Novos Direitos na
Contemporaneidade
vol. I
Novos Direitos na Contemporaneidade vol. I
Laércio Fidelis Dias é natu-
ral de São Paulo/SP, Doutor
em Antropologia Social (USP),
Professor na Universidade
Estadual Paulista (Unes-
p/Marília), no PPGCA-Unes-
p/Sorocaba e Diretor do
Departamento de Proteção ao
Patrimônio Afro-Brasileiro
(DPA), Fundação Cultural
Palmares (FCP), Ministério do
Turismo (MTur).
Ricardo Pinha Alonso é
Doutor em Direito do Estado
(PUC/SP), Professor Titular
nas Faculdades Integradas de
Ourinhos, e, no Programa de
Pós-graduação em Direito,
mestrado e doutorado, na
Universidade de Marília (Uni-
mar) e Procurador do Estado
de São Paulo.
Ricardo Bispo Razaboni
Junior é Mestre em Teoria do
Direito e do Estado (Univem-
-Marília/SP), doutorando em
Ciências Jurídicas (UENP),
Professor de Direito Constitu-
cional na Anhanguera
(Assis/SP), da Pós-gradua-
ção em Direito Constitucional
da Faculdade ProMinas, e
coordenador do Curso de
Direito da Anhanguera
(Assis/SP).
Ao percorrer os 16 capítulos que
compõem Novos Direitos na
Contemporaneidade, vol. I, o
leitor deparar-se-á com um
conjunto de discussões sobre
direitos, notadamente sobre os
direitos fundamentais previstos
na Carta Magna de 1988, cuja
unidade se encontra no diálogo
dos sistemas jurídicos com siste-
mas culturais, morais, a éticos,
bioéticos, médicos, políticos etc,
tendo como fim a promoção, a
garantia e o equilíbrio da justiça
distributiva, comutativa e
recíproca. Em uma época de
inegáveis avanços científicos,
tecnológicos, de conexões em
tempo real aceleradas, de
anseios por representação, direi-
to e justiça, que emergem de
identidades que pululam, a
mediação dos conflitos mobiliza
sistemas de pensamento, simbo-
lismo, que tornam mister
acionar o diálogo entre o jurídico
e a cultura, em suas diversas
facetas. os temas abordados nos
capítulos da coletânea mostram
complexas questões: uso e explo-
ração da natureza; os limites do
simbólico; a transformação da
autoridade em autoritarismo;
combate à corrupção, tema
candente no Brasil atual (no
ranking internacional da corrup-
ção, 2020, o pais ocupa a 94º
colocação entre 180 países,
segundo a Transparência Inter-
nacional); contexto da saúde
pública na lida com a loucura;
educação; direitos de minorias;
entre outros temas igualmente
complexos e presentes no imagi-
nário e vocabulário do homem
médio brasileiro.
Originada a partir do “Seminário de Direitos
Humanos e Novos Direitos na Contemporanei-
dade”, promovido pelo Grupo de Estudos
“PACTO – Paz, Cultura e Tolerância”, realizado
nas dependências da Faculdade de Filosofia e
Ciências da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), campus de Marília, na cidade de Marí-
lia/SP, em 04 de maio de 2018, a presente obra
tem por objetivo publicar trabalhos de natureza
acadêmico-científica sobre a temática fundamen-
tal dos direitos humanos e de direitos emergentes
nesta época contemporânea. Agrega entre os
autores que assinam os capítulos, pesquisadores
de diferentes instituições de ensino superior, de
vários níveis acadêmicos e de variadas áreas do
conhecimento humanístico, a fim de que sejam
amplas a reflexão e a análise de tais temas de
reconhecida importância nacional e internacio-
nal, notadamente com relação aos direitos huma-
nos. A premissa que atravessa os artigos é a de
que a sociedade contemporânea, no Brasil e
mundo afora, sofre inúmeras mudanças de larga
envergadura, nos costumes e valores, que reper-
cutem no tema dos direitos, e, por isso, deman-
dam consideração e investigação. Nesse sentido,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
revela a universidade cumprindo seu papel de
estimular a reflexão e a discussão de temas com
dupla relevância: acadêmico-científica e para a
sociedade em geral. Sem dúvida uma leitura rica,
instigadora. Quem a percorrer com a atenção
devida colherá frutos saborosos e valiosos.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso
Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
Laércio Fidelis Dias
Ricardo Pinha Alonso
Ricardo Bispo Razaboni Junior
(Organizadores)
ISBN 978-65-5954-098-3
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Novos Direitos na
Contemporaneidade, vol. I
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
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(Organizadores)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
Prof. Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2021, Faculdade de Filosoa e Ciências
N945 Novos direitos na contemporaneidade, vol. 1 / Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha
Alonso, Ricardo Bispo Razaboni Junior (organizadores). – Marília : Ocina
Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
260 p.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-098-3 (v. 1) (Impresso)
ISBN 978-65-5954-099-0 (v. 1) (Digittal)
DOI https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0
1. Direitos humanos. 2. Direitos fundamentais. 3. Civilização moderna – Séc.
XXI. 4. Conito de interesses. 5. Valores. 6. Ética. I. Dias, Laércio Fidelis. II. Alonso,
Ricardo Pinha. III. Razaboni Junior, Ricardo Bispo.
CDD 323.4
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Andrey Ivanov
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
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Prefácio
Renata Russo Runo ----------------------------------------------------------------- 9
APresentAção
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e
Ricardo Bispo Razaboni Junior ------------------------------------------------------ 13
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Giowana Parra Gimenes da Cunha e Roberto da Freiria Estevão ---------------- 19
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Josilene Hernandes Ortolan Di Pietro e Larissa Fatima Russo Françozo -------- 53
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Mário Furlaneto Neto --------------------------------------------------------------- 67
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Luiz Gustavo Boiam Pancotti e Fábio Luís Binati -------------------------------- 81
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Ana Cristina Lemos Roque e Luciano Macri -------------------------------------- 95
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Arai de Mendonça Brazão e Marco Aurélio de Castro ---------------------------- 109
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Gustavo Henrique de Andrade Cordeiro e Roberto da Freiria Estevão ---------- 125
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Murilo Cézar Antonini Pereira e José Eduardo Lourenço dos Santos ------------ 141
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Henrique Hatum Fernandes; Victor José Amoroso de Lima e
Mário Furlaneto Neto --------------------------------------------------------------- 157
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Garcez Calil e Daniele Silva Lamblém Tavares ----------------------------------- 171
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Eliane Cristina Rezende Pereira e Sérgio Leandro Carmo Dobarro ------------- 183
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Melissa Zani Gimenez e Vitória Moinhos Coelho --------------------------------- 199
| 7
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Fernando de Brito Alves -------------------------------------------------------------- 213
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Michelle Carlesso Mariano e Alessandro Mariano Rodrigues -------------------- 231
16. A         
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Lucas Emanuel Ricci Dantas -------------------------------------------------------- 245
| 9
PREFÁCIO
O texto que aqui apresento para o prefácio de Novos Direitos na
Contemporaneidade, vol. I lança o desao de pensar o que há de novidade
naquilo que se chama de direito nesta época contemporânea. O desao
tornar-se ainda maior, e por que não, até certo ponto, intimidador, tendo
em vista a gama variada de temas e abordagens que perpassa os dezesseis
capítulos da obra. Uma vez aceito o convite para prefaciar, porém, e já
iniciada a redação, não me resta outra saída a não ser seguir adiante.
Mas, mesmo após uma golfada de coragem, o desao persiste. Como
apresentar uma obra tão rica, vasta em seus temas e abordagens, tendo por
denominador comum novos direitos contemporâneos? Anal de conta, o
que são estes novos direitos? Creio que a resposta está em situar a reexão
aqui proposta num contexto de avento do Estado constitucional e, por
conseguinte, de uma tentativa de superar o positivismo jurídico.
Um Estado constitucional possui como característica crucial a
soberania popular, isto é, sua constituição advém da vontade do povo. A
democracia representativa e participativa, bem como um sistema de garantia
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p9-12
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
10 |
dos direitos humanos são outra característica deste Estado constitucional
que imediatamente liga-se à primeira.
Por sua vez, o positivismo jurídico a-se a uma corrente da losoa
do direito que busca reduzi-lo àquilo que está posto e positivado. É uma
perspectiva que identica o direito com as normas jurídicas efetivamente
estabelecidas pelas autoridades que possuem o poder político de impô-las.
Neste sentido, o advento do Estado constitucional, contexto que
parece ser a exata moldura histórica na qual se situam os artigos desta
coletânea, busca restabelecer no âmbito do direito o diálogo com outros
sistemas normativos não necessariamente de natureza jurídica, por exemplo,
a moral, a ética, a bioética, a medicina, a política, a cultura e assim por
diante, sempre à luz, no contexto brasileiro, dos direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal de 1988. Neste sentido, os novos direitos
contemporâneos são o próprio direito, ou a norma jurídica, aberta ao
diálogo com os demais sistemas normativos que perpassam a sociedade.
Pensar o direito, no entanto, é pensar a justiça. A garantia de que os
direitos serão observados é um modo de garantir que a justiça seja feita.
Embora não seja o caso aqui de inventariar as concepções de justiça ao
longo da história e apresentar-lhe o estado-da-arte, cabe, sim, interrogar-se
sobre as características da justiça que se quer promover por meio do direito
aberto ao diálogo com sistemas normativos de variadas cepas.
Grosso modo, quem melhor deniu justiça senão Aristóteles de
Estagira (384 A.C - 322 A.C.), Ética à Nicômaco, ao deni-la como
disposição de caráter do homem para dar ao próximo, e a si mesmo, o
que lhe é devido? Note-se que nesta denição está implícita a noção de
igualdade: a cada um, igualmente, o que lhe for devido. É notadamente
desta igualdade implícita que emergem: a justiça distributiva; a justiça
comutativa; e a justiça recíproca.
A justiça distributiva trata de como os bens devem distribuídos, ou
seja, a cada um o que lhe for devido. Neste sentido, visa a regular a relação
do Estado para com as pessoas.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 11
A justiça comutativa, também chamada de corretiva, entra em
cena quando se constata algum ato de injustiça na distribuição dos bens.
Ela visa, portanto, reparar a injustiça, e contribui grandemente para a
paz social.
A justiça recíproca trata dos deveres das pessoas para com o Estado.
É a retribuição proporcional que precisa se fazer presente nas relações de
troca. Para além das funções econômicas e sociais das trocas proporcionais,
a justiça recíproca desempenha um papel político, no sentido de manter
unidas as pessoas e a própria cidade.
Portanto, ao percorrer os 16 capítulos que compõem Novos Direitos
na Contemporaneidade, vol. I, o leitor se deparará com um conjunto de
discussões sobre direitos, notadamente sobre os direitos fundamentais
previstos na Carta Magna de 1988, cuja unidade se encontra no diálogo
dos sistemas jurídicos com sistemas culturais, morais, a éticos, bioéticos,
médicos, políticos etc, tendo como m a promoção, a garantia e o equilíbrio
da justiça distributiva, comutativa e recíproca. Em uma época de inegáveis
avanços cientícos, tecnológicos, de hiperconectividade, de anseios por
representação, direito e justiça, que emergem de identidades que pululam,
a mediação dos conitos mobiliza sistemas de pensamento, simbolismo,
que tornam mister acionar o diálogo entre o jurídico e a cultura, em suas
diversas facetas.
Ademais, os temas abordados nos capítulos da coletânea mostram
complexas questões: uso e exploração da natureza; os limites do simbólico; a
transformação da autoridade em autoritarismo; combate à corrupção, tema
candente no Brasil atual (no ranking internacional da corrupção, 2020,
o pais ocupa a 94º colocação entre 180 países, segundo a Transparência
Internacional); contexto da saúde pública na lida com a loucura; educação;
direitos de minorias; entre outros temas igualmente complexos e presentes
no imaginário e vocabulário do homem médio brasileiro.
Importante discutir e levantar questões que trazem luz a um melhor
entendimento da complexa realidade por meio do diálogo entre sistemas
normativos, cultura, política, ética, etc., enquanto condição para promover
o bem-comum e equacionar conitos.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
12 |
Sem dúvida uma leitura rica, instigadora. Quem a percorrer com a
atenção devida colherá frutos saborosos e valiosos, como os que colhi ao
redigir este prefácio. Além, é claro, da honra do convite.
Renata Russo Runo
Cientista Social (USP).
Co-fundadora da Popa Research – Estudos de Mercado LTDA.
São Paulo, fevereiro de 2021.
| 13
APRESENTAÇÃO
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I é uma obra que se
originou a partir do “Seminário de Direitos Humanos e Novos Direitos
na Contemporaneidade”, promovido pelo Grupo de Estudos “PACTO –
Paz, Cultura e Tolerância” e realizado nas dependências da Faculdade de
Filosoa e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus
de Marília, na cidade de Marília/SP, em 04 de maio de 2018. O evento
esteve sob organização dos professores Rafael Salatini de Almeida (DCPE
- Unesp/Marília) e Laércio Fidelis Dias (PPGCA - Unesp/Sorocaba).
Contou com apoio de organização do STAEPE – Unesp/Marília e com
a coordenação do professor Ricardo Bispo Razaboni Júnior (Anhanguera
Educacional – Assis/SP) e da advogada autônoma Heloísa Helena Silva
Pancotti (Advocacia Direito Público – Araçatuba/SP).
A presente obra tem por objetivo publicar trabalhos de natureza
acadêmico-cientíca sobre a temática fundamental dos direitos humanos e
de direitos emergentes nesta época contemporânea. Agrega entre os autores
que assinam os capítulos, pesquisadores de diferentes instituições de ensino
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p13-18
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
14 |
superior, de vários níveis acadêmicos e de variadas áreas do conhecimento
humanístico, a m de que sejam amplas a reexão e a análise de tais temas
de reconhecida importância nacional e internacional, notadamente com
relação aos direitos humanos.
A premissa que atravessa os artigos é a de que a sociedade
contemporânea, no Brasil e mundo afora, sofre inúmeras mudanças
de larga envergadura, nos costumes e valores, que repercutem no tema
dos direitos, e, por isso, demandam consideração e investigação. Nesse
sentido, os 16 capítulos de Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
revelam a universidade cumprindo seu papel de estimular a reexão e a
discussão de temas com dupla relevância: acadêmico-cientíca e para a
sociedade em geral.
O capítulo que abre a obra, “A prática do rodeio como direito à
manifestação cultural em suposta colisão com a garantia de proteção
da fauna como direito difuso e coletivo”, de Giowana Parra Gimenes
da Cunha e Roberto da Freiria Estevão, aborda o rodeio como prática
cultural e esporte brasileiro que tem sido alvo de diversas críticas, vindas,
especialmente, da comunidade ambientalista uma vez que os animais são
o elemento fundamental desta prática desportiva. A discussão gira em
torno do avanço da legislação e instituições que tutelam a fauna brasileira,
motivo pelo qual engendra a máquina judiciária para decisões e pareceres
precedidos de denúncias, assim como o cancelamento do incentivo à
prática do rodeio em diversos municípios brasileiros.
O capítulo segundo, “O caso Naruto e os novos desaos do direito
na interpretação dos direitos fundamentais”, de iago Medeiros Caron,
busca analisar o caso nº 15-cv-04324-WHO, Naruto, et. al. (Paintis)
v. David John Slater, et. al. (Defendants), julgado em corte dos Estados
Unidos, para pensar os novos desaos do direito na interpretação dos
direitos fundamentais. O objetivo é demonstrar que a referida interpretação
não atravessa tão-somente pela análise dos direitos fundamentais da pessoa
humana, mas resvala assuntos outros que estão intimamente relacionados.
O capítulo terceiro, “A fraternidade como princípio regulador do
sistema normativo de agrotóxicos”, de Josilene Hernandes Ortolan Di
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 15
Pietro e Larissa Fatima Russo Françozo, discuti o tema da sustentabilidade
ambiental e o uso de agrotóxicos vis-à-vis ao princípio da fraternidade.
Aborda questões ligadas ao direito fundamental, ao meio ambiente
equilibrado ecologicamente, à regulamentação jurídica do uso de agrotóxicos
no ordenamento jurídico nacional e ao emprego da fraternidade, como
instrumento para minimizar as externalidades negativas decorrentes da
política de agrotóxicos adotada no Brasil.
No capítulo quarto, “Eugenia: Aspectos legais à luz da bioética e
do biodireito”, Bruna de Oliveira da Silva Guesso Scarmanhã, Giovanna
Soares Nutels e Mário Furlaneto Neto investigam como o biodireito e a
bioética regulam a administração das experiências médicas, e asseguram
limites éticos que visam à proteção e preservação da espécie humana, frente
às manipulações genéticas. Proteger o ser humano contra a eugenia recebe
especial atenção neste artigo, tendo em vista o histórico de atrocidades da
prática, notadamente durante o nazismo na Alemanha, ao buscar o ideal
de uma “raça pura”.
No capítulo quinto, “Uma reexão sobre a falência do contrato
social de Rousseau”, Luiz Gustavo Boiam Pancotti e Fábio Luís Binati, por
meio do método hipotético dedutivo, questionam se, face à ausência ou
abandono do Estado, um grupo determinado de cidadãos, signatários do
Contrato Social implícito, que conava na proteção do Estado, poderia ou
não abrir mão do referido pacto e criar, legitimamente, outro organismo
que atendesse aos anseios anteriormente delegados e conados ao Estado,
agora ausente.
No capítulo sexto, “A construção da jurisprudência do STF à luz
da teoria da derrotabilidade normativa”, Ana Cristina Lemos Roque
e Luciano Macri abordam os direitos fundamentais como freios para o
voluntarismo jurídico do Estado, ao minar as bases do positivismo jurídico
e da subsunção lógica, e atuar como resistência a quaisquer arbitrariedades
jurídico-estatal, sendo, portanto, a rearmação de que a pessoa não é mero
reexo da ordenação jurídica, mas o seu m.
O capítulo sétimo, “A ação de improbidade administrativa:
Elementos, natureza jurídica e o instituto da colaboração premiada”, de
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
16 |
Arai de Mendonça Brazão e Marco Aurélio de Castro, examina a ação
de improbidade administrativa: um dos mecanismos mais utilizados para
o combate à corrupção e ao má-verso do dinheiro público. Expressa no
artigo 37, § 4º da CF, a improbidade ganhou regulamentação através da
Lei 8.429, de 02 de junho de 1992, porém, a regulação não se revelou
sucientemente clara em inúmeros aspectos. O exemplo desta falta de
clareza é em relação à sua natureza jurídica, que cou a cargo da doutrina
e jurisprudência.
O capítulo oitavo, “Garantismo penal integral: O instrumento
de proteção suciente e ecaz dos direitos fundamentais individuais e
coletivos”, de Gustavo Henrique de Andrade Cordeiro e Roberto da
Freiria Estevão, trata do que denominam as grandes conquistas do Estado
Liberal, após a queda do absolutismo monárquico: consolidação do
reconhecimento, por parte do Estado, de uma gama de direitos aos seus
cidadãos, conhecidos como direitos fundamentais. Segundo os autores, o
grande avanço ter-se-ia dado porque, até então, o Estado era personicado
na pessoa de seu governante, revestido de poderes ilimitados, inclusive
com poder de disposição sobre os mais caros bens jurídicos de seu povo: a
vida, a incolumidade física e a liberdade.
O capítulo nono, “Lavratura de termo circunstanciado pela polícia
militar como resultado de efeitos dromológicos”, de Murilo Cézar
Antonini Pereira e José Eduardo Lourenço dos Santos, aborda o impulso
dos efeitos “dromológicos”: alteração de procedimentos investigatórios
com o objetivo de torná-los mais céleres e, a princípio, mais ecientes.
Neste contexto, segundo os autores, o espaço democrático é substituído
pela “ditadura da velocidade”, cujo efeito é a “desterritorialização” do
controle da criminalidade, que passa a ser dinamizada pela égide do tempo.
O capítulo décimo, “Direito fundamental à segurança: Unicação
da Polícia Civil e Militar brasileira”, de Henrique Hatum Fernandes;
Victor José Amoroso de Lima e Mário Furlaneto Neto, trata da proposta
de unicação das Polícias Civis e Militares brasileiras que tramita na
Câmara dos Deputados. Proposta por uma Comissão Especial de 26
Deputados e seus respectivos suplentes, a propositura tem sido discutida
em audiências públicas, missões ociais ao exterior e seminários para
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 17
debater o tema que pretende mudanças de paradigma na estrutura da
segurança pública brasileira.
No capítulo décimo primeiro, “A impossibilidade de eliminação
dos conitos pelo direito”, Mário Lúcio Garcez Calil e Daniele Silva
Lamblém Tavares investigam as discussões acerca dos métodos de
resolução extrajudicial e consensual das demandas judiciais relacionadas
à necessidade de aliviar a sobrecarga imposta à máquina judiciária,
superlotada de processos, no entanto, são métodos de eliminação dos
conitos. O conceito-chave do artigo é o de conito, já que é em sua órbita
que transita a cultura de litigiosidade, característica da administração da
Justiça no Brasil.
No capítulo décimo segundo, “Uma análise do tratamento dispensado
à loucura no Brasil sob a perspectiva dos direitos humanos”, Eliane
Cristina Rezende Pereira e Sérgio Leandro Carmo Dobarro analisam os
direitos humanos relacionados ao tratamento da loucura no Brasil, a partir
da segunda metade do século XIX e durante o decorrer signicava parte
do século XX. A questão proposta pelos autores está ligada à violação da
dignidade da pessoa humana em nome do chamado progresso da ciência,
violação esta consubstanciada nas políticas públicas do período.
No décimo terceiro capítulo, “Análise crítica sobre a efetivação do
direito fundamental à educação: Reexões sobre a construção do indivíduo
social”, Melissa Zani Gimenez e Vitória Moinhos Coelho abordam o
contexto histórico brasileiro no qual a educação passou a ser vista como
instrumento indissociável ao desenvolvimento humano. Segundo as
autoras, este período é o da era Vargas. A partir de então, o Estado vê a
educação como ferramenta essencial para promover a dignidade do homem
e para a construir uma sociedade livre, justa e solidária.
O capítulo décimo quarto, “Travestis e transexuais no mercado
de trabalho: Reinserção social e efetivação da cidadania”, de Fernando
de Brito Alves aborda a discriminação que que travestis e transexuais
enfrentam para acessar o mercado de trabalho. Segundo o autor, o
fundamento da discriminação é a heterossexualidade e os padrões binários
de gênero, masculino e feminino, como norma, ou seja, como convenções
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
18 |
sociais. Como decorrência destas premissas, o incremento da inserção no
mercado de trabalho deste segmento social passa pela desconstrução da
normatividade heterossexual e do binarismo de gênero.
O capítulo décimo quinto, “Luta por reconhecimento: O caso
Kayapó Mtyktire”, de Michelle Carlesso Mariano e Alessandro Mariano
Rodrigues partem de uma abordagem que considera o conito uma
questão moral, na qual certas regras obrigatórias, burladas, para uma das
partes pela outra, visam reconstruir a visão dos atores sociais envolvidos,
no caso, os Kayapó Mtyktire. Tal burla evidencia a agência do grupo:
como, o que e por que se posicionam em disputas, situações empíricas em
que mobilizam seus valores, nas quais a própria cultura é utilizada como
bandeira de demanda para sustentar suas respectivas ações.
O capítulo décimo sexto, que encerra a obra, “A proteção internacional
da pessoa com deciência e a agência internacional UN Enable”, de Lucas
Emanuel Ricci Dantas, aborda a proteção internacional da pessoa com
deciência. O foco do artigo recai sobre a preservação da autonomia e da
capacitação da deciência, e procura analisar a desinstitucionalização e o
aumento da capacidade da pessoa com deciência no cenário brasileiro,
com vistas à efetividade da cidadania e ao cumprimento dos papeis
constitucionais assumidos pelo Estado brasileiro.
Esperamos profícua e enriquecedora leitura a todos.
Dr. Laércio Fidelis Dias,
Dr. Ricardo Pinha Alonso,
Me. Ricardo Bispo Razaboni Junior
| 19
1
A PRÁTICA DO RODEIO COMO DIREITO
À MANIFESTAÇÃO CULTURAL EM
SUPOSTA COLISÃO COM A GARANTIA
DE PROTEÇÃO DA FAUNA COMO
DIREITO DIFUSO E COLETIVO
Giowana Parra Gimenes da Cunha
1
Roberto da Freiria Estevão
2
introdução
O Rodeio como prática cultural e esporte brasileiro vem sendo
alvo de diversas críticas por parte da comunidade ambientalista por ter os
animais como elemento fundamental dessa prática desportiva. A discussão
se destaca contemporaneamente por causa do avanço das legislações e
Giowana Parra Gimenes da Cunha é auxiliar jurídica formada pela Escola Técnica de Lins (ETEC de Lins/SP)
- Curso Técnico em Serviços Jurídicos, graduanda em Direito pelo Univem – Centro Universitário Eurípedes de
Marília e pesquisadora do grupo de pesquisa DiFuSo (Direitos Fundamentais Sociais).
Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo. Graduação em Direito pela
Faculdade de Direito da Alta Paulista Tupã (1980). Especialista em Processo Penal pela PUC-SP. Mestre em
Direito (Teoria do Direito e do Estado) pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Doutor
em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Integrante e vice-
líder do grupo de pesquisa “DiFuSO” (Direitos fundamentais sociais). Professor titular do Centro Universitário
Eurípides de Marília – UNIVEM.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p19-38
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
20 |
instituições que tutelam a fauna brasileira, motivo pelo qual mobiliza a
máquina judiciária para decisões e pareceres precedidos de denúncias,
bem como o cancelamento do incentivo à prática do rodeio em diversos
municípios brasileiros.
Apesar de, atualmente, a prática do rodeio ser cerceada por diversas
legislações e instituições que buscam proteger a integridade física dos
animais envolvidos - o denominado Rodeio Legal -, existem práticas que
não atendem a esta proteção, infringindo a legislação pátria e possibilitando
os maus-tratos dos animais, conhecidos como rodeios clandestinos. É neste
sentido que a problemática do trabalho se desenvolve: qual é o limite que
se pode estabelecer para que o rodeio seja classicado como prática cultural
brasileira? A hipótese inicial é a de os maus-tratos aos animais não podem
ser justicados pelo simples exercício do direito cultural.
Deste modo, tem-se como objetivo analisar e expor a possibilidade
da permanência do título de manifestação cultural brasileira à prática do
rodeio, garantindo o direito ao exercício desta sob a condição de não ferir a
integridade física dos animais envolvidos, buscando harmonizar os valores
constitucionais voltados para a proteção da fauna ao direito à manifestação
cultural expressos na concretização do denominado Rodeio Legal.
Preliminarmente analisar-se-á o direito à proteção dos animais
enquanto especialidade do direito ao meio ambiente equilibrado, sua
evolução e os novos paradigmas originados desta proteção. Em seguida
buscar-se-á esclarecer a prática do rodeio enquanto esporte brasileiro, sua
prossionalização e legislações, bem como seu título de patrimônio imaterial
brasileiro. Por m, será explanado sobre a possibilidade de ponderação
entre os princípios analisados sob a luz da Lei da Colisão de Princípios de
Robert Alexy (2008) em sua Teoria dos Direitos Fundamentais.
O presente trabalho se justica pela sua relevância para a conservação
de uma das identidades nacionais dentro de um território de múltiplas
culturas, bem como pela colaboração à tendência de proteção aos direitos
dos animais em sua integridade física, de tutela do Estado e da sociedade,
dentro dos esportes brasileiros. Utilizar-se-á o método dedutivo, e a
pesquisa bibliográca como procedimento metodológico.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 21
O presente trabalho não visa esgotar a temática sucintamente
explanada, e sim colaborar para a expansão do interesse multidisciplinar
relevante para a garantia de direitos constitucionais no atual
neoconstitucionalismo que colabora para a raticação da ideia de um
Estado constitucional diante do surgimento de novos direitos.
dA Proteção à integridAde físicA dos AnimAis
Para iniciar o estudo a cerca de uma analise jurídica-legal sobre
a prática do rodeio como esporte brasileiro é necessário o exame do
envolvimento do componente principal da prática: os animais. Diante da
evolução dos parâmetros que protegem a vida dos serem não humanos, o
tratamento dos animais nas práticas desportivas carecem de atenção aos
olhos de todos implicados no rodeio. Desta forma, vale percorrermos os
pilares da história da relação entre o homem, o meio ambiente e o direito
para explorar as diversas mudanças relacionadas.
Rememorando-nos ao início da civilização humana, mais
precisamente na revolução neolítica, o homem utiliza a natureza como
meio de sobrevivência desenvolvendo técnicas agrícolas e domesticando
animais, resultando no sedentarismo da espécie humana.
Na Idade Média (354 d.C. – 1596 d.C.), a natureza e a humanidade
passam a serem vistas como criação divina. Assim, nota-se que o
teocentrismo trouxe um sentimento de superioridade do animal humano
para com o animal não humano, justamente porqueentendia-se que como
o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, este deveria dominar
todos os outros seres.
Já no período Moderno (1596 d.C. – 1850 d.C.), a evolução
cientíca, excluindo qualquer viés metafísico, trouxe a ideia de que o
homem seria o centro do universo, sendo a razão a “divisora de águas
entre o homem e a natureza.
O fato do ser humano ser o único dotado de racionalidade difundiu
a ideia do antropocentrismo, de maneira que nada fosse superior a razão.
Logo os animais irracionais não poderiam ser detentores de direitos,
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
22 |
podendo no máximo ser protegidos enquanto propriedade. Sob a luz do
pensamento de Descartes (BUCKINGHAM, 2011, p.116), a razão e o
raciocínio eram próprios da existência humana.
Com o surgimento do modelo político-econômico, intitulado
Capitalismo, ao m do século XIX e início do século XX, o cenário mundial
transformou-se em um sistema instrumental em que a produção de bens
em alto escala e o consumismo desenfreado eram baseados na crença de que
os recursos extraídos do meio ambiente seriam innitos. Ou seja, de forma
mais sucinta, a busca pela acumulação de capital contribuiu relevantemente
para a degradação da natureza. Porém, essa falta de conscientização com
o próprio habitat humano foi modicada após o mundo ser devastado por
diversas atrocidades na Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Junto às desastrosas consequências da Segunda Guerra sobreveio a
necessidade de reconstrução da vida como um todo, inclusive do meio
ambiente de onde se extrai todos os meios necessários para sobreviver
(ROCHA et al., 2019, p. 106-107). Com os olhos voltados para o futuro
da coletividade, em 1948 a ONU (Organização das Nações Unidas) foi
fundada, e entre tantos objetivos principais, o Direito Ambiental nasceu
perante as comunidades internacionais com normas jurídicas que visassem
melhorias na qualidade de vida humana.
É neste mesmo sentido que o legislador constitucional brasileiro pela
primeira vez insere no texto constitucional - Constituição Federal 1988 -
um artigo especíco (Capítulo VI, do Título VIII) a m de tutelar o meio
ambiente, positivando:
Art. 225: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
Assim, junto ao Estado de Direito e ao Estado Social, a Carta
Magna de 1988 inovou a legislação pátria com um Estado Ambiental de
Direito. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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humano fundamental, pois decorre do princípio absoluto da dignidade da
pessoa humana, incluído no rol dos direitos de terceira dimensão que são
aqueles atribuídos à fraternidade ou de solidariedade, direitos estes que
têm como característica serem dotados de interesse metaindividuais ou
transindividuais.
Sendo assim, o direito ao meio ambiente é considerado um direito-
dever do homem, pois ao ser titular desse direito, concomitantemente deve
defendê-lo e preservá-lo por ser um bem comum. A percepção de Jeferson
Moreira de Carvalho (2013, p. 25), desembargador do Estado de São Paulo
se desenvolve acerca de uma inexistência de dúvida de que a qualidade
de vida está incluída entre os ns humanos perseguidos, pois é um valor
da vida terrestre que deve ser compreendido como vida harmônica dos
sistemas, incluindo os animais não pensantes e os pensantes.
No que diz respeito à proteção internacional dos animais, e mais
relevante para este trabalho, a primeira sociedade protetora dos animais
surgiu em 1924, na Inglaterra. Já a primeira legislação que teve como
objetivo proteger os animais foi instituída na Colônia de MassachussetsBay,
em 1961. Posteriormente, em 1850 a legislação francesa foi a pioneira
a penalizar a crueldade com animais com multas e pena de privação de
liberdade. É importante denotar também que no art. 14º, da Declaração
Universal dos Direitos dos Animais da Organização das Nações Unidas
para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) - originada em 1978,
na Bélgica, sendo o Brasil signatário -, considera os animais não humanos
como sujeitos de direitos. Essa perspectiva baseia-se na ideia de que os
animais são serem sencientes, considerando também que o homem e o
animal conviveram desde os primórdios da humanidade e esta convivência
teve como base a utilidade dos animais na vida do homem (ONU, 1978).
Nesse diapasão surgem diversos posicionamentos antagônicos sobre
a condição jurídica dos animais na contemporaneidade. Há seguimentos
que armam que animais não humanos são considerados como res e
os animais humanos com status de seus proprietários, como expõe o
Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 82, e as doutrinas pátrias
clássicas. Por outro lado, uma corrente que vislumbra o status dos animais
como sujeitos de direitos, por possuírem uma personalidade ainda não
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
24 |
reconhecida, e que, nesse sentido, fazem jus ao tratamento equânime ao
animal humano (FIGUEIREDO; SALLES, 2015, p. 152), expresso, por
exemplo, na Declaração Universal dos Direitos dos Animais.
Contudo, independendo da corrente a ser seguida, é ideal que os
animais sejam vistos como uma categoria jurídica especial, dignos de
proteção e livres de qualquer forma de maus-tratos. O legislador brasileiro
e a jurisprudência brasileira atualizaram-se sob a nova perspectiva de que
os animais não humanos não devem ser submetidos a qualquer crueldade.
Os animais são representados na defesa de seus direitos pelo Ministério
Público, de acordo com a Lei maior e com o Decreto 24.645/34, bem
como pelos membros das sociedades protetoras dos animais.
A Constituição Federal de 1988 incumbe a toda a coletividade e ao
Poder Público o dever de proteger os animais, expresso em seu artigo 225,
§1º, inciso VII:
VII - proteger a fauna e a ora, vedadas, na forma da lei, as práticas
que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Destarte, é fato que se for comprovada a crueldade durante a prática
do rodeio, congura-se crime previsto no artigo 32 da Lei nº 9.605 de
1998, reconhecida como Lei dos Crimes Ambientais, introduzida no
ordenamento jurídico dez anos após a Constituição Cidadã de 1988,
podendo responder também administrativamente pelo artigo 7º, incisos I
a III da Lei 10.519 de 2002, sendo uma das legislações que regulamenta a
prática do rodeio, e independente da responsabilidade civil segundo artigo
225, §3º da Constituição de 1988.
Diante de uma célebre hermenêutica constitucional, é importante
esclarecer que a Constituição Federal de 1988 objetiva também a proteção
da fauna, apesar de ser a preservação da espécie humana a necessidade da
questão ambiental ser inserida no texto constitucional. Logo, os animais de
rodeio devem ter sua integridade física protegida amplamente, de maneira
que convém comprovar o avanço da legislação infraconstitucional que é
el no sentido de resguardar a proteção dos Direitos dos Animais em toda
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 25
a regulamentação da prática do rodeio, tema de uma análise crítica ao
longo da pesquisa a qual será expressa posteriormente.
do rodeio como mAnifestAção culturAl BrAsileirA
Ao contextualizar a discussão a cerca do rodeio é evidente sua
intensicação por ser atualmente a prática cultural, turística e esportiva
que atraem multidões de apaixonados brasileiros pela tradição sertaneja
enraizada no ceio de diversas famílias pátrias. A análise da prática do rodeio
se faz polemizada pela interação do homem e do animal com relação aos
avanços das legislações que protegem a vida dos seres não humanos. Assim,
é preciso que se investigue de forma astuciosa a m de entender como a
prática do rodeio realmente funciona, bem como a sua origem.
Histórico dA PticA do rodeio
O vocábulo ”rodeio” é original da língua espanhola “rodear”, que
signica juntar o gado na atividade agropastoril do campo. Apesar do
costume da lida com o gado ter iniciado na Espanha, essa atividade se
desenvolveu amplamente nos Estados Unidos da América, no século
XIX, e foi a partir desta forma de manejo do gado que a prova de
montaria surgiu.
Após a guerra contra o México, os colonos norte-americanos ao
colonizar o sul do país levaram durante meses o gado para o novo território,
e quando os cavaleiros paravam para descansar, competiam entre si ao
montarem no dorso dos animais, vencendo aquele que permanecia por
mais tempo.
O rodeio foi conhecido como modalidade esportiva no século XX
nos EUA, e em 1929 foi criada a Associação de Rodeio da América (Rodeo
Association of America - RAA), o qual capacitou juízes para as provas e
começou a estruturar toda a prática do rodeio, da mesma maneira que
outras associações foram se desenvolvendo.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
26 |
No Brasil não foi diferente. A montaria dos animais teve inicio
nas pousadas dos vaqueiros que transportavam o gado para vários
lugares do Brasil, em que os peões montavam no dorso dos animais para
competirem entre si o maior tempo de resistência. A primeira prova de
montaria no Brasil aconteceu em Barretos- onde hoje é uma das maiores
festas de rodeio do mundo -, em 1947 durante uma quermesse realizada
pela Prefeitura Municipal.
Certamente, de acordo com o estudo da historicidade do
rodeio, muitos animais foram maltratados, pois inicialmente não havia
preocupação com a integridade física dos animais. Felizmente, o rodeio,
ao se prossionalizar, começou a ser praticado com total atenção ao bem
estar físico dos animais, e esse avanço se deu por meio da sensibilização
à tendência da proteção aos direitos dos animais por meio do poder
legislativos e das instituições responsáveis pela scalização desta prática.
No Brasil, o rodeio permaneceu como esporte amador até o ano
de 2001, pois de uma forma de trabalho e lazer agropecuário, a prática
evoluiu para o reconhecimento de atividade esportiva após ser sancionada
a Lei Federal nº 10.220 em 2001, pelo então Presidente da República
Fernando Henrique Cardoso. Tal legislação positiva regras gerais acerca
da atividade do peão de rodeio equiparando-o a atleta prossional
(BRASIL, 2001).
Ainda em 2001, foi criada a Confederação Nacional de Rodeio
(CNAR), que estabelece vínculo entre as Federações Estaduais promotoras
dos eventos junto ao Ministério do Esporte e ao Governo Federal.
Atualmente, 16 estados brasileiros, inclusive o estado de São Paulo,
mantém Federações de Rodeios.
Em razão do crescimento da prática do rodeio no Brasil, bem como
a necessidade do ajuste aos apelos das entidades protetoras dos animais, a
regulamentação da prática passou a ser imprescindível, motivando a sanção
da Lei Federal nº 10.519 em 17 de julho de 2002. A referida legislação dispõe
sobre a scalização da defesa sanitária animal na realização do rodeio, bem
como as exigências quanto a infraestrutura das arenas, ao transporte dos
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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animais, à lida com os animais, a obrigatoriedade da presença do médico
veterinário e os apetrechos técnicos utilizados na prática (BRASIL, 2002).
No que diz respeito ao uso dos apetrechos técnicos vale observar
o constante avanço de pesquisas para o melhoramento do uso durante
o rodeio visando ao não maltrato com o animal de rodeio. Entre estas
pesquisas destacam-se os trabalhos cientícos realizados pelo Projeto
Sedem, do médico veterinário e professor Orivaldo Tenório de Vasconcelos,
do Departamento de Patologia Veterinária da Faculdade de Ciências
Agrárias e Veterinárias (FCAV), campus da UNESP de Jabuticabal, que
é conveniado com a Fundação de Estudos e Pesquisas em Agronomia,
Medicina Veterinária e Zootecnia – Funep, desenvolvida por 10 anos,
que, em suma, resultou nas seguintes conclusões: a) não há qualquer
relação do sedém com os testículos dos animais; b) ausência de lesões
histopatológicas nos animais de rodeio; e c) sugestão clínica de ausência
de dor ou mesmo de qualquer outro fator estressante com a presença do
sedém (VASCONCELOS et al, 2000). Convém esclarecer que sedém é
uma espécie de cinta, normalmente confeccionada em lá de carneiro, que
é passada na altura da virilha do animal.
Desta forma, é denominado Rodeio Legal o que estiver de acordo
com as legislações vigentes e for autorizada sua realização após a scalização
da Defesa Agropecuária dos Estados. Assim, a constante evolução e o
prossionalismo da prática do rodeio tem o único objetivo de cada vez mais
preservar a integridade física dos animais, os verdadeiros atletas da festa do
peão, os quais recebem dignos tratamentos de grandes investimentos.
rodeio como PAtrimônio culturAl imAteriAl BrAsileiro
Além do fato de se tornar esporte ocialmente considerado no Brasil,
o rodeio é uma manifestação da cultura brasileira por ser a representação
de um modo de “criar, fazer e viver” da população sertaneja, de acordo a
denição de patrimônio cultural brasileiro expresso no artigo 216, inciso
II da Constituição Federal.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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A partir deste entendimento, é relevante para este estudo a
emergência do Direito Cultural presente nesta temática. Com as ebulições
sociais dos movimentos anarquistas e socialistas, tem-se a necessidade de o
Estado manifestar-se por meio de ações positivas para garantir os direitos
de liberdades da denominada primeira dimensão de direitos fundamentais,
fazendo nascer a segunda dimensão de direitos fundamentais: os sociais,
culturais e econômicos (BONAVIDES, 2016, p. 283).
Os Direitos Culturais estão previstos no artigo 215 e seguintes da
Constituição Cidadã de 1988, que são aqueles que, segundo Humberto
Cunha (2000, p. 34), afetos às artes, às memórias coletivas e ao repasse de
saberes, asseguram a seus titulares o conhecimento do passado, interferência
ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes
ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana.
Ademais, a identidade cultural é classicada como um dos conteúdos
impostos pelos limites materiais e normativos da vida humana expressos
por Mércia Miranda Vasconcellos (2010, p. 135), sendo a materialidade
da vida, em sua concretude como modo de realidade e reprodução da vida,
objeto de estudo da Filosoa da Libertação, consoante o pensamento de
Enrique Dussel, de grande relevo na contemporaneidade por disseminar
uma losoa que reete sobre a necessidade de denir uma identidade
latino-americana, da qual podemos extrair da obra “Oito ensaios sobre a
cultura latino-americana e libertação” de 1997, sua sublime citação:
Nesse sentido, a cultura é uma das dimensões da nossa existência,
intersubjetiva e histórica, um complexo de elementos que
constituem radicalmente nosso mundo, nosso sistema concreto
de signicação que não se transmite, assimila-se. (DUSSEL,
1997, p. 38).
Considerando que a pecuária ajudou a traçar os caminhos da
ocupação do território nacional, o que compôs parte essencial das
práticas sociais do universo rural de todas as regiões do Brasil foram as
práticas lúdicas do mundo rural americano desde o período colonial, as
brincadeiras, disputas e rituais com equinos e bovinos, sempre no centro
da cultura agropastoril brasileira. Cumpre observar, ainda, a importância
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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da construção sócio-cultural do país nas expressões formadas no cenário
nacional junto aos registros históricos e a incorporação do rodeio como
representação do povo sertanejo no cotidiano e na cultura brasileira. Fruto
da construção e miscigenação do rodeio estadunidense ao país de múltiplas
culturas, o rodeio é, signicativamente, uma prática de manifestação
cultural brasileira.
Deste modo, é válido salientar que a Lei Federal nº 13.364 sancionada
em 29 de novembro de 2016, especicamente em seu artigo 1º, eleva o
rodeio à condição de manifestação da cultura nacional e do patrimônio
cultural imaterial, com a intenção de colocá-la sob o abrigo do artigo 215,
parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2016).
O valor da memória é essencial à ideia de patrimônio cultural,
que projeta nos dias de hoje a presença da origem da identidade social
de diversos estilos de vida. A autora Maria Amelia Jundurian Cora traz
uma perspectiva de que a valorização das tradições e costumes podem ser
entendidas como uma forma de reação e de resistência aos males da cultura
descentralizada da globalização, bem como conceitua patrimônio cultural
de natureza imaterial:
O patrimônio imaterial é considerado uma cultura em
transformação, e não estática, como os patrimônios materiais.
Para que o patrimônio imaterial exista, é necessário uma
preocupação com a transmissão do saber e, consequentemente,
com a manutenção da sua representatividade e da sua identidade
em relação à apropriação dos signicados e das formas de
produção das manifestações e dos saberes culturais, o que permite
sua continuidade. (CORA, 2014, p. 92).
Em razão daquilo que foi apresentado, a prática do rodeio tem
signicado de identidade da população sertaneja pelo histórico do
desenvolvimento do país juntamente ao estilo de vida da comunidade
rural e simbolizada também nas áreas urbanas, principalmente no interior
dos estados brasileiros. A representação do uso do chapéu, do toque do
aclamado berrante e do som da viola é símbolo de uma identidade cultural
enraizada de tradições familiares, bem como o rodeio como esporte
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
30 |
brasileiro. Assim, aprecia-se os dizeres do Ministro Edson Fachin em seu
voto na ADIn nº 4.983/Ceará de 2016:
O presente caso precisa ser analisado sob um olhar que alcance
a realidade advinda da população rural. É preciso despir-se de
eventual visão unilateral de uma sociedade eminentemente urbana,
com produção e acesso a outras manifestações culturais, produtos
e serviços para se alargar ou olhar e alcançar essa outra realidade
(STF, 2016).
Destarte, o estudo ratica a necessidade da permanência da prática
do rodeio como manifestação cultural brasileira digna de proteção
em seu pleno exercício, devendo o Estado, garantir, apoiar e incentivar
sua valorização e difusão, como disposto no “caput” do artigo 215 da
Constituição Federal de 1988.
PonderAção entre os PrincíPios
Diante desta temática, destacam-se dois direitos constitucionais de
aclamada relevância para o desenvolvimento do homem, que de sua grande
natureza axiológica são dignos de consideração principio lógica, sendo o
direito ao meio ambiente equilibrado, especicamente a proteção da fauna
expresso no artigo 225, inciso VII da Constituição Federal, e o direito
a manifestação cultural expresso na Carta Magna em seu artigo 215. Se
estes princípios constitucionais forem analisados de maneira individual e
como absolutos, um poderá excluir o outro. Por isso é relevante a análise
da ponderação destes princípios como forma de permanência do rodeio
como manifestação cultural brasileira com devidas atenções à integridade
física dos animais.
Os princípios constitucionais abrangem parte dos aspectos relevantes
para uma tomada de decisões, pois o ordenamento jurídico estabelece na
realização de suas nalidades a preservação de valores. É nesse sentido
que encontra-se a função dos princípios. Ao interpretar os dispositivos
constitucionais deve-se sempre analisar a versão do seu signicado de
acordo com os valores que os norteiam. Desta forma, Humberto Ávila
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 31
dene o princípio como dever de otimização, não tendo pretensão de gerar
uma solução especíca, mas de contribuir, ao lado de outros valores, a
tomada de decisões (ÁVILA, 2009, p. 77). Logo, os princípios possuem
uma pretensão de complementariedade entre eles.
Neste viés, vale destacar que não há hierarquia entre princípios,
pois estão abstratamente no mesmo nível. Porém, em determinado caso
concreto um princípio acaba por ter maior peso sobre outro. Destarte,
é neste critério que busca-se por m, a adequação da temática à Lei de
Colisão de Princípios da Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy,
inuente lósofo do Direito alemão, em que analisa-se o sopesamento
entre o direito-dever à proteção da fauna com o direito a manifestação
cultural a cerca da prática do rodeio.
A teoria de Robert Alexy sobre direitos fundamentais defende que
estes têm carácter de princípios, e os considera como norma de dever ser
ideal, conceituando-os como mandados de otimização. Assim, expõe que,
eventualmente, os princípios podem colidir diante de um caso concreto,
sendo necessária uma solução de ponderação entre eles. Ocasionalmente, o
que ocorre é a precedência de um princípio em face de outro sob especíca
condição de um caso concreto (ALEXY, 2008, p. 95). Todavia, o princípio
que cede não será declarado inválido, tão pouco introduzido a uma cláusula
de exceção como ocorre no conito de regras.
À luz da teoria de Robert Alexy, sendo a prática do rodeio o caso
concreto do cenário de sopesamento entre os princípios positivados no
artigo 215 e artigo 225 inciso VII, da Lei Fundamental de 1988, a condição
para que o rodeio seja considerado e protegido como manifestação cultural
e patrimônio imaterial brasileiro deve ser a inexistência de maus-tratos aos
animais. Reforça-se assim, a ideia de inexistência da relação absoluta de um
princípio sobre o outro, de maneira que, se esta condição não for cumprida,
o direito à proteção da fauna precederá sob o direito à manifestação cultural,
independentemente de sua signicação de identidade social e cultural.
Sob este entendimento, analisa-se os interesses envolvidos na Projeto
de Emenda Constitucional nº 96, que em 6 de junho de 2017 instituiu o
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
32 |
§7º ao artigo 225, que versa sobre o direito ao meio ambiente equilibrado,
dispondo:
§ 7º Para ns do disposto na parte nal do inciso VII do § 1º deste
artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem
animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o §
1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem
de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro,
devendo ser regulamentadas por lei especíca que assegure o bem-
estar dos animais envolvidos. (BRASIL, 1988, artigo 225).
O Ministro Luiz Fux, no bojo do seu voto do julgamento da
ADIn nº 4.983-CE de 6 de outubro de 2016, em que foi declarada a
inconstitucionalidade da Lei 15.299-2013 que regulamentava a vaquejada
do Estado do Ceará como prática desportiva e cultural, observou que se há
colisão de princípios, de maneira que,ou o Judiciário faz a ponderação, ou
esta forma de solução do conito ocorrerá por meio de legislação.
Aparentemente, a ponderação entre os princípios constitucionais em
destaque foi positivado como norma constitucional. Logo, deixa claro a
condição de proibição às possíveis existências de maus-tratos em práticas
esportivas clandestinas.
Sendo assim, é necessário a busca pela ampliação do Rodeio Legal em
todas as partes do território nacional, levando o conhecimento da existência
desta prática motivada pela proteção à integridade física dos animais
antes, durante e depois dos eventos, e consequentemente, a eliminação
dos rodeios clandestinos que são praticados sem atenção aos parâmetros
legais e livres de scalizações, comuns nas cidades do interior dos estados,
onde existe a possibilidade de maus-tratos aos animais. Almeja-se, assim,
a busca por ampliação das denúncias e atuações dos órgãos responsáveis,
entre estes o Ministério Público.
considerAções finAis
Diante do exposto, conclui-se que a prática do rodeio deve ser
analisada sob a ascendência de princípios constitucionais, que pela natureza
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 33
principiológica de complementariedade entre eles na tomada de decisões,
reforçar-se-á a ideia de que não devem ser analisados como absolutos.
Destarte, o rodeio enquanto prática signicativa de representação do
povo sertanejo brasileiro mediante a historicidade da cultura agropastoril
no desenvolvimento do país, é considerado uma forma identidade
cultural brasileira. Assim, o rodeio é digno de ter sua prática protegida
enquanto exercício da manifestação cultural brasileira, conforme artigo
215 da Constituição Federal de 1988 sob o título de patrimônio cultural
imaterial brasileiro.
Todavia, a prática cultural, para permanecer viva na sociedade,
deve atualizar-se conforme as tendências sociais a m de trazer novas
signicações ao seu exercício. Deste modo, justica-se a prossionalização
do rodeio pela busca incessante de proteger a integridade física dos
animais envolvidos, de maneira que esta proteção esteja presente desde
o treinamento do animal até o nal do seu desenvolvimento no rodeio.
Os maus-tratos aos animais não devem ser espetáculo aos olhos humanos,
independente da signicação cultural da prática do rodeio.
As legislações que almejam proteger a fauna brasileira têm fulcro
no Estado Ambiental de Direito, inaugurado na Constituição Federal de
1988 em seu artigo 225, em especial o inciso VII. Deste modo, o rodeio
atualmente é disciplinado por legislações federais especícas e scalizado
por órgãos responsáveis pela proteção dos animais, a m de se adequar ao
novo objeto jurídico que tutela a integridade física do ser não humano por
ter um status jurídico especial no ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, mediante ponderação entre os princípios constitucionais
intrínsecos na atividade do rodeio, observa-se que esta prática desportiva
deve manter-se com título de patrimônio cultural imaterial desde que esteja
condicionada à proteção pela integridade física dos animais envolvidos
com devida respeitabilidade às legislações e procedimentos de scalizações,
sob a denominação do Rodeio Legal.
Entretanto, se o rodeio não for limitado à condição de proteção à
integridade dos animais sem as devidas atenções às exigências legais, não
deve nem mesmo ser titulado como exercício do direito cultural brasileiro.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
34 |
Reforça-se assim a necessidade de extinção dos rodeios clandestinos com
atuação efetiva do Poder Público, bem como a análise da existência do
Rodeio Legal.
Deste modo, resta armar que a cultura brasileira deve ser
emoldada às novas tendências de proteção de novos objetos jurídicos,
bem como o direito se emolda às necessidades da proteção ao exercício
das manifestações culturais brasileiras. Logo, os esportes e manifestações
culturais que envolvem animais devem ter total atenção às legislações que
protegem a fauna brasileira, para que permaneçam protegidos enquanto
esporte e exercício cultural, pois os maus-tratos aos seres não humano
não devem ser objeto de divertimento do homem por meras justicativas
antropocêntricas.
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2
O CASO NARUTO E OS NOVOS DESAFIOS
DO DIREITO NA INTERPRETAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
iago Medeiros Caron
1
introdução
O presente estudo, utilizando-se do método indutivo, busca a
partir da análise do caso nº 15-cv-04324-WHO, Naruto, et. al. (Paintis)
v. David John Slater, et. al. (Defendants) julgado em corte dos Estados
Unidos, analisar os novos desaos do direito na interpretação dos direitos
fundamentais, objetivando ao nal, demonstrar que referida interpretação
não perpassa exclusivamente pela análise dos direitos fundamentais da
pessoa humana, resvalando em assuntos outros que estão intimamente
relacionados.
Para tanto, alguns caminhos necessariamente deverão ser percorridos.
Em um primeiro momento, promover-se-á uma breve digressão sobre o
caso em comento, a m de que se permita sua adequada compreensão, a
partir da citação de elementos da sentença proferida em seu julgamento.
Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília, UNIVEM (2018);
Advogado (desde 2008); Conselheiro Regional de Prerrogativas (11ª Região, Marília/SP) da Ordem dos
Advogados do Brasil, Seção de São Paulo.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p39-52
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
38 |
Em um segundo momento, uma vez que o caso trata-se da busca
de reconhecimentos de direitos de personalidade a animal não humano,
discorrer-se-á sobre a evolução dos direitos fundamentais, permitindo que
se tenha uma visão sobre esse caminho percorrido até o reconhecimento da
dignidade humana como pedra fundamental do ordenamento brasileiro,
além de tratar da teoria do ecologismo personalista, que tem por objetivo
superar o ideal antropocentrista, a m de permitir a equiparação do homem
aos demais seres vivos.
Já em um terceiro momento, proceder-se-á a análise dos novos desaos
que o direito vem enfrentando na interpretação dos direitos fundamentais,
citando alguns casos do ordenamento jurídico nacional, bem como do
direito comparado, a m de demonstrar tais desaos, trazendo ao nal as
conclusões do autor sobre o tema proposto.
Por m, necessário consignar que a presente pesquisa se dará a
partir da análise de julgados de cortes nacionais e internacionais, além de
contar com a utilização de obras doutrinárias e de artigos de renomados
articulistas, porém, sem deixar-se de apontar a mesma se restringirá ao
plano técnico-jurídico.
o cAso nAruto – Case nº 15-Cv-04324-WHO, narutO, et.
al. (Paintiffs) v. DaviD JOHn slater, et. al. (DefenDants)
Recentemente, o professor Vladimir Passos de Freitas (2018) em
artigo publicado na revista Consultor Jurídico, trouxe a baila discussão
de relevo referente “[...] ao reconhecimento de animais como sujeito
de direitos [...]”.
Verica-se pela leitura do artigo escrito pelo professor Freitas (2018),
que no ano de 2008 o repórter David. John Slater resolveu dirigir-se até
uma reserva orestal na Indonésia, para retratar os macacos de crista, espécie
em perigo extinção. Continua narrando que o fotografo teria deixado uma
de suas câmeras em um tripé, com disparador, de fácil acesso aos primatas,
que em um ato de curiosidade passaram a dispará-loretratando inúmeras
fotos dos animais que aí se encontrava.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 39
Continua Freitas (2018), narrando que a partir de 2011 tendo
o fotografo dito que as fotos publicadas por si na Caters News Agency
tinham sido seles tiradas pelos próprios primatas, fez com que as imagens
viralizassem sendo que “Uma [das fotos que] [...] suscitou mais simpatia e
atenção, era a de um macaco de seis anos, que depois veio a ser chamado de
Naruto”, tendo, a partir de então, se tornado uma celebridade instantânea
na rede mundial de computadores.
Contudo, uma simples foto passou a tomar contornos jurídicos
inesperados. De acordo com Freitas (2018), após a publicação da imagem,
esta passou a ter inúmeros acessos e compartilhamentos nas redes sociais e
rentabilizando grandes quantias em dinheiro o que garantiu ao fotógrafo
que parte dos valores arrecadados lhe fosse repassado.
Sendo referidas imagens publicadas pelo Wikimedia Foundation, o
fotografo passou a não receber pela sua utilização e quando solicitado que
tais imagens fossem retiradas ao ar, não foi atendido sob o argumento de
que não humanos não detém direitos autorais, caindo às imagens realizadas
em domínio público (FREITAS, 2018) uma vez que o animal não seria
capaz de direitos e deveres na ordem civil (CC-2002, art. 1º).
Objetivando tutelar eventual direito sobre as imagens, Slater “[...]
tentou registrar as fotos no Escritório de Direitos Autorais dos Estados
Unidos (U.S. Copyright Oce) [...]” (FREITAS, 2018), que em que pese
não seja ato imperioso para receber a proteção necessária (Cf. art. 18 da
Lei nº 9610/1988), trata-se de um instrumento que garante segurança aos
direitos do autor (Cf. art. 17 da Lei nº 5988/1973), xando marcos legal
para que se faça prova da criação da obra, registo que foi peremptoriamente
negado pelo órgão americano, pois, “[...] trabalhos de animais não podiam
ser recepcionados naquela repartição pública” (FREITAS, 2018).
Pois bem. No ano de 2014 a empresa Blurb Inc. de São Francisco
promoveu a publicação das fotos em questão, reconhecendo o direito de
Slater de receber valores oriundos de direitos autorais pelo uso das imagens,
o que fez com que a sociedade de proteção dos animais PETA (People
for the Ethical Treatment of Animals) promovesse ação contra Slater e a
empresa Burb, reclamando que “[...]os rendimentos das fotos deveriam ser
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
40 |
direcionados a favor de Naruto e outros macacos da reserva em Sulawesi,
cando ela, PETA, como administradora de um fundo a ser criado para tal
m” (FREITAS, 2018).
Tal ação fora proposta perante o Northern District of California sendo
julgado pelo juiz William H. Orrick que proferiu a sentença do caso em
janeiro de 2016 (USA, 2016).
De acordo com uma leitura da sentença (e a partir de uma tradução
livre desta), observa-se que o magistrado americano apontou que a lei de
direitos autorais americana, protege:
[...] obras originais de autoria xadas em qualquer meio tangível
de expressão, agora conhecidos ou desenvolvidos posteriormente, a
partir do qual podem ser percebidos, reproduzidos ou comunicados,
diretamente ou com o auxílio de uma máquina ou dispositivo”.
17 U.S.C. § 102 (a). A “Fixação” do trabalho no meio tangível
de expressão deve ser feito “por ou sob a autoridade do autor. 17
U.S.C. § 101. (USA, 2016).
De acordo com a sentença, pode-se concluir que houve a alegação de
que a lei norte-americana dispôs “obras de autoria”, justamente objetivando
dar uma maior exibilidade à interpretação do termo permitindo com isso
a interpretação de que “[...] a lei de direitos autorais está disponível para
qualquer pessoa, incluindo um animal, que cria um ‘trabalho original de
autoria’ [...]” e que assim, o primata Naruto seria o titular dos direitos
autorais decorrentes da imagem que reproduziu (USA, 2016).
Contudo, lançando mão da aplicação da ratio decidendi estabelecida
no julgamento do case Cetáceo Cmty. v. Bush, 386 F.3d 1169, 1175 (9º
Cir. 2004), onde um advogado entrou com um processo, em nome dos
cetáceos pela violação (a) do Ato das Espécies Ameaçadas de Extinção,(b)
a Lei de Proteção aos Mamíferos Marinhos, e (c) ao Ato de Política,
apontou o magistrado que em referido precedente, o Nono Circuito
cuidou de analisar a linguagem de cada uma das legislações apontadas
como violadas, para com isso estabelecer se estas teriam concedido
legitimidade ativa a animais para gurarem no polo de uma ação,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 41
concluindo que nenhum dos diplomas questionados o teria concedido
referida legitimidade (USA, 2016).
De acordo com a sentença,
O tribunal considerou que “se o Congresso e o Presidente pretendia
dar o passo extraordinário de autorizar animais, bem como pessoas
e entidades legais para processar, eles poderiam, e deveriam, ter dito
isso com clareza [...]”. (USA, 2016).
No que pertine ao caso em julgamento – direitos autorais reclamados
pelo primata– o juiz Orrick, lançando mão de outros precedentes, concluiu,
a partir da ratio destes que a autoria somente se pode atribuir a um ser
humano
2
e no que pertine ao registro da obra, especicamentenos termos
do precedente Trade-Mark Cases, 101 EUA 94 (1879) e Burrow-Giles que
somente será registrado “[...] trabalho original de autoria, desde que o
trabalho tenha sido criado por um ser humano’ [...]” (USA, 2016).
Sob tal fundamento, julgou improcedente a demanda proposta, vez
considerou não ter o primata, legitimidade para pretender direitos autorais
sobre as imagens do Monkey Seles (USA, 2016), pornão lhe reconhecer
como titular de direitos inerentes ao homem.
Irresignada com a decisão a entidade promoveu o competente
recurso ao United States Courts for the Ninth Circuit, tendo, contudo, antes
do julgamento, chegado as partes a uma composição quanto ao litígio
(FREITAS, 2018). De acordo com nota conjunta publicada no site da
entidade (PETA, 2017) aponta que as partes chegaram a um acordo e que
o caso permitiu a discussão de questões relevantes para o reconhecimento
de direitos dos animais não humanos devendo ser reconhecidos a estes (no
caso, os macacos), direitos fundamentais apropriados a sua espécie.
Freitas (2018) analisando o fato em questão aponta claramente
que “[...] o centro da discussão está no reconhecimento de animais como
sujeito de direitos, movimento que vem crescendo nos últimos anos [...]”.
Trago alguns dos precedentes consignados na decisão: Aalmuhammed v. Lee, 202 F.3d 1227, 1234 (9 Cir.
2000); Urantia Foundation v. Maaherra, 114 F.3d 955, 958 (9º Cir. 1997); especicamente interpretando o ato
de direitos autorais do EUA:Inhale, Inc. v. Starbuzz Tobacco, Inc., 755 F.3d 1038, 1041 (9º Cir. 2014); Garcia,
786 F.3d em 741-42.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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E o autor, concluiu sua análise, apontando:
Como se vê, a sociedade vai em busca de novos rumos e o Direito
irá se adaptando às transformações sociais, por vezes rompendo
com tradições seculares. Como se vê, o caso do macaco Naruto vai
muito além de uma situação engraçada. (FREITAS, 2018).
Veja que o doutrinador propõe que a sociedade caminha para
novos rumo a se adaptar as transformações sociais, rompendo assim
com tradições seculares, a m de reconhecer os animais como sujeitos de
direitos, interpretação esta realizada de forma extensiva, uma vez que não
há no ordenamento permissivo legal que os reconheça como tal.
Contudo, bem se sabe que somente os direitos fundamentais
possuem tal interpretação extensiva, justamente para assegurar-lhes uma
tutela mais efetiva.
Assim, para que haja uma melhor compreensão sobre o
assunto, promover-se-á ainda que de forma supercial, uma análise
do desenvolvimento dos direitos fundamentais e da própria teoria do
ecologismo personalista.
os direitos fundAmentAis e o ecologismo PersonAlistA
Os direitos fundamentais, sem promover aprofundamentos teóricos,
são os direitos humanos existentes na esfera internacional e que são
inseridos no documento de constituição de um Estado, passando a ter
ecácia interna, direitos estes dotados de importância cada vez maior.
Bem se sabe que em sua evolução os direitos humanos passaram
por um longo processo de desenvolvimento e progressivo processo
de constitucionalização, com inequívocos avanços e retrocessos bem
delineados, desenvolvimento este que se deve em grande parte ao próprio
desenvolvimento de uma consciência moral coletiva (GALLO, 1973, p. 31).
O desenvolvimento destes direitos pode ser vericado em duas fases
distintas: (a) em na primeira fase, ocupou-se com a ampliação do número
de direitos tutelados; e (b) na segunda voltou-se a atenção ao seu campo
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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de aplicação, promovendo um aumento circunstancial em seu espectro de
atuação a m de garantir-lhes maior efetividade. Contudo o reconhecimento
do homem como ser dotado de direitos e consequentemente de dignidade,
fundamento primordial dos direitos humanos, pode ser vericado em três
momentos distintos.
Em um primeiro momento, o cristianismo contribuiu de forma
efetiva para que houvesse a difusão do direito natural, que exigia o respeito
à pessoa humana e consequentemente a sua dignidade;em momento
posterior, a losoa foi responsável por conferir o aporte teórico necessário
à referida à discussão, permitindo que a partir de então, o ser humano se
tornasse objeto de sua própria reexão, trazendo a lume a racionalidade do
ser (COMPARATO, 2015, p. 14-16), permitindo, portanto, que houvesse
a idealização de uma pessoa “[...] individualmente, dotada de direitos –
direitos subjetivos.” (BARONGENO, 2009, p. 24).
Por m em um terceiro momento, a ciência permitiu que o homem
novamente tomasse assento de destaque a partir das descobertas de
Darwin, que por sua teoria evidenciou que o homem esta no ápice da
cadeia evolutiva não por acaso, mas em razão do próprio encadeamento de
um processo evolutivo que “[...] obedece, objetivamente, a uma orientação
nalística, inscrita na própria lógica do processo, e sem a qual a evolução
seria racionalmente incompreensível [...]” (COMPARATO, 2015, p. 16).
Quanto à tutela dos direitos humanos, é de citar-se que estes
passaram a ser tutelados ainda que de forma embrionária a partir do sistema
protetivo inglês, formado pela Magna Charta Libertatum (1215), Petition
of Rights (1628), Habeas Corpus Act (1679), a Bill of Rights inglesa (1689), e
o Establishment Act (1701). Arma-se que tutelados de forma embrionária
uma vez se tratavam de leis destinada à tutela somente do povo inglês, mas
que serviram de inspiração elaboração de outros instrumentos de tutela
dos direitos humanos.
Assumem tais direitos característica de verdadeiros direitos
fundamentais do homem, a partir da Declaração de Direitos do Bom
Povo da Virgínia (1776) que antecedeu em poucos dias a Declaração
de Independência dos Estados Unidos da América (1776), documentos
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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de extrema relevância neste caminho pelo reconhecimento e
constitucionalização dos direitos humanos, vez que partiram da premissa de
que todos os homens foram criados iguais, dotados de direitos inalienáveis
que deveriam ser tutelados, superando o ideário inglês.
Não se pode deixar de citar nessa senda a importância exercida já no
século XX pelas Constituições do México (1917) e de Weimar (1919), que
se ocuparam de implementar em seus textos a tutela de direitos sociais,
ultrapassando a mera tutela pelos direitos individuais.
A internacionalização da luta pelos direitos humanos deu-se somente
a partir de 1919, com a primeira guerra momento em que surgiram as
primeiras entidades de cunho internacional voltadaàtutela de tais direitos.
Em que pese tenha este movimento arrefecido após o termino desta guerra,
tomou novos contornos com o início da segunda guerra mundial, período
qual o Terceiro Reich escreveu nas páginas da história, o pior momento
vivido pelos direitos humanos. Salutar citar que nesse momento houve a
criação da Organização das Nações Unidas – ONU, justamente destinada
a tutelar a dignidade das pessoas humanas de todo o globo terrestre.
Nessa luta pela internacionalização da tutela de tais direitos, é válido
apontar a criação de Cortes supranacionais para tutela de direitos humanos
vg. a Corte Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, fator que
contribuiu inequivocamente com a superação do conceito clássico de
soberania, ao permitir que um país se sujeitasse a um poder jurisdicional
supranacional.
Assim, verica-se que os direitos humanos (e consequentemente
fundamentais), passaram por um longo caminho de armações e
retrocessos, tendo sido devidamente reconhecidos no Brasil com a CRFB-
1988 que guindou a dignidade a preceito fundamental do Estado, além de
criar um rol extenso de direitos fundamentais a serem tutelados.
Ao lado do desenvolvimento progressivo dos direitos humanos,
vericou-se um grande movimento pelo desenvolvimento e reconhecimento
dos direitos dos seres não humanos, que se se intensicou a partir
da percepção de que o homem exercia sobre a natureza um domínio
incontrolado e de verdadeira exclusão, qualicando-se a natureza como
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 45
uma “escrava generosa”, eis que neste momento inicial, havia um otimismo
progressista quanto ao futuro (ainda incerto) sobre a própria evolução do
homem como instrumento de destruição da natureza (BALLESTEROS,
1995, p. 14-17).
Não se pode olvidar que neste caminho de usurpação da natureza
as fases de desenvolvimento da própria humanidade contribuíram para
degradação do meio ambiente, a partir de uma ideia infundada de que os
recursos naturais permaneceriam disponíveis de forma ilimitada.Contudo o
uso despótico da natureza pelo homem, fez com que o cenário se alterasse
drasticamente, quando se vericou que os recursos naturais cavam cada vez
mais escassos, exigindo assim a superação do pensamento antropocentrista
para o reconhecimento da dependência do ser humano da natureza.
Assim, a partir da evolução de algumas tradições religiosas como o
hinduísmo, budismo, taoísmo etc., o desnivelamento até então existente
entre o ser humano e a natureza passou a ser abandonado (mesmo que
houvesse uma hierarquia no que pertine a manutenção da vida do ser
humano), enfatizando-se assim a necessidade de respeito por todo ser vivo
(BALLESTEROS, 1995, p. 22-23), o que acabou por permitir que o ser
humano fosse equiparado às demais espécies de seres vivos, o que permitiu
a discussão de se estender aos demais seres vivos, o reconhecimento de
direitos personalíssimos da pessoa humana e consequentemente, a própria
categorização de direitos fundamentais a estes, a partir superação do
imperativo categórico kantiano.
Contudo, o reconhecimento da equiparação e consequente
interdependência entre o homem e a natureza trouxeram a lume novos
desaos a ser considerado na interpretação dos direitos fundamentais, o
que será analisado no próximo ponto.
os novos desAfios do direito nA interPretAção dos direitos
fundAmentAis
Atualmente, temas de alta relevância quanto aos direitos fundamentais
relacionados à interdependência existente com a natureza, tem permitido
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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profundas reexões sobre a matéria, desaando a própria interpretação dos
direitos fundamentais.
De início, não há como deixar de citar o próprio caso que deu início
a este estudo, onde o objetivo era que desse o judiciário uma interpretação
extensiva à legislação existente, a m de garantir ao primata Naruto, direitos
de personalidade no que pertine a produção artística de fotograas, mas
que, contudo, a legislação americana atribuía somente ao ser humano.
Nessa senda, ao aprofundar o estudo pôde-se vericar vertentes
doutrinárias que objetivam conferir verdadeira proteção jurídico-
constitucional aos animais, havendo discussões que apontam no sentido
de se conferir aos animais, além da mesma natureza dos seres humanos,
a possibilidade de serem reconhecidos como seres dotados de dignidade,
titulares de direitos fundamentais próprios (SARLET, 2016a).
E como era de se esperar, a judicialização de discussões neste sentido,
tornam-se recorrentes não só no Brasil como em outros países.
Cite-se a exemplo que no Brasil o STF promoveu ao julgamento
de casos que discutiam a “rinha do galo”, a “farra do boi” e a própria
vaquejada (SARLET, 2016a), como patrimônios culturais do brasileiro
(observando as peculiaridades de cada estado que desenvolvem referidas
atividades), havendo ainda recente julgamento proveniente do Tribunal
Constitucional espanhol, que tratou da tauromaquia a luz dos dispositivos
constitucionais espanhol (ESPANA, 2016).
Porém, ao analisar as decisões proferidas pelas Cortes supremas de
cada país, tem-se que a ratio decidendi é totalmente divergente.
Iniciando pela Suprema Corte brasileira,vericou-se que a mesma
afasta peremptoriamente alegações no sentido de que tais atividades –
como “rinha do galo”, “farra do boi” e a vaquejada – reetiriam mera
manifestação cultural, ao passo que submeteriam os animais envolvidos
a atos de crueldade, sendo que a tutela constitucional conferida à matéria
garante que qualquer forma de vida não seja exposta a risco por práticas
consideradas aviltantes sendo que a garantia constitucional no sentido
de preservar e incentivar manifestações culturais possui limitação natural
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 47
no art. 225, VII da CRFB-1988 – ADIs 4983/CE e 1856/RJ (BRASIL,
2011, 2016).
Salienta que após tais julgamentos editou-se a EC nº 96, que inseriu
o § 7º no citado art. 225, permitindo a utilização de animais para praticas
desportivas de cunho cultural, o que fez com que a matéria fosse novamente
submetida ao crivo do STF (ADI 5728).
Já ao analisar o julgado proveniente da Espanha, é de se
anotar que a decisão fora outra.Com efeito, a Corte Constitucional
espanhola ao analisar dispositivo da lei Catalunha (art. 1 da Lei do
Parlamento 28/2010) que tinha por objeto a proibição de corridas
de toros e espetáculos taurinos que incluíssem a morte do animal,
bem como a aplicação de determinadas sortes de lida, decidiu pela
inconstitucionalidade e consequente nulidade da mesma, eis que de
acordo com a ratio da decisão a tauromaquia possui uma presença
na realidade social do país, havendo inclusive legislação que tutela a
prática como verdadeiro patrimônio cultural tornando-se sua proteção
e preservação, verdadeiro dever dos entes públicos (ESPANA, 2016).
Observe-se que em casos semelhantesas Cortes constitucionais de cada
país,deram aos direitos fundamentais trazidos à discussão – especialmente o
direito do exercício de manifestação cultural – uma interpretação distinta,
sendo que a Corte espanhola garantiu uma interpretação extensiva aos
direitos fundamentais questionados, enquanto que a Corte brasileira,
na análise de idênticos direitos – considerando ai o núcleo fundamental
do direito tutelado, qual seja a manifestação cultural – conferiu a estes,
interpretação restritiva.
Mas não é só.
Recentemente o Tribunal Constitucional da Alemanha, cuidou de
analisar questão que envolvia a prática de zoolia, uma vez que em razão
da proibição administrativa de tal prática, determinado grupo de pessoas
invocou seu “[...] direito [fundamental] a autodeterminação sexual [...]”
(SARLET, 2016b).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
48 |
Houve, certamente, o afastamento do argumento de violação de
referido direito fundamental, contudo, não se pode deixar de consignar
o fato da Corte constitucional alemã ter admitido ao menos em tese a
violação de direito fundamental neste caso (SARLET, 2016b) o que
demonstra, de forma clara, que os direitos fundamentais passam por novo
movimento de ampliação dos direitos tutelados, a m de aumentar seu
espectro de atuação.
Tais questões são trazidas a lume a m de demonstrar que, atualmente,
os desaos do direito na interpretação dos direitos fundamentais perpassam
não só pela seara do próprio direito da pessoa humana, relacionando-se com
situações outras que devem ser dissecadas ao promover tal interpretação, a
m de que se garanta uma clara compreensão do tema abordado.
Não se pode olvidar que os direitos fundamentais em nosso
ordenamento foram inseridos no texto constitucional como norma m/
tarefa do estado, que deve exercer tal obrigação em completa consonância
com o ordenamento com um todo, contudo, sob o lume interpretativo
da dignidade da pessoa humana, pedra fundamental do ordenamento
jurídico brasileiro.
Assim, estes novos desaos exigem que nos atentemos claramente as
premissas estabelecidas pelos direitos fundamentais, bem como a própria
abertura da moldura semântica da normativa constitucional referente
aos direitos fundamentais, que permite a realização de uma interpretação
ampliativa destes justamente no objetivo de cumprir seu papel essencial: a
tutela da dignidade da pessoa humana.
Por m, deve-se consignar que ainda que se alegue que inexistam
direitos absolutos, os direitos fundamentais, a luz da dignidade da pessoa
humana exerce papel fundamental no Estado Democrático de Direito
brasileiro, devendo o interprete, neste caso, ao proceder à ponderação
entre eventuais normas que venham colidir com normas de direitos
fundamentais, partir da necessidade de prevalência de tais direitos sobre
quaisquer direitos que lhe sejam contrapostos.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 49
conclusão
Observou-se no desenvolvimento da presente pesquisa que o
reconhecimento dos direitos humanos, até sua ulterior fundamentalização,
deu-se a partir de um caminho tortuoso, ora com avanços, ora com
retrocessos, que acabaram por permitir, inclusive a partir do século
XX, a discussão da própria internacionalização dos direitos humanos,
principalmente após o segundo pós-guerra, considerado como um período
negro no linear de desenvolvimento da tutela destes direitos.
Tal fato, inclusive, permitiu a superação do conceito clássico
de soberania ensejando a criação de Cortes supranacionais, momento
que os membros de determinado sistema protetivo (seja regional, seja
internacional), passaram a se submeter à jurisdição externa no que pertine
a atos de violação de direitos humanos.
Ainda nessa senda, vericou-se o desenvolvimento de uma teoria
denominada ecologismo personalista, que insere no campo de discussões
a necessidade de reconhecimento da interdependência do homem e da
natureza, destinada a superar o ideal primitivo antropocentrista acabando
com o desnivelamento existente entre as espécies.
Considerando tais premissas, aliadas ao caso trazido a estudo, tem-se
que o direito possui novos e intensos desaos no que pertine a tarefa de
interprete dos direitos fundamentais, uma vez que tal análise na atualidade
não perpassa somente pelos próprios direitos da pessoa humana, havendo
inúmeras variantes que podem inuenciar em tal análise.
Em que pese nos casos trazidos a estudo, não haja o reconhecimento
expresso de direitos de personalidade aos animais, é de se apontar que
especialmente o Brasil, por sua Corte Suprema, ao proceder à tutela dos
animais, deixou claro nos precedentes citados que a norma constitucional
invocada – CRFB-1988, art. 225, VII– tutelava tanto o animal humano,
quanto o animal não humano o que permite questionar se estaríamos
próximos de permitir uma interpretação extensiva aos direitos de
personalidade a seres que até então era meramente coisicados, com mero
valor e não dignidade.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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Não se pode de todo desconsiderar que as cartas estão na mesa e que
tal caminho já vem sendo percorrido, mesmo que a passos lentos.
Por m, deve-se consignar que ainda que se alegue que inexistam
direitos absolutos, os direitos fundamentais, a luz da dignidade da pessoa
humana exerce papel fundamental no Estado Democrático de Direito
brasileiro, devendo o interprete, neste caso, ao proceder à ponderação
entre eventuais normas que venham colidir com normas de direitos
fundamentais, partir da necessidade de prevalência de tais direitos sobre
quaisquer direitos que lhe sejam contrapostos.
referênciAs
BALLESTEROS, Jesús. Ecolosgismo personalista: cuidar la naturaleza, cuidar al hombre.
Madrid: Editorial Tecnos, 1995.
BARONGENO, Maria Cristina de Luca. Direitos humanos sociais: necessidade de
positivação das regras de interpretação? 2009. 154f. Tese – Faculdade de Direito da
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COMPARATO, Fabio Konder. A armação histórica dos direitos humanos. 10. ed. São
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Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 51
FREITAS, Vladimir de Passos. O caso do macaco Naruto e os novos desaos ao Direito.
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SARLET, Ingo Wolfgang. A proteção dos animais e a legitimidade jurídico-constitucional
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constitucional-zoolia. Acesso em: 01 maio 2018.
| 53
3
A FRATERNIDADE COMO PRINCÍPIO
REGULADOR DO SISTEMA
NORMATIVO DE AGROTÓXICOS
Josilene Hernandes Ortolan Di Pietro
1
Larissa Fatima Russo Françozo
2
introdução
O presente estudo visa discutir o tema da sustentabilidade
ambiental e o uso de agrotóxicos à luz do princípio da fraternidade,
abordando questões relacionadas ao direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, a regulamentação jurídica do uso de
agrotóxicos no ordenamento jurídico nacional e o emprego da fraternidade,
como instrumento para minimizar as externalidades negativas decorrentes
da política de agrotóxicos adotada no Brasil.
Professora Adjunta da UFMS. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Estágio de Pós-doutorado em Ciência Jurídica na Universidade Estadual do Norte do Paraná
(UENP). Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília- UNIVEM. Líder do Grupo de
Pesquisa cadastrado no CNPQ “Direito, Cidadania e Desenvolvimento Sustentável”. E-mail: lene_ortolan@
hotmail.com.
Mestre em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM.
Integrante do grupo de estudo e pesquisa Direito e Fraternidade, vinculado ao CNPq-UNIVEM. Graduada
em Direito pelo Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente. Presidente da Comissão das Mulheres
Advogadas da subseção de Osvaldo Cruz/SP. Advogada: larissa.francozo@hotmail.com
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p53-66
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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A fraternidade, enquanto princípio, tem assento na Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL 1988) e pode
revelar um possível diálogo com o direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, uma vez que se tem a possibilidade de revelar
a conscientização do homem, em sua relação com a natureza e na sua
relação com a vida em todas as suas formas, comprometendo-o com uma
nova sociedade focada em concretizar a equidade.
E, no que se refere ao uso de agrotóxicos, considerando o fato
do Brasil ocupar desde 2009 o primeiro lugar no ranking mundial do
consumo, surge a necessidade de se (re)pensar e (re)organizar o sistema
normativo que regulamenta e chancela esta prática, já que, neste ponto,
a invocação tecnológica não tem caminhado em prol da tutela do meio
ambiente, diretamente afetado negativamente pelo uso desta técnica,
implicando também na degradação da qualidade de vida no planeta.
O propósito é demonstrar que a fraternidade, enquanto instrumento
jurídico, pode ser grande aliada neste embate, despontando como um novo
paradigma regulador desse sistema. Para tanto, a pesquisa utilizar-se-á do
método utilizado hipotético-dedutivo, e será de cunho bibliográca.
1. frAternidAde e meio AmBiente: direitos de umA mesmA
dimensão
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a
fraternidade surgem em um mesmo momento: são marcos da terceira
dimensão de direitos fundamentais, no Estado Democrático de Direito,
e foram impulsionados pela revolução tecnológica, que contribuiu para
o enfraquecimento dos direitos e liberdades fundamentais anteriormente
conquistados.
Surgem como uma nova categoria de direitos, apta a enfrentar as
mudanças sociais, denotando uma expansão da titularidade dos direitos
fundamentais, que se deu por meio do reconhecimento de novos direitos,
direitos estes que, nos dizeres de Bonavides (2004, p. 569) transcendem
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de
um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero
humano mesmo, num momento expressivo de sua armação como
valor supremo em termos de existencialidade concreta.
O princípio da fraternidade enuncia reexão sobre o direito ao
desenvolvimento e ao meio ambiente sadio, que implica no direito à sadia
qualidade de vida, cujas titularidadessãotransindividuais.
No âmbito constitucional, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL
1988) consagrou no art. 225 o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, como direito de todos, assegurando-o como “bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações”.
Trata-se de direito fundamental dirigido à vida em todas as suas
formas, impondo ao Estado e à coletividade o dever de preservação e
defesa, para as atuais e também futuras gerações. Para Britto (2006, p.
216), a etapa fraternal do constitucionalismo alcança:
[...] a dimensão da luta pela armação do valor do desenvolvimento,
do meio ambiente ecologicamente equilibrado, da democracia e até
certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo
na perspectiva de se fazer da interação humana uma verdadeira
comunidade; isto é, uma comunhão de vida, pela consciência de
que, estando todos em um mesmo barco, não têm como escapar da
mesma sorte ou destino histórico.
A proposta do constitucionalismo fraternal implica um despertar
para que condições existenciais mínimas sejam garantidas, enquadrando-se
nestas o “mínimo existencial ecológico”, imprescindível à sadia qualidade
de vida e, consequentemente, intrínseco à dignidade da pessoa humana.
Assim, é possível armar que, como categoria jurídica, a fraternidade
corrobora com os preceitos do desenvolvimento sustentável.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
56 |
Importante registrar que a preocupação com a tutela do meio
ambiente não esteve dentre as prioridades internacionais até 1950.
Cançado Trindade (1993, p. 39) discorre sobre a aproximação da questão
ambiental e a proteção dos direitos humanos, explicando que a proteção dos
direitos humanos teve seu marco com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, enquanto a tutela ambiental só ganhou destaque com
a Declaração das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de 1972,
documento produzido pela da Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, que sinalizou propostas
para solucionar o problema do crescimento econômico face à escassez dos
recursos naturais. José Afonso da Silva (2013, p. 61) enuncia os princípios
da Declaração como prolongamento da Declaração de 1948.
A Declaração de 1948 tratou da questão ambiental como tutela
da saúde e do trabalho, revelando o desconhecimento da crise ambiental
naquele contexto. Somente em 1962, com a publicação da obra “Primavera
Silenciosa” da ecologista norte-americana Rachel Carson (2010), é que se
registrou o início das discussões e preocupações com a questão ambiental
no âmbito teórico, despertando para a consciência ambiental por meio de
uma história que demonstra o potencial humano em degradar e alterar a
natureza na qual está inserido.
Nessa obra, a autora alerta sobre o uso de pesticidas de longa ação
residual, expondo que:
O mais alarmante de todos ataques do ser humano ao meio ambiente
é a contaminação do ar, do solo, dos rios e dos mares com materiais
perigosos é até mesmo letais. Essa poluição é, na maior parte,
irrecuperável; a cadeia de males que ela desencadeia, não apenas
no mundo que deve sustentar a vida, mas nos tecidos vivos, é, na
maior parte, irreversível. Nesse meio ambiente de contaminação
agora universal, os produtos químicos são os parceiros, sinistros
e raramente identicados, das radiações na alteração da própria
natureza do mundo – a própria natureza da vida que nele habita
(CARSON, 2010, p. 22).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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A pesquisa cientíca realizada por Carson elucidou ao público da época
(especialmente os norte-americanos) o quão prejudicial à natureza e à vida
humana é o uso dos agrotóxicos, sobretudo o diclorodifeniltricloroetano
(DDT). Foi apenas com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
ambiente, realizada em Estocolmo, em1972, que a questão ambiental
ganhou dimensão no cenário internacional, passando a integrar as agendas
de prioridades dos Estados.
Guido Soares (2003, p. 173) enuncia que as normas voltadas à
tutela internacional do meio ambiente “têm sido consideradas como um
complemento aos direitos do homem, em particular o direito à vida e à
saúde humana”.
É neste cenário que se consolidou um novo modelo de
desenvolvimento: o sustentável. Em 1983, a Organização das Nações
Unidas (ONU), criou a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, com o objetivo de elaborar um relatório informativo
sobre desenvolvimento e as questões ambientais que o permeiam, em todo
o planeta.
Em 1987, a comissão nalizou o trabalho, com a publicação do
documento intitulado “Nosso Futuro Comum” (ou Relatório Brundtland),
que deniu expressamente o desenvolvimento sustentável:
Em essência, o desenvolvimento sustentável é um processo de
transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos
investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e
a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial
presente e futuro, a m de atender às necessidades e aspirações
humanas (NOSSO FUTURO COMUM, 1991).
O núcleo do desenvolvimento sustentável visa compatibilizar o
desenvolvimento e o crescimento econômico com o direito de todos
de viver em um meio ambiente equilibrado e ainda salvaguardá-lo para
as gerações vindouras, o que só se viabiliza com o comprometimento
de toda sociedade, o que implica no reconhecimento da incidência do
princípio da fraternidade.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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Hodiernamente, observa-se que as diversas alterações ambientais,
que marcam a atual sociedade são justicadas em prol do desenvolvimento
econômico e das necessidades sociais. Estas alterações são identicadas de
forma aceleradas e individuais e acentuadas pela falta de valores éticos.
Devido a isto, tem-se a necessidade de falar-se em preservação ao
meio ambiente equilibrado através de um princípio ético, onde todos
possam compreender a sua responsabilidade e consequentemente colaborar
para a concretização, ou seja, a fraternidade.
A fraternidade é um princípio jurídico que tem suas origens na
Revolução Francesa, pois foi nesta época em que combater as desigualdades
sociais tornou-se uma aspiração. Desta forma, as pessoas perceberam
que somente atingiriam o bem-estar social se protegessem os direitos
fundamentais de todos.
O meio ambiente equilibrado representa a possibilidade de efetivar
os direitos humanos que concretiza os direitos mínimos a cada cidadão,
incluído a qualidade de vida. Enquanto direito fundamental, trata-se de um
direito de fraternidade que requer a cooperação na preservação ambiental.
Percebe-se que o princípio da fraternidade conjugado ao direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado é uma equação eciente na
salvaguarda da vida em todas as suas formas.
Assim, a fraternidade é o que norteia e origina transformações
sociais e ambientais, além de ser o princípio que deveria ser base para
originar outros princípios e elaboração de políticas públicas em prol do
desenvolvimento sustentável, uma vez que orienta no sentido de caber
a cada indivíduo, principalmente de forma coletiva, lutar por um meio
ambiente equilibrado e sustentável, retirando a gura do sujeito como
sendo exclusivamente o titular de um direito ou dever e destina-se essa
proteção e responsabilidade a todos.
A fraternidade, todavia, não se apresenta apenas como enunciação de
um conceito, mas como principio ativo, motor do comportamento,
da ação dos homens, com uma conotação essencialmente moral.
Assim, Ela deve ser considerada – a meu ver- estreitamente ligada
ao mesmo tempo ao preâmbulo, nas partes em que evoca a idéia
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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[sic] da família humana e considera a declaração um ideal comum
a ser alcançado por todos os povos e nações, e ao artigo 29, que
introduz a ideia dos deveres que todo ser humano tem para com a
comunidade (AQUINI, 2008, p. 133).
É o princípio da fraternidade que leva ao despertar para a
conscientização do homem em construir um meio ambiente equilibrado e
consequentemente a (re)ver e (re)pensar nas escolhas da melhor técnica de
produção, sobretudo no que se refere ao uso de agrotóxicos, porque ensina
a necessidade de cooperação mútua entre todos os membros da sociedade
em busca do bem-estar social, vez que todos estão no mesmo patamar,
assim há união de forças para concretizar a proteção do meio ambiente,
que implica uma questão de saúde.
Mas, o princípio da fraternidade não funciona de maneira mágica,
onde imediatamente a sua aplicação colocará em ordem na sociedade, este
princípio apenas oferece condições à sociedade para que ela repense seus
atos, vez que um dos objetivos do constituinte brasileiro e também das
organizações internacionais é buscar maneiras de convivência, pacíca,
digna e sustentável, para que isto integre a realidade de todos os cidadãos.
Neste ponto, vale destacar o que ensina o ex-ministro do Supremo Tribunal
Federal, Carlos Ayres Britto (2007, p. 98):
A Fraternidade é o ponto de unidade a que se chega pela conciliação
possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro,
da Igualdade. A comprovação de que, também nos domínios do
Direito e da Política, a virtude está sempre no meio (medius in
virtus). Com a plena compreensão, todavia, de que não se chega
à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este, o fascínio, o
mistério, o milagre da vida.
Deve-se, portanto, desmisticar a ideia de que a fraternidade está
ligada apenas a esfera religiosa e que é conceituada e utilizada apenas como
amor ao próximo. A fraternidade vai muito além desta questão, porque é
um princípio norteador, ao lado da igualdade e liberdade, apta a construir
uma sociedade melhor e consequentemente mais justa.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
60 |
2. desenvolvimento sustentável e o uso de Agrotóxicos: é
Possível equiliBrAr estA relAção?
Dentre os desaos hodiernos em prol da implementação do
desenvolvimento sustentável destaca-se a necessária relação entre a política
de tutela ambiental e a manutenção do crescimento do setor agrário, haja
vista o grande impacto positivo na balança comercial, cuja representação
do setor é de aproximadamente 23% (vinte e três por cento) do total
do produto interno nacional (PIB), conforme dados da Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
De um lado, tem-se o emprego de novas técnicas para modernizar
e otimizar o modelo de produção agrária, porém estas inovações não
beneciam na mesma proporção as formas e mecanismos de expropriação
dos recursos naturais.
E nestes moldes o qualicativo “sustentável” distancia-se do paradigma
de desenvolvimento introduzido pela Constituição Federal de 1988 Eis a
necessária utilização de novos instrumentos para equacionar esta relação,
sobretudo considerando os ditames da ordem constitucional econômica:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano
e na livre iniciativa, tem por m assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social” (BRASIL 1988).
A exploração da atividade econômica encontra-se sujeita à realização
de interesses sociais, incidindo, destarte, o princípio da fraternidade.
Assim, os indivíduos estão autorizados a:
usufruir de sua propriedade e exercer a liberdade de iniciativa,
aspectos característicos do Estado Social Democrático de Direito
que privilegia ideais capitalistas, ao mesmo tempo em que
determinada o cumprimento da função social como condição para
tutela estatal, consagrando a expressiva contemplação do social em
detrimento das ações individualistas (DI PIETRO, 2013, p. 66).
Não obstante, preceitua referido art. 170 princípios a serem
observados na consecução do objetivo da ordem econômica, destacando-
se, dentre eles, o inciso VI: “defesa do meio ambiente, inclusive mediante
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos
e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”. Um novo
tratamento, que revela a preocupação com a manutenção e equilíbrio da
relação entre a exploração da atividade econômica e a proteção dos direitos
e garantias constitucionalmente assegurados.
A exploração da atividade econômica, com destaque ao agronegócio
3
,
deve observar a concretização dos direitos fundamentais, notadamente
a conciliação com a preservação ambiental, em prol de se resguardar
qualidade de vida a todos.
Mas a questão não se revela tão simples: alerta-se para a difícil tarefa
de conciliar o desenvolvimento sustentável, adotando-se um modelo
produtivo que não promova nem intensique danos ambientais, com as
novas técnicas empregadas para a garantir produtividade e consequente
lucro. Neste ponto, destaca Ehlers (1994, p. 31)
Ao lado dos problemas sociais gerados pela modernização agrícola
brasileira, evidenciaram-se os problemas ambientais decorrentes,
em grande parte, da intensiva mecanização e do uso de agrotóxicos.
Os agrotóxicos passaram a ser aplicados em doses exageradas, sem
obedecer as normas e critérios de segurança exigidos nos países
do primeiro mundo. A partir dos anos 70, tornaram-se mais
freqüentes os casos de contaminação de recursos hídricos, dos solos
e de cadeias alimentares, incluindo os animais, os alimentos e o
próprio homem.
Neste ponto merece destaque o uso de agrotóxicos, consideradas
substancias químicas toxicas que visam combater diversas espécies de
organismos no controle e eliminação de pragas e doenças que prejudiquem
e comprometam a produtividade da lavoura. Porém, seu uso contamina
o solo, lençóis freáticos, rios e faz com que uma (boa) parte dessas
substâncias seja absorvida pelas plantas, contaminando os alimentos e
consequentemente afetando a saúde humana.
Aqui compreendido como o modelo de desenvolvimento econômico agropecuário do sistema capitalista.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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Importante considerar que o Brasil, desde 2008, ocupa a primeira
posição no ranking do mercado de consumo mundial destes produtos
4
,
impactando negativamente no equilíbrio do meio ambiente, na saúde
humana, na conservação da biodiversidade e contribuindo para o aumento
da emissão de gases que provocam o efeito estufa (GEE).
Neste passo, registra-se que o cenário da regulamentação do uso,
produção e comercialização de agrotóxicos no Brasil foi marcado por
políticas de fomento, o que o levou a ocupação do topo do ranking no
consumo. Há, portanto um desequilíbrio na relação entre a exploração
da atividade econômica e a tutela do meio ambiente, que faz sentir na
qualidade de vida e na saúde humana.
O sistema regulatório hodierno tem por base a lei n. 7082/89 e seu
regulamento, o Decreto n. 4074/02. O texto normativo “dispõe sobre
a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o
transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial,
a utilização, a importação, a exportação, o destino nal dos resíduos e
embalagens, o registro, a classicação, o controle, a inspeção e a scalização
de agrotóxicos, seus componentes e ans”.
Ainda, integram este sistema, Portarias do Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (Mapa) e da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), destacando que para um produto ser registrado no
Brasil, ele submete-se à avaliação pelos dois órgãos citados e ainda pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), que realiza uma espécie de dossiê ambiental para averiguar o
potencial poluidor do produto. O registro será fornecido pelo Mapa, com
validade indeterminada, porém sujeito à reavaliação toxicológica.
Mas esse sistema de comando e controle dos agrotóxicos não institui
medidas necessárias para o uso seguro destas substâncias. Como destacam
Oliveira Filho e Padilha (2016, p. 129)
Conforme documento divulgado pelo INCA (Instituto Nacional do Câncer), em 2014.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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O atual sistema é falho, pois não especica mecanismos que
possibilitam à coletividade o conhecimento dos perigos efetivos de
contaminação que o uso do agrotóxico acarreta ao ser humano, e
ao meio ambiente, colocando em risco a saúde ambiental. [...] não
tem como vericar os resultados nais do uso do agrotóxico e, por
isso, é falho e ineciente; acrescente-se, ademais, que esse mesmo
sistema não estimula pesquisas no sistema operacional tampouco
incentiva a implantação de tecnologias mais avançadas.
A participação popular não foi contemplada como instrumento nesta
cadeia, o que permitiria a efetiva participação da sociedade nos processos
decisórios e regulamentares das atividades estatais que tenham por objeto
os agrotóxicos. Por uma justicativa plausível: é dever de todos defender e
preservar o meio ambiente.
Ademais, além de não permitir a participação, o direito à informação
ambiental também ca renegado, impedindo o acesso da população à
informações relevantes sobretudo quanto à nocividade e prejuízos à saúde.
No mesmo ritmo a lei não contemplou adoção de medidas preventivas,
essência do direito ambiental.
Questão correlata à inefetividade é a scalização. As principais
formas de violação da lei são a utilização de produtos com prazo de validade
vencido, forma de armazenamento inadequado, destinação nal adequada,
receituário prescrito de forma incompleta ou sem assinatura do engenheiro
agrônomo responsável.
A proteção do trabalhador durante a utilização do produto é outro
ponto negativo destacado. Quando fornecidos, não há scalização do uso
adequado dos equipamentos de proteção individual (EPI), expondo-o a
doenças, intoxicação e desequilibrando o habitat laboral.
Resta clara a dissonância entre o que preconiza a CF/88, ao prever
no art. 196, o dever estatal de garantir a saúde, via adoção de políticas
socioeconômicas voltadas à redução dos riscos de doenças, e ainda o art.
225, §1º, IV que xa como dever do Estado controlar a produção, o
comércio e a utilização de substancias que impliquem riscos à saúde e à,
além da qualidade ambiental.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
64 |
É possível concluir, portanto, que a busca da equação e do
resultado positivo para a relação “sustentabilidade versus agrotóxicos” só
restará efetiva se houver consciência cidadã, já que a responsabilidade do
ser humano vai muito além da sua relação apenas para com a natureza:
inclui também a sua relação responsável com a vida do outro ser humano.
O desenvolvimento sustentável contempla, também, a diversidade
ambiental e social.
considerAções finAis
Quando o produtor utiliza-se dos agrotóxicos para controlar a
eliminação de pragas e doenças que possam prejudicar e comprometer a
produtividade da lavoura, impactando diretamente na saúde humana, na
qualidade do ambiente e no aumento da emissão dos gases que geram o
efeito estufa, revela total desrespeito e inobservância com o princípio da
fraternidade.
Nesta seara, o princípio da fraternidade, garante eciência para
resolução de conitos ambientais, porque mostra que a responsabilidade
é coletiva, convoca a todos que são submetidos à ordem jurídica, para
efetivar a construção de uma sociedade justa e igualitária para garantir o
direito fundamental que é o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL 1988) apresentou
um novo paradigma para regulamentar a questão ambiental: elevou o
direito ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental,
mencionando-o de forma expressa em diversas passagens do texto
constitucional, atribuindo deveres ao poder público e à sociedade em prol
do meio ambiente.
A preocupação com o sistema de regulação vigente denuncia a
importância de se voltar à discussão da garantia de direitos fundamentais
assegurados constitucionalmente, como o direito à vida, ao meio ambiente
e à saúde. Os mecanismos de scalização e o controle do uso de agrotóxicos
não têm se revelado ecientes, diante do aumento de contaminação
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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ambiental e de doenças fatais comprovadamente decorrentes do uso destas
substâncias.
Assim, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
depende, para sua concretização, da adoção de práticas que permitam
acrescentar ao desenvolvimento o adjetivo “sustentável”, juntamente com
a participação direta e efetiva da sociedade. Os princípios constitucionais,
notadamente a fraternidade, devem ser privilegiados sobre qualquer
legislação infraconstitucional, em prol da dignidade da pessoa humana.
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15 abr. 2018.
| 67
4
EUGENIA: ASPECTOS LEGAIS À LUZ
DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO
Bruna de Oliveira da Silva Guesso Scarmanhã
1
Giovanna Soares Nutels
2
Mário Furlaneto Neto
3
introdução
Atualmente, o desenvolvimento biotecnológico e a expansão capitalista
trazem inúmeros impactos e consequências para a vida humana e seus
respectivos entornos, havendo a necessidade de conscientização universal.
Desta forma, nasce a bioética com a nalidade de trazer à baila
princípios éticos visando direcionar questões envolvendo a manipulação
Professora da graduação do curso de Direito da FAEF – Faculdade de Ensino Superior e Formação Integral.
Advogada. Graduada em Direito pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha (2015). Mestre em
Direito na área de concentração “Teoria do Direito e do Estado” no UNIVEM/Marília-SP. Bolsista CAPES/
PROSUD (2016/2018). Integrante dos grupos de pesquisas NEPI (Núcleo de Estudos em Direito e Internet) e
GRADIF (Gramática dos Direitos Fundamentais) no UNIVEM. E-mail: bruna.guesso@gmail.com.
Acadêmica do curso de Medicina na Universidade de Marília (Unimar). E-mail: giovannasoaresnutels@
hotmail.com.
Professor titular da graduação e do Mestrado em Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM).
Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Mestre em Ciência da
Informação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito
de Marília Fundação Eurípides Soares da Rocha. E-mail: mariofur@univem.edu.br.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p67-80
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
68 |
genética e seus entornos. Por outro lado, o biodireito visa estabelecer
normas que tutelam os novos avanços, preconizando limites e garantias
com base em seus princípios.
Desta feita, o biodireito e a bioética regem a administração das
experiências médicas, assegurando limites éticos frente as manipulações
genéticas, visando a proteção e a preservação da raça humana.
Nessa perspectiva, a importância da proteção ao ser humano,
nomeadamente em relação a eugenia, recebe atenção no presente estudo, tendo
em vista que a eugenia destacou-se na segunda guerra mundial em decorrência
das atrocidades praticadas pela Alemanha Nazista em busca de uma “raça pura”.
Salienta-se que a eugenia objetiva o “aperfeiçoamento” de
características do ser humano, seja em prol de melhorias genéticas ou
aprimoramento de aspectos físicos, denominando-se, respectivamente, de
eugenia negativa e eugenia positiva.
Assim sendo, a discussão proposta mostra-se relevante e se justica
em virtude da necessidade da efetiva proteção ao ser humano por meio das
ações éticas, garantindo, desta forma, o futuro das próximas gerações.
O escopo da abordagem é analisar, mediante o método dedutivo,
por meio de revisões bibliográca e legislativa, os impactos da segunda
guerra mundial, sob a perspectiva da eugenia, bem como, enfrentar
questões atinentes à eugenia e seus respectivos entornos, e por m, analisar
a bioética e o biodireito frente a eugenia.
Para tanto, como alicerce e referencial teórico, enfrentar-se-á aspectos
da segunda guerra mundial, em especial no que se refere à manipulação
genética, a eugenia, a bioética e o biodireito, conforme passa a expor.
1. os imPActos dA segundA guerrA mundiAl: soB A óticA dA
eugeniA
A necessidade de se pensar de forma ética nos experimentos
envolvendo seres humanos se deu em decorrência de brutalidades causadas
à humanidade.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 69
Na Alemanha Nazista, os campos de extermínio retrataram um
triste período da história, nos quais os mais bárbaros crimes contra a vida
humana foram idealizados e executados em nome de uma “raça pura”.
Assim, diante das crueldades realizadas pelos nazistas, principalmente,
no sul da Alemanha nos campos de extermínios, dentre os quais se destaca
o Auschwitz-Birkenau, objetivou-se a puricação da raça ariana, por meio
de práticas eugênicas.
Nessa dimensão, Hitler mandou exterminar milhões de pessoas,
principalmente, as que eram de origem judia, dentro da mitologia de que
o judeu era uma raça inferior, e que a raça ariana – a alemã – era superior.
Após as crueldades praticadas na Alemanha Nazista, que realizou
inúmeros experimentos cruéis com o ser humano, surgiu a busca pela
limitação e regulamentação de uma série de normas éticas a m de proteger
o ser humano e evitar novas atrocidades como as ocorridas na segunda
guerra mundial.
Denota-se que os impactos da segunda guerra mundial se expandiram
ao redor do mundo, havendo uma grande movimentação ética e jurídica
para se tutelar o ser humano em face às manipulações genéticas.
No âmbito do Brasil, há algumas diretrizes nacionais acerca dos
progressos cientícos e dos respectivos procedimentos bioéticos, princípios
e regulamentações que devem ser obedecidas.
A Constituição Federal busca assegurar a proteção do ser humano,
tanto por meio do princípio da dignidade humana quanto pelo direito à
vida, à saúde, garantindo a igualdade, a liberdade e a segurança.
A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº
2.168/2017, bem como a Lei de Biossegurança 11.105/2005 visam
também dar guarida aos direitos do ser humano frente a pesquisa cientíca
e ao progresso biotecnológico.
Não obstante, a procura pela perfeição é uma das características
apresentadas pelo ser humano desde os tempos primitivos, buscando
selecionar qualidades humanas, bem como a superioridade da raça. Nesse
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
70 |
sentido, o desenvolvimento biotecnológico é uma ferramenta para tanto,
que acelera e promove a pesquisa cientíca.
Portanto, necessário trazer à discussão aspectos da eugenia e suas
respectivas vertentes para melhor compreensão do tema proposto.
2. eugeniA e suAs vertentes
No contexto dos avanços cientícos na engenharia genética e da
busca incansável pelas melhorias física e mental do ser humano, a eugenia
é uma prática, que faz parte da história da humanidade e não cou restrita
ao passado, visto que se faz presente na atualidade e pode apresentar caráter
positivo ou negativo, conforme as condutas adotadas. Ainda há desaos
nesse âmbito, sobretudo na distinção das ações eugênicas permitidas e as
ações não permitidas. Junto a isso vêm os dilemas éticos e legais e a criação
da Lei nº 8.974, de 06 de janeiro de 1995, que proíbe a clonagem humana
e a manipulação genética de células germinais (MAI; ANGERAMI, 2006).
Em 1883, Francis Galton, inuenciado pelo evolucionista Charles
Darwin, deniu o termo eugenia como um conjunto de técnicas ou
procedimentos capazes de melhorar a espécie humana. Por meio de
intervenções de controle reprodutivo e conhecimentos de transmissão
hereditária, buscava-se a saúde e o aprimoramento das descendências,
selecionando as qualidades e reduzindo as imperfeições humanas. Sendo
assim, considera-se ação eugênica qualquer uso de conhecimentos e
técnicas cientícas em favor da procriação de crianças saudáveis (MAI;
ANGERAMI, 2006; SANTOS et al., 2014).
Assim, essa ideologia classicava os homens e mulheres em melhores
ou piores conforme suas características e critérios de aptidão para reprodução
nos padrões eugênicos. Tentava-se justicar cienticamente e socialmente
as medidas eugênicas com a tentativa de construir uma sociedade saudável
(MAI; ANGERAMI, 2006; SANTOS et al., 2014).
Ainda no século XIX, o geneticista Gregor Mendel contribui bastante
para as práticas de manipulação genética. Na década de 1970 houve
grande avanço nessa área com o desenvolvimento da primeira técnica de
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 71
engenharia genética, o DNA recombinante. Desde então, aconteceram
muitas conquistas técnico-cientícas. A associação das áreas de genética,
biologia molecular e engenharia genética é chamada de eugenética, a forma
contemporânea da eugenia (CACIQUE, 2012; SANTOS et al., 2014).
Desde 1985, há o recurso de exames genéticos pré-natais, porém a
interrupção da gravidez como forma de evitar o nascimento de crianças
com doenças genéticas é prática proibida por lei no Brasil. Em alguns
casos, o mais adequado seria a terapia genética para tratar a causa genética
da afecção, visando combater problemas de saúde ou deciências.
No início do século XX, em pleno auge do movimento eugenista
mundial e brasileiro, a eugenia negativa propunha limitar a procriação
considerada ruim, limitando a reprodução de casais com problemas
genéticos, estimulando a esterilização, a segregação de doentes mentais e
o aborto eugênico. Atualmente, recursos da engenharia genética podem
ajudar casais com problemas genéticos ao permitir a retirada do gene
defeituoso, caracterizando, no entanto, ação eugênica negativa da mesma
forma, porém, na visão contemporânea, a eugenética negativa no século
XXI consiste em medidas para prevenir doenças genéticas. Por outro
lado, a eugenia positiva visava estimular a boa procriação, já nos dias
atuais busca melhorar as características dos novos descendentes (MAI;
ANGERAMI, 2006).
Dentre as intervenções eugênicas, realizava-se seleção matrimonial,
controle governamental sobre os casamentos e sobre a reprodução, medidas
anticoncepcionais e de esterilização, exigência de exames pré-nupciais e de
estudos genéticos. Tais medidas eram consideradas grandes ações sociais e
políticas em favor da “melhora da raça humana” (SANTOS et al., 2014).
A eugenia positiva busca aprimorar a espécie humana, selecionando
características favoráveis ao seu aperfeiçoamento. A princípio, praticada
através do controle matrimonial conveniente para perpetuar determinada
característica e, atualmente, com a seleção de gametas ou embriões
geneticamente mais favorecidos, técnicas de reprodução assistida e terapia
gênica, portanto, a eugenia positiva trata-se de uma intervenção de
aperfeiçoamento (PINA-NETO, 2008; SANTOS et al., 2014).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
72 |
A eugenia negativa procura prevenir doenças genéticas, impedir que
genes indesejáveis se perpetuem nas descendências. Atuava por meio de
política de restrição de casamentos, inclusive inter-raciais e de migração,
contracepção e esterilização compulsória, aborto obrigatório, eutanásia
passiva e, até mesmo, extermínio de seres humanos. Nos dias atuais,
pratica ações restritivas no material genético do indivíduo. Logo, a eugenia
negativa intervém visando a terapêutica (PINA-NETO, 2008; SANTOS
et al., 2014).
Há também procedimentos mistos que associam ambos os tipos de
eugenia, como o diagnóstico genético pré-implantatório (DGPI), seguido
da seleção de embriões, que visa afastar a existência de patologias genéticas
no zigoto assim como selecionar os embriões com informações genéticas
consideradas mais desejáveis; o diagnóstico pré-concepcional, seguido da
seleção gamética; e a terapia gênica germinal (SANTOS et al., 2014).
As práticas eugênicas pioneiras envolviam a sociedade e abrangiam
grande parte da população, já as neoeugênicas concentram-se no âmbito
individual. Estas costumam se restringir ao interesse de um casal ou da
família, no entanto, também são pertinentes às futuras gerações, visto que
as intervenções podem modicar o genoma humano, que é patrimônio da
espécie (SANTOS et al., 2014).
No contexto da saúde coletiva, essa abordagem genômica
“individualizada” em detrimento da “coletiva” desloca recursos sanitários
para reduzir o adoecimento em função das desigualdades em termos
socioeconômicos (CARDOSO; CASTIEL, 2003).
O Conselho Federal de Medicina não permite que as técnicas de
reprodução assistida sejam aplicadas com a intenção de selecionar o sexo
ou qualquer outra característica biológica, exceto quando se trate de evitar
doenças ligadas ao sexo do lho a nascer (SANTOS et al., 2014).
No campo da genética, o nascimento de um ser humano intelectual
e sicamente perfeito, como a teoria eugênica busca desde o princípio,
não é mais utópico, diante das biotecnologias disponíveis e das técnicas
de melhoramento genético, que ultrapassam as características humanas
naturais. Dessa forma, constitui um problema ético, com repercussões na
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 73
sociedade, por privilegiar os indivíduos com intervenções genéticas em
concursos, competições etc. Em contrapartida, a terapia genética busca a
saúde e não o aprimoramento de seres saudáveis (CACIQUE, 2012).
Outro dilema ético é a garantia dos direitos de personalidade do
novo ser, tendo em vista que a manipulação genética pode modicar
o genoma do indivíduo, violando, assim, o direito de personalidade
(SANTOS et al., 2014).
A neoeugenia mostra-se aparentemente progressista e liberadora
e desvincula-se completamente da eugenia tradicional, a qual tinha
caráter repressivo e autoritário através do poder estatal. Na proposta
atual da eugenia moderna, há muito envolvimento dos mecanismos
de mercado, poder individual e liberdade de escolha do consumidor
(CASTIEL et al., 2006).
2.1 BioéticA e Biodireito: em fAce dA eugeniA
O surgimento da biotecnologia e da bioengenharia são decorrentes
do nascimento das novas necessidades humanas e de suas respectivas
mudanças sociais. O avanço social impulsionou o avanço tecnológico, que
por sua vez, culminou na necessidade de se tutelar e ampliar novos direitos.
Nesse passo, os avanços biotecnológicos, no que tange a engenharia
genética, destacam-se na quarta dimensão dos direitos fundamentais,
em especial por visar a preservação da raça humana e a garantia da
inviolabilidade do patrimônio genético humano.
A ciência biomédica é a que determina avanços signicativos na
vida humana, em tema central, estes instrumentos são norteadores para
novas regulamentações, delineando os progressos com limites jurídicos e
paradigmas ético-morais.
Com efeito, a palavra bioética foi utilizada pela primeira vez em 1971,
pelo oncologista e biólogo Van Rensselder Potter, visando demonstrar a
discussão acerca dos novos problemas impostos pelo desenvolvimento
tecnológico de um viés mais tecnicista para um caminho mais pautado
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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pelo humanismo, superando a dicotomia entre os fatos explicáveis pela
ciência e os valores estudáveis pela ética” (MALUF, 2013, p. 7).
A preocupação central da Bioética são as práticas biomédicas, para
que estas estejam em harmonia e com respeito à dignidade humana,
sendo um estudo-cientíco dos seres vivos, que avaliam as condutas éticas
manipuladoras da vida e da saúde das pessoas (ANDORNO, 2012, p.
35). Nesse sentir, esclarece Morgato (2011, p. 61) que o principal objetivo
da Bioética “é a conduta humana especicamente no aspecto moral, visto
seu comprometimento em apontar limites da intervenção do ser humano
sobre a vida”.
Nessa seara, entende Diniz (2014, p. 35), que “a bioética seria, um
conjunto de reexões losócas e morais sobre a vida em geral e sobre
as práticas médicas em particular”. Em breves linhas, acrescenta ao seu
raciocínio que “a bioética consistiria ainda no estudo da moralidade da
conduta humana na área das ciências da vida, procurando averiguar o que
seria lícito ou cientíca e tecnicamente possível” (DINIZ, 2014, p. 36).
Os avanços da medicina e da genética estão contribuindo de modo
extraordinário ao desenvolvimento de novos procedimentos preventivos,
diagnósticos e terapêuticos. Contudo, simultaneamente, dão lugar a novas
interrogações que, por sua gravidade, não podem ser ignorados: será que
há permissão para se fazer tudo o que é tecnicamente possível em matéria
de manipulação genética? É necessariamente nessa seara que se destaca
a bioética, cujos objetivos são delinear de maneira ética e moralmente
admissíveis os limites quanto a manipulação do material humano.
A bioética é pautada em princípios básicos. São parâmetros
norteadores em suas investigações e diretrizes: o Princípio da Autonomia;
da Benecência; da Não Malecência; e o Princípio da Justiça. Todos
decorrem da interpretação da natureza humana e das necessidades
individuais, denidos por Diniz (2014, p. 16-17, grifo do autor):
O princípio da autonomia requer que o prossional da saúde
respeite a vontade do paciente, ou de seu representante [...].
O princípio da benecência requer o atendimento por parte do
médico ou do geneticista aos mais importantes interesses das
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 75
pessoas envolvidas nas práticas biomédicas ou médicas, para atingir
seu bem-estar, evitando, na medida do possível, quaisquer danos
[...].
O princípio da não malecência é um desdobramento do da
benecência, por conter a obrigação de não acarretar dano
intencional e por derivar da máxima da ética médica: primum non
nocere (ante tudo, não fazer dano).
O princípio da justiça requer a imparcialidade na distribuição dos
riscos e benefícios, no que atina à prática médica pelos prossionais
da saúde, pois os iguais deverão ser tratados igualmente.
Destarte, a bioética tem um caráter ético e normativo por si mesma,
de modo que acrescenta o mínimo ético básico que as leis devem sempre
respeitar, e por sua vez manter sua independência. Assim, a bioética
assume o papel de “dirigir ou orientar a legislação”, e o direito é o braço
executor. Colaboram ambas estreitamente, mas separando nitidamente
suas instâncias e âmbitos de trabalho.
Neste sentido, “da bioética ao biodireito”, são sistemas normativos
sucessivos, que convertem em direitos os valores: “o direito aplicado no
campo da bioética não contêm somente regras estratégicas e reguladoras
da conivência social ou sancionadoras de condutas infratoras, mas
também assume e propõe valores
4
(TERRIBAS; SALA, 2012, p. 220,
tradução nossa).
Para Maluf (2013, p. 16), Biodireito é: “O ramo do Direito Público
que se associa a bioética, estudando as relações jurídicas entre o direito
e os avanços tecnológicos conectados à medicina e a biotecnologia;
peculiaridades relacionadas ao corpo, à dignidade da pessoa humana”.
Nesse diapasão, preceitua Namba (2009, p. 14) que “quando se
trata do biodireito, mencionam-se as normas de prevenção e de inuência
do descompromisso da eticidade na condução da vida e dos avanços
cientícos”.
Texto original: El derecho aplicado al campo de la bioética no contiene solo reglas estratégicas reguladoras de la
convivencia social o sancionadoras de conductas infratoras, sino que también asume y propone valores.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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De fato, frente às inovações cientícas e o biodesenvolvimento,
o ser humano tornou-se um elemento de manipulações, tornando
as preliminares da ética e do direito fragilizadas. Desse modo, em
consequência do biodesenvolvimento surgiu o Biodireito como o ramo
do Direito que estuda, avalia e institui parâmetros legais acerca dos
contextos relacionados à Bioética.
O Biodireito nasce da necessidade de enfrentar uma nova realidade
com novos paradigmas de abordagem ética, com uma metodologia e
princípios que surgem na tentativa de encontrar limites e respostas éticas
e morais adequadas aos novos problemas dos cuidados com a saúde e das
biotecnologias. A necessidade de enquadramento jurídico às inúmeras
carências legislativas quanto à manipulação do material humano fez-se
necessárias para o estabelecimento de normas e princípios que objetivam a
tutela e a proteção do ser humano e sua respectiva dignidade.
Desta forma, o Biodireito é a positivação das normas bioéticas ou
ao menos é uma tentativa, compreendendo-se nas normas jurídicas de
permissões, limitações e sanções de comportamentos e descumprimentos
médicos-cientícos.
Com efeito, o Biodireito é regido pelos princípios da autonomia, da
benecência, da sacralidade da vida, da dignidade humana, da justiça, da
cooperação entre os povos, da precaução e da ubiquidade.
Segundo Maluf (2013, p. 18, grifo nosso):
Princípio da sacralidade da vida – refere-se à importância fulcral da
proteção da vida quando das atividades médico-cientícas. Vem
elencado no artigo 5º da Constituição Federal.
Princípio da dignidade humana – o referido princípio deve ser
sempre observado nas práticas médicas e biotecnológica, visando à
proteção da vida humana em sua magnitude. Liga-se este princípio
ao da sacralidade da vida humana.
Princípio da cooperação entre os povos – refere-se ao livre-intercâmbio
de experiências cientícas e de mútuo auxílio tecnológico e
nanceiro entre os países, tendo em vista a preservação ambiental e
das espécies viventes. [...].
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 77
Princípio da precaução – este princípio sugere que se tomem
cuidados antecipados às práticas médicas e biotecnológicas,
tendo em vista o caso concreto. Imporia, a seu turno, no caso de
dúvidas sobre a possibilidade de certa atividade causar danos aos
seres humanos, às espécies ou ao meio ambiente a proibição da
autorização do exercício da referida atividade. [...].
Princípio da ubiquidade – retrata a onipresença do meio ambiente
e da integridade genética. Tem por valor principal a proteção da
espécie, do meio ambiente, da biodiversidade, do patrimônio
genético. Deve ser levado em consideração cada vez que se
intenciona a introdução de uma política legislativa sobre qualquer
atividade nesse sentido. Visa a proteção constitucional da vida e da
qualidade de vida.
Assim, nota-se que os princípios buscam impor limites às pesquisas
cientícas que envolvem os seres humanos para preservação da espécie, e,
progressos qualitativos de vida e desenvolvimento para a coletividade.
Dessa maneira, o biodireito e a bioética frente à eugenia assumem papel
de destaque, haja vista que diante das possibilidades genéticas apresentadas
pela eugenia, ambos limitam as ações desenfreadas e inescrupulosas das
práticas eugênicas, permitindo somente àquelas consideradas saudáveis a
raça humana.
Nesse aspecto, destaca-se que na seara brasileira, a eugenia negativa
está presente nas regras do CFM nº 2.168/2017 que preconiza a
possibilidade de seleção de embriões para se evitar anomalias genéticas,
conforme disposto no item VI desta Resolução, no que tange ao diagnóstico
genético pré-implantacional de embriões, in verbis:
As técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões
submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras
de doenças – podendo nesses casos ser doados para pesquisa ou
descartados, conforme a decisão do(s) paciente(s) devidamente
documentada em consentimento informado livre e esclarecido
especíco. (BRASIL, 2017, p. 7).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
78 |
No entanto, a eugenia positiva é vedada em nosso ordenamento
jurídico como forma de proteção ao ser humano.
Assim, denota-se que a existência de limites ético-morais em torno
da manipulação genética vai ao encontro da tutela da humanidade e sua
dignidade.
Nesse passo, ao discorrer acerca dos limites morais da eugenia, elenca
Habermas (2010, p. 84, grifo do autor) que:
Esse espaço ético de liberdade para fazer o melhor de uma vida que
pode fracassar também é determinado por capacidades, disposições
e qualidades condicionadas geneticamente. Com vistas à liberdade
ética de levar uma vida própria sob condições orgânicas iniciais
não escolhidas por ela mesma, a pessoa programada encontra-se,
inicialmente, numa situação que não é diferente da pessoa gerada de
forma natural. Contudo, uma programação eugênica de qualidades
e disposições desejáveis suscita considerações morais sobre o
projeto, quando ela instaura a pessoa em questão num determinado
plano de vida, portanto quando a restringe especicamente em sua
liberdade de escolha de uma vida própria.
Assim sendo, a eugenia provoca grandes impactos éticos e jurídicos
em torno do ser humano, inclusive a limitação de escolha deste, merecendo
atenção e respaldo jurídico para que o desenvolvimento biológico não
ultrapasse a fronteira do eticamente admissível e permitido pelas bases dos
direitos fundamentais, em especial da dignidade humana.
Portanto, as técnicas eugênicas são uma preocupação global,
haja vista a necessidade de proteção da raça humana e de sua respectiva
dignidade, sendo que tal assertiva apenas se efetiva se houver proteção
desde as primeiras fases do desenvolvimento embrionário.
considerAções finAis
O referencial teórico apresentado possibilitou concluir que em vista
da garantia da dignidade e dos direitos humanos, a bioética e o biodireito
são de grande valia em orientar os limites éticos na prática médica, levando
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 79
em conta que no campo da tecnologia aplicada à saúde, permanecem
questões bioéticas e legais a serem debatidas na tentativa de encontrar
respostas éticas e morais que norteiem o uso das tecnologias disponíveis
para o cuidado com a saúde, bem como limitar ações eugênicas que possam
vir a trazer danos aos indivíduos e, consequentemente, à sociedade.
Ademais, observa-se que frente aos desaos consequentes das práticas
eugênicas e biotecnológicas no geral, há fundamental posicionamento
jurídico a m de regulamentar e legalizar as práticas eugênicas, evitar a
violação dos direitos humanos em qualquer fase da vida, bem como
preservar o patrimônio genético da espécie. No Brasil, foram estabelecidas
normas e legislações que priorizam os usos da terapia genética em busca da
saúde e proíbem práticas com intuito de aprimoramento de seres saudáveis.
referênciAs
ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidade de la persona. 2. ed. Madrid: Tecnos, 2012.
BRASIL. Resolução nº 2.168/2017. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas
de reprodução assistida – sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância
aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e ecácia a tratamentos
e procedimentos médicos –, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos
brasileiros e revogando a Resolução CFM nº 2.121, publicada no D.O.U. de 24 de setembro
de 2015, Seção I, p.117. Brasília, DF, CFM, 2017. Disponível em: https://sistemas.cfm.
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DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 9. ed. rev., aum. e atual. de acordo
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Dykinson, 2012. p. 217-232.
| 81
5
UMA REFLEXÃO SOBRE A FALÊNCIA DO
CONTRATO SOCIAL DE ROUSSEAU
Luiz Gustavo Boiam Pancotti
1
Fábio Luís Binati
2
introdução
O contrato social que Rousseau se refere na sua obra é um pacto
implícito criado por todos conjuntamente, onde o povo abre mão de parte
de suas liberdades para que um ente superior denominado Estado governe,
estabelecendo leis que regerão as condutas, direitos, deveres, liberdades,
bens jurídicos, propriedade, etc., regulando suas vidas de modo geral com
a nalidade precípua de preservar a paz social e se auto preservar.
1
Pós-Doutor em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Doutor em Direito
Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito Difusos e
Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES/SANTOS). Especialista em Direito Processual
Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil e Prática Processual do Curso de Direito do Centro Universitário
Toledo (UNITOLEDO) – Araçatuba/SP. Advogado. Consultor jurídico. Endereço do currículo lattes:http://
lattes.cnpq.br/5830430541694112
Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM).
Graduação e Especialização pelo Centro Universitário de Votuporanga (UNIFEV). Membro do grupo de
pesquisa “Direito e Fraternidade (GEP)”, vinculado ao CNPq-UNIVEM, liderado pelo Professor Pós-Doutor
Lafayette Pozzoli. Professor de cursos preparatórios para OAB. Advogado. Endereço do currículo lattes: http://
lattes.cnpq.br/6130886068444527.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p81-94
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
82 |
A dúvida que é levantada neste trabalho através do método
hipotético dedutivo, é a de que, em caso de ausência ou abandono do
Estado em face de um grupo determinado de cidadãos, signatários desse
Contrato Social implícito, que portanto conavam na proteção do
Estado, poderiam ou não rescindir o referido pacto e criar legitimamente
um organismo que atendesse aos anseios anteriormente delegados e
conados ao Estado ausente.
O exemplo prático utilizado são as favelas brasileiras, onde o
Estado se mostra totalmente ausente, descumprindo obrigações de
atender necessidades básicas dessas comunidades, como educação, saúde e
segurança, impondo a esta parcela da sociedade que se organizem sozinhos
para que logrem sobreviver dignamente, o que acaba sendo feito pelo
crime organizado, de modo que, é inegável, o Estado estaria descumprindo
cláusula de obrigação no referido pacto social.
do contrAto sociAl
Jean-Jacques Rousseau, em 1762, escreveu O Contrato Social, obra
brilhante e ainda atual, explicando que o nascimento ou a existência do
referido contrato foi uma imposição natural, criada pelo próprio homem
diante do seu exacerbado individualismo, que fez crescer os conitos entre
os homens, tornando-se incapazes de gerir seus interesses sempre egoístas
frente aos interesses dos demais indivíduos igualmente egoístas, tornando
esse antigomodus vivendi inviável e fadado ao caos.
Percebendo o homem, então, que sua auto preservação dependia da
união de forças entre todos, por cooperação, visando abandonar o velho
modo de viver, tornaria necessário abrir mão de parte de sua liberdade
natural originária para que um ente superior, perante o qual todos deveriam
respeito, governasse os conitos e liberdades do povo, que se denominou
mais conhecidamente como Estado.
Ainda que este contrato não seja escrito ou expresso, mas ainda que
tácito, é reconhecidamente aceito por todos e em toda parte, iguala todos
os homens em direitos e obrigações, visando unicamente a proteção e
preservação de todos como um único corpo.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 83
Ocorre que nenhum contrato, união ou associação é perfeita, pois
é composta de membros humanos e dotados de vontades e interesses
diferentes, frequentemente colidentes, tornando a participação do Estado
necessariamente efetiva e presente.
Quando o Estado, detentor desse poder de gerência sobre a
justiça, a legalidade, os bens e as liberdades dos indivíduos, é ausente,
ou não atinge seu objetivo a contento, o homem tende a retornar ao
seu estado natural de autopreservação, buscando meios de sobrevivência
conforme suas próprias forças e segundo suas próprias razões, afetando
a organização imposta pelo Contrato Social e ameaçando os direitos dos
demais membros dessa sociedade.
Rousseau já advertia na citada obra que quando o Estado não cumpre
sua parte no Contrato Social, deixando desprotegidos os direitos dos
cidadãos, que veem sua natureza humana não guardada, ocorre a guerra de
todos contra todos, e a paz social, que é um dos maiores objetivos de toda
e qualquer sociedade organizada, dá lugar ao caos.
Se se admite que o Contrato Social advém da necessidade do homem
de delegar a gerência e administração dos bens jurídicos e demais direitos a
um ente superior, por reconhecida incapacidade sua, abrindo mão de parte
de suas liberdades em prol do bem comum e da boa convivência social, é
esperado por estes indivíduos que este ente, então conável, a exerça de
forma justa quando suas forças forem requeridas.
Esta seria a contraprestação do Estado em face das necessidades do
indivíduo que conou a ele, ente superior, o controle da sociedade.
críticA Ao exercício dA soBerAniA
Sobre o termo, Sahid Maluf ensina:
Etimologicamente, o termo soberania provém de superanus,
supremitas, ousuperomnia, congurando-se denitivamente através
da formação francesa souveraineté, que expressa, no conceito de
Bodin, o poder absoluto e perpétuo de uma República. (MALUF,
2003, p.44).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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A vontade do Soberano é expressa através das leis, das quais o povo
deve submeter-se, não porque é obrigado, mas porque assim deseja. Assim,
admite-se que a vontade do Soberano é o reexo da vontade do povo, porque
visa, primordialmente, o bem estar daquele povo e a sua própria preservação.
Mas o exercício dessa soberania é feito através de compulsoriedade,
por imposição de leis que devem ser cumpridas pelos cidadãos, ainda que
com elas não concorde. Essa armação leva à conclusão de que a vontade
geral é, portanto, imposta, e não uma livre manifestação do ser, uma
escolha pessoal do sujeito, isto é, consubstancia-se em verdade da vontade
da maioria apenas, fato que por si já invalidaria o contrato social, pois um
dos seus principais pilares – a vontade geral – estaria viciada, uma espécie
de vício de consentimento de parte do povo.
Talvez por esta razão que o exercício da soberania não é totalmente
absoluto, encontrando limites à alienação de poderes, liberdades e bens
dos sujeitos, apenas na medida em que são necessários à sociedade. Dessa
forma, as obrigações dos sujeitos em face do Estado só os vinculam por
serem recíprocos, pois do contrário, seriam exigências ilegítimas.
A partir daí indaga-se: seria legítimo que o Estado cobrasse
obrigações legais (civis, criminais e tributárias) da parcela dos cidadãos
privados de seus direitos pelo Estado ausente? A ausência do Estado nessas
comunidades (favelas, por exemplo) seria reexo da vontade geral? Parece
evidente que a resposta é não para ambas as perguntas.
Antes da existência da justiça criada pelo Estado, como a conhecemos,
existe a justiça universal que emana da razão do próprio sujeito, que, apesar
de ser embasada em interesses particulares e não universais, evidenciando
comportamento egoísta do sujeito, advém da natureza, como instinto,
visando sua própria preservação (estado natural), que se mostra evidente
quando a conança no Estado Soberano é abalada.
A AusênciA do estAdo e A rescisão do contrAto sociAl
Diante de tudo o que já foi mencionado, se faz necessário levantar uma
dúvida: Quando o Estado não atende a esta necessidade dos contratantes,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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sendo ausente ou incapaz, deixando de proteger aquele que tacitamente
lhe conou tal missão, não lhe garantindo a reserva de liberdades que o
indivíduo ainda pretendia manter, ou não lhe preservando o direito sobre
seus bens, ou mesmo não oferecendo prestações positivas fundamentais,
como educação, saúde e segurança, o grupo de indivíduos membros
contratantes, poderia rescindir esse Contrato Social?
A dúvida é pertinente ao passo que o Estado atualmente não supre
toda a necessidade da sociedade, obrigação imposta pelo Contrato Social,
especialmente nas favelas, onde os direitos humanos e fundamentais básicos
são negados aos sujeitos, apesar do Estado manter (ou tentar manter) suas
leis ali ainda vigentes.
Em determinadas localidades o Estado é totalmente ausente, não
cumprindo sua prestação de saúde, de educação, dentre outras, mas
principalmente de segurança, impingindo ao povo um status de absoluta
exceção, submetidos a viver com a total privação da assistência e proteção do
Estado, e daí obrigados a se socorrerem da forma que for possível, inclusive
submetendo-se a um Estado paralelo, do crime em geral, especialmente do
tráco.
Neste contexto em que o Estado não cumpre sua função básica, de
garantia de direitos humanos e fundamentais, não só porque garantidos
constitucionalmente, mas porque inerentes ao SER humano, afeto
essencialmente à dignidade humana, é possível concluir que o Contrato
Social está sendo descumprido, havendo uma clara quebra de contrato,
que poderia (?) legitimar uma espécie de rescisão.
O objetivo deste trabalho não é pretender legitimar as atividades
criminosas existentes nas favelas brasileiras, e tão menos advogar em favor
delas, ou pretender justicar essas condutas paraestatais como autênticas.
Mas é inegável que grupos criminosos estão ocupando um vácuo deixado
pelo Estado ao se fazer ausente, e esta ocupação tem surtido efeitos positivos
para a maioria dessa gente excluída, com acesso à bens jurídicos (educação,
creche, energia, internet, segurança, médicos, dentistas, dentre outras) que
eram e ainda são obrigação indeclinável do Estado.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
86 |
Na esteira deste raciocínio, se há o reconhecido abandono total daquela
parcela da população, que também são signatários desse Contrato Social,
negando-se os direitos humanos e fundamentais mais básicos, é evidente
que esses indivíduos irão retornar naturalmente ao Estado primitivo de antes
do estabelecimento do Contrato Social, adotando práticas comuns daquele
remoto tempo, não porque assim escolheram, mas porque assim lhes foi
imposto pelo abandono do ente em quem eles conavam.
Uma vez abandonados nos direitos mais básicos e essenciais para
uma vida digna e ao respeito aos direitos humanos, estariam então
legitimados, estes indivíduos, a rescindir o Contrato Social de que foram
aderentes. Tratar-se-ia de uma situação de descumprimento de cláusulas
obrigacionais pelo Estado detentor do poder, que desencadearia no direito
da parte lesada em rescindir o instrumento.
Nesta hipótese, não poderia o Estado impor suas forças contra o
grupo de excluídos que pretendem rescindir o Contrato Social, e exigir-
lhes cumprimento de suas obrigações, quando o próprio Estado não
cumpriu as dele. Seria uma cláusula de exceção. Uma espécie de exceção
do contrato não cumprido, que contemporaneamente indica que o sujeito
que não cumpriu sua parte no contrato não pode exigir que a outra
cumpra a dela, conhecida desde os bancos acadêmicos como “exceptio non
adimpleticontractus”.
Neste ponto abre-se parênteses para lembrar que, obviamente, a
teoria do Contrato Social de Rousseau é e continua sendo apenas uma
teoria, não se pretendendo equiparar a teoria com qualquer espécie de
contrato expresso ou legal do campo do direito civil. O objetivo do uso de
tal comparativo é meramente exemplicativo e metafórico.
Nesse esteio, a maior dúvida é estabelecer até que ponto o povo é
obrigado a se submeter ao Contrato Social, mesmo diante de evidente
abandono e descumprimento de obrigações por parte do Estado.
Se for admitido que o Estado é um organismo que existe e se
mantém pela vontade da maioria, e concluindo-se que estes ditos excluídos
à margem dos direitos humanos e fundamentais básicos não são a maioria,
haveria um grave empecilho ao intento de rescindirem o Contrato Social,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 87
já que, conforme o conceito de Rousseau, o Contrato Social criou uma
unidade indivisível, um corpo comum constituído de todos.
Rousseau diz que o Contrato Social se sustenta pela vontade geral, o
que é diferente da vontade de todos. Esta última se prenderia ao interesse
privado, enquanto a vontade geral visa o bem comum (ROUSSEAU,
2010, p.45).
Contudo, destaca o pensador que se o objetivo maior do Estado é a
sua própria conservação, este poder, chamado soberania, se impõe a todos
de modo geral e amplo, ainda que contra a vontade particular de alguns
ou de um grupo.
Dessa forma, ainda que esse determinado grupo seja excluído
das prestações obrigacionais do Estado, isolados e reconhecidamente
abandonados, tais contratantes não teriam legitimidade nenhuma para
rescindir o Contrato Social, pois esta vontade encontraria óbice na vontade
geral, ao passo que o Estado não poderia permitir se faça nada que seja
inútil à comunidade ou contrário à sua vontade, e mais que isso, que atente
contra a própria existência do Estado.
Apesar do fato de que:
Não importa por qual lado se remonte ao princípio, chega-se
sempre à mesma conclusão, a saber: que o pacto social estabelece
entre os cidadãos uma tal igualdade que todos se comprometem
sob as mesmas condições e que todos devem usufruir os mesmos
direitos. Assim, pela natureza do pacto, todo ato de soberania,
isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece
igualmente a todos os cidadãos, de modo que o Soberano conhece
apenas o corpo da nação e não distingue nenhum daqueles que o
compõem. (ROUSSEAU, 2010, p.46).
O próprio Rousseau admite que o nó social pode se afrouxar
e o Estado se enfraquecer diante de interesses particulares de pequenas
sociedades, que ganham força e aderentes, o interesse comum começa a
perder força e ganhar opositores, e a vontade geral é ameaçada porque não
é mais unânime (ROUSSEAU, 2010, p. 116).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
88 |
Poderia este fenômeno ser comparado ao que acontece nas favelas
brasileiras, estabelecidas como pequenas sociedades, com suas próprias
regras e seus próprios meios de suprir as ausências do Estado com suas
necessidades básicas.
Outro gigantesco problema encontrado na autotutela do povo
nas situações acima citadas, é o fato de que inexistiria um magistrado
isento, alheio ao conito, que analisasse os litígios e prestasse uma solução
totalmente imparcial, e assim outros direitos igualmente fundamentais,
como o devido processo legal, a presunção de inocência, entre outros, são
igualmente perdidos, o que traria mais problemas ao povo do que solução.
vícios nA teoriA dA vontAde gerAl
O Soberano culpa o próprio povo pela sua necessidade de desvincular-
se do pacto. Se o cidadão se afasta do cumprimento das obrigações impostas
pelo pacto, já que dos direitos atribuídos por este ele não tem acesso, o
Estado entende este ato como atentatório ao bem comum, e usa dos meios
que forem necessários para alcançar seu objetivo original, buscando manter
a ordem.
Mas o próprio Rousseau (2010, p. 45) adverte: “Segue-se do que
precede que a vontade geral é sempre reta e tende sempre à utilidade
pública, mas não que as deliberações do povo tenham sempre a mesma
retidão”.
É verdade que a teoria da vontade geral tem falhas. Não é aceitável
pressupor que todos os cidadãos tenham aderido ao contrato social por
livre e espontânea vontade, porque senão não seria vontade geral, mas
vontade unânime, o que não corresponde à verdade no tocante à adesão
ao referido pacto, especialmente porque o homem tende sempre a atender
seus interesses particulares antes de atentar-se aos interesses gerais.
Por certo que na instituição deste ente soberano chamado Estado
houveram votos vencidos, isto é, sujeitos que entendiam não ser esta a
melhor forma de organização social, mas mesmo assim foram submetidos
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 89
ao contrato social que lhes teria sito, então, imposto, em prol do interesse
de uma maioria, o geral.
Também há que se admitir que é utópico pretender que o contrato
social tivesse sido estabelecido de forma unânime, e que assim permanecesse
até a atualidade. É evidente que há sempre aquele sujeito que discordaria
das cláusulas impostas, ou, ao longo da execução desse pacto, se tornaria
contrário às suas imposições, apesar destes dissidentes serem uma minoria.
Parece ser um fato, e portanto seria inegável, que há uma parcela dos
cidadãos, por menor que seja esta, que está totalmente privada da cobertura
de proteção do Estado, e por esta e outras razões, também não cumpre sua
obrigação contratual com o Estado, criando seus próprios microssistemas
e pretendendo a rescisão com o Estado que os ignora.
É inegável ainda que essa exclusão não atende também à vontade geral,
isto é, o povo não deseja que o Estado abandone ou ignore determinada
parcela de cidadãos, com destaque neste trabalho para os sujeitos que
vivem nas favelas, parecendo assente que a vontade geral indica um desejo
de que todos sejam iguais e tenham acesso aos mesmos bens jurídicos do
Soberano.
Desse modo, é forçoso reconhecer que esse descumprimento
contratual perpetrado pelo Estado não reete a vontade geral, e se não
reete a vontade geral não há legitimidade do Soberano em, ainda assim,
impor suas forças contra tais cidadãos.
A rescisão do contrAto sociAl PerPetrAdA
Através de uma análise do contesto social atual, especialmente das
favelas mais isoladas e ignoradas pelo Estado (não é preciso ir muito longe
para encontra-las), onde os sujeitos criaram seus próprios meios de atender
às necessidades básicas da vida humana, criando um verdadeiro microestado
dentro do grande Soberano, é possível concluir que o Contrato Social de
Rousseau já foi rescindido por essa parcela da população há muito tempo.
O simples fato de o Estado não admitir que nesses pequenos
territórios as suas normas nada valem, pretendendo não perder o status de
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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Soberano, é evidente que aqueles cidadãos são regidos por leis próprias,
tendo criado mecanismos de solução para suas próprias necessidades de
direitos fundamentais básicos, restando ainda mais evidente que o pacto já
não existe mais, foi rescindido por aquele povo.
A própria impotência do Estado em face da estrutura criada nestas
comunidades, que resiste ao Estado e não se submete às suas normas,
evidencia sua falência e a fatídica rescisão do pacto.
Se o objetivo das leis deve ser sempre geral, deve representar a vontade
do povo como se ele mesmo as tivesse feito, e se o Estado soberano é
incapaz de impor suas leis naqueles citados territórios, bem como também
não entrega suas prestações positivas, garantindo direitos fundamentais
mínimos, evidenciando uma ausência inexplicável e demonstrando uma
incapacidade de gerir, parece que se tratam de territórios autônomos,
isolados do poder estatal, e porque não dizer, Soberanos.
Há que se reconhecer que o contrato social sangra e caminha para
uma morte dolorosa. O espaço deixado pelo Estado nessas comunidades
fez nascer a necessidade daquele povo retornar ao estado natural, criando
mecanismos e sistemas que atendam às suas necessidades básicas, controle
na maior parte dos casos ocupado pelo crime organizado e/ou pelo tráco
de drogas, que exerce a função de Estado regulador e o único à quem
aqueles cidadãos se submetem, pois é o único que se faz presente.
Nestes locais o contrato social já foi rescindido, ainda que o Estado
Soberano, ou mais ou menos Soberano, não admita o fracasso, é incapaz
de impor suas obrigações e prestar seus deveres. Aliás, foi exatamente a
ausência de cumprimento de seus deveres para com o povo que levou este
a promover meios de sobrevivência, retornando ao seu estado natural.
É inútil, nesta fase complicada que o pacto se vê, argumentar que
a vontade geral deve se impor à vontade daquela pequena parcela da
sociedade – vontade da minoria. Não há como argumentar contra o fato de
que o Estado é, ali, absolutamente incapaz, obsoleto, derrotado. O próprio
Estado descumpriu o contrato ao negar direitos básicos, cuja obrigação
indeclinável lhe incumbia.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 91
Aquela parcela do povo brasileiro não respeita mais o pacto e não o
cumpre mais. Estão submetidos às suas próprias leis e recebendo prestações
positivas de outro ente paralelo, este sim o seu Soberano.
Rousseau não nega a existência de tal fenômeno, e observa:
No entanto, quando se criam facções, associações parciais em
detrimento da grande, a vontade de cada uma dessas associações
torna-se geral em relação aos seus membros e particular em relação
ao Estado; pode-se dizer então que o número de vontades não é mais
o de homens, mas o de associações. As diferenças tornam-se menos
numerosas e produzem um resultado menos geral. Enm, quando
uma dessas associações é tão grande que sobrepuja todas as outras,
não temos mais como resultado uma soma de pequenas diferenças,
mas uma diferença única; então, não há mais vontade geral, e a
opinião que prevalece é uma opinião particular. (ROUSSEAU,
2010, p. 46).
Sem pretender refutar as armações do respeitável autor, mas apenas
por um exercício de interpretação diversa, nota-se que no Estado como
constituído, as vontades também não são exatamente reexo da vontade
dos homens, mas sim da vontade do ente Estado. Não é diferente dos
microssistemas que se organizam paralelamente ao Estado, onde a vontade
dos homens também é deixada de lado em prol da vontade da associação.
Ambas as situações reetem sempre a expressão da vontade do Soberano,
seja ele o Estado ou o microssistema paralelo.
Não se vê como verdade a armação de que a vontade do Estado
é reexo da vontade geral. Atualmente, o que parece acontecer é que a
vontade do Estado é a vontade do Estado, e a vontade geral é atualmente
ignorada pelo Estado.
Há duas dúvidas que muito incomodam, e são elas: 1- Será esse
cenário reversível? 2- O Estado continuará cedendo espaço para a criação
de novos microssistemas independentes como os já citados?
A proposta deste trabalho é apenas fomentar a discussão, sem
nenhuma pretensão de responder tão complicadas perguntas que
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
92 |
demandariam uma análise muito mais profunda da questão, matéria talvez
mais apropriada para uma dissertação ou tese.
conclusão
O próprio Rousseau admite que não há poder que possa obrigar o
ser que deseja a consentir algo contrário ao seu próprio bem.
O Estado é uma unidade indissolúvel e que iguala todos os cidadãos
em direitos e obrigações, que independentemente das condições adversas
enfrentadas, não estão isentos das imposições deste ente Soberano. A má
gestão da máquina do Estado não pode ser escusa para descumprir o pacto
social, mormente porque a vontade geral não exclui nenhuma parcela da
sociedade da proteção do Estado, apesar das falhas no cumprimento e
efetivação delas.
O objetivo maior do contrato social é a proteção dos contratados.
E se para isso se zer necessário a imposição de leis e o uso da força, que
assim seja, pois além de proteger seus membros o Estado deve proteger a si
próprio e sua Soberania, consubstanciada na sua autoridade, sob pena de
permitir exceção perigosa.
Através da investigação da obra de Jean-Jacques Rousseau foi
possível concluir que, apesar da falha ou ausência total do Estado com
alguns grupos determinados de cidadãos, tendo citado como exemplo as
favelas brasileiras, tal parcela de cidadãos não tem legitimidade de rescindir
o Contrato Social e formar um organismo visando atender seus interesses,
ainda que o Estado não garanta nem mesmo os direitos humanos e
fundamentais mais básicos.
Foi possível concluir ainda, de forma reexa, que a igualdade neste
Estado de Direito não é absoluta, e nem está próxima de ser justa, pois
mesmo diante de agrante situação de desigualdade, a vontade geral se
sobreporá ao desejo da minoria, seja ela excluída da proteção do Estado
ou não, a força dessa suposta “vontade geral” é que reete a verdadeira
soberania, que foi apenas delegada ao ente Estado, mas que nunca saiu
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 93
das mãos do povo, manifestada pela vontade geral, representada mais
especicamente pela maioria da população.
Ainda que existam fortes motivos a justicar o direito e a legitimidade
desses pequenos organismos se criarem e rescindirem o Contrato Social,
porque excluídos do atendimento estatal, não atendidos pela proteção que
se espera desse ente superior, a vontade de pequenos grupos não reete a
vontade geral que garante a existência e força do Estado, que tem a precípua
incumbência de, antes de tudo, proteger e preservar sua própria existência
e soberania sobre o povo, porque esta seria a vontade geral, que jamais
poderá ser derrubada por vontade de uma minoria, ainda que excluída
injustamente pelos demais membros.
Mas ao se analisar a situação atual no país, especialmente as já
citadas favelas, foi possível concluir também que tal rescisão do pacto
social, apesar de ilegal ou ilegítima, já se perpetrou há muito, tendo tal
população criado mecanismos e sistemas de autoproteção, independentes
do Estado original, que atendem às suas necessidades mais básicas, cujo
Estado deixou de atender.
Ainda que o Estado não admita que não exerce soberania sobre
aqueles territórios, pois não há controle, não há imposição de suas leis, não
há prestações básicas de direitos fundamentais àquele povo, resultado sua
total incapacidade diante dos microssistemas criados pelo crime organizado
ou pelos tracantes de drogas, onde há leis próprias sendo aplicadas, seus
próprios juízes, seus próprios impostos e taxas, há que se reconhecer que o
Contrato Social, para tal parcela da população brasileira, já foi rescindido
há muito tempo ou é, no mínimo, ignorado por esse povo.
Em face desses pequenos territórios e microssistemas independentes
o Estado mantém apenas um status virtual de soberania, mas nenhum
exercício legítimo dela na prática é vericado, demonstrando, de forma
indubitável, a ocorrência da rescisão do Contrato Social.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
94 |
referênciAs
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2010.
BiBliogrAfiA
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Trad. João Bénard da Costa. Santos: Martins
Fontes, 1980.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM,
2010.
| 95
6
A CONSTRUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA
DO STF Á LUZ DA TEORIA DA
DERROTABILIDADE NORMATIVA
Ana Cristina Lemos Roque
1
Luciano Macri
2
introdução
Os direitos fundamentais, consagrados como valor supremo,
introduzem um freio a todo voluntarismo jurídico do Estado, quebrando
as bases do positivismo jurídico e da subsunção lógica e representando,
assim, uma resistência a qualquer arbitrariedade, sendo uma rearmação
de que a pessoa não é mero reexo da ordenação jurídica e sim o m desta.
A atividade interpretativa, desenvolvida no âmbito do Poder
Judiciário, assumiu uma importância ainda maior após o advento das
Mestre em Teoria Geral do Direito e do Estado no Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM.
Bolsista Capes/Prosup. Especialista na área de Concentração Direito Empresarial e Tributário pelo Centro
Universitário Rio Preto – Unirp – Advogada e Professora na Comarca de São José do Rio Preto-SP. Endereço
eletrônico:anacristina-lemos@bol.com.br
Mestrando em Teoria Geral do Direito e do Estado no Centro Universitário Eurípedes de Marília –
UNIVEM. Especialista na área de Concentração Ciências Penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina
– UNISUL, Especialização em Direito Constitucional pela UNISEPE. Especialização em Direito Público
pela Escola Paulista de Direito – EDP. Advogado e Professor na Comarca de São José do Rio Preto-SP.
Endereço eletrônico:lumacri@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p95-118
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
96 |
profundas mudanças operadas no constitucionalismo pós Segunda Guerra
Mundial. Pode-se dizer que a importância que adquiriu a discricionariedade
na aplicação do direito vem sendo ampliada gradativamente, tanto
pela necessidade de identicação e delimitação do conteúdo normativo
dos princípios, quanto pela ponderação na aplicação desses princípios,
atividade que cabe ao intérprete construtor do direito.
Dessa atuação como intérprete que busca determinar o signicado
preciso das leis e dos princípios, há espaço para a discricionariedade, tendo
em vista os conceitos abertos de linguagem, a vagueza e a ambiguidade
presentes em nossa linguagem.Segundo a presente abordagem, a
derrotabilidade normativa, através das exceções, é o instrumento adequado
na aplicação do direito penal, uma vez que propicia a concretização dos
direitos fundamentais na busca por um direito penal mais humano e mais
justo.
É inegável a importância do tema abordado e da presente pesquisa
na ceara do direito penal, tendo em vista que se trata de tema ainda pouco
desenvolvido em nossos meios acadêmicos, mas cuja compreensão é cada
vez mais essencial para a concretização de um direito penal mais humano
que garanta o respeito aos direitos fundamentais e à dignidade humana.
A teoriA dA derrotABilidAde normAtivA
A idéia de derrotabilidade das normas jurídicas é apontada
originariamente como proveniente do artigo de Herbert Hart publicado
em 1948, sob o título e Ascription of Responsibility and Rights
(VASCONCELOS, 2010, p. 54).
Para Hart, (1994, p. 153), derrotabilidade deriva da impossibilidade
do estabelecimento de uma lista de condições necessárias e sucientes para
a aplicação do Direito e diante dessa impossibilidade o aplicador do direito
tem que aprender o que pode seguir as palavras “a menos que”, as quais
devem acompanhar a indicação dessas condições de aplicabilidade. Dessa
forma, a derrotabilidade comporta exceções, acomoda a superabilidade de
regras e princípios.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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“De acordo com a teoria da derrotabilidade, pode ocorrer o
afastamento, ou seja, a não aplicação de uma norma jurídica” (SANTOS,
2017, p. 38). As regras de textura aberta os conceitos indeterminados
e a impossibilidade de se prever todas as situações no mundo fático é
que tornam a aplicação da derrotabilidade possível. A derrotabilidade,
apresentada por Hart, é caracterizada por meio de exceções, ou seja, é a
capacidade da norma de acomodar exceções.
A idéia de derrotabilidade diz respeito às normas, tendo em vista que
segundo Bustamante (2005, p. 171), todo sistema jurídico é composto de
normas superáveis. Tanto regras quanto princípios formam um sistema
único, integrante do ordenamento jurídico, sendo parte de um processo
de simbiose constante. A argumentação jurídica empregada ao caso
concreto irá analisar a aplicação a exceção ou o afastamento das regras
e dos princípios a serem utilizado a depender do caso analisado, quando
se trata de uma situação em que seja passível a utilização de mais de uma
norma ao caso concreto.
Segundo Santos (2017, p. 44), “[...] podemos entender que a razão
prática constituiria o fundamento da derrotabilidade, vinculando as
normas, a m de que estas tenham uma aplicação racional conforme seu
conteúdo busca”.
E ainda (SANTOS, 2017, p. 52)
O direito encontra-se em constante transformação e adaptação
às evoluções tecnológicas, sociais e culturais, de forma que uma
determina regra ou lei pode não mais se adequar a novas realidades,
exigindo uma aplicação mais coerente e voltada para a realidade de
determinada sociedade, de forma a exigir que se aceitem exceções a
ela, as quais não são passíveis de identicação quando da elaboração
da lei, ou até podem decorrer de uma falha do legislador em sua
feitura, quando acabou por atingir outros Direitos que deveriam
ser preservados.
O caso do aborto do feto anencefálico é um exemplo de aplicação
da derrotabilidade da norma por tratar-se de uma exceção implícita, posto
que a previsão normativa inicial e geral foi derrotada tendo em vista a
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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falta de previsibilidade da situação especíca em questão no ordenamento
jurídico. A norma geral foi derrotada por princípios morais e éticos, senso
de justiça ou considerações ligadas a políticas públicas. Este caso evidencia
que a questão da possibilidade de superação das normas apresenta especial
relevância no âmbito dos direitos fundamentais.
o ABorto do feto AnencéfAlo
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF
n. 54-8/DF, discutiu a possibilidade de permissão de aborto dos fetos
anencefálicos. Tal discussão foi uma das mais emblemáticas já debatidas
no pleito do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista sua abrangência
multidisciplinar, bem como a toda a questão ética envolvendo o caso.
Segundo o Ministro Relator Marco Aurélio Mello, a questão relevante
acerca do tema é a dimensão humana e a impossibilidade “de se coisicar
uma pessoa, usando-a como objeto” (BRASIL, 2012, p. 21).
A respectiva controvérsia girou em torno da falta de potencialidade
de vida extrauterina dos fetos anencéfalos, ou seja, não se discutia se os
fetos anencefálicos teriam vida ou não. Desta feita, a autora, tendo em
vista a má-formação congênita, pleiteava a antecipação terapêutica do
parto e não o procedimento do aborto em si, posto que não seria este o
caso, uma vez que o aborto pressupõe a potencialidade de vida extrauterina
do feto, e assim não se subsumindo o caso em julgamento ao tipo penal
previsto no Art. 124 do Código Penal, e não sendo, dessa forma, o caso de
criminalização da conduta da gestante.
A questão fundamental postulada e alicerce de toda a tese
argumentativa defendida pela autora consistiam na garantia dos direitos
fundamentais da gestante, direitos estes que não seriam suplantados por
quaisquer outros, tendo em vista que não haveria viabilidade de vida
do nascituro, não havendo, portanto, nesse caso, subsunção fática aos
dispositivos do Código Penal.
Toda a argumentação jurídica da autora da referida ação girou
em torno da ponderação dos bens: a suposta potencialidade de vida do
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 99
nascituro, de um lado; e do outro, a liberdade e a autonomia da gestante.
No caso, a autora arguia a seu favor exatamente a falta de potencialidade de
vida extrauterina do feto anencefálico e, ainda, equiparava a gravidez como
equivalente à experiência da tortura.
O Ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, entendeu que
no caso em questão não havia colisão real entre direitos fundamentais,
apenas conito aparente, e em sede de pedido cautelar, concedeu a
medida liminar, reconhecendo o direito constitucional da gestante de se
submeter à cirurgia terapêutica de antecipação do parto de feto anencéfalo,
após a devida apresentação do laudo médico constatando a presença da
referida anomalia. O voto do Ministro Marco Aurélio seguiu sua decisão
já prolatada em sede de liminar, declarando a permissão do aborto por
interpretação conforme a Constituição.
Segundo marco Aurélio Melo, “a incolumidade física do feto
anencefálico, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias,
não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos
básicos da mulher” (BRASIL, 2012, p. 69). A ponderação é o instrumento
utilizado na valorização dos bens jurídicos tutelados.
Diversas exceções foram utilizadas para reforçar a tese apresentada
pelo Ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo, comprovando
que o direito não consegue prever todas as hipóteses da vida cotidiana,
devendo, dessa forma, comportar exceções que irão derrotar as normas e
princípios então vigentes. O Ministro salienta a importância do argumento
utilizado pela arguente, onde não se pretende a inconstitucionalidade dos
tipos penais, “busca-se tão somente que os referidos enunciados sejam
interpretados conforme a Constituição” (BRASIL, 2012, p. 33). Os
direitos de liberdade, vida, proteção da autonomia, privacidade, saúde
e principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, foram os
princípios em conito na presente questão.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio Mello ressalta o caráter
não absoluto do direito à vida e a inexistência de hierarquia do direito à
vida sobre os demais direitos, enfatizando que a proteção a ele conferida
comporta diferentes gradações conforme entendimento do próprio
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
100 |
Supremo. O Ministro ressalta em seu voto que o “aborto é crime contra a
vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencefálico, repito, não
existe vida possível” (BRASIL, 2012, p. 54).
Importante aqui a opinião do Ministro Marco Aurélio a respeito das
teses favoráveis à manutenção da gestação, “em resposta a essas objeções,
vale ressaltar caber à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos
de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da
gravidez” (BRASIL, 2012, p. 66).
Para o Ministro, a obrigação da manutenção da gravidez se
assemelha a um quadro de tortura, “o ato de obrigar a mulher a manter a
gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio
corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade
(BRASIL, 2012, p. 68). E termina enfatizando a importância da aplicação
do princípio da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, na
decisão do caso concreto.
Destaca-se que dentre as diversas opiniões colacionadas durante a
instrução do presente acórdão, encontra-se a Resolução n. 1.752/2004
do Conselho Federal de Medicina, que consignou serem os anencefálicos
natimortos cerebrais. Segundo os estudos realizados, o anencefálico jamais
se tornará uma pessoa, não há qualquer expectativa de vida em potencial,
mas sim a certeza da morte.
O voto prolatado pelos Ministros que seguiram o voto do relator,
pela procedência da ADPF, foram no sentido de que o feto anencefálico
não é ser dotado de vida e que, segundo esse entendimento, não seria o
caso de subsunção ao tipo descrito no Art. 124 do Código Penal, tendo
em vista que não havendo vida, a antecipação terapêutica do parto seria
conduta permitida. O “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida
em potencial. No caso do anencefálico, repito, não existe vida possível
(BRASIL, 2012, p. 54).
Segundo o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, seria
o caso de terceira hipótese de excludente de ilicitude, tendo em vista
o reconhecimento da existência de vida. Seu voto, no entanto, foi pela
procedência da ação. Para o referido Ministro, não se tratava de subsunção
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 101
às excludentes do Art. 128 do Código Penal. Para ele, o juiz pode adaptar
a lei à realidade social, pois a lei não deve ser inexível e ela pode ser
moldada, haja vista a relevância do caso concreto.
Em seu voto, Gilmar Mendes se refere à imposição da gestação como
condição análoga à tortura psíquica e violação à livre escolha da mulher
gestante, tendo em vista a falta de previsão legislativa adequada ao fato.
Assim, em seu voto, julgou procedente a ADPF, dando uma interpretação
conforme a Constituição com efeitos aditivos, alterando o sistema
normativo originário para permitir uma terceira excludente de ilicitude.
O Ministro Luiz Fux votou, seguindo o voto do Relator, pela
procedência da ADPF, conferindo interpretação conforme a Constituição
aos dispositivos penais. Em suas razões, o Ministro abordou a questão do
Direito Penal Mínimo, salientando o caráter subsidiário e fragmentário do
direito penal como sendo esse àultima ratio.
Os Ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowiski votaram pela
improcedência da demanda, tendo em vista o reconhecimento da vida
do feto anencefálico. Os votos foram no sentido de que haveria o crime
de aborto.
O Ministro Ricardo Lewandowiski, em suas argumentações, alegou
que caberia apenas ao legislador excluir a punibilidade e que seria impossível
a aplicação analógica de interpretação extensiva de normas excludentes
de punibilidade. Para o Ministro, trata-se de ativismo judicial, caso em
que o Judiciário estaria entrando na esfera de atribuições do legislativo e
alterando o ordenamento jurídico.
Segundo o Ministro Cezar Peluso, o feto anencefálico teria vida e,
nesse caso, a antecipação terapêutica seria conduta típica que se subsumi
ao tipo penal incriminador dos Arts. 124 e 126 do Código Penal. Não
estando conguradas as hipóteses de excludentes, resta a vedada hipótese
de aborto. Em seu voto, o Ministro reconhece o conito de princípios,
todavia, entende que a vida do feto é o interesse a ser tutelado.
O Ministro Cezar Peluso, em suas considerações, trouxe a questão
do erro médico, citando o caso Marcela, cujo diagnóstico inicial foi de
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
102 |
anencefalia. Pautou seu voto nos dados divergentes das audiências públicas
e ressaltou, ainda, o risco de se abrirem precedentes caso a ADPF n. 54-8/
DF viesse a ser julgada procedente, citando outras anomalias de igual
gravidade. Segundo o entendimento do Ministro Cezar Peluso, “daí,
mui diversamente do que se aduz na inicial, o aborto provocado de feto
anencefálico é conduta vedada, e vedada de modo frontal, pela ordem
jurídica” (BRASIL, 2012, p. 375).
Para o Ministro, a antecipação terapêutica do parto de feto
anencefálico é conduta tipicada pelo crime de aborto, subsumindo-se a
conduta à norma penal, não sendo o caso de interpretação. Segundo o
Ministro, não pode o STF atuar como legislador positivo, criando “hipótese
de exclusão de punibilidade do aborto, ou de lhe desnaturar a tipicidade,
quando carece de legitimidade e competência constitucionais para tanto
(BRASIL, 2012, p. 412), por isso, julgou pela improcedência do pedido.
A Ministra Rosa Maria Weber, seguindo o voto do relator, julgou
procedente a ADPF n. 54-8/DF, partindo da questão semântica sobre o
conceito de vida sob a perspectiva do Direito. Segundo a Ministra, no
Código Penal, existem gradações na importância da vida em diferentes
tipos penais. Em seu voto, salientou que só ocorrerá crime de aborto se
houver vida, concluindo, ainda, que a Lei n. 9.434/2007, ao regulamentar
a doação de órgãos, deniu em seu Art. 3 mortes como morte encefálica,
entendendo ser vida a atividade cerebral não restrita apenas à vida orgânica,
mas à consciência e à capacidade de se socializar.
O voto prolatado pela Ministra se ana de forma precípua com tudo
o que foi exposto nos capítulos anteriores deste trabalho. Segundo Rosa
Weber, o pedido deve ser interpretado conforme a Constituição. A vontade
da gestante deve prevalecer, a escolha pessoal da gestante pela manutenção
ou a interrupção da gravidez do feto anencefálico deve ser respeitada, seja
ela qual for.
Em seu voto, a Ministra trata acerca da ponderação de valores entre
a vida do feto anencefálico e a dignidade, a integridade, a liberdade a saúde
da gestante e os direitos reprodutivos da mulher. Segundo a Ministra, não
existem valores absolutos, sendo os valores relativos. Para uma convivência
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 103
pacíca e harmônica em sociedade, “todos devem respeitar as percepções
valorativas de mundo dos demais” (BRASIL, 2012, p. 124).
A Ministra reitera a função do direito penal como últimaracio,
enfatizando que a intervenção do direito penal nas relações sociais deve
ser mínima, haja vista “não só por se mostrar pouco ecaz como regulador
de condutas, mas por gerar, esta ineciência, custos sociais e econômicos
(BRASIL, 2012, p. 134).
Os princípios norteadores de um direito penal mínimo são o suporte
para a decisão da Ministra, que utiliza a teoria da proporcionalidade, na
aferição de valores dos bens jurídicos em julgamento. Por m, a Ministra
conclui em seu voto que qualquer interpretação em sentido contrário seria
violação à liberdade de escolha da mulher e à sua dignidade.
O Ministro Celso de Mello (BRASIL, 2012, p. 327) ressaltou
a importância da dignidade da pessoa humana. Segundo ele, “a
essencialidadeque assume, em nosso sistema jurídico, como fator estruturante
do ordenamento estatal”, tendo amparado seu voto no direito comparado
e na jurisprudência internacional, colacionando normas de Direito
Internacional como fundamento jurídico.
Segundo o Ministro Celso de Mello (2012), a técnica da ponderação
e a proporcionalidade são instrumentos ecazes no balizamento de direitos
antagônicos, em que se encontram presentes valores constitucionais de
igual ecácia e autoridade. Em sua linha de argumentação, o Ministro
arma que o direito penal deve acompanhar as inovações fundadas nas
transformações pelas quais passa a sociedade, existindo uma necessidade de
adequação do ordenamento jurídico a essa nova realidade social.
Ressalta-se, ainda, o papel fundamental do Supremo Tribunal
Federal na concretização dos direitos e liberdade pública. O voto do
Ministro Celso de Mello é procedente com interpretação conforme a
Constituição, aos art. 124, 126, “caput”, e 128, incisos I e II, todos
Código Penal, “para que seja declarada a inconstitucionalidade, com
ecácia ‘erga omnese efeito vinculante, de qualquerinterpretação que
obstea realização voluntáriade antecipação terapêutica de parto do feto
anencefálico” (BRASIL, 2012, p. 366).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
104 |
No tocante ao voto do Ministro Carlos Ayres Britto, ele votou pela
procedência da ADPF n. 54-8/DF, delineando seu voto com o do Ministro
Relator, abordando a carência de vida do feto anencefálico e inserindo a
antecipação terapêutica do parto como conduta atípica. Em seu voto, o
Ministro Carlos Ayres Brito trata da polissemia dos dispositivos penais,
enfatizando existirem três signicados passíveis de extração dos signos
linguísticos” (BRASIL, 2012, p. 256).
Aduz em suas razões a tipicidade do caso, sendo a antecipação
terapêutica do parto do feto anencefálico caracterizada como crime de
aborto, no entanto, segundo o entendimento do Ministro, não congura
prática penalmente cabível. O cerne da questão que entrelaça o voto é o
início da vida, “ou seja, não há uma vida a caminho de uma outra vida
estalando de nova” (BRASIL, 2012, p. 259).
E prossegue em seu voto, equiparando as exceções contidas na
gura típica do crime de aborto, com as razões explicitadas na antecipação
terapêutica do parto do feto anencefálico; a manutenção da gravidez, o que
nesses casos, corresponderia à mesma tortura psicológica da manutenção
da gravidez resultante de estupro, “donde o mais que justicado emprego
do brocardo latino ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio, a se traduzir
na fórmula de que, onde exista a mesma razão decisiva prevalece a mesma
regra de direito” (BRASIL, 2012, p. 263).
Em suas alegações nais o Ministro Carlos Ayres Britto, segue o
voto do Relator, interpretando conforme a Constituição e declarando a
atipicidade.
A Ministra Carmen Lúcia sustentou seu voto no direito à vida, à
liberdade e à responsabilidade da mulher. O princípio da dignidade será a
pauta de todas as alegações apresentadas no transcorrer do voto.
Segundo a Ministra “a resolução do presente conito entre o direito
fundamental à vida digna e o direito social à saúde e à autonomia da
vontade requerem o exame de princípios a serem relevados no caso posto
a exame. Em uma interpretação eminentemente construtivista prossegue,
ao julgador a tarefa de fazer a ponderação de bens jurídicos tutelados
pelo sistema, todos de inegável relevo para a vida de cada pessoa e da
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 105
sociedade. Exercitam-se, aqui, o que a doutrina denomina de ponderação
de princípios na teoria da proporcionalidade” (BRASIL, 2012, p. 181).
Assim, na construção do voto, a Ministra ressalta o caráter evolutivo
do conceito de justiça, que deve acompanhar as revoluções pelas quais
passa a sociedade, sendo “o Código Penal, como qualquer lei, há de se
ajustar às mudanças e exigências de uma sociedade em constante evolução
e mutação” (BRASIL, 2012, p. 217).
E naliza o voto julgando procedente a ADPF n. 54-8/DF e
declarando que “quem não é livre para conhecer e viver o seu limite não
o é para qualquer outra experiência. Quem não domina o seu corpo não
é senhor de qualquer direito. Pelo que a escolha é direito da pessoa não
atribuição do Estado (BRASIL, 2012, p. 236).
Ao longo do julgamento perante o Supremo Tribunal Federal,
diversas teses foram apresentadas, emergindo pontos controversos e
posições éticas e religiosas antagônicas, tudo com respaldo em dados e
registros cientícos, constatando-se profundas divergências, inclusive,
por parte da comunidade médica, posto que alguns sustentavam que
haveria riscos potencializados à gestante e outros eram favoráveis ao
prolongamento da gravidez, sustentando que os riscos não seriam
agravados pela condição do feto.
Todo o cerne do julgamento foi pautado pela dúvida da existência
ou não de vida do feto, e se uma gravidez, onde existe a certeza da morte
do nascituro, devendo ser levada até o nal, implicando dessa forma grave
violação à dignidade da mulher e ao seu direito de liberdade de escolha.
Ao optar pela dignidade da mãe, o Ministro Marco Aurélio justica sua
decisão, tendo por pauta a lei e a busca da paz.
O julgamento da ADPF- 54 se encontra pautado por princípios.
A instrumentalização da pessoa inerente ao princípio da dignidade da
pessoa humana foi o escopo de todo o julgamento, tendo sido utilizado
tanto por aqueles que votaram a favor do aborto, quanto por aqueles que
votaram contra. “A colisão entre liberdade de uma pessoa e direitos de
outras pessoas se resolve, via de regra, por uma ponderação de interesses
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
106 |
que deve ser pautada pelo princípio da proporcionalidade” (SARMENTO,
2016, p. 166).
Desse modo, ao votarem pela procedência da ADPF, os Ministros
buscaram uma harmonização entre os direitos fundamentais, em que
o direito penal “pode ser visto como uma dessas soluções, ao atuar no
controle social em busca de uma possível paz para a sociedade” (SANTOS,
2014, p. 98).
considerAções finAis
A segurança jurídica é o valor a ser buscado ocorre, no entanto, que
o constitucionalismo alterou de forma profunda o civil law aproximando-o
do common law, tendo em vista que o juiz, antes adstrito à estrita aplicação
da lei, passou a interpretá-la e a exercer uma função criativa, dando
efetividade aos princípios contidos no ordenamento jurídico.
Para o jurista do common law, a idéia de derrotabilidade é aceita
de maneira racional e natural tendo em vista a tradição dos precedentes
e a forma como são utilizados ou até mesmo afastados. A argumentação
jurídica passa pelas circunstancias fáticas do caso concreto para o qual
uma norma jurídica será utilizada ou até derrotada, se e quando toda a
carga argumentativa utilizada for no sentido de indicar o afastamento
do precedente para determinada situação especíca em julgamento,
motivando nova decisão.
O julgamento da Arguição de descumprimento de preceito
fundamental n.54-8/DF é um dos inúmeros exemplos da aplicação da
derrotabilidade no direito penal, como instrumento e ferramenta essencial
ao operador do direito no suprimento de uma omissão legislativa, diante
da qual ao juiz o controle dessa insuciência da norma.
Diante da situação em que a lei é omissa ou inadequada para situação
concreta, o respeito aos direitos fundamentais e à dignidade humana é
o limite para o direito penal. A dignidade humana é o alicerce de onde
emana os demais princípios penais e sob essa perspectiva, o direito penal
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 107
deve buscar, através da derrotabilidade normativa, um equilíbrio e uma
proporcionalidade na aplicação da lei.
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| 109
7
A AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
- ELEMENTOS, NATUREZA JURÍDICA E O
INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA
Arai de Mendonça Brazão
1
Marco Aurélio de Castro
2
1. introdução
A ação de improbidade administrativa é, hoje, um dos mecanismos
mais utilizados para o combate à corrupção e má versação do dinheiro
público, sendo que sua previsão expressa no artigo 37, § 4º da CF, a
improbidade ganhou regulamentação através da Lei 8.429, de 02 de junho
de 1992, que em muitos aspectos, não se mostrou muito clara.
Um dos pontos que não dispôs a norma é sobre sua natureza jurídica,
tarefa essa que cou a cargo da doutrina e jurisprudência.
O estudo parte denição do ato de improbidade administrativa,
fazendo uma abordagem sobre os requisitos que integram o seu conceito,
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. Advogado. Integrante do
grupo de pesquisa Constitucionalização do Direito Processual (CODIP). E-mail: araimb@hotmail.com
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM. Promotor de Justiça do
Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Graduado em Direito pela Universidade de Marília e especialista
em Direito Público pela Universidade de Cuiabá. E-mail: gaecomt.marco@gmail.com.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p109-124
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
110 |
consoante posição de grande parte da doutrina. Também será objeto
de análise, ainda que sem aprofundamento, a natureza sancionadora
do ato de improbidade, o que atrai para ações dessa natureza, princípio
e garantias típicas do processo penal. Em seguida, a pesquisa fará uma
incursão sobre o instituto premial da colaboração premiada, registrando
de forma inaugural que o direito penal premial é instrumento utilizado
pelo Estado (papel punitivo) visando atingir maior ecácia investigativa,
em especial, naqueles tipos de condutas penalmente relevantes, onde a
utilização das regras ordinárias de investigação não alcança (por regra) o
interesse do restabelecimento probatório da situação anterior ao delito
praticado. A colaboração premiada (termo somente utilizado com a edição
da Lei 12.850/13) (espécie do gênero direito premial), tem se mostrado
extremamente ecaz no levantamento de fatos que antes se vislumbrava
apenas no imaginário dos personagens atuantes no combate a criminalidade
organizada. O instituto (já com quase 05 anos de vigência) após atingir
(talvez) o seu ápice (inúmeras operações de combate a organizações
criminosas onde o pano de fundo era a organização criminosa), inicia a fase
de ser questionado judicialmente, em especial acerca da forma como vem
sendo interpretado e modulado pelos aplicadores do direito (em especial
em instâncias inaugurais) diante dos casos concretos.
O debate que será também proposto neste trabalho, é o de analisar o
instrumento da colaboração premiada, indicando seu nascedouro no direito
penal, buscando porém, indicar e vincular a sua possibilidade de aplicação
em ambientes diversos do direito penal. Reforçamos a idéia da existência
de um microsssistema de prevenção e combate a corrupção, delineando
que este sistema, deve buscar sempre uma harmonia de seus institutos
de acordo com seus objetivos. Assim, a legislação anterior (inserida neste
microssistema) àquela onde o instituto da colaboração premiada realmente
foi especicada quanto ao seu conteúdo e forma (Lei 12.850/13), deve
buscar adequação através do método interpretativo desenvolvido por
Bobbio (1995) chamado de interpretação corretiva, para adequar-se e
tornar-se compatível dentro de um sistema único de tutela anticorrupção.
Referida legislação que inicialmente se mostra heterogênea, mas que
analisada sob a ótica de princípios constitucionais aplicáveis à espécie, se
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 111
mostra possível de se tornar homogênea dentro do sistema legal que tutela
entre outros o Patrimônio Público.
O que se propõe no estudo desenvolvido é uma nova visão sobre a
vedação constante no artigo 17, § 1º, da Lei n. 8.429, de 02 de junho de
1992, à luz de uma concepção mais contemporânea do processo punitivo e
a justiça negociada, inegavelmente introduzida no nosso ordenamento, de
modo a tornar a prestação jurisdicional mais ecaz, e reparação dos danos
sofridos pelo ordenamento jurídico, mais efetivo. Percorreremos também,
o caminho de interpretação da Lei 8.429/92 sob o enfoque da forma de
responsabilidade do agente improbo no que ser refere a utilização ou não
de preceitos oriundos do direito penal para a efetiva responsabilização, a
forma de investigação dos atos de improbidade administrativa, e também
o aspecto do caráter disponível ou não da ação de improbidade, sendo
que tal pressuposto primário de enfrentamento abrirá ou não o caminho
necessário para a conrmação da possibilidade de extensão do instituto da
colaboração premiada neste ambiente diverso do penal.
No mais, a pesquisa não tem a pretensão de esgotar tormentosos
temas, mas apenas trazer informações que instiguem o debate, notadamente,
sobre a atribuição de posições ancoradas no raciocínio jurídico atual.
A metodologia utilizada foi de caráter hipotético-dedutivo, utilizando
a pesquisa bibliográca e da posição dos Tribunais acerca do assunto como
fonte de observação.
2. imProBidAde AdministrAtivA
Hodiernamente a defesa da probidade, em especial na seara pública,
vem ganhando proteção dos ordenamentos. No Brasil, a Constituição
Federal, trouxe a previsão expressa de proteção dos princípios da
administração pública, bem como, no seu artigo 37, parágrafo 4º, o
sancionamento pela prática dos atos de improbidade administrativa na
esfera pública. A Carta Política pretendeu punir severamente o agente
público que utiliza do cargo ou funções públicas para enriquecer,
causar prejuízo ao erário público, ou mesmo que viola os princípios da
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
112 |
administração pública, com desonestidade funcional. O bem jurídico
tutelado pela norma constitucional é a probidade administrativa e o
patrimônio material da Administração Pública, em segundo plano.
Como ato de improbidade administrativa, no sentido etimológico,
podemos entender aqueles atrelados à corrupção e desonestidade na seara
pública. Regulamentando a Constituição, foi editada a Lei n. 8.429, de
2 de junho de 1992, que trouxe a tipicação dos atos ímprobos em seus
artigos 9º, 10 e 11. Boa parte da doutrina e jurisprudência entende que
o ato ímprobo deve ser aquele correspondente aos tipos legais, praticados
com dolo ou culpa (esta somente no caso do artigo 10), com o plus da
desonestidade ou má-fé.
Como bem observa Alexandre de Moraes (2002, p. 261):
[...] a nalidade da lei é responsabilizar e punir o administrador
desonesto. Vale dizer, a Lei de Improbidade Administrativa não
pune a mera ilegalidade, mas apenas as ações ou omissões voltadas
à corrupção. É importante salientar que o ato de improbidade
deve ser ilícito, ou seja, o enriquecimento do agente público ou
benefício a terceiro deve decorrer de um ato ou decisão ofensiva ao
Direito; caso contrário, teremos um enriquecimento lícito.
Há, portanto, que se fazer uma distinção clara entre a ilegalidade
ou irregularidade e a improbidade administrativa, que a jurisprudência
deniu como ilegalidade qualicada, lembrando que o autor deixa em
evidência (através de técnica interpretativa) que a má-fé ou desonestidade
são os elementos que qualicam o ato ilegal como ímprobo.
Sob a ótica dos princípios previstos na Constituição Federal,
direcionados à Administração Pública, em conjugação com a demarcação
e extensão feitas pela Lei n. 8.429/92, tem-se como ato de improbidade
administrativa aquele tido como ilegal, fundado na má-fé do agente
público que, isoladamente ou com a participação de terceiro, viola o dever
de probidade administrativa, com ou sem proveito econômico, produzindo
ou não lesão ao patrimônio público.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 113
Não basta, para caracterização dos tipos previstos nos artigos 9, 10
e 11, da Lei de Improbidade Administrativa, tão somente que o agente
tenha incorrido nas hipóteses previstas em seus incisos, ou ainda que o
ato seja considerado ilegal lato sensu. O ato ilegal necessita ser acrescido da
má-fé para adquirir o status de ímprobo.
Neste sentido, cita-se o julgado do Tribunal Regional Federal da
1ª Região (2005) que bem representa a posição dos demais Tribunais,
inclusive os Superiores:
A má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. A ilegalidade só
adquire status de improbidade administrativa quando a conduta
antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração
Pública pela má-fé do servidor, ou quando há proveito patrimonial
obtido com a conduta ímproba.
A tutela da probidade administrativa, para sua aplicação, necessita
muito mais do que a mera causalidade civil entre causa e efeito, sendo
imprescindível também, a comprovação de elementos valorativos para
que desta forma e atuando com individualidade na análise da conduta de
um cidadão, possamos ultrapassar princípios constitucionais derivados da
dignidade da pessoa humana para impor uma pena (prevista na legislação
cível, mas pena sim).
Deve ser entendido que o constituinte, determinou a punição do
ato de improbidade ou ato de corrupção na seara pública, não autorizando
o legislador ordinário ou a doutrina a entender de maneira diversa, por
isso, não é crível aceitar a extensão do desiderato buscado pelo artigo 37,
§ 4º, da Constituição Federal, colocar a referência na lista de referências às
meras irregularidades.
Não se pode confundir a improbidade administrativa com
erros cometidos no exercício da função estatal. A Lei de Improbidade
Administrativa, em uma visão constitucional, foi delineada para corrigir os
graves desvios éticos por parte dos agentes públicos.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
114 |
Em outro viés, Osório (2007) diz que os atos de improbidade
administrativa, além de associados à desonestidade no setor público,
também são imputáveis às graves ineciências na gestão pública.
Ainda se referindo ao conceito de improbidade, também se faz
necessário destacar, que as modalidades previstas na lei exigem a presença
do dolo, como elemento volitivo à prática das condutas descritas nos tipos.
O dolo é denido pela doutrina como a ação voluntária e consciente
em causar determinado resultado, podendo ainda ser classicado como
direto ou eventual. Na primeira modalidade o agente admite o resultado
danoso, enquanto na segunda, muito embora haja a previsão do resultado,
assume o risco de produzi-lo, caso realmente se consume.
O dolo, portanto, é imprescindível à conguração do ato de
improbidade administrativa. Mesmo porque, seria inverossímil se imaginar
a existência da má-fé no ato, sem que se tenha a intenção de praticá-lo.
É impossível se pensar em um agente público desonesto ou corrupto
por culpa, uma vez que o conceito de culpa está associado ao não querer,
proveniente de um descuido.
Outro argumento a demonstrar a impossibilidade de acatamento da
gura culposa, se relaciona com o princípio da proporcionalidade. Isso
porque a improbidade administrativa tem previsão de severas sanções,
como a suspensão dos direitos políticos e perda do cargo público, que
estão ligadas a direitos fundamentais. Nesse caminho, viola o princípio
da proporcionalidade a aplicação de sanções tão severas, por condutas
ligadas à negligência, imprudência ou imperícia do agente, onde não
há intenção na prática do ato. Contudo, tem-se observado em decisões
proferidas, especialmente pelo Superior Tribunal de Justiça, a admissão da
gura culposa, somente no tipo previsto no artigo 10, ou seja, no ato de
improbidade que cause dano ao erário.
A corrente que defende a possibilidade da culpa, na gura descrita no
artigo 10, da LIA, utiliza como fundamento a literalidade do dispositivo.
Vê-se em diversos julgados daquela Corte Superior, no entanto,
a exigência de demonstração da culpa grave, no sentido de exigir uma
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 115
intensidade na conduta que vai além do mero descuido. O aresto abaixo
bem representa esse entendimento (BRASIL, 2014):
A improbidade administrativa é ilegalidade tipicada e qualicada
pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a
jurisprudência do STJ considera indispensável para a caracterização
de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para tipicação
das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo
menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10.
2.1. nAturezA dA Ação
Outro aspecto de relevância para o tema em discussão, é no sentido
de se denir a natureza da ação de improbidade administrativa. Muito se
discute na doutrina acerca desse assunto, sendo certo que duas correntes se
sobressaíram. A primeira defende que a ação de improbidade administrativa,
espécie autônoma de ação que tutela direitos transindividuais, de caráter
eminentemente punitivo, possui natureza civil.
Para esta, a redação do artigo 37, § 4º da Constituição Federal de
1988 é sucientemente clara quando emite o comando para legislador
ordinário para regulamentação da improbidade, fazendo a ressalva “sem
prejuízo da ação penal cabível”.
A expressão evidenciaria que a ação de improbidade não possui
natureza penal, mas cível. Tal corrente é considerada como majoritária na
doutrina, ganhando respaldo na jurisprudência dos tribunais. Entretanto,
outra corrente vem ganhando destaque no meio jurídico, com a defesa de
que a ação de improbidade possui natureza administrativa.
Tal corrente é encabeçada pelo já lembrado jurista Osório (2007, p.
165) que assim dene sua posição:
Sustentamos originalmente a teoria conforme a qual a Lei 8.429/92
tipica os atos de improbidade através de princípios e regras de
Direito Administrativo, já desde a Carta Constitucional (art.
37, par. 4º). A partir dessa perspectiva, o ilícito de improbidade
é denido pelo Direito Administrativo e as respectivas sanções
também o são. Daí porque sustentamos que as sanções previstas
na Lei 8.429/92 são sanções de Direito Administrativo e, portanto,
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
116 |
de Direito Administrativo Sancionador é que se trata esse
instrumental, conquanto manejado pelo Poder Judiciário, através
de um incomum processo punitivo.
Para esta, a natureza administrativa do ato de improbidade não
impediria a aplicação diretamente pelo Poder Judiciário, eis que essa
vertente do direito administrativo não se mistura com o poder disciplinar.
Forma-se, então, um processo legal punitivo de cunho administrativo.
Em alguns julgados, o Superior Tribunal de Justiça manifestou
inclinação por esta linha, sendo oportuno citar como paradigma
Recurso Especial n. 885836/MG. Nota-se ainda, que o mesmo tribunal
vem reconhecendo, reiteradamente, a natureza quase penal da ação de
improbidade administrativa.
Independente da corrente adotada, certo é que a improbidade
administrativa integra o sistema punitivo estatal, com aplicação de sanções
que atingem direitos fundamentais. São sanções de natureza grave, o
que torna inevitável, portanto, o resguardo de princípios e garantias do
direito punitivo, como a presunção de inocência, devido processo legal,
individualização da pena etc.
Se de um lado temos o direito fundamental à boa governança
pública, que é violada com a improbidade, de outro temos os direitos
fundamentais dos acusados do ato, que ensejam o respeito a garantias
típicas do processo penal.
3. imProBidAde AdministrAtivA e meios de investigAção
Os atos que conguram improbidade administrativa estão elencados
nos arts. 9°, 10° e 11° da Lei 8.429/92, sendo que naturalmente para a
deagração de uma demanda judicial que vise responsabilizar o autor de um
ato improbo, imprescindível a apuração anterior que indique a existência
mínima de indícios de autoria e materialidade e demais elementos exigíveis
para a provocação do Poder Judiciário.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 117
O cumprimento destes elementos mínimos exigíveis para o andamento
judicial de uma ação cível com estrutura na legislação pertinente, pode
se dar por inúmeros instrumentos de apuração preliminar. Podemos citar
como exemplo, os procedimentos administrativos (sindicâncias e processos),
comissões parlamentares de inquérito, tomadas de contas, inquérito civil
público etc. Por opção ao tema, e levando-se em conta a idéia de trabalhar o
instituto da colaboração premiada em ambiente diverso do penal, será aqui
tratada a espécie de investigação elencada como Inquérito Civil.
É neste ambiente, que os atos que ensejam, em tese, condutas puníveis
pela Lei 8.429/92 são investigados e havendo elementos mínimos, serão
alvos de demandas judiciais com sérias repercussões àqueles cidadãos tidos
como improbos, sendo certo que em havendo empréstimo de informações
obtidas através de um negócio jurídico de colaboração premiada entabulado
no âmbito penal, é neste instrumento (quando entabulado no ambiente
ainda investigativo) que ele será trazido ao ambiente cível e iniciada a
discussão do seu cabimento ou não fora da seara penal.
Também será neste contexto que, em havendo a aceitação da deagração
da realização do negócio jurídico denominado colaboração premiada em
ambiente cível, que será entabulado os termos de um acordo. Na mesma
linha do Inquérito Policial ou do Procedimento Investigatório Criminal, tal
instrumento de levantamento de dados, provas e informações, segue um rito
próprio e muitas das vezes (quando há uma estrutura mínima de inteligência
investigativa pelo órgão acusador - MP) pelo mesmo fato ilícito (quando
há repercussão de matéria penal e de matéria prevista na lei 8.429/92) é
instaurado como procedimento em paralelo aos autos de investigação de
natureza penal. Deste não é dependente, mas certamente, sua produção, em
estrutura de divisão de tarefas com o ambiente penal (com possibilidade do
uso de estratégias investigativas e compartilhamento de provas futuras) tem
trazido experiências promissoras ao ambiente de conhecimento.
O objetivo de uma colaboração, não pode deixar de ser
compreendido também como um fomento a traição dentro do grupo
criminoso estruturado, lembrando que eventual compartilhamento de
conhecimento obtido através de uma colaboração premiada realizada em
ambiente penal e não aceito na esfera cível, não deve ser admitido, uma vez
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
118 |
que o colaborador só agiu assim pela troca ofertada, ou seja, nestes casos,
o Estado não pode agir com torpeza e romper o princípio da conança,
alicerce do negócio jurídico nominado colaboração premiada (SALGADO,
2016, p. 530-531).
3.1 A interPretAção corretivA como Argumento de extensão do
instrumento dA colABorAção PremiAdA A temAs extrA-PenAis
É fato, que analisando as leis 8.429/92 e 12.850/13, estando ambas
dentro de um microssistema de combate a atos de corrupção, necessário
vericar que, em tese,há certa antinomia entre as disposições que permitem
a entabulação de um acordo com o agente delituoso, tendo o Estado
de abrir mão de certas consequencias aplicáveis àquele que transgride o
ordenamento jurídico penal e o pressuposto de indisponibilidade da ação
civil que visa tutelar o patrimônio público. Assim, forçoso o reconhecimento
de uma, em tese, contrariedade substancial dentro do mesmo sistema legal
que tem como tutela os mesmos valores.
A antinomia está evidenciada, porém a grande questão que se coloca
é como resolvê-la. Acerca deste tema, Bobbio (1995, p. 91-103) nos
ponderou que:
Devido à tendência de cada ordenamento jurídico se constituir em
sistema, a presença de antinomias em sentido próprio é um defeito
que o intérprete tende a eliminar. Como antinomia signica o
encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser
ambas verdadeiras e, com referência a um sistema normativo, o
encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas, a
eliminação do inconveniente não poderá consistir em outra coisa
senão na eliminação de uma das duas normas (no caso de normas
contrárias, também na eliminação das duas). Mas qual das duas
normas deve ser eliminada? Aqui está o problema mais grave das
antinomias. O que dissemos no item 3 refere-se às regras para
estabelecer quando nos encontramos frente a uma antinomia.
Mas, uma coisa é descobrir a antinomia, outra, resolvê-la…[...]...
As regras fundamentais para a solução das antinomias são três: a)
o critério cronológico; b) o critério hierárquico; c) o critério da
especialidade.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 119
Existem determinadas situações legais dentro de um sistema jurídico,
onde a solução de eventual antinomia não encontrasolução por referidos
critérios objetivos, sendo que nestes casos a solução também é ditada com
rigor por referido doutrinador:
Devemos, porém, reconhecer que essas regras deduzidas da forma
da norma não tem a mesma legitimidade daquelas deduzidas dos
três critérios examinados no parágrafo precedente. Isso signica,
em outras palavras, que, no caso de um conito no qual não se
possa aplicar nenhum dos três critérios, a solução do conito é
conada à liberdade do intéprete; poderíamos quase falar de um
autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resolver
o conito segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas
hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e consolidada
tradição e não se limitando a aplicar uma só regra. Digamos então
de uma maneira mais geral que, no caso de conito entre duas
normas, para o qual não valha nem o critério cronológico, nem o
hierárquico, nem o da especialidade, o intérprete, seja ele o juiz ou
o jurista, tem a sua frente três possibilidades: 1) eliminar uma; 2)
eliminar as duas; 3) conservar as duas.....[...]....A terceira solução
- conservar as duas normas incompatíveis - é talvez aquela à qual
o intérprete recorre mais freqüentemente. Mas como é possível
conservar duas normas incompatíveis, se por denição duas normas
incompatíveis não podem coexistir? É possível sob uma condição:
demonstrar que não são incompatíveis, que a incompatibilidade
é puramente aparente, que a pressuposta incompatibilidade é
puramente aparente, que a pressuposta incompatibilidade deriva
de uma interpretação ruim, unilateral, incompleta ou errada de
uma das duas normas ou de ambas. Aquilo a que tende o intérprete
comumente não é mais à eliminação das normas incompatíveis, mas
preferentemente, à eliminação da incompatibilidade. Às vezes, para
chegar ao objetivo, introduz alguma leve ou parcial modicação no
texto; e nesse caso tem-se aquela forma de interpretação chamada
corretiva. Geralmente, a interpretação corretiva é aquela forma de
interpretação que pretende conciliar duas normas aparentemente
incompatíveis para conservá-las ambas no sistema, ou seja, para
evitar o remédio extremo da ab-rogação.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
120 |
Assim, procedendo uma leitura de compreensão de eventual
antinomia especicamente entre o disposto no art. 17, §1° da Lei
8429/92 (obrigatoriedade da ação civil no caso de atos de improbidade
administrativa) e demais pressupostos legais estruturados dentro de
um mesmo microssistema de combate a corrupção, forçoso reconhecer
que esta obrigatoriedade passou a ser mitigada, sendo que no interesse
público na busca da verdade real e na respectiva apuração do dano
praticado com a possibilidade de maior recuperação patrimonial do
erário, tal regra pode sucumbir por um acordo de colaboração premiada,
a depender inclusive do grau de efetividade das informações trazidas
pelo colaborador.
Também, não há como fugir da compreensão que a proibição de se
aplicar o instituto premial em ambiente cível (quando o fato criminoso
praticado também tiver repercussão no ambiente da improbidade
administrativa) encontra resistência no princípio da proporcionalidade,
uma vez que sujeitos que atuam dentro de um procedimento ou processo
com uma conduta colaborativa, devem ser tratados pelo Estado de forma
diferente àquele agente delituoso que mesmo praticando ato lesivo contra
o erário, ainda deixa de atuar no sentido de fomentar o Estado lesado, na
obtenção de conhecimento fático. Nestes casos de colaboração premiada,
o Estado (aí falando como um todo) deve atuar sob o manto também do
princípio da eciência, visando a obtenção de todos os dados possíveis no
sentido de reparação do mal sofrido.
4. conclusão
A ação de improbidade administrativa, prevista originalmente no
texto constitucional, foi regulamentada pela Lei n. 8.429/92, que trouxe
a tipicação dos atos ímprobos em seus artigos 9, 10 e 11. Atrelados ao
tipo legal, para conguração do ato de improbidade necessário se faz a
presença do dolo, ou culpa (no tipo do artigo 10), atrelados essencialmente
ao elemento da má-fé ou desonestidade.
Com essa ideia de improbidade, e previsão de sanções graves, que
afetam diretamente direitos fundamentais, como a capacidade eleitoral
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 121
ativa e passiva, pode-se dizer que a improbidade administrativa integra o
sistema punitivo do direito brasileiro. Portanto, na interpretação desta lei,
não pode haver a ampliação dos conceitos ou seu alcance.
Duas são as correntes de maior relevo na atualidade sobre a natureza
da ação de improbidade, se de natureza civil ou administrativa, sendo que
nesta última vertente ela integraria o direito administrativo sancionador.
À guisa dessa discussão, entrementes, é forçoso o reconhecimento
de que a improbidade administrativa integra o sistema punitivo de nosso
ordenamento, o que atrai para a ação dessa natureza, direitos e garantias
típicas do processo penal.
O instituto da colaboração premiada, por sua vez, traz inúmeras
especicidades que certamente estão sendo balizadas pela doutrina e, em
especial, pela Jurisprudência. O caminho é para um microssistema de
combate a corrupção moderno, negocial, ao ponto de implementação
inclusive de cálculos econômicos na demanda gerada. Algumas indagações
merecem ainda respostas, e o Estado brasileiro, já se encontra maduro para
solucionar todas as diculdades argumentativas para o estabelecimento de
uma jurisprudência, que permita se atuar com segurança em relação aos
limites dos acordos de colaboração que certamente tem proporcionado
um avanço muito signicativo no combate às organizações criminosas
instaladas, por muitas das vezes, em ambiente público (o que justica
ainda mais o argumento de que em algumas situações, o Poder Judiciário
deve aceitar condições extra-legais em acordos e também sua extensão para
ambiente não penal, visando assim garantir a paridade de armas entre Estado
Investigação e criminalidade organizada). O trabalho de formatação de
uma colaboração exige muita responsabilidade e estratégia dos aplicadores
do direito brasileiro neste momento, e a armação desta premissa se baseia
no fato de que somente com o uso adequado (SALGADO, 2016) deste
instrumento importantíssimo de combate à criminalidade organizada em
especial aquela que lesa o erário, é que a mesma se tornará elemento de busca
com imprescindibilidade inquestionável, ou seja, depende exclusivamente
da forma de produção destas chamadas medidas extraordinárias de busca
da verdade para que viremos a página de um microssistema de combate a
corrupção tradicional.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
122 |
Combater o crime organizado em especial quando há envolvimento
de atos de lesão ao patrimônio público exige coragem, rmeza, mas além
de tudo, compromisso com a busca da verdade real e respeito a axiomas
constitucionais que não podem ser abandonados, sob o argumento de
eventual incompatibilidade do sistema penal (ambiente de aplicação do
instituto da colaboração premiada) com as normativas aplicáveis no tema
de investigação e apuração de atos de improbidade administrativa. Tal
alegada antinomia encontra argumentos jurídicos de superação, sendo
que a extensão do instituto da colaboração premiada para o ambiente
do Inquérito Civil e também da Ação de improbidade possibilita uma
atuação mais estruturada do Estado no combate a atos de improbidade
administrativa, gerando no colaborador um maior interesse em invertendo
sua posição na organização criminosa, passar a fomentar o Estado na busca
de elementos que a investigação ordinária não atingia.
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8
GARANTISMO PENAL INTEGRAL:
O INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO
SUFICIENTE E EFICAZ DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS INVIDUAIS E COLETIVOS
Gustavo Henrique de Andrade Cordeiro
1
Roberto da Freiria Estevão
2
introdução
Uma das grandes conquistas do Estado Liberal, após a queda do
absolutismo monárquico, foi à consolidação do reconhecimento, por parte
do Estado, de uma gama de direitos aos seus cidadãos, conhecidos como
direitos fundamentais. O grande avanço se deu porque, até então, o Estado
era personicado na pessoa de seu governante, era revestido de poderes
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Graduação em Direito pelo Centro
Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM (2009). Mestrando em Direito (Teoria do Direito e do Estado)
pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Professor titular do Centro Universitário Eurípides
de Marília – UNIVEM.
Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo. Graduação em Direito pela
Faculdade de Direito da Alta Paulista Tupã (1980). Especialista em Processo Penal pela PUC-SP. Mestre em
Direito (Teoria do Direito e do Estado) pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Doutor em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Integrante do grupo
de pesquisa “DiFuSO” (Direitos fundamentais sociais). Professor titular do Centro Universitário Eurípides de
Marília – UNIVEM.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p125-140
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
126 |
ilimitados em face de seus cidadãos, inclusive com poder de disposição
sobre os mais caros bens jurídicos de seu povo, a exemplo da vida, da
incolumidade física e da liberdade.
A nova ordem jurídica surge, então, a partir da edição de documentos
legislativos, dotados de ecácia normativa, que estabeleceram limitações dos
próprios poderes estatais em prestígio aos direitos de seu povo, mitigando-
se sensivelmente a ingerência estatal no âmbito das liberdades individuais.
Consagra-se, nesse diapasão, o novo paradigma liberal da primazia da lei,
trazendo consigo o consectário da impessoalidade, emergindo a ideia de
que somente um documento normativo de natureza geral e abstrata seria
capaz de tratar todos de forma semelhante, impedindo-se privilégios e
detrimentos legalmente injusticados.
Neste primeiro momento, todavia, ressalte-se que o Estado Liberal
reconhecia tão somente direitos negativos consistentes em liberdades
individuais, que não poderiam ser violadas inadvertidamente pelo Poder
Público sem motivo legalmente justicado. Vale dizer, o Estado Liberal
impôs a si mesmo o dever de não intervir na esfera de alguns direitos
individuais da pessoa. Arma-se, pois, que essas liberdades negativas
reconhecidas pelo Estado Liberal, são direitos de primeira dimensão, a
saber, os civis e políticos, a exemplo da vida, da liberdade ambulatória e do
patrimônio privado.
Nesse contexto, sob o prisma do Direito Penal, assume o princípio
da proporcionalidade o importante papel de mecanismo proibitivo da
hipertroa punitiva, assegurando-se aos infratores da norma a imposição
de sanções razoáveis e consonantes à reprovabilidade da conduta praticada,
consagrando a noção de garantismo negativo.
Com o passar das décadas, o liberalismo revelou a ocorrência de
distorções sociais, constatando-se que muitas pessoas, mesmo tendo sido
tratadas rigorosamente de forma igualitária pelo Estado – sob o prisma
formal –, permaneciam desequiparadas quanto aos direitos em relação à
outra parcela da população. Tornou-se, pois, necessária a atuação proativa
do Estado em favor de parcela de seu povo para corrigir as assimetrias, com
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 127
o nítido propósito de promover o viés substancial da igualdade enquanto
axioma social.
Surgem, então, os direitos fundamentais de segunda dimensão,
de natureza prestacionais, quais sejam, os direitos sociais, econômicos e
culturais, que demandam do Estado não somente seu reconhecimento
normativo e aplicabilidade imediata, mas a sua efetiva materialização
em prestações positivas de natureza obrigacional, plenamente exigíveis e
justiçáveis em caso de descumprimento.
De efeito, o reconhecimento constitucional do direito social à
segurança impõe aos entes federativos a intransigente salvaguarda de seus
cidadãos em face de ataques intoleráveis praticados por agentes públicos
e também por particulares, exigindo não apenas a repressão suciente
por fatos pretéritos, mas, em especial, a implementação de mecanismos
proativos de prolaxia para assegurar a segurança da sociedade enquanto
direito fundamental.
Emerge-se, assim, sob este prisma, um novel viés do princípio da
proporcionalidade, agora com natureza prestacional, assegurando aos
cidadãos a promoção e a concretização em favor da coletividade o direito
social à segurança, com mecanismos sucientemente ecazes e rígidos para
a efetiva proteção da prerrogativa à baila.
Somente a partir de então, o conceito de garantismo penal assume
o caráter de garantismo integral, na exata medida em que exige do Poder
Público que não se exceda no regular exercício do jus puniendi (viés
negativo) e que, especialmente, proteja sucientemente seus cidadãos
(viés positivo) em face do próprio ente estatal e, também, de eventuais
insurgências intoleráveis por parte de terceiros particulares.
Portanto, percebe-se que um dos grandes desaos do direito penal
contemporâneo, indiscutivelmente, tangencia a assimilação de um
garantismo penal integral e consentâneo com o Estado Democrático de
Direito, apto a assegurar a proteção ecaz, por parte do Estado em relação
a seus cidadãos, tanto direitos fundamentais de natureza individual quanto
os de natureza coletiva.
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128 |
Este é o enfoque do presente trabalho, que, em relação ao
procedimento metodológico, lastreia-se, fundamentalmente, em pesquisa
bibliográca. O desenvolvimento do método de abordagem terá viés
dialético e sistêmico, optando-se pelo método dedutivo.
1. o direito PenAl como instrumento de Proteção dos direitos
fundAmentAis individuAis e coletivos
O direito penal, sob o prisma sociológico, é um dos instrumentos
de que o Estado lança mão para a realização do controle social de
comportamentos desviados, com o propósito de assegurar a disciplina
social e a convivência harmoniosa em comunidade.
O crime, depois de ter sido assimilado alhures como um pecado
contra a divindade e, com a separação entre a Igreja e o Estado, como um
ato contra a nação, passou, a partir do Século XVIII, com Feuerbach, a
ser compreendido como um ato que lesa direitos subjetivos dos membros
da sociedade (SILVEIRA, 2003, p.38). Posteriormente, já no Século
XIX, Birnbaum supera a ideia violação a direitos subjetivos, passando a
compreender o crime como a ofensa aos valores mais relevantes de uma
sociedade, que poderiam ser chamados de bens jurídicos (GOMES, 2002,
p. 74).
Desde então, até os dias atuais, infere-se que “a tarefa imediata
do Direito Penal é de natureza eminentemente jurídica e, como tal,
primordialmente destinada à proteção dos bens jurídicos” (MIRABETE,
2006, p. 23). Compreenda-se por bens jurídicos os valores ou interesses
relevantes imprescindíveis à coexistência e ao desenvolvimento do homem
em sociedade e, justamente por isso, merecedores de tutela penal.
Uma vez consolidada a função do direito penal de proteger bens
jurídicos, passa-se a perquirir qual o critério a ser adotado pelo Estado
na seleção das condutas humanas deletérias que seriam consideradas
criminosas, às quais se imporiam sanções penais que implicarão restrições
a direitos de seus cidadãos, a exemplo de seu patrimônio e, em última
instância, à liberdade de locomoção. Nesse diapasão, é pacíco que o
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 129
critério do legislador para a seleção dos bens jurídicos a serem protegidos
pela lei penal deve ter como ltro os valores jurídicos fundamentais
consagrados pela Constituição. Por isso, “[...] a tarefa do legislador [...]
não seria outra senão a de incorporar ao ordenamento jurídico-penal os
valores mais importantes plasmados de modo vinculante na Constituição
(BIANCHINI; MOLINA; GOMES, 2009, p. 263).
Tem-se, portanto, que somente há intervenção penal legítima
e consentânea com os ditames do Estado Democrático de Direito na
incriminação de uma conduta humana que cause relevante, efetiva e
intolerável lesão ou perigo concreto de violação a um bem jurídico alheio
dotado de elevada importância social, prestigiando-se os princípios da
ofensividade e da alteridade.
Não basta, contudo, conferir uma proteção penal meramente
teórica a certos entes eleitos pelo legislador como suscetíveis de proteção:
é necessário que o Estado conra uma proteção efetiva e suciente àqueles
bem jurídicos constitucionalmente consagrados contra ataques e ameaças
de terceiros. Assim, consolida-se o conceito de garantismo positivo,
exigindo-se que o Poder Público conra proteção penal suciente e ecaz
aos direitos fundamentais tutelados pela norma penal, consolidando-se
o conceito de proibição da proteção insuciente, idealizado por Claus
Canaris.
Tradicionalmente, entretanto, o conceito de bem jurídico sempre
teve relação com a pessoa humana individualmente considerada, motivo
pelo qual a tipicação das infrações penais sempre se deu em razão da
efetiva lesão (crimes de dano) ou da mera exposição concreta a perigo
(crimes de perigo concreto) dos referidos valores protegidos pela norma
penal. Exemplicativamente, dentre outros, temos como bens jurídicos
tradicionalmente reconhecidos a vida, a incolumidade física, a tranquilidade
domiciliar, o patrimônio, a dignidade sexual.
Ocorre que as transformações sociais e tecnológicas dos últimos
tempos que nos contextualizam em uma sociedade de risco, conforme
preceitua Ulrich Beck, têm inuenciado o direito penal, fazendo surgir a
necessidade de expandir o direito penal para assegurar uma resposta estatal
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
130 |
atualizada e eciente frente às novas condutas perniciosas ao corpo social
decorrentes dessas inovações (AZEVEDO, 2012, p. 71). Surge, assim, a
ideia de proteção de bens jurídicos supraindividuais, rompendo com o
paradigma secular de tutela penal circunscrita a valores individuais, ante a
necessidade de criar tipos penais que assegurem o controle social de novos
bens jurídicos de caráter coletivo.
Cuida-se do que se convencionou denominar na doutrina de
espiritualização (desmaterialização, dinamização ou liquefação) dos bens
jurídicos, na exata medida em que o direito penal passa a proteger valores
individuais não vinculados a pessoas determinadas, mas pertencentes
à coletividade, a exemplo do meio ambiente e da ordem econômica
(AZEVEDO, 2012, p. 72).
Há, portanto, uma signicativa mudança na compreensão de
conceito de bem jurídico, porque o direito penal passa a se distanciar da
objetividade natural e do eixo individual, para dar enfoque na proteção
de bens jurídicos universais ou coletivos, de caráter mais vago e abstrato
(MACHADO, 2005, p. 107).
Como decorrência inevitável da espiritualização de bens jurídicos,
surge a necessidade da criação de crimes de perigo abstrato, exigindo-se
uma releitura do princípio da ofensividade ou da lesividade, consentânea
com a sociedade de risco hodierna, que exige a proteção de bens jurídicos
metaindividuais para assegurar a coexistência social harmônica.
Se, por um lado, o direito penal é um importante instrumento de
proteção dos direitos fundamentais individuais e coletivos mais relevantes
de uma sociedade, por outro, também se presta à limitação do poder de
punir do Estado, notadamente porque impõe ao Estado a observância
de caríssimos parâmetros legais, como a legalidade, a taxatividade, a
anterioridade, a necessidade e a proporcionalidade.
De qualquer forma, percebe-se, claramente, que, através dos
séculos, o direito penal pode ser visto como instrumento de proteção dos
direitos fundamentais mais caros à sociedade, funcionando o princípio da
proporcionalidade como importante vetor norteador do direito de punir
do Estado.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 131
2. dA ProiBição dA HiPertrofiA PunitivA à vedAção dA Proteção
insuficiente dos Bens jurídicos
O direito de punir do Estado, notadamente sob a égide do Estado
Liberal de Direito, estava limitado pelo princípio da proporcionalidade,
exigindo que as penas inigidas fossem razoáveis e consonantes com a
reprovabilidade do fato criminoso praticado, repudiando-se a ideia de
hipertroa punitiva.
A concepção de princípio da proporcionalidade, todavia, naquele
contexto histórico, estava circunscrita à ideia negativa de proteção dos
direitos do cidadão contra excessos inadvertidos por parte do Poder
Público, sedimentada a partir do Estado Liberal de Direito, período em
que apenas se reconheciam as chamadas liberdades negativas na esfera dos
direitos fundamentais.
Cuida-se do mais conhecido corolário da proporcionalidade: a
proibição do excesso ou vedação da hipertroa punitiva. Sobre o tema,
assim é a exegese de Sarlet (2008, p. 155):
[...] para a efetivação de seu dever de proteção, o Estado – por
meio de um dos seus órgãos ou agentes – pode acabar por afetar
de modo desproporcional um direito fundamental (inclusive
o direito de quem esteja sendo acusado da violação de direitos
fundamentais de terceiros). Esta hipótese corresponde às aplicações
correntes do princípio da proporcionalidade como critério de
controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos
fundamentais que, nesta perspectiva, atuam como direitos de
defesa, no sentido de proibições de intervenção (portanto, de
direitos subjetivos em sentido negativo, se assim preferirmos). O
princípio da proporcionalidade atua, neste plano (o da proibição de
excesso), como um dos principais limites às limitações dos direitos
fundamentais, o que também já é de todos conhecido e dispensa,
por ora, maior elucidação.
Evidentemente, a preocupação do Estado Liberal de Direito com a
proteção tão somente com a hipertroa punitiva é plenamente justicada
pelo momento histórico em que se situa, com uma preocupação circunscrita
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
132 |
aos direitos fundamentais de primeira dimensão, a exemplo da liberdade
ambulatória.
Com a égide do Estado Democrático de Direito, todavia, a evolução
da teoria dos direitos fundamentais passou a reconhecer direitos sociais,
econômicos, culturais e ambientais, impondo ao Estado o dever de
materializar estes direitos aos seus cidadãos através de obrigações positivas,
exigíveis e justiçáveis.
Surge, a partir de então, uma nova face positiva do princípio da
proporcionalidade – consonante com o Estado Democrático de Direito –,
a saber, o dever de proteção suciente do Estado em relação aos direitos
fundamentais de seus cidadãos. Assim, o princípio da proporcionalidade
passa a agregar em sua estrutura normativa não apenas a concepção negativa
de proibição do excesso, mas, igualmente, um viés positivo da proibição da
proteção insuciente.
Parafraseando Streck (2004):
Há que se ter claro, portanto, que a estrutura do princípio
da proporcionalidade não aponta apenas a perspectiva de um
garantismo negativo (proteção contra os excessos do Estado), e,
sim, também para uma espécie de garantismo positivo, momento
em que a preocupação do sistema jurídico será com o fato de
o Estado não proteger sucientemente determinado direito
fundamental, caso em que estar-se-á em face do que, a partir da
doutrina alemã, passou-se a denominar de “proibição de proteção
deciente” (Untermassverbot).
Nada obstante, conforme Sarlet (2005, p.180):
A noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da
proibição de excesso, já que abrange, [...], um dever de proteção
por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos
fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante
de dimensões que reclamam maior densicação, notadamente no
que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de
insuciência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera
da política criminal, onde encontramos um elenco signicativo de
exemplos a serem explorados.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 133
A ideia de proibição da proteção insuciente aos direitos fundamentais,
aglutinada à vedação da hipertroa punitiva, portanto, resulta na edicação
teórica denominada garantismo penal integral, uma releitura da teoria
do garantismo penal edicada pelo italiano Luigi Ferrajoli, a respeito da
qual o capítulo seguinte pretende minudenciar, dimensionando-o como
instrumento de proteção ecaz dos direitos fundamentais.
3. o gArAntismo PenAl integrAl como instrumento de Proteção
eficAz dos direitos fundAmentAis inviduAis e coletivos.
A teoria do garantismo penal foi elaborada na década de 1980 pelo
italiano Luigi Ferrajoli, surgindo como política criminal que pretende
estabelecer meio termo entre o direito penal máximo e o abolicionismo
penal. Conceitua-se, com efeito, tradicionalmente o garantismo penal
como o modelo de política criminal que busca diminuir no mínimo o
poder punitivo do Estado e aumentar ao máximo as liberdades individuais
do cidadão.
Extrai-se, contudo, desse conceito tradicional um modelo de
garantismo penal à brasileira, com uma acepção unitária e exclusivamente
negativa, consentânea apenas às necessidades do Estado Liberal de Direito
na proteção das liberdades individuais, o que se revela plenamente
compreensível, diante do contexto histórico brasileiro imediatamente
posterior a um longo período autoritário de governos que suprimiram
inúmeros direitos fundamentais de primeira dimensão, especialmente o
direito geral à liberdade, especicamente de manifestação, de expressão, de
pensamento e de locomoção.
Entretanto, com efeito, em que pese seja louvável a intransigente
defesa dos direitos fundamentais individuais – inclusive dos investigados
e acusados em geral –, é necessário observar que, à luz de uma concepção
sistêmica e integral da Constituição da República, consentânea com um
Estado Democrático de Direito, a ordem jurídico-constitucional pátria
prevê outros direitos e deveres constitucionais igualmente merecedores de
igual preocupação, a exemplo dos direitos coletivos e sociais.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
134 |
Assim, à visão parcial e obnubilada apresentada por boa parte
dos autores brasileiros sobre o garantismo penal, tem-se denominado
garantismo hiperbólico monocular, expressão cunhada por Fischer (2009),
segundo o qual:
Em muitas situações, ainda, há distorção dos reais pilares fundantes
da doutrina de Luigi Ferrajoli (quiçá pela compreensão não integral
dos seus postulados). Daí que falamos que se tem difundido
um garantismo penal unicamente monocular e hiperbólico,
evidenciando-se de forma isolada a necessidade de proteção apenas
dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados.
Nesse diapasão, sugere-se a essa visão parcial do garantismo a
nomenclatura de garantismo claudicante, em referência ao imperador
romano Cláudio, que padecia de coxeadura.
A ideia, portanto, de garantismo integral reclama a aglutinação
de uma face positiva, consistente no dever prestacional do Estado de
salvaguardar os mais caros bens jurídicos fundamentais de seus cidadãos
em face de ataques intoleráveis e ilícitos praticados por terceiros.
Sobre o garantismo positivo, eis a exegese de Streck (2005):
É por isto que não se pode mais falar tão-somente de uma função
de proteção negativa do Estado (garantismo negativo). Parece
evidente que não, e o socorro vem de Baratta, que chama a atenção
para a relevante circunstância de que esse novo modelo de Estado
deverá dar a resposta para as necessidades de segurança de todos os
direitos, também dos prestacionais por parte do Estado (direitos
econômicos, sociais e culturais) e não somente daquela parte de
direitos denominados de prestação de proteção, em particular
contra agressões provenientes de comportamentos delitivos de
determinadas pessoas.
Consequentemente, a visão igualmente monocular do princípio
da proporcionalidade lastreado tão somente na proibição da hipertroa
punitiva exige uma releitura à luz do garantismo integral, notadamente
em seu novel viés positivo. Validamente, se, por um lado, o Estado deve
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 135
prever mecanismos de coibição dos seus próprios excessos no exercício do
direito de punir, por outro, é credor de um dever prestacional de proteger
sucientemente a sociedade com a tutela intransigente de seus mais
importantes bens jurídicos.
Surge, então, o duplo viés do princípio da proporcionalidade,
consonante com o garantismo penal integral e com o Estado Democrático
de Direito, com o seu novo corolário: a vedação da proteção insuciente,
bem exposta por Streck (2005):
Trata-se de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma
dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais.
Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do
Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando
desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre ns
e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção
insuciente de um direito fundamental-social, como ocorre
quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais
ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos.
Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da
necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da
Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição
da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador.
Longe de se tratar de discussão meramente teórica, a existência do
princípio da vedação da proteção insuciente vem, timidamente, sendo
reconhecida na jurisprudência, a exemplo da transcrição parcial da ementa
a seguir, de lavra do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal:
A Constituição de 1988 contém signicativo elenco de normas que,
em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam
a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV;
art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas é possível identicar
um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens
e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser
considerados apenas proibições de intervenção (Eingrisverbote),
expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote).
Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas
uma proibição do excesso (ubermassverbote), como também
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
136 |
podem ser traduzidos como proibições de proteção insuciente
ou imperativos de tutela (untermasverbotte). Os mandados
constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador,
para seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio
da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição
de proteção deciente. (BRASIL 2016).
É necessário, contudo, deixar claro que a aglutinação de um viés
positivo ao garantismo penal não pretende, em hipótese nenhuma,
relativizar ou suprimir os direitos fundamentais dos investigados e acusados
em geral – o que jamais se toleraria em um sistema penal garantista –,
mas, tão somente, consolidar um direito penal do equilíbrio, preocupado,
na mesmíssima medida, tanto com os direitos individuais dos increpados,
quanto os direitos fundamentais coletivos inerentes à sociedade, como
o direito à segurança e os bens jurídicos de natureza difusa, igualmente
protegidos pela norma penal.
Apenas a título de exemplo, convém rememorar a exegese do
próprio Luigi Ferrajoli, quando questionado, em terras brasileiras, em uma
palestra proferida no Ministério da Justiça, em Brasília, em 16 de outubro
de 2013, sobre a compatibilização entre sua teoria do garantismo penal
com a necessidade de punição dos agentes públicos pelos crimes praticados
durante o regime militar, respondendo o professor italiano que óbices de
natureza temporal, como a prescrição, não poderiam ser opostos diante da
obrigação positiva do Estado de agir no sentido de punir ecazmente os
autores destes delitos.
Não se trata, portanto, a teoria do garantismo penal, à toda evidência,
de instrumento de impunidade dirigido ao afastamento, a qualquer custo,
do direito de punir estatal.
Conclui-se, pois, que o garantismo penal integral, longe de visar à
punição a qualquer custo, sustenta, ao revés, a necessidade de intransigente
respeito às garantias individuais do acusado, sem descurar dos demais
direitos fundamentais de natureza coletiva, igualmente caros à ordem
jurídico-constitucional pátria e dignos de semelhante proteção jurídica
pelo sistema de justiça criminal, sendo um verdadeiro instrumento do
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 137
direito penal do equilíbrio, consonante com os ditames de um Estado
Democrático de Direito.
conclusão
O longo período autoritário vivenciado no século passado durante
três décadas no Brasil, marcado por sucessivas supressões de direitos
fundamentais de seus cidadãos, explica a justicável preocupação do poder
constituinte originário em sobrelevar os direitos fundamentais na nova
ordem jurídico-constitucional erigida pela Constituição da República de
1988, sedimentando uma importante doutrina de garantias individuais
asseguradas pelo Estado aos seus cidadãos, notadamente no âmbito do
direito penal e do processo penal.
O marco histórico fundamental da consolidação dessa doutrina de
garantias se deu com a obra “Direito e Razão”, de Luigi Ferrajoli, que teve
por propósito estabelecer as premissas basilares de proteção dos direitos
fundamentais individuais (denominados de primeira dimensão), auferindo
grande notoriedade em terras brasileiras, justamente pelo contexto histórico
posterior ao período autocrático aqui vivenciado, estabelecendo a ideia de
um garantismo penal negativo.
Todavia, avaliando com acuidade nossa ordem jurídico-
constitucional, percebe-se a necessidade de salvaguarda não apenas dos
direitos fundamentais individuais, que impõem ao Estado apenas obrigações
negativas de abstenção na esfera de direitos de seus cidadãos, tratando-se de
visão parcial, obnubilada e monocular da doutrina garantista, compatível
apenas com a proteção de direitos de primeira dimensão reconhecidos pelo
vetusto Estado Liberal de Direito.
É necessária, com efeito, uma compreensão integral e sistêmica dos
comandos da Constituição da República, com a consequente e intransigente
proteção dos direitos fundamentais de natureza individual, repudiando,
com todas as forças, a hipertroa punitiva, sem prejuízo da imprescindível
tutela dos direitos fundamentais de natureza social e coletiva, abrangendo
a necessidade de proteção suciente, por parte do Estado, aos direitos de
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
138 |
segunda e de terceira dimensão de cidadãos, agregando à teoria garantista
um viés positivo e consonante com os ditames de um Estado Democrático
de Direito.
A consolidação da teoria do garantismo penal integral, portanto,
emerge como o grande e novo desao do direito penal na contemporaneidade,
na exata medida em que deve impedir a inadvertida hipertroa do poder
punitivo estatal em face dos investigados e acusados no âmbito criminal,
assegurando, por conseguinte, a intransigente tutela de seus direitos de
primeira dimensão, sem descurar da indiscutível necessidade de suciente
proteção aos direitos fundamentais e bens jurídicos mais relevantes à
sociedade, protegendo, igualmente, direitos de segunda e de terceira
dimensão, consagrando, assim, a novel concepção de um verdadeiro direito
penal do equilíbrio que assegura, na mesma medida, a proteção integral
coletiva sociedade e individual de seus cidadãos.
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| 141
9
LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO
PELA POLÍCIA MILITAR COMO RESULTADO
DE EFEITOS “DROMOLÓGICOS”
Murilo Cézar Antonini Pereira
1
José Eduardo Lourenço dos Santos
2
1. introdução
Sob o impulso dos efeitos “dromológicos”, vem sendo editados
atos administrativos e leis no campo do direito penal e processual penal,
ao arrepio de paradigmas constitucionais. Na prática, gera a violação de
direitos e garantias fundamentais de investigados, na fase preliminar da
persecução criminal.
1
Bacharel em Direito - UNIFRAN (2004). Especialista em Ciências Penais - UNIDERP (2011). Mestrando
em Direito – UNIVEM (2018). Advogado - OAB-SP (2003-2009). Professor Universitário - UEMG- Ituiutaba
(2011-2013). Atualmente Delegado de Polícia - PCMG.
Possui Graduação em Direito pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha (1988), Mestrado em
Direito pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha (2002), Doutorado em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR - 2013) e Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra (área de Democracia e
Direitos Humanos - 2016). Atualmente é professor do Centro Universitário Eurípides de Marília, Graduação
e Mestrado, e Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em
Direito Penal, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal, Criminologia, Direito e Internet,
Direito Processual Penal, Direitos Fundamentais, Derrotabilidade Normativa e Novos Direitos.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p141-156
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
142 |
Nesse contexto, as estratégias cedem espaço para a “dromologia”.
O espaço físico democrático é substituído pela “ditadura da velocidade”,
com a “desterritorialização” do controle da criminalidade, que passa a ser
ocupado pelo “domínio do tempo”.
A permissão legal da lavratura de termo circunstanciado, no Estado
de Minas Gerais, por policiais militares revela que os efeitos “dromológicos
atingiram políticas adotadas pelo Estado Mineiro, seduzido pelo mito de
que a alteração de procedimentos investigatórios, tornando-os mais céleres
a qualquer custo, resulta em eciência.
Tratar da interferência da velocidade no direito criminal mostra-se
relevante no cenário contemporâneo globalizado e tecnológico. A releitura
do direito penal e do processo penal sob a ótica do progresso “dromológico”,
em que a sociedade busca e produz cada vez mais aceleração, exige reexões
e respostas produtoras de invalidações de normas que não se conformam
com a matriz constitucional.
O método de abordagem consubstancia-se no hipotético-dedutivo.
Demonstra-se o grave problema da irradiação dos efeitos “dromológicos
sobre os Poderes Legislativo e Executivo do citado Estado, que deu ensejo
à autorização da lavratura de termo circunstanciado pela integralidade dos
policiais militares, contrastando com o sistema de garantias plasmado em
nosso texto maior.
Após a comprovação do problema, a hipótese apresentada é a de
que a Lei Estadual Mineira viola direitos fundamentais preconizados
na Constituição, além de deformar e banalizar a gura da autoridade
policial, de modo a ser encarada como inconstitucional por não estar em
conformidade com os direitos e garantias fundamentais dos investigados
e com as delimitações das funções dos órgãos de segurança forjadas
constitucionalmente.
Objetiva-se, pois, trazer à tona a nocividade dos efeitos
dromológicos”, incidentes sobre os direitos fundamentais dos investigados
por infrações de menor potencial ofensivo, formalmente manifestado por
meio da Lei n.º 22.257, de 27 de julho de 2016.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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Inicialmente, busca-se analisar os efeitos “dromológicos
materializados por meio de Lei;na sequência, são traçadas considerações
sobre o termo circunstanciado e a expansão das funções da polícia militar
como resultado dos efeitos “dromológicos”;o conceito de autoridade
policial como obstáculo aos efeitos “dromológicos” também será tratado;
e por m, defende-se a inconstitucionalidade da Lei Mineira, permissiva
da lavratura do termo circunstanciado pela polícia militar por violação de
direitos fundamentais dos investigados.
Identica-se vários pontos de choque da Lei Mineira com normas
constitucionais, sobretudo, as que versam sobre a dignidade, a liberdade,
ao devido procedimento legal e ao princípio do delegado de polícia natural.
Em suma, procura-se demonstrar que as políticas criminais adotadas
pelo Estado de Minas Gerais representam sintomas “dromológicos
transformados em Lei aceleradora do procedimento investigatório de
infrações penais de menor potencial, cujo conteúdo normativo, além de
afrontar conceitos sedimentados por leis federais e ditames constitucionais,
não consolidam categoriais de efetividade investigatória.
2. efeitosdromológicos
Cunhada por Paul Virilio, “dromologia”, etimologicamente oriunda
da palavra grega “dromos” (corrida/velocidade), consiste no estudo da
velocidade e da lógica da corrida no contexto de uma sociedade acelerada
e pós-moderna.
Para a “dromologia”, a velocidade é considerada como fator principal
resultante da revolução política e tecnológica, possibilitando rápido
processo de produção ao mesmo tempo em que ocasiona a destruição
desses processos em proporções iguais ou até em níveis mais elevados
(VIRILIO, 1996, p.10).
Na era digital e tecnológica, como cediço, a velocidade é apresentada
como obrigação coletiva, ou seja, a rapidez é exigência da civilização
contemporânea imposta a todas as pessoas. O “Estado de Emergência” é a
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
144 |
realidade contemplada no horizonte, introduzindo mudanças ao sabor das
exigências do ritmo do progresso “dromológico”.
O estreitamento das distâncias transformou-se numa realidade
estratégica com consequências econômicas e políticas incalculáveis,
equivalendo à negação do espaço. “O valor estratégico do não-lugar da
velocidade suplantou denitivamente o do lugar [...]” (VIRILIO, 1996,
p.123). A contração do mundo fez com que todos virassem reféns de um
universo topológico articial. A tecnologia dos ambientes, a aceleração
das relações e a capacidade de interconexão mundial poderão provocar a
interface da terra (VIRILIO, 1996, p.125). Quanto maior a velocidade,
maior será a eciência. Esta é a equação proposta pelos interesses de uma
sociedade “dromológica”, dominada pelo medo e insegurança, que faz o
papel de criadora e criatura do “Estado de Emergência”, em que “a perda
do espaço material implica governar apenas o tempo” (VIRILIO, 1996,
p.129). Nessa trilha, o Estado adotou o “Ministério do Tempo” como
reitor de suas decisões políticas, sociais e jurídicas, em que cada velocidade
funcionaria com um departamento do tempo (VIRILIO, 1996, p.129). Em
sendo o fenômeno criminal um problema social, o Estado, contaminado
pelos efeitos “dromológicos”, vale-se de procedimentos inconstitucionais
com o objetivo de reprimir a criminalidade.
No plano abstrato, O Estado-Legislador, como no Estado de Minas
Gerais, produz normas jurídicas movido pela busca da velocidade e
eciência na fase preliminar da persecução criminal, balizado em critério
utilitarista de perseguir a celeridade como m, não se importando em
respeitar ditames constitucionais no percurso.
Já na prática, o Estado-Investigador age de modo ilegítimo,
consagrando uma concorrência eliminatória e a usurpação de funções de
órgãos de segurança pública, a violar direitos e garantias fundamentais de
investigados.
Ao permitir, por meio de Lei, que policiais militares lavrem termo
circunstanciado, o Estado cria uma conjuntura inconstitucional no plano
abstrato, além de potencializar, no plano concreto, a violação de direitos
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 145
e garantias fundamentais do cidadão-investigado pela prática de infração
penal de menor potencial ofensivo.
3. termo circunstAnciAdo de ocorrênciA
Instituída por força do art. 98, inciso I, da Constituição Federal, a Lei
9.099/95 introduz um conjunto de normas voltadas para a simplicação
e conciliação da persecução criminal, possibilitando a lavratura de termo
circunstanciado de ocorrência e a tramitação de um processo sintético
e célere, a resultar numa simplicada investigação criminal e imediata
prestação jurisdicional. Esta legislação consagrou a justiça criminal
consensual (BRASIL, 1995).
Estimulada pela Lei 9.099/95, a celeridade merece ser tratada com
mais atenção, eis que traduz o fundamento principal para a adoção de meios
imediatistas na lavratura no termo circunstanciado (BRASIL, 1995). Em
busca de maior rapidez, permitiu-se que a investigação policial de crimes
de menor potencial ofensivo fosse presidida por qualquer policial militar,
ultrapassando os limites da simplicidade e da informalidade, entrando em
rota de colisão com as normas constitucionais.
Embora seja um procedimento informal, o termo circunstanciado
não deve ser confundido com mero boletim de ocorrência. Noutras
palavras, de maneira alguma se pode pensar em desnaturar o seu caráter
investigativo criminal. Sua falta de complexidade não traduz singela
atividade mecânica, visto que inúmeras questões jurídicas são examinadas,
exigindo conhecimento técnico-jurídico para a tomada de múltiplas
decisões.
Ademais, independentemente da gravidade da infração penal que
será apurada, mesmo não gerando prisão em agrante, caso o investigado
assine termo de comparecimento ao Juizado Especial Criminal, sua
lavratura alcança a dignidade humana, eis que ocorre a restrição (ainda que
momentânea) da liberdade de locomoção, podendo ofender a integridade
física e psíquica do investigado.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
146 |
Por isso, todo investigado por crime de menor potencial tem o
direito de exigir do Estado o respeito aos valores inerentes à condição de
ser humano, de modo a não ser tratado como objeto em procedimento
investigatório deturpado pelos efeitos “dromológicos”, devendo o Estado-
Investigador assegurar as garantias de qualquer cidadão ser investigado por
um delegado de polícia, com atribuição constitucional para tanto.
4. AmPliAção dAs funções dA PolíciA militAr como resultAdo dos
efeitosdromológicos”.
A alucinação “dromológica” modula a percepção de governados,
governantes, instância midiática e autoridades. Os efeitos “dromológicos
chegaram ao ponto de se materializarem em leis, chancelando a usurpação
de funções da polícia judiciária dentro do contexto de um Estado
Constitucional e Democrático de Direito.
No Estado de Minas Gerais, sob a inuência da “dromologia”,
recentemente foi promulgada a Lei n.º 22.257 de 27 de julho de 2016,
com a nalidade de alterar a estrutura do Poder Executivo. No capítulo
VI, o art.191 da famigerada lei ampliou as funções da polícia militar,
autorizando qualquer policial militar a lavrar termo circunstanciado
(BRASIL, 2016).
Malgrado tenha sido vetado pelo Governador, o veto ao aludido
artigo foi rechaçado pela Assembléia Legislativa. A fagulha de racionalidade
do Poder Executivo foi rapidamente apagada pelo sopro “dromocrático
do Poder Legislativo.
Cabe lembrar que o dispositivo da citada lei foi questionado perante
o Supremo Tribunal Federal pela Associação dos Delegados de Polícia
do Brasil. A questão é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
5637, ainda pendente de julgamento (MINAS GERAIS, 2016).
Ressalta-se, outrossim, que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
chancelou o art.191 da Lei Estadual n.º 22.257/2016, emitindo Aviso
Conjunto n. 02/PR/2017.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 147
Em outros Estados da Federação, a situação não é diferente a do Estado
de Minas Gerais. Os resultados dos efeitos “dromológicos” sobreditos são
aceitos pelo Executivo, Judiciário e o Ministério Público, por meio de atos
administrativos, decisões judiciais, provimentos e conclusões sedimentadas
em encontros/congressos das referidas carreiras.
Insta destacar que tramita no Senado Federal o Projeto de Lei (PLS
439/2016), que pretende modicar dispositivo da Lei 9.099/95, a permitir
que qualquer policial — seja civil, militar, rodoviário — possa lavrar o
termo circunstanciado.
Não há dúvidas dos riscos sociais e jurídicos de se expandir
semanticamente o conceito de autoridade policial. Ao admitir que
qualquer policial militar se arvore nas funções de autoridade policial, o
Estado promove, sob o signo da aceleração da investigação criminal, o
atropelo de direitos fundamentais que, no processo democrático, devem
ser protegidos e incrementados.
Essa anomalia jurídica concebida do ventre do Estado “dromológico
não merece vida longa. Não é tolerável a miopia daqueles que enxergam
a velocidade de procedimentos investigatórios como política de segurança
eciente, pois a celeridade utilitarista que os impulsiona provoca o
fechamento de seus olhos para políticas de repressão à criminalidade
efetivas que não se dissociam do respeito à dignidade humana, à liberdade
e ao devido procedimento legal.
5. o conceito de AutoridAde PoliciAl como iniBidor dos efeitos
dromólogicos
Em Minas Gerais, na prática, um soldado, sem qualquer formação
jurídica, deparando-se com a ocorrência dos fatos, subitamente assumirá o
papel de autoridade policial, com o poder de decidir e apurar infrações de
menor potencial ofensivo.
Ocorre que o conceito de “autoridade policial” extraído de leis
federais e da própria Constituição Federal surge como antídoto ecaz
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
148 |
contra os efeitos “dromológicos” que insistem em intoxicar a persecução
de infrações penais de menor potencial ofensivo.
Analisando o art. 69 da Lei 9.099/95, nota-se que o legislador
reserva exclusivamente à autoridade policial a função de lavrar termo
circunstanciado. Pressupondo que se trata de um procedimento
investigativo, a única conclusão plausível é a de que a atribuição para sua
lavratura é do delegado de polícia.
Nesse passo, calha observar os ensinamentos de Mirabete (1998, p. 61):
Na legislação processual comum, aliás, só são conhecidas duas
espécies de «autoridades»: a autoridade policial, que é o Delegado
de Polícia, e a autoridade judiciária, que é o Juiz de Direito. Somente
o Delegado de Polícia e não qualquer agente público investido de
função preventiva ou repressiva tem, em tese, formação técnica-
cientíca para classicar infrações penais, condição indispensável
para que seja o ilícito praticado incluído ou não como infração
penal de menor potencial ofensivo. Somente o Delegado de
Polícia pode dispensar a autuação em agrante, nos casos em
que se pode evitar tal providência, ou determinar a autuação
quando o autor do fato não se comprometer ao comparecimento
em Juízo, arbitrando ança quando for o caso [...] Assim, numa
interpretação literal lógica e mesmo legal, somente o delegado de
polícia pode determinar a lavratura de termo circunstanciado a
que se refere o art. 69.
Nesse sentido, o art. 144 da Constituição Federal traz o rol dos
órgãos incumbidos da segurança pública, bem como taxativamente dene
as funções das polícias, delimitando as atribuições de cada corporação,
preferindo intitular delegado de polícia (e não autoridade policial) como
presidente da apuração das infrações penais, exceto as de natureza militar.
Se não é deferida a atribuição de apurar as infrações penais de
natureza militar à Polícia Civil, a recíproca também é verdadeira, ou seja,
não é autorizada a apuração de infrações penais comuns à polícia militar
(DOTTI, 1996).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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Registra-se que o Código de Processo Penal preconiza, em seu
artigo 4º, que a polícia judiciária é exercida por autoridades policiais e
terá por m a apuração de infrações penais. Como se nota, a lei regente
do processo penal destina exclusivamente à autoridade policial a missão de
apurar infrações penais, não abrindo exceções ou deixando margem para
interpretações dissonantes.
A Lei 12.830/2013 (art.2º, §1º) rearma a importância do delegado
de polícia como única autoridade policial com poderes de conduzir
investigações por meio de inquérito policial ou outro procedimento
previsto em lei (v.g. termo circunstanciado) (BRASIL, 2013).
Nesse diapasão, Lopes Junior e Gloeckner (2014, p. 241) entendem
que:
Como determina o art.4º do CPP [...], o inquérito policial é
realizado pela polícia judiciária. [...] A investigação policial foi
rearmada pela Lei 12.830/2013, que estabeleceu em seu art.2º,
que as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações
penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica,
essenciais e exclusivas do Estado. No §1º do art.2º, a lei conrma
que caberá ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade
policial, a condução da investigação criminal por meio do inquérito
policial ou outro procedimento previsto em lei [...].
Evidencia-se, portanto, que os citados efeitos “dromológicos”,
deformadores da gura da autoridade policial, encontram no elemento
semântico uma barreira intransponível, que atribui, com exclusividade, o
poder indeclinável de investigar qualquer infração penal (exceto as militares)
e de presidir procedimento investigatório (inquérito policial e termo
circunstanciado de ocorrência) à única autoridade: o delegado de polícia.
6. dA inconstitucionAlidAde dA lei PermissivA dA lAvrAturA de
termo circunstânciAdo Por quAlquer PoliciAl militAr
A todo investigado por quaisquer infrações penais se deve assegurar
uma investigação célere, porém, a rapidez da investigação não pode seguir
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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a lógica utilitarista de que os ns justicam os meios, invertendo-se
valores e usurpando funções previamente e taxativamente denidas pela
Constituição Federal, sem se inquietar com a rigorosa observância dos
direitos e garantias fundamentais do investigado.
Quando o vetor velocidade é traço marcante e fundamental de um
procedimento, tem-se um sistema persecutório desumano e autoritário.
Expandir a legitimidade de lavrar termo circunstanciado à integralidade dos
membros da polícia militar como mecanismo veloz e gerativo de eciência
signica trocar estratégias criminais pela “dromologia”, consolidando uma
concorrência eliminatória entre órgãos que modicam os ritmos vitais de
procedimentos (VIRILIO, 1996, p. 95).
A busca por resultados a qualquer custo, sacricando
despreocupadamente direitos dos investigados, a serviço de uma resposta
estatal mais veloz à criminalidade, apresenta-se como instrumento
simbólico e desprovido de efetividade.
Sobre o oportunismo da atuação simbólica do Estado, Santos (2017,
p. 98) ensina que:
Tem-se uma falsa sensação de que o descumprimento da lei não
é tolerado, de que as minorias estão amparadas (algo está sendo
feito), uma vez que os mais afetados não possuem poder político
para demonstrar o contrário. Trata-se de uma atuação simbólica do
Estado, sem a vericação real dos problemas que ocorrem. O que se
procura é demonstrar poder, na ilusão aos demais de que algo está
sendo feito, fechando os olhos ao fracasso de tal política.
Ao ser conduzido para um quartel militar pela prática de uma
infração penal de menor potencial ofensivo e ser alvo de procedimento
investigatório, mesmo que simplicado, presidido por um policial
militar sem preparo e inabilitado juridicamente, o investigado não tem
sua dignidade respeitada. Também, não lhe são asseguradas as garantias
do devido procedimento legal, mormente a de ser investigado pela
polícia judiciária sob a direção de um delegado de polícia (Delegado de
Polícia Natural).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 151
O Estado que edita leis sobre procedimento criminal em
desconformidade com a Constituição Federal e o sistema de leis federais
sobre a matéria, revela-se protagonista da disseminação de múltiplos danos
sociais, tão graves ou mais impactantes que o próprio crime cometido
pelo investigado. Sobre a importância da Constituição e das garantias nela
consagradas em detrimento do poder persecutório Estatal, ums (2006,
p. 97) destaca que:
O papel da Constituição e as garantias constitucionais do processo
devem ser vistos como formas de controle e limitações impostas
ao Estado na sua ação de persecução penal e julgamento. Nesse
passo, as garantias do processo, asseguradas a partir de normas
constitucionais, mostram-se de signicativa relevância para a tutela
dos direitos fundamentais do homem.
As inconstitucionalidades vericadas em leis estaduais, que são
produtos de uma sociedade infectada pelos efeitos “dromológicos”, como
a lei mineira (Lei 22.257/2016), demonstram o assassinato sem piedade
dos direitos e das garantias individuais, como modo de conformar uma
atuação policial imaginariamente mais eciente e célere.
Acerca do fundamento da inconstitucionalidade por ação, observe o
magistério de Silva (2002, p. 47):
O fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de
que do princípio da supremacia da constituição resulta o da
compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um
país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão
se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a
constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas,
pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de
grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade
das inferiores.
Ao denir e delimitar taxativamente as funções de cada órgão
de segurança pública, nossa Carta Magna teve a intenção de evitar
concorrência e usurpações de atividades entre as corporações, propiciando,
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
152 |
de outro lado, segurança jurídica aos investigados criminalmente de
terem suas condutas apuradas por intermédio de procedimento legal
presidido por uma autoridade policial garantidora de direitos inerentes à
condição humana.
Frisa-se que o princípio do Delegado de Polícia Natural faz parte do
arcabouço de garantias fundamentais de todo investigado. Apesar de o tema
ser embrionário (em comparação ao Juiz Natural e Promotor Natural),
a doutrina vem reconhecendo que o princípio do Delegado de Polícia
Natural está consagrado na Lei 12.830/13 (BRASIL, 2013). Observe:
[...] o parágrafo 4º, de seu artigo 2º, que suscita a ideia de um
princípio do delegado natural, na esteira noção mais geral de um
princípio da autoridade natural (juiz natural, promotor natural e
defensor natural) [...] Conquanto haja resistências da jurisprudência
e da doutrina majoritária em admitir tal princípio do delegado de
polícia natural, entendemos que já se trata de princípio positivado
no sistema (TÁVORA; ALENCAR, 2015, p. 118).
A persecução penal, cuja deagração se justica pela prática de uma
conduta ilícita, não se projeta como manifestação absoluta do Estado
seduzido pelos efeitos “dromológicos”. O poder persecutório na fase
preliminar à processual é de exercício indeclinável da polícia judiciária,
devendo ser regida por padrões normativos constitucionais.
O reconhecimento do “valor intrínseco da pessoa humana
(BARROSO, 2017, p. 288), elemento integrante do conteúdo mínimo da
dignidade humana, exige o respeito à liberdade de locomoção e à proteção
da integridade física e psíquica do investigado, mesmo nos casos em que o
cerceamento dos direitos fundamentais seja momentâneo, como durante a
lavratura de termo circunstanciado.
Qualquer lei estadual, como a do Estado de Minas Gerais, concebida
a partir de uma matriz “dromológica”, que se aventure em transferir as
funções da polícia judiciária de investigar infrações penais a outros órgãos,
como a polícia militar, é manifestamente inconstitucional e, por isso, deve
ser invalidada.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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conclusão
Não se discute que o poder “dromológico”, atualmente, domina
cidadãos, mídia e Estado. O problema reside na “ditadura da velocidade”,
que se revela onipresente e se apresenta como valor supremo, constituindo
causa e efeito, retroalimentando-se na sociedade contemporânea de
emergência. Hodiernamente, todos são coagidos ao movimento acelerado.
O direito penal e o processo penal não escaparam da inuência
dromológica”, eis que a fonte material do direito (Estado) encontrou nos
efeitos “dromológicos” triunfante fundamento para esconder o fracasso
e a falta de políticas públicas sérias tendentes a prevenir e reprimir a
criminalidade.
No Estado de Minas Gerais, promulgou-se lei estadual, que ampliou
semanticamente, na mesma velocidade em que autorizou apurações de
infrações penais de menor potencial ofensivo por qualquer policial militar,
o conceito de autoridade policial. Não à toa que o principal argumento da
criação da famigerada lei foi o de propiciar maior celeridade e eciência
na apuração de infrações de menor potencial ofensivo. Sob a lógica
utilitarista, focando apenas na busca de maior velocidade na conclusão
de termos circunstanciados de ocorrência, o Estado operou-se de forma
inconstitucional, atropelando direitos e garantias fundamentais.
Ao expandir as atribuições da polícia militar por meio de Lei, o
Estado de Minas Gerais ultrapassou a fronteira da constitucionalidade,
eis que a repartição das funções de cada órgão incumbido da segurança
pública foi taxativamente e estrategicamente especicada na Constituição
Federal, representando uma garantia do cidadão investigado ao devido
procedimento legal, em que a apuração de qualquer infração penal, exceto
as militares, deve ser procedida pela polícia judiciária, sob a direção da
única autoridade policial: o delegado de polícia.
A questão vem gerando repercussão corporativa e social, tanto que a
inconstitucionalidade está sub judice no Supremo Tribunal Federal - Ação
Direta de Inconstitucionalidade n. 5637 (BRASIL, 2016).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
154 |
Reetindo sobre a atuação do Estado-Legislador e do Estado-
Investigador de Minas Gerais, que chancelou usurpações de funções
da polícia judiciária e vem aplicando cotidianamente norma eivada de
inconstitucionalidade no ritmo da hiperaceleração de procedimentos
investigatórios violadores de direitos e garantias fundamentais dos
investigados, depreende-se que a celeridade que motivou a criação desse
cenário, erigido no contexto democrático, poderia servir de fundamento
para estruturar a polícia judiciária.
Com investimento em pessoal e desenvolvimento tecnológico,
sobretudo em instrumentos de inteligência policial e comunicação virtual
entre os demais órgãos envolvidos na persecução criminal, criação de
documento único de identicação pessoal e banco de dados também único
com abrangência nacional, enm, com soluções práticas resolver-se-iam
problema prático.
Com efeito, é consabido que os efeitos “dromológicos” são inevitáveis
e continuarão provocando mudanças intelectuais, urbanísticas, culturais,
sociais, políticas e jurídicas. Saber (quando e como) dosar o ritmo da
velocidade e equalizá-lo na frequência dos ditames constitucionais, com
respeito aos direitos e garantias fundamentais, é dever republicano de
qualquer Ente Federativo introduzido em uma “Dromocracia”.
referênciAs
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a constituição do novo modelo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
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Cíveis e Criminais e dá outras providências. Planalto. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm Acesso em: 15 set. 2018.
BRASIL. Lei n. 12.830, de 20 de junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal
conduzida pelo delegado de polícia. Planalto. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm. Acesso em: 20 set. 2018.
BRASIL. Lei nº 22.257, de 27 de julho de 2016. Estabelece a estrutura orgânica da
administração pública do Poder Executivo do Estado e dá outras providências. Disponível
em: https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa-nova-min.
html?tipo=LEI&num=22257&ano=2016. Acesso em: 03/02/2021.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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DOTTI, René Ariel. A autoridade policial na Lei 9099/95. Boletim IBCCRIM, São
Paulo, n. 41, maio 1996.
MINAS GERAIS. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5637 (0064157-
34.2016.1.00.0000). Requerente: Associação dos Delegados de Polícia do Brasil. Relator:
Ministro Edson Fachin. Minas Gerais, 2016. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/
processos/detalhe.asp?incidente=5114415. Acesso em: 05 out. 2018.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1998.
SANTOS, José Eduardo Lourenço dos. O surgimento do biopoder, os avanços
tecnológicos e o controle social. Revista Argumenta Journal Law, Jacarezinho-Paraná,
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article/view/618/pdf. Acesso em: 03 fev. 2018.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2002.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10.
ed. Salvador: JusPodivum, 2015.
THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, dromologia, tecnologia e garantismo.
Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.
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Estação Liberdade, 1996a.
BiBliogrAfiA
LOPES JUNIOR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no
processo penal. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.
VIRILIO, Paul. A arte do motor. Tradução de Roberto Pires. São Paulo: Estação Liberdade,
1996b.
| 157
10
DIREITO FUNDAMENTAL À
SEGURANÇA: UNIFICAÇÃO DA POLÍCIA
CIVIL E MILITAR BRASILEIRA
Henrique Hatum Fernandes
1
Victor José Amoroso de Lima
2
Mário Furlaneto Neto
3
introdução
Em 02 de setembro de 2015, o então Presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha, criou a Comissão Especial para estudar e
apresentar propostas de unicação das Polícias Civis e Militares brasileiras.
A Comissão Especial, composta por 26 Deputados e igual número de
suplentes, desde então, vem promovendo audiências públicas, missões
Bacharel em Direito pela Universidade de Marília - UNIMAR.Graduando emCiência Sociais pela UNESP.
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM. Assistente Jurídico. E-mail:
henriquehfernandes@hotmail.com.
Bacharel em Direito peloCentro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM.Mestrando em Direito pelo
UNIVEM. Advogado. E-mail: vjalima@hotmail.com.
Mestre e Doutor em Ciência da Informação pela UNESP. Professor da graduação e Mestrado em Direito do
Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM. Professor da Academia da Polícia Civil do Estado de São
Paulo. Delegado de Polícia. Coordenador do Núcleo de Estudos em Direito e Internet - NEPI, mantido pelo
Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM. E-mail: mariofur@univem.edu.br.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p157-170
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
158 |
ociais ao exterior e seminários para debater o tema que pretende reetir
mudança de paradigma na estrutura da segurança pública brasileira.
Neste contexto, foram realizadas missões ociais à Alemanha,
Itália, França, Estados Unidos, Canadá, Áustria, Chile e Colômbia, tendo
deliberado, em última reunião, por promover visitas técnicas em unidades
das Polícias Civis e Militares situadas nos 26 Estados da Federação.
Concomitantemente, realiza-se o Seminário Internacional sobre as
Unicações das Polícias Civis e Militares, no Auditório Nereu Ramos, na
Câmara dos Deputados, em Brasília/DF.
Verica-se, portanto, que o tema a ser pesquisado é extremamente
relevante, por estar em pauta de discussão na Câmara dos Deputados e que
poderá gerar a propositura de Projeto de Emenda Constitucional, o que
requer, também, amplo debate da comunidade cientíca.
Assim, por meio do método dedutivo, com emprego de revisão
bibliográca e legislativa, parte-se da premissa de que a segurança, enquanto
direito fundamental, engloba a segurança pública, dever do Estado, mas
direito e responsabilidade de todos, concretizada em parte pelo Estado, por
intermédio dos órgãos que compõem a Segurança Pública. Porém, como
o esforço do Estado não tem revelado resultados satisfatórios, estuda-se a
possibilidade de unicação das polícias, enquanto possibilidade de trazer
maior eciência à prestação do serviço público.
Para tanto, inicialmente, necessário enfrentar o direito à segurança,
enquanto direito fundamental, o que se fará a seguir.
1. direito fundAmentAl à segurAnçA PúBlicA
O caput do artigo 5º da Constituição Federal (CF) garante aos
brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à segurança, dentre
outros (BRASIL, 1988).
A redação do texto constitucional possibilita reexões. Em um
primeiro momento, em relação aos destinatários da norma. Nesse sentido,
parece equivocada a interpretação que o direito à segurança tenha enquanto
destinatários apenas os brasileiros e estrangeiros residentes no País.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 159
Compartilha-se, assim, o entendimento de Dimoulis e Martins (2007),
no sentido de que o preceito constitucional, também, deve alcançar os
estrangeiros que estejam de passagem pelo país, igualmente detentores do
direito à segurança.
Outra questão que se impõe discutir é se o direito à segurança é
individual ou coletivo. Nesse sentido, Ferreira Filho (2005 apud SILVA,
2010, p. 438) reporta que o direito à segurança “[…] é um conjunto
de garantias, natureza que, aliás, se acha ínsita no termo segurança.”. O
autor enfatiza que referido direito “[…] aparelha situações, proibições,
limitações e procedimentos destinados a assegurar o exercício e gozo de
algum direito individual fundamental [...]”, em cujo contexto se inserem
os demais elencados no próprio caput e nos incisos do artigo 5º da CF.
Por sua vez, Guerra (2013 apud ESSADO, 2014) retrata o direito
à segurança enquanto direito individual e coletivo, analisando-o, sob duas
perspectivas: subjetiva e objetiva. A primeira, caracteriza o direito individual
subjetivo de o cidadão viver livre de qualquer coerção estatal ou individual,
enquanto a segunda, no direito coletivo de o Estado proporcionar, através
dos órgãos que o representavam e por meio de políticas pública, segurança
a todos os cidadãos.
Ao analisar a natureza jurídica da segurança pública em um viés
constitucional, Vilardi (2010) a vislumbra sob duas perspectivas: enquanto
direito fundamental, pois presente no preâmbulo da carta política e no
caput do artigo 5º, assim como um serviço público a ser prestado pelo
Estado por meio das instituições elencadas no artigo 144 da CF.
Na mesma linha de raciocínio, Santin (2004, p. 78) salienta que
em qualquer discussão sobre gerações, ondas ou dimensões de direitos
humanos, “[…] não se pode prescindir da inclusão e da atenção ao
direito à segurança pública”, em face da grande relevância para o
convívio em sociedade.
Estabelecida a premissa maior, de que o direito à segurança se
enquadra no contexto dos direitos fundamentais, necessário se torna
estabelecer como a CF disciplinou as atribuições das instituições que
representam o Estado no mister da segurança pública.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
160 |
2. instituições que comPõem A mAcro segurAnçA PúBlicA
BrAsileirA e o direito comPArAdo
O artigo 144 da CF estipula que “a segurança pública, dever do
Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através
dos seguintes órgãos [...]” (BRASIL, 1988).
Nesse contexto, as policias rodoviária federal, ferroviária federal e as
militares possuem atuação ostensiva e visam prevenir a prática de infrações,
nos âmbitos de suas respectivas atuações, além de garantir a ordem pública.
Apesar de formação militar, os corpos de bombeiros exercem atividade de
defesa civil.
Quando, por algum motivo, a polícia preventiva não consegue evitar
a prática da infração penal, entra em cena as polícias Federal e Civis, com
a missão de apurar o crime e sua autoria, com todas as suas circunstâncias.
Trata-se, portanto, do braço repressivo do Estado, com atuação no âmbito
de persecução criminal preliminar ou investigativa.
No âmbito do Distrito Federal e dos Estados, as Polícias Civis e as
Militares estão inseridas no âmbito da Secretaria da Segurança Pública. A
Polícia Civil comandada pelo Delegado Geral de Polícia e a Polícia Militar
pelo Comandante Geral, ambos escolhidos enquanto cargo de conança
pelo Secretário de Segurança Pública, com o aval do Governador.
Essa característica fez Furlaneto Neto e Santos (2011, p. 214)
distinguirem Polícia do Governo de Polícia do Estado. Para os autores, “a
Polícia do Estado é marcada por garantias institucionais e individuais. Sob
a vertente institucional, com a concretização de princípios como a unidade,
a indivisibilidade e a independência funcional.” a Polícia do Governo é
pontuada pela escolha política dos gestores da instituição policial, que
acabam por seguir a política de segurança imposta pela Secretaria de
Segurança Pública.
Logo, a política de segurança pública é imposta pelo Secretário de
Segurança Pública, o qual age a mando do Governador. Enquanto corolário
dessa assertiva, editou-se no Estado de São Paulo a Lei Complementar
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 161
nº 1.245/2014 (SÃO PAULO, 2014), que instituiu a bonicação por
resultados, estabelecendo enquanto um dos critérios para a sua concessão
o “alinhamento com os objetivos estratégicos da Secretaria da Segurança
Pública”. Assim, tem-se priorizado a prevenção e repressão a crimes contra
o patrimônio, em cujo contexto se inserem furtos e roubos, como também
os furtos e roubos de veículos, bem como o crime de homicídio, dentro do
âmbito dos crimes contra a vida.
Ocorre que a política de segurança pública no Estado de São Paulo,
nos últimos anos, tem priorizado a prevenção em face da repressão criminal,
não obstante esta última contribuir para a diminuição da incidência criminal
quando feita de forma eciente. Nesse sentido, a título de exemplo, a
Resolução SSP nº 496, de 28 de dezembro de 2006 (SÃO PAULO, 2006),
que regulamenta os procedimentos a serem adotados pelas polícias em
ocorrências de localização de veículos, estipula o dever de o policial localizar
a vítima para providenciar a remoção imediata do veículo à unidade policial
encarregada do registro da ocorrência, vedando-se a permanência do policial
para o guarda do automóvel em prejuízo do policiamento.
Prioriza-se a célere retirada do veículo da cena do crime e a pronta
liberação do policial para retornar as atividades de policiamento, em especial
o ostensivo, em prejuízo do que dispõe o artigo 158 e seguintes do Código
de Processo Penal (CPP) e a Resolução SSP nº 382, de 1º de setembro de
1999, aquele estipulando que os crimes que deixam vestígios devem ser
alvo de prova pericial, enquanto esta regulamentando a preservação do
local do crime e os vestígios deixados pela infração (BRASIL, 2018; SÃO
PAULO, 2010).
A razão de ser da medida remonta ao aumento da criminalidade e a
diminuição de material humano, uma vez que tanto a polícia preventiva
quanto a ostensivo, nos últimos anos, passaram a apresentar décit de
policiais em seus quadros, cujos cargos não foram totalmente supridos
pelo Estado.
Assim, medidas paliativas passaram a ser adotadas, tais como a
prevista na Resolução SSP nº 496/2006 (SÃO PAULO, 2006), visando
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
162 |
adequar o atendimento das ocorrências às novas especicidades diante da
realidade estrutural das policias.
Outras medidas isoladas são adotadas em outros Estados que
vivenciam a mesma realidade. A título de exemplo, no Estado do Paraná
implementou-se o Boletim de Ocorrência Unicado, em que tanto o
policial civil quanto o militar podem elaborá-lo (ZANIN, 2011).
No Estado de São Paulo, a partir de 2011, expande-se os serviços
da Delegacia Eletrônica para os postos da Polícia Militar, possibilitando
o registro do Boletim de Ocorrência eletrônico de naturezas especícas
(PM VAI, 2011).
Ainda que não se esgote as medidas adotadas pelas Secretarias de
Segurança Pública no afã de tentar resolver o problema da eciência da
segurança pública, observa-se aspecto comum em todas elas: atribuiu-se a
uma das polícias a tarefa que seria de outra. Sim, pois a rigor, a preservação
de local de crime deve contar com as duas polícias atuantes: a militar,
isolando a cena do crime e garantindo a ordem pública do lado externo,
e a polícia civil, garantindo que os vestígios sejam inalterados até que
se conclua os exames periciais que o Delegado de Polícia requisita, para
depois de o local ser liberado pelos peritos, reexaminá-lo em busca de
novos subsídios para a investigação.
Ao determinar que aquele que primeiro chegar ao local do crime,
independentemente de ser policial civil ou militar, terá a incumbência
de preservá-lo, conforme estipula a Resolução SSP/SP nº 382/1999,
desrespeita-se a essência da atuação das polícias, o que pode contribuir
para a ineciência da atividade investigativa (SÃO PAULO, 1999).
Atualmente, no Estado de São Paulo, em face do atendimento de
uma ocorrência policial que demande a atuação das policiais civil e militar,
esta elaborará Boletim de Ocorrência Militar (BO/PM) e a polícia civil
elaborará o RDO. Isso demanda tempo no atendimento da ocorrência e
maior gasto do erário, o que fatalmente prejudicará as atividades ns de
ambas as polícias.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 163
Ademais, situadas em prédios diferentes, com comandos e hierarquias
diferentes, inviabiliza-se o trabalho conjunto e uma resposta mais efetiva à
sociedade. O modelo mostra-se totalmente ultrapassado.
A mudança é inevitável. Como enfatiza Foucault (2011, p. 47):
É por transformações sucessivas, que nos interroga hoje, questiona
nossos desejos e sonhos, inquieta-se com nossas noites, persegue
os segredos e traça fronteiras, designa os anormais, promove
puricações e assegura as funções da ordem.
A mudança faz parte da nossa sociedade desde sempre. Mudar parece
ser estranho e difícil no início, mas no futuro quem era dito como louco é
visto como visionário:
Hána nossa sociedade outro princípio de exclusão: não mais a
interdição, mas uma separação e uma rejeição. Penso na oposição,
razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo
discurso, não pode circular como os dos outros; pode ocorrer que
sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo
verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça,
não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo
nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e
fazer do pão um corpo [...] É curioso constatar que durante séculos
na Europa a palavra do louco não era ouvida [...] (FOUCAULT,
2009, p. 2-3).
O discurso sobre a mudança na segurança pública é viável e essencial
para a sociedade brasileira.
Dentro do contexto dos estudos para subsidiar propostas de unicação
das polícias, a Comissão Especial fez missões ociais na Alemanha, Itália,
França, Áustria, Estados Unidos, Canadá, Chile e Colômbia.
A estrutura da Segurança Pública Alemã é composta por quatro polícias
no âmbito federal: a Polícia Federal (Bundespolizei), a Polícia Criminal
(Bundeskriminalamt – BKA), bem como as polícias scal e legislativa. Em
que a independência para legislar sobre segurança pública, observa-se que
os 16 Estados que compõem a Alemanha optaram pela adoção do sistema
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
164 |
de Polícia de Ciclo Completo: uma única polícia, desmilitarizada, com um
segmento ostensivo e outro investigativo. Após a formação do policial na
Academia de Polícia, que tem nível superior, o policial pode ser alocado
tanto em um segmento quanto em outro, podendo haver a mudança de
segmentação no transcurso da carreira (COMISSÃO, 2016a).
O modelo policial italiano é composto por três polícias: Polícia
do Estado, Arma dos Carabineiros e Guarda de Finanças. A Polícia do
Estado possui estatuto civil, disciplina militar e atua em ciclo completo
(COMISSÃO, 2016b).
A França é composta por duas polícias: a Polícia Nacional e a
Gendarmaria. Aquela atende ocorrências em cidades compostas por
mais de 20 mil habitantes, enquanto esta atende em cidades que contam
com menos de 20 mil habitantes. Assim, cada uma delas atende 50% da
população que habita o país. A Polícia Nacional tem estatuto civil e estética
militar, enquanto a Gendarmaria ostenta formação militar. Ambos atuam
no contexto do ciclo completo (COMISSÃO, 2016b).
O modelo americano é descentralizado, de forma que há polícias
próprias no âmbito federal, estadual, municípios e condados. A Polícia
de Nova Iorque possui estatuto civil e estética baseada na hierarquia e
disciplina (COMISSÃO, 2017a).
O Canadá é composto por duas províncias: Quebec e Otawa,
com características culturais diferentes. A Polícia de Otawa possui três
departamentos cheados por civis (COMISSÃO, 2017a).
A polícia é única na Áustria, mantida e controlada pelo Governo
Federal, divida em duas áreas, administrativa e policial, de ciclo completo,
porém, com níveis de atuação, de acordo com a complexidade da causa:
Ministério do Interior, para causas de maior complexidade; Departamento
de Polícia estadual; Comando Distrital e; Delegacia de Polícia, com
atribuição para causas de menor complexidade (COMISSÃO, 2017b).
O Chile é composto por duas polícias: os Carabineiros e a Policía de
Investigaciones de Chile (PDI). A primeira de caráter militar, a princípio, tem
atribuição de garantir a ordem pública, porém pode promover investigação
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 165
quando solicitada pelo Ministério Público. A segunda, de caráter civil,
encarrega-se, em especial, de investigações de alta complexidade, embora possa
ser instada a investigar crimes de menor complexidade (COMISSÃO, 2017c).
A Colômbia também é composta por uma única polícia, denominada
de Polícia Nacional, de caráter civil e ciclo completo, porém quem comanda
a investigação é o Ministério Público (COMISSÃO, 2017b).
Em todos os relatórios, observar-se que a unicação das polícias
possibilita maior eciência na cooperação e trabalhos de inteligência
policial, inclusive em relação a cooperações interestaduais e internacionais,
ganho com menor dispêndio do erário público, encerrando com a
concorrência entre as polícias, características que permeiam e possibilitam
fomentar o princípio da eciência administrativa.
Porém, levando em conta a cultura brasileira de politização da
segurança pública, possibilitando que governos promovam ações policiais
que visam mais dividendos políticos do que solucionar efetivamente o
problema da segurança pública, aliado ao fato de que o Brasil vive crise
política, por conta dos casos de alta corrupção que assolam o escalão
superior da administração pública, necessário adotar no Brasil um modelo
de polícia que permita com que as instituições que compõem o sistema
da macro segurança pública efetivamente possam atuar com a máxima
proximidade ao princípio da eciência administrativa.
3. PolíciA de ciclo comPleto: ProPostA de unificAção dA PolíciA
civil e militAr BrAsileirA
A Polícia de Ciclo Completo é composta por dois segmentos: um
preventivo e garantidor da ordem pública e outro investigativo. Permite-
se, com isso, o poder para que a Polícia, através de seus representantes,
possa investigar a infração desde o atendimento inicial até o encerramento
da investigação. Fortalece-se, assim, a capacidade investigativa do policial,
transformando-o em um pensador do processo investigativo e não somente
mera ferramenta. Em outras palavras, tem-se uma polícia una, com plena
atuação na prevenção e investigação criminal.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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Para tanto, a proposta em debate prevê enquanto modelo para o Brasil
a criação de uma Polícia de Estado, desmilitarizada, com um braço fardado,
encarregado de promover, inicialmente, a prevenção criminal e a garantia
da ordem pública, mas tendo atribuição para dar início e até concluir a
investigação, em especial no que tange as infrações de menor lesividade,
assim como um segmento investigativo, encarregado de reprimir crimes de
maior lesividade e complexidade, cheados por Delegados de Polícia de
carreira, bacharéis em Direito, que passam por formação humanística nas
Instituições de Ensino Superior (IES), assim como no Curso de Formação
Ministrado nas Academias de Polícia e, portando, tuteladores dos direitos
e garantias individuais da pessoa humana, em que pese reconhecer-se a
necessidade de reformulação dos projetos pedagógicos das academias de
polícia, consoante apontados por Baraldi (2012) e Souza (2012).
Defende-se a carreira de agente policial, de nível superior, que
poderia exercer, concomitantemente, as funções hoje desempenhadas por
Investigadores e Escrivães de Polícia. O policial que colhe a prova, encarrega-
se de materializá-la, sob o comando e supervisão do Delegado de Polícia.
Este ingressa na carreira no segmento fardado, sendo promovido para a área
investigativa, com escalonação e promoções internas, respeitados requisitos
objetivos e subjetivos, admitindo-se, inclusive, o regresso de um segmento
a outro, respeitada a paridade do cargo, por decisão fundamentada do
Conselho da Polícia de Estado, a bem do serviço público.
Assim, ter-se-ia melhores condições de aproveitar o perl prossional
do agente policial, possibilitando que este exerça a função pública onde
tenha maior qualidade/ habilidade.
Isso possibilitaria, inclusive, melhor distribuição de recursos, não só
humanos, mas materiais, para o desempenho m da atividade de prevenção
e repressão criminal.
Polícia una, com um único comando e banco de dados unicado,
possibilitando, assim, cooperação entre os segmentos, em especial nas
atividades que envolvem técnicas de inteligência policial.
A unicação de banco de dados, que permite a centralização
de informações e sua célere difusão para auxiliar tomada de decisões, a
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 167
utilização de softwares de inteligência unos, com emprego de técnicas de
inteligência articial, assim como o emprego racional do material humano
e recursos materiais disponíveis gerando redução de custos operacionais na
implementação de políticas de segurança pública mais ecientes. Ter-se-ia
mais, com menos investimento, gerando economia para o Estado.
No entanto, nenhuma proposta irá adiante se não se garantir
independência funcional, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade
diferida a todos os membros da Polícia do Estado.
A eleição de lista tríplice do Delegado Geral da Polícia do Estado,
com dotação orçamentária própria, ainda que com o aporte de um Fundo
Nacional de Segurança, a ser criado pelo Governo Federal, o pagamento
de bons salários a todos os integrantes da Polícia do Estado, com direito
a aposentadoria especial, em face da insalubridade e periculosidade da
atividade policial, são parâmetros a nortear a proposta de unicação da
polícia civil e militar.
Lógico que a nova polícia precisa ser scalizada. Assim, defende-
se a permanência da scalização interna e externa que vigora atualmente.
Internamente, de forma imediata pelo superior hierárquico do funcionário
e pela Corregedoria Geral da Polícia, assim como externamente pelo
Ministério Público e Poder Judiciário. O advogado tem papel importante
nesse processo, na medida em que, no ato de assistência ao investigado,
pode exercitar o direito de petição contra abusos e desvios de poder.
conclusão
A proposta condensada não tem o condão de esgotar o assunto.
Lança-se linhas gerais de um projeto de Emenda Constitucional de
unicação da polícia civil e militar brasileira, com a intenção de chamar
a atenção da comunidade cientíca para o amplo debate de tema que se
reputa tão relevante.
Acredita-se que o modelo de estruturação da segurança pública
brasileira está ultrapassado em face das realidades sociais contemporâneas,
exigindo-se, portanto, delimitar novos paradigmas.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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Reconhece-se, no entanto, que a divisão entre Polícia Civil e Militar
perdura no Brasil há mais de um século, de forma a existir interesses
corporativos, de ambas instituições, contrários a unicação.
No entanto, as linhas gerais aqui apresentadas podem ser parâmetros
para endossar, ao menos, a modicação de panorama da polícia investigativa.
Ainda que se defenda a manutenção da separação da polícia civil e militar,
acredita-se que a polícia investigativa deva ter contornos de Polícia do
Estado e não Polícia do Governo.
Neste aspecto, o suporte de dotação orçamentária própria, a
eleição de lista tríplice do Delegado Geral da Polícia do Estado, garantias
institucionais de independência funcional ao Delegado de Polícia do
Estado, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade diferida a
todos os integrantes da instituição, salários dignos, aposentadoria especial,
bem como atribuição para investigar crimes de maior lesividade, parecem
parâmetros ideais para atender os anseios sociais contemporâneos e
viabilizar que o Estado possa caminhar, de fato, em direção à concretização
do direito fundamental à segurança.
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11
A IMPOSSIBILIDADE DE ELIMINAÇÃO
DOS CONFLITOS PELO DIREITO
Mário Lúcio Garcez Calil
1
Daniele Silva Lamblém Tavares
2
introdução
As discussões acerca dos métodos de resolução extrajudicial e
consensual das demandas judiciais relacionam-se à necessidade de desafogar
a máquina judiciária, superlotada de processos, todavia, por meio da
eliminação dos conitos.
Para que se possa entender os conitos, a impossibilidade de sua
eliminação, as formas mediante as quais afetam a sociedade, a cultura
de litigiosidade que caracteriza a administração da Justiça no Brasil e
Estágio pós-doutoral e estudos em nível de pós-doutorado pela Fundação Eurípides Soares da Rocha de Marília
(Bolsista PNPD-CAPES). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru (CEUB-ITE). Mestre em
Direito. Professor do Programa de Mestrado em Direito do UNIVEM. Professor Adjunto IV da Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul. Vice-líder do grupo de pesquisa “A intervenção do poder público na vida da
pessoa”, vinculado ao Programa de Mestrado do UNIVEM. E-mail: .mario.calil@yahoo.com.br.
Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM). Especialista em Direito
Processual pelas Faculdades Integradas de Paranaíba (FIPAR). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul. Professora colaboradora da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade
Universitária de Paranaíba. Advogada do Município de Paranaíba-MS. E-mail: daniele@lamblem.com.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p171-182
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
172 |
as possibilidades de sua modicação, faz-se necessário compreender os
principais aspectos do conceito de “conito”.
Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho foi o estudo do
conceito de conito no que concerne aos seus principais aspectos, sem,
contudo, adentrar a questão axiológica da problemática, de modo a que
fosse possível cooperar com as discussões jurídicas acerca dos métodos
alternativos de resolução.
Utilizou-se a pesquisa bibliográca, porém, com uma abordagem
multidisciplinar, a partir de referenciais voltados à psicologia, à sociologia,
à política e ao direito. A escrita deu-se por meio do procedimento dedutivo.
A estrutura do trabalho compreendeu a exposição da matéria em
cinco tópicos. No primeiro, foi tratada a necessidade da formulação e do
estudo de uma “teoria dos conitos”. No segundo, trabalhou-se a inerência
do conito à psique humana. No terceiro, foi estudada a necessidade
da existência do conito no campo social. No quanto, foi trabalhada a
necessidade do conito para a existência da democracia. Por último,
estudou-se a o processo de “demonização” do conito pelo direito.
A pesquisa é justicável, em decorrência da crescente judicialização
dos conitos. Concluiu-se que a discussão acerca da lógica dos conitos
pode desencadear propostas mais efetivas para que a sociedade reaprenda
a lidar com as divergências, de modo a que os envolvidos possam ser
colocados em uma posição de “corresponsabilidade colaborativa”, voltada
à construção de soluções ecazes que, todavia, não visem à sua impossível
eliminação.
1. A necessidAde de umA teoriA dos conflitos
O estudo do conceito de “conito”, despido do viés axiológico,
demonstra-se essencial para o entendimento de sua funcionalidade no
campo social, bem como é capaz de demonstrar a desnecessidade e, até
mesmo, a impossibilidade de sua eliminação.
Aquilo que se considera natural, inevitável, bom ou verdadeiro pode
não o ser. O que se toma como “dado” é fortemente inuenciado por forças
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 173
históricas e sociais. É essencial compreender as maneiras sutis, complexas
e profundas, pelas quais as existências individuais reetem os contextos da
experiência social (GIDDENS, 2007, p. 2).
Nesse sentido, é por meio da compreensão do relacionamento causal
entre os acontecimentos, que é possível prever o modo como se darão
futuros acontecimentos (GIDDENS, 2007, p. 6).
Assim, “conito” é, meramente, um conceito, um fenômeno passível
de ser denido por várias áreas do conhecimento, uma ideia que se refere,
simplesmente, ao estado que resulta da divergência entre indivíduos
quanto a ideias, argumentos, opiniões relacionadas a determinado assunto,
sendo que as visões apresentadas por eles se mostram reciprocamente
incompatíveis.
Sobre a axiologia do conito, há, porém divergências entre os
teóricos. Há quem o considere uma patologia social, carente de repressão,
como Spencer, Durkheim, Pareto, Talcott e Parsons. Já Marx, Mill, Simmel,
Dahrendorf e Touraine, v.g., defendem que é parte integrante da vida em
sociedade, de vital importância para avanços e mudanças (GHISLENI,
2011, p. 41).
O conito é inerente ao campo social, inevitável no contexto da
convivência em sociedade, o que conrma sua inevitabilidade e a armação
de que é um mero conceito. Não é algo “bom” ou “ruim”, mas, sim, ao
menos inicialmente, axiologicamente neutro.
Até porque a experiência social não é homogênea ou unívoca, nem
dispõe o indivíduo a apenas um tipo de conduta; é, sim, naturalmente
contraditória e conituosa (BLEGHER, 1984, p. 129).
A “dinâmica conitiva” demonstra que o conito pode ser tanto
positivo quanto negativo. A valoração de suas consequências dar-se-á
pela legitimidade das causas que se pretende defender (SIMMEL, 1983,
p. 124).
Nesse diapasão, faz-se necessário desconstruir os conceitos e culturas
equivocadas relacionadas aos conitos, de modo a que seja possível entender
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
174 |
a lógica das controvérsias sociais, uma vez que, corretamente tratadas, em
muito contribuem para a evolução da sociedade.
Diversos avanços essenciais, nas mais diversas áreas do conhecimento,
originaram-se do conito de ideias, posicionamentos e perspectivas sobre
determinado tema. Assim, é possível armar que “[...] o conito é a mola
propulsora para a evolução da sociedade” (WÜST, 2014, p. 19).
É sob essa ótica que devem ser tratados os conitos. Por meio dela
faz-se possível entender sua função social: o avanço das relações sociais e o
crescimento do indivíduo enquanto pessoa.
Nesse sentido é que a teoria do conito originou uma nova
discussão acerca dos próprios fundamentos da ordem social, pois pretende
questionar, novamente, a visão estrutural-funcionalista dominante, que
se volta a justicar (mais ou menos ideologicamente) “[...] um sistema
social atravessado pelo poder e que pretende funcionar unicamente pelo
consenso” (BIRNBAUM, 1995, p. 249).
Diante disso, não se deveria investigar as formas de eliminação
do conito, mas, sim, indagar quais os objetivos e desejos das pessoas
envolvidas. Esse questionamento demanda, todavia, a compreensão do
conito como fato psicológico, social, político e jurídico.
2. A inerênciA do conflito à Psique HumAnA
A natureza biopsicológica individual nasce com cada ser humano,
trazendo signos hereditários e determinando características siológicas,
psíquicas e de temperamento.
Ocorre que o comportamento animal resulta da combinação
do comportamento biopsíquico, reduzido ao mínimo pela educação
dos pais, do comportamento que resulta da experiência individual e
do comportamento aprendido com outros indivíduos, decorrente da
transmissão de hábitos de uma geração a outra, consistente na natureza
social (LINTON, 1981, p. 80-83).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 175
Em sua vertente biopsicológica, o conito demonstra ser algo
inerente ao homem, incrustado que se encontra na própria psique humana,
o que corrobora a sua inevitabilidade e a impossibilidade ser extirpado da
sociedade.
Mais do que isso, o que normalmente se nomeia “conito de desejos
tem características análogas ao “conito entre crenças”, pois o choque entre
os desejos surge a partir de questões contingentes de fato (WILLIAMS,
1976, p. 167).
Em um conito, é impossível que ambos desejos sejam satisfeitos,
somente sendo possível imaginar um “estado de coisas” no qual as partes
poderiam se conformar. Os ressentimentos resultantes dos conitos,
porém, são experiências motivacionais que ditam o curso de ação que se
deve tomar (WILLIAMS, 1976, p. 174).
Assim, o comportamento aprendido é complementado, ou mesmo
aperfeiçoado, pelas experiências individuais, de modo diretamente
proporcional à uma série de variantes e condições mutáveis do ambiente
em que o homem se encontra inserido.
Nesse contexto é que se encontra a mágoa, o remorso, o
arrependimento e o próprio conito, o que corrobora a armação acerca
da impossibilidade de sua eliminação do convívio em sociedade.
3. A necessidAde do conflito no cAmPo sociAl
A natureza social, por sua vez, é incorporada ao homem por
intermédio da convivência com o grupo social ao qual pertence e ao qual
vai, progressivamente, se integrando, durante o processo denominado
socialização”, que consiste em assimilar conceitos, crenças, ideias, valores
e comportamentos.
Trata-se de algo como uma “luta”, da qual o indivíduo tem
consciência, e na qual está emocionalmente envolvido. O conito, nesse
contexto, porém, é intermitente (TORRE, 1976, p. 81).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
176 |
Por isso é que as sociedades desenvolvem procedimentos para eliminá-
los, que podem ser de: adaptação, acomodação, assimilação, aculturação e
socialização. O processo de “adaptação” consiste em um ajustamento, por
meio do qual um organismo reage às mudanças do meio social (TORRE,
1976, p. 87).
Na “acomodação”, o ajustamento ocorre de maneira exterior e
formal, e resulta em uma nova ordem social, novas relações e novos status.
As divergências, contudo, não desaparecem, e o conito se torna “latente”,
pois as modicações ocorrem somente em relação a aspectos secundários
(TORRE, 1976, p. 88).
São formas de “acomodação”: dominação e subordinação, na qual
o conito termina com a vitória de um dos antagonistas; compromisso,
no qual as partes fazem concessões mútuas; tolerância, que não soluciona
suas divergências entre os antagonistas, mas faz com que passem a coexistir
sem conito; e conciliação, que produz a mudança de sentimentos entre
os antagonistas, que esquecem ou desculpam suas divergências (TORRE,
1976, p. 90).
Na “assimilação”, grupos ou indivíduos divergentes tornam-se
semelhantes, pois suas atitudes, sentimentos e pensamentos se fundem.
Como em uma “mistura de substâncias”, a assimilação resulta em um “novo
composto químico”, feito de diferentes substâncias (TORRE, 1976, p. 91).
Assimilação” e “aculturação” são fases do mesmo processo, que
ocorrem de maneira simultânea e correlata, a partir dos contatos entre
grupos, que transformam as congurações culturais, por meio da fusão de
duas ou mais culturas, dando origem a uma nova (TORRE, 1976, p. 95).
A “socialização” envolve a “homogeneização” e a “diferenciação”, que
são dois processos aparentemente antagônicos, porém, complementares:
na “homogeneização”, os indivíduos recebem inuências comuns, porém,
de maneiras diferentes entre si; a “socialização” cria laços de solidariedade e
unidade social entre os indivíduos, produzindo uma “consciência grupal”
que aumenta a cooperação, prevenindo ou “acomodando” os conitos
(TORRE, 1976, p. 97).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 177
O denominador comum em relação aos processos de contenção dos
conitos é a admissão de que a sua eliminação é impossível, por ser inerente
à vida em sociedade, em decorrência das diferenças entre os seres humanos.
O crescimento da diversidade social resulta do conito e dele depende
para sua continuidade. A sociedade depende das inuências recebidas do
meio no qual se relacionam os homens.
4. A demonizAção do conflito Pelo direito
A personalidade do indivíduo é desenvolvida pela inuência de sua
herança biopsíquica e de sua herança social. Essa conuência produz seres
singulares, o que enriquece o campo social por meio da heterogeneidade
social, que pode gerar antagonismos e, consequentemente, a instabilidade,
o rompimento de vínculos, e outras modicações nas relações sociais,
decorrentes dos conitos. Nesse sentido, o conito é indispensável à
democracia.
O problema das “preferências adaptativas” é empurrar grupos
despossuídos para “consensos” que deveriam ser inaceitáveis. Colocam-se
as desigualdades materiais “entre parênteses”, para não se comprometer a
efetivação da igualdade jurídico-política (MIGUEL, 2014, p. 67).
Negligencia-se, com isso, o caráter conitivo da política, valorizando-
se o consenso, o que revela o irrealismo das teorias deliberativas: política
continua é a expressão dos conitos de interesse (MIGUEL, 2014, p. 67).
As especicidades de cada indivíduo produzem as demandas e a
agregação em grupos sociais. Essas resultarão nas discussões a serem travadas
na esfera pública. Os antagonismos, além de inevitáveis, são indispensáveis
para o jogo democrático.
A democracia “agonística” depende da aceitação de que o conito e a
divisão são inerentes à política, e que não há lugar para a reconciliação por
meio da plena realização da unidade (MOUFFE, 2000, p. 15).
A democracia pluralista é, assim, paradoxal: não pode ser
perfeitamente instanciada”, pois o conito é sua condição de possibilidade,
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
178 |
ao mesmo tempo em que é condição de impossibilidade de sua perfeita
implementação (MOUFFE, 2000, p. 16).
Dado que o pluralismo não pode ser erradicado do valor, é impossível
a resolução racional do conito (MOUFFE, 2000, p. 22).
Daí a sua dimensão antagônica, o que não signica que os adversários
não possam concordar, o que não produz a conclusão de que o antagonismo
tenha sido erradicado: “[...] aceitar a visão do adversário é sofrer uma
mudança radical na identidade política” (MOUFFE, 2000, p. 34).
A cidadania democrática pode assumir diversas formas. Isso faz com
que surjam conitos. Os diferentes entendimentos não podem coexistir
sem lutas que.Não ocorrerão, porém, entre “inimigos”, mas, sim, entre
adversários”, que reconhecem, reciprocamente, a legitimidade de suas
posições (MOUFFE, 2000, p. 74).
Nesse modo, em uma democracia “agonística”, o consenso não
pode ser “articial”, mas, necessariamente, resultante do conito entre
indivíduos, grupos e seus representantes, de forma que sua eliminação
comprometeria, irremediavelmente, os mecanismos democráticos.
5. A demonizAção do conflito Pelo direito
Desenvolveu-se, na sociedade moderna, a cultura segundo a qual
importa somente a observância da letra fria da lei, da aplicação do “direito
dos indivíduos, de modo a que seja possível armar quem tem razão acerca
da controvérsia. Nesse contexto, diversos mecanismos voltados à contenção
e à eliminação do conito vêm surgindo nas últimas décadas.
Ocorre que a capacidade de se desenvolver soluções autocompositivas
decorre da aceitação da inevitabilidade do conito, cuja demonização
resulta em confronto e violência (VASCONCELOS, 2008, p. 19).
No contexto jurídico-processual, deixa-se analisar as reais intenções
dos demandantes, muitas vezes sequer estampadas nas petições ou nas
provas, de modo que o direito, aplicado por meio do Estado-Juiz, torna-se
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 179
um m em si mesmo, no qual a resolução forçada do conito transforma-
se no único objetivo do processo judicial.
Na perspectiva de demonização do conito, os juristas denem o
conito como litígio a ser evitado, reduzindo-o a questões normativas e
predominantemente patrimoniais (WARAT, 2000, p. 9).
A alteridade como a “outridade”, todavía, possibilita transformar o
conito, produzindo a diferença com o outro, afetando seus sentimentos,
desejos e o lado “inconsciente” do conito, sema preocupação de ajustar a
concordância às disposições legislativas (WARAT, 2000, p. 10).
Até porque o ritual processual não é capaz de encerrar os conitos,
pois, ao contrário do que se espera, o sistema “ganha/perde” é capaz de
enfatizar o conito e torna-lo latente, de modo que, a qualquer momento,
pode eclodir em um novo litígio.
Desse modo, faz-se necessário olhar, verdadeiramente, para os
sentimentos dos envolvidos acerca do conito, de modo a trazê-los a
uma posição de “corresponsabilidade colaborativa”, pois, juntos, poderão
construir uma solução viável, que satisfaça o interesse de todas as partes
(GAGLIETTI, 2013, p. 176).
A abordagem institucional do conito deve ambicionar um sistema
no qual o Judiciário atue como “articulador”, e que leve em conta a
complexidade das relações que envolvem as partes, “[...] no sentido da
dimensão cidadã e humana da justiça” (GAGLIETTI, 2013, p. 176).
Nesse sentido, os sujeitos processuais devem se preocupar, no contexto
de um litígio, com as pessoas envolvidas. A nalidade dos procedimentos
de resolução de conitos deve ser restaurar as relações e os vínculos entre
os indivíduos, por meio de sua observação sensível, compassiva e humana,
voltada a enxergar o que se encontra por trás do “direito pleiteado”.
conclusão
Estudar o conceito de “conito” é essencial para entender sua
funcionalidade e demonstrar a impossibilidade de sua eliminação. Trata-
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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se de um mero conceito, denível por várias áreas do conhecimento,
referindo-se ao resultado das divergências entre indivíduos. Não é algo
“bom” ou “ruim”, de modo que é necessário desconstruir conceitos e
culturas equivocadas, relacionadas ao conceito.
Assim, não se deveria investigar as formas de eliminação do conito,
mas, sim, indagar os objetivos e desejos das pessoas envolvidas, o que
demanda a compreensão do conito como fato psicológico, social, político
e jurídico.
Em sua vertente biopsicológica, o conito é algo inerente ao
homem, incrustado na psique humana, o que corrobora a impossibilidade
de ser extirpado. O comportamento aprendido é complementado pelas
experiências individuais, inclusive, pela mágoa, pelo remorso, pelo
arrependimento e pelo próprio conito.
O denominador comum entre os processos de contenção dos
conitos é o fato de que sua eliminação é impossível. O crescimento
da diversidade social depende do conito. A conuência entre a psique
humana e a interação social produz seres singulares, que podem adentrar
antagonismos, o que demonstra que o conito é indispensável à própria
democracia.
As especicidades individuais produzem demandas que resultarão
nas discussões travadas na esfera pública, de modo que os antagonismos são
indispensáveis para o jogo democrático. Em uma democracia “agonística”,
o consenso não pode ser “articial”, pois deve resultar do conito entre
indivíduos, grupos e seus representantes.
Desenvolveu-se, na sociedade moderna, a cultura segundo a qual
importa somente a observância da letra fria da lei, da aplicação do “direito
dos indivíduos, de modo a que seja possível armar quem tem razão acerca
da controvérsia. Nesse contexto, diversos mecanismos voltados à contenção
e à eliminação do conito vêm surgindo nas últimas décadas.
No contexto processual, deixa-se analisar as intenções dos
demandantes, de forma que o direito acaba por se tornar um m em si
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 181
mesmo, no qual a resolução do conito se torna o objetivo principal do
procedimento.
Ocorre que o ritual jurídico-processual não encerra os conitos, pois
o processo contencioso enfatiza o conito, tornando-o latente, o que faz
com que possa resultar em nova contenda.
Para evitar essa situação, os sujeitos processuais devem se preocupar,
especialmente, com as pessoas envolvidas, de modo que sua nalidade deve
ser a restauraçãodas relações e dos vínculos transindividuais, por meio da
percepção das reais demandas dos litigantes.
referênciAs
BIRNBAUM, Pierre. Conitos. In: BOUDON, Raymond. (org.). Tratado de Sociologia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 247-282.
BLEGHER, José. Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
GAGLIETTI, Mauro. Mediação de conitos como cultura da ecologia política. In:
SPENGLER, Fabiana Marion; BEDIN, Gilmar Antonio. (org.). Acesso à justiça, direitos
humanos e mediação. Curitiba: Multideia, 2013, p. 167-202.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
GHISLENI, Ana Carolina. Mediação de conitos a partir do Direito Fraterno. Santa Cruz
do Sul: EDUNISC, 2011.
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MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo:
UNESP, 2014.
MOUFFE, Chantal. e democratic paradox. New York: Verso, 2000.
SIMMEL, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
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São Paulo: Editora Nacional, 1976.
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conitos e práticas restaurativas. São
Paulo: Método, 2008.
WARAT, Luis Alberto. Mediación: el derecho fuera de las normas: para una teoría no
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SPENGLER, Fabiana Marion; BEDIN, Gilmar Antonio. Acesso à justiça, direitos humanos
e mediação. Curitiba: Multideia, 2013.
| 183
12
UMA ANÁLISE DO TRATAMENTO
DISPENSADO À LOUCURA NO BRASIL SOB
A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS
Eliane Cristina Rezende Pereira
1
Sérgio Leandro Carmo Dobarro
2
1. introdução
Os Direitos Humanos estão totalmente associados à questão da
loucura e o seu tratamento aqui no Brasil, principalmente a partir do
século XIX e durante todo o decorrer do século XX. Durante esse período,
a dignidade desses pacientes, enquanto pessoas humanas foram totalmente
desrespeitadas. O aspecto da dignidade da pessoa humana será discutido
por intermédio de uma análise histórica da assistência a loucura aqui no
Graduada em História pela Faculdade Auxilium de Ciências e Letras de Lins, Especialista em História do Brasil
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Especialista em Ciências Humanas e suas Tecnologias:
Cidadania e Cultura pela Universidade Estadual de Campinas, Especialização em História para Professores do
Ensino Fundamental II e do Ensino Médio pela Universidade Estadual de Campinas. Acadêmica do 8° Semestre
do Curso de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba – Campus Lins. Email: duda4@terra.com.br.
2
Graduado em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba, possui graduação em Administração
e Especialização em Administração de Marketing e Recursos Humanos, Mestre em Direito pelo Centro
Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM, Professor Universitário, autor do livro: A desconsideração
da personalidade jurídica no código de defesa do consumidor e o reexo na pessoa física e jurídica. Email:
professorsergioleandro@gmail.com
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p183-198
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
184 |
Brasil, que está diretamente ligada à violação dos Direitos Humanos, onde
a dignidade da pessoa humana foi ignorada em nome do que se chamava
progresso, principalmente a partir da segunda metade do século XIX e durante
o decorrer de boa parte do século XX, em nome do progresso da ciência e da
implantação de novas políticas públicas pelos órgãos governamentais.
O Brasil sempre foi signatário das discussões e assinou declarações
e pactos referentes aos Direitos Humanos em um âmbito internacional,
como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto de San José
da Costa Rica e resoluções que protegem e amparam decientes e doentes
mentais, porém os doentes mentais brasileiros caram por décadas sem
possuir nenhuma dignidade, sem proteção, sem ter a quem pedir socorro,
pois em caso de rebelarem-se eram punidos de formas cruéis, como por
exemplo, os famigerados choques elétricos e as cirurgias de lobotomia.
As experiências cruéis que foram realizadas com esses seres humanos
precisam ser analisadas constantemente, seja na atualidade ou em períodos
anteriores da História do Brasil e da humanidade.
Diante desse contexto do estudo da loucura, dos doentes mentais
aqui no Brasil, é preciso que façamos uma análise das instituições que
foram chamadas de Hospícios, Hospitais Colônias ou Manicômios que
se alastraram pelo Brasil, principalmente a partir da segunda metade do
século XIX e primeira metade do século XX. Durante esse período, tivemos
a criação dos maiores hospícios do Brasil, onde os pacientes sofreram toda
sorte de violações a dignidade da pessoa humana.
O Estado brasileiro precisa arcar com a sua omissão em relação a essas
pessoas durante décadas, onde ocorreu a violação dos Direitos Humanos,
essas pessoas precisam ter de volta a sua dignidade que foi usurpada pelos
órgãos responsáveis pela saúde ligados aos órgãos governamentais.
Este trabalho tem sua relevância ligada ao fato de que o Brasil sempre
pautou internacionalmente e internamente pela promoção dos Direitos
Humanos, porém através da análise do funcionamento das instituições
para o tratamento de doentes mentais, podemos perceber as violações
ocorridas em relação a tudo que diz respeito aos Direitos Humanos.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 185
2. um Histórico dA AssistênciA à loucurA no BrAsil
O Estado brasileiro só passa a preocupar-se com a loucura no Brasil,
no início do século XIX, quando temos a transferência da corte portuguesa
para o Brasil no ano de 1808, sendo que durante os trezentos anos, a
loucura foi ignorada. Os loucos, com a chegada da família real, passaram a
ser vistos como um perigo para a sociedade e também uma ameaça para a
ordem pública. Os loucos a partir de agora não poderiam mais continuar
andando livremente pelas ruas, principalmente os loucos que eram pobres,
que antes mendigavam pelas ruas, eram abrigados em casas de correções e
se dirigiam para albergues ou asilos de mendigos. A partir da transferência
da corte, o destino dessas pessoas passou a ser os porões das Santas Casas de
Misericórdia, onde o tratamento dispensado era car na maioria das vezes
amarrados, subnutridos e em péssimas condições de higiene. De acordo
com Amarante (1994, p. 74):
A loucura só vem a ser objeto de intervenção especíca por parte
do Estado a partir da chegada da família real no início do século
passado. As mudanças sociais e econômicas, no período que se segue,
exigem medidas ecientes de controle social, sem as quais torna-se
impossível ordenar o crescimento das cidades e das populações.
Convocada a participar dessa empresa de reordenamento do espaço
urbano, a medicina termina por desenhar o projeto do qual emerge
a psiquiatria brasileira.
No ano de 1830, uma comissão recém-criada, a Sociedade de
Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, procura realizar um diagnóstico
da questão da loucura na cidade do Rio de Janeiro, a capital da Corte
brasileira. Os médicos da época começaram a fazer críticas ao fato de
os loucos vagarem livremente pelas ruas do Rio de Janeiro, que cavam
encarcerados em suas próprias casas ou ainda que permanecessem presos
nos porões das Santas Casas de Misericórdia que não possuíam as mínimas
condições para recebê-los e muito menos para tratá-los. Dessa forma os
médicos da época chegaram à conclusão que para os loucos só restava um
destino, serem encaminhados para um hospício. Amarante nos diz:
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
186 |
Em 1830, uma comissão da sociedade de medicina do Rio de Janeiro
realiza um diagnóstico da situação dos loucos na cidade. É a partir
desse momento que os loucos passam a ser considerados doentes
mentais, merecedores, portanto, de um espaço social próprio, para
a reclusão e tratamento. (AMARANTE, 1994, p. 74).
O nascimento da psiquiatria no Brasil está ligado a todas as
mudanças da sociedade brasileira com a transferência da Corte, a medicina
passará a ser também uma forma, de controle da sociedade, dos indivíduos,
da população. Neste período, os médios consideravam os hospícios o
principal instrumento terapêutico do tratamento da loucura, fazia-se
necessário retirar estas pessoas das ruas e também disciplinar as instituições
que recebiam esses loucos, que eram indesejados e considerados um perigo
para a população e era melhor enclausurar essas pessoas nos hospícios.
A Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, por intermédio
de seu provedor, o senhor José Clemente Pereira, cria um projeto para
a construção de um hospital de alienados na Corte. Clemente começou
a arrecadar fundos e encaminhou um ofício ao ministro do Império
solicitando de acordo com Machado:
[...] leve o referido à soberana presença de sua majestade imperial
para que haja por bem ordenar o que for mais do seu imperial
agrado e fará um ato que eternizará o fausto dia da sagração e
coroação do mesmo Augusto senhor a fundação de um hospital de
alienados, que bem poderia tomar o nome de Hospício de Pedro II.
(MACHADO, 1978, p. 427-428).
José Clemente em seu ofício indicou até o local onde pretendia que
o hospício fosse construído, uma chácara que era de propriedade da Santa
Casa de Misericórdia e que cava localizada na região da Praia Vermelha.
Através de um Decreto nº 82, de 18 de julho de 1841, o Imperador do
Brasil, Dom Pedro II concedeu a permissão para a construção do primeiro
hospício brasileiro, que foi batizado com o nome do Imperador, Hospício
Pedro II de acordo com o decreto a seguir:
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 187
Decreto nº 82 de 18 de julho de 1841. Desejando assignalar o fausto
dia de Minha Sagração com a creação de um estabelecimento de
publica benecencia: Hei por bem fundar um Hospital destinado
privativamente para tratamento de alienados, com a denominação
de - Hospicio de Pedro Segundo -, o qual cará annexo ao
Hospital da Santa Casa da Misericordia desta Côrte, debaixo da
Minha Imperial Protecção, Applicando desde já para principio da
sua fundação o producto das subscripções promovidas por uma
Commissão da Praça do Commercio, e pelo Provedor da sobredita
Santa Casa, além das quantias com que Eu Houver por bem
contribuir. Candido José de Araujo Vianna, do Meu Conselho,
Ministro e Secretário de Estado dos Negocios do Imperio, o tenha
assim entendido, e faça executar com os despachos necessarios.
Palacio do Rio de Janeiro em dezoito de Julho de mil oitocentos
quarenta e um, vigesimo da Indepedencia e do Imperio. Com a
Rubrica de Sua Magestade o Imperador. (VIANNA, 1841).
Em dezembro do ano de 1852, ocorreu a inauguração do Hospício
Dom Pedro II, que possuía um modelo inspirado nos hospitais asilares
franceses. Uma característica desse hospício era o isolamento com caráter
médico e policial ao mesmo tempo, em que o louco deveria realizar a sua
transformação. Os loucos agora, não poderiam mais andar pelas ruas ou
serem abrigados na Santa Cada de Misericórdia e o hospício tinha uma
recomendação de só receber loucos curáveis, que posteriormente pudessem
ser reintegrados à sociedade.
Em um primeiro momento era preciso isolar o louco da sociedade
e da família e tinha prioridade o louco que vagava pelas ruas, pois a
família pobre não tinha nenhuma possibilidade de garantir a segurança e
o tratamento desse alienado. Quanto às famílias ricas, as que desejassem
manter junto delas o alienado, o internamento não seria obrigatório,
pois os médicos da época acreditavam que essas famílias em suas amplas
residências poderiam reproduzir o ambiente de um hospício dentro de suas
casas. (FONTE, 2012).
No período da inauguração do Hospício Pedro II, só existia um
médico na instituição, que era o seu diretor, contava com doze enfermeiros
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
188 |
e treze irmãs de caridade, que contavam com a ajuda de cerca de cinquenta
órfãs, que moravam no hospício e ajudavam as irmãs de caridade a cuidar
da enfermaria das mulheres. O Estado acreditava que as irmãs de caridade,
poderiam assistir aos alienados. O médico nesse período, não tinha poder
sobre a instituição, que era subordinada à Santa Casa de Misericórdia.
Podemos evidenciar essa situação nas palavras de Amarante:
Da criação do Hospício de Pedro II até a Proclamação da República,
os médicos não poupam críticas ao hospício, excluídos que estavam
de sua direção e inconformados com a ausência de um projeto
assistencial cientíco. Reivindicam o poder institucional que se
encontra nas mãos da Provedoria da Santa Casa de Misericórdia
do Rio de Janeiro, assim como da Igreja, com a ativa participação
da Irmandade de São Vicente, pertencentes aos setores mais
conservadores do clero. (AMARANTE, 1994, p. 75).
Com a proclamação da República em 1889, no ano seguinte, em
janeiro de 1890, o Hospício Pedro II foi desvinculado da Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro e passou a estar subordinado ao Estado,
e teve seu nome alterado para Hospício Nacional de Alienados. Nesse
momento a loucura se desvincula do religioso para ganhar caráter estatal,
agora o incapaz quem deveria ser tratado e protegido, neste mesmo ano de
1890 foi criado através do Decreto nº 206
a
, de 15 de fevereiro de 1890, a
Assistência Médico-Legal aos Alienados.
A grande maioria dos médicos alienistas possuía ideal positivista e
republicano e desejavam o reconhecimento legal, por parte do Estado, que
legitimasse e autorizasse uma intervenção mais ativa no campo da doença
mental e assistência psiquiátrica. Para os médicos, o hospício deveria ser
medicalizado, deveria ter em sua direção o poder médico, para possuir
uma organização embasada em princípios técnicos. Para os médicos, isso
era importante para ter o respeito público para a medicina mental e para o
Hospício Pedro II. Os médicos desejavam que o hospício se tornasse um
lugar de produção de conhecimento (AMARANTE, 1994, p. 75).
Com a proclamação da República, a psiquiatria procurou
modernizar-se, acreditavam que a psiquiatria deveria atuar no espaço
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 189
social. A República se preocupava com os loucos das ruas, mas também
com as pessoas consideradas indesejáveis, agora merecia a reclusão
também, os desordeiros, os mendigos, os alcoólatras, todas as pessoas que
incomodassem a ordem pública. Nesse contexto, no ano de 1890, foram
criadas as duas primeiras colônias de alienados para o tratamento de loucos
indigentes do sexo masculino. Acreditava-se que nessas colônias, os loucos
pudessem viver de forma fraterna, em casa ou no trabalho e seu retorno a
sociedade estava relacionado ao fato de poder trabalhar e de se adaptar as
regras sociais. Amarante menciona que:
Este conjunto de medidas que caracterizavam a primeira reforma
psiquiátrica no Brasil, que tem como escopo a implantação do
modelo de colônias na assistência aos doentes mentais. Esse
modelo asilar de colônias inspira-se em experiências europeias que,
por sua vez, são baseadas numa prática natural de uma pequena
aldeia belga, Geel, para onde os doentes eram levados para receber
uma cura milagrosa, patrocinada pela Santa Dymfna, a Padroeira
dos Insanos. (AMARANTE, 1994, p. 76).
O primeiro diretor da Assistência Médico Legal dos alienados e do
Hospício Nacional de Alienados foi João Cardos Teixeira Brandão, que
procurou reconhecer o louco como doente e que o único lugar de trata-los
era o hospício. No ano de 1903, Teixeira Brandão, foi eleito deputado e
nesse mesmo ano conseguiu a aprovação de uma lei federal para a assistência
aos alienados.
A partir da lei nº 1.132 de assistência aos alienados, a psiquiatria
passou a ser maior autoridade sobre os loucos do país, o local destinado a
eles era o hospício, mas a partir de agora para ser internado era necessário
um laudo médico.
Esse período foi um período de desenvolvimento da psiquiatria,
onde foi ampliado o espaço asilar. No Rio de Janeiro, foi criada a Colônia
de Alienados do Engenho de Dentro para as mulheres indigentes e também
foram iniciadas as obras da Colônia de Alienados de Jacarepaguá e as obras
do Manicômio Judiciário. Esse processo, que foi iniciado por Teixeira
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
190 |
Brandão, terá como sucessor Juliano Moreira, que possui uma vertente
teórica diferente e inovadora (AMARANTE, 1994, p. 76-77).
No ano de 1903, Juliano Moreira retorna de uma viagem de
tratamento médico e estudos à Europa, nessa ocasião, foi nomeado diretor
do Hospital Nacional de Alienados e da Assistência Médico-Legal aos
alienados, ocupando esse cargo por 27 anos. Juliano Moreira dizia que o
maior problema dos médicos alienistas brasileiros era conseguir diagnosticar
a alienação. Juliano Moreira se preocupava em criar uma classicação
psiquiátrica. Para o médio Juliano Moreira, no início do século XX, o
paciente deveria ser individualizado, que sendo tratados com respeito, muitos
pacientes deixariam de ter uma doença crônica (AMARANTE, 1994).
No ano de 1923, foi fundada a Liga Brasileira de Higiene Mental
por Gustavo Riedel, que pretendia uma intervenção no espaço social e
possuía características da ciência eugenistas, xenófoba e extremamente
racista. A psiquiatria posicionou-se de forma a defender o Estado,
contribuindo diretamente com o controle dos indesejáveis à sociedade.
A psiquiatria nesse período passa a pretender uma recuperação de raças,
favorecer uma sociedade sadia e dessa forma o hospício passa a ser um lugar
para encaminhar os considerados inferiores de acordo com o pensamento
vigente na época. Podemos atestar este tipo de pensamento nas palavras de
Maria Luíza Tucci Carneiro (2001, p. 47).
Conceitos sustentados pelo darwinismo social, pelo evolucionismo
social de Herbert Spencer, alcançaram grande repercussão dos
meios intelectuais brasileiros, fornecendo justicativas cientícas
para as diferenças sociais e para o atraso brasileiro frente as
demais nações europeias. A questão da raça passou a ser discutida
absorvendo através de uma extensa literatura europeia as ideias
dos teóricos do racismo cientíco, prevendo para o Brasil um
futuro duvidoso, sob a alegação de sermos um país de mestiços.
(CARNEIRO, 2001, p.47).
Na década de 1930, a psiquiatria pensou ter encontrado a cura
para as doenças mentais através do uso dos eletrochoques e das cirurgias
de lobotomia. A psiquiatria vai ganhar mais poder e as internações dos
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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indesejados da sociedade irão se tornar mais frequentes. Esse processo vai
ser reforçado na década de 1950 com o surgimento de novos medicamentos
neurolípticos, que muitas vezes são utilizados de forma inadequada.
O furor farmacológico dos psiquiatras acabou dando origem a uma
postura de uso de medicamentos que nem sempre era orientada, muitas
vezes usada devido a uma pressão da indústria, por ignorância em relação a
seus efeitos e muitas vezes usada para reprimir os pacientes dos manicômios,
de forma a torna-los mais toleráveis e dóceis (AMARANTE, 1994, p. 79).
Após a Segunda Guerra Mundial surgiram novas experiências
em relação ao tratamento psiquiátrico, como a criação de comunidades
terapêuticas, psiquiatria preventiva e comunitária, dentre outras. O Brasil,
porém cou à margem dessas inovações, o serviço público de saúde
continuou por décadas ignorando a situação das pessoas encarceradas nos
hospitais psiquiátricos.
3. A trAjetóriA dos direitos HumAnos e os trAtAmentos
disPensAdos Aos doentes mentAis no BrAsil
Na atualidade, já possuímos mais de seis décadas após a adoção da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, após a Segunda
Guerra Mundial. Durante todo este período, apesar do Brasil ser signatário
da declaração e outros pactos, os Direitos Humanos estiveram bem longe
das pessoas que eram encaminhadas para os hospitais psiquiátricos. Tanto
no plano nacional, bem como no internacional, muita coisa foi alterada
após o término da Segunda Guerra Mundial e podemos evidenciar essa
situação quando Antônio Augusto Cançado Trindade nos dias que:
Com efeito, ao longo das seis últimas décadas, apesar de prolongadas
divisões ideológicas do mundo, a universalidade e a indivisibilidade
dos direitos humanos encontraram expressão. Na Declaração
Universal de 1948, e daí se projetaram a sucessivos e numerosos
tratados e instrumentos de proteção, nos planos global e regional,
e as constituições e legislações nacionais, e se rearmaram em duas
Conferências de Direitos Humanos (Teerã, 1968 e Viena, 1993).
(TRINDADE, 2009, p. 13).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
192 |
O ser humano passou a ser o centro das atenções da comunidade
internacional e com isso, foram realizados vários tratados e instrumentos
de proteção, nos âmbitos nacionais e internacionais. A proteção dos
Direitos Humanos é um movimento amplo, universal e irreversível, o ser
humano precisa ser resgatado como um sujeito do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, possuindo plena capacidade jurídica internacional,
como bem leciona Cançado Trindade:
De início, não há como negar que, a par dos avanços logrados
neste domínio de proteção ao longo das seis últimas décadas,
surgem, não obstante, novos obstáculos e desaos, materializados,
sobretudo na marginalização e exclusão sociais de segmentos
crescentes da população, na diversicação de fontes de violações
de direitos humanos e na impunidade de seus perpetradores.
Impõe-se, assim, um entendimento mais claro do amplo alcance
das obrigações convencionais de proteção, que vinculam não só
os governos, mas os próprios Estados (todos seus poderes, órgãos
e agentes), e se aplicam em todas as circunstâncias (inclusive nos
estados de emergência). (TRINDADE, 2009, p. 14).
Apesar de todo esse amparo legal dos Direitos Humanos, a grande
maioria das pessoas que eram encaminhadas para hospitais psiquiátricos,
não sabiam para onde estavam indo ou o porquê de estarem sendo
internadas, simplesmente eram encaminhadas para estas instituições por
serem pessoas indesejadas para a sociedade ou suas famílias e na maioria
das vezes eram internadas a força. Nos manicômios ou hospitais colônias,
eram despidas de sua dignidade, muitas vezes tendo suas cabeças raspadas,
suas roupas arrancadas e perdiam até seus nomes. Diante desta situação
Amarante (1994, p. 75) nos diz:
Quem são estes loucos? As esparsas referências que se pode encontrar
demonstram que podem ser encontrados preferentemente dentre
os miseráveis, os marginais, os pobres e toda a sorte de párias, são
ainda trabalhadores, camponeses, desempregados, índios, negros.
degenerados”, perigosos em geral para a ordem pública, retirantes
que, de alguma forma ou por algum motivo, padecem de algo
que se convenciona englobar sobre o título de doença mental.
(AMARANTE, 1994, p.75).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 193
Uma boa parte das pessoas internadas em hospitais psiquiátricos não
possuía sequer um diagnóstico de doença mental, viviam nos hospitais
abandonadas, em meio à sujeira, dormindo sob o capim amontoado no
chão, muitos eram espancados, tudo isto ferindo o princípio da dignidade da
pessoa humana. Muitos pacientes foram verdadeiras cobaias humanas, para
os recém-lançados medicamentos, eletrochoques e cirurgias de lobotomia.
Toda esta situação, que fere diretamente os Direitos Humanos ocorreu
durante a administração de sucessivos governos e com a concordância de
todas as instâncias médicas e administrativas.
Mesmo com a criação de novos hospitais, principalmente a partir
da década de 1950, a situação não melhorou, os pacientes continuavam
vivendo em total abandono, os hospitais possuíam um excesso de pacientes
internados e a função destas instituições continuou a ser a de exclusão
social. A assistência psiquiátrica pública era muito lenta e não tomava
conhecimento das transformações que ocorriam na prática psiquiátrica
pós-segunda guerra mundial, principalmente na Europa e nos Estados
Unidos da América. (FONTE, 2012).
O Brasil sempre foi signatário e aderiu aos instrumentos que
dizem respeito aos Direitos Humanos, como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica e resoluções que
amparam e protegem decientes e doentes mentais, porém a realidade que
vislumbramos nos manicômios e hospícios brasileiros feriram todos os
preceitos dos Direitos Humanos e da ética. Diante desta situação, Eliane
Maria Monteiro da Fonte (2012) menciona:
Os hospitais psiquiátricos, centralizando a assistência e sendo
praticamente únicos na oferta de serviços psiquiátricos no contexto
nacional, tiveram as condições internas de maus-tratos aos
internados, desnudadas e denunciadas no processo social brasileiro
de «abertura democrática». A discussão acerca da violência, dos
maus tratos e da tortura praticada nos asilos brasileiros produziu,
em grande parte, a insatisfação que alimentou o Movimento
Antimanicomial. Entretanto, ainda não estava muito claro qual
deveria ser o modelo de cuidado e nem havia uma proposta
estruturada da intervenção clínica.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
194 |
Os hospitais e manicômios brasileiros funcionaram durante décadas
violando a sua nalidade terapêutica, pois, sempre existiram relatos das
suas condições inadequadas para prestar atendimento aos pacientes. Não
conseguimos vislumbrar nenhuma ética nesses estabelecimentos e em
seus administradores, pois, a ética está ligada a uma conduta, após um
determinado juízo de valor e não pode estar dissociada da realidade que
vivemos, nossas ações cotidianas devem ser orientadas pela ética. Os seres
humanos são orientados com auxílio de regras e princípios, dessa forma a
ética não pode ser vista como estanque ao Direito, são as normas jurídicas
que regulamentam o comportamento em sociedade. Namba (2009, p. 7)
enfatiza com propriedade que:
[...] cumpre precisar a distinção entre o elemento jurídico e o
elemento ético, de forma a reduzir a autoridade estatal a formas
jurídicas objetivamente deníveis. Essa tarefa poderá contribuir
para a nitidez da linha de limites posta ao exercício da autoridade
e representará fundamental garantia da autonomia individual.
O pensamento humano e a valoração em relação à vida diferem
de acordo com as transformações espaciais e temporais. Por essa
mesma razão, os debates são perenes e podem tornar algum avanço
técnico sem regulamentação jurídica. (NAMBA, 2009, p.7).
Os manicômios e hospitais colônias continuaram existindo e
funcionando após a Declaração dos Direitos Humanos e como em seu
início, ainda eram depósitos de pessoas indesejadas pela sociedade ou
suas famílias, dentro dos hospitais eram vítimas de práticas eugenistas
e de segregação, onde estas pessoas, não tinham acesso a nada que é
imprescindível para que uma pessoa tenha saúde, pois, ter saúde, não é
estar livre de algum tipo de doença, como atesta Pessini:
Saúde não pode ser denida apenas como a ausência de doença. É
antes de tudo o resultante de condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade
e acesso a serviços de saúde. Em resumo, é o produto de condições
objetivas de existência. Resulta das condições de vida e das relações
que os homens estabelecem entre si e com a natureza, por meio do
trabalho. (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2008, p. 195).
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 195
A saúde pública tem como função proteger e restaurar a saúde dos
indivíduos e da coletividade, porém as autoridades públicas brasileiras, no
que diz respeito a saúde mental, “fechou os olhos” durante décadas em
relação aos pacientes dos manicômios e hospitais colônias. A nalidade
do Estado é promover o bem comum e garantir a todos a possibilidade de
uma vida compatível com a dignidade da pessoa humana.
No ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade da pessoa
humana é prevista na Constituição Federal de 1988 como um princípio
fundamental a ser observado pelo Brasil que é um Estado Democrático
de Direito. A dignidade da pessoa humana não pode car relegada a um
segundo plano e muito menos se permitir o distrato do ser humano como
ocorreu nos manicômios aqui no Brasil. A República é uma organização
política que deve servir a pessoa e cuidar para que as normas jurídicas
não sejam violadas.
Foi estabelecido um princípio geral de direito que deve resolver
os conitos da sociedade, a dignidade da pessoa humana. É um tipo de
norma jurídica, que sua violação não pode ser permitida, pois, sem vida
não existe pessoa e sem pessoa não tem como existir dignidade (NAMBA,
2009, p. 16).
Os pacientes psiquiátricos aqui no Brasil, durante décadas não
foram tratados como pessoas, eles não tiveram a chance de poder ter um
convívio social, foram enclausurados dentro de instituições hospitalares,
onde não eram tratados sequer como seres humanos, eram tratados como
animais como podemos atestar através do histórico do tratamento da
loucura no Brasil.
conclusão
Ao apresentar um histórico da loucura e a assistência prestada a
mesma no Brasil, nós podemos evidenciar a preocupação com a construção
dos hospícios, que eram uma forma de retirar o louco do convívio em
sociedade e para o Estado representava uma forma de controle e organização
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
196 |
da sociedade, já que uma grande quantidade de pessoas foi enclausurada
em hospícios e hospitais colônias.
A loucura passou a ser uma preocupação para médicos, cientistas
e o Estado, o tratamento baseava-se praticamente na reclusão dessas
pessoas, retirar os indesejáveis da sociedade, doentes ou não. Não houve
uma preocupação com a dignidade dessas pessoas, nem por parte das
autoridades médicas e nem por parte do Estado.
O grande número de pessoas que foram connadas nos hospícios
e hospitais colônias sofreram nestes locais, toda sorte de atrocidades que
um ser humano pode ser exposto e este tema precisa vir à tona para que
estudantes e operadores do Direito possam reetir acerca dos horrores
praticados durante décadas nessas instituições e desta forma traçar um
paralelo com o tratamento dispensado aos doentes mentais na atualidade.
A forma desumana como foram tratados no passado feriu todas as
declarações, pactos e acordos sobre os Direitos Humanos em que o Brasil
é signatário.
Os fatos ocorridos com estas vítimas dos hospícios durante décadas
aqui no Brasil, não podem ser esquecidos, pois ainda vivemos em um
mundo com muitos preconceitos e intolerância, onde precisamos reforçar
dia a dia a importância dos Direitos Humanos e o respeito a dignidade da
pessoa humana.
Na atualidade, estamos vivenciando muitas situações de intolerância
e violação dos Direitos Humanos, em nosso plano interno e no
internacional, e apesar de toda a legislação que protege o ser humano,
muitos ainda possuem seus direitos violados.
O Brasil é signatário da Declaração dos Direitos Humanos e da
Convenção Americana dos Direitos Humanos, mas fechou os olhos por
décadas para os pacientes dos hospitais psiquiátricos, que foram tratados
com descaso e falta de ética tanto por parte das autoridades médicas, bem
como pelas autoridades brasileiras, que não consideraram essas pessoas
como cidadãos.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 197
referênciAs
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no Brasil. In: AMARANTE, Paulo (org.). Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1994.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma
geração (1930-1945). São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
FONTE, Eliane Maria Monteiro da. Da institucionalização da loucura à reforma
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Sociologia, v. 1, n. 18, p. 1-26, mar. 2012. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/
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MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1978.
NAMBA, Edison Tetsuzo. Manual de Bioética e Biodireito. São Paulo: Editora Atlas, 2009.
PESSINI, Leocir; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de
Bioética. 8. ed. rev. e amp. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Edições Loyola,
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TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O legado da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e sua trajetória ao longo das seis últimas décadas (1948-2008). In:
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VIANNA, Candido José de Araújo. Decreto n. 82, de 18 de julho de 1841. Homologa
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publicacao/15742236 Acesso em: 27 set. 2020.
| 199
13
ANÁLISE CRÍTICA SOBRE A EFETIVAÇÃO
DO DIREITO FUNDAMENTAL À
EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE A
CONSTRUÇÃO DO INDIVÍDUO SOCIAL
Melissa Zani Gimenez
1
Vitória Moinhos Coelho
2
A educação exige os maiores cuidados, porque inui sobre toda a vida”.
Lucius Annaeus Senec
introdução
A educação é considerada, em seu contexto fático, como um direito
humano fundamental, assegurado na Constituição Federal como obrigação
Professora. Advogada. Doutoranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP- com bolsa
CNPQ- sob a orientação do professor Willis Santiago Guerra Filho. Mestre em Teoria Geral do Direito e
do Estado pelo Centro Universitário Eurípides de Marília, por intermédio da bolsa CAPES / PROSUP –
modalidade I. Dedica-se à pesquisa acadêmica relativa ao tema: Educação do Estatuto da Criança e do
Adolescente nas Escolas de Ensino Fundamental para a formação ético-social do educando junto ao Grupo de
Pesquisa GEP - Grupo de Estudos, Pesquisas, Integração e Práticas Interativas- Professores- Lafayette Pozzoli
e Clarissa Chagas Sanches Monassa e também junto ao Grupo de Pesquisa NUDISE - Núcleo de Gênero e
Diversidade Sexual na Educação, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-UNESP, com a
líder Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo. Endereço eletrônico: melissazanigimenez@gmail.com.
 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Pesquisadora cientíca.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p199-212
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
200 |
do Estado, devendo sua efetivação ser garantida de forma digna, gratuita
e de qualidade. Ocorre, pois, que por meio de uma evolução histórica
percebe-se que em período anterior à Revolução Industrial, a educação
brasileira exercia um papel secundário, em decorrência da cultura e do
modo de vida da sociedade civil, em que o homem dependia de forma
única e exclusiva de sua força física para a execução de seu trabalho, o que
era tido fundamental e único para sua subsistência.
É, contudo, com o início da Revolução Industrial, com a inserção
do homem nas fábricas, que surge a necessidade da educação, uma vez que
garantiria, por meio do ensino, uma mão de obra mais qualicada.
No aspecto histórico, a educação, como instrumento indissociável
ao desenvolvimento humano inicia-se com o manifesto dos pioneiros que
ocorreu no período da era Vargas. A partir de então, o Estado entende que
a educação, por questão de desenvolvimento da sociedade e, por vezes, de
mudanças culturais, torna-se uma ferramenta essencial para a dignidade do
homem e para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Nesse ínterim, a Constituição de 1988, conhecida como Constituição
Cidadã, teve como principal objetivo elaborar leis que estabelecem o
encontro com as necessidades humanas, as quais contribuem para a
formação da personalidade cidadã.
Dessa forma, incorre em um dever constitucional da família, do
Estado e da sociedade, garantir a educação da criança e do adolescente
de forma prioritária e absoluta, em uma principiologia axiológica de
Índole Constitucional, dos princípios da Prioridade Absoluta e do
Superior Interesse da Criança e, caberá ao aplicador da lei usar as normas
constitucionais e infraconstitucionais de forma que possa enaltecer a
dignidade dessas pessoas.
A maior parte do aparato legislativo tem como fundamento políticas
públicas que asseguram “o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça”, mandamento esse explícito no preâmbulo da Carta Constitucional.
Ocorre, porém, que a materialização desses objetivos será ofertada por
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 201
meio dos direitos fundamentais, entre eles, um dos mais essenciais, que é
a educação.
Logo, considerando que são fundamentais por propiciar o integral
desenvolvimento da pessoa humana, sempre que houver lacunas ou
diculdade de efetivação do direito, estará ocorrendo a ausência de
aplicação do planejamento legislativo. E, mais grave ainda, a não aplicação
no dispositivo normativo no caso concreto proporciona a desigualdade
material, sendo que, no aspecto abordado, tal fator fere diretamente a
dignidade e vida civil do educando, que encontrará demasiadas diculdades
para tornar-se um indivíduo social, um cidadão de direitos.
Em outras palavras, sempre que houver falha na concretização do
direito haverá, consequentemente, uma grave ameaça a dignidade da
pessoa humana. Cumpre salientar, inclusive, que o mencionado princípio
está inserido na Constituição Federal, no artigo 1º, III, sob o título de
Direitos Fundamentais, representando a base do Estado Democrático de
Direito, destacando a grande importância que o ser humano possui diante
da maioria dos ordenamentos jurídicos e a necessidade de garantia de
esforços na intenção de assegurar os seus direitos.
Nesse sentido, sempre que houver por parte do Estado uma previsão
legal de direito ou garantia ocorrerá a igualdade formal, isso porque são
destinados a todos, na perspectiva política do Estado de Direito. Porém,
de modo adverso, quando as aplicabilidades dessas garantias, em suma,
não conseguem proporcionar uma igualdade no caso concreto haverá um
cenário de desigualdade material. A grave consequência disso é a violência
simbólica que sofrem aqueles que não conseguem usufruir dos seus direitos
e garantias fundamentais, tendo por suprimidas, além dos direitos já
mencionados, a própria dignidade.
Frente a essa desigualdade de fato e, consequentemente, a suposta
violência vivenciada pelos indivíduos, em uma breve e cautelosa análise
pretende-se indagar se aqueles que não têm acesso a recursos que
potencializam suas capacidades e proporcionam o integral desenvolvimento
de sua personalidade cidadã podem ser considerados como cidadãos
indignos.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
202 |
Em caso de armação, veremos que a consequência é, inevitavelmente,
uma sociedade sem princípios e desigual, inversa ao que fora previamente
estabelecida. Ou seja, analisa-se um cenário que revela um paradoxo entre
a educação ofertada e a concepção de cidadania republicana estampada na
Constituição Federal da República Federativa do Brasil.
A educAção como direito HumAno fundAmentAl
Os direitos fundamentais exercem um papel primordial na formação
da personalidade da pessoa humana e em sua vida em coletividade.
Destinados a todos, em plena igualdade formal, tais direitos são como
um conjunto de fragmentos que, direta ou indiretamente, asseguram a
conservação da dignidade da pessoa humana, bem como inuenciam no
bem-estar social. Razão pela qual, de acordo com Sarlet (2009), a discussão
sobre direitos fundamentais é tão importante que não se restringe somente
em sua crise, mas, acima de tudo, em sua implementação.
A necessidade de implementação dos direitos faz-se fundamental
por inuenciar na formação do caráter humano e, por isso pressupõe que a
ecácia resulta em dignidade ao indivíduo,ou seja, o Estado dene como
direito fundamental tudo aquilo que, de alguma forma, proporciona ao
homem recursos para que se tenha uma vida digna, capacitando o seu
desenvolvimento físico, moral, emocional e psíquico; possibilitando a vida
em sociedade.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, aponta a
educação como um direito humano fundamental e social. Em decorrência
de sua importância, essa garantia constitucional trata-se de algo inerente
à vida humana, razão pela qual, o Estado assume o papel de fornecedor.
É importante destacar, que quando se diz direito fundamental nem
sempre esse termo está ligado a uma característica essencial para garantia da
vida biológica. Neste aspecto, ele está diretamente vinculado à dignidade
humana. Nesse viés, essa garantia funciona como uma espécie de recursos
fornecidos pelo Estado para constituir o integral desenvolvimento da
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 203
pessoa humana em âmbito de relações sociais, interpessoais, intergrupais
e institucionais.
A educação, como direito fundamental, passa a ter papel essencial
na vida humana a partir da década de 30, quando o Brasil, por intermédio
do presidente Getúlio Vargas
3
, adota o sistema de “substituição de
importações
4
, visto que iniciava um período de substituição do modelo
agrário para o industrial. A consequência disso, foi a exigência de pessoas
mais capacitadas para laborar, não se restringindo essa necessidade à
capacidade física, de força. A partir disso, o Estado entende que a educação
é um recurso capaz de suprir às aspirações esperadas.
Sendo assim, por meio da educação, inicia-se um processo de
capacitação que, contribuiu, principalmente, para o mercado de trabalho.
Neste mesmo período, no ano de 1932, o manifesto dos pioneiros
5
defendia, dentre tantas coisas, a educação pública de qualidade. Nesse
ínterim, o Estado passa a assumir e oferecer, não só a qualidade, mas a
universalização de educação para todos.
Após a aprovação da Constituição Cidadã, contendo diversas
conquistas históricas, o país traz em seu corpo normativo a educação
como direito fundamental e essencial para a vida humana. Há que se
ressaltar que a educação, também, é assunto norteador da Declaração
Mundial de Educação para Todos
6
(1990), adotada na Conferência de
Jomtien, na Tailândia, e a Declaração de Salamanca (1994), adotada pela
UNESCO, que enfatizam a necessidade real da educação para todos, cuja
pretensão é estabelecer compromissos mundiais para garantir a todas as
Getúlio Dornelles Vargas foi um advogado e político brasileiro, líder civil da Revolução de 1930, que pôs m
à República Velha, depondo seu 13º e último presidente, Washington Luís, e, impedindo a posse do presidente
eleito em 1 de março de 1930, Júlio Prestes. Foi presidente do Brasil em dois períodos.
Substituição de importações é um termo aplicado a economias que substituem produtos manufaturados
internacionais por produtos nacionais. Isso ocorreu no Brasil pós-Segunda Guerra Mundial e impulsionou a
criação das indústrias de base.
O movimento de um grupo que defendia novos ideais de educação e lutavam contra o empirismo dominante.
Para tanto, pretendiam transferir do terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos
problemas escolares, servindo aos interesses do indivíduo, fundando-se sobre o princípio da vinculação da escola
com o meio social (MENEZES, 2001).
A Declaração Mundial de Educação para Todos visa estabelecer compromissos mundiais para garantir a
todas as pessoas os conhecimentos básicos necessários a uma vida digna. No Brasil, o Ministério da Educação,
divulgou o Plano Decenal de Educação para Todos, para ser cumprido no período de 1993 a 2003.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
204 |
pessoas os conhecimentos necessários a uma vida digna, na obtenção de
uma sociedade mais humana e justa. Ademais, o artigo 1º, parágrafo 3º,
preconiza a necessidade do desenvolvimento de uma educação cidadã nas
pessoas em formação para a perfeita integração social:
ARTIGO 1 SATISFAZER AS NECESSIDADES BÁSICAS DE
APRENDIZAGEM 3. Outro objetivo, não menos fundamental,
do desenvolvimento da educação é o enriquecimento dos valores
culturais e morais comuns. É nesses valores que os indivíduos e a
sociedade encontram sua identidade e sua dignidade.
As disposições normativas internacionais têm por objetivo o pleno
desenvolvimento da criança e do adolescente, expandindo suas potencialidades
morais, intelectuais e a preparação para o exercício da cidadania.
O Brasil, como um dos agentes signatários dos documentos
internacionais voltados à proteção infanto-juvenil, não deveria medir esforços
em fazer com que os dispositivos normativos assumidos reetem na realidade
social, para verdadeiramente contribuir para melhorar a vida de milhares de
crianças e adolescentes que são diariamente afrontados diretamente nos seus
direitos de cidadãos (LIMA; VERONESE, 2012, p. 54-55).
A mencionada conferência representa importante marco mundial
pelo fato de preocupar-se, única e exclusivamente, com a sobrevivência
da população, com o desenvolvimento pleno das capacidades e
habilidades humanas (formação integral, física, intelectual, moral) e,
assim, proporcionar vida plena e trabalho digno. Por tais motivos, e por
ser signatário da conferência, o Brasil assume o compromisso de ofertar a
educação como base para uma vida digna. Desde então, a educação torna-
se garantia fundamental, mas, além disso, um direito humano.
Entretanto, prevista em normas constitucionais e infraconstitucionais,
a educação para a formação cidadã da criança e do adolescente, como direito
humano fundamental, em pleno século XXI, não transpassou os limites
formais; ainda que presente na lei, é considerada uma realidade utópica.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 205
A educAção como mecAnismo de construção dA dignidAde
HumAnA
Torna-se impossível falar sobre o direito de crianças e de adolescentes
à educação sem analisar o princípio da dignidade humana, que adquiriu,
com o transcorrer do tempo, relevância jurídica ao proteger o ser humano
enquanto seres sociais e políticos.
A dignidade da pessoa humana está inserta no início da Constituição
Federal, no artigo 1º, III, sob o título de Direitos Fundamentais,
representando a base do Estado Democrático de Direito, destacando
a grande importância que o ser humano possui diante da maioria dos
ordenamentos jurídicos e a necessidade de esforços na intenção de assegurar
esses direitos.
A Constituição Federal de 1988, ao inserir a dignidade humana como
um dos fundamentos para o cidadão realizar-se enquanto pessoa humana
enaltece um valor superior a esse princípio, possuindo razão de existência
para os direitos fundamentais, e servindo de parâmetro interpretativo e
hermenêutico para todo o ordenamento jurídico pátrio, com função
integradora e interpretativa (SANTOS, 2011, p. 34).
Devido a sua importância, o princípio em análise serve de diretriz
basilar de inúmeras constituições em diversos países; por um lado, para
designar o valor supremo que o ser humano representa em qualquer
ordem jurídica e, de outro, para promover todos os esforços no sentido
de evitar as experiências históricas de aniquilação do ser humano, entre
elas: escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos
(CANOTILHO, 2002, p. 225).
Por essa razão, o princípio da dignidade como atributo de toda
pessoa humana deve ser vericado como condição prévia para a validade de
qualquer direito, representando, pois, condição mínima para a existência
social digna.
A preocupação em delimitar a atuação de direitos quando forem
utilizados para salvaguardar interesses humanísticos e, dessa forma,
contribuir para a formação de um Estado Democrático, surge, não
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
206 |
só no âmbito constitucional, mas, também, expressa na Declaração
Universal dos Direitos do Homem
7
(1948), que traz, em seu preâmbulo,
a proclamação de tal princípio a “todos os membros da família humana”.
Da mesma forma, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia
8
(2000), tanto no preâmbulo quanto no artigo primeiro, coloca a
dignidade da pessoa humana como direito inviolável, devendo a mesma
ser respeitada e protegida.
Tal princípio ultrapassa os sentidos jurídicos, entretanto, quando
cabe ao Judiciário é de suma importância à sua proteção, visto que é órgão
responsável pela proteção e oferta deste direito, considerando, pois, algo
primordial ao Estado Democrático de Direito, como bem demonstra o
artigo 1º da Constituição Federal.
[...] Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca
e distintiva de cada ser humana que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido um complexo de direitos fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de proporcionar
e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres
humanos [...] (SARLET, 2009, p. 60).
A garantia da dignidade humana efetiva-se com a devida intervenção
do Estado que disponibiliza direitos fundamentais como uma espécie
de mecanismo, com a função de auxiliar o desempenho humano, como
por exemplo, o direito ao acesso à educação, oferecendo recursos para a
obtenção mínima de condições de subsistência e, por conseguinte uma
vida digna; fatores que integram o homem na sociedade.
Documento culminante da Revolução Francesa que destaca os direitos individuais como universais, válidos a
qualquer tempo, pois são pertinentes à própria existência humana.
Enfatiza a necessidade de proteção aos direitos humanos, tendo sido proclamada pelo Parlamento Europeu,
pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia em 7 de Dezembro de 2000.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 207
educAção: dA iguAldAde formAl e dA iguAldAde mAteriAl
Ao referir-se aos direitos fundamentais há que se falar, por vezes, em
igualdade, pois tratam-se de direitos e de prerrogativas garantidos pela lei
a todas as pessoas, de forma indistinta. Conforme consta no artigo 6º da
Constituição Federal, a educação é um direito social fundamental, uma
vez que, pelo princípio da isonomia, todos são iguais perante a lei, todos
tem acesso a esses direitos. Ocorre, pois, que a igualdade não pode car
adstrita somente à aplicação igualitária da lei; o princípio de igualdade
deve perpassar a letra fria da lei; efetivando, de fato, a igualdade formal.
Há que se ressaltar no avanço histórico, que o sistema educacional
desempenha um papel fundamental na realidade contemporânea; os índices
de analfabetismo diminuíram em quantidade signicativa. É notório o
desempenho de políticas educacionais, tanto na educação básica como na
avançada, o que proporciona aos jovens e aos adultos acesso à educação
por meio da Educação de Jovens e de Adultos- EJA, que não obtiveram
a oportunidade de usufruir do seu direito em tempo hábil, resultando na
capacidade de avanço intelectual que acaba melhor posicionando-o no
espaço social.
É importante ressaltar que a Constituição Cidadã, prolatada
em 1988, constitui em seu preâmbulo a preocupação em assegurar o
desenvolvimento nacional e o bem-estar social. Nesse contexto, a educação
é analisada como ferramenta ecaz para proporcionar a efetivação desse
objetivo. É perceptível que a educação brasileira avançou, evoluiu, mas
ainda não está plenamente ecaz.
Há em todo o Brasil, registrada no ano de 2016, uma média de
aproximadamente 186,1 (cento e oitenta e seis vírgula um) mil escolas de
educação básica, as quais são de responsabilidade dos municípios locais
cerca de 2/3 (dois terços) das escolas, ou seja, 114,7 (cento e quatorze
vírgula sete) mil, conforme consta nas estatísticas do Censo Escolar de
2016 publicada em fevereiro de 2017 pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais- INEP e pelo Ministério da Educação. O Censo
Escolar da Educação Básica é uma pesquisa realizada anualmente pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
208 |
(Inep) em articulação com as Secretarias Estaduais de educação das vinte e
sete unidades da federação, sendo obrigatória aos estabelecimentos públicos
e privados de educação básica, conforme determina o art. 4º do Decreto nº
6.425/2008. Trata-se de um amplo e relevante levantamento sistemático
sobre a educação básica no País. Os dados coletados constituem a mais
completa fonte de informações utilizada pelo Ministério da Educação
(MEC) para a formulação, monitoramento e avaliação de políticas e para a
denição de programas e de critérios para a atuação supletiva do MEC – às
escolas, aos estados e aos municípios. Também subsidia o cálculo de vários
indicadores, dentre eles o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica-
IDEB e, outros que possibilitam contextualizar os resultados das avaliações
e monitorar a trajetória dos estudantes desde seu ingresso na escola.
De acordo com a mesma pesquisa, há no Brasil, um registo
de 64,5 mil creches, as quais 76,6% estão na zona urbana, 58,8% são
municipais e 41% são privadas – a maior participação da iniciativa privada
em toda educação básica; Das 15,1 mil creches rurais, 97,4% estão sob
a responsabilidade dos municípios. 105,3 mil unidades de pré-escola,
57,4% estão na zona urbana, 72,8% são municipais e 26,3% são privadas;
a União e os estados têm participação de 1% nesta etapa de ensino; Das
44,9 mil escolas rurais, 98,0% estão sob a responsabilidade dos municípios,
apenas 13,4% funcionam em estabelecimentos de uma sala de aula, dessas,
95,1% estão na zona rural. 132,7 mil escolas oferecem anos iniciais do
ensino fundamental com educação básica, o que signica 71,3%, e 132,7
oferecem alguma etapa e ensino fundamental. Dessas, 116,3 mil oferecem
os anos iniciais. O ensino médio é oferecido em 28,3 mil escolas no
Brasil; 68,1% das escolas de ensino médio são estaduais e 29,2% privadas
(BRASIL, 2017).
Visto isso, percebe-se a discrepância existente no tamanho do
investimento realizado em políticas educacionais, desde em prédios
como em matrículas, que recepcionam milhares de alunos a cada ano e
a qualidade da educação básica no Brasil. Fato esse que deve ser levado
em consideração para que o direito à educação seja efetivado em plena
igualdade formal.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 209
Entretanto, quando o assunto educação é referente à igualdade
material, que visa garantir a justiça social, viés negativo desponta e, nesse
sentido, também os décits de aplicabilidade e de efetivação da prática
dessas políticas aumentam proporcionando, de forma nítida, a desigualdade
de oportunidades.
Em 07 de fevereiro de 2014, foi publicada pelo Todos pela Educação
e o índice de analfabetismo no Brasil no ano de 2014 teve como legenda
“No Brasil, há aproximadamente 14 milhões de analfabetos absolutos e
um pouco mais de 35 milhões de analfabetos funcionais, conforme as
estatísticas ociais” (DOURADO, 2009).
Parte do texto publicado menciona sobre a desigualdade existente
no contexto educacional, ferindo diretamente a dignidade humana, senão
vejamos:
Apesar da evolução positiva nos últimos anos, o quadro brasileiro
é preocupante. Existem vários níveis de Alfabetização funcional:
aqueles que apenas conseguem ler e compreender títulos de
textos e frases curtas; e apesar de saber contar, têm diculdades
com a compreensão de números grandes e em fazer as operações
aritméticas básicas. Outros, que conseguem ler textos curtos,
mas não conseguem extrair informações esparsas no texto e não
conseguem tirar uma conclusão a respeito do mesmo. E por m,
aqueles que detêm pleno domínio da leitura, escrita, dos números
e das operações matemáticas (das mais básicas às mais complexas),
que são minorias. Esses índices tão altos de Analfabetismo funcional
devem-se à baixa qualidade dos sistemas de Ensino público, ao
longo de décadas (DOURADO, 2009).
Conforme aponta na pesquisa, há no Brasil uma diferença no
tratamento e na ecácia do proveito desse direito. Cabe questionar
como ca a dignidade desses analfabetos, considerando que maior será
sua diculdade em interagir com a sociedade, pelo fato de estar em
extrema desigualdade em comparação com aqueles que são capacitados
e desenvolvidos para exercer suas potencialidades de raciocínio,
interpretação, lógica, entre outros.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
210 |
Nesse aspecto, revela a existência de um Estado que defende a
educação como direito humano fundamental, tanto para o desenvolvimento
do homem quanto para inviolabilidade de sua dignidade humana apenas
na lei, porém, com uma população gigantesca que não se benecia de uma
educação digna.
Destaca-se nitidamente, uma realidade educacional pautada em
uma desigualdade material, o que acaba revelando uma violência simbólica
contra os cidadãos, além de ferir o Princípio da Isonomia, causando um
esfacelamento do direito à educação, pois neste aspecto, nem todos são
iguais. Há cidadão frente à inecácia das políticas de incentivo, uma vez
que não são destinatários desse benefício. Logo, podemos considerar o que
Arendt dizia: “A igualdade não é uma condição humana natural, depende
do exercício da cidadania, o que depende de convenções e intervenção
política” (LAFER, 2009, p. 150).
Logo, deduz-se que, hodiernamente, persistem situações sociais,
políticas e econômicas que, mesmo após do término dos regimes
totalitários, contribuem para tornar os homens supéruos, vulneráveis a
situações sociais e sem lugar num mundo que pertence a todos.
considerAções finAis
De acordo com as estatísticas educacionais apresentadas no presente
trabalho de pesquisa, a desigualdade na perspectiva de efetivação plena da
educação prepondera no país. Não obstante, o preâmbulo da Constituição
destacar a igualdade, o artigo 1º ressaltar sobre dignidade da pessoa humana,
o artigo 2º garantir o desenvolvimento nacional e o artigo 6º dispor da
educação como direito fundamental social, na realidade contemporânea,
trata-se tão somente de uma igualdade formal, de conotações jurídicas.
Tão logo, revela que a igualdade material não é garantida, e a
consequência disso resulta em um mal-estar social e ao não desenvolvimento
humano social igualitário, vez que a não capacitação pedagógica caracteriza
uma limitação ao acesso do trabalho, ao ensino superior, à uma vida digna,
à violência simbólica.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 211
Além disso, não há preservação da dignidade humana ao analisar
que os indivíduos que se encontram em posição desigual na sociedade
estão sujeitos a uma vida precária, havendo comprometido o seu
desenvolvimento, enquanto pessoa humana, pessoa política, revelando
a precariedade na oferta de um direito humano fundamental que faz
referência à educação.
E, no ponto vista jurídico, a máquina estatal descarta o
desenvolvimento pleno da personalidade do indivíduo e a conservação de
sua dignidade, enquanto ser social, ao ofertar um direito fundamental de
forma decitária.
Conclui-se, pois, que a Constituição Federal ao ressaltar a presença
de um Estado Democrático de Direitos está em débito com o cidadão,
pois a educação, como um direito humano fundamental, encontra-se em
dissonância com os preceitos legais apresentados na Carta Magna, destoando
o verdadeiro sentido da igualdade material, negando a real emancipação do
ser humano, ampliando, consideravelmente, a desigualdade social.
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fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.
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| 213
14
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO MERCADO
DE TRABALHO: REINSERÇÃO SOCIAL
E EFETIVAÇÃO DA CIDADANIA
Fernando de Brito Alves
introdução
Todos os indivíduos pertencentes ao segmento LGBT fazem parte
de uma minoria sexual, sendo considerados transgressores do padrão
heterossexual imposto socialmente. Porém, as travestis e transexuais são
consideradas duplamente transgressoras, tanto à orientação sexual quanto
à identidade de gênero, alocadas em um corpo biológico com o qual não
se identicam.
Ao construírem uma identidade de gênero que não se pode ocultar,
a corporalidade funciona como um encarceramento, que ao introduzir
a possibilidade de expressão identitária, igualmente abre espaço à
invisibilidade, tendo a marginalidade social como consequência.
Assim, a discriminação que diculta o acesso delas ao mercado de
trabalho, está fundada na heterossexualidade como referência normativa
e nos padrões binários de gênero — masculino versus feminino. Essa
discriminação pode ser vivenciada de inúmeras formas pelas travestis e
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p213-230
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
214 |
transexuais: seja pelo número gritante de homicídio contra estas, onde o
Brasil atingiu o primeiro lugar de homicídios trans, seja pelo sem número
de violências sofridas, seja pela marginalidade social.
Desse modo, esse segmento social necessita prioritariamente de
atenção por parte do Estado para que com a criação de políticas públicas,
em especial as ações armativas, seja possível inseri-las no mercado formal
de trabalho e assim reinseri-las socialmente, retirando-as das margens
sociais.
A inserção no mercado de trabalho das travestis e transexuais
possibilita não só retirá-las da prostituição mas efetivar o direito destas
como cidadãs, sendo o trabalho um importante meio de inclusão social.
trAtAmento diferenciAdo e o PrincíPio dA isonomiA
A despeito da natureza comum de todo ser humano, biologicamente
dizendo, a igualdade não é encontrada espontaneamente na sociedade.
Há desigualdade entre os indivíduos seja econômica, racial, de gênero ou
de outras inúmeras formas. A igualdade e a diferença não são conceitos
antitéticos, mas sim conceitos interdependentes que estão em permanente
tensão construtiva.
Joan Scott (2005) analisa que o paradoxo entre igualdade e
diferença resolver-se-iam através de lutas sociais e políticas. Então, a
igualdade necessita ser conquistada, obtida, e para isso, o Direito pode ser
considerado um valioso meio.
A Constituição da República Federativa do Brasil, no seu capítulo
sobre Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, estabelece no artigo
5º, caput, que «todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza e garante a inviolabilidade de alguns direitos fundamentais, entre
eles o direito à igualdade» (BRASIL, 1988).
Desta feita, o Direito tem a função de oferecer um tratamento
equivalente que assegure a igualdade e oferecer um tratamento diferenciado
que promova a igualdade. É nisso que se consiste um dos princípios mais
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 215
basilares do nosso ordenamento jurídico: o princípio da igualdade ou
isonomia.
Entende-se que a essência do princípio da isonomia não é nivelar
os cidadãos diante da norma legal, mas que a lei não pode ser editada
em desconformidade com a isonomia. A própria edição das normas deve
dispensar tratamento equânime às pessoas, para assegurar o preceito magno
da igualdade. Em concordância, dispõe Celso Antônio Bandeira de Mello
(2000, p. 12-13):
O princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às
pessoas. Sem embargo, consoante se observou, o próprio da lei,
sua função precípua, reside exata e precisamente em dispensar
tratamentos desiguais. Isto é, as normas legais nada mais fazem
que discriminar situações, à moda que as pessoas compreendidas
em uma ou em outras vêm a ser colhidas por regimes diferentes.
Donde, a algumas são deferidos determinados direitos e obrigações
que não assistem a outras, por abrigadas em diversa categoria,
regulada por diferente plexo de obrigações e direitos.
Assim, o tratamento diferenciado não pode ser considerado privilégio,
pois para efetivação dos direitos de alguns indivíduos, é necessário o
tratamento diferenciado em busca da igualdade. É importante, então,
relembrar a máxima aristotélica onde a igualdade seria tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais.
Claramente, as distinções são compatíveis com o princípio da
isonomia apenas quando existir um vínculo de correlação lógica entre a
peculiaridade diferencial acolhida por residir no “objeto” e a desigualdade
de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja
incompatível com os dispositivos constitucionais.
A própria Constituição Federal veda formas de discriminação, como
no artigo 5º, VIII, em que dispõe que “ninguém será privado de direitos
por motivo de crença religiosa ou convicção politica, salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta”; ou no artigo 7º, XXXI
que proíbe “qualquer discriminação no tocante a salario e critérios de
admissão do trabalhador portador de deciência”.
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216 |
Sobre o principio da igualdade, Hans Kelsen (1998, p. 99), em sua
obra-prima intitulada Teoria Pura do Direito, observa que:
A igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica, garantida
pela Constituição, não signica que aqueles devam ser tratados por
forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição,
especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que
se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e
conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer
quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de
espírito e doentes mentais, homens e mulheres.
Dessa forma, tendo em vista que alguns segmentos sociais são
hipossucientes, devido à marginalização social, é necessário tratá-los
de forma especial para garantirem seus direitos. É o que acontece, por
exemplo, com os negros que, após séculos e séculos de escravidão, mesmo
quando esta foi abolida, continuaram marginalizados socialmente, e
ainda hoje encontram no racismo um empecilho para atingirem direitos
fundamentais como à educação e trabalho. Como forma de suprir essa
desigualdade, foram criadas as cotas raciais.
É o que acontece, também, com as mulheres. O sexo feminino sempre
esteve inferiorizado, inclusive na ordem jurídica, que só recentemente
vem conquistando espaço na vida social e jurídica. Devido à sua posição
hipossuciente nas relações familiares e conjugais, foi criada a Lei 11.340
de 2006, intitulada como Maria da Penha, a qual cria mecanismos
para prevenir e punir a violência contra a mulher seja ela física, moral,
patrimonial ou psicológica (BRASIL, 2006).
Em consonância, foi criada a Lei nº 13.104 de 2015, a qual incluiu
no Código Penal o feminicídio como crime qualicado, para coibir e
penalizar homicídios contra as mulheres pela razão de pertencerem ao sexo
feminino, ou seja, violência de gênero (BRASIL, 2015).
De forma semelhante, acontece com travestis e transexuais, vítimas
da violência e preconceito pela não conformidade do sexo biológico com
o gênero em que se vive, fugindo do padrão sexual imposto socialmente.
Com isso, não têm seus direitos básicos como à segurança, educação e
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 217
trabalho concretizados e acabam recorrendo à prostituição para poderem
sobreviver, como será visto posteriormente.
Dessa maneira, é inegável a hipossuciência e a posição
desprivilegiada que se encontram as travestis e transexuais perante outros
cidadãos. O tratamento diferenciado a estas não infringiria nenhuma
norma constitucional, muito pelo contrário, ele é fundamental, como
forma de promover a igualdade social entre sujeitos desiguais e socialmente
desfavoráveis na estrutura social.
Os direitos conquistados por esse segmento foram conquistados de
forma árdua. Ainda assim, as pessoas trans ainda se encontram desamparadas
e em pé de desigualdade ante a outros cidadãos. É necessário retirá-las das
margens sociais e reinseri-las socialmente.
Necessário observar que o reconhecimento das pessoas trans como
sujeitos de direito, que demandam por direito, por ações armativas,
signica também um benefício à cidadania e à diversidade cultural da
população como um todo. Um avanço na democracia e respeito a diferença.
inserção dAs trAvestis e trAnsexuAis no mercAdo de trABAlHo
A discriminação contra transexuais femininas e travestis é mais marcada
do que de outros indivíduos LGBT, uma vez que a sociedade não é apenas
“heterocentrada” mas também “machocentrada”. Dessa forma, o processo
de feminilização dessas pessoas é visto, por diversas vezes, como uma afronta
dupla: ao binarismo de gênero e à supremacia do sexo masculino, cuja
negação e abdicação das características masculinas acabam sendo repudiadas.
Cada indivíduo possui sua realidade, sua história. Cada situação
é única e especíca, não sendo possível dizer que todas as travestis e
transexuais exercem a prostituição por falta de outras alternativas e que
não desejam estar ali. Mesmo porque muitas só viveram dessa forma até
hoje e tem medo do desconhecido, medo da rejeição e medo de precisarem
ser o que não são para serem aceitas em um emprego formal.
No entanto, é necessário apontar questões semelhantes a um número
considerável de pessoas trans em suas histórias de vida: a diculdade de obter
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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respeito em seu processo de questionamento ao binarismo de gênero, ao
transitar entre o feminino e o masculino; a expulsão de casa e a falta de apoio
familiar; a evasão escolar, devido à falta de preparo dos professores para lidar
com a transexualidade e travestilidade e a diculdade para obter um emprego
formal, seja devido a não conclusão dos estudos ou ao forte preconceito que
perpetua-se no mercado de contratações (AMARAL, 2013).
Sobre o assunto, no Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia
de AIDS e das DST entre gays, HSH e travestis (BRASIL, 2007, p. 13)
está disposto que:
A homofobia e a transfobia têm sido apontadas como elementos
estruturantes da vulnerabilidade de gays, outros HSH e travestis.
Elemento derivado da cultura machista, sexista e heteronormativa,
ainda hegemônica na sociedade, acompanha os sujeitos em toda
sua vida. A homofobia e a transfobia revelam-se, geralmente, na
convivência familiar desencadeando uma sequência de barreiras
a serem superadas. O efeito desses elementos negativos para a
autoestima, as diculdades na sociabilidade e a hostilidade na
escola resultam, normalmente, na exclusão do convívio familiar e
na descontinuidade da educação formal, projetando, entre outras,
grandes diculdades para a qualicação e entrada no mercado de
trabalho. Ao estigma e à discriminação associam-se situações de vida
vinculadas à clandestinidade, a um maior grau de vulnerabilidade
e risco para diferentes tipos de situação e à marginalização. Os
guetos” que se estabelecem a partir desses contextos tornam-se
espaços de acolhimento e inclusão e, simultaneamente, espaços
produtores de subculturas de resistência e diversidade.
Assim, o contexto das transformações e hostilizações geralmente se
iniciam na adolescência, relacionando-se ao período escolar. O bullying e a
violência por inúmeras vezes não é suportado o que causa o abandono da
escola pela vitima.
Desta feita, às travestis e transexuais é negado um dos direitos
mais basilares garantidos constitucionalmente, o direito à educação, pelo
simples fato de não corresponder às expectativas atribuídas aos gêneros.
Berenice Bento (2008) arma que as escolas, funcionam como uma das
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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principais instituições guardiãs das normas de gênero e produtora de
heteronormatividade. Elas segregam essas pessoas “diferentes” e retiram o
seu direito a educação com a máscara da evasão.
Da mesma forma, é o que ocorre em muitas famílias onde as pessoas
trans, vítimas da violência e preconceito, acabam saindo de casa. Sem ter
para onde ir e como se sustentar, recorrem à prostituição.
Don Kulick (2013, p. 65) atenta ao fato de que: “à medida que
tais modicações [corporais] vão se tornando mais aparentes, os meninos
quase sempre são expulsos de casa ou a abandonam por livre iniciativa”.
Necessário fazer uma ressalva acerca da “livre iniciativa” a que se
refere Don Kulick: na maioria das vezes, não quer dizer que estava tudo bem
no ambiente familiar e mesmo assim as travestis e transexuais resolveram
abandonar o lar. Quer dizer que diante da falta de apoio e compreensão
dos familiares, estas acabaram saindo de casa e recorrendo à prostituição.
Sem julgar moralmente quem exerce a prostituição ou mesmo
a prossão em si, esta pode ser considerada por vezes uma prossão
desumana, expondo as prossionais a risco e situações degradantes, apesar
de ser considerada por muitos uma “vida fácil”.
Marcos Benedetti (2005, p. 46-47) em sua pesquisa sobre as travestis
de Porto Alegre, observa que:
Uma das primeiras características que saltam à vista é a extrema
diculdade econômica de algumas travestis. Assim, às vezes, elas
viam em mim uma possível fonte de solução para a opressão e a
escassez que vivenciam diariamente. Em muitas oportunidades,
pude observar o radical desespero de algumas travestis para
conseguir dinheiro para matar a fome e pagar a cama do próximo
dia. Isto demonstra que é absolutamente equivocada a crença de
que a vida na prostituição é uma “vida fácil”.
Da mesma forma, Larissa Pelúcio (2005) observa que essa vida
não pode ser considerada fácil. Muitas das garotas trans de programa
entrevistadas por ela, armaram que esse cotidiano as faz beber muito e
usar drogas. Acrescentou que “de cara limpa” é muito difícil suportar a
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
220 |
rotina da prostituição. Outras, alegaram que drogadas é mais fácil enfrentar
a ausência da família, a discriminação diária e o sentimento de solidão.
A prostituição, desse modo, aproxima-as dos tracantes, o que
facilita o uso de drogas. Assim, além do álcool, as drogas mais consumidas
por elas são cocaína e crack, levando muitas delas a fazerem programa pra
sustentar o vício.
Isto posto, é possível armar que a prostituição pode ser considerada
um fardo para muitas travestis e transexuais. Estas que só estão ali, expostas
a violência, tratamento degradante, por não possuírem outra forma de
sobrevivência.
dAdos dA Prostituição e mArginAlidAde
Segundo dados da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e
Transexuais, retirados do Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades (2015), 90% das travestis e transexuais se prostituem
no Brasil, ou seja, pequena parcela da população travesti e trans possui
emprego formal.
O fato de se dedicarem à prostituição as expõem a riscos e as tornam
mais vulneráveis em situações de violência. À noite os perigos são maiores.
Elas fazem ponto nas ruas e acabam se expondo publicamente de uma
forma que, não fosse a situação, elas teriam preferido evitar.
Em suas análises e vivências com travestis que pertencem à
prostituição, Don Kulick (2013, p.47) dispõe que:
A exposição coloca as travestis em posição vulnerável, alvo fácil
do assédio de policiais, motoristas, transeuntes, gente que passa
em automóvel e ônibus. Na maioria das vezes, a violência vem por
na forma de agressão verbal, mas não são raros os casos em que
gangues de jovens espancam travestis. Também é comum ver gente
que passa de carro lançar pedras e garrafas sobre elas. Algumas
vezes chegam a disparar armas de fogo contra travestis em plena
rua. Normalmente as pessoas que cometem esses crimes não são
identicadas nem detidas. E quando o são, recebem penas leves
da justiça.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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Como se pode observar, a violência sofrida pelas travestis acontece
corriqueiramente, não ocorrendo de forma diferente com as transexuais.
Da mesma forma, constata Larissa Pelúcio (2005) em suas entrevistas onde
presenciou noites de muita “função”: homens passavam em carros, motos e
até de bicicleta, todos com o objetivo de rirem, humilharem e se divertirem
às custas das trans que se prostituíam. “Fazer função” é o termo usado pelas
trans para se referirem à violência sofrida, como “jogar ovos, garrafas, cuspir
e outras ações violentas. Quando a violência é mais explícita, envolvendo
danos físicos, elas chamam de curra. Essas travestis contam que não faz
muito tempo que sofreram uma curra” (PELÚCIO, 2005, p. 230-231).
Assim, esses ocorridos reetem a forma que muitas pessoas veem as
travestis e transexuais: como motivo de chacota, pessoas que não merecem
respeito e não como seres humanos que como quaisquer outros que
possuem direitos e merecem ser tratados com dignidade.
Os últimos dados da violência apresentados pela Secretaria de Direitos
Humanos (SDH) também vão de encontro com o já exposto. O relatório
sobre a violência homofóbica referente ao ano de 2013, em relação aos
homicídios sofridos demonstra que as vítimas são: 95,2% do sexo biológico
masculino e 4,8 do sexo biológico feminino; 53,4% identicados como
gays, 29% identicadas como travestis, 4,4% identicadas como lésbicas,
0,8% mulheres transexuais, 0,4% como homens transexuais (SDH, 2016).
Já segundo o banco de dados do Grupo Gay da Bahia (GGB),
atualizados diariamente no site “Quem a Homotransfobia Matou Hoje”,
318 indivíduos do segmento LGBT foram assassinados no Brasil em
2015. Isso signica um homicídio a cada 27 horas. Dentre eles, foram
caracterizados como 52% gays, 37% travestis
16% lésbicas, 10% bissexuais.
Porém, proporcionalmente, as travestis e transexuais são as mais vitimadas,
sendo que o risco uma trans ser assassinada é 14 vezes maior que um gay
(GRUPO GAY DA BAHIA, 2016).
Fazendo uma comparação com os Estados Unidos, onde foram
assinadas 21 trans no ano de 2015 — enquanto no Brasil foram 119 — têm-
se nove vezes mais chance de ocorrer o homicídio de uma trans brasileira
do que uma trans norte-americana. Segundo a organização internacional
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
222 |
Transgender Europe (2016), a situação no Brasil é especialmente
preocupante: aqui concentram-se 40% dos casos de assassinatos trans
mundialmente noticados, desde janeiro de 2008; e 42% dos casos
mundiais que ocorrem por hora em 2016.
Esses dados referem-se apenas a homicídios. Existem, ainda, muitas
outras formas de violência, não só física como moral. O medo constante,
um xingamento, a ausência dos direitos humanos mais basilares, dentre
outras omissões demonstram a vulnerabilidade a que estão submetidos os
transexuais e travestis, situações que deagram o desrespeito à condição
digna de um ser humano e que, muitas vezes, deixam até mesmo de serem
vericadas pelos índices de violação do Estado.
reinserção sociAl AtrAvés do trABAlHo
O trabalho é central na satisfação das necessidades humanas e nas
relações entre os indivíduos. Muito além da sobrevivência, é mediante o
trabalho que é possível se relacionar com pessoas de tipos diversos e criar
importantes relações interpessoais. O trabalho contribui principalmente
para desenvolvimento pessoal e o reconhecimento social.
Geralmente, os indivíduos passam a maior do seu dia trabalhando,
passando mais tempo com os colegas de trabalho do que com outras
pessoas ou familiares. Destarte, o trabalho tem um grande impacto na vida
das pessoas, tornando-se um processo de evolução pessoal, de participação
social e possibilidade de contribuir para a evolução da humanidade de
forma geral.
Devido a sua importância, o direito ao trabalho é um
direito fundamental de qualquer indivíduo sendo garantido pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) tanto quando
constitucionalmente na Constituição Federal de 1988. Porém, não é
qualquer forma de trabalho que se enquadra nos moldes fundamentais.
É direito de todos trabalhar com dignidade, em condições adequadas,
seguras e saudáveis.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 223
Desta feita, é possível armar que as travestis e transexuais não
possuem seu direito ao trabalho efetivado. Ora, se 90% delas trabalham
no mercado informal da prostituição, em situação de perigo constante,
forçadas a esta situação como ultima opção de sobrevivência, isso não pode
ser considerado trabalhar com dignidade, muito menos em condições
seguras e saudáveis.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também dispõe
sobre as condições mínimas para se exercer um trabalho de forma digna e
quais as medidas os países-membros devem adotar. O Brasil é membro da
OIT, tendo raticado a Convenção nº 111 desta organização e promulgada
através do Decreto nº 62.150 de 19 de janeiro de 1968, o qual dispõe
que os países-membros devem proteger as pessoas contra a discriminação
relacionada ao trabalho e proíbe a exclusão ou preferência que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em
matéria de emprego ou prossão (BRASIL, 1968).
O Brasil também adota os Princípios de Yogyakarta, que dispõem
sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em
relação à orientação sexual e identidade de gênero. No capítulo sobre o
direito ao trabalho disposto nos Princípios de Yogyakarta (PRINCÍPIOS,
2007, p. 20) está que:
Os Estados deverão:
a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras
medidas necessárias para eliminar e proibir a discriminação com
base na orientação sexual e identidade de gênero no emprego
público e privado, inclusive em relação à educação prossional,
recrutamento, promoção, demissão, condições de emprego e
remuneração;
b) Eliminar qualquer discriminação por motivo de orientação sexual
ou identidade de gênero para assegurar emprego e oportunidades
de desenvolvimento iguais em todas as áreas do serviço público,
incluindo todos os níveis de serviço governamental e de emprego em
funções públicas, também incluindo o serviço na polícia e nas forças
militares, fornecendo treinamento e programas de conscientização
adequados para combater atitudes discriminatórias.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
224 |
Como se pode observar, é dever dos Estados tomar as medidas
necessárias para coibir qualquer discriminação, inclusive com base na
orientação sexual e identidade de gênero e assegurar oportunidades de
emprego para todos.
Nesse sentido, é obrigação do Estado promover empregos às travestis
e transexuais. Estas se encontram marginalizadas e correndo risco de morte.
É necessário assegurar efetivação do direito ao trabalho, visando promover
a cidadania e proteger a dignidade da pessoa humana.
Ações AfirmAtivAs PArA reinserção sociAl
À vista disso, é necessário a criação de políticas públicas para a
efetivação dos direitos mais basilares das travestis e transexuais como à
educação e ao trabalho. Dentre as políticas públicas, existem as ações
armativas ou também conhecidas como “discriminação positiva”, uma
importante diretriz para solucionar o problema da exclusão social.
O jurista brasileiro e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal,
Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2001, p. 22) assegura que a
discriminação positiva:
Consiste em dar tratamento preferencial a um grupo historicamente
discriminado, de modo a inseri-lo no “mainstream
1
, impedindo
assim que o princípio da igualdade formal, expresso em leis neutras
que não levam em consideração fatores de natureza cultural e
histórica, funcione na pratica como mecanismo perpetuador da
desigualdade. Em suma, cuida-se de dar tratamento preferencial,
favorável, àqueles que historicamente foram marginalizados, de
sorte a coloca-los em um nível de competição similar ao daqueles
que historicamente se beneciaram da sua exclusão.
Assim, essa modalidade de discriminação, tem caráter redistributivo
e restaurador e é destinada a corrigir as situações de desigualdades sociais
dispostas pelo próprio homem, histórica ou culturalmente.
Enfatiza a necessidade de proteção aos direitos humanos, tendo sido proclamada pelo Parlamento Europeu,
pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão Europeia em 7 de Dezembro de 2000.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 225
As políticas de ação armativa se distinguem das demais políticas
públicas que visam os mesmos objetivos mediatos pela sua forma de
agir. Estas operam-se pelo estabelecimento de tratamentos juridicamente
desiguais e mediante restrição a igualdade formal, ampliando a igualdade
em sentido material. O foco é a concretização do princípio da igualdade
que ao invés de buscar a coibição do tratamento discriminatório, combate
a discriminação indireta, aquela ocasionada por uma desigualdade não
originária de atos concretos ou da manifestação direta da discriminação,
mas de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas
neutras, com potencial discriminatório.
Desse modo, as ações armativas têm como objetivo não apenas
coibir a discriminação no presente mas eliminar os efeitos persistentes
da discriminação do passado que se perpetuaram. Esses efeitos são
demonstrados na discriminação estrutural, irradiada nas desigualdades
sociais entre os segmentos dominantes e os segmentos marginalizados.
Uma ação armativa, como qualquer política pública, inicia-se
na formulação das decisões, priorizando os problemas sociais a serem
enfrentados e buscando soluções através de planejamentos, programações,
atos normativos etc. Portanto, as políticas de ação armativa, pressupõem
a ocorrência de desigualdades fáticas que afetam um grupo social
determinado. Pressupõem, ainda, uma decisão política para criação da
ação armativa com a nalidade de superar ou atenuar essas desigualdades.
Se a intenção das ações armativas é dirimir os efeitos do preconceito,
elevando o patamar social de indivíduos integrantes de minorias sociais
ou de grupos vulneráveis, a implementação de políticas empregatícias às
travestis e transexuais cumpre os requisitos para tais ações. Na seara dessa
minoria sexual, ca evidente a necessidade da criação de políticas para
retirá-las da rua e permitir a inclusão no mercado formal, visando assim,
que estas obtenham um trabalho seguro e saudável.
As principais áreas contempladas pelas ações armativas são de
fato o mercado de trabalho — contratação, qualicação e promoção de
funcionários — e o sistema educacional, em especial o ensino superior e a
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
226 |
representação política. Isso se dá, pois a educação escolar e o trabalho são
importantes formas de distribuição de renda e reinserção social.
Consoante, essas ações também têm como meta a implantação da
diversidade e representatividade das minorias no âmbito público tanto
quanto no privado. Partindo do princípio de que tais grupos geralmente
não são representados em certas áreas seja no mercado de trabalho ou
nos cargos públicos, seja nas instituições superiores, essas políticas tem
o importante papel de fazer com que a ocupação dos cargos do Estado
e do mercado de trabalho se faça em harmonia com indivíduos diversos
socialmente e culturalmente (GOMES, 2001).
Visando às ações armativas para o segmento trans, é possível
duas perspectivas de reinserção prossional: ações pessoais a travestis e
transexuais com o proposito de valorizá-las como mão-de-obra importante
e ao mesmo tempo obter o reconhecimento e aceitação do seu modo
subjetivo, diverso, que foge as regras de gênero impostas socialmente; e a
criação de políticas sociais de qualicação prossional para que promova
a inclusão social e aceitação da diversidade sexual pela sociedade, para
que através essa qualicação auxilie a inserção e permanência no contexto
laboral, já que muitas não possuem nem ensino médio completo.
A necessidade da reinserção das travestis e transexuais no mercado é
de tanta importância que já foram adotadas algumas importantes medidas
a serem seguidas como exemplo para implementação por meio do Estado
ou mesmo sua ampliação, a saber: na esfera privada foi criado o Projeto
Transempregos e na esfera pública, o Projeto Damas e o Projeto Reinserção
Social Transcidadania.
O Projeto Transempregos é uma iniciativa privada fundada em 2013
e se dá através de um site criado para divulgar e promover empregos às
travestis e transexuais. Esse site é um intermediário entre as empresas e as
trans, como uma agência de empregos. As trans se cadastram e passam a
acompanhar as vagas de emprego ofertadas especicamente por empresas
comprometidas com a diversidade sexual.
O Projeto Damas (2011) é um projeto criado pela Prefeitura do
Rio de Janeiro, através da Coordenadoria Especial da Diversidade Social
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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juntamente com as secretarias municipais de Educação, Desenvolvimento
Social, Saúde e Trabalho e Emprego. Esse projeto, iniciado em 2011, foi o
primeiro projeto criado no âmbito governamental para reinserção social e
prossional das travestis e transexuais, através do incentivo a escolaridade
e capacitação para empregabilidade — com ocinas de trabalho, cursos de
ética e comportamento, orientação vocacional, educação, entre outros. O
projeto também oferece atendimento de saúde e garante estágio às trans
em órgãos públicos.
Talvez o mais importante e inovador dentre eles é o Projeto
Reinserção Social Transcidadania. Esse projeto foi instaurado pelo Decreto
Municipal nº 55.874 de 2015, instituído pelo prefeito Fernando Haddad,
o qual criou o Programa TransCidadania. Esse programa visa a promoção
dos direitos humanos e o acesso à cidadania, por meio da qualicação das
travestis e transexuais, oferta de condições de autonomia nanceira e de
enfrentamento da pobreza por meio de programas redistributivos, elevação
da escolaridade, qualicação prossional e intermediação de mão-de-obra
(SÃO PAULO, 2015). O Projeto Reinserção Social Transcidadania é, em
linhas gerais, uma bolsa-auxílio para quem cumpre 30 horas semanais,
frequentando atividades escolares e os cursos ministrados no Centro de
Cidadania LGBT. As alunas além de frequentar as aulas e receber a bolsa,
recebem atendimento psicossocial, pedagógico e médico.
Consoante todo o exposto é necessário incluir as demandas das
travestis e transexuais na agenda de políticas públicas do Poder Executivo,
nas esferas dos três níveis de governo, em especial em nível federal.
É necessário dar incentivo — como o scal — às empresas privadas
pela contratação das travestis e transexuais, pois as empresas precisam se
abrir à politicas que viabilizem a inclusão social. É necessário também,
promover a qualicação das trans para que estas sejam mais facilmente
empregadas, através da implementação de ações armativas, com a
instauração das cotas trans nas universidades e nos concursos públicos.
Fundamental também, a criação de programas como o Transcidadania à
nível federal, para possibilitar que as travestis e transexuais sobrevivam
de outra forma que não a prostituição enquanto possam terminar os
estudos escolares e se qualiquem para o mercado de trabalho, para que
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
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tenham maior visibilidade e respeito no meio social, combatendo a visão
estigmatizada que parte da sociedade possui e, dessa forma, inserindo-as
no seio da sociedade, de forma menos desigual e menos excludente.
conclusão
Apesar da discussão sobre a sexualidade e as diversas identidades
ter se intensicado ultimamente, as minorias sexuais ainda encontram-
se marginalizadas. A situação ainda é mais preocupante quando se trata
das travestis e transexuais. Assim, mesmo com a criação de algumas
políticas públicas para esse segmento, ainda são singelas as mudanças
proporcionadas. A necessidade de políticas mais incisivas como as ações
armativas se faz presente.
Incentivar e promover a prossionalização das travestis e transexuais
é necessário para que estas possam ser inseridas no mercado formal de
trabalho. Assim, o trabalho pode ser uma importante ferramenta de
inclusão social e promoção da diversidade.
Para isso é necessário a criação de ações armativas como o cotas
e bolsa-auxílio mensal, já implementadas a nível municipal como o
Projeto Reinserção Social Transcidadania, mas que merece ser melhorado
e ampliado a nível federal. Da mesma forma o incentivo às empresas para
contratarem travestis e transexuais se faz necessário.
Por m, é importante observar quão fundamental a implementação das
ações armativas a esse segmento social, pois é diante do trabalho que é possível
reconhecê-las como pessoas que possuem direitos não só formais perante a
Constituição Federal mas também concretos como qualquer cidadão.
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Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
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| 231
15
“LUTA POR RECONHECIMENTO”: O
CASO KAYAPÓ MTYKTIRE
Michelle Carlesso Mariano
1
Alessandro Mariano Rodrigues
2
introdução
A emancipação dos atores sociais ocupa um lugar central na Escola
de Frankfurt
3
desde seus primórdios e o desvelamento dos obstáculos a
ela a tarefa de seus membros no âmbito da “Teoria Crítica”. De maneira
geral, pode-se dizer que uma teoria é crítica se, justamente, promover
essa emancipação. Nesse sentido, os estudos não se limitam aos aspectos
descritivos de uma realidade social, mas buscam construir as bases
normativas para promover a superação das situações de dominação e
opressão em que os sujeitos estão submetidos.
Doutora em Ciências Sociais, área de antropologia, na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
– UNESP, campus de Marília. E-mail: michellecarlessomariano@gmail.com.
Aluno de doutorado em Ciências Sociais, área de antropologia, na Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho – UNESP, campus de Marília. E-mail: alessandromarianorodrigues@gmail.com.
De acordo com Nobre (2003), a expressão “Escola de Frankfurt” surgiu apenas em 1950, quando o Instituto
de Pesquisa Social retornou à Alemanha depois de passar por Genebra, Paris e Nova York durante o regime
nazista. É uma expressão retrospectiva que teve um importante papel para fortalecer e amplicar as intervenções
no debate pós-guerra, tanto no âmbito acadêmico como na esfera pública da Alemanha.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p231-244
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
232 |
Segundo Horkheimer, uma teoria crítica adequada precisa ser
normativa, prática e explicativa, “deve explicar o que está errado com a
realidade social em determinado momento histórico, identicar os atores
que dispõem de potencial para modicá-la e proporcionar normas para o
exercício da crítica” (apud SCHUMAKECHER, 2008, p. 118). As teorias
críticas posicionam-se como guias para ações humanas, daí a necessidade
de sua base normativa explícita.
Em relação ao conito, considera-se de maneira geral que é inerente
à sociedade. A teoria social trata do tema a partir de diversas abordagens e
modelos. Dentre esses, os modelos críticos são os que melhor proporcionam
esclarecimento teórico-metodológico da moralidade do conito. A
importância de tal abordagem está na sua contribuição para desvelar
situações de desrespeito ou distorções que comprometem a capacidade dos
atores sociais de progredir. A partir de uma abordagem que considera o
conito como uma questão moral, em que certas regras obrigatórias são
burladas para uma das partes pela outra, pretende-se reconstruir a visão dos
atores sociais envolvidos, os Kayapó Mtyktire, evidenciando sua agência,
como, o que e por que se posicionam em disputas, situações empíricas
em que mobilizam seus valores, onde a própria cultura é utilizada como
bandeira de demanda para sustentar suas respectivas ações.
1. modelo de reconHecimento: A ABordAgem críticA do
conflito
Quando se fala em conito, o conceito de agência torna-se
importante para se pensar a atuação dos sujeitos sociais. Segundo Giddens
(2003) as características que denem o agente são o “monitoramento
reexivo da atividade”, característica da ação cotidiana que envolve a
conduta não somente do indivíduo, mas do grupo, vejamos: “os atores
não só controlam e regulam continuamente o uxo de suas atividades e
esperam que outros façam o mesmo por sua própria conta, mas também
monitoram rotineiramente aspectos, sociais e físicos, dos contextos em que
se movem” (GIDDENS, 2003, p. 6). Outra característica do agente é a
racionalização da ação”, pois os atores sociais mantêm um entendimento
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 233
das bases de suas atividades e, por m, o “motivo da ação” refere-se ao
potencial para a ação e não como essa ação é executada. Em relação à
natureza da agência humana, Giddens (2003, p. 9) arma que esta só pode
ser denida em termos de intenções, ou seja, “é preciso que o realizador
tenha a intenção de o manifestar, caso contrário o comportamento em
questão é apenas uma resposta reativa”. Apesar de ação intencional, a
agência é sobretudo a capacidade de realizar tais coisas. Tem-se, então, que
a agência se dene pela ação intencional e competência dos atores sociais
de explicarem o que fazem.
Dentro da abordagem crítica do conito, Honneth (2003, p. 265)
arma que “os confrontos sociais se efetuam segundo o padrão de uma luta
por reconhecimento”. Para ele, as lutas e conitos históricos desempenham
uma função para o estabelecimento de um “progresso moral na dimensão
do reconhecimento”. Sendo assim, devem ser explicadas pelo sentimento
coletivo moral de injustiça oriundo de experiências de desrespeito e
evidenciar a lógica moral dessas lutas sociais, sendo que “uma luta só pode
ser caracterizada como ‘social’ na medida em que seus objetivos se deixam
generalizar para além do horizonte das intenções individuais, chegando a
um ponto em que eles podem se tornar a base de um movimento coletivo
(HONNETH, 2003, p. 256).
Contra este modelo de conito por reconhecimento pesa aquele
utilitarista, de viés econômico, que “atribuem o surgimento e o curso das lutas
sociais a tentativa de grupos sociais de conservar ou aumentar seu poder de
dispor de determinadas possibilidades de reprodução” (HONNETH, 2003,
p. 261). Para o último, os movimentos sociais surgem numa perspectiva de
“interesse”, resultantes da distribuição desigual objetiva de oportunidades
materiais, desligado das atitudes morais emotivas da vida cotidiana. Em
relação a este modelo, Honneth (2003, p. 263) argumenta que
[...] mesmo aquilo que, na qualidade de interesse coletivo, vem a
guiar a ação num conito não precisa representar nada de último e
originário, senão que já pode ter se constituído previamente num
horizonte de experiências morais, em que estão inseridas pretensões
normativas de reconhecimento e respeito - esse é o caso, por
exemplo, em toda parte onde a estima social de uma pessoa ou de
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
234 |
um grupo está correlacionada de modo tão unívoco com a medida
de seu poder de dispor de determinados bens que só a sua aquisição
pode conduzir ao reconhecimento correspondente.
A base normativa de Honneth é a concepção de interação social
como uma rede de distintas relações de reconhecimento, presente no
pensamento de Hegel e Mead, para quem os indivíduos se identicam em
cada uma das dimensões de sua autorrealização, a saber, o amor, o direito
e a estima. Do jovem Hegel, Honneth reconstruiu sistematicamente os
argumentos, baseados na razão, sobre as três formas de reconhecimento
que contêm o potencial para uma motivação dos conitos. Por sua vez,
da psicologia social de G. H. Mead obteve a inexão empírica para
fundamentar seus pressupostos normativos, originando no plano de uma
teoria da intersubjetividade um conceito de pessoa em que a possibilidade
de uma auto-realização imperturbada se revela dependente de três formas
de reconhecimento (amor, direito e estima)” (HONNETH, 2003, p. 24).
A tese de Honneth é que os grupos sociais procuram articular
publicamente os desrespeitos e as lesões vivenciados como típicos e
reclamar contra eles, tanto pela força material como pela simbólica ou
mesmo passivamente. Esse modelo explicativo sugere que os motivos
da resistência social “se formam no quadro de experiências morais que
procedem da infração de expectativas de reconhecimento profundamente
arraigadas” (HONNETH, 2003, p. 257). Essas expectativas estão ligadas
às condições de formação da identidade pessoal, retendo os padrões sociais
de reconhecimento: amor, direito e estima. Uma vez que essas expectativas
normativas são desapontadas pela sociedade, desencadeia no indivíduo a
experiência moral que se expressa no sentimento de desrespeito e o motiva
ao conito a m de obter reparação pelos danos sofridos.
Dito isso, traçamos um panorama do pensamento indígena relativo
às suas categorias vernáculas para compreender, na concepção de Honneth,
as premissas normativas, as representações morais cotidianas que motivam
os Mtyktire ao conito: a relação pessoa-lugar, posse do território,
consciência cultural, atitude belicosa.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 235
2. o cAso KayaPó MtyKtire
A Terra Indígena Capoto/Jarina é habitada, na sua maioria, pelo
povo Kayapó Mtyktire.
4
Está localizada no norte do estado de Mato
Grosso e é ladeada pela MT-322 que a atravessa e faz divisa entre a T.I.
mencionada e a T.I. Parque do Xingu. Os Mtyktire, assim como outros
grupos indígenas,são popularmente conhecidos como Kayapó, nome de
origem tupi e com conotação pejorativa:
5
k’ayamacaco”, poparecido”,
semelhante” (TURNER, 2009, p. 311). Pertencem ao tronco linguístico
Macro-Jê, subgrupo Jê Setentrional.
6
Mbêngôkre é uma autodenição que
signica “gente do espaço dentro da(s), ou entre a(s) água(s)” (TURNER,
2009, p. 311) e Mtyktire (m: humano, homem, coletivizador; tyk: preto;
tire: grande)é o nome pelo qual o grupo passou a referir-se a si após uma
cisão, entre as décadas 40 e 50.
O Mtyktire teve seu primeiro contato ocial com os irmãos Villas
Bôas em 1952 na expedição Roncador-Xingu (LEA, 1997, p. 101-102).
Transferiram-se então para a região conhecida como Porori em 1964. A
construção da BR-080, atual MT-322, conforme os relatos de Lea (2012, p.
18-21), atravessou o então Parque do Xingu na tentativa de disponibilizar
a porção que cou ao norte da respectiva estrada para a colonização
por não índios. Para assegurar a posse do território, Rop-ni, conhecido
como cacique Raoni, liderou um grupo Mtyktire com aproximadamente
quatrocentos indivíduos e mudaram-se rio Xingu acima uns 20 km da
estrada, dentro dos limites do Parque, criando assim a aldeia Kretire. Outro
grupo permaneceu próximo a cachoeira Von Martius, oeste do rio Xingu
e fora dos limites do Parque. Os indígenas passaram a reivindicar uma
Segundo dados do ISA (Instituto Socioambiental), referentes ao ano de 2010, obtidos a partir de uma rede
de colaboradores que trabalham com os povos, dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) e das
Coordenações Regionais e Coordenações Técnicas Locais da Funai, a T.I. Capoto/Jarina possui 1.388 pessoas,
sendo que 1.164 são Kayapó Mtyktire e 160 são Tapayuna.
Para Tim Ingold (1995, p. 39) “as noções de humanidade e de ser humano determinaram, e foram, por sua vez,
determinadas, pelas idéias acerca dos animais”. O autor considera fundamental a distinção de humano como
espécie e como condição, sendo que a segunda é uma concepção cultural do que é ser humano. É diferente
perguntar o que é ser humano e o que signica ser humano.
Segundo os trabalhos de Curt Nimuendajú (1952), Simone Dreyfus (1962), Terence Turner (1966), Lux
Vidal (1977), Verswijver (1992) e outros, os Jê Setentrionais incluem os Timbira Orientais que se subdividem
em Apãniekra e Ramkokamekra (Canelas), Krahó, Parkatêjê ou Gavião, Pukobje, Krĩkati e Krenje; os Apinayé
conhecidos também como Timbira Ocidentais, os Suyá, os Tapayuna, os Panará e os Mbêngôkre que, por sua
vez, se subdividem em Gorotire, Mkrãgnõti, Mtyktire, Kararaô e Xicrín.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
236 |
faixa de terra a leste do rio Xingu para, com isso, impedir a aproximação
de não índios às margens do rio. Nesse período, expulsaram do local um
pequeno povoamento de não índios, frustrando a instalação do que seria a
atual cidade de São José do Xingu e, para apaziguar os conitos e garantir
o tráfego, permaneceu no local um posto policial.
Para reivindicar a aceleração nos processos demarcatórios das Terras
Indígenas, em 1984 um grupo com representantes de várias etnias da
região tomou a balsa de travessia do rio Xingu que era administrada por
particulares. Em atendimento ás demandas indígenas, o posto policial
foi retirado do local e o órgão indigenista criou um Posto Indígena de
Vigilância, o PIV Piaraçú e através dos Decretos Federais nº 89.643 e nº
89.618 foram reconhecidas duas reservas indígenas que na homologação,
em 1.991, foram unicadas como a T. I. Capoto/Jarina.
Numa concepção sociocosmológica ideal, as aldeias mbêngôkre são
organizadas de modo que o centro corresponda ao zênite solar e é ocupado
pela ngà, a “casa dos homens”, um polo político onde os homens são educados
desde meninos. Para Lea (1994, p. 96), “a casa dos homens [...] direciona o
olhar para além da aldeia, e os homens são os responsáveis por aquilo que
diz respeito ao mundo exterior”, ou seja, as caçadas, os inimigos, o Estado
e tudo o que dele provém como saúde e educação. Já o polo feminino é
representado pelas habitações que, sempre abertas para o centro, representam
a “matricasa”,
7
encenando o papel das mulheres na sociedade, ou seja,
questões que dizem respeito ao interior dessa sociedade, tanto a sua nutrição
como a sua reprodução, no sentido ritualístico e simbólico, a transmissão
dos nomes, bens e prerrogativas dentro de estruturas de parentesco verticais.
São uxorilocais, quando os homens se casam, mudam-se para a casa da
mulher, da sogra, de maneira que o domínio espacial é sempre feminino.
Vanessa Lea considera que a organização social Mtyktire é um complexo
que sobrepõe as “Casas”, com letra maiúscula, enquanto pessoas morais,
7
Lea (1999, p. 180) estabeleceu a categoria “matricasa” como “pessoas morais, detentoras de um patrimônio
de bens simbólicos: nomes pessoais e prerrogativas”, como papéis cerimoniais e adornos transmitidos dentro de
uma matrilinhagem vertical.
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 237
elementos matrilineares, pois a descendência é uterina e vertical, como
também elementos patrilineares, herdando dos pais os “amigos formais”.
8
A “matricasa” é dona de um determinado espaço no círculo da aldeia,
em uma analogia ao formato de pizza, determinado pela posição da trajetória
solar leste/oeste. Os espaços dentro do território são organizados através
das relações de parentesco. Já na categoria de bens materiais e simbólicos, o
nekretx é denido como tudo que pode ser acumulado, incluindo adornos
manufaturados que pertencem exclusivamente a uma Casa, cuja prerrogativa
pode ser mitológica ou mesmo bens industrializados. Já os nomes, outra
categoria de bens herdáveis dentro de uma estrutura social, também são
propriedades das matricasas. Para Lea (1994, p. 95) “os nomes pessoais e
os demais bens herdáveis são categorias polissêmicas com conotações de
alma ou de genes – ou seja, aquilo através do que os antepassados vêm se
reciclando desde os tempos míticos”. Portanto, pode-se armar que na
concepção indígena espaço
9
e pessoa
10
são indissociáveis. Cada pessoa está
ligada à uma matricasa que, por sua vez, é proprietária física e simbólica de
uma determinada porção de espaço e a posse do território é o fundamento
de mobilizações que envolvem demandas políticas, visto que é vital para a
sobrevivência da comunidade em suas estruturas sociais.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1986), em referência à etnia Jê Krahó escreve que pode haver
uma noção de pessoa, um princípio de autonomia, de dinâmica própria, princípio tal que deve ser procurado
e não postulado. Disso que trata a amizade formal. “1) a amizade formal entre os Krahó devia ser entendida
como consistindo essencialmente em uma relação de evitação e solidariedade entre duas pessoas, conjugada
com relações prazenteiras assimétricas de cada qual com os pais de Seus parceiros: insistia, então, que essas duas
relações eram ‹pensadas como um todo, e não isoladamente, e como tal deviam ser analisadas em conjunto; e
implicava, além disso, que a ligação da instituição de amizade formal com os nomes próprios era secundária,
ou seja; era a modalidade Krahó do tema jê mais amplo da amizade formal: 2)analisando os contextos em que
intervêm os amigos formais, distinguia dois tipos de situações: o primeiro tipo diz respeito a danos físicos, como
queimaduras, picadas de marimbondos ou de formigões, em que o amigo formal é chamado para sofrer na pele
precisamente a mesma agressão física de que foi vitima seu parceiro; enquanto o outro tipo se refere aos ritos
de iniciação e m de resguardo do assassino, quando os amigos formais permitem a reintegração de um Krahó
segregado do convívio social e, eventualmente, sua instauração em uma nova condição social.
Basso (1996) arma que os lugares são construídos e partilhados socialmente e, sempre que são aceitos por
outras pessoas como algo crível, enriquecem estoques comuns sobre o qual essas pessoas ou grupos podem reetir
sobre os acontecimentos passados, interpretá-los e imaginá-los novamente. A vida dos povos e as congurações
em que vivem constituem uma “interanimação” nas palavras do antropólogo, pois os laços que ligam as pessoas
a um lugar são profundamente vitais.
10
Mauss (2013, p. 374) arma que, em clãs indígenas, a pessoa era atrelada aos laços de sua comunidade
pelo nome que o ligaria dentro de um clã especíco que conguraria um conjunto total: “o clã se considera
constituído por um certo número de pessoas, na realidade de personagens e, de outro lado, o papel de todos esses
personagens é realmente o de gurar, cada um na sua parte, a totalidade pregurada do clã”.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
238 |
Esse fenômeno de autoconsciência cultural pelos povos indígenas
reetiu nos instrumentos legais, tanto internacionais como nacionais. A
OIT nº 169
11
de 1989, além de tratar dos direitos da população indígena a
terra e de suas condições de trabalho, saúde e educação, inova no critério de
denição dos povos indígenas com a noção de “autoidentidade”, critério esse
adotado e aceito hoje que dene grupos étnicos como “formas de organização
social em populações cujos membros se identicam e são identicados como
tais pelos outros, constituindo uma categoria distinta de outras categorias de
mesma ordem” (BARTH, 1969, p.11 apud CUNHA, 2009, p. 251). Assim,
entende-se etnia em termos de adscrição, ou seja, é índio quem se considera
e é considerado pelos outros como índio. Outra inovação da OIT nº 169
é a distinção adotada entre o termo “populações”, que traz a denotação de
transitoriedade e contingencialidade, e o termo “povos”,
12
que “caracteriza
segmentos nacionais com identidade e organização próprias, cosmovisão
especíca e relação especial com a terra que habitam” (CONVENÇÃO n.
169, 2011, p. 8). Nesse mesmo contexto de discussão, antropólogos e juristas
no Brasil tratavam sobre os direitos dos povos indígenas na constituinte de
1988. A questão legal dos índios e suas terras fundamenta-se nos “direitos
originários”, que considera o indigenato um título congênito de posse
territorial e baseia-se na noção de “dívida histórica” que o Brasil tem com a
população indígena.
Se, por um lado, a identicação de uma pessoa a um grupo étnico
implica compartilhamento de “critérios de avaliação e julgamento” (BARTH,
2011, p. 196), “jogar o mesmo jogo”, por outro, a dicotomização do outro
como um estrangeiro, aquele que pertence a outro grupo étnico, “implica que
se reconheçam limitações na compreensão comum, diferenças de critérios de
julgamento, de valor e de ação, e uma restrição da interação em setores de
compreensão comum assumida e de interesse mútuo”. Daí, dessa limitação
na compreensão do outro sobre a concepção de mundo indígena, surgem
os desrespeitos
13
e, consequentemente, a resistência coletiva procedente,
11
A OIT n. 169 foi raticada pelo Brasil em 2002.
12
O termo “povos” limita-se ao âmbito das competências do referido texto, sem aplicação que contrarie outras
acepções previstas no Direito Internacional.
13
As formas de desrespeito que podem motivar os sujeitos à luta, conforme Honneth, são: 1) os maus-tratos
corporais; 2) sujeitos excluídos de posse de determinados direitos no interior de uma sociedade; 3) referência
negativa do valor social de indivíduos ou grupos. “As reações negativas que acompanham no plano psíquico a
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 239
conforme argumenta Honneth (2003, p. 259), “da interpretação socialmente
crítica dos sentimentos de desrespeito partilhados em comum”.
Conforme Geertz (1999, p. 74), “a estranheza não começa nos limites
da água, mas nos da própria pele” e o outro que em um passado remoto
era codicado como o “não humano
14
passa, em um momento presente,
a ser aquele com quem o indígena precisa dialogar. A relação com esse
outro – Estado – faz-se através da identidade enquanto linguagem que por
sua própria natureza é de oposição, seja nos sinais diacríticos característicos
como a língua, indumentária, gestuário, seja nos valores morais que estão
em jogo: um discurso “culturalista” pela preservação da vida e do meio
ambiente, pelo respeito aos direitos adquiridos como a terra, a saúde, a
educação etc., e um discurso estatal, capitalista e opressor.
As Terras Indígenas tornaram-se alvo de ambição frente à política
governamental de exportação de commodities, o que elevou o preço destas
e das terras. Com isso, a bancada ruralista do Congresso brasileiro criou
um instrumento para cercear os direitos de posse e usufruto das terras, que
a própria Constituição arma serem “direitos imprescritíveis” por parte
dos povos indígenas e inviabilizar a demarcação de novas terras, legalizar
a invasão, a posse e a exploração das Terras Indígenas já demarcadas.
Referimo-nos a PEC 215/2000. Além disso, o projeto transfere ao
Legislativo a prerrogativa de ocializar Terras Indígenas, Unidades de
Conservação e Territórios Quilombolas, o que na prática signica o m de
todos os processos demarcatórios, e inclui a promulgação da Constituição
(05/10/1988) como marco temporal para a comprovação da posse indígena.
Tal projeto foi arquivado em dezembro de 2014, mas, ao que tudo indica,
está em vias de “ressuscitar”.
Os indígenas como um todo se uniram contra tal proposta, de maneira
que as identidades de cada etnia foram contextualmente suplantadas por
uma identicação geral. Há um desrespeito contra tudo o que o indígena
experiência de desrespeito podem representar de maneira exata a base motivacional afetiva na qual está ancorada
a luta por reconhecimento” (HONNETH, 2003, p. 219-220).
14
Para Lévi-Strauss (1976), a humanidade, enquanto concepção local acaba nas próprias fronteiras tribais. Esse
fato é percebido na maneira como os grupos se designam, geralmente com termos que signicam “homem”,
ou “bons”, “perfeitos”, em relação aos outros que não participam das mesmas virtudes ou da mesma natureza
humana. Em relação ao mbêngôkre, além da autodenição há a denição do outro, o kub, tido como o não
mbêngôkre, o estrangeiro, “seres estranhos” (LUKESCH, 1976, p. 14).
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
240 |
representa, uma vez que fora de suas terras não conseguiriam reproduzir
seu sistema social e estariam fadados ao desaparecimento, diluídos na
sociedade nacional na “pobreza estrutural”. Pode-se observar no ocorrido
duas lógicas em confronto: por um lado, a lógica utilitarista do Estado que
vê a questão sob o viés econômico, ou seja, diferença de “interesses” e que
procura gerir apenas o conito em si e não as suas origens, não há uma
visão emancipatória dos sujeitos, age de maneira imediatista utilizando
a “teoria do jogo”, uma “perspectiva objetivista”, conforme aponta
Vargas (2007, p. 193), que “procura as origens dos conitos na situação
político-social e na estrutura da sociedade”. Nesta lógica prevalece a “razão
utilitária” (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2007), na qual o meio ambiente é
considerado uno e composto unicamente de recursos materiais, expresso
em quantidade e sem conteúdos socioculturais. Por outro lado, tem-se a
lógica do reconhecimento motivada por experiências morais coletivas de
desrespeito. Honneth arma que esses sentimentos podem tornar-se a base
motivacional de resistência coletiva, pois são comprovadamente típicos
de um grupo inteiro, onde prevalece uma “razão cultural” (ZHOURI;
LASCHEFSKI, 2007), que considera o meio ambiente múltiplo em
qualidades socioculturais, não há ambiente sem sujeito.
Nos diversos protestos que acompanharam as tentativas de
votação do referido projeto, os indígenas usaram símbolos culturais que
possuíam signicados diferentes daqueles inerentes aos grupos e só por
eles identicados. Esses sinais diacríticos adquiriram uma nova função
no cenário de demanda: a identicação daquele indivíduo enquanto
indígena, opositor, aquele que seria prejudicado por tal proposta e que
estava manifestando sua indignação.
No caso dos Mbêngôkre, além de participarem ativamente das
manifestações em Brasília, os subgrupos étnicos uniram-se e pronunciaram-
se como um único povo. Assim o zeram através de um manifesto aberto,
onde armaram que, juntos, repudiam a PEC 215 e a reconhecem como
uma tentativa de cerceamento de direitos constitucionalmente reconhecidos
após quase quinhentos anos de opressão. Vejamos uma parte do manifesto:
400 caciques e lideranças Mebengôkre/Kayapó de todas as aldeias
das Terras IndígenasKayapó, Menkragnoti, Badjonkôre, Baú,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 241
Capoto/Jarinã, Xicrin do Catete, Panará e LasCasas, localizadas
nos estados do Pará e Mato Grosso, com apoio dos caciques do
povoTapayuna e Juruna, também do estado Mato Grosso, juntos
estivemos reunidos na AldeiaKokraimoro-PA, margem direita do
rio Xingu, entre os dias 03 a 05 de junho de 2013.
Comunicamos ao governo brasileiro e a sociedade que repudiamos
os planos do GovernoFederal e do Congresso para diminuir os
nossos direitos tradicionais e direitos sobre nossasterras e seus
recursos naturais.
A PEC 215 que transfere do poder executivo ao Congresso
Nacional a aprovação dedemarcação e raticação das Terras
Indígenas já homologadas é uma afronta aos nossosdireitos. Dizem
que as referidas demarcações seriam participativas e democráticas,
massabemos que esta proposta é uma estratégia clara da bancada
ruralista para não demarcar asTerras Indígenas e diminuir os
tamanhos das nossas terras já demarcadas e homologadas.
15
O manifesto foi redigido depois de uma longa reunião entre as etnias
que se autodenominam Mbêngôkre. Os Mtyktire partiram da aldeia
Piaraçú, local onde se concentraram para o evento. Durante uma semana,
os guerreiros chegavam de suas respectivas aldeias na T. I. Capoto/Jarina e
eram preparados pelas mulheres com pinturas corporais. Colocaram seus
respectivos nekretx, símbolos culturais, adornos, que os identicam como
pertencentes a uma matricasa e, de ônibus, partiram sérios e compenetrados
em meio ao lamento daqueles que caram. Nesse contexto, a identidade
cultural do grupo foi usada como uma fonte de legitimação, uma vez que
o objetivo era unir em força e número aqueles que se autodenominam
Mbêngôkre, formando uma comunidade étnica com fronteiras sociais
bem delimitadas e agindo como uma organização política para resistência e
protesto contra o Estado. Sua própria cultura foi usada como uma bandeira
por direitos. Categorizam a si mesmo pela autodenominação e assumiram
também a denominação externa e pejorativa pela qual são conhecidos,
Kayapó. Com isso estabelecem uma clara distinção entre o grupo e o outro,
uma “identidade contrastiva” como arma Cardoso de Oliveira (1976), a
15
Manifesto do Povo Kayapó – Aldeia Kokraimoro, 05 de junho de 2013. Disponível em http://raoni.com/
atualidade-736.php. Acesso em: 05 ago. 2017.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
242 |
armação do nós diante dos outros, onde o outro é negado pela armação
do “nós”. Para estabelecer um status étnico dicotomizado, aceitam assumir
uma identidade que eles mesmos não usam em seu cotidiano. Assim o
fazem para reforçar a diferença, o que o outro pensa e conhece sobre ele.
Para isso, utilizam símbolos culturais que num contexto de demandas
políticas tornam-se diacríticos, assim como valores fundamentais, critérios
de julgar e ser julgado em seus próprios termos. Essa realidade construída
por representações subjetivas e fronteiras simbólicas, uma linguagem
com o outro de maneira relacional, ocorre em um contexto especíco de
demandas por direitos, neste caso, pela manutenção de direitos.
conclusão
Em processos de mobilização social os Kayapó Mtyktire evidenciam
sua agência, posicionando-se em disputas que visam conservar os direitos
adquiridos. Se nas décadas de 70 e 80 o movimento social indígena
lutava pelo reconhecimento de seus direitos, hoje luta para mantê-los,
especialmente em relação à posse e usufruto do território.
Através de uma apresentação esquemática, mostramos que a relação
entre cultura e etnicidade não é de causa e efeito, mas de implicação, visto
que ela é gerada pelas experiências das pessoas em um uxo contínuo que,
em processos armativos identitários, reduz-se a um número menor de
traços que se tornam diacríticos. Isso ocorre porque os símbolos culturais
são usados para armar ou dicotomizar a diferença manifesta nas fronteiras
dos grupos sociais, nos critérios de pertencimento. Essas fronteiras, como
diz Barth (2011), permanecem razoavelmente xas apesar do uxo de
pessoas que as atravessam. A identidade étnica passa, então, a ser denida a
partir da organização social do grupo e não por critérios culturais.
Em contextos de demandas, a identidade étnica é mobilizada a
partir de símbolos diacríticos por pessoas e/ou grupos que a utilizam como
bandeira para armar a sua autenticidade, a sua diferença. O que ocorre,
arma Sahlins (1997), é uma autoconsciência cultural que é usada em
reivindicações de direitos. Isso reete em como a etnicidade é pensada,
tanto pela antropologia como por instrumentos legais, que reconhecem o
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 243
critério de autodeterminação, de adscrição como o correto. Isso signica que
é indígena quem se considera e é considerado pelo outro como indígena.
Em relação à PEC 215, uma tentativa escabrosa de cercear direitos, os
indígenas de todo o Brasil assumiram uma identidade contrastiva em
relação ao Estado e armaram-se enquanto uma categoria única, visto
que são reconhecidos pelo “outro” de maneira “genérica” e singular. A
experiência de desrespeito pelos seus direitos gerou um sentimento coletivo
de injustiça e potencializou a luta indígena. Nesse processo, a cultura dos
grupos ou o que o outro pensa ser essa cultura foi (é) usada, nada mais
legítimo, como símbolo de contraste e de armação valorativa.
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| 245
16
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA
PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A AGÊNCIA
INTERNACIONAL UN ENABLE
Lucas Emanuel Ricci Dantas
1
introdução
A questão da proteção internacional da pessoa com deciência, surge
no país com a raticação da Convenção Internacional de direitos da pessoa
com deciência, não menosprezando os documentos anteriores de ordem
internacional, como por exemplo, a Declaração da OIT 171/75. Todavia
é de se considerar que o marco inaugural de proteção internacional é a
convenção supracitada, pois trouxe inúmeros direitos e se convolou na
Mestre em Teoria do Estado e Direito pelo Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha - UNIVEM
(2015), Advogado formado pelo Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha - UNIVEM (2013), Pós
Graduando em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (2017-2018). Doutorando em Direito
pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (2018 - 2022). Doutorando em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual Paulista - UNESP (2018 -2022). Pesquisador na área de Direitos Humanos com
enfase em inclusão da pessoa com deciência, políticas públicas e educação para direitos humanos. Membro da
comissão de Direitos Humanos da 31ª subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil (2013 - 2015). Presidente
da Comissão da Pessoa com Deciência da 31ª subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil (2016 - 2018),
Professor assistente no VillaVerde cursos para cartórios (2017 – 2018). Autor do livro Políticas Públicas e
Direito: A Inclusão da Pessoa com Deciência, Editora Juruá (2016). Na área do Direito atua especicamente
em: Direitos Humanos, Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual Civil, Tutela dos Interesses
Difusos e Coletivos e Filosoa do Direito. Tem experiência em pesquisa acadêmica, atuando também como
palestrante motivacional. Email para contato: lucas@lucasdantas.com
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-099-0.p245-260
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
246 |
edição do estatuto da Pessoa com Deciência no ordenamento nacional
(Lei 13146/15).
A ONU, portanto, por meio da Agência UN Unable exerce controle
externo nos países que raticaram a Convenção Internacional de 2006,
sugerindo recomendações e dando bases para inclusão social das pessoas
com deciência no cenário nacional e internacional.
Com foco na preservação da autonomia e capacitação da deciência,
busca-se com o presente texto, trabalhar questões de desinstitucionalização
e aumento da capacidade da pessoa com deciência no cenário brasileiro,
com vistas a uma efetividade da cidadania e cumprimento dos papeis
constitucionais assumidos pelo Estado.
1. A questão dA deficiênciA no cenário nAcionAl e internAcionAl
Historicamente a pessoa com deciência tem vivido em uma
situação de aparente marginalidade social, devido aos conceitos impostos
pela lei e pela sociedade sobre o que é deciência. Deve se sustentar que
como preconiza Santana (2015, p. 17) “pessoas com deciência já foram
caracterizadas como, ‘crianças idiotas, imbecis, cretinas, inaptas e anormais
(Dec/Lei 3180l/41), mais tarde, chamaram-lhes grandes ineducáveis ou
anormais educáveis (Dec/Lei 53401/45)”. Dentre todas enumerações
trazidas no conceito de deciência, vislumbra-se que a questão deciência
sempre foi tratada como anormalidade na sociedade brasileira, inclusive
perante a legislação nacional.
Hodiernamente, pode se conceber que a questão da deciência está
intrinsicamente ligada a um contexto social, formado por uma cultura de
exclusão da pessoa com deciência. Por isso as terminologias legais, apenas
são reexos da cultura que foi construída no imaginário da sociedade. “No
âmbito da cultura, é importante analisar de que forma o imaginário da
sociedade ocidental, por meio de seus mitos, foi construindo, ao longo dos
séculos, a imagem do deciente físico.” (GARCIA, 2008, p. 10).
Começou se a conceber o deciente, como pessoa não passível de
inclusão, devendo então serem estas afastadas do convívio social, por uma
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 247
questão de associação da deciência, como um fator preponderantemente
negativo. A terminologia legal da época, apenas é reexo da cultura social
encontrada no Brasil, “A deciência física foi histórica e simbolicamente
considerada fator de exclusão social, e as narrativas míticas contam sobre
a rejeição, a punição e a exclusão dos decientes em consequência de sua
aparência física.” (GARCIA, 2008, p. 10-11).
Não obstante todas estas terminologias, o conceito de deciência
foi subdividido em conceito biomédico e conceito social, este
inaugurado pela Convenção Internacional de Direito das Pessoas com
Deciência, promulgada pela ONU e raticada pelo Brasil no Decreto
legislativo 186/08.
Aquele é um conceito que reduz a deciência a sua patologia e procura
a cura como medida de inserção social, reetindo a inadaptação, do qual
denunciava a historia social. Leite (2012, p. 46) explica “Modelo médico
é aquele que considera a deciência como um problema do individuo,
diretamente causado por uma doença, trauma ou condição de saúde, que
requer cuidados médicos prestados de forma de tratamento individual por
prossionais”.
O modelo médico situa a deciência como algo de responsabilidade
do individuo deciente, obstaculizando a sua inserção social devido a uma
aparente anormalidade. Silva (2016, p. 184) explica tal entendimento:
Sob o paradigma biomédico, a deciência é considerada uma
patologia estritamente ligada às alterações das funções e/ou das
estruturas do corpo e seu desenvolvimento ou instalação independe
das relações do individuo com a sociedade, com a cultura e com as
outras pessoas.
Já o modelo social, inaugura uma nova possibilidade de vida, aonde a
deciência é vista como uma forma de vida, e os impedimentos sensoriais,
motores e intelectuais são apenas expressões corporais desta forma a que
nos referimos (DINIZ, 2009).
Arma a referida autora ainda Diniz (2009, p. 66) “O conceito de
deciência, segundo a Convenção não deve ignorar os impedimentos e
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
248 |
suas expressões, mas não se resume a sua catalogação”. A ideia de novas
pessoas, novos sujeitos de direito, que não são mais considerados imbecis e
sim possuidores de uma dignidade inerente aos demais usuários da mesma
sociedade, demandando uma nova ótica estatal na implementação de
políticas públicas que garantam a efetividade da cidadania, pois, a pessoa
com deciência encarada sobre a ótica da Convenção e do Estatuto recém-
aprovado é sem sombra de duvida um cidadão.
2. A AgênciA un enABle e suAs recomendAções PArA o PAís
A questão trabalhada na legislação é recomendação das normas
internacionais promulgadas pela ONU, e pela agência especializada que
integra o órgão internacional, UN ENABLE, que tem como missão
promover os direitos e o avanço das pessoas com deciência dentro de um
amplo mandato previsto pelo Programa de Ação Mundial (1982), Regras
Padrão (1994) e a Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deciência
(2006)” (ONU, 2017).
O reconhecimento pela agência internacional da pessoa com
deciência demanda um tema crescente, que é a universalidade dos direitos
humanos, garantindo a extensão da validade do direito internacional aos
países que assinam o protocolo facultativo de seus documentos. Nessa
toada entende-se que o Sistema Jurídico Brasileiro avançou na garantia
da proteção dos direitos da pessoa com deciência, pois incorporou em
seu ordenamento jurídico a Convenção da ONU com força de emenda
constitucional.
O paradigma acentuado pela recepção do Tratado Internacional
com força de Direito Constitucional, por meio do artigo 5º § 2º e 3º
da Constituição Federal, demonstra que o Estado Brasileiro adotou
uma concepção estatalista do Direito Internacional, que nos dizeres
de Hernandez (2011, p. 63) garantem a maior efetividade do Direito
Internacional:
De modo geral, o estatalismo condiciona a efetividade de arranjos de
cooperação internacional à aceitação do Estado. Assim, para os estatalistas,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 249
as normas internacionais de direitos humanos só adquiririam força
vinculante ao adentrarem a constituição nacional, na forma de direitos
fundamentais.
A recepção dada pelo Estado Nacional ao Direito Internacional,
demanda atitudes proativas do Estado em cumprir o pacto assumido
internacionalmente, sob pena de violar compromissos internacionais de
desenvolvimento. A cidadania das pessoas com deciência é portanto,
atividade estatal de máxima importância, pois perante o ordenamento
internacional e nacional, se obrigou o estado Brasileiro a garantir a máxima
efetividade e participação democrática dessa população, não por menos,
erigiu o Estado Brasileiro, por meio dos votos de seus parlamentares o
Tratado Internacional a nível constitucional, constituindo ampla gama de
direitos fundamentais da pessoa com deciência.
“Cidadania e Direitos Fundamentais passam a constituir o ‘Núcleo
duro’ do chamado Estado Social e Democrático de Direito, trazendo as
políticas públicas para o centro do debate político e jurídico” (SMÃNIO,
2013, p. 4). Dentro deste debate jurídico político que comenta o professor
citado surge a questão da implementação da cidadania por meio de políticas
públicas e o custo dessa cidadania para o estado executor.
Denota-se que para se trabalhar políticas públicas, deve se conceituar
direitos fundamentais dentro do ordenamento jurídico nacional, dada
as amplitudes do tema restringir se a concepção e o debate travado por
Dimoulis (2009, p. 120) que sustenta:
Assim, não é possível concordar com uma denição ampla adotada
por parte da doutrina, segundo a qual a fundamentalidade de
certos direitos não dependeria da força formal constitucional
e sim de seu conteúdo. Com efeito, não pode ser considerado
como fundamental um direito criado pelo legislador ordinário,
mas passível de revogação na primeira mudança da maioria
parlamentar, por mais relevante e “fundamental” que seja seu
conteúdo. Os direitos fundamentais são denidos com base em sua
força formal, decorrente da maneira de sua positivação, deixando
de lado considerações sobre o maior ou menor valor moral de
certos direitos.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
250 |
Segundo o autor a distinção primordial que se faz entre direitos
fundamentais e não fundamentais é a positivação na Carta política do
Estado, pois bem os direitos fundamentais, constitucionais por excelência
formal demandam, uma atitude governamental para materializar tais
direitos. Nesse sentido Bucci sustenta “A demanda pelo Estado, nos países
em desenvolvimento, é mais especica, reclamando um governo coeso e em
condições de articular a ação requerida para a modicação das estruturas
que reproduzem o atraso e a desigualdade” (BUCCI, 2013, p. 33).
O caráter fundamental conferido aos Direitos da Convenção
Internacional da Pessoa com Deciência denotou alterações legislativas
profundas no Estado Brasileiro, como por exemplo, a edição da Lei
13146/15 (Estatuto da Pessoa com Deciência). Todavia, verica-se que
o Brasil se submete a um sistema inovador de proteção de direitos, que
garante a reclamação internacional, sem a necessidade de postulação
jurídica por prossional especializado, qualquer cidadão brasileiro que se
sentir desrespeitado pode peticionar a ONU e esta pode fazer vericação
in loco. Nesse sentido explica Sales (2012, p. 10):
Finalmente, o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deciência instituiu um segundo mecanismo
de monitoramento relativo à observância, pelos Estados-Partes,
das disposições contidas na Convenção. Trata-se da previsão de
recebimento de denúncias apresentadas por pessoas ou grupos de
pessoas em seu próprio nome, ou de terceiros em nome deles, acerca
dos direitos tutelados pela Convenção. Conforme a gravidade e a
conabilidade das informações relatadas, o Comitê poderá realizar
investigações in loco.
O sistema de proteção dos direitos desta população tem caráter
hibrido, pois pode ser reclamado perante órgãos nacionais e também
perante a Comissão Internacional de Direitos da Pessoa com Deciência,
apesar da não imposição de sanções diretas ao Estado Brasileiro pela ONU,
a violação da Convenção gerará recomendações que podem ser vistas de
forma negativa pelos outros Estados. O Brasil assumiu para si a máxima
tarefa de incluir as pessoas com deciência de forma total, não podendo
mais deixar de levar em conta em sua agenda política a questão da pessoa
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 251
com deciência. É nesse sentido que o Comitê Internacional já se mostrava
preocupado, entre vários aspectos, com a diculdade de o Estado cumprir
todas as obrigações assumidas a luz da Convenção por meio do Estatuto
das Pessoas com Deciência.
Deve-se entender que quando a Constituição postula o direito
fundamental ao esporte, o Estado, como gestor dos direitos deve propiciar
políticas públicas que favoreçam ao cidadão indistintamente o exercício
de seu direito ao esporte. A não formulação de políticas que levem
a efetivação dos direitos fundamentais demonstra que o Estado cai em
uma incoerência entre o jurídico e o político, denotando especicamente
a falta de governabilidade para atuar perante as determinações jurídicas
constitucionais. Ainda segundo Bucci (2013, p. 34):
Os modos de exercício do poder se transformaram, em nome da
proteção dos direitos e aos valores da cidadania, da democracia, e
da sustentabilidade ambiental o que passou a reclamar a integração
das dimensões política e jurídica no interior do aparelho de Estado,
combinando as esferas da Administração Pública e do governo; a
política implicada com a técnica, a gestão publica institucionalizada
e regrada pelo direito. A face política do governo vai se revestindo
cada vez mais de uma tessitura jurídica.
No amago do Direito Constitucional, Surgem então as políticas
públicas que dentre as suas denições pode se concordar com Monica
política pública é expressão polissêmica que compreende todos os
instrumentos de ação de governo” (MAIA, 2007, p. 170). Lopes (2011)
vai sustentar que essas ações envolvem elaboração de leis programáticas,
projetos de execução, leis que denem planos diretores, entre outros. Todo
esse conjunto é a base que sustenta a política pública, na qual os direitos
fundamentais da pessoa com deciência estão centrados.
A inexistência de políticas públicas conduz a pessoa com deciência
a uma sub cidadania, que leva a uma cidadania de segunda classe ou
terceira classe, na cidadania de segunda classe são localizados os cidadãos
simples que recebem de 2 a 20 salários mínimos e reconhecem como
lei apenas o Código Civil e o Código Penal (CARVALHO, 2002). A
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
252 |
cidadania de terceira classe pode ser reconhecida como sustenta Carvalho
(2002, p. 216):
São a grande população marginal das grandes cidades, trabalhadores
urbanos e rurais, sem carteira assinada, posseiros, empregadas
domésticas, biscateiros, camelôs, menores abandonados, mendigos.
São quase invariavelmente pardos ou negros, analfabetos, ou com
educação incompleta. Esses “elementos” são parte da comunidade
política nacional apenas nominalmente. Na pratica, ignoram seus
direitos ou os tem sistematicamente desrespeitados por outros
cidadãos, pelo governo, pela policia.
Naturalmente, pode ser enquadrada, a pessoa com deciência neste
rol, quando esta ca desprovida de políticas públicas que conduzem a
participação democrática. Esses decientes que não tem acesso aos seus
direitos sociais, apesar do conceito inaugurado pela nova legislação,
continuam sendo “idiotas” na expressão grega da palavra (idion), ou seja,
desprovidos de qualquer consciência política (ARENDT, 2007).
O novo conceito dado pela organização internacional, vai na
contramão dessa sub cidadania, garantindo a formação de uma nova
cultura, com características indenitárias, buscando reparar os danos que
a falta de reconhecimento provocou as pessoas com deciência. “Reparar
esse dano signica reivindicar “reconhecimento”. Isso, por sua vez, requer
que os membros do grupo se unam a m de remodelar sua identidade
coletiva, por meio da criação de uma cultura própria auto-armativas.
(FRASER, 2007, p. 106).
A grande diculdade de se criar uma nova cultura, é que muitas
vezes esta pode ser “reicada”, negando a complexidade do ser humano,
substituindo por uma consciência coletiva de idoneidade moral que não
permita o efetivo reconhecimento social. (FRASER, 2007). A formulação
de políticas públicas que visam a integração com deciência e pessoas sem
deciência pode ser uma saída à preservação da singularidade de cada
individuo.
Os danos gerados pelo não reconhecimento e condução de deciente
a uma situação de sub cidadão, geraram e geram problemas até os dias atuais,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 253
haja vista existirem cidadãos desprovidos de participação democrática,
pois estão institucionalizados, sofrendo violações sistemáticas de sua
cidadania, bem como de seus direitos. A ONU oferece por meio de sua
Corte Internacional proteção jurídica, impondo sanções e recomendações
a estados que violarem os seus tratados internacionais.
3. o controle externo exercido PelA onu e suA AgênciA
esPeciAlizAdAAcountABility
A questão da cidadania da pessoa com deciência ganha maior
relevo, quando é tutelada por um ordenamento internacional do porte da
agência reguladora UN Enable. A bem da verdade, a ineciência do Brasil
em realizar políticas públicas de inclusão, demanda a real necessidade de se
exercer um controle externo sobre os atos governamentais, a proposta do
Acountability.
As diculdades de comunicação e de intelectualidade de algumas
pessoas com deciência geram uma ineciência do controle externo
promovido pela pratica de eleições. Levando em consideração que os
decientes institucionalizados não participam da vida política e da vida
ativa do Estado, mostra-se necessário que um órgão extragovernamental
promova o controle das demandas legislativas assumidas. A UN ENABLE,
junto com toda a estrutura da ONU, tem promovido o controle externo
em algumas questões da pessoa com deciência no cenário nacional,
praticando a acountability, que como leciona Campos tem o seu signicado
assim exposto:
Dai decorreu que a acountability começou a ser entendida
como questão de Democracia. Quanto mais avançado o
estagio democrático, maior é o interesse pela acountability. E a
acountabilitygovernamental tende a acompanhar o avanço dos
valores democráticos, tais como igualdade, dignidade humana,
participação e representatividade (CAMPOS, 1990, p. 33).
Recentemente a ONU exerceu acountability, quando avaliou perante
sua Corte Internacional uma denuncia de tortura em hospital psiquiátrico,
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
254 |
demonstrado o caráter hibrido da legislação, e aumentando as instâncias
judiciais que podem ser utilizadas para eventuais condenações em casos
que envolvam pessoas com deciência.
O Estado Brasileiro sofreu condenação perante a Corte internacional,
no caso Damião Ximenes Lopes, deciente intelectual que faleceu em
decorrência de maus tratos na casa de repouso Guararapes em Sobral/CE.
O caso foi registrado sob o nº 12.237 na Corte Interamericana de Direitos
Humanos, o Estado Sofreu várias condenações, inclusive pagamento de
indenização á família de Damião (PRADO FILHO, 2012).
Desde tal condenação até os dias atuais, o Estado Brasileiro não
promoveu uma efetiva política publica com o to de desinstitucionalizar
decientes, mantendo ainda casas asilares que violam certos direitos da
Convenção atual, como por exemplo o artigo 3º que garante entre outros
princípios o da plena e efetiva participação na sociedade (alínea c).
O Estado do Rio de Janeiro, tem conseguido adotar uma política
pública que vai de encontro com a recomendação internacional, que é
a moradia assistida parte integrante do Programa Integrando daquele
governo estadual, que pode ser denida como ” é uma residência habitada
por pessoas portadoras de deciências ou transtornos mentais, onde,
em geral, vivem de quatro a cinco moradores. Eles recebem cuidados de
enfermeiros, psicólogos, terapeutas e cuidadores que se revezam no local
24 horas” (MAIA, 2007, p. 1). Este projeto visa integrar pessoas que antes
estavam ausentes do convívio social.
Nessas moradias o gerenciamento domiciliar é feito por prossionais
do Estado e não pelos moradores, assim pondera a autora (MAIA,
2007, p. 1) “Estes gerenciam a casa monitorando as rotinas diárias dos
moradores, cuidados pessoais e tarefas domésticas”. O Estado novamente
se responsabiliza pela vida do individuo com deciência, contudo, da a
este a possibilidade convívio, possibilitando o exercício democrático com
autonomia, mesmo que nos limites de sua patologia.
Deve-se ponderar que a impossibilidade democrática da pessoa com
deciência leva a mesma a impossibilidade de participar do mundo da
vida, pois retira-lhes o agir comunicativo, para Habermas “O primeiro
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 255
passo reconstrutivo da integração social nos leva ao conceito mundo da
vida” (HABERMAS, 2011, p. 3). Na visão de Habermas o mundo da
vida, ou seja, a sociedade só pode ser viabilizada pelo agir comunicativo,
aonde num intenso processo dialéticos os cidadãos podem e devem expor
a sua opinião sobre todas as coisas. A decisão e política e jurídica só pode
ser valida se houver um consenso entre os cidadãos, e por isso Habermas
(2003, p. 156) arma:
Uma vez que os sujeitos que agem comunicativamente se dispõem
a ligar a coordenação de seus planos de ação a um consentimento
apoiado nas tomadas de posição reciprocas em relação a pretensões
de validade, e no reconhecimento dessas pretensões, somente
contam os argumentos que podem ser aceitos em comum pelos
partidos participantes. São respectivamente os mesmos argumentos
que tem uma força racional motivadora.
A criação do mundo da vida, o lugar onde a competência
comunicativa seja desenvolvida com vistas a propiciação da participação
democrática, só pode ser criado pelo Estado. Nesse sentido, as moradias
assistidas são espaços de investimento público, onde pode se propiciar a
autonomia e capacidade de escolha das pessoas com deciência.
Não que se queira armar que esta é a única política pública capaz de
promover a integração social de pessoas com deciência institucionalizadas,
mas esta é uma alternativa possível de ser implementada, com vistas a
experiência internacional proveitosa, como no caso de Holanda e Bélgica.
Na Bélgica a lei do serviço social atribuiu em 2015 a competência
municipal da moradia assistida, como explica Kwant (2016, p. 1) “A lei
do serviço social (Wet Maatfchaptelijk Ontersteuninj) foi implementada
em janeiro de 2015, dando à prefeitura de cada cidade a organização
e direcionamento da moradia assistida.”. Não é novidade nos países
desenvolvidos a criação dessas moradias, dando plena autonomia e
possibilidade de capacitação aos decientes.
Os países que tem uma agenda de desenvolvimento progressista
cuidam e provisionam os seus cidadãos, investindo e fomentando suas
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso e Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
256 |
capacidades. Observa-se tanto Holanda quanto Bélgica fornece a igualdade
de oportunidades aos seus cidadãos decientes, quando preservam a sua
autonomia. A preservação da cidadania garante que essas pessoas com
deciência, antes relegadas ou institucionalizadas, hoje participem do
ambiente social, podendo utilizar de equipamentos democráticos e tendo
igualdade de status face aos demais pares da sociedade.
Sobre referida igualdade, deve se entender que os bens públicos estão
disponíveis a toda a sociedade, bem como as pessoas com deciência que
são provisionadas pelo Estado, nas moradias assistidas, podendo ter acesso
indistinto aos transportes, ao tratamento de saúde, tanto quanto os demais
beneciários sem deciência, “É o caso principalmente, dos transportes
públicos, da educação e de todos os equipamentos públicos gratuitos
porque o custo deles é repartido entre todos os contribuintes” (DUBET,
2015, p. 25).
Partindo da premissa que o Estado é a própria sociedade, a hora
que o governo lastreia uma política pública de integração ao serviço social
como na Bélgica, este estende a responsabilidade para toda a sociedade,
dilatando, ou garantindo máxima efetividade ao contrato social. Observa-
se que como no exemplo internacional (Holanda e Bélgica), o custo da
moradia assistida é previsto no seguro social, inclusive o amparo de uma
pensão a pessoa com deciência. Neste sentido leciona Kwant (2016, p. 1):
Na Holanda e Bélgica, essa forma de moradia é bastante comum
e popular há décadas. Em média, existe uma ou mais moradias
por cidade, atendendo adultos jovens e mais velhos no espectro
do autismo. As instituições são geralmente nanciadas pelas
respectivas prefeituras, pelo seguro de saúde (obrigatório para
todos os cidadãos) ou pelo governo, em forma do PGB – Het
Persoonsnsgebonden Budget – um orçamento (pensão) oferecido
a todo cidadão holandês que: seja ou esteja doente; autistas;
portadores de transtornos psicossociais ou do comportamento;
decientes físicos e/ou mentais.
A preocupação com o cidadão deciente, nas sociedades desenvolvidas,
mostra se de acordo com os objetivos da Agência Internacional UnEnable,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
| 257
que visa controlar a implantação da inclusão das pessoas com deciência
nos países pertencentes a ONU.
A analise de políticas públicas de inclusão faz com que os olhares
nacionais estejam voltados, para países que conseguiram desenvolver
e implementar a autonomia e a capacidade democrática da pessoa com
deciência na sociedade. No caso do Brasil a responsabilidade estatal se
intensica, em primeira hipótese por ter o país assinado dentre outras
convenções a Convenção Internacional das Pessoas com Deciência e,
em segunda hipótese por ter adotado uma concepção estatalista, quando
incorpora o documento internacional em seu ordenamento jurídico
nacional.
conclusão
Com este estudo, tentamos evidenciar a problemática da cidadania
da pessoa com deciência no Brasil e a atuação da ONU, bem como de
sua agência especializada em scalizar, apontar e condenar a inefetividade
da implementação de direitos das pessoas com deciência.
Notadamente, se justicou o caráter hibrido da legislação
internacional da pessoa com deciência, sendo a ONU, por meio de
sua Corte Internacional, uma nova instância jurídica em que possam ser
reclamadas violações dos direitos das pessoas com deciência assumidos
pelo Brasil.
Justicou se então o papel da agência UN ENABLE, como agência
que exerce controle externo por meio da acountability ao Governo
Brasileiro, haja vista que os decientes institucionalizados não têm como
exercer controle sobre as políticas públicas para eles realizadas.
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tirAgem
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imPressão e AcABAmento
2021
soBre o livro
Novos Direitos na
Contemporaneidade
vol. I
Novos Direitos na Contemporaneidade vol. I
Laércio Fidelis Dias é natu-
ral de São Paulo/SP, Doutor
em Antropologia Social (USP),
Professor na Universidade
Estadual Paulista (Unes-
p/Marília), no PPGCA-Unes-
p/Sorocaba e Diretor do
Departamento de Proteção ao
Patrimônio Afro-Brasileiro
(DPA), Fundação Cultural
Palmares (FCP), Ministério do
Turismo (MTur).
Ricardo Pinha Alonso é
Doutor em Direito do Estado
(PUC/SP), Professor Titular
nas Faculdades Integradas de
Ourinhos, e, no Programa de
Pós-graduação em Direito,
mestrado e doutorado, na
Universidade de Marília (Uni-
mar) e Procurador do Estado
de São Paulo.
Ricardo Bispo Razaboni
Junior é Mestre em Teoria do
Direito e do Estado (Univem-
-Marília/SP), doutorando em
Ciências Jurídicas (UENP),
Professor de Direito Constitu-
cional na Anhanguera
(Assis/SP), da Pós-gradua-
ção em Direito Constitucional
da Faculdade ProMinas, e
coordenador do Curso de
Direito da Anhanguera
(Assis/SP).
Ao percorrer os 16 capítulos que
compõem Novos Direitos na
Contemporaneidade, vol. I, o
leitor deparar-se-á com um
conjunto de discussões sobre
direitos, notadamente sobre os
direitos fundamentais previstos
na Carta Magna de 1988, cuja
unidade se encontra no diálogo
dos sistemas jurídicos com siste-
mas culturais, morais, a éticos,
bioéticos, médicos, políticos etc,
tendo como fim a promoção, a
garantia e o equilíbrio da justiça
distributiva, comutativa e
recíproca. Em uma época de
inegáveis avanços científicos,
tecnológicos, de conexões em
tempo real aceleradas, de
anseios por representação, direi-
to e justiça, que emergem de
identidades que pululam, a
mediação dos conflitos mobiliza
sistemas de pensamento, simbo-
lismo, que tornam mister
acionar o diálogo entre o jurídico
e a cultura, em suas diversas
facetas. os temas abordados nos
capítulos da coletânea mostram
complexas questões: uso e explo-
ração da natureza; os limites do
simbólico; a transformação da
autoridade em autoritarismo;
combate à corrupção, tema
candente no Brasil atual (no
ranking internacional da corrup-
ção, 2020, o pais ocupa a 94º
colocação entre 180 países,
segundo a Transparência Inter-
nacional); contexto da saúde
pública na lida com a loucura;
educação; direitos de minorias;
entre outros temas igualmente
complexos e presentes no imagi-
nário e vocabulário do homem
médio brasileiro.
Originada a partir do “Seminário de Direitos
Humanos e Novos Direitos na Contemporanei-
dade”, promovido pelo Grupo de Estudos
“PACTO – Paz, Cultura e Tolerância”, realizado
nas dependências da Faculdade de Filosofia e
Ciências da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), campus de Marília, na cidade de Marí-
lia/SP, em 04 de maio de 2018, a presente obra
tem por objetivo publicar trabalhos de natureza
acadêmico-científica sobre a temática fundamen-
tal dos direitos humanos e de direitos emergentes
nesta época contemporânea. Agrega entre os
autores que assinam os capítulos, pesquisadores
de diferentes instituições de ensino superior, de
vários níveis acadêmicos e de variadas áreas do
conhecimento humanístico, a fim de que sejam
amplas a reflexão e a análise de tais temas de
reconhecida importância nacional e internacio-
nal, notadamente com relação aos direitos huma-
nos. A premissa que atravessa os artigos é a de
que a sociedade contemporânea, no Brasil e
mundo afora, sofre inúmeras mudanças de larga
envergadura, nos costumes e valores, que reper-
cutem no tema dos direitos, e, por isso, deman-
dam consideração e investigação. Nesse sentido,
Novos Direitos na Contemporaneidade, vol. I
revela a universidade cumprindo seu papel de
estimular a reflexão e a discussão de temas com
dupla relevância: acadêmico-científica e para a
sociedade em geral. Sem dúvida uma leitura rica,
instigadora. Quem a percorrer com a atenção
devida colherá frutos saborosos e valiosos.
Laércio Fidelis Dias, Ricardo Pinha Alonso
Ricardo Bispo Razaboni Junior (Org.)
Laércio Fidelis Dias
Ricardo Pinha Alonso
Ricardo Bispo Razaboni Junior
(Organizadores)
ISBN 978-65-5954-098-3
C
M
Y
CM
MY
CY
CMY
K