nele da comparece imperativamente a hierarquia capital-
trabalho, de modo que os jovens das camadas mais pobres dos
trabalhadores são os mais pressionados a ter uma fonte de renda para
auxiliar o sustento familiar, porquanto se põe à venda sua única
mercadoria, a força de trabalho. Pela exploração direta que sofrem e por
antagonizarem com o capital, cabe aos trabalhadores a luta pela
emancipação da exploração capitalista.
Essas e outras questões servem apenas de introdução visando expor
em relevo elementos desta investigação. Ademais pretendemos aprofundar
e expor o processo histórico da dualidade escolar e as características
históricas que estas assumiram no Brasil. Uma dualidade que põe na
educação profissional vinculada ao Ensino Médio as condições para
reprodução social da força de trabalho disponível às necessidades da ordem
capitalista. Surgem, na esteira dessa dinâmica, propostas de escola e ensino
das mais diversas modalidades cujos efeitos são “precarizantes”,
desumanizadoras sobre a formação da força de trabalho.
Nesse sentido, retomamos alguns elementos da histórica dualidade
presente na educação, especificamente, relacionando a educação brasileira.
Ao fazer esse recuo na história, pretendemos alcançar as raízes da inseão
do nosso objeto, através da relação histórica entre trabalho e educação, e
buscar sua gênese, especificando, a realidade histórica brasileira no decurso
de seu desenvolvimento. Nisso, pretendemos mostrar de que forma a
escola assumiu a missão social de ensinar oficialmente, isto é, seu papel
89
como definidor sobre o que deve ou não ser transmitido à formação de
novas gerações no quadro da reprodução social.
Desse modo, começamos por recuperar o panorama histórico
apresentando os fundamentos que caracterizam essa dualidade estrutural,
como uma marca da escola, da relação trabalho e educação na sociedade
dividida em classes, demonstrando, com isso, que a educação se constituiu,
inicialmente, no sentido lato, constante, contínua e vinculada a outros
complexos, da práxis social. Entretanto, o percurso do desenvolvimento
das forças produtivas com a divisão social do trabalho culminou no
surgimento de uma educação restrita. Com o avanço histórico das novas
configurações da divisão do trabalho na era industrial, demonstramos o
desenvolvimento desigual e contraditório das forças produtivas e das
relações de produção, culminando no interior da educação restricta com
uma nova divisão educacional: propedêutico de um lado e
profissionalizante de outro (SANTOS, 2017), ao mesmo tempo em que
surgem, no seio do movimento operário, propostas que se contrapõem ao
ideário de escola estatal burguesa. Em seguida, apresentamos,
sinteticamente, esse quadro na realidade brasileira, suas relações e
configurações nas recentes políticas educacionais voltadas para o Ensino
Médio e Educação Profissional.
Educação lato versus educação restrita
e o papel educacional da escola
A escola é a instituição criada para desenvolver a educação formal,
restrita. Assim como a educação é, de forma geral, determinada pelo
complexo do trabalho, a educação escolar também é produto das relações
de produção e das relações sociais que daí brotam e configuram a sociedade
90
humana. Seu nascimento está vinculado às classes sociais dominantes que
surgiram mediante as transformações registradas na esfera da divisão social
do trabalho. A divisão trabalho manual e trabalho intelectual e as classes
que daí brotaram e se desenvolveram manifestaram seu interesse particular
sobre o ensino como instrumento de formação de quadros que cumprissem
as demandas de governança.
A escola em seus primórdios não surgiu para todos, mas sim para
atender às necessidades de uma classe que se apropriou dos meios de
produção. Historicamente, as classes proprietárias e livres dos labores
manuais criaram a escola para transmitir a seus herdeiros e prepostos os
saberes sistematicamente desenvolvidos, especializando-os, tanto no
domínio de conhecimentos necesrios ao desenvolvimento humano
quanto na organização da sociedade.
Com a divisão social do trabalho, a hierarquia do trabalho
intelectual sobre o trabalho manual relaciona-se com o surgimento da
propriedade privada, aprofundando a desigualdade social entre
proprietários e não-proprietários das terras e instrumentos de trabalho.
Anteriormente predominava a coletivizão, por isso, não havia essa
separação. O processo de transmissão de saberes não distinguia os
indivíduos socialmente.
Como analisa Ponce (2010), a transmissão dos saberes saiu da
esfera coletiva e passou para a esfera privada. Os saberes culturais eram
acumulados num longuíssimo espaço de tempo através da histórica luta da
humanidade para produzir e reproduzir sua existência. Sua transmissão, a
partir da distinção social, realinhou a função social do saber, do domínio
do conhecimento, da cultura letrada, passando a representar um privilégio
para alguns segmentos sociais.
91
Por outro lado, lembramos, a educação não se limita à escola. A
educação é o complexo social da formação humana que cumpre a função
formativa da individualidade no quadro da generidade humana (TONET,
2011). A educação é determinada ontologicamente pelo trabalho, pois
como sustenta Lukács (2013), a partir de Marx, é o trabalho o complexo
base sobre o qual a práxis social se move, processual e historicamente, na
singularidade, particularidade, universalidade, sem esgotar jamais as
possibilidades da criação de algo novo na realidade humana, pois é o
trabalho a mediação ineliminável entre homem (sociedade) e natureza. O
trabalho é a categoria fundante do ser social e modelo da práxis sobre a
qual se movem os complexos da sociabilidade requisitados para compor o
quadro gênero humano (LUKÁCS, 2013). Não significa limitar toda a
riqueza social da generidade humana ao trabalho, mas acentuar sua
centralidade no quadro de desenvolvimento das sociedades ao longo da
história. A arte, a educação, a religião, a linguagem, a ciência, o direito, a
sexualidade, a alimentação, entre outros, por exemplo, são complexos que
enriquecem a vida humana socialmente, promovendo o refinamento das
faculdades e comportamentos, desenvolvendo habilidades e valores que
representam o afastamento das barreiras naturais. Convém chamar a
atenção que os complexos são distintos entre si. Entre eles e o trabalho a
zona de contato autonomia relativa e reciprocidade dialética guarda
especificidades
A educação é um desses complexos e compõe o quadro da
totalidade do ser social, mantendo os vínculos ontológicos com o trabalho.
Embora atue com relativa autonomia, a educação se insere na realidade
social e nela interage com outros complexos, por exemplo, a linguagem, o
direito, a ciência, a arte, a religião, a alimentação, a sexualidade, a política
etc. Esse movimento do complexo da educação, em interrelação com os
diversos complexos da práxis social, resulta em grandes possibilidades de
92
superação de obstáculos, seja no campo da relação entre sociedade e
natureza ou no campo da sociabilidade. A educação tanto prepara as novas
gerações à generidade humana como também participa das transformações
sociais, não como complexo central, mas como esfera que assume a função
de preparar os homens para novas tarefas, sejam elas na esfera do trabalho
ou dos processos políticos, sociais e emancipatórios. Para isso, é imperativo
a classe trabalhadora ter acesso ao conhecimento científico em suas mais
variadas áreas, capacitando-a a enfrentar os desafios históricos frente ao
quadro de exploração cada vez mais degradante e da barbárie crescente no
seio da sociedade atual (MÉSZÁROS, 2003).
A educação num sentido lato, abrangente, vinculado às relações e
aos processos sociais e de produção, tem no trabalho seu acento
determinante, educação esta, mediada tanto pelo trabalho quanto por
outros complexos da práxis social. As novas necessidades desencadeadas
pelo processo de trabalho atuam na fundação tanto de outras esferas da
sociabilidade humana quanto na educação, tomando como base teórica a
análise ontológica do trabalho feita por Lukács de que o trabalho é modelo
da práxis social. Ancorado em Marx, Lukács (2013, p. 287) explica
sinteticamente que
A estrutura ontológica básica do trabalho pôr teleológico com base
no conhecimento de um segmento da realidade com o propósito de
modificá-la (conservar é um simples momento da categoria modificar),
efeito causal continuado que se tornou independente do sujeito pelo
ser que foi posto em movimento pelo pôr realizado, retroação das
experiências obtidas de todos esses processos sobre o sujeito, efeitos
dessas experiências sobre pores teleológicos subsequentes compõe, de
certo modo, o modelo para toda experiência humana.
93
O trabalho aqui é o trabalho concreto, produtor de valores de uso
que atendem às necessidades humanas, mediação ineliminável entre
homem e natureza, “protoforma”, segundo Lukács (idem), do salto da
esfera natural orgânica para a esfera da sociabilidade humana. Como meio
regulador da relação homem-natureza, conforme Marx (2013, p. 255), “o
trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza,
processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e
controla seu metabolismo com a natureza”. Como complexo social e como
práxis, o processo educativo realiza o momento aprendizagem-ensino-
aprendizagem, envolvendo a relação teleologia e causalidade, agindo e
retroagindo sobre a realidade. Isso quer dizer, a decisão entre alternativas,
seu propósito, o pôr do fim, para realizá-lo a opção por aqueles meios
educativos e não estes, o choque com a realidade socialmente posta, isto é,
um outro sujeito, sua consciência, perpassando o ato educativo por incidir
sobre a personalidade individual um comportamento completamente
novo.
A partir daí a relação objetividade e subjetividade se entrelaçam no
processo de trabalho, criando a subjetividade objetivada. Uma realidade
posta, isto é, que passa a existir a partir do trabalho objetivado, cuja
finalidade é a superação de uma necessidade, por exemplo, a fome. Para
saciar a fome, o indivíduo cria meios de trabalho, semeando alimentos,
pescando, domesticando animais, cozinhando e temperando os alimentos,
aperfeiçoando seus sabores e refinando seu paladar. Observe que cada nova
realidade criou uma necessidade, abrindo novas perspectivas,
possibilitando e conduzindo novas mediações que afastam, mas não
eliminam, as barreiras naturais, pois a fome continuará e precisa ser
satisfeita constantemente. Ao buscar atender à necessidade de fome, o
trabalho desencadeia um processo de humanização, com mediações que
nos afastam de comportamentos naturais, biológicos, para satisfazê-la.
94
Mas não é somente o objeto que a produção fornece ao consumo.
Imprime-lhe seu caráter determinado, seu acabamento. Em primeiro
lugar, o objeto não é um objeto em geral, mas um objeto determinado,
que foi consumido de certa maneira por mediação, mais uma vez, da
própria produção. A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne
cozida, que se come por meio de uma faca ou de um garfo, é uma fome
muito distinta da que devora carne crua com ajuda das mãos, unhas e
dentes. A produção não produz, pois, unicamente o objeto do
consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, produz objetiva
e subjetivamente. A produção cria, pois, os consumidores (MARX,
2008, p. 248).
À medida que o processo de trabalho cria meios que satisfazem
necessidades humanas também representa a libertação diante do obstáculo
que o induziu a pensar e a buscar a solução, a estabelecer teleologias e a
agir de determinada maneira, de modo que possibilitasse atender
determinada necessidade, constituindo, portanto, uma conquista para o
gênero humano. A partir daí, surge também a necessidade educacional,
cuja transmissão do legado conquistado para outra geração a torna apta a
enfrentar e buscar respostas para novas carências. O apelo da fome faz o
indivíduo buscar os meios para sac-la e sobreviver. Com o afastamento
da barreira natural, permite-se alimentar também para saborear, socializar-
se ao redor da mesa do almoço, conversar com amigos enquanto senta-se
junto no horário da refeição. Nesse caso, a alimentação cumpre um ritual
atendendo tanto uma necessidade fisiológica de sobrevivência quanto uma
necessidade social. A educação atua nesse processo de socialização e isto
não é estritamente uma educação escolar.
A partir daí, o complexo do trabalho mobiliza-se a fim de garantir
sua continuidade histórica enquanto mediação do ser social com natureza
e insere na materialidade social os complexos cada qual com seu propósito
de atendimento de necessidades (LUKÁCS, 2013). Nesse sentido, a análise
95
de Lukács a partir da teoria de Marx, permite entender que os processos
sociais possam ser analisados como parte de um todo. Esse movimento
social é a própria totalidade formada por complexos sociais que interagem
mutuamente e se movem sobre a realidade social fundada pelo trabalho,
realizando, porém, esse movimento com certo grau de autonomia. Os
meios para satisfazer uma necessidade, a fome, retomando nosso exemplo,
significa uma grande conquista para a humanidade. Satisfeita a fome, trata-
se agora também de garantir que esse aprendizado possa ser reproduzido
por aqueles que ainda não tiveram acesso a essa forma de atender a esta
necessidade com esses meios. Assim como a fome, precisamos atender
outras tantas necessidades sociais e, ao fazê-lo, transmitimos o que
aprendemos. O complexo educativo se move interagindo com a totalidade
de outras esferas do ser social e, na medida em que interage com elas,
absorve suas conquistas e as transmite. Se não fosse a educação, estaríamos
fadados a “inventar a roda todos os dias” (SANTOS, 2017).
Esse é o sentido lato da educação, perfazendo todo um processo de
socialização e de transmissão junto às novas gerações do conjunto de
saberes e habilidades conquistadas. Desta forma, elas podem aperfeiçoar as
conquistas e, assim, também podem atender às outras necessidades, como
a fome, por exemplo. Podemos estabelecer que existe um conjunto de
relações entre diversos complexos sociais que estão na esteira da satisfação
da fome: a produção, a divisão do trabalho, a alimentação, a sua
distribuição e a educação, por exemplo (LIMA, 2014; SANTOS, 2019).
Para Lima (2014), a educação, nesse sentido, é o complexo que faz
parte da vida humana em sociedade, não se limitando a transmitir
comportamentos inscritos na base orgânica, mas em promover o
desenvolvimento do indivíduo como parte do gênero humano. A partir
dessa integração o indivíduo passa a compor a teia de relações sociais,
sendo instigado individual e coletivamente a enfrentar as dificuldades e
96
obstáculos postos pela vida social e pela natureza orgânica ali presente. A
educação é formadora da individualidade e sua essência “consiste em
influenciar os homens no sentido de reagirem a novas alternativas da vida
do modo socialmente intencionado” (LUKÁCS, 2013, p. 178).
Entretanto, ela é cercada de uma trama social que envolve as mediações
historicamente desenvolvidas pelo conjunto da humanidade.
A humanidade produz e reproduz sua existência histórica também
pela mediação educacional. A partir de Lukács (2013), entendemos que a
esfera da individualidade se articula ao processo de generalização da
humanidade que depende da sociedade para sobreviver mediante os
imperativos da natureza. A base para a edificação, segundo o filósofo
húngaro, para a existência de complexos sociais está no complexo do
trabalho. Como explica Maceno (2017, p. 90), a partir Lukács,
As cadeias de complexos sociais que se dirigem à ação de outros homens
não podem existir sem o trabalho; por sua vez, o trabalho não existiria
sem elas. A diferença fundamental é que, ao necessitar de complexos
dessa ordem para sua efetivação, o trabalho os origina e os desenvolve.
Essa necessidade intrínseca que possui o trabalho de exigir para sua
realização formas superiores de práxis impulsiona o desenvolvimento
dos demais complexos sociais como sua mediação última.
A educação surge a partir dessa materialidade e como necessidade
de transmissão dos conhecimentos acumulados e das conquistas culturais
alcançadas. O que faz dela um complexo secundário, não menos
importante, afinal, garantir a transmissão do patrimônio cultural
produzido pelas gerações anteriores possibilita ao gênero humano
enfrentar novas realidades que são postas perante si. Não significa
transmitir apenas, mas preparar o indivíduo a partir de muitas mediações
97
e interações desenvolvendo capacidades, faculdades a fim de que possa
assumir o comportamento, posições teleológicas, frente às muitas situações
que afligem a humanidade (LUKÁCS, 2013; LIMA, 2014).
A práxis educativa, como um dos complexos do ser social, compõe
o cotidiano da humanidade. Através dela uma série de objetivações podem
ser concretizadas por meio das atividades realizadas, cotidianamente,
retroagindo sempre com novas aprendizagens, habilidades, conhecimentos
e valores. Como a educação é uma posição teleológica que se realiza de
sujeito para sujeito, com a mediação de uma série de relações humanas,
podemos atribuir a ela, também, um papel fundamental nas mudanças e
transformações que ocorrem na sociedade (TONET, 2011). Como gênero
humano, apresenta-se diante de nós a necessidade de superar grandes
obstáculos: a superação do trabalho alienado, a destruição dos recursos
naturais, da acumulação da propriedade privada da terra ou mesmo o
racismo, o machismo, a xenofobia, entre outros. São problemas como esses
nos quais os indivíduos podem assumir novas posições e comportamentos,
projetando sua superação cuja função educacional está em possibilitar
novas posições teleológicas com comportamentos e ações.
O complexo da educação avança na inter-relação entre a esferas lato
e restrita se autorrealizando no cotidiano da humanidade, pois a
aprendizagem do ser humano é constante, contínua e vinculada a vários
complexos da práxis social. Isso configura a educação no sentido lato que,
em meio às atividades, sejam elas produtivas ou ideológicas, possibilita
situações espontâneas de aprendizagem, compondo o conjunto de
conhecimentos, habilidades, valores inerentes ao gênero humano. Maceno
(2017), com base em Lukács, assinala o caráter universal da educação
imanente ao processo de reprodução social, pois a educação no sentido lato
jamais é totalmente concluída.
98
Entretanto, a contradição entre desenvolvimento das forças
produtivas e relações de produções sociais, resultou na desigualdade social
entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais. A divisão social
do trabalho, o trabalho alienado, expressa-se na propriedade privada dos
meios de prodão, por exemplo, a terra, propiciou uma cisão estrutural
na composição de grupos sociais, classes sociais distintas e opostas. O
trabalho como um processo de sociabilidade é também uma das bases
econômicas de qualquer sociedade, produtor de bens com valores de uso
diversos, fonte de riqueza e sobrevivência da humanidade, que passou a ser
organizado e dividido por categorias de trabalhadores especializadas e
distintas. Já a educação se traduz nos comportamentos socialmente
desenvolvidos ao longo da trajetória individual interagindo socialmente
com a práxis cotidiana.
O modo como os trabalhadores intelectuais, ocupados da
organização dos diversos processos de trabalho, alcançaram posições de
dominação foi, sobretudo, em trabalhos manuais. Do trabalho coletivo das
sociedades primitivas ao surgimento e desenvolvimento das cidades, a
partir da contradição entre forças produtivas e relações sociais, as
sociedades avançaram para o escravismo, especialmente na Grécia e em
Roma. A organização de poder e riqueza nessas sociedades baseiam-se no
trabalho escravo, para isso, aperfeiçoaram a guerra como instrumento de
expansão, controle e manutenção desse modo de produção. Os trabalhos
não só estavam divididos em trabalho manual e intelectual, como também
estavam controlados, regulamentados e distribuídos por ações
governamentais, isto é, políticas. O Estado assumiu a tarefa de regular e
intervir no processo de produção criando instituições para controlar e
disciplinar o funcionamento das atividades laborais e de proteção à
propriedade privada.
99
Se nas sociedades primitivas a divisão social do trabalho, ou seja, a
divisão do trabalho em tarefas, estava em função do benefício comum na
medida em que novas técnicas produtivas eram aperfeiçoadas, resultava na
produção de excedentes. Este excedente alterou as relações sociais no
quadro da divisão e hierarquização entre trabalho material e espiritual. Para
Marx e Engels (2007), foi a partir dela que surgiu a possibilidade de que a
uns fossem permitidos o desfrute e o consumo dos produtos do trabalho e
a outros o trabalho físico e a produção. Nas sociedades grega e romana,
que abordamos como exemplo, com o predomínio do trabalho escravo, o
conhecimento especializado na organização e distribuição dos processos
garantia excedentes produtivos muito maiores, porém completamente
apropriado pelo Estado e distribuído para classes que ali exercessem
dominação
14
.
Na Grécia, para cada cidadão livre, existiam pelo menos dezoito
escravos, exigindo-se a força das armas para man-los submissos
(PONCE, 2010). Isso mostra que o número de cidadãos, isto é,
proprietários de terras, correspondia a uma pequena parcela da sociedade
da época. Enquanto isso, a educação era desenvolvida nos ginásios e
envolvia representações teatrais, exercícios físicos, discussões, refoando a
consciência de classe dominante (MANACORDA, 2010a).
Na sociedade romana, que adotou os padrões da Grécia, guardadas
suas variações, o ensino era direcionado aos cidadãos livres. Manacorda
(2010a, p. 109) indica que “um cidadão livre pode se dedicar a atividades
artísticas e literárias não como ao exercício de uma profissão, mas como
14
“O trabalhador escravo foi reduzido a mero instrumento de produção agrícola privado de
qualquer direito social e comparado a animais de carga. Nas cidades havia o comércio de escravos
destinados em grande maioria ao trabalho agrícola. Era a síntese que articula tão bem a relação
campo-cidade” (ANDERSON, 2016, p. 29).
100
atividade desinteressada e ocasional”. Entende-se por cidadão livre os
aristocratas patrícios e os altos escalões do exército, a nobreza.
Consideramos que a educação restrita surgiu nesse percurso
histórico, a fim de garantir a transmissão de saberes cada vez mais
especializados e destinados tanto à prodão e seus processos de trabalho
quanto à organização social dela. Nas sociedades grega e romana ficou
acentuado o caráter classista da educação escolar, que também passou a
associar-se ao poder de organização da sociedade, distribuição de postos de
trabalho e o controle do processo de produção. Sobre a dualidade
educativa, indica Saviani (2007, p. 155
),
A partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades
distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária,
identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe
não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais.
A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e
nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda,
assimilada ao próprio processo de trabalho.
A escola está ligada ao modo de reprodução social em cada época
histórica. A origem dela se relaciona com a educação restrita, ligada ao ócio
e ao lazer, conforme Saviani (idem), uma evidência histórica daqueles que
se libertaram das atividades laborais e se tornaram as classes dominantes.
A partir da produção de excedentes, da domesticação de animais,
domínio cada vez maior de processos e técnicas agrícolas, entre outras
tarefas complexas e do ócio, a educação escolar se desenvolveu e no
conjunto dessas relações se apoiou no saber sistematizado do trabalho,
primeiramente escravo, depois servil e, por fim, com a revolução burguesa,
101
no trabalho assalariado. Esses elementos tornaram-se determinantes na
função social da escola no quadro da produção e reprodução social.
O contexto histórico da ascensão capitalista e o escravismo colonial
Nesta seção, iremos expor o desenvolvimento da relação trabalho e
educação e sua historicidade na formação da sociedade brasileira,
abordando suas características. Com isso, pretendemos analisar os
desdobramentos e a configuração da dicotomia educacional que toma
forma a partir das nossas particularidades e sua relação com totalidade
histórica. A relação entre as esferas educacionais lato e restrita foi
gradativamente transformada pelas relações de produção do capitalismo
ascendente e as necessidades sociorreprodutivas da classe burguesa. No
período colonial, a resistência à dominação colonizadora se apresentou em
vários momentos da história. Elas apontam que os conflitos entre os grupos
sociais influenciaram na consciência da classe dominante trazendo um
senso reacionário como medida de controle social, o que condiz com os
métodos violentos aplicados mesmo nas relações cotidianas (AQUINO et.
al., 2012).
Enquanto predominou o modo de produção feudal, as
necessidades das classes dominantes eram atendidas por uma escola que
formava nobres, para governar e guerrear, e segmentos do clero que eram
preparados para os cargos mais notórios da hierarquia eclesiástica. Os
camponeses exerciam a função econômica, constituíam a base da sociedade
feudal (MANACORDA, 2010). Nesse período, à sombra da Monarquia
Carolíngia
15
, a educação restrita estava submissa à Igreja, através dos
15
A Monarquia Carolíngia (751-987 d.C.), prevaleceu sob o reinado de Carlos Magno, situado na
Europa Ocidental, atualmente na França. Foi uma tentativa de recriação do sistema do poder
102
monastérios, esta distribuiu escolas bíblicas pelos feudos. As escolas
monásticas
16
, ressalta Ponce (2010), ofereciam uma instrução aos futuros
monges das chamadas“escolas para oblatas” e outro tipo de instrução
destinada à plebe, de forma muito rudimentar e paroquial a poucos
vocacionados.
A propriedade da terra feudal e a divisão do trabalho manual e
intelectual comparecem, na forma ideológica, entre os nobres e guerreiros
ao lado dos eleitos da Igreja e dos profanos, que deveriam aceitar a
condição social inferior para alcançar a salvação. A educação restrita estava
limitada às funções eclesiásticas, praticamente durante uma boa parte da
história da sociedade feudal. Nesse período, revoltas camponesas eram
controladas pela força militar dos nobres e pelo controle ideológico da
Igreja
17
.
romano após as invasões e estabelecimentos dos povos germânicos. “A passagem da dinastia
Merovíngia para a dinastia Carolíngia, através de Pepino, o Breve, é precisamente assinalada por
uma aliança entre o reino franco e o papado, que ficou selada, simbolicamente, pela unção, recebida
por Pepino, das mãos de Estevão II. Vinte anos depois, Carlos Magno encetou uma aliança similar
com o Papa Adriano I” (BARROS, 2009, p. 57).
16
A escola monástica tem origem na organização da Igreja em torno dos monastérios. Lá os monges
trabalhavam e oravam, abnegando as coisas profanas do mundo. Por outro lado, possuíam uma
organização sólida na administração dos bens da Igreja, direcionaram a agricultura em torno do
feudo apoiados por um sistema de trabalho com regras estritamente disciplinares. Logo que as
escolas “pagãs” desapareceram, o clero tratou de assumir rapidamente a instrução pública (PONCE,
2010).
17
Revoltas camponesas seguiram por todo o período medieval. As mais marcantes revoltas foram
as do período chamada Baixa Idade Média: Em 1320 o oeste de Flandres fora palco de uma feroz
guerra camponesa contra extorsão fiscal da nobreza e os dízimos da Igreja; em 1358, o norte da
França foi incendiado por uma revolta camponesa, a maior da Europa Ocidental, motivada por
confiscos e pilhagens militares durante a Guerra dos Cem Anos; em 1381, a Revolta Camponesa
na Inglaterra contra a exação de uma per capta exigia nada menos a abolição imediata da servidão
e a revogação do sistema legal vigente (ANDERSON, 2016, p. 229). Para Marx, Engels e Lukács,
a Revolta dos Camponeses foi mais importante. Como registra Aquino (1999), essa revolta foi
encabeçada por: Thomas Müntzer, foi um dos primeiros teólogos alemães da era da Reforma, ele
se tornou um líder rebelde durante a Guerra dos Camponeses. Müntzer virou-se contra Lutero com
vários escritos contra Lutero, e apoiou os anabatistas. Na Batalha de Frankenhausen, Müntzer e
seus seguidores foram derrotados. Ele foi capturado, torturado e decapitado.
103
As transformações econômicas, a partir dos séculos X e XI, abriram
novas possibilidades culturais. Com o aumento da produção agrícola e o
boom demográfico, as cidades reassumiram sua importância na Europa
Ocidental e nelas as Universidades foram criadas e o saber escolar avançou,
embora com expresso controle da Igreja (AQUINO, 1999). Com o
renascimento do comércio e das cidades, a educação escolar voltou a ser
valorizada, pois o conhecimento era necessário em virtude das
transformações econômicas, sociais e políticas que semearam o
capitalismo. Com efeito, os germes da manufatura, ligados ao crescimento
das cidades e do comércio na Europa feudal, germinaram novas relações
econômicas e as corporações de ofício representavam a criação de novas
ocupações no rol dos ofícios. As categorias profissionais da manufatura
passaram a ter, nos saberes especializados, sua base de desenvolvimento.
Enquanto isso, a escola da Igreja era transferida dos monastérios para as
catedrais. Era a Instrução “catedralícia”, inspirada em Platão e Aristóteles
(PONCE, 2010).
Com o surgimento da Universidade, a educação restrita é elevada
a um nível mais sistemático, tornando-se o lócus do pensamento racional.
Com ela, abriram-se novas possibilidades para o avanço e aprofundamento
do conhecimento. Esse tipo de escola surgiu sob a tutela do poder da Igreja
e depois das monarquias nacionais, mas uma característica acentuava seu
caráter classista: O ingresso nas universidades era restrito aos nobres e
candidatos ao clero (ibidem).
Por outro lado, a economia mercantil das cidades e a sua
organização em associações, corporações ou guildas, introduzem na
instrução o ensino através dos mestres livres que, de acordo com
Manacorda (2010, p. 180), munidos da licentia docendi concebida pelo
magischola, ensinavam fora das escolas episcopais, para evitar concorrência,
satisfazendo as exigências culturais das novas classes sociais (idem). Esse foi
104
um caminho aberto para a profissionalização na esfera escolar. No processo
de transformações, uma ciência natural avançou e, gradativamente, suas
variações e contradições foram incorporadas ao complexo econômico
(LUKÁCS, 2013). Essas mudanças estavam acontecendo também no
campo político, pois estados nacionais com poder centralizado ascendiam
dos conflitos sociais entre as classes do mundo feudal ante o poder
crescente dos comerciantes (HUBERMAN, 1986).
Nos séculos XV e XVI, cada vez mais interessados no comércio
mundial e em mudanças culturais que não condenassem suas práticas
sociais, a burguesia nascente, associada à nobreza real, investiu na expano
das rotas de comércio. A expansão comercial e marítima europeia
empenhou-se em encontrar essas novas rotas numa fase, conceituada por
Marx (2011) de acumulação primitiva de capital, alargando as relações
comerciais em níveis mundiais. Esse processo histórico resultou na
formação de territórios coloniais na América, África e Ásia. Esses processos
históricos chocaram o modo de produção capitalista com outros modos de
produção. Em seus estudos Marx (2011)
18
, considerou três formas
distintas de relações que as formações sociais pré-capitalistas estabeleciam
com a propriedade. As sociedades pré-capitalistas se apresentaram de três
modos, não necessariamente nessa ordem, pois cada uma delas tem seu
próprio tempo histórico: a primeira delas a formação asiática, a segunda as
sociedades romanas antigas e a terceira, a forma social germânica (idem).
18
Não é nosso objetivo tratar dessas teses que Marx lançou nos estudos sobre o capital, publicados
nos Grundrisse. Para nosso estudo cabe a indicação de Marx (2011) sobre a análise das sociedades
que precederam o modo de produção capitalista em áreas onde predominavam formas de relações
de trabalho e terra (propriedade) distinta do que prevalecia na Europa Ocidental. Uma dessas
propriedades é a formação asiática de organização da propriedade. Marx, indicando que elas
evoluíram da propriedade tribal coletiva, primariamente do nomadismo, depois com o
sedentarismo e com a agricultura evoluiu para uma forma superior de organização, com poder
despótico. Como exemplo, Marx indica o México, Peru, nas comunidades celtas e algumas tribos
da Índia.
105
As navegações atendiam ao propósito de um capitalismo mercantil
em processo de expansão buscando alternativas externas para aumentar a
acumulação de riquezas comercializáveis. Novas áreas territoriais foram
encontradas e, aos poucos, os portugueses, espanhóis, ingleses, franceses e
holandeses iniciaram as disputas para explorá-las. Na medida em que o
processo de supremacia europeia se consolidou nas diferentes regiões do
globo, o modo de produção, predominante localmente, foi sendo
desintegrado ou reintegrado, a partir do processo colonizador, às “novas
realidades” do modo de produção capitalista (MAZZEO, 2015).
Foram os colonizadores portugueses, após sua chegada em 1500,
que deram início à formação da sociedade brasileira. De acordo com
Mazzeo (2015, p. 73), “existe um movimento sintético em direção a uma
formação social que responde às necessidades capitalistas, formação
particular gerada pelo processo de autorreposição do modo de produção
capitalista, enquanto universalidade”
19
. Isso significa entender que as
origens da sociedade brasileira estão assentadas no movimento universal do
capital, sua esfera comercial, pelo qual põem em marcha particularidades
históricas deste desenvolvimento na fase de acumulação primitiva. Na
necessidade de ampliação e reposição dos polos econômicos dominantes
na Europa, a colonização brasileira foi articulada ao vasto processo de
acumulação mundial do capital, para isso, os portugueses optaram por
introduzir no Brasil uma economia que suprisse o comércio com gêneros
tropicais e metais preciosos de grande valor comercial. Conforme Prado Jr.
(2006, p. 119), toda a nossa “economia foi subordinada inteiramente a
este fim”, sendo organizada e apta a funcionar para “produzir e exportar
19
A análise de Mazzeo está ancorada na matriz teórica marxiana, acolhendo as contribuições de
Lukács sobre a resolução metodológica baseada na interpretação de Caio Prado Junior para teoria
marxista. Para Mazzeo, Prado Jr. interpreta corretamente a formação da sociedade brasileira
vinculada ao processo de acumulação originária do capital, como indicou Marx.
106
aqueles gêneros”, cuja exploração se efetivou com a grande propriedade
agrícola, inicialmente açucareira, e o trabalho escravo.
Esse caráter particular de uma formação econômico-social, no caso
a brasileira, é ela mesmo o momento do universal concreto, segundo
Mazzeo
20
(2015). Como movimento do universal-concreto, o capitalismo,
tendo como necessidade a expansão-reposição, engendra uma formação
histórica particular da produção e formação social. Para o autor, a
formação social brasileira se configura como um organismo social
determinado pela produção capitalista que reproduz, destrói ou incorpora
novas realidades, isto é, particularidades dos ramos da produção que
materializam o universal-concreto. Foi o processo expansivo de
acumulação do capitalismo comercial ou mercantil, a esfera da circulação,
que pôs em marcha a colonização e, neste aspecto, destaca o fato de um
movimento de inversão pelo qual
O modo de produção capitalista determinando e contendo várias
formações sociais onde estão presentes diversos estágios e formas de
organização do trabalho e extração do mais valor; essas formações
definem o caráter particular e concreto, em termos de leis universais,
do modo de produção (MAZZEO, 2015, p. 72).
A sociedade colonial não era fundada no modo produção
capitalista em sua plenitude, mas no mercantilismo, um momento da
20
Mazzeo (2015, p. 68), apoiada em Marx, remete a produção em geral que desdobra e articula
determinações distintas dos ramos da produção, perfazendo a própria produção como um ramo
particular da produção em geral. Ao mesmo tempo, “o caráter universal da produção, de amoldar-
se a diversas situações concretas, é ressaltada por Marx ao afirmar que a produção não é somente
particular. Ao contrário, é sempre um organismo social determinado, um sujeito social que atua em
conjunto mais ou menos grande, mais menos pobre, de ramos da produção”. Essa relação entre o
particular e o universal explica a particularidade brasileira como formação social específica de um
capitalismo mercantil cujas características são expressadas pela colonização.
107
forma histórica do capitalismo, engendrando formas sociais, históricas,
particulares e periféricas. Essa fase do capitalismo funcionou como modo
de acumulação primitiva, segundo Marx (2013, p 821),
a descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o
extermínio, a escravização e o soterramento das populações nativas nas
minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a
transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-
negras caracteriza a aurora da era da produção capitalista. Esses
processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação
primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as
nações europeias, tendo o globo terrestre como palco.
A sociedade posta em curso no Brasil estava vinculada ao
capitalismo e subordinada à metrópole portuguesa e, por esta via, ao
comércio europeu. Isto significa que seu desenvolvimento era subordinado
ao contexto social global do capitalismo e dele dependia. Na fase de
acumulação primitiva do capital, as colônias que surgiam desempenhavam
funções específicas na política econômica mercantil. Enquanto na Europa
a dissolução do feudalismo criava os elementos para a fase madura do
capital, (ao desapropriar produtores de suas terras e empurrá-los para as
cidades como trabalhadores assalariados, nas colônias, nos saques,
apropriação de terras e seu cultivo voltado à exportação para o mercado
europeu), o comércio de escravos e o latrocínio se transformavam em
capital na metrópole (MARX, 2013).
Como analisa Neto (2015, p. 63), o “colonialismo revela o segredo
da acumulação de capital, enquanto o mercantilismo explicita a nova
especificidade do capital comercial”, pois a empresa colonizadora tem uma
finalidade que extrapola a compra e venda apenas do produto cultivado
num lugar e comercializado em outro. Ela desintegra os sistemas locais e
108
os reintegra a partir das demandas do modo de produção capitalista,
atuando como elemento aglutinador de costumes, práticas produtivas e
sociais que definem o papel das colônias no mercado mundial. Para Neto
(idem, p. 65), esse processo é o pressuposto para que exista um mercado
mundial tendo em vista que “metrópole inexistiria sem colônia, da mesma
maneira que inexistiria o senhor sem o escravo e patrão sem o
proletariado”.
Analisar o caráter histórico-particular da sociedade brasileira nos
ajuda a entender a relação trabalho e educação e a função social que é
atribuída à escola. Precisamente, as análises de Caio Prado Jr., com base
em Marx, enriquecidas por Florestan Fernandes e Antônio Carlos Mazzeo,
guardadas suas distinções, oferecem-nos uma chave teórica para entender
a realidade brasileira e sua particularidade histórica. Para nosso estudo,
optamos pelos estudos de Mazzeo (2015) sobre a teoria da via colonial do
capitalismo brasileiro. Baseado em Prado Jr., Mazzeo considera a relação
capital e trabalho, na particularidade histórica brasileira, uma expressão da
universalidade da produção capitalista. Desse modo, podemos situar o
complexo da educação e função social da escola, tendo como base o
desenvolvimento da relação trabalho e educação nesse processo histórico.
Com base em Marx, Mazzeo (2015), explica o movimento
universal do capital encontrando suporte na particularidade concreta que
engendra. Enquanto as manufaturas se desenvolviam na Europa, o
processo de acumulação capitalista tinha como suporte a produção
colonial. O desenvolvimento das manufaturas estava vinculado ao processo
de colonização e o sistema colonial integrava o processo de acumulação
geral do capital, destaca Marx.
109
O sistema colonial amadureceu o comércio e a navegação como plantas
num hibernáculo. As “sociedades Monopolia (Lutero) foram alavancas
poderosas da concentração de capital às manufaturas em ascensão, as
colônias garantiam um mercado de escoamento e uma acumulação
potenciada pelo monopólio do mercado. Os tesouros espoliados fora
da Europa diretamente mediante saqueio, a escravização e o latrocínio
refluíam à metrópole e lá se transformavam em capital (MARX, 2013,
p. 823).
No processo histórico de transição do feudalismo para o
capitalismo, o trabalho assalariado nas manufaturas coexistiu com o
trabalho servil. Enquanto isso, nas colônias o emprego da mão de obra
escrava era a força de trabalho de onde se extrai o sobretrabalho. Este era
um importante elemento do processo de acumulação capitalista para as
nações imperialistas colonizadoras. O curso desse processo contribui cada
vez mais para as transformações socioeconômicas que culminaram na
industrialização. Como indica Marx (2013, p. 829): “Em geral, a
escravidão disfarçada dos assalariados na Europa necessitava, como
pedestal, da escravidão sans phase [sem mais] do Novo Mundo”. Como
explica Mazzeo (2015, p. 71): “se temos a formação de uma estrutura
escravista nas colônias americanas, esta aparece como uma formação (social)
particular de universalidade capitalista”.
A introdução do trabalho escravo como a força produtiva
movimentou a dinâmica histórica do capitalismo ocidental, da fase da
acumulação primitiva bem como da sociedade brasileira durante a maior
parte de sua história. Enquanto o trabalho escravo era a base de todo o
sistema produtivo e dele se extraía “sobretrabalho”, o excedente produzido
aqui era um importante elemento que dinamizava a economia da
metrópole portuguesa e sua aliada, a Inglaterra. A divisão da sociedade,
com base no trabalho escravo e no trabalho dos dirigentes proprietários do
110
latifúndio, trouxe repercussões imediatas na divisão da sociedade. Ser
proprietário, era ser livre. Enquanto isso, o trabalho escravo negro cativo
do “trabalho forçado até a morte e, aqui, a forma oficial do sobretrabalho
(MARX 2013, p. 310).
A reprodução social se tornou mais significativa quando os
portugueses optaram por não se limitar a estabelecer feitorias no território
brasileiro. A medida inicial foi a dominação dos nativos a fim de tomar
posse e explorar sua força de trabalho. Pouco eficientes na realização das
tarefas de trabalho compulsório e conhecedores do território, os indígenas
resistiram, apoiados na Companhia de Jesus que era contra o
aprisionamento nativo para o trabalho compulsório, escravo (FAUSTO,
2004). Por outro lado, os portugueses - que já lançavam mão da força de
trabalho escravo africana na metrópole, nas Ilhas dos Açores, onde já existia
a empresa açucareira, e dominavam regiões africanas por onde navegavam
- optaram pela aplicação do trabalho escravo. Não havia interesse dos
portugueses, a não ser a contragosto, de vir a se estabelecer na América para
pôr- lhe a serviço a energia do trabalho físico, ressalta Prado Jr. (2006). A
burguesia ascendente estava disposta a vir para o Brasil não como classe
trabalhadora, mas “como dirigente da produção de gêneros de grande valor
comercial, como empresário de um negócio rendoso” (idem, p. 29).
Essa efetivação, segundo Prado Jr. (idem), foi processada mediante
as condições internas e externas da conia em virtude da economia
mercantil europeia. Na esfera do trabalho - ao contrário do que acontecia
na Europa, onde a força de trabalho estava em um período de transição do
feudo para as manufaturas - nas colônias, o trabalho escravo foi a opção
mais imediata e rentável, desse modo, a colonização brasileira deu origem
a uma sociedade com características sociais particulares
21
.
21
Grande propriedade privada, o latifúndio, a monocultura agrícola voltada ao mercado externo e
o trabalho escravo, predominantemente (JUNIOR, 2006).
111
Esse quadro, explica Mazzeo (2015, p. 73), “já em sua gênese,
como capitalismos-particulares, desiguais e combinados, que se articulam
com os polos econômicos dominantes na Europa, integrantes, então, do
vasto processo de acumulação do capital”. Por conseguinte, a colonização,
como parte do processo de acumulação capitalista, resgata os horrores da
escravidão
22
. Essa organização socioeconômica da colônia carregou uma
forte marca ideológica da separação entre administradores, proprietários
de terras e escravos e os trabalhadores escravos, indígenas nativos ou negros
africanos, uma divisão evidente da sociedade entre trabalho manual e
trabalho intelectual. Essa divisão tem um acento mais relevante na
sociedade brasileira, pois o trabalho manual reservado,
predominantemente, aos negros ergue-se como pilar da economia colonial.
O processo educacional geral tem suas bases ontológicas vinculadas
ao complexo do trabalho em determinação recíproca, embora atue com
relativa autonomia, a prioridade ontológica é do trabalho. Em linhas
gerais, a educação é determinada prioritariamente pela divisão social do
trabalho e visa atender as necessidades reprodutivas socialmente postas
pelo modo de produção vigente. Isso não quer dizer que a educação seja
limitada pelo trabalho, pelo contrário, manm um processo constante de
relativa autonomia em relação a ele e se relaciona contínua e
processualmente com outras esferas sociais, absorvendo elementos que
entram no circuito contraditório das necessidades sociorreprodutivas.
Numa sociedade de classes, essa dinâmica que move o ato de educar,
instruir a partir do conhecimento restrito, privilégio da classe proprieria.
22
Na sua obra O Capital, Marx (2013, p. 310), na análise da avidez por mais-trabalho, revela o
caráter da escravidão entre a Antiguidade e as sociedades coloniais da América na era moderna que
pode ser aplicado, mudando o que tem que ser mudado, também sobre a escravidão brasileira: “
(...) Mas à medida que a exportação de algodão tornou-se o interesse vital daqueles estados, o
sobretrabalho dos negros, e, por vezes, o consumo de suas vidas em sete anos de trabalho, converteu-
se em fator de um sistema calculado e calculista. O objetivo não era extrair deles uma certa
quantidade de produtos úteis. O que importava, agora, era a produção do mais-valor”.
112
O resgate histórico das vias de desenvolvimento do capitalismo na
particularidade brasileira nos possibilita entender melhor o contexto social
onde o nosso objeto está inserido. Ao deslindar o processo da relação
capital e trabalho e a relação trabalho e educação, mediado, em muitos
aspectos, pela educação escolar ofertada pelo Estado, verificamos a
configuração da dualidade educacional e suas formas dicotômicas. Um
outro aspecto também diz respeito ao fato peculiar no qual os agentes
políticos recorrem a um expediente autocrático para lançar as mudanças
almejadas, por isso, entendemos que essa problemática histórica será
melhor analisada através da relação entre particularidade histórica
brasileira e capitalismo em seu estágio atual.
Essa relação entre trabalho e educação, no quadro da histórica
formação social brasileira e suas particularidades, se insere no contexto
mais geral do modo de produção do capital. A historicidade dessa relação
indica o papel atribuído à educação com a implantação do ensino restrito
e reservado, inicialmente, à classe branca proprietária. O saber, transmitido
pelas relações cotidianas e voltado às funções do trabalho manual, negro
ou indígena, toma acento na divisão educacional brasileira. Essas
características, ao longo do processo histórico que atravessa o período
colonial, depois monárquico e republicano, se combinam e, conforme a
divisão do trabalho, são transformadas pelas atividades econômicas. Com
isso, a divisão educacional, via necessidades produtivas, atenderia às classes
sociais.
A dualidade educacional, o ensino lato e o restrito, que surgiu com
a sociedade dividida em classes sociais, “serve a uma demanda específica da
sociedade: sistematizada e organizada sob a orientação de determinados
interesses sociais” (SANTOS, 2019, p. 30). De modo geral, este ensino no
período colonial evolui no ritmo da diversificação das atividades
econômicas (CUNHA, 1978). O ensino restrito, reservado às elites
113
proprietárias, tinha características predominantemente europeias. De
acordo com Almeida (1989), o saber sistematizado e organizado tinha
pouca ou quase nenhuma finalidade para o colonizador. O trabalho que
seria desenvolvido pelos escravos nas lavouras prescindia do saber escolar.
Nas primeiras décadas dos Governos Gerais, os trabalhadores livres eram
importados da metrópole, entre os quais feitores, mestres de obras e
mestres do açúcar (idem).
A interiorização da colonização, o distanciamento da metrópole
assim como entre os centros urbanos e as propriedades rurais,
possibilitaram o recrutamento de os trabalhadores brancos pobres livres,
mestiços livres e até mesmo escravos eram comprados ou alugados para
prestar determinados serviços (PRADO JR., 2006). Esse autor (idem, p.
220) registra a pequena indústria vinculada à autonomia entre as grandes
propriedades rurais e a existência de ofícios com domínio de saberes
mecânicos.
Fora das grandes aglomerações, de que me ocuparei depois, as artes
mecânicas e indústrias constituem um simples acessório dos
estabelecimentos agrícolas ou de mineração. Para manejo destes, ou
para atender às necessidades de seus numerosos moradores
proprietário e sua família, escravos e agregados, - torna-se necessário
por motivo das distâncias que os separaram dos centros populosos,
mercê da extensão dos domínios, ou por outras considerações de ordem
prática e econômica, a presença de toda uma pequena indústria de
carpinteiros, ferreiros e outros, bem como, frequentemente, até
manufaturas de pano e vestuário.
Segundo o autor, esses ofícios e artesania eram realizados,
geralmente, por mulatos livres frequentemente ambulantes, de porta em
porta, circulando pelo interior. Esse distanciamento também estimulava a
114
disseminação de olarias, cerâmicas, o manejo dos curtumes fabricando os
mais variados produtos: “Do sabão ao azeite, da tecelagem à fabricação de
chapéus, coxonilhos e cuias de coitizeiros. Essa pequena indústria era
restrita ao abastecimento interno, limitada e suprimida pela metrópole,
quando concorriam com os produtos vindos do reino” (PRADO JR.,
2006, p. 220).
No Brasil, então, o processo educacional geral tem, em suas
origens, que atender a dualidade sobre a qual está fundada a formação
socioeconômica: trabalho intelectual, de comando dos dirigentes, versus
trabalho manual, predominantemente, escravo (ROMANELLI, 2013).
Sobre essas bases, segue também a análise de Cunha (1978), um duplo
caminho: um para formação das classes dominantes dirigentes, as elites
agrárias e as camadas intermediárias com fuões na estrutura burocrática-
administrativa; outro voltado para as características gerais do trabalho
manual. Para aqueles, uma educação em que prevalecem os preceitos da
civilização europeia e, para os demais grupos, as particularidades da
realidade do trabalho no Brasil, dissolvidas em vários ofícios ligados à
produção de gêneros agrícolas, especialmente, a manufatura açucareira,
como também as profissões de carpinteiro, ferreiro, pedreiro, oleiro,
purgador, caldeireiro, caixeiro, entre outros.
Conforme Cunha (1978), essas condições interferem também no
ensino dos ofícios, profissionalizantes. Na trilha do autor, o fenômeno
educacional assume formas históricas ainda mais particulares em virtude
dos traços da forte herança de uma sociedade colonial, reproduzindo a
divisão do trabalho constituída como força de trabalho a mão de obra
escrava. Nesta divisão, a marca mais cadente é a sujeição e discriminação
dos trabalhos manuais ao poder do latifúndio, à propriedade privada
colonial. Desde a colonização, a educação desenvolvida em terras
brasileiras busca a reprodução social dos valores e costumes das civilizações
115
europeias colonizadoras, já sob uma transição para o modo de produção
capitalista bastante avançado.
Na educação brasileira a marca da dualidade estrutural é histórica,
repetimos. Desde a colonização europeia, as investidas dos colonizadores
em transplantar as estruturas sociais vigentes daquela sociedade. Esse
percurso também foi adotado pelas classes dominantes locais, variando o
período histórico, que trouxe também o plano de fazer da colônia uma
fonte de riquezas a ser explorada. Implantar aqui um modo de produção
tomando do mercantilismo, o capitalismo comercial, as leis econômicas a
serem aplicadas, também refletiu nos padrões de reprodução social aqui
implantados. A escola, também nesse processo, foi adequada aos interesses
da classe dominante. Sob a responsabilidade do clero calico, ela consistia
em discursos, sermões e letramento apoiada no Ratio Studiorum e restrita
aos filhos das classes proprietárias e estratos médios. Único meio voltado
às elites de terem acesso à cultura da civilização europeia. Essa educação
também foi aplicada no processo de aculturação dos nativos.
Para obter tal subordinação livre, que interessa ao bem comum, a
educação deve tornar mais homem, lema do Ratio Studiorum usado
pela Companhia de Jesus a partir de janeiro de 1599. Ou seja, deve dar
conta das três faculdades que, segundo a filosofia da escolástica, define
a pessoa humana: a memória, a vontade e a inteligência. [...] Por outras
palavras, é "mais homem" quem aprende a agir segundo a recta ratio
agibilium e a recta ratio factibilium da Escolástica, a reta razão das coisas
agíveis e a reta razão das coisas factíveis, visando ao "bem comum" da
concórdia e da paz do todo o Estado (HANSEN, 2000, p. 25).
Esse direcionamento à moral cristã baseado na escolástica tornou-
se uma tradição na educação brasileira, já na instrução aos ofícios, bastante
precária e destinada a uns poucos homens pobres e livres, reservada à
116
reposição de profissões na divisão social do trabalho, conforme as
atividades econômicas. Desse modo, expressava o acentuado traço da
divisão da sociedade em trabalho manual e trabalho intelectual, escravo e
proprietário, respectivamente.
Mesmo com tais restrições, o ensino de ofícios profissionais não
deixou de receber a devida atenção, apesar da predominância da escravidão
negra onde se executava o trabalho de “enxada e foice”. Ao buscar as raízes
históricas do ensino profissionalizante no Brasil, encontramos também a
obra L’Instruction Publique au Brasil Historie Legislation de autoria de
José Ricardo Pires de Almeida, de 1889
23
. Com ela é possível verificar a
distinta separação do saber profissional para trabalhos pesados, labores
manuais, ofícios reservados aos “órfãos de Deus, desvalidos da sorte”. A
evidente depreciação do trabalho manual, reservado a estratos sociais de
origem negra indígena ou mestiça, representa um poder da classe
dominante em manter sob controle os destinados a tal sorte. Na medida
em que deprecia e desvaloriza o trabalho manual, impregnando-o de tais
concepções, são criadas as possibilidades históricas de dominação
ideológica, bem como sua reprodução social. Aproveita-se para forjar as
bases ideológicas para formação do “homem cordial
24
, ao qual se reserva
uma posição subalterna nas relações sociais.
As restrições ao saber científico, filosófico, cultural durante o
período colonial, eram restritas. A elite recorria à metrópole para a
continuidade da instrução de seus filhos, preferencialmente, Coimbra -
Portugal (ALMEIDA, 1989). Controlados pela Igreja, as escolas seguiam
as normas dos monastérios, a separação entre homens e mulheres e a
23
Escrita originalmente em francês, embora o autor seja brasileiro, foi traduzida cem anos depois
pelo INEP. (SANTOS, 2017, p. 160-161).
24
Raízes do Brasil, obra de Sérgio Buarque de Holanda, clássico da sociologia que interpreta a
formação social brasileira.
117
reprodução dos costumes da metrópole davam a tônica do ensino. O saber
estava sob controle da Igreja e pautado em práticas moralizantes do
catolicismo, a propagação de ideias subversivas e contestatórias à
colonização se dava com punições, até mesmo pena de morte. Na história
colonial não faltam exemplos de escritores, lideranças políticas que tinham
uma boa instrução e foram presos por suas ideias e participações em
atividades políticas, mortos ou exilados do Brasil por suas ideias “profanas”
e seu caráter contestatório
25
.
O problema da dualidade educativa na educação brasileira reflete
a divisão entre trabalho manual e intelectual da via colonial do capitalismo.
Com o trabalho escravo, as atividades manuais e o labor físico eram
discriminados e marginalizados às “classes inferiores”: negros, indígenas,
mestiços, entre outros estratos sociais subalternos e “precarizados”. A
escola seria restrita apenas à aristocracia ou junto ao processo de
aculturamento indígena. A dualidade educacional entre lato e restrito
assumiu os contornos das classes dominantes com tempo ocioso para a
instrução, reforçando seu status quo (CUNHA, 1978).
Durante o período colonial, o ensino profissional foi desenvolvido
de forma assistemática, aponta Cunha (1978, p. 33).
A aprendizagem dos ofícios manufatureiros era realizada, na colônia,
segundo padrões dominantemente assistemáticos, consistindo no
desempenho, por ajudantes/aprendizes, das tarefas integrantes do
processo técnico de trabalho. Os ajudantes não eram necessariamente
25
Gregório de Matos (1633-1695), exilado em Angola, Tomás Antônio Gonzaga (1774-1810),
preso durante três anos e depois degredado para a África, Cláudio Manoel da Costa (1729-1789),
morto na prisão, André João Antonil (1649-1716), embora jesuíta teve sua principal obra proibida
e confiscada pela Coroa portuguesa, Alvarenga Peixoto (1744-1792) preso e deportado para a
África, Cipriano Barata (1762-1838) preso por participação em movimentos contestatórios diversas
vezes, o principal deles foi a Revolta dos Alfaiates.
118
aprendizes, mesmo quando menores de idade. O fato de um ou outro
aprender o ofício não era intencional nem necessária.
De acordo com o autor, o ensino possuía um caráter prático,
interessando o domínio técnico restrito do processo de trabalho. Isso
indica que não eram nas escolas que ocorriam o ensino-aprendizagem, mas
nos locais de trabalho, portanto, não era um processo de ensino
sistemático, a aprendizagem se dava na prática.
Os aprendizes não eram necessariamente crianças e adolescentes, mas
indivíduos que demonstrassem disposições para a aprendizagem em
termos tanto técnicos (força, habilidade, atenção) quanto sociais
(lealdade ao senhor e ao seu capital, na forma de instalações,
instrumentos de trabalho, matérias-primas, mercadorias e conservação
de si próprio e do capital) (CUNHA, 2000a, p. 32)
As escolas-oficinas de formação dos artesãos e demais ofícios-
profissões eram sediadas em residências de jesuítas ou nas Corporações de
Ofícios
26
nos principais centros urbanos da colônia (idem). O autor indica
o aspecto moralizante de cunho religioso presente na formação destinada
aos trabalhadores e os aspectos técnicos operacionais. Essa dupla
vinculação das tarefas de trabalho expressa as formas de dominação que se
exercia sobre o trabalho manual. Então, os religiosos ou irmãos oficiais
procuram reproduzir nas oficinas a aprendizagem de ofícios vigentes nas
manufaturas da Europa, porém com doses embriagantes de servidão e de
26
Em Portugal as Corporações de Ofício estão diretamente ligadas às lutas dos artesãos contra a
nobreza e a burguesia pelo poder político. Todavia, no Brasil ela adotou normas rigorosas quanto
ao recrutamento de escravos para determinados ofícios. Era a tentativa de restringir certas profissões
aos brancos livres, com efeito, uma tentativa de branqueamento de certos trabalhos, preservando a
distinção entre os trabalhos manuais “sujos” dos disponíveis aos brancos livres pobres.
119
docilidade para com os senhores de escravos por parte dos aprendizes
(MANFREDI, 2002). Na esteira, Cunha (2000b) ressalta como o trabalho
manual foi impregnado pelo preconceito por ser a escravidão a base, tanto
da produção como da dominação social, econômica, política e cultural.
Esta categoria de trabalho afastava outras pessoas por não quererem se
identificar com a escravidão: “aí está base do preconceito contra os
trabalhadores manual, inclusive e principalmente daqueles que estavam
socialmente mais próximos dos escravos: mestiços e brancos pobres”
(CUNHA, 2000b, p. 90).
Vale lembrar que a força de trabalho escrava africana constituía, no
período imperial, a principal força produtiva. O surgimento de novos
centros urbanos e o crescimento dos já existentes se deu no contexto da
produção aurífera um pouco antes de 1822, promovendo o surgimento de
classes médias e trabalhadores assalariados nas cidades. Após a chegada da
corte real portuguesa em 1808, registram-se estímulos à instria e ao
comércio com as “Nações Amigas”, movimento que se ampliou um pouco
mais durante a vigência da monarquia brasileira. Ademais, na segunda
metade do século XIX, a Europa, em plena revolução industrial e liberais-
burguesas, gerava pressão por mudanças na economia brasileira, e a
liberação do trabalho escravo para o trabalho assalariado foi a principal
delas. No entanto, a produção cafeeira constituiu a base da economia
agroexportadora, registrando apenas um surto de industrialização no
Segundo Império, tendo como expoente o empresário-banqueiro Irineu
Evangelista de Sousa, o Visconde de Mauá.
Com efeito, a instrução escolar predominou como um privilégio
para as elites proprietárias, brancas, religiosas e agentes da burocracia do
poder colonial, depois no período imperial adentrando também em parte
do período republicano. De modo geral, o ensino profissional foi
vinculado às mudanças, primeiramente políticas, da condição de colônia a
120
Estado-nação emancipado em 1822 e, posteriormente, no final do século
XIX, a guinada ao republicanismo.
No período imperial, o ensino profissional foi implementado por
iniciativas tanto estatais como religiosas e empresariais (SANTOS, 2017).
Segundo o autor, a esfera religiosa oferecia instrução profissional através
do Seminário de São Joaquim, no Rio de Janeiro, convertido em escola
profissional e, somado a isso, a chegada dos padres Salesianos deu
conotações remediadoras contra o pecado à formação do trabalhador.
Almeida (2000), afirma que o Seminário de São Joaquim foi convertido
no Colégio Pedro II em 1837, priorizando a formação propeutica em
detrimento da formação profissionalizante.
Uma das distorções mais relevantes ocorreu durante o período
imperial. O Ensino Superior, incipiente, recebeu maior atenção e, a partir
daí, foram criados vários cursos voltados para o Exército e para as funções
administrativas do Estado (MANFREDI, 2002). Essa autora aponta que
o ensino secundário era pouco lecionado, restrito a alguns
estabelecimentos e desenvolveu-se por iniciativas particulares visando ao
ingresso no Ensino Superior. Desse modo, o ensino secundário disponível
acentuava seu caráter propedêutico, voltado ao ingresso no Ensino
Superior o qual só podia ser arcado pelas elites que podiam pagar pelas
aulas.
Após a chegada da corte, em 1808, e os incentivos às manufaturas,
de forma geral, a educação profissional estava a cargo das casas de
educandos e artífices, liceus de artes e ofícios, entidades religiosas
filantrópicas (Santas Casas de Misericórdia e seminários, por exemplo) e
academias militares recém-fundadas, após a emancipação política do Brasil
em 1822. As iniciativas que implementavam o ensino profissional
combinavam a ação pública do Estado com ações de entidades filantrópicas
121
e empresariais, direcionadas para os pobres livres. Na esfera militar
podemos verificar essa finalidade, como aponta Cunha (2005, p. 110).
Em 1834, o Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro tinha duzentos jovens
praticando os mais diversos ofícios. Pelo regulamento baixado por
decreto de 21 de fevereiro de 1832, eles eram admitidos com idade de
8 a 12 anos e aprendiam, além de um ofício, desenho e as “primeiras
letras” pelo método de ensino mútuo.
O alvo dessa educação eram os abandonados, órfãos e desvalidos
em estado de mendicância. Na esteira, o Estado criou também as Casas de
educandos artífices. Segundo Manfredi (2002), essas instituões ofereciam
instrão primária e o ensino voltado para ofícios manuais: tipografia,
carpintaria, encadernação, alfaiataria, sapataria, entre outros. Os liceus de
artes e ofícios, escolas mantidas por doações empresariais e subsídios
governamentais, atendiam um público livre nos principais centros urbanos
brasileiros no período imperial. Os escravos, a maior parcela dos
trabalhadores, era excluída. Nos liceus eram oferecidos cursos
profissionalizantes, desde as ciências aplicadas, como Química, Física e
Mecânica, passando pelas artes, cursos de arquitetura, desenho geométrico,
desenho humano, desenho ornamental, desenho de máquinas, arquitetura
civil e muitos outros, pois variou conforme o centro urbano e o período,
já que foram ampliados durante a segunda metade do século XIX
(CUNHA, 2005).
Nos centros urbanos, durante o período imperial, uma contradição
saltava aos olhos: O emprego de trabalho escravo nas manufaturas já se
tornava bastante comum, como relata Cunha (2005, p. 100).
122
Uma fábrica de tecidos dispunha de 2 mestres livres e 16
escravos; outra, 4 mestres, 20 operários livres e 10 escravos. A
fábrica de tecidos do governo na Lagoa Rodrigo de Freitas
dispunha de 2 mestres de fiar e tecer e 16 escravos. A fábrica de
asfalto funcionava com 2 contramestres e 30 escravos; a de
oleados, com 4 oficiais brancos e 14 oficiais negros. Em cinco
fábricas de sabão, havia 75 escravos e 17 trabalhadores livres.
Nessas fábricas, os carpinteiros que faziam as caixas de madeira
eram geralmente trabalhadores livres. Em nove fábricas de
chapéus, havia 194 trabalhadores livres, dos quais 5 eram negros.
Podemos observar que a presença de escravos na fábrica contrastava
com a força de trabalho assalariada já amplamente vigente na Europa. As
lutas operárias contra burguesia já ocupavam o palco da cena histórica. As
associações e sindicatos reivindicavam desde melhorias das condições de
trabalho até mesmo o fim da exploração capitalista. No Brasil, por um
lado, a pressão pela abolição do trabalho escravo para liberar o trabalho
assalariado já existia, entretanto, a posição marginal das fábricas na
economia contrastava com a agricultura exportadora e com a empresa
extrativa que não renunciava ao escravo; por outro, era evidente o temor
das classes dominantes locais em se reproduzir no Brasil a rebeldia dos
trabalhadores assalariados europeus. Nisso consistia em manter, na esfera
educacional, o disciplinamento militar, a moral cristã e oferta de ensino
profissionalizante voltada para os pobres, enquanto se mantinha o trabalho
escravo.
Nesta seção, recuperamos o panorama histórico-educativo que
caracterizou a introdução da educação restrita no Brasil. O que buscamos
registrar foram as bases econômicas e as relações sociais que refletem a
dualidade educacional. A relação capital e trabalho, com determinações na
relação trabalho e educação, carrega a marca da relação dialética entre
123
particularidade colonial e intercâmbio, com modo de produção via
metrópole portuguesa. Na esteira, a cultura dos costumes e da moral
pautou os ensinamentos como “transplante” da metrópole civilizada à
colônia, estabeleceu características particulares à formação social brasileira.
Apresentamos sinteticamente a trajetória educativa que se iniciou
com a colonização até o período imperial. Adotamos esse critério porque,
mesmo após a emancipação política do Brasil em 1822, o trabalho escravo
continuou como força de trabalho predominante na economia. Nesse caso,
a industrialização europeia e suas transformações sociais tiveram seus
efeitos retardados na sociedade brasileira. A educação assim se dava pela
ontológica posição se ser atrelada à economia. Em uma produção em que
o trabalho escravo bastava, nada mais conveniente do que um processo
educativo também precário, pois a elite ia estudar fora, ou no
máximo/mínimo, no Colégio Pedro II. O temor das elites que associaram
o trabalho assalariado livre e acesso a níveis de instrução melhores insuflaria
insurreições capazes de abalar a estrutura dominante estabelecida.
Portanto, a próxima seção recupera o panorama da dualidade educativa
sob efeitos da industrialização. Com a industrialização e a ascensão da
burguesia, os sistemas escolares se expandiram e os conceitos da civilização,
com recorte de classe, passaram a ser transmitidos pela escola, até mesmo
seus antagonismos e suas contradições.
A industrialização da produção capitalista, a luta de classes
e seus reflexos educacionais
Já no contexto histórico dos séculos XVIII e XIX na Europa, as
transformações promovidas pelas revoluções industrial-liberais burguesas,
determinaram a necessidade de expansão da oferta de ensino a uma parcela
124
maior da sociedade, aumentando consideravelmente o número de escolas.
A educação formal restrita já era um fenômeno social, porém acessível até
então a nobres e alguns estratos da burguesia. Essa realidade foi se
modificando com a urbanização e a industrialização, pois com ela surgiu o
proletariado urbano-industrial e uma nova realidade marcada pelo
desemprego, trabalho infantil nas fábricas e crianças de rua. O burgo
assumiu a função de comando sobre o campo, resultando na transferência
da produção e desenvolvimento para a cidade, cujos valores civis se
diferenciavam do clero e da nobreza.
As transformações no modo de produção capitalista não tiveram o
impacto imediato na relação trabalho e educação e na reconfiguração da
relação entre as esferas educacionais lato e restrita no Brasil. O processo de
industrialização foi retardado e as bases agrícolas exerciam maior influência
na economia, no entanto, o plano universal da produção capitalista foi
modificado, repercutindo na ramificação restrita da educação escolar. A
dualidade estrutural absorveu as mudanças na esfera do trabalho,
requisitando uma cisão no interior da escola, com a separação do ensino
para os trabalhadores, eminentemente, profissionalizante e, por outro lado,
um ensino propedêutico para as classes destinadas ao comando e
administração da sociedade.
O que vamos destacar a seguir é o ingresso do capitalismo em sua
fase madura, com as classes sociais mais definidas e seus efeitos na
educação. Esses elementos permitem a nossa análise aprofundar a
compreensão dos elementos que configuram no interior da escola o ensino
separação, dicotômico, vislumbrando atender às necessidades sociais
distintas, porém reprodutoras das desigualdades sociais.
Foi a revolução industrial nos séculos XVIII e XIX que instaurou
definitivamente o modo de produção capitalista. Se a expansão do
comércio marítimo e as conquistas de áreas para a colonização foram uma
125
fase para acumulação de capitais na Europa, a formação dos Estados
nacionais absolutistas foi acompanhada por grande impulso para o
desenvolvimento cultural e avanço das ciências naturais. No rol das
mudanças, o Renascimento, as Reformas Religiosas e o Iluminismo
manifestaram o nascimento de uma nova organização socioeconômica
tendo a burguesia como vanguarda das revoluções liberais. As relações
feudais de produção e organização política foram contestadas e superadas
por essas revoluções, principalmente na Inglaterra e França, que
representaram na ascensão burguesa a condição de classe dominante.
Com a indústria, o capitalismo entra na sua fase madura,
consolidando o modo de produção em escala mundial. Nele, o trabalho
está estrutural e hierarquicamente submisso ao capital; apenas mais uma
mercadoria que o trabalhador é obrigado a vender, sua força de trabalho,
única condição para obter os meios de vida. O trabalho abstrato na forma
assalariada é a expressão da subordinação do trabalho ao capital na sua
forma alienada/estranhada. É ele que permite a extração de mais-valia o
que, em suma, é a base de produção e reprodução do capital (MARX,
2013).
A configuração da divisão do trabalho resultante da
industrialização, bem como a lutas de classes foram determinantes para o
surgimento de uma nova dualidade na esfera restrita da educação. Com a
posição burguesa consolidada, tratava-se de difundir seus ideais cada vez
mais de forma universal, apresentando-os como “as únicas racionais e
válidas universalmente” (MARX; ENGELS, 2007, p. 72). A dicotomia do
ensino entre propeutico e profissionalizante assumiu os contornos da
divisão de classes em pleno processo de industrialização. O fenômeno da
escolarização era difundido como necessário ao desenvolvimento e difusão
da cultura ilustrada para as classes dominantes. Para a classe trabalhadora,
126
a escola limitava o ensino à instrução profissional e até um determinado
ponto de um ofício.
No século XIX, nos países de capitalismo mais avançado, ocorreu
um avanço na implantação de escolas primárias pelo Estado, paralelo às
instituições de ensino particulares. Entretanto, as escolas assumiram a
estrutura dualística da divisão entre trabalho manual versus trabalho
intelectual, proprietários versus não-proprietários dos meios de produção,
governantes versus governados. Uma sociedade dividida em classes
antagônicas, por sua vez, uma educação dualista. Para os trabalhadores,
uma escola voltada para profissionalização estreita; para as classes
dirigentes, uma escola propedêutica, de cultura geral e especializada na
apropriação do saber científico e na governança da sociedade. A instrução
escolar, nesse aspecto, recebeu destaque no quadro histórico da Revolução
Francesa que reivindicava ensino gratuito, universal, laico às classes sociais.
A Revolução Francesa, voltada para derrubar o Antigo Regime,
separou ao longo do processo as duas principais classes que compunham o
Terceiro Estado. A burguesia triunfante fez logo de sua razão a razão
universal e os ideais iluministas, liberdade, igualdade e fraternidade, foram
difundidos como ideais universais. Entretanto, a propriedade privada,
como garantia natural e imprescindível ao “homem” burguês, inviabilizou
a conexão entre esses valores e a realidade histórica. A propriedade privada,
como fundamento e expressão da divisão social do trabalho, separa os
indivíduos entre proprietários eo-proprietários da riqueza produzida,
condição primordial para a existência da burguesia.
Como ressalta Santos (2012), não é possível encontrar nenhum
indivíduo que goze desses ideais ao mesmo tempo. Ao contrário, a
desigualdade é produto dessas relações de produção, configurando as
relações sociais em classes antagônicas, privando os não-proprietários, isto
é, os trabalhadores, do acesso às riquezas produzidas, impossibilitando o
127
acesso às benesses produzidas pela humanidade. A emancipação burguesa
diante da nobreza se concretiza e, para os servos, ao invés de subjugar os
senhores feudais, “restava-lhes” “contentar-se” com a cidadania burguesia
e a imperiosa necessidade de se vender como força de trabalho.
O processo revolucionário não ficou limitado às fronteiras da
França, a internacionalização das lutas sacudiu a Europa, destituindo
monarcas, afugentando outros. As classes subalternas aclamaram a
derrubada de muitos regimes dinásticos e encabeçaram também suas
próprias lutas. Isso significa que o parto da sociedade moderna foi um
doloroso e contínuo processo de lutas com avanços e recuos, revolução e
contrarrevolução, rupturas e continuidades. Entre 1789 e 1848 podem ser
indicadas a fase bonapartista (1799-1815), a fase da restauração (1815-
1834) e a fase de consolidação da hegemonia burguesa (1834-1848)
(HOBSBAWM, 2011).
O panorama histórico, após o período bonapartista, redesenhou o
mapa geopolítico da Europa e, apesar da força da restauração, Hobsbawm
(2011) indica três ondas revolucionárias no mundo ocidental. Entre 1820
e 1824, na América do Sul, ocorreu a libertação colonial do domínio
espanhol. A fuga da família real portuguesa para o Brasil, modificando as
coordenadas das relações metrópole-colônia e sua aliada imperialista, a
Inglaterra. Entre 1829 e 1834, a Europa foi sacudida novamente por
levantes: A derrubada do Bourbon na França, a independência da Bélgica,
a Polônia foi subjugada pela dominação prussiana, austríaca e russa, e a
luta emancipacionista da Irlanda Católica. Essa onda é mais forte e mais
contundente, pois representa a vitória burguesa na França em torno da
dinastia de Luís Filipe de Orleans. Banqueiros e industriais, tanto na
Inglaterra quanto na França, empreenderam a criação de instituões
liberais. Essa fase consolida dois pontos fundamentais para a hegemonia
do capitalismo, a industrialização e a urbanização. A terceira onda foi
128
produto da crise econômica e explodiu em toda a Europa, emergindo,
como protagonista revolucionário, as massas operárias industriais
(HOBSBAWM, 2011).
De acordo com Hobsbawm (2011), esses elementos históricos
demonstram que o quadro político europeu foi abalado pelas ondas
revolucionárias, fomentadas pela luta de classes que assumiu contornos
internacionais. A revolução destruía o velho e abria o caminho para o novo.
Na medida em que a industrialização se expandiu nos países europeus, a
divisão da sociedade em classes, nascida da divisão trabalho manual versus
trabalho intelectual, era transformada pelo modo de produção capitalista.
Se antes a divisão do trabalho transformava um indivíduo em camponês,
outro em tecelão, alfaiate, agora dava vida ao operário da fábrica.
Essa transformação também tornou a educação uma esfera
imprescindível ao atendimento das necessidades surgidas da divisão social
do trabalho, tendo como base a grande indústria. A estrutura dual das
esferas educativas lato e restrita passou a apresentar uma forma dicotômica
no interior do ramo restrito: propeutico versus profissionalizante. Esta é
a novidade, a dicotomia divide em dois gomos o que já era dual. Do ramo
restrito da educação são paridos mais dois caminhos separados, mas
relacionados: um profissional e outro científico, propedêutico. O
capitalismo necessitava de trabalhadores com certo grau de instrução, que
dominasse as tecnologias introduzidas na indústria, conhecesse o processo
produtivo, requisitando um tipo de escola que formasse a força de
trabalho. Porém, essa educação seria diferenciada do ensino ofertado aos
filhos da classe burguesa dirigente. O capitalismo, a sociedade de classe e a
burguesia dominante requisitaram a emergência de uma dicotomia no
ensino, a partir de um corte na educação restrita.
As indicações de reconfiguração da educação e as novas relações
que emergem do complexo do trabalho são tradutoras de um aspecto
129
unilateral da dualidade educativa, desdobrada em uma dicotomia, como é
apresentada por Santos (2017, p. 62).
O complexo educativo passa a ser usado de duas formas distintas mas
articuladas pela classe que detém o poder político da sociedade. De
um lado, essa classe passa a ver a escola como ambiente propício para
formar seus líderes e com isso preservar e perpetuar o status quo,
oferecendo a si próprio uma educação de cunho propedêutico. Do
outro lado, mas articulação dialética com a primeira opção, a burguesia
encontra no processo escolar o locus ideal para pôr em prática seu
projeto de adestramento do trabalhador aos particularismos burgueses,
destinando-lhes uma educação de caráter eminentemente
profissionalizante.
Em cena, a burguesia e o proletariado trouxeram novas relações
que despertaram o interesse político e social pela instrução pública. Na
medida em que o processo renova as forças produtivas, as necessidades de
ter operários mais instruídos sem, contudo, alterar o status quo burguês,
recém-conquistado, fez emergir uma nova dinâmica em torno da
reprodução social do conhecimento, da ideologia e da cultura em geral. A
instrução escolar teria que atender às necessidades burguesas de formação
de quadros de comando, governança e, ao mesmo tempo, dispor de
trabalhadores capazes de manusear o maquinário e suas constantes
renovações, bem como a construção de um consenso assentado nos ideais
republicanos de democracia e cidadania (MANACORDA, 2010a).
Porquanto, à práxis educativa escolar, especialmente, foi exigido
que respondesse às determinações dominantes condizentes com a forma
do trabalho abstrato, qual seja, sua forma assalariada/estranhada. Na
esteira, a educação do “novo homem” teria que ser contraposta ao mundo
feudal aristocrático, combater, portanto, o poder da Igreja, ao mesmo
130
tempo em que forjava uma escola estreitamente ligada à produção e que
instruísse os trabalhadores. A relação entre trabalho e educação pautou o
pensamento pedagógico de pensadores importantes com as perspectivas
abertas pelos ventos revolucionários.
A dinâmica da esfera do conhecimento seguiu, em linhas gerais, o
movimento contraditório da luta de classes. A efervescência desse período
das lutas entre as classes sociais, as correntes filosóficas e políticas junto às
transformações socioeconômicas apresentaram seu ideário próximo aos
interesses da classe que representava. Todas elas dedicaram atenção especial
à educação. Enquanto o liberalismo se estabelecia como guia político da
burguesia, o positivismo se tornou a principal vertente na ciência. Por
outro lado, Marx propunha uma análise dialética com base no
materialismo histórico, o que fez desse período profícuo em abranger
grandes sínteses: de Rousseau a Kant, de Hegel a Marx, de Comte a
Durkheim.
O advento do industrialismo também proporcionou ao
movimento popular de massas, organizados em partidos políticos,
associações, sindicatos, a oportunidade de apresentar suas propostas
educacionais. Através das sínteses dos intelectuais, vinculadas às
mobilizações das classes oprimidas, destacam-se também Saint-Simon,
Fourier, Proudhon, Robert Owen, Bakunin, cada um a seu termo e, os
mais expressivos cticos do capital e sua ordem, Marx e Engels. Cada um
a partir de concepções teóricas distintas, mas tentando captar as
transformações da sociedade. Suas contribuições direcionadas ao campo
educacional direta ou indiretamente somaram para a formação de
movimentos políticos que se diferenciavam da ordem burguesa.
O ensino foi ganhando cada vez mais importância por ser um
instrumento imprescindível à difusão de ideais vinculados à ordem que
emergia dos processos revolucionários. A dualidade educacional se
131
renovou, avançou e assumiu formas dicotômicas que distinguem o ensino
a partir da classe social, assim como absorveu as contradições do processo
vigente. A defesa de Comenius, bem antes da Revolução Francesa, de uma
educação para todos, não significaria na prática que ela seria igual para
todos?
A escola e o ensino foram modificados para atender às exigências
da nova divisão social do trabalho e da posição da burguesia como classe
dominante na sociedade. Vamos indicar, de forma panorâmica e resumida,
os contornos da educação restrita, propedêutica e profissionalizante,
configurando uma forma nova, a dicotomia, apoiada sobre a dualidade
entre educação lato versus restrita. A divisão dual, lato versus restrita, não
era mais suficiente para disseminar saberes, valores e conhecimentos de
uma base científica, socioeconômica e cultural que se ampliava em ritmo
acelerado e distinto com transformações do modo de produção do capital
(SANTOS, 2017). Para atender às necessidades sociorreprodutivas das
classes sociais, a educação restrita precisou atender à formação de
trabalhadores, porém a abertura da escola para as classes subalternas se
relaciona com a desigualdade de acesso e a diferenciação entre as trajetórias
de trabalhadores e burgueses a serem percorridas durante a formação
escolar.
Nosso objeto de estudo, qual seja a educação profissional, está
relacionado ao movimento dual e dicotômico da educação que separa o
ensino distinto às classes sociais. A separação entre o comprador e o
vendedor da força de trabalho é um elemento que amadureceu com a
revolução industrial. Essa separação é acompanhada por duas mudanças
importantes: A primeira é que, segundo Braverman (2014), a indústria
possibilitou que os aspectos técnicos do processo de trabalho fossem
controlados por aspectos sociais, isto é, o controle do capitalista sobre o
processo de trabalho passou a ser do capitalista; a segunda diz respeito às
132
técnicas, às qualificações e ocupações revolucionadas numa velocidade
cada vez maior (idem). Essas mudanças pressupõem que o processo
educacional seja determinado a atender novas necessidades
sociorreprodutivas. A nova divisão do trabalho requer uma configuração
nova do processo educativo que se dá na esfera restrita da educação.
A escola pode adotar um ensino mais propedêutico ou profissional
a depender a qual classe se destina aquele saber. Há dicotomia entre uma
formação geral, resguardando um caráter propedêutico, e outra que se
manifesta profissionalizante para a classe trabalhadora, e esse
desdobramento no ensino convém para a diferenciação na reprodução das
relações sociais. A estrutura dual como base, essência do fenômeno, e a
dicotomia como forma de manifestação que assume os contornos
históricos das relações de produção, das manifestações da luta de classes e
da ideologia, tendem a formar o indivíduo em determinada direção ou em
uma posição subalterna nas relações sociais.
Vamos abordar alguns autores que influenciaram o ideário
educacional em meio ao processo de implantação das escolas. A
disponibilização do ensino para um grupo de segmentos sociais na Europa
Ocidental coincide com a difusão dos ideais liberais cada vez mais
recorrentes no pensamento político e social. Em seguida, faremos o recorte
desse debate na relação entre trabalho e educação, na época, trabalho e
instrução.
Para Suchodolski (2002), o ideário educativo que pauta as
concepções educacionais na esfera restrita pode ser sintetizado em duas
grandes correntes filosóficas: a pedagogia da essência e a pedagogia da
existência. A pedagogia essencialista apoiada na concepção ideal do
homem é racionalista com Platão e cristã com São Tomás de Aquino.
Numa fase posterior ao Renascimento, a corrente existencialista se
desenvolve, inicialmente, com Comenius (1592-1670) ao defender um
133
sistema pedagógico a partir da natureza, afastando as bases mais abstratas
do ensino da época, valorizando a criança a partir de suas necessidades e
possibilidades e não o predominantemente escolástico. Também defendeu
que a educação não deveria ser monopólio da Igreja e deveria ser para
todos. De fato, Comenius lança entre suas proposições o prinpio da
universalidade da educação, pois entendia que ela não deveria ser um
privilégio restrito a interesses de grupos e classes. Contudo, é preciso
contextualizar quanto ao ensino ser para todos, pois a escola era privilégio
dos nobres e camadas do clero (idem), enquanto o movimento
Renascentista era essencialmente burguês. Um outro aspecto de grande
relevância na obra de Comenius é a problemática antropológica-social que
deve ser guia dos aspectos mais gerais até as questões mais espeficas da
didática (CAMBI, 1999).
Rousseau, um dos pensadores que mais influenciou o pensamento
pedagógico da modernidade, concebia a pedagogia a partir da noção de
natureza da criança, atacava o mundo feudal e suas ideias, entretanto o
se preocupou com a educação das massas já que no Emílio
27
, um jovem
rico, tinha um preceptor que o guiava nos caminhos do saber (PONCE,
2010). Para Suchodolski (2002), o programa pedagógico de Rousseau
atacou os valores aristocráticos e permanece influenciando o ideário
pedagógico, em alguns aspectos, até a contemporaneidade. Segundo o
ideário rousseauniano, a criança não deve ser educada de determinado
modo, não deve ser moldada, a educação deve ser a própria vida da criança.
É no pensamento de Rousseau que seguem Basedow (1723-1790) e depois
Filangieri (1752-1788) (PONCE, 2010). O primeiro deixava claro que a
preparação do “cidadão do novo mundo” deveria ocorrer distinguindo
pobres, ricos e cidadãos eminentes da classe média. A separação de classes
se daria nas escolas grandes para as camadas populares e, nas pequenas
27
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. 3 ed. São Paulo: DIFEL, 1979.
134
escolas, a educação para os ricos e para a classe média. Já Filangieri defendia
que camponeses e ferreiros não necessitavam mais do que de uma instrução
fácil e voltada para a conduta civil. Ao defender a educação pública
acentuava que cada indivíduo ingressasse conforme sua condição natural,
acentuada pelo destino econômico (Idem).
Condorcet (1743-179), iluminista e intelectual que foi referência
para o início do positivismo, defendia que o conhecimento deveria avançar
na medida em que se libertasse dos interesses religiosos e políticos. O
filósofo lançou a ideia de uma ciência natural da sociedade, sem
interferências, objetiva e livre de preconceitos (LÖWY, 1991). Nesse
sentido, a formação de crenças, moral e religiosa, deveria ficar a cargo dos
padres, enquanto a instrução pública deveria assumir a difusão do
conhecimento cultural. O maior acesso à cultura, especialmente às ciências
naturais, combateria o espírito mesquinho e os preconceitos. Condorcet
era terminantemente contrário à interferência nas escolas, tanto da Igreja
quanto do Estado. Não deveria haver monopólio nem no ensino nem na
nomeação dos professores. As escolas estatais deveriam concorrer de forma
livre com as instituições de ensino particulares. Ponce (idem), ao analisar
as proposições educacionais de Condorcet, evidencia que tais propostas
foram lançadas quando o Estado era controlado pela aristocracia feudal.
Após o controle estatal passar para as mãos burguesas, o filósofo passou a
defender que o Estado tinha o direito de controlar e instruir. Também
defendeu a gratuidade do ensino, o que é considerado um grande mérito
frente aos privilégios que eram concedidos aos donos do saber.
Pestalozzi (1746-1827) buscou inspiração na pedagogia de
Rousseau. Dedicado em boa parte da vida à educação de crianças pobres,
preocupou-se em desenvolver nelas os seus dons, a partir de suas próprias
capacidades e possibilidades, articulando a experiência com o mundo e
com a sociedade. Ao desenvolver esses dons e capacidades em crianças
135
pobres, Pestalozzi as preparava para que buscassem a subsistência após a
infância (SUCHODOLSKI, 2002). Manacorda (2010) sublinha que
Pestalozzi buscou juntar o homem natural com a realidade histórica que
Rousseau separou. O pedagogo suíço concebia uma “natureza inferior” e
uma “natureza melhor”, ainda que a natureza inferior não significasse ser
má, mas era preciso guiá-la afetivamente pela segunda. No âmbito das
relações históricas, ao conceber que os homens têm a mesma natureza,
entendia que a educação deveria ser universal, delineada pelos valores
democráticos de sua época (idem).
De acordo com Ponce (2010), Pestalozzi também se notabilizou
por se dedicar também à instrução de filhos de famílias ricas, nesse período
tentou a carreira industrial após o fracasso como agricultor. A educação
benevolente e afetuosa que vinculava Pestalozzi aos pobres, porém, não
atendia à necessidade das camadas populares de libertarem-se do jugo
opressor, ao contrário, contriba para que os pobres aceitassem sua
condição de classe (idem).
Enquanto a burguesia se apoiava em filósofos do Iluminismo que
pautavam suas propostas educativas na cidadania, na democracia burguesa
variando elementos da religião cristã com o liberalismo moderno, Cambi
(1999) aponta que o liberalismo de Benjamin Constant (1767-1830) se
contrapôs ao ideário catolicista e tornava-se a ideologia-guia da sociedade
moderna. Numa outra vertente na França, Felicité-Robert de Lamennais
(1782-1854) defendeu uma reforma pedagógica combinando elementos
do catolicismo com o liberalismo, reafirmando a prioridade da existência
de Deus, extraindo dessa verdade um forte empenho educativo mediante
o livre reconhecimento racional (idem). Numa linha iluminista, Augusto
Comte (1798-1857), elaborou uma proposta positivista apoiada na
laicidade, racionalidade científica e relacionada à necessidade da escola em
atender o desenvolvimento da sociedade industrial (ibidem).
136
De acordo com Cambi (1999), na Inglaterra, as propostas para o
campo educativo se desenvolveram em torno do empirismo, do
positivismo e do evolucionismo. O utilitarismo empirista visava a uma
educação baseada no estímulo das necessidades e expectativas, baseando a
formação humana como um “bem social”. Já o positivismo e
evolucionismo reelaboraram os princípios pedagógicos da educação
propedêutica baseando as reflexões epistemológicas nas conquistas
científicas físico-naturais. Na difusão, o positivismo de Stuart Mill e
Spencer, embora com propostas distintas, seguiu, uma lógica e
metodológica; outro, naturalístico-metafísico (idem).
Esse contexto carrega a marca do conflito de classes latentes,
seguida depois por revoltas, especialmente na Europa Ocidental no século
XIX. A luta do proletariado pela libertação da ordem burguesa e
implantação do comunismo, por exemplo, situa a luta política contra o
Estado burguês e contra a escola idealizada sob a ótica liberal burguesa. A
luta pela escola, sob controle operário, que atendesse às necessidades do
trabalho, da vida social, da luta política contra ideias conservadoras, enfim
pela emancipação da ordem hodierna do capital. A burguesia propôs a
educação escolar aos trabalhadores, entretanto, não a de caráter
propedêutico e sim a que viesse a atender às necessidades da produção
capitalista.
A primeira frente da investida burguesa na educação escolar
consistia em assegurar que os conceitos e ideias da classe dominante se
tornassem as ideias dominantes na sociedade. A partir desse pressuposto, a
integração e difusão de ideais políticos, culturais e econômicos, tinham
alinhamento com a ordem sociorreprodutivas capitalista, em que os ideais
de cidadania e participação política, por exemplo, deveriam se tornar os
ideais de toda a sociedade. Embora se constate como um avanço para a
época, comparecendo nas bandeiras das lutas sociais contra o regime social
137
feudal, esses ideais foram convertidos à moda burguesa, que antes se
manifestava em sua posição revolucionária. Entretanto, ao derrotar a
nobreza, a burguesia passou a ser conservadora e, com isso, se distinguiu
das outras classes, impondo-lhes seus conceitos e ideais. Para fazer
dominantes seus ideais e conceitos, a classe dominante (burguesia)
estabeleceu na escola uma de suas tantas formas em tornar-se “tanto mais
geral e abrangente”. A escola reforçaria seus valores, sua razão universal,
pois “quanto mais essa classe dominante se vir obrigada a estipular seu
interesse como interesse de todos os membros da sociedade”, tanto mais
seria seguro controlar a instrução dos subalternos (MARX, 2007, p. 72).
A segunda frente era decorrente do revolucionar constante das
técnicas e tecnologias produtivas, pois o saber fragmentado e superficial
dos trabalhadores era insuficiente para manuseá-la. Como resultado de
todo esse processo passou a prevalecer, de modo geral, o interesse do
capital, sua dominação sobre o trabalho, isto é, o controle da força de
trabalho, manifestada, por sua vez, como trabalho abstrato, obrigado a
vender sua força de trabalho. Seus efeitos degradantes e degenerantes são
latentes no trabalhador individual, pois é sobre ele que o enriquecimento
do capital é assegurado, por meio do trabalho
alienado/assalariado/estranhado onde “o trabalhador torna-se mais pobre
quanto mais riqueza produz”.
O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para
o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador.
Produz beleza, mas mutilação para o trabalhador. Substituiu o trabalho
por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores a um trabalho
bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz
idiotice, cretinice para o trabalhador (MARX, 2015, p. 307-308).
138
Adam Smith, economista liberal, defendia a escolarização como
medida para atenuar nas massas a estupidificação decorrente da divisão do
trabalho. Segundo Marx (2013, p. 436), Smith não recomendava um
ensino que libertasse o trabalhador, ao contrário sua proposta estava
embriagada pelo temor burguês, por isso o “ensino popular, a cargo do
Estado, embora em doses cautelosamente homeopáticas”. O temor na
classe dominante era de que o ensino tornasse os trabalhadores menos
ingênuos e assustadiços, de acordo com Smith, o ensino nas classes
populares deveria dosar o conhecimento, pois temia que este tornasse os
trabalhadores menos assustadiços (PONCE, 2010).
A premissa do pensamento liberal para a educação nesse período,
segundo Ponce (2010), ressaltava a instrumentalização do trabalhador para
se adaptar às novas funções que surgiam no processo de industrialização,
por isso a implantação da educação profissional. Essas propostas estão
inseridas no processo histórico de transição entre a manufatura e a fábrica
mecanizada, o que interessava defender a escola como necessidade do
capital na medida em que a produção industrial revolucionava
tecnicamente a divisão do trabalho.
O modo capitalista de produção destrói sistematicamente todas as
perícias a sua volta, e dá nascimento a qualificações e ocupações que
correspondem às suas necessidades. As capacidades técnicas são daí por
diante distribuídas com base estritamente na qualificação. A
distribuição generalizada do conhecimento produtivo entre todos os
participantes torna-se, desse ponto em diante, não meramente
“desnecessária”, mas uma barreira concreta ao funcionamento do
modo capitalista de produção (BRAVERMAN, 2014, p. 78).
Com a divisão do trabalho industrial, surgiram categorias distintas
de trabalhadores, os mais instruídos, com formação científica, ocupavam
139
uma posição superior, de comando, embora submetidos à gerência
patronal, seguidos por auxiliares e vigilantes. Os demais trabalhadores são
distribuídos como operadores e ajudantes sem posição fixa na escala
produtiva. Segundo Braverman (2014), a utilização da força de trabalho e
suas qualificações passaram a ser organizadas de acordo com as
necessidades dos compradores, os capitalistas. Quando Adam Smith se
referia ao “conhecimento em doses homeopáticas”, seu propósito estava
conectado ao capitalismo, pois a separação, o fracionamento das tarefas,
divorciadas do conhecimento do todo, mantinha a força de trabalho
conveniente à compra e venda (idem). Um ensino dosando o
conhecimento, mas voltado para o adestramento do trabalhador, a fim de
garantir, via aparato produtivo, a sustentação do capitalismo. Dessa forma,
vão aparecendo os elementos que colocarão em “posição central o
protagonismo do Estado, forjando a ideia da escola pública, universal,
gratuita, leiga e obrigatória, cujas tentativas de realização passarão pelas
mais diversas vicissitudes” (SAVIANI, 2007, p. 158).
Por isso, a educação dos trabalhadores recebeu atenção, mas não a
educação de caráter propedêutico e sim a que melhor atendesse à
necessidade produtiva ou, como constatou Marx (2010, p. 44-45),
expusesse o que interessa ao capitalista no âmbito escolar.
Ora, qual é o custo de produção da força de trabalho? São os custos
necessários para manter o operário como operário e para fazer dele um
operário. Por isso, quanto menor for o tempo de formação profissional
exigido por um trabalho, menor será o custo de produção do operário
e mais baixo será o preço de seu trabalho, de seu salário.
Isto é, um ensino mais voltado para o adestramento, ao manuseio
das tecnologias da produção industrial, não a educação que criasse os meios
140
para emancipação da classe trabalhadora. Podemos constatar que a
revolução industrial proporciona a difusão de escolas, medida esta que
também acompanhou o trabalho assalariado. Ao passo que novas
tecnologias e processos eram introduzidos, ocorria uma rotatividade
ocupacional que exigia da força de trabalho uma instrução prévia, gerando
custos à produtividade capitalista, por isso, durante a industrialização, é
registrada a difusão dos sistemas escolares. Aranha (2012), por exemplo,
indica que, em 1830, o Estado inglês adota uma série de medidas para
exercer maior controle sobre o ensino público, criando inclusive escolas
públicas, modificando sua atuação, até então, de intervir pouco nessa
questão. Neste país a educação privada era a predileta das classes
dominantes. Na segunda metade do século XIX, a industrialização
impulsionou a difusão de sistemas escolares, tanto que, em quase toda a
Europa continental, o poder público estatal assumiu a responsabilidade do
ensino (MANACORDA, 2010).
O fenômeno da educação escolar resultava também das lutas de
classes travadas nesse período. As frequentes insurreições das classes
subalternas, reivindicavam, entre outras, o direito e o acesso dos
trabalhadores à escola. Após a revolução francesa essa reivindicação
apareceria frequentemente no quadro das lutas sociais. Podemos constatar,
a partir de Marx e Engels (2013), que o desaparecimento do véu da luta
de classes como motor das transformações históricas aflorou os conflitos e
interesses de classes tão opostos a ponto de se expressarem na luta pelo
acesso ao conhecimento no âmbito escolar. As classes dominantes temiam
que a propagação do ensino aumentasse o poder de luta das classes
subalternas e assim desenvolveram mecanismos de controle sobre o
conteúdo e método e sobre os fins do ensino público (MANACORDA,
2010).
141
Historicamente, esse acesso ao conhecimento, produzido pelas
ciências de modo geral, o saber sistematizado, restrito, foi negado às classes
trabalhadoras. Por um lado, tínhamos a revolução industrial, com seu
revolucionar constante das técnicas e tecnologias produtivas e, por outro,
as lutas revolucionárias das classes, entre as quais, a própria burguesia, ante
as forças do feudalismo, levantando a bandeira do acesso à educação como
um direito universal. Com isso, abriram-se possibilidades para ampliação
do acesso à escola (ARANHA, 2006).
Todavia, com a posição conservadora assumida pela burguesia, a
proeminência dessa luta pelo acesso à educação via escola, passa a ser tarefa
do proletariado. Essas lutas históricas não estão livres do processo de
alienação do trabalho e suas contradições, sua divisão do trabalho e do
edifício político construído pela burguesia no processo de autoafirmação,
como demiurgo societal inaugurado pela revolução industrial.
Consideramos que o processo educativo passou para as mãos do
Estado na medida em que a burguesia tomava as rédeas da história e
construía sua hegemonia. A escola se torna uma instituição estatal e passa
a assumir a responsabilidade de instruir, formar e difundir conhecimentos,
racionalizar o ensino e a aprendizagem moldando o “espírito” das novas
gerações com os ideais da classe dominante. Foi na margem desse processo
que a luta de classes no campo dos trabalhadores também se propôs a
difundir suas reivindicações em torno da educação. De acordo com Cambi
(1999), essas características que tensionam o campo educativo foram
proporcionadas pela Era Moderna. Enquanto a luta se voltava contra o
Antigo Regime, as categorias liberdade-libertação, governo-conformação
eram eixos das lutas sociais. Essa dicotomia atravessa e sustenta o traçado
educativo desse período, pouco atento à dualidade educativa que se erguia
e tomava nova configuração com o modo de produção capitalista (idem).
142
Nesse processo, o movimento político do proletariado desenvolveu
suas concepções educacionais e propôs um ideário educativo voltado para
a luta contra a classe dominante, na perspectiva emancipadora das
condições de exploração, alienação e jugo produzidas pelo modo de
produção capitalista. Em uma seção específica trataremos melhor dessas
concepções e das experiências clássicas que buscaram viabilizar sua
efetivação. Para o momento iremos desenvolver a análise sobre o interesse
escolar vinculado à luta de classes.
Germinavam, com forte crítica social, propostas distintas,
destacando-se Saint-Simon, já mencionado na seção anterior, Charles
Fourier (1772-1837), Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) e Robert
Owen (1771-1858), numa primeira fase. A proposta educacional desses
autores demonstrava a preocupação com a temática educacional da relação
entre trabalho e educação. Em seguida, a partir das teorizações de Marx,
com a parceria de Engels, surge o campo pedagógico marxista. A partir da
teoria crítica-histórica, materialista-dialética marxista, o movimento em
torno da educação voltada para os trabalhadores se fortaleceu,
principalmente com sucesso da Revolução Russa (1917), que possibilitou
debates sobre a pedagogia socialista, e com as profundas contribuições de
Antônio Gramsci (1891-1937).
Joseph Proudhon, socialista frans, foi conceituado por Engels
como um dos socialistas utópicos. O desenvolvimento de sua tese crítica
sobre a propriedade privada, a sociedade capitalista e o Estado se
desembocam no anarquismo. Ao negar o poder governamental e qualquer
forma de opressão sobre o indivíduo, Proudhon foi o primeiro a empregar
a palavra anarquia para que se construísse uma renovação social
(MORAES, 2015). Anarquia, portanto, que negaria a opressão do capital
e do Estado e tinha uma conotação de transformação social. Segundo
Lombardi (2011), Proudhon era um socialista libertário, defensor da
143
educação sem a participação do Estado e, baseado nessa renovação
revolucionária, ele propôs o conceito de autogestão econômica e política
da sociedade do futuro (idem). Para que a renovação social se efetivasse, o
socialista francês colocava a educação como um elemento impulsionador
imprescindível. Segundo Cambi (idem), Proudhon defendia que a
organização do ensino era condição para a igualdade de condições e para o
progresso; criticava as iniciativas filantrópicas do poder para as crianças
pobres, pois elas eram apenas paliativas e mascaravam as relações sociais
produzidas pela sociedade capitalista. Ao invés disso, propunha que se
estabelecessem os prinpios da educação profissional e os direitos dos
operários (CAMBI, 1999).
A educação harmônica era defendida por Fourier, rejeitando toda
a sistematização e valorizando a experiência da criança, contudo, isso não
eliminava o conflito social. Fourier era crítico da sociedade que se baseia
na repressão, defendia a liberdade para viver com autonomia e livre da
opreso, nesse sentido, defendeu também a igualdade entre homens e
mulheres. De acordo com Manacorda (2010a), o interesse individual e
coletivo deveria convergir para formar uma nova civilização. Moraes
(2015) revela que na obra “O Novo Industrialismo” de 1829, Fourier
apresenta sua ideia educacional articulando o “fazer” e o “pensar”. Segundo
Cambi (idem), Fourier, em seu modelo da teoria harmônica, entendia que
a educação deveria ser integral, dedicada ao “espírito” e ao “corpo” e
orientada pelas múltiplas atividades da divisão social do trabalho. Isso
poderia desenvolver as descobertas do próprio indivíduo em relação a sua
vocação dentro da própria divisão social do trabalho da época
(MANACORDA, 2010a). O projeto de Fourier era nutrido pelo avanço
das relações de produção e sensibilidade da pobreza e precariedade que as
transformações econômicas promoveram. Desse modo, buscava atrair
capitalistas para a construção de uma nova sociedade por meio de tese de
144
sociedade harmônica, assim, na sua proposta de sociedade justa e
igualitária descartou a transformação violenta da sociedade como meio de
concretizá-la (BARROS, 2011).
Já Robert Owen (1771-1858), industrial filantropo do ramo têxtil,
autodidata, socialista, dedicou sua atuação a um plano reformador da
sociedade, voltado para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores
(CAMBI, 1999). Para isso, atuava junto ao poder público propondo uma
nova organização social baseada em comunidades cooperativas,
gestionadas pelos próprios trabalhadores, assim como a regulamentação do
trabalho infantil a partir da educação de menores de idade (ROSA;
BASSO, 2019). Owen defendia que a educação tornaria a sociedade justa
e igualitária e que o Estado deveria criar um sistema nacional de educação.
A consciência do filantropo sobre as precárias condições de vida da classe
operária o fez propor a união entre trabalho e ensino nos anos de formação
educativa que, segundo Cambi (idem), deveria também integrar atividades
físicas e lúdicas.
Esse contraponto serve para indicar como a luta de Owen, um
industrial, estava na contramão das posições burguesas hegemônicas e o
quão se tornava improvável que os capitalistas se convertessem à reforma
da sociedade. Para Hobsbawm (2011), Owen extraía sua confiança numa
sociedade melhor por sua crença obstinada no aperfeiçoamento humano e
foi essa crença que fez Owen desenvolver, embora fracassadas, experiências
que contribuíram para despertar atenção para a educação infantil e a
importância da relação entre ensino e trabalho, integrando as atividades
físicas e artísticas. O filantropo inglês tinha, embora com limites claros de
seu ideal, um interesse profundo em reverter a desumanização
encaminhada pela sociedade burguesa. Para as classes operárias, liberdade,
igualdade e fraternidade não passavam de uma fantasia caprichosa
decantada pela burguesia com a finalidade de firmar seu modus operandi.
145
Lombardi (2011) também observa que o objetivo dos “socialistas
utópicos”, entre os quais Owen, era fazer uma nova revolução que
compartilhasse a abundância produzida pela sociedade industrial. No
entanto, a revolução não seria deflagrada pela violência jacobina, que
caracterizou o processo francês, mas pela mudança de consciência da classe
capitalista.
Manacorda (2010a, p. 331) apresenta esse ideal de Owen,
recortando o trecho: “a formação integral, sob o aspecto físico e moral, dos
e das mulheres, para que aprendam a pensar e agir racionalmente”. Como
percebemos existe um esforço de propor uma educação voltada à
renovação do homem no seu aspecto moral mediante as condições do
industrialismo burguês. As condições insalubres, a vida condenada a
vender a força de trabalho, a indigência, o alcoolismo etc., que assolavam
os trabalhadores, despertavam o ódio da classe até em certos filósofos como
John Locke e Alexis de Toqueville, como aponta Beluzzo (2011). O autor
indica que, para o primeiro, o Estado deveria ser rigorosamente
disciplinador para com vagabundos e desempregados, devendo inter-los
em workhouses, o que seria precursor dos campos de concentração.
Conforme Beluzzo (idem), Toqueville apresenta a completa aversão às
causas reivindicatórias da classe operária como a redução da jornada de
trabalho. Toqueville se revoltava contra a interferência na liberdade de
contratação dos patrões sobre os empregados (ibidem)
Enquanto muitos dos “socialistas utópicos” abordavam a questão
educacional ora pela vertente do industrialismo, ora pela corrente
positivista ainda resguardando aspectos revolucionários, outros o faziam
pela via empirista, com crítica social ainda em formação. Marx e Engels
não dedicaram sua energia em buscar explicitar os problemas da sociedade
que se ergueram a partir do modo de produção capitalista em sua
totalidade e múltiplas determinações. Não renunciaram ao chão histórico
146
das relações sociais como relações de produção, sua reciprocidade e
contraditoriedade dialética assentada no materialismo. A educação e o
ensino estavam relacionados à totalidade do processo histórico e das lutas
do proletariado pela emancipação.
Ao contrário dos socialistas utópicos, Marx e Engels estabeleciam
sua teoria relacionando o processo histórico materialista a partir da
dialética do real. Analisaram o processo enquanto um processo de luta de
classes e no rastro das lutas burguesas que abateram o mundo feudal. As
revoluções burguesas não eliminaram a luta de classes, ao contrário,
fizeram delas sua arma para superar o feudalismo. Com elas forjou-se uma
nova configuração de classes a partir do antagonismo da divisão social do
trabalho e da propriedade privada dos meios de produção. As lutas políticas
se tornaram mais abertas e os intelectuais orgânicos das classes propunham
suas concepções de sociedade e com elas também surgiram propostas
pedagógicas.
Marx não se dedicou a traçar uma teoria educacional, mas a partir
das categorias teóricas constitutivas do materialismo histórico-dialético
podem ser exploradas seu potencial teórico-educativo, como indicou
Saviani (2018). Além dessa perspectiva, Saviani também aponta que
podem ser extraídas contribuões para o complexo educativo a partir das
obras de Marx, explorando em suas obras as concepções de homem,
sociedade e economia. É por estes caminhos que a relação entre o
marxismo e a educação tem se desenvolvido historicamente.
Manacorda (2010b) indica que Engels escreve sobre os Princípios
do Comunismo, em novembro de 1847, dedicando atenção especial à
importância da instrução para o proletariado. Em 1848, Engels e Marx
retomam parceria autoral e escrevem o Manifesto do partido comunista.
Uma das medidas estabelecidas para a luta política do proletariado foi o
“Ensino público e gratuito para todas as crianças; Supressão do trabalho
147
infantil em fábricas, em sua forma atual; Unificação do ensino com a
produção material etc.” (MARX; ENGELS, 2013, p. 61).
Na análise de Lombardi (2011), a educação e o ensino em Marx e
Engels requerem a compreensão do papel revolucionário e transformador
do modo de produção do capital. Desse elemento brota a necessidade de
se obter um profundo conhecimento da realidade a ser transformada e,
“com base no entendimento das leis que regem a história, tornar a prática
revolucionária mais consequente, instrumentalizando o proletariado e seu
partido com eficiente arma teórica para a luta revolucionária (idem, p. 59).
O período de transição entre o mundo feudal e a ordem burguesa
também marca a crise das instituições do Estado absolutista. O ensino,
antes restrito a uma parcela elitista da sociedade, torna-se uma necessidade
do desenvolvimento da produção. A ciência, cada vez mais incorporada à
máquina, exige que o ensino seja disponibilizado a uma camada maior da
população. Essa relação entre ciência e produção elimina o aspecto
restritivo de acesso à escola. O movimento político do proletariado
expressa as suas necessidades em escolarizar-se, mas o objetivo da educação,
não é oneroso lembrar, era distinto do estabelecido pela burguesia.
Ao analisar esse constante processo de revolucionamento das
técnicas e tecnologias produtivas, como aponta Marx (2013, p. 557), a
base técnica da indústria “revoluciona continuamente as funções dos
trabalhadores e as combinações sociais do processo de trabalho”. Apesar
disso, o capital não desiste de reproduzir a velha divisão trabalho manual
versus trabalho intelectual, pelo contrário, continua a reproduzi-la em sua
forma capitalista, ressalta o autor. Enquanto, a manufatura suprimiu a
diversidade das ocupações, criando e reproduzindo o trabalhador parcial,
especializado, a grande indústria “condiciona a variação do trabalho, a
fluidez da função e a mobilidade pluridimensional do trabalhador” (idem,
p. 557).
148
Isso significa que o trabalho se torna cada vez mais supérfluo, cada
vez mais objeto do capital, “parte do autômato”, sinônimo de emprego
para o qual o trabalhador deve estar sempre em busca e disponível às
necessidades mutáveis da exploração do capitalista, pois o capital ameaça
privar-lhe de seu meio de subsistência, o trabalho. Na esteira, Marx (2013)
aponta o monstruoso processo de substituição do trabalhador parcial da
manufatura, o que desencadeou um ininterrupto processo de desperdício
(extermínio) da força de trabalho, aumentando ainda as fileiras do ercito
de trabalhadores na reserva, na miséria, propagando ainda mais a anarquia
social (idem).
Podemos constatar, a partir de tais contradões, que é a
necessidade do capital em substituir o trabalhador, qualificando-o e
remunerando-o minimamente, o que faz surgir a necessidade de educação
profissional. Formar trabalhadores qualificados é uma das necessidades
produtivas do capital, tanto que são criadas escolas profissionais tanto para
“uma classe superior de trabalhadores, com formação científica ou
artesanal, situada à margem do círculo dos operários fabris e somente
agregada a eles”, quanto para trabalhadores mero operadores do
maquinário, cumpridores de funções, aptos ao emprego nas mais variadas
ocupações. “Essa divisão do trabalho é puramente técnica”, podemos
afirmar, produtiva (MARX, 2013, p. 492). Ainda destaca o autor, por mais
variadas e diversificadas que fossem as mudanças produzidas no interior da
sociedade, a velha divisão trabalho manual versus trabalho intelectual
continua a ser reproduzida na sociedade e, por isso, continua a ser ela a
base da divisão social capitalista.
A grande indústria, visando formar força de trabalho mais
aproveitável ao capital, cria dois tipos de escola que surgiram para
desenvolver a instrução profissional: as escolas politécnicas e agronômicas
149
de um lado e as escolas profissionalizantes do outro. E nisso, Marx aponta
porque o capital criou escolas distintas à formação da força de trabalho.
Uma fase desse processo de revolucionamento, constituída
espontaneamente com base na grande indústria, é formada pelas
escolas politécnicas e agronômicas, e outra pelas écoles d’enseignement
professionel [escolas profissionalizantes], em que os filhos dos
trabalhadores recebem alguma instrução sobre o manuseio prático de
diversos instrumentos de produção. Se a legislação fabril, essa primeira
concessão penosamente arrancada ao capital, não vai além de conjugar
o ensino fundamental com o trabalho fabril, não resta dúvida de que a
inevitável conquista do poder político pela classe trabalhadora
garantirá ao ensino teórico e prático da tecnologia seu devido lugar nas
escolas operárias (MARX, 2013, p. 558).
As funções de comando no processo produtivo o exercidas pelo
capital que, de um lado, recruta trabalhadores qualificados, profissionais,
controla e disciplina os trabalhadores que executam as tarefas produtivas
do processo de trabalho, seja qual for o âmbito da economia na qual
estejam inseridos: industrial, agroinstria, administrativo estatal,
comércio, serviços etc. Não apenas surgiu uma escola de formação geral
com ensino propeutico para governantes e dirigentes, como também fez
surgir escolas profissionais, ofertando instrão em graus variados, desde
os trabalhadores operadores até aqueles que manuseiam tecnologias
digitais da produção e serviços. O intercâmbio constante nos ramos da
produção exigiria a maior polivalência possível dos trabalhadores,
traduzindo numa questão de vida ou morte a adaptação a essa realidade.
Nesse caso, a formação da força de trabalho para a variação de
ocupações/emprego torna-se um imperativo, pois qualquer trabalhador
150
que não fosse aproveitável ao capital poderia ser jogado na massa do
exército de reserva (MARX, 2013).
Isso demonstra a necessidade do capital em desenvolver
qualificações diferenciadas objetivando atender às constantes mudanças da
divisão do trabalho. Nesse contexto, a relação na esfera educacional restrita,
também com suas contradições, configura a emergência de uma separação
entre ensino propeutico e profissionalizante, de modo que duas
distinções reforcem a formação da força de trabalho e estejam adequadas
às exigências do capital.
No processo de produção revolucionada, também surge a
polivalência como complemento da produtividade, reservados a
trabalhadores com maior grau de desenvolvimento científico. Essas são
necessidades vinculadas às tecnologias mais complexas, abrindo a
possibilidade aos trabalhadores de acessarem esse saber. A escola poderia se
tornar uma faca de dois gumes para a classe dominante e para a classe
trabalhadora: pode formar parcelas maiores da força de trabalho, aptas ao
manuseio das tecnologias produtivas em favor do capital, aumentando a
oferta de trabalhadores qualificados, pressionando, por sua vez, os salários
para baixo. Porém, o maior domínio de conhecimentos científicos e
tecnológicos por parte dos trabalhadores cria o espectro de que ele possa se
instrumentalizar para a luta emancipadora. A forma encontrada pela
burguesia diante dessa possibilidade, segundo Braverman (2014), foi
fragmentar e divorciar, tanto quanto possível, o conhecimento e o preparo
especial dos indivíduos que vão apenas operar o maquinário. Para o autor
(2014, p. 80),
151
[...] as relativamente poucas pessoas para quem se reserva a instrução e
conhecimento são isentas tanto quanto possível da obrigação do
simples trabalho. Deste modo, é dada uma estrutura a todo o processo
de trabalho que em seus extremos polariza aqueles cujo tempo é
infinitamente valioso e aqueles cujo tempo quase nada vale.
Desse modo, ao longo da história, a classe burguesa, hegemônica
na produção e, gradativamente, no aparelho do Estado, propõe-se cada vez
mais à fragmentação. Como no processo produtivo, o saber fracionado e
em escolas profissionalizantes, impregnado ideologicamente com um
cerrado espírito de classe, favorece a reprodão do capital (PONCE,
2010). Isso nos leva a entender que, para a classe trabalhadora, o saber mais
avançado será restrito a segmentos, isto é, para poucos. Termina por criar
mecanismos para difundir sobre o trabalho a ideologia que lhe convém,
qual seja a de ter o trabalho sob controle de classe, voltado a consentir a
exploração.
Entretanto, não deixa de ser uma contradição disponibilizar o
ensino escolar, antes restrito à elite, para as classes subalternas da sociedade.
Esse movimento pode ser explorado também pelas lutas operárias e é um
obstáculo a ser superado. Se na manufatura prevalecia o trabalhador parcial
especializado, a grande indústria fazia surgir o trabalhador polivalente, o
que em germe significa lançar a contradição de um desenvolvimento
omnilateral do indivíduo. Esse tema desperta acalorados debates teórico-
políticos no seio do movimento da classe trabalhadora. A sociedade
capitalista tem na exploração do trabalho abstrato-alienado e suas formas
estranhadas a base sustentadora. Com efeito, a uns poucos a concentração
da riqueza e benesses e, a outros, a miséria, precursora da barbárie. A
educação para a classe trabalhadora precisa de uma proposta de ensino que
supere a unilateralidade e integre os conhecimentos do processo de
trabalho como um todo.
152
A luta pela escola, no sentido proposto por Marx em sua crítica ao
Programa de Gotha, refere-se à luta para livrar a escola do controle estatal,
livrando o ensino público do controle burguês. Para Marx, a única
participação do Estado sobre a escola dos trabalhadores deve ser o seu
financiamento. Mesmo sugerindo, é preciso anotar, o autor não nutria
nenhuma ilusão quanto a isso. Opondo-se, seu apontamento era para que
direção, currículo, método e avaliação deviam estar nas mãos da classe
trabalhadora. Esses elementos afloram nas diversas lutas das classes
trabalhadoras para a superação da sociedade burguesa. Para emancipar-se
do trabalho estranhado, a educação é um dos elementos que contribuem
para a formação de uma consciência, para si, do indivíduo trabalhador.
Através dela é possibilitada a apropriação de conhecimentos acumulados
historicamente no âmbito científico, histórico-cultural, artístico assim
como da educação física, ao engendrar novas teleologias e dominar técnicas
e tecnologias que abrem os horizontes para humanização do indivíduo,
despertando a necessidade para a superação da miséria social dessa ordem
hodierna.
Em que pese o domínio do capital sobre o trabalho e, portanto, a
extensão dessa dominação à escola, Marx (2013) constatou que o
desenvolvimento histórico desigual engendra contradições que alavancam
as lutas dos trabalhadores contra o capital. Uma dessas, relaciona-se com o
surgimento das escolas politécnicas, agronômicas e profissionalizantes. É
certo que essa discussão está situada no contexto da revolução industrial
do século XIX, mas não deixa de ser atual e cabe dedicar atenção ao debate.
Prontamente, o autor alemão rejeita a formação unilateral profissio-
nalizante, ela significa a reposição-reprodução ampliada do capital por
meio da exploração da força de trabalho. Essa necessidade do capital em
instruir o trabalhador profissionalmente, criando a escola politécnica,
lança, em germe, para a esfera do trabalho, a possibilidade de uma
153
educação omnilateral. Manacorda (2010b, p. 46), recuperando Marx e
Engels (2007), alerta “ser necessária a apropriação por parte do indivíduo
de uma totalidade de forças produtivas”, como expõem os autores da
Ideologia Alemã: “a apropriação de uma totalidade de instrumentos de
produção é, de per si, consequentemente, o desenvolvimento de uma
totalidade de capacidades nos próprios indivíduos”.
Na esteira de Marx, a escola politécnica, inscrita nos limites do
capital, torna possível uma proposta embrionária de educação para além
dos limites do trabalho abstrato cujo fim maior deste trabalho é a extração
de mais-valor. A abordagem de Marx sobre a relação e educação se difere,
portanto, do tratamento realizado pelos socialistas utópicos. A escola
politécnica surgiu no período da Revolução Francesa e, com a direção
burguesa que tomou o movimento, os socialistas utópicos propuseram
concepções pedagógicas de educação integral. A educação para o trabalho
emancipado da exploração capitalista passou a fazer parte da ordem do dia
entre os defensores da classe operária. Para isso, a luta de vanguarda
naquele contexto, fragmentando o movimento contrário ao domínio
burguês, dos quais os socialistas utópicos, passando pela social-democracia
e anarquistas até o socialismo científico, a classe trabalhadora deveria
concentrar esforços na luta política que livrasse a escola do controle do
Estado, da influência da Igreja e da burguesia (MANACORDA, 2010b;
LOMBARDI, 2011).
No contexto capitalista da luta de classes, Marx (2013) sugeriu, no
limite, que o Estado assumisse apenas o financiamento das escolas. O
objetivo era elevar o nível de instrução da classe operária acima da
burguesia, para tanto era preciso lutar contra o trabalho abstrato-alienado,
potencializador de formações unilaterais, reproduzindo a divisão manual
intelectual, expressão da propriedade privada.
154
O que Marx pretendia era estabelecer que uma concepção
socialista-comunista não tomasse a educação apenas de modo abstrato, mas
inserida nas relações sociais produtivas do capital. Com isso, concebe a
união entre trabalho e ensino, voltada aos fundamentos científicos dos
vários ramos do trabalho produtivo e seu aspecto teórico-prático. Nas
condições e contexto daquele período, propôs ensino intelectual, da
educação física e educação tecnológica:
Por educação entendemos três coisas:
1) Educação intelectual.
2) Educação corporal, tal como a que se consegue com os
exercícios de ginástica e militares.
3) Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de
caráter científico de todo o processo de produção e, ao
mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no
manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais.
(MARX, 1868
28*
apud MARX; ENGELS, 2011, p. 85-86).
Marx, com isso, concebia uma concepção de educação que
unificasse “mãos e mente”, trabalho manual-trabalho intelectual, isto é,
uma educação que unisse a teoria com a prática, vinculando trabalho,
conhecimento e manuseio da tecnologia. A união ensino e trabalho é
concebida não como meio para acumulação de capital, mas como atividade
humana voltada para atender suas necessidades individuais e coletivas. A
técnica e a tecnologia como produto do conhecimento correto da natureza
empregada para atender uma necessidade humana. Desse modo,
28*
K. Marx, Instruções aos Delegados do Conselho Central Provisório, AIT, 1868. Essa proposição
foi assumida pela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional.
155
assegurava que somente a luta operária, no plano político e no chão da
fábrica/empresa, poderia assegurar uma educação que instaurasse o
verdadeiro sentido para o ensino teórico e prático da tecnologia, que viria
com o fim da divisão do trabalho e da propriedade privada.
Nesse contexto, os intelectuais vinculados às lutas sociais da classe
trabalhadora foram elaborando suas propostas de educação escolar como
oposição à educação burguesa e uma das primeiras era conceber um ensino
livre do controle estatal e da burguesia, após esta se tornar a classe
conservadora. No contexto da industrialização, o acesso à escola se tornou
uma necessidade educacional para as classes sociais, porém suas concepções
de ensino eram marcadas, na raiz, por seu antagonismo social, desse modo,
por interesses de classes distintas. Portanto, a luta proletária contra os
capitalistas e o Estado que os representava se fez por uma escola sob
controle operário e contrária à escola idealizada sob ótica liberal burguesa
(PONCE, 2010).
Esse debate teórico-político ocupou espaço nas organizações dos
trabalhadores, associações, sindicatos, nos Partidos políticos que os
representavam, especialmente os socialistas, comunistas, anarquistas e
social-democratas. Nesse momento histórico, por exemplo, o acesso ao
conhecimento ilustrado, propedêutico não estava assegurado, mesmo em
países europeus, palco das revoluções liberais e industriais. Foi no percurso
do século XX que a educação escolar se tornou mais abrangente.
A escola, como espaço restrito para o ensino dos trabalhadores,
também os separou das muitas vivências ético-políticas e culturais da esfera
do trabalho, ao fixar sua função na preparação “técnico”-profissional e
preparar o trabalhador para mudanças ocupacionais, para as relações de
trabalho precárias com ou sem contrato, aumento ou redução da jornada
de trabalho conforme a produção, variando o salário ainda mais para baixo,
sem garantias de aposentadoria etc., e ao gerar o desemprego que ocorreu
156
em função da evolução das tecnologias produtivas, das crises de
lucratividade, falências, do aumento da concorrência entre os
trabalhadores, entre outros. Por isso, a organização política operária
buscou romper com as propostas de ensino do Estado capitalista.
Na esteira do movimento operário, Marx elabora sua teoria sobre
o modo de produção social do capital, desvelando como esse modo de
produção e a dominação burguesa se reproduzem historicamente. Sua
análise da sociedade parte das relações de produção vigentes, por isso, o
revolucionário alemão, em oposição à educação unilateral, propõe uma
educação que rompe com a visão liberal-burguesa, além do controle estatal
(MANACORDA, 2010b).
A concepção de educação em Marx, de acordo com Manacorda
(2010), comparece inserida no conjunto da análise das relações de
produção do modo de produção capitalista, no debate teórico-político no
seio da classe operária. Para o filósofo italiano, a proposta educacional
extraída de Marx, viabilizada pela revolução, é encaminhada com a
superação da ordem hodierna do capital. Sua divisão social do trabalho e
propriedade privada podem possibilitar as condições para uma formação
humana omnilateral. A luta política travada na sociedade burguesa por uma
outra educação pode viabilizar propostas embrionárias apontadas para
além do capital ou, como prefere Tonet (2011), atividades emancipadoras.
Apenas com o fim do trabalho abstrato, da divisão social do trabalho e da
propriedade privada, poderia iniciar a educação omnilateral, o que não
anula, repetimos, a luta pela educação e instrução dos trabalhadores na
ordem capitalista, pelo contrário, é a revolução industrial que possibilita
os elementos embrionários da educação do futuro. Trata-se de livrar a
escola da influência burguesa e do controle estatal e estabelecer sobre ela o
controle operário (MARX, 2012).
157
A crítica de Marx parte da perspectiva da classe operária, em que a
exploração do homem pelo homem, imposta pelo capital (revolução
industrial), radicaliza a separação e oposição entre atividade material e
intelectual, a qual culmina na formação de um indivíduo unilateralmente,
o que representa um processo sociorreprodutivo da alienação. Ao propor
uma educação voltada para a omnilateralidade, o fim último de Marx são
indivíduos que acessem os conhecimentos e a cultura humanizadora e, por
fim, uma sociedade em que não haja divisão e antagonismo de classes, nem
propriedade privada dos meios de produção.
A omnilateralidade não é a mesma coisa que polivalência. Esta
última se conecta às demandas do capital, pois a força de trabalho multi-
habilitada pode ser explorada em funções diversas e diferentes no processo
produtivo. O sentido da omnilateralidade se opõe a unilateral, pois este é
resultado da propriedade privada, ela nos faz “estúpidos”, pois um “objeto
só é nosso se o tivermos” (MARX, 2015, p. 349). O sentido do ter é o
próprio capital atuando nas individualidades. Trata-se de buscar uma
educação para além da instrução escolar. A omnilateralidade envolve a
educação dos sentidos humanos que também são educados na sociedade
do capital, porém só existe enquanto apropriação privada imediata de
posse. Sublinha Marx (idem, p. 350), “para o lugar de todos os sentidos
físicos e espirituais entrou, portanto, a simples alienação de todos esses
sentidos, o sentido do ter”. A superação da propriedade privada é, por isso,
a completa emancipação de todos os sentidos e qualidades humanas. A
omnilateralidade, ao contrário, significa desenvolver a riqueza inteira do ser
humano: “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história
do mundo até hoje” (Ibidem).
158
Como explica o autor em seguida:
Somente pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana é
em parte produzida, em parte desenvolvida a riqueza da sensibilidade
humana subjetiva um ouvido musical, um olho para a beleza da
forma, somente, em suma, sentidos capazes de fruições humana,
sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só
os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os
sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra o sentido
humano, a humanidade dos sentidos, apenas advém primeiramente
pela existência do seu objeto, pela natureza humanizada (MARX,
2015, p. 352, itálicos do original).
A partir do entendimento da complexidade da práxis humana, ele
defende uma formação na qual o homem tenha condições de ter as suas
potencialidades desenvolvidas, e não apenas aquela voltada para a
produção. Significa liberar as potencialidades humanas sejam elas físicas
ou subjetivas. Entretanto, isso não é possível numa sociedade em que o
conhecimento, a história, a cultura, a arte, a ciência, entre outros elementos
complexos da sociabilidade, são apropriados privadamente tanto quanto
os meios de produção. Por isso, Marx e Engels concebiam uma educação
socializada e igualitária a todos os indivíduos, a partir das contradições da
marcha histórica do capital, como forma de combater a alienação e a
desumanização nas formações individuais.
De acordo com a exigência de uma educação concebida para uma
práxis revolucionária, uma educação omnilateral se apresenta como
mediadora entre as necessidades da classe trabalhadora e os dramas
históricos da humanidade mergulhada na sociedade que se sustenta através
da exploração do homem pelo homem. Para estudiosos como Krupskaya,
Pistrak, situados no processo da Revolução Russa (1917), e Tonet,
159
estudioso da educação na particularidade brasileira, indicam que somente
numa sociedade emancipada o ser humano conseguiria desenvolver a
experiência da educação em todos os sentidos, isto é, uma educação
onmilateral. Numa sociedade capitalista, a trava para que se desenvolva
uma educação integral, no sentido onmilateral, é a propriedade privada e
uma divisão social do trabalho, visando ao lucro. Uma sociedade
emancipada do capital exigiria outro modelo educacional. A educação dos
sentidos seria alavancada pela superação do trabalho alienado, libertaria o
potencial cognitivo acumulado historicamente na produção, nas ciências,
nas artes, na cultura, na educação, na linguagem, na alimentação, na
sexualidade, no lazer, entre outros complexos, em direção a outros modos
de comportamento, de conhecimentos e habilidades, valores e voltadas a
necessidades genuinamente à humanidade ao invés de ser direcionada ao
mercado.
Os intelectuais e militantes de vanguardas dos partidos operários
contribuíram na construção de propostas políticas de educação para os
trabalhadores. A teoria marxista, situada no campo da luta pela
emancipação da classe trabalhadora, contribui para entender o que de fato
representa essa luta na esfera educativa. Embora Marx não tenha dedicado
seus estudos a um postulado da pedagogia, suas contribuições rebatem no
campo educacional. Após a Revolução Russa em 1917, a recuperação
histórica da obra de Marx é retomada. Sua difusão acontece limitada a
muitos problemas históricos, o peso que o marxismo passou a exercer nas
lutas políticas atravessou o século XX em diversos países: na Revolução
Russa, nas lutas do Partido Comunista Italiano e as contribuições de
Gramsci, na Revolução cubana e seus reflexos pelas sociedades do
Ocidente.
A revolução russa, por exemplo, proporcionou o cenário para
lançar propostas educativas que se vinculassem com a teoria social
160
marxista. Embora o contexto histórico pós-revolução, com ascensão de
Stalin, tenha sufocado muitas iniciativas, as experiências lançadas e
experimentadas podem ser refletidas e analisadas a fim de extrair um
aprendizado da experiência educacional que contribua com o processo
emancipatório frente aos grilhões do capital.
Ao longo da tradição marxista, especialmente quando a Revolução
Russa comunista saiu vitoriosa, o debate em torno das concepções de Marx
sobre homem, sociedade, trabalho, alienação, emancipação, práxis e outros
elementos de sua obra motivou a defesa de Escolas do trabalho ou de uma
pedagogia socialista. Entre os defensores mais destacados temos a
Krupskaya, o Pistrak, Shulgin na escola soviética e Gramsci na Itália. Essa
proposta visava aplicar os pressupostos teóricos lançados por Marx em uma
escola unitária no contexto revolucionário, isto é, das condições de
transformação-superação tanto da sociedade burguesa, quanto da escola
que a representa e vice-versa.
A escola unitária é concebida em oposição às escolas destinadas a
classes diferenciadas, uma escola preparadora de uma elite dirigente,
intelectual e outra de escola preparatória para os trabalhos manuais,
dissociando teoria e prática. De acordo com Kruspskaya (2017), a escola
dividida entre os que governam e os governados, os que administram e os
que executam, uma escola reprodutora da divisão de trabalho intelectual e
trabalho manual é típica da sociedade de classes e da propriedade privada.
Para a autora, a educação unilateral deve ser substituída pela escola
multilateral. Para isso, ela empregou o termo politecnia cujo acento
principal é tomar o sentido multilateral da proposta de Marx de fazer um
ensino teórico e prático.
Esse aspecto teórico e prático foi também desenvolvido por Pistrak
(2011, p. 30). O princípio do trabalho educativo é um dos temas que se
destaca na obra do educador russo.
161
O trabalho na escola, enquanto base da educação, deve estar ligado ao
trabalho social, à produção real, a uma atividade concreta socialmente
útil, sem o que perderia seu valor essencial, seu aspecto social,
reduzindo-se, de um lado, à aquisição de algumas normas e técnicas, e,
de outro, procedimentos metodológicos capazes de ilustrar este ou
aquele detalhe de um curso sistemático. Assim, o trabalho se torna
anêmico, perderia sua base ideológica.
Para o autor, a pedagogia revolucionária como resultado de uma
teoria revolucionária, fornecerá os subsídios teóricos necessários para dar
um sentido determinado à formação dos jovens. Trabalhar coletivamente,
analisar os problemas como organizador, aptidão para criar formas eficazes
de organização eram as qualidades a serem exploradas.
Essas são apenas indicações muito sintéticas sobre a pedagogia
socialista. Esse tema é de grande relevância para o debate das propostas
sobre educação para além do capital. Porém, assumimos nossas limitações
em aprofundar esse tema, pois podemos fazê-lo sem o devido
amadurecimento e sem integrá-lo ao recorte do nosso objeto. Por
enquanto, temos o compromisso de analisar criticamente a proposta das
políticas educacionais e descortinar os interesses que elas carregam.
Registramos que a pedagogia socialista pode ser um ponto de partida que
se contraponha à educação burguesa que o Estado encaminha. Esse registro
é importante para indicar que são as lutas da classe trabalhadora contra o
capital que fazem ecoar as concepções marxistas sobre o campo político-
pedagógico, pois ele também é reflexo da luta de classes na sociedade.
A relação trabalho e educação que buscamos desenvolver até aqui
está relacionada ao nosso objeto. No âmbito da relação capital-trabalho no
capitalismo industrial, os contornos históricos provocaram mudanças na
esfera educativa. A dualidade educacional que acompanhou o
desenvolvimento da sociedade de classes, teve que se adequar à
162
reestruturação da divisão do trabalho cunhada pela revolução industrial. A
esfera educacional restrita, no âmbito escolar, desdobrou-se em dois novos
ramos: o ensino propedêutico e o profissional. Essa dicotomia põe em
marcha um processo de diferenciação educacional e, com efeito, absorve as
relações de reprodução da força de trabalho na sociedade de classes
burguesas.
Para nosso estudo, entender a relação entre dualidade e suas formas
dicotômicas é fundamental para compreender o movimento de reformas
educacionais, no contexto da particularidade brasileira, ocorrido nacada
de 1990 e inícios dos anos 2000. Elas já se encontram inseridas no contexto
de crise estrutural do capital, conforme as teses de István Mészáros. Nessas
condições, o capital busca a todo custo reestruturar-se para recuperar seus
padrões de acumulação lucrativa, repercutindo, por sua vez, no complexo
educacional. Na próxima seção deste capítulo, iremos abordar as relações
trabalho e educação a partir do contexto da crise estrutural do capital e do
regime de acumulação, que põe em marcha a redefinição das funções do
Estado frente à reestruturação produtiva, ideológica e à necessidade do
capital em ajustar os complexos sociais às suas demandas.
No capítulo 3, iremos aprofundar as raízes históricas da dualidade
educacional e seus desdobramentos. A dicotomia como forma de
manifestação dessa dualidade se relaciona com o estágio do modo de
produção, isto é, com o desenvolvimento das forças produtivas, o que nos
permitirá situar a evolução da relação trabalho e educação e seu contexto
na particularidade brasileira relacionando-a com a universalidade da
produção capitalista.
163
A dualidade educativa transplantada na particularidade brasileira
No Brasil, diferentemente do que acontecia na Europa no decorrer
do século XIX, o processo de industrialização se deu tardiamente. As
fábricas açucareiras estavam vinculadas à atividade agrícola exportadora.
Existem registros históricos durante o período imperial de iniciativas para
estimular a produção industrial, porém a estrutura socioeconômica ainda
estava baseada no modelo colonial. Os estabelecimentos industriais que
surgiram eram manufaturas que atendiam demandas internas em escala
restrita, exceto algumas iniciativas da segunda metade do século XIX,
consignadas ao Segundo Reinado Imperial, como as empreendidas por
Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá. Sua atuação, no período
experimentou êxito, foi amparada pela combinação indústria e mercado
financeiro, capital nacional e capital internacional, portanto, uma forma
mais complexa de atuação econômica. Alguns anos depois, as empresas
declinaram e o barão de Mauá foi à falência.
Como a escravidão perdurou, como base de trabalho do sistema
produtivo, também os processos educativos, manifestando ensino
profissionalizante, limitavam-se a poucas camadas da sociedade e quando
recaíam sobre os mais pobres, o direito à escolarização era impregnado pela
ideia assistencialista-moralizante. Os órfãos e pobres deveriam receber
educação não por direito, mas como favor que as classes dominantes lhes
prestavam. Atemorizados pelas diversas insurreições operárias na Europa,
a restrição ao ensino era um meio de manter os pobres longe das ideias
subversivas insurrecionalistas. O desejo da classe proprietária era a
manutenção submissa das modalidades de trabalho aqui existentes.
O trabalho escravo passou a ser proibido formalmente com a Lei
Áurea, após séculos de lutas e resistências em mantê-lo e em aboli-lo. Isso
164
foi feito nos últimos momentos de respiro da Monarquia Imperial,
entretanto, as transformações na composição social brasileira não foram
imediatas. A sociedade brasileira na época da abolição era composta por
classes sociais bastante distintas: os grandes proprietários, herdeiros do
sistema político chamado de sesmaria, a elite rural que ocupava espaços
não somente na economia da produção rural, como alargava caminhos
para os setores de cargos públicos administrativos e militares, chegando a
ocupar posições importantes e decisivas na sociedade, garantindo
condições de continuidade do poder (PRADO JR., 2006; FERNANDES,
2008b).
Do outro lodo, estavam os subjugados à má sorte, os negros e
mulatos, mestiços, uma grande parcela da sociedade, sem direitos, sem
condições básicas de sobrevivência. Como categoria social, recém-criada
pela abolição, a ordem econômica e social continuou excluindo esses
trabalhadores das tendências modernas de expansão do capitalismo na
época (FERNANDES, 2008b).
No início do período republicano, o advento da sociedade de
classes no Brasil, com trabalho assalariado livre, a opção dos grandes
proprietários de terras e dos empresários da instria pela força de trabalho
europeia, permeia a exclusão e todo tipo de sorte aos trabalhadores. As
ofertas escolares limitaram-se a capitais, cidades e vilas mais importantes e
o ensino propedêutico com duração e apoiado em conhecimentos
científicos eram restritos. A escolaridade, de modo geral, era um fenômeno
social para poucos.
A dualidade do sistema educacional brasileiro, se, de um lado,
representava a dualidade da própria sociedade escravocrata, de onde
acabara de sair a República, de outro, representava ainda, no fundo, a
continuação dos antagonismos em torno da centralização e
165
descentralização do poder. A vitória dos princípios federalistas que
consagrou a autonomia dos poderes estaduais fez com que o Governo
Federal, reservando-se uma parte de proporcionar educação à nação,
não interferisse de modo algum nos direitos reservados aos Estados, na
construção de seu sistema de ensino (ROMANELLI, 2013, p. 43).
Essa dualidade é uma marca histórica da estrutura socioeconômica
desde o período colonial e foi aprofundada pelo Estado Imperial. Para a
autora, o ensino secundário organizado nesse período foi moldado para
atender às demandas de classes tendo como escopo e filtro quem ascenderia
ao ensino superior. Portanto, o ensino secundário, propedêutico, foi
organizado em função de que fosse uma preparação para as poucas
faculdades fundadas pelo poder estatal. Isso se configurou pela separação
de funções, pelo poder monárquico central, atribuídas às províncias pelo
Ato Adicional de 1834. Caberia a estas legislar sobre a instruçãoblica
em estabelecimentos próprios, porém apenas o poder central poderia
legislar e promover o Ensino Superior nas faculdades de Direito e
Medicina e nas Academias. Para Romanelli (2013, p. 40), isso suscitou
uma dualidade de sistemas com superposição de poderes (provinciano e
central) relativamente ao ensino primário e secunrio”. Este último
destinava-se à preparação dos candidatos às faculdades, fator que foi
determinante para influenciar o conteúdo humanista, academicista, avesso
ao ensino profissionalizante.
No curso da história, conflitos e contradições se acumularam tanto
nas relações econômicas internas quanto externas provocando rearranjos
políticos no interior do Estado nacional brasileiro. A elite que apoiava a
monarquia imperial teve seu poder político deteriorado, especialmente na
segunda metade do século XIX, arruinando as bases de sustentação do
regime de D. Pedro II. A crescente força política do bloco republicano,
determinada pelo apoio dos militares e cafeicultores, deu fim à monarquia
166
e estabeleceu a República. A ascensão republicana possibilitou a
reorganização do Estado sob novos valores, sem, contudo, transformar as
bases da economia brasileira, como a produção de base agrícola em função
do mercado externo, preservação da posição dominante do capital
internacional sobre a economia e o desequilíbrio na correlação de forças
entre capital e trabalho (PRADO JR., 2006). A mudança mais profunda
se deu em virtude do fim do regime de trabalho escravo para o regime de
trabalho assalariado (idem).
Diante da estrutura educacional, que vigorava desde a formação do
Estado nacional no século XIX, guardando a dualidade escolar, a vitória
dos republicanos impunha novas necessidades. Estabelecer os valores da
República era uma delas. A recém-implantada ordem buscou expandir os
sistemas escolares, mas ainda assim não alcançava grandes estratos da
população, no limite, atendiam às classes médias. Nesse movimento,
apoiado em valores da filosofia positivista, tanto o trabalho assalariado
como a educação assumiram o significado particular da herança dos
períodos Colônia e Império. A estrutura fundiária do período colonial
continuou praticamente inalterada, contribuindo para que a atuação
política desse grupo dominante se reproduzisse, se renovasse e continuasse
constituindo o espectro mais conservador da sociedade e da política
brasileira no século XX. Durante a primeira metade do século, ocorre a
transição do modelo econômico exclusivamente agroexportador para um
modelo urbano-industrial. A dinâmica dessa transição exigiu que uma
categoria de empresários da agro-exportação migrasse para a produção
industrial. Essa transição não foi espontânea, mas forçada pela conjuntura
capitalista internacional (PRADO JR., 2006).
Nesse contexto, o trabalho assalariado se consolidava, exigindo as
mais diversas e heterogêneas soluções frente à abolição da escravidão. O
recrutamento de uma força de trabalho, a jornada de trabalho, a
167
qualificação profissional e a remuneração ganharam espaço nas relações de
produção, entretanto, somente nos anos 1930 tais medidas ganharam
regulamentações mais específicas a partir do Estado. Até então, por
exemplo, o salário era concebido como recompensa virtuosa ao trabalho,
aumentando na medida que o trabalhador se qualificava (SANTOS,
2017).
No decorrer da primeira metade do século XX, os latifundiários,
os trabalhadores do campo, na sua maioria ex-escravos, viram o impulso
industrial favorecer o surgimento da burguesia industrial, do proletariado
urbano e a ampliação da categoria da burocracia estatal. Na esteira, a
imigração europeia para o Brasil, significaria acréscimo de força de trabalho
branco, frente a um quadro de ocupações predominantemente negro. Isto
é, um processo de branqueamento, já que o negro foi concebido como
sinônimo de atraso pelas elites dominantes, aportaram também elementos
sociais, políticos e ideológicos à força de trabalho aqui existente. A divisão
social do trabalho, com traço negro marcante como princípio de
diferenciação, revela a opção das classes dominantes pelo branqueamento
da força de trabalho. Para Santos (2017), o elemento do branqueamento
expressa na verdade um elemento das relações de produção sob as
condições (neo)colonialistas, o atraso enraizado nas elites dominantes
brasileiras. Estas só concebem o desenvolvimento econômico mediante a
conservação de sua posição tanto econômica, como social e política, isto é,
o desenvolvimento econômico, deve garantir em primeira mão a
conservação de seu status quo e o controle de suas benesses, privilégio seu.
Em contraste, a miséria do atraso deve ser socializada entres as
demais camadas da sociedade. Tal posição representa que o
desenvolvimento só viria se assegurasse o domínio da força de trabalho, ou
seja, mediante a superexploração da força de trabalho, como reboque e
garantias hipotecárias dos fracassos, o prejuízo deve ser socializado. Diante
168
disso, a particularidade histórica brasileira herdeira da colonização e do
trabalho escravo, difunde um espírito cerrado às classes subalternas. A
submissão e obediência conformam valores sociais que não alteram a
ordem social. Foi sob as condições anacrônicas de economia periférica que
a educação profissional seguiu sob as amarras do Estado, a serviço da
produção voltada para a acumulação capitalista, aplainando o espírito dos
trabalhadores para que se conformasse com as migalhas que lhes restavam.
A escolarização como fenômeno restrito à classe dominante
representa esse espírito de classe que a educação carregava. O atraso
brasileiro não vinculava políticas educacionais com o aumento da
escolaridade da população, pois temia que esta se qualificasse, passasse a
concorrer por cargos de governança com seus herdeiros ou mesmo que se
rebelasse contra a minoria proprietária. O espírito de classe, disseminado
no meio rural brasileiro onde predominava o trabalho braçal e, portanto,
a instrução, poderia mais atrapalhar do que contribuir com a força de
trabalho. A educação seria reservada a mulheres, enquanto os homens da
classe trabalhadora pobre, após as primeiras letras e contas aritméticas, já
eram encaminhados ao trabalho.
A educação profissional, de modo geral, vinculada ao meio urbano,
assumiu o conteúdo filantrópico, desde o século XIX, das iniciativas
estatais e das instituições militares e da Igreja Católica. A manutenção das
escolas durante todo o século XIX era feita através de doações e subsídios
blicos (MANFREDI, 2016). O processo de industrialização mais
efetivo no início do século XX eleva a importância das escolas de ofícios.
O Liceu Paulista foi um exemplo disso, chegando a ter 1,2 mil alunos em
um só ano, como apontou Manfredi (idem).
169
A articulação do ensino profissional desenvolvida pelo Liceu de Artes
e Ofícios de São Paulo com as empresas da construção civil permitiu
que a formação ministrada ali fosse considerada da mais alta qualidade
pelos empregadores, o que de um lado, facilitava a obtenção de recursos
públicos e privados, de outro, aumentava a procura de seus cursos pelos
candidatos à aprendizagem de ofícios industriais e manufatureiros
(Ibidem, p. 65).
As transformações econômicas ocasionadas pela industrialização
atrelaram a educação profissional ao setor privado. O setor público
participava com iniciativas incipientes, mas concedia subsídios às
iniciativas privadas estimulando e fortalecendo o vínculo entre as duas
esferas. De modo bastante acolhido e celebrado pela formação social
capitalista quando o público se coloca a serviço dos interesses privados,
favorecendo as classes dominantes. A responsabilidade de implementar o
processo educativo era controlado pelos donos da indústria. A
concorrência pelos cursos aumentava, o que representava uma mudança na
divisão social do trabalho nos Estados que se industrializavam, o que
poderia ser a chance para o ingresso no mercado de empregos da época.
Com a entrada de trabalhadores imigrantes europeus no Brasil,
despontaram propostas diferentes da oferecida pelos empresários. Os
sindicatos não atingiam grandes massas, mas se diferenciavam dos projetos
estatais, privados e filantrópicos. Esses trabalhadores já acumulavam
experiências de trabalho no cenário europeu, experiência esta que se dava
num contexto bastante diverso da luta de classes do que a registrada pela
sociedade brasileira nesse período inicial do século XX. Comunistas e
anarquistas, em maior número, passaram a compor o movimento operário
sindical brasileiro. De acordo com Manfredi (2016), o ideário anarquista
teve um papel de destaque nesse período, pois seria um veículo necessário
para a mudança de consciência, visando a ideais revolucionários.
170
Em contraste, o sentido filantrópico na educação profissional
continuou, principalmente, com as escolas salesianas, que adaptando-se ao
cenário da indústria, pretendiam neutralizar a influência dos ideais
anarquistas e comunistas. Apesar de sua força, Cunha (2000), aponta que
a proposta salesiana para o ensino profissionalizante perde força após 1910.
Isso ocorreu em boa parte porque as escolas salesianas direcionaram sua
proposta para o ensino secundário propedêutico, visando atender às elites
e setores importantes da classe média urbana.
Para Kuenzer (1994, p. 88), foi em 1909 que a formação
profissional foi assumida como responsabilidade do Estado por meio da
criação das escolas de artes e ofícios, como política pública ofertada aos
pobres e desvalidos de sorte. Lembra Santos (2017) que essa medida
tramitou durante um longo período e apenas foi promulgada pelo
Presidente Nilo Peçanha. Essa medida se estendia a todas as capitais
brasileiras, porém, diferentemente, para “as elites havia outra trajetória: o
ensino primário, seguido pelo secundário propedêutico, completado pelo
ensino superior, este dividido em ramos profissionais” (Idem).
O traço marcante da educação promovida nos estabelecimentos
públicos e privados no século XIX está marcado pela dualidade
educacional. O ensino restrito, de caráter livresco, retórico e humanista
para a aristocracia vinculava-se à ideia de que o saber era destinado à classe
dominante, até mesmo como desfrute do ócio. Para os trabalhadores,
reservados ao trabalho braçal, serviços manuais e de baixo valor econômico,
a educação geral, lato, cotidiana seria suficiente. Para os demais, localizados
em centros urbanos, a educação profissional impregnada de conteúdo
religioso, por um lado, é destinada a reproduzir ofícios que complementam
as atividades comerciais e manufatureiras. Por outro lado, a classe
intermediária da sociedade, durante o período monárquico, percebeu que
a escolarização poderia ser um instrumento de ascensão social. Ela passou
171
a investir na formação de seus filhos em escolas privadas, de caráter
propedêutico, visando à continuidade e à ascensão ao ensino superior.
Formar o filho “doutor” elevaria o seu status social, posição social que
agregava respeitabilidade e posição econômica para quem não era
proprietário de terras.
173
Capítulo 3
Estado e Educação no Brasil:
Entre a Função Modernizadora e a
Dominação Político-Ideológica
.
Breves apontamentos sobre a relação entre a industrialização atrasada e
as bases da educação profissionalizante na realidade brasileira
Nosso objetivo neste capítulo é expor as condições e contradições
que determinaram a configuração da educação profissional no Brasil,
através da correlação de forças político-econômicas, impulsionada pela
industrialização. No decorrer do século XX, esse processo retoma o
contexto histórico da relação entre a dualidade educacional e as formas
dicotômicas assumidas pelo ensino público brasileiro. A partir de tais
determinações queremos compreender as relações de classes com os
projetos educacionais que daí brotam em nossa sociedade. Para isso,
consideramos o modo de produção engendrado na sociedade brasileira
como capitalismo dependente, subordinado ao capital das economias
centrais, que conta com uma burguesia que busca assegurar seu status quo
através da subordinação associada (FERNANDES, 1972).
Esse movimento pressupõe que nosso objeto está inserido numa
teia de relações históricas que se constituem a partir de sua particularidade,
sem, contudo, deixar de ser um movimento da totalidade, isto é, do
capitalismo no qual nossa sociedade está inserida. O modo como a parte e
174
o todo se relaciona possibilita a concreção do fenômeno histórico (KOSIK,
1976). A educação como um complexo que se movimenta no interior do
modo de produção capitalista, respondendo a determinações da totalidade
em sua particularidade, movimentando-se como momento da reprodução
social. Isso pressupõe compreendermos que educação carrega traços da sua
universalidade e, ao mesmo tempo, assume os contornos do movimento
da práxis onde se realiza. A educação na realidade brasileira contém tanto
os elementos da universalidade, enquanto complexo do ser social, quanto
os elementos da particularidade histórica brasileira.
A historicidade do desenvolvimento dependente, a partir de uma
burguesia subordinada e associada, possibilita analisarmos a relação entre
capital, trabalho e educação, especificando a educação profissional e o
modo como essa relação e suas contradições tomam assento na fase de crise
estrutural do capital na virada do milênio.
Na totalidade, o padrão que marca o capitalismo atual é seu estágio
de crise estrutural, pois tendo atingido seus limites estruturais, as
possibilidades de expansão para recuperar padrões de lucratividade se
tornam cada vez mais problemáticas. A investida se dá no estabelecimento
de padrões de acumulação e reprodução social através da reestruturação
produtiva flexível, do neoliberalismo no cenário de mundialização
financeira do capital. Esse movimento determinante sobre a divisão social
do trabalho, nas funções e demandas que os complexos sociais devem
atender e na dinâmica de atuação interna e externa dos Estados nacionais,
resulta em ajustamentos, realizados por meio de reformas que atingem
diversas esferas da sociedade.
Outra característica que a crise amplificou é a contínua
destrutividade das forças produtivas, despertando processos de
precarização nos diversos âmbitos societais, o que afunila cada vez mais a
capacidade civilizatória do sistema de mediações do capital (MÉSZÁROS,
175
2011). Em curso, está em jogo a questão de vida ou morte do modo de
produção capitalista, sem apresentar, dentro da ordem, uma solução que
não seja o efeito centrífugo que suga a humanidade para a barbárie social
e, por isso, recorre ao Estado para socializar suas perdas e implementar
medidas sob manto do aparato legal estatal. Essas características universais
do capital se desdobram no âmbito da particularidade histórica de cada
Estado nacional. Desse modo, iremos expor, resgatando historicamente, o
contexto de luta de classes no âmbito nacional, articulando as
determinações, acumulação flexível, neoliberalismo e a inserção brasileira
na economia mundializada. Nas condições da crise estrutural do capital, a
educação, mais especificamente a educação profissional, tem sido alvo das
investidas do mercado financeiro e das disputas que configuram os
desdobramentos das lutas políticas entre as classes sociais.
Para análise do nosso objeto, buscamos agora expor os vínculos
entre as disputas que se desenvolvem no âmbito da implementação das
políticas educacionais e a característica histórica brasileira de uma suposta
modernização, na aparência, enquanto processo de conservação da
dominação de classe. Na particularidade brasileira, as disputas se
desenvolvem historicamente no contexto de capitalismo periférico e de um
processo de formação da burguesia subalterna ao capital externo
(FERNANDES, 1976). Esses elementos, como demonstram Prado Jr.
(2006; 2011), Fernandes (1972; 1976), Oliveira (2013), Mazzeo (2015),
compõem o fenômeno social do atraso de nossas elites. E isso rebate nas
reformas educacionais nos anos 1990. Sob o manto neoliberal, as políticas
educacionais tinham que absorver novas demandas, condensando novas
relações entre o poder público e a esfera privada, mas sem romper com
determinados padrões da elite atrasada. Por isso, consideramos cabível
retomar, em breves apontamentos, o panorama da educação profissional
no Brasil a partir da etapa de industrialização iniciada na década de 1930.
176
A partir dela aumentou a necessidade do Estado brasileiro de
ofertar uma educação profissionalizante capaz de promover o
desenvolvimento econômico. Nesse período, projetos educacionais foram
disputados entre educadores liberais e conservadores, resultando nas
reformas educacionais. Nesse processo, a evolução histórica, desigual e
combinada, modificou as relações entre as oligarquias políticas e o governo
federal, e o modo como a disputa pela hegemonia passou a se desenvolver
na esfera educacional: a derrota militar dos paulistas na Insurreição
Constitucionalista de 1932, o golpe militar de 1964, apoiado por
empresários e setores da sociedade civil, e a promulgação da Constituição
de 1988.
Essa abordagem histórica se faz necessária para entendermos por
que nosso objeto de investigação foi reformado por decretos presidenciais,
dispositivos autocticos, em um momento político após a Constituição
1988, sob a qual designou uma democracia representativa de cunho liberal.
Por esse caminho, os agentes políticos evitaram o debate público amplo de
um assunto que interessa a toda sociedade. Nosso recorte a partir da década
de 1930 é necessário, pois a partir dessa década os contornos e funções do
Estado nacional se tornaram mais bem definidos, assim como a
industrialização tomou um novo impulso e, por fim, as reformas
educacionais que foram implementadas e atribuíram uma configuração
educacional, especificando a educação profissional e o ensino secundário.
A derrota na Insurreição Constitucionalista reorganizou a luta
política da oligarquia paulista em torno de um projeto de hegemonia no
Brasil. Os paulistas, para os quais amargaram os efeitos da crise de 1929,
não aceitaram o golpe que impediu Júlio Prestes de assumir a Presidência
da República (FAUSTO, 2004). A desvalorização do café teve como efeito
a decadência de um ciclo político hegemonizado pela elite cafeicultora
177
paulista. A ascendência de outra composição política com Golpe de 1930
29
encerrou um ciclo de domínio desde os últimos anos do século XIX. O
grupo que ascendeu, formado por representantes de outros segmentos
sociais de várias regiões brasileiras, sob a liderança de Getúlio Vargas,
formou a Aliança Liberal e promoveu importantes mudanças nas
atividades econômicas, no papel do Estado frente a demandas sociais,
principalmente nas cidades industrializadas. Nesse contexto, as oligarquias
políticas de São Paulo miraram um projeto político de desenvolvimento
econômico, a partir da instria, e uma frente de investimentos na cultura,
na educão (Crião de Universidades), colocando-se como vanguarda de
um projeto nacional (BATISTA, 2015a; MANFREDI, 2016).
Com Vargas, o projeto nacional-desenvolvimentista passou a ser
gestado, o que acentuou o papel do Estado como aglutinador das
demandas sociais e, principalmente, econômicas. A utilização de recursos
públicos estatais, isto é, um capital estatal, passaria a assumir a tarefa de
responder por uma instria de base que a burguesia e a elite latifundiária
não conseguiram assumir. E é justamente aqui que anotamos o
crescimento da burocracia estatal, fazendo emergir a categoria que disputa,
parasita, perpetua-se em cargos dos aparelhos do Estado capilarizando o
domínio das classes dominantes sobre as classes subalternas por dentro do
Estado.
29
A “Revolução de 1930” foi como ficou conhecido o golpe de Estado liderado por grupos
periféricos da sociedade brasileira descontentes com a hegemonia paulista, haja vista seu domínio
desde os primeiros anos da República brasileira (1889-1930).
Consideramos que o termo
Revolução não seja o mais apropriado por não refletir transformações profundas e radicais na
estrutura da sociedade brasileira naqueles eventos histórico-políticos. Segundo autores como Sodré
e Furtado, embora com diferenças entre suas abordagens teóricas, o momento de 1930 define um
novo arranjo da política brasileira, refletindo ainda mais o estágio em que se encontravam e os
anseios para fazer parte do Estado. Indicamos, portanto, o termo “revolução de 1930” pelo mesmo
ser de uso corrente na historiografia brasileira.
178
Essa burocracia é oriunda, em sua grande maioria, principalmente
da elite agrária e da burguesia industrial acrescida, em menor número, por
pessoas advindas de diferentes estratos das classes médias que tiveram
acesso à instrução escolar. A concepção de Estado como aglutinador e
árbitro dos interesses das classes, embora pareça atender ao interesse
comum, é, no azimute do jogo político, um artifício para dominação de
uma classe sobre a outra. Nesse sentido, a tecnoburocracia estatal, que veio
a partir da “revolução de 1930”, representava um novo ciclo de dominação
de classes e frações de classes excluídas do processo político-estatal que
prevaleceu na república brasileira entre 1889 e 1930.
Após o golpe da Aliança Liberal sobre a oligarquia paulista em
1930, um longo período político foi constituído sob a liderança de Getúlio
Vargas. Esse ciclo vai até 1945, quando se encerrou a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945) e uma nova ordem mundial emergia do mundo em
guerra. Após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), surgiu no mapa
europeu a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Os Estados Unidos
assumiram o protagonismo geopolítico que antes era resguardo aos
europeus. A crise de 1929 atingiu a estrutura produtiva capitalista, abrindo
espaço para os defensores do intervencionismo do Estado na área
econômica. Gradativamente o Keynesianismo, nacionalismos totalitários
(fascismo e nazismo) e o socialismo soviético dividiram, cada um a seu
modo, a cena histórica. A escalada fascista para assumir a hegemonia do
bloco capitalista logo despertou uma corrida em direção a uma Segunda,
ainda mais bárbara e destrutiva, Guerra Mundial.
Na particularidade histórica brasileira, a Aliança Liberal reordenou
o papel do Estado e ensaiou um abraço com a democracia liberal, mas
acabou caindo mesmo na tentação de um Estado inspirado no fascismo,
pelas características personalistas populistas de Vargas, um Estado forte,
com um líder mediador dos interesses de classes e apaziguador dos conflitos
179
sociais. Sem renunciar à violência que o fez chegar ao poder, Vargas
conteve as tentativas políticas de mudança de regime e avançou para um
regime político fechado com o Estado Novo (1937-1945).
No âmbito político, a oligarquia paulista hegemonizou o poder
controlando o processo político para Presincia da República. Com a
crise econômica de 1929 e um processo eleitoral bastante contestado pelos
opositores, a Aliança Liberal põe fim ao ciclo político dos fazendeiros
paulistas. Para se contrapor ao grupo que dominou o poder na esfera
federal, a oligarquia paulista passou a lutar por um projeto de hegemonia
que passaria a articular o domínio econômico, sendo ele o estado da
federação mais industrializado, com as esferas da ciência, da educação e da
cultura. As experiências educacionais, criando Universidades, Museus e
Teatros, buscavam a conexão com as sociedades de capitalismo
desenvolvido. A educação profissional teve um papel nesse processo, pois
as experiências da Escola Profissional Mecânica, do Liceu de Artes e
Ofícios, do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (CFESP)
foram articuladas com a organização científica do trabalho, isto é, com
métodos tayloristas (MANFREDI, 2016).
Nesse contexto, destaca-se a criação do Instituto de Organização
Racional do Trabalho (IDORT), vinculando alguns segmentos
intelectuais com o projeto da burguesia paulista. Roberto Simonsen, líder
e ideólogo da burguesia industrial, articulado com Roberto Mange
30
, Aldo
Mário de Azevedo e Armando Sales Oliveira defendiam a constituição de
uma sociedade racional. A rivalidade política latente com o governo federal
vai se arrefecendo quando Vargas dá o golpe e implanta o Estado Novo.
Através desse movimento, destaca Saviani (2010, p. 192),
30
Roberto Mange era engenheiro e professor, trabalhou na Escola Profissional de Mecânica e no
Liceu de Artes e Ofícios. Ele era um convicto defensor dos métodos tayloristas e um dos
educadores que participou da fundação do IDORT (BATISTA, 2015).
180
O IDORT exerceu influência decisiva na formulação das políticas
governamentais em todo o período pós-Revolução de 1930 que se
estende até 1945, marcando fortemente a reorganização educacional,
não apenas no que se refere ao ensino profissional, no qual sua
orientação foi decisiva. Roberto Mange e Lourenço Filho atuaram
como consultores na elaboração das Reformas Capanema de 1942 e
1943.
No poder, e se opondo aos paulistas, Vargas criou o Ministério da
Educação e Saúde Pública em 1930; como primeiro ministro da pasta,
Francisco Campos implementou uma série de mudanças, criando, entre
outros, o Conselho Nacional de Educação e o ensino secundário
(ROMANELLI, 2013). Na relação histórica entre o público e o privado
no Brasil, um capítulo reservado à educação profissional veio justamente
nas reformas educacionais ante as mudanças que se iniciaram em 1930 e
atravessaram o período do Estado Novo (1937-1945), tutelado por Vargas
e apoiados pelas elites empresariais e a cúpula das Forças Armadas.
Numa primeira fase, rivalizando com a política federal de Vargas,
alguns segmentos da burguesia paulista buscaram construir seu projeto de
hegemonia. Para Batista (2015a), foi na década de 1930 que os industriais
articularam com maior intensidade o ensino profissionalizante na forma
taylorista de organização científica do trabalho. Para o autor, a criação do
IDORT representa o interesse da burguesia paulista em um projeto
pedagógico para além dos vínculos com a produção, buscando
implementar uma direção moral, cultural e ideológica para toda a
sociedade (idem). A relação entre os intelectuais do IDORT, com bom
trânsito entre os industriais paulistas, estreita os laços entre esses e os
intelectuais do movimento Escola Nova. Para Batista (2015b), essas
relações são reflexos da proximidade de Fernando Azevedo, Anísio
181
Teixeira, Lourenço Filho,
31
que foi diretor do IDORT, e Roberto Mange,
líder do movimento educacional paulista (BATISTA, 2015b). Este último
era prestigiado tanto pela burguesia industrial quanto por intelectuais
escolanovistas, além de outros professores da Universidade São Paulo
(USP), recém-criada.
Pioneiros da Escola Nova, o trabalho de diversos educadores
fundadores do IDORT, como Roberto Simonsen e Roberto Mange,
desenvolveu-se no contexto político no qual Vargas adotava medidas para
se opor à burguesia industrial paulista que apoioulio Prestes. A evolução
dos fatos políticos, todavia, tratou de traçar caminhos distintos para as
lideranças do Manifesto escolanovista e do IDORT. Enquanto Fernando
Azevedo e Anísio Teixeira foram mais perseguidos pelo Estado Novo de
Vargas, Lourenço Filho e Roberto Mange foram consultores da Reforma
Educacional Capanema (1937-1945). Saviani (2010) captou o sentido do
Estado Novo para os integrantes do IDORT que foi o de consagração da
vitória das ideias que norteiam as atividades da burguesia paulista.
Nessas reformas o Estado brasileiro oficializou a dicotomia entre
ensino profissional e propeutico. O primeiro seria destinado aos pobres,
enquanto o segundo era reservado à formação das elites dirigentes. Apenas
o ensino propedêutico-acadêmico permitia o acesso ao ensino superior. O
ensino secundário se dividia em dois segmentos, expressando o
antagonismo pela forma dicotômica entre profissionalizante e
propedêutico, a partir de uma estrutura dualista. A divisão entre trabalho
manual e trabalho intelectual era bastante evidente.
Os estudos de Manfredi (2016) indicam que muitas iniciativas
operárias em torno do ensino profissional disputavam a formação
31
Lourenço Filho foi responsável pela reforma do ensino ocorrida no Estado do Ceará entre 1922
e 1924. Foi um dos fundadores do IDORT e, ao lado de Anísio Teixeira e Fernando Azevedo,
figurou entre os principais nomes do Movimento Pioneiros da Educação Nova (1932).
182
ideológica dos trabalhadores. Esse fato incomodava as elites dominantes,
principalmente, nos principais centros urbanos do país, com destaque para
São Paulo e Rio de Janeiro (distrito federal). A União dos Gráficos de São
Paulo, a União dos Trabalhadores do Gráficos do Rio de Janeiro, União
dos Alfaiates (Rio de Janeiro) e a Associação dos Funcionários Bancários
do estado de São Paulo desenvolveram cursos voltados aos ofícios. O
domínio dos cursos de iniciativa operário apoiava-se em ideias libertárias,
anarquistas e comunistas.
Após a década de 1930, as iniciativas do Estado eram voltadas à
perseguição, cerceamento, proibindo os sindicatos de iniciativa autônoma,
apenas os sindicatos oficiais eram permitidos. Segundo Manfredi (2016),
o sindicalismo oficial visava impedir a proliferação de experiências
autônomas, causando o fim das atividades políticas, culturais e recreativas.
A força do Estado se mostra mais uma vez como instrumento da
dominação de classe, permitindo a direção, em determinado horizonte, à
concepção de educação profissional para o trabalho e emprego, eliminando
as práticas ideológicas autônomas, reforçando os esquemas formativos a
partir da “organização científica do trabalho” (Idem).
A Reforma Capanema para a educação pública regulamentou as
Leis Orgânicas do Ensino. As transformações econômicas, sociais e
políticas ao longo do século XX demarcaram claramente a dicotomia
educativa e a política estatal de formação profissional para a classe
trabalhadora. A partir das concepções defendidas pelo IDORT, pode-se
compreender, segundo Batista (2015a), que a estratégia era formar
trabalhadores brasileiros, com a finalidade de diminuir a necessidade de
importar mão de obra estrangeira, geralmente contestadores das relações
de exploração mantidas entre capital e trabalho no Brasil.
No período do Estado Novo somaram-se esforços nas classes
dominantes e no governo para implantar no país um projeto de
183
nacionalização da industrialização. Como exemplo, podemos ilustrar o
Decreto-lei nº 4.073 de 30 de janeiro de 1942, Lei Orgânica do Ensino
Industrial, a Lei Orgânica do Ensino Comercial nº 6.141 de 06 de
dezembro de 1942. O Decreto-lei 4.048, de 22 de janeiro de 1942, criava
o Serviço Nacional de Aprendizagem (SENAI), destinado a organizar
escolas de aprendizagem em todo o país (ROMANELLI, 2013). O
SENAI, em convênio com o setor industrial, era representado pela
Confederação Nacional da Indústria (CNI) e mantido pelas indústrias, que
eram obrigadas a uma contribuição mensal destinada às escolas de
aprendizagem (idem).
A industrialização iniciada na década de 1930 aumentou a
necessidade do Estado brasileiro em ofertar uma educação
profissionalizante capaz de promover o desenvolvimento econômico.
Nesse período, projetos educacionais foram disputados entre educadores
liberais e conservadores, resultando nas reformas educacionais. Feitas essas
observações podemos indicar, segundo Romanelli (2013), que as camadas
médias e superiores da sociedade brasileira buscavam o ensino secundário
e superior como meio para acrescentar prestígio social e manter o status
quo. As escolas primárias e profissionais eram procuradas pelas camadas
populares que requeriam formação com maior urgência a fim de exercerem
um ofício.
O ano de 1945 também assinalava o fim do Estado Novo tutelado
pelas classes dominantes que apoiavam Vargas. Nesse período, o projeto
de industrialização nacionalista reforçou os los entre o Estado e as classes
sociais, a elite dominante se organizou e fortaleceu suas bases de controle
político para consentir o retorno à democracia liberal.
O período entre 1946 e 1964 no Brasil, tido como democrático,
significou o retorno das instituões do Estado burguês, reguladas pela
Constituição de 1946. Nesse quadro, os partidos foram legalizados, exceto
184
o Partido Comunista Brasileiro que após um breve período de legalidade,
novamente é posto na clandestinidade pela Justiça do Estado burguês.
Entre 1946 e 1964, os partidos entraram na cena política
novamente: o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) eram de inspiração varguista; a União Democrática
Nacional (UDN) de oposição a Vargas e de cunho liberal e antipopulista,
e havia o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que teve um curto período
de legalidade. Esses partidos tinham uma base ideológica definida, ao
contrário do Partido Social Progressista (PSP), o Partido Democrata
Cristão (PDC), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido de
Representação Popular (PRP), o Partido Republicano (PR) e o Partido
Libertador (PL). Segundo Netto (2014), esses eram partidos de inserção
mais regional que nacional.
Nesse curto período, as instituições do Estado capitalista
funcionaram sob a pressão das lutas políticas e sociais internas e externas.
No plano externo, o governo do general Dutra alinhou-se à ordem
internacional norte-americana, assimilando uma receita liberal e atuação
estatal para que se incrementasse a atuação burguesa nacional e
internacional. Entretanto, a eleição de Vargas em 1950 realinha o projeto
nacionalista em primeira instância, sem com isso realizar nenhuma
mudança revolucionária. O que acontecia era que o capital estatal exercia
monopólio sobre determinadas áreas de recursos naturais, a exemplo dos
minérios e petróleo. Com o suicídio de Vargas, após um período de
coordenada ação política para desgastar o governo e um espectro do
golpismo para destituí-lo, a ação dos golpistas fora abortada por setores da
política, das forças militares e pela pressão de partidos defensores da ordem
democrática, freou-se o movimento golpista.
Em 1955, outra tentativa de golpe foi abortada após a eleição de
Juscelino Kubitschek, um grupo de conservadores com apoio de setores do
185
Exército tentou impedir a posse do presidente recém-eleito, perfazendo um
conjunto de lutas políticas pelo domínio do Estado capitalista, sem, no
entanto, ser necessário respeitar as instituões democráticas. A política,
como acentua Maciel (1999), tornou-se a arena dos impasses tanto das
disputas partidárias quanto dos militares, tanto é que em 1961, o que ficou
conhecido como golpe branco, após a renúncia de Jânio Quadros, eleito
presidente democraticamente, abrindo a condição para a posse de João
Goulart
32
, então Vice-presidente. O movimento do golpe branco teve na
UDN, setores conservadores e militares seus principais articuladores e
visavam impedir a posse de João Goulart. No entanto, a mobilização
popular, a partir de Leonel Brizola, que era governador do Rio Grande do
Sul naquele momento, seguido pelo governador de Goiás, Mauro Borges,
a posição legalista do general Machado Lopes e de setores do Exército que
estavam na reserva se posicionaram contra o golpe que impedia a posse de
João Goulart. Essa mobilização dispersou a sanha golpista parcialmente,
pois um acordo amorteceu a querela: João Goulart tomaria posse desde
que aceitasse a substituição do regime presidencialista pelo parlamentarista
(NETTO, 2014).
Diante de um Congresso Nacional amplamente conservador, a
posse de João Goulart em um regime parlamentarista significava a ruptura
da legalidade estabelecida pela Constituição de 1946. Para Netto (2014,
p. 31), “o golpe branco, sendo um frustrado “ensaio geral” do que ocorreria
em 1964, já indicava a conspiração antidemocrática que vinha desde a
década anterior avançando nas sombras”.
32
De acordo com a Constituição de 1946, a eleição para os cargos de Presidente e Vice-presidente
se daria de forma independente, isto é, poderiam ser votados tanto o Presidente de uma chapa
quanto o Vice-presidente de outra. Portanto, nas eleições de 1960 foram eleitos Jânio Quadros para
Presidente, candidato da UDN e para Vice-presidente saiu vitorioso João Goulart do PTB, partido
de base política varguista. Diante da renúncia de Jânio Quadros, os governistas, encabeçados pela
UDN, se movimentaram para impedir a posse de João Goulart.
186
Nesse cenário, o fator externo exerceu também influência
preponderante. A dinâmica econômica capitalista brasileira insere-se numa
condição periférica e dependente do capital monopolista internacional.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek (JK) (1956-1961) houve um
momento de breve alívio na área econômica. O impulso fora dado pelo
Plano de Metas que associava capital estatal e abria para o capital
monopolista internacional a instalação de indústrias de bens consumo,
desde eletrodomésticos a carros e caminhões, enquanto as empresas estatais
continuavam atuando em setores chave de interesse nacional. Ao final do
governo JK, uma crise econômica já atingia os setores produtivos e
financeiros. A dívida externa cresceu e assumiu proporções que o governo
não conseguia liquidar, então a redução da participão do capital estatal
na economia para pagamento dos juros da dívida atingiu a economia
nacional e a crise aumentou.
A escalada golpista, freada em 1961, voltou em 1963 com forças
políticas conservadoras, instituões da sociedade civil como a Igreja
Católica, do meio empresarial, como a FIESP, e os partidos políticos de
direita estavam cada vez mais fortes em torno do golpe. As Reformas de
Base do governo João Goulart eram travadas e as forças políticas
nacionalistas e democráticas eram francamente cercadas por todo o
conservadorismo e propaganda ideológica anticomunista. O governo João
Goulart, apesar das Reformas de Base, não era um governo revolucionário
e muito menos comunista. Era um governo de composição de forças
democráticas e nacionalista, trabalhista e com apoio de segmentos da
esquerda. Todavia, a contrarrevolução preventiva entrou na agenda e a
mobilização conservadora passou a contar com amplo apoio das Forças
Armadas. O governo “Jango” caminhava para resistir à sanha golpista mais
uma vez com o comício de 13 de março de 1964, que reuniu cerca de 200
mil pessoas de acordo com os documentos do Arquivo Nacional
187
(NETTO, 2014). Antes de seguir para o palanque, João Goulart assinou,
no Palácio das Laranjeiras, o decreto da Supra (Superintendência Regional
de Política Agrária) - que autorizava a desapropriação de áreas ao longo das
ferrovias, das rodovias, das zonas de irrigação e dos açudes e o decreto
que encampava as refinarias particulares de petróleo (ARQUIVO
NACIONAL).
Entretanto, a conspiração avançou na clandestinidade e, perante a
coordenação da Rede da Democracia, “saltou à luz do dia”, nos termos de
Netto (2014). Os golpistas civis e militares contavam com o apoio norte-
americano às reuniões para que João Goulart capitulasse e assinasse um
acordo que travava as reformas de base. Diante da não inclinação de Jango,
os militares deflagraram o golpe sobre as instituições liberais democráticas.
A atmosfera de caos e subversão, criada pela Rede da Democracia, era
liderada pelos grandes meios de comunicação, Roberto Marinho, por
exemplo, e o parlamentar Carlos Lacerda favoreciam um ambiente aos
militares. Em 1º de abril de 1964 os militares decretaram o fim do governo
João Goulart.
A transição de um capitalismo competitivo para um capitalismo
monopolista não alterou a posição dependente e periférica da economia
brasileira no cenário internacional. A tendência ao capitalismo
monopolista já se configurava há algum tempo no cenário mundial, mas,
com o Estado brasileiro exercendo forte papel na economia nacional, a
burguesia se viu protegida em momentos de crise pela tutela do Estado que
assumiu sua dívida e sua função principal na ordem do capital, isto é,
investir na indústria de base, bens de capital (bancos estatais), etc.
(FERNANDES, 1976).
Entretanto, a configuração política na forma de oligarquia não foi
suficiente para se formar uma hegemonia burguesa na sociedade. A
diversificação das atividades econômicas na área financeira, no comércio,
188
na instria, isto é, uma nova dinâmica na divisão do trabalho, possibilitou
a emergência de novas camadas no interior das classes sociais, bem como
o aumento do proletariado. Esse aumento e diversificação resultou em
concepções políticas, correntes anarquistas, de socialistas à comunistas,
tornando a esquerda uma força política a ser considerada.
Esse turbilhão de acontecimentos fomentou novas disputas entre
as classes e frações de classe. A classe dominante buscava estabelecer sua
hegemonia e o renunciou a expedientes autoritários (autocráticos) para
atender suas demandas e reprimir qualquer alternativa que viesse da
mobilização popular da classe trabalhadora. Em outras palavras, a “tarefa
de histórica” de consolidar a democracia se revelou muito timidamente na
burguesia brasileira. Nestes termos, o atraso da burguesia brasileira se
reproduz na sua trajetória, passando pela ditadura civil-empresarial militar
e chegando nas reformas dos anos 1990.
Estado brasileiro e as políticas educacionais para a educação
profissional no contexto da autocracia burguesa
Nesta seção, vamos apresentar as características políticas que
delinearam o papel do Estado diante do fenômeno da luta de classes,
considerando a particularidade brasileira. Isso irá contribuir,
posteriormente, para entendermos como as determinações externas e
internas se relacionam de forma interdependente e influenciam no
processo de ajustamento da economia brasileira ao padrão de acumulação
do capital e como esse processo desemboca no âmbito de atuação do
Estado, na luta de classes e seus efeitos nas reformas educacionais e no
ensino profissionalizante. Com esses apontamentos aclarados, abre-se a
189
possibilidade para que, na análise subsequente, tratemos especificamente
do objeto desta investigação.
A teia de relações que envolve a educação profissional evidencia os
desdobramentos da relação trabalho/educação nas condições atuais do
capitalismo, sujeitas às conformações históricas brasileiras, tanto das
relações econômicas quanto dos desdobramentos políticos, efetivo da luta
entre as classes, principalmente no âmbito do Estado. Essa esfera aglutina
a relação público e privado, uma das características mais importantes da
hegemonia burguesa, pois imputa-se ao público de tal forma que
demandas do setor privado são os interesses de todos as classes.
A dominação de classe, que se dá na relação capital e trabalho,
também se reproduz na esfera estatal e esse fenômeno na particularidade
brasileira é marcado por sua posição frente ao capital internacional e como
a burguesia brasileira se afiança ou se submete aos padrões internacionais
e nacionais de acumulação. De acordo com Fernandes (1976), dada a
condição de economia periférica e dependente, a construção de um Estado
nacional e a implantação de modelos de organização econômica inspirados
nas experiências das economias centrais tendiam à saturação. Para o autor,
a característica básica de produção para o mercado externo, assumindo a
primazia sobre o mercado interno, impossibilitou a criação de conexões
entre as bases estruturais e funcionais da economia nacional, acentuando,
ao mesmo tempo, conexões político-econômicas com burguesia de países
de capitalismo desenvolvido. Isso significa que o Brasil “produzia para fora
e consumia de fora”. (idem). Para Fernandes (1976), isso é um dos motivos
que saturam os modelos transplantados das economias centrais do
capitalismo. No entanto, esses aspectos não abortam a implantação do
capitalismo na sociedade brasileira, significa outrossim que modelos de
organização transplantados das economias centrais, ao mesmo tempo em
que saturavam, se associavam a elementos históricos na direção de uma
190
dependência externa em duplo sentido: “subordinação interna aos
interesses dos importadores dos produtos tropicais e gêneros agrícolas e
ligações “preponderantes” com exportadores de bens estrangeiros acabados
que pressionavam o comércio interno” (Ibidem, p. 88)
Para tanto, desde a independência política do Brasil, o mercado
externo controla, subordina e coordena, de maneira associada, a econômica
nacional (FERNANDES, 1976; MAZZEO, 2015), cabendo à burguesia
brasileira um certo grau de autonomia política, porém dependente das
economias centrais que ditam o jogo no mercado internacional. Isso
significa que a burguesia brasileira depende das disposições capitalistas das
potências centrais para integrar a economia internacional. Por outro lado,
analisa Fernandes (1976), na condição de sócio menor e autonomização
política interna, grandes e médios comerciantes e a aristocracia agrária
formam o núcleo central da burguesia brasileira numa quadra histórica
bastante significativa. Esse elemento significou, no âmbito do Estado, o
desenvolvimento burocratizado e patrimonialista. Entretanto, ressalta
Fernandes (idem) que a autonomização não resultou no pós-independência
política em nenhuma mudança revolucionária. A partir dessas bases
históricas, a burguesia nativa associada era constituída em um grau de
dependência externa e atuava junto ao Estado nacional sob qual deveria
gravitar seus interesses.
Os germes do domínio burguês já haviam sido lançados, conforme
Fernandes (1976) e Mazzeo (2015), durante a fase do Império e na
Primeira República (1889-1930). Para consolidar seu domínio, todo um
processo histórico marcou as lutas políticas na heterogênea luta de classes
reunidas nas particularidades históricas do Brasil. Segundo Fernandes, o
poder burguês precisava coincidir com o domínio burguês (idem). A
imposição do domínio da burguesia pode assumir diferentes formas, e uma
191
das mais clássicas é a luta burguesa para fazer do Estado capitalista uma
mediação orgânica de seu projeto de hegemonia.
De acordo com Fernandes (1976), a questão preponderante para a
burguesia brasileira, na condição de país capitalista dependente, foi a
transição de um capitalismo competitivo (concorrencial) para um
capitalismo monopolista. A tendência ao capitalismo monopolista já se
configurava tendência no cenário mundial, mas com o Estado brasileiro
exercendo forte papel na economia nacional, a burguesia se viu protegida
em momentos de crise pela tutela do Estado. A evolução dessa relação fez
do Estado o principal articulador e realizador do papel da burguesia, isto
significa investir na indústria de base e toda a cadeia produtiva de
prospecção, extração, refino e distribuição de petróleo e siderurgia, bens de
capital (bancos estatais), etc. Entretanto, a configuração política na forma
de oligarquia não foi suficiente para se formar uma hegemonia burguesa
na sociedade. A diversificação das atividades econômicas na área financeira,
no comércio, na indústria, isto é, também, uma nova dinâmica na divisão
do trabalho possibilitou a emergência de novas camadas no interior das
classes sociais, bem como o aumento do proletariado.
Nesse sentido, Fernandes (1976) argumenta que a democracia seria
uma ameaça à dominação burguesa, embora a história brasileira evidencie
que de fato a hegemonia da classe dominante não foi ameaçada. Na
verdade, assegura o autor, essa ameaça sempre foi utilizada como
subterfúgio para resguardar a dominação, vide a atualidade brasileira onde
se efetivou sob um projeto reacionário e conservador, sob Bolsonaro
(2018), o projeto de reposição da dominação em mais uma etapa da
contrarrevolução iniciada em 1964.
Sobre esse pretexto, a via política da classe dominante,
principalmente no século XX, é edificada sobre a linha tênue da concepção
de democracia restritiva e representativa, isto é, a forma mais eficaz de
192
dominação burguesa na esfera da política (MAZZEO, 2015; DEO, 2011).
A limitação à participação dos trabalhadores é resultado de uma
democracia representativa e restrita visando conter qualquer possibilidade
de “revolução” tanto “dentro quanto fora da ordem” (idem).
A democracia efetiva seria uma ameaça à dominação burguesa,
ressalta Fernandes (1976). Sob a premissa reacionária, essa ameaça é, para
o autor, um mecanismo de manipulação mediante o temor exagerado das
oligarquias e nacionalismo radical das classes médias. Insiste Fernandes
(idem, p. 213), “as tendências autocráticas e reacionárias da burguesia
faziam parte de seu próprio estilo de atuão histórica”.
A exposição de Fernandes (1976, p. 213) apresenta uma latente
característica da burguesia brasileira que é “o modo pelo qual se constitui
a dominação burguesa e a parte que nela tomaram as concepções da “velha”
e da “nova” oligarquia que as convertem em uma força social naturalmente
ultraconservadora e reacionária”. Os fatos históricos demonstram que a
relação democracia e burguesia nem sempre são coadunadas. Na verdade,
para Moraes (2014), democracia e burguesia são unidades de dois
contrários e, nesse caso, o Estado capitalista pode ou não adotar a
democracia como forma de organização política. Nessa relação pesa muito
mais a correlação de forças entre proletariado e burguesia, prevalecendo a
primazia de um ou de outro.
A burguesia não tem compromisso de princípio com a democracia;
lutando contra a ordem feudal, ela não se batia pela revolução
democrático-burguesa, maso somente pela revolução burguesa. Que
sua realização se dê “pelo alto” (Alemanha) ou através de uma
insurreição popular (França) é secundário para o capital. O caráter
contraditório da democracia burguesa permite compreender que as
diferentes espécies de autocracia burguesa (falando apenas do século
XX: o fascismo, os Estados militares nos países de capitalistas
193
dependentes etc.) não são “exceções” a uma pretensa vocação
democrática do Estado burguês, mas o resultado histórico concreto das
lutas entre as diferentes classes e camadas sociais de um dado país
capitalista (MORAES, 2014, p. 53).
A burguesia pode parecer mais ou menos democrática em um país,
a depender da correlação de forças entre a classe dominante e dominada.
Essa correlação de forças fomentou e sustentou conflitos históricos e
refluxos institucionais desde o processo de independência brasileira
(MAZZEO, 2015). Segundo Mazzeo (idem), toda vez que um projeto
político, cuja composição orgânica tinha a classe trabalhadora como força
motriz, era abortado pelas diversas manobras imputadas pela burguesia,
travando o protagonismo político das classes subalternas. Foi assim no
processo de renúncia de D. Pedro I e na repressão descarregada contra as
revoltas que sucederam a esse período, o golpe da maioridade, a
implantação da reblica e a esmagadora contenção das revoltas sociais,
sob liderança de Vargas, de presidentes eleitos ou sob a tutela dos militares.
Esse constante processo de ir e vir, entre o moderno e o arcaico, o liberal e
o conservador, a democracia e a autocracia, entre o liberalismo e o
bonapartismo, torna-se atributo da burguesia para conter avanços das
classes subalternas, reforçando o caráter atrasado e conservador da
burguesia “autóctone”. As mudanças pelo alto constituem arranjos
políticos institucionais para deixar tudo como está, tal atraso retarda o
avanço da tarefa modernizadora e adentra nas reformas de Estado nos anos
1990 com desdobramentos nas reformas educacionais. Como observa Deo
(2011, p. 35),
194
São processos que reprimem a classe trabalhadora em suas mais
distintas e variadas frações. São mudanças pelo alto, arranjos políticos
institucionais que garantem uma constante reposição das velhas forças
políticas e sociais na composição do comando do bloco histórico de
poder, seja através da legalidade institucional, seja através da força,
como em golpes civil-militares.
A dominação burguesa na particularidade histórica brasileira pode
ocorrer pelas relações de produção capital-trabalho, pela via da legalidade
institucional, quando as relações políticas fortalecem seus quadros
representativos ou pela via coação e imposição por meio de
contrarrevolução preventiva ou ofensiva. O período entre 1945 e 1964 é
um exemplo do fenômeno que consagra a via da dominação pela legalidade
institucional que, por sua vez, pode abrir possibilidades de rupturas a
depender da correlação de forças entre as classes sociais e suas
representações políticas. Tido como democrático, esse período significou
o retorno das instituições do Estado burguês, reguladas pela Constituição
de 1946. Nesse quadro, os partidos foram legalizados, exceto o Partido
Comunista Brasileiro que, após um breve período de legalidade,
novamente é posto na clandestinidade pela Justiça do Estado burguês, no
entanto, logo esse quadro foi modificado e a característica latente da
dominação burguesa se manifesta mais uma vez no apoio ao golpe civil-
empresarial-militar de 1964, como momento de contrarrevolução.
Na entrada dos anos 1960, a política externa norte-americana
empreendeu uma escalada mundial para deter e reverter a erosão da sua
hegemonia passou a operar uma contrarrevolução preventiva, de modo
a impedir a constituição de quaisquer alternativas à pax americana,
sobretudo se tais alternativas apontassem para as vias socialistas. E o fez
combinando ações diplomáticas (chantagem e pressão econômica),
desestabilização de governos e patrocínios a golpes de Estado (tal como
195
no Brasil em 1964 e, de forma sangrenta, na Indonésia, em 1965) [...]
(NETTO, 2014, p. 35)
Como demonstra o autor, com a participação dos Estados Unidos
no golpe de 1964 no Brasil, ficou evidente historicamente a associação
entre capital nacional e internacional. A Escola das Américas, aberta pelos
norte-americanos no Panamá ao final da Segunda Guerra, já recrutava nas
Forças Armadas brasileiras os oficiais que reproduziram o modus operandi
de uma ação militar em diversos aspectos, inclusive na política. A
contrarrevolução de caráter preventivo assegurou à burguesia sua posição
política e controle social através do Estado de exceção que se implantou.
O processo histórico do golpe civil-empresarial-militar brasileiro
de 1964 configurou um processo de contrarrevolução da burguesia tanto
agrária como industrial, associada e dependente do capital externo, e aqui
estamos nos referindo ao capital monopolista imperialista sob a liderança
norte-americana (FERNANDES, 1976). Entendemos aqui a
contrarrevolução como processo histórico que aborta um conjunto de
transformações econômicas, sociais e políticas e imprime um outro
processo de cunho conservador no plano superestrutural, embora tenha
que promover mudanças sobre as bases econômicas, a reposição do velho
sob nova roupagem, as condições de reprodução social do demiurgo societal
burguês.
Nesse sentido, a contrarrevolução através do golpe de 1964 é uma
forma preventiva da burguesia brasileira resguardar o controle do poder
político e, através do Estado, exercer o controle societal, bem como conter
o avanço de forças políticas que tinham uma base social assentadas nas
camadas populares, principalmente as classes trabalhadoras. Também
atuavam antes do golpe como força política de expressão, uma fração
burguesa nacionalista, uma parcela da burocracia estatal e intelectuais.
196
Após o golpe institucional de 1964, a primeira etapa era
inviabilizar a reação ao movimento golpista da caserna (NETTO, 2014).
A nova fase consistiu em institucionalizar a hegemonia burguesa,
recorrendo à força e limitando a ação política com a suspensão do
parlamento, dos mandatos e dos partidos, medidas que foram sendo
impostas através dos Atos Institucionais (AI). A contrarrevolução
assegurou o funcionamento das instituições do Estado brasileiro em favor
da hegemonia burguesa.
Entre as diversas ações políticas, a educação foi também um dos
alvos estratégicos para este fim. A recém-promulgação da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação 4.024 de 1961 foi abandonada e, no decorrer do
processo histórico, uma outra foi encomendada e aprovada em seu lugar.
A reversão de um ideário que favorecesse ao campo político nacional-
popular era uma das principais preocupações dos representantes do regime
de exceção, portanto era necessária uma educação que atendesse às
necessidades do capital, do desenvolvimento econômico nacional,
revertendo o peso da ideologia alinhada às classes trabalhadoras.
Saviani (2010) pontua a adoção de uma série de medidas do
governo autoritário que trariam o desenvolvimento econômico e social ao
Brasil, medidas essas amparadas na Teoria do Capital Humano
33
. A
introdução dessa teoria nas formas de conceber e atuar das instituições
brasileiras é mais uma tentativa de transplante de um modelo associado aos
interesses do capital internacional e nacional.
33
A teoria defendida por Theodor Shultz concebe o “fator humano na produção” como elemento
impulsionador da produtividade a partir do trabalho humano qualificado por meio da educação.
Dessa forma, o trabalho qualificado tornar-se-ia um dos principais meios para a ampliação da
produtividade econômica. Baseado nessa ideia, o tecnicismo foi aplicado na educação visando ao
desenvolvimento econômico por meio do investimento no indivíduo “qualificado”. Essa tendência
foi duramente criticada, principalmente nos debates que se desenvolveram a partir da década de
1980, quando o regime empresarial-civil-militar era questionado nas ruas do país por setores
populares e intelectuais do campo progressista da educação.
197
Para melhor compreendermos as discussões aqui travadas, tratemos
de apreen-las em seu contexto histórico. No caso brasileiro, já no regime
pós-1964, a intervenção era alimentada pela ideia de acumulação de
capitais no Brasil, ao mesmo tempo, institucionalizando a hegemonia
burguesa, num processo de contrarrevolução. Forjar um sistema de ensino
que produzisse capital humano seria uma assertiva perfeita para os
interesses do poder constituído. Nesse sentido, “a teoria do O capital
humano, concebe que a partir dos investimentos em educação e pesquisa,
a economia tomará rumo dos anseios já manifestados no Simpósio do IPES
em 1964 e no Fórum “A educação que nos convém”, de 1968. Com isso,
efetivou-se mais um passo rumo à hegemonia burguesa (SAVIANI,
2010a).
Com o golpe de 1964, a ditadura civil-empresarial-militar busca
restabelecer o jogo político com base no fortalecimento do empresariado,
da atuação das forças armadas apoiadas na modernização conservadora e
repressiva. Um dos efeitos foi o realinhamento da relação centro-periferia.
Na implantação de um modelo educacional compatível com o plano de
modernização econômica das classes dominantes, o MEC e Agency for
International Development (AID) assinaram connios para assistência
técnica e cooperação financeira visando à reorganização do sistema
educacional brasileiro. Essa medida que visava conter a crise produziu
grande impacto, tanto na implementação de reformas quanto em revoltas
no meio educacional.
Foi nessa altura que foram assinados todos os convênios através dos
quais o MEC entregou a reorganização do sistema educacional
brasileiro aos técnicos oferecidos pela AID. Os convênios, conhecidos
comumente pelo nome de “Acordos MEC-USAID” tiveram efeito de
situar o problema educacional na estrutura geral de dominação,
reorientada desde 1964, e dar um sentido objetivo e prático a essa
198
estrutura. Lançaram, portanto, as principais bases das reformas que
seguiram e serviram de fundamento para a principal das comissões
brasileiras que completaram a definição da política educacional: a
Comissão Meira Matos (ROMANELLI, 2013, p. 203).
Para isso, a implementação estratégica se deu através do plano de
assistência técnica estrangeira, consubstanciado pelos acordos
MEC/USAID, o Plano Action (1966) e o Relatório Meira Mattos (1968).
Concebida como estratégia de hegemonia, a intervenção da USAID na
América Latina se processa de modo integrado, nos anos 60, em várias
áreas e sob três linhas de atuação: assistência técnica; assistência financeira,
traduzida em recursos para financiamento de projetos e compra de
equipamentos nos EUA.
As medidas desse período expressam as concepções de Estado e de
educação próprias de um regime que cerceava as liberdades civis aliadas ao
interesse da burguesia nativa em tornar o Brasil uma potência econômica.
O papel assumido pelo Estado neste momento não foi o de mediador nas
relações de classe, mas, sim, o de agente de manutenção do predomínio de
uma determinada classe sobre a outra, atuando intensamente na criação de
alternativas sob as orientações do mercado para dinamizar as forças
produtivas, proporcionando a acelerada acumulação do capital industrial
(IANNI, 1989).
Ações tomadas nesse sentido tinham em vista a orientação do
mercado para dinamizar as forças produtivas a fim de favorecer a
acumulação de capital industrial. O Estado comparece como agente do
processo produtivo operando no nível infraestrutural, isto é, diretamente
no processo de formação do capital. O progresso se daria através da
industrialização, com forte planejamento (ênfase na técnica), apoio total
do Estado e tendo o capital estrangeiro como aliado/associado neste
199
processo de modernização. Em seguida delineiam-se os desdobramentos
em torno desse projeto destacando a concentração de riquezas, o arrocho
salarial e as restrições às liberdades civis (IMENES, 2012). Para Imenes
(2012, p.135) “o projeto de desenvolvimento adotado pela ditadura [civil-
empresarial] militar engendrou um modelo autoritário de modernização e
promoveu um desenvolvimento concentrador de riquezas, com arrocho
salarial e restrições às liberdades civis”.
Na educação, a relação entre a teoria do capital humano e o
planejamento estatal foi complementada pela concepção pedagógica
tecnicista. A pedagogia tecnicista, ou tecnicismo é, de acordo com Saviani
(2009b), inspirada nos padrões da neutralidade científica, racionalidade,
eficiência e produtividade. Essa política educacional, implantada pelo
regime civil-empresarial-militar, “buscou planejar a educação de modo a
dotá-la de uma organização racional capaz de minimizar as interferências
subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência” (idem, p. 11). Nestes
termos, era essa a via única para o progresso que se daria através da
industrialização, com forte planejamento (ênfase na técnica), apoio total
do Estado e tendo o capital estrangeiro como aliado / associado neste
processo de modernização, isto é, dependente.
Um outro elemento foi o tecnicismo burocrático que se estendeu
para a educação como discurso ideológico, solução para os problemas
educacionais. Isso pode ser verificado quando analisamos o contexto de
implantação dessas medidas. Pautado pelo autoritarismo repressivo, pela
pressão dos organismos econômicos internacionais e pelos Estados Unidos,
o governo adota medidas institucionais endurecendo o regime de exceção,
ao mesmo tempo reformava a educação.
200
O aumento da demanda por vagas nas universidades pressionava o
regime. Para Fernandes (1975), a Reforma Universitária de 1968
34
, seu
caráter repressivo e autoritário, reforça a tendência das iniciativas do poder
público em favor do privado. Trata-se de outro sistema, estruturado nos
moldes de empresas educacionais voltadas para a obtenção de lucro
econômico e para o rápido atendimento de demandas do mercado
educacional. Esse novo padrão, enquanto tendência, subverteu a
concepção de ensino superior ancorada na busca da articulação entre
ensino e pesquisa. A solução encontrada pela Reforma para o aumento das
demandas de ensino superior foi aprofundar a privatização dos
estabelecimentos acadêmicos. A adesão dos proprietários desses novos
estabelecimentos aos valores do regime autoritário, assim como as alianças
políticas subterrâneas que estabeleceram com os detentores do poder, criou
condições vantajosas para a ampliação de seus negócios, além de introduzir
uma mentalidade empresarial no ensino superior, importaram também o
controle de comportamento.
A contenção da demanda para o acesso à universidade foi
articulada com a implantação do ensino de 2º grau que antecipava a
profissionalização dos estudantes-trabalhadores. Os mecanismos de
34
Durante o regime autoritário, o Estado operou a reforma do ensino superior, conhecida como
Reforma de 1968. Institucionalizada na esteira da Constituição de 1967, seguida pela Lei nº
5.539/68 regulamentando a carreira docente universitária, extinguindo, por exemplo, as cátedras.
Logo depois a Lei nº 5.540/68(?). A Reforma, ao declarar a autonomia econômica e didático-
científica das universidades públicas, estabelece a escolha dos Reitores ao Presidente da República;
cria a unificação das unidades acadêmicas; surge a figura do Departamento; a anulação dos
movimentos estudantis; maior interação ensino-pesquisa, a criação da monitoria, o aumento de
programas de extensão, atividades desportivas, culturais e cívicas. A Reforma ocorre em um
contexto de grande repressão da ditadura sobre aqueles que se opunham ao regime. medidas
arbitrárias conhecidas como AI-5/68 (Ato Institucional nº5). O fechamento do Congresso
Nacional veio logo com o Ato complementar 38. Ressalta o autor, para muitos intelectuais de
esquerda, tal significou o golpe dentro do golpe. No ano de 1969, procuram amordaçar qualquer
tentativa de resistência através do Decreto lei nº 477/69 que ameaçava os professores com perda do
cargo e os estudantes com expulsão sumária das universidades (SANTOS, 2012, p. 72).
201
acelerar a profissionalização era mais conveniente para as elites no poder
do que modificar a estrutura dual de organização escolar, mesmo
promovendo a compulsoriedade que tornava único o ensino propeutico
e profissionalizante. A estrutura do ensino estava voltada à formão de
profissionais nível médio, atrelado ao mercado de trabalho e não ao ensino
superior. Nestes termos, a reforma do ensino secundário, transformado em
2º grau, veio a reboque da reforma do ensino superior.
Através de uma nova LDB, a reforma do ensino de 2º grau veio
completar a ofensiva sobre a educação. A Lei 5.692 de 1971 alterou a
estrutura entre o ensino primário e médio, antigos 1º e 2º graus. “Nessa
nova estrutura, desapareceram as Escolas Normais. Em seu lugar foi
instituída a habilitação específica de 2º grau para o exercício do magistério
de 1º grau (HEM)” (SAVIANI, 2009a, p. 147). No que se refere ao 2º
grau, o ensino profissionalizante para a classe trabalhadora passou a ter
grande apelo, inicialmente através da Lei nº 4.024/61, depois modificado
pela Lei nº 5.692/71 como sendo obrigatório no nível médio de ensino.
Regida por esta Lei, o ensino profissionalizante passou a ser compulsório,
integrando ensino médio com a modalidade profissionalizante, revestindo,
por sua vez, o ensino supostamente integrador em uma dicotomia, entre a
relação teoria e prática. A tentativa de reverter a dualidade estrutural,
produz na realidade uma máscara que não cola ao rosto do antagonismo
classista, imanente da sociedade capitalista. Essa investida, disseram seus
defensores, era uma tentativa de superar o dualismo educacional, atender
às demandas de mercado de técnicos e diminuir a pressão por vagas no
ensino superior (FRIGOTTO et. al., 2012).
A estrutura educacional brasileira que passou a vigorar desde as
reformas nos anos 1930-1940 traçou trajetórias distintas, reproduzindo a
tendência histórica da educação brasileira, a reprodução da dualidade e sua
dicotomia. Podemos considerar até aqui, sinteticamente, o ensino
202
secundário acadêmico direcionava para a continuidade dos estudos no
Ensino Superior, enquanto os trabalhadores, de modo geral, teriam como
opção o ensino profissionalizante. A LDB 4.024/1961 estabeleceu a
equivalência entre os diplomas de ensino médio profissional e ensino
médio acadêmico, entretanto logo a LDB foi substituída por uma nova,
através da Lei nº 5.692/1971.
Para garantir a inserção de mão de obra no mercado de trabalho,
foi promulgada uma nova LDB: a Lei nº 5.692/71, também conhecida
como Reforma Jarbas Passarinho. Tal lei, definida pelo governo, iria pôr
fim ao dualismo na educação, uma vez que o ensino técnico e o então
chamado 2º Grau passariam a ser um só. A reforma pretendida pela
referida Lei foi produzida no âmbito do Conselho Federal de Educação
que teve em Valnir Chagas o principal interlocutor do regime. Ele exerceu
o papel intelectual que fundamenta e justificou as medidas relativas à
política educacional (SAVIANI, 2010a). Para este autor, a Lei 5.692/71
visava à profissionalização do então ensino secundário, na tentativa de
unificar os antigos ensinos primário e médio, eliminando as diferenças
entre os ramos secundário agrícola, industrial, comercial e normal.
A fusão entre o ensino secundário (propedêutico/acadêmico) e o
profissionalizante supostamente superaria a dualidade estrutural da
educação brasileira e poria fim à dicotomia teórico-prática no ensino. No
entanto, a medida, ao reforçar o caminho da profissionalização, não toca
o problema estrutural da sociedade dividida em classes antagônicas,
erguida a partir de uma divisão social do trabalho em função da produção
capitalista (KUENZER, 1997). A dicotomia teoria e prática, método e
conteúdo, continuava a prevalecer mesmo que a equivalência entre um
nível de ensino e uma modalidade educacional estivesse abrigada sob o
mesmo guarda-chuva.
203
Os elementos que impossibilitam a superação da dicotomia assim
como da dualidade é horizonte posto para o trabalho nesta perspectiva,
pois, segundo Kuenzer (1997, p. 19), “a incorporação da categoria
trabalho se faz sob a lógica idealista, mostrando que a preparação para a
vida deve ser construída sobre valores espirituais e morais”. Outra
contradição apontada pela autora é a busca dos elaboradores das políticas
em mostrar a concepção assentada no binômio humanismo e tecnologia
articulada ao projeto desenvolvimentista autoritário.
A análise de Kuenzer (1997, p. 20) sobre a Lei 5.692/71 e os
pareceres subsequentes 45/72 indicam
[...] a lei, embora admita a dimensão pedagógica do trabalho e a
necessidade econômica de formar profissionais para “queimar etapas”
no processo de industrialização, não considera a dialeticidade da
relação entre trabalho e consciência, entre cabeça e mãos, entre teoria
e prática; ao contrário, reafirma a supremacia da consciência sobre a
ação do individual sobre o coletivo [...]. Como os determinantes da
dualidade estão fora da escola, na estrutura de classes, ela não pode ser
resolvida no âmbito do projeto político pedagógico.
Em outra análise sobre esse objeto, Cunha (2017) também revela
que a compulsoriedade do ensino profissionalizante como contenção da
demanda para o ensino superior traduz o objetivo de despolitização do
ensino secundário, por meio do currículo tecnicista. Essa característica
seria complementada pela especialização e fragmentação do currículo em
virtude dos diferentes cursos que faziam parte da plataforma de ensino do
Segundo Grau. Nesse sentido, Kuenzer (1997) indica que 52 habilitações
de “nível técnico” e 78 habilitações parciais auxiliares demonstram a
concordância com a proposta pedagógica e o modelo empresarial de
desenvolvimento pretendido. Também é importante considerar que a
204
grande maioria dos trabalhadores que acessavam o sistema de ensino não
passavam do 1º grau, tornando-se trabalhadores manuais de forma ainda
mais precoce (idem).
Seguindo a análise de Kuenzer (1997), o elemento da
compulsoriedade não cria uma escola única para todas as classes. Ela cria
uma escola única de profissionalização para a classe trabalhadora. Ela
diferencia e estratifica os trabalhadores manuais que não conseguem
concluir sequer o Primeiro Grau, outrossim impõe a seletividade e um teto
no nível intermediário do ensino. Os que conseguem chegar à
profissionalização disporão de diplomas, atendendo aos interesses do
capital em adequar-se à fase de acumulação capitalista por meio de uma
mão de obra qualificada. Por outro lado, Cunha (2017) ressalta a oferta
privada de ensino de Segundo Grau como contínuo reforço ao conteúdo
humanista e propeutico, embora oferecesse a possibilidade de
profissionalização. As escolas privadas continuavam a abastecer as grandes
Universidades públicas e os cursos mais valorizados (idem).
Esses elementos elencados são suficientes para demonstrar que a
dualidade estrutural e a dicotomia alimentada por ela, continuou intocada.
A posição historicamente de vendedor da força de trabalho,
hierarquicamente, explorado pelo capital, continuou a se reproduzir
socialmente. A nosso ver, em entendimento com Santos (2007), essa lei se
configura, destarte, num retumbante fracasso, comprovado em menos de
cinco anos quando o mesmo regime assume sua falta, baixando o Parecer
Nº 7.044/82, que tornou opcional a oferta de ensino profissional
vinculado obrigatoriamente ao secundário. Nesse sentido, também conclui
Nosella (2016, p. 56), “o sonho dos militares era universalizar uma escola
de técnicos submissos, de operadores práticos, ou seja, criava-se uma
‘unitariedade’ cortando a parte crítica e humanista do currículo”.
205
Notamos que, na medida em que o capital se transformava, as
concepções de estado e o papel social atribuído à educação seguia a trilha
dos interesses vigentes. Os ajustes estruturais guardam estreita sintonia
com as proposições do capital nacional e internacional. Nesse sentido, a
hegemonia burguesa não se limitou ao golpe para tomar o poder, mas
atingir várias esferas da sociabilidade, desde a estrutura econômica,
passando pela reconfiguração das classes, eliminando os agentes políticos
(partidos e sindicatos) e sujeitos subversivos institucionalmente e
fisicamente quanto às oposições ao Estado de exceção, isto é, sem nenhum
compromisso com os direitos humanos ou valores democráticos, o que
imprime e expressa a necessidade de produção das bases capitalistas e
reprodução social das relações que constituem a hegemonia burguesa.
O Estado, em pleno regime da ditadura civil-empresarial-militar
no Brasil, molda-se aos interesses do capital da dominação burguesa que se
estendeu para a educação sob a direção do governo. Foram anos de intensa
censura, repressão, violência, propagandas e slogans no estilo de “Brasil:
ame-o ou deixe-o”, alienação alimentada pelo tri-campeonato brasileiro de
futebol e de obras faraônicas. É inegável que este Estado autoritário
também teve que enfrentar as lutas e resistências dos movimentos sociais e
que estes muito contribuíram para a saída dos militares à frente do
executivo em 1985.
Os anos 1980 no Brasil expõem as fragilidades dos setores
econômicos e sociais acompanhados de forte mobilização política pela
Constituinte. Nesse período, amplos setores da sociedade se mostraram
insatisfeitos e, de forma organizada, pressionaram o fim da ditadura. Não
só as “Diretas Já” demarcavam esse campo de lutas, a organização de
movimentos sociais em torno da democracia popular, a luta por direitos
sociais, luta pela terra, pela escolaridade assegurada aos brasileiros,
simbolizou um quadro de correlação de forças no interior da sociedade
206
brasileira (NETTO, 2014). Segue nesse período a Reabertura Política
uma transição coordenada e retardada, como assinala Deo (2011) a long
terme, da Ditadura Empresarial-Civil-Militar. A criação de novos partidos
de esquerda e direita representa bem a formação de blocos de poder nos
campos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT), Partido
Democrático Trabalhista (PDT), na esquerda e o Partido da Social-
democracia Brasileira (PSDB), de direita. Nos movimentos populares,
foram surgindo novas organizações como as que criaram a Central Única
dos Trabalhadores CUT e o Movimento dos Trabalhadores Sem-terra
(MST). Em torno do fim do regime de exceção brasileiro, a grande
mobilização foi em torno do Movimento das Diretas Já, a promulgação da
Constituição Federal de 1988 traduz os acontecimentos o que, na década
de 1980, contou com ampla organização e mobilização popular e fez dessa
década uma das mais fecundas da história. Cenário contrastado com as
manobras das frações burguesas elitizadas e aliadas às reformas estatais de
predileção neoliberais iniciadas na década seguinte.
Um dos elementos de destaque na passagem de bastão dos militares
aos civis estava centrado na capacidade de alianças inter-burguesas capazes
de manter o controle social nas mãos de um Estado a serviço dos interesses
das classes dominantes. Por outro lado, após a Lei de Anistia e alguns
passos para a reabertura política, uma das medidas produziu como efeito a
divisão ainda mais da oposição ao regime ditatorial. Com o fim do
bipartidarismo, o Congresso aprova em 1979 a Lei Orgânica dos Partidos
Políticos (Lei nº 6.767, de 20 de dezembro de 1979), a oposição
concentrada no partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB)
35
se
35
O MDB foi lançado em plena ditadura, a fim de constituir uma oposição ao regime de exceção
para aqueles que não se alinhavam à Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Era um partido de
ltiplas faces ideológicas, pois a proibição de existência para a maioria dos partidos, especialmente,
de esquerda, resultou numa aglutinação no interior do MDB. Ao mesmo tempo, sua existência
permitiu a aparência de ditadura ao regime deflagrado pelo golpe de 1964(NETTO, 2014).
207
dividiu, resultando numa fragmentação inclusive da esquerda-
democrática. Enquanto isso, o Partido Democrático Social (PDS), filho da
ARENA
36
, partido de sustentação da ditadura, manteve-se com maior
representatividade e força política para manobrar em torno dos interesses
da direita. O MDB passou a ser Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB), porém desmembrado com as saídas de filiados para
formar o Partido Popular (PP), liderado por Tancredo Neves; o Partido
Democrático Trabalhista (PDT), liderado por Leonel Brizola e o Partido
Trabalhista Brasileiro, liderado por Ivete Vargas (NETTO, 2014). De
acordo com Netto (idem), as forças que rompiam o bipartidarismo
efetuaram, ao mesmo tempo, a divisão do bloco oposicionista mesmo antes
do fim da ditadura, configurando uma estratégia da direita e dos militares
para enfraquecer um movimento para pôr fim ao regime e a continuidade
de bloco político que viesse a ter força para derrotar os projetos das elites
autocráticas. Embora a nova Lei determinasse o fim do bipartidarismo, o
PCB e o PC do B foram impedidos de ter registros reconhecidos, apenas
em 1985 essa medida foi derrotada (ibidem).
As mobilizações “Diretas Já” demarcou um campo de lutas, a da
organização de movimentos sociais em torno da democracia popular, a luta
por direitos sociais, luta pela terra, pela escolaridade assegurada aos
brasileiros, o que simbolizou um quadro de correlação de forças no interior
da sociedade brasileira.
Nesse cenário, as mobilizações populares pressionaram avanços e
garantias sociais engessados pela estrutura econômica pautada na
acumulação privada de capitais, paternalismo na distribuição de cargos
públicos estatais, uma divisão social do trabalho que exclui a grande
maioria dos trabalhadores de acesso às benesses produzidas pela sociedade.
36
Partido da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), base de sustentação política do regime
ditatorial deflagrado em 1964, pelo Golpe civil-empresarial-militar em 1º de abril.
208
Embora essas mobilizações assumissem um relevante peso no
asseguramento de direitos sociais, as disputas pelo poder de controle do
Estado pautaram-se pelo viés desse conjunto de alianças interburguesas.
O Estado, como a expressão da hegemonia de um grupo político
que paulatinamente herdava dos militares o poder para tocar a burocracia
eleitoral e controlar o jogo “democrático” no Congresso Nacional, se viu
pressionado por diferentes forças políticas e sua habitual capacidade de
congregar os interesses do capital foi ameaçada, uma vez que a diversidade
não permitia políticas que atendessem às vantagens e lucros de todos os
blocos de poder. Ainda assim, aprofundou-se o raio de ação do poder
estatal no campo econômico, com a atuação do capital estrangeiro no
Brasil, ampliou-se a relação complexa entre ele, o capital nacional privado
e o aparelho produtivo estatal (IMENES, 2012). Os efeitos foram
desastrosos para a economia nacional na década de 1980, no entanto,
marcante foi a subordinação resignada do Estado e da burguesia brasileira
ao capital externo caracterizando a hegemonia imperialista.
No cenário político, a escala de pressões sobre as eleições diretas
converteu-se no escopo para pressionar por mudanças mais profundas nas
esferas políticas, econômicas e sociais. A proposta da Emenda Parlamentar
Dante de Oliveira defendia eleições diretas imediatamente e as
mobilizações por todo o país tomaram as ruas em 1982, 1983 e 1984
37
.
Netto (2014) expõe que uma das medidas para barrar a ascensão do
movimento antes da votação da Emenda Dante de Oliveira foi a medida
de “Estado de emergência” adotada pelo presidente General João Batista
Figueiredo imposta à cidade de Brasília e a dez municípios de Goiás. A
37
No calor das mobilizações, as eleições municipais de 1985 apresentaram a surpreendente vitória
de Maria Luísa Fontenele do PT à Prefeitura de Fortaleza (1986-1989). Ela desbancou candidatos
tradicionais e favoritos como Lúcio Alcantara (PFL, atua DEM) e Paes de Andrade (PMDB, atual
MDB).
209
ideia era barrar eleições e postergar o regime, ao mesmo tempo, pressionar
aliados do PDS a manter aliados que “vacilavam” mediante as pressões
populares.
Um outro protagonista no cenário político foi o proletariado
urbano, principalmente na região do ABC paulista,
38
as lideranças sindicais
ligadas à Central Única dos Trabalhadores (CUT) deflagraram greves e
mobilizações na maioria dos grandes centros urbanos do país. As greves, as
ocupações de fábricas e os piquetes revitalizaram as lutas de classes e os
operários reintegraram o cenário de protagonismo político para derrotar o
regime ditatorial. Nessa linha emergiu uma força política de expressão que
foi o Partido dos Trabalhadores (PT), organizando uma plataforma
política a partir de bases sociais concretas, filiando muitos militantes e
atraindo muitos simpatizantes de várias camadas sociais.
Na sociedade brasileira, após a Constituinte 1988, a burguesia se
integra em um novo arranjo político, o bloco histórico burguês. Nas
condições históricas da década de 1990, esse bloco entra em consenso de
que era preciso integrar a economia brasileira aos novos padrões de
acumulação capitalista. O neoliberalismo forjaria as condições para uma
“democracia de mercado”, para isso, a luta pela hegemonia teria que
ocorrer na esfera do Estado e suas instituões funcionariam sob regime
democrático. Dessa forma, a luta burguesa concentrou esforços na
Constituinte de 1988 para garantir, na institucionalidade, instrumentos
autocráticos (MACIEL, 2014), o pluripartidarismo, a divisão bicameral do
parlamento, as comissões internas e seus regimentos.
Uma das características dos regimes democráticos burgueses é a
busca do consenso das classes dominantes sobre as classes subalternas
38
ABC paulista sigla que identifica o polo industrial nas cidades de Santo André, São Bernardo e
São Caetano no Estado de São Paulo.
210
(GRAMSCI, 1999)
39
. Em determinado momento de apassivamento nas
relações entre as classes fundamentais e as frações de classes, é possível que
a burguesia abra a sociedade para a manifestação política dos adversários,
até mesmo para o confronto de posições, contudo o interesse da burguesia
é submeter as classes subalternas ao seu domínio (DORE, 2006). A luta
pela hegemonia segundo Dore (idem, p. 337), apoiada em Gramsci, não
ocorre apenas pela força repressiva do Estado ao abrir a sociedade para que
as classes inimigas se organizem e manifestem sua posição”. Faz parte de
uma “trama para privada” à burguesia para estabelecer sua hegemonia
permitindo o confronto de ideias e posões de seus adversários para
construir o consenso que lhe favorece. Ao mesmo tempo, abre-se uma
possibilidade para as classes subalternas lutarem pela conquista da
hegemonia.
No que tange à educação, verificouse a capacidade de organização
dos profissionais de educação, o que gerou diferentes associações. Neste
período, observa-se também um movimento intenso de educadores em
prol do ensino público e da reorganização do campo educacional. “São
criadas entidades como o Centro de Estudos de Educação e Sociedade
(CEDES), a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em
Educação (ANPED) e a Associação Nacional Docentes de Ensino
Superior” (SAVIANI, 2010, p. 410-411). Conforme o autor citado, a
década de 1980 foi marcada pela busca de teorias contra-hegemônicas que
se alinhassem aos interesses dos dominados. Uma das teorias que passam a
39
“A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes
na história e na sociedade, ou, melhor, ela e a própria teoria de tais contradições; não e o
instrumento de governo de grupos dominantes para obter o consentimento e exercer a hegemonia
sobre as classes subalternas; e a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas
na arte de governo e que tem interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as desagradáveis, e
em evitar os enganos (impossíveis) da classe superior e, ainda mais, de si mesmas” (GRAMSCI,
1999, p. 388)
211
influenciar o debate político pedagógico à esquerda provém dos clássicos
do marxismo que tem em Gramsci um dos principais influentes.
A contribuição de Antônio Gramsci se tornou clássica no
marxismo, atravessando fronteiras e épocas, no Brasil é notável sua
influência sobretudo na esfera educacional. O debate em torno do
princípio educativo é de considerável importância no quadro de crise
societal burguesa, que adentrou várias esferas da sociabilidade humana em
tempos recentes, como no período das Grandes Guerras Mundiais.
Gramsci, em um momento histórico da crise na sociedade capitalista
europeia, apresentou uma produção teórica profunda e extensa, tocando
várias dessas esferas da sociabilidade com sua fecunda reflexão teórica
dialética marxista. A prodão do revolucionário sardo se tornou referência
tanto entre marxistas de várias gerações, como também intelectuais de
outras matizes teóricas, apoiados em crítica ao status quo vigente, mas que
vê na obra de Gramsci uma referência para determinados problemas
sociais, entre os quais, os que atingem a educação.
O cenário político na década de 1980 propiciou debates,
mobilizações, surgimento de organizações sindicais, partidos políticos e
movimentos sociais que representavam as demandas da população por
melhores condições de vida. O movimento de “redemocratização”
pressionava a saída dos militares e reivindicava uma nova Carta
Constitucional, eleições diretas e liberdade de expressão, entre outras
bandeiras vinculadas às lutas sociais no Brasil.
Saviani (2010) aborda o quão problemático é o período da década
de 1980, compreendido como transição. Transição para quê? Transição
que representa rupturas? Transição que representa passagem de um ponto
para outro? Transição que representa um processo que gerou rupturas
profundas e transformadoras e nos remete a uma revolução, como assinala
Fernandes (1986, p. 89), dentro da ordem e contra a ordem. Pode ser,
212
como analisa Saviani (idem, p. 414), a interpretação dos grupos
dominantes que interpretam a “transição democrática na linha da
conciliação pelo alto, reduzindo-a a um mecanismo de preservação, numa
forma que incorpora o consentimento dos dominados”.
Esse processo, contrariando os anseios populares, deu-se a “long
terme”, de forma lenta e gradual. A pressão das ruas desgastava o governo
autoritário, sob a liderança militar, mas não permitiu sua derrocada pelo
viés da ruptura “democratizadora” (DEO, 2011). Como já mencionamos,
as disputas políticas na década de 1980 para assumir controle do Estado
pautaram-se pelo viés do conjunto de alianças interburguesas, marcando o
processo de transição com o desalojamento militares à frente do governo.
De um lado, os militares temiam que a “transição” fosse liderada por
personagens que promovessem uma cruzada “caça às bruxas”, colocando
em risco o panteão das forças armadas. Por outro, a conjuntura de relativa
abertura política foi freada com medidas eleitorais que sinalizasse o
amortecimento do regime, mas que projetasse aliados civis, setores
burgueses e oligarquias financeiras que se sobressaíssem e que o fim da
ditadura não chegasse às lideranças da esquerda.
No âmbito externo as forças poticas neoliberais avançaram na
Inglaterra e nos Estados Unidos (HARVEY, 2014). Na condição de
economia periférica e dependente, o Brasil se torna consignatário do
Consenso de Washington
40
em 1989. Este acordo representa as concepções
neoliberais inspiradas em Friedrich Hayek e Milton Friedman,
40
O Consenso de Washington é um documento produzido pelos representantes do capital central,
sob a liderança dos Estados Unidos, em novembro de 1989. Ele contém um conjunto de medidas
de ajustes, fundamentadas num texto do economista John Williamson, direcionados aos países
dependentes para se adequarem aos objetivos do sistema capital mundial. Em 1990, se torna a
política oficial do Fundo Monetário Internacional (FMI), passando a ser “receitado” para promover
o “ajustamento macroeconômico” dos países periféricos, que passam por dificuldades, em especial,
financeiras (SAVIANI, 2010).
213
consignadas, principalmente, pelos governos de Margaret Thatcher (1979-
1990) na Inglaterra e Ronald Reagan (1981-1989) nos Estados Unidos
(SAVIANI, 2010). O governo brasileiro, ao aceitar as prerrogativas do
Consenso de Washington, aderiu ao pacote de ajustes neoliberais impostos
pelo capital internacional, coordenado pelo Departamento do Tesouro dos
Estados Unidos, FMI e BM. Nessas condições, o Brasil, acatando as
orientações dos Organismos Multilaterais Internacionais (OMIs) sob o
viés neoliberal iniciou um processo de reformismo, a fim de aumentar a
competitividade na economia “globalizada”, efetuando transformações em
diversos setores da estrutura social, entre os quais a educação.
De acordo com o discurso propagado pelos OMIs, a educação
induz o crescimento econômico ao formar trabalhadores qualificados para
uma maior competitividade no mercado internacional, ao mesmo tempo
em que combate o desemprego. Atrelado ao crédito no sistema financeiro
internacional, as agências internacionais lançam um conjunto de diretrizes
aos países da periferia capitalista, propondo reformas de Estado e com elas
a educacional. As reformas visavam diminuir a participação do Estado nas
atividades econômicas e abrir espaço para a iniciativa privada. No âmbito
da educação, as classes dominantes advogaram em favor das leis de
mercado e da iniciativa privada (SAVIANI, 2010)
Para seguir nossa exposição, adiantamos brevemente que, a partir
dos anos 1990, a perspectiva neoliberal ganhou força com a adesão das
elites brasileiras. Nas eleições de 1989, havia vencido um grupo de político
sob liderança de Fernando Collor de Melo (1990-1992)
41
apoiado em
concepções neoliberais, assim como a via escolhida pelos governos Itamar
Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Na
41
Fernando Collor de Mello, eleito em 1989, foi submetido ao impeachment (1992) pelas próprias
forças políticas que o apoiaram nas eleições. Após esse processo, o Vice-Presidente Itamar Franco
assumiu a Presidência até 31 de dezembro de 1994.
214
esteira, os governos Lula-Dilma (2003-2016) não romperam com políticas
macroeconômicas dos governos neoliberais, porém direcionaram
mudanças em atendimentos às demandas sociais, negligenciadas pelos
antecessores. Com interrupção do governo Dilma Rousseff em 2016
42
,
Temer (2016-2018) assume a presidência da república aprofundando o
viés ultraliberal. Esse viés continua com Jair Bolsonaro (2019) aliado a
concepções políticas da contrarrevolução de 1964 e ideologicamente
ultraconservador e reacionário nas pautas sociais.
Em meio à crise estrutural do capital, a década de 1990 representa
a ascensão da perspectiva neoliberal, veiculada pelos organismos e agências
multilaterais internacionais em suas diretrizes que orientam as reformas
estatais consideradas ajustes necessários no âmbito do Estado. De acordo
com Saviani (2010), essas demandas são assumidas e absorvidas pelas elites
no poder nos países latino-americanos, já que associadas a esse capital
externo, visava responder pelas ansiedades das novas elites pela
modernização e inserção no circuito da economia dita globalizada. Para
isso, se tornou urgente a identificação de obstáculos ao seu próprio
crescimento e recuperação da lucratividade, atacando o dirigismo
econômico estatal imposto por governos nos quais o movimento sindical
conseguiu estabelecer algum poder de influência e ganhos para as classes
trabalhadoras.
Tanto o capital internacional, assessorado por intelectuais
orgânicos em agências e institutos, quanto as elites burguesas satélites
concebiam como necessária a criação de bases para a implantação do
Estado “mínimo”, especificamente no Brasil, o que, por sua vez abriria um
42
O golpe de impeachment que interrompeu o mandato de Dilma Rousseff é mais etapa da
institucionalização autocrática da burguesia brasileira, incapaz de acatar a vitória eleitoral da
coalizão liderada pelo Partido dos Trabalhadores. Essa manobra abriu espaço para o fortalecimento
da extrema direita, liderada por Jair Bolsonaro, que veio a vencer as eleições em 2018 após o
processo político-jurídico que retirou Lula da Silva das pelejas eleitorais.
215
leque de espaços para a atuação da iniciativa privada (LEHER, 1999). As
reformas do Estado também implicaram mudanças na configuração da
educação, especificando a relação educação profissional e ensino médio,
nosso objeto de estudo. A reformulação dessa relação implica em
estabelecer um “novo” de tipo de escola, para formar um “novo” perfil de
trabalhador, sob determinadas demandas do mercado educacional e
“mercadorização” do ensino (Idem).
Em torno dessa esfera política são traçadas as coordenadas para as
lutas políticas, expressão da luta de classes sob as mais diversas formas e
esferas da reprodução social. Desse modo, a organização e mobilização de
campo progressista, com viés político defendido pelas mais variadas frações
da esquerda política, eram compostas por liberais progressistas e até mesmo
anarquistas. A atuação desse campo político se estende à educação. As lutas
no campo educacional passaram a ser intensas e o enfrentamento político
necessário para que a realidade brasileira, marcada pela desigualdade social
e um ambiente político autoritário, fosse superada.
Concluímos essa etapa da nossa exposição-investigação
considerando que a trajetória da burguesia brasileira, diante do capital
externo e a frente do Estado, tem sido aparelhar e institucionalizar um
modus operandi no contexto local que lhes garanta explorar taxas vantajosas
de mais-valia, de modo associado, extraindo dividendos lucrativos,
assegurando sua posição social dominante. Nestes termos, a burguesia
negligencia tanto o papel de agente modernizador das relações
institucionais quanto de suas tarefas democráticas, retardando rupturas
políticas com a estrutura colonialista. Destarte, as mudanças pelo alto ou
mudar para permanecer tornam-se sua marca histórica a ponto de chegar
nas reformas educacionais dos anos 1990, como veremos adiante. Esse
recurso estará presente no capítulo 4 de nosso trabalho, pois a reforma da
educação profissional via decretos será expediente político institucional
216
para se implantar uma educação profissional mais próxima aos interesses
do mercado.
217
Capítulo 4
Meandros e Contradições Reformulação da Educação
Profissional no Brasil na Virada do Milênio
Neste capítulo pretendemos contextualizar e analisar a política de
educação profissional, relacionada ao ensino médio, que se desenvolveu a
partir da década de 1990. Na exposição apresentamos os elementos
históricos políticos que compuseram as disputas pela hegemonia
institucional do Estado. Em seguida, delinearemos as políticas que
culminaram na reforma do ensino médio profissionalizante entre 1997 e
2004 a partir dos decretos presidenciais 2.208/1997, seguido pelo
5.154/2004.
Para isso, consideramos que a sociedade brasileira está inserida no
capitalismo e que a educação atua como complexo que se insere na
totalidade da reprodução social. O modo de prodão capitalista
representa a totalidade das relações de produção, base do processo histórico
e das relações que constituem a superestrutura social. Anotemos também
que seu desenvolvimento não ocorre de modo linear, as contradições que
se erguem a partir da luta de classes são elementos imanentes da estrutura
social capitalista. Nesse caso, os processos históricos estão sujeitos ao
desenvolvimento desigual e combinado dos processos históricos em que se
apresentam as condições concretas da sua particularidade histórica,
enquanto um processo, que busca reproduzir o domínio burguês sobre as
218
classes subalternas, lança novos elementos, conservando antigos padrões
para que tudo mude, mas permaneça como está.
Por isso, para compreender os mecanismos, elementos e
configurações de um determinado setor da realidade brasileira, temos que
buscar a reciprocidade entre os aspectos nacionais e a totalidade do modo
de produção capitalista. Foi o que buscamos analisar na exposição que
antecede este capítulo, esmiuçar a intricada teia de relações que abrange
nosso objeto em sua historicidade, compreendendo a relação entre a
dualidade e as dicotomias educativas. Iniciamos com a contextualização
mais geral da atual fase do capitalismo, mergulhado na crise estrutural do
capital. Essa abordagem nos permitiu entender as relações entre o atual
estágio do capitalismo e sua busca inflexível para integrar a escola à lógica
de mercado e por meio dela forjar o perfil de trabalhador que atenda às
suas demandas. Em seguida, apresentamos a historicidade da relação entre
complexo educativo e trabalho e a configuração dualística na estrutura
dicotômica na sua forma de expressão. A partir dotodo materialista
histórico-dialético, buscamos analisar a relação entre um complexo
fundante e um complexo fundado, trabalho e educação, que nos
possibilitou entender até o momento a dualidade educacional é resultado
da luta de classes e relacionada à divisão social do trabalho, enquanto a
separação da educação escolar em propedêutica e profissionalizante
caracteriza uma dicotomia exigida pelo capitalismo quando a burguesia
ascende ao poder. Nesse contexto, a educação como um complexo dessa
totalidade social se insere nas relações de produção e reprodução social que
se efetivou, após as revoluções liberais burguesas, assumindo, pela
mediação do Estado, a tarefa da escolarização. O Estado, por sua vez,
assume os contornos das relações de produção emanadas da particularidade
brasileira.
219
A educação aqui tratada se desenvolveu na particularidade
brasileira e, por isso, absorve e se relaciona reciprocamente com os
complexos que compõem as características dessa sociedade, sem deixar de
expressar os elementos da universalidade histórica da humanidade. O
vínculo ontológico entre trabalho e educação, tendo por base as relações
de produção capitalista, determina sobre ela a dualidade entre trabalho
manual e trabalho intelectual, sua divisão e o antagonismo das classes
sociais, lapidadas pela dominação que se efetiva por meio do Estado, das
lutas e dos conflitos de classe pela formação da consciência e reprodução
da força de trabalho, sem deixar de imprimir as relações que aí se
desenvolvem.
O desenvolvimento da história é impulsionado a partir de sua base
material, isto é, das condições concretas e objetivas da existência dos
homens e mulheres e das relações que estabelecem entre si na reprodução
social de existência. Nesse sentido, tanto a objetividade quanto a
subjetividade influenciam a dinâmica do processo histórico. Numa
sociedade de classes estruturalmente antagônicas, as lutas ora despontam
de forma explosiva ora se encontram disfarçadas pelas disputas ídeo-
políticas, muitas delas abrigadas e administradas pelo poder do Estado.
As políticas educacionais são passíveis das disputas de classe. No
Brasil, principalmente no século XX, as disputas ocorrem em torno de fazer
do Estado o educador da classe trabalhadora. Para tanto, analisamos as
disputas em torno da reforma de educação que foi determinante sobre a
educação profissional, no fim da década de 1990 e início dos anos 2000,
significa compreender o processo que reconfigura esse campo educativo,
implicando em novos contornos e possibilidades que flexibilizam a
dicotomia educativa. A reforma da educação profissional é um eixo do
debate entre muitas frações de classe, setores empresariais e políticos e
intelectuais da academia que se alinham às diferentes matrizes teórico-
220
políticas. Acrescentamos a isso o fato de no Brasil, inserido no capitalismo,
as classes dominantes se relacionarem, de forma associada e dependente,
com as economias centrais de capitalismo mais avançado.
Por isso, para dar conta de expor nosso objeto, a análise exige que
apresentemos o contexto histórico brasileiro da década de 1990, seus
elementos socioeconômicos e políticos e, por seu turno, o processo de
integração ao padrão, dito, global de acumulação que na verdade é a
expressão do capital mergulhado em crise estrutural. Desse modo, nossa
exposição será sistematizada em três eixos: 1) as relações entre o Estado
brasileiro e o capital, no contexto de sua crise estrutural, e suas
determinações em estabelecer diretrizes à educação, como mecanismo de
ajuste ao padrão de reestruturação produtiva da relação capital-trabalho;
2) a adesão das classes dominantes brasileiras ao neoliberalismo como via
político-econômica e ideológica para implementar um novo padrão de
acumulação, ajustado ao estágio atual do capitalismo e que ao mesmo
tempo representa um novo momento da autocracia institucionalizada e, 3)
a reconfiguração da educação profissionalizante com o ensino médio,
através das reformas educacionais e da correlação de forças políticas que
expressam a luta de classes
43
.
As nossas investigações apontaram a educação profissional,
reformada pelo decreto nº 5.154/2004, que supostamente revogaria o
decreto nº 2.208/1997, na verdade, ao invés de resolver a problemática
43
Enquanto desenvolvemos nossa investigação sobre a configuração da relação entre ensino médio
e educação profissional, testemunhamos a investida do governo Temer (2016-2018), que ascendeu
após o golpe-impeachment (2016), estabelecendo a Reforma do Ensino Médio através de Medida
Provisória 746 de 23 de setembro de 2016, alinhado ao movimento Todos pela Educação (TPE).
Na esteira das reformas, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) tornava obrigatórias apenas
três disciplinas do currículo (língua portuguesa, matemática e inglês), enquanto as demais áreas do
conhecimento seriam optativas numa investida de flexibilizar o currículo para favorecer “itinerários
formativos”. Lamentamos não poder tocar nesses pontos de modo que pudéssemos aprofundar e
dar conta da análise que isso exigiria.
221
dualidade educativa, criou mecanismos que a ajustam para as necessidades
de formação da força de trabalho para o mercado, demandando a
incorporação da escola, flexibilizando a formação ofertada por ela, à lógica
da lucratividade em tempos de crise estrutural do capital. Ao mesmo
tempo, a reforma educativa via decretos expõe elementos da luta de classes
e da institucionalidade da autocracia burguesa ao recorrer ao expediente
autoritário para implementar as reformas educativas almejadas.
Outrossim, engendra a conservação de elementos antigos dos interesses de
classes na educação, dicotômicos, que ajustam as formações profissionais à
nova fase de acumulação flexível, resguardando as diferenciações de classes
propícias à reprodução da dominação da classe burguesa.
A proposta de integração entre ensino médio e educação
profissionalizante, contida nos decretos, não resolve a tendência estrutural
à dualidade e se de alguma maneira corrige distorções perversas das
dicotomias instituídas na estrutura de ensino pelo decreto 2.208/1997, o
decreto nº 5.154/2004 não expressou a força política institucional para
superar o problema histórico como almejavam seus defensores. Ao
contrário, o que se viu após a sanção do decreto reforça que a educação
profissional avançou no processo de sua conversão em mercadoria pelas
determinações do atual estágio do capitalismo. As disputas entre as classes
e frações de classes na educação, envolvidas na revogação e elaboração de
um novo decreto para o ensino profissionalizante, refletem a luta de classes
no âmbito político institucional e socioeconômico. Consideramos que as
diretrizes estabelecidas à educação pelos Organismos Multilaterais
Internacionais expressam um conjunto complexo de relações entre capital
e os complexos que compõem a reprodução social no quadro da totalidade.
Esse processo é acompanhado pela busca e implantação de um novo
padrão de acumulação do capital frente à crise e a um novo processo de
hegemonia burguesa. Como processo histórico no modo de produção
222
capitalista, a luta de classes é o motor dessas relações, entre o que se
concretiza ou não no plano da realidade social, implicando nas
recomendações das agências do capital, podendo elas serem implantadas
ou não. A correlação de forças políticas em sua particularidade no âmbito
do Estado pode rejeitar ou filtrar essas recomendações, de acordo com o
arranjo das forças políticas internas e dos interesses em questão, que podem
coadunar com o processo de acumulação pretendido pela burguesia
brasileira. Então, o processo de acatar as recomendações das agências do
capital dependeu também da articulação entre as particularidades e
peculiaridades econômico-financeiras dos conglomerados internacionais
com seus sócios na esfera nacional, sua força política no âmbito do Estado.
O processo de reformismo no Brasil é acompanhado por um duplo
movimento político-econômico tanto no cenário interno quanto no
externo. A conjuntura internacional nas economias centrais de capitalismo
passou a exercer uma forte ofensiva imperialista sobre os países da periferia
capitalista. No cenário brasileiro, de um lado, a adesão das elites ao
Consenso de Washington, as pressões sociais por reformas em meio aos
movimentos de contestação pelo fim do regime ditatorial; tinha, por outro
lado, a burguesia local, subordinada e aliada ao capital internacional,
observando nesse processo a oportunidade de implementar reformas no
âmbito institucional, articulando medidas econômicas à “globalização”, a
lógica capital financeiro-mundial.
Por isso, as determinações sobre a educação profissional refletem
combinações do desenvolvimento desigual do capitalismo que se projeta e
articula sobre a esfera particular de determinado complexo da reprodução
social. Primeiro, queremos explicitar que a arena dos embates para
revogação do decreto 2.208/1997 é, no interior da institucionalidade do
Estado, um território propício aos interesses burgueses, ainda mais no
Brasil, pela particularidade histórica da dominação burguesa pela via
223
autocrática. Segundo, a integração entre ensino médio e educação
profissional como política pública teria que se dar preservando as relações
entre o Estado brasileiro e as diretrizes estabelecidas pelo capital
imperialista, através de Organismos Multilaterais Internacionais. Terceiro,
a conjuntura política favorável, criada pela eleição de Luiz Inácio Lula da
Silva, não significou uma ruptura institucional da hegemonia burguesa,
apesar da plataforma política ser encabeçada pelo Partido dos
Trabalhadores (PT). A Carta ao povo brasileiro de agosto de 2002, antes
das eleições, seria um pino de trava ao setor empresarial. A eleição do
petista é assegurada pela via da conciliação e das alianças interburguesas,
portanto, longe de rompimentos da via dominante institucionalmente
autocrática (DEO, 2011).
O Estado brasileiro e as diretrizes estabelecidas pelos Organismos
Multilaterais Internacionais (OMIs) à educação: desdobramentos
sobre a Lei nº 9.394/1996
As relações entre o Estado brasileiro e os Organismos Multilaterais
Internacionais se desenvolvem no âmbito do atual contexto histórico do
capitalismo. Como expomos no primeiro capítulo, as transformações
econômicas em curso desde os finais da década de 1960 tem sido marcada
pelo movimento do capital no esforço de reorganizar a esfera econômico-
social. A crise profunda significa que, após esse longo período em escala de
ascensão e expansão, é preciso reestabelecer novos padrões de acumulação
para a sobrevivência do capital. Com efeito, a relação capital-trabalho
também se modifica e o padrão fordista entra em crise, abrindo a
possibilidade para o que se convencionou denominar de Toyotismo. Por
seu turno, o Welfare State também passou a ser combatido politicamente,
224
pois a ofensiva neoliberal que se fortaleceu em âmbito mundial era a de
intervenção mínima do Estado na economia de mercado.
A partir do que apontou Mészáros (2011), a crise do capitalismo
despertou um movimento descendente no capital, buscando responder aos
limites expansionistas saturados, a recuperação da lucratividade seria
lançada sobre as esferas sociais onde se resguardava assistência social,
educação, saúde e previdência dos trabalhadores. De modo específico na
educação, o capital busca integrar os processos educativos à lógica de
mercado, abrindo um verdadeiro mercado educacional em que o capital
poderia encontrar margens para repor a perda da lucratividade. Para isso,
era imperativo reduzir a participação estatal na oferta estatal ou mesmo
investir em parcerias público-privadas de modo que favoreça a
acumulação.
Podemos indicar, lembrando o que já tratamos no primeiro
capítulo da nossa exposição, sinteticamente, os pilares direcionados à
periferia capitalista: a) a reestruturação financeiro-monopolista-
imperialista combinando acumulação de capitais nas economias centrais
de capitalismo mais avançado e a dependência cada vez maior das
economias nacionais periféricas; b) a reestruturação produtiva que
incrementa, por meio de inovações tecnológicas, e requer da força de
trabalho o consentimento de relações flexíveis e autônomas em favor da
acumulação capitalista; c) a reformulação do papel do Estado frente às
necessidades sociorreprodutivas do capital (educação, saúde) culminando
com a ascensão (neo)liberal; d) a ativação de novos dispositivos ideológicos
que reforcem, de forma inquestionável, a ordem estabelecida
(MÉSZÁROS 2011; ANTUNES, 2009; ALVES, 2011).
A reordenação do papel do Estado era uma questão imprescindível
desse processo, pois a sua atuação favorável, ainda mais amplamente, ao
capital, demanda uma rearticulação das relações entre as esferas pública e
225
privada, eixo da atuação estatal frente às demandas de uma sociedade de
classes. O atendimento dessas demandas não passaria necessariamente de
amplo debate com a sociedade, tendo em vista a derrota de tais proposições
no campo político (FRIGOTTO et. al., 2012). Era imperativo assegurar a
vitória do lucro sobre o trabalho também nesse âmbito. A investida do
capital, inspirada nas concepções neoliberais, tem sido, no sentido de
conversão da educação, um serviço que, como qualquer outro bem de valor
à humanidade, deve ser comercializado pelo mercado.
Os serviços mantidos pelo Estado podem gerar lucros às
organizações financeiras, mesmo que não ocorram privatizações. Essa
lógica tem sido difundida pelos organismos financeiros que representam
os interesses do capital, entre os quais os Organismos Multilaterais
Internacionais, doravante denominados OMIs. As reformas encaminhadas
por essas instituições aos Estados nacionais da periferia capitalistam a
escolarização como um setor estratégico para que, sobretudo, possa
impulsionar o desenvolvimento econômico.
A agenda político-econômica reformista dos OMIs aos países da
periferia capitalista tem recomendações quanto à escolarização
implementadas pelo Estado, de maneira particular um alvo predileto.
Sobre essas orientações, surgem questões e críticas ao papel social da escola,
à estrutura organizacional do sistema de ensino, aos métodos que se
empregam no processo aprendizagem-ensino-aprendizagem, apontado
como retrógrado e inadequado frente às exigências das últimas
transformações produtivas. Esse é o sucinto cenário em que os defensores
do capital almejam políticas públicas visando reformulação do contexto
escolar.
Adequar a escola, portanto, aos novos parâmetros do capital, é
também formar jovens trabalhadores, a força de trabalho renovada, como
aponta Alves (2011, p. 24), é o “ponto de futuridade da reprodução
226
social”. O capital exige um “novo perfil” dos trabalhadores: “qualificado”
a exercer múltiplas funções, apto a se inserir na esfera do trabalho
estranhado, flexível para trabalhar com ou sem contrato, dócil para
suportar o estado de “desempregabilidade”, que circule entre trabalhadores
da ativa e o exército de reserva, disponível para trabalhar em qualquer
horário, seja no ambiente da fábrica, empresa, hospital ou escola, entre
outras modalidades de trabalho que só existem no curto espaço de tempo,
nos nichos de mercado cada vez mais instáveis. Em suma, a lógica de educar
o trabalhador, significa a luta do modo de produção capitalista em formar
personificações que atendam aos seus anseios, qual seja o de difundir o
conhecimento demandado por seus interesses, isto é, incorporando as
novas gerações de trabalhadores à força de trabalho.
Esse processo revela um vínculo ainda mais estreito entre a escola
e a produção, cada vez mais reflexo da relação capital e trabalho. Nesse
caso, a eficácia e eficiência ajustando os processos formativos mais
acelerados e precoces da juventude aos padrões do mercado de trabalho. A
educação profissional não seria apenas uma etapa complementar, apêndice
do processo de escolarização, mas imprescindivelmente integrada ao
sistema que conecta a nova geração de trabalhadores ao processo de
acumulação do capital. No quadro de desemprego crônico e estrutural se
impõe aos trabalhadores a obrigação de se vender como força de trabalho
e, por isso, apresentar-se como empregável, praticamente torna obrigatório
aos jovens, das frações mais pobres da classe trabalhadora, ter no currículo
um curso profissionalizante. A exigência de uma escola que forme agora o
trabalhador para um mundo em “câmbio constante”. Esse ‘novo’ modelo
escolar deve apresentar algumas especificidades: planejamento, currículo,
metodologia, conteúdo, didática, avaliação, entre outros elementos do
processo de ensino-aprendizagem que podem dar garantias ao próprio
Estado, aos empresários e às agências internacionais de financiamento,
227
quanto à eficiência educativa almejada pelo mercado de trabalho
contemporâneo.
Como apontamos acima, os OMIs são os melhores interlocutores
desse anseio capitalista. Sua atuação em sintonia com o capital financeiro
os torna os principais incentivadores do processo reformista, entre os quais
o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a
Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura
(UNESCO), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Na
América Latina (AL) destacam-se a Organização dos Estados Americanos
(OEA) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
(CEPAL). De acordo com o discurso propagado pelas agências
internacionais, a educação induz ao crescimento econômico ao formar
trabalhadores qualificados para uma maior competitividade no mercado
internacional, ao mesmo tempo em que combate o desemprego. Orienta-
se, desse modo, a privatização do ensino superior, e propõe-se ao Estado
assumir apenas a educação básica. Nesse cenário, as agências internacionais
lançam uma nova receita, um novo ideário para o complexo educativo,
diante do colapso da ordem bipolar da guerra fria, destarte, atentando para
o que dita a “globalização”, em outras palavras, a adaptação ao mercado de
trabalho capitalista. Essa perspectiva reforça a exigência de um reformismo
na escola pública, porém conservando o dualismo estrutural. Importa
formar cidadãos produtivos e consumidores.
Na condição de economia periférica e dependente, o Brasil se
tornou consignatário do Consenso de Washington em 1989. O capital
imperialista exigiu que os países devedores só tivessem renegociadas suas
dívidas
44
e acesso ao crédito internacional se aderissem ao pacote neoliberal
44
O endividamento externo é uma das principais características de uma economia dependente e
subordinada ao capital imperialista.
228
de ajuste do Estado e da economia ao mercado dito “globalizado”. Em
outros termos, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, o FMI e
o Banco Mundial exigiram abertura ainda maior ao capital financeiro e
especulativo, flexibilizando e até abolindo as barreiras protecionistas ao
capital de bens, produtos e serviços, desregulamentação de setores da
economia em que predominavam empresas estatais, estimulando a livre
concorrência do mercado e privatizações. A agenda dos OMIs sob o viés
neoliberal abriu um processo de reformismo a fim de coordenar ações da
“competitividade na economia globalizada”, efetuando transformações em
diversos setores da estrutura social, entre os quais a educação.
A necessidade de intervenção nos Estados nacionais periféricos
ressaltou o papel dessas medidas como coordenadoras de ajustes
estruturais. De acordo com Leher (1999), as reformas educacionais que
redefiniram o papel dos sistemas educacionais estão situadas no bojo dos
encaminhamentos do Banco Mundial, guardando íntima correlação com
governança-segurança. Para o autor, o BM se tornou um ministério
mundial da educação dos países periféricos e sua agenda busca a sintonia
com o Estado nacional. Essa mudança de orientação, que elege a educação
como estratégia de desenvolvimento, foi adotada na geso de Robert S.
McNamara (1968-1981), ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos.
McNamara e os demais dirigentes do Banco abandonaram
gradativamente o desenvolvimentismo e a política de substituição das
importações, deslocando o binômio pobreza-segurança para o centro
das preocupações; é neste contexto que a instituição passa a atuar
verdadeiramente na educação: a sua ação torna-se direta e específica. O
Banco volta-se para programas que atendam diretamente às populações
possivelmente sensíveis ao “comunismo”, por meio de escolas técnicas,
programas de saúde e controle da natalidade, ao mesmo tempo em que
promove mudanças estruturais na economia desses países, como a
229
transposição da “revolução verde” para o chamado Terceiro Mundo
(LEHER, 1999, p. 22).
A governança e segurança, pretendidas pelo pacote de ajustes
estruturais que garantisse mecanismo que forme uma determinada
consciência ideológica favorável à hegemonia do capital e a direcione para
o viés mercadológico do capitalismo, desenvolvem-se ao longo da atuação
de McNamara. O financiamento da educação passou a ser uma ação
estratégica do BM, combinado com as regulamentações do FMI,
principalmente nas décadas de 1980 e 1990.
A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico
e social. Ela é central na estratégia do Banco Mundial para ajudar os
países a reduzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento
sustentável e investimento no povo. Essa dupla estratégia requer a
promoção do uso produtivo do trabalho (o principal bem do pobre) e
proporcionar serviços sociais básicos para o pobre (WORLD BANK,
1990, apud LEHER, 1999, p. 25).
O discurso de combate à pobreza na proposta do BM se conecta
necessariamente à força trabalho enquanto mercadoria, um bem
econômico. A educação teria como papel fundamental desenvolver-se e
conectar-se ao circuito da produção e do consumo mercadológicos. No
final da década de 1980, segundo Leher (idem), a concepção do BM
passou a eleger como prioridade o ensino fundamental (uma das etapas da
educação básica) e a profissional precoce e aligeirada, dessa forma o Estado
reduziria recursos de outros níveis de ensino para garantir o pagamento da
dívida aos investidores. O discurso de combate à pobreza faz jus às suas
implicações de obscurecer a realidade,
230
o BM como promotor da educação para todos, nomeia o processo de
emprestar dinheiro e receber como garantia o ajuste fiscal dos países
devedores, que, por sua vez, hipoteca o pagamento da dívida externa
dessas nações e ainda penhora os seus processos educativos às
requisições dos mecanismos de mercado de “círculo virtuoso”
(SANTOS, 2012, p.133, aspas do original).
Nesse quadro, o BM se tornou um coordenador da educação nas
economias periféricas frente às necessidades de implantar e desenvolver
sistemas educacionais como menos recursos e mais ideologicamente
afinados com parâmetros da economia global a partir de sua crise de
acumulação continuamente interrompida pelos limites absolutos
alcançados pelo sistema capitalista.
A atuação do BM é apoiada em estudos e pesquisas que contam
com a colaboração de intelectuais dos países consignatários dos acordos
multilaterais com ele próprio, com o FMI, UNESCO-ONU e UNICEF-
ONU, entre outros, alinhados aos interesses do capital imperialista. O
principal movimento internacional promovido pelos OMIs foi o Educação
para Todos (EPT). Apregoando a precariedade da educação nos países
pobres como principal entrave para o desenvolvimento econômico, a
ONU e o Banco Mundial (BM) orientam os Estados nacionais a
assumirem a obrigatoriedade de prover a educação básica e não o processo
educacional como um todo. É nesse contexto que o capital, de caráter
neoliberal, aciona seus ventríloquos tanto no mundo como no Brasil,
especialmente a partir da década de 1990 (MENDES SEGUNDO, 2005).
Os interesses político-econômicos são veladamente encobertos
pelo discurso de combate à pobreza e universalização do sistema de ensino,
gerando nos jovens trabalhadores, particularmente das regiões periféricas
do capitalismo, a ideia de oportunidades “iguais” na luta pelo emprego
231
(JIMENEZ, 2010). Para a autora, a tendência das diretrizes educacionais
estabelecidas pelos organismos multilaterais em suas conferências associa
constantemente a educação ao desenvolvimento econômico. A
qualificação e requalificação da força de trabalho se tornava um pilar
necessário para o desenvolvimento econômico de países da periferia
capitalista, contudo, esconde-se que a dependência de financiamento
externo desses países junto ao BM e FMI alimenta uma verdadeira
hipoteca de longo prazo sobre o futuro dos jovens, viabilizada pelo Estado.
As relações entre o Estado brasileiro e os OMIs, mais
especificamente o Banco Mundial, resultam de complexa rede de
elementos (LEHER, 1999). Um deles é marcado pela característica
histórica da particularidade brasileira, cujo desenvolvimento econômico se
processou pela via dependência externa e pelo processo de dominação
burguesa voltado à superexploração da força de trabalho. A articulação
entre esses dois eixos possibilita vantajosos negócios lucrativos tanto para
a burguesia nativa quanto para a internacional. Nesse sentido, a
configuração do Estado brasileiro favorece o bloco histórico burguês que
reproduz sua hegemonia e bloqueia qualquer alternativa de poder que
ameace seu status quo (FERNANDES, 1976; MAZZEO, 2015).
Isso significa que as diretrizes estabelecidas pelos OMIs são
determinações concretizadas pela via de mão dupla com as classes
dominantes dos Estados nacionais. O próprio BM recruta intelectuais,
cujo vínculo orgânico é com a classe dominante, que realizam estudos e
propõem orientações balizadoras à atuação do órgão. O fato é que ao
recorrer a empréstimos do BM, o Estado está de certa forma se
subordinando a desenvolver uma política coerente com as diretrizes do
órgão para a educação (FERNANDES, 1972; LEHER, 1999).
Como se constata em diversas pesquisas, na década de 1990, os
organismos multilaterais assumiram o papel de direcionamento das
232
políticas sociais, com ênfase na esfera educativa, de forma que atendam aos
interesses do mercado, como afirma Jimenez (2010, p. 35).
A partir da Conferência de Jomtien, em 1990, todos os acordos
socioeconômicos entre os países devedores terão como pré-requisito as
reformas institucionais desenvolvidas na periferia do capital, sobretudo
as reformas educacionais, cujo cunho ideológico se apoia na
possibilidade de cidadãos-consumidores aprenderem a administrar as
suas vidas de forma gerencial e empreendedora, condição essa que o
capital propaga como forma única para reduzir a pobreza e garantir
sustentabilidade econômica.
Um outro elemento que reflete na política educacional do Estado
é a relação entre as esferas pública e privada. A crise do Estado no âmbito
da totalidade do modo de produção capitalista, que empreende uma
constante reestruturação frente à crise, fortaleceu no âmbito internacional
a corrente político-ideológica neoliberal. Sob a ótica neoliberal, a crescente
subordinação da esfera pública aos interesses privados contribuiu para que
a educação fosse orientada pelos valores mercadológicos. Essa
subordinação do complexo educativo se dá em escala mundial, pois a
escola torna-se um espaço da reprodução do valor-capital, tendo em vista
o estado de crise estrutural e a necessidade de expandir o capital para áreas
em que se possa reverter a tendência de queda da taxa de lucro. A atuação
do capital nas áreas periféricas da economia mundial revela o peso
mandatório dos chamados organismos multilaterais, como o FMI e o
Banco Mundial (BM), sobre as políticas públicas sociais (LEHER, 1999).
A reordenação do papel do Estado, pretendida pelas elites, para
atuar em favor, ainda mais amplamente, ao capital, demanda uma
rearticulação das relações entre as esferas pública e privada. No Brasil, o
reformismo na educação não é apenas resultado de determinações
233
exógenas, o processo histórico de luta pelo fim da ditadura civil-
empresarial-militar revela muitos elementos da luta de classes.
Enquanto uns pretendiam que o Brasil fosse o primeiro país capitalista
a adotar a politecnia como princípio educativo e queriam ver os germes
dessa pedagogia nas escolas técnicas existentes, outros cerravam fileiras
na defesa dos sistemas de aprendizagem controlados pelo patronato,
rejeitando o controle estatal e/ou a participação dos sindicatos de
trabalhadores em sua gestão (CUNHA, 2002, p. 111).
O Estado brasileiro passou por processo de reconfiguração
institucional tendo como marco a Constituição de 1988. As disputas entre
as classes e frações de classes influenciam os rumos da política educacional,
em particular a direcionada à educação profissional. Mesmo antes da
Constituição, as discussões em torno do ensino médio e educação
profissional já despontavam entre os diversos segmentos e grupos sociais.
Antes, porém, de abordar mais detalhadamente a evolução dessas
disputas, considero importante tecer breve análise sobre o rearranjo
político-institucional do Estado a partir de 1988. Por conseguinte, a
posição que o bloco histórico dominante assumiu perante a necessidade do
capital brasileiro em integrar-se e sintonizar-se, em âmbito internacional,
ao mesmo tempo em que modernizariam certos padrões de produção e
com ele novas exigências sobre o trabalho.
A transição de ditadura civil-empresarial-militar para social-
democracia liberal não rompeu com o padrão autocrático, germinado
desde o processo de independência e amadurecido na era republicana,
culminando pelo golpe de 1964. Não negamos as transformações
socioeconômicas, a abertura aos direitos civis, políticos e sociais ocorridos
na sociedade como avanços, mas anotamos que o cerne da dominação de
234
classe vem acompanhado pela reposição do velho, sob aparência do novo,
através do consenso. O golpe civil-empresarial-militar rompe com a
institucionalidade democrática da Constituição de 1946. Este movimento
abriu a possibilidade para aprofundamento da institucionalização da
autocracia pela via da coação, da força repressiva e da eliminação física dos
subversivos contrários à ordem instituída. A autocracia burguesa entraria
em uma nova fase após vinte anos do golpe de 1964. Na análise de Deo
(2011), a transição tendo como marco a Constituição de 1988 representa
um novo momento da institucionalização autocrática. Os estatutos legais,
apesar dos avanços, ainda dependem da correlação de forças políticas
provenientes da luta de classes. Esta, por sua vez, está condicionada pela
estrutura das forças produtivas de uma economia voltada para a agro
exportação de gêneros primários, as commodities, enquanto a grande
indústria que produz bens manufaturados, muitas delas filiais de empresas
multinacionais, atendem demandas internas. A economia nacional, de alto
valor agregado em conhecimentos avançados que produz tecnologias e
serviços, não tem expressão. Nesse aspecto a dependência é ainda maior no
mercado externo.
Na história brasileira, como parte do desenvolvimento desigual e
combinado, a educação se estrutura a partir da divisão dual entres as esferas
lato e restrita. Essa dualidade é determinada pela divisão do trabalho e o
antagonismo de classe constitui a primeira cisão. No capitalismo surge
uma nova divisão: propeutico e profissionalizante. Esta última é parida
dentro de um sistema já dual, por isso a chamo de dicotomia. As divisões
dual e dicotômica são de naturezas distintas. A primeira dualidade: lato
e restrita é de natureza da luta de classe; a segunda dicotômica:
profissionalizante e propedêutica, é da substância do capitalismo. Por isso,
é impossível ao capitalismo acabar com a dualidade, pois alimenta-se da
miséria que, por sua natureza, precisa da divisão entre cabeça e mãos,
235
profissional e propeutico etc. A dicotomia educacional capitalista separa
teoria e prática, conteúdo e método,cleo comum de ensino mais geral
e parte profissionalizante. Esse processo é resultado tanto das relações de
produção e da luta de classes na particularidade brasileira quanto do
processo de dominação que o capital externo exerce sobre o capital
nacional. Aliás, como já demonstramos, a burguesia brasileira é associada
e dependente dessa relação de mútua existência (FERNANDES, 1976;
MAZZEO, 2015). A posição hegemônica da burguesia brasileira sobre as
classes subalternas, na realidade nacional, é escopo de inúmeros
movimentos ao longo da história visando à manutenção do status quo.
Qualquer movimentação que colocou em risco a posição hegemônica da
burguesia na realidade brasileira foi ampla e violentamente combatida e
extirpada.
De acordo com Mazzeo (2015), os elementos históricos
autocráticos estão lançados desde 1822 quando velhas formas de
dominação da elite econômica brasileira, em seu complexo político,
lançam mão do artifício da independência política, sem romper com isso,
com as velhas formas de poder dominantes sobre as classes sociais. O Poder
Moderador, por exemplo, introduzido na Constituição de 1824 consiste
em artifício, que segundo Mazzeo (2015) e Deo (2011) é um instrumento
autocrático de poder. Através dele foi afastada qualquer possibilidade de
movimento político popular pela via institucional que contestasse a ordem
vigente. A emancipação política brasileira não foi produto de amplas
movimentações de classes sociais, mas da articulação pelo alto feita pelas
elites econômicas, diferente dos países de capitalismo avançado no
Ocidente, cuja revolução burguesa implantou valores e ideais de cidadania
que superaram o poder aristocrático feudal. Aqui esse movimento foi
filtrado por dentro do Estado, primeiro, como forma de garantir que o
círculo de poder fosse limitado em torno do imperador. E segundo,
236
afastava qualquer possibilidade de influência que viesse do meio popular,
abrindo espaço para conciliação pelo alto, isto é, no interior da
institucionalidade.
Na mesma linha também foi o Golpe da Maioridade, que investiu
Pedro II como Imperador de forma antecipada (MAZZEO, 2015).
Através desse movimento buscou-se conter as revoltas contra o poder
central e estabelecer um pacto que assegurasse a estabilidade institucional
e o poder econômico das elites dominantes. Com a ascensão do poder
econômico da cafeicultura na esfera política assim como dos militares, o
desgaste do poder monárquico desembocou no golpe republicano. As
oligarquias das classes dominantes derrotaram o regime monárquico para
que elas mesmas conduzissem suas concepções de modernidade e
desenvolvimento. Com as fronteiras do poder bem delimitadas, o processo
político ficou sempre sob controle das classes enriquecidas. Outro
exemplo histórico de autocracia é 1937 e 1964. Em 1937, o Estado Novo
rompe a institucionalidade, embora frágil, da Constituição de 1934. A
partir daí, estabelece-se um padrão político de controle do poder,
protegendo as classes econômicas que constituíam sua base de apoio a
qualquer ameaça classista que pusesse em risco sua dominação. Em 1964,
o golpe militar, apoiado por amplos setores empresariais e amparado por
movimentos conservadores da sociedade civil, rompe com a
institucionalidade e consolida a autocracia como forma de poder
preventiva e hegemônica. Em todos esses processos as classes subalternas
são reprimidas, a classe trabalhadora principalmente, como demonstra
análise de Queiroz et. al. (2014, p. 141).
Reticente às vias clássica e prussiana, a burguesia brasileira mostrou-se
refém de uma via preferencialmente colonial em que ela jamais esteve
predisposta a testar os limites da democracia política. Em traços largos,
237
sempre que tal possibilidade esteve colocada, essa classe não se
embaraçou em lançar mão de sistemas despóticos de poder (Estado
Novo, Ditadura Militar etc.) ou/e de medidas de inspiração reativa
(estado de sítio, desterro, proibição de funcionamento dos partidos
comunistas e a quase recorrente censura da imprensa). Houve inúmeras
variações, mas esse foi o padrão básico do século XX. Em seu curso
histórico, o sistema despótico de inspiração militar redundou em uma
dessas formas capitalistas reacionárias assentadas em um programa
imposto a partir de cima e em realizações por fora das estruturas
democráticas habituais.
A burguesia brasileira prefere a combinação de traços autoritários
com elementos democráticos, contanto que resguarde sua dominação
capitalista. A transição da ditadura civil-empresarial-militar para a
institucionalidade democrática em 1988 se deu de modo lento e gradual
de tal forma que a burguesia assegurasse o processo de abertura sem
permitir a ascensão de forças políticas populares (DEO, 2011). A
redemocratização guardava complexas movimentações em torno da luta de
classes. Para Netto (2014), diante da escalada das pressões vindas das ruas
para o fim do regime ditatorial, um dos temores dos militares e aliados era
que dentro do processo de redemocratização surgisse um líder que
assumisse o poder e passasse a persegui-los. A “redemocratização” do Brasil
era uma frente cada vez mais forte e nesse sentido o bloco no poder,
planejou orientar eleições que representasse abertura potica, entretanto, a
partir de uma conjuntura que permitisse relativa proteção e projetassem
seus aliados civis. Além de militares que já dialogavam com os defensores
da democracia, alguns setores da burguesia e até mesmo oligarquias
financeiras, também se posicionavam ao verem o quanto estava desgastado
o regime militar (NETTO, 2014).
238
Para entender a institucionalização da autocracia vamos apresentar
o quadro que cercou a reabertura política lenta e gradual, assim poderemos
avaliar o peso que esse processo tem na implementação de reformas da
educação profissional e do ensino médio via decretos.
Após derrotar a Emenda Dante de Oliveira, a eleição para
Presidente da República se deu no Congresso Nacional, o chamado
Colégio Eleitoral conforme o estabelecido pelos militares na Constituição
de 1967. Lembramos que a manobra política visava garantir uma transição
de poder dos militares para civis, todavia, criando obstáculos para se chegar
a um líder popular e eleito democraticamente. Na eleição de 1985,
disputaram Tancredo Neves (PMDB) para presidente e José Sarney (FL)
como vice-presidente contra Paulo Maluf (PDS), tendo como vice-
presidente Flávio Marcílio. Destacamos que José Sarney liderou uma
dissidência no PDS que se formou sob a denominação de Frente Liberal,
futuro Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente, Democratas (DEM).
Após a vitória do PMDB-FL nas eleições no Colégio Eleitoral, Tancredo
Neves apresentou um quadro clínico de saúde que o levou à morte antes
da posse. As tensões aumentaram sob o preceito de que o Presidente eleito
não tomaria posse do cargo, abrindo a possibilidade de postergação da
ditadura. Contradições nesse processo não são poucas, mas indicamos uma
das mais importantes: outrora, a Frente Liberal, estava na base de apoio ao
regime de exceção e agora aparece coligada com as forças democráticas.
Esses elementos apenas confirmam a tese de “Pacto das Elites” para
continuar à frente da máquina estatal de controle social (NETTO, 2014).
O “Pacto das Elites” tinha a função de aglutinar forças político-
econômicas constituindo um bloco de poder. O acordo político-
econômico entre as frações de classes dominantes, financeira e industrial,
alcançou unidade em torno do projeto neoliberal que, segundo Del Roio
(2014), pressupunha uma democracia de mercado. Por sua vez, esse bloco
239
concentrou esforços para garantir a vitória eleitoral de Fernando Collor de
Mello em 1989. Essa vitória, pensavam essas elites, abriria o caminho para
a reafirmação da hegemonia burguesa brasileira, atrasada frente às forças
sociais e políticas vindas do trabalhismo e da esquerda. As medidas iniciais
adotadas pelo governo Collor em direção à abertura econômica agradavam
ao capital bancário, mas também criaram tensões. A abertura comercial
num ritmo acelerado promovia grande descontentamento na burguesia
industrial que, interessada em defender seus interesses corporativos,
exerceu grande preso sobre as políticas do governo. As medidas para
conter a inflação fracassaram. Seus impasses entre proteger os interesses de
frações da burguesia e a necessária abertura ao capital internacional
geraram desgaste e isolamento do governo e tensões com o Congresso
Nacional.
Nos anos 1990, a perspectiva neoliberal ganhou força, nas eleições
de 1989 havia vencido um grupo de político sob a liderança de Fernando
Collor de Mello (1990-1992), apoiado em concepções neoliberais, assim
como a via escolhida pelo governo Itamar Franco (1992-1994) e Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002). Na perspectiva neoliberal havia fatores
internacionais pressionando as mudanças nos ajustes estatais. Essa
demanda absorvida pelas elites no poder, já que estavam associadas a esse
capital externo, visava responder pelas ansiedades das novas elites e pela
modernização e inserção no circuito da economia dita globalizada. Para
isso, tornou-se urgente a identificação de obstáculos ao seu próprio
crescimento e lucro, atacando o dirigismo econômico estatal imposto por
governos nos quais o movimento sindical conseguiu estabelecer algum
poder de influência e ganhos para as classes trabalhadoras. Era necessário
criar as bases para a implantação do Estado “mínimo” no Brasil. As
Reformas de Estado do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC)
aprofundam esse viés neoliberal reordenando a estrutura administrativa
240
com privatizações e desregulamentação do papel do Estado em vários
setores econômicos e sociais.
Esse movimento político da elite brasileira e suas frações
dominantes atrasadas se vestiram com o manto da social-democracia a
partir da coalizão em torno do Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB). Essa tenncia pode ser observada também no Governo Lula,
com retoques mais progressistas (DEO, 2011). A despeito da aparência, a
vestimenta aparentemente moderna, o velho modelo bonapartista de
extração colonial, por sua vez, autocrático, continua se reproduzindo nas
instituições do Estado (QUEIROZ; COSTA; SANTOS, 2014). Posando
de social-democrata, a elite busca o consenso, a conciliação entre suas
frações para reafirmar sua posição associada perante o capital externo.
De acordo com Mazzeo (2015, p. 80), a “ideologia da conciliação”
brasileira se desenvolve no processo desde a nascente na burguesia
brasileira, a partir dos traços socioeconômicos da colonização. Essa
ideologia “é a expressão de uma burguesia débil economicamente anômala
que, para se manter no poder, concilia sempre com interesses externos e,
internamente, pauta-se pela violenta repressão das massas populares, em
nível extremo, a escravidão colonial encarna e expressa”.
Para Deo (2011), a transição da ditadura para o regime civil à long
terme criou as condições para a reorganização do Bloco Histórico
45
burguês, que se ergue a partir do “Pacto das elites”, sob a liderança da
burguesia financeira e industrial, como revela o autor,
45
Bloco histórico que se refere à composição de classe que se organiza para exercer um poder que
se faz dominante. Ver Gramsci.
241
Os contornos finais da construção desse novo bloco histórico só foram
definidos a partir do governo de Collor de Mello, e a fração financeira
da burguesia internamente instalada seria a grande vitoriosa. O modelo
inaugurado por Collor representou a reestruturação do complexo
econômico social brasileiro, com vistas a inserir o país nos ciclos
internacionais da mundialização do capital, cuja orientação, ritmo e
lógica obedeciam às “ordens” do capital financeiro. No entanto, a
hegemonia da fração financeira do capital no interior do bloco
histórico somente se confirmaria com a ascensão de Fernando
Henrique Cardoso, sendo que tal hegemonia corresponde ao momento
de consolidação da social democracia brasileira com a eleição de Luiz
Inácio Lula da Silva (DEO, 2011, p. 68, grifos nossos).
Após a Constituão de 1988, o “pacto das elites” centrais e satélites
no interior do Estado brasileiro reorienta o bloco histórico após a saída dos
militares. O processo eleitoral de 1989 revela a síntese desse processo.
Fernando Collor de Melo se torna o candidato dessas elites diante da
possível vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, pelo Partido dos
Trabalhadores, que naquele momento histórico tinha uma plataforma
política construída sobre as bases dos movimentos sociais e no calor das
lutas pela redemocratização. O acordo político-econômico entre as frações
de classes dominantes, financeira e industrial, alcançou unidade em torno
do projeto neoliberal. Esse projeto neoliberal, uma democracia para
mercado, ampliaria as margens de recuperação lucrativa em favor do
capital. Por sua vez, esse bloco concentrou esforços para garantir a vitória
eleitoral de Fernando Collor de Mello em 1989.
A vitória de Collor consolida o bloco histórico. Esse movimento é
analisado por Deo (2011) e Maciel (2014). As observações dos autores
indicam que mesmo que Sarney ou Collor não tenham conseguido
administrar o acordo do grande capital, isso não muda o fato básico.
Principalmente a vitória eleitoral de Collor, pensavam essas elites, abriria
242
o caminho para a reafirmação da hegemonia burguesa atrasada, frente aos
novos padrões internacionais de acumulação capitalista que passaram a
prevalecer no quadro de crise. Em contrapartida, bloqueariam as forças
sociais e políticas vindas do trabalhismo e da esquerda. A formação desse
bloco histórico é a afirmação política da burguesia frente à
institucionalidade do Estado, combinando velhas práticas de
aparelhamento e paternalismo com vestimentas modernas da via
democrática. Veremos mais adiante que essa premissa política atuará no
desenrolar das reformas da educação profissional.
A unidade em torno do projeto econômico neoliberal representa as
forças políticas da classe dominante, renovadas em torno da aparente social
democracia, a partir de seus condicionantes histórico-particulares.
Aparente porque a burguesia conserva, desde sua essência colonial, o
caráter politicamente autoritário, impossibilitando-a de assumir mais
amplamente tarefas democráticas, sob o temor de perder o status quo. A
burguesia brasileira busca dirigir a luta de classes e o faz por diversos meios,
uma das principais vias é a institucionalidade. Através dela o elemento
autocrático se renova através do jogo político, especialmente pela via
parlamentar na qual os grupos políticos hegemônicos asseguram postos
centrais e cargos estratégicos no aparelhamento estatal. A burguesia usa a
instituição de leis que preservem seus interesses em detrimento de outros,
estruturando uma forma de dominação, por sua vez, fragmentando e
excluindo setores que compõem a classe trabalhadora (MACIEL, 2014).
Seguimos aqui a síntese elaborada por Deo (2011, p. 69) sobre a
via social-democrática no processo político brasileiro. Para o autor, a
adesão brasileira à social democracia não se constitui pela via clássica, a
social democracia clássica é aquela forma de governo que se desenvolveu
em alguns países da Europa Ocidental a partir do período entre as duas
grandes guerras mundiais”. A forma particular como o debate da social
243
democracia no Brasil se viabiliza remete ao período de crise do Estado de
bem-estar nos países europeus de capitalismo avançado. Isso significa que
a adesão das frações da classe burguesa à social-democracia ocorre no
período da deflagração de sua crise, frente à crise do capital. Por isso, a
análise do referido autor considera que mesmo o caráter reformista dessa
forma política é alterado, particularmente ainda mais, sob as condições de
capitalismo periférico. Com a crise e a ascensão neoliberal, a social-
democracia não tinha alternativa que não fosse defender a propriedade
privada em detrimento do interesse público, combinando elementos do
bonapartismo e do fascismo, relativizando a democracia. As reformas,
traço característico da social-democracia, são empreendidas de modo
oposto ao seu conceito clássico, assumindo o viés neoliberal, atrelado à
reestruturação do capital. Seguindo as observações de Deo (2011), a social
democracia como forma de dominação se constitui, na particularidade
brasileira, não em sua forma clássica, mas como anomalia da via de
desenvolvimento dependente, prussiana e de extração colonial, por
resguardar a hegemonia burguesa sob a forma aparente de democracia.
Para Deo (2011, p. 42), a social democracia, apesar de todas as
transformações econômicas, sociais e culturais já efetivadas na sociedade
brasileira, ainda persiste e repõe o historicamente velho. Pela lógica de
modernização burguesa, “o elemento autocrático não é superado, sequer
negado, pela estrutura sociometabólica desenvolvida no país”. Para o bloco
histórico recém-reconfigurado, a Constituição de 1988 estabelece a
democracia representativa fundamentada no ideal do liberalismo político,
o que pressupõe um sistema político pautado na criação de instituões que
permitam seu funcionamento formal. As classes dominantes teriam que
construir seus interesses pelo consenso eleitoral e pela via institucional do
Estado e do Direito. Desse modo, a composição multipartidária, que
passou a ilustrar a democracia representativa, na verdade compõem e
244
representam frações de classes que precisam se aglutinar para fazer valer
seus interesses de classe.
A democracia de cunho liberal, eleitoral e representativa deve
refletir um nível de concepção de natureza humana, base da estrutura social
em que o indivíduo seja sua premissa inicial, assim define Lamounier
(1981), intelectual orgânico da classe burguesa no Brasil.
Consequentemente, o Estado e o Direito são os outros dois elementos
primordiais no sentido de garantir o reconhecimento ao indivíduo na
esfera pública e privada. O trabalho livre e a igualdade perante a lei são as
bases na qual se ergueram elementos pilares para a resolução dos conflitos
sociais, tendo a sociedade política e o Estado de Direito como suas
representações institucionais (idem). A realidade econômica, no entanto,
reserva a milhões de trabalhadores a condição de desempregado
permanente. O que, em suma, contrasta com a assertiva do intelectual da
burguesia nativa. Diante das necessidades do trabalho, Deo (2011, p.44)
expõe o princípio que tal assertiva não esclarece.
A reposição de forma vertiginosa do individualismo, próprio da
ideologia liberal, promove uma espécie de privatização das relações
sociais, onde a noção de indivíduo, mônada fechada em torno de
interesses privados, absorve e explicita um conteúdo radical,
reafirmando o princípio fundamental da propriedade burguesa, onde
a realização do “eu” condiciona necessariamente a não-realização dos
“outros”.
Na perspectiva liberal, o Estado, como a expressão da hegemonia
de um grupo político que paulatinamente “herdava” dos militares o poder
para tocar a burocracia eleitoral e controlar o jogo “democrático” no
Congresso Nacional, se viu pressionado por diferentes forças políticas. Sua
245
habitual capacidade de congregar os interesses do capital foi ameaçada,
uma vez que a diversidade não permitia políticas que atendessem as
vantagens e lucros de todos os blocos de poder. Portanto, controlar o poder
estatal direcionaria sua atuação visando a um determinado campo
econômico. Nesse sentido, a burguesia não romperia com o viés
autocrático institucional, pois ele é condição sine qua non para realizar a
modernização conservadora.
A perspectiva desenhada por Lamonier acima, alinhada ao campo
liberal burguês, reforça, na verdade, a constatação de forma contrastante
de Deo (2011, p. 47), ao entende ser esta o cerne da modernização
conservadora, pois “a burguesia representada pela social democracia será
responsável pelo resgate da ortodoxia liberal, arrimo do projeto
econômico-político do bloco histórico que se consolida a partir do governo
Fernando Henrique Cardoso” e depois se realinha com o governo de Lula
da Silva.
A democracia eleitoral representativa, inspirada pelo liberalismo
político sob a roupagem da social democracia, inserida, por sua vez, no
contexto histórico do capitalismo dependente e com traços fortemente
autocráticos, constitui-se um bem-acabado arranjo de hegemonia burguesa
(DEO, idem). Esse arranjo se constrói pelo desenvolvimento de diversas
relações e uma delas tem como ponto de partida, o processo eleitoral. O
voto se torna o instrumento que busca consensos entre partes heterogêneas
da fisiologia social dos grupos sociais e ao mesmo tempo restringe, limita
a luta de classes ao campo político no interior do Estado. Essa via favorece
a burguesia, tendo em vista serem dela os sujeitos e partidos com maior
capacidade de investimento no pleito e terem maior poder de influência
no processo, elegendo, por sua vez, uma maioria. Em seguida, o Congresso
e a legislação de onde brotam, criam ordenamentos imperativos, que na
maioria das vezes bloqueiam a ação política das classes trabalhadoras. Desse
246
modo, o princípio da social democracia é a legalidade burguesa. Esses
elementos não eliminam as lutas políticas entre as classes, mas criam
condições favoráveis para que a dominação da classe proprietária do capital
se estabeleça sobre as classes subalternas.
Contudo, o governo Collor se mostrou incapaz de administrar o
“pacto das elites” e o presidente sofreu o processo de “impeachment”. Com
a queda de Collor, o projeto de reformas do Estado continuou com Itamar
Franco (1992-1994) e foi seguido e aprofundado no governo de FHC. O
governo Lula da Silva, por sua vez, não promoveu rupturas profundas no
modus operandi das instituições, as alianças interburguesas constituíram
um caminho para a governabilidade. De acordo com Deo (2011, p. 47),
os governos FHC e Lula da Silva trilharam a forma anômala da social
democracia como via política, fulcro “das regras do jogo”, enquanto, por
outro lado, a “ortodoxia liberal, arrimo do projeto econômico-político do
bloco histórico se consolida a partir do governo Fernando Henrique
Cardoso”. Os dois maiores partidos da via social democrática foram o
PSDB e o PT
46
. Ambos alçaram líderes que aglutinaram alianças
interburguesas, cada um a seu modo, guardadas suas distinções políticas e
históricas.
No âmbito educacional a partir da década de 1990, a inserção
brasileira nos circuitos do capital e frente à concorrência internacional,
mobilizou o empresariado para cobrar e atuar junto ao Estado em ações
46
A social democracia pode aparecer para alguns setores e frações de classe que compõem a
burguesia brasileira como um caminho mais civilizado para administrar o capitalismo periférico e
os conflitos políticos interburgueses. Isso explicaria em parte a adesão de parte das elites brasileiras
aos projetos políticos defendidos pelo PSDB e PT, considerando suas distinções. Todavia, o atraso
da elite continua latente nesse processo e para além dessa roupagem social democrática, sua essência
autocrática não foi mais contida após a vitória eleitoral de Dilma Roussef em 2014. A reeleição para
o segundo mandato não seria mais tolerada pelo capital, externo e interno, e pelas frações mais
atrasadas e autoritárias da burguesia, erodindo o apoio político da presidenta eleita e rompendo o
“pacto das elites”, culminando no golpe do processo de “impeachment” em 2016, governo Temer
(2016-2018), eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
247
educacionais que elevassem a escolaridade da força de trabalho. Entre as
iniciativas estão o TeleCurso 2000, da Fundação Roberto Marinho, em
parceria com a FIESP, CNI, bancos privados e grandes empresas
corporativas. A reestruturação produtiva em curso incorpora tecnologias
informacionais que requeriam não apenas o “gorila amestrado”, mas uma
força de trabalho “pensante” integrada aos novos padrões e relações de
trabalho, cada vez mais flexíveis. Foi então que um grupo de empresários
apresentou, ao governo e à sociedade, um documento denominado
Educação Fundamental e Competitividade Empresarial: Uma ação do
Governo (1992). Dispostos a liderar esse processo, os empresários, por
meio da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) e da Rede Globo,
criaram o Telecurso 2000. Nesse projeto estão impressas as concepções de
mundo e de homem na visão empresarial (NEVES, 2008). O referido
documento foi encomendado, pela Fundação Bradesco e pelo Instituo
Herbert Levy da Gazeta Mercantil, a Cláudio Moura Castro e João Batista
Araújo e Oliveira. Esses dois autores são intelectuais orgânicos da
burguesia, defendem uma educação alinhada aos preceitos neoliberais,
reforçando a tese de que a força de trabalho deve ser formada a partir das
necessidades do mercado. As respectivas carreiras dos autores mencionados
mostram que atuaram com desenvoltura em OMIs, institutos e fundações
empresariais e governos, destacando-se no Governo de Fernando Henrique
Cardoso.
Como revela a Neves (idem), o documento elaborado por Castro
e Oliveira estabelecia uma relação linear entre educação e produtividade
propondo o ensino fundamental para, pelo menos, 90% da população
estudantil e o ensino médio para, pelo menos, 60% dessa população
viabilizada pela privatização dos serviços educacionais, apoiando-se na tese
do público não-estatal. A autora destaca que o controle e a qualidade dos
serviços prestados poderiam ser feitos pelas disciplinas e conteúdos
248
veiculados, redutores da visão de mundo da classe trabalhadora, sendo
substituídos pela compreensão do mundo da produção informatizada. O
empresariado também sugeriu a redução dos gastos na educação superior
pública, incentivando o ensino pago e a operacionalização das
universidades às grandes indústrias. Quanto à formação do quadro de
trabalhadores de nível médio, poderia ser feito o parcelamento entre o
Estado e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI)
(NEVES, 2008).
Em seguida, o governo lançou o Plano Decenal de Educação Para
Todos (1993-2003), seguindo as orientações estabelecidas em 1990 na
Conferência de Jomtiem. Em dezembro de 1993, o governo brasileiro
ratificou seu compromisso com a Declaração Mundial de Educação Para
Todos em Nova Delhi. Muitas medidas do Plano Decenal EPT eram
opostas às do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
O processo de tramitação da LDB reservou traços da hegemonia e
revelou os confrontos entre as forças políticas e grupos socioeconômicos.
Logo após a promulgação da Constituição de 1988, o deputado Otávio
Elísio (PMDB) apresentou o projeto de Lei nº 1.258/88 com o objetivo
de fixar as diretrizes e bases da educação brasileira. A relatoria foi assumida
pelo também deputado Jorge Hage (PDT). O projeto bebia das forças
organizadas dos trabalhadores da educação em torno da redemocratização
do país e do processo da constituinte. A interlocução entre o deputado
Otávio Elísio e o Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública
(FNDEP) aconteceu durante a constituinte. A primeira fase de tramitação
na Câmara dos deputados foi até 1993.
Durante a tramitação, o quadro de composição se altera após as
eleições de 1989. O Congresso Nacional passou a ter um perfil mais
conservador, modificando a correlação de forças que compunham a fase
da constituinte. As disputas entre as forças congressistas e os grupos
249
organizados da sociedade civil dividem o debate, principalmente em torno
da defesa das propostas do FNDEP e, em outro campo, os setores
empresariais. O debate se polarizou entre os grupos defensores da escola
pública e os privatistas. Após intensos debates, o substitutivo, Jorge Hage,
manteve a maior parte das propostas do FNDEP. No entanto, o projeto
foi ao plenário da Câmara dos Deputados, em maio de 1991, recebendo
1263 emendas (aditivas, supressivas, substitutivas ou modificativas) dos
parlamentares. Com isso, o projeto retornou às Comissões da Câmara e
sua votação ocorreu apenas em 1993. As manobras dos congressistas
travavam a pauta e as suas exigências pela substituição da relatoria e
mudanças no texto, o que adiou diversas vezes a votação, a aprovação
ocorreu em 1993 (SAVIANI, 2003; NEVES, 2008).
As disputas eram intensas e, ao mesmo tempo em que projeto de
Lei de Diretrizes Bases tramitou na Câmara, os senadores Darcy Ribeiro
(PDT), Maurício Correia (PDT) e Marco Maciel (PFL) encaminharam
outra proposta (PL nº 67/92), distinta de todo o processo que envolveu as
mobilizações em torno da Constituinte e dos debates entre o Congresso e
os grupos da sociedade civil. Após a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº
1.258-C, seguiu para o Senado com a identificação PL nº 101, de 1993,
tendo como relator o senador Cid Sabóia de Carvalho (PMDB).
Em 1994, o PL nº 101, de 1993, designado Substitutivo Cid Sabóia,
iniciou-se o processo de discussão, com a realização de audiências
públicas e recebimento de emendas. Aprovado na Comissão de
Educação, deveria ir ao Plenário, mas retornou às Comissões de
Educação e de Justiça por manobra do Ministério da Educação (MEC),
não sendo aprovado no Plenário, em 30 de janeiro de 1995, por falta
de quórum (BOLLMANN; AGUIAR, 2016, p. 416).
250
Desse modo, dois projetos de LDB passaram a tramitar no Senado.
Um que expressava como núcleo principal as mobilizações das classes
populares, suas entidades representativas e já absorvendo o debate
congressista na Câmara e outro que veiculava o interesse do Executivo em
atender interesses do setor privado e atrelar seus dispositivos às diretrizes
dos organismos multilaterais. Após as discussões nas comissões no Senado,
o projeto, sob a relatoria do senador Cid Sabóia, é modificado e aprovado,
passando seu nome a ser identificado como substitutivo (Parecer
250/94). O substitutivo repõe dispositivos originais do projeto que estava
sob a relatoria do deputado Jorge Hage e, por isso, mantinha alguns anseios
do FNDEP. Entretanto, a manobra do governo foi decisiva para derrotar
as propostas dos setores democráticos mobilizados em torno da
constituinte.
Em suma, o governo de Itamar Franco propôs um outro
substitutivo com a parceria Darcy/MEC. As manobras incluíram até um
PL do deputado Florestan Fernandes direcionado a bolsas escolares, porém
modificado para atender interesses do setor privado. Isso se fez como
artimanha regimental, pois já tramitava o substitutivo Cid Sabóia. Em
dezembro de 1993, o governo brasileiro ratificou seu compromisso com a
Declaração Mundial de Educação Para Todos em Nova Delhi. Entre 1993
e 1995 o governo, então, antecipava vários dispositivos do projeto de LDB
Darcy/MEC ao mesmo tempo em que manobrava para impedir a votação
do substitutivo. O projeto da nova LDB Darcy/MEC incorporou, entre
outras medidas do setor privado, por intermédio de debates e sob a
coordenação do senador Darcy Ribeiro
47
, as propostas dos organismos
multilaterais internacionais.
47
Vale o registro de que o Senador Darcy Ribeiro estava acometido por um câncer em estágio
avançado enquanto o projeto Substitutivo com seu nome tramitava. Isso não anula o fato do
apensamento do intelectual com projeção relevante na sociedade brasileira.
251
Vale destacar que o processo autoritário de tramitação da LDB, quando
de volta à Câmara Federal, não foi diferente do ocorrido no Senado,
ou seja, ausência total de discussão com a sociedade. O relatório do
deputado Jorge Hage (relator do projeto de LDB na Câmara PL nº
1.258-D, de 1988) levou 10 meses (de março a dezembro de 1996)
para ser elaborado, sendo entregue aos deputados federais e ao FNDEP
com antecedência de apenas 48 horas antes da votação. Do mesmo
modo, a condução dos trabalhos da votação pelo presidente da Câmara
foi, no mínimo, irresponsável, mostrando sua falta de compromisso e
desinteresse pela educação. As intervenções dos deputados governistas,
em maioria no Plenário, omitiram a verdadeira história da tramitação
e elaboração do projeto Darcy/MEC, com o uso de mecanismos
desrespeitadores do Regimento do Congresso Nacional, impedindo a
discussão democrática e ferindo a Constituição Federal de 1988. Em
contrapartida, os deputados da oposição defenderam
intransigentemente o PL nº 1.258-C, de 1993, original da Câmara,
apoiados pelo FNDEP (BOLLMANN; AGUIAR, 2016, p. 418).
A proposta que tramitou desde a constituinte foi derrotada e em
17 de dezembro de 1996, já no Governo FHC, o Substitutivo Darcy
Ribeiro foi aprovado na Câmara. As manobras regimentais e institucionais
revelam o modo de ser histórico da via autocrática da dominação burguesa.
Os congressistas representantes do bloco histórico ignoraram todo o
processo de tramitação do PL elaborado por Otávio Elísio, os Substitutivos
Jorge Hage e depois Cid Sabóia mantiveram, durante a tramitação,
interlocução com diversas entidades, intervenções partidárias e de
representantes institucionais de diversas instâncias, entidades acadêmicas e
do FNDEP.
Como manifestação da autocracia burguesa, a legalidade
institucional não o isenta da utilização de mecanismos antidemocráticos
para fazer valer seus interesses. A burguesia tem absoluta clareza da
funcionalidade institucional do Estado brasileiro e, por isso, patrocina sua
252
ofensiva e constrói o consenso, não pela via da participação da sociedade,
mas amparado pela legalidade democrática plasmada pela autocracia.
Democrático na aparência e autoctico na essência. Isso quer dizer que
mesmo sob a democracia esse viés pode ser utilizado, a hegemonia de classe
burguesa pode ser assegurada pela institucionalização da autocracia. Essa
forma de hegemonia será utilizada tanto pelo Governo FHC quanto pelo
Governo Lula-Dilma para empreender reformas sobre o ensino
profissionalizante.
A burguesia se faz representar com poder de cooptação e favores
clientelistas, ao mesmo tempo, em que reforça o desequilíbrio de forças
entre o Estado e a sociedade civil no interior das instituições. A democracia
representativa e a forma social democrática, assentada no neoliberalismo,
inserida na crise do capitalismo, apresentam-se como um instrumento de
consensos, mas não o consenso que interfira, regule ou controle o
movimento do capital. Com a institucionalização da autocracia, a via
democrática é direcionada segundo os interesses particulares das classes
capitalistas dominantes.
Se na Constituição de 1988 a educação é assegurada como um
direito, trata-se na visão empresarial de enquad-la como um bem a
serviço do desenvolvimento com a teoria do capital humano. O Banco
Mundial, por exemplo, encara a educação como prestação de um serviço e
não como um direito de todos. Sobre essa perspectiva, Coragio aponta a
correlação entre o sistema educativo e o mercado, entre escola e empresa,
entre pais e consumidores de serviços, entre relações pedagógicas e relações
de insumo/produto entre aprendizagem e produto, quando o processo e
relações próprios da realidade educativa são relegados a uma dimensão
secundária (CORAGIO 1998; CROSO, 2008).
No Brasil, com o encadeamento de forças políticas conservadoras
neoliberais amparadas na tese de escola pública não-estatal, os empresários
253
aproveitaram para fazer lobby junto aos parlamentares em favor de uma
política de privatização do ensino público. As reformas eram oportunas,
para os que pretendiam concretizar o processo de mercantilização escolar,
investir na sua subordinação à lógica empresarial (NEVES, 2008).
Durante a elaboração da Constituição de 1988, grupos sociais (sindicatos,
partidos e intelectuais do campo progressista) vinculados às classes
trabalhadoras organizadamente hegemonizaram o debate educacional e
conseguiram cunhar a educação como um direito social. Entretanto, o
lobby político dos meios empresariais em torno do projeto neoliberal, no
período de tramitação da LDB, conseguiu, no âmbito da reforma do
Estado, impor que a escola, sua qualidade e ensino deveriam ser ofertados
aos trabalhadores e seus filhos de forma “minimalista” e profissionalizante.
A priorização do ensino fundamental revela o caráter mínimo da educação
para um Estado também “mínimo” (SAVIANI, 2010).
A LDB 9394/96 foi aprovada na primeira gestão de FHC, em 20
de dezembro de 1996. Essa Lei se atrela largamente à proposta neoliberal
diante da exigência de inserir o Brasil no mercado competitivo em época
de mundialização do capital financeiro. A educação passa agora a ser
responsável pela (de)formação do trabalhador, não mais do trabalhador do
taylorismo-fordismo, mas de um novo tipo de trabalhador e de homem: o
trabalhador flexível. A partir de tal Lei, o desdobramento da política
educacional renovou o caráter dualista e fez surgir dicotomias próprias da
luta de classes e seus reflexos na escola brasileira: a escola propedêutica
básica elementar e a escola profissionalizante de nível médio. Essa
dualidade é reflexo do antagonismo de classes próprio da sociedade
capitalista.
O governo FHC assumiu a tarefa de consolidar a implantação do
neoliberalismo na política econômica do governo. As reformas desse
período foram guiadas pelos seguintes pilares: “(a) delimitação do seu
254
papel através dos processos de privatização, publicização e terceirização; (b)
desregulação; (c) aumento da governança e (d) aumento da
governabilidade” (BRESSER PEREIRA, 1997, p. 62). Isso representou
também o elemento norteador de novos discursos e demandas em relação
à educação básica. O ideário empresarial e mercantil que pairava sobre a
educação, principalmente com a implantação do neoliberalismo, é
transformado em política do Estado, ou seja, o projeto de educação básica
desse Governo é claramente afirmado sob a lógica do mercado, onde
predomina o pensamento pedagógico empresarial.
A LDB, a educação profissional e os artifícios autocráticos como
instrumento de mudar para permanecer
As mudanças na educação brasileira se intensificaram na virada do
milênio. O debate em torno da educação profissional e ensino médio fez
parte desse ponto estratégico tanto para a redefinição da estrutura
organizacional do ensino no país quanto para as forças políticas que
disputaram o destino da escola pública e da formação da juventude
trabalhadora.
Como demonstramos na seção anterior, o governo FHC seguiu à
risca a trilha da cartilha neoliberal revelando, por sua vez, a opção das elites
e classes dominantes em atrelar o desenvolvimento econômico, controversa
contradição entre Estado mínimo para os trabalhadores e, enquanto isso,
máximo para o capital. Na ótica neoliberal, o privado deve ser priorizado
em detrimento do público. As disputas políticas de classes e suas frações se
desenvolveram, em suma, entre conservadores alinhados ao ideário
neoliberal e progressistas, com suas mais variadas manifestações (políticos
de centro, social-democratas, socialistas, social-liberais, entre outros que
255
defendem a modernização econômica pela via do Estado que promoveria
justiça social, provedor de direitos sociais).
As disputas políticas entre conservadores e progressistas se
desdobram no âmbito educacional entre os que defendem a educação
pública, gratuita, laica e de qualidade para todos e privatistas em favor da
mercantilização. As relações público-privadas são sintomas da vida social
estruturada em classes, divorciadas pela propriedade privada, pela divisão
social do trabalho em classes sociais antagônicas. A dicotomia público-
privada também reflete e se reproduz na estrutura do ensino. As escolas e
o ensino podem ser estruturados, reproduzindo a tendência à dualidade, e
realizar diferenciações devido às dicotomias. Dual desde a divisão entre
educação lato e restrita, desenvolvida a partir da divisão e antagonismo
entre trabalho manual e trabalho intelectual, e as classes sociais. Depois,
no capitalismo, com a impossibilidade de a antiga divisão atender às
demandas sociorreprodutivas, a esfera restrita se divide em ensino
propedêutico e profissionalizante.
Com a evolução das complexas relações capitalistas burguesas de
propriedade e o papel do Estado, a dualidade se manifesta na dicotomia
tanto no ensino público quanto no ensino privado, complementado em
seu interior pela divisão teoria e prática, formação geral e/ou especializada,
ensino básico e/ou ensino superior. Para Silva (2015, p. 90), “a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases, nº 9.394/96, além de promover
o embate entre ensino público e privado, acarretou o aprofundamento da
dualidade histórica na educação brasileira, consolidando a dicotomia entre
ensino médio e educação profissional”. Em acordo com a autora, o miolo
do debate indica que tanto a dualidade se preserva quanto o capitalismo
engendra um viés dicotômico que atendem às diferenciações da divisão
social do trabalho. Isso ocorre em meio a uma teia diversa de relações e
contradições próprias da complexidade da reprodução sociometabólica do
256
capital, considerando a relação entre a particularidade brasileira e a
universalidade do complexo de complexos, como indicado por Lukács
(2013).
Nas concepções neoliberais, os trabalhadores devem ter a educação
básica complementada pela formação profissionalizante em suas variantes,
segmentadas e fragmentadas, adequada ao modo de produção capitalista
mergulhado na crise estrutural, desde que assegurem a posição dominante
hierárquica do capital sob o trabalho, constituindo a seu modo um
processo ideológico de conformação aos imperativos dominantes. Sob tais
concepções, o Estado brasileiro assume o compromisso de implantar as
orientações dos OMIs. Portanto, encaminha-se também um processo
ideológico mediante a mundialização financeira do capital, a
reestruturação produtiva e as relações flexíveis entre capital e trabalho,
sintonizando as funções do Estado às necessidades de acumulação lucrativa
(MÉSZÁROS, 2011; CHESNAIS, 1996; ANTUNES, 2009; ALVES
2011).
Antes de tratarmos a educação profissional contemplada pela LDB
9.394/1996 precisamos expor algumas considerações sobre como ela, no
conjunto das reformas de Estado, foi alvo da regulamentação legal. Depois
da LDB 5.692/71 estabelecer a compulsoriedade da profissionalização no
ensino de 2º grau (atual ensino médio), as tensões despertadas pelo
dispositivo acionaram o sinal de alerta no Ministério da Educação. Os
segmentos mais ricos da sociedade migraram progressivamente para o
ensino privado, desse modo, a preocupação do Ministério da Educação era
para estancar as insatisfações, principalmente nos estratos sociais da classe
média. A reforma da reforma veio por meio da “Lei nº 7.044/1982,
determinando que a preparação para o trabalho, no Ensino de Segundo
Grau, poderia ensejar habilitação profissional (já não qualificação específica
nem compulsória)” (CUNHA, 2017, p. 35, itálico do original). A referida
257
Lei concedia autonomia para que os órgãos estaduais, municipais e as
escolas decidissem de que forma poderiam articular ensino em geral e a
habilitação profissional. Até a aprovação da LDB em 1996, a educação
profissional era fundamentada legalmente pela Lei nº 7.044/1982.
A reforma do ensino profissionalizante no pós-1988 colocou em
jogo a correlação de forças políticas, visando atender determinados
interesses. As instituições assumem um determinado modus operandi que
bloqueia os componentes democráticos de caráter popular e alternativos a
hegemonia de classe. Uma análise distinta da proposta por Mazzeo (2015),
Neves (2008b) apoiada em Lenin, Gramsci e Coutinho (1989; 1992),
também entende que o processo político na particularidade brasileira se dá
pela via prussiana colonialista. A autora destaca sumariamente as
características da estrutura político-estatal:
1) Um Executivo forte em detrimento do Parlamento, ou, de modo
mais geral, a tendência a desequilibrar a favor do Estado, a relação entre
esse e a sociedade civil; 2) mecanismos transformistas, ou seja, a
tentativa permanente de obter o apoio para o Governo através da
cooptação e dos favores clientelistas; 3) formas de populismo, isto é, de
representação política como vínculo direto entre o líder e massa
atomizada, sem a mediação da sociedade civil e, em particular, dos
partidos; 4) a tutela militar, vale dizer, a atribuição de um peso político
às forças armadas sem nenhuma relação com o balanço de forças
efetivamente presentes na sociedade civil (COUTINHO, 1992;
NEVES, 2008b, p. 152, itálicos do original)
Esses elementos se apresentam em diferentes contextos históricos
da sociedade brasileira. Por essa via, a burguesia busca assegurar sua
hegemonia tendo o suporte do Estado. O aparelhamento das instituições
estatais pelas oligarquias conserva mecanismos de cooptação e favores
258
políticos, possibilitando o atendimento de determinados interesses a
despeito da correlação de forças políticas que encaminham novas
demandas sociais, em acordo com Deo (2011), também se revela na forma
da social democracia de FHC a Lula. A nossa análise se refere nesse
momento aos dois governos pelo fato de terem realizado reformas no
ensino profissionalizante utilizando o expediente dos decretos como
instrumento para lograr êxito em tal ação. Nesta seção delinearemos o
governo FHC e na sequência o governo Lula.
Enquanto o projeto da nova LDB tramitava no Congresso
Nacional, o governo protocolou a reforma da educação profissional através
do projeto de lei (PL) nº 1.603/ 96. O PL traduziu a investida feita pelo
governo FHC em sintonia com o bloco histórico no poder, fazendo valer
suas concepções político-econômicas e ideológicas. O referido PL
tramitava ao mesmo tempo em que acontecia a luta entre os grupos
neoliberais conservadores e progressistas em torno do PL de LDB. Na
proposta o PL nº 1.603/96 detalhou a ideia de educação profissional como
alternativa compensatória aos que não alcançassem o Ensino Superior.
Para isso, “a proposta reformulava vários aspectos da rede federal de escolas
técnicas” (CUNHA, 2002, p. 117).
Antes de prosseguirmos, convém chamar a atenção para a
composição entre governo e intelectuais orgânicos representantes da classe
burguesa com atuações junto aos OMIs. Além do Ministro da Educação,
Paulo Renato de Souza, com trajetória na OIT e BID, também fazia parte
do ministério, Cláudio Moura Castro (OIT, BM e BID) e João Batista de
Oliveira (OIT e BID). Ambos bastante atuantes no debate educacional
brasileiro e nas Organizações Multilaterais Internacionais. O registro é
interessante do ponto de vista de Cunha (idem), pois ele indica que Moura
Castro defendia concepções de educação profissional antes mesmo do
259
movimento mais incisivo do Banco Mundial sobre a educação
48
. De
acordo com Cunha, isso revela um outro traço da relação entre a atuação,
as diretrizes dos OMIs e o Estado brasileiro. Esses intelectuais com trânsito
nos organismos internacionais atuam com desenvoltura e têm feito
proposições para com significativa inflncia no âmbito educacional. A
reciprocidade entre os intelectuais e os organismos corrobora, para o que
Leher (1999) define como a estratégia do BM que encomenda estudos
prévios e relatórios sobre o país tomador do empréstimo. Os intelectuais
brasileiros com vínculos junto aos OMIs ganham notoriedade e são alçados
a cargos de relevância nas instituições do Estado brasileiro, ao mesmo
tempo, podem ganhar relevância atuando no governo e depois alçando a
um cargo em algum órgão internacional. Desse modo, a luta de classes e
suas frações, no âmbito tanto das produções intelectuais como de sua
atuação política em cargos do Estado, reforça o vínculo orgânico entre
esses, a burguesia ou bloco histórico no poder e as metas do BM em lograr
êxito no financiamento concedido. A relação entre o Estado, os intelectuais
orgânicos da classe que ocupa o poder, a necessidade de hegemonia e as
diretrizes dos OMIs configuram uma teia de relações à educação que é de
certa maneira visceral.
Essas considerações se fizeram relevantes, pois Paulo Renato de
Souza, Ministro da Educação do Governo FHC, contou com a consultoria
de Cláudio Moura Castro e João Batista de Oliveira para elaborar a
proposta de reforma da educação profissional. Ao analisar as proposições
de Castro, desde os anos finais da década de 1970, Cunha aponta:
48
Conferir Cunha (2002), as agências financeiras internacionais e a reforma brasileira do Ensino
Técnico In ZIBAS, Dagmar; AGUIAR, Márcia; BUENO, Maria (Orgs.). O Ensino Médio e a
Reforma da Educação Básica. Brasília, Editora Plano, 2002.
260
Castro não tinha dúvidas de que o sistema inglês era o mais adequado
para o Brasil, o ensino acadêmico para uns e o ensino profissional para
outros, justamente os que, oriundos da classe operária, não tivessem se
contaminado com os valores das classes médias e alta, que
desconsiderassem as “ocupações manuais (CUNHA, 2002, p. 112).
Por isso, ressaltar a influências das concepções intelectuais com
trajetória nos OMIs contribui para desvelar o contexto das disputas
políticas no plano ideológico e concreto. Lembramos que Castro e Oliveira
foram os coordenadores do documento de entidades empresariais para a
educação: Educação Fundamental e Competitividade Empresarial, uma
proposta para o Governo.
49
Esse elemento é apenas indicativo de como as
reformas de educação profissional contaram com a contribuição direta de
intelectuais com vínculo orgânico entre a burguesia associada e a
internacional, por meio das entidades de classe do patronato brasileiro e
das agências multilaterais.
A articulação para a aprovação da nova LDB já desgastava a relação
entre as instituições e o governo, gerando grande descontentamento nas
entidades que defendiam o PL, de autoria de Otávio Elísio. Portanto,
como aponta Cunha (2002), a aprovação da LDB nº 9.394/1996 fez o
governo retirar estrategicamente o PL nº1.603/96. Segundo o autor, o
entendimento do governo era de que as diretrizes contidas no capítulo III
da LDB contemplavam a proposta do governo. Essa manobra evitaria que
se travassem novas disputas entre o governo e as entidades da sociedade
civil, especialmente a mobilizão permanente do FNDEP, partidos de
oposição, o Congresso, que poderia fazer alterações, reformulando a
49
Entre outros intelectuais que colaboraram para este documento estão: Antonio C.R. Xavier,
Cláudio Gomes Collin A. Macedo, Emílio Marques, Guiomar Namo de Mello, Maria Tereza
Infante e Sergio Costa Ribeiro. Todos eles com passagens pelo governo de Itamar Franco e
Fernando Henrique Cardoso (FRIGOTTO, 1999).
261
proposta além do alongamento da tramitação por um longo período. Uma
manobra política institucional resolveria a questão, pois o conteúdo do PL
nº 1.603/96 foi adaptado, convertido em um decreto, identificado pelo nº
2.208/1997.
Antes de abordarmos a reforma realizada pelo decreto,
consideramos que o artifício institucional autocrático se revelou mais
vezes. Os elementos que permitiram tal manobra institucional e
ambiguidade do texto da LDB 9.394/1997, aprovado na conjuntura
daquele momento, foram o embate entre as forças políticas do campo
progressista e de esquerda, em torno dademocracia substantiva,” e as
forças conservadoras do bloco histórico. Este congrega desde frações da
burguesia atrasada, oligárquica e reacionária até os setores mais avançados
cuja expressão simbólica e formal da social-democracia brasileira era o
governo FHC (PSDB).
Podemos indicar que o arco de alianças incluiu o Partido da Frente
Liberal (PFL- que já foi ARENA, partido de sustentação da ditadura e
atualmente DEM), PMDB (antigo MDB, único partido de oposição
permitido pelo regime militar e o próprio PSDB que se desmembrou do
PMDB, após a redemocratização). Esse era o núcleo central do governo
FHC. Em torno do projeto neoliberal estavam os “homens de negócio”,
articulados em torno da FIESP, CNI, Fundação Bradesco, Instituto
Herbert Levy e seus braços na educação SENAC, SENAI e SESI, entre
tantas outras instituições privadas que ansiavam pela mercantilização da
educação, especialmente o ensino profissionalizante. Por outro lado, a
trilha lançada pelos OMIs (BM, FMI, UNESCO, BID), coadunando suas
propostas com o neoliberalismo, caracterizou uma ampla ofensiva do
capital sobre o trabalho e, por sua vez, ao controle de sua formação. Essas
forças atuaram em torno da nova LDB para implementar seus interesses,
recorrendo a artimanhas institucionais.
262
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, tratou do Ensino Médio e da Educação
Profissional (EP) no Brasil. Primeiro destacamos que essa LDB eliminou
o tripé ensino primário, ensino secundário e ensino superior para definir
apenas dois níveis de educação escolar: I o nível básico, composto de
educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; e II o ensino
superior, o nível seguinte. Um elemento textual que não aparece como um
conceito claro no texto é o termo regular. Ele foi empregado em várias
seções, artigos e parágrafos do texto, o que mostra que seu uso corrente
estabelece uma mudança importante no trato da dualidade e dicotomia.
Esse aspecto implica na relação entre ensino médio e educação profissional
como sistemas paralelos entre o nível de ensino e uma modalidade
educacional.
No título III DO DIREITO À EDUCAÇÃO E DO DEVER
DE EDUCAR, o termo regular é vinculado ao ensino básico, definindo
que os alunos serão atendidos pela rede regular de ensino público. Depois
se refere à escola regular no inciso IV, vinculado à educação escolar regular.
Na Seção III § 3º “o ensino fundamental regular”. O artigo 40, do capítulo
III, da Seção V deixa mais explícito: A educação profissional será
desenvolvida em articulação com o ensino regular. O que nos leva a concluir
que a educação básica, de caráter geral, é definida como ensino regular para
se diferenciar de outras modalidades de educação. Portanto, mantém-se a
estrutura dual, lato e stricto e separar a educação em modalidades,
propedêutico de um lado e profissionalizante do outro. Todavia, a
modalidade propedêutica aparece enfraquecida no texto quando ele se
refere à educação escolar oferecida pelos estabelecimentos públicos. No
texto, ganharam força os conceitos cidadania e preparação para o trabalho.
A LDB impregna o ensino médio regular com uma concepção
marcadamente profissionalizante, em oposição à concepção profissional
263
que está vinculada à educação técnica (CUNHA, 2002). As diretrizes
curriculares implantadas para o ensino médio regular confirmam a
assertiva do autor, pois o currículo da base comum é adaptado às
concepções do sistema produtivo ao formar os alunos em competências e
habilidades. Garantido o princípio de coexistência entre instituições
públicas e privadas, o Estado determinará o que será pautado ao ensino
público. O artigo 22 da Seção I DAS DISPOSIÇÕES GERAIS,
estabelece: A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando,
assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania
e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Neste
aspecto, o mais importante é o exercício da cidadania. A formação
humanista, mais aprofundada e baseada nos avanços das ciências, das artes
e da cultura em geral, com traços propedêuticos mais ou menos fortes, se
reforçada nas instituições de ensino fundamental e médio privadas, embora
bastante enviesado ao vestibular. No ensino médio privado vai valer a
renda das famílias e sua disposição em prover mais recursos para a educação
escolar de seus filhos. O ensino médio regular público, enfraquecido em
seu caráter propedêutico, será reservado aos filhos dos trabalhadores que
dependem da escola pública para obter escolarização.
Para o ensino médio regular, o texto legislador propalavam
ambiguidades que alimentam a dicotomia ensino médio regular, de
preparação geral, e educação profissional, não mais técnica, mas
profissionalizante, já no limo que desobriga o Estado quanto à oferta dessa
modalidade nos estabelecimentos públicos. O enfraquecimento do caráter
propedêutico do ensino é incorporado pela legislação, definindo ensino
médio regular, de preparação geral e através das diretrizes curriculares
baseadas nas concepções de competência que foram encaminhadas
subsequente a sanção da LDB (SILVA, 2015). Uma característica que
pautaria as políticas para o ensino médio a partir da LDB, implícita no
264
texto, explicita na prática, é a de vincular o ensino médio regular à
preparação geral para o trabalho. Isso implicará a esse nível de ensino uma
problemática carregada de certa complexidade, visando esconder o núcleo
fortemente ideológico voltado à adaptação da força de trabalho às
condições de reestruturação capitalista para conter a crise. A crise de
identidade do ensino médio foi tratada do ponto de vista burgs porque
um ensino dual e dicotômico, fragmentado favorece o setor privado. Por
conseguinte, enfraquece o caráter propedêutico desse nível de ensino nas
escolas públicas. Um desses aspectos é reforçado pelo Artigo 35, que
apresenta quatro finalidades para o ensino médio, entre elas, destaco o
inciso II: a preparação básica para o trabalho, para continuar aprendendo, de
modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade às novas condições de
ocupação ou aperfeiçoamento posteriores (BRASIL, 1996). O texto absorve
os termos do discurso, de uma retórica ideológica tipicamente burguesa
em tempos de reestruturação produtiva e das novas formas exigidas de
subsunção do trabalho ao capital, agora não mais assegurado os direitos
sociais e sim pautado na flexibilidade dos contratos e na possibilidade do
quadro permanente de desemprego.
O Art. 36-A, desta Lei, Estabelece que o ensino médio, tendo atendido
à formação geral do educando, poderá habilitá-lo para o exercício de profissões
técnicas. O ensino médio voltado à educação geral, à cidadania e à
preparação para o mercado de trabalho era uma resposta que se
contrapunha à proposta de escola única do campo democrático,
mobilizada desde a Constituinte. Nesse sentido, a educação
profissionalizante não é prioridade na LDBEN, que pode ser oferecida em
espaços de educação não-formais como empresas, Organizações não
Governamentais, instituições da sociedade civil, conforme está escrito no
Artigo 40 da LDB: a educação profissional será desenvolvida em articulação
265
com o ensino regular ou por diferentes estratégias de educação continuada, em
instituições especializadas ou no ambiente de trabalho (BRASIL, 1996).
Silva (2015) indica em sua pesquisa que a referida Lei acentua a
dicotomia entre ensino médio regular e educação profissionalizante e
possibilita, à iniciativa privada, a profissionalização técnica de nível médio.
Isso é notável no § 4º do Artigo 36º: “a preparação geral para o trabalho
e, facultativamente, a habilitação profissional, poderão ser desenvolvidas
nos próprios estabelecimentos de ensino médio ou em cooperação com
instituições especializadas em educação profissional”. O ensino médio
poderá ser organizado de forma diferenciada, ao facultar que a habilitação
profissional a ser oferecida poderá ou não ser oferecida pelos próprios
estabelecimentos de ensino, acrescentado a cooperação com instituições
especializadas em educação profissional. Não é desinteressada essa
linguagem presente no texto da legislatura, pois quando se refere às
“instituições profissionais especializadas em educação profissional”, a
relação entre o artigo 36 e 40 desferem ambiguidades sobre a
regulamentação da educação escolar. Para a autora mencionada, é essa
característica que possibilita a separação entre as duas ofertas.
Esses dispositivos lançados pela LDB alteraram a estratégia do
governo em relação ao PL 1.603/1996. Ao invés de travar embates nas
instituições do estado da frágil democracia pela aprovação da Lei, o
Ministério da Educação transformou o conteúdo principal do PL em
Decreto que visava regulamentar a articulação entre ensino médio regular
e o ensino profissionalizante técnico de nível médio. O Decreto
2.208/1997 encurta o processo de implementação de reformas, de forma
autocrática bloqueia ações que alterem o núcleo da reforma. Lembramos
que ao protocolar o PL 1.603/1996, um conjunto de instituições se
levantaram em protesto e as organizações de entidades representativas se
movimentaram para barrá-lo. Em virtude disso, o governo FHC sanciona
266
um Decreto criando o embasamento jurídico que, entre outros interesses
envolvidos, possibilita tomar empréstimo de 500 bilhões em
financiamento junto ao Banco Mundial.
O Decreto Federal nº 2.208/97, ao regulamentar a LDB em seu artigo
30 a 42 (Capítulo III do Título V), afirmou como objetivos da
educação profissional: a) formar técnicos de nível médio e tecnólogos
de nível superior para os diferentes setores da economia; b) especializar
e aperfeiçoar o trabalhador em seus conhecimentos tecnológicos; e c)
qualificar, requalificar e treinar jovens e adultos com qualquer nível de
escolaridade, para a sua inserção e melhor desempenho no exercício do
trabalho (BRASIL, 2004, p. 31).
Na ação o governo estreita a relação público-privada favorecendo
de sobremaneira os interesses empresariais. Tanto as instituições públicas
quanto as privadas podem receber financiamento do Poder Público para
oferecer educação profissional, como estabelece o Artigo 4º § 1º do
Decreto nº 2.208/1997. Anseio atendido pelo Programa de Expansão da
Educação Profissional (PROEP)
50
, parceria com o Ministério do
Trabalho, que acompanhou o Decreto
51
. Enquanto modalidade distinta
50
O PROEP é um programa que firma a parceria entre o ministério da educação e Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), com sede em Washington, Estados Unidos, compõe o
quadro das Organizações Multilaterais Internacionais (OMIs). O programa também contava com
um aporte financeiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), juntando com o empréstimo
do BID teria 500 milhões de dólares. Como nos mostra Cunha (2002, p. 118), “o programa visa à
implementação e/ou a readequação de 200 centros de formação profissional, distribuídos da
seguinte forma: 70 na esfera federal, 60 na estadual e70 no “segmento comunitário”. Em termos de
alunado, a meta é atingir 240 mil vagas nos cursos técnicos e 600 mil concluintes de cursos
profissionais básicos. Além do mais, o programa estabeleceu a meta de atingir 70% de inserção de
egressos dos cursos técnicos no mercado de trabalho” (aspas e itálicos do original)
51
Entre inúmeras pesquisas a respeito da educação profissional, a pesquisa de tese de doutorado A
qualificão profissional entre fios invisíveis: uma análise crítica do PLANFOR da pesquisadora
Geórgia Sobreira dos Santos Cêa analisa o impacto da política privatizante do governo FHC
sobretudo a partir do PROEP e PROFAE, PLANFOR.
267
do ensino médio, ele estabeleceu três níveis de educação profissional, o
básico, o técnico e o tecnológico e, ao mesmo tempo, impediu a integração
entre o ensino médio regular e o ensino técnico profissionalizante ao
definir a forma articulada e paralela entre os dois. A articulação é separada
como estabelece o inciso II do Artigo 3 combinado com o Artigo 5º:
Artigo 3º, inciso II técnico: destinado a proporcionar habilitação
profissional a alunos matriculados ou egressos do ensino médio,
devendo ser ministrado na forma estabelecida por este Decreto;
Artigo 5º: A educação profissional de nível técnico terá organização
curricular própria e independente do ensino médio, podendo ser
oferecida de forma concomitante ou sequencial a este (BRASIL, 1997).
No contexto, a dualidade se reproduz e se renova na medida em
que a divisão do trabalho se transforma para atender às novas exigências
do capital sobre o trabalho. Por dentro da dualidade, a dicotomia entre o
ensino médio regular e o ensino profissionalizante era o ponto de
calibração da relação entre público e privado, pois nas escolas mantidas
com o fundo público, a esfera privada será favorecida de sobremaneira
(CÊA, 2003). A medida reforça a estratégia de fragmentar e acelerar a
profissionalização com treinamentos técnicos e pontuais. No nível básico,
o ensino profissionalizante assume o caráter não formal da educação.
Pressupomos que não se exige certificação escolar para treinar o
trabalhador em determinada função do trabalho, pois não se exige
regulamentação curricular. Já no nível médio técnico, articulado e paralelo
ao ensino médio regular, o ensino profissionalizante poderia ocorrer de
maneira concomitante ou sequencial após o ensino médio. A organização
curricular em disciplinas e/ou módulos facilitaria a certificação
268
profissionalizante através das que etapas o aluno concluísse dentro de um
prazo de cinco anos.
Um dos elementos mais criticados pelos educadores organizados
no FNDEP, pelas entidades representativas dos profissionais da educação,
partidos de oposição, sindicatos foi a impossibilidade de integração entre
o ensino médio e a educação profissional. Desde o processo de
“redemocratização”, passando pela constituinte, educadores, entidades
representativas de esquerda e do campo progressista defendiam uma
proposta de ensino médio integradora, assentada na concepção de
politecnia. A interlocução entre esse campo político-social e o congresso
ganhou efetiva importância pelo projeto de LDB protocolado pelo
deputado Otávio Elísio. Para Moura Castro essa proposta coaduna com as
“ideologias igualitárias” e se opunha às necessidades das transformações
produtivas encaminhadas pela reestruturação econômica exigida pelo
capitalismo. Para o Governo FHC, a proposta de ensino técnico integrado
que já ocorria na rede federal de escolas técnicas era um exemplo de alto
custo para sua manutenção e com finalidades distorcidas. Por esta
perspectiva, a maior parcela dos alunos atendidos pelas escolas técnicas
federais era de classe média e seu ingresso nelas visava maiores
possibilidades de aprovação nos vestibulares mais concorridos nas
universidades públicas. O objetivo de inserção no mercado de trabalho era
colocado em segundo plano. Conforme Santos (2017b, p. 231), os
defensores do Decreto que reforça e aprofunda a dualidade e,
Defensores da dicotomia educativa, a educação ministrada,
principalmente, nas antigas Escolas Técnicas Federais (ETFs), não
deveria jamais dar acesso ao ensino superior, sobretudo ao público e,
destacadamente, aos cursos considerados de elite, a exemplo de direito,
medicina, arquitetura, entre outros escolhidos pelos filhos da chamada
classe média e da elite.
269
Antes mesmo do PL 1.603/1997, da LDB 9.394/1996, o decreto
nº 2.208/1997 sintoniza o plano do governo FHC lançado em 1995 no
documento intitulado Planejamento Político Estratégico. O plano
expressava a separação conceitual e operacional entre a parte de formação
acadêmica e profissional, estabelecendo maior flexibilidade curricular
visando adaptar o ensino às mudanças no mercado de trabalho, promover
aproximação entre ocleo profissionalizante e o setor empresarial,
encontrar formas jurídicas que regulamentassem o ensino técnico nas
escolas federais e CEFETs de modo que fossem estimuladas parcerias para
financiamento e gestão. Essas medidas visavam a parceria entre o
Ministério da Educação e o BID com vistas ao financiamento do ensino
profissionalizante.
Acentuando ainda mais a separação entre ensino médio e
profissionalizante, o Estado, através do Decreto nº 2.406/1997,
transformou as Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de
Educação Tecnológica (CEFETs). Ao atender prioritariamente aos
interesses do mercado, o governo entendia que a separação produziria
melhores resultados se não fosse ministrada em espaços de educação
formal, tendo em vista que, ministrada em instituições com autonomia,
poderia ajustar a formação do trabalhador ao movimento do mercado
(OLIVEIRA, 2001). Sobre esse debate, Santos (2007, p. 116-117)
compreende que, a partir do Decreto Nº 2.208/1997, “o capital logrou
uma grande vitória, pois, além de garantir uma escola específica (separada)
para o trabalho, de quebra, ainda abre um imenso espaço dentro da esfera
pública para que o acúmulo privado possa se perpetuar através da venda
da mercadoria ensino”.
Todo esse processo é complementado pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais, tanto o ensino médio quanto a educação profissionalizante
beberam na pedagogia do capital, estabelecida pelo movimento de
270
Educação para Todos (EPT), patrocinada pelos OMIs, norteada pelos
documentos das conferências internacionais desde Jomtien (1990) e
consolidada pelo Relatório Educação, um tesouro a descobrir coordenado
por Jacques Delors. Baseado nesse movimento, o Conselho Nacional de
Educação (CNE), a Câmara de Educação Básica (CEB) e o Ministério da
Educação institucionalizaram as Diretrizes. O Decreto 2.208/1997 passou
a atuar como força de lei, pois foi em torno dele que a dicotomia educativa
se reforçou. O ensino por competências e voltado à flexibilidade viria como
uma mão na luva para reforçar todo o arcabouço das relações entre capital
e trabalho e nelas, as relações trabalho e educação, dando organicidade aos
valores ideológicos da mundialização do capital em processo de
reestruturação produtiva. Tanto o ensino médio regular quanto a educação
profissionalizante passaram a ter no currículo por competências como seu
núcleo “virtuoso”. Cêa (2006), analisa que o papel do Decreto 2.208/1997
foi adequar o modelo que separa ensino médio e educação
profissionalizante ao aporte financeiro do BID e BM via PLANFOR e
PROEP.
A resolução 3/98 da CEB institucionalizou para o ensino médio
no Art. 4º “As propostas pedagógicas das escolas, e os currículos constantes
dessas propostas incluirão competências básicas, conteúdos e formas de
tratamento dos conteúdos, previstas pelas finalidades do ensino médio
estabelecidas pela lei. Nela também é reforçada a articulação paralela com
o ensino profissionalizante através do Art. 12 § 2º: “O ensino médio,
atendida a formação geral, incluindo a preparação básica para o trabalho,
poderá preparar para o exercício de profissões técnicas, por articulação com
a educação profissional, mantida a independência entre os cursos”. Sob o
guarda-chuva das competências, o ensino de certa maneira é direcionado a
uma profissionalização sem certificação, pois toma como premissa a
preparação básica para o trabalho complementando a formação para a
271
cidadania. A parte propedêutica é tomada por toda uma axiologia que
reforça a subsunção do trabalho ao capital.
Para o ensino profissionalizante, a resolução evidencia o processo
das relações entre trabalho e educação assim como ocorrera no ensino
médio. A Resolução 4/99 institucionalizou também as competências em
seus artigos:
Art. 5º A educação profissional de nível técnico será organizada por
áreas profissionais, constantes dos quadros anexos, que incluem as
respectivas caracterizações, competências profissionais gerais e cargas
horárias mínimas de cada habilitação.
Art. 6º Entende-se por competência profissional a capacidade de
mobilizar, articular e colocar em ação valores, conhecimentos e
habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de
atividades requeridas pela natureza do trabalho. Parágrafo único. As
competências requeridas pela educação profissional, considerada a
natureza do trabalho, são as: I competências básicas, constituídas no
ensino fundamental e médio; II competências profissionais gerais,
comuns aos técnicos de cada área; III competências profissionais
específicas de cada qualificação ou habilitação (BRASIL; MEC; CNE,
1999, p. 433, grifo nosso)
A política pública para a educação reforça que a dualidade
educacional é uma determinação capitalista posta em movimento no
complexo de complexos da reprodução social. A separação, aqui
aprofundada pela crise estrutural do capital que redireciona a relação entre
público e privado para a reposição das perdas, pôs também um novo
acento, através da dicotomia, na educação escolar pública e em
estabelecimentos privados de ensino. Na escola pública a dicotomia era
ensino regular versus ensino profissionalizante, o que se configurou de
272
forma fragmentada desde a distinção de níveis da profissionalização nível
básico, médio técnico e superior até o compartilhamento de
responsabilidade do público com o privado, que se convencionou
denominar de descentralização.
A separação, a fragmentação, é o ponto de apoio para favorecer o
setor privado, criando mecanismos para que existam nichos de mercado,
refúgios para o capital em crise. Nessa tarefa, a burguesia, consciente da
luta de classes que se trava no contexto da particularidade brasileira,
encaminha esse processo pela via da institucionalidade,
“tendenciosamente” autocrática, o que faz do Decreto 2.208/1997 uma
medida de hegemonia burguesa no campo educacional, assim como um
artifício de submissão, no contexto do modelo de
desenvolvimento/dependência econômica para extração de mais-valia extra
de duas formas. A primeira diz respeito ao pagamento do empréstimo e
seus juros, o que será feito através do fundo público estatal que é formado
a partir dos impostos. Ao conceder o financiamento, BM ou BID exigem
a adequação da força de trabalho à produtividade capitalista em escala
mundial, atrelado ao discurso que induziria o desenvolvimento
econômico. A segunda diz respeito ao favorecimento ao setor privado
através das parcerias entre os estabelecimentos públicos e instituições
especializadas na oferta de ensino profissionalizante (CÊA, 2003; 2006).
Numa economia periférica e dependente, cuja burguesia se
desenvolve de maneira associada com a burguesia imperialista, somente a
extração de mais-valia-extra pode atender tais demandas, quais sejam tanto
as da burguesia local quanto as do capital imperialista, por isso, novos graus
de exploração, mais aprofundados, precisaram ser implantados (PRADO
JR. 2011; MÉSZÁROS, 2011). O governo FHC foi o responsável por dar
um novo ponto de partida para uma mais sofisticada exploração da força
de trabalho e, também, pelos novos mecanismos de hegemonia burguesa,
273
sob a forma neoliberal e politicamente “social-democrática”, mesmo que
esta seja anômala. Trazer as disputas políticas entre os grupos e as classes
sociais para dentro do aparato institucional e nele conseguir o consenso,
sem renunciar às formas oligárquicas, coercitivas, autocráticas ou
repressivas, confirma as análises de Fernandes (1976), Mazzeo (2015) e
Deo (2011) cada uma a seu modo.
A educação profissional ocupa um papel fundamental nessa
estratégia que reconfigura a luta de classes. A construção do consenso, no
âmbito da hegemonia via “social democracia” exige que as classes
subalternas absorvam as demandas do capital em crise. Para isso, os
dispositivos ideológicos desencadeados pelo movimento de acumulação
flexível, reestruturação produtiva e neoliberalismo, visa manter o grupo
social na direção do Estado, da fábrica, da escola, tanto diretamente quanto
indiretamente. Podemos inferir, a partir de Dore (2006, p. 338), apoiada
em Gramsci, que a educação é imprescindível à classe burguesa dirigente
para dar “uma direção intelectual para a sociedade, essa direção também é
moral, isto é, implica formas de agir no mundo, a prática. A hegemonia é
o exercício da direção intelectual e moral da sociedade”.
No processo que favoreceu a nova LDB, a burguesia rejeitou o
projeto de integração entre ensino médio e técnico-profissionalizante que
se propunha a superar a dualidade histórica. No contexto da luta de classes,
os grupos sociais e frações de classe organizadas em torno do processo de
redemocratização encaminharam o projeto de educação com base em
valores ético-políticos progressistas, assentados na concepção de politecnia.
Para o bloco histórico no poder, derrotar a proposta de ensino médio
integrado era derrotar um projeto que forjasse uma educação alternativa a
sua hegemonia, que criasse contradições que possibilitasse ao jovem
adquirir conhecimentos além do lugar comum etc. Mesmo sem ser uma
revolução, era um avanço, entretanto, alguns anos depois da LDB do
274
Decreto 2.208/1997, a conjuntura favoreceu uma nova discussão em torno
dos problemas estruturais da dualidade da educação e suas dicotomias.
O debate sobre a revogação do Decreto 2.208/1997 e sua absorção
pelo 5.154/2004: meandros e contradições da educação
profissional pela via da conciliação.
Nosso objeto de estudo exigiu investigar e abordar os componentes
históricos da relação trabalho e educação, para entender a configuração da
estrutura dual e as dicotomias que asseguram formações diferenciadas e
desiguais da força de trabalho, próprios de uma sociedade dividida em
classes sociais e uma divisão social do trabalho voltada à exploração
capitalista. Para entender a relação entre ensino médio e educação
profissional, nas reformas educacionais, buscamos situar os processos
políticos na particularidade brasileira, tentando rastrear seu itinerário até
chegar aos decretos, um processo que abrangeu a via prussiana colonial no
terreno da autocracia burguesa. A luta de classes, no interior das
instituições estatais, desenvolveu-se historicamente como processo político
que assegurou a hegemonia burguesa. Vamos abordar em seguida, a etapa
da reforma profissionalizante que regulamentou as políticas educacionais
neste início de século.
Os embates em torno da educação profissionalizante ganharam um
capítulo a mais com a alternância de poder pós-eleições de 2002, quando
o governo encabeçado pelo PT saiu vencedor da disputa eleitoral. O
governo Lula conseguiu mobilizar sujeitos de diferentes orientações
político-sociais. As críticas contundentes de setores progressistas da
educação reivindicavam, no cenário eleitoral junto ao candidato Lula,
mudanças efetivas quanto aos marcos de orientação da educação
275
profissional. As pressões eram, entre outras reivindicações, pela
insustentabilidade do Decreto nº 2.208/1997 (FRIGOTTO et. al., 2012).
O governo liderado pelo PT inclinou-se a empreender as mudanças
nesse cenário. Com isso, um intenso debate que remonta às lutas
educacionais dos anos 1980 e 1990 foi retomado. Em torno do problema
estrutural da educação está a separação e impossibilidade de integração
entre ensino médio e educação profissional. O debate mobilizou um
conjunto de forças políticas cujo resultado, após dois anos, gestado pelas
disputas, foi um novo Decreto sob o nº 5.154, sancionado em 16 de julho
de 2004.
Para dar conta da análise, consideramos elencar alguns elementos
políticos que compõem a conjuntura do governo Lula. O processo de
reformas que precedeu seu governo não extinguiu o sistema
institucionalmente estabelecido historicamente, mas tratou de adequá-lo
ao “novo” momento da autocracia burguesa. De acordo com Deo (2011,
p. 99), as reformas obedeciam à lógica fiscal de “elevação da arrecadação
associada ao cumprimento dos superávits primários estabelecidos pelos
bancos internacionais”.
Um outro elemento passa pelo processo de transformação do PT
que se dá no contexto da via prussiano-colonial da reafirmação da
autocracia burguesa. O processo político da via prussiano-colonial
destacada por Mazzeo (2015), seguida pela análise da autocracia burguesa
proposta por Florestan Fernandes (1976) e os estudos Deo (2014),
permite-nos entender a transformação capitalista altamente variável,
condicionada pelo desenvolvimento histórico de cada região. Como tal, o
processo político, no contexto da ideologia da conciliação, contribui para
o transformismo que o Partido dos Trabalhadores passou ao longo dos
anos na disputa eleitoral. Como parte do Estado nacional, o processo
político eleitoral faz com que o PT se institucionalize e no decorrer dos
276
anos se modifique para alcançar o poder. Sua fundação está enraizada nos
movimentos sociais que contestavam a ditadura civil-empresarial militar.
Foi aclamado como um partido das massas trabalhadoras capaz de mudar
os rumos da história do país. Sua atuação na Constituinte, como partido
do campo anti-autocrático, lhe possibilitou maior robustez no campo da
esquerda e centro-esquerda bem como junto à sociedade. Vários setores
aderiram ao seu programa, ampliando o espaço de atuação na estrutura
institucional. A expansão do PT foi acompanhada também por mudanças
nas táticas e estratégias para lograr êxito na conquista do poder. Uma das
principais foi aderir à via institucional e, praticamente, à luta política pela
via da social-democracia, restringindo sua atuação, o que preconiza
submeter-se ao preceito universal dela, que é a participação eleitoral, como
um único instrumento pela ampliação dos direitos sociais. Isto é, o PT
teria que respeitar as regras do jogo.
Após três sucessivas derrotas eleitorais para presidente da república,
o PT se aproximou de setores das classes dominantes, descontentes das
classes médias, pequena burguesia urbana e frações da burguesia industrial
e financeira insatisfeitas com a crise que estagnou a economia brasileira: a
alta do dólar, a inflação, o risco fiscal de não pagamento da dívida pública,
a carga tributária asfixiante sobre produtos e serviços, o desemprego que
atingia mais de 10% da População Economicamente Ativa (PEA). Foi
então que o PT definiu que a coalizão de partidos de diferentes matrizes
ideológicas distintas poderia formar um arco de alianças que permitiria
êxito eleitoral. A principal delas é simbolizada pela candidatura de Lula
(PT) e José Alencar (Partido Liberal PL), seu candidato a vice-presidente.
Também compuseram o arco de alianças PCdoB, PMN e PCB. Durante
o pleito, a candidatura de Lula obteve apoio do PP, PTB, PDT, Partido
Socialista Brasileiro (PSB) e setores do PMDB, principalmente os setores
277
ligados ao ex-presidente José Sarney. Assim se definia o projeto que venceu
as eleições de 2002 pela via da conciliação.
O Governo Lula conseguiu mobilizar sujeitos de diferentes
orientações político-sociais e veio a ser um governo de coalizão que não
rompeu com as reformas realizadas no ciclo anterior, pelo contrário,
reafirmou o compromisso com o capital e propôs uma agenda política
buscando atender aos diversos setores da sociedade que o apoiaram. Por
outro lado, a origem histórica ligada aos movimentos sociais também
compunham o mosaico de demandas a atender, perfazendo iniciativas que
apontavam para melhorias sociais. Na atmosfera de efervescência que
tomou conta de amplos setores da sociedade e da educação, muitos grupos
creditaram às suas origens históricas como um instrumento capaz de
colocar a democracia nos trilhos e superar modelos de dominação
construídos historicamente pela burguesia.
No âmbito da educação, as críticas contundentes de setores
progressistas reivindicavam, no cenário eleitoral junto ao candidato Lula,
mudanças efetivas quanto aos marcos de orientação da educação
profissional. Durante a campanha eleitoral a candidatura de Lula se
comprometeu com setores progressistas da educação em revogar o Decreto
2.208/1997. Os educadores que integravam o campo progressista,
entidades organizadas, como o GT Trabalho e Educação da ANPED,
acreditavam que esta conjuntura abriria possibilidades para recuperar
elementos importantes das lutas sociais e educacionais, do projeto de LDB
do deputado Octávio Elísio como a politecnia e a escola unitária. A
revogação do Decreto traria a possibilidade de integração entre educação
básica e educação profissional, abriria espaço para o ensino médio unitário
a partir do trabalho como prinpio educativo. Esse campo político se viu
fortalecido pela vitória de Lula e, na expectativa de reverter retrocessos
278
impostos pelas derrotas políticas para os conservadores do campo
(neo)liberal, muitos deles participariam dos novos embates.
A nomeação de intelectuais de prestígio do campo progressista para
a composição do Ministério da Educação incentivou expectativas para que
se mudasse a orientação dada à educação profissional do governo anterior.
Entre os intelectuais Frigotto, Ciavatta e Ramos
52
foram nomes de
destaque. Entre maio e julho de 2003, o Ministério da Educação realizou
o “Seminário Ensino Médio: Construção Política, em maio de 2003, e
o “Seminário Nacional de Educação Profissional: Concepções,
Experiências, Problemas e Propostas”, em julho de 2004. De acordo com
Marise Ramos e Ibañez Ruiz (2003), o movimento era gerador de um
duplo compromisso coletivo com educadores e educadoras de incorporar
institucionalmente suas proposições junto à Semtec/MEC, reafirmando as
relações democráticas por parte do órgão com as entidades da sociedade
civil. As discussões de concepções, problemas e propostas que ocuparam
esses dois eventos estão documentadas em Educação Profissional:
Concepções, Experiências, Problemas, Propostas (BRASIL, MEC,
SEMTEC, 2003) e Ensinodio: ciência, cultura e trabalho
53
(BRASIL,
MEC, SEMTEC, 2004). Em abril de 2004 foi publicado um outro
documento sistematizando as discussões dos Anais do Seminário Nacional
de Educação Profissional realizado em julho de 2003.
De acordo com os Anais do evento (BRASIL, MEC, SEMTEC,
2003), o Seminário reuniu 1.087 profissionais vinculados a instituições
e/ou a atividades ligadas à Educação Profissional (EP), além de
representantes dos sindicatos e do poder constituído. Presença dominante
52
Marise Nogueira Ramos foi Diretora da Secretaria de Ensino Médio e Educação Profissional
(SEMTEC) do Ministério da Educação entre 2003 e 2004.
53
Esse documento socializa os textos que serviram de base para o Seminário Ensino Médio:
Construção Política. Esse evento também resultou no documento Ensino Médio: Construção
Política, Sínteses das salas temáticas (BRASIL, MEC, SEMTEC, 2003).
279
(57,9%) de representantes dos sistemas federal, estaduais, Sistema “S”,
consultores e funções afins, esta última categoria gerada, em grande parte,
pelas exigências técnicas da implantação da Reforma do ensino técnico. De
outra parte, observa-se a reduzida presença (10,9%) de representantes
sindicais e dos movimentos sociais.
O ponto mais destacado do evento foi a reforma da educação
profissional empreendida pelo governo FHC através do Decreto
2.208/1997, Portaria 646/97 e dispositivos subsequentes que impuseram
as concepções do grupo dominante do bloco no poder. Frigotto e Ciavatta
(2004, p. 20) registra bem a expectativa em torno do Governo Lula que
iniciava: “O governo que se inaugura tem sua gênese e construção
alicerçadas, em grande parte, nos movimentos sociais, buscando a
afirmação da democracia do país”. Na educação, a esquerda do campo
progressista atuou para rever os instrumentos autocráticos lançados pela
burguesia nas reformas educacionais da década 1990. Apesar de toda a
mobilização em torno, a vitória eleitoral de Lula não significou a
introdução de reformas para superar as macropoticas dos governos
antecessores. A Carta
54
aos brasileiros reafirmava o compromisso com a
agenda financeira dos OMIs e inclinava o futuro governo para pactos
conciliatórios com os diversos setores das classes empresariais de um lado
e progressistas de centro e centro-esquerda de outro. Para reafirmar essa
tendência, o governo nomeou Henrique Meirelles
55
para o cargo de
Presidente do Banco Central.
54
Na Carta ao povo brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, então candidato a Presidente da República,
assegura que, em caso de sua vitória, a sua agremiação, o Partido dos Trabalhadores, respeitaria os
contratos nacionais e internacionais.
55
A nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central era uma sinalização para o mercado
financeiro assegurando a continuidade de pactos políticos, avalizando a continuidade da política
macroeconômica do governo antecessor.
280
Já no campo educacional, o governo nomeou intelectuais do
campo progressista da educação. No Seminário Ensino Médio:
Construção Política, de 2003, logo surgiram os embates em torno das
diferentes concepções para projetar caminhos para que o Brasil superasse
problemas históricos, entre os quais a dualidade estrutural e a mais recente
dicotomia introduzida na estrutura de educação do país. Por outro lado,
os defensores ora beneficiados apenas pretendiam manter o estado de
coisas ou apenas rever pontos dos dispositivos anteriores. A discussão,
portanto, ficou concentrada nos rumos da Reforma em voga naquele
momento, especialmente a regulamentação impositiva do Decreto
2.208/1997, o financiamento e o ideário que lhe dá sustentação.
Os embates em torno do Decreto manifestaram as divergências
entre os diversos grupos que compunham o Seminário. Inicialmente, um
grupo se manifestou pela efetiva revogação do Decreto 2.208/1997, em
outro Grupo de Trabalho a proposta foi de revisão, entendendo a
necessidade de proceder com a reformulação sem perder as experiências
desenvolvidas, um outro grupo defendeu a manutenção do referido
Decreto (BRASIL, MEC, SEMTEC, 2003). Os Grupos de Trabalho
assim apresentaram suas proposições em torno do Decreto:
GT 1 revogação efetiva do Decreto, pois ele dificulta projetos ao
separar a formação geral e prática;
GT 2 Não especificou sua posição em relação ao Decreto, mas propôs
maior articulação entre o ensino médio e o ensino profissional;
GT 3 Exiguidade do Decreto no que se refere à democratização do
ensino executado por outros segmentos que não o público.
Disparidade dos pareceres, normas etc. O debate sobre as mudanças na
legislação deve ser ampliado e aprofundado, incorporando outras
referências e envolvendo outras instituições, a exemplo os Conselhos
de Educação.
281
GT 4 A não-revogação do Decreto 2.208/1997, de imediato sem
ampla discussão. Chama a atenção nas discussões do GT é a questão,
em caso de revogação, do Decreto que não seja por meio de outro
Decreto;
GT 5 Junção entre ensino médio e profissional;
GT 6 Revisar os encaminhamentos que dificultam a aproximação
entre Ensino Médio e Técnico, uma vez que não há impedimento no
Decreto 2.208 para essa aproximação;
GT 7 Nesse Grupo a divergência foi entre os que defendem o
currículo integrado para a EP e, portanto, a revogação do Decreto, e
aqueles que entendem que currículo integrado dificulta a oferta de
cursos específicos às demandas das classes mais baixas;
GT 8 Deve permitir trânsito entre escolaridade formal e a
qualificação profissional. As políticas públicas devem garantir a
integração da formação profissional, em suas diversas modalidades de
ensino formal e informal, ao sistema de educação nacional.
GT 9 Avaliação do Decreto nº 2.208 e a decorrente decisão de
revogá-lo, ou não deve ser precedida de criteriosa análise do que vem
sendo feito a partir dele e das experiências concretas, já desenvolvidas
pelas diferentes instituições.
GT 10 Talvez o caminho não seja simplesmente o de acabar com o
Decreto 2.208. Ele inaugura uma linha de Educação Profissional que
precisa ser considerada.
GT 11 Em relação ao Decreto 2.208/97: “a) mudanças devem ser
feitas através de projeto de lei; b) o Decreto deve ser revogado; c)
incentivar a articulação entre ensino médio e educação profissional sem
forçar a integração; d) ampliar o processo de discussão das mudanças
no Decreto e aproveitar as experiências positivas da reforma”;
GT 12 Revisão da legislação em vigor, especificamente a Resolução
02/97.
GT 13 Não apresentou proposta específica sobre o Decreto;
282
GT 14 Nesse GT as propostas não especificaram o Decreto, mas
questionaram apontando que existem pontos e negativos que estão
vinculados ao dispositivo.
GT 15 Não houve consenso para que se revogue ou não Decreto,
mas apontaram a necessidade de atualização da legislação para alguns
setores (BRASIL, MEC, SEMTEC, p. 162).
As discussões acaloradas registram a efervescência em torno das
Reformas impostas pelo governo anterior. Os debates giraram em torno
das concepções que sustentavam o Decreto 2.208/1997 e da necessidade
de recuperar o poder normativo da LDB 9.394/1996 e, por isso, a imediata
revogação do dispositivo, com o qual não havia consenso. Após a
aprovação da LDB a ambiguidade e vaguidade quanto à articulação do
ensino médio foi regulamentada pelo Decreto que passou a atuar como de
Lei. As críticas ao dispositivo se concentraram no favorecimento ao setor
privado, contribuindo para a mercantilização da educação profissional. A
educação modular, seja concomitante ou subsequente, fragmenta e aligeira
a formação do trabalhador cada vez mais subsumida ao mercado. A
possibilidade de integração entre ensino médio e profissional foi tutelada
tendo em vista que o financiamento governamental em parceria com o
BID não contemplaria essa proposta. Para adequar-se ao financiamento, o
Decreto cria o condicionante impedindo a integração educacional nas
escolas públicas.
Como indicam Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012), o processo se
manteve polêmico e umas das críticas evidenciadas pelos Anais dos GT no
Documento acima se refere ao texto Documento-Base para as discussões.
Para muitos participantes o documento não enfrenta a questão da
privatização e mercantilização do ensino público no país, embora vincule
a ideia de educação como um direito, não enfrenta a destinação de recursos
283
públicos a entidades privadas. Desse modo, a educação como um direito
reestabelece apenas parcialmente a democratização do ensino. Um dos
pressupostos da proposta é a integração da educação profissional como um
mecanismo de redução das desigualdades sociais. O que seria diferente de
preparar para o emprego? No contexto do Governo Lula, a política
econômica voltada para o desenvolvimento econômico se dá na esfera
restrita de um Estado que se propõe a administrar a miséria frente à crise
do capitalismo (MARINHO, 2004). Essas políticas podem indicar
melhorias sociais, principalmente para os mais fragilizados no tecido social,
porém não anulam a luta do capitalista em acumular riqueza, renda e bens
enquanto for possível, submeter o trabalhador a uma condição
socioeconômica extremamente desumana.
A luta de classes em um contexto de democracia representativa,
como expressão da nova forma de construção de consenso, pode ser uma
armadilha até para os intelectuais mais qualificados no manejo da teoria
crítica. Se no Governo FHC os intelectuais, o MEC, com apoio da classe
empresarial, impôs autocraticamente um decreto para fazer valer seus
interesses, o que os impediria de forjar e coagir ou mesmo fazer lobby junto
à sociedade política, base de apoio do Governo Lula, para assegurar suas
posições em um novo dispositivo?
A conjuntura das disputas, entre 2003 e 2004, dentro da política
educativa no interior do governo petista, congregou três vertentes
principais: a primeira defendia a manutenção do Decreto nº 2.208/1997;
uma segunda composição postulava a revogação e elaboração de uma nova
política de Educação Profissional; a terceira sustentava a necessidade de
revogação do referido decreto e promulgação de um novo. O fato é que,
após dois anos, gestado pelas disputas, foi promulgado um novo Decreto
sob o nº 5.154, de 16 de julho de 2004. Frigotto et. al. (2012) assinala que
as disputas de interesses foram tão acirradas que o decreto 5.154/2004 teve
284
sete versões de minuta, sendo a primeira elaborada em setembro de 2003
e a última em abril de 2004.
Para entender a disputa em torno dessa medida é preciso entender
a correlação de forças políticas representativas das classes e frações de classe
que compõem o quadro político educacional já mencionado na nossa
exposição. Uma extensa literatura acadêmica, produzida pelos intelectuais
do campo crítico, acompanhou os impactos da implantação de políticas a
partir das Reformas efetuadas pelos Governos após 1988. Não foi diferente
com a educação profissional. A literatura do campo marxista na educação
criticou os dispositivos anteriores e apontou para a necessidade de sua
superação. A forma impositiva como se deram as reformas, especialmente,
no Governo FHC, foi o que mais indignou os educadores, pois os
elaboradores ignoraram todo um ciclo de debates com a sociedade civil e
entidades representativas dos profissionais da educação. À frente do campo
crítico, entre outros, Frigotto, Ciavatta e Ramos foram os mais destacados
na crítica ao perverso decreto de 1997. Os intelectuais, além de
trabalharem pela revogação do dispositivo 2.208/1997, também se
debruçaram sobre a elaboração de um novo dispositivo. O controverso
posicionamento se dá porque um decreto é um ato de poder em si mesmo,
uma medida autocrática, considerando, especialmente, o referido pela
forma impositiva e sua força política legal, equivalente à LDB 9.394/1996
quanto ao ensino médio e à educação profissional. A reforma da EP via
decreto cria um engodo para os intelectuais que criticam esse instrumento
como mecanismo de reforma. Ao assumirem a tarefa de elaborar um novo
decreto que substituísse o 2.208/1997, Frigotto et. al.. (2005, p. 1090)
justificaram que, se assim não o fizessem, “o espaço político seria ocupado
pelas forças conservadoras para fazer valer seus interesses”.
Para Marinho (2004, p. 201), o Documento-Base do Semirio
Ensino Médio: uma construção política expressa, do começo ao fim, o
285
projeto político dos setores ligados ao governo e tem como ideia central o
compromisso dos profissionais de educação com um suposto “projeto
desenvolvimentista”. Por outro lado, os Anais do evento apontam que não
há consenso para a revogação do Decreto 2.208/1997, principalmente,
porque as instituições privadas se opunham à revogação. Entretanto, a
revogação estava em pauta, pois era insustentável um dispositivo que, por
sua natureza, quer que suas implicações políticas, educacionais e
ideológicas retrocedam a políticas de educação profissional dos anos 1940,
ajustadas na contemporaneidade ao contexto de crise do capitalismo. A
perversa impossibilidade de integração entre ensino médio e educação
profissional aprofundava a desigualdade educacional e, por sua vez,
socioeconômica e tornava imperativo o Estado prover os cursos por meio
de instituições privadas ou que os interessados o fizessem com recursos
próprios.
No momento de implantação de políticas neoliberais,
privatizações, desregulamentações dos serviços públicos, ajuste fiscal,
achatamento salarial e da renda para os jovens das famílias pobres, prover
com recursos próprios a educação de seus filhos seria um sacrifício gigante.
A grande maioria dos filhos de trabalhadores frequenta a escola pública,
mas pela política implementada a partir do decreto 2.208/1997, eles
teriam que recorrer a cursos da rede privada, geralmente, os de baixo custo:
cursos aligeirados, modulares, de conteúdos instrumentais básicos. Nesses
cursos, os jovens depositavam a expectativa de que poderiam garantir um
emprego, mas não passavam de uma reles (re)qualificação. Na lógica do
mercado de trabalho tal qualificação de longe não atendia às necessidades
de trabalho frente ao quadro de desemprego crônico, restando-lhes
prestações de serviço, terceirização e/ou informalidade e desemprego.
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012) indicam a necessidade da revogação do
Decreto que reconhecia o dualismo estrutural e a dicotomia, a exemplo do
286
que foi feito nos anos 1940, e a elaboração de outro que era uma urgência
política, de modo que deveria abranger as necessidades da classe
trabalhadora. Com a iniciativa dos encontros e seminários, o MEC
encaminhou os documentos das discussões ocorridas nos GTs como base
da proposta que nortearia o processo de revogação.
A opção por um novo decreto para substituir o anterior carrega em
si uma contradição, reconhecida pelos próprios elaboradores. Frigotto et.
al. (2012, p. 24), “sabe-se que mudar por um decreto, ainda que diverso
na concepção, no conteúdo e no método, mantém, na forma, uma
contradição”. Outrora, esses autores eram críticos aos instrumentos de
hegemonia burguesa que reafirmaram a autocracia institucionalizada, os
intelectuais de esquerda do campo progressista se viram num engodo ao
lançarem mão do mesmo expediente. Esse fato não anula as contribuições
e as lutas, embates que esses e tantos outros intelectuais comprometidos
travaram com a superação das perversas desigualdades socioeconômicas e
educacionais, entretanto, o expediente do decreto não representa
mudanças profundas e efetivas no quadro, tanto da dualidade quanto da
dicotomia educativa.
O próprio Documento-Base não revela profundas mudanças
estruturais na educação como analisa Marinho (2004, p. 203).
O documento, por mais argumentos sociais que procure colocar para
se diferenciar de outras propostas no campo da educação profissional,
mantém delas o fundamento central, que é disseminar a ideia de que é
possível, através da fomentação de novas competências laborais e da
elevação da escolarização dos trabalhadores criar a possibilidade de
ingresso duradouro no mercado de trabalho e, mais ainda, galgar
posições econômicas e sociais que lhe assegurem a aquisição de bens e
serviços produzidos pelo mercado de um suposto capitalismo
humanizado.
287
De modo geral, a educação profissional atrelada às políticas
socioeconômicas do governo está mais afinada com a administração da
miséria, agudizada pelo atual estágio de crise do capitalismo, do que com
a sua superação. Vamos exemplificar um dos conceitos, entre tantos
outros, que serviam de pressuposto para dar um novo sentido à política de
educação profissional. O termo mundo do trabalho passou a ser usado
corriqueiramente nos documentos das políticas educacionais, tornando-se
lugar comum dos que depositam desde a expectativa de um emprego até
aos empreendedores que abrem seus negócios. Vamos transcrever um
trecho do Documento Políticas Públicas para a Educação Profissional e
Tecnológica encaminhado para as discussões e que norteou a elaboração
do novo decreto,
A existência de grande déficit no âmbito da educação profissional e
tecnológica e a insuficiência das atuais políticas públicas para essa
importante modalidade de educação expõem a necessidade premente
de desenvolver políticas voltadas para as novas configurações do
mundo do trabalho, para a reinserção dos desempregados e para
programas integrados de escolarização e profissionalização voltados
para o grande contingente de jovens e adultos sem alfabetização ou
com escolaridade parcial (BRASIL, SEMTEC, MEC, 2004, p. 30).
Não apenas esse documento adotou o conceito mundo do
trabalho. O Parecer 39/2004 também fundamentou e encaminhou esse
norteamento: “para a oferta dos cursos de Educação Profissional Técnica
de nível médio os critérios são os seguintes: o atendimento às demandas
dos cidadãos, da sociedade e do mundo do trabalho deve estar em sintonia
com as exigências do desenvolvimento socioeconômico local, regional e
nacional” (BRASIL, CNE/CEB, p. 409).
288
A integração da EP com o mundo do trabalho já traz em si uma
problemática entre tantas outras formas. Esta categoria abarca, desde a
ideia do trabalho útil, concreto, na sua forma ontológica, as relações de
produção desenvolvidas historicamente sobre as bases do trabalho
alienado, estranhado, que se ergue a partir da propriedade privada e da
divisão social e técnica do trabalho inserida no mercado capitalista. A
precisa análise de Lessa alerta para as armadilhas da imprecisão das
categorias.
Não é raro que uma dada noção apenas possa cumprir sua função
ideológica se for imprecisa. Isto é mais frequente, como fenômeno
ideológico, do que pode parecer à primeira vista. Considere-se, por
exemplo, o termo "mundo do trabalho". Atua, na maior parte das
vezes, como substituto da categoria, precisa e cientificamente
estabelecida, de relações de produção. Sua enorme imprecisão
possibilita que adquira, não apenas entre autores distintos, mas
também no interior de um mesmo texto de um mesmo autor,
significados tão distintos quanto o local de trabalho (que pode ser do
escritório à fábrica, dos shopping centers a uma repartição estatal), a
linha de montagem, a totalidade das atividades produtivas de uma
sociedade ou da humanidade; uma postura de classe, como na
expressão mundo do trabalho versus mundo do capital, o sujeito
revolucionário etc., sugere, mais do que conceitua. No debate de ideias
em uma sociedade de classes, toda a imprecisão serve à classe
dominante, sendo as ideias dominantes aquelas da classe dominante,
as imprecisões tendem a ser interpretadas no sentido mais adequado a
esta última (LESSA, 2013, p. 18).
No quadro atual do capital, o “mundo do trabalho” encontra-se
muito mais relacionado ao mercado de trabalho do que às necessidades dos
trabalhadores em superá-lo. A partir dessa ponderação de Lessa, podemos
entender que o emprego do termo “mundo do trabalho” se relaciona com
289
as pautas para opor-se e lutar contra o capital, porém sua imprecisão
permitiu que esse conceito fosse esvaziado no significado e valor que ele
carrega. Adiante, iremos perceber o uso corriqueiro a que estamos nos
referindo, pois “mundo do trabalho” será um termo mais usado para
encobrir o objetivo educativo de se preparar para o mercado de trabalho
do que preparar o trabalhador para a luta por sua emancipação.
Outro pressuposto é a recuperação do poder normativo da LDB
9.394/1996. Todo o processo de tramitação da Lei foi conduzido de forma
que bloqueasse o projeto produzido pelas discussões desde a Constituinte
de 1998. O projeto do deputado Octávio Elísio e do Substitutivo Jorge
Hage, apesar das mudanças que sofreu, era a expressão mais próxima da
luta de classes e da mobilização das entidades da educação e da sociedade
civil. A manobra para que o PL Darcy Ribeiro fosse aprovado em seu lugar
produziu indignação e revolta nas classes e frações de classe que se
identificavam com as lutas pela redemocratização. Para isso, teve-se que
revogar o decreto 2.208/1997, entretanto, a revogação foi acompanhada
por outro decreto que em si não revogou o conteúdo do decreto da
discórdia, mas absorveu a estrutura por ele estabelecida.
O decreto nº 5.154/2004 substituiu o dispositivo anterior, mas
não revogou a estrutura educacional, como estabelece o Artigo
§ 1
o
A articulação entre a educação profissional técnica de nível médio
e o ensino médio dar-se-á de forma:
I - integrada, oferecida somente a quem já tenha concluído o ensino
fundamental, sendo o curso planejado de modo a conduzir o aluno à
habilitação profissional técnica de nível médio, na mesma instituição
de ensino, contando com matrícula única para cada aluno;
II - concomitantemente, oferecida somente a quem já tenha concluído
o ensino fundamental ou esteja cursando o ensino médio, na qual a
290
complementaridade entre a educação profissional técnica de nível
médio e o ensino médio pressupõe a existência de matrículas distintas
para cada curso, podendo ocorrer:
a) na mesma instituição de ensino, aproveitando-se as oportunidades
educacionais disponíveis;
b) em instituições de ensino distintas, aproveitando-se as
oportunidades educacionais disponíveis; ou
c) em instituições de ensino distintas, mediante convênios de
intercomplementaridade, visando ao planejamento e ao
desenvolvimento de projetos pedagógicos unificados;
III - subsequente, oferecida somente a quem tenha concluído o
ensino médio (BRASIL, MEC, 2004).
Como evidencia o dispositivo, continuam em vigor, tanto a forma
concomitante quanto a sequencial, preservadas. A articulação que sustenta
a estrutura de ensino recebe um incremento a mais através da possibilidade
de integração, contudo, o novo não anula o velho. O decreto 5.5154/2004
absorve o decreto antecessor. Desde 1996, a educação profissional ingressa
no cenário da mercantilização da educação e continuaria pelo que foi
preservada no Decreto 5.154/2004, este dispositivo ampliou o leque de
possibilidades de articulação entre educação profissional e ensino médio.
No âmbito da esfera privada, a exploração do mercado de ensino
profissionalizante continua aberta e o balcão de negócios em torno dos
recursos públicos será bem explorado pelo Governo Lula, formalizando
Parcerias Público-Privadas. Por isso, a relação entre dualidade e dicotomia
foram reconfigurados. O que se viu após sanção do decreto 5.154/2004
foi um acionamento de um complexo de mudanças na esfera educativa,
possibilitando diversas formas de articulação entre uma modalidade de
educação e um nível de ensino. Posteriormente analisaremos esse
291
complexo de mudanças elencando o rumo direcionado a educação
profissional e o ensino médio.
Ao manter-se o viés neoliberal, assentado na ideia da coincidência
entre as necessidades humanas e necessidades do mercado, não avançamos
para uma outra educação, para além do capital. A educação profissional no
governo Lula da Silva não só continuou sobre os fundamentos e medidas
conservadoras do governo de FHC, como também pavimentou o terreno
para o entrelaçamento da escola pública com interesses privatistas.
O Documento-Base para a elaboração do decreto 5.154/2004
reforçou que o Estado não é o único responsável pela educação profissional
e tecnológica. Essa responsabilidade é compartilhada com outros sujeitos
sociais.
Além dos trabalhadores, que deveriam ser os principais sujeitos
envolvidos na concepção e planejamento da educação profissional e
tecnológica, os sindicatos, os empresários, a iniciativa privada em
matéria educacional, o segmento comunitário (associação de
moradores, associações religiosas e beneficentes, organizações não-
governamentais) são outros tantos sujeitos sociais interessados
(BRASIL, MEC, SEMTEC, 2004, p 39).
Nesse entendimento, tanto o decreto 2.208/1997 quanto o
5.154/2004 apontam para a desobrigação do Estado quanto ao papel de
provedor de políticas públicas. Nesse aspecto, o espaço reservado à
iniciativa privada não foi revogado. O Decreto acrescentou a opção de
oferta de ensino integrado às já contempladas formas concomitante e
subsequente. Na realidade, o decreto não obriga a adesão por um ou por
outro modo de articulação, cabendo à instituição de ensino decidir o que
lhe convém (BRASIL, MEC, SEMTEC, 2004).
292
Na análise de Frigotto et. al., (2012), convergindo para o viés
governista naquele contexto, aponta-se a aprovação do Decreto nº
5.154/2004 como uma tentativa de se resgatar a base unitária de ensino
médio ao incluir a possibilidade de formação específica para o exercício de
profissões técnicas. Argumentam os autores: “o Decreto 5.154/2004 tenta
restabelecer as condições jurídicas, políticas e institucionais que se queria
assegurar na LDB na década de 1980” (FRIGOTTO et. al., 2012, p. 37).
No entanto, o embate de forças sociopolíticas, em meados do século XXI,
ocorreu diferentemente da década de 1980, quando a mobilização das
massas se dava contra o regime de ditadura civil-empresarial-militar. No
processo das reformas educacionais iniciadas na década de 1990, a atrasada
elite brasileira absorve as orientações dos organismos multilaterais
internacionais, buscando aplainar o chão histórico das relações sociais,
políticas e econômicas para imergir no ideário neoliberal com amplas
perdas para as classes trabalhadoras.
A novidade do Decreto nº 5.154/2004, na perspectiva dos autores
sobreditos, foi possibilitar que a oferta de ensino profissionalizante
ocorresse de forma articulada, além do já estabelecido pela LDBEN
9.394/1996 na forma concomitante ou sequencial ao ensino médio,
previstas no decreto 2.208/1997 (CÊA, 2007b). Especificamente o
Decreto 5.154/2004 acrescentou no Art. 4º
§1º A articulação entre a educação profissional técnica de nível médio
e o ensino médio dar-se-á de forma: I - integrada, oferecida somente a
quem já tenha concluído o ensino fundamental, sendo o curso
planejado de modo a conduzir o aluno à habilitação profissional
técnica de nível médio, na mesma instituição de ensino, contando com
matrícula única para cada aluno.
293
Essa articulação do ensino médio com a formação
profissionalizante foi denominada de “integrada”, porém não significa que
a educação profissional seria uma formação integral dos indiduos para o
trabalho. O embate era para revogar a estrutura educacional do decreto
anterior e abrir espaço para fazer da politecnia e a escola unitária uma
política pública da escola brasileira. As expectativas de que o Decreto nº
5.154/2004 produzisse uma reestruturação da educação profissional e
alterasse ali fundamentos constantes foram frustrantes. Entre os embates
que se travava para revogar o decreto 2.208/1997, Frigotto, Ciavatta e
Ramos (2012, p. 45) registram a mudança estrutural no MEC logo após a
sanção do novo que ensejou, entre outras frustrações, a direção que
reafirma o dualismo, “de um lado, a Secretaria de educação Básica e, de
outro, a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Ambas com
responsabilidade sobre o ensino médio”.
Para os próprios intelectuais envolvidos na elaboração do novo
decreto, a lógica de desarticulação entre ensino médio e ensino
profissionalizante é mantida quando o ideário pedagógico lançado pelo
dispositivo 2.208/1997 é reiterado pela Resolução do Conselho Nacional
de Educação CNE/CEB nº 1/2005. A opção pela validação das diretrizes
curriculares para a educação profissional, de acordo com as Resoluções nº
3/98 e nº 4/99, indica o peso político dos empresários da educação sobre
o governo Lula e reafirma o ensino ao ideário de Educação Para Todos
(EPT). Isso condiz com a lógica de mercado e articula o processo de
mercadorização do ensino, através da pedagogia do “aprender a aprender”,
das “competências”, do “empreendedorismo”, entre outras.
O Documento-Base de 2007, publicado pela Secretaria de
Educação Profissional e Tecnológica, intitulado Educação Profissional
Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio esclarece que a
“SEMTEC/MEC assumiu, portanto, a responsabilidade e o desafio de
294
elaborar uma política que superasse essa dicotomia entre conhecimentos
específicos e gerais, entre ensino médio e educação profissional” (BRASIL,
MEC, 2007, p. 7).
No entanto, a articulação como termo normativo foi mantida, pois
assim é preservada a estrutura do Decreto 2.208/1997. O ensino médio
integrado com a modalidade profissionalizante é um dos modos de
articulação. A proposta de integração pode contribuir para induzir
iniciativas baseadas no trabalho como princípio educativo, mas essa
alternativa fica restrita ao campo das iniciativas particulares e não da
política pública estatal abrangente. O Decreto 5.154/2004 não efetiva o
ensino médio integrado como uma política estatal, limitou-se a possibilitar
mais uma alternativa de articulação. Outrossim, o novo dispositivo
aumentou o espaço de flexibilidade na oferta de ensino profissionalizante,
condizente com os padrões de acumulação capitalista nesta crise estrutural.
Como assinala Rodrigues (2005, p. 261, grifo nosso),
Se o decreto nº 2.208/97 recriara explicitamente a dualidade no
ensino, o decreto nº 5.154/04 reconhece a dualidade, permitindo não
duas, mas uma multiplicidade de possibilidades de relação entre o
ensino médio e a formação profissional. Em síntese, em 2004, a
legislação da educação profissional brasileira deu um salto no tempo:
deixamos o ano de 1942 e avançamos até 1982.
Tanto a dualidade histórica, quanto a dicotomia posta pela LDB e
o decreto 2.208/1997 são assimiladas pelo Decreto 5.154/2004, mesmo
na possibilidade de integração entre ensino médio e profissionalizante. O
parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) nº 39/04
reforçou a natureza distinta entre os conteúdos curriculares do ensino
295
médio e educação profissional. Como indica o voto do Relator Francisco
Aparecido Cordão,
Não há como utilizar o instituto do aproveitamento de estudos do
Ensino Médio para o ensino técnico de nível médio. Esta parece ser a
lógica adotada pelo Decreto nº 5.154/04, principalmente se
examinarmos com mais atenção a sua exposição de motivos. O § 2º do
Artigo 4º do referido Decreto não deixa margem para dúvidas. Define
que, na hipótese de adoção da forma integrada, é preciso “ampliar a
carga horária total do curso, a fim de assegurar, simultaneamente, o
cumprimento das finalidades estabelecidas para a formação geral e as
condições de preparação para o exercício das profissões técnicas”. O
conteúdo do Ensino Médio é pré-requisito para a obtenção do diploma
de técnico e pode ser ministrado “simultaneamente” com os conteúdos
do ensino técnico. Entretanto, um não pode tomar o lugar do outro.
São de natureza diversa. Um atende a objetivos de consolidação da
Educação Básica, em termos de “formação geral do educando para o
trabalho” e outro objetiva a preparação “para o exercício de profissões
técnicas” (BRASIL, CNE/CEB, p. 405, itálico e grifo nossos).
A proposta de educação integrada entre um ensino médio e um
curso profissionalizante, com matrícula e conclusão únicas, reproduz a
dicotomia educacional, pois como apresenta o parecer, o conteúdo do
ensino médio é de natureza diversa do conteúdo do ensino
profissionalizante. Mesmo com o decreto 5.154/2004, supostamente
revogando o 2.208/1997, o Relator mantém as diretrizes fundamentadas
neste último.
As Diretrizes Curriculares Nacionais definidas pelo Conselho Nacional
de Educação tanto para o Ensino Médio quanto para a Educação
Profissional de nível técnico, assim como as Diretrizes Curriculares
296
Nacionais gerais definidas pelo mesmo Conselho para “a organização
e o funcionamento dos cursos superiores de tecnologia” continuam
perfeitamente válidas após a edição do Decreto 5.154/2004. As
Diretrizes Curriculares Nacionais definidas pelo Conselho Nacional de
Educação não deverão ser substituídas. Elas não perderam a sua
validade e eficácia, uma vez que regulamentam dispositivos da LDB
em plena vigência (BRASIL, CNE/CEB, p. 399; aspas do original;
grifos nosso).
O Ministério da Educação acata as orientações do parecer nº
39/2004 do Conselho Nacional de Educação (CNE), reforçado pela
Resolução nº 1/2005, mantendo as diretrizes curriculares para a educação
profissional, elaboradas sob as orientações das poticas neoliberais do
decreto de 1997. Nesse caso, a resolução da CEB faz um refinado ajuste
entre os decretos, mantendo intocáveis os interesses mercadológicos sobre
o ensino profissionalizante, abrindo caminho para que, mesmo na forma
integrada, fundamentada em concepções adversas do decreto 2.208/1997,
possam valer as concepções e orientações a partir da pedagogia das
competências.
Disso decorre que o chamado currículo integrado torna-se dicotômico
ao ser organizado com base em concepções educacionais distintas,
sejam elas de formação para a chamada cidadania, para o dito mundo
do trabalho, para o exercício intelectual ou para a prática profissional
de chão de fábrica, não resolvendo, portanto, a separação entre a
formação geral e a almejada formação técnica, propalada pelo Decreto
nº 5.154/2004 (SANTOS, 2017, p. 199).
A proposta de ensino médio integrado a um curso
profissionalizante não representa um marco para a educação emancipatória
297
dos trabalhadores. O alcance político operacional evidencia que foi
possibilitada uma outra forma de se ofertar o ensino profissionalizante,
pois dessa maneira os Estados da Federação poderiam implantar a
modalidade de educação profissional integrada ao ensino médio. Como
afirma Cêa (2007b, p. 168, grifo nosso):
A crença de que o novo decreto alteraria, na direção de uma base
unitária, os fundamentos que sustentavam o decreto anterior
(2.208/1997), resultou frustrada e indicou, até certo ponto, uma
expectativa ingênua frente à direção econômica e política que
prevalecia e continua prevalecendo nas disputas internas do governo
Lula, e deste com a sociedade civil.
A autora reforça que o ensino profissionalizante, mesmo o
integrado com o nível médio regular, continua unilateral, dicotômico, pois
há desvinculação e desdobramento entre a formação humana integral e o
predomínio da “pedagogia das competências”, “política da igualdade”,
“pedagogia do aprender a aprender”, da “formação continuada e
permanente sob os auspícios da reestruturação produtiva em favor do
capital em crise. Nesses preceitos, a educação profissional no governo Lula
da Silva não só continuou sobre os fundamentos e medidas conservadoras
do governo de FHC, como também pavimentou o terreno para o
entrelaçamento da escola pública com interesses privatistas. Os certificados
adquiridos pelos alunos ao final do ensino médio continuam vinculado à
inserção no mercado de trabalho e reproduzindo a estrutura de
profissionalização precoce para muitos jovens trabalhadores que não
ingressam nos cursos mais concorridos das universidades públicas.
A elaboração do decreto 5.154/2004, por mais que tenha sido
gestada por debates democráticos, tendo à frente representantes da
298
esquerda progressista que se identificam com as lutas dos trabalhadores,
utilizou-se do expediente autoritário que ela mesma criticou e atuou para
revogá-lo. Para além disso, o novo dispositivo não alcançou a problemática
da superação do velho, antes conservou os elementos do decreto anterior,
combinando o novo através da reposição do velho. Um dos motivos que
apontam para isso é o fato de termos um novo decreto para absorver a
estrutura educacional estabelecida pelo antigo dispositivo, reforçando a
institucionalização da autocracia burguesa. O primeiro fator que aponta
para isso é o fato de o Governo Lula não ser um governo de corte
revolucionário, como analisavam alguns integrantes da esquerda
progressista (Frigotto, Ciavata, Ramos
56
), mas sim um governo de coalizão
política, com forças políticas heterogêneas em sua composição. Essas forças
tanto eram de centro, centro-esquerda e esquerda quanto conservadoras,
que se somavam maior na medida em que as alianças interbuguesas se
consolidaram no interior do governo. O segundo fator complementa o
primeiro no que diz respeito à estrutura de poder institucionalizada desde
1988 que preserva elementos da autocracia burguesa.
Com a formação do bloco político denominado de “Centrão”, a
burguesia refugou vários elementos que garantiam processos democráticos
mais substantivos e inclinados para uma democracia popular de massas.
Apenas um terço dos deputados da Constituinte era do campo da
esquerda, a maioria era de centro e de direita. Com o pluripartidarismo e
a divisão bicameral do Congresso e, controlando a elaboração dos
regimentos internos das Casas Legislativas, o espaço de manobra para o
“Centrão” consolida uma transição da ditadura civil-empresarial-militar
para a democracia representativa, com a garantia de ter nela a
56
Os autores mencionam esse aspecto em um artigo conjunto intitulado: A gênese do Decreto
n.5.154/2004: um debate no contexto controverso da democracia restrita (FRIGOTTO,
CIAVATTA, RAMOS, 2012).
299
institucionalização da autocracia. A democratização popular de massas se
transformou numa democracia representativa eleitoral. Essa estrutura de
poder garantia espaços de manobras para fisiologismos, clientelismo e
praticamente exigia que os partidos que chegassem ao poder tivessem que
negociar com o bloco histórico burguês.
Quando a SEMTEC/MEC do Governo Lula opta pela elaboração
do novo decreto educacional para, supostamente, revogar um outro,
analisando a conjuntura política que se inaugurou, recorreu ao artifício
antidemocrático que tanto criticou, por isso o engodo. A social-
democracia, como forma de poder erguida sobre uma democracia
representativa que preserva institucionalmente o modus operandi
autocrático, tende a enclausurar a força política progressista, pois a ela é
imposta, o campo de disputas. Reserva-se a arena do aparelho estatal
burguês, institucionalmente autocrático. Considerando evidentemente
que esses grupos optem por enfrentar os inimigos na sua própria arena,
para se constituir como força política antiautocrática, a direção e
mobilização política requer que as massas participem ativamente das
disputas políticas, o que não veio a acontecer, como registram os próprios
envolvidos na elaboração do decreto em tom de frustração: “sem a
sociedade organizada politicamente nessa direção, a história já nos ensinou
qual é o desfecho uma solução conservadora (FRIGOTTO;
CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 30).
A mobilização feita para revogar o decreto para por outro em seu
lugar, apesar das vantagens corretivas que ofereceu, expressou muito mais
a forma de dominação burguesa pela via da conciliação do que uma
democratização efetiva, popular e de massas. Todavia, essa correção não
efetiva uma educação alternativa para o conjunto dos trabalhadores que
integre mãos e mentes. Ela está sujeita às forças políticas que atuam em
cada estado da federação e ao debate de que se ocupam as concepções e
300
propostas educacionais. Abriu-se um campo de incertezas para saber se
essas forças políticas iriam optar pelo ensino médio integrado regidos pelos
princípios da politecnia, inspirados na escola unitária, o que limitou o
alcance dos efeitos corretivos, pois o decreto assinala que a integração entre
ensino médio e educação profissional é mais uma opção e não a política do
Governo para essa área educacional. Se cada instituição pode optar por qual
via a articulação entre ensino médio e educação profissional pode se
viabilizar, a correção de rumos, como queriam os elaboradores, pode
desembocar numa opção a mais para se implantar um ensino e uma
pedagogia que favoreçam o capital. Alcançar o consentimento e
administrar a miséria era o espaço de manobra permitido pela autocracia
burguesa institucionalizada, sofisticada na forma de dominação social-
democrática inaugurada pelo Governo FHC e continuada pelo Governo
Lula da Silva.
Não resta dúvida de que o resgate da possibilidade de integração
no ensino médio corrige alguns rumos na perversa estrutura educacional
que é reservada à educação dos trabalhadores. Todavia, isso é insuficiente,
pois a política do decreto nem sequer arranhou o atrelamento da escola
com as diretrizes educativas dos OMIs. O resultado aponta para um longo
caminho a percorrer pelas lutas emancipadoras que devem encaminhar a
transformação da sociedade. Como destaca Cêa (2007, p. 170),
o Decreto 5.154/2004 é a expressão de uma perversa contradição: a
afirmação do ensino médio integrado é, ao mesmo tempo, a negação
de uma outra direção política, teórica e ideológica a ser dada à
formação profissional, pelo governo Lula, que venha a se aproximar ou
indicar intenções de aproximação com as reivindicações educacionais
formuladas pelos próprios trabalhadores.
301
O que a realidade do Decreto 5.154/2004 revela é que os Governos
petistas e sua coalizão, apesar de atenderem a um compromisso de
campanha com as entidades representantes dos intelectuais do campo
progressista e da sociedade civil, não poderiam deixar de favorecer o
empresariado. O que se viu após o decreto foi um complexo de mudanças
de um processo fragmentado entre as diversas ofertas de ensino
profissionalizante e a articulação entre ensino médio e cursos
mercadológicos. Esse processo em si não direciona as lutas dos
trabalhadores para a emancipação da sociedade do capital. Ele reforça que
a luta de classes amortecida pela “ideologia da conciliação” pode alcançar
posições vantajosas para os exploradores da força de trabalho.
O avanço das políticas educacionais atreladas ao desenvolvimento
econômico não poderia prescindir em formar a força de trabalho. Isso
significava, como aponta Freitas (2011), que, no governo Lula, a questão
educacional fosse encaminhada ou os processos de extração de lucro
sofreriam quedas, face à dependência, cada vez maior, da necessidade do
aumento da produtividade do trabalhador. Uma vez mais, como seu
antecessor, o governo Lula estabeleceu alianças com o setor privado.
O que a iniciativa privada entende em matéria educacional pode
ser resumido no interesse em formar a força de trabalho conforme as
necessidades capitalistas e, ao mesmo tempo, garantir mercado para
negócios lucrativos. Com os devidos incentivos governamentais, o setor
empresarial educacional registrou um grande crescimento no decorrer dos
governos petistas. A manutenção da modalidade concomitante e
subsequente no decreto permite um salto nas matrículas em cursos
profissionalizantes. De acordo com Santos (2017b), os dados do INEP
confirmam a expansão do mercado de ensino profissionalizante no nível
médio. Enquanto em 2001, havia um equilíbrio na divisão de matrículas
entre o setor público (231.736; 50,1%) e o privado (230.522; 49,9%), em
302
2014, o atendimento no setor privado registrou 956.765 (54,9%) e no
público 784.763 (45,1%).
De acordo com o pesquisador, o que chama mais atenção é o
crescimento do modo de articulação subsequente, alvo de duras críticas no
decreto anterior, mas que foi absorvido pelo novo dispositivo. Os dados
do INEP em 2007 registram o modo subsequente com 376.612
matrículas, divididas entre público e privado respectivamente da seguinte
maneira: 160.414 (42,6%) e 216.198 (57,4%). Em 2014, os dados
apontam um salto de matrículas no modo subsequente, chegando a
1.046.044 matriculados. Desses, 714.288 (68,2%) pertencem à esfera
privada, enquanto a pública registrou 331.756 (31,8%). Dessa maneira, a
política introduzida por FHC e confirmada pelos governos petistas
justificam todos os mecanismos autocráticos de que a burguesia não abre
mão para fazer valer seus interesses. O modo subsequente é o que mais
atende ao interesse empresarial, destarte os elaboradores e setores que
compunham o Governo Lula não foram capazes de superar a não
revogação dessas formas de articulação, mantendo intocáveis os interesses
privados sobre o setor. A condição de negociar a mercadoria ensino
continua em vigor.
No capítulo seguinte iremos analisar esse complexo de mudanças
aberto pelo dispositivo legal 5.154/2004. O aligeiramento, a
fragmentação, entre outras questões severamente criticadas no Decreto n°
2.208/97, permanecem no dispositivo que o sucede. O que temos na
atualidade é uma espécie de “pode tudo”: integração, o que apenas,
naturalmente, pode se dar em uma mesma instituição e desintegração em
momentos distintos, por sua vez sob a medida da fragmentação.
Conforme Amaral, Silva e Santos (2014), o jovem pode terminar
o ensino médio e já sair com o curso profissionalizante, certificado que não
assegura um emprego. Também pode cursar o ensino médio e se
303
profissionalizar em cursos modulares e aligeirados na mesma instituição ou
em outra. Pode fazer isso concomitante ao ensino médio ou subsequente a
ele. Se optar por um curso técnico de nível médio pode realizá-lo em
instituição pública ou privada. Se o jovem precisar terminar o ensino
médio em uma escola, depois de concluí-lo, pode cursar o
profissionalizante na mesma instituição ou em outra também chamado
de pós-médio. Nesse tipo de desintegração, o trabalhador-estudante terá
que utilizar dois expedientes do seu dia, o que se torna inviável para os
frequentadores que precisam estudar e trabalhar paralelamente. O que se
instaurou foi uma modalidade self-service educacional para o trabalhador
que precisa estudar, pois sem contar com um curso profissional no
currículo diminui suas possibilidades de emprego. Por isso, a esfera privada
tem reservado uma fatia de seus investimentos ao mercado educacional,
pois o espaço de reposição lucrativo lhe desafoga. A profissionalização é
pré-requisito dos empregadores, ampliando a procura de cursos que
prometem o emprego dos “sonhos”, sem revelar, é claro, a precarização
desse trabalho.
305
Capítulo 5
As Políticas de Educão Profissional e Ensino Médio
Após o Decreto 5.154/2004:
O Complexo de Mudanças Entre a Escola da Travessia e a
Escola que Atende ao Capital
Neste capítulo abordaremos as iniciativas de Ensino Médio
Integrado (EMI) e outras modalidades de articulação com a educação
profissional. Verificaremos se, e em que sentido, registramos avanços nas
propostas que ensejaram as alterações conceituais no Ensino Médio e
Profissionalizante em um novo dispositivo, sem alterar, contudo, a
estrutura do decreto anterior. Essa análise buscará demonstrar se a
expectativa para uma escola unitária e tecnológica ou mesmo, como
preferem alguns, a escola da travessia, foi alcançada pelas políticas
educacionais subsequentes ao Decreto. Entre tantas iniciativas, o Projeto
de EMI do Ceará receberá uma atenção especial.
O Ensino Médio e a Educação Profissional após o Decreto 5.154/2004
As mudanças educacionais que transcorreram entre 2004 e 2014
apontaram um norte para o Ensino Médio e para a Educação Profissional
que sinalizou a opção da elite governante brasileira pelo modelo de
306
ajustamento econômico capitalista mundial, através da adoção de medidas
neoliberais. Mesmo que o grupo consorciado no poder nesse período tenha
avançado em melhorias sociais para alguns segmentos alijados, o projeto
de uma escola para os jovens estudantes trabalhadores não rompe com a
lógica do capitalismo em crise. Essa lógica concebe que as relações de
mercado devem ser expandidas ao máximo, de modo que possam abranger
um conjunto cada vez maior das relações sociorreprodutivas. As medidas
são encaminhadas pelos OMIs, especialmente, o Banco Mundial. Os
governos petistas não romperam com essa lógica, buscaram mesmo mol-
la à conjuntura brasileira.
Como já mencionado, o PT de origem popular, amparado
politicamente nos movimentos sociais de trabalhadores, congregava em seu
governo um arco de alianças tanto de campos progressistas da esquerda
quanto de setores do capital que almejam continuar seu projeto de avançar
no processo de mercantilização nas áreas sociais da educação, saúde e
previdência social etc. A educação profissional (EP) foi considerada um
objeto estratégico para implementação de muitos interesses que disputam
os rumos das políticas educacionais. Não é oneroso lembrar, a correlação
de forças políticas que compunham o governo Lula da Silva determinou
um rumo à EP que atendia a interesses a partir da lógica, na qual o setor
público se coloca a serviço do privado. A regulamentação, através do
Decreto nº 5.154 de abril de 2004 que ampara a oferta de ensino médio
integrado à educação profissionalizante, não revogou o decreto anterior,
mas absorveu suas medidas. A novidade foi a regulamentação que amparou
estados da federação a criarem uma rede de escolas para o ensino médio
integrado ao profissionalizante.
Na prática o governo autorizou que o ensino médio (EM) e o
profissionalizante podem ser ainda mais fragmentados. O EM pode ser
regular, profissionalizante ou integrado e o EP pode ser concomitante,
307
subsequente ou integrado. O Decreto 5.154/2004 não revogou as medidas
do dispositivo anterior e não obrigou o ensino médio integrado, apenas
autorizou sua implementação, que foi negada pela normatização do
Decreto 2.208/1997. Como permanece intocada a possibilidade de oferta
de cursos profissionalizantes de curta duração e modulares nos domínios
da iniciativa privada, a flexibilização da oferta de ensino profissionalizante
atende ao pré-requisito da nova fase de acumulação flexível do capital,
requerendo a aplicação de um neoliberalismo, mesmo que o discurso
propagado pelo governo Lula seja carregado de argumentos sociais.
A flexibilização atua nesse âmbito como parte da fragmentação que
abre nichos de mercados educacionais explorados desde os investidores das
Bolsas de Valores, empresários vinculados ao fundo destinado ao Sistema
S, até os empreendedores menores, cujas promessas de emprego seduzem
os estudantes trabalhadores. A conservação desse viés une todos esses
elementos ao pressuposto de mercantilização da educação na qual todos
podem “vender” certificados em cursos aligeirados e modulares tanto em
cidades metropolitanas quanto em cidades do interior.
Essas medidas, que conservam a dualidade educacional e reforçam
a dicotomia entre ensino médio e profissionalizante, partiram do próprio
governo. A separação na estrutura organizacional do Ministério da
Educação entre Secretaria do Ensino Médio e Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológico é uma via de contramão para o ensino médio
integrado, como indicam as expectativas frustrados dos intelectuais do
campo progressista participantes ativos dos debates em torno de um novo
dispositivo,
O fato é que, após um ano de vigência do Decreto n. 5.154/2004, a
mobilização esperada não ocorreu. O que se viu, logo a seguir, foi o
inverso. De uma política consistente de integração entre educação
308
básica e profissional, articulando-se os sistemas de ensino federal e
estaduais, passou-se à fragmentação iniciada internamente, no próprio
Ministério da Educação (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005,
p. 1091).
Em seguida, o Ministério da Educação (MEC) oficializou as
diretrizes curriculares amparadas pelo parecer nº 39/2004 do Conselho
Nacional de Educação (CNE), reforçado pela Resolução nº 1/2005. Na
prática, tais diretrizes foram elaboradas sob as orientações das políticas
neoliberais do decreto de 1997, como consta no Parecer nº 39/2004 (CEB,
2004) (idem). A orientação a partir do novo dispositivo regulador era de
que novas diretrizes curriculares fossem implementadas, entretanto, as
Diretrizes já em vigor pela Resolução nº 3/1998, que estabeleceu as
Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, acompanhadas pelo Parecer
nº15/1998 e pela Resolução nº4/1999, que normatiza as Diretrizes
Curriculares para a Educação Profissional de nível técnico, seguida pelo
Parecer nº16/1999, foram mantidas. Por isso, reforça-se ainda mais que o
novo Decreto nº 5.154/2004 se encontrava com suas “disposições”,
contraditoriamente, nos termos adequados à manutenção das concepções
que orientaram a reforma realizada no governo anterior por meio do
Decreto n. 2.208/97” (idem, p. 1093). Como prescreveu a Câmara de
Educação Básica (CEB, 2004, p. 399): “As Diretrizes Curriculares
Nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação não deverão ser
substituídas. Elas não perderam a sua validade e eficácia, uma vez que
regulamentam dispositivos da LDB em plena vigência”.
De acordo com Santos (2017), o parecer do Conselho Nacional de
Educação (CNE), nº 39/04, que reconheceu a educação profissional na
modalidade integrada com matrícula e conclusão únicas, também
reconhece a natureza distinta dos conteúdos do ensino médio e da
educação profissional. O autor chama a atenção para a dicotomia que
309
persevera no currículo do ensino médio integrado, separando em dois
aspectos a formação para a cidadania de um lado e no outro vértice a
formação para o mundo do trabalho. Na prática existe uma concepção de
currículo para o ensino médio regular e outra para o ensino
profissionalizante, isto é, a proposta integradora conserva a dicotomia
formação geral e formação profissionalizante restrita.
A vigência das diretrizes curriculares emanadas das concepções do
Decreto 2.2008/1997 e a assimilação das modalidades concomitantes e
subsequentes ainda atreladas ao pressuposto, como consta na LDB
9.394/1996, afirma que o “Estado não é o único responsável pela execução
da educação profissional e tecnológica” (BRASIL, 2004c, p. 27). É
importante perceber que o Estado preserva a participação da iniciativa
privada nos empreendimentos educacionais. Esse padrão de
relacionamento entre o público e privado acompanha o desenvolvimento
da formação social brasileira, como indicam Santos e Silva (2015, p. 191),
cuja parceria se reproduz como elemento de dominação da elite brasileira,
pois “o privado está sempre em busca de parceiros públicos para
desenvolver e potencializar seus empreendimentos, ressaltando que a
aparência enganosa das políticas brasileiras, às vezes, nos mostra o
contrário: parece ser o público em busca da iniciativa privada”.
A lógica neoliberal, que atuou na formulação das medidas que
acompanhavam o Decreto 2.208/1997, continuou válida. O viés
mercadológico e seus preceitos preconizam a adequação ao modo de
acumulação flexível reordenando a dominação do capital sobre o trabalho,
por isso, os seus preceitos se perpetram como qualificação e requalificação
do aprender a aprender. O ideário das competências, adornadas pelo
empreendedorismo, não apenas se reforçou como tornou-se uma
tendência educacional. O empreendedorismo será, para muitas medidas
políticas, o viés neoliberal mais límpido lançado sobre a esfera educativa.
310
Para essa ideologia, em que 'tudo se vende', 'tudo se compra', ‘tudo tem
preço’, a mercantilização da educação a transforma em um bem a serviço
das relações de troca necessárias à reposição de perdas do capital no
processo de crise estrutural. Com isso, nada é mais conveniente do que
conceber a escola como uma empresa apta a formar indivíduos que irão ser
recrutados pelo mercado de trabalho (MÉSZÁROS, 2011).
No rastro desse ordenamento, a continuidade das diretrizes
educacionais gestadas a partir do Decreto 2.208/1997 confirma a
necessidade do mercado em ter o Estado como um dos pilares da
reprodução ampliada capitalista. No governo Lula da Silva, a educação
profissional não só continuou sobre os fundamentos e medidas
conservadoras do governo de FHC, como também pavimentou o terreno
para um novo nível de entrelaçamento da escola pública com interesses
privatistas.
Por conseguinte, o avanço da esfera privada sobre a pública
apontou para o alto teor ideológico, apesar de categorias e conceitos
educacionais de clássicos marxistas aparecerem em documentos oficiais.
Na prática, os preceitos ideológicos das classes dominantes é que devem
constituir o arcabouço da formação do “perfil” do trabalhador em sintonia
com a necessidade do mercado. O currículo escolar deve estar ainda mais
conectado com a esfera do mercado de trabalho de tal modo que o capital
reivindica maior eficiência sobre os espaços que concernem à reprodução
social. Por isso, os agentes do capital anseiam por um trabalhador que
produza mais e aceite ganhar menos, abrindo mão de direitos sociais,
consentindo a exploração e a precarização do processo de trabalho.
Para tanto, o empreendedorismo como ideologia difundida como
a solução para o problema do desemprego é o ajuste necessário ao projeto
de busca do consentimento frente à exploração mais aguda da força de
trabalho. Nessa linha, o (neo)liberalismo, a matriz dessa forma
311
contemporânea de empreendedorismo, preconiza a responsabilização
individual da condição social dos indiduos, preferencialmente, os
fracassos relacionados ao mercado de trabalho. Como projeto de classe
dominante, o poder público se coloca a serviço do privado quando se
propõe a implementar políticas educacionais ao alcance da iniciativa
empresarial.
Como pilar de sustentação do capital em crise estrutural, o Estado
tem a tarefa de abrir novas frentes para acumulação, pouco exploradas,
como a educação, em outras fases do capitalismo, agora como área que
deve estar a serviço do mercado. Esse suporte veio acompanhado de uma
“nova forma de gestão da educação que implicou também mudanças
institucionais e a reconfiguração das relações entre o Estado, escola e a
comunidade. Abriu-se espaço para a participação da iniciativa privada nos
projetos e nas práticas institucionais das escolas públicas
(KRAWCZYK,
2008, p. 800).
Nessa trilha, a política educacional do governo abraçou a causa do
mercado e lançou o Plano de Metas “Compromisso Todos pela Educação”.
O movimento “Todos pela Educação” é uma iniciativa de empresas
privadas que congregam conglomerados empresariais, como Fundação
Roberto Marinho, Fundação Bradesco, Instituto Itaú Cultural, Fundação
Itaú Social, Banco Santander, Pão de Açúcar, Instituto Gerdau, Fundação
Educar-Dpascoal, Instituto Ayrton Senna, Instituto Ethos, dentre outros.
Na esteira, o governo federal implementou o Plano de Desenvolvimento
da Educação (PDE) que visava, entre outras medidas, modernizar os
estabelecimentos de ensino para a oferta de ensino médio integrado ao
ensino profissionalizante. O Plano de Metas “Compromisso Todos pela
Educação” e o PDE reforçaram que a tendência do segundo governo Lula
da Silva (2007-2010) era as Parcerias Público-Privada (PPPs). Essa
312
tendência também obteve força no primeiro governo da Presidente Dilma
Rousseff (2011-2014)
57
.
Para alcançar as Metas do “Compromisso Todos pela Educação”
(TPE), o PDE foi vinculado ao Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC)
58
. O PDE seria equivalente ao PAC da educação. Podemos situar o
PAC como uma forma do governo para estimular e assumir tarefas que a
iniciativa privada não enfrentava, sem, contudo, deixar de favorecê-la
como é tendência histórica brasileira, qual seja o lucro é da empresa e o
ônus é do Estado.
O segundo governo Lula da Silva (2007-2010), que buscou
interferir na economia, não caracterizou um novo Estado de bem-estar
social à brasileira. O governo adotou a retórica do desenvolvimentismo,
combinado com a promoção de uma “economia social” através de
Programas sociais compensatórios, como Bolsa Família. Todavia, essas
medidas não desvincularam a política macroeconômica do governo dos
preceitos neoliberais como o controle inflacionário, manutenção de juros
altos, superávits primários. Essas medidas compõem um leque de atrativos
aos especuladores das Bolsas de valores, liberação de subsídios para os
setores de commodities agrícola e industriais, centrados no agronegócio, na
siderurgia, na indústria de celulose e derivados do petróleo etc. Essas
medidas, em sintonia com o capital financeiro internacional, acomodaram
interesses empresariais nacionais e internacionais e possibilitaram relativa
estabilidade ao governo Lula da Silva. Podemos assim caracterizar esse
período favorecido por uma melhor conjuntura nas relações políticas, em
57
O segundo mandato foi interrompido pelo golpismo de primeira hora que cercam os interesses
do capital e as oligarquias políticas que tomam assento no parlamento para representá-lo. A crise
que adveio sobre o governo Dilma Rousseff (2015-meados de 2016) culminou no golpe do
impeachment em abril de 2016.
58
Esse programa foi o carro chefe dos investimentos governamentais em parceria com a iniciativa
privada em vários ramos da infraestrutura que modernizariam a economia brasileira.
313
que as medidas (neo)liberalizantes foram brandas do que a ortodoxia do
mercado preconiza.
No lançamento do PDE, o governo deu ênfase à educação
profissional de nível médio com o objetivo de estimular sua expansão. Após
a sanção do Decreto 5.154/2004, apenas Santa Catarina e Paraná abriram
turmas de ensino médio integrado ao profissionalizante, sendo mais
vigoroso nesse último (CÊA, 2007). No Estado de Pernambuco, foram
criadas políticas educacionais firmando parcerias com o setor privado
através do Ensino Profissionalizante e Escolas de Referência em Ensino
Médio (EREM’s). As Escolas de Referência em Ensino Médio foram
implantadas no âmbito do Ginásio Pernambucano, revelando um modelo
de gerenciamento da educação pública para o ensino médio, mediante
contratos de gestão compartilhada com o setor privado. Posteriormente, a
experiência pernambucana como modelo foi implantada para o projeto de
EMI no Ceará.
Para atender às demandas de expansão da oferta de ensino
profissionalizante estabelecidas no PDE, o governo federal lançou o
Programa Brasil Profissionalizado
59
. Essa política indutora do Ministério
da Educação repassa recursos aos estados para criar e fortalecer a rede de
escolas profissionalizantes, modernizando e expandindo a oferta de ensino
médio integrado à educação profissional.
A expansão da rede de ensino médio profissionalizante foi
articulada tanto na esfera pública quanto na privada. Na esfera pública, a
iniciativa governamental, após a regulamentação jurídico-normativa do
59
O Programa Brasil Profissionalizado foi criado em 2007 sob o Decreto nº 6.302/07. Ele visa
estimular as políticas que integrem ensino médio e educação profissional e é apresentado pelo
Ministério da Educação como uma das estratégias para atender às metas do PDE. Anteriormente a
esse Programa havia o Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP), criado no
governo de Fernando Henrique Cardoso, que amparava o ensino profissional subsequente, isto é,
após o ensino médio.
314
Decreto 5.154/2004, foi abrangendo as modalidades presencial e à
distância (EaD). Para atender a essa última modalidade, foi criada a Escola
cnica do Brasil (E-Tec Brasil). Podemos citar também a Escola de
Fábrica, visando à formação de jovens de 16 a 24 anos no ambiente de
trabalho. Na outra frente, o MEC lançou o Programa Nacional de
Inclusão de Jovens (PROJOVEM) e Programa Ensino Médio Inovador
(PROEMI) cujo objetivo era buscar a renovação ou rearticulação
curricular adequada aos Projetos de EMI assim como previa investimentos
destinados à formação continuada de docentes para atuarem nessa
modalidade. Também ganhou destaque na política educacional dos
períodos de governo Lula-Dilma o Programa Nacional de Integração da
Educação Profissional com Educação Básica na Modalidade de Jovens e
Adultos (PROEJA). O Proeja era ofertado ao público jovem e adulto que
cursava o ensino fundamental e/ou médio, para alunos fora da faixa etária
para o nível de ensino.
Essas iniciativas também foram articuladas com a expansão da rede
federal de educação através da criação dos Institutos Federais de Educação
Tecnológica (IFETs)
60
, em substituição aos Centros Federais de Educação
Tecnológica (CEFETs). Já no governo Dilma Rousseff (2011-2014), foi
criado o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego,
Pronatec
61
. A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica expandiu-se para todos os Estados com mais de 350 unidades,
reforçando a ênfase dada pela política educacional à educação
profissionalizante (BRASIL, MEC, 2014).
60
Os Institutos Federais de Educação Tecnológica foram criados em dezembro de 2008, através da
Lei nº 11.892 em substituição aos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs).
61
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) foi criado pelo
Governo Federal, em 2011, por meio da Lei 12.513/2011, com o objetivo de expandir,
interiorizar e democratizar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica no país.
315
A partir de 2011, incorporando o suporte financeiro do Programa
Brasil Profissionalizado, o Ministério da Educação envolveu a maior parte
dessas políticas educacionais no Pronatec. Este programa se coloca como
uma plataforma que articula diversas iniciativas para a educação
profissional. O Pronatec não é nosso objeto de estudo especificamente,
entretanto, é salutar apontar, mesmo que sumariamente, que a expansão
da educação profissionalizante, seja ela na formação inicial ou continuada,
presencial ou à distância, na esfera pública ou privada, tornou-se a
congregação de um conjunto de ações do governo federal nessa
modalidade educacional.
O primeiro objetivo traçado pelo Pronatec trata de “expandir,
interiorizar e democratizar a oferta de cursos de educação profissional
técnica de nível médio presencial e a distância e de cursos e programas de
formação inicial e continuada ou qualificação profissional” (BRASIL,
MEC, 2011). Para alcançar essa meta, o governo lançou:
1) A Rede e-TecBrasil que oferta cursos gratuitos de nível técnico seja
na formação inicial ou continuada de qualificação profissional a
distância. As unidades do Sistema S foram contratadas para atuarem
junto às instituições estaduais de ensino e da rede federal;
2) Acordo de gratuidade com as instituições que compõem o Sistema
S. Através das contribuições compulsórias e dos repasses de recursos
federais, o Senai, o Sesc, o Senac e o Sesi ofertavam cursos de
qualificação profissional para estudantes de baixa renda;
3) Fies Técnico e Empresa. Estabeleceu parceria com instituições do
Sistema S e escolas técnicas privadas para financiar cursos de
qualificação profissional inicial e continuada.
4) Bolsa Formação. Através desse programa o governo federal repassava
o Bolsa Formação a estudantes que tivessem concluído ou estivessem
matriculados no ensino médio ou em cursos de formação inicial e
316
continuada de qualificação profissional (BRASIL, MEC, 2013;
MANFREDI, 2016).
A expansão do ensino profissionalizante vem se constituindo como
macropolítica do Estado brasileiro neste século, anotando uma curva
expansiva após a sanção do Decreto 5.154/2004. As demandas
mercadológicas do setor privado avançaram sobre as políticas públicas
desde a adesão brasileira ao Consenso de Washington e a realização das
reformas do Estado nos anos 1990. Elas tomaram as feições e conteúdos
neoliberais mais bem delineados no governo FHC. O governo Lula da
Silva, apesar da maior inclinação em buscar o alívio da pobreza, não deixou
de atender às tais demandas e, ademais, favoreceu a expansão do capital
sobre os serviços que o Estado oferta como direitos sociais. No governo
Dilma Rousseff, soma-se um conjunto de iniciativas educacionais que
encaminharam o avanço do setor privado na expansão do ensino
profissionalizante. Nesse sentido, o Pronatec foi a política educacional que
articulou essa expansão combinada com a transferência de somas
consideráveis do Fundo Público do Estado para o setor privado. Após a
deposição de Dilma da presidência, Michel Temer abriu maior espaço para
a participação de intelectuais do Movimento de Todos pela Educação,
afinando as medidas do Estado brasileiro as diretrizes do Banco Mundial
com a elaboração do documento “Um ajuste justo”.
Os empresários que controlam o Sistema S foram os mais
contemplados, pois sua rede de unidades abrange o território nacional. De
acordo com Guimarães (2014), 70% das matrículas no Pronatec estão
vinculadas ao SENAI e ao SENAC. Essa abrangência se dá em cursos de
formação inicial e continuada, em cursos de até 160h., isto é,
contemplados pela modalidade concomitante preservada do dispositivo
2.208/1997. A pesquisadora supracitada menciona que a tendência é que
317
entrem na disputa pelo Fundo Público da EP nível técnico (PRONATEC)
as instituições privadas que mais controlam o mercado educacional. A
revista Exame
62
destaca as corporações que atuam e disputam o mercado
educacional: Kronto-Anhaguera
63
, Grupo Estácio, Grupo Fanor, A Kinea-
Itaú que controla a marca de ensino profissionalizante Microlins. A lógica
que coordena a atuação dessas empresas é guiada pelos investidores a quem
interessa acessar os Fundos Públicos destinados à educação.
Para entender melhor o impacto desse nicho de mercado,
Guimarães (2014) afirma que 35 mil alunos estão matriculados em cursos
técnicos via Pronatec. Segundo a autora, a empresa Konton-Anahguera
comunicou aos investidores de mercado a aquisição de mais de 28 mil
alunos para o segundo semestre de 2014 e a abertura de mais de 15 mil
novas vagas, sendo sete mil para o Norte e Nordeste brasileiro. Essa
expansão se deve, principalmente, ao Pronatec via Bolsa Formação que
subsidia cursos profissionalizantes para estudantes do Ensino Médio ou
que tenham concluído o Ensino Médio (idem).
62
Revista Exame 8 de setembro de 2013.
63
A fusão entre a Kroton e Anhaguera fez desse conglomerado de investimentos a maior corporação
do mercado educacional do país e uma das maiores do mundo, segundo a Infomoney (22/04/2013).
Desde 2007, as duas empresas com apetite na Bolsa de Valores de São Paulo, expandiram suas redes
com as políticas educacionais do governo Lula para o Ensino Superior, depois Dilma Roussef seguiu
esse modus operandi no ensino técnico-profissionalizante. O ProUni, Fies, Pronatec tornaram-se os
maiores aportes do Fundo Público aberto ao mercado educacional brasileiro favorecendo a esfera
privada no setor educacional. De acordo com a Infomoney, a Kroton fechou suas ações na Bolsa de
Valores de São Paulo em 2012 com valorização de 151,50%. Para aprofundar e compreender
melhor as reformas educacionais para o Ensino Superior ver a Tese de Doutorado Graduação
Tecnológica no Brasil: crítica à expansão do ensino superior não universitário, de José Deribaldo Gomes
dos Santos. Também a Tese A Educação da “Miséria”: particularidade capitalista e ensino superior no
Brasil, de Lalo Watanabe Minto. Sobre a expansão do ensino superior ver também LIMA FILHO
(2015) Expansão da educação superior e da educação profissional no Brasil: tensões e perspectivas. Revista
Educação.
318
Abaixo reproduzimos a tabela da pesquisa de Melo e Moura
64
(2016, p. 111), que mostra a distribuição de recursos do Pronatec, entre
as esferas públicas e privadas, até 2014.
Podemos observar que nos dois primeiros anos do Pronatec, os
recursos foram destinados à Rede Federal de educação e ao Sistema S,
sendo a parceria com o empresariado contemplada com a fatia mais gorda
dos recursos públicos. Nesses dois primeiros anos, enquanto a rede pública
recebeu um pouco mais de 471 milhões, o Sistema S abocanhou mais de
1,2 bilhão do Fundo Público para a expansão da EP. Como a tendência
histórica mostra, o Sistema S é a parceria público-privada
institucionalizada desde a década 1940. Santos e Silva (2015), ao
analisarem o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), apontam
haver um acúmulo de capitais nessas instituições, pois em 2012 a monta
64
Dados obtidos pelos autores junto ao Relatório de Auditoria Anual de Contas/2013 realizado
pela CGU na SETEC/MEC foram encontrados no Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE).
319
lucrativa atingiu a casa dos 15 bilhões de reais. De olho nesse mercado
educacional, as corporações privadas passaram a se movimentar para
abocanhar uma fatia desses recursos, uma parcela, gorda, deles, via
Pronatec. Não obstante, o Sistema S apoia seu sistema utilizando o poder
do Estado para realizar sua arrecadação compulsória diretamente do salário
do trabalhador, por isso, argumenta Santos e Silva (idem), deveriam ofertar
cursos gratuitos aos mesmos. Porém, através do Acordo de Gratuidade
(Pronatec), uma soma alarmante de recursos públicos é transferida às
entidades empresariais dos serviços nacionais, o que despertou ainda mais
o interesse dos empresários das corporações em disputar uma fatia desses
recursos públicos com as entidades do Sistema S.
Para Santos e Silva (2015, p. 198),
Nesse ponto, há uma intrigante celeuma. De um lado, encontramos o
Sistema S, que detém generosos recursos estatais; de outro, um grupo
de empresários que, mesmo contra a ideia neoliberal de liberdade do
mercado, quer que o Estado se intrometa nas desavenças entre os
empresários que disputam a ‘tão saudável’ venda de serviços
educacionais, seja pela via das PPPs, ou simplesmente pela esfera
diretamente privada.
Com o ingresso das empresas privadas do mercado educacional em
2013, Melo e Moura (2016) apontam que 73% dos recursos do Pronatec
foram repassados ao capital privado entre 2011 e 2014, enquanto 27%
foram para as instituições públicas. Já Frigotto (2014)
65
reforça que o
Pronatec é uma reedição do Programa Intensivo de Preparação de Mão de
Obra, (PIPMO)
66
, e do Plano Nacional de Formação Profissional,
65
Em matéria publicada no portal Uol em 30/06/2014.
66
Concebido no governo João Goulart (1963) e executado durante o regime militar até 1982.
320
(PLANFOR)
67
convertendo-se em caça-níquel para as instituições
privadas. Esse aspecto é ainda mais reforçado pela reedição do Fies aplicado
na ES, adaptado ao ensino profissionalizante através do Fies Técnico e
Empresa, voltado ao financiamento de cursos profissionalizantes na rede
privada.
Melo e Moura (2016) observam que a aprovação da Lei
12.513/2011 foi o instrumento que regulamentou uma importante
mudança nesse processo de mercantilização da oferta de ensino
profissionalizante. Isto significa que os estudantes trabalhadores podem
financiar sua formação subsidiada pelo Estado e as empresas privadas
podem celebrar o acesso ao Fundo Público. Essa assertiva é analisada
segundo dois objetivos principais.
O primeiro, e mais óbvio, é o de dinamizar o mercado da EP,
estimulando a criação ou a adequação de empresas para competir ou
intensificar a competição nesse segmento do mercado educacional. O
segundo é um pouco mais complexo, mas igualmente coerente com
toda a racionalidade que está na gênese desse Programa. O novo FIES
torna posvel a existência de empresas educacionais com um modelo
semelhante ao dos institutos federais, pois uma organização privada de
ensino superior pode se cadastrar nesse fundo e passar a atuar na oferta
de cursos técnicos de nível médio. (MOURA, 2013, p. 24, grifos do
autor)
A propaganda neoliberal de um Estadonimo para a economia
não se reflete nessa política educacional que congrega a lógica estruturante
da relação contraditória entre capital, trabalho e educação. As disputas
entre as grandes corporações e as entidades dos serviços nacionais
67
Concebido e aplicado nos governos de Fernando Henrique Cardoso.
321
realçaram o que Mészáros (2011) pontua sobre essa falsa propaganda de
que o capitalismo não subsistiria nenhum dia sem a providência protetora
do Estado. Como ressalta Santos e Silva (2015, p. 192), “na essência, a
missão neoliberal não é a de se afastar do campo econômico para deixar
livre a operação do mercado (a liberdade mercadológica), mas criar
instrumentos cada vez mais sofisticados para que os empresários garantam
seus lucros”.
Com a expansão da rede de ensino profissionalizante, o que se
evidencia é a transferência de um vultoso fundo público ao mercado
privado. “As grandes corporações que têm no ensino um negócio,
inicialmente centrado no Ensino Superior, rapidamente estão também
avançando sobre o mercado da Educação Técnica e Profissional,
tradicionalmente disputado pelo Sistema S” (FRIGOTTO, 2014b, p.1).
Essa expansão está vinculada à regulamentação do decreto
5.154/2004 que absorveu o conteúdo do decreto anterior. O acréscimo
dessa modalidade de ensino, integrada às já existentes concomitantes e
subsequentes, não resolve o problema da fragmentação e da dicotomia
educativa entre educação geral e educação restrita. A preservação da
organização curricular, proveniente das medidas que acompanharam o
decreto 2.208/1997 que separa ensino médio regular e ensino
profissionalizante, está de acordo com os interesses mercantilistas da esfera
privada. O desenvolvimento posterior das políticas educacionais
confirmou que tal fragmentação veio a atender o processo de conversão da
educação profissional, um negócio a ser explorado pelos empresários da
educação.
No período de uma década que compreende os anos de 2007, no
qual o governo fez o lançamento do Plano de Metas Todos Pela Educação
322
e do PDE, e o ano de 2016 que deflagrou o fim do governo Dilma
68
, após
as investidas golpistas das oligarquias tradicionais (compõem o grupo
Centrão), aliadas e opositoras ao governo eleito, com assento no Congresso
Nacional, configuraram políticas de profissionalização que flexibilizaram a
oferta dessa modalidade. Para Leher (2012, p. 6), a principal agenda dos
governos Lula da Silva e Dilma Rousseff é o Compromisso Todos pela
Educação.
O nexo entre o MEC e o TPE não é apenas conjuntural. O ministro
Haddad batizou o principal plano de ação na área educacional do
governo Lula da Silva, o Plano de Desenvolvimento da Educação
(BRASIL, 2007b), com o nome do movimento: Compromisso Todos
pela Educação. A leitura da Exposição de Motivos do Plano comprova
que não se trata apenas de um ato simbólico, pois lá se afirma que as
iniciativas previstas no PDE objetivam implementar as metas do TPE.
Desse modo, são gestões comprometidas com a iniciativa privada,
pois o vínculo orgânico entre o público e o privado é firmado nos
documentos oficiais e na nomeação de intelectuais técnicos para atuarem
no segundo escalão no Ministério da Educação. As políticas indutoras à
expansão do ensino profissionalizante revelam a predileção pelo
atendimento dos compromissos com o TPE.
Ao longo desses governos, os dados estatísticos evidenciam a
expansão da rede de ensino profissionalizante. Os indicadores mostram
68
Lula da Silva e a coalizão política liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) conseguiram
eleger sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2016), assegurando que esta coligação daria
continuidade ao projeto político iniciado com as eleições de 2002. No entanto, após as eleições de
2014, com a vitória eleitoral, o governo Dilma passou a enfrentar uma crise econômica com reflexos
diretos na coalizão política, base de sustentação de seus governos. A crise culmina com o golpe de
impeachment de 2016, quando seu bloco de alianças se desfaz e um grupo desloca seu apoio ao então
vice-presidente Michel Temer (PMDB).
323
que a evolução de matrículas no setor público e privado acompanharam o
compasso do processo de conversão da qualificação profissional numa
função econômica. Os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), publicados anualmente, mostram
que em 2001, a esfera pública registrou 231.736 (50,1%), enquanto a
esfera privada teve um registro de 230.522 (49,9%). Através da
regulamentação institucional e de políticas indutoras, a expansão atinge
seu pico no ano de 2014. Com a metodologia do Censo Escolar a partir
de 2007, pode-se verificar a matrícula por forma de articulação entre
ensino médio e ensino profissionalizante, tanto na esfera pública quanto
na privada. O gfico abaixo mostra a evolução das matrículas
considerando a dependência administrativa, pública ou privada, e a forma
de articulação do ensino profissionalizante:
Gráfico 1- Evolução das matrículas da Educação Profissional por dependência
administrativa e por forma de articulação
Fonte: INEP/MEC
69
69
Não conseguimos acesso aos dados das Sinopses estatísticas do Inep do ano de
2009.
324
Os índices acima revelam a predominância das matrículas da EP
na esfera pública. Isso é resultado de uma série de políticas implementadas
que aumentaram a oferta de vagas nos estabelecimentos públicos de
ensino. A expansão da rede federal com a criação de Escolas Técnicas
Federais e a conversão dos CEFETs e das escolas Agrotécnicas em
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, além da
regulamentação, permitiu aos estados da federação implantar escolas
estaduais de ensino médio- integrado ao profissionalizante. A
regulamentação possibilitada pelo decreto 5.154/2004, inicialmente, se
mostrou bastante tímida. Com o lançamento do PDE e, principalmente,
do Programa Brasil Profissionalizado, alguns estados implementaram sua
rede de escolas de EMI. No momento, não iremos nos deter a essa forma
de articulação em âmbito nacional. Na próxima seção deste capítulo,
destacamos a iniciativa cearense, como efetivação de uma política
educacional amparada na institucionalidade, após o decreto 5.154/2004.
Por hora, registramos que a modalidade de EMI se expandiu, mas,
como estão vinculadas às iniciativas dos governos estaduais e o decreto
5.154/2004 não obriga o Estado a ofertar o ensino médio integrado, ficou
bastante limitada. Também, o seu processo de construção, não é
homogêneo, pois as diferenças regionais e os interesses políticos, eleitorais
e econômicos, dos grupos que governam o ente federativo, apontam
caminhos distintos entre as concepções e preceitos emanados dos
documentos oficiais e o tratamento dado à implementação do ensino
médio integrado. Na seção posterior, trataremos de abordar a iniciativa
cearense de EMI.
Não obstante, as modalidades concomitante e subsequente foram
as que mais contribuíram para os resultados alcançados nesse processo de
expansão, justo as mais criticadas pelos proponentes que revogavam o fim
do decreto 2.208/1997. As críticas a esse decreto eram direcionadas a sua
325
perversa lógica mercadológica que reforçava tanto a dualidade educacional
em sua estrutura, quanto a dicotomia que separa o currículo para formação
geral do currículo voltado às profissões técnicas. Em meio a esse debate,
também atuam educadores que alertam para o limite da possibilidade de
ensino integrado, pois sem superar a dualidade educacional, a dicotomia
entre as esferas do saber é preservada e suas contradições são amplamente
apropriadas pelos defensores da ordem atual. Como aponta Reis (2015, p.
253), quando ressalta que “o empresariado não nega os pressupostos de
humanização integral, mas, pelo contrário, prega isso em seu discurso e em
suas prospecções educacionais, reafirmando o poder que o capitalismo tem
de reverter as situações a seu favor”.
Os dados estatísticos do Inep revelam que tanto a esfera pública
quanto o mercado empresarial exploram as modalidades de ensino
profissionalizante, mesmo que a retórica, presente nos documentos
oficiais, indique preceitos em outra direção para a formação humana do
ser social. O modelo absorvido pelo Decreto 5.154/2004 do decreto que
antecedeu e acrescido a forma integrada faz do novo decreto um
documento híbrido, como conceituam Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012),
e ao mesmo tempo, flexível podendo abrigar concepções distintas de
educação profissional.
Uma das formas consideradas mais práticas para uma
profissionalização precoce é a forma de articulação concomitante, pois o
estudante, ao mesmo tempo que cursa o Ensino médio regular, também
pode fazer um curso técnico. Para um estudante trabalhador essa forma de
articulação o qualificaria para um emprego de forma mais rápida, sendo
fundamental para melhoria da renda familiar. Nessa modalidade, a
separação entre o ensino propedêutico e o profissional assume a forma
clássica da dicotomia que separa a formação geral da formação específica.
Os efeitos dessa modalidade são o aligeiramento e a evidência de colocar
326
um teto à formação do trabalhador, promovendo a terminalidade dos
estudos precocemente e dispondo-o ao mercado de trabalho em seus
estratos mais baixos.
A modalidade concomitante, a despeito das oscilações entre um
ano e outro, mantém como oferta as políticas públicas de EP. Em 2007,
161.707 matrículas registraram a modalidade que articula EM e EP, no
mesmo estabelecimento ou distinto; em 2011, houve 94.679 alunos nessa
condição, indicando, portanto, um declínio nessa modalidade. Entre 2012
e 2016, são anotados números de matriculados sempre em torno dos 100
mil estudantes. Já nas instituições privadas, das 160.574 matrículas
registradas no ano de 2007, o desempenho da modalidade concomitante
evolui para ficar acima da casa dos 200 mil estudantes entre 2013 e 2018.
Gráfico 2 Evolução das matrículas na modalidade concomitante
Fonte: INEP/MEC
327
A queda no número de matrículas entre 2007 e 2010 na
modalidade concomitante é revertida com o lançamento do Pronatec. Os
convênios entre o governo federal e o Sistema S são os principais elementos
que puxam os indicadores que recuperam o fôlego dessa modalidade. Entre
2015 e 2016, com a crise institucional envolvendo o golpe que depôs a
Presidenta Dilma Rousseff, vieram cortes orçamentários com impactos na
atuação das instituições públicas e no sistema S, entretanto, parte dos
cortes orçamentários preservaram os contratos com o setor privado,
possibilitando a continuidade da exploração mercantil dessa modalidade
educativa. Os empresários não deixariam de explorar um setor da educação
que seria um espaço apropriado para obter vantajosas taxas de lucro.
Enquanto em 2007, a modalidade subsequente registrou 160.652
matrículas na rede pública, em 2011 esse índice atingiu mais que o dobro
com 339.227 matrículas. Na rede privada, essa modalidade subsequente é
a preferida pelos empresários. A maior oferta dos cursos são os baixos
custos, a forma aligeirada e o retorno, pois contam com estudantes ávidos
a conseguirem um emprego. Em 2007 a maior parcela dos cursos vendidos
nessa modalidade indicou 218.222 matrículas. Para a comemoração dos
empresários, quatro anos depois, o censo escolar registrou 465.945
matrículas. Em 2014, o salto é ainda maior, com 714.307 matrículas. É o
maior índice registrado nesse processo de expansão com três milhões de
matrículas, considerando todas as modalidades ofertadas. Nesse ano,
considerando as matrículas dos setores público e privado, apenas a
modalidade subsequente atingiu 1.046.340 matrículas. Isso é mais que o
dobro das matrículas na modalidade EMI.
Essa modalidade carrega a marca de ter, em seus índices de
matrículas, estudantes trabalhadores que concluíram o ensino médio, não
obtiveram êxito em ingressar no Ensino Superior e não conseguiram um
emprego. Para atender às exigências dos empresários, resta a esses
328
estudantes a qualificação e (re)qualificação para, desse modo, tornarem-se
empregáveis.
O gráfico 3 abaixo ilustra a evolução das matrículas na modalidade
subsequente na esfera pública e privada.
Gráfico 3 Evolução de matrículas da Educação Profissional na modalidade
subsequente
Fonte: INEP/MEC
A implementação do Pronatec ativou o boom do ensino
profissionalizante. Os dados mostram que entre 2011 e 2018, a curva da
expansão ultrapassou a cifra dos milhões em matrículas, considerando
todas as formas de articulação. Para tanto, convém destacar os incentivos
ao setor privado, proporcionados pelo Acordo de Gratuidade, tais como a
Bolsa Formação, o Fies Técnico e Empresa e o Programa Brasil
Profissionalizado. Essas políticas possibilitaram ao mercado acesso aos
329
recursos públicos, porém sem as contrapartidas do compromisso com a
qualidade do ensino ofertado. No primeiro momento, a parceria entre o
governo federal e os empresários do Sistema S logo ganhou a concorrência
das grandes corporações empresariais da educação: Kroton-Anhaguera,
Estácio, Kinea-Itaú, Grupo Fanor etc. Foi nessa esteira que as matrículas
nos cursos profissionalizantes do setor privado superaram as dos
estabelecimentos públicos em 2014.
Podemos constatar o lobby empresarial que mantiveram as
modalidades concomitantes e subsequentes nos dispositivos legais. Em
2013, sob a alegação de um “apagão educacional” no jargão do senso
comum de que “emprego existe, o que falta é mão de obra qualificada!”,
um movimento dos institutos e fundações empresariais pressionou o
governo federal a disponibilizar mais recursos para as corporações privadas
da educação (FRIGOTTO, 2013). A iniciativa generosa do Estado com as
empresas educacionais foi tamanha que “as transferências de 2011 a 2014
somam quase 6.5 bilhões de reais. Desse montante, “1.8 bilhão destinou-
se à esfera pública e 4,7 bilhões à privada, ou seja, 73% dos recursos do
Pronatec são repassados ao capital privado, e apenas 27% à esfera pública”,
conforme pesquisa de Melo e Moura (2016, p. 111).
Nessa fase de acumulação capitalista flexível, acionada pela crise
estrutural do capital, é notória a necessidade do capitalista em ter à
disposição um Estado que promova a flexibilidade de um amplo conjunto
de relações e serviços sociais como lócus da reprodução lucrativa. Na
particularidade brasileira, a acumulação flexível segue os padrões do
capitalismo periférico dependente, isto é, subordinado ao centro
hegemônico do capital internacional, constituído, em nosso contexto, por
uma burguesia que se associa ao capital externo a fim de manter seu status
quo.
330
Com efeito, a inserção brasileira no capitalismo financeiro,
mundializado, impõe a superexploração da força de trabalho. A formação
da força de trabalho deve estar adequada às exigências de produtividade,
instrumentalizada com certo domínio de conhecimentos tecnológicos, ao
mesmo tempo, apta a consentir precárias condições de trabalho. Para
adequar-se a este padrão, desde a adesão das elites brasileiras ao Consenso
de Washington, as elites alocadas no poder adotam as diretrizes que
emanam dos Organismos Multilaterais Internacionais (FMI, Banco
Mundial etc.). São reformas e contrarreformas que realinham, de tempos
em tempos, a institucionalidade do Estado, a estrutura econômica, as
relações sociais aos imperativos do capitalismo externo e das demandas de
classes dominantes, tanto da esfera privada quanto da que ocupa o aparelho
estatal.
Em síntese, Souza et. al. (2017, p. 42) assinala que
A compreensão da educação a partir da elaboração da Escola de
Chicago, importante espaço de difusão do pensamento de diferentes
áreas e épocas, que desenvolvem a Teoria do Capital Humano -THC.
Esta teoria atribuiu um lugar estratégico à educação no processo de
valorização do capital. Ou seja, os países, especialmente de economia
periférica, através das reformas educacionais, com viés
qualificador/profissionalizante, seriam capazes de formar capital
humano (mão de obra) capaz de incrementar importantes ganhos ao
capital por meio de um aumento da produtividade do trabalhador e da
competitividade do país no mercado mundial.
As coordenadas para a inserção brasileira nesse novo padrão de
acumulação flexível viriam com adoção e implantação das concepções
(neo)liberais no que concerne ao papel do Estado, na implementação das
políticas econômicas e sociais, realinhando as relações entre público e
331
privado, de tal modo, a favorecer este último. Essa adoção não estava
restrita às reformas do Estado e suas relações com o mercado, era
imperativo ao projeto de autocracia burguesa, a implantação das
concepções ideológicas do neoliberalismo em vários segmentos da
sociedade. Por isso, encaminham demandas carregadas de preceitos
ideológicos às políticas educacionais, levando as escolas a adotarem, como
concepções de organização curricular, embutidas ou desveladas, o
empreendedorismo e a empregabilidade, do aprender a aprender, do
paradigma das competências.
Para Leher (2014), os mecanismos que estão efetivando essas
demandas da dominação de classe, buscam a hegemonia e o controle das
demais classes pela burguesia, principalmente, a classe trabalhadora. Essas
forças utilizam o aparelho estatal, como ressalta o autor.
O exame apurado e sistemático das principais iniciativas educacionais
em curso no Brasil de hoje, como as sistematizadas no Plano Nacional
de Educação (Lei 13.005/14), permite afirmar que a meta dos setores
dominantes é educar a massa de crianças e jovens para um
conformismo (que nada tem de estático) com a situação social vigente
que pode e deve mudar para que tudo fique como está [...] (idem, p.
6).
Esse processo também conta com a colaboração e subordinação dos
intelectuais, representantes de classe e frações de classe da burguesia
brasileira, pois eles se identificam tendencialmente com os interesses das
agências internacionais multilaterais. Alguns deles atuam como executores
e outros participam da elaboração das diretrizes (CUNHA, 2002). Para
alguns desses intelectuais e técnicos-gerenciadores, a formação do
trabalhador deve estar a cargo dos empresários, como defendem Moura
332
Castro, Simon Schwartzman, João Batista Oliveira, Paulo Renato Souza e
Paulo Paiva, cardeais defensores da Teoria do capital humano na educação.
Defensores do Sistema S, esses autores entendem que a formação do
trabalhador deve estar sob a alça do patronato e apontam a inadequação
da formação oferecida no sistema público à realidade do sistema produtivo
do país. Para Castro (2015, s/p), o Sistema S
Trata-se de um sistema privado, voltado para a satisfação de
necessidades coletivas e com todas as vantagens de não ser repartição
pública. Outro ganho ainda mais radical é que, sendo operado pelos
empresários, quem administra o sistema é quem contrata seus
graduados. Ou seja, se o Senai não prepara a mão de obra que a
indústria pretende contratar, os empresários têm a faca e o queijo para
exigir que isso volte a acontecer.
Todavia, após as eleições de 2014, com a vitória de Dilma Rousseff
para um segundo mandato, uma crise político-institucional instala-se no
âmbito federal. A deposição de uma presidente eleita no âmbito da frágil
democracia eleitoral, quebrando “as regras do jogo”, violava o estatuto
normativo-político da Constituição de 1988. Sem aval do mercado
financeiro e minado pelos oligopólios midticos, o mandato de Dilma foi
abreviado e encerrado em maio de 2016. Esse processo não é objeto de
nossa análise, cabe aqui esse registro, pois a crise institucional revela os
conflitos de classes, frações de classe, suas alianças e divisões, assim como
o modus operandi da autocracia burguesa no Brasil.
No orçamento público, já estavam em curso cortes relevantes nos
recursos destinados aos programas educacionais, entre eles o Pronatec. A
partir de 2015, o Ministério da Educação criou critérios mais exigentes
para a distribuição de recursos no Fies, no Bolsa Formação e no Acordo de
333
Gratuidade. Essas medidas impactaram o Sistema S e as empresas privadas
que reduziram a oferta de vagas na EP, tanto no setor público quanto no
privado, como se observa no gráfico 3, exposto anteriormente.
Logo após o golpe que depôs Dilma Rousseff, o governo Michel
Temer (2016-2018) tratou de atender às demandas dos empresários da
educação (organicamente representados pela Confederação Nacional da
Indústria -CNI, pelo Agronegócio, pela FIESP). O governo abriu espaço
para intelectuais que compõem o movimento TPE e sintonizou com maior
afinidade as diretrizes do Banco Mundial. Os intelectuais assessoraram o
governo Temer elaborando o documento “Um ajuste justo”. Nesse
contexto, adotou uma agenda agressiva em prol do capital foi posta em
prática: a Emenda Constitucional 55/2016 congelou os gastos com
serviços sociais essenciais à população; uma reforma trabalhista com perdas
ao trabalho, liberando a terceirização que na prática institucionalizou a
informalidade. Na educação, reafirmou o compromisso com setores
empresariais do mercado educacional. O governo Michel Temer (2016-
2018) precisava do apoio da classe empresarial e na educação se
comprometeu em honrar compromissos políticos com o movimento TPE.
Não por acaso, o governo acelerou a tramitação da Base Nacional Comum
Curricular e realizou a Reforma do Ensino Médio sem um amplo debate
com a sociedade.
Nesse processo, pode-se constatar o avanço ainda maior do privado
sobre o público por instrumentalizar o Estado com as concepções
mercantilistas que lhes convém. A incorporação das demandas do setor
privado imprime, nas Leis e na implementação das políticas educacionais,
a construção hegemônica da pedagogia do capital (LEHER, 2014). O
Plano Nacional de Educação (PNE-2014-2024) em vigor desde 2014
amparou novas ações políticas, sem, contudo, deixar de estar apoiado em
velhas práticas.
334
Nessa direção, o governo Temer, de plantão, encaminhou a
Reforma do Ensino Médio. No ritmo do golpismo, o governo sancionou
a medida provisória 746/2016, posteriormente aprovada pela Câmara e
Senado federais a caráter, a Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. No
movimento de formulação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
o EM foi separado das discussões, o Minisrio da educação destituiu os
especialistas que conduziam os trabalhos para o EM, restringindo os
debates na elaboração dessa política educacional. A reforma do EM é mais
uma das investidas dos interesses privatistas sobre as políticas públicas.
(FRIGOTTO, 2016).
Uma das principais investidas da dita reforma foi a reestruturação
curricular que flexibilizava as disciplinas da área de ciências humanas. O
currículo compartimentado em obrigatório e optativo, articulado pelo
itinerário formativo, possibilita a fragmentação e esvaziamento da
formação científica e cultural dos estudantes. Pelo Artigo 35-A, parágrafos
3º e 4º, apenas as disciplinas de Matemática, Português e Inglês são
obrigatórias nos três anos do EM. A formação profissionalizante é
formalmente anexada ao currículo do ensino médio regular. Essa
integração, porém, se dá com o esvaziamento do saber propedêutico. No
processo de profissionalização precoce, a reforma do ensino médio,
pressupõe antecipar, na formação do estudante trabalhador, a necessidade
de se “especializar”. Como 60% das disciplinas são obrigatórias e 40%
optativas, no percurso do EM o estudante precisa optar por “minicursos
profissionalizantes”. Enquanto isso, Filosofia, Sociologia e Educação Física
passam a ser temas transversais (BRASIL, 2018).
Essa reforma do EM traduz bem a ideia de flexibilização oriunda
dos manuais dos defensores da ideologia neoliberal. A noção de
aprendizado ao longo da vida, o ideário aprender a aprender, associado à
noção de competência, converge para as demandas mercadológicas. Para
335
Laval (2004), essa educação “do berço à tumba” associa a ineficiência da
atuação estatal com o problema da eficácia escolar. A mão invisível do
mercado livre, como prega Milton Friedmam
70
, eliminaria o
intervencionismo do Estado e limitaria a atuação dos sindicatos dos
professores.
Como consequência desse processo de abarcamento das
concepções pedagógicas pelos entes da esfera privada, ocorre um de
processo hibridização do currículo integrado, não vinculado às
necessidades da classe trabalhadora. As políticas públicas são convertidas
em instrumentos que possibilitam a incorporação do ideário neoliberal,
posteriormente, potencializando a privatizão do ensino público. Desse
modo, o privado gerencia seus interesses ao universalizar, através da rede
de escolas públicas, para as massas de trabalhadores, os valores morais, a
instrumentalização de saberes restrita ao manuseio do maquinário digital,
bem como a difusão do consentimento para exploração do trabalho
precário.
Com isso, o currículo enxuto absorve o processo de integração às
avessas, pois sua consequência direta, nos termos dos interesses privatistas,
constitui-se no esvaziamento do conhecimento científico, histórico-
cultural, artístico, corporal, subsumindo a formação humana às demandas
do capital. Com o foco nas disciplinas de português e matemática, as
demais são tratadas como temas transversais ou projetos interdisciplinares,
reduzindo o ensino à instrumentalização precária. Desse modo, encontra-
se uma forma de ativar a aprendizagem a conta gotas, transcrita dos
manuais do liberalismo à educação. Em países de economia periférica e
70
Milton Friedman é, ao lado de George Stigler, líder da escola (neo)liberal do pensamento
econômico, mais conhecida como Escola de Chicago. As teorias dessa “escola” embasam a política
econômica da ditadura de Augusto Pinochet no Chile na década de 1970. Após a eleição de Jair
Bolsonaro em 2018, Paulo Guedes, discípulo de Friedman, foi nomeado Ministro da Economia.
Na teoria de Friedman a educação é concebida como capital humano.
336
dependente, se produz, com efeito, a negação do direito ao conhecimento
universal propedêutico, restando a instrumentalização precoce, aligeirada
e fragmentada dos trabalhadores em cursos de baixo custo. Uma mão de
obra adestrada e barata, suscetível a exploração e produção de mais-valia.
A regulamentação da articulação entre ensino médio e ensino
profissionalizante, promovida pelo Decreto 5.154/2004, não alterou o
processo de fragmentação e mercantilização da educação profissional. A
preservação das modalidades concomitante e subsequente, a manutenção
das diretrizes curriculares, aprovadas durante o governo FHC, reafirmadas
nas gestões PTistas posteriores, a divisão no Ministério da Educação em
uma Secretaria para o Ensino Médio e outra para a Educação Profissional,
foram acompanhadas por um conjunto de políticas educacionais indutoras
que reforçaram o vínculo da parceria público-privada.
Os conflitos que afloram dessa relação revelam o movimento da
luta de classes. Embora abordemos a efetivação das políticas educacionais,
elas são carregadas de embates entre os trabalhadores, intelectuais e suas
organizações sociais em um movimento que busca modificar os rumos da
história. Cabe o registro citado por Leher (2014) sobre o Encontro
Nacional de Educadores -ENE, realizado no Rio de Janeiro nos dias 8, 9 e
10 de agosto de 2014. Esse evento tem impulsionado a ação dos
movimentos sociais na educação a atuarem contra as políticas do Estado
que absorvem as demandas da esfera privada, negando aos trabalhadores
acesso a um Ensino Médio de qualidade. O ENE já está na terceira edição
e tem se constituído como um fórum articulador das entidades dos
trabalhadores da educação, que lutam contra o processo de mercantilização
e, com efeito, de precarização implementado pelas reformas educacionais
(idem).
A partir de 2011, os conflitos entre público e privado afloraram
movimentos de resistência, manifestados nas paralisações estudantis e nas
337
greves dos trabalhadores da educação no âmbito das três esferas do poder:
federal, estadual e municipal. Elas indicam o movimento da luta de classes.
São movimentos reativos e, por isso, limitados, mas toda greve produz suas
lições, isto é, existe uma pedagogia inerente a essas lutas e indicam que o
movimento em defesa da educação poderia despertar outras lutas centrais
contra o domínio capitalista.
A atuação dos movimentos sociais não logrou êxito como
contenção das políticas neoliberais. O Estado e as classes dominantes
brasileiras coadunam com as diretrizes para a educação do Banco Mundial
e outras agências multilaterais. Não é oneroso lembrar, o Banco Mundial,
por exemplo, encara a educação como prestão de um serviço e não como
um direito de todos (CORRAGIO, 1998; CROSO, 2008).
A disseminação de cursos profissionalizantes, por um lado, revela
uma margem de manobra que favorece a ampliação de um círculo de
investimentos maior ao capital, intentando a reprodução do lucro; por
outro lado, a expansão do sistema educacional promove a propagação de
um conhecimento direcionado às massas, tendo seu horizonte delimitado
pelas fronteiras do capital, portanto, distante dos interesses e necessidades
reais da classe trabalhadora.
A educação é um poderoso instrumento de formação humana, por
isso, os empresários necessitam, mediante os sinais de limites absolutos da
crise estrutural do capital, reformar permanentemente a instituição escolar.
Por isso, o capital demanda utilizar a esfera educativa em prol dos interesses
financeiros, bem como controlar, treinar, adestrar moralmente o
trabalhador, ao mesmo tempo, que controla o escopo ideológico como lhe
convém. Em troca, segundo Reis (2015, p. 255), o benefício ao
trabalhador é a possibilidade de “(re)qualificação profissional para se
manter empregável, pois tal concessão vem acompanhada de “preparo
físico, técnico e moral” para produzir cada vez mais e garantir seu salário”.
338
No sentido de também desmistificar a predileção da classe
empresarial pela educação profissionalizante, Santos (2018, p. 12) revela o
que lhes interessa.
A expressão da educação profissional assume uma tarefa de formar a
base social no exercício de meios de sobrevivência. Ao profissionalizar
as referidas forças produtivas, esse ramo educativo pretende torná-las
ainda mais lucrativas na complexificação da produção de mercadorias
e na extração de taxas de mais-valia. Ao dar sentido a um “desvalido da
sorte”, profissionalizando-o, ou seja, formando um sujeito “integrado”
à lógica do capital, a educação profissional assume o caráter ideológico
de controle sobre uma massa de possíveis insurgentes, pois reafirma o
complexo ideológico estruturante das relações culturais da sociedade
do capital.
Por se tratar de uma política de expansão da rede de cursos
profissionalizantes, com a opção de atendê-la via setor privado, o governo
federal deixou de destinar um aporte maior de recursos para as instituições
educacionais públicas, de modo que melhore a qualidade da oferta desses
cursos. O que está em curso é a reafirmação da velha dualidade estrutural
da educação e, em seu interior, a potencialização para novas dicotomias:
formação geral versus formação especializada, educação propedêutica versus
educação profissional, ensino regular versus ensino profissionalizante. As
raízes desse processo são amparadas pelo terreno da autocracia burguesa
após a Constituão de 1988, pois nela surgem dois decretos para a
educação profissionalizante com fins distintos.
Ao modo neoliberal, o Decreto 2.208/1997, instituiu uma
educação que revigora a dicotomia educativa, acentuando a abertura do
processo educativo aos fins mercantis da iniciativa privada. Já com os
proponentes do Decreto 5.154/2004, observava-se o esforço para a
339
revogação do decreto anterior para, a partir daí, colocar na pauta das
políticas educacionais a educação inspirada na concepção de politecnia,
porém, o resultado, considerando a luta de classes nesse contexto,
terminou por gerar um dispositivo que absorveu o conteúdo da proposta
anterior, acrescentando a possibilidade do ensino médio integrado. Com
efeito, o dispositivo amparou uma espécie de hibridização entre
concepções e conceitos educacionais distintos.
Os intelectuais progressistas, alinhados aos governos do Partido
dos Trabalhadores (PT), reivindicavam uma nova proposta de formação
humana, baseada na politecnia, em direção à omnilateralidade. Entretanto,
o que foi parar no chão da realidade foram propostas de EMI que no limite
promoviam a articulão entre ensino médio regular e ensino
profissionalizante. As propostas com base no conceito de politecnia ficaram
restritas e tuteladas ao Estado e aos grupos políticos que hegemonizaram o
poder político.
O processo de implantação do projeto Ensino Médio Integrado
(EMI) vem ocorrendo mediante um intenso momento de reformismo
educacional, caracterizando um complexo de mudanças que não
transforma a estrutura social, mas visa adeq-la às novas demandas do
capital sobre o trabalho. Em um primeiro momento, as mudanças
possibilitadas pelo Decreto 5.154/2004, acompanhadas pelas políticas
educacionais PDE-TPE, Pronatec, Programa Novo Ensino Médio,
criaram um cenário propício à articulação entre as instâncias
administrativas do Estado Governo Federal, estaduais e municipais e a
esfera empresarial. Em um segundo momento, a articulação e o lobby da
esfera empresarial, junto aos agentes do Estado na elaboração do PNE-
2014-2024, foram seguidos pelo golpe de impeachment de 2016 e fizeram
com que as Reformas, tanto do Ensino Médio como da Base Nacional
340
Curricular Comum, desaguasse a educação profissional na lógica de
mercado.
Como destacamos, o MEC tenta diluir, em uma longa série de
Decretos, Portarias, Editais, Termos, Chamadas, Protocolos de Intenção,
Resoluções, Projetos de Leis etc., a agenda “Todos pela Educação”. Apesar
do discurso desenvolvimentista que apareceu nas gestões Lula-Dilma, o
que passou a valer, no miolo dessas políticas educacionais, foi o viés
neoliberal que essas regulamentações carregavam. Elas apontam para uma
dimensão diametralmente oposta à formação humana omnilateral.
Após a escalada ao poder, do grupo que se aglomerou em torno do
governo Temer (2016-2018), a agenda do setor privado foi ainda mais
radical. Como operador deste pacto, o Estado disponibiliza recursos
financeiros aos estados e municípios, sem deixar de abonar os empresários
do Sistema S, do movimento Todos pela Educação e das grandes
corporações que atuam no mercado educacional.
A Reforma do Ensino Médio do governo Temer é a síntese gestada
bem ao modo de ser das classes dominantes brasileiras. No contexto das
políticas de arrocho financeiro, o governo implantou, com anncia do
Congresso Nacional, um plano de congelamento dos investimentos do
Estado brasileiro em serviços de educação, saúde e assistência social através
da PEC do Teto de Gastos. Em seguida, a Reforma Trabalhista foi
implantada através da Lei 13.467 de 2017 modificando regras de
remuneração, planos de carreiras, flexibilizando a relação entre patrões e
empregados, retirando direitos trabalhistas. Foi nesse contexto que a
educação foi alvo de investidas do capital para que fizesse parte da roda que
gira a economia.
Nesse processo, os movimentos sociais de classe apresentaram
resistência a esse projeto, mas o que prevaleceu foi a força de articulação
341
do capital que faz do Estado, como diria Marx, um comitê dos negócios
da burguesia. Não obstante torna o ensino médio e o ensino profissional
fatores de desenvolvimento socioeconômico do Brasil, como pregam os
defensores da teoria do capital humano, argumento que se dilui, jogando
contra o trabalhador e a favor do capital, pois a flexibilidade significa
menos obrigações dos capitalistas para com o trabalhador, isto é, exige-se
um trabalhador qualificado e produtivo, no entanto, com menor custo.
Isso implica na redução dos direitos do trabalho, precarizando as condições
da classe trabalhadora.
No cenário de crise, adequar a escola à lógica do mercado
pressupõe concebê-la como uma empresa que tem a tarefa de formar os
indivíduos aptos a lutarem por uma vaga no mercado de trabalho
capitalista, bem como difundir os valores ideológicos para o exercício da
cidadania empreendedora dentro das fronteiras do capital.
Na próxima seção, analisaremos como o processo de reformulação
da política de educação profissional no Brasil refletiu no âmbito do Estado
do Ceará. Buscaremos explicitar o contexto de surgimento e
desenvolvimento das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs).
Ao fechar um ciclo de 10 anos de existência, essas escolas assumiram uma
linha de atuação que representa bem a fusão entre EM e EP como exemplo
de hibridização e entrelaçamento entre as esferas públicas e privadas.
O projeto de EMI no Ceará: implantação e consolidação
Atualmente, no Ceará, o carro-chefe da política educacional é, sem
dúvida, a proposta do Ensino Médio Integrado (EMI)
71
. Uma realidade
71
Pode-se inferir que os resultados das políticas educacionais no Ceará creditaram a indicação de
Cid Ferreira Gomes para o Ministério da Educação no início do segundo mandato de Dilma
342
em expansão desde sua implantação em agosto de 2008. As chamadas
Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs) desenvolvem suas
atividades em tempo integral e pretendem atender aos estudantes
trabalhadores. A implementação dessa política foi iniciada na gestão Cid
Ferreira Gomes (2007-2014) e seguida pelo seu sucessor e aliado Camilo
Santana (PT-2015-2018, 2019-atualmente).
A regulamentação do EMI, através do Decreto nº 5.154 de abril
de 2004, amparou a iniciativa dos estados da federação de criarem uma
rede de ensino profissionalizante. No segundo mandato do governo Lula
da Silva (2007-2010), o Ministério da Educação (MEC) lançou políticas
indutoras ao ensino profissionalizante contribuindo para estimular as
iniciativas estaduais. O MEC lançou o Plano de Metas do “Compromisso
Todos pela Educação” e implementou o Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE), que visava modernizar os estabelecimentos de ensino
para a oferta de ensino médio integrado ao ensino profissionalizante. O
Plano de Metas “Compromisso Todos pela Educação” e o PDE reforçaram
que a tendência do segundo governo Lula da Silva eram as Parcerias
Público-Privada (PPPs).
Na esteira dessas políticas, temos, entre outros, o Programa Brasil
Profissionalizado, que integra o conjunto dessas iniciativas. Criado sob o
Decreto nº 6.302/07, ele visa estimular as políticas que integram ensino
médio e educação profissional; é apresentado pelo MEC como uma das
estratégias para cumprir uma das metas do Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE): modernizar os estabelecimentos de ensino para a oferta
de ensino médio integrado à educação profissional. Destaca o referido
Ministério que, para participar do Programa, o primeiro passo é aderir ao
Compromisso Todos pela Educação (BRASIL, 2007).
Rousseff (PT) que iniciou-se em janeiro de 2015.
343
A adesão da Secretaria da Educação do Estado do Ceará ao
Programa Brasil Profissionalizado criou as condições necessárias para a
implantação da rede estadual de escolas profissionalizantes. Esse
alinhamento com a política nacional da EP do governo federal significa
que a proposta cearense teria alinhamento com o Compromisso Todos
pela Educação e adesão ao Programa de Ações Articuladas (PAR).
O PAR foi implantado a partir de 2007, quando o governo federal
adotou um modelo de regulação estatal seguindo os parâmetros do
mercado, caracterizado como de responsabilização (accountability). A
destinação, por parte da União, de recursos financeiros e assistência técnica
às ações desenvolvidas pelos gestores públicos passou a depender da adesão
voluntária dos gestores estaduais e municipais ao Plano de Metas
Compromisso Todos Pela Educação, instituído pelo Decreto 6.094, de 24
de abril de 2007, e regulado por Resoluções do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação FNDE. A agenda adotada pelo governo
petista se afinou, ainda mais, com a gestão neoliberal, principalmente,
porque seguem as diretrizes das agências multilaterais internacionais, como
FMI e Banco Mundial. Essa lógica de responsabilização submete as
instituições escolares ao desempenho em avaliações como a Prova Brasil e
os exames do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) para
receber recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE).
A escola que ofertar educação profissionalizante, nessa conjuntura,
atrela-se ao projeto maior do Estado brasileiro, na subalternidade, aos
preceitos neoliberais, às diretrizes receitadas pelos organismos
internacionais, a exemplo do FMI, do Banco Mundial, da UNESCO,
entre outros. As diretrizes orientadoras do Decreto nº 5.154/2004 não
ultrapassam o horizonte privatista do Decreto 2.208/1997.
344
O Governo do Estado, com o objetivo de responder à necessidade de
uma formação profissional dos jovens com vistas à ampliação de sua
escolaridade e inserção no mercado de trabalho, opta pelo modelo de
ensino médio integrado à educação profissional, de acordo com
Decreto 5.154/04 (SEDUC-CE, 2013, p. 7).
Se um dos primeiros critérios para o financiamento do Programa
Brasil Profissionalizado é a adesão ao Compromisso Todos pela Educação,
o entrelaçamento entre a escola e os interesses dos empresários se torna
indutor de tal proposta. O atendimento(entendimento) de elevar a
escolaridade sem perder de vista a centralidade do indiduo no contexto
de formação integral se dilui quando o viés que norteará essa prática é o
mercado de trabalho, embora seja usado o termo “mundo do trabalho”.
O papel da escola, diante da reestruturação produtiva, é adequar o
processo de formação do trabalhador aos imperativos do mercado em que
o capital domina hierarquicamente o trabalho e determina, aos complexos
sociais, os elementos reprodutivos de acumulação ampliada-flexível. Como
expõe o texto, o esforço da política educacional cearense será direcionado
para o modo produtivo atual.
A partir desse novo cenário em que se insere a educação profissional no
Brasil, a tarefa que se coloca para a Secretaria da Educação do Estado
do Ceará é desenvolver um projeto educacional que atenda às
necessidades do mundo do trabalho, sem perder de vista a centralidade
no indivíduo, a partir de uma proposta de formação integral (SEDUC-
CE, 2013, p. 7).
Nesse caso, os esforços giram em torno de um novo compromisso
da política educacional estatal de educação profissionalizante para o estado
do Ceará. Desse modo, o governo concentrou suas ações a fim de conter o
345
risco de que essa política fosse implementada de modo frágil e temporário,
uma vez que seus interlocutores apontam o desenvolvimento
socioeconômico, ao formar a força de trabalho, visando ao aumento da
produtividade e da competitividade da economia no cenário de crise
estrutural, em que o desemprego também é estrutural.
A partir de tais premissas, ao implementar uma política de ensino
profissionalizante em 2008, o governo cearense oficializou a existência de
duas estruturas para a oferta de ensino médio: uma de ensino médio
regular, composta por escolas que ofertam as disciplinas do currículo
regular e outra de ensino médio articulado ao curso profissionalizante em
tempo integral. Note-se bem que a proposta cearense mantém a separação
entre o currículo do ensino médio e o curso profissionalizante, seguindo as
orientações das resoluções da política nacional para a educação
profissional.
É importante frisar que a Reforma do Ensino Médio de 2017, do
governo Temer, alterou ainda mais essa estrutura. Na rede estadual,
passaram a coexistir escolas de ensino médio regular, escolas de ensino
médio integral e escolas de ensino médio integrado ao curso
profissionalizante. No momento, estamos explicitando a implantação da
rede de EMI no Ceará, conforme o contexto histórico a partir de 2008.
A partir do referido ano, o Ceará foi um dos estados a buscar
recursos do Programa Brasil Profissionalizado (Brasil-Pro). Os recursos
foram aplicados em obras de infraestrutura, qualificão de gestores,
formação de professores e práticas pedagógicas para o funcionamento das
escolas. Em 2008, através dessa política, o Ministério da Educação
repassou R$ 522 milhões a 18 estados. Neste ano, o estado do Ceará
recebeu mais de R$ 124 milhões, sendo R$ 8,5 milhões para formação de
recursos pedagógicos e R$ 115,7 milhões para a área da infraestrutura. De
acordo com a pesquisa de Gonçalves (2014), o Estado do Ceará recebeu o
346
maior aporte de recursos do Brasil-Pro com mais R$ 249 milhões. Observa
esse autor que, a partir da incorporação desse Programa ao Pronatec, os
dados são imprecisos, pois a execução orçamentária depende dos
conveniados e muitos deles não conseguem utilizar os recursos. O portal
de notícias do MEC indica que o repasse até 2014 alcançou a cifra de R$
1,8 bilhão com a construção de escolas, reformas, ampliação e compra de
recursos pedagógicos.
Isso significa que a partir do Programa Brasil-Profissionalizado, o
governo cearense, na gestão Cid Ferreira Gomes (2007-2010; 2011-2014),
inicia sua política de educação profissionalizante. As EEEPs iniciaram suas
atividades em agosto de 2008 com 25 unidades, distribuídas em 20
municípios cearenses, das quais seis localizavam-se em Fortaleza, e as
demais estavam distribuídas entre as seguintes cidades: Pacatuba, Pacajus,
Itapipoca, Bela Cruz, Brejo Santo, Barbalha, Crato, Iguatu, Cedro,
Jaguaribe, Tabuleiro do Norte, Santa Quitéria, Crateús, Tauá, Senador
Pompeu, Quixadá, Redenção e São Benedito. Nesse primeiro momento,
conforme a Secretaria de Educação do Estado do Ceará, foram atendidos
4.450 estudantes (SEDUC-CE, 2013).
Na primeira fase de implantação desse projeto, 2008-2014, o
número de escolas aumentou ano após ano. De 25 unidades, inicialmente,
essemero saltou para 108 até o final de 2014. A política estadual
ambicionava chegar ao final do Governo Cid Gomes com o total de 140
escolas profissionalizantes. Esse número não foi alcançado, mas a
importância dessa política mostrava que o alcance no número de
matrículassupera as estimativas. De 4.200 matrículas inicialmente, o
mero de estudantes matriculados saltou para 40.000. A oferta de cursos
e matrículas seguiu a linha da tendência evolutiva. Os dados da SEDUC-
CE apontam que, em 2008, eram ofertados 10 cursos profissionalizantes
de nível médio; em 2010, 18 cursos; em 2011, com 59 escolas em
347
funcionamento, o número de cursos chegou a 43. Já em 2012, existiam 92
escolas com 51 cursos, número que permaneceu até o fim de 2014. Entre
2015 e 2016, foram adicionados mais três cursos profissionalizantes,
totalizando 54.
Com a eleição de Camilo Santana (PT), nas eleições de 2014,
aliado de Cid Gomes, a política de EEEPs foi continuada.
Tabela 2- Desenvolvimento da Educação Profissional no Ceará, de 2008 a 2018
Ano
Escolas em
funcionamento
(Nº)
Municípios
(Nº)
Cursos
(Nº)
(1ª, 2ª e 3ª
séries)
2008
25
20
4
4.181
2009
51 39 13 11.349
2010
59
42
18
17.481
2011
77 57 43 23.916
2012
92
71
51
29.885
2013
97 74 51 35.981
2014
106
82
53
40.897
2015
111 88 52 44.897
2016
115
90
53
48.089
2017
116 93 53 49.894
2018
119
95
52
52.571
Fonte: Secretaria da Educação do Ceará, 2019
72
.
Entre 2008 e 2014, a expansão das EEEPs foi acelerada, pois
acompanhava o ritmo das políticas indutoras do Ministério da Educação
72
https://educacaoprofissional.seduc.ce.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
3&Itemid=103 . Acesso em dezembro de 2019.
348
que colocaram a qualificação profissionalizante em nível médio, uma das
estratégias educacionais do governo Dilma Rousseff. Um outro fator que
acelerou o crescimento diz respeito à estratégia política eleitoral que pautou
a campanha eleitoral de Cid Gomes e, depois, fez vencedor seu sucessor
Camilo Santana. Durante a greve dos professores de 2011, o enorme
desgaste televisivo a que foi exposto o Governo Cid Gomes, ao consentir
uma agressão policial, pautou a corrida para reverter a imagem na área da
política educacional. Aliada a isso, estava prevista a dificuldade de alcançar
a meta de 140 escolas até o final de 2014.
O documento, que norteia a implementação da política
profissionalizante Redução das Desigualdades e Sustentabilidade Ambiental
no Estado do Cea, argumenta que a qualificação profissionalizante traria
novas oportunidades de investimentos de capital ao Ceará, gerando
emprego e combatendo a desigualdade, por isso, justifica o documento, os
investimentos em várias áreas sociais, entre as quais a educação. Para
alcançar as metas, o governo, através do tesouro estadual, fez um
investimento inicial no valor de U$ 146,2 milhões para manutenção das
EEEPs e contraiu, junto ao Banco Mundial, um financiamento de U$ 70
milhões para a construção de novas escolas, justificada pela crescente
demanda. A política cearense recebeu não apenas o aporte financeiro do
BM. O financiamento é também um acordo de cooperação técnica entre
o Banco e o Estado. No documento acima referido constam missões para
desenvolver treinamento técnico da Avaliação de Impacto, Plano de Ação,
Gerenciamento Financeiro, Treinamento sobre as Diretrizes do BM.
O empréstimo ao Banco Mundial, em outubro de 2013, no valor
de 350 milhões de dólares
73
, sob o título Projeto de Apoio ao Crescimento
73
O Governo Cid Gomes recorreu ao financiamento externo, conforme Relatório Nº. 82161-BR,
do Banco Mundial. O programa de Ensino Médio Integrado foi uma das áreas incluídas para
investimentos do BM e, como já ressaltamos na exposição deste trabalho, assumiu a tarefa de
349
Econômico foi estratégico para que o Governo Cid Gomes atingisse a meta da
construção de novas escolas antes do encerramento de seu mandato. As
EEEPs eram uma importante plataforma eleitoral para ser explorada pelo
aliado e sucessor Camilo Santana do PT. Além disso, o documento oficial
de financiamento atrela a execução do projeto à cooperação técnica com o
Banco Mundial. Não entraremos em detalhes técnicos do projeto de
financiamento, entretanto, verificamos no documento oficial o
atrelamento entre a capacitação profissional e a formação de capital
humano, o que coaduna com os conceitos daquela agência multilateral. O
financiamento a que o Governo Cid Gomes recorreu expõe a necessidade
de concretização dessa política de educação profissionalizante como
importante plataforma política, ao mesmo tempo, acolhida pela opinião
pública (políticos, empresários, partidos políticos, mídia burguesa e setores
da sociedade civil).
A Seduc aponta a tabela de investimentos do governo estadual
nesse projeto conforme a seguir:
assessorar os países periféricos nas reformas educacionais. No relatório fica o financiamento
vinculado também à cooperação técnica, isto é, as medidas adotadas pela política de educação
profissionalizante no Estado do Ceará serão supervisionadas/orientadas pelas diretrizes do Banco
Mundial.
350
Tabela 3. Valor do investimento realizado nas EEEPs entre 2008 e 2014
Fonte: SEDUC-CE
74
Nesse período, a soma de valores investidos ultrapassou 1 bilhão
de reais. A infraestrutura é formada tanto por escolas adaptadas quanto
pelas padronizadas pelo MEC. As primeiras escolas nesse padrão
começaram a ser entregues em 2011 e contam com infraestrutura mais
completa do que as escolas adaptadas. Em 2019, o governo estadual indica
que são 80 escolas padrão MEC das 119 em funcionamento. Segundo a
Seduc, uma escola padrão MEC é constituída de 12 salas de aula, auditório
com capacidade para 200 pessoas, biblioteca, laboratórios básicos
(Informática, Línguas, Química, Física, Biologia e Matemática)
laboratórios técnicos, ginásio poliesportivo, teatro de arena, refeitório e
bloco administrativo.
A expansão da rede com novas unidades teve um ritmo bem menor
entre 2015 e 2018, pois os cortes oamentários dos repasses do governo
federal, no contexto do golpe do impeachment de 2016, modificaram
profundamente a conjuntura política e a correlação de forças que tomaram
o poder no âmbito federal. Mesmo assim, o governo mantém
investimentos na manutenção e funcionamento das escolas com recursos
do Tesouro Estadual.
74
https://educacaoprofissional.seduc.ce.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
175&Itemid=342 Acesso em 02 de fevereiro de 2020.
351
Os indicadores de investimentos revelam que a política de
educação profissional ocupa uma posição estratégica importante, pois ela
é o carro-chefe da política estadual, contando, em 2020, com 122 escolas
profissionais, a maior parte das matrículas é em escolas regulares. De
acordo com a Seduc (2019), a matrícula em EEEPs corresponde a 12% do
total de alunos matriculados.
A matrícula na rede de EEEPs é realizada através de processo
seletivo e são requisitados alunos que tenham concluído o Ensino
Fundamental. Inicialmente, a rede selecionava apenas alunos oriundos da
rede pública. Com a evolução do processo e expansão da rede, algumas
escolas adotam a cota de 30% para alunos da rede privada. Na rede
estadual Ensino Médio Integrado (EMI) os alunos têm matrícula única e
permanecem o dia inteiro na escola.
As EEEPs foram concebidas, como já dissemos, para funcionar em
tempo integral, ou seja, as aulas são distribuídas em dois períodos, man
e tarde, oferecendo almoço e lanche na própria escola. O currículo é
composto de três partes: o currículo comum do ensino médio regular,
compreendendo: 1) a Base Comum Nacional, 2) a Base profissionalizante
de nível médio, que comporta as disciplinas do curso; 3) Base
Diversificada, envolvendo Projeto de vida; Mundo do trabalho;
Temáticas, Práticas e vivências; Empreendedorismo; Formação para a
cidadania e a formação em Tecnologia Empresarial SócioEducacional
(TESE), entre outros elementos alinhados aos valores ressignificados pelo
mercado (SEDUC-CE, 2013).
Um importante elemento que vem acompanhando essa política
cearense é o resultado obtido com indicadores que reforçam a hipótese da
relação entre educação, geso empresarial e enfoque em resultados.
Primeiro vamos explicitar alguns dados, expressando em quantitativos
aspectos importantes dessa política educacional. Em um segundo
352
momento, vamos analisar o aspecto qualitativo que compõe a gestão, o
currículo e as concepções que cercam nosso objeto. Ao visualizar a
expansão da rede de escolas, como já expusemos, o número de cursos
ofertados, o número de municípios atingidos, a quantidade de matrículas,
a aprovação, reprovação, abandono, podemos abordar em qual direção o
projeto de EMI caminha.
Gráfico 4 Evolução das matrículas nas EEEPs 2008-2018
A expansão das matrículas ocorreu conforme o número de escolas
aumentava ano após ano e o número de municípios que passaram a dispor
de uma unidade. Uma escola “padrão MEC” é um equipamento que
chama atenção da comunidade, o tempo integral, com lanche, almo e
lanche, somados ao aumento de oportunidades de emprego, devido ao
curso, tornam as EEEPs atrativas para pais que anseiam ver seus filhos com
maiores chances de emprego. Ingressar numa dessas escolas no Ceará se
converteu em sentimento de esperança para as famílias.
353
Contudo, esta não é uma escola para todos. Para ingressar na EEEP
é preciso passar pelo processo seletivo. Os alunos egressos do Ensino
Fundamental precisam apresentar um bom currículo em notas e, ao
responder um questionário que traça o perfil do estudante, apresentar-se
disposto a aderir a “filosofia da escola”. Os alunos não selecionados são
direcionados para escolas de ensino médio regular. Esse filtro possibilita
também às EEEPs selecionarem alunos que apresentam potencial para ter
“bom rendimento” em exames tanto internos quanto externos.
No Quadro 1 abaixo, os dados mostram que o desempenho dos
alunos das Escolas Estaduais de Ensino Médio Regular (EEEMR) está
abaixo dos alunos matriculados nas EEEPs.
Quadro 1 Rendimento dos alunos matriculados nas Escolas de
Ensino Médio Regular
Ano Aprovação (EEEP) Aprovação (EEEMR) Abandono (EEEP)
2008
96,8%
76%
1,0%
2009
95,2%
77%
0,8%
2010
96,3%
80%
0,4%
2011
96,4%
79%
0,4%
2012
97,2%
80%
0,5%
2013
97,5%
82%
0,3%
2014
97,6%
82%
0,3%
2015
97,9%
82%
0,3%
2016
97,7%
81%
0,2%
2017
98,6%
86%
0,2%
Fonte: SEDUC, 2019. Elaborado pelo autor.
Ao comparar as duas redes de ensino, o gráfico abaixo aponta a
distinção entre elas, mostrando a existência de percursos formativos
distintos. As EEEPs passaram a receber maior atenção dos agentes
354
políticos, sejam eles em nível municipal, estadual ou federal. A criação das
EEEPs faz com que coexistem duas estruturas, aqui cabe, portanto,
verificar a dualidade e, ao mesmo tempo, a dicotomia, mesmo sendo uma
proposta de EMI na EEEPs. Com a precarização da escola pública, através
do corte e congelamento de investimentos estatais, como vem ocorrendo
nos últimos anos com a implantação de conceitos neoliberais,
demonstramos que a escola está estratificando ainda mais a formação da
mão de obra. A diferenciação entre as unidades escolares, currículos
segmentados e baseado no conceito de competências permitem a formação
de trabalhadores em estratos sociais que são explorados em serviços de
baixo valor econômico. Apesar de obter um certificado profissionalizante,
a formação em nível médio não possibilita o acesso aos postos de trabalho
mais bem remunerados na hierarquia da divisão social do trabalho. Com a
redução dos postos de trabalho muitos jovens terão que buscar emprego
para além do certificado profissionalizante. No quadro de desemprego
crónico da crise estrutural do capital, é vantajoso para o capital ter um
exército de trabalhadores na reserva, disposto a vender a sua força de
trabalho abaixo da média salarial.
355
Gráfico 5Taxas Médias de Aprovação das Escolas Estaduais versus Escolas Estaduais
de Educação Profissional-EEEPs
Para os defensores dessa política educacional, existem motivos para
comemorar, pois os estudantes das EEEPs passaram a ter mais chances de
emprego e/ou ingressar no Ensino Superior. O portfólio publicado pela
Seduc em 2015 apontou dados de 2011 a 2014 revelando como os alunos
das EEEPs se inserem após a conclusão do Ensino Médio Integrado.
A taxa de egressos, apesar desse fator ser difícil de mensurar, aponta
as dificuldades de conseguir um emprego ou uma vaga em alguma
Instituão de Ensino Superior (IES). O gráfico 6, abaixo trata disso,
356
Os dados estatísticos desse período revelam que existe uma
tendência a maior êxito no ingresso dos alunos na Universidade. Nesse
quesito, nos anos 2015 e 2016, a taxa de aprovação foi de 46,3% e 49%
respectivamente. A prioridade dessa política educacional consiste na
qualificação profissionalizante, mas para seus elaboradores e defensores a
continuidade desse processo poderá ocorrer em alguma IES. Esses dados,
no entanto, apresentam uma lacuna enorme, pois não é apresentada a
realidade dos egressos que não aparecem nas estatísticas, pois se somarmos
as duas categorias não obteremos a totalidade de alunos concluintes do
EMI.
A elevação do rendimento dos alunos verificados em exames
avaliativos são indicativos importantes. Todavia, como indicamos existe
um conjunto de elementos que limitam o êxito dos alunos. O primeiro
refere-se à opção por uma pedagogia do empreendedorismo baseada na
ideologia de uma Corporação privada como Odebrecht que combina
357
elementos da esfera privada com as concepções e diretrizes do movimento
de Educação Para Todos. Essa opção contraria os fundamentos e
concepções emanadas do decreto 5.154/2004 como exemplo, a adoção do
trabalho como princípio educativo e dos avaos que seriam a implantação
de uma escola formadora do ser humano integralmente.
A política cearense não desistiu de referenciar seu currículo nas
concepções emanadas do decreto 5.154/2004. Mesmo com a oposição
conceitual entre as concepções de escola integral, politecnia, escola única,
trabalho como prinpio educativo e diretrizes da EPT, articulado na
TESE-TEO da Odebrecht. O documento que serve de base
75
para a
criação das escolas profissionalizantes no Ceará adota a retórica do campo
marxista na educação e, em seguida, quando da implantação do projeto de
EMI, lançam mão da ideologia empreendedorismo como azimute da
gestão pedagógica da EEEPs. No documento Referenciais para as EEEPs,
assim está expresso
Proposta de Integração Curricular
Concepções e Princípios
A construção de uma proposta diferenciada para o ensino médio
integrado à educação profissional fundamenta-se na compreensão da
necessidade de uma formação que tenha como base a integração de
todas as dimensões da vida humana, com vistas à formação omnilateral
dos sujeitos. O trabalho, a ciência e a cultura compõem as dimensões
a que nos referimos. O trabalho, aqui compreendido como realização
humana inerente ao ser (sentido ontológico) e como prática econômica
(associado ao modo de produção). É pelo trabalho que os seres
75
Documento intitulado TESE Tecnologia Empresarial SocioEducacional, inspirada na TEO,
Teconologia Empresarial Odebrecht. Adiante iremos apresentar com mais detalhes esse
documento.
358
humanos produzem conhecimento, desenvolvem concepções de
mundo, viabilizam a convivência, transformam a natureza, se
organizam socialmente e fazem história. Tomando o trabalho como
princípio educativo, é preciso reconhecer que os projetos pedagógicos
de cada época expressam as necessidades educativas determinadas pelas
formas de organizar a produção e a vida social. As demandas do mundo
do trabalho hoje não mais se centram na mera capacidade de “fazer”,
pois demandam a intelectualização das competências, o raciocínio
lógico formal, o domínio das formas de comunicação, enfim,
capacidade e disposição de aprender permanentemente (CEARÁ, 2013,
p. 16, grifos e itálicos nossos).
O documento articula as concepções defendidas pelas teorias
marxistas, por exemplo, formação omnilateral e o trabalho como princípio
educativo, vinculando a proposta de EMI cearense há uma teoria
revolucionária, porém, na prática, a retórica conceitual que prevalece na
prática pedagógica advém do movimento de EPT e do meio empresarial.
O documento TESE-TEO é um exemplo bem acabado de como é possível
aplicar pedagogicamente as diretrizes do movimento de EPT e léxico
ideológico do meio empresarial articulado pela mediação do
empreendedorismo. As EEEPs, ao articular sua base de formação em
concepções tão distintas, permite inferir que essas escolas não seriam uma
escola de formação integral, direcionando para a omnilateralidade. Trata-
se de uma escola de tempo integral que aplica o corte seletivo para alunos
ingressarem nas EEEPs. Um outro limite está vinculado à estrutura
educacional brasileira que é seletiva e adota a concorrência entre alunos das
esferas pública e privada para compor a Instituições de Ensino Superior.
Vale anotar que as escolas privadas formatam seus currículos para exames
vestibulares e Enem, obtendo uma média superior de aprovação em cursos
(Medicina, Direito, Engenharias) mais concorridos em relação aos alunos
das escolas públicas. O gráfico 6, considerando suas limitações, indica a
359
tendência dos alunos da escola pública obterem maior êxito no ingresso
em IES privadas.
No gráfico 7 é possível compreender melhor a distribuição da
provação dos alunos no ES.
Gráfico 7 Distribuição dos alunos aprovados em IES, por dependência
administrativa
A tendência de aprovação no ES revela que os egressos da EEEPs
conseguem êxito expressivo nas IES privadas. Não por coincidência, a
expansão do ES ocorreu sob lógica neoliberal na qual a esfera pública está
a serviço dos interesses da esfera privada. Na seção anterior deste capítulo,
analisamos que o mesmo padrão implementado na Reforma do Ensino
Superior foi o que prevaleceu na expansão da qualificação
profissionalizante no nível médio da Educação Básica.
360
A educação profissional, mesmo que antecipada para o Ensino
Médio, não deixa de cumprir a função de estar a serviço do capital. Pelas
estatísticas do gráfico acima, a tendência reservada ao estudante
trabalhador pela política de educação profissional são as IES privadas,
perfazendo um itinerário onde prevalece a reprodução social do capital. A
escola de “qualidade”, propagandeada pela política cearense, cumpre o
papel de fator econômico na formação do capital humano na qual o
estudante sai da “frigideira e cai na panela”. A alternativa, para muitos,
talvez seja contrair uma dívida via FIES, hipotecando seu futuro também
no ES.
O Ensino Médio Integrado no Ceará e a escola na teia
da ideologia do capital
Nesta seção abordaremos a institucionalização da ideologia
empresarial na escola pública cearense. A proposta de EEEPs está
impregnada pela relação entre o viés neoliberal, as diretrizes dos
Organismos Multilaterais Internacionais e a operacionalização do setor
privado sobre os instrumentos legais do Estado brasileiro e a
implementação de suas políticas. A organização da escola, desde o modelo
de gestão, passando pelo financiamento e adentrando no currículo escolar,
aponta para a luta pela hegemonia do capital sobre a educação.
A gestão escolar, no sentido administrativo e pedagógico, deve
assimilar um padrão accountability para a produção de serviços educativos
que alcance rendimentos escolares, satisfazendo a comunidade escolar com
o ensino-mercadoria de qualidade. Nesse modelo, a educação é
considerada um bem que produz capital humano.
361
Nesta versão renovada da teoria do capital humano, o conhecimento
não pertence mais ao indivíduo, tampouco é pensado a partir do
mesmo: “é a empresa que deve tratar de adquirir todo o capital humano
que possa aproveitar”. A empresa precisa “utilizar de maneira eficiente
o cérebro de seus funcionários” que, por isso, devem ser depositários
de conhecimento útil para o capital (LEHER, 1999, p. 25).
Para os proponentes dessas políticas educacionais, a cultura de
excelência da escola deve estar voltada para a busca de resultados em
provas, simulados, exames de avaliações externas como Enem, Prova Brasil
ou Spaece, por exemplo, no caso da política cearense. Como resultado, a
escola terá produzido intelectuais-técnicos com fragmentada formação e
instrumentalizados para os ofícios requeridos pelo mercado de trabalho,
pela continuidade dos estudos em uma IES ou pelo autoemprego,
desemprego e subemprego. O importante para os defensores da teoria do
capital humano é que o mercado disponha de trabalhadores de reserva, em
qualquer lugar, a custo mais barato.
Essa premissa é exposta de forma límpida no documento Plano
Plurianual do Ceará.
A análise qualitativa sobre a formação de capital humano no Estado
indica dois problemas chave: baixa qualidade da educação básica e
baixo nível de qualificação técnica do trabalhador na economia
cearense. As ações direcionadas a ampliar a qualificação da força de
trabalho, portanto, devem, necessariamente, contemplar a melhoria da
qualidade do ensino básico, eliminando a defasagem em relação à
situação média do país e os Estados mais bem colocados em nível
nacional. As iniciativas devem, ainda, buscar ampliar o estoque de
profissionais qualificados e adequar o fluxo de trabalhadores às
necessidades do mercado (CEARÁ, 2016, p. 110, grifos nossos).
362
O documento institucional acima assume que a finalidade das
EEEPs é formação de capital humano, aumentando o “estoque” de mão-
de-obra disponível no mercado. Isso indica o quanto a burguesia pode vir
a recorrer a conceitos teóricos revolucionários, porém atribuindo-lhes
sentido próprio. Diante do que já expusemos, a escola que ofertar educação
profissionalizante, nessa conjuntura, atrela-se ao projeto maior do Estado
brasileiro, na subalternidade, aos preceitos neoliberais, receitados pelos
organismos internacionais, a exemplo do FMI, do Banco Mundial, da
UNESCO, entre outros. Para “ampliar o estoque de profissionais”, sem
subterfúgios, o Banco Mundial e o governo cearense expõem essa “política
interessada”, diria Gramsci, em fazer do trabalhador “gorila amestrado”,
instrumentalizado com as tecnologias e moralmente apto a consentir a
exploração da mão de obra, a aceitar o desemprego, buscando alternativa
com o autoemprego, à docilidade para as relações de trabalho cada vez mais
precárias com a retirada de direitos sociais. Não há rebuscamento, nem
cerimônia para deixar subentendido o que pretendem os dirigentes
políticos do Estado e do BM. A política educacional está a serviço da
formação de capital humano como evidencia o documento Plano
Plurianual 2016-2019.
A bússola da política educacional para as EEEPs cearenses foi a de
nortear sua proposta pedagógica para o empreendedorismo, ao adotar a
Tecnologia Empresarial SocioEducacional (TESE), como a ideologia da
gestão no qual todos os atores que compõem a escola precisam aderir para
fazê-la funcionar. Por essa decisão, os estudantes têm na grade curricular
as disciplinas de Formação em TESE e Empreendedorismo. Vamos
destacar esse eixo norteador para a qualificação profissional, primeiro a
TESE, em seguida, o Empreendedorismo. Todavia, ressaltamos que a
própria TESE é uma forma de expressão do empreendedorismo.
363
Os pressupostos da TESE (Tecnologia Empresarial
SocioEducacional) são inspirados, por sua vez, na TEO (Tecnologia
Empresarial Odebrecht). Essa ideologia já era aplicada em cursos e
formações estudantis desenvolvidos pelas Organizações Não-
Governamentais (ONGs). A TEO foi transformada em TESE pelas mãos
dos técnicos do Instituto de Co-responsabilidade pela Educação (ICE). É
uma fundação mantida por várias empresas privadas
76
e colocou como
missão a melhoria da educação pública básica. O ICE também é um dos
representantes do Movimento Todos pela Educação. O Estado de
Pernambuco foi o primeiro a adotar a TESE/TEO para educação pública.
O Ceará veio logo em seguida.
No Estado de Pernambuco, foram criadas políticas educacionais
firmando parcerias com o setor privado através do Ensino
Profissionalizante e Escolas de Referência em Ensino Médio (EREMs). As
Escolas de Referência em Ensino Médio foram implantadas no âmbito do
Ginásio Pernambucano, revelando um modelo de gerenciamento da
educação pública para o ensino médio, mediante contratos de gestão
compartilhada com o setor privado. Na iniciativa cearense, o ICE foi
contratado para prestar assessoria e, após a implantação, o Estado o
mantém como consultor.
A Tecnologia Empresarial SocioEducacional foi adaptada à
educação pública incorporando o modelo de gerenciamento da Odebrecht
Engenharia e Construção S/A. Em sua autodefinição coloca-se como a
“arte de coordenar e integrar tecnologias específicas e educar pessoas”
(TESE/TEO, 2008). De acordo com tais preceitos empresariais, “a gestão
de uma escola pouco difere da gestão de uma empresa. Nada mais lógico
76
As empresas e fundações que atualmente apoiam o ICE: Natura, Itáu, Jeep, Fiat, Chrysler, EMS,
Trevo, Espírito Santo em Ação, Instituto Sonho Grande. O ICE é contratado por 16 estados e seis
municípios para prestar assessoria educacional.
364
que partir da experiência gerencial empresarial acumulada para desenvolver
ferramentas de gestão” (TESE/TEO, 2008, p. 3). Ressaltam seus
elaboradores a disposição de todos os integrantes na busca pelo êxito da
escola, ou seja, resultados traduzidos em exames de avaliação internos e
externos. A princípio, esse processo deve ser iniciado pela revisão de
paradigmas e os profissionais devem assumir uma nova postura com
finalidade de transformar obstáculos em oportunidades de aprendizagem
e sucesso (idem). A pedagogia do empreendedorismo desenvolvidas nas
EEEPs incentivam à livre iniciativa desde a prática escolar, possibilitando
adequar os indivíduos que são excluídos do quadro de empregáveis, a
alternativa para tornar-se empreendedor como alternativa, defendida pelos
ideólogos do capital. Esse aspecto evidencia o quanto a prática pedagógica
deve ser guiada pelo preceito de empreendedorismo empresarial. Ter
emprego sucumbe ante a noção de ‘ser empreendedor’. Para os defensores
do capitalismo o problema consiste na forma como os indivíduos se
inserem na economia de mercado.
Os conceitos norteadores da TESE/TEO são protagonismo juvenil,
formação continuada, atitude empresarial, corresponsabilidade e
replicabilidade. Ao passo que sua definição é expressa como se segue:
a) Protagonismo Juvenil o jovem como partícipe em todas as ações da
escola (problemas e soluções) e construtor do seu Projeto de Vida.
b) Formação Continuada educador em processo de aperfeiçoamento
profissional e comprometido com seu autodesenvolvimento.
c) Atitude Empresarial Centro voltado para o alcance dos objetivos e
resultados pactuados, utilizando de forma competente as ferramentas
de gestão, sobretudo a Pedagogia da Presença e a Educação pelo
Trabalho.
365
d) Corresponsabilidade Parceiros públicos e privados comprometidos
com a melhoria da qualidade do Ensino Médio.
Replicabilidade Viabilidade da proposta possibilitando a sua
reprodução na rede pública estadual (TESE/TEO, 2008, p. 21).
Esses elementos devem estar voltados à formação de autônomos e
competentes. Autônomo para buscar soluções diante das situações que
exigem respostas aos problemas e capacitado a aplicar saberes em prol dos
objetivos traçados. O espírito de servir e a humildade são premissas que
devem acompanhar a formação do estudante-trabalhador-empreendedor.
De acordo com o manual da TESE/TEO, o espírito de servir deve estar
alinhado à Atitude empresarial voltada à produção de resultados e
humildade direcionada à comunicação e confiança no trabalho em equipe
(ICE, 2011). Essas premissas devem ser articuladas ao protagonismo
juvenil, que é o princípio que coloca o jovem como centro das ações e o
incentiva à elaboração de seu Projeto de Vida. O Projeto de Vida assume
aqui o mesmo caráter de um plano de negócio com objetivo, metas,
estratégias, cronograma, recursos, parceiros. A dimensão de toda a vida do
estudante é planificada e voltada para a busca dos êxitos individuais ou de
um processo que estimule o jovem estudante a assimilar tais valores
comportamentais.
Com tal alinhamento pode se traduzir tais premissas em
consonância com a definição do que é ser empreendedor na visão do
Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
366
O empreendedor é o indivíduo que possui ou busca desenvolver uma
atitude de inquietação, ousadia e pro-atividade na relação com o
mundo, condicionada por características pessoais, pela cultura e pelo
ambiente, que favorece à interferência criativa e realizadora, no meio,
em busca de ganhos econômicos e sociais (SEBRAE, 2006, p. 1).
Cada indivíduo deve ser responsável pela sua formação no circuito
da empregabilidade, assim como pelo emprego que virá para aqueles que
estão qualificados e preparados para as exigências empresariais do modo
produtivo. Esse pressuposto também está presente na TESE/TEO e
converge para os pressupostos estabelecidos pela ideologia neoliberal que
expusemos anteriormente. Para tanto, alerta que o sucesso da aplicação da
chamada filosofia/ideologia da TESE/TEO reside na vivência dos
princípios e conceitos que norteiam os instrumentais de intervenção
pedagógica, exigindo do professor, desde a etapa do processo seletivo, a
adesão aos princípios e conceitos do documento empresarial, que é o
principal pré-requisito para a aprovação na seleção. A seleção de todos os
atores escolares e a formação continuada comparecem na adequação do
perfil profissional ao empreendedorismo empresarial.
Antônio Carlos Gomes da Costa
77
(2005, s/pág.), intelectual
defensor da pedagogia empresarial Odebrecht, entende que o “ser
empresário é muito mais do que escolher uma ocupação, serviço ou
profissão no mundo do trabalho”, significa dotar o indivíduo de riquezas
morais e materiais como “princípio, meio e fim”. A perspectiva da
Odebrecht, conforme Costa (2005), trata-se de tomar a TESE/TEO como
filosofia de vida, na medida em que todos sejam educados para
77
Entrevista concedida a Odebrecht Online nº 117, Março-Abril de 2005, sob o título O novo
desafio da educação empresarial. Disponível em
http://www.odebrechtonline.com.br/materias/00301-00400/335/. Acessado em 10 de dezembro
de 2014.
367
compreendê-la, aceitá-la e praticá-la. A finalidade desses preceitos
empresariais, segundo sustenta esse defensor, é a formação de jovens
empresários mediante o desenvolvimento de cultura empreendedora.
A tônica do empreendedorismo que invade a escola pública estatal
incorpora uma ideologia que é a essência de ser das empresas privadas. A
adoção de tal propositura rompe com o conceito que se quis estabelecer na
elaboração do decreto 5.154/2004 em direção a uma formação politécnica
baseada no trabalho como princípio educativo. No caso da política
cearense, o documento ``Referenciais para as EEEPs`` indica suas
concepções relacionadas com o decreto 5.154/2004, entretanto, adota a
TESE/TEO para organizar a jornada pedagógica os valores e concepções
do empreendedorismo empresarial.
A estrutura e a organização de uma Escola Estadual de Educação
Profissional se diferenciam em vários aspectos das demais escolas, e o
principal deles é sua filosofia de gestão, a Tecnologia Empresarial
Socioeducacional TESE. Esse modelo de gestão foi adaptado dos
Centros de Ensino Experimental de Pernambuco, escolas de referência
daquele estado. A principal vantagem desta tecnologia de gestão é a de
ser um instrumento versátil e eficaz, à medida em que o ciclo de
planejamento é simples e acessível (CEARÁ, SEDUC, 2013, p. 11).
O eixo do ideário do empreendedorismo consiste em apoiar o
desenvolvimento econômico preparando os trabalhadores, conforme as
necessidades do mercado, condizentes com as orientações dos gurus
neoliberais. Cada indivíduo deve ser responsabilizado pela sua formação
no circuito da empregabilidade, assim como pelo emprego que virá para
aqueles que estão qualificados e preparados para as exigências empresariais
do modo produtivo.
368
Retomando a análise que realizamos no capítulo anterior,
conforme Mészáros (2006), a educação formal integra o aparelho estatal,
e, por isso, as políticas de reajuste estrutural do capital e modificação do
papel do Estado capitalista atingem a escola, já que ela “não pode funcionar
tranquilamente, se não estiver de acordo com a estrutura educacional
geral” (idem). Essas funções realçam o caráter dual na estrutura do
complexo educativo e da escola e a dicotomia quanto ao ensino:
profissionalizante para qualificar a força de trabalho, das atividades simples
à mais complexa, segmentando-se conforme a estrutura da divisão social
do trabalho; e propedêutica, destinada aos que receberão instrução ampla
e poderão ser alocados em funções de comando da sociedade ou
promovidos a ela, conforme os interesses do capital.
Com base numa ideologia empresarial como princípio norteador
do projeto pedagógico da escola, a hegemonia do capital não pode ficar
restrita ao processo de privatizão que controla a escolarização. O que se
busca é o controle ideológico do complexo educativo, a fim de edificar o
ideário que convém ao mercado e as necessidades reprodutivas da mais-
valia ou mesmo propagar um ideário de consenso de que não há alternativa
além das fronteiras do modo de produção capitalista. A busca por esse
“consenso” serve ao processo de luta constante do capital para manter sua
posição hierárquica em relação ao trabalho.
A TESE/TEO elenca seus princípios pedagógicos a partir da
educação de qualidade como o negócio da escola; a busca de resultados
considerando parcerias e confiança; criação de um ciclo virtuoso e centrado
em comunicação, parceria e confiança (TESE/TEO, 2008). O que temos
na gestão da educação profissional é um verdadeiro processo de
mercantilização do ensino. A filosofia empresarial é confeccionada para
que a gestão da escola seja similar à de uma empresa que precisa alcançar
os resultados do negócio planejado. Na concepção da TESE/TEO não
369
deve predominar uma hierarquia de gestores e geridos, mas uma relação
entre líderes e liderados de forma horizontal. Todos devem assumir uma
postura para o sucesso da escola. Os professores e funcionários precisam
elaborar o plano de negócio, que é o Plano de Ação da escola, e cada
funcionário precisa de um programa de ação. Esses documentos
acompanham o Projeto Político-pedagógico e o Regimento escolar. São
estratégias de responsabilização, estabelecimento de metas,
monitoramento (Ciclo PDCA), bem como o compromisso pelos
resultados pactuados nos instrumentos de gestão.
De acordo com a gestão de resultados da TESE/TEO, o
planejamento deve criar as estratégias para alcançar as metas, operando o
ciclo PDCA
78
.
O ciclo PDCA (Plan/Do/Check/Act) é um dos métodos de gestão que
visam controlar e conseguir resultados eficazes e confiáveis nas
atividades de uma organização. O PDCA destaca quatro importantes
etapas: Plan (Planejar) estabelecer missão, visão, objetivos, estratégias
que permitam atingir as metas ou os resultados propostos. Do
(Executar) pôr em prática, executar o que foi planejado, educar em
serviço. Check (Verificar, Avaliar) acompanhar e avaliar processos e
resultados, confrontando-os com o planejado, ajustando ou
consolidando as informações, gerando relatórios. Act (Agir) agir de
acordo com o avaliado e com os relatórios, elaborar novos planos de
ação, de forma a melhorar a qualidade, a eficiência e a eficácia,
aprimorando a execução e corrigindo eventuais falhas. Em suma, atuar
corretivamente (ICE, 2011, p. 11).
78
O Ciclo PDCA foi desenvolvido na década de 1930 pelo físico e engenheiro Walter A. Shewhart,
nos Estados Unidos, e posteriormente propagado por William Edwards Deming, estatístico norte-
americano, ambos conhecidos pela dedicação ao desenvolvimento de processos de controle
estatístico da qualidade. Posteriormente, passou a ser adotado como ferramenta de gestão de
negócios (ICE, 2011, p. 11).
370
A filosofia de gestão empregada nas EEEP que orienta as práticas
pedagógicas a serem desenvolvidas no âmbito escolar, mais do que regra a
ser seguida, almeja uma mudança de postura a ser estabelecida nas escolas.
Com o protagonismo juvenil o aluno se torna o foco de todo o processo
de aprendizagem e o ensino deve ser de qualidade. Os resultados em
exames avaliativos devem ser acompanhados pelo Diretor de Turma. Cada
turma tem um educador que acompanha, isto é, um líder mais próximo
para que ele tenha apoio para entender sua trajetória na escola. Esse é um
dos projetos que integram o quadro de estratégias pedagógicas para
monitorar os resultados, estabelecer vínculos com os alunos e liderá-los nas
missões em seus Projetos de Vida. Os defensores da TESE/TEO
pretendem incorporar conceitos da iniciativa privada para romper
paradigmas porque, segundo eles, determinados paradigmas que
prevalecem nas instituições públicas de ensino geram ciclos viciosos e não
virtuosos.
Esse argumento é mais uma das estratégias que condiz com os
interesses empresariais, atuando para desregulamentar instituições
públicas, abrindo espaço para implantação do ethos privatista. De acordo
com Laval (2004, p. 109), o avanço desse processo determinaria “o
processo de extinção progressiva das fronteiras entre o público e o
privado”. A escola não estaria a serviço dos interesses das classes
trabalhadoras que são as maiores frequentadoras desse espaço público. Esse
espaço seria um lócus de reprodução social da ideologia da classe
dominante, além disso, faz da qualificação profissionalizante um negócio
rentável, como explicitamos na seção anterior deste capítulo.
Além de ser um modelo de gestão empresarial, a TESE/TEO segue
o ideário de Educação para Todos (EPT), veículo do ordenamento
reformista dos organismos internacionais aos países da periferia do
capitalismo. Os princípios, conceitos e critérios do documento de
371
TESE/TEO foram incorporações das “concepções dos pilares
fundamentais do Relatório de Jacques Delors: aprender a conhecer;
apreender a fazer; aprender a conviver; aprender a ser” (TESE/TEO, 2011,
p. 7). Essa chamada filosofia empresarial revela, sem o menor
constrangimento, sua ligação com o quinto pilar, aprender a empreender,
proposto, como já lembrado, pela Organização Mundial do Comércio e
instituído pelos Ministros da Educação dos países da América Latina.
Como propõem as agências internacionais multilaterais nas
diretrizes reformistas, a escola deve oferecer uma formação internalizadora
das condições atuais do modo de produção capitalista. Apoiando-se no
movimento de Educação para Todos (EPT), o estímulo à livre iniciativa
individual compareceu quando se indicou a solução da pobreza, do
combate ao desemprego, pela ação educativa de preparar os indivíduos
com autonomia, criatividade e livre iniciativa. Com isso em pauta, o
empreendedorismo é afiançado na educação como estratégia de alavancar
o desenvolvimento econômico. A Comissão da ONU, coordenada por
Delors, aprofundou ainda mais a adaptação à ordem socioeconômica
hegemônica, propagando o ideário do aprender a aprender.
O relatório Delors (1998), lembramos, aponta para os diversos
problemas que afligem a humanidade, porém não aborda sua essência
causal de que o próprio capital, portador de contradições imanentes, está
voltado essencialmente para a produção do valor. A riqueza e suas benesses
para alguns, enquanto, miséria, barbárie e precariedades para muitos, que
são obrigados a vender sua força humana de trabalho. Para o capital, não
importa sob quais condições humanas é produzida a riqueza. Apesar do
discurso em favor da melhoria social, elas atuam como apaziguadoras da
insatisfação das grandes massas que podem questionar a ordem vigente. As
guerras, a destruição do meio ambiente, a violência, os bolsões de miséria,
a precarização da vida humana são exemplos gritantes dos efeitos que a
372
acumulação capitalista tem descortinado no decorrer da história, são
elementos objetivados pelas contradições do capitalismo.
A TESE/TEO articula o ideário “aprender a aprender” ao seu
modelo de gestão escolar e práticas pedagógicas, o que mostra a afinidade
entre essas diretrizes e preceitos da ideia empresarial:
A Tecnologia Empresarial Socioeducacional foi modelada de acordo
com a TEO, tomando-se como parâmetro seus princípios, conceitos e
critérios. Estes foram agregados às quatro aprendizagens fundamentais
contidas no Relatório de Jacques Delors e denominadas de pilares do
conhecimento (TESE/TEO, 2008, p. 7).
O "aprender a aprender", como tendência educacional dominante
neste início de século, encontra-se em conformidade com a educação posta
ao novo perfil de trabalhador, caminhando em consonância com os demais
modismos postos em vigor (de forma alienada e sedutora) nas décadas de
1980 e 1990, bem como a especial adesão ideológica é definida, em termos
educativos, como sendo o que há de mais avançado e progressista no
momento (ANTUNES, 2009).
Duarte (2011) relaciona esse aspecto na educação ao processo de
universalização do valor de troca como mediação entre os indivíduos e as
atividades que realiza. O “trabalhador no capitalismo possui sua força de
trabalho, abstratamente concebida”; da mesma forma, “o educando deve
ser reduzido a alguém que está sempre disposto a aprender algo novo, pois
seu patrimônio é a capacidade de adaptação ao meio por intermédio da
aprendizagem permanente” (idem, p. 64).
A concepção neoliberal de educação é um processo permanente
que se dá ao longo da vida para o qual os indivíduos devem estar
373
continuamente aprendendo. Em consonância com aquela ideologia, o
aprender a aprender visa à adaptação às transformações econômicas e
avanços tecnológicos, pilares da sociedade “global”, ou sociedade, dita, do
conhecimento, como querem os intelectuais da ordem (DUARTE, 2011).
Os indivíduos devem, destarte, estar em contínuo processo de
aprendizagem para que possam se adaptar às transformações tecnológicas,
caso contrário estarão fatalmente obsoletos e, por sua vez, desempregados.
Duarte (2011, p. 49) lembra que o lema “aprender a aprender é
apresentado como uma arma na competição por postos no mercado de
trabalho, na luta contra o desemprego”. Sob os auspícios da tese neoliberal
da “indivisibilidade da liberdade”, o que existe por trás do discurso da
liberdade individual é a mistificadora imagem do indivíduo empreendedor
e criativo (idem). Nessa perspectiva, a educação deve desenvolver as
potencialidades do indivíduo tendo em vista ser o único bem que lhe
permite conseguir prover suas necessidades.
Para equacionar a necessidade de aprendizagem permanente,
desemprego crônico, enxugamento do orçamento público ou mesmo a
privatização do sistema educacional, a formação empreendedora do
indivíduo acomodaria o desenvolvimento de competências e habilidades
inerentes às mudanças na esfera de cada tipo de trabalho/ocupação
capitalista. Entretanto, não do trabalho em sentido ontológico, mas do
trabalho-emprego e das questões da cidadania em escala local, regional,
nacional e global, típicas da ideologia do capital.
O empreendedorismo também está presente enquanto
componente curricular de projetos pedagógicos. O currículo está dividido
em três partes: 1) Formação geral, 2) Formação profissional e 3) Parte
Diversificada. A primeira parte engloba as disciplinas do currículo regular
do ensino médio; a segunda abrange as disciplinas específicas do curso
técnico; enquanto a terceira, parte diversificada, compõe-se de disciplinas
374
e projetos voltados à formação do aluno que articula sua formação ao
mercado de trabalho.
Na parte diversificada, o aluno terá aulas de Empreendedorismo,
Formação para a Cidadania, Mundo do Trabalho, Oficina de Redação.
Esses componentes curriculares, de acordo com a Seduc, visam a articular
os temas transversais e interdisciplinares tanto da formação geral quanto
profissional. Em seu sítio na web a Secretaria de educação entende que o
empreendedorismo, como componente curricular, desenvolve
competências empreendedoras, estimula na formação do aluno a
capacidade de planejamento e identificação de oportunidade para a criação
de negócios com foco no mercado.
O Projeto de Vida é trabalhado como uma proposta metodológica
que modifica a forma tradicional de ensino, privilegiando a participação,
o diálogo, a relação de permanente troca de aprendizados entre educador
e aluno, a contextualização dos temas no cotidiano dos alunos e a vivência
prática dos aprendizados.
A Formação para a Cidadania busca estimular os estudantes a se
tornarem cidadãos responsáveis, críticos, ativos e intervenientes,
permitindo-lhes trabalhar suas vivências no plano pessoal e coletivo. Esse
componente curricular permite o acompanhamento do aluno pelo
professor de forma mais específica, pois cinco horas da carga horária de
trabalho são reservadas para este fim.
O componente curricular Mundo do Trabalho contempla
conteúdos que abrangem o contexto das relações de trabalho. São
escolhidos eixos temáticos de interesse dos jovens para desenvolver um
processo de discussão e reflexão crítica, associando conteúdos com
situações reais vivenciadas no contexto socioeconômico, cultural e escolar
do aluno. A proposta é construir com os estudantes um Plano de Carreira.
375
Assim como o relatório Delors, o empreendedorismo subjacente às
EEEPs com base na TESE/TEO (2008) defende a educação ao “longo da
vida” e a “formação continuada”, reforçando o discurso de que o jovem
aluno e todos que compõem a escola devem se qualificar e se requalificar
para se ajustar ao mundo do labor na sociedade capitalista. Para essa assim
chamada filosofia empresarial, a qualificação, bem como a requalificação,
tem que ser feita através do desenvolvimento de competências englobando
habilidade, atitudes e valores, proporcionando ao indiduo condições de
empreender sua vaga no mercado de trabalho. Nesse sentido, o professor é
tido como o líder do processo de ensino-aprendizagem, em que seu
comportamento é exemplo para os educandos. Faz-se necessário, então,
que se incorpore o espírito empresarial criativo e a postura voltada para a
obtenção de resultados. Desde o momento da adesão a uma EEEP, o
professor precisa vislumbrar suas aulas como um negócio. Para
permaneceram na escola os alunos e professores além de apresentar bom
desempenho, devem também tomar partido da ideologia empresarial. Isso
se chama processo de Adesão. A permanência na escola fica a cargo dos
postulados da TESE que se dá em três etapas: entender, aceitar e praticar.
Ao final é imprescindível a formação de uma consciência da unidade entre
“teoria e prática; gestor e parceiros; líder e liderados; educador e educando
(TESE/TEO, 2008, p. 5).
Trata-se de um processo de conversão da escola como lócus da
formação dos jovens da classe trabalhadora como empreendedores e, para
que isso se realize, nada melhor para o capital que seja através de uma
pedagogia empresarial. Subverte, dessa maneira, o processo de formação
humana aos imperativos do capital, conformando a instrução escolar, da
forma mais rasteira possível, aos princípios de reprodução
sociometabólicos à ordem vigente. Isso porque entendemos o notório
esforço do Estado em implementar políticas de educação profissional,
376
como expusemos até aqui, em que grande parcela da classe trabalhadora as
vê como a saída para garantir um posto no mercado de trabalho, como
indicam as pesquisas de Farias et. al. (2013).
O empreendedorismo empresarial que invadiu as escolas públicas
incita os indivíduos a fazerem uma leitura da realidade em que as
contradições são nebulosamente negadas ou admitidas com resultados das
escolhas individuais. O sonho do emprego e do alto salário depende do
sonho de cada um, conforme o projeto de vida. Enfim, estimula-se sempre
o correr atrás do dia de amanhã, sem saber a razão, construído sob signos
e extensivamente falseado socialmente. No lugar da verdade histórica,
estimula-se a verdade neo-pragmática. No entanto, a realidade é latente e
bate à porta através da barbárie, das guerras civis, dos problemas
ambientais, da exploração do homem pelo homem no complexo de
alienação e estranhamento próprios do valor como essência do capital
(SILVA JR., 2006).
A superficialidade no entendimento da realidade é uma
característica da ideologia do capital na contemporaneidade, que não
desiste de fazer uma leitura dos problemas mascarando-os.
Exemplifiquemos: destruição ambiental versus produção de bens
descartáveis, desigualdade/degradação social versus concentração de renda,
entre outras falsas construções. A cegueira ideológica que invade os espaços
públicos opera, no plano da lógica retórica, soluções fundamentadas no
pragmatismo ao fazer uma leitura da cotidianidade fragmentada e
heterogênea (SILVA JR., 2006). Essa é a exigência que se faz ao professor:
aceite a ideologia empresarial como seu subsídio de formação ofertada nas
EEEPs.
Propõe-se, desse modo, uma bifurcação entre o empreendedorismo
empresarial defendido pela TESE/TEO e a pedagogia formadora dos filhos
dos trabalhadores. Primeiro pela necessidade de aumentar a capacidade
377
empreendedora, não apenas respondendo à retração do nível de emprego,
mas também para assimilar os novos padrões das relações sociais e políticas
que incluem o mercado e que, contudo, não se limitam a ele. Em segundo
lugar, nesse contexto, mesmo não se reduzindo ao mercado, centra-se no
desenvolvimento da competência dos indivíduos, ou no “tino para
negócios”. Isso desenvolveria nos estudantes trabalhadores a capacidade de
identificar oportunidades, buscar soluções, deixando, tal habilidade, de ser
um dom divino ou dádiva genética para se tornar uma habilidade a ser
desenvolvida pelos indivíduos e transmitida via aparato escolar (CÊA,
2007, p. 314).
Especificamente uma proposta para desenvolver o
empreendedorismo via aparelho escolar público estatal, torna confortável
a posição dos empresários disporem de quadros da força de trabalho
minimamente “qualificada”, obediente. Terão, eles, reduzidos gastos com
capacitação de trabalhadores o que, por sua vez, potencializa a obtenção de
lucros, a essência do capital.
A TESE/TEO orienta todo o processo pedagógico da escola. O
ciclo PDCA, articulado ao paradigma das competências, parte de
concepções que são diametralmente opostas às defendidas pelo campo
político do trabalho, a formação omnilateral em direção à emancipação
humana. Mesmo o conceito de politecnia ou do trabalho como prinpio
educativo foi articulado e assimilado às políticas de expansão da educação
profissional e, no caso da política cearense, pode-se tomar tais categorias e
dil-las no receituário da ideologia empresarial. No processo de luta de
classes, a burguesia se mostra capaz de absorver demandas do campo do
trabalho a partir de sua própria perspectiva.
Em acordo com Antunes (2011), o empreendedorismo, como
pregam os ideólogos do capital, em sua forma neoliberal, é o fermento de
fazer frequentemente o trabalhador como explorador de si próprio, isto é,
378
apto ao auto sacrifício exigido pelo posto de trabalho. Isso significa que a
pedagogia do capital articula concretamente tais conceitos, operando na
educação à base da pedagogia do empreendedorismo empresarial na escola
estatalblica brasileira.
As ações pedagógicas passam a ser guiadas por todo um léxico do
universo empresarial no qual gestores, professores, alunos e comunidade
em geral precisam se tornar empreendedores das atividades de ensino e
aprendizagem; portadores de valores morais, comportamentos, habilidades
e conhecimentos que são facilitadores da inserção do jovem trabalhador no
mercado de trabalho capitalista. Entretanto, precisamos considerar o
contexto histórico que envolve a educação formal, restrita, oferecida aos
jovens da classe trabalhadora, perante a reestruturação produtiva, política
e ideológica em que a premissa da empregabilidade e do
empreendedorismo se complementam. No quadro de desemprego
crônico, os jovens trabalhadores são levados a absorver a ideia de
empresariar sua formação como exigência da empregabilidade. Como
esclarece Farias et. al. (2013, p. 277).
Perante a premissa de que a empregabilidade é mecanismo que busca
esconder a realidade do desemprego crônico, o conteúdo da educação
permeado pelo caráter ideológico desse discurso, constitui um
poderoso mecanismo que perpassa as subjetividades dos trabalhadores
e de seus filhos, bem como de professores, de gestores, de intelectuais
e de políticos (quaisquer que sejam os partidos).
Na perspectiva do capitalismo, sob a forma do modelo de
acumulação flexível, a educação fornecerá ao trabalhador o status de
empregável a custo baixo de contratação e associado ao imperativo de alta
379
produtividade, polivalência, multifuncionalidade e de contrato flexível,
temporário e restrito quanto aos direitos sociais (ANTUNES, 2009).
A ideologia de gestão empresarial invade a escola pública estatal de
educação profissional como um verdadeiro processo de subordinação do
público ao privado. Temos a equiparação entre escola-empresa, aluno-
cliente, diretor-gerente- administrativo e conhecimento-mercadoria. Com
efeito, essa é uma característica do movimento do capital em crise,
procurando, no plano ideológico, capturar a subjetividade dos indivíduos.
O desenvolvimento desse plano é gestado “por meio do culto ao
subjetivismo e de um ideário fragmentador”, com aguda “apologia ao
individualismo exacerbado”, em que é acentuado o consumismo como
forma de satisfação de anseios do sujeito, projetos de vida, maturado pela
flexibilidade nas relações sociais e de produção capitalistas (ANTUNES,
2009, p. 50).
Como percebemos, a docilidade, ou espírito de servir, é uma
competência comportamental do empreendedorismo empresarial. A
humildade é atributo humano perante seus próprios limites. Todavia a
proposta de educação profissionalizante na sociedade capitalista, agora em
estágio de reestruturação produtiva agudizada pela crise, visa formar
trabalhadores produtivos, polivalentes, flexíveis, contratados em condições
de mercado. Desenvolver o espírito de servir, como está implícito no
ideário aprender a aprender, inserido em relações trabalhistas no
capitalismo agonizante, pressupõe a submissão, acatamento das ordens
superiores para um trabalhador ocupante de um posto de trabalho inferior
na hierarquia ocupacional.
O caráter mercadológico da proposta de ensino das EEEPs permeia
todas as práticas da esfera de organização da escola, bem como de suas
ações educativas. Através do empreendedorismo empresarial, “a escola é
tratada nos moldes de uma empresa, na qual a clientela é representada pela
380
comunidade; os gestores são os líderes nos moldes dos empresários; os
chamados investidores sociais são, na verdade, os parceiros empresariais
(FARIAS et. al., 2013, p. 271). Consiste, nesse sentido, em uma parceria
público-privada, ressaltando, principalmente, o plano ideológico com o
favorecimento à esfera privada capitalista em detrimento do espaço
público, terreno de lutas sociais entre as classes sociais e potencialmente
transformadoras das condições vigentes atuais. Portanto, um espaço em
que as lutas da esfera do trabalho, marcado por contradições, buscam a
superação das condições degradantes da vida humana dentro e fora do
trabalho.
A formação profissional como formação atrelada à prática
cotidiana e balizada pela TEO/TESE desvaloriza a teoria, a reflexão crítica
e a possibilidade de a pessoa humana conhecer a totalidade social,
articulada à particularidade e à singularidade, pois sua natureza é a de
obscurecer, visto que está impregnada pelos valores empresariais. De forma
enérgica, essa tentativa de fazer adentrar na escola pública sua pedagogia
do setor privado tem a imperiosa intenção de negar aos estudantes
trabalhadores a instrumentalização necessária que lhes garanta o acesso ao
conhecimento acumulado historicamente pela humanidade, o que é
essencial ao processo de formação humana.
As investidas do capital sobre o complexo da educação, para
controlar a formação docente, tratam-se da transformação da educação
numa mercadoria. Ao atender às demandas endereçadas pelo capital e seus
interlocutores estatais, percebemos uma relação de submissão da escola aos
interesses da burguesia. Tal movimento está permeado de agressividade, o
que se dá através do controle político-ideológico para atingir seus objetivos.
A TESE/TEO como fundamento da formação da força de trabalho, assim
como tantos outros paradigmas que atendem às necessidades
sociorreprodutivas do capital, revela de modo latente os interesses em
381
moldar a formação humana às feições de uma sociedade em crise estrutural.
Portanto, formar para o empreendedorismo empresarial é desembocar no
processo educacional aclamado pelo movimento de EPT, ou seja, em uma
formação de mão de obra dócil e adequada às transformações do sistema
produtivo.
.
383
Considerações Finais
O Debate que Não se Encerra
Não temos a pretensão de encerrar esse trabalho sem alertar de que
esta obra não pretende esgotar os debates que cercam esse objeto. A
educação profissional e o ensino médio são temas de interesse público, por
isso, são alvos constantes de investidas das políticas públicas. Nesse âmbito,
as investidas apontam para os desdobramentos da luta de classes no que
concerne à educação pública que é ofertada pela escola estatal. Esses
interesses podem indicar a escola como um espaço de democratização do
saber ou, por outro lado, um espaço a ser explorado com fins lucrativos,
portanto, da reprodução social do capital. Por isso, as organizações de
classe e a correlação de forças políticas que elas movimentam influenciam
no delineamento desse campo educativo.
Buscamos demonstrar os vínculos ontológicos da relação trabalho
e educação e as contradições que emergiram ao longo da história,
reformando a dualidade educacional para dar conta das demandas sociais
e produtivas a partir de determinado modo de produção hegemônico e das
relações que daí emanam em cada período histórico. Esse percurso nos fez
compreender que uma série de complexos se movimentam sobre a
realidade educacional, determinando sua forma aparente e/ou mesmo
alterando sua essência. A relação trabalho e educação está sempre permeada
pelas contradições históricas da divisão social do trabalho, da propriedade
privada e das classes sociais. As pesquisas teórico-históricas possibilitaram
384
entender que a dualidade educacional faz parte da estrutura da sociedade
de classes enquanto a dicotomia educativa entre ensino propedêutico e
profissionalizante que divide e diferencia o ensino conforme as classes
sociais foi efetivado pelo capitalismo. A dualidade é reflexo da divisão social
do trabalho e da sociedade de classes, portanto, a possibilidade de superá-
la está relacionada à luta revolucionária das classes trabalhadoras que a
emancipação da estrutura classista hierárquica da divisão do trabalho,
eliminando o domínio do capital. A dicotomia educativa, no entanto, pode
ser constantemente reformada na medida que as necessidades
sociorreprodutivas do capital continuarem exercendo controle sobre o
processo produtivo, e, com efeito, sobre o trabalho.
No contexto brasileiro, a historicidade do desenvolvimento
dependente a partir de uma burguesia subordinada e associada possibilita
analisarmos a relação entre capital, trabalho e educação, especificando a
educação profissional e o modo como essa relação e suas contradições se
expressam mediante a fase de crise estrutural do capital na
contemporaneidade. Na atual fase, o capitalismo tem exigido novas
margens para exploração do lucro, reprodução da mais-valia, estabelecendo
mecanismos de controle social sobre a formação da força de trabalho. A
escola, por sua vez, atuaria como espaço de reprodução social do viés
capitalista e explorado como um nicho mercadológico para abrir novas
margens para extração lucrativa.
Na particularidade brasileira, a educação se desenvolveu seguindo
a forma dominante da relação capital-trabalho no contexto da inserção
periférica e dependente que a economia brasileira apresentou ao longo do
desenvolvimento de sua história. As marcas da colonização ainda
permanecem no processo econômico, o que reflete na reprodução social
educacional. Nesse contexto, o complexo da educação se relaciona tanto
com o processo universal da humanidade quanto a partir das características
385
particulares disseminadas e cultivadas no Brasil desde o período colonial.
Isto é, absorve e se relaciona reciprocamente com os complexos que
compõem as características dessa sociedade, sem deixar de expressar os
elementos da universalidade histórica da humanidade. Onculo
ontológico entre trabalho e educação, tendo por base as relações de
produção capitalista, sua divisão social do trabalho e antagonismo entre as
classes sociais determinam sobre a estrutura do complexo educativo uma
dualidade que permanece na história. A separação entre trabalho manual e
trabalho intelectual insere e opõe os indivíduos em funções sociais
produtivas acentuando a divisão social e política do saber educacional em
função da luta de classes sociais. Na era moderna capitalista, essa luta
descamba para o interior do Estado desvelando que esse conflito integra o
conjunto da luta entre as classes sociais. A educação como política estatal
revela o quão é importante esse complexo social que lida com a formação
da força de trabalho e a consciência que possibilita efetivar o processo de
dominação de uma classe sobre a outra. Por meio do Estado, as lutas e os
conflitos de classe pela formação da consciência podem fazer das ideias da
classe dominante as ideias dominantes em toda a sociedade.
O desenvolvimento da história é impulsionado a partir de sua base
material, isto é, das condições concretas e objetivas da existência dos
homens e as relações que estabelecem entre si na reprodução social de
existência. Nesse sentido, tanto a objetividade quanto a subjetividade
influenciam a dinâmica do processo histórico. Numa sociedade de classes
estruturalmente antagônicas as lutas ora despontam de forma explosiva ora
se encontram disfarçada pela ideologia, pelo poder do Estado.
As disputas que gestaram as reformas da educação profissional em
nível médio apontam as idiossincrasias da luta de classes no Brasil,
especificamente, o período entre a Constituição de 1988 a 2004. Nele
estavam em disputas propostas que ancoravam as concepções de educação
386
nos conceitos de politecnia, conforme a tradição marxista na educação,
defendidas por um campo político progressista se opondo aos projetos
educacionais das classes tradicionalmente dominantes na sociedade. Os
conflitos políticos entre os setores que participavam do jogo democrático
no pós-1988 se desenvolveram em frações e segmentos de classes no
âmbito político e da sociedade civil. As Organizações Não-
governamentais, os sindicatos patronais, A Igreja Católica, as instituições
filantrópicas assim como o bloco histórico que assumiu o poder nas
instituições do Estado após a ditadura civil-empresarial-militar.
No processo de aprovação da LDB 9.394/1996 um conjunto de
manobras denunciadas por partidos políticos de esquerda e movimentos
sociais populares apontavam para o caráter autoritário da medida que
impunha um projeto de LDB oposto ao discutido com a sociedade civil e
Congresso Nacional durante anos. Com a opção pelas políticas neoliberais
e associada ao caráter autocrático classista da burguesia institucionalizada
foi aprovado um outro Projeto de lei e com ele a educação profissional foi
tratada em um decreto no contexto das Reformas de Estado. O decreto
2.208/1997, concebido, eminentemente, pelos técnicos do MEC,
assessorados pelo Banco Mundial e avalizado pela cúpula do Governo de
Fernando Henrique Cardoso, é que se fez a reforma da educação
profissional.
Neste decreto, as reformas da educação profissional e ensino médio
legitimou a oferta do ensino em cursos profissionalizantes sem a
necessidade de elevação dos níveis de escolaridade da classe trabalhadora.
Para Cêa (2007), a desarticulação entre formação para o trabalho e os
níveis de ensino teve como efeito baixas taxas de escolarização. A luta,
portanto, do campo progressista, movimentos e partidos de esquerda
populares, sindicatos de professores da rede federal de ensino técnico foi se
opor a essa política. Essa luta ganhou força com a eleição de Lula da Silva
387
pelo Partido dos Trabalhadores. De pronto, o governo Lula deveria
revogar o decreto 2.208/1997. Em seu lugar, deveria criar uma política
efetiva que se conectava às lutas sociais em torno da educação que buscava
os instrumentos para implantação da escola unitária, superando a
dualidade e suas dicotomias. Esse processo deu vida ao decreto
5.154/2004.
A educação profissional reformada pelo decreto nº 5.154/2004
deixou de revogar o conteúdo do decreto nº 2.208/1997. Ao invés de
resolver a problemática dualidade educativa, criou mecanismos que a
ajustam para as necessidades de formação de força de trabalho para o
mercado. A proposta de integração entre ensino médio e educação
profissionalizante, ali contida, não resolveu a tendência estrutural à
dualidade e se de alguma maneira corrigiu distorções na estrutura perversa
da educão e ensino profissional manteve o viés dicotômico mais
abrangente entre propedêutico e profissionalizante, formação geral e
específica, ensino regular e profissional, público e privado. O decreto
5.154/2004 não expressou a força política institucional para superar o
problema histórico, mas ao absorver o núcleo propositivo do ensino
profissionalizante do decreto 2.208/1997 validou seu conteúdo e
interesses. O novo decreto tornou-se um dispositivo híbrido das
idiossincrasias brasileira e flexível para os mais variados interesses, abrindo
a possibilidade de implantação de propostas de educação profissional
conforme cada esfera administrativa seja ela pública ou privada.
Para as forças econômicas que veem na mercantilização da
educação um nicho estratégico para reprodução do lucro. No contexto da
crise estrutural do capital, mesmo exercendo sua força ideológica e
hegemônica sobre o “modelo tradicional” e obtendo razoável sucesso, o
capital reivindica mais eficiência e eficácia na aplicação de sua lógica
neoliberal, expressada pelo empreendedorismo que invade o processo
388
pedagógico. Para isso, não basta mercantilizar a educação, para o capital é
preciso ir além e implementar um modelo escolar similar ao de uma
empresa, isto é, uma escola-empresa que aplique sua lógica de mercado,
implementando formações condizentes com o projeto de dominação,
buscando o consentimento da classe trabalhadora frente a exploração mais
aguda da força de trabalho.
A investigação apontou um crescente processo de expansão da rede
pública e privada na oferta de qualificações profissionalizantes, utilizando
a forma de articulação e modalidade que convém a cada esfera
administrativa. Quais sejam, as modalidades concomitantes e subsequentes
são as prediletas dos que propõem um modelo de mercado para o ensino
tanto na esfera pública quanto no setor empresarial. Pelos dados que
apresentados no capítulo 5, o mercado educacional prefere cursos mais
rápidos e de baixo custo. Já na esfera pública, a tendência foi aproximar a
proposta pedagógica das concepções dominantes nas corporações
empresariais que buscam as formações qualificadas, porém adequadas a sua
lógica. Podemos indicar que as investidas empresariais sobre as políticas de
educação buscam estabelecer um sistema nacional de formação profissional
contínuo para a qualificação e requalificação conforme as necessidades do
setor produtivo.
O que se viu após a sanção do decreto reforça que a educação
profissional avançou no processo de sua conversão em mercadoria pelas
determinações do atual estágio do capitalismo e as necessidades de a
burguesia financeira abrir espaços para a extração do mais-valor relativo.
Na esteira, outras frações de classe ganham a opção de investir em serviços
que devem sair das mãos do Estado ou mesmo financiado/apoiado pelo
mesmo como avalista e administrador do Fundo Público. A partir daí,
surge todo um sistema desintegrado e fragmentado de cursos que variam
entre a precocidade e aligeiramento, concomitantes ou sequenciais da
389
formação requerida ou qualificação advindo de uma escola que adota o
Ensino Médio Integrado (EMI).
Frigotto et al. (2012, p. 37) argumenta: “o Decreto 5.154/2004
tenta restabelecer as condições jurídicas, políticas e institucionais que se
queria assegurar na LDB na década de 1980”. Nesse caso, pretendia-se
uma articulação do ensino médio com a formação profissionalizante,
contemplando no campo educativo a educação geral e específica,
denominada no dispositivo legal de “integrada”.
Os projetos de EMI após a sanção do Decreto 5.154/2004
apontam a relevância da educação profissional em nível médio para as
políticas sociais do Estado brasileiro, principalmente, como remediador,
dentre outras moléstias sociais, do problema do desemprego. O referido
Decreto, gestado pelas reformas educacionais, voltados para a qualificação
e requalificação do trabalhador, possibilitou a implantação no Ceará de
um projeto de EMI voltado à lógica de mercado, pautado pela política
pedagógica do empreendedorismo.
Na esteira de Mészáros (2011, p. 88), ao analisar ontologicamente
o atual estágio de crise do capital, apontam essas medidas como “remédios
parciais não poderiam retificar os antagonismos materiais fundamentais,
políticos e culturais e as desigualdades estruturais do sistema do capital.”.
Isso significa, com o valor propositivo que as lutas dos intelectuais
progressistas merecem, que a intervenção política pretendida para corrigir
antagonismos de ordem estrutural da educação e sua dicotomia
profissional versus propeutica, não superou velhos problemas, mas
articulou-os às novas demandas da ordem hodierna, vide exemplo no
Ceará apontados nesse estudo. Por isso, do ponto de vista corretivo, o
mecanismo que permite projetos de Ensino Médio Integrado, refugado
pelos elaboradores do decreto 2.208/1997 não representou uma vitória
significativa para o projeto socialista, tendo vista a força hegemônica da
390
classe burguesa dominante sobre o aparelho do Estado. Reformar a
educação profissional pela via dos decretos significou jogar no campo
adversário, sob as regras do adversário. Isto é, no campo institucional da
autocracia burguesa. O capital apenas pôde aceitar uma intervenção
advinda da esfera do trabalho se a proposta for assimilada, integrada ao
circuito do valor de troca do modo de produção capitalista. Para Mészáros
(2011), o empreendimento socialista precisa ser uma alternativa radical ao
modo de controle sociometabólico do sistema do capital.
O decreto 5.154/2004 e seu conteúdo e formas híbridas de dispor
da educação profissional constitui-se de uma possibilidade que permite o
EMI na medida que este pode ser assimilado pelo conjunto do sistema. A
correlação de forças entre as classes e frações de classe dominante
reforçaram e buscam implementar novos mecanismos que garantam a
transmissão da ideologia da classe dominante. O que aconteceu na política
educacional do governo Lula da Silva e depois continuado por Dilma
Rousseff, assimilou as demandas da esfera financeira, com o crescimento
dos conglomerados empresariais da educação (Kroton-Anhaguera, Estácio
etc), e a histórica relação com os empresários do Sistema S. Suas demandas
foram traduzidas pelo Movimento de Educação para Todos e depois
implementadas nos dispositivos e políticas do governo, a exemplo do
Pronatec.
O processo de reformismo no Brasil é acompanhado por um duplo
movimento político-econômico tanto no cenário interno quanto no
externo. A conjuntura internacional nas economias centrais de capitalismo
passou a exercer uma forte ofensiva imperialista sobre os países da periferia
capitalista. O Consenso de Washington e o Movimento de Educação para
Todos passaram a coordenar as diretrizes que definem novas medidas
socioeducacionais nesses países. A correlão de forças políticas na
particularidade dos Estados nacionais pode rejeitar ou filtrar essas
391
recomendações de acordo com a correlação de forças poticas internas e
dos interesses em questão. Os interesses em questão podem coadunar com
o processo de acumulação pretendido pela burguesia brasileira. Como é
próprio de uma burguesia associada ao capital externo e com
representantes intelectuais que alinham seu pensamento às diretrizes do
Organismo Internacionais, as diretrizes vão sendo acomodadas pelos
interesses e correlação de forças políticas que compõem o Estado brasileiro.
Uma outra característica de nossa particularidade é o projeto de
classe da elite que almeja e busca sempre que possível reduzir o controle do
Estado sobre a formação da força de trabalho. O exemplo mais expresso
disso é o Sistema S. Desde o projeto do IDORT, os interesses dos
empresários é ter um sistema de financiamento público para instituições
educativas, mas que sejam administradas pela esfera privada.
Com a reestruturação produtiva em curso que incorpora
tecnologias informacionais, o capital requer não apenas o “gorila
amestrado”, mas uma força de trabalho “pensante”, integrada aos novos
padrões e relações de trabalho, cada vez mais flexíveis. Foi então que um
grupo de empresários apresentou, ao governo e à sociedade, um
documento denominado Educação Fundamental e Competitividade
Empresarial: Uma ação do Governo (1992). Dispostos a liderar esse
processo, os empresários, por meio da Federação das Indústrias de São
Paulo (FIESP) e da Rede Globo, criaram o Telecurso 2000. Nesse projeto
estão impressas as concepções de mundo e de homem na visão empresarial.
Nos governos Lula-Dilma, depois Temer, através das Parcerias
Público-Privadas a ascensão dos empresários se fez valer com ainda mais
força. Tanto o Plano Compromisso Todos pela educação quanto o
Pronatec são expressões desse estreitamento nas relações entre o Estado e
o meio empresarial. A lógica dessa relação reforça a ideia liberal de tornar
a qualificação profissional um serviço que pode ser comercializado. Com
392
efeito, a fragmentação da rede escolar de educação profissional abriu
espaços para a expansão dos negócios do mercado de cursos
profissionalizantes.
Além da expansão do ensino profissionalizante, um outro aspecto
a ser destacado na normatividade do decreto 5.154/2004 diz respeito à
omissão quanto a não obrigatoriedade em implementar o Ensino Médio
Integrado. Ficou a cargo dos estados definirem suas propostas de EMI,
podendo elas variar desde as concepções de politecnia até a incorporação
de ideologia empresarial como ethos pedagógico a ser implementado. Cada
um a seu modo, o dispositivo legal regulamentou o “pode tudo” na
educação profissionalizante. No âmbito dos entes federativos, eles
poderiam ofertar o ensino médio regular, como já existia, ou o ensino
médio integrado com os cursos profissionalizantes. O contribui para a
flexibilização e fragmentação da rede de ensino profissional.
A fragmentação da instrução escolar avançou cada dia mais,
conforme as investidas empresarial sobre as políticas educacionais,
caracterizando as imposições do capitalismo. O grande capital, através de
seus agentes multilaterais (ONU, Banco Mundial, FMI), o Estado e os
empresários da educação direcionam os problemas da humanidade,
especialmente em países da periferia do capitalismo, para serem
solucionados na esfera educativa. A dicotomia propedêutica versus
profissionalizante, assume uma nova forma, com aspectos de integração,
porém seu embasamento nos princípios do empreendedorismo
empresarial expõe os reais interesses do mercado em converter a educação
profissional em capital humano.
Como mercadoria a educação pode ser privatizada e o saber
historicamente produzido pela humanidade fica condicionada aos ditames
do capital. Por essa lógica, a formação humana ocorre em uma variedade
de cursos e modalidades apoiados no saber fragmentado
. Diante do que já
393
expusemos, a escola que ofertar educação profissionalizante, nessa
conjuntura, atrela-se ao projeto maior do Estado brasileiro, na
subalternidade, aos preceitos neoliberais, receitados pelos organismos
internacionais, a exemplo do FMI, do Banco Mundial, da UNESCO,
entre outros.
A proposta de EMI implantada no Ceará tem apresentado relativo
êxito quanto ao desempenho dos alunos em exames avaliativos. Essa
proposta educacional é festejada nos meios políticos e em entidades da
sociedade civil que, em meio à miséria, as EEEPs seriam suspiro de
esperança. Sua propaganda nos meios de comunicação assegura prestígio
ao Governo do Estado e é utilizada com uma plataforma eleitoral muito
importante. Por isso, buscamos expor alguns elementos que revelam as
enormes contradições de sua implantação e as conexões com o movimento
que deram a tônica para o ensino profissional. A iniciativa cearense vai
além da parceria com o setor privado. Ela incorpora abertamente a
pedagogia empresarial do empreendedorismo. Apesar de estar
fundamentada nas concepções que orientaram o decreto 5.154/2004 e sua
intencionalidade política, os caminhos meandrosos que a levaram para a
sala de aula são guiadas pela articulação das diretrizes do Movimento de
Educação para Todos com os preceitos ideológicos do empreendedorismo
mercadológico.
Uma das competências realçadas pelo ideário de EPT é o
empreendedorismo. O relatório Delors, apesar de não apontar diretamente
o aprender a empreender, no rol de suas formulações, têm na ideia de
empreendedorismo um meio de incitar o autoemprego, no quadro de
desemprego crônico. Por meio do empreendedorismo, a escola deve se
preparar para o emprego e o desemprego. Incitar na classe trabalhadora a
ilusão de que tudo é possível perfaz mais uma estratégia do capitalismo em
estimular o individualismo, o consumismo, evocando o pragmatismo do
394
senso comum, mistificador das relações de classe, da exploração do homem
pelo homem, da acomodação diante da barbárie, das desigualdades sociais.
Enfim, pode-se até questionar tais problemas, todavia a solução, na
ideologia vigente, é limitada às fronteiras do capital; jamais vislumbra a sua
superação.
Através da adoção da TESE/TEO como parâmetro para a gestão
administrativa e pedagógica para as Escolas Estaduais de Educação
Profissional (EEEPs). Ultrapassando a marca de 120 escolas, padrão MEC,
muito bem equipadas, 50 mil estudantes matriculados, traduzindo uma
importante política pública que anuncia estar acomodada no trabalho
como princípio educativo, porém assumidamente empresarial.
Bem atrelado ao fundamento de empreendedorismo empresarial,
o empreendedorismo individual, já presente na proposta de formação
profissionalizante, a proposta cearense apoiada na TESE/TEO consegue
articular e sintetizar o elo entre o Movimento de Educação para Todos e a
gestão privada da escola pública.
É também uma síntese da ideologia neoliberal sobre a educação na
qual cada indivíduo deve responsabilizar-se por sucessos e fracassos nas suas
carreiras profissionais; é apregoado pela ideologia neoliberal que todo
sucesso exige uma cota de autossacrifício, portanto, perfazendo, nas
formações profissionalizantes a serem assumidas pelos jovens
trabalhadores, o véu que encobre a exploração da força de trabalho e de
autoexploração do próprio trabalho. O empreendedorismo que é
desenvolvido nas EEEPs vincula esse processo com as relações de trabalho
cada vez mais precárias.
O trabalho regulamentado e contratado, típico do modo
taylorista/fordista de produção, foi substituído pelo modo de acumulação
flexível nas formas mais distintas de informalidade e precarização. São
395
trabalhos temporários, terceirizados, “voluntarismo”, “cooperativismo”,
“empreendedorismo” e os mais variados parcelamentos de trabalho
(ANTUNES, 2009).
Por sua vez, destacadamente a educação atende ao chamamento
empresarial. Na nova configuração das relações capital-trabalho, são
determinados processos de mercantilização da educação, ocorrendo a
importação das ideias gerenciais da esfera empresarial para as escolas
públicas estatais, tratando a formação do aluno em conformidade com as
necessidades do mercado. Como mercadoria, a educação pode ser
privatizada, e o saber historicamente produzido pela humanidade fica
condicionado aos ditames do capital.
A proposta de educação do capital cuja alienação é disseminada
como necessária à reprodução das relações de produção, mistificam e
possibilitam a reprodução social de grande parte da humanidade do acesso
às benesses produzidas pelo trabalho. Manter a alienação nas relações de
produção, sociais e políticas para que tudo finalize com lucro é uma
necessidade, embora a classe trabalhadora resista através de greves,
danificação das máquinas, lentidão na produção etc. (PANIAGO, 2012).
Isso significa que o capital precisa superar as barreiras das circunstâncias
históricas e, consequentemente, enfrentar problemas políticos e
econômicos de ordem.
Ao propor uma educação empreendedorista, coadunada com a
lógica mistificadora do capital, a educação é reduzida ao significado mais
tacanho possível de preservar a estrutura dual e fragmentada do ensino e
suas dicotomias, privilegiando os “destinados a governar”.
“Simultaneamente, exclui a esmagadora maioria da humanidade do
âmbito da ação como sujeitos, e condena-os, para sempre, a serem apenas
objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da superioridade da
396
elite: 'meritocrática', 'tecnocrática', 'empresarial', ou qualquer seja”
(MÉSZÁROS, 2008, p. 49).
A partir desse quadro, em que a educação cumpre uma
determinada função, porém numa forma societal em que o trabalho se
apresenta como elemento negativo da liberdade, isto é, sua forma alienada,
Lukács (2013) entendemos que a tarefa educativa formal consiste em
responder primariamente as determinações do capital, posto que ele exerce
um poder hierárquico sobre o trabalho. Contudo, uma sociedade em que
a luta de classe está sempre comparecendo, revelando as contradições, a
educação poderá, partindo dessas contradições, produzir elaborações
teleológicas emancipadoras, embora pressionadas pelos limites impostos
pelo capital.
A educação que devemos lutar deveria propiciar a todos os
indivíduos uma formação omnilateral, necesria para que o gênero
humano se situe em uma totalidade social, partícipe das benesses materiais
e culturais produzidas pelo trabalho. Para superar a divisão estrutural
propedêutica profissionalizante, podemos conectar as propostas
educacionais a atividades emancipadoras do trabalho alienado. Se a
proposta de escola unitária pode ser um caminho para a travessia para uma
educação onmilateral, não podemos, a não ser nos opor ao projeto de EMI
que está apoiada no empreendedorismo.
Uma proposta educacional para a emancipação humana, inserida
na atual conjuntura, não pode prescindir de defender a superação radical
do sistema capitalista juntamente com a rejeição a suas propostas
educativas. Um outro projeto de educação mesmo tendo a real noção dos
compromissos da “montanha que devemos conquistar”, implica a
transformação radical da sociedade. A educação nos marcos da
omnilateralidade, como prescritos nos clássicos do marxismo, apenas
397
poderá ter o significado de formar os indivíduos, teórica e praticamente,
isto é, integralmente, na perspectiva de superação das amarras do capital.
399
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SOBRE O LIVRO
Catalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
Normalização
Nathanael da Cruz e Silva Neto
Capa
George Amaral
Diagramação
Mariana da Rocha Corrêa Silva
Assessoria Técnica
Renato Geraldi
Oficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
O livro de George Amaral Pereira,
trata, corajosamente, da polêmica reforma
da Educação Prossional e de seus efeitos
sobre o Ensino Médio, apreendida, por sua
vez, no mandato petista de Lula da Silva.
O Ensino Médio é uma etapa impor-
tante na formação de uma pessoa, jovem ou
adulta. Na moldura da crise do capitalismo
contemporâneo, a última fase da educação
básica assume o caráter de ser terminal para
uma classe e dar prosseguimento aos estudos
para outra. Naturalmente que, pela natureza
dialética da sociedade, não se excluem aqui
as exceções. As possibilidades de continui-
dade dos estudos no Ensino Superior, para
a classe trabalhadora, são incertas. A maioria
da juventude trabalhadora, por isso, é im-
pelida a abandonar os estudos e se dedicar
ao também incerto emprego no mercado de
trabalho capitalista.
Na superfície do fenômeno, essa
questão tornaria ambígua a nalidade da es-
cola básica, sobretudo aquela que se dedica
ao ensino médio, uma vez que essa fase teria
como função precípua o seguinte: por um
lado, treinar os jovens-trabalhadores-estu-
dantes para o Ensino Superior e, por outro,
para as oscilações do emprego-desemprego
do mercado de trabalho brasileiro, inserido,
pela própria dinâmica social, no capitalismo
que orbita na periferia do grande capital.
Em ns do século XX, o gover-
no tucano de Fernando Henrique Cardoso
decretou, usando as artimanhas peculiares
ao pugilato da política sufragista, o m da
integração entre educação prossionalizan-
te e ensino médio. Por meio do Decreto
2.208/1997, o professor universitário imple-
mentou ocialmente o divórcio entre a últi-
ma etapa do ensino básico e a modalidade de
Educação Prossional.
Com a vitória de Lula da Silva,
nas eleições presidenciais de 2002, o mo-
vimento de entidades educacionais, bem
como os intelectuais alinhados à assim de-
nominada esquerda progressista, mobi-
lizaram-se para a revogação do Decre-
to assinado pelo presidente antecessor.
O movimento teve como retorno a ocia-
lização do também Decreto nº 5.154/2004.
O que se concretizou com a sanção do novo
documento, não obstante, foi um imbróglio
permissivo. Haja vista a parte mais criticada
do Decreto anterior ter sido absorvida pelo
novo dispositivo.
Na prática, o governo petista e seus
defensores alinhados ao liberalismo de es-
querda, abraça a dualidade educativa. Pior,
institucionaliza novas possibilidades de ar-
ranjos para as diversas expressões da dico-
tomia educacional: público versus privado;
propedêutico versus prossionalizante; te-
órico versus prático, entre outros caprichos
capitalistas.
Em resumo: se por uma parte recu-
pera-se a possibilidade da integração entre
o Ensino Médio e o Prossionalizante, por
outra, ocializam-se as condições para que
os empresários do setor educativo lucrem
com a venda da formação prossionalizante
aligeirada, fragmentada e ideologicamente
cabível confortavelmente na ideia dos atra-
sados empresários brasileiros. Esse fato pode
ser comprovado por intermédio do cresci-
mento abissal dos cursos subsequentes, in-
clusive na esfera pública, como no caso dos
Institutos Federais (IFs).
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
O presente livro procura desenvolver uma análise sobre a relação Trabalho e
Educação, preenchendo uma lacuna que circunscreve a Educação Prossio-
nal e sua relação com o Ensino Médio. Na virada do milênio, a reforma do
ensino prossionalizante ocorre em meio às lutas sociais entre as classes com
projetos societais diferenciados, buscando regulamentar o projeto de Ensino
Médio Integrado. E uma das questões controversas que abordamos foi opção
governamental de realizar as reformas via decretos.
Um outro aspecto, diz respeito ao complexo de mudanças que as reformas
implicaram, tocando no problema da conguração da educação, qual seja
o caráter dual e a dicotomia que se efetiva no quadro da reprodução social
no capitalismo, sendo a educação brasileira marcada pela dualidade estrutural
desde o processo colonizador. Nesse contexto, a escola pública pode abrigar
um ensino propedêutico ou prossional a depender a qual classe se destina
aquele saber tanto de entes das esferas pública e privada.
Para tratar desse complexo debate recorremos aos clássicos do marxismo, ten-
do em vista desnudar a aparência do fenômeno, considerando o contexto de
crise estrutural do capital e as determinações que exigem novas funcionalida-
des da educação, mediadas pelas políticas públicas.
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, ENSINO
MÉDIO E CRISE DO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
ENSINO MÉDIO NO BRASIL
George Amaral
nos marcos da crise do capitalismo
DERIBALDO SANTOS - UECE
George Amaral
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, ENSINO MÉDIO E CRISE DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
George Amaral