FÁBIO METZGER
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EGITO E TURQUIA
NO SÉCULO XXI:
DAS ILUSÕES DEMOCRÁTICAS
ÀS AUTOCRACIAS REAIS
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Malia/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
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Vice-Diretor
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Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2018, Faculdade de Filosoa e Ciências
Metzger, Fábio.
M596e Egito e Turquia no século XXI : das ilusões democráticas às autocracias reais
/ Fábio Metzger. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2018.
280 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-85-7249-014-6 (Impresso)
ISBN 978-85-7249-013-9 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-013-9
1. Oriente Médio. 2. Egito – Política e governo. 3. Turquia – Política e
governo. 4. Democracia. 5. Ditadura. 6. Liberalismo. I. Título.
CDD 320.956
S
Apresentação ------------------------------------------------------------------- 9
Considerações Iniciais --------------------------------------------------------- 17
1 A questão dA soberAniA --------------------------------------------------- 23
1.1 As Formas de Governo ---------------------------------------------------- 27
Estado de direito e liberalismo ----------------------------------------- 28
1.2 Liberalismo e democracia: os irmãos inimigos ------------------------ 31
1.3 Liberalismo, democracia e soberania popular ------------------------- 34
Aspectos práticos e normativos para a transição da democracia
liberal ---------------------------------------------------------------------- 39
1.4 Liberalismos e religiões --------------------------------------------------- 45
2 evolução políticA de tempos recentes (2008-2011) ---------------- 49
2.1 Liberalismo e democracia aplicados aos casos Turco e Egípcio ------ 55
2.2 Democracia Liberal e Islã ------------------------------------------------- 57
2.3 Democracia, Liberalismo e Islã: e hipótese de um
“Governo Misto --------------------------------------------------------- 63
2.4 Antonio Gramsci e o conceito de Revolução Passiva ----------------- 70
3 recorte do oriente médio ---------------------------------------------- 79
3.1 Qual Oriente Médio? ----------------------------------------------------- 84
O Oriente Médio árabe ------------------------------------------------- 90
O Oriente Médio não árabe -------------------------------------------- 93
3.2 Denições do islã ---------------------------------------------------------- 95
O islã liberal -------------------------------------------------------------- 96
O islã tradicional --------------------------------------------------------- 99
O islã político ------------------------------------------------------------ 100
Da fundação do movimento salasta ao início do islã político ----- 101
Soberania popular e soberania divina no islã ------------------------- 110
3.3 Democracia, liberalismo e islã: um “Governo Misto”? --------------- 112
4 A turquiA modernA -------------------------------------------------------- 113
4.1 O projeto político turco: a democracia conservadora do AK
(Justiça e Desenvolvimento) -------------------------------------------- 117
O primeiro ciclo de governo do AK (2002-2008) ------------------ 120
As intervenções do primeiro ciclo de governo do AK
entre 2007 e 2008 ------------------------------------------------------- 123
4.2 Pontos de divergência entre Estado e Governo ------------------------ 124
4.3 O Segundo ciclo e a mudança do eixo da política externa de
Ancara (2008-2013) ------------------------------------------------------ 127
Aproximação com os países árabes após as revoltas de 2011 ------- 127
Aproximação com a Rússia na questão dos gasodutos -------------- 128
Acordo petrolífero com o Irã: aproximação e afastamento --------- 129
Afastamento e reaproximação de Israel ------------------------------- 130
Afastamento da União Europeia --------------------------------------- 132
O engajamento no conito da Síria: risco ou oportunidade ------- 134
A nova política das “portas de passagem ----------------------------- 138
4.4 A mudança do eixo da política interna de Ancara: a eterna
questão Estado-Governo ------------------------------------------------ 142
4.5 A Permanência prolongada do AK e de Erdogan no poder: do
enfraquecimento da democracia ao golpe de 2016 ------------------ 149
5 o egito moderno ---------------------------------------------------------- 157
5.1 A acumulação de civilizações e a formação híbrida
do Estado ----------------------------------------------------------------- 159
5.2 Os governos tutelados: da monarquia nacionalista ao nasserismo --- 161
A Irmandade Muçulmana ---------------------------------------------- 165
A derrubada da monarquia --------------------------------------------- 168
5.3 De Anwar Sadat a Hosni Mubarak ------------------------------------- 172
5.4 A Crise no mundo árabe e os outros movimentos Políticos --------- 179
5.5 As forças armadas e de segurança ---------------------------------------- 182
5.6 Revolução e contrarrevolução no Egito -------------------------------- 184
Sobre as eleições e a sociedade egípcias ------------------------------- 193
Qual revolução? ---------------------------------------------------------- 196
5.7 A interpretação dos números das eleições do Egito ------------------- 200
As eleições para o poder legislativo ------------------------------------ 201
As eleições para a Presidência da República -------------------------- 202
A Assembleia Constituinte e o referendo pós-constitucional ------ 203
5.8 Presidente Morsi: autonomia ou subordinação? ----------------------- 204
O hibridismo nas sociedades civil e política do Egito -------------- 210
O presidente Morsi e a disputa pela constituição ------------------- 212
5.9 O Golpe Militar do Egito (2013-2016): a Contrarrevolução ------- 215
As condicionantes da contrarrevolução: a proscrição da
Irmandade, e as eleições de Al-Sissi ------------------------------------ 223
O Egito, a denição de democracia e os rumos autoritátios ------- 227
6 considerAções FinAis ------------------------------------------------------ 229
6.1 Anidades eletivas entre os dois casos ---------------------------------- 233
A nova correlação de forças --------------------------------------------- 234
O mal-entendido sobre a democracia liberal no Egito e
na Turquia ---------------------------------------------------------------- 235
Realinhamento dos Estados egípcio e turco no sistema
internacional -------------------------------------------------------------- 237
6.2 Diferenças entre os casos Egípcio e Turco ------------------------------ 238
O retrocesso na Turquia e no Egito ----------------------------------- 239
O pluripartidarismo histórico turco e o embrionário egípcio ----- 241
A transformação abrupta egípcia e o gradualismo turco ------------ 244
6.3 A Revolução pelo alto e o transformismo político -------------------- 245
6.4 Algumas questões sobre o Governo Misto ----------------------------- 246
6.5 À guisa de conclusão: a democracia como método e
como valor ---------------------------------------------------------------- 249
6.6 A paz no Oriente Médio: primaveras e invernos ---------------------- 256
reFerênciAs --------------------------------------------------------------------- 261
bibliogrAFiA consultAdA ---------------------------------------------------- 270
posFácio
"A democracia e o problema da racionalidade"
José Geraldo A. B. Poker e Fábio Metzger -------------------------------------273
9
A
1.
A transição de um regime autocrático para outro, democrático,
é um desao permanente para qualquer sociedade que passou por gran-
des processos de modernização. Em todos os casos, tal processo nunca
foi tranquilo. Houve constantes idas e vindas, ora com tempos de maior
abertura, ora em períodos onde as instituições caram sujeitas aos exces-
sos da mão do Estado. Nos países da Europa Ocidental, onde se iniciou
tais processos, foi possível ver tamanhas inconstâncias. Particularmente,
durante o século XIX e na primeira metade do XX, a França viveu uma
sucessão de momentos, entre a construção de regimes republicanos mais
ou menos liberais, e a restauração de monarquias, até o estabelecimento
da V República sob a liderança de Charles de Gaulle. O caso dos britâ-
nicos é anterior, surgido ainda no século XVII, e vem de pactos pontuais
dentro da lógica de seu direito, baseado em costumes, a preservação das
instituições monárquicas, e o estabelecimento de acomodações sucessi-
vas dentro da sociedade civil, que permitiu a atual conguração social
da Grã-Bretanha.
10
Fábio Metzger
Já os casos dos países latino-americanos têm um histórico um
tanto mais recente, e derivam de sociedades relativamente jovens, in-
dependentes há apenas dois séculos e, portanto, com uma formação
ainda bastante recente de sociedade civil. Nesse sentido, é possível no-
tar as convulsões sociais que afetam tanto os sistemas democráticos
de Brasil e os países de língua espanhola, especialmente, quando os
impasses decisórios geram paralisias que interrompem a busca pelas
soluções políticas para a coexistência social. Nada que outros países
não tenham enfrentado anteriormente, e que a engenharia das institui-
ções políticas podem muito bem estabelecer um equilíbrio de poderes
que evitem tais impasses.
Neste livro, estamos estudando casos de sociedades tão ou mais
antigas que as francesas e britânicas, que são Turquia e Egito. E que
se tornaram repúblicas independentes apenas no século XX, portanto,
cerca de um século depois da independência da maioria das nações lati-
no-americanas. De um lado, construíram as suas respectivas tradições de
sociedades milenares, consolidando camadas sociais de povos e sistemas
de poderes, uns se sobrepondo aos outros. De outro, convivem com o
formato republicano há bem pouco tempo.
De maneira diferente das sociedades europeias ocidentais e
latino-americanas, no entanto, Egito e Turquia, tiveram no ciclo de
sua história a formação de um sistema de crenças religiosas diverso,
baseado na religião islâmica, onde a formação de algumas instituições
religiosas e a convivência delas com o mundo secular tem natureza
diversa de países de história e maioria cristã. Na própria formação da
religião islâmica, o sistema de poderes políticos acompanhou o desen-
volvimento das sociedades que se formaram ou foram conquistadas.
Enquanto nos países de história ou maioria cristã, as instituições reli-
giosas simplesmente se associavam ou dissociavam das civis anterior-
mente já existentes. Esse fato em particular faz com que a separação
entre Estado e religião já seja algo mais tranquilo em países de maioria
cristã, e algo que costuma ser um pouco mais complicado nos Estados
muçulmanos. Obviamente, há muitas nuances dentro do universo dos
países muçulmanos, o que nos leva a crer que há países mais seculariza-
11
Egito e Turquia no Século XXI
dos, e outros menos. Existem nações mais afeitas à ideia de monarquia,
outras à de república. Há aquelas que aceitam melhor os conceitos de
liberalismo e democracia, outras são mais apegadas às suas tradições.
O islã não é simplesmente um bloco fechado, mas sim uma fonte ri-
quíssima de cultura, conhecimento, poder e história.
O que nos chama a atenção aqui é que Estados podem se manter
a maior ou menor distância em relação às religiões de seus povos, indepen-
dente de qual for a crença. Mas quando existe dentro da sociedade civil um
corpo político religioso que avança em princípios minimamente seculares
deste Estado, o país pode perder em matéria de respeito à diversidade.
Quando levamos em conta que a literalidade de interpretação das religiões
pode realmente interferir na forma como o Estado funciona para todos,
é criada uma fonte de tensão para democracia propriamente dita. E neste
sentido, existe uma nova conguração. De um lado, a sociedade civil. De
outro, uma sociedade religiosa, que se autonomiza e desenvolve uma visão
literal do texto simbólico. E entre ambas uma sociedade política, liderada
por hierarquias baseadas no alto comando do Estado, especialmente forças
policiais e armadas, que, a pretexto de combater tal fundamentalismo,
acabam, elas mesmas, também sacricando instituições pluralistas.
É preciso ressaltar que Turquia e Egito tiveram, cada um ao seu
modo, tentativas de se transformar em regimes democráticos. A Turquia,
de maneira mais duradoura e consistente. O Egito, de forma mais
fugaz. Em alguns momentos, se turcos e egípcios não experimentaram
a democracia, ao menos puderam conviver com instituições liberais;
no caso do Egito, durante os primeiros anos de independência, ainda
sob monarquia de 1918 a 1951, a Turquia sob a tutela dos militares
kemalistas, a partir de 1950, com interrupções ao longo dos anos 1960,
1970, 1980 e 1990.
O arquétipo da ideia de uma “comunidade dos eis” no islã (a
umma) pode ser algo que transpõe o conceito ocidental de sociedade ci-
vil. No entanto, não haveria impedimentos para a adaptação do conceito
ocidental ao islâmico em moldes seculares. Alguns países muçulmanos
como a Indonésia já fazem tal adaptação, sustentando sociedades com
um mínimo de pluralidade. Se não é possível realizar uma república de
12
Fábio Metzger
instituições laicas como a França, ao menos, a acomodação de tradição
e modernidade, como foi feito na monarquia britânica é um caminho
interessante para os países muçulmanos.
Entretanto, cada país tem um histórico próprio. E os casos de
Egito e Turquia são muito especícos, seja pelo posicionamento geopolíti-
co de ambos; pela formação republicana recente; ou por um processo mo-
dernizador que não foi capaz de contemplar a totalidade das respectivas
sociedades. Nesse sentido, podemos também compreender o desenvolvi-
mento do fundamentalismo religioso como a reação a um desenvolvimen-
to incompleto, e que deixa na mão das instituições religiosas pré-formação
de Estados nacionais um papel no atendimento da população maior do
que seria normalmente no atendimento social. Obviamente, o atendi-
mento à sociedade pode ser feito por instituições religiosas moderadas
ou fundamentalistas. Quando, no entanto, há um choque cultural com a
modernização de um país, as possibilidades de um discurso fundamenta-
lista aumentam. Corrobora para o aumento do radicalismo político desses
países a percepção que as forças armadas possuem em relação à fragilidade
do posicionamento tanto de Egito, quanto de Turquia. Um posiciona-
mento que confere a ambos papéis de lideranças regionais, mas também
de órbita de um sistema internacional com uma série de complexidades e
sutilezas, onde os interesses dos países hegemônicos estão muito longe de
compartilhar com os valores morais das populações desses países. EUA,
Federação, Russa, China, Grã-Bretanha e França possuem as suas políticas
e projetos de poder próprios, ora com conitos, ora com acordos entre si.
E a interferência destas cinco grandes potências no mundo muçulmano,
em geral, e no Oriente Médio, em particular, é histórica.
2.
Quero agradecer a todos que me ajudaram na presente obra.
Em especial:
Ao professor Rafael Salatini de Almeida da UNESP, campus
de Marília, pelos momentos de auxílio e debates, importantes nesse
13
Egito e Turquia no Século XXI
período, e pelo incentivo que me deu para a realização deste projeto.
Aos professores Marcos Toyansk e ao Renatho Costa, companheiros
desde o Mestrado que, junto comigo, têm me acompanhado em toda
essa trajetória de produção acadêmica, há mais de uma década. Ao
professor Alessandro Farage Figueiredo, com quem escrevo artigos
acadêmicos e de divulgação cientíca. Ao meu orientador da disserta-
ção de Mestrado, professor Peter Robert Demant, do Departamento
de História da USP, que fez a provocação inicial e deu todo o suporte
para que a minha evolução intelectual tivesse o impulso necessário
para a minha atual carreira acadêmica. Ao meu orientador, professor
Leonel Itaussu Almeida Mello (in memorian), que esteve presente em
todos os momentos da elaboração desta tese. Uma orientação de espe-
cial atenção e dedicação, que contemplou questões fundamentais das
teorias e das práticas da política que nos desaam a todo o momento e
instigam antigas e novas reexões. Um exemplo de atuação intelectual,
que faço questão de levar adiante para os momentos que tenho levado
comigo, como professor, ou pesquisador. A sua esposa e companheira
intelectual, Dea Conti, por todo o suporte que deu durante a pesquisa,
especialmente a ele.
Agradeço ao Maged El-Gebaly pelas recomendações que for-
neceu para informações importantes para o meu texto na parte que
confere ao Egito. A Mustafa Goktepe, Yusuf Elemen e Kamil Ergin,
do Centro Cultural Brasil-Turquia, que têm me auxiliado nas reexões
sobre a Turquia.
E aos meus familiares, em especial a minha mãe, Anita, e ao
meu pai, Idel, por todo o apoio que me deram ao longo desse período.
14
15
“[...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 80).
(De Riobaldo, antes de iniciar importante expedição pelas terras do
norte de Minas Gerais)
A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos
submeterão à República. Tudo deve mudar para que tudo que
como está”. (LAMPEDUSA, 2005, p. 32, tradução livre).
(De Tancredi, príncipe de Falconeri, a seu tio, Don Fabrízio
Corbera, príncipe de Salina).
16
17
C 
É importante salientar que este trabalho se baseia em um con-
junto que é o somatório da dissertação de mestrado “Pluralismo ver-
sus Radicalismo. A integração do islã político em algumas sociedades
muçulmanas: os casos de Egito, Turquia e Argélia”, realizada em 2008, e
da tese de doutorado “Egito e Turquia no século XXI: democracia liberal
ou governo misto?”, defendida em 2013, das quais sou autor. Materiais
de trabalhos anteriores realizados entre os anos de 2008 e 2013, que fo-
ram utilizados, com o tempo, tiveram diante de si uma série de mudan-
ças profundas no cenário dos países aqui estudados, Egito e Turquia e
nas regiões onde estão inseridos, o Oriente Médio, ambos, países-chave.
Os principais objetos do atual trabalho discutem a teoria geral da políti-
ca em primeiro plano, reetindo questões acerca das formas de governo
que se debatem e se transformam em regimes que vivem em situações
transitórias nas relações entre o civil e militar, entre o secular e o reli-
gioso, entre o Estado e a sociedade; de maneira que temos, em segundo
plano, um debate dentro da história social, no qual poderemos observar
evoluções e retrocessos constantes. Temos como marcos os acontecimen-
tos dos anos de 2003, como ponto de partida, e estendem-se até o se-
gundo semestre de 2016 (especicamente no mês de setembro).
18
Fábio Metzger
O Egito, país mais populoso do Oriente Médio árabe, com
82 milhões de habitantes (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY,
2011a), localizado a nordeste da África, fazendo fronteira com a Ásia
pela Península do Sinai, possui uma via de transporte marítimo estra-
tégica, que liga o mar Mediterrâneo ao oceano Índico: o Canal de Suez.
A Turquia, país de alto nível de desenvolvimento no Oriente Médio
não árabe, tem 79 milhões de habitantes (CENTRAL INTELLIGEN-
CE AGENCY, 2011b), está localizada entre Europa e Ásia (Oriente
Próximo) e possui uma importante via de acesso do Mediterrâneo para
o subcontinente eurasiático e o Mar Negro: os estreitos de Dardan-
delos e Bósforo, onde ca a metrópole Istambul. A cidade de Ancara,
capital atual da república turca, situa-se na região asiática do Planalto
da Anatólia. Aparentemente diversos, o quê ambos os países possuem
atualmente em comum? Tanto a Turquia quanto o Egito viveram na
última década e meia, embora de formas distintas, uma relevante fase
de transição política.
A Turquia caracteriza-se por ser um Estado historicamente
secularizado, onde em momentos determinados, existem interferên-
cias nas decisões de governos civis eleitos, que por quatro vezes foram
submetidos a golpes de Estado. É importante enfatizar o papel das
forças armadas, enquanto defensoras do Estado nacional secular turco,
alinhados ao bloco capitalista pró-EUA, contra o socialismo pró-UR-
SS. Esse papel historicamente vem preservando o secularismo do Esta-
do e da sociedade, mas também tem limitado e cerceado a participação
política plena da população nacional. Trata-se, em síntese, de um Esta-
do liberalizado, mas ainda não democratizado. Desde 1950, o Estado
turco permitia eleições, de limitada participação eleitoral. A partir de
2003, o país passou a ter uma maior autonomia, por parte da popu-
lação, na eleição de seus governantes. A Turquia elegeu um governo
liderado pelo partido islâmico moderado Justiça e Desenvolvimento
(AK), que aceitava as regras de um Estado secularizado, mas que tam-
bém luta com certo êxito por mudanças na Constituição, para tornar
menos rígida a secularização dos costumes do Estado. Tais mudanças
não signicavam, porém, uma profunda islamização da sociedade, mas
um relaxamento antes inexistente nas proibições e/ou nas limitações
19
Egito e Turquia no Século XXI
aos hábitos religiosos no espaço público. No entanto, de 2013 até se-
tembro de 2016, a permanência prolongada do AK no poder gerou
uma série de mudanças nesse paradigma. Perseguições a jornalistas,
constrangimentos a membros da sociedade civil críticos ao governo,
repressões à minoria curda, e nalmente em 2016, um golpe partido
de um setor das Forças Armadas, e um contragolpe em sucessão, o
país teve um brutal fechamento em suas instituições, atingindo mídia,
sociedade civil e opositores de um modo geral.
O Egito, por sua vez, derrubou, no início de 2011, a autocra-
cia de Hosni Mubarak, em um massivo levante popular simbolizado
pelas grandes mobilizações na Praça Tahrir. No entanto, o estágio e o
ritmo político de mudanças do Egito parecem diferir substancialmen-
te do processo turco. Após a renúncia de Mubarak, juntamente com
seu grupo político mais próximo, foi desencadeado um novo cenário
de transição política, sob a liderança de uma junta militar, com asses-
soria de personalidades civis ligadas ao antigo regime. No entanto, não
parece provável que estejam sendo consolidadas as bases de um regime
de caráter nitidamente democrático. Se de um lado já houve a convo-
cação e a elaboração de uma Assembleia Nacional Constituinte, por
outro não foi concluída uma anistia ampla, geral e irrestrita aos opo-
sitores políticos da velha ordem. As eleições foram sistematicamente
adiadas pela junta militar, composta pelos antigos comandantes mili-
tares das três armas do regime de Mubarak. Quando foram realizadas
as primeiras eleições, com resultados amplamente favoráveis aos par-
tidos islâmicos, ocorreram intervenções do Tribunal Constitucional,
que proibiu a reunião da Assembleia Popular, com maioria composta
pelo partido Justiça e Liberdade, da Irmandade Muçulmana, organi-
zação bastante enraizada no Egito, fundada em 1928. Nesse contexto,
observa-se a reorganização da vida partidária do país, incluindo e tole-
rando as forças opositoras do antigo regime.
Inicialmente, após a queda de Mubarak, a burocracia civil-
militar, que comanda o Egito desde a revolução nasserista de 1952 e tem
um papel histórico na formação do Estado egípcio moderno, decidiu
suspender o estado de emergência que vigorava desde 1981, modicar
20
Fábio Metzger
alguns artigos da antiga Constituição e submetê-la a um referendo
popular. Convenhamos que não seja muito para o que se convencionou
chamar de “revolução”. Ao mesmo tempo, movimentos mais radicais em
prol da democracia foram sendo reprimidos pelo Estado. A Irmandade
Muçulmana inicialmente não apresentou uma candidatura própria às
eleições presidenciais, optando por lançar candidatos apenas ao novo
parlamento a ser eleito. Depois de conquistar uma maioria relativa de
47% das cadeiras e dos votos na Assembleia Popular e de ver o Tribunal
Constitucional vetar essas eleições, os Irmãos Muçulmanos decidiram
apoiar, como seu candidato presidencial, Mohamed Morsi (segunda
opção da organização, uma vez que a primeira, o empresário Khairat Al-
Chater, fora vetada pela junta militar e pelo Tribunal Constitucional).
As perspectivas eram, aparentemente, não de uma ampla e imediata
democratização do Estado egípcio, mas de uma lenta e gradual abertura,
de resultados incertos. De 2011 a 2013, houve uma transição, onde,
pela via dos votos populares, a Irmandade Muçulmana foi avançando
em setores do governo e do Estado. No entanto, avançando em setores
em que a sociedade civil e as Forças Armadas não aceitavam. Mesmo
os principais manifestantes do movimento de janeiro de 2011 estavam
contrários a essa tendência. O resultado é que, em julho de 2013, o
governo e as instituições eleitas pela maioria egípcia, em prol aos irmãos
muçulmanos foram derrubados por um conjunto de instituições liderado
por uma Junta Militar e Constitucional, que passou a comandar o país
sob formas autoritárias, em detrimento dos demais setores da sociedade
civil, com eleições que favoreceram fortemente o antigo establishment,
que voltou ainda mais forte do que era anteriormente.
Esses dois casos exemplares do Oriente Médio – Turquia e
Egito – são relevantes e merecem ser analisados e compreendidos à luz
dos conceitos renados pela teoria geral da política (MAQUIAVEL,
1977; 1994; BOBBIO, 1981; 1987; 1993). Pensando em termos
de Estado, sociedade civil, soberania popular, política e religião (e a
possível ou não acomodação de forças entre si), faremos um estudo
dos processos políticos em curso na Turquia e no Egito, até os dias
atuais. O objetivo é vericar qual forma de governo nos possibilita
uma melhor apreensão teórica sobre a realidade concreta desses
21
Egito e Turquia no Século XXI
dois objetos de pesquisa. Vamos nos utilizar da teoria das formas de
governo para nos debruçarmos sobre esse tema clássico, recorrente ao
longo de mais de dois milênios, pesquisado desde a Grécia Antiga.
Sobre essa metodologia, como aconselha Marx, há que se distinguir
claramente entre o método de investigação e o método de exposição
do objeto de estudo (MARX; ENGELS, 1981). De acordo com as
necessidades de pesquisa, o primeiro método pode, partindo do
presente, recuar no tempo até 1922, em se tratando da Turquia, e até
1952, no que tange ao Egito. Entretanto, o segundo método deverá
necessariamente tomar o presente como ponto de partida — ou seja,
o ano de 2016 — para retroagir ao passado quando e se for o caso,
bem como se projetar ao futuro próximo para compreender o presente
com a seguinte questão: por que a diculdade de estes países evoluírem
para uma cultura democrática e liberal? Quais são as suas resistências
de acomodar instituições que remetem à ideia de governo? E por que
tamanha tentação para cair na ideia de autocracia?
22
1 A   
25
A   
A segunda denição diz respeito ao conceito de soberania.
Qual será o conceito escolhido para o trabalho? Inicialmente, atenta-
mos a dois aspectos: o primeiro, que é interno, baseado na relação entre
governados e governantes (soberano/súditos e Estado/sociedade), e o
segundo, que é externo, baseado na relação entre Estados (sistema inte-
restatal/anarquia internacional). Vamos focar novamente o primeiro as-
pecto e em seguida apresentar as linhas gerais dos conceitos de soberania
com base na ideia de que o soberano é o Estado – pacto de dominação
(HOBBES, 2003; MAQUIAVEL, 1977) – e de que a soberania está
distribuída em um pacto societário (HARRINGTON, 1996; LOCKE,
1999; MAQUIAVEL, 1994; ROUSSEAU, 2001). Especicamente em
Rousseau, no Maquiavel dos Discorsi e em Harrington, esse pacto so-
cietário diz respeito à soberania popular. Levando em conta que as duas
denições de soberania estão corretas, vamos denir qual das duas é, em
última instância, a garantidora da ordem social do Estado e da socieda-
de. Escolhemos para este estudo a denição de Hobbes e do Maquiavel
de O príncipe, por acreditarmos que, antes da formação de governos
populares, é preciso saber quem estabeleceu o marco inicial da lei po-
sitiva (juspositivismo). Esse marco só pode ser denido por quem tiver
o monopólio legítimo da violência. Sem a denição desse monopólio,
não está ainda formalizada uma sociedade política, com lei regular base-
ada na coação ou na coerção. Apenas com essa passagem necessária (do
26
Fábio Metzger
jusnaturalismo para o juspositivismo) e, portanto, com a soberania do
Estado instituída, podemos falar das condições para o estabelecimento
de um pacto societário para ns de formação de um governo de sobera-
nia popular. Assim, denimos como uma primeira pergunta: quem é o
soberano? O povo ou o Estado?
O soberano é o povo, que, com uma distribuição a mais equi-
librada possível de bens e de poderes, constitui uma sociedade política
autodeterminada (o “povo armado” de Maquiavel e Harrington)? Ou
é o Estado, aquele que, detentor do monopólio legítimo da violência
(podendo ser um magistrado, uma república ou um monarca), esta-
belece os limites que garantem a paz interna, pune os que desobede-
cem a suas leis e funda, a partir de uma multidão em conito, uma
sociedade política pacicada (o “Leviatã” de Hobbes)? Isso leva-nos
a seguinte questão: de quem parte a soberania? De uma coletividade
cuja construção política é bem equilibrada e que, por meio desse equi-
líbrio, estabelece sua autodeterminação? Ou de uma força autorizada
que constitui o Estado e pacica os seus súditos, estabelecendo leis e
regras e prevendo punições e castigos para quem não as seguir?
Hobbes (2003) arma que o soberano é essa autoridade que
representa o Estado (o soberano do “Leviatã”). Apenas por intermé-
dio dele é possível que uma sociedade política seja fundada. Anterior-
mente, havia apenas uma multidão desarticulada seguindo o direito
natural, tendendo à “guerra de todos contra todos”, que atenta contra
a vida de cada um dos cidadãos. Como todos os indivíduos de uma
multidão têm o direito à vida, é necessário estabelecer a lei de nature-
za, em que cada um deles abdica de parte de seu direito natural a m
de obter a paz e de garantir que ninguém atente contra a sua própria
vida ou contra a vida alheia. Para tanto, é preciso que cada membro
da sociedade (uma “pessoa natural”) estabeleça um “pacto” com uma
autoridade comum designada (uma “pessoa articial”) que tenha força
suciente para fazer valer a lei de natureza (HOBBES, 2003).
A experiência no mundo cristão deniu uma hierarquia, em
que a soberania divina se restringe aos espaços religiosos, enquanto, na
prática, a soberania última é a terrena, ou seja, a dos poderes supremos
27
Egito e Turquia no Século XXI
vigentes (legislativo, executivo e judiciário, apoiados pela lei civil Cons-
titucional), que emanam das: 1) escolhas democráticas, como o sufrágio
universal para pessoas maiores dos 18 anos de idade de ambos os sexos,
independentemente da escolaridade, garantidas as liberdades de expres-
são, associação e circulação de pessoas; e 2) são garantidos pelo poder de
fato do Estado que garante a soberania da nação, e um sistema político
pluripartidário com alternância de governos conforme eleições livres e
regulares. Os casos que estudamos aqui são de países do mundo mu-
çulmano, onde ainda existe um processo de acomodação entre a esfera
terrena/lei civil e a esfera divina/lei religiosa, isto é, onde não existe sepa-
ração entre religião e política e, no geral, a mesquita comanda o palácio,
como é o caso do Irã dos aiatolás, em que o líder supremo dos clérigos,
Ali Khamenei, manda no presidente da República, Mahmoud Ahmadi-
nejad. Falamos do Egito e da Turquia, que até o nal da Primeira Guerra
Mundial eram parte de um império plurinacional, o Império Otomano
(sediado em Istambul, atualmente Turquia), no qual as leis civis e reli-
giosas estavam concentradas, em última instância, em torno de um só
chefe de Estado, que acumulava os cargos de imperador, califa, sultão e
césar de Roma Oriental (kaiser-i-Rum). O modelo de Estado nacional
moderno, portanto, ainda é uma estrutura recente em processo de con-
solidação, tanto no Egito (que se tornou independente em 1922, como
monarquia, e proclamou sua república em 1953) quanto na Turquia
(que criou sua república em 1923).
1.1 As FormAs de governo
Já com os exemplos denidos, vamos prosseguir com as esco-
lhas. Primeiramente, uma vez denidos o tipo de Estado que estudado,
os Estados que serão estudados, as soberanias que estão estruturadas e
hierarquizadas (de Estado e popular, terrena e divina), vamos denir as
formas de regimes (autocracia ou democracia) do presente trabalho.
Se os Estados nacionais são, em última instância, garantidos
pelo poder de um chefe de Estado e/ou de um governo que concentra o
poder, em detrimento da vontade popular, então existe uma justicativa,
28
Fábio Metzger
que não emana do povo, mas sim daqueles que comandam as estruturas
estatais. Estamos falando do conceito de Estado de direito, que pode ser
um Estado de direito autocrático e que se dene segundo a vontade de seu
próprio governante e daqueles que o sustentam (leis heterônomas). Ele
pode possuir justicativas que não sejam legitimadas pela população,
mas que encontrem racionalidade por parte daqueles que governam, sob
a legitimidade pessoal do chefe de Estado. Em contraste, temos Estados
nacionais cujo poder é sustentado pela participação popular, de forma
que o chefe de Estado se submete às escolhas do povo (leis autônomas).
Falamos de um Estado de direito democrático, que se dene segundo a
vontade popular (KELSEN, 1992, p. 183-295).
estAdo de direito e liberAlismo
A análise parte da concepção de Estado de direito, de Kel-
sen. Essa concepção entende que todo Estado é de direito. Nenhum
Estado é concebido sem ter uma justicativa. A questão é denir se
esse Estado de direito é autocrático, liberal ou democrático, ou seja, se
esse Estado de direito é fundado e comandado por um grupo político
restrito, sem ser dada opção ao restante da população (autocracia); se
é comandado por uma elite política que confere algumas liberdades
individuais a seus cidadãos/súditos (liberal); ou se concede direitos/
liberdades civis e políticas a seus cidadãos/súditos para além do grupo
político que o comanda (democrático).
Esse Estado de direito, sendo autocrático, pode possuir origem
sagrada (ou seja, justicada por atribuições religiosas) ou profana (ou
seja, justicada por uma liderança autoritária pessoal, de classe, clã, casta
ou estamento). Ele pode ser liberal, em maior ou menor grau, conforme
a abertura que ele dá ao direito de voto. Ele pode cercear a participação
política de seus cidadãos/súditos por gênero, alfabetização, religião e/ou
cor, assegurados os direitos civis básicos (de incluem o direito à vida, à
livre expressão, associação, locomoção e moradia). Pode ser democrá-
tico, de acordo com o sistema político que constrói em torno de si.
Basicamente, um Estado de direito democrático concede direitos civis
29
Egito e Turquia no Século XXI
e políticos a todos os seus cidadãos. A questão é a forma como esses di-
reitos são exercidos: uma democracia clássica, baseada nos princípios de
participação direta de seus cidadãos, ou uma democracia moderna, com
um sistema indireto de participação de seus cidadãos.
No entanto, para podermos falar da passagem de um Estado
de direito autocrático para um Estado de direito democrático, é
necessária uma transição, e esse não é um processo necessariamente
tranquilo. É preciso fazer acomodações entre aqueles que originalmente
concentram o poder em torno do Estado (ex parte principe) e a
sociedade (ex parte populi), conciliando desejos e anseios. Quando um
regime autocrático é derrubado com participação popular, a tendência
é que o grupo político hegemônico dentro do Estado tente manter-
se dominante no processo de transição rumo à democracia e que os
representantes da população busquem substituir aqueles que foram
derrubados ou os que ainda tentam se sustentar. Há um processo de
negociação que ainda não pode ser entendido como a formação de um
regime democrático, mas que sem dúvida envolve uma abertura de
tipo liberalizante em relação à autocracia deposta.
Identicamos esse período como o da formação de um regime
liberal, em que os direitos políticos, antes concentrados em torno de um
só governante, passam a ser distribuídos entre os herdeiros do antigo
regime e os representantes da oposição à autocracia, previamente sele-
cionados por algum tipo de participação limitada e de sufrágio restrito
(renda, gênero, religião, etc.). Alguns exemplos são citados no livro de
Samuel P. Huntington, A terceira onda (HUNTINGTON, 1994). É
quando ocorre esse processo de negociação, geralmente assimétrica (pac-
to de elites ou transição negociada, exemplos de Espanha e Brasil), em
vez de uma ruptura democrática (caso de Portugal e Argentina).
Esse processo, no entanto, ainda não estabelece um regime
totalmente inclusivo. O poder político, anteriormente restrito, é
desconcentrado, de modo que o governo de um só passa a ser o governo
de uma pequena quantidade de pessoas (o que os antigos gregos
chamavam de “oligarquia”) – selecionadas por um grupo de eleitores
que, por sua vez, ainda não estão participando da vida política da
30
Fábio Metzger
sociedade, segundo os critérios democráticos (participação essa que os
mesmos gregos chamavam de politia ou politeia). É um governo dos
melhores”, escolhidos pelos “melhores”: uma aristocracia (considerada
um bom governo, em comparação com o mau governo da oligarquia).
Podemos falar, por exemplo, da hegemonia de uma instituição política
(por exemplo, o Senado romano, representante da elite romana, ou a
Câmara dos Comuns inglesa na era vitoriana, quando as mulheres não
participavam de eleições) sobre o restante da população; de uma classe
de pessoas votantes a qual exclui parcela da população (por exemplo,
permitir que apenas os alfabetizados sejam eleitores); ou de um sistema
político em que apenas alguns partidos possam participar de eleições
(por exemplo, o Partido Comunista Brasileiro – PCB – foi excluído
durante o período de 1946-1964 no Brasil). Para além desses exemplos,
podemos citar a noção de governo misto, que combina as características
da monarquia com as da aristocracia e as da democracia e é o caso da
monarquia parlamentar inglesa, com a Coroa, a Câmara dos Lordes e a
Câmara dos Comuns.
O conceito de liberalismo nasceu do jusnaturalismo (direito
natural) na Inglaterra. Os primeiros liberais sustentavam que todos os
homens, por sua própria natureza, possuem “[...] direitos fundamentais
como o direito à vida, à liberdade, segurança e bens adquiridos por meio
do trabalho” (BOBBIO, 1987, p. 11) – “amassar o barro com as pró-
prias mãos” (LOCKE, 1999, p. 49-50). Esses direitos – denominados
direitos de propriedade” – deveriam ser assegurados pelo Estado, que,
em teoria, deveria estabelecer limites para si mesmo. De um lado, os
limites dos poderes do Estado liberal são preservados dentro de um Es-
tado de direito (constitucionalismo). Os limites das funções do Estado
liberal são preservados dentro de um Estado mínimo (liberismo). Em
relação ao Estado de direito, entendemos a contraposição dos conceitos
de liberdade e poder: na medida em que o poder avança, a liberdade
enfraquece. Quanto mais um indivíduo é livre, menos poder um Estado
reserva para si mesmo. O Estado reconhece as liberdades individuais,
no pensamento liberal. No entanto, o conceito de liberalismo não con-
templa a ausência de poder no Estado, mas sim a ideia de um Estado
moderado. Por outro lado, o Estado moderado é mais controlável que o
31
Egito e Turquia no Século XXI
absoluto – para o indivíduo, o Estado é um “mal necessário”, que deve
interferir o mínimo possível na economia e na vida privada dos cida-
dãos, mas não estar completamente ausente.
É dessa maneira que denimos um Estado de direito liberal,
que se justica a partir de autores liberais modernos como Constant
(2005), Locke (1999), Montesquieu (2000) e Tocqueville (1977), e os
federalistas, entre outros, que não deixam de atentar para a implemen-
tação de uma democracia moderna, diferente da democracia ateniense
dos gregos antigos. Neste momento, cabe o seguinte questionamento:
é possível associar o liberalismo à democracia? Essa questão é discutida
na próxima seção.
1.2 liberAlismo e democrAciA: os irmãos inimigos
Em termos históricos, a democracia é antiga (século V a.C.) e o
liberalismo é moderno (século XVII). Por sua vez, a democracia clássica
é direta e participativa, enquanto a democracia moderna é indireta e re-
presentativa. Em termos gerais, a democracia é o regime que expande os
direitos políticos da população por meio do sufrágio universal. Por outro
lado, o liberalismo expande os direitos civis dos indivíduos e limita o po-
der do Estado por meio do sufrágio restrito e do governo constitucional.
O princípio da democracia pura, a vontade da maioria, pode prevalecer
e, ao mesmo tempo, respeitar os direitos de cidadania (ou as liberdades
individuais) inerentes às minorias dentro de uma sociedade. Por sua vez,
um regime liberal pode garantir os direitos civis a todos os cidadãos,
limitando, contudo, a uma minoria privilegiada a participação na vida
política do Estado.
Como conciliar as duas coisas? Esse questionamento costuma
ser feito por grupos receosos de que, com o povo exercendo diretamente
um poder democrático em um Estado sem restrições, tenda a formar-se
uma espécie de tirania exercida pela maioria da população. Partindo dos
pressupostos dos federalistas, uma sociedade radicalmente democrática
é instável, e nela as facções políticas mais guiadas por paixões ou inte-
resses particulares tendem a prevalecer sobre a preocupação com o bem
32
Fábio Metzger
comum. Hamilton, no nono capítulo do El federalista, e Madison, no
décimo, discutem justamente esta questão: o problema que se apresenta
com a criação de uma democracia pura não é a obtenção de um regime
democrático, mas sim a manutenção deste (MADISON; HAMILTON,
1957, p. 32-36). De pouco adianta criar uma democracia de curta du-
ração, que acaba por degenerar em uma anarquia ou em uma tirania. A
preocupação dos federalistas era que facções transformassem democra-
cias em tiranias. Para evitar tal situação, eles propunham que o sistema
político funcionasse em um sistema de participação indireta da popu-
lação – por meio de representantes do povo – e de freios e contrapesos.
Com cidadãos selecionados (mediante o critério de propriedade) para
representar o restante da sociedade, esta poderia ter os seus interesses
mais bem defendidos do que se ela tentasse participar diretamente, sem
mediações e intermediações. Isso porque a população, por si mesma,
corre o risco de se tornar sujeita a lideranças desonestas, demagogas e
com interesses particularistas e, desse modo, governos baseados em par-
ticipação direta tenderiam, segundo esse raciocínio, à maior instabilida-
de e ao despotismo.
Para Tocqueville (1977), a principal preocupação é saber de
que forma uma sociedade democrática pode se manter estável, de modo
que a decisão da maioria prevaleça, tendo as minorias os seus direitos
respeitados – evitando, assim, a transformação da democracia em uma
tirania da maioria. Para essas elites, é necessário que as minorias tenham
os seus direitos assegurados. Assim, a democracia torna-se não apenas a
vontade da maioria, mas sim, desde que assegurados os direitos das mi-
norias, uma vontade coletiva negociada. Essa negociação é construída de
forma que a maioria delegue formalmente poderes a representantes, que
formam uma classe de políticos prossionais – desse modo, a maioria
ca subdividida e atomizada na participação individual dos cidadãos,
por exemplo, em processos eleitorais periódicos. Com a participação
da maioria dos cidadãos em processos políticos apenas em momentos
pontuais, as chances de criação de uma tirania diminuem, enquanto
aumentam as chances da apatia. Com isso, da sociedade civil surge uma
maioria apática (a “apatia da maioria”). Essa maioria consente num go-
verno comandado por elites civis que, mais do que ter seus direitos de
33
Egito e Turquia no Século XXI
minoria assegurados, são as governantes de fato do país (Uma ideia im-
portante que pode ser citada é a de como abrir mão de parte de algumas
liberdades a m de se manter a igualdade no status quo). Trata-se, nesse
caso, do regime que deseja evitar a tirania da maioria e que apoia in-
tervenções de um governo, em um regime tido como uma democracia,
sobre aqueles que possam eventualmente depor contra ela (TOCQUE-
VILLE, 1977, p. 193-202; p. 383-411; p. 511-520), apelando para o
direito de resistência dos povos oprimidos contra a opressão e a tirania
(LOCKE, 1994, p. 191-212).
Os liberais chamam a atenção para a criação de uma prudên-
cia do Estado que garanta a sua sustentação para o longo prazo. Nesse
sentido, a democracia é um princípio dos antigos, e o liberalismo é uma
criação moderna. O Estado liberal como aquele que, em benefício das
liberdades individuais, limita os seus próprios poderes, em contraste ao
Estado máximo (ou absoluto), cujos poderes interferem na vida dos in-
divíduos. Esse Estado liberal é mínimo, no que diz respeito ao limite de
seus próprios poderes, mas não é ausente no que diz respeito a estabele-
cer a ordem social (BOBBIO, 1987).
Além de subdividir a representação da população, um regi-
me liberal tende também a subdividir o Estado com base em funções
especícas. Essas funções são delimitadas, por meio de ltros, nas es-
feras dos poderes governamentais – executivo, legislativo e judiciário.
Delimitados esses poderes, o Estado liberal confere à sociedade civil a
prerrogativa de escolha dos governantes e dos representantes. No legis-
lativo: representantes do povo – o poder é exercido de maneira indireta
e subdividido. No executivo: eleição direta para cargos em instâncias
municipais e federativas, nas quais as funções executivas estão delimita-
das por um Estado com poderes centralizados (esse Estado pode ter uma
eleição direta, como no Brasil, ou indireta, como nos EUA). No judici-
ário: conjunto de cortes locais e de instâncias intermediárias em que são
julgadas e interpretadas as leis, até estas serem avaliadas denitivamente
em uma corte suprema, conforme o direito constitucional. Uma corte
suprema não é eleita; em geral, os juízes dessa instância são nomeados/
indicados por membros dos demais poderes e são prossionais de carrei-
34
Fábio Metzger
ra (enquanto as cortes de instâncias inferiores podem ter eleições, como
nos EUA, ou ser formadas por prossionais de carreira, como no Brasil).
Esses três poderes possuem autonomia, mas não independência. Eles são
interdependentes entre si; suas leis, suas decisões e suas interpretações
são ltradas por meio de freios e contrapesos dos poderes, de modo que,
a princípio, não se crie uma instância sobreposta à outra.
1.3 liberAlismo, democrAciA e soberAniA populAr
É nessa etapa que podemos observar a já citada democratização
no liberalismo. A evolução do liberalismo para a liberal-democracia é a
soberania do Estado concedendo um crescente espaço para a soberania
popular. Formalmente, a soberania é popular. Na prática, é do Estado,
que concede espaços a governos eleitos, na medida em que os seus po-
deres são limitados em favor das liberdades individuais. Partimos, então,
do conceito básico de que democracia e liberalismo não são teorica-
mente compatíveis, mas também não são absolutamente excludentes.
São, ou podem ser em princípio, perfeitamente acomodáveis. Dentro
do liberalismo, em que estão assegurados os direitos civis individuais,
poderá ser desenvolvido um sistema democrático que garanta aos cida-
dãos direitos políticos plenos de participação e, a partir daí, pode haver
a extensão de direitos mais especícos, garantidos os direitos sociais em
toda a sociedade civil. Trata-se da evolução, primeiro, do liberalismo
para a liberal-democracia, ou seja, de um regime liberal que ganha uma
abertura democrática, com o sufrágio universal para pessoas de ambos
os sexos, com um sistema político pluralista. Depois, da liberal-demo-
cracia para a democracia liberal, em que os valores democráticos já estão
consolidados na vida política de todo o país. Outra possibilidade é uma
evolução diversa da liberal-democracia, não rumo à democracia liberal
(ou seja, uma democracia com os valores liberais de pluralismo e tole-
rância), mas sim à democracia eleitoral, que atende aos critérios para a
formação de uma democracia (ou seja, sufrágio universal, pluripartida-
rismo, alternância de poderes, livre associação, livre expressão, etc.), mas
em que os valores que motivam a participação dos cidadãos no sistema
estão ausentes.
35
Egito e Turquia no Século XXI
Uma democracia liberal dene-se por expandir os direitos po-
líticos, garantidos os direitos civis de todos os cidadãos. Esse sistema
pode ser visto como um valor, na medida em que ele defende a ampla
participação dos cidadãos, criando, ao longo dos tempos, uma ética plu-
ralista entre seus cidadãos, em relação às diferenças e à alteridade dentro
de uma sociedade civil. Um valor que pode ser um m em si e que se
pretende universal ou então um meio ou método para a obtenção de ou-
tra forma de sistema político, entendido como democracia social, isto é,
uma democracia liberal que, tendo já garantidos os direitos civis e polí-
ticos, estenda a toda população, direitos sociais, como saúde, habitação,
transporte e educação, entre outros.
Antes de falarmos de liberalismo e democracia enquanto con-
ceitos, vamos denir pontos gerais de nossa discussão. Inicialmente, va-
mos precisar em que universo de ideias o liberalismo e a democracia se
desenvolveram enquanto movimentos políticos e ideológicos. É preciso
salientar que a ideia de democracia que apresentamos está adaptada aos
conceitos da modernidade. Portanto, não apresentamos a noção da de-
mocracia ateniense, que pressupõe o conceito de polis, mas a democracia
direta de Rousseau, que pressupõe a ideia de povo. Também não vamos,
nesta etapa, apresentar os exemplos das antigas repúblicas romanas, nas
quais estão claramente apartadas as classes plebeias e patrícias, mas sim
os modelos de regimes republicanos surgidos na Revolução Puritana na
Inglaterra e em vigor até hoje, nos quais se pressupõe um conceito uni-
tário (portanto, sem a separação formal de classes) de nação.
Com os conceitos de povo e nação, poderemos estudar tanto
o liberalismo quanto a democracia como formas puras de obtenção de
um regime político cujos princípios são os da soberania popular, isto é,
o poder que emana um regime democrático ou liberal emana do povo
ou da nação, entendendo nação como um povo delimitado em um de-
terminado território e um tempo.
A partir daí, podemos apresentar algumas propostas, que sur-
giram na Revolução Puritana na Inglaterra, de modelos de soberania
popular em termos modernos. Falamos do liberalismo e da democra-
cia, que são estudados nesta tese, mas também do marxismo, proposta
36
Fábio Metzger
desenvolvida por Karl Marx ao longo do século XIX, que defendia o
rompimento com o regime liberal de economia capitalista – que, se em
teoria é um regime no qual todos são iguais perante a lei, na prática
permaneceu historicamente como um sistema de dominação com clas-
ses dominantes (burguesias) e dominadas (proletariado). Em seu lugar,
seria adotado um regime de transição socialista que abolia todos os bens
privados de produção, de modo a, no longo prazo, coletivizar todos os
meios produtivos e abolir o Estado e as formas de opressão do homem
sobre o homem. A ideia seria criar uma sociedade sem classes sociais e,
portanto, tendo como soberano todo o povo.
Ao longo do século XX, desde 1917, foi desenvolvido um pro-
jeto, inicialmente por Wladimir Illitch Ulianov Lênin, a m de aplicar
as ideias de Karl Marx em um conjunto de países. Esse projeto pressu-
punha a construção de uma vanguarda que pudesse organizar-se politi-
camente e acompanhar os acontecimentos políticos para, no momen-
to mais propício, fazer uma revolução capaz de derrubar um regime
político reacionário. Dessa experiência, nasceu a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). O projeto aboliu um regime feudal se-
nhorial e instalou um sistema unipartidário (com o Partido Comunis-
ta da URSS). Nele, a organização partidária seria uma vanguarda para
conduzir a transição de uma sociedade pré-capitalista rumo ao comunis-
mo. No lugar de um império feudal (o Império Russo), uma união de
repúblicas respaldada pela aliança das classes operária e camponesa (no
conjunto, o proletariado) em comunidades coletivas de camponeses e
operários (sovietes) organizados em torno de um soviete supremo. Então
foi colocada em prática a experiência leninista.
Seria necessário passar, no entanto, por algumas etapas para
além das formalizações: a industrialização característica do capitalismo –
na Nova Política Econômica (NEP) –, com o princípio de dar um passo
para trás, a m de dar dois para frente; a estatização e a coletivização
características de um governo de transição socialista; e, nalmente, a
concretização do marxismo com a abolição do sistema de classes. O que
se vericou, no entanto, é que o projeto marxista-leninista da URSS,
em vez de levar a uma sociedade sem classes, conduziu, após a morte de
37
Egito e Turquia no Século XXI
Lênin e sob o governo de Joseph Stalin, a uma sociedade autoritária, com
economia planicada. Os sovietes foram esvaziados e, em seu lugar, o
Partido Comunista tornou-se o órgão central do Estado. Essa sociedade
buscou nivelar por baixo todas as formas privadas de obtenção de ganhos
econômicos, impedindo a livre iniciativa, a liberdade de expressão e a
criação de uma sociedade civil. A ideia de soberania popular confundia-
se com o Estado e com o Partido Comunista. A condução rumo a uma
sociedade sem classes comunista deu lugar ao conceito do socialismo em
um só país, isto é, do horizonte do comunismo, passou-se a conviver
com a ideia do socialismo real. Foi no socialismo real que marxismo e
leninismo historicamente se acomodaram e criaram uma forma mista
de soberania popular: o marxismo-leninismo, que não resistiu ao m da
URSS, no nal de 1991.
Tendo inicialmente o povo (no sentido de haver uma vanguar-
da como condutora e um proletariado como alicerce), e não a nação,
como agente legitimador do regime, a URSS posteriormente mudou
as suas bases de sustentação. Durante a Segunda Guerra Mundial, a de-
nição de povo deu lugar à de uma nação soviética, especialmente no
período em que os soviéticos resistiram à ocupação nazista. Em 1991,
essa noção de nação soviética perdeu o sentido, na medida em que as
antigas nacionalidades, por meio de seus movimentos políticos separa-
tistas, foram agentes condutores da desintegração da URSS. Na prática,
o marxismo-leninismo, em sua forma mais bem-acabada, o socialismo
real, não conseguiu delimitar o seu alicerce de apoio com precisão. Se
era o povo, quem era o povo: a nação ou o proletariado? E, quando se
deniu o socialismo em um só país (denição que começou a ser deli-
neada a partir dos anos 1930, quando se questionou a conveniência de
a revolução de 1917 se expandir mundialmente ou não, e que ganhou
contornos denitivos na época da resistência contra os nazistas, entre
1939 e 1945), como cava a noção de povo? De projeto popular, esse
não passava a ser um projeto nacional, até por ser uma proposta de
fronteiras autolimitadas? Em vez de um povo com classes a serem abo-
lidas, a URSS passava a ser uma nação com nacionalidades internas de
necessidades especícas.
38
Fábio Metzger
Finalmente, quando falamos de nação, e não simplesmente de
povo, podemos falar também de dois outros projetos dentro do prin-
cípio de soberania popular: projetos assumidamente nacionalistas, que
delimitam a ideia de povo por meio do conceito de nação – ou seja, de
uma denição no espaço e no tempo – e também de uma narrativa,
mitológica ou não, em comum. O nacionalismo é algo amplo demais
e cabe, como temos observado, em regimes democrático-liberais e mar-
xistas-leninistas, mas também existem as suas formas mais deturpadas: o
fascismo e o nazismo.
Em ambas, há uma característica comum: a ideia da constru-
ção simbólica de uma nação que enfrenta tanto os males da moderni-
dade liberal e capitalista quanto enfrenta a ameaça do marxismo e do
socialismo. Trata-se de criar uma defesa da população pela volta a uma
nação idealizada em um discurso mitológico e fundador, conduzida por
um “guia” que está acima de todos os habitantes e se coloca como re-
presentante total do Estado. Com ele, esse Estado garante sua presença
e elimina todos aqueles que possam ser interpretados como “uma ame-
aça à nação”. Há que se notar que essa é uma característica marcante
do fascismo, tanto franquista e salazarista, na Espanha e em Portugal,
quanto do de Mussolini, na Itália, regimes que não necessariamente se
destacaram por serem, por exemplo, racistas, apesar de sua implacável
perseguição contra regionalismos e opositores ideológicos.
Já o nazismo destacou-se por ter, além das características já ci-
tadas do fascismo, um forte componente racista, especialmente contra
judeus, ciganos e negros. Havia regimes e políticos que não se deniam
como “nazistas”, mas que tinham grandes semelhanças com a Alemanha
de Hitler, tal como o da Romênia ou então o movimento nacionalista
croata durante a Segunda Guerra Mundial. Há que se destacar que o na-
zismo (e, em menor grau, o fascismo), como forma mais uma extremada e
deturpada da soberania popular, poderia conceber um nacional de cultura
ou origem étnica diferente (um judeu, por exemplo) como um estrangeiro
não pertencente à nação e, portanto, uma ameaça à soberania popular.
Outro aspecto marcante dos regimes nazistas e fascistas é a in-
tervenção estatal, bem mais profunda do que a vericada nos Estados
39
Egito e Turquia no Século XXI
capitalistas liberais, liberal-democráticos ou democrático-liberais. Ao
mesmo tempo, são regimes defensores da propriedade privada dos meios
de produção (e, portanto, apoiadores de grandes corporações econômi-
cas parceiras de seus Estados) e inimigos de Estados socialistas em que a
livre iniciativa era totalmente proibida.
Esse conjunto de regimes compunha o Eixo nazifascista. Há
que se destacar que dele estavam excluídos, durante a Segunda Guerra, a
Espanha de Franco e Portugal de Salazar. Lideravam o Eixo a Alemanha
nazista, a Itália fascista e o Japão imperialista (que podemos também
caracterizar como uma variante oriental do fascismo).
A derrota do nazifascismo se deu pelo embate direto, na Se-
gunda Guerra Mundial, contra os Aliados, formados pelas três gran-
des potências liberais (EUA, Reino Unido e a França resistente) e pela
URSS. O Eixo foi derrotado e seus três regimes foram dissolvidos. No
Japão, ainda permaneceu a gura do imperador, mas sem ter o poder de
fato. Derrotadas política e militarmente, as formas de soberania popular
fascista e nazista não sobreviveram. O salazarismo e o franquismo ainda
duraram cerca de 30 anos como regimes isolados, até a queda de seus
respectivos ditadores e a ascensão de democracias liberais tanto em Por-
tugal quanto na Espanha.
É justamente dentro dos regimes de soberania popular que
investigaremos a democracia e o liberalismo. O liberalismo, enquanto
ponto de partida; a liberal-democracia, enquanto evolução do liberalis-
mo; e a democracia liberal como avanço último de um regime pluralista
já consolidado.
Aspectos práticos e normAtivos pArA A trAnsição dA
democrAciA liberAl
Liberalismo e democracia são, teoricamente, dois conceitos
contrários. O liberalismo é moderno, e a democracia é antiga. A de-
mocracia é o sistema político que expande direitos políticos a seus ci-
dadãos, enquanto o liberalismo defende a expansão dos direitos civis
a seus indivíduos. Isso signica que, teoricamente, são dois conceitos
40
Fábio Metzger
incompatíveis. No entanto, podem ser acomodados. Para que possamos
estudar as possibilidades de acomodação desses dois conceitos, vamos
observar com mais atenção características de cada um deles.
O ponto de partida do conceito de democracia é a ideia de um
governo de todos, em contraposição a um governo de poucos (BOBBIO,
1987, p. 31). Da maneira que um governo democrático é aquele que
procura incluir no processo político todos os participantes reconhecidos
(os cidadãos). O primeiro modelo de democracia foi desenvolvido em
Atenas, durante a Antiguidade. Era uma forma de participação no
poder diferente da que entendemos hoje como democracia moderna. A
participação ocorria de forma direta dentro da comunidade política (a
polis), de forma que todos os cidadãos tivessem acesso direto ao governo.
Nesta etapa, vamos distinguir duas formas de exercício da de-
mocracia: a antiga (ou pura), de participação direta, e a moderna (ou
representativa). Neste trabalho, vamos analisar os conceitos de demo-
cracia não com base na ideia dos antigos de polis, mas sim a partir de um
conceito mais moderno, o de povo. Povo é entendido como conjunto de
cidadãos a que cabe, em última instância, o direito de tomar as decisões
coletivas. É preciso delimitar qual é a forma de participação do povo em
uma democracia. Na antiga Atenas, não se falava do conceito moderno
de povo, mas sim do conceito antigo de polis, de acordo com o qual a
comunidade política está limitada a uma parcela da população: os ho-
mens livres e letrados. Mulheres, escravos e estrangeiros não participa-
vam dessa comunidade, de modo que a maioria do povo (entendido no
sentido moderno) não participava das decisões políticas. Já nos tempos
modernos, teoricamente, o povo é incluído totalmente no processo, em
conformidade com a ideia de um sufrágio universal. Estrangeiros natu-
ralizados, analfabetos e mulheres são incluídos como cidadãos do povo.
É com base na ideia moderna de povo que vamos discutir a
participação direta ou indireta na democracia. Rousseau defendia a par-
ticipação direta, dando o exemplo do povo inglês (ROUSSEAU, 2001,
p. 114). Dizia que esse não poderia ser livre uma vez que delegava a sua
participação a representantes e apenas participava periodicamente da
democracia, quando os elegia no parlamento. Por outro lado, os federa-
41
Egito e Turquia no Século XXI
listas defendiam a participação indireta e delegada, na medida em que,
em um sistema puro, o povo tenderia a ser manipulado por paixões de
políticos demagogos e aventureiros e “se voltaria contra si mesmo”, no
nal das contas (MADISON; HAMILTON; JAY, 1957, p. 32, tradução
do autor). A participação indireta em uma democracia representativa
seria uma maneira mais eciente de estabelecer o governo do povo com
a maior estabilidade possível. Na democracia representativa, os repre-
sentantes eleitos estariam em melhores condições de avaliar os interesses
gerais que os próprios cidadãos, que estariam fechados demais em seus
interesses particulares.
O conceito de liberalismo nasceu do jusnaturalismo (direi-
to natural) na Inglaterra. Os primeiros liberais sustentavam que todos
os homens, por sua própria natureza, possuem direitos fundamentais,
como o direito à vida. Esses direitos deveriam ser assegurados pelo Es-
tado, que, em teoria, deveria estabelecer limites para si mesmo. De um
lado, os limites dos poderes do Estado liberal são preservados dentro de
um Estado de direito, enquanto os limites das funções do Estado liberal
são preservados dentro de um Estado mínimo. Em relação ao Estado de
direito, entendemos a contraposição dos conceitos de liberdade e poder:
à medida que o poder avança, a liberdade se enfraquece. Quanto mais
um indivíduo é livre, menos poder um Estado reserva para si mesmo.
O Estado reconhece a liberdade individual, no pensamento liberal. No
entanto, o conceito de liberalismo não contempla a ausência de poder
no Estado, mas sim a ideia de um Estado mínimo. Por outro lado, o
Estado mínimo é mais controlável que o Estado máximo – para o indiví-
duo, o Estado mínimo é um mal necessário, que deve interferir o menos
possível na vida dos indivíduos, mas não estar completamente ausente
(BOBBIO, 1987).
Se em uma democracia podemos pensar em povo, no liberalis-
mo observamos o conceito de nação, isto é, um povo dentro de determi-
nado espaço territorial onde o Estado mantém a sua soberania. Dentro
de um regime liberal, cada representante está ligado à nação inteira e não
aos interesses especícos de determinados grupos, conforme a noção do
Estado de estamentos. Ao ser libertado do Estado estamental, o indiví-
42
Fábio Metzger
duo ganha autonomia. Ele não mais se faz representar como membro
de uma corporação, mas sim como um cidadão nacional. Dadas essas
denições, vamos à pergunta principal: de que maneira um regime auto-
crático evolui para o liberalismo? Em outras palavras: como se constrói
o Estado de direito que garante os direitos individuais do cidadão? Qual
é a estrutura política que permite essa garantia? Nesse caso, já podemos
observar o encontro entre a democracia representativa e o liberalismo na
ideia de democracia moderna, que rompe com o Estado de estamentos
e estabelece a noção de um cidadão nacional. A democracia moderna
pressupõe a atomização da nação e a sua elevação a um novo patamar –
que é característica do Estado liberal, na armação dos direitos naturais
e invioláveis dos indivíduos (BOBBIO, 1987, p. 31-36).
Se observarmos como se forma um Estado liberal, pode-
remos notar que ele decorre de um acordo de acomodação entre o
poder militar e o poder civil, a m de que o primeiro se subordine ao
último – no liberalismo, o Estado concede direitos de participação e
comando político ao governo. Então temos um Estado com funções
principais de manter a segurança do território e da infraestrutura da
nação – um Estado com poderes restritos – e, dentro da nação, uma
sociedade civil que elege um governo.
Na verdade, não há um modelo xo para a transição de um
regime autoritário rumo a um democrático. Cada país tem o seu ritmo
de transformações. Se observarmos cada caso, percebemos que ocorre-
ram mudanças de formas muito especícas. Processos de transição de
regimes autoritários para liberais e desses para liberal-democracias são
feitos por diversas estratégias. Samuel P. Huntington elenca um conjun-
to de cenários de países que saíram de regimes autoritários para governos
democráticos ou, pelo menos, liberal-democráticos. Há de se chamar a
atenção em todos esses roteiros para a existência de duas frentes. De um
lado, aqueles que faziam parte do regime: os “reformadores democrati-
zadores liberais”, defensores de uma transição para liberalizar/democra-
tizar o regime, e os “conservadores”, opositores desse processo. Do outro
lado, os “moderados democratas”, que negociam com o regime (no caso,
com os “reformadores” do outro lado), e os “radicais extremistas”, que,
43
Egito e Turquia no Século XXI
não acreditando no governo nem em um sistema democrático, simples-
mente se opõem às negociações. Ele exemplica casos de transformações
em que, dentro do próprio regime, existiam reformistas que começaram
a liderar mudanças de cima para baixo. Mudanças iniciadas por grupos
que detinham os “meios de coerção da oposição”. Alguns dos exemplos
bem-sucedidos foram os do Brasil, da Espanha e da Hungria. Houve
também casos de substituições em que, havendo lideranças fracas dentro
do regime, foi inevitável o surgimento de um novo conjunto de forças,
democráticas dessa vez, que iniciaram uma nova era política. Alguns
exemplos podem ser citados, como Portugal (em que ociais das forças
armadas se voltaram contra o regime e abriram a frente para um sistema
pluripartidário), Argentina (em que as forças armadas, após uma guerra
malconduzida, perderam o controle político e foram substituídas por
um processo democrático que elegeu Raul Alfonsin), Filipinas (da qual
o ditador Ferdinando Marcos teve de sair às pressas, dando lugar ao
processo democrático que elegeu Corazón Aquino) e Romênia (em que
o ditador Nicolae Ceaucescu foi morto por forças de segurança do país,
sendo sua ditadura substituída por um processo democrático). Houve os
casos das “transtituições”, em que estavam presentes tanto os reformistas
dentro do regime, dispostos a fazer uma transição de cima para baixo,
quanto um grupo forte de opositores dispostos a substituir o antigo
regime e com força para negociar a transição. São exemplos a Polônia e
a Tchecoslováquia, no m de seus regimes socialistas, e a África do Sul,
na condução do m do sistema do apartheid. Ainda podemos falar de
intervenções de fora para dentro, em que forças exteriores derrubaram
um regime autoritário e estabeleceram uma democracia com o apoio de
forças que antes eram menos relevantes no local especíco (como ocor-
reu no Panamá ou em Granada) (HUNTINGTON, 1994, p. 114-163).
Em todos esses casos, assistimos a um longo processo de mu-
danças de um regime autoritário para regimes liberais. Existem casos
de países onde os avanços se limitaram aos direitos civis da população
e pouca coisa foi feita com relação à extensão dos direitos políticos.
Nesse caso, falamos de um avanço de um regime autoritário para um
liberal, a saída de uma situação para outra, em que há liberdade, mas
não democracia.
44
Fábio Metzger
Também podemos falar de casos de países onde os direitos civis
e políticos tiveram grandes avanços, mas os direitos sociais não tiveram
um desenvolvimento imediato, de maneira que o sistema poderia ser
liberal, no sentido de haver liberdade dos indivíduos e democrático, no
sentido de haver a possibilidade formal da participação de todos na es-
colha de quem governa o país. Nesse caso, podemos falar do exemplo
do Brasil, onde existe liberdade de expressão e de associação, os direitos
civis e políticos são assegurados, as eleições são livres, o sistema é plu-
ripartidário e o sufrágio é universal. No entanto, não estão assegurados
os direitos sociais que possibilitem o pleno exercício da cidadania. Uma
parcela da população em idade de votar não é alfabetizada ou é semial-
fabetizada e outra parcela, mesmo sendo alfabetizada, possui limitada
educação formal. A partir disso, podemos falar de uma liberal-democra-
cia no Brasil; se tanto, em uma democracia eleitoral. Mas, ao contrário,
por exemplo, do que ocorre no caso espanhol, ainda não se pode falar de
uma democracia liberal plena.
A Espanha fez a transição de um sistema autoritário (o fascis-
mo franquista) para uma democracia. Havia entre os espanhóis já uma
grande tradição de militância política; um nível de educação formal e
informal superior, por exemplo, ao do brasileiro; e uma organização po-
lítica sucientemente madura, o que dicultou bastante as tentativas
dos militares franquistas mais conservadores de retomar o poder. Há que
se considerar que, com todos os seus problemas sociais (por exemplo,
alta taxa de desemprego, oscilando na casa dos 20%), a Espanha é um
país que garante um extenso programa de bem-estar social para os seus
cidadãos (generosos programas de seguro-desemprego, estabelecimen-
tos públicos de boa qualidade para as áreas sociais de saúde, educação,
transportes, etc.), de modo que o sistema político espanhol se estende
para além das formalidades eleitorais. Ele contempla a proteção de im-
portantes direitos sociais de seus cidadãos (formalmente, súditos do rei;
na prática, cidadãos do Estado).
Dessa forma, antes de falarmos da ideia de democracia libe-
ral, vamos denir um bloco liberal amplo, com três graus diferentes
de regimes liberais: o liberalismo, a liberal-democracia e a democra-
45
Egito e Turquia no Século XXI
cia liberal, um conjunto de países que compartilham necessariamente
valores liberais, mas não necessariamente valores democráticos. Sem
dúvida, duas liberais-democracias ou duas democracias liberais entre
si têm mais valores a compartilhar que uma democracia liberal e um
regime liberal puro. No entanto, todos esses regimes políticos em con-
junto têm muito mais valores a compartilhar entre si do que em rela-
ção a uma ditadura de Estado.
Mais adiante, descreveremos o modo como esse bloco liberal
amplo atua politicamente e com quem ele rivaliza. No entanto, neste
momento, é preciso estabelecer as delimitações básicas não do bloco li-
beral amplo em si, mas sim do liberalismo enquanto espaço garantidor
das liberdades individuais. Até este momento já pudemos analisar as
acomodações do liberalismo e da democracia. Agora, vamos investigar
as acomodações do liberalismo e das religiões, em especial um tipo de
religião: as religiões reveladas – aquelas que teriam sido transmitidas
de uma entidade superior (Deus) para profetas ou “lhos de Deus”.
Esses, por sua vez, teriam, a partir daí, expandido a palavra divina para
a sociedade como uma verdade incontestável, impondo uma lei social
que não foi estipulada pela maioria da população, mas sim estabele-
cida por um axioma de uma classe de sacerdotes cuja função histórica
era manter a narrativa da religião e das leis religiosas acima da socieda-
de na qual eles pregavam.
1.4 liberAlismos e religiões
Levando em consideração que liberalismo e democracia não
são compatíveis, mas são acomodáveis, podemos falar de uma liberal-de-
mocracia ou de uma democracia liberal. Podemos falar de duas variantes
do liberalismo (além do próprio liberalismo político em seus estágios
iniciais). A questão seguinte que se coloca é: a liberal-democracia e a
democracia liberal são compatíveis com religiões reveladas? Em outras
palavras: a soberania popular (em suas formas liberais) é compatível com
a soberania divina?
46
Fábio Metzger
Vamos fazer algumas delimitações neste momento. Em auto-
cracias em que a sociedade é originalmente religiosa, o Estado também
adota princípios da religião – assim, podemos observar uma religião o-
cial associada ao Estado. Quando as leis e os valores religiosos determi-
nam as regras e as convenções da sociedade, isso não é feito de forma
democrática nem popular, uma vez que qualquer norma provém de um
livro ou de uma escritura cujas armações teriam vindo de uma revela-
ção que transcende à realidade terrena. Não cabem questionamentos.
Essas leis não foram aprovadas por um povo ou por uma nação; foram
simplesmente aprovadas por uma entidade divina que, alega-se, está aci-
ma de todos os indivíduos. Um regime de soberania popular não pode,
em tese, admitir esse tipo de lei como superior. Qualquer lei em um
regime de soberania popular emana do povo e, mais especicamente, da
nação. No entanto, não se pode negar o apelo que uma determinada re-
ligião pode ter sobre um povo ou, mais especicamente, uma nação (ou
nacionalidade), de modo que, mesmo que ocorram grandes transfor-
mações políticas em uma sociedade, o elemento religioso sempre estará
presente, de uma forma ou de outra.
Quando cai um antigo regime, tal como ocorreu em 1789 na
França, a sociedade obtém novos canais de comunicação para escolher
e scalizar seus governantes e seus representantes. Os valores da reli-
gião, que justicavam a permanência de um monarca no poder, cede-
ram espaço para a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte
escolhida pelo voto popular (é preciso lembrar que ainda não falamos
do sufrágio universal, algo que só vai ser obtido no século XX). As leis
e a autoridade do novo Estado, portanto, passaram a emanar não de
um poder divino (que, em tese, protegia o monarca), mas sim do povo,
entendido enquanto nação.
Como cam os princípios de soberania popular de uma nação
representada em um Estado, e os princípios de soberania divina de uma
religião? Fica uma nova questão: qual passará a ser o lugar da religião?
Ela será desassociada do Estado, tornando-se apenas mais uma insti-
tuição dentro da sociedade civil, voltada apenas para a promoção e a
manutenção de seus éis? Será gradativamente afastada dos assuntos de
47
Egito e Turquia no Século XXI
Estado e das discussões de Estado e governo, tornando-se apenas uma
instância simbólica? Podemos notar que, no caso francês, o Movimen-
to Restauracionista permaneceu forte por um longuíssimo tempo. Por
várias vezes, a França retornou a um regime monárquico aristocrático,
com a religião exercendo forte inuência nos valores da população. No
longo prazo, entretanto, foi possível vericar um processo de seculari-
zação da sociedade francesa, até o ponto em que a república francesa
separou totalmente o Estado da religião. A Igreja Católica, entretanto,
permanece como uma instância poderosa dentro da sociedade francesa.
A esse respeito, cabe o seguinte questionamento: de que forma um regi-
me de soberania popular, mais especicamente uma democracia liberal
(ou uma liberal-democracia), consegue acomodar dentro de si uma reli-
gião, mais particularmente, uma religião revelada?
Para pensarmos sobre as questões acima, vamos apresentar al-
guns tipos ideais de combinações de Estados, sociedades e religiões, para
ns de exemplicação, isto é, modelos predenidos que servirão para
estabelecermos relações, mais adiante, entre os conceitos de liberalismo
(como uma modalidade de soberania popular) e religião revelada (como
uma modalidade de soberania divina).
1. Uma sociedade civil elege um governo civil e, com isso, ga-
rante leis civis para todos. Um exemplo, já citado, de país
em que se tem soberania popular, Estado laico e separação
total da religião é a França.
2. Uma sociedade religiosa elege um governo de participação
popular, uma vez que a soberania divina é uma lei de uma
entidade (Deus) que transcende teoricamente o povo. É
uma lei axiomática que surge de uma revelação não com-
provada; é a lei de Deus estabelecendo-se sobre a lei dos
homens; a religião é anterior à razão. Um exemplo de Es-
tado religioso é o Irã.
3. Uma sociedade leiga, mas que tem tradição histórica den-
tro de uma religião pode manter sua soberania popular
como princípio, mas não abre mão de uma lei religiosa
pró-forma. Essa sociedade tem as duas leis – a civil e a
48
religiosa – aprovadas pelo Estado. No entanto, a lei pre-
dominante é a civil. A lei religiosa é acomodada e só tem
validade enquanto algo formal. O espírito das leis é de
natureza popular e civil. A lei religiosa é apenas o reco-
nhecimento da religião como parte da cultura popular, e
não como força superior. Nesse caso, podemos falar de
Estados confessionais seculares (ou seja, com uma religião
ocial, mas dotados de lei civil, porque o hábito ocial é
universal, não religioso; um exemplo é o Reino Unido)
ou de Estados laicos teístas (sem uma religião ocial, mas
com o reconhecimento formal da hegemonia do monote-
ísmo na sociedade; um exemplo são os EUA).
Não vamos nos deter aos Estados laicos, nos quais a religião e o
Estado estão totalmente separados. Mas sim, aos Estados confessionais
seculares, onde existe acomodação, mas não separação de ambas. Por-
tanto, como uma possível sequência da já existente acomodação entre
democracia e liberalismo na perspectiva de um Estado liberal, que já
concedeu espaços democráticos de participação. Espaços que são cres-
centes, a ponto de o regime se tornar, em perspectiva, cada vez mais
plurais, concedendo à religião um espaço mais delimitado, em que esta
ca acomodada, e deixa a esfera civil operar como lei principal. Esse
Estado teoricamente não é laico, mas sim leigo, assim como a sociedade
enquanto um todo. Na prática, a religião não domina os espaços pú-
blicos, mas, no plano simbólico, está presente. O liberalismo retica a
supremacia dos direitos civis do povo sobre a lei religiosa, seja apartando
a lei religiosa e desassociando-a do Estado (que não será o caso principal
estudado), seja mantendo-a formalmente, mas concedendo, na prática,
a soberania civil.
2 E  
  (2008-2011)
51
E  
  (2008-2011)
Desde 2008, quando foi defendida a dissertação de mestrado
Pluralismo x radicalismo: a integração do islã político em algumas socie-
dades muçulmanas – os casos de Egito, Turquia e Argélia (METZGER,
2008), até outubro de 2011, muita coisa se passou na política do Egito
e da Turquia. Durante esse período, foi possível trabalhar importantes
questões dentro da história social, que também podem ser úteis para
uma pesquisa no campo da ciência política. Por exemplo: se islã e de-
mocracia são ou não mutuamente compatíveis. Em termos conceituais,
não são compatíveis se analisados enquanto denições políticas teóricas.
No entanto, podem ser perfeitamente acomodáveis, desde que feitas
importantes concessões reciprocamente compatíveis no sentido de uma
liberalização política.
Historicamente, podem ser denidas três formas de soberania
popular, enquanto perspectivas de regimes constitucionais: a democra-
cia liberal, que se consolidou ao longo do século XIX e atingiu o seu
ápice no século XX; o marxismo-leninismo, uma reação às contradições
dos insucessos da implementação da democracia liberal ao longo sécu-
lo XIX e na primeira metade do XX que teve como base a “ditadura
52
Fábio Metzger
do proletariado”; e o nazifascismo, a forma mais deturpada de regime
de soberania popular, surgindo nos anos de 1930 como crítica à de-
mocracia liberal predominante no mundo anglo-saxão e como reação
ao marxismo-leninismo da URSS, uma vez que reduz a soberania dos
povos a um conceito étnico-cultural, nega a pluralidade na participação
política e limita os poderes a um “guia da nação”. Dessas três formas de
soberania popular, privilegiamos, em nosso recorte, a democracia libe-
ral, entendendo-a como a que conseguiu, de fato, obter a sobrevivência
política enquanto modelo de regime político de alcance mundial, após
a derrota da Alemanha nazista e da Itália ao m da Segunda Guerra
Mundial, em 1945, e do m da URSS, em 1991. Por outro lado, o
termo “islã” é denido como forma de soberania divina — em árabe,
submissão (a Deus)”. Com o m do Império Otomano, surgiram três
correntes políticas dentro do islã. O islã tradicional, remanescente do
antigo Império Otomano, que não separava a lei civil da religiosa e man-
tinha-se el a interpretações da lei islâmica (a sharia) feita por clérigos
ligados ao califado. O islã liberal, que é uma releitura que busca romper
com o islã tradicional e entende a religião muçulmana tal como ocorre
com o cristianismo nos países ocidentais: apenas uma religião, cujas leis
seriam, em tese, restritas ao espaço religioso, com a arena pública sujeita
à lei civil. Finalmente o islã político, que é uma crítica à ocidentalização
do islã liberal e à falta de atualização do islã tradicional em relação às
novas realidades. O islã político entende que lei religiosa e lei civil não se
separam e que, por outro lado, a interpretação da sharia não pode car
submetida a um corpo de clérigos ligados aos países que nascem do an-
tigo califado, de modo que autoridades independentes possam também
interpretá-lo. O recorte que foi feito diz respeito, dentro do islã, ao islã
político (METZGER, 2008, p. 24-42). Nos casos vericados, pudemos
notar que a soberania popular (ou lei civil) pode ser acomodada em re-
lação à soberania divina (ou lei religiosa).
Dessas considerações, caram alguns desaos. Se falarmos de
países como Egito e Turquia, que estão acomodando suas esferas reli-
giosas em relação às suas esferas civis, é por existir outra dimensão, em
que ambos acomodam a soberania de seus Estados em relação às suas
respectivas sociedades. Sem essa acomodação de fundo a ser estudada
53
Egito e Turquia no Século XXI
(Estado e sociedade civil), não seria possível a primeira acomodação, es-
tudada na dissertação mencionada (soberania divina/lei religiosa e sobe-
rania popular/lei civil). É essa acomodação entre o Estado e a sociedade
civil o objeto deste presente capítulo. Quando falamos desse processo de
acomodação, estabelecemos duas denições centrais: a democracia e o li-
beralismo, enquanto conceitos políticos relativamente autônomos e não
necessariamente intercambiáveis que devem ser pensados em relação à
Turquia e ao Egito, países que vêm passando por profundas transforma-
ções políticas no começo do século XXI.
Em 2008, a situação política era substancialmente diversa da
atual, tanto para turcos quanto para egípcios. Na época, a Turquia ainda
estava nos seus primeiros anos sob o governo do partido islâmico Justiça
e Desenvolvimento (AK) e a presidência do país permanecia nas mãos
dos seculares, apoiados pelo exército, ador e pilar da “ocidentalização
da Turquia
1
. Ainda estavam sendo debatidas as primeiras polêmicas den-
tro da Turquia sobre o modo como acomodar democracia e religião em
um regime liberal. Uma situação que inuenciou a Turquia quanto à
adoção dos critérios para avançar nessas questões foi a necessidade de
mudar as suas leis (como a abolição da pena de morte) para seguir as
cláusulas democráticas exigidas para a entrada na União Europeia. Na
medida em que o país se democratizava, e a participação popular come-
çava a se sobrepor à força do Estado autocrático secular, paradoxalmente
ocorria um avanço de forças conservadoras da religião. Mais voltada para
o Ocidente, a Turquia ainda tinha mais esperanças em entrar na União
Europeia, sustentava uma aliança privilegiada com os EUA, e mantinha
boas relações com Israel. Por outro lado, a presença turca no Oriente
Médio era bem menos expressiva. A depressão econômica de 2008 que
atingiu o bloco europeu expôs a crise em um país-chave nas relações po-
líticas de Ancara: a histórica rival Grécia, que passou por um processo de
grande enfraquecimento político. A guerra do Iraque, iniciada em 2003,
tornou-se um grande problema político para a aliança liderada pelos
EUA. A Turquia, que tinha se recusado a ceder seu espaço aéreo para a
intervenção estadunidense nessa guerra, passou a sofrer, com os anos,
Em, 1922, a República da Turquia foi fundada pelo presidente do país, Mustafá Kemal Ataturk, um líder
ocidentalizado (ele se autodenominava “pai dos turcos”).
54
Fábio Metzger
interferência crescente na região que era seu “estrangeiro próximo”, com
anidades ou conitos herdados do Império Otomano. Foi o caso, por
exemplo, do Curdistão iraquiano, em que o governo turco chegou a
realizar intervenções militares diretas para impedir a “contaminação” da
minoria curda no território turco. Por outro lado, as revoltas árabes que
explodiram em 2011 tiveram fortes repercussões em um país árabe vi-
zinho da Turquia: a Síria, onde movimentos oposicionistas ergueram-se
contra o governante do país, Bashar Al-Assad, de modo que a Turquia
passou a interferir mais politicamente em seu vizinho. Por outro lado, a
paralisia do processo de paz entre palestinos e Israel mobilizou Ancara
cada vez mais para a defesa da causa palestina, afastando-se do seu antigo
aliado, o governo israelense.
Em 2008, o Egito ainda vivia sob o regime autocrático de
Hosni Mubarak. Não havia, aparentemente, perspectiva de queda de
seu governo. Mantinha forte apoio dos EUA e tinha proximidade com
Israel, inclusive negociando um acordo comercial com esses dois países.
Ao mesmo tempo em que Mubarak mantinha proximidade com o Oci-
dente, sustentava forte repressão aos movimentos defensores do islã po-
lítico (também conhecidos como islamistas), mais violentos, e mantinha
os seus adversários seculares, além do principal grupo opositor egípcio,
a Irmandade Muçulmana, sob forte vigilância. Simultaneamente, fazia
concessões aos clérigos islâmicos locais, em um delicado jogo de equilí-
brio de poderes. Aproximava-se do Ocidente, reprimia opositores à es-
querda e à direita e fazia concessões políticas a religiosos islamistas com
discursos antiocidentais. Mubarak era o autocrata de um Estado cujos
poderes estavam concentrados em uma burocracia civil/militar que dava
a ele forte sustentação. Desde 1981, quatro anos após os acordos de paz
com Israel, quando Anwar Sadat, o então presidente do Egito, foi assas-
sinado, Mubarak passou a governar o país em estado de emergência. No
início de 2011, no entanto, o país, sentindo os efeitos de uma crise eco-
nômica e social, viu-se diante de uma série de manifestações populares
que exigiam a queda do regime. Mubarak viu sua situação tornar-se cada
vez mais insustentável e nalmente foi afastado, assumindo em seu lugar
uma junta militar com assessoria civil. Podemos remeter-nos ao conceito
de revolução passiva, em que as elites assumem as mudanças de cima para
55
Egito e Turquia no Século XXI
baixo, antecipando-se a transformações que possam vir das camadas in-
feriores. Trata-se do transformismo, ou seja, de uma transformação feita
de cima, mantendo as estruturas de poder anteriores (GRAMSCI, 1976,
p. 75-81)
2
. O governo egípcio suspendeu o estado de emergência, em
um primeiro momento. Aproximou-se dos palestinos e afastou-se de
Israel. No entanto, o esperado processo de abertura política quase não
se concretizou.
2.1 liberAlismo e democrAciA AplicAdos Aos cAsos turco
e egípcio
Vamos tratar de questões da teoria e da losoa política em
face das últimas transformações por que vêm passando o Egito e a Tur-
quia – dois Estados-chave nos processos de transição em andamento no
Oriente Médio –, desde 2003, quando o partido AK assumiu o gabinete
de governo da Turquia, até os dias atuais, quando o regime de Mubarak
foi deposto pelos militares, mas não derrubado pelo povo (diferente-
mente do que aconteceu no Irã em 1978, por exemplo, quando uma
revolução popular derrubou a monarquia e, em seu lugar, foi instaurada
uma república islâmica). Pensando na questão das denições, primeiro
de democracia e liberalismo e, mais adiante, de democracia liberal, va-
mos analisar aspectos importantes da losoa política contemporânea, à
luz das mudanças de paradigma desses dois países, em particular, e na re-
gião, como um todo. A esta altura, cabe um esclarecimento: nós estamos
falando do liberalismo enquanto liberalismo político; portanto, falamos
de um Estado de direito liberal; por outro lado, não abordaremos a de-
nição do liberalismo econômico dos ingleses ou o liberismo dos italianos,
que se denem pela noção de Estado mínimo – concepção segundo a
qual o Estado evita ser um agente de intervenção direta na economia de
um país, limitando-se a atuar em setores especícos da sociedade civil.
Antes de nos remeter aos exemplos a ser estudados, vamos co-
locar aqui uma questão importante, que não pode ser ignorada. De que
Gramsci se refere ao processo de unicação da Itália, o Risorgimento, em que o rei, com apoio das elites, se
antecipa e evita a revolução democrática pelas bases e instaura uma monarquia, isolando aqueles que deseja-
vam a construção de uma república constitucional.
56
Fábio Metzger
democracia falamos? Democracia enquanto método? Ou enquanto valor?
Nesse sentido, é importante denir um processo político que ocorre nos
países muçulmanos: na medida em que suas respectivas sociedades acei-
tam os termos de um regime democrático, o que o Estado e os partidos
políticos islâmicos entendem como democracia? Como método? Como
valor? Ou como ambos? (SCHUMPETER, 1984, p. 314-353). Esse é
um conjunto de questionamentos-chave para que possamos compreen-
der, não apenas os sistemas políticos de Egito e Turquia, mas todo o seu
processo histórico, e como os respectivos Estados e suas populações li-
dam com a perspectiva de construir sociedades que possam desenvolver
uma ética pluralista dentro de si.
O Egito conseguiu, no início de 2011, superar um regime au-
tocrático secular que vigorava desde 1951 e que estava em estado de
emergência desde 1981. Se o afastamento de Mubarak signicou o m
de uma autocracia, nada indicava que uma democracia autêntica esta-
ria surgindo em seu lugar. Mubarak foi substituído por uma junta de
militares e civis liderada por um antigo membro do regime, marechal
Tantawi, que era ministro da Defesa. Nessa ocasião, considerou-se a
possibilidade de um processo de transição política com ciclo completo
rumo à democracia (o que inclui a suspensão do estado de emergência,
a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, a organização
partidária, o sufrágio universal e eleições gerais). No entanto, o caso do
Egito teve outros desdobramentos. A constituição anterior permaneceu,
com a alteração de alguns artigos, submetidos à aprovação em um refe-
rendo popular. As eleições para a nomeação de um novo poder executivo
e um novo legislativo foram adiadas. Manifestações têm sido seletiva-
mente reprimidas pelas forças policiais, e o estado de emergência tornou
a vigorar, depois de uma marcha contra a Embaixada de Israel que pro-
vocou tumultos entre a polícia e os manifestantes. Por outro lado, novos
partidos começaram a ser organizados no país. Como já mencionado,
a Irmandade Muçulmana, partido islâmico com grande penetração na
sociedade egípcia, abdicou de lançar um candidato à Presidência da Re-
pública. Observa-se uma transição política, com um cenário rumo à
liberalização, tendo a possibilidade de ampliar a vigência dos direitos
civis e as liberdades individuais, em relação ao antigo regime autocrático
57
Egito e Turquia no Século XXI
e autoritário, mas não se verica um processo real de transição para um
regime democrático, ou seja, há uma limitação do poder no vértice da
pirâmide do Estado, mas não uma ampla distribuição do poder para a
base da sociedade civil.
A Turquia, desde 1950, vinha tendo um sistema político plu-
ripartidário, com um regime parlamentarista sob a tutela de um poder
moderador exercido, de fato, pelo Estado maior das forças armadas, sen-
do essas grandes adoras do Estado kemalista. Ocasionalmente, quando
uma coalizão ou um partido desaavam o sta militar, acontecia uma
intervenção, o governo eleito era derrubado e dissolvido (e vários minis-
tros, inclusive, fuzilados) e outro, sob as orientações das forças armadas,
o substituía, sem, no entanto, alterar o sistema pluripartidário, de su-
frágio universal e parlamentarista. Tratava-se de um regime liberalizado,
mas ainda não plenamente democrático. A partir de 2003, quando o
partido islâmico AK assume o poder, tem acontecido um novo processo.
O AK, considerado moderado, é eleito democraticamente para ocupar o
governo, sob a condição de aceitar os termos de um Estado secularizado
e, desde então, ele busca uma forma de acomodar os interesses da imen-
sa parcela da população que o elegeu, diante do poder de fato que possui
o exército turco, autoproclamado como o “guardião do secularismo” do
Estado. Tal acomodação acontece não sem confrontos. O AK busca uma
abordagem que permita que a religião avance na política sem que avance
no Estado. Os militares turcos, junto com a elite secular, buscam evitar o
avanço da religião dentro da sociedade. O resultado tem sido de alguns
avanços em determinadas áreas e de recuos em outras, isto é, um equilí-
brio instável, sem que haja um jogo de soma zero, que implicaria a perda
ou o ganho total de uma das partes, em completo prejuízo da outra. É a
democratização dentro do liberalismo (BOBBIO, 1987, p. 28-31).
2.2. democrAciA liberAl e islã
A pesquisa em que estamos trabalhando, entretanto passa por
uma questão importante: estamos aplicando conceitos como democracia
e liberalismo em sociedades cuja vivência desse sistema é relativamente
58
Fábio Metzger
recente, ou praticamente nenhuma, de maneira que, se a questão da de-
mocratização no liberalismo é algo já bastante avançado nos países oci-
dentais, em sociedades muçulmanas existem especicidades que não po-
dem ser ignoradas. Podemos, assim, começar vericando a forma como
se deu o processo de secularização de sociedades ocidentais, que é algo
observado por Peter L. Berger (1985) em O dossel sagrado. Ele faz uma
análise do processo de secularização das sociedades de uma perspectiva
cronológica. Uma sociedade pré-liberal (ou seja, antes do advento dos mo-
delos de democracia liberal na Europa) estaria operando a partir de um
matiz coletivo em que a religião (no caso, cristã) é a base ideológica que
se impõe aos indivíduos. O Estado estava associado a entidades represen-
tativas religiosas. A partir do momento em que acontecem as chamadas
revoluções liberais-iluministas” nos países europeus, a base das institui-
ções religiosas desmembra-se do Estado, e as relações sociais passam a en-
fatizar as livres escolhas, e não as opções determinadas pelos valores de
uma religião dominante. A ideia de uma sociedade baseada na religião
passa a perder sentido, de modo que uma antiga estrutura de plausibilidade
baseada na difusão de valores religiosos é dissolvida, e, em seu lugar, passa
a operar uma nova estrutura de plausibilidade, baseada na racionalização
dos espaços públicos, nas livres escolhas políticas dos cidadãos e em re-
ferências de regras de mercado (BERGER, 1985, p. 139-164). Em uma
sociedade pré-capitalista cristã, as referências morais da sociedade eram
regidas pela Igreja Católica. A partir da Reforma Protestante, a estrutura
do catolicismo ganhou a concorrência de novas igrejas, com concepções
diferentes da sua, na Europa Setentrional e nos EUA. No entanto, ain-
da adotavam um modelo de sociedade com regimes não constitucionais.
Com as transformações políticas que ocorreram a partir do século XVIII,
como a Revolução Francesa, momento em que as instituições eclesiásticas
foram separadas do Estado, ou então acomodadas, a hegemonia da Igreja
Católica foi quebrada e deu lugar a um novo tipo de dinâmica social, em
que as instituições religiosas passaram a não mais estar associadas a mo-
narcas absolutos. Em vez disso, essas instituições tiveram de se submeter
a um poder constitucional eleito popularmente por populações leigas. As
liberdades de escolha política e econômica passaram, assim, a dar espaço
a novas religiões. Com isso, criou-se uma concorrência entre instituições
59
Egito e Turquia no Século XXI
e religiões na conquista de éis e um mercado religioso tomou forma. A
reação da Igreja e das novas instituições e religiões que ascenderam foi
criar um movimento ecumênico, que mantinha um discurso de tolerância
às práticas religiosas, mas cuja natureza era a de preservar os interesses
das instituições e das religiões dominantes, de maneira que elas acabaram
formando uma espécie de oligopólio da mensagem religiosa. Assim, elas
mantinham acordos para preservar “reservas de mercado” religiosas dentro
de sociedades civis secularizadas, buscando dicultar a adesão de éis a
outras religiões, menos difundidas (BERGER, 1985).
No momento atual do islã, podemos dizer que há uma situ-
ação semelhante à daquele momento. No entanto, existem diferenças
fundamentais. De um lado, os movimentos políticos na cristandade
estão originalmente atrelados a uma instituição milenar, a Igreja Ca-
tólica, e às suas dissidências protestantes (Igrejas Luterana, Anglicana,
Calvinista, Batista, etc.). Essas instituições possuem clara distinção em
relação a um espaço público não religioso. As igrejas formam um cle-
ro reconhecido e com delimitações ociais. A distinção entre o clero
e o não integrante da estrutura religiosa (leigo) é bem clara. Existe
um monopólio desse clero sobre a difusão dos rituais religiosos, tais
como a missa. No momento em que ocorrem as revoluções dos séculos
XVIII e XIX, a Igreja Católica passa a ter seus elos com o Estado de-
nitivamente separados nas repúblicas e a ter acomodações com a socie-
dade civil nas monarquias constitucionais, de maneira que ela manteve
a estrutura que possuía no período anterior, apesar de não estar mais
associada ao aparato ocial do Estado ou, pelo menos nos casos das
monarquias, de ter o seu papel reduzido a uma esfera de símbolo de
identidade nacional de determinadas sociedades.
No islã, há diculdade em se pensar uma sociedade ecumênica,
tal como Peter Berger descreveu. A inuência da religião sobre o Estado,
nos países muçulmanos, ainda é grande, de maneira que o conceito de
mercado de religiões não se sustenta. A esfera de inuência do islã ultra-
passa os rituais e penetra nas sociedades. O islã é uma religião que possui
códigos de direito militar, econômico, civil e penal próprios. Por outro
lado, o conceito, no islã, de uma coletividade à parte do Estado não se
60
Fábio Metzger
desenvolve em conformidade com o conceito de sociedade civil, mas
sim com a denição da umma, ou seja, a “comunidade dos éis”. Além
disso, não existe a defesa do monopólio de um clero ocialmente reco-
nhecido para a difusão da mensagem religiosa. Uma reza pode ser mi-
nistrada por qualquer indivíduo, desde que ele conheça os testamentos
religiosos. Nesse contexto, o islã proclama o Alcorão como a revelação
mais avançada existente e confere aos judeus e aos cristãos o estatuto de
dhimmi, ou seja, de minorias protegidas na comunidade islâmica, que
podem praticar suas respectivas religiões, desde que o façam nos limites
que o islã determina. Por exemplo, é proibida a conversão ao judaísmo
e ao cristianismo e a disseminação dessas crenças fora de suas respectivas
comunidades. Essas características fazem com que, diferentemente de
uma concepção de ecumenismo, haja uma sobreposição do islã às outras
crenças. Nazi Ayubi (1991), em Political Islam, dene o islã como “uma
religião com moralidades coletivas”, em que:
[...] há muito pouco no que é especicamente político [...]A religião
e a política caminharam juntas dentro do Estado [e que] o Estado
se apropriou da religião. o reverso do que aconteceu na experiência
europeia, onde, historicamente, foi a Igreja quem se apropriou da
política (ou, no mínimo, interferiu nela). […] uma vez removida a
Igreja, acabou sendo removida a religião da política. No moderno
Estado árabe, o secularismo foi introduzido por “emulação” e, de
qualquer forma, não poderia excluir religião simplesmente como se
estivesse excluindo a Igreja, porque não existe nenhuma Igreja no
islã. (AYUBI, 1991, p. 4-5, tradução livre).
As condições para que a acomodação de religião e Estado acon-
teça no islã cam dicultadas na medida em que não existe na religião
muçulmana uma instituição ocial como a Igreja Católica. O que existe
é a percepção, por parte dos muçulmanos, no interior da umma, de que
o islã é a sua referência principal. Em uma sociedade religiosa, em que
a religião não se faz presente em forma de instituição ocial e o Estado
é administrado por um direito religioso em áreas que vão além de ritos
e união entre famílias, a estrutura de plausibilidade se torna resistente a
um processo de separação ou acomodação entre religião e Estado.
Najla Kamel (2003, p. 49) declara que:
61
Egito e Turquia no Século XXI
[...] o Alcorão [...] tem uma posição única como texto lido e ouvi-
do, texto recitado, memorizado e transformado em caligraa, com
um vasto aparato de imagens e metáforas que podem ser usadas na
criação de diferentes signicados e representar um grande número
de experiências humanas. [...] a secularização ainda não se coloca
como problema para o islamismo, pois no Islã não há uma divisão
das diversas áreas do conhecimento”. Uma tendência, “na exegese
moderna do Alcorão [...] de [...] um aspecto da história natural,
baseada na visão de que o Alcorão antecipa a ciência moderna. [...]
É, ao mesmo tempo, o cenário de crenças religiosas e dogmas e
um padrão de comportamento projetado para ordenar as relações
entre o homem-homem e entre homem-Estado. (KAMEL, 2003,
p. 49-51).
Comparando com a experiência Ocidental, Peter Demant ressalta:
o lugar do Alcorão no Islã é incomparavelmente superior ao da Bí-
blia não havendo qualquer paralelo com outra religião [...]. Como
resultado, um grande número de injunções bíblicas pôde ser colo-
cado entre parênteses por judeus e cristãos (como o apedrejamento
de homossexuais). Por uma variedade de causas, nem todas com-
pletamente claras, a evolução histórica do Islã foi oposta e condu-
ziu a uma restrição em lugar de uma liberdade de exegese. [...] a
eternidade e imutabilidade do texto foram aceitas como dogmas
da religião: consequentemente, o Alcorão não pode ser estudado
como produto de seu tempo, sendo mais difícil relativizar seus
versículos mais rígidos. (DEMANT, 2004, p. 343).
Diante dessa especicidade, quando falamos de um modelo
constitucional – e, mais especicamente, da democracia liberal –, isso
diz respeito a uma acomodação, que serve como um moderador na vio-
lência do extremismo. E nos remetemos ao exemplo dos casos de aco-
modação entre religião e Estado fora do islã. Quando se fala da violência
religiosa no mundo islâmico,
há um verdadeiro problema que parece se distinguir de outros mo-
mentos violentos da história. É verdade que a história do cristianis-
mo é mais violenta do que a muçulmana, mas há muito o cristianis-
mo vem perdendo o seu poder, situando-se em uma nova posição
na sociedade, mais limitada e privatizada. […] o fundamentalismo
protestante, por extremo que seja, geralmente não utiliza violência
aberta. (DEMANT, 2004, p. 342).
62
Fábio Metzger
Enzo Pace sustenta que o principal desao para os países islâ-
micos em relação à aplicação de modelos políticos ocidentais refere-se a
questões como os direitos humanos, tão importantes na construção de
democracias liberais.
Na Declaração do Cairo, de 1990 – que até hoje continua sendo
a mais articulada carta dos direitos, assumidos do ponto de vista
dos Estados de tradição muçulmana, reunidos na Organização da
Conferência Islâmica Mundial –, há, com efeito, dois artigos (o 24
e o 25) que não deixam dúvidas: se os direitos humanos entram em
choque com a lei corânica (a shari´a), é esta última que deve preva-
lecer. Trata-se de uma referência a uma Grundnorm (norma funda-
mental) que se considera não humana, e sim revelada diretamente
por Deus. Os direitos humanos (huqûq al-insan), noutras palavras,
não têm nenhum fundamento fora, ou pior, contra os direitos de
Deus (huqûq Allah) (PACE, 2005, p. 317-318).
Outra questão é a punição pelo abandono da religião islâmica
(apostasia), algo que, dentro do mundo muçulmano, tende a ser mal-
visto e punido. Certamente, é necessário relativizar. É preciso esclarecer
que, entre países de maioria islâmica, incluem-se desde aqueles nos quais
o islã é mais liberalizado, tal como a Turquia, até aqueles onde a lei islâ-
mica é praticada de forma mais rígida, como a Arábia Saudita. Tudo isso
em um sistema internacional cada vez mais globalizado, porém dentro
de um ambiente político em que o islã político vem ganhando espaço
bem maior nas sociedades muçulmanas. Esse documento reete uma
posição em que o direito positivo e a sharia são combinados, sendo que a
última se torna fundamento para o primeiro. Não se trata de um direito
islâmico puro, mas sim de uma combinação de direito secular e divino,
em que o último acaba tendo presença fundamental. No caso do Egito,
é justamente isso que tem acontecido: a m de deter os islamistas, vem
se criando essa combinação de normas do direito positivo e da sharia,
estando essa última com peso decisivo, o que faz com que a sociedade lo-
cal pague um preço bastante elevado (PACE, 2005, p. 319-320). Obvia-
mente, essas questões dicultam a adesão plena de países muçulmanos
a uma cultura democrática liberal moderna. No entanto, não impede
que uma parte importante desses países esteja aberta à “livre circulação
63
Egito e Turquia no Século XXI
de ideias e pessoas”, em que o próprio tema dos direitos humanos seja
colocado em questão.
2.3 democrAciA, liberAlismo e islã: A hipótese de um
“governo misto
Nesse sentido, é preciso localizar as ideias criadas e desenvolvi-
das no mundo ocidental, entre os locais em questão – no caso, o mundo
muçulmano onde atores políticos adaptam as ideias ocidentais ao con-
texto de Egito e Turquia. O discurso hegemônico estabelecido nas ideias
do mundo ocidental e que usamos como exemplo é o da democracia
liberal, ou seja, a acomodação entre democracia e liberalismo: um gover-
no de todos, em que o Estado limita os seus poderes e os poderes de seus
agentes, de forma a acomodá-los em uma esfera comum.
Diante do discurso, existe a realidade: uma sociedade pode
até orientar-se por uma linguagem (por exemplo, a democracia liberal).
No entanto, os seus referenciais primeiros são baseados em suas insti-
tuições internas e se essas instituições internas não são historicamente
democráticas, tampouco liberais, a tendência não é criar democracias
liberais, mas sim formas de governos que combinem o tipo ideal apre-
sentado, enquanto discurso, com a realidade histórica. Por exemplo:
um país muçulmano historicamente acostumado a viver sob governo
do islã e que, no máximo, foi capaz de estabelecer regime republicano
nacionalista e autoritário, quando derrubada a antiga teocracia. Ele
deseja tornar-se democrático e adotar um regime de democracia libe-
ral, tal qual países da Europa Ocidental e da América do Norte. No
entanto, ele encontra duas sérias diculdades. A primeira: estabelecer
a separação da sociedade religiosa da civil, uma condição fundamental
para que um Estado democrático liberal possa funcionar. A segunda:
burocracia militar historicamente bem estabelecida resultante da expe-
riência prolongada sob um regime militar. Esse país terá diculdade
em adotar a democracia liberal, no entanto terá a possibilidade de
obter um regime de governo misto, ou seja, que combine, na prática,
a fonte ideal de governo (a democracia liberal) com a experiência his-
64
Fábio Metzger
tórica real (o nacionalismo militar centralizado sobre uma sociedade
com baixa distinção entre o civil e o religioso).
Na realidade, apresentamos a hipótese de um regime de go-
verno misto que combina a democracia liberal dos ocidentais, que to-
mou formas avançadas ao longo do século XX (com o sistema político
pluripartidário, representativo indireto, com revezamento de poderes
e sufrágio universal), o militarismo dos Estados nacionais modernos,
que se consolidou no século XIX (cuja principal característica é a ma-
nutenção do monopólio legítimo da violência sobre todo um território
soberano), e o islã dos muçulmanos, que nasceu no século VII d.C.,
formando um vasto império, abrangendo os continentes africano, eu-
ropeu e asiático (caracterizado pela armação universal da soberania
de Deus acima das demais soberanias).
Esse regime de governo misto, em que coexistem os defensores
da democracia liberal (que defendem a soberania individual e popular
combinadas sobre o governo), do nacionalismo (que defende a sobera-
nia do Estado sobre o território) e do islã (que defende a soberania de
Deus sobre as demais soberanias), não é novidade no mundo muçul-
mano. Diversos países tentam combinar essas três formas de governo.
O equilíbrio, no entanto, é sempre precário. Uma das forças tende a
sobrepor-se às demais e isso gera fortes reações. Por exemplo, quando a
Argélia realizou eleições gerais, em 1991, a Frente Islâmica de Salvação,
partido defensor do islã político, estava prestes a vencer as eleições, com
apoio da ampla maioria do eleitorado. Um modelo de democracia liberal
estava prestes a eleger um partido adepto do islã político. Na dúvida em
relação à convivência dessas duas formas de poderes, o Estado nacional
moderno argelino, liderado pelo seu exército, deu um golpe de Estado,
a que se seguiu uma sangrenta guerra civil, na qual mais de 100 mil pes-
soas foram mortas. O equilíbrio, no caso argelino, mostrou-se precário.
Em um caso contemporâneo, a Turquia elegeu um partido
adepto do islã político moderado, o Refah, em 1996, que governou sob
coalizão com partidos seculares. No entanto, pressionado pelo sta mi-
litar local, esse governo caiu e o partido foi dissolvido, sob a alegação de
que estaria confrontando as razões do Estado secular turco. Diferente-
65
Egito e Turquia no Século XXI
mente do que ocorreu na Argélia, não houve Guerra Civil na Turquia,
apenas uma reforma política, e, em 2003, um partido de raízes islâmi-
cas, mas não adepto incondicional do islã político, o AK, assumiu o
poder. O AK desde então vem governando o país, condicionando-se às
determinações do sta militar turco enquanto, gradativamente, faz mu-
danças no país, sem confrontar-se com as razões de Estado.
Houve uma acomodação, não sem tensões, entre os militares
turcos e o governo do AK, com momentos em que o último foi, pelo
primeiro, ameaçado, condicionado e enquadrado. Mas o partido, por
outro lado, pôde, após as negociações de acomodação, assumir posições
simpáticas à população e mais toleráveis a importantes setores militares,
a ponto de poder eleger não apenas a chea de governo, mas também a
de Estado. No entanto, o governo turco ainda vivia sob ameaça de gol-
pe, tendo de exonerar militares acusados de conspiração, modicando a
ordem das forças: pela primeira vez o poder militar passou a se submeter
ao civil. Isso com um governo de partido islâmico não adepto do islã po-
lítico. Seria essa uma versão de democracia liberal no mundo muçulma-
no? Ou então um regime de governo misto em que um partido islâmico
liberalizado comanda o país, submetendo uma burocracia militar leiga a
seu comando, sem alterações signicativas na sociedade?
Podemos direcionar esses questionamentos ao Egito, foram
realizadas as eleições para o parlamento, em 2011, e dois partidos islâ-
micos estão atingindo cerca de 65% do total dos votos. Por outro lado,
as eleições locais foram marcadas pela forte intervenção militar e pela
clara derrota de setores liberais e à esquerda, que vinham se afastando
do processo. A burocracia militar tradicional leiga e a preferência par-
tidária islâmica (adeptos do islã liberal, com 45% dos votos, e do islã
político, com 20%) sufocaram o terceiro pilar: a parcela dos egípcios
defensores de uma sociedade democrático-liberal inequívoca. Dessa
forma, cou a dúvida quanto à viabilidade de esse regime de governo
misto se sustentar.
Está clara a disputa pela hegemonia dentro do Estado, tanto
no caso turco quanto no caso egípcio. No entanto, a Turquia viveu um
processo mais avançado de vivência de instituições liberais, em que os
66
Fábio Metzger
militares puderam, por um tempo prolongado, submeter-se a um poder
civil, a partir de um governo liderado por um partido islâmico e de uma
oposição encabeçada por partidos seculares. Essa dúvida permaneceu no
Egito. Quais seriam os partidos a governar? Teoricamente isso poderia
a uma combinação de militares leigos, uma maioria islâmica moderada
no parlamento e uma minoria secular, sob a aceitação de ambas as par-
tes. Na prática, durante o ano de 2011, os participantes do islã político
eleitos no parlamento, de um lado, e os liberais, democratas e socialistas
participantes do movimento de derrubada do regime de Hosni Muba-
rak, de outro, poderiam estabelecer um marco mínimo de tolerância
entre si, junto com os militares que sucederam a Mubarak. Entretanto,
a questão real é que se faz necessário um conjunto de cumprimentos de
acordos que não foram executados, na época. Por exemplo: a Irmandade
Muçulmana tinha concordado em não lançar candidato à presidência.
No entanto, o Tribunal Constitucional Egípcio anulou as eleições da
Assembleia Popular, na qual os islâmicos eram majoritários. Os Irmãos
Muçulmanos assim decidiram lançar um candidato à presidência e ven-
ceram. Já possuíam maioria na Assembleia Nacional Constituinte e no
Senado. De maneira que a transição do Egito foi tomada de tantos aci-
dentes, que setores do antigo regime, e grupos representantes do islã
político pareciam pouco dispostos a realizar, dentro da transição demo-
crática, as mútuas concessões que legitimam um pacto social.
Pensemos nos discursos em que parte relevante dos atores
políticos turcos e egípcios buscava ainda, ao menos, conciliar o islã
de seu passado histórico, o nacionalismo de seu passado recente pró-
-turco e pan-árabe, e a democracia liberal do presente que a socie-
dade global a eles impõe enquanto necessidade. É em torno desse
espaço que as intenções de cada parte se entrelaçavam. São disputas
pela hegemonia de novos Estados globais em construção, sob regi-
mes de governo misto, com cenários abertos, seja para um recuo
para as antigas formas de governo, seja para a manutenção precária
do equilíbrio de governos mistos. Nenhum desses cenários pode ser
descartado, nem na Turquia, nem no Egito.
67
Egito e Turquia no Século XXI
Um aspecto a ser considerado: a democracia liberal, enquanto
edifício teórico é relativamente fácil de construir, porque ela pressupõe
dois elementos que, se aparentemente contraditórios por um lado, de
outro têm formas relativamente simples de funcionar. A democracia
pressupõe o elemento da defesa dos valores democráticos, ou seja, que
todas as decisões importantes tomadas devem levar em conta a vontade
geral de uma população, não importando se essa vontade geral é esta-
belecida por maioria relativa, maioria absoluta, maioria qualicada ou
consenso. Por outro lado, colocar em prática esses valores democráticos
não é suciente, porque existe outra limitação: a maioria a tomar deter-
minadas decisões pode não compartilhar desses valores democráticos,
ou então estar sujeita a lideranças que não compartilhem de valores de-
mocráticos. Assim, uma democracia perderia o seu valor na medida em
que, por meio dela, se estabelecesse um regime antidemocrático. Nesse
caso, seria necessária a disseminação de valores gerais de tolerância de
um grupo em relação aos demais, de modo que todos aceitassem os pres-
supostos uns dos outros, negociassem um armistício e, a partir daí, ce-
dessem em favor de posições moderadas que permitam o funcionamen-
to dos governos e do Estado. São consensos ou resultados de disputas
baseados na noção de pluralismo na política. Falamos de valores liberais.
Se colocarmos esse modelo de valores democráticos e de valores liberais
dentro de um modelo de Estado nacional moderno – em que a religião
ou está separada do Estado, ou bastante enraizada na sociedade, em que
as forças armadas obedecem ao comando civil nomeado pela via eleitoral
livre e aberta, por meio do sufrágio universal masculino e feminino –,
será relativamente fácil efetivar a democracia liberal.
No entanto, se vericarmos que, para além de uma população
que deseja a democracia e o liberalismo, existe parte da uma sociedade
que ainda não conseguiu separar a religião e o Estado e em que ainda
existe um setor das forças armadas que reivindica de maneira ostensiva o
monopólio legítimo da violência, interferindo no modo de participação
dos governos (por temerem que grupos religiosos, tão presentes e bem
organizados na sociedade, possam interferir de forma mais ostensiva na
política interna), ca difícil estabelecer de maneira plena esses valores
democráticos e liberais. No máximo, eles poderiam coexistir de forma
68
Fábio Metzger
limitada sob o jugo de valores nacionalista-militares e alguma inuência
de valores religiosos. Nesse caso, podemos falar não de governos de-
mocrático-liberais, mas sim, no máximo, de governos mistos, ou seja,
aqueles que combinem elementos da democracia liberal, da autocracia
militar e da teocracia religiosa. Sobre esse aspecto, pensemos na autocra-
cia militar enquanto regime comandado por uma corporação – no caso,
as forças armadas – que reivindica de forma total e ostensiva o monopó-
lio legítimo da violência, e o pratica de forma esmagadora. Ao mesmo
tempo, a teocracia religiosa é aquela que reivindica o governo de Deus,
sob o comando de uma religião superior, que teria os seus representantes
em solo terreno.
Esse é o caso do Egito, que mantém uma combinação legis-
lativa do direito positivo, herdado da burocracia militar, com o direito
islâmico, herança da sociedade religiosa criada historicamente pelo islã.
Com a queda do regime autocrático de Mubarak, em 2011, uma parcela
crescente da população egípcia passou a reivindicar um regime democrá-
tico, com a libertação dos antigos presos políticos, a convocação de uma
Assembleia Nacional Constituinte e eleições gerais. No entanto, mesmo
sem Mubarak e seus aliados mais próximos, a elite militar egípcia con-
tinuou hegemônica enquanto força política nacional e a sua disposição
em manter a Constituição antiga permaneceu a mesma, apenas modi-
cando pontos básicos – passaram a ser permitidas a organização política
e pluripartidária e a realização de eleições. Esse movimento, entretanto,
barrou os principais partidos e organizações defensoras da democracia
no país e beneciou de forma mais ampla os partidos islâmicos – o “mo-
derado” Justiça e Liberdade (com 45% dos votos), derivado da antiga
Irmandade Muçulmana, e o mais conservador Al-Nour (com 20% dos
votos) obtiveram, juntos, 65% do total de votos. O Justiça e Liberdade
até se dispôs a fazer concessões, aceitar as regras do jogo de um Estado
leigo e participar, com partidos não religiosos, de um governo de união
nacional. No entanto, o partido Al-Nour, que defende abertamente a
islamização da sociedade, possui uma plataforma mais questionadora
dessas regras. Ambos os partidos ainda representam claramente os res-
quícios da velha teocracia religiosa construída ao longo dos impérios
muçulmanos e dos califados: falamos da antiga umma islâmica, dessa
69
Egito e Turquia no Século XXI
vez reeditada dentro de um governo republicano existente desde 1952.
Esse regime de governo misto, que combina a democracia liberal, no
modo de organização partidária e eleitoral, a autocracia militar, enquan-
to forma de comando do Estado, e a teocracia religiosa, mantendo ainda
aspectos da antiga umma islâmica seria o acordo mais próximo que o
Egito pudesse alcançar.
Na Turquia, buscou construir um regime mais próximo de
uma democracia liberal, mas ainda dentro de um modelo de governo
misto. O chefe de Estado é civil e pertencente a um partido de origem
religiosa, mas não essencialmente fundamentalista, o AK. O Estado é
original essencialmente secular e radicalmente leigo. No entanto, é con-
fessional, ou seja, o islã é a religião ocial do país. Por outro lado, o
país vive a velha questão ligada às nacionalidades curda e armênia. Os
curdos, que representam cerca de 20% da população e ocupam algo em
torno de 40% do território do país, não podem se organizar enquanto
minoria nacional com partidos políticos próprios. Sua cultura e sua na-
cionalidade estão cerceadas pelo Estado turco (assim como pelos Esta-
dos vizinhos Irã e Síria). Em relação à nacionalidade armênia, a questão
é o não reconhecimento do genocídio que o governo do antigo Impé-
rio Turco-Otomano realizou contra essa população, anterior à Primeira
Guerra Mundial. Vamos nos lembrar de que antes de 1922 o território
que hoje compreende a Turquia (também conhecido como a Península
da Anatólia) tinha populações curdas, armênias, gregas, judias, árabes,
turcomanas e turcas e que, no contexto da criação da República da Tur-
quia, ocorreu a Guerra Greco-Turca, na qual uma troca de populações
das duas nacionalidades determinou um novo condicionamento territo-
rial para a população étnica turca.
Tanto a questão armênia quanto a curda são assuntos de Esta-
do, que são de interesse direto do sta militar. Esse, apesar de já não ter
o controle que tinha anteriormente, submetendo-se à chea de Estado
de um civil, mantém-se forte em relação a tais interesses nacionais, de
forma que resquícios da autocracia militar leiga da antiga República da
Turquia fundada por Mustafá Kemal Ataturk ainda permanecem. Dessa
maneira, podemos armar que os militares, em questões nacionais, ain-
70
Fábio Metzger
da são inuentes na Turquia e que, portanto, os valores democráticos e
liberais ainda são limitados. Os valores religiosos estão mais diluídos do
que no Egito, apesar de se notar certamente um avanço no conservado-
rismo político na Turquia, fruto de um avanço de setores religiosos mais
variados. Um conservadorismo não apenas baseado no islã político, mas
também do islã liberal, semelhante à democracia cristã europeia. Nos
últimos anos, o islã político teve um grande avanço, em detrimento ao
liberal, e essa diluição também se perdeu.
2.4 Antonio grAmsci e o conceito de revolução pAssivA
Em termos morfológicos, podemos pensar nos casos de Tur-
quia e Egito tendo a possibilidade de formar regimes de governos mistos,
conjugando democracia liberal, autocracia militar e teocracia (islâmica).
No entanto, nesse ponto nossa abordagem será mais abrangente do que
as próprias formas de governo. Pensemos nos processos históricos que
permitem que tais governos surjam. Existem países cujos regimes surgi-
ram de grandes revoluções populares e cujos processos políticos foram
capazes de derrubar os pilares de um antigo regime e, de uma grande
ruptura, erguer uma nova estrutura.
Pensemos no que aconteceu em 1917, com a queda do czar
Nicolau do antigo Império Russo. Essas estruturas, baseadas nas rela-
ções herdadas do feudalismo, ruíram. Sem o sistema econômico feu-
dal, o sistema político que o sustentara historicamente foi derrubado
por uma revolução popular, realizada por classes (proletariado e cam-
pesinato) e nacionalidades oprimidas, lideradas por uma vanguarda de
revolucionários. Em lugar da monarquia feudal, fundou-se uma união
de repúblicas socialistas, alicerçadas em sovietes. Podemos falar de uma
revolução popular, em que o amálgama de operários, camponeses, na-
cionalidades antes oprimidas e vanguarda de origem pequeno-burguesa,
sob a liderança de Lênin, derrubaram a velha classe e instauraram uma
nova. As condições que permitiram tal mudança estavam dadas: a classe
dominante (a aristocracia feudal) não conseguia exercer mais, de fato, a
hegemonia sobre o território. Ironicamente, foi a velha Rússia dos czares
71
Egito e Turquia no Século XXI
quem liderou amplos processos de industrialização ao longo do sécu-
lo XIX. Desse processo, surgiram classes e suas respectivas frações, das
quais originaram os grupos responsáveis pela formação da Revolução de
1917: os bolcheviques e os mencheviques. Foi esse conjunto de frações
de classes que passou a exercer a hegemonia, de fato, do país, capaz de
paralisá-lo a ponto, de, no limite, neutralizar as atividades do Estado e
derrubar não apenas o antigo governante, mas também toda a classe a
ele aliada. Em seguida, os bolcheviques conseguiram, pela via da guerra,
derrubar o grupo político que estava sustentado em classe antagônica:
a burguesia (os mencheviques). Ambos disputavam o que restava do
poder do antigo Estado russo, e a vitória dos bolcheviques sobre os men-
cheviques resultou no nal desse processo de revolução popular.
No Egito e na Turquia, o rumo dos acontecimentos foi bem
diverso. Vamos nos ater ao caso recente do Egito. Hosni Mubarak, o
déspota, foi derrubado após um levante popular e ele e seus aliados mais
próximos tiveram de deixar o poder. Entretanto, a classe que os susten-
tava – ou seja, a combinação da velha burocracia militar originada na
República Egípcia de 1952 com as elites civis que se beneciaram do
desenvolvimento econômico e político desde então – permaneceu hege-
mônica. Foi essa combinação de grupos políticos, antes igualmente he-
gemônicos, que conduziu a mudança no Egito. Sem dúvida, houve uma
revolução. Caiu um déspota, e, em seu lugar, ergueu-se um novo sistema
de governo. No entanto, essa revolução foi conduzida de maneira muito
diversa daquela que ocorreu na velha Rússia. A população foi capaz de
articular-se e liderar manifestações para remover o antigo governante e
seus aliados mais próximos, no entanto as velhas classes hegemônicas
por lá permaneceram, e foram elas que conduziram a mudança. Então,
podemos falar de uma revolução, mas não de uma revolução popular,
e sim de uma revolução passiva, feita de cima para baixo. Uma trans-
formação que seguiu um processo histórico, atendendo a um anseio do
povo egípcio, que não mais desejava o despotismo de Mubarak, mas que
foi incapaz de resultar, por exemplo, em uma formação que representas-
se essa população de forma mais plena. Fosse uma revolução popular no
estilo marxista-leninista, como ocorreu na URSS de 1917, fosse como
o exemplo político mais próximo que podemos utilizar, que é o de uma
72
Fábio Metzger
revolução popular democrática, como a que ocorreu em Portugal em
1974, quando, caída a autocracia fascista salazarista, organizou-se um
sistema político democrático, pluripartidário, constitucional e com di-
reitos políticos amplos para todos os seus cidadãos.
Para pensarmos em uma denição mais sistemática, vamos nos
remeter a Gramsci, que desenvolveu bem esses conceitos (GRAMSCI,
1976; 1999; 2002). Ele usou como exemplo a Itália, que, na virada do
século XIX para o XX, conforme Hobsbawm, era um “microcosmo” do
capitalismo mundial de então, por reunir, em um só país regiões avan-
çadas e atrasadas. No período em que a Itália viveu o seu Renascimento
e realizou a sua unicação, entre 1861 e 1870, tratou-se de um país que
abriu caminho para a civilização moderna [...] antes de outros países,
mas não conseguiu manter as suas realizações e descambou para uma
espécie de letargia.” Por um lado, sobreviveu aos avanços da burguesia
industrial ao norte e, de outro, permaneceu atrasada e predominante-
mente camponesa e feudal ao sul. Essa situação manteve um curioso
equilíbrio político e a reunicação não ocorreu por meio de uma revo-
lução popular completa, como na URSS, predominantemente campo-
nesa, mas sim de uma “revolução parcial”, feita “[...] em parte de cima
para baixo por Cavour, e em parte de baixo para acima, por Garibaldi.
(HOBSBAWM, 2012, p. 287-289). A unicação italiana foi realizada
em duas vias. De um lado, o Norte cavouriano, que dialogava com a já
hegemônica burguesia industrial e, de outro, o sul garibaldino, que se
confrontava com a velha aristocracia rural. Isso levou a uma situação
de derrota e submissão dos velhos Estados papais, que foram levados a
declarar-se “prisioneiros” do novo país unicado fundado em 1871.
Nesse processo, o Norte, comandado por um rei (Vittorio
Emmanuelle) aliado da burguesia local, fez um acordo de acomoda-
ção com o velho sul aristocrático e, assim, excluiu Garibaldi, liderança
popular. O Estado, unicado e modernizado, tornou-se, de um lado,
uma monarquia e, de outro, um Estado secular. O grupo liderado por
Garibaldi, que realizou a revolução de baixo para cima, cou de fora e
não pôde tornar-se parte do processo revolucionário. Garibaldi foi ex-
purgado e, em vez de um projeto democrático radical ou, no limite,
73
Egito e Turquia no Século XXI
democrático-liberal, o que se construiu foi um regime de governo misto,
no qual a modernização burguesa coexistia com a velha modalidade da
monarquia. No entanto, não se tratava de uma monarquia nos moldes
aristocráticos tradicionais, em que a coroa se submetia ao papado, mas
sim de uma forma muito especíca de regime, no qual o monarca di-
vidia o poder com líderes burgueses regionais e lideranças locais eleitas
(sem eleições gerais e sem o sufrágio universal, por exemplo). As institui-
ções católicas continuaram existindo, apesar de os líderes da revolução
terem sido excomungados pela Igreja. Essa se declarava “prisioneira” do
Estado italiano, o que, mais tarde, cimentou o acordo de “concordata
da Itália fascista com o novo Estado da Cidade do Vaticano.
Esse Estado, que, sob Mussolini, transformou-se em uma au-
tocracia (a república social) e, após a morte dele, em república constitu-
cional, viveu, assim, um processo que podemos denominar de “transfor-
mismo”, antes de criar-se a república italiana democrático-liberal. Esse
transformismo é o que podemos denir como o processo de criação de
formas híbridas de regimes. Entenda-se: não se deve confundir o trans-
formismo, que é o processo de criação de um regime de governo misto,
com o próprio conceito de regime de governo misto, que entendemos
como a denição do objeto, mas não da construção deste.
Podemos notar uma série de semelhanças entre o exemplo ita-
liano e o egípcio. Garibaldi e os seus Camisas Vermelhas foram excluídos
e reprimidos, assim como os liberais e os democratas do movimento
popular no Egito. A semelhança está entre as bases para a inclusão da
Itália unicada, com a sua aristocracia meridional, e os acordos da junta
militar egípcia com a Irmandade Muçulmana nas bases do poder central
do novo regime. Na Itália, foi criada uma monarquia secular com um
rei católico, mas com lideranças não submetidas à Igreja (ao contrário,
excomungadas), enquanto no Egito os principais líderes dos movimen-
tos islâmicos aceitam as regras de um Estado secular e muçulmano (mas
não islâmico). Em ambos os casos, há eleições limitadas.
Verica-se, no Egito, processo transformista. Vamos estabe-
lecer o m da Primeira Guerra Mundial, quando os ingleses saíram
ocialmente do país, mas não de fato. Estabeleceu-se uma monarquia
74
Fábio Metzger
pró-Londres, com um parlamento eleito sob a Constituição tutelada
pelo rei, a partir de 1923. Em 1952, a monarquia foi substituída por
uma república mista, secular – mas com a lei islâmica combinada com
a civil –, que se tornou cada vez mais autoritária, banindo a Irmandade
Muçulmana em 1954. Com a ascensão do nacionalismo e a tomada do
Canal de Suez, a Grã-Bretanha retira-se denitivamente em 1956. Com
a morte de Nasser e a subida de Sadat, de 1970 a 1981 organizações is-
lâmicas ascenderam e esquerdistas foram gradativamente banidos. Com
o assassinato de Sadat, em 1981, e o decreto do estado de sítio no país,
assume Mubarak, que permaneceu até 2011 na república secular, com
lei islâmica e civil, autrocrática e árabe. Quando Mubarak foi deposto,
pela via do levante popular, assumiu o poder uma junta derivada da
formação da República Egípcia de 1952, buscando exibilizar o regime,
suspendendo o estado de sítio e liderando um processo eleitoral tutela-
do. Em todos esses casos, notamos não um processo revolucionário por
si só, mas um transformismo, criando sempre formas mistas de governo,
internamente contraditórias entre si, mas, na prática, complementares
como engrenagens que permitem uma forma contínua e regular do fun-
cionamento da sociedade política (ou do Estado).
A Turquia atual pode ser vista, sob esse enfoque, como a I-
lia, mas em um estágio bem diferente. Algo mais semelhante ao que
viveu a Itália após a queda de Mussolini, mas com um grande retrocesso
posteriormente; os italianos do pós-1945, após derrubar a autocracia (a
república social), estabeleceram um novo regime constitucional. Mas,
primeiro, falemos das diferenças. A Turquia, de 2003 a 2011, não der-
rubou uma autocracia, mas foi capaz de submeter o seu sta militar a
um comando civil. Em ambos os países houve um processo de formação
de uma constituição, mas, enquanto na Itália tratou-se de uma sim-
ples substituição a um regime derrubado, na Turquia há um processo de
transição gradativo. Agora falando a respeito das semelhanças: como na
Itália do pós-1945, onde um movimento democrático cristão – a União
dos Democratas Cristãos e Democratas de Centro (UDC) – assumiu o
poder, na Turquia, um partido islâmico democrático conseguiu eleger o
primeiro-ministro em 2003. Se a Itália, durante o regime fascista, con-
solidou a coexistência com uma Igreja Católica mais conservadora, após
75
Egito e Turquia no Século XXI
1945, com a democratização e a queda de Mussolini, permitiu a ascen-
são de católicos moderados. Se a Turquia, de 1922 a 1950, viveu uma
autocracia militar capaz de abolir o seu clero tradicional e, de 1950 a
2003, conferiu alguma abertura a seu regime, sufocando os estratos reli-
giosos mais fundamentalistas que ainda permaneciam, após esse período
passou a permitir a ascensão de um partido islâmico moderado capaz de
aceitar os princípios de um Estado secular.
Podemos, nesse caso, focar mais o conceito de transformismo
(GRAMSCI, 2002, p. 63), mas não necessariamente pensando no es-
tágio da revolução passiva, conforme conceituamos no caso egípcio, e
sim em outro conceito gramsciano. Falamos da disputa, entre as diver-
sas camadas da sociedade, pela hegemonia, pelo espaço dentro do Es-
tado. Sendo o Estado um espaço múltiplo, que permite discordâncias
e disputas de posição (e não disputas de força), a questão deixa de ser
uma briga pelas suas razões básicas. Se o Estado é secular e confessio-
nal, as partes que o compõem devem aceitar essa condição, ainda que
os participantes dos movimentos políticos não concordem com isso
do fundo de seus corações”.
Então, a disputa deixa de ser pelas razões de Estado, plenamen-
te aceitas dentro de um consenso, e passa a ser por uma agenda política
de governo que esse Estado permita. Então, Gramsci, enquanto mem-
bro do Partido Comunista Italiano, era capaz de compreender que a Re-
volução de 1917 ocorrida na Rússia não poderia ocorrer na Itália, dada
a correlação de forças distribuídas ao longo do território, suciente para
formar um consenso. Nesse aspecto, Gramsci buscou uma alternativa
política realista: se não é possível fazer uma revolução na sociedade po-
lítica (ou seja, no Estado), que se busque a transformação na sociedade
civil, e que essa transformação se reita na formação de uma hegemonia,
capaz de realizar a transformação política, mais adiante, no Estado.
Era assim que Gramsci imaginava a Itália pós-Mussolini: um
Estado predominantemente burguês e democrático. Nesse espaço, o
Partido Comunista não teria a oportunidade de fazer uma revolução,
mas poderia ganhar terreno, dentro de uma sociedade civil, assumindo
um compromisso histórico com outras forças defensoras da democracia.
76
Fábio Metzger
Por meio desse compromisso, os comunistas entrariam no jogo políti-
co, sendo um partido, entrando, enquanto representantes da sociedade
civil, em sindicatos, associações, centros culturais, universidades, etc.,
inuenciando com isso o debate nacional. Em um país em que as desi-
gualdades entre norte e sul eram grandes, o papel dos intelectuais, en-
quanto mediadores de uma cultura nacional foi fundamental. É nesse
sentido que Gramsci enxergava o papel do Partido Comunista Italiano
(PCI) (GRAMSCI, 1976; 1999). Em determinado momento, pensan-
do nesse quesito, o PCI se aliou aos governos à esquerda dos democratas
cristãos, participando de gabinetes mais progressistas. Por outro lado,
admitia em seus quadros praticantes da religião católica e buscavam
agendar reuniões em horários que não se chocassem com os das missas.
Era esse o reconhecimento da religião enquanto elemento profundo da
cultura italiana que o PCI considerava necessário a m de estabelecer
a sua agenda. Uma agenda progressista, de formação popular, de apro-
ximação com as bases, e com os setores não comunistas da sociedade
política (ou Estado) italiana que estivessem alinhados com formas mais
progressistas de governo.
De forma análoga, o partido islâmico da Turquia, AK, reco-
nhecendo-se como última formação representante dos setores mais reli-
giosos da sociedade, teve de fazer reexão semelhante. Diante da impos-
sibilidade de “islamizar” o Estado, de ver as escolas formadas pela fun-
dação religiosa Imam Hatip disseminarem uma cultura religiosa mais
conservadora, de tentar aproximar a lei islâmica da lei civil e de ter gran-
des empresas com capitalistas islamistas, optou por assumir um compro-
misso histórico com a formação da república secular turca. Ao invés da
islamização da sociedade (quer dizer, do avanço da umma) ou da sharia
(ou seja, do avanço da lei islâmica sobre a sociedade não estatal), no
máximo uma onda de conservadorismo, respeitando os pilares básicos
do Estado secular, cuja lei civil prevalece. Em vez de buscar as suas pró-
prias escolas e empresas, decidiram aceitar organizações de acordo com
os princípios seculares do Estado secular turco, estimulando, por outro
lado, a prática da religião muçulmana. Obviamente não aceitaram tudo
em silêncio. Contrariados, aceitaram submeter-se às resoluções da Corte
Europeia de Direitos Humanos, quando esta determinou que uma uni-
77
Egito e Turquia no Século XXI
versidade local pudesse vetar a entrada de estudantes que utilizassem o
véu. Por outro lado, tiveram de se submeter aos anseios do sta militar
do Estado turco contra as aspirações da população curda por armar sua
própria nacionalidade. Em outro vértice, os militares aceitaram que um
presidente e um primeiro-ministro pertencentes ao partido islâmico AK
assumissem os cargos para os quais foram eleitos.
Conscientes de que o islã não poderia assumir o Estado na
Turquia, os islâmicos tiveram de adequar-se ao compromisso histórico e
estabelecer uma agenda de governo, em lugar de uma agenda de tomada
de poder e construção de um Estado islâmico. Puderam realizar alguns
avanços com a sua agenda política. Tiveram, inclusive, autoridade para
mudar a política externa, antes mais voltada para os países ocidentais e
hoje cada vez mais próxima de seus vizinhos árabes e túrcicos muçulma-
nos. Puderam, em determinados casos, determinar leis conservadoras
para os padrões ocidentais, proibindo, por exemplo, a exibição de anún-
cios com sexo explícito ao ar livre. Com isso, buscam avançar na socie-
dade civil (abrindo mão, nesse caso, até mesmo do conceito islâmico de
umma), para implementar a sua agenda.
A diferença fundamental é que, em uma fase posterior, a Itália
pós-1945 manteve o funcionamento básico de suas instituições, a des-
peito da ascensão de Berlusconi, e seus aliados, alguns deles atrelados
aos partidos xenófobos do Norte da Itália e mais os neofascistas. Mas
sem que isso afetasse o Estado de direito em sua essência. Sem dúvida,
a presença de Berlusconi, o magnata da mídia, como primeiro ministro
da Itália, gerou fortíssimos constrangimentos em relação à concentração
de imprensa. No entanto, a não intervenção militar e a possibilidade de
a sociedade civil italiana reverter a situação foi fundamental. No caso
turco pós-2003, devemos levar em conta que Erdogan levou consigo um
setor mais radical do islã político, rompendo com mais moderado. Prin-
cipalmente, como veremos mais adiante a partir de 2013, com a repres-
são às manifestações da Praça Taksim, a crescente aproximação dele com
os setores militares, e o isolamento de grupos moderados de islâmicos e
mais setores seculares turcos.
78
Na Turquia, assim como no Egito, vericamos o transformismo,
mas de maneira diferente. A Turquia, que nasceu em 1922 das ruínas do
Império Otomano, carrega resquícios da velha sociedade islâmica – no
entanto, com um grau avançado de secularização. O Estado, baseado
em uma ideia de “nação turca” cujos alicerces são a língua e a cultura,
é secular e confessional. No entanto, esse confessionalismo é bem mais
laicizado, ou seja, é uma conssão ocial (o islã), mas tomando formas
não religiosas. Essa ambiguidade, que declara o islã como religião ocial,
que estabelece o secularismo na sociedade e que historicamente proíbe
a prática da religião de forma tradicional em locais abertos, é resultado
desse processo de transformismo em curso desde 1922, cujo processo é
quase centenário, que inclui a abolição do califado, o estabelecimento
de uma república, uma limpeza cultural profunda, a ascensão de uma
estrutura militar, a aproximação com países ocidentais, o estabelecimento
de um regime pluripartidário, a aceitação de que um partido islâmico
posteriormente pudesse assumir o poder e o relativo afastamento do
Ocidente, mais adiante.
O conceito gramsciano de revolução passiva, mais próximo da
realidade atual do Egito, e o conceito de hegemonia, mais de acordo
com o que observamos na Turquia, são as perspectivas com as quais
trabalhamos. Ambos os países passam pelo mesmo processo de transfor-
mismo, que é a alteração do precário equilíbrio na formação de regimes
de governos mistos, nos quais coexistem diferentes princípios de forma-
ção política. Dessa precariedade, é possível se manter com algum grau
de tolerância ou, enm, retroceder para uma autocracia.
3 R  O M
81
R  O M
Mapa 1 - Oriente Médio
Fonte: WORLD BANK (1997)
1
Vamos, neste momento, denir a Turquia e o Egito dentro do
espaço convencionalmente chamado de “Oriente Médio”. Falamos do
Oriente Médio denido enquanto o mundo árabe asiático, o Irã, a Tur-
quia e os países do norte africano banhados pelo mar Mediterrâneo,
Nesse mapa, a Turquia não está incluída. Mas, para efeito da presente tese, convencionamos a inclusão da
Turquia no recorte do Oriente Médio. País que se localiza, ao mesmo tempo na Europa e na Ásia, separado
cada território continental pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos na cidade de Istambul.
82
Fábio Metzger
com destaque para o Egito. Incluímos também a região onde se localiza
Israel/Palestina.
Denimos o Oriente Médio como o berço das três grandes
religiões abraâmicas ou monoteístas, área em que os antigos espólios dos
califados árabes e turcos e dos impérios zoroastristas e muçulmanos da
Pérsia/Irã dividem um espaço comum. O Oriente Médio aqui estudado
tem uma série de divisões que podem ser exploradas. Temos uma divisão
importante que é linguística. A principal língua (ou idioma) do Oriente
Médio é o árabe, falada por cerca de 286 milhões de habitantes (CEN-
TRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2004). No entanto, outras línguas
são faladas. O turco é falado por cerca de 50 milhões de pessoas; o farsi,
por cerca de 39 milhões; o curdo, por aproximadamente 28 milhões
(CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2011b). Os falantes das lín-
guas berberes são pelo menos 12 milhões; e os azeris iranianos são cerca
de 17 milhões de habitantes (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY,
2011b). Além disso, há uma população que fala o hebraico (cerca de 6
milhões de pessoas) e populações de religião cristã que falam o aramaico,
o grego, o copta e o armênio e que perfazem alguns milhões de habi-
tantes. Nota-se que a imensa maioria da população do Oriente Médio
fala o idioma árabe e que há importantes minorias ou nacionalidades
que falam outras línguas. A língua árabe predomina sobre as demais na
proporção de cerca de dois para um – os países do Oriente Médio árabe
compreendem cerca de 280 milhões de habitantes, enquanto os países
do Oriente Médio não árabe têm 163 milhões (CENTRAL INTELLI-
GENCE AGENCY, 2007; 2011a; 2011b) –, de modo que as popula-
ções não falantes do árabe, apesar de minoritárias, são relevantes.
Apesar desse cenário, outro dado fundamental é a presença de
Estados que representam a língua e a cultura árabes, em contraste com
Estados que não representam a língua e a cultura árabes. Em 16 países,
todos na Ásia e na África, o árabe é a língua principal. Em três países
a língua principal não é o árabe: Israel (hebraico como língua ocial
principal), Turquia (turco como língua ocial principal) e Irã (persa
como língua ocial principal). Apesar da quantidade maior de Estados
de língua árabe, há que se ressaltar que o Irã e a Turquia são países mais
83
Egito e Turquia no Século XXI
populosos e com economias mais desenvolvidas e industrializadas que a
maioria dos países árabes, exceção feita ao Egito. Israel, assim como Tur-
quia e Irã, possuem forças armadas (convencionais e estratégicas) mais
bem preparadas e avançadas que a dos países do mundo árabe, que ainda
luta pelo reconhecimento de um Estado independente, a Palestina.
Dos dezesseis países árabes incluídos (excluímos os países
árabes não mediterrâneos e os subsaarianos da África Setentrional por
entender que são países que estão, na prática, mais distantes do jogo
político do Oriente Médio e mais próximos da dinâmica do continen-
te africano). Alguns não passam de cidades-estados ou federações de
cidades-estados frágeis, governados por uma família ou por oligarquias
políticas e tendo de suportar a presença de tropas estrangeiras ou in-
uenciadas diretamente por estrangeiros, como o Bahrein, o Catar, os
Emirados Árabes Unidos, o Kuwait, o Líbano e a Palestina. Outros são
Estados nacionais de fato soberanos, mas frágeis politicamente, como
é o caso da Argélia, da Jordânia, do Marrocos, do Oman, da Tunísia,
e da Síria. Outros, ainda, são países com sérias divisões internas, o que
provoca uma crise de autoridade que os torna sujeitos a interferências
externas, como o Iêmen, o Iraque e a Líbia. Enm, apenas dois países
árabes dentro do Oriente Médio possuem relevância territorial e políti-
ca: o Egito e a Arábia Saudita.
Os países do mundo árabe podem ter interesses comuns e sus-
tentar suas posições ociais em um fórum de discussão, que é a Liga
dos Estados Árabes. Mas, ao mesmo tempo, podem nutrir inimizades e
rivalidades de cunho político, a ponto de entrarem em guerra uns contra
outros (como foi o caso da Guerra do Golfo, em que Egito e Síria toma-
ram parte na aliança liderada pelos EUA contra o Iraque).
Nos três Estados não árabes do Oriente Médio, há três nações
de fato, duas de maioria muçulmana (como são as nações árabes), a
turca e a iraniana, e uma nação de maioria judaica, a israelense (conside-
remos, nesse caso, a nação palestina como nação dentro da Cisjordânia,
sob ocupação, e de Gaza). O Irã é um país muçulmano de maioria xiita e
Estado teocrático, ou uma república islâmica xiita. A Turquia é um Esta-
do secular ocidentalizado de maioria sunita. Israel é um Estado judaico,
84
Fábio Metzger
com elementos ao mesmo tempo ocidentalizantes e religiosos. Há que se
destacar a inimizade intensa entre Irã e Israel, a rivalidade histórica entre
Turquia e Irã, herança do antigo Império Otomano e da monarquia xiita
iraniana, e a conituosa relação entre Israel e Turquia, marcada por mo-
mentos, intermediados pela OTAN e pelos EUA, de hostilidade aberta
e de alianças contra rivais/inimigos regionais.
Denimos, portanto, duas subdivisões: a) o Oriente Médio ára-
be, onde língua e cultura árabes estão dadas como majoritárias; e b)
Oriente Médio não árabe, onde pelo menos uma das culturas/línguas não
é de origem árabe. Nesse ponto, vamos situar o Egito dentro do Oriente
Médio árabe e a Turquia no Oriente Médio não árabe. Tanto um quanto
o outro são atores relevantes, dentro de sua respectiva subdivisão, para
o Oriente Médio como um todo. O Egito, como liderança central do
Oriente Médio árabe, está localizado entre dois continentes, África e
Ásia, fazendo fronteira com uma zona de conito (Israel x palestinos).
Sua inuência tem desdobramentos inclusive na dinâmica maior do
Oriente Médio – na ascensão das animosidades com Israel, por exem-
plo, que foram determinantes para a escalada de duas guerras (Seis dias
e Yom Kippur). A Turquia, como liderança cada vez mais expressiva no
Oriente Médio, também está localizada entre dois continentes, Europa
e Ásia, fazendo fronteira com áreas com grande potencial de conito
(Iraque, Irã e Síria), com países da União Europeia (sendo que com Gré-
cia e Chipre existe potencial conito) e com países da Comunidade dos
Estados Independentes (tendo potencial conito com Rússia e questões
históricas com a Armênia).
3.1 quAl oriente médio?
É importante contextualizar a possibilidade de associação da
democracia com o liberalismo no Oriente Médio, região sob o impacto
da história do islã e sob a inuência do contato mais recente com as
experiências políticas ocidentais. Para isso, apresentamos duas metodo-
logias contemporâneas: a orientalista e a antiorientalista. Na orientalista,
islã e Ocidente são blocos mutuamente excludentes e em choque inevi-
85
Egito e Turquia no Século XXI
tável. A construção da ideia de democracia esbarra, por denição, nesse
choque. Para os antiorientalistas, tanto o islã quanto o Ocidente são dois
conceitos abertos e as sociedades do mundo muçulmano estão abertas,
em relação a ambos, para o diálogo e para a construção de um modo
próprio de fazer política. De maneira que, se existe um choque entre islã
e democracia liberal, não é por serem conceitos que se anulam, mas sim
pelo fato de cada um desses países estarem sujeitos à experiência milenar
do islã (tal como existem experiências milenares de outras religiões) e à
contemporânea do contato com países e situações da democracia liberal.
Inicialmente, levaremos em conta no debate os argumentos dos antio-
rientalistas, que buscam demonstrar que nem islã e Ocidente, nem islã e
democracia liberal são conceitos mutuamente exclusivos.
Vamos pensar nessa discussão à luz dos acontecimentos na Tur-
quia e no Egito contemporâneos, sociedades com muitas especicida-
des, que devem ser levadas em consideração. Primeiro, devemos levar
em conta que estamos trabalhando com conceitos pensados na realidade
do mundo ocidental. No entanto, estamos trabalhando com países que
fazem parte de uma experiência histórica, o islã, que não vinha, há até
pouco tempo, trabalhando com esses conceitos. Dessa forma, o primei-
ro objetivo é interpretar a relação entre os conceitos de democracia e
liberalismo e o de islã nesses dois países do Oriente Médio. O islã turco
passou por uma espécie de reforma religiosa semelhante à que aconteceu
com o cristianismo ocidental. No entanto, essa reforma não foi promo-
vida por um clero, mas sim pelo Estado nacional turco, que interferiu
diretamente na forma como a religião islâmica era praticada no país,
ocidentalizando uma série de elementos da vida cotidiana e banindo
legalmente aspectos tradicionais, como as antigas ordens sus, restrin-
gindo os hábitos religiosos de seus habitantes no espaço público e trans-
formando antigos recintos religiosos em espaços seculares (BERKES,
1998). O Egito, por sua vez, mesmo tendo passado por uma grande
transformação, saindo da monarquia para a república, não passou por
essas mesmas reformas: apesar de ter abolido os cargos dos antigos ule-
más do Império Otomano, submetido parte das mesquitas e das funda-
ções religiosas à tutela do Estado e realizado uma grande modernização
no país, não foi capaz de interferir na forma como o islã está enraizado
86
Fábio Metzger
entre a sua população. A tradição religiosa não foi restringida, e os espa-
ços para a prática da religião não foram essencialmente reformados. Por
outro lado, liderados pela Irmandade Muçulmana, religiosos revivalistas
foram capazes de se estabelecer em novas redes de assistência social e
religiosa, recompondo os antigos laços tradicionais remanescentes dos
tempos da monarquia.
Essas especicidades são determinantes na forma como as
transições políticas no Egito e na Turquia têm acontecido. De um
lado, a Turquia, país onde prevalece o islã liberal já consolidado, o
que facilita a transição de um regime liberal para um liberal-demo-
crático. De outro, o Egito, onde existe uma tensão entre o que ainda
é remanescente – no islã tradicional e na reação do islã político – e a
recomposição de forças dentro do islã liberal, o que diculta mesmo
uma passagem da autocracia para o liberalismo. A investigação e a in-
terpretação dessas relações entre os conceitos da política (especialmen-
te democracia e liberalismo) e a experiência da religião islâmica são os
objetivos principais desta tese.
A princípio, denimos Oriente Médio clássico como a parte
ocidental da Ásia que compreende os países de língua árabe: Israel, Irã e
Turquia. Nesta pesquisa, vamos denir o Oriente Médio com base em
um conceito diverso: o Oriente Médio estendido. O que é o Oriente
Médio estendido? Trata-se do Oriente Médio clássico (ou seja, a partir
do ponto de vista europeu de que o Oriente equivale ao continente
asiático) acrescido dos territórios do norte da África com saída para o
mar Mediterrâneo, onde há Estados independentes cuja língua ocial é
o árabe. Assim, pensemos no Oriente Médio estendido (norte da África
mediterrânea + Oriente Médio clássico) como “Oriente Médio”.
O Oriente Médio que estamos denindo se delimita por ser o
berço das três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo
e o islã. Portanto, estamos falando da região que compreende desde os
vales dos rios Tigre e Eufrates (em que se encontra a Mesopotâmia/Ira-
que) até o vale do Nilo (onde está o Egito), passando pelas regiões nas
quais se encontram o Monte Ararat, na Anatólia/Turquia, as cidades
históricas de Damasco, Jericó, Belém, Nazaré, Antióquia e Biblos (Síria/
87
Egito e Turquia no Século XXI
Líbano e Israel/Palestina), além das cidades de Meca e Medina (na Pe-
nínsula Arábica).
Além de falarmos da região que é o berço das três grandes re-
ligiões, fazemos um recorte do Oriente Médio como área comum que
herdou pelo menos três grandes impérios. Um império que nasce cristão
(Bizantino, ou Romano do Oriente) torna-se, mais tarde, turco (unindo
o seu antigo braço cristão oriental ao califado islâmico), nalmente se
denindo como republicano-ocidental. Outro império, que nasce zoro-
astrista e monarquista, torna-se posteriormente muçulmano e monar-
quista e evolui para um misto de islã e republicanismo. E, nalmente,
um império que nasce no seio do mundo árabe, evolui para grandes
áreas e, após séculos de expansão, perde o seu centro de poder e passa a
estar sujeito ao poder de outros impérios, até que se estabelece em uma
grande rede de ditaduras, monarquias e repúblicas que sustenta a sua
antiga herança linguística (a língua) e religiosa (o islã). Os impérios dei-
xaram de existir. No entanto, falamos de uma “nação” árabe. Essa nação
se dene pela cultura árabe e se delimita pela predominância da língua
árabe, como principal idioma falado desde o Magreb (Marrocos, Argélia
e Tunísia) até o Iraque e o sul da Península Arábica (Iêmen e Omã).
Pela herança do califado árabe, posteriormente sucedido pelos
impérios turcos, Seljúcida e Otomano (e incluímos o polo de poder cen-
tral desses impérios, que é a Turquia, em sua Península Anatólica, mais
Istambul/Constantinopla e a Trácia Oriental), além do berço de outra
histórica civilização, a meda-persa, da qual surgiram o povo curdo e os
povos que formaram o que hoje constitui o Irã, essa civilização constitui
um Estado milenar.
Portanto, o Oriente Médio que denimos é aquele que divide,
em um espaço comum, o berço de três religiões monoteístas (judaísmo,
cristianismo e islã) e uma dualista (o zoroastrismo), sendo que da região
na qual nasceram duas das três religiões monoteístas (o cristianismo e o
judaísmo) e o dualismo zoroastrista, ergueram-se dois grandes impérios:
o cristão Império Bizantino (antigo Império Romano do Oriente) e o
Império Safávida (herdeiro da Pérsia antiga). O Império Bizantino in-
cluía toda a região do Levante (Síria/Líbano), a Palestina/Israel, o Egito,
88
Fábio Metzger
parte da Mesopotâmia/Iraque, a Anatólia e o Oriente Próximo (ou seja,
o sudeste da Europa, que compreende a região que se estende do rio
Danúbio até o Mar Negro). O Império Safávida inclui o que hoje é o
território iraniano e também partes da Mesopotâmia/Iraque. Entre esses
dois grandes impérios cava a Península Arábica, formada por cidades-
-estados habitadas por praticantes de religiões panteístas e politeístas.
Foi nessa região, e pela combinação dos monoteísmos judaico e cristão
e das tradições tribais árabes locais, que nasceu uma nova religião que
unicou os centros de poder: o islã. Da decadência das estruturas dos
impérios Safávida e Bizantino, o islã teve veloz ascensão do Irã ao Mar-
rocos, da Turquia ao Iêmen. A língua árabe expandiu-se do Iraque até a
Síria, do Saara até a costa do Mediterrâneo.
Com base nesse critério, denominamos como “Oriente Mé-
dio árabe” as regiões que adotaram a língua árabe como a sua principal
e a cultura árabe como sua cultura nacional. Já nas regiões históricas
desses impérios, onde o árabe não se tornou língua principal, falamos
do “Oriente Médio não árabe”. Nesse caso, falamos principalmente dos
herdeiros do antigo Império Safávida (ou seja, o Irã), do antigo Impé-
rio Bizantino (posteriormente metamorfoseado para impérios Seljuque
e Otomano), ou seja, a Turquia, e dos descendentes dos praticantes da
primeira das três religiões monoteístas, os judeus modernos, que cria-
ram, em 1948, o Estado de Israel.
Podemos, portanto, denir os conceitos de Oriente Médio ára-
be e Oriente Médio não árabe com base na denição de “nação” como
um conjunto de língua e cultura. Na Turquia, a religião muçulmana é
majoritária (nasceu no mundo árabe, mas adotou versão própria entre
os turcos), mas o país tem idioma e cultura próprios. O Irã é composto,
em sua esmagadora maioria, por povos de origem persa (e, portanto,
não falantes da língua árabe), com uma religião nascida no mundo árabe
(o islã xiita), mas com base em um clero local, com uma cultura pró-
pria. Os judeus possuem uma religião própria (o judaísmo), uma língua
própria (o hebraico) e uma cultura própria, criada com base em outras
culturas, que não apenas a do mundo árabe, mas, sobretudo, a europeia
e a americana (a cultura israelense).
89
Egito e Turquia no Século XXI
Dentre os povos de língua não árabe, muitos não têm seus
próprios Estados nacionais. Os povos de língua aramaica compõem mi-
norias no Líbano, na Síria, na Turquia e no Iraque, assim como os des-
cendentes de armênios e gregos. Há a população cristã copta – que tem
o árabe como língua no ambiente público e o copta enquanto língua
litúrgica –, que não passa de 10% da população egípcia. O povo cur-
do é talvez a população mais numerosa no mundo que reivindica um
Estado nacional para si (cerca de 30 milhões de pessoas); é reprimido
e sofre restrições a seus direitos históricos e culturais, pouco ou nada re-
conhecidos nos países nos quais são minoria – Irã (10% da população),
Iraque (17% da população), Síria (10% da população) e Turquia (20%
da população). Apenas no Iraque a população curda possui tal reco-
nhecimento, enquanto detentora de um território autônomo, mas não
independente, no norte do país, na fronteira entre Turquia e Irã. Mesmo
assim, parte importante dos curdos do Iraque está em territórios onde
árabes são majoritários – nas partes centrais do país – e foram reprimi-
dos e perseguidos no passado recente. Na África, as populações berberes
compõem cerca de 40% do total dos habitantes do Marrocos e 25% do
total dos argelinos e estão concentradas principalmente em torno do
Monte Atlas. São populações que estão dispersas, cujo poder é muito
menor que o da elite dominante de origem árabe nos respectivos países.
No Irã, as populações não persas têm grande peso na divisão
de poderes da República Islâmica: azeris, turcomanos, giladis e outros
formam parte da elite governante do país. São nacionalidades que, assim
como a persa, formam uma nação maior – a iraniana, a xiita e a islâmica.
Do ponto de vista não linguístico, mas religioso, existem sérias
restrições a importantes comunidades do Oriente Médio. No Oriente
Médio árabe, sofrem restrições e perseguições: minorias cristãs na Arábia
Saudita, no Iêmen e em outros países da Península Arábica; os druzos
(população de idioma árabe), na Síria; e algumas comunidades cristãs
coptas, no Egito (principalmente em razão dos conitos entre funda-
mentalistas islâmicos e/ou o governo e a Igreja Copta). No Oriente Mé-
dio não árabe, sofrem restrições: os cristãos armênios e gregos na Tur-
90
Fábio Metzger
quia; os árabes cristãos e muçulmanos em Israel; e judeus, determinadas
minorias cristãs e, principalmente, a minoria Baha´i, no Irã.
Tendo analisado esses pontos especícos, podemos apontar que
há um contraste inicial que separa países árabes e não árabes no Oriente
Médio em 19 Estados: 16 Estados árabes, sendo apenas dois fortes, e
três Estados não árabes fortes. Dentre esses três Estados não árabes, há
três nações, duas de maioria muçulmana (como são as nações árabes), a
turca e a iraniana, e uma de maioria judaica, a israelense. Assim como
há inimizades e alianças no Oriente Médio não árabe, existem também
alianças e inimizades no Oriente Médio árabe.
o oriente médio árAbe
Primeiro vamos apresentar o Oriente Médio árabe. Nele, des-
tacamos os países da Ásia e da África. Na Ásia, temos os países do Le-
vante (Líbano e Síria), a Jordânia/Autoridade Palestina e o Iraque, que
fazem parte do Crescente Fértil, e os países da Península Arábica.
Os países do Crescente Fértil têm como principais caracterís-
ticas o fato de serem formados por maiorias muçulmanas e importan-
tes minorias cristãs e de se destacarem nos setores turístico (Jordânia/
Autoridade Palestina e Líbano), nanceiro (Líbano) e agrícola (Síria e
Iraque). À exceção do Iraque, esses países não são grandes produtores/
exportadores de petróleo. São três repúblicas, sendo uma unitária (Síria),
uma federativa sectária (Iraque) e outra unitária sectária (Líbano), além
de uma monarquia (a Jordânia) e uma autoridade nacional ainda não
independente de fato (Autoridade Palestina). Iraque, Jordânia, Líbano e
Síria se caracterizam pela profunda divisão sectária dentro de seus países.
A Autoridade Palestina se caracteriza por ser o embrião de um Estado
nacional que, fundado por meio de resoluções internacionais ampla-
mente aceitas e legitimadas para um acordo de paz com o Estado de
Israel, não terá continuidade territorial e está separado em dois setores:
a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
Os países da Península Arábica são constituídos, em geral, por
monarquias tradicionais, algumas mais totalitárias, como a Arábia Sau-
91
Egito e Turquia no Século XXI
dita, outras com razoável grau de liberalização política, apesar de não
democráticas, como Kuwait e Catar – Estados liberalizados, mas de fato
centralizados, cada um por uma família real que comanda seus respecti-
vos territórios –, porém, na maioria das vezes, por regimes autoritários
monárquicos, alguns centralizados (caso do Bahrein e do Omã), outros
federados (como os Emirados Árabes Unidos), além de contar com uma
república secular autoritária, o Iêmen. À exceção do Iêmen, os países da
Península Arábica são grandes produtores, renadores e exportadores
de petróleo. Em comum, esses países têm divisões geográcas, tribais
e sectárias que os dividem internamente. O Iêmen, por exemplo, tem
duas divisões: uma religiosa, que opõe os xiitas (seita zaidita) aos sunitas;
outra geográca, que opõe o norte (Sanaa) ao sul (Aden). Nos países
produtores e exportadores de petróleo, além da população local, há uma
grande quantidade de mão de obra estrangeira – incluindo não árabes –,
que é fundamental na sua formação econômica. Nos Emirados Árabes
Unidos, o poder está dividido de forma descentralizada em cinco emira-
dos. Além disso, há uma população árabe, majoritária, e outra não árabe,
minoritária, mas fundamental economicamente. No Bahrein, a maior
parte da população é xiita, mas a dinastia real que governa é sunita. No
Kuwait, em que governa uma família real muçulmana sunita, há uma
signicante população de origem indo-paquistanesa, e uma importante
parcela de população é xiita e outra sunita. No Catar, a maior parte da
população é sunita e grande parte da mão de obra é estrangeira. Na Ará-
bia Saudita, Estado com área extensa e pouco povoada, existem divisões
regionais importantes. Ao oeste, há duas regiões históricas: o Hedjaz,
terra histórica de Meca, Medina e Jedah (locais com grande atividade
econômica nos setores turístico e religioso), e Asir, que faz fronteira com
o Iêmen. Ao leste, a Arábia Saudita tem a região do Nejd, o seu centro
administrativo (na cidade de Riad), e a Província Oriental (com signi-
cante população xiita, é lá que estão os centros populacionais Damman,
moderno, e o histórico, de Qatif), em que estão as principais reservas
de petróleo do país, que é o principal produtor e exportador mundial
do produto. No Omã, em que a maioria da população faz parte de uma
seita em separado do islã, o ibadismo, há uma monarquia.
92
Fábio Metzger
Na África, podemos fazer duas divisões. De um lado, o Ma-
greb, onde estão Marrocos (monarquia), Argélia e Tunísia (repúblicas).
Em todos esses países, há uma divisão étnica fundamental entre a maio-
ria árabe e as minorias berberes – essas menos signicantes na Tunísia
e mais signicantes no Marrocos e na Argélia. Há que se destacar que
esses países, colonizados pela França, possuem ainda outra divisão inter-
na: uma elite local ocidentalizada francófona e uma população cada vez
mais inuenciada pela religiosidade (caso da Argélia) e alijada do poder.
São três países com Estados centralizados, à exceção do Marrocos, que
é um Estado historicamente consolidado, decorrentes do colonialismo
francês. Há também uma região “tampão”: a Líbia. Pouco habitado, o
país, que já foi parte do Império Otomano e depois colonizado pela I-
lia, hoje é um Estado sem Constituição, que não se dene nem como re-
pública, nem como monarquia, e tem uma clara divisão geográca (duas
regiões sicamente distantes e pouco povoadas: a da capital Trípoli e a
Cirenaica, em que está a cidade de Benghazi). A maioria da população
é árabe, e não há nenhuma minoria signicante, no entanto, o escasso
povoamento e as grandes distâncias são determinantes nas diferenças
regionais internas desse país de menos de seis milhões de habitantes e
menos de dois milhões de quilômetros quadrados.
Finalmente temos o Egito. Esse sim, um país antiquíssimo.
Trata-se de uma república centralizada árabe na qual há uma maioria
muçulmana sunita e uma minoria cristã copta. Um país derivado de
uma civilização milenar, surgida muito antes do islã, e que, portanto,
tem forte consolidação histórica. A herança desse antigo Egito dos fa-
raós é reivindicada pela minoria cristã copta, que perfaz cerca de 10%
do total da população local. Um Egito antigo que se soma àquele que
foi centro da civilização islâmica e do Império do Islã, quando gover-
naram as dinastias dos Fatímidas e dos Mamelucos, sediados na cidade
do Cairo, ao longo de séculos. Esse Egito islâmico, que foi governado
por uma corte tradicional (Fatímidas) e por reis escravos (Mamelucos)
e que foi o centro intelectual da religião muçulmana por mais de mil
anos (na Universidade Al-Azhar), assim como foi centro intelectual da
antiga Roma (na velha cidade de Alexandria). Um ponto de encontro de
antigas e novas civilizações. O local onde o nacionalismo árabe liberal
93
Egito e Turquia no Século XXI
expressou-se pela primeira vez, no momento em que o país se libertou
da Grã-Bretanha em 1918 (foi o primeiro país árabe a se tornar inde-
pendente dos europeus), perdendo parte de seu território (os hoje Sudão
e Sudão do Sul) e ainda tendo de suportar por 38 anos a presença do
exército britânico sobre o estratégico Canal de Suez. Esse mesmo Egito,
que foi um dos berços da Antiguidade, uma das sedes do islã, foi, ao
longo do século XX, sede da vanguarda política do nacionalismo árabe,
sob a liderança de Gamal Abdel Nasser.
Trata-se do país árabe mais industrializado e populoso do Mun-
do Árabe. Localiza-se em posição privilegiada, na divisa entre África e
Ásia. É pelo Egito que passa o Canal de Suez, uma passagem articial
construída no século XIX a m de encurtar o trajeto de embarcações
marítimas da Europa que rumam para o Extremo Oriente. É esse país,
de importância vital, que nos interessa em nossos estudos. Um aconte-
cimento político no Egito tem consequências diretas em toda a região
do Oriente Médio.
o oriente médio não árAbe
Em contraste com o Oriente Médio árabe, temos o Oriente
Médio não árabe. São países com identidades próprias e que têm di-
versos graus de diálogo, divergência e conito com o mundo árabe. Fa-
lamos da Turquia, país de maioria muçulmana sunita, com alto grau
de ocidentalização e mais próximo da órbita europeia; do Irã, país de
maioria muçulmana xiita e idioma persa, que possui um regime político
religioso; e de Israel, o único país do Oriente Médio a não ter maioria
muçulmana, que faz fronteira com o Egito e, portanto, ocupa posição
estratégica na geopolítica do Oriente Médio.
Israel é um Estado que acomoda elementos de democracia li-
beral, teocracia e regime militarista secular em um genericamente deno-
minado “Estado judeu”, podendo o termo “judeu” compreender identi-
dade cultural, identidade nacional ou religião e “Estado” uma denição
institucional mais ampla, por exemplo, que “república”, “monarquia” ou
teocracia”. Israel é um país que, até 1992, não tinha lei fundamental.
94
Fábio Metzger
Até hoje não tem Constituição escrita. Não deniu fronteiras denitivas
e não estabeleceu um acordo de paz com a outra população que habita
o mesmo local (os árabes palestinos), que também aspiram a um Estado
independente. Por outro lado, Israel possui uma suprema corte que se
guia não por leis religiosas, mas sim por referências universais, em detri-
mento do direito religioso judaico.
O Irã, por sua vez, se dene como república e é um regime
constitucionalista. No entanto, diferentemente de Israel, submete sua
Constituição a uma lei religiosa, a lei religiosa islâmica (sharia). Essa lei
não está sujeita ao sufrágio da população, mas sim ao arbítrio de espe-
cialistas na interpretação do Alcorão e de tradições (hadiths) que teriam
sido atribuídas ao profeta Maomé, enquanto mensageiro de Alá (Deus).
O Irã é, dessa forma, uma república teocrática (o nome do país é Repú-
blica Islâmica do Irã). Dene-se como “coisa de todos”, mas submete a
coisa de todos” a Deus.
Finalmente temos a Turquia. Estado secularizado, uma repú-
blica com costumes ocidentalizados, mas com o islã como religião o-
cial, fundado por Mustafá Kemal (Ataturk, pai dos turcos), inspirado
em um modelo ocidental de Estado nacional. Ao contrário do Irã, que
submeteu a república ao islã, a Turquia submeteu o islã à república. O
islã (a submissão a Deus) foi secularizado; foi tornado ocial enquanto
religião, mas a religião não pôde se tornar superior em relação à “coisa
de todos”, de modo que o direito positivo estava acima da sharia. Essa
adaptação teve um altíssimo custo. Uma parte da Turquia ca na Europa
(a Trácia) e outra parte, na Ásia (a Anatólia). Importantes minorias gre-
gas, curdas, armênias, árabes e judaicas, entre outras, foram eliminadas
ou tiveram suas identidades não reconhecidas. Esse processo de “turqui-
cização”, feito de cima para baixo pelo Estado nacional turco, incluiu
uma profunda revolução nos costumes, por exemplo: a adoção do alfa-
beto latino, em lugar do alfabeto árabe; a proibição de ordens sus e do
tradicional clero islâmico; a proibição de uso de vestes muçulmanas em
locais públicos; a expulsão de gregos cristãos e o genocídio da população
armênia; o arrocho econômico sobre a minoria judaica; e o não reconhe-
cimento da nacionalidade curda, sendo esses indivíduos identicados
95
Egito e Turquia no Século XXI
como “turcos da montanha”, apesar de sua origem ser mais parentada à
dos persas. Essas formas de nacionalismo mais próximas às dos europeus
e a adesão, a partir do m da Segunda Guerra Mundial, da Turquia à
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) transformaram o
destino do país de maneira fundamental. Uma espécie de porta de entra-
da do Oriente Médio para a Europa do Sudeste e vice-versa, um escudo
pró-Ocidental contra a URSS na Guerra Fria e depois contra a Rússia.
Um rival dos árabes e depois um aliado. Um eterno rival dos gregos e
assim por diante.
Essa posição dos turcos torna a Turquia uma pedra de toque
fundamental no Oriente Médio não árabe, uma vez que ela possui am-
pla autonomia de movimentos. Como o Egito, a Turquia também tem
uma passagem estratégica fundamental: entre o Mediterrâneo e o Mar
Negro cam os estreitos de Bósforo e Dardanelos, que permitem a en-
trada e a saída de produtos (principalmente o gás natural) dos países da
Eurásia e da Europa. Devemos, ainda, levar em conta o fato de que a
Turquia é herdeira, nos últimos 500 anos, do polo central do califado
enquanto centro do Império Islâmico, com sede em Istambul; que esse
império levou consigo a herança do velho Império Romano do Oriente
com capital em Constantinopla/Bizâncio; e que, a partir da região onde
se encontra a Turquia, como no Egito, desenvolveram-se civilizações de
passagens, caracterizadas por uma intensa associação de tradições cultu-
rais e militares que se solidicaram em um Estado nacional forte, pelo
alto nível de articulação com diversos de seus vizinhos e pela possibilida-
de tanto de desenvolvimento quanto de estabelecimento de rivalidades.
Vale lembrar que as transformações internas das relações políticas da
Turquia podem transformá-la em um modelo político paradigmático
para o Oriente Médio árabe, em geral, e para o Egito, em particular.
3.2 deFinições do islã
Antes de tudo, devemos nos lembrar do signicado do termo
“islã”, que vem do árabe, signica a submissão a um deus (Alá) indivi-
sível, imaterial e onipresente e tem como princípio a ideia de que todos
96
Fábio Metzger
os indivíduos são iguais perante Alá. Levando isso em consideração, o
islã, mais do que uma religião, é um princípio geral de soberania de uma
entidade divina sobre todos os homens. Se ampliarmos isso, o islã, com
as suas leis, que vão para além da esfera religiosa, é um modo de vida e
conduta regulamentado por toda uma comunidade de pessoas que são
classicadas como “crentes” (a umma).
No entanto, o islã pode ser interpretado e aplicado de diversas
maneiras. Para isso, existem aqueles especialistas na lei islâmica, reco-
nhecidos para especicar se o islã se limita às instâncias privadas próprias
da religião (ou seja, as mesquitas), se ele constitui um modo de vida que
entra no cotidiano dos espaços públicos ou se ele pode, inclusive, ser o
princípio norteador do funcionamento de um Estado.
Para denir e delimitar essas interpretações, ao longo da histó-
ria foram se desenvolvendo várias matrizes do islã e, com a abertura dos
países islâmicos para uma sociedade mais ampla, a própria denição de
islã sofreu novas inuências. Vamos, assim, nos deter em três denições
gerais. Um conceito moderno, em que ele sofre a inuência do libera-
lismo ocidental; outro tradicional acerca do modo como o islã cons-
truiu-se até o m do Império Otomano; e outro, antimoderno, que faz
as releituras da tradição islâmica, em relação à modernidade, excluindo
aspectos liberais e dando ao islã uma conotação política, antes de tudo.
o islã liberAl
Os primeiros governos árabes constitucionais viveram sob a
tutela de seus antigos colonizadores, britânicos e franceses, e adotaram
o modelo de democracia liberal, tutelados e submetidos aos interesses
diretos de seus colonizadores. Era uma tutela em que os governos eram
formados e eleitos pelo voto direito do cidadão, mas poderiam ser dissol-
vidos por um líder local, títere dos colonizadores, como o rei do Egito.
Os modelos políticos republicanos no mundo árabe, a par-
tir de 1951, passaram a combinar, ao mesmo tempo, os três modelos
anteriormente apresentados de soberania popular. Diziam-se regimes
socialistas, mas não deniam claramente o tipo de socialismo que
97
Egito e Turquia no Século XXI
praticavam. O fato é que eram economias planicadas, mas com a
propriedade privada dos meios de produção não abolida. Durante a
Guerra Fria, cavam próximos da esfera soviética, apesar de não esta-
rem submetidos a ela. As principais repúblicas declaravam-se “países
não alinhados”. Quer dizer, estavam sujeitos a uma aproximação tanto
com os EUA quanto com a URSS.
De outro lado, os regimes árabes, de um modo geral, nunca
chegaram a ser modelos de democracias liberais, estando mais próximos
de autocracias, tal como os regimes nazi-fascistas. O conceito de sobe-
rania popular, no caso, baseia-se na ideia de “nação árabe”, em que são
incluídos árabes cristãos e muçulmanos, mas da qual participam outros
atores. Existem, nessas sociedades, berberes, curdos, druzos, beduínos
e pequenas comunidades de judeus, grupos esses que têm seus direitos
muitas vezes violados.
Mas, se de um lado esses regimes possuem alguma espécie de
inspiração socialista e nazifascista, de outro lado eles também captam
elementos da democracia liberal. Sem partir de uma matriz democrática,
em geral adotam instituições baseadas no modelo europeu de demo-
cracia liberal, como a ideia de três poderes. No caso do Egito, há uma
suprema corte (poder judiciário), uma assembleia popular (poder legis-
lativo) e um poder executivo, com um presidente que concentra amplos
poderes. Isso faz que o poder executivo avance sobre os demais poderes
e tire deles a autonomia que, em tese, teriam, ferindo a concepção de
freios e contrapesos” entre os poderes, pressuposto de um modelo de
democracia liberal.
No caso egípcio, falamos dos princípios do liberalismo po-
lítico, mas sem os atributos completos de um modelo de democracia
liberal. Esses princípios acabam sendo utilizados para suavizar a práti-
ca de uma autocracia (obviamente, existem exceções no interior desse
modelo, como o Iraque de Saddam Hussein). Existe imprensa, que
não é totalmente livre, é controlada, mas atua. É uma sociedade não
estatal que possui espaços de oposição ao governo, mas não a ponto de
desaá-lo completamente, crescendo só até certo ponto. O sistema é
pluripartidário, com um partido hegemônico (que é aquele do qual faz
98
Fábio Metzger
parte o líder do país) que não pratica o revezamento de poderes com
outros partidos. Paralelamente, sua economia é claramente capitalista,
apesar de não ter, ao menos até os anos 1970, praticado um modelo de
liberalismo econômico.
Quer dizer que temos um sistema de soberania popular misto,
combinando: aspectos do liberalismo político derivados da democracia
liberal; aspectos do nacionalismo árabe derivados do nazifascismo euro-
peu; e um vago modelo heterodoxo de socialismo árabe, possivelmente
inspirado na ideia de um modelo marxista-leninista, aproximado de go-
vernos inspirados nessa modalidade política. Esse modelo adotou uma
religião ocial, o islã, mas o submeteu ao caráter secular do Estado e
foi muito comum basear suas lideranças no culto a uma personalidade,
como ocorreu com Nasser, no Egito, Saddam Hussein, no Iraque, Hafez
Assad, na Síria, e Muammar Kadda, na Líbia.
Na Turquia, fora do mundo árabe, mas no Oriente Médio, de-
senvolveu-se um sistema semelhante, a partir da fundação da república
por Mustafá Kemal Ataturk, inicialmente com elementos do nazifascis-
mo, posteriormente adicionando elementos da democracia liberal, mas
destituído da ideia de socialismo.
Os resultados desse modelo de governo de soberania popular
nem sempre foram satisfatórios. As promessas feitas pelos modelos da
república turca e dos regimes republicanos constitucionais árabes em
relação ao bem-estar da população não se materializaram. O fracasso do
modelo de Estado marxista-leninista da URSS e a pouca familiarida-
de com os modelos de democracia liberal são fatores que reforçaram o
questionamento, por parte de amplos setores das populações do mundo
árabe e/ou muçulmano, de regimes de soberania popular. Assim, o mo-
delo de um Estado cujo soberano não é o povo, mas sim um Deus cria-
dor do universo, passou a ganhar crescentes adesões em diversos países
árabes e/ou muçulmanos.
99
Egito e Turquia no Século XXI
o islã trAdicionAl
O islã é um conjunto político ideológico baseado em uma re-
velação divina. Um conceito monoteísta em que se apresenta Deus não
apenas como criador, mas também como governante do mundo. Exis-
tem no islã fronteiras espaciais e cronológicas. As espaciais podem ser
estabelecidas com a Dar-al-Harb (as Terras da Guerra) e a Dar-al-Islam
(as Terras do Islã)
2
. Já a cronológica estabelece dois períodos: o de antes
da revelação feita a Maomé (a Jahiliyya, ou período da ignorância) e o
do Islam (da submissão [a Deus]).
A revelação divina no islã teria sido feita por Deus (Alá) a um
profeta-mensageiro chamado Maomé. Essa revelação está contida no
livro sagrado do islã, o Alcorão, dividido em capítulos denominados
suratas”. O islã tem cinco pilares básicos: o testemunho diante de um
só Deus (o de que não existe Alá senão um só Alá, e que Maomé é seu
profeta); o jejum durante o mês de ramadã; o pagamento do Zakat (a
caridade) de 2,5% a fundações islâmicas; o Hajj, ou a peregrinação às
cidades sagradas de Meca e Medina, pelo menos uma vez na vida, para
aqueles que possuem os meios de fazê-lo; e as cinco preces diárias em
direção a Meca. Junto ao Alcorão, existem fontes atribuídas a Maomé,
que exemplicam como um bom muçulmano deve agir, as chamadas
tradições escritas, ou hadith.
Com base nessas informações, podemos conceituar a existência
de um modelo de direito islâmico, que não engloba apenas a questão reli-
giosa moral, mas vai além, incluindo aspectos públicos e administrativos
do Estado. Trata-se de um modelo de leis baseado não em uma vontade
popular, mas no que seria originalmente um desejo divino revelado por
um profeta, que conduziu para as gerações futuras essa mensagem. Mas
a quem se destina esse direito? Bem, é denida a comunidade dos éis
do islã, a umma. É ela composta de crentes (e não de cidadãos, como
nos conceitos de democracia), todos iguais perante Alá (igualdade em
Dentro da concepção do termo “Islam” (no sentido de submissão a Deus), os termos colocam-se da seguin-
te forma: a ideia de “Terras do Islã”, ou seja, já submetidas à lei islâmica, em contraponto às “Terras da Guer-
ra”, expressão que signica que não foram “pacicadas”, vivendo ainda no período da Jahiliyya (ignorância).
100
Fábio Metzger
relação à lei religiosa, não à legislação civil), que compreendem o islã, de
maneira que, formalmente, não há inicialmente uma distinção de clero.
O direito islâmico possui algumas etapas. O Alcorão, em si,
não seria a única fonte de leis islâmicas, e mesmo a sua essência não é
jurídica, “mas uma mistura de história sagrada e profana, de máximas
losócas, de regras respeitantes aos rituais. Apenas cerca de um décimo
dos versículos pode ser utilizado como Fiqh (fontes para obedecer à
sharia).” (DAVID, 1993, p. 518). As outras fontes do direito islâmico
partem da suna (tradição oral), do idjman (o acordo unânime da co-
munidade dos muçulmanos, que é usado na medida em que o Alcorão
e a suna não são sucientes como fontes de lei – um acordo que, para
ser considerado ocial, só precisa da aprovação unânime dos peritos,
prescindindo, portanto, de aprovação geral da comunidade dos muçul-
manos) e do raciocínio por analogia.
À extensão desses direitos políticos, o Estado islâmico parte de
três princípios: Tawhid (a unicidade de Deus, ou seja, só Ele é a autori-
dade suprema), Risalat (a profecia, a fonte da lei de Deus) e Khilafat (a
representação do indivíduo perante Deus, o califado; o indivíduo como
califa de Deus). Em uma sociedade islâmica, o Estado teria direitos so-
bre o indivíduo, que são os direitos de cobrar do el a obediência ao ter-
ritório do islã e a defesa do Estado islâmico toda vez que ele for agredido.
Ao contrário do conceito de soberania popular, em que o povo
é ator do Estado, nesse caso as instituições estatais, em nome de Deus,
possuem direitos sobre o indivíduo. A soberania não é do povo, portan-
to não falamos de um modelo ideal de democracia liberal, mas sim de
um modelo ideal de teocracia. Um governo de Deus que, pelo Estado,
possui direitos sobre o indivíduo.
o islã político
Enquanto reação à inuência da modernização ocidental que
as sociedades islâmicas sofriam, e diante da percepção de que a interpre-
tação tradicional do islã e seus defensores estavam sendo superados por
importantes mudanças políticas e culturais, surgiram novos grupos de
101
Egito e Turquia no Século XXI
religiosos que questionavam qual seria o futuro dos muçulmanos diante
da lei e da religião. A denição que ganhou mais força dentro desses
círculos foi a de que o islã constituía uma religião de caráter político.
As sociedades eram reguladas por leis religiosas. No entanto,
enquanto dentro do antigo califado essas leis estavam submetidas a um
corpo denido de religiosos ligados ao Estado, na modernidade elas po-
deriam ser interpretadas de forma mais aberta.
No entanto, não se trata de uma forma liberal de interpretação,
mas sim uma forma que a nova comunidade de crentes (umma) pós-ca-
lifado entendia ser mais próxima do islã no tempo de sua fundação, com
Maomé, entre os séculos VI e VII. Isso signica aproximando-se do que
teriam sido as duas primeiras comunidades (umma) em Meca e Medina,
e não do que se seguiu durante a consolidação dos califados, a partir do
século X, quando os religiosos ligados aos governos limitaram os princí-
pios de interpretação dos textos islâmicos (ijtihad) dentro da sociedade.
Essa interpretação – que é política, na medida em que ques-
tiona tanto as bases do antigo tradicional quanto as do moderno oci-
dentalizado – começou a se desenvolver no século XIX, período em
que os países muçulmanos começaram a ser colonizados pelas potên-
cias europeias.
dA FundAção do movimento sAlAFistA Ao início do islã
político
A religião muçulmana não é composta por um clero, mas sim
por um corpo de especialistas na lei islâmica – os ulemás e os mulás.
São eles que têm como função primária recomendar a total implemen-
tação da sharia. Essa é a função do islã tradicional, cujos defensores,
no entanto, nunca chegaram a defender uma islamização completa
da política. Se considerarmos o período de 1656, quando o soberano
Grande Mogul Awrangzeb iniciou seu reinado na Índia, até 1988, úl-
timo ano em que o general Zia ul-Haq governou a República Islâmica
do Paquistão. A única exceção nesse período foi o governo do Irã de
1979 (ROY, 1996, p. 29-30).
102
Fábio Metzger
Essa caracterização, que bem dene o islã tradicional, começou
a ser questionada a partir do século XIX, quando as potências europeias
começam a entrar no antigo Império Otomano e a decompô-lo. O que
estaria acontecendo? Que resposta mais adequada dar a esse fenôme-
no? De um lado, ascenderam movimentos de cunho nacionalistas. De
outro, surgiram movimentos de ordem religiosa. É que ascende o refor-
mismo salasta, que defendia um “retorno aos ancestrais” dentro de um
modelo idealizado com base no que seria a época em que as primeiras
comunidades islâmicas se formaram.
Os principais expoentes do movimento salasta foram Din al-
Afghani (1838-1898), Muhammad Abduh (1849-1905) e Rashid Rida
(1865-1935). Entre outros pontos importantes,
[...] eles rejeitavam a lei comum, o marabutismo, a aproximação
em relação a outras religiões. Rejeitavam a tradição dos ulemás, as-
sim como o Corpo de Adições e Extensões, relativas à sistematização
da religião (as quatro escolas legais), a cultura (losoa), a teologia
(susmo) ou as instituições (o clero). (ROY, 1996, p. 32-33, tradu-
ção livre).
A abordagem salasta defendia o direito dos éis à interpreta-
ção individual (o ijtihad) dos textos fundamentais (a suna e o Alcorão),
sem que se tivesse o auxílio de comentários prévios.
Inicialmente, o movimento salasta ainda permanecia dentro
da esfera do islã tradicional. Seu questionamento limitava-se ao quase
monopólio dos pareceres da lei islâmica dos clérigos (ulemás). Mas tam-
bém era um movimento que se colocava em uma posição mais ortodoxa,
combatendo, inclusive, abordagens místicas, tais como o susmo e o
marabutismo.
Na verdade, o ponto de partida do pensamento salasta se dava
com o restabelecimento da umma islâmica, tanto em uma esfera local
(a sociedade não estatal, ou seja, em termos não religiosos, civil de um
determinado país) como em um campo mais amplo (a comunidade de
todos os muçulmanos), estando, no limite, a restaurar o califado durante
os anos 1920.
103
Egito e Turquia no Século XXI
No entanto, foi a partir das bases do movimento salasta que o
islã político se iniciou, tornando-se distinto do conceito do islã tradicio-
nal. Os primeiros islamistas, de perl moderado, estavam mais próximos
do pensamento de Hassan Al-Banna, fundador da Irmandade Muçul-
mana, no Egito, e de Abu-Ala Mawdudi, criador do Jamaat-i Islami, no
Paquistão. A base geral do islã político, em suas etapas iniciais, pregava o
retorno ao Alcorão, à suna e à sharia e, como já mencionado, rejeitava os
comentários das quatro escolas legais do islã tradicional, beneciando a
livre interpretação dos textos, o ijtihad. No entanto, o islã político tinha
posições que iam além das posições salastas originais. Eles sustentavam
que “a sociedade só seria islamizada por meio da ação política e social.
Era necessário deixar a mesquita. Os movimentos islamistas passam a in-
tervir diretamente na vida política, desde os anos 1960, com o intuito de
obter poder” (ROY, 1996, p. 35-36, tradução do autor). Outro ponto, a
ser explorado mais adiante, é o fato de que o islã é um sistema completo
e global de pensamento e não bastaria uma sociedade ser composta de
muçulmanos; ela teria de ser islâmica em sua essência. Um indivíduo
teria o direito de revoltar-se contra um Estado muçulmano se ele fosse
julgado como “corrupto”, dando-lhe um status de “excomunhão” (takr)
(ROY, 1996).
Essa releitura do islã moderno sobre a antiga tradição islâmi-
ca tem um grande impacto, principalmente sobre o corpo político-bu-
rocrático dos Estados, pois um grupo de clérigos (os ulemás) passa a
ter suas posições questionadas quando são vistos como servis ao poder
vigente. Existe uma diferença de interpretação entre os islamistas e os
defensores do tradicional, com os ulemás:
aceitando a modernidade, quando os islamistas a rejeitam (a acei-
tação da separação entre a religião e a política, que necessariamente
lida com a secularização), ou então mantendo a tradição, quando
os islamistas a rejeitam (indiferença em relação à moderna ciência,
ensinamentos rígidos casuísticos, rejeição da ação política e social).
(ROY, 1996, p. 37, tradução livre).
Outro aspecto interessante na formulação do islã político é
que os islamistas não insistem tanto na aplicação da sharia quanto os
104
Fábio Metzger
próprios ulemás. Cabe fazer uma distinção porque, enquanto os ule-
más estão a serviço de fazer cumprir a sharia nos Estados secularizados,
os islamistas defendem um Estado islâmico. A questão, na verdade,
está em que, enquanto os ulemás defendem a sharia em sua forma, os
islamistas buscam a aplicação da lei islâmica em sua essência. Para isso,
o islã político defende uma orientação da sociedade para que ela se
transforme, educando-se dentro de um processo de islamização com-
pleta, em que não há a distinção entre o espaço secular e o religioso.
A sharia só poderia ser aplicada, portanto, em um espaço mais amplo
(ROY, 1996, p. 38-39).
O jihadismo, conforme Qutb:
O Islã é um sistema prático para a vida humana em todos os seus
aspectos. É um sistema que abrange o ideal ideológico, o conceito
convincente que expõe a natureza do universo e determina a posi-
ção do homem, bem como seus objetivos nais nesse universo. Ele
inclui as doutrinas e as organizações práticas que emanam e depen-
dem desse ideal ideológico, tornando-o uma realidade reetida na
vida cotidiana dos seres humanos. Como exemplo, temos doutrinas
e organizações que incluem a base ética e seu poder de sustentação,
o sistema político juntamente com suas formas e características, a
ordem social e suas bases e seus valores, a doutrina econômica com
sua losoa e suas instituições, e o organismo internacional com
suas correlações [...]. De fato, este sistema islâmico é tão compre-
ensivo, tão interdependente e tão entrelaçado, que cobre todos os
aspectos da vida humana bem como as várias necessidades genuínas
do homem e suas diferentes atividades. [...]. Esta religião, portanto,
não é uma mera crença emocional, desligada do domínio atual da
vida humana, como se qualquer religião divina pudesse ser pura-
mente emocional e exclusiva. Não são os rituais mínimos de culto
que os crentes, coletiva ou individualmente praticam que os fazem
alcançar uma quantidade módica de fé [...]. As ramicações do sis-
tema islâmico são tão conspícuas e profundas, que seria fútil tentar
pintá-lo como um credo emocional, divorciado das organizações e
instituições práticas da vida. Nem poderia ser tomado como uma
crença que promete um Paraíso na outra vida para aqueles que pra-
ticam os rituais, sem aplicar em sua vida cotidiana suas distintas
instituições, jurisprudência e metodologia. (QUTB, [19--], p. 5-6).
105
Egito e Turquia no Século XXI
É com essas explicações que Sayyid Qutb inicia seu livro O
islã: a religião do futuro. Coloca o islã não apenas como uma crença
para orientar os indivíduos particularmente, mas como uma ideologia
política que vai além, sustentada nas suas instituições, no seu direito
e na sua concepção de vida público-coletiva. Qutb apresenta, assim, o
islã como uma religião inerentemente política, responsável por ques-
tões pessoais e também por sustentar um conjunto de organizações de
alcance internacional.
Fica claro que, na concepção de Qutb, o islã não está limitado
a uma questão de salvação de almas: ele a ultrapassa. Além disso, na
visão do autor, a separação do Estado em relação à religião é algo repro-
vável. Qutb sustenta que as religiões são sistemas de vida, em que:
há uma forte correlação entre a ordem social e o ideal ideológico.
Todavia, mais forte do que a correlação é a emergência biológica
básica da ordem social do ideal ideológico [...]. A ordem social, com
todas as suas características, é um ramo do ideal ideológico. Ela cres-
ce biológica e naturalmente, e é completamente adaptada de acordo
com as exigências da vida que aquela concepção requer, relativa à
situação humana, o estado de existência, e as metas do homem nesta
vida. (QUTB, [19--], p. 15).
Pela citação acima, podemos entender que a concepção da or-
dem social está diretamente relacionada à geração de um fator ideoló-
gico. No entanto, essa ordem social segue uma base da biologia; só se
realiza na biologia e na natureza. Nesse sentido, uma ordem social não
fundada em bases religiosas, segundo Qutb, seria considerada um “[...]
sistema arbitrário desnatural, desprovido de elementos vitais, e portan-
to, fadado a uma vida curta.” (QUTB, [19--], p. 16). Qutb prossegue
explicando que:
cada sistema de vida é uma “religião” no senso que a religião funcio-
na na sociedade, como um ancoradouro losóco que determina o
caráter de vida naquela sociedade. Se o sistema deriva de um ideal
ideológico divino, então a sociedade poderia ser aderente a uma re-
ligião divina. Se é instituída pelo chefe, ou pela tribo, ou pelo povo
[...], então esta sociedade poderia estar praticando uma “religião do
chefe”, ou a “religião da tribo” ou a “religião do povo”. (QUTB,
[19--], p. 17).
106
Fábio Metzger
Para Qutb, qualquer sistema político soberano está, por exce-
lência, adotando uma “religião”. E, nesse sentido, Qutb faz a sua escolha:
A religião revelada por Deus oferece uma explanação completa e
compreensiva para todo o mundo da existência e seu relacionamen-
to com o Criador. Ela determina corretamente a espécie de relações
que realizam os objetivos humanos mais altruísticos, bem como os
direitos naturais para o qual o homem está intitulado e os meios por
intertivos – ou meios por intermédio dos quais ele ganha as bênçãos
de Deus, assegurando-lhe a felicidade neste mundo e no outro. Isto
só pode ser alcançado seguindo-se um sistema integral e congênito
que não pode parti-lo em fragmentos psicológicos, mas pode sal-
vá-lo da doença maligna da esquizofrenia. (QUTB, [19--], p. 21).
Ora, mas de que “esquizofrenia” Qutb fala? Ele explica que:
não é natural para a religião ser segregada da vida neste mundo,
nem é natural que o sistema divino seja connado aos sentimentos
conscientes, às regras éticas e aos cultos ritualísticos. Nem é de
natureza ser enclausurada num canto estreito da vida humana,
rotulada como “assunto pessoal” [...]. Uma religião revelada não
pode escolher um setor restrito da vida humana e submetê-lo a Deus
ou estar contente com negativismo, enquanto outros setores e ações
positivas são submetidos a outros deuses para administrarem, quer
individual, quer coletivamente, colocando em vigor sistemas, dou-
trinas, instituições, organizações e leis a seu bel-prazer. [...]. Como
foi acontecer esta deplorável distinção entre a religião e a vida? Esta
hedionda esquizofrenia aconteceu sob lamentáveis circunstâncias,
deixando seus traços destrutivos na Europa, e de lá passou para todo
o mundo onde pontos de vista, instituições e leis da vida ocidentais
têm conquistado outras sociedades humanas. Quando as pessoas
se desviaram do sistema divino, tiveram de continuar seguindo as
ideologias fátuas de sua própria invenção, atingindo o seu miserável
estado presente, onde os indivíduos sofrem as terríveis conseqüên-
cias das suas deciências ideológicas [...]. (QUTB, [19--], p. 32-33).
Qutb categoriza quaisquer sistemas completos de vida como
religião”. Nesse sentido, ele faz distinções e defende a “religião de Deus”,
uma vez que foi revelada por uma entidade divina, portanto infalível. As
outras religiões, isto é, “do povo”, “do chefe” ou “da tribo”, seriam con-
cebidas não por uma entidade divina, mas por entes humanos, portanto
107
Egito e Turquia no Século XXI
falíveis. Quando uma religião monoteísta é separada da esfera política
e essa assume uma “religião” (nos termos de Qutb) do povo, ele fala da
tal esquizofrenia, contra a qual ele luta, propondo um sistema absoluto
revelado de soberania divina.
Sayyid Qutb é um pensador relevante para os seguidores do
islã político. Ele dedica-se a uma releitura do islã à luz do século XX,
com base na qual faz uma distinção entre o projeto islamista que ele
defende e os movimentos políticos concebidos no Ocidente.
Ele faz uma crítica ao modelo de democracia liberal, apontan-
do um estado de “esquizofrenia” decorrente dos eventos que deixaram
traços destrutivos” na Europa. Qutb arma que, a partir desses eventos,
pontos de vista, instituições e leis da vida ocidentais têm conquistado
outras sociedades.” (QUTB, [19--], p. 33). Sem citar explicitamente, ele
se refere às revoluções iluministas iniciadas em 1789 na França e que se
difundiram pelo mundo.
No mundo islâmico, há uma corrente política que defende uma
versão muçulmana para esse conjunto de “pontos de vista, instituições e
leis” ocidentais, que é o islã liberal. Seus defensores são favoráveis a uma
restrição do islã à esfera pessoal, enquanto a política se torna secular.
Em contraste com a “esquizofrenia”, Qutb concebe as bases de
um projeto no interior do islã político, em que defende a recuperação de
uma sociedade islâmica próxima do que teria sido a cidade de Medina
no século VII, momento em que foi fundada por Maomé a primeira
comunidade islâmica (umma).
Em seu outro trabalho, Milestones, Qutb (2005) recupera o
termo “Jahiliyya”, que originalmente se referia ao período árabe pré-is-
lâmico, imediatamente anterior à fundação da comunidade islâmica de
Medina. A Jahiliyya refere-se a um período em que cada tribo do mundo
árabe tinha as suas próprias divindades, as quais divindades poderiam
ser associadas a imagens. Dessa forma, não havia a ideia de uma crença
unicada. Em comunidades onde havia diversas tribos com várias re-
ligiões adoradoras de imagens existia a possibilidade de um confronto
interno. A fundação do islã propiciou o surgimento de uma sociedade
108
Fábio Metzger
monoteísta sem a presença de ídolos, oferecendo uma lei em que todos
estariam iguais perante Alá. Nessas circunstâncias, a ausência de ídolos
seria um fator de pacicação e união de todos os cidadãos e de todas as
tribos, diante da autoridade de uma entidade única e maior.
Qutb faz uma releitura moderna do conceito de Jahiliyya.
Ele amplia o alcance desse conceito, que tradicionalmente se refere a
um período de ignorância, em que mesmo o el muçulmano moderno
estaria afastado da causa do islã. Quando esse indivíduo é inserido no
círculo do islã, ele inicia um novo estágio de vida, superando a Jahi-
liyya e passando a estar totalmente submetido à lei divina (QUTB,
2005, p. 13-14).
Qutb fala de uma “sociedade jahili”. Ele explica que:
a sociedade jahili aparece em diversas formas. Todas elas ignorantes
da orientação divina. Em alguns momentos, ela toma a forma de
uma sociedade cujo credo em Deus é negado, e a história humana
é explicada em termos de materialismo intelectual e o “socialismo
cientíco” se torna o seu sistema. Às vezes, ele aparece na forma de
uma sociedade em que a existência de Deus não é negada, mas seu
domínio é restrito aos paraísos e seu governo terrestre é suspenso.
Nem a sharia, nem os valores prescritos por Deus e ordenados por
Ele como eternos e invariáveis encontram qualquer espaço no cená-
rio da vida. Nessa sociedade, às pessoas é permitido ir a mesquitas,
igrejas e sinagogas, e não se tolera que a sharia governe os assuntos
de seu dia a dia. Dessa forma, tal sociedade nega ou suspende a
soberania de Deus na Terra, enquanto Deus diz claramente que “é
ele quem é Soberano nos paraísos e Soberano na Terra” (43:84). Por
causa de seu comportamento, tal sociedade não segue a religião de
Deus como denida por Ele: “O Comando pertence a Ele sozinho.
Ele te comanda não para testemunhar qualquer um, a não ser Ele.
Este é o modo correto de vida” (12:40). A sociedade islâmica é, por
sua natureza, a única sociedade civilizada, e as sociedades jahili, em
todas as suas diversas formas, são sociedades atrasadas. É necessário
elucidar-se essa grande verdade. (QUTB, 2005, p. 89-90, tradução
do autor).
Dessa forma, baseado em versículos do Alcorão e argumen-
tando em favor de uma soberania divina, contrário à concepção da so-
berania popular, o autor arma que é o islã a civilização mais avançada
109
Egito e Turquia no Século XXI
em comparação com as demais. No entanto, Qutb não para por aí. Seu
método político radicaliza de vez.
Dando o exemplo de passagens do Alcorão, da forma como
Maomé funda a primeira comunidade islâmica, Qutb menciona a di-
visão que foi feita dos não muçulmanos com os quais o profeta teve de
lidar: os dhimmi (de responsabilidade do Estado islâmico), os que entra-
ram em acordo de paz e os que faziam guerra. Contra esses, não poderia
haver trégua. Enquanto os politeístas que entraram em acordos de paz
estavam sujeitos a converter-se ao islã, os beligerantes tinham de estar
sujeitos à Jihad pela causa de Deus. Seria o combate contra a Jahiliyya
para implementar a lei de Deus pela força de uma luta de vários estágios,
que inclui a guerra contra os inéis (QUTB, 2005, p. 47-51).
Qutb prossegue argumentando que o termo “Jihad” não se re-
fere a uma situação de guerra, mas sim à defesa da soberania divina – de
acordo com o testamento mais avançado, que é o Alcorão —, em con-
traste com outras formas de soberania humanas. Nesse sentido, ele não
admite que a Jihad é belicista e arma que a luta armada estaria sendo
feita de forma defensiva e não ofensiva, de modo a preservar a sobera-
nia de algo que seria, em tese, superior, em oposição à Jahiliyya. Dessa
maneira, Qutb explica que a “Jihad” pode, sim, estar ligada a situações
violentas em circunstâncias de defesa de tal soberania divina (QUTB,
2005, p. 51-56).
Na verdade, mesmo que o signicado não seja estritamente o
de uma “guerra”, Qutb oferece uma novidade dentro do islã político: a
linha jihadista, na qual o método violento passa a ser o principal para
obtenção dos objetivos islamistas. É o islã político em sua forma mais ra-
dicalizada. Uma luta em defesa do islã é justicada pelos jihadistas como
forma de empreender uma política de ação violenta contra os governos
que eles consideram “inéis”, ou seja, inseridos no conceito de Jahiliyya
elaborado por Qutb.
O islã político, dessa forma, desenvolveu duas linhas de inter-
venção principais. A primeira, derivada do movimento salasta, prioriza
110
Fábio Metzger
uma ação no seio da sociedade não estatal/civil
3
, em contraste com o
corpo tradicional da religião islâmica, e a segunda, o jihadismo, prevê
uma luta aberta até a derrubada de governos considerados “jahili”.
No caso do islã político de ação não violenta (derivado do sa-
lasmo), a linha política hegemônica tende a ser de cunho conservador,
mas em um processo de ação política de respeito às instituições básicas
da sociedade. A ação política não se dá de forma violenta. A prioridade
é um processo de islamização da sociedade o qual traga uma nova forma
de interpretar o islã, não se limitando ao ijtihad (o princípio de abertura
à interpretação dos textos pelos éis), mas indo além, questionando os
governos e criando formas de interação, em determinados momentos
pacícas, em outros momentos envolvidas em clima de maior animosi-
dade, mas sem o radicalismo do jihadismo, em que já se apresenta como
prioridade uma luta contra esses Estados, considerados “inéis”.
soberAniA populAr e soberAniA divinA no islã
Notam-se, dentro do universo dos países muçulmanos, deter-
minadas diculdades. Cada um dos países possui a sua própria concep-
ção de islã, o que implica inclusive uma grande variação na relação entre
religião, Estado e sociedade em cada um deles. Conciliar duas visões
antagônicas – governo do povo e governo de Deus – em uma só como
uma teoria explicativa pode soar um tanto estranho.
Na Europa, podemos citar alguns exemplos de processo de
acomodação entre ideologias aparentemente inconciliáveis, nos quais se
vericaram a separação delas em setores diferentes da sociedade, a incor-
poração de elementos de algumas no Estado e a limitação de elementos
de outras no corpo da sociedade civil, tudo isso dentro de um processo
histórico violento, no qual prevalece uma política de poder. Isso quer
dizer: determinados grupos estabelecem seu projeto e sua ideologia por
Neste trabalho, convencionamos ampliar o conceito de “sociedade civil”. Uma vez que esse termo se refere
às sociedades ocidentais secularizadas, nas quais o civil e o religioso estão nitidamente separados, adaptamos
o conceito com o termo “sociedade não estatal”. Como em sociedades muçulmanas o conceito não é o de
sociedade civil”, mas sim o de “comunidade dos éis” (ou umma), ao falarmos de “sociedade não estatal”,
podemos nos referir a uma população tanto na esfera civil quanto na religiosa, sem que necessitemos utilizar
os termos adotados no islã.
111
Egito e Turquia no Século XXI
terem força para fazê-lo. Os que possuem base, mas não força suciente,
se contentam-se em se submeter às razões de Estado.
Após a derrota do nazifascismo na Alemanha e na Itália, em
Estados que já eram secularizados, foram criados partidos políticos
que conciliavam duas tendências. De um lado, o conceito ideal de
democracia liberal. De outro, o conceito histórico do monoteísmo
cristão. Os partidos políticos e os movimentos chamados “democra-
cias cristãs” europeus aproximavam os valores morais do cristianismo
do ideal de uma democracia liberal, a m de participar de regimes
seculares ocidentais.
De outro lado, podemos citar as monarquias, que, originalmente,
eram absolutas. A justicativa do poder dos monarcas era divina. Havia
casos de diversas naturezas. Na Inglaterra (posteriormente, Grã-Bretanha),
existia um parlamento. Mesmo assim, este era submetido ao monarca.
Foi só com as revoluções, a partir de 1789, na França, que esse quadro
se modicou. As monarquias deixaram de ser absolutas e passaram a ser
constitucionais; a soberania do monarca passou a ser apenas pró-forma,
e a soberania de fato passou a ser popular. O parlamento não tinha de
prestar contas ao monarca. Ele era apenas um símbolo da nação. Em
outras palavras, a justicativa divina do poder monárquico não fazia mais
sentido, tinha apenas valor simbólico. As monarquias constitucionais
europeias passaram a funcionar, de fato, como democracias liberais, ou
seja, seguindo um tipo ideal de democracia, mas com a limitação do
liberalismo político, a m de deter a “tirania da maioria”. Assim, foram
criados mecanismos para não permitir que a própria maioria elegesse
políticos ou grupos políticos contrários aos princípios de liberdade da
democracia.
Dentro do islã, citamos um caso que é o contrário do con-
traponto liberal sobre a ideia de democracia. No Irã, foi criada uma
concepção de que um corpo teocrático tem amplos poderes para limitar
princípios republicanos. A concepção de lei islâmica é suprema, mas
existe junto dela um arranjo institucional similar ao das repúblicas oci-
dentais. Ao mesmo tempo em que existe um conselho central de espe-
cialistas reconhecidos na interpretação da lei islâmica, há também um
112
corpo de instituições com congresso, Presidência da República, eleições
regulares, imprensa e sociedade civil. Existe uma Constituição, na qual
conceitos republicanos seculares são citados, mas não são supremos. Eles
são menos importantes que a lei islâmica.
Existe, portanto, um conjunto de leis que é regulado e assistido
pelo conselho de clérigos sob a tutela da sharia. Todos os conceitos que
foram criados no Ocidente, de acordo com os princípios de soberania
popular, tais como o de democracia liberal, o de liberdade de imprensa
ou o de direitos humanos, estariam, antes de tudo, submetidos às leis
religiosas, a serem aprovadas pelo Conselho Supremo da Revolução Is-
lâmica, comandado por esses especialistas na sharia, que são os aiatolás.
Sem essa aprovação, que tem como justicativa a soberania de uma lei
de Deus, ca claro que não se trata de um regime de soberania popular,
mas sim de uma teocracia com espaços públicos tutelados.
3.3 democrAciA, liberAlismo e islã: umgoverno misto”?
Neste momento, lançamos uma nova questão: na tentativa de
aplicar a acomodação, já consolidada no Ocidente, da democracia no
liberalismo, dentro de dois países relevantes no mundo muçulmano que
vivem a experiência do islã – Egito e Turquia –, o resultado é a criação de
um “governo misto”. Isso signica que, na prática, não é uma democracia
liberal pura, tampouco é uma autocracia modernizadora e nem mesmo
pode ser considerada uma teocracia islâmica. É um regime misto, no
qual instituições-chave da democracia liberal concebida no mundo
ocidental convivem com as instituições históricas de Estados nacionais
autoritários centralizados e modernizantes construídas no período pós-
descolonização e com a teocracia islâmica herdada do antigo califado.
4 A T 
115
A T 
Mapa 2 - Turquia
Fonte: Central Intelligence Agency (2011b).
Área:
total: 783,562 km
2
terra: 769,632 km
2
água: 13,930 km
2
116
Fábio Metzger
População: 80.694.485 (estimativa de 2013).
Economia (estimativas de 2012):
Produto interno bruto (poder de paridade de compra):
1,125 trilhão de dólares.
Produto interno bruto (números ociais): 783,1 bilhões de
dólares.
PIB per capita (poder de paridade de compra): 15.000 dó-
lares.
Grupos étnicos: turcos (70 a 75%), curdos (18%) e outras
minorias (7 a 12%) (estimativa de 2008).
Grupos religiosos: muçulmanos (99,8%) e outros (0,2%).
Fonte: Central Intelligence Agency (2011b).
Do século XIII ao XX, a Turquia foi sede de dois grandes impé-
rios islâmicos, tendo como capital a antiga Constantinopla, rebatizada
de Istambul, já no século XV (1476). A região em que os turcos habita-
vam era historicamente ocupada por diversas populações. Além dos pró-
prios turcos, havia também gregos, armênios, curdos, árabes e judeus. A
região, conhecida historicamente como Anatólia, era um grande ponto
de passagem de populações de origem semita, persa e turca, e nela se
desenvolveu o centro de uma das mais ricas civilizações do mundo mu-
çulmano, até que o Império Otomano foi extinto, ao nal da Primeira
Guerra Mundial, e as potências vencedoras passaram a denir como a
Anatólia seria dividida. Foi nesse momento que os turcos se organizaram
e conseguiram se reestruturar em torno de uma nova unidade política.
Não mais o califado de matriz religiosa, comandado por um sultão, mas
sim uma república secularizada sob o comando de um líder moderni-
zador, Mustafá Kemal Ataturk. Essa república, já nos anos de 1920,
conseguiu se tornar soberana em toda a Anatólia na região de Istambul,
expulsando populações cristãs (especialmente gregos e armênios) e ten-
tando aculturar os muçulmanos que não tinham origem turca (princi-
palmente os curdos).
117
Egito e Turquia no Século XXI
A Turquia moderna abandonou o antigo alfabeto árabe e ado-
tou o latino. Proibiu o uso de hábitos religiosos e impôs um estilo de
vida ocidental na esfera pública. É nesse ambiente que os turcos têm
vivido: de 1922 a 1950, sob um regime unipartidário; de 1950 a 2003,
sob um pluripartidarismo tutelado pelo exército fundador da república,
sustentáculo desse novo modo de vida turco: sendo muçulmanos, mas
abandonando as tradições islâmicas e, sendo turcos, mas adotando há-
bitos de estilo ocidental.
Em 2003, pela primeira vez um partido islâmico assumiu o
poder de maneira estável. O Partido AK (Justiça e Desenvolvimento)
obteve maioria no parlamento e o direito de indicar um chefe de ga-
binete (primeiro-ministro). Como esse novo partido islâmico, dentro
de uma sociedade muçulmana e, ao mesmo tempo, com grande in-
uência do mundo ocidental, lideraria o novo governo? Que projeto
político ele adotaria?
A Turquia não se transformaria em uma república islâmica,
diante da hegemonia do exército defensor do secularismo, enquanto
instituição dominante dentro do território. No entanto, os novos go-
vernantes tinham uma abordagem diferente quanto à relação entre se-
cularismo e religião dentro da sociedade turca. E é essa questão que vem
sendo construída desde então.
4.1 o projeto político turco: AdemocrAciA
conservAdorAdo AK (justiçA e desenvolvimento)
A questão-chave que o Partido AK (Justiça e Desenvolvimen-
to) vem enfrentando se refere à forma como ele é encarado e à sua iden-
tidade política.
Na verdade, o discurso é construído em cima do conceito de
democracia conservadora”. Mas do que se trata esse conceito? De um
lado, segundo documento do United States Institute of Peace, “Islamists
at the ballot box”,
118
Fábio Metzger
embora observadores fora da Turquia se reram ao AK como um
partido “islamita”, tal termo não explica a complexidade da iden-
tidade dele para distingui-lo de partidos islamitas no Egito, no
Kuweit, na Jordânia e em outros locais. De acordo com (Sultan)
Tepe (Professor da Universidade de Illinois, Chicago), a liderança
do AK sustenta que sua meta principal é “limitar a diferença entre o
Estado e o público e integrar os valores comuns da sociedade turca
nas políticas do Estado turco”. Tepe notou que o “Islã é explicita-
mente mencionado na democracia conservadora, o Estatuto Ideoló-
gico do Partido, apenas no capítulo que discute se Islã e democracia
são compatíveis entre si. A democracia conservadora conclui que
não há conito”. E especicamente atesta, “embora a religião seja
sagrada, as ideias religiosas não são sagradas, e pode haver mais do
que uma ideia na esfera pública. Logo, o pluralismo é aceitável. Ex-
periências, aprendizados de tentativa e erro são aceitáveis não ape-
nas nas ciências naturais, mas também nas ciências sociais. Logo,
tais invenções sociais são aceitáveis à religião”. (BARSALOU, 2005,
p. 8, tradução do autor).
Nota-se, nesse ponto, o quanto o AK já se afastou do islã po-
lítico e de que forma ele está próximo de uma concepção pluralista da
política, buscando conciliar e aproximar conceitos de Estado e sociedade
civil e tentando acomodar aspectos da religião (o islã) e do secularismo,
com base em uma concepção pluralista da política.
Como reforça o estudo,
Tepe argumenta que “enquanto as origens do AK são as de um par-
tido pró-islâmico, ele busca se afastar dos islamitas e vai para o outro
extremo, apresentando-se como um partido quase não islâmico. Em
vez de trazer ideias islâmicas para o mercado de ideias, o partido ou
as submete à ’etiqueta de valores comuns’, ou demonstra que prin-
cípios democráticos podem ser deduzidos deles”. (BARSALOU,
2005, tradução do autor).
Na prática, o AK já está se apresentando, dentro do conceito
de democracia conservadora, não com a ideia de islã político, mas sim
com base em uma concepção do islã liberal, para a sociedade turca.
119
Egito e Turquia no Século XXI
É nesse sentido que o AK aparece como um partido, não mais
com um perl religioso radical, mas segundo uma proposta diferente,
mais próxima de um partido conservador.
As eleições de 2002 [...] não foram para estabelecer um Estado islâ-
mico ou para instituir a lei islâmica, mas, ao contrário, para redese-
nhar as fronteiras entre o Estado e a sociedade, consolidando a so-
ciedade civil e reconstituindo a vida de todo dia em termos de uma
visão da “boa vida”. (YAVUZ, 2003, p. 256, tradução do autor).
O AK, de fato, é um partido que cresceu beneciando-se de
uma rede de solidariedade social de que populações de diversas origens
participam, desde intelectuais e homens de negócios até policiais. Esses
contatos são baseados justamente em redes de solidariedade de inspira-
ção religiosa, nas quais, de outro lado, o secularismo também é levado
em conta e conciliado. Isso se traduziu em apoio político. Trata-se, dessa
forma, da consequência de uma mudança de baixo para cima, dentro
da sociedade turca, em que tais redes de contatos baseadas em grupos
religiosos puderam permitir a ascensão de um partido político ao poder.
Uma mudança que levou a uma reação do Estado, que interveio com a
justicativa de deter o avanço do islã político, mas não a ponto de impe-
dir o crescimento desse movimento. Dessa maneira, uma nova versão de
um movimento islâmico, mais moderado, pôde consolidar-se no poder,
mantendo sua identidade islâmica, de um lado, mas, de outro, aceitando
as bases gerais do secularismo.
Na verdade,
o AK emergiu como o partido número um nas províncias naciona-
listas turcas e muçulmanas sunitas. Entretanto, o nacionalismo do
AK [...] não é um de um Estado dirigista, secularista e étnico-lin-
guista, mas, em vez disso, é um nacionalismo ético-religioso e com
bases societais. [...] As fronteiras entre o “nós” e o “eles”, para o AK,
é denida em termos religiosos. A “turquicidade” também é deni-
da, em termos de religião, em “nós”, os turcos que servem a Deus e
à sociedade, e “eles”, que servem a Ataturk e ao Estado. […] Assim,
a base normativa do AK consiste de uma síntese turco-islâmica den-
tro de novos discursos globais de direitos humanos e democracia.
(YAVUZ, 2003, p. 260-261, tradução livre).
120
Fábio Metzger
Sendo assim, o AK, antes de ser um partido islamita e antilibe-
ral, aparece como um partido islâmico e liberal. É dentro dessa proposta
que ele entra em choque com um Estado secular e com resistências ao
liberalismo, como veremos adiante.
o primeiro ciclo de governo do AK (2002 A 2008)
Com a vitória do AK nas eleições parlamentares de 2002, o
novo líder, Taiyyp Recip Erdogan, diferentemente de Nemcettim Er-
bakan, quando foi primeiro-ministro da Turquia entre 1996 e 1997,
priorizou originalmente em seu programa não uma integração com o
mundo islâmico, mas sim a retomada de negociações para a entrada da
Turquia na União Europeia (SECULARISM..., 2007). Em um primei-
ro momento, o AK não se colocou desaando as bases seculares rígidas
do Estado turco. No entanto, caram claros os pontos de atrito entre
governo e Estado. Por exemplo: na questão da educação, havia uma pro-
messa do AK, nas eleições de 2002, de não mais proibir o uso do véu nas
universidades e de aceitar os alunos das escolas religiosas Imam Hatip
nas universidades. Essas medidas, no entanto, não puderam ser coloca-
das em prática, diante do poder maior do Alto Conselho de Educação
do Estado turco, que as considerou desaadoras da política de “estrito
secularismo” da República da Turquia
1
.
Nessa questão, uma luta política vem ocorrendo. Trata-se de
duas abordagens. De um lado, aqueles que defendiam o rígido secu-
larismo e acusam os defensores do primeiro governo AK de serem “is-
lamitas”. De outro, os que desejavam exibilizar o secularismo turco e
aumentar a aproximação do Estado turco em relação à sociedade civil,
que possui uma base religiosa, sem que isso implique necessariamente
um radicalismo.
A questão do véu, para o governo do AK, aliás, vem sendo
outro ponto de atrito em relação ao Estado turco. Isso ocorre por conta
de uma estudante de medicina que em 1998 foi obrigada a abandonar
Para obter mais informações, consultar: e Middle East Media Research Institute (2006), YAVUZ (2003,
p. 124) e Ahmet Koç (2000).
121
Egito e Turquia no Século XXI
os estudos por se recusar a frequentar uma universidade secular (Univer-
sidade de Istambul) sem o véu. Para o primeiro-ministro Erdogan, esse
é um assunto a ser resolvido pelos ulemás e não pelo judiciário da repú-
blica turca. O caso foi levado à Corte Europeia de Direitos Humanos e
foi decidido que a estudante estava informada dos regulamentos da uni-
versidade e de seu caráter secular, logo deveria obedecê-lo, se desejasse
permanecer estudando lá, o que gerou protestos do governo e de grupos
islâmicos. (THE MIDDLE EAST MEDIA RESEARCH INSTITUTE,
2006). Na verdade, o primeiro governo de Erdogan vinha denindo
uma nova política de identidade da Turquia. Em visita à Nova Zelândia,
ele reiterou, respondendo sobre a questão da minoria nacional curda: é
a religião muçulmana o elemento que articula uma identidade suprana-
cional turca. Ele sustentava que, como 99% dos turcos são praticantes
da religião muçulmana, é o islã que os une, mesmo sendo a Turquia um
país multiétnico. Nesse sentido, Erdogan deniu as etnias da Turquia
como “subidentidades” com “cidadania na Turquia”, enquanto o islã
seria a identidade maior, comum a todos (THE MIDDLE EAST ME-
DIA RESEARCH INSTITUTE, 2005b). Esse é mais um ponto em que
ocorre um choque entre os partidários do AK e os estritos defensores da
república secular.
Atritos do governo turco e do Estado atingiram também o
setor militar, envolvendo até a questão de nomeação de comandantes
militares, como no caso do general Mehmet Yasar Buyukanit em agosto
de 2006. Buyukanit possuía um discurso anti-islamita e antiterrorista, e
passou por uma forte campanha, a m de desacreditá-lo. Outros eventos
têm gerado desgastes internos, tais como o fato de lideranças políticas do
AK terem recebido, em visita ocial, uma delegação do partido islamita
palestino Hamas, cujo líder, Khaled Mashaal, está exilado na Síria. Tal
visita teria sido arquitetada por Ahmet Davutoglu – atual ministro das
Relações Exteriores, na época conselheiro político de Erdogan –, de-
fensor de uma aproximação maior da Turquia com os países islâmicos.
Ocialmente, a Turquia busca esclarecer que o convite partiu do partido
AK, e não do governo turco.
122
Fábio Metzger
Em suma, foi possível notar um conito aberto entre secularis-
tas e “islamitas” o qual, de todas as formas, o exército turco, claramente
do lado secular, tentou bloquear desde os anos 1980. No entanto, exis-
tiu um claro problema: o apelo à religião, cada vez maior, de populações
muçulmanas, algo a que os turcos não estão imunes. Por outro lado,
existe um interesse histórico de que a Turquia integre a União Europeia,
passando a ser parte de uma união política composta predominante-
mente por países de maioria cristã. Os países do Oriente Médio, em par-
ticular, e do mundo islâmico, de forma mais ampla, nunca consentiram
com uma liderança turca perante outras, como Irã e Arábia Saudita. Fica
a pergunta: para onde estava indo a Turquia? Duas forças políticas anta-
gônicas começaram a expor o país, mais uma vez, à interferência dos mi-
litares. Da mesma maneira, no passado essa intervenção acontecera no
contexto de uma disputa entre nacionalistas e liberais (ambos seculares).
Percebeu-se claramente o exército como um interventor de ocasião no
Estado turco, o que não impediu, porém, a existência de um pluripar-
tidarismo. Na verdade, os intervencionistas turcos costumavam abolir
partidos que eles consideraram uma ameaça ao Estado, mas sem mexer
totalmente no sistema, que mantinham aspectos de liberalismo político
inspirado no Ocidente, traços do nacionalismo estatal interventor e sutis
resquícios de uma sociedade religiosa forte o bastante para interferir em
algumas decisões políticas. Enquanto forças partidárias e sociais que não
ameaçavam aspectos centrais do Estado secular turco, a faceta liberal do
país era mantida. Quando esse modelo não conseguia mais impedir a
ascensão de um partido contestador de aspectos do secularismo turco,
os militares intervinham, vericando-se uma tendência ao autoritarismo
de Estado. No entanto, com a subida do AK, os integrantes de uma ca-
mada religiosa da população passaram a ser integrados no pacto político
central turco, dentro da concepção original de “democracia conserva-
dora”, incluindo a conciliação do islã com o pluralismo político. O que
acabou criando novos desaos, nas relações entre um Estado cujo legado
de secularismo é rígido e uma sociedade retornando cada vez mais às
raízes religiosas dos tempos do Império Otomano.
123
Egito e Turquia no Século XXI
As intervenções do primeiro ciclo de governo do AK
entre 2007 e 2008
A Turquia passou por um processo de escolha para a Presidência
da República, interrompido no meio, em abril de 2007. As eleições,
que seriam feitas em quatro rodadas no parlamento turco, contaram
com a aprovação de dois terços dos votos dos parlamentares nos dois
primeiros turnos e com a maioria simples do candidato vencedor.
Lançou-se como candidato único o ex-ministro das Relações Exteriores,
Abdullah Gul
2
. No entanto, os partidos de oposição boicotaram o
pleito e não participaram da votação, não tendo os votantes do AK o
número de votos sucientes para atingir os dois terços regulamentares.
Em 29 de abril, uma grande manifestação pró-secular tomou as ruas de
Istambul, com aproximadamente um milhão de manifestantes turcos
defendendo o secularismo do Estado. Durante essa crise, o comando do
exército turco deixou uma sugestão em seu site a respeito do que deveria
ser feito quanto à crise política que envolvia a escolha do presidente
(SECULARISM..., 2007). A questão foi levada à Suprema Corte, que
anulou a eleição presidencial por 11 votos a 2, em 1º. de maio de 2007
(BATTLE..., 2007).
Na situação que se estabeleceu, houve a proposta de modicar
a Constituição para permitir eleições diretas para a Presidência da Repú-
blica. Diante da crise, outra proposta era antecipar as eleições parlamen-
tares, programadas para 4 de novembro, para julho. Após muito debate,
foram marcadas novas eleições para 22 de julho de 2007, vencidas pelo
AK, que obteve 46,7% dos votos. O partido conquistou o direito a ter
341 assentos. Em segundo lugar, cou o Partido Popular Republicano
(CHP), com 20,9% dos votos, conquistando 112 cadeiras. O Partido da
Ação Nacionalista (MHP), da direita, cou com 14,9% dos votos e ob-
teve 70 cadeiras no parlamento (PARTIDO..., 2007). Nas eleições pre-
sidenciais, realizadas no dia 28 de agosto, dessa vez permitindo vitória
por maioria simples, Abdullah Gul foi eleito presidente da Turquia com
339 votos, contra 70 do candidato do MHP, Sabahattin Cakmacoglu, e
 Que posteriormente foi eleito presidente do país e substituído por Ahmet Davotuglu.
124
Fábio Metzger
13 do candidato do Partido da Esquerda Democrática (DSP), Huiseyin
Tayfun Içli (ABDULLAH GUL..., 2007).
4.2 pontos de divergênciA entre estAdo e governo
É possível notar que os espaços entre religião islâmica e
secularismo e os conceitos de democracia liberal e intervencionismo
ainda estão sendo delimitados no âmbito do Estado nacional e em
sua relação com a sociedade civil turca. Portanto, estamos falando da
Turquia como um sistema em que ainda estão em teste os espaços de
acomodação entre religião e secularismo, no que diz respeito ao Estado,
e entre Estado e sociedade civil, no que diz respeito à independência e à
liberdade dos cidadãos em interpelar e contestar.
Em um exemplo que pode ser bem apresentado em matéria
para a revista Der Spiegel em 24 de abril de 2007, intitulada “Em uma
Turquia intolerante, convertidos ao cristianismo vivem com medo”, ca
ainda claro que o modelo de liberdade religiosa enfrenta sérias barreiras.
Segundo a reportagem,
[...] já em 2001, o Conselho de Segurança Nacional da Turquia, sob
o governo do primeiro-ministro Bülent Ecevit, classicou as “ati-
vidades missionárias” como uma ameaça à segurança nacional. O
departamento de religião do governo distribuiu no passado sermões
criticando os missionários […] (EM UMA TURQUIA..., 2007).
Tal crítica se referia à crescente presença de missões cristãs no
país, que levou, entre outros problemas, ao assassinato de um cristão
alemão, o que gerou uma crise diplomática com a União Europeia nas
conversas que dizem respeito à entrada da Turquia no bloco. Ainda se-
gundo a reportagem,
[...] os cristãos relatam que há tentativas de mover ações judiciais
contra supostos missionários, ainda que o proselitismo não seja
ocialmente ilegal na Turquia. O oposto é verdade. Na Turquia é
ilegal – pelo menos teoricamente – impedir que alguém pratique ou
dissemine a sua fé. Mas abordagens criativas são às vezes adotadas
para perseguir os impopulares inéis, arma o advogado Orhan
Cengiz. Em Silivri, uma cidade a oeste de Istambul, dois convertidos
125
Egito e Turquia no Século XXI
estão atualmente sendo julgados pelo delito tipicamente turco de
“insultar o caráter turco” e por ‘incitamento do ódio religioso’,
ambos considerados crimes segundo o notório Artigo 301 do código
penal do país. (EM UMA TURQUIA..., 2007).
Outra polêmica diz respeito a propagandas em outdoors em que
estão expostos biquínis, na cidade de Istambul. A reportagem da Der
Spiegel “Disputa do biquíni na Turquia: pele demais exposta nos out-
doors em Istambul?”, de 22 de maio de 2007, coloca mais essa questão
como uma nova polêmica entre secularistas e islâmicos. O alvo na dispu-
ta entre os dois campos é a prefeitura de Istambul: alguns fabricantes de
biquínis se queixaram de que as autoridades municipais proibiram, por
razões morais, certos cartazes publicitários de biquínis e trajes de banho
reveladores. Os fabricantes consideraram isso uma forma de censura e
restrição à liberdade empresarial. Uma empresa disse ter sido informada
de que a prefeitura se recusou a aprovar seus outdoors porque as imagens
particularmente provocantes aumentariam o risco de acidentes de trân-
sito. Para os oponentes de Erdogan e do AK, as críticas aos fabricantes de
trajes de banho ofereceram uma evidência das supostas metas islamitas
do AK. Fica clara a divergência pública entre secularistas e islâmicos,
que não está apenas ligada ao Estado, mas também à sociedade civil, na
qual um governo municipal, de um lado, e a imprensa e as agências de
publicidade, de outro, entram em pé de guerra por conta de questões
que dizem respeito a valores morais dos indivíduos e da sociedade. Nesse
ponto, ca claro, por exemplo, que o AK não necessariamente contestou
a formalidade constitucional da Turquia secular. No entanto, faz questão
de avançar, em um aparato legislativo formalmente secular, em questões
morais, em que os valores religiosos podem entrar em discussão, mesmo
que se trate de uma questão secular. É nesse momento que as reações co-
meçam a se tornar mais duras. O que poderia ser apenas uma discussão
entre liberais e conservadores, tal como ocorre, por exemplo, nos EUA,
se torna uma questão mais séria, que envolve o legado daqueles que
seriam os guardiões do Estado secular, de um lado, e dos defensores do
islã, do outro. Esse confronto, de forma constante, tem levado à inter-
venção, direta ou não, de setores de Estado e governo turcos.
126
Fábio Metzger
A agência nos informou que poderíamos nos poupar do incômodo
de submeter fotos deste tipo”, explicou o executivo-chefe da Sunset,
Kemal Günes, em entrevistas para jornais, acrescentando que foram
informados que as fotos eram incompatíveis com os princípios
morais gerais da Turquia. Isto levou a empresa a submeter novas
fotos de modelos de aspecto conservador, exibindo relativamente
pouco sua pele. As novas fotos foram aprovadas, disse Günes. “Nós
exibimos nossos cartazes em 20 países, então por que não está certo
aqui na Turquia?”, disse Zeki Baseskioglu, chefe da empresa Zeki
Trio. “Eu estou fazendo algo questionável?” Os problemas, disse
Baseskioglu, tiveram início no nal dos anos 90, quando o atual
primeiro-ministro Erdogan ainda era o prefeito de Istambul. Em
protesto ao que muitos viam como censura, uma empresa até mesmo
produziu um cartaz de Atatürk em um traje de banho. A prefeitura
de Istambul rejeita tais acusações. “Nunca houve restrições a este
tipo de publicidade”, declarou o prefeito Topas em Nova York,
onde participava de uma conferência sobre a mudança climática
[...]. Em apoio às acusações, o jornal Milliyet publicou trechos da
noticação de rejeição. A prefeitura, por sua vez, divulgou sua mais
recente noticação de aprovação para a Sunset, na qual cita regras
para anúncios que proíbem imagens que gloriquem violência,
sejam racistas, discriminatórias ou problemáticas de outras formas,
e que elas devem ser compatíveis com “as regras morais éticas gerais.
(DISPUTA..., 2007).
A questão envolveu até mesmo as esferas da Justiça da Turquia.
Segundo a matéria do Der Spiegel,
O jornal Sabah [...] argumenta que o caso será um problema para
o Primeiro-Ministro Erdogan. Segundo o artigo, as acusações já fo-
ram incluídas em um dossiê que o gabinete do procurador-geral
submeteu a mais alta corte do país. O dossiê aparentemente contém
informação que os investigadores estão reunindo [...] sobre os casos
em que o AK violou os princípios seculares fundamentais do país.
Há rumores em Ancara [...] de que a investigação poderá levar a
procedimentos para proibição do AK – um sonho para seus ad-
versários, mas algo que dicilmente ocorrerá. (DISPUTA..., 2007).
O parlamento turco aprovou uma importante medida, que
foi a revogação da proibição do uso do véu nas universidades, bastan-
do mostrar o rosto. Em 8 de fevereiro de 2008, o parlamento, com a
127
Egito e Turquia no Século XXI
maioria dos deputados pertencendo ao AK, aprovou a medida por 411
votos, contra 103 da oposição (PARLAMENTO..., 2008). A separa-
ção entre religião e Estado poderia dar margem a uma interpretação
diferente da dos secularistas. Nessa nova interpretação, a liberdade e a
igualdade dos indivíduos vêm antes do caráter secular do Estado. Na
interpretação anterior, sem os acréscimos das emendas aprovadas em 8
de fevereiro, é o hábito secular que determina a igualdade, e, dessa for-
ma, a insígnia religiosa determinaria, de antemão, uma desigualdade,
perante um Estado secular.
4.3 o segundo ciclo e A mudAnçA do eixo dA políticA
externA de AncArA (2008-2013)
Desde as eleições do partido AK, o projeto político da Turquia
ganhou novos contornos. A mudança de direção de Ancara, antes mais
pró-ocidental, e buscando entrar na órbita da União Europeia, teve re-
sultados imediatos. Inicialmente citamos a dupla aproximação em rela-
ção aos países árabes, após as revoltas de 2011, e à Rússia. São algumas
aproximações de natureza mais política (como aquela feita com os países
árabes) e outras de espécie mais econômica (como a com a Rússia). Tam-
bém falamos de uma relação de aproximação-afastamento (como a com
o Irã). Ao mesmo tempo, Ancara se afasta de Israel e da União Europeia,
principalmente da França.
AproximAção com os pAíses árAbes Após As revoltAs de 2011
Conforme matéria do e New York Times de 30 de setembro
de 2011,
[...] há pouco tempo a política externa da Turquia girava em tor-
no de uma única questão: a dividida ilha de Chipre. Atualmente,
seu primeiro-ministro pode ser a gura mais popular no Oriente
Médio, seu ministro das Relações Exteriores vislumbra uma nova
ordem e autoridades conseguiram fazer o que o governo Obama até
agora não conseguiu: posicionar-se rmemente do lado da mudança
nas revoltas e revoluções árabes. (TURQUIA..., 2011d).
128
Fábio Metzger
A matéria prossegue dizendo que a:
[...] política externa do país tem atraído a atenção de muitos no
Oriente Médio e outros lugares do mundo, principalmente depois
que o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan visitou na semana
passada três países árabes que testemunharam revoluções nos últi-
mos meses: a Tunísia, o Egito e a Líbia. Mesmo os críticos de Er-
dogan caram impressionados com o simbolismo da viagem. [...]
Embora muitos critiquem o seu autoritarismo em casa, o público
no exterior parecia diante de um homem que retrata a si mesmo
como o líder orgulhosamente muçulmano de um país democrático
e próspero que se posicionou do lado da revolução e em defesa dos
direitos dos palestinos. (TURQUIA..., 2011d).
Na matéria, ainda há o destaque do ministro turco das Rela-
ções Exteriores, Ahmet Davutoglu, que “[...] falou abertamente de um
eixo entre Egito e Turquia, dois dos países mais populosos e militar-
mente poderosos da região, que sustentaria uma nova ordem segundo a
qual Israel caria à margem até que zesse as pazes com seus vizinhos.
(TURQUIA..., 2011d).
AproximAção com A rússiA nA questão dos gAsodutos
Vamos nos lembrar do ponto principal em questão. A proxi-
midade turca com os EUA e a União Europeia em relação aos acordos
econômicos para o transporte de gás natural pelo centro da Ásia. Esses
acordos incluíam países da Ásia Central e do Cáucaso de origem turca
(Azerbaijão, Tajiquistão, Turcomenistão) e excluíam o transporte pelo
Irã e pela Rússia, deixando de fora empresas desses países e beneciando
consórcios estadunidenses e europeus. Conforme matéria publicada em
29 de dezembro de 2011 no portal do jornal O Estado de S. Paulo e
intitulada “Ancara aprova gasoduto russo sob o Mar Negro”, a Turquia
permitiu que a empresa de energia russa Gazprom transportasse para a
região do Mar Negro sua produção de gás natural (ANCARA..., 2011).
Essa produção garante cerca de 10% da necessidade de suprimentos dos
países europeus até 2015, segundo a matéria “Turquia autoriza Rússia
a traçar gasoduto South Stream pelo Mar Negro”, do portal do mesmo
129
Egito e Turquia no Século XXI
jornal, em 28 de novembro de 2011, de maneira que o gás natural russo
pode ser levado à Bulgária e, de lá, para os Bálcãs, para ser bombeado no
norte da Itália (TURQUIA..., 2011).
Acordo petrolíFero com o i: AproximAção e AFAstAmento
Por outro lado, a Turquia faz aproximações tímidas e tensas
com o Irã. Observamos que a Turquia é um Estado secularizado com
governo islâmico e alinhamento pró-EUA, apesar de um maior afasta-
mento nos últimos tempos da órbita pró-ocidental. O Irã, por sua vez,
é um país islamista, com governo islâmico, antiocidental e, principal-
mente anti-EUA. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, na edição de
24 de dezembro de 2011, o Irã prorrogou o contrato de exportação de
petróleo com a Turquia por mais um ano, ou seja, até o m de 2012,
contornando “[...] as sanções impostas por causa de seu programa nu-
clear controverso. A Turquia disse estar obedecendo a essas sanções, após
tentar sem sucesso ser mediadora entre o Irã e a comunidade internacio-
nal.” (IRÃ..., 2011). Isso acontecia enquanto a União Europeia já con-
siderava a adoção de sanções semelhantes àquelas que os EUA executam
em relação ao Irã.
Esse acordo, entretanto, sofreu um revés, conforme a matéria
Turkey to cooperate with West’s sanctions on Iran by cutting oil imports”,
do Haaretz de 31 de março de 2012 (BARE’EL, 2012a): a Turquia sina-
lizou uma cooperação com o Ocidente cortando cerca de 20% de suas
importações de petróleo do Irã. Observamos um leve afastamento turco,
mas não denitivo, a m de se adequar às sanções lideradas pelos EUA e
pela ONU contra o programa nuclear iraniano. Obviamente, a Turquia
não poderia estar imune a pressões externas de aliados no Ocidente.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo de 3 de dezembro de 2011, na
matéria “Biden defende sanções ao Irã em reunião com Erdogan”, o
vice-presidente dos EUA
3
[...] defendeu a adoção de sanções contra o
Irã durante uma reunião com o primeiro-ministro da Turquia, Recep
 Joe Biden.
130
Fábio Metzger
Tayyip Erdogan, mas não pediu aos turcos para juntarem-se aos países
que estão pressionando o governo iraniano.” (BIDEN..., 2011).
AFAstAmento e reAproximAção de isrAel
Vamos ater-nos a alguns episódios: a “otilha da liberdade”,
patrocinada por entidades ligadas ao governo turco, em maio de 2010,
quando o governo turco apoiou abertamente uma ação humanitária
contra o bloqueio israelense à Faixa de Gaza; a reação israelense, que
gerou mortes e foi denunciada pela diplomacia turca como um ataque
em águas internacionais; a exigência de Ancara de que Israel pedisse
desculpas pela ocorrência; e a expulsão do embaixador israelense da
Turquia. Juntamos a esses fatos a posição turca de defesa de navios com
ajuda humanitária a Gaza, por meio de suas forças navais. Isso pode
indicar uma rivalidade na questão do Mediterrâneo Oriental. A matéria
“Turquia escoltará navios de ajuda humanitária com destino a Gaza
expressa pronunciamentos do primeiro ministro Recep Tayyip Erdogan:
A Turquia será rme em seu direito de controlar as águas territoriais
no leste do Mediterrâneo.” (TURQUIA..., 2011c), ressaltou. A Turquia
tem protestado contra a exploração de reservas de gás pelo governo
do Chipre, porque não reconhece a área como território marítimo
pertencente à ilha. Ao contrário, Israel reconheceu a área como sendo
pertencente à República do Chipre e espera encontrar fontes de gás
natural para o seu abastecimento ali.
Você sabe que Israel começou a declarar que tinha o direito de
agir exclusivamente em áreas econômicas no Mediterrâneo. [...]
Você verá que Israel não será dono desse direito, porque a Turquia,
como responsável pela República Turca do Chipre do Norte
[4]
, já
deu os primeiros passos na região, tem tomado medidas na área,
e será rápida e decisiva em obter o direito de participar do mo-
nitoramento das águas internacionais do leste do Mediterrâneo.
(TURQUIA..., 2011c).
O Chipre do Norte é um Estado não reconhecido internacionalmente, a não ser pela Turquia. O único
Estado reconhecido na região é a República do Chipre, de maioria grega.
131
Egito e Turquia no Século XXI
Podemos notar o m de uma histórica cooperação entre Isra-
el e Turquia no Mediterrâneo Oriental, dois países do Oriente Médio
aliados das potências ocidentais, e o início de uma rivalidade política
que ainda não podemos denominar de “inimizade”, mas que certamente
está longe de ser uma relação cordial. Isso já tem efeitos inclusive sobre
antigos acordos militares, que foram suspensos, e em vetos a Israel, pela
Turquia, em cúpulas da OTAN, conforme a matéria “Turkey rejects
Israeli participation in NATO summit”, de 23 de abril de 2012, do
Haaretz (BARE’EL, 2012)
5
.
Esse afastamento signica, nas atuais circunstâncias, a
aproximação com as lideranças palestinas e, notadamente, com as do
movimento islamista Hamas, conforme matéria do Haaretz de 16 de
março de 2012, “Hamas chief meets with Turkey PM on Palestinian
reconciliation”, em referência ao encontro entre o líder do Hamas no
exílio, Khaled Meshaal, e Erdogan em Ancara (HAARETZ, 2012).
As declarações da Turquia em relação à criação do Estado palestino
se tornaram mais rmes, conforme a matéria “Reconhecimento de
Estado palestino é obrigação, não opção, diz Turquia”, do IG de 13
de setembro de 2011, com apoio do primeiro-ministro turco à causa
(RECONHECIMENTO..., 2011).
A aceitação da Palestina como Estado observador dentro da
ONU, a despeito do não reconhecimento por parte de Israel, foi uma
mudança importante, diante das difíceis relações turco-israelenses. Em
face de um novo alinhamento do governo da Turquia com o dos EUA,
ocorreu uma reaproximação com Israel. O primeiro-ministro israelense,
Benjamin Netaniahu, pediu publicamente desculpas à Turquia pelo uso
excessivo da força por parte do exército de Israel no episódio da otilha,
o que foi determinante para que os dois países retomassem relações di-
plomáticas mais próximas, com o restabelecimento dos dois embaixado-
res em suas respectivas funções.
Ao mesmo tempo, a Sexta Frota dos EUA se junta às marinhas grega e israelense em um exercício militar
conjunto, segundo a matéria “Israel, Greece conduct joint naval drill amid ongoing tension with Turkey”, do
Haaretz de 1º de abril de 2012 (RAVID, 2012).
132
Fábio Metzger
Foi um novo momento de denição da posição estratégica da
Turquia, dentro do contexto de sua política no Oriente Médio, man-
tendo uma posição privilegiada em relação aos países árabes, incluídos
os governos surgidos a partir das revoltas de 2011, e aos EUA, aliado
importante para a política externa de Ancara.
AFAstAmento dA união europeiA
Outra questão que a Turquia vem enfrentando tem a ver com
uma lei francesa que reconheceu o genocídio armênio. Isso fez com
que Ancara revisse as relações com Paris. E o efeito dessa revisão foi
o congelamento de acordos políticos e militares, além do surgimento
de mais um obstáculo, segundo a matéria do jornal O Estado de S.
Paulo de 23 de dezembro de 2011, “Turquia congela cooperação militar
e política com a França” (IRÃ..., 2011). Esse é mais um passo atrás da
Turquia na direção da União Europeia. A França enquanto, membro
fundador do bloco, que tinha alguma simpatia pela Turquia e poucas
oposições (ao contrário, por exemplo, da Alemanha, onde uma colônia
de turco-alemães sofre discriminação e em que há grande oposição por
questões de imigração) a ela, poderia ser um voto favorável à entrada do
país na UE. Entretanto, o episódio da aprovação da lei que reconhecia
o genocídio armênio, imputado ao Estado turco, levou a uma forte
reação. Em resposta, o governo da Turquia acusou a França de promover
um genocídio na Argélia de cerca de 15% da população local, quando
esta lutava pela sua independência, conforme a matéria “Turquia acusa
França de genocídio argelino”, do jornal O Estado de S. Paulo de 28
de dezembro de 2011, em referência ao 1,5 milhão de argelinos que
morreram na guerra de libertação contra o exército francês entre 1954 e
1962 (TURQUIA..., 2011a).
Afora essa questão do afastamento de um importante ator na
aproximação de Ancara com a União Europeia, os próprios turcos co-
meçam a se perguntar se vale realmente a pena, com a crise econômica
que atinge a zona do euro, aderir ao bloco. Em “O desencanto turco
com a União Europeia”, artigo originalmente escrito no e New York
133
Egito e Turquia no Século XXI
Times por Dan Bilefski e traduzido para o jornal O Estado de S. Paulo
em 6 de dezembro de 2011 (BILEFSKI, 2011), a questão é colocada
com a pergunta inicial: se Erdogan, quando assumiu em 2002 a posição
de primeiro-ministro turco, tinha como objetivo maior” a entrada do
país no bloco, como proceder, agora? A recepção pouco calorosa dos
europeus à candidatura turca, e a prioridade dada por eles à entrada de
países de maioria cristã (como Bulgária, Croácia e Romênia), a crise eco-
nômica que atingiu países há muito consolidados no bloco, incluindo a
histórica vizinha, a Grécia, e a possibilidade de inuenciar os países ára-
bes que estão, desde 2011, derrubando regimes autocráticos oferecem
para Ancara outra porta de passagem.
De acordo com matéria da EFE reproduzida no jornal O Esta-
do de S. Paulo em 4 de janeiro de 2012 e intitulada “Chipre quer dia-
logar com Turquia para reduzir a tensão no país”, a república cipriota:
[...] assumirá em julho a Presidência da União Europeia, momen-
to no qual a Turquia anunciou que congelará seus vínculos com a
união, a não ser que seja resolvido o conito da ilha, dividida desde
1974 entre a República do Chipre e uma república controlada pela
Turquia reconhecida somente por Ancara. (CHIPRE..., 2012, não
paginado).
Os efeitos disso têm sido claramente notados. Em um primeiro
momento, a Turquia se reaproximou do bloco europeu. Em matéria do
jornal O Estado de S. Paulo de 16 de maio de 2012, “Turquia retoma
negociação para aderir à União Europeia”,
a Turquia mostrou interesse renovado às vésperas da reabertura das
negociações para sua oferta de adesão à União Europeia (UE), que
deverão começar na quinta-feira, agora que seu principal oponente,
Nicolas Sarkozy, não é mais presidente da França. [...] Ele argu-
mentava que a Turquia, como país predominantemente muçulma-
no, não é parte da Europa. Sarkozy queria que a Turquia aceitasse
algum tipo de parceria especial com o bloco europeu ao invés de
ser um país membro, algo que a Turquia rechaçou. (TURQUIA...,
2012a, não paginado).
134
Fábio Metzger
Desse ponto de vista, o novo governo francês de François
Hollande poderia ser um novo facilitador. Entretanto, dessa vez foi a
Turquia quem recuou, conforme a matéria do jornal O Estado de S.
Paulo de 7 de junho de 2012, “Turquia não reconhecerá o Chipre como
presidente da UE”. A Turquia
[...] não participará de nenhum evento da União Europeia (UE)
enquanto o Chipre ocupar a presidência rotativa do bloco europeu,
o que deverá acontecer a partir de 1º de julho e até o nal deste ano,
disse nesta quinta-feira o chanceler da Turquia, Ahmet Davutoglu.
Ele disse que seu país, contudo, continuará a colaborar com a UE,
à qual espera aderir no futuro. A Turquia não reconhece o governo
do Chipre como nação soberana. A ilha está dividida desde 1974,
na República do Chipre no centro-sul e no norte turco-cipriota,
cuja República Turca do Norte do Chipre (RTNC) é reconhecida
apenas por Ancara. O Chipre passou a fazer parte da UE em 2004.
(TURQUIA..., 2012)
6
.
Tal medida já tinha sido criticada pelo chefe do Parlamento
Europeu, conforme matéria do jornal O Estado de S. Paulo “Parlamento
Europeu critica Turquia por questão cipriota”, de 28 de maio de 2012
(PARLAMENTO..., 2012)
7
.
o engAjAmento no conFlito dA síriA: risco ou oportuni-
dAde?
Os acontecimentos da Primavera Árabe, a partir de 2011, ti-
veram consequências imediatas, sendo que três regimes despóticos caí-
ram – no Egito, na Líbia e na Tunísia, três países do norte africano. A
Turquia apoiou os novos regimes que se sucederam à queda dos anteriores.
Na Tunísia, a transição para um novo regime foi relativamente tranquila,
As relações entre a Turquia e a UE, bem como os contatos políticos, continuarão como estão” disse o
chanceler turco Davutoglu em coletiva de imprensa ao lado da chefe de política externa do bloco europeu,
Catherine Ashton, e do comissário de expansão da UE, Stefan Fule. “Mesmo assim, nenhum ministro ou
organização da República da Turquia tomará parte em qualquer atividade que for presidida pelo sul do
Chipre.” (PARLAMENTO..., 2012).
Parece irônico esse acontecimento cerca de dois anos depois, mas vamos nos recordar do episódio da “oti-
lha da liberdade” de Gaza em 2010, quando o navio Navi Marmara, com o apoio indireto do governo turco,
e outros navios, que tinham entre seus passageiros inclusive cidadãos europeus e deputados do Parlamento
Europeu, aportaram no Chipre, antes de entrar em choque com as forças armadas israelenses...
135
Egito e Turquia no Século XXI
sendo eleito um partido islâmico moderado, o Enhada, sem que um
Estado religioso ganhasse corpo, de forma semelhante ao que ocorreu na
Turquia, alguns anos antes, quando o AK elegeu o seu primeiro-ministro.
Na Líbia, ocorreu um confronto sangrento, envolvendo dissidentes do
antigo regime, regiões e clãs, que contou com a intervenção direta de tropas
da OTAN, até a morte do ex-comandante do país, Muammar Qadda, e
a captura de seus lhos. No Egito, houve uma transição sem guerras, mas
com conitos, em que a queda do comandante Hosni Mubarak propiciou
um terreno de disputas entre civis, militares e religiosos, restauradores
e liberal-democratas. Esse ambiente instável resultou em um quadro de
grandes idas e vindas, em que ora o estamento militar tinha a hegemonia,
ora os religiosos avançavam, e em outros momentos chegava-se a uma
situação de equilíbrio precário. Em todas essas situações, o engajamento da
Turquia estava em favor de uma mudança para um modelo mais próximo
do seu, de então: uma estrutura secularizada, mas capaz de absorver am-
plos setores de uma sociedade religiosa islâmica. Esse engajamento, ao que
se tem observado, vem sendo uma grande oportunidade para expandir um
projeto político alternativo ao islamismo político oferecido pelo Irã xiita,
ao islã tradicional e mais reacionário defendido pela Arábia Saudita e a
regimes nacionalistas autoritários, que são justamente os casos dos regimes
derrubados com a Primavera Árabe.
Trata-se de um projeto político que se alinha com a política
externa dos EUA sob o governo de Barack Obama, a OTAN e os países
da Liga Árabe. Conforme matéria da Reuters, assinada por Douglas Ha-
milton e Tulay Karadeniz e publicada no jornal O Estado de S. Paulo de
30 de novembro de 2011, “Turquia segue Liga Árabe e impõe sanções
à Síria”, o governo turco tomou uma decisão que buscava seguir um
consenso, ou pelo menos uma decisão majoritária sobre determinados
assuntos políticos manifestados pelos países árabes, com o apoio dos
EUA. Nesse caso, a Turquia, “[...] principal parceira comercial da Síria,
suspendeu [...] todas as transações de crédito com o país vizinho e con-
gelou os bens do governo sírio, juntando-se à Liga Árabe nos esforços
para isolar o presidente Bashar Al-Assad em consequência da repressão
militar a manifestantes.” (TURQUIA..., 2011e). A medida, por si só,
não teria signicativos desdobramentos. Na Líbia, postura semelhante
136
Fábio Metzger
deixou o antigo regime isolado até que as forças rebeldes o derrubassem.
Segundo a reportagem, a Turquia prometeu que:
as sanções não afetarão o povo sírio, e descartou interromper o abas-
tecimento de água ou energia elétrica. Disse também que a Turkish
Airlines continuará operando voos para Damasco. […] Membro da
OTAN, a Turquia disse na terça-feira que é contra uma interven-
ção militar estrangeira na Síria, mas que não descarta a implantação
de uma zona tampão para conter uma fuga maciça de refugiados.
(TURQUIA..., 2011e).
O então presidente turco, Abdullah Gul conforme matéria da
Reuters publicada em 23 de novembro de 2011 no jornal O Estado de
S. Paulo (“Turquia: repressão na Síria ameaça causar turbulência na re-
gião”), dizia que o conito poderia “arrastar toda a região para turbulên-
cia e derramamento de sangue. [...] Nós empregamos enormes esforços
publicamente e a portas fechadas a m de convencer a liderança síria a
liderar uma transição democrática.
8
(TURQUIA..., 2011f). Essa cons-
ciência de Estado, por meio das declarações do presidente, revela duas
situações: a defesa de um modelo democrático para os países árabes, que
a Turquia busca adotar para si; questões de Estado que podem inclusive
colocar em risco a segurança da própria Turquia.
Dentro da Síria, existe a presença física e militar da Rússia
(enquanto herdeira do Estado soviético), que tradicionalmente apoia
importantes regimes autoritários nacionalistas do mundo árabe (como
o Egito de Nasser e a própria Síria de Hafez Assad, pai de Bashar, entre
outros). As minorias sunitas não muçulmanas que se sustentam no poder
desses regimes, representando porções consideráveis da população,
e temerosas de que em uma revolução uma maioria sunita tomasse o
poder, os alauitas (seita à qual pertence Bashar Al-Assad) – um sub-
ramo dos xiitas que, mesmo não liderando um regime religioso, recebe
apoio do Irã –, os cristãos ortodoxos, que se identicam com a Rússia
(país de maioria cristã ortodoxa), os druzos e a população curda, que
já possui um histórico de conitos anteriores com a Turquia, juntas,
Segundo essa mesma matéria, o primeiro-ministro Erdogan “acusou Assad de ‘covardia’ por apontar
armas a seu próprio povo, evocando comparações com a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini.
(TURQUIA..., 2011f).
137
Egito e Turquia no Século XXI
somam cerca de 35% do total da população síria, e servem de base de
apoio para Al-Assad. Diante do avanço de setores islâmicos e islamistas
9
dentro dessas sociedades, e no Iraque, uma nova situação passou a se
congurar: uma guerra civil que envolve a Síria de Al-Assas, milícias
rebeldes, e um grupo que atravessou a fronteira entre o Iraque e a Síria
autodenominado “Estado Islâmico”. Neste sentido, o Iraque, que já vivia
uma turbulência anterior desde a invasão anglo-americana de 2003,
tornou uma parte ainda maior do problema fronteiriço da Turquia,
com os curdo-iraquianos obtendo autonomia, algo que começou a gerar
maiores preocupações para Ancara, ainda mais no momento em que
o curdo-sírios do nordeste da Síria também aproveitaram o vácuo de
poder para estabelecer alguma autoridade.
Levando em conta que os grupos islâmicos e islamistas rece-
bem amplo apoio direto ou indireto de monarquias da Península Ará-
bica e do Golfo Pérsico. Que, além do Estado Islâmico, existem ainda
grupos éis à Al-Qaeda na Síria, como a Frente Al-Nusra. E que o grupo
secular Exército Livre da Síria perdeu força desde que se rebelou contra
Damasco, o que observamos? Uma grande polarização entre, principal-
mente o Estado Islâmico e a Síria de Al-Assad, em que grandes massas de
população vindas da Síria, e do Iraque passam a estar sujeitas a perder as
suas posses, casas, e se tornar refugiados. Do ponto de vista das relações
exteriores, há países que procuram manter certo nível de pragmatismo
ideológico: por exemplo, é certo que o Irã, mesmo sendo um regime
islâmico fundamentalista, não interfere no secularismo do Estado sírio
e, pelo contrário, mantém acordos pontuais com Damasco em determi-
nados acordos, em contraposição a Israel e outros países muçulmanos.
Ao se aproximar do conito, a Turquia faz uma aposta arrisca-
da. Ganha apoios críticos dos EUA. E se coloca em rota de colisão com
a porção mais leiga da Síria. Faz acordos pontuais com a Rússia e Israel,
que podem ser quebrados, e segue entre se aproximar e afastar do Irã.
De um lado, se torna benquista por parte dos países da Liga Árabe, que
apoiam aspectos de suas respectivas agendas. Quando muda de lado, eles
Islâmicos: setores que são religiosos e adotam uma interpretação genérica do islã como orientação na polí-
tica. Islamistas: setores islâmicos que adotam uma leitura do islã mais rigorosa dentro da política.
138
Fábio Metzger
se distanciam de Ancara. Se o governo de Bashar Al-Assad cair e houver
uma total mudança de regime, a inuência da Turquia será prontamente
notada, e a oportunidade de exercício de inuência, aproveitada. No
entanto, se permanecer o atual impasse, o governante de fato reconhe-
cido da Síria continuará sendo Bashar Al-Assad, e a Turquia correrá o
sério risco de ter um país inimigo em suas fronteiras. Enquanto recebe
refugiados do confronto interno da Síria, a Turquia já vive o mal-estar
permanente de ver esses confrontos atingirem suas fronteiras. Isso sem
citar os efeitos que essa escolha está tendo sobre as relações econômicas
entre os países. Como foi citado na matéria do jornal O Estado de S.
Paulo de 14 de dezembro de 2011, originalmente publicada no e New
York Times, “Sanções na Síria minam negócios na Turquia”, háapenas
um ano, Turquia e Síria eram aliados íntimos. Ancara tentava ampliar
sua inuência econômica e transformar-se numa potência regional. A
fronteira de 800 quilômetros entre os dois países é a maior da Turquia.
(SANÇÕES..., 2011). Economicamente, isso pode não ter tido gran-
de impacto sobre a Turquia, no entanto manter uma região fronteiriça
grande nessas condições, para quem tem ambições políticas maiores, é
um risco que não pode ser desconsiderado, haja vista a atual questão dos
refugiados sírios e dependência que a Síria tinha quando, segundo esta
mesma reportagem, 10,6% das importações do regime de Assad vinham
do vizinho ao Norte.
A novA políticA dAsportAs de pAssAgem
Fechar algumas portas de passagem e abrir outras, como tem
feito a Turquia, signica abrir mão de alguns laços políticos tradicio-
nais e aproximar-se cautelosamente de novos. Historicamente podemos
nos lembrar da Queda de Constantinopla, em 1453, quando o Império
Otomano aumentou os impostos e as taxas sobre as cidades-estados que
realizavam o seu comércio de especiarias com o Oriente. Para o bem ou
para o mal, essa porta de passagem mudou os rumos da história. E fez
com que o projeto das Grandes Navegações dos Estados nacionais eu-
ropeus ganhasse impulso. Dali em diante a Turquia passou a encabeçar
um império territorial que sobreviveu por mais quatro séculos e meio,
139
Egito e Turquia no Século XXI
tendo aos poucos, nesse meio tempo, os seus territórios tomados pelas
potências europeias ascendentes. O m do Império Otomano obrigou a
Turquia a se repensar enquanto nação. De centro de um império islâmi-
co, ela passou a ser um Estado nacional na órbita no mundo ocidental.
Seu alfabeto foi latinizado. Os seus costumes, ocidentalizados. Após o
nal da Segunda Guerra Mundial, tornou-se membro de uma aliança
de países ocidentais (a OTAN) contra um bloco socialista de países do
Leste Europeu. Chegou a se candidatar à integração na União Europeia,
adequando-se o máximo que pôde às normas e aos procedimentos dos
integrantes do bloco.
No entanto, mesmo essa grande quantidade de transformações
pode não ter sido suciente para que a Turquia deixasse de ser percebida
internacionalmente como “porta de passagem”. Para os países árabes mu-
çulmanos, considerada muito ocidentalizada. Para o Irã, uma liderança
xiita. Para países importantes da União Europeia, como a Alemanha e a
França, muito útil enquanto fornecedor de mão de obra, mas cultural-
mente distante demais para “fazer parte” da Europa. Para os EUA, um
aliado estratégico na contenção da URSS. Para a Grécia, a Armênia e
outros países balcânicos, um vizinho historicamente dominador. Para os
países de origem túrcica, um aliado culturalmente importante, mas um
tanto distante sicamente
10
.
Portanto, uma tomada de decisão em nível de Estado por
parte da Turquia pode ter grandes consequências. Existem antigas ri-
validades da Turquia com a Rússia, notadamente acentuadas durante
a Guerra Fria, quando a então URSS tinha diante de si Ancara como
um el aliado de Washington, membro ativo da OTAN e plenamente
alinhado no combate ao bloco socialista. Aproximar-se da Rússia sig-
nica inclusive lembrar esse passado recente, quando os Estados turco
e soviético se percebiam como ameaças imediatas. Como fazer essa
aproximação mantendo uma boa relação com os EUA? Essa mesma
pergunta vale quando levamos em conta que a Turquia faz algumas
aproximações com o Irã. Há alguns pontos que os aproximam. Como
10
À exceção do Azerbaijão, os demais países de maior túrcica possuem fronteiras geográcas com Rússia e
Irã, estando, dessa forma, muito mais expostos às inuências desses países.
140
Fábio Metzger
o fato de ambos sustentarem governos islâmicos. No entanto, o gover-
no islâmico turco é sunita e moderado, e o governo islâmico iraniano
é xiita e radical. As escolhas de ambos se chocam, principalmente, em
relação a questões que podem envolver outras partes, como a Síria.
Enquanto a Turquia – junto com os EUA e outros países árabes do
Oriente Médio, como Egito e Arábia Saudita – apoia os rebeldes sírios,
o Irã dá suporte ao governo de Bashar Al-Assad, protegido por uma
base militar russa no porto de Tartus, no noroeste sírio. Nesse ponto,
não há dúvidas: a Turquia está em posição contrária à do Irã e da Rús-
sia e aliada aos EUA, ao Egito e à Arábia Saudita.
O afastamento de Israel poderia levar a outra polarização. A
Turquia se aproxima dos países árabes e das lideranças palestinas, de
um lado. Mas de outro, vê diante de si a mudança de pêndulo, rumo
à Grécia, da histórica aliança EUA-Israel e uma disputa em torno da
questão da navegação do Mediterrâneo Oriental, envolvendo Gaza e
Chipre do Norte. Como a Turquia poderá administrar tensões com
Israel, aliada à antiga tensão com a Grécia (subjacente à questão da
divisão do Chipre, datada de 1974), mantendo uma boa vizinhança
política com os EUA? A tensão da Turquia em relação a Israel a aproxima
de países da Liga Árabe e atrai a simpatia destes e de suas populações. O
afastamento da Turquia em relação à União Europeia apenas intensica
os antigos problemas fronteiriços turcos com Grécia e Chipre
11
. Esse
duplo afastamento exigiu, por outro lado, um duplo engajamento: aliar-
se com a Liga Árabe, a União Europeia e os EUA na questão síria, de
resolução dicílima, e na questão iraquiana (em um espaço deixado no
vácuo da ocupação dos EUA e da Grã-Bretanha), em que fatalmente
os turcos buscam inuenciar o setor árabe sunita, em contraponto aos
xiitas com apoio iraniano. Por outro lado, há que se lembrar de que o
norte do Iraque, o nordeste da Síria, o sudeste da Turquia e o noroeste
do Irã têm uma questão comum: as populações curdas que reivindicam
um Estado independente. Até que ponto a Turquia poderá se contrapor
ao Irã, nesses dois casos, sem que ambos percam o controle do interesse
11
A participação da Turquia, vetando Israel nas cúpulas da OTAN, pode ter signicado simbólico, e em
vários sentidos tende a isolar os israelenses na União Europeia. Mas até onde essa posição tem ordem prática,
quando Tel Aviv e Atenas se aproximam, em uma até então improvável aproximação?
141
Egito e Turquia no Século XXI
comum, que é manter a questão curda afastada da reivindicação de um
Curdistão livre? Essas situações, ao todo, deixaram a Turquia em uma
posição delicada. A sua política externa adotou uma posição de maior
engajamento. Mas, para onde esse engajamento poderá levar os turcos?
Afastar-se da União Europeia e de Israel, de um lado. Aproximar-se da
Rússia e do Irã, de outro. Aproximar-se dos países da Liga Árabe, em
contraponto ao Irã. Engajar-se na questão síria, em contraponto ao Irã
e à Rússia. Do ponto de vista tático, a sobrevivência política da Turquia
parece clara: engajamento maior, inuência maior. Mas e do ponto de
vista estratégico? Qual será o cenário em que a Turquia vai se inserir?
Pois é necessária uma denição em algum momento. Existe o risco
de a Turquia parecer “ocidental” demais para os iranianos, “islâmica
demais para os países ocidentais, muito “pró-EUA” para a Rússia ou não
tão claramente “anti-iraniana” para os EUA. A Turquia, sendo “porta
de entrada” entre Ocidente e Oriente, sofre o risco de ser vista com
desconança. O engajamento da política externa pode ser positivo e
bem-vindo. O não engajamento poderia levar, por exemplo, a Turquia
a ser rejeitada pela União Europeia, sem ter nenhuma alternativa no
Oriente Médio ou na Eurásia. Ser um aliado dos EUA local, sem
quaisquer intervenções maiores, pode fazer com que os vizinhos encarem
a Turquia como um mero satélite, sem vontade ou interesses próprios.
Sendo esses vizinhos países tradicionalmente objeto de intervenção dos
EUA, tal posição tende a levar o país a um isolamento regional.
Por isso mesmo, no embate do avanço do Estado Islâmico, ora
a Turquia se reaproximava, ora se afastava de Israel, em uma relação
de grande tensão. Em determinado momento, também teve situações
de fortes tensões com a Rússia (anos mais tarde, passou ter uma maior
aproximação), quando esta decidiu se engajar na guerra civil síria. Assim
como situações de tensões de fronteira com a Grécia. O engajamento em
excesso também pode oferecer os seus perigos. O país ca em um dilema
fundamental: até onde exercer a sua política externa sem que isso tenha
efeitos importantes na política interna, e vice-versa? Pois, ao analisar
objetivamente os fatos, a política externa turca oferece uma porta de
passagem. No entanto, a política interna do país oferece outra porta de
passagem. E o foco aqui é justamente compreender essa segunda porta
142
Fábio Metzger
de passagem – ou, por que não, porta de entrada – que a Turquia possui
dentro de si. Até que ponto essa porta permite o diálogo entre o islã e
o ocidente? E até que ponto essa porta se fecha enquanto Estado para
si mesma? São questões que atingem diretamente a forma fundamental
com a qual a Turquia convive internamente. E que tem efeitos diretos
nas formas e práticas de governo do país.
4.4 A mudAnçA do eixo dA políticA internA de AncArA: A
eternA questão estAdo-governo
Estamos colocando um ponto fundamental: observar como as
formas de governo se compõem na Turquia. Se existe, de fato, uma apro-
ximação maior com uma forma democrática liberal de governo, ou pelo
menos dentro de uma forma de liberalismo político, é preciso observar
até onde essa aproximação faz com que existam valores democráticos
(e liberais) e até onde ainda estamos falando de um conceito transitivo,
de um governo misto, e quais são as ameaças para o autoritarismo. Po-
demos, por exemplo, aproximar alguns fatos políticos notórios recentes
da Turquia e a forma como eles estão sendo levados a cabo e debatidos
dentro do que seria um modelo de democracia liberal aplicado em países
ocidentais. Nesse caso, temos a narrativa da revista e Economist, de 26
de novembro de 2011, com o título “Turkey and Human Rights: Home
oughts Form Above”. Nesta etapa, tocamos em questões sensíveis. O
que temos na Turquia? Falando de um militante de esquerda preso em
Ancara, e logo depois, um deputado do partido CHP:
Mr Ersoy is now in an Ankara jail, along with 15 fellow students,
facing charges of belonging to an obscure left-wing armed faction
that no longer exists. e evidence against the group includes seized
left-wing tracts and anti-war posters, but not a single weapon. “ey
did nd a broken umbrella, they took that too,” says Mr Ersoys
father, Fatih, with a bitter laugh. [...] Huseyin Aygun, a deputy
from the opposition Republican People’s Party (CHP), claims
that over 500 students are now in prison for alleged membership
of terrorist groups. Many students were demonstrating against the
ruling Justice and Development (AK) party and for free education
and health care, though some backed neuralgic causes like the
right to conscientious objection and Kurdish-language education.
143
Egito e Turquia no Século XXI
Prosecutors routinely send universities indictments against students
even before they are read in court. e students are expelled before
they are actually convicted. “e courts are stacked with pro-AK
judges and the entire system is mobilised against any form of
dissent,” says Mr Aygun. (TURKEY..., 2011, não paginado).
O artigo emite o seguinte posicionamento:
e West does not seem to notice the steady deterioration in human
rights in Turkey, instead extolling it as a model for the Arab spring.
“Europe is too mired in its own problems and America needs Tur-
key for regional security,” shrugs a European ambassador in Ankara.
It will fall to Turks themselves to battle for their rights so long as
they can keep out of jail. (TURKEY, 2011, não paginado).
Acrescentando, vamos nos remeter a outra matéria do e
Economist, de 17 de março de 2012, “Enemies of the state”.
At least 100 journalists are behind bars in Turkey, more than in
any other country. Most are held on terrorism charges. But under
Turkeys nebulous anti-terror laws, even covering a press conference
by the pro-Kurdish Peace and Democracy party could get you
locked up. e pro-Kurdish DIHA news agency says 27 of its
reporters are in jail. Journalists who criticise Recep Tayyip Erdogan,
the prime minister, face the sack at the hands of timid media bosses.
(ENEMIES..., 2012, não paginado).
Tornamos a nos defrontar com uma questão que se coaduna
com a questão dos direitos humanos. Até que ponto a liberdade de ex-
pressão na Turquia estava garantida? Em 2013, era possível notar uma
grande diferença entre a Turquia e o que seria o modelo de um regime
democrático-liberal. Era possível observar o funcionamento de uma so-
ciedade civil turca, com oposição ativa e organizada institucionalmente.
Mas com restrições que nem sempre deixavam as pessoas à vontade para,
por exemplo, falar de política. No caso, já tinham acontecido os protes-
tos na Praça Taksim e a brutal repressão contra os manifestantes. Ha-
via uma sociedade que desenvolveu valores liberais sendo frontalmente
ameaçada. Prender jornalistas por criticarem o governo e estudantes por
144
Fábio Metzger
fazerem parte de uma suposta organização terrorista não comprovada
destoa bastante de um regime democrático-liberal.
Podemos nos lembrar de que existe um núcleo duro na com-
posição do Estado e do governo turcos: um Estado de tradição secular,
sob o comando formal de um presidente membro do partido AK, que
é islâmico moderado; e um governo cujo gabinete é liderado por um
primeiro-ministro membro do AK, por meio de uma coalizão com
partidos não islâmicos à direita. Nesse núcleo duro, é visível um acor-
do entre o estamento militar turco, que prossegue hegemônico, apesar
de não controlar como antes a sociedade, e uma elite que combina
turcos seculares e religiosos conservadores, que, por outro lado, possui
uma visão bastante pragmática em relação ao que signicam os ne-
gócios dentro da economia e do Estado. Desde que não ultrapassem
os interesses dos projetos de poder político do AK, e seu comandante
maior, Erdogan, eles são força fundamental na construção das relações
de poderes internas do país.
Era esse núcleo duro que formava o governo misto da Tur-
quia. Um governo misto que privilegia maiorias compostas: conserva-
dores muçulmanos moderados e estamento militar secular, conjugan-
do a maioria muçulmana sunita (por volta de 75%), a minoria xiita
alevi (por volta de 25%) e a grande maioria da população de etnia
turca (próximo a 80%), em detrimento da minoria curda (cerca de
20%) e dos não muçulmanos que ainda residem no país. Notamos a
construção de uma hegemonia que inclui amplas maiorias. Mas não
necessariamente a construção de um regime com valores democráti-
cos. Essa hegemonia, por exemplo, dava autonomia para que os repre-
sentantes do AK pratiquem ingerências contra aqueles que os criticam.
Assim como ainda mantém fortes as razões de Estado que o estamento
militar utiliza em seu favor, a m de combater o movimento nacional
curdo. Em pontos comuns, ambos podem se juntar e combater de for-
ma mais rude grupos ainda mais isolados, como militantes de extrema
esquerda ou fundamentalistas religiosos.
Isso não signicava que a Turquia fosse ainda uma autocracia.
Até porque, se fosse, a voz de um opositor não seria escutada e não
145
Egito e Turquia no Século XXI
existiriam veículos de oposição bem organizados – atuantes desde que
Erdogan assumiu o poder. Os valores democráticos circulavam e ope-
ravam na Turquia... Mas, até que ponto eles eram funcionais? Em que
medida eles não se tornavam uma zona de atritos entre sociedade civil
e sociedade política – e, mais uma vez, nos lembramos do conceito de
Estado? E, nesse sentido, qual é o papel do governo quando sociedade
civil e sociedade política estão em atrito?
É essa questão que precisamos ressaltar, quando falamos do
caso da Turquia. Não podemos nos esquecer de falar a respeito de seu
pai fundador, Mustafá Kemal Ataturk. O culto à sua imagem confun-
de-se com a criação da república e das forças armadas e com seu papel
enquanto aquele que resgatou a Turquia ao nal da Primeira Guerra
Mundial. Na matéria “A secularists lament” da revista e Economist de
23 de fevereiro de 2012, esse papel é ressaltado. No entanto, com o cus-
to da tensão com os setores religiosos. E, nesse caso, Erdogan, na época,
liderando um governo mais moderado, passou a interferir ao seu modo:
A personality cult that carpets the country with busts and portraits of
the great man was nurtured by Turkey’s generals, who have used his
name to topple four governments, hang a prime minister and attack
enemies of the republic”. e generals also imposed a law making
it a criminal oence to criticise Ataturk publicly. (ere were 48
convictions last year alone.) [...] Many secular Turks fret that the
Ataturk myth is unravelling under the mildly Islamist Justice and
Development (AK) party, which has been in power since 2002. A
series of reforms have reduced the generals’ powers, as has a wave of
arrests in the ongoing Ergenekon trial of alleged coup-plotters: even
a former chief of the general sta, Ilker Basbug, is being held in jail.
Private schools are no longer required to feature “Ataturk corners”.
“National security” lessons drummed into children by ocers and
an Ataturk army unit stationed in parliament have been scrapped.
(SECULARIST’S..., 2012, não paginado).
Ou seja: historicamente, o kemalismo permanece forte. No
entanto, houve modicações importantes que o suavizaram perante a
população. Isso signicou um Estado secular menos rígido e focado em
um herói nacional. E, no entanto, gerou mais preocupações com relação
a possibilidades de ascensão de correntes islâmicas. Se Erdogan tinha
146
Fábio Metzger
atritos com o exército de um lado, por conta de acomodações entre Es-
tado e governo, e com a sociedade política e a sociedade civil, de outro,
ele necessitava lidar com grupos, que poderiam se tornar um fator de
desequilíbrio no jogo político do país. Anal, como sustentar um con-
junto de sociedade civil e política se existe uma sociedade religiosa que
tende a avançar e disseminar os seus valores peculiares, inibindo aspectos
que podem ser importantes para o funcionamento de um regime plural?
Nesse momento, um novo elemento da sociedade civil deve
ser levado em conta: o movimento liderado pelo imã Fethullah Gu-
len, o Hizmet
12
. Este encabeça uma imensa rede de negócios, escolas
e meios de comunicação, promovendo uma versão mais moderada do
islã para a população local. Na matéria “Erdogan at bay”, de 23 de
fevereiro de 2012, esse tema é explorado, mostrando como o primei-
ro-ministro turco vem reagindo a tal ascensão (ERDOGAN..., 2012).
Trata-se de uma organização com um leve viés religioso que avançou
dentro de estruturas da sociedade civil e da sociedade política. Nas
circunstâncias daquela matéria, Erdogan vivia ainda um momento de
boa imagem, enquanto defensor da democracia, e tinha a possibilida-
de de acusar os seus adversários religiosos de serem fundamentalistas
(quando, na verdade, se apresentam como defensores de uma forma
democrática e liberal do islã).
É possível vericar, a partir deste momento, um processo de
centralização de poder tendendo ao autoritarismo de Erdogan, quan-
do este interfere em setores como a imprensa, os meios acadêmicos, as
forças armadas e as regiões curdas. Há uma clara disputa, tendendo a
acomodações, entre os campos secular e religioso, o que faz com que o
país não se transforme em uma República Islâmica, tal qual o Irã. Mas
também não se concretize enquanto Estado totalmente laico. Por outro
lado, a disputa entre um secularismo radical proveniente do exército e
12
Aqui cabe fazer um importante esclarecimento do autor. Antes da defesa da tese que foi a base deste
livro, havia a imagem de o movimento Hizmet ser comparado com correntes islamistas. Fazemos a devida
correção: o Hizmet (“serviço”, em turco), é um movimento islâmico, mas de caráter pacista, democrático e
pluralista, buscando uma abordagem reformada e positiva do islã turco. O AK e o Hizmet eram aliados, até
o momento em que Erdogan começou a concentrar excessivamente o poder em torno de si. Mas até do que
alguns de seus companheiros de partido. Foi o momento em que o partido e o Himzet rompem, e Erdogan
declara-se inimigo público de Fettulah Güllen, o mentor da organização.
147
Egito e Turquia no Século XXI
outro liberal, proveniente da sociedade civil; além de um islã de tole-
rância e diálogo, e outro, mais próximo de uma leitura fundamentalista
religioso, ambas remanescentes da tradição da sociedade turca otomana,
mas agora em bases republicanas. Além disso, também há uma questão
importante para a Turquia, que é a da reivindicação da identidade na-
cional curda. Tudo isso sem contar o debate entre esquerda e direita, que
pode, nesses casos, se tornar até secundário, pois, em situações em que
deveriam entrar em pauta matérias de pluralidade, se sobrepõem ques-
tões de Estado – especialmente, a identidade nacional e o caráter leigo/
secular ou religioso do Estado.
Como é possível falarmos de uma democracia liberal se as
questões fundacionais do Estado ainda estão sendo debatidas; se há mais
do que uma nacionalidade, mas somente uma é reconhecida na nação
turca; se a nação turca se funda em uma república, em que não cabe o
espaço religioso, a não ser das formas mais superciais; se o Estado, a
priori, é secular e leigo, mas como uma conssão ocial (o islã)? Como
lidar com as nacionalidades não reconhecidas, que representam algo em
torno de 20% da população? O que fazer com os não praticantes do islã
e os fundamentalistas? E como manter um espaço público, de forma
plural e democrática, se no primeiro momento o que se impõe é uma
república cujos pilares são as forças armadas, que depuseram uma mo-
narquia e aboliram ocialmente os costumes religiosos?
Estamos falando da acomodação de direitos coletivos de uma
nação, processo anterior à construção de direitos individuais civis e so-
ciais de cidadãos. De maneira que o desao dessa acomodação de direi-
tos coletivos é justamente formar um governo misto. E, concretizado e
acomodado esse governo misto, podemos considerar cenários mais cla-
ros: um recuo ao militarismo ou ao revivalismo religioso, ou, por que
não, um avanço em direção à democracia.
A segunda possibilidade poderia ter vingado. No passado re-
cente, quando ocorreu um sangrento golpe de Estado, em 1980, está
sendo revisto. Na matéria do jornal O Estado de S. Paulo de 3 de janeiro
de 2011, “Justiça poderá processar ex-ditador turco de 94 anos”, segue
o seguinte texto:
148
Fábio Metzger
O ex-ditador militar da Turquia, Kenan Evren, de 94 anos, poderá
ser condenado à prisão perpétua pelo golpe de Estado que comandou
em 1980, disse nesta terça-feira o promotor Huseyin Gorusen.
Além de Evren, o ex-comandante da Força Aérea da Turquia,
Tahsin Sahinkaya, também poderá ser condenado à mesma pena.
[...] A ação legal tomada contra [...] os dois líderes sobreviventes
do golpe militar turco [...] que deixou centenas de mortos [...]
ocorre no momento em que o governo do primeiro-ministro Recep
Tayyip Erdogan, do partido AK, de raízes islâmicas, tenta reduzir a
inuência dos militares no país. As autoridades turcas também estão
abrindo ações judiciais e uma série de julgamentos contra centenas
de pessoas acusadas de envolvimento em supostas tentativas mais
recentes de golpes de Estado. Entre essas centenas de pessoas estão
muitos militares da ativa e da reserva. (JUSTIÇA..., 2011, não
paginado).
Em 2011, o governo turco conseguiu demover uma tentativa
mal sucedida de golpe de Estado, substituindo os antigos comandantes
das forças armadas. Ao mesmo tempo, reconheceu sua responsabilidade
e pediu desculpas aos curdos pela morte de quase de 14 mil pessoas em
uma ação contra essa população nos anos 1930, segundo matéria do
jornal O Estado de S. Paulo de 24 de novembro de 2011, “Turquia pede
desculpas pela morte de curdos” (TURQUIA..., 2011b). Em setembro
de 2010, a população turca aprovou um referendo revisando a Consti-
tuição de 1982 – produto justamente desse golpe de Estado de 1980,
que limitou os direitos da população –, procurando adequar o país às
condições exigidas para a entrada na União Europeia, com todas as limi-
tações que o país possui.
Com essa acomodação bem denida, a Turquia teria mui-
to mais condições de inuir na política externa, pois as suas portas de
passagem internas terão sido ltradas. Aquele setor mais ligado ao islã
político, que hoje avança nas sociedades política e civil, tenderia a se
conformar em seu espaço especíco, mantendo característico um Esta-
do secular e leigo. O setor secular ligado às forças armadas tenderia a se
manter submetido ao poder civil. E os setores populares e democráticos
poderiam participar da construção de governos com amplas maiorias,
sem que isso signicasse a intervenção direta de assuntos de Estado no
149
Egito e Turquia no Século XXI
dia a dia do país. O que temos observado, no entanto, é que o avanço
das forças religiosas mais radicais e civis autoritárias tem adentrado bem
mais na estrutura social turca, especialmente, a partir de julho de 2016.
4.5 A permAnênciA prolongAdA do AK e de erdogAn no poder: do
enFrAquecimento dA democrAciA Ao golpe de 2016
A partir de 2014, a política turca sofre um processo de diversos
retrocessos. Em janeiro, o governo turco começou a realizar mais um
avanço sobre forças opositoras. Desta vez, reprimindo policiais, após um
escândalo, surgido em dezembro de 2013, que envolveu empresários,
políticos e parentes de Erdogan (ENTENDA..., 2014). A reação foi a
exoneração de 350 policiais. Sobraram acusações contra a oposição e os
antigos aliados do Hizmet. Este caso abalou, em um primeiro momento
a imagem de Erdogan. Mas não o suciente diante do eleitorado tur-
co. Nas eleições presidenciais em 10 de agosto (ERDOGAN..., 2014),
Erdogan foi eleito no primeiro turno, com 54,7% dos votos válidos. O
que não queria dizer muito em termos práticos, no sentido de que o
cargo de presidente tem papéis cerimoniais. No entanto, o voto direto
conferiu legitimidade a ele, perante os demais participantes. Ekmeleddin
Ihsanoglu, do partido MP, cou em segundo lugar, com 36,7% dos votos.
Selahattin Demirtas, do HDP, de esquerda, representante de curdos e outras
minorias, cou em terceiro, com 8,5% dos votos.
Erdogan se aproveitou para repensar os seus arranjos políticos.
De um lado, resistia a atacar o Estado Islâmico, enquanto força atuante
na Síria, país fronteiriço em guerra civil (ATENTADOS..., 2014). De
outro, o Parlamento turco, no início de outubro, em seu apoio, aprova-
va a entrada da Turquia no Território em que o Estado Islâmico atuava
(TURQUIA..., 2014). Opositores acusavam o governo turco de colabo-
rar secretamente com o grupo autoproclamado “Estado”. Quando ocor-
reu o ataque, não foi contra o EI, e sim contra grupos curdos (TURCI,
2014). Tratava-se de uma questão de Estado crucial das forças armadas,
comum, tanto para o governo Erdogan (onde o primeiro ministro já era
Ahmet Davetoglu), quanto para os militares. Aqui observamos o AK
150
Fábio Metzger
enquanto grupo político com ação coletiva bem organizada e capilarida-
de forte entre Estado e setores da sociedade, na qual a gura carismática
de Erdogan consegue capitalizar apoios para fazer acordos, de um lado,
com militares, e de outro, com religiosos, mantendo o status da repúbli-
ca turca, sem que ela se torne, de fato, islâmica, como nos moldes irania-
nos. Ela mais se aproxima do secularismo árabe, ocialmente relaxada
no acomodamento entre religião e Estado. No entanto, na prática, ten-
do um avanço cada vez maior de grupos religiosos que inuem nas de-
cisões centrais do poder. Não por uma questão ideológica. Mas sim por
um pragmatismo político de rearranjos institucionais, onde os grupos
religiosos mais radicais podem inuir mais em determinados momen-
tos, e grupos militares em outros. De maneira que existem momentos
de consenso entre eles, articulados por um partido organicamente bem
distribuído na sociedade, com liderança de forte carisma e apelo.
Carisma esse, que poderia ser um elemento catalisador de mo-
vimentos populares. Mas que pode também se tornar uma forma de
limitar manifestações de grupos que pensam de maneira diversa. Depois
de deixar de ser primeiro-ministro, Erdogan foi eleito presidente, e apro-
veitando a sua popularidade, preocupou-se mais em esvaziar o cargo de
Chefe de Governo, que ele ocupava antes. A partir de 2014, enquanto
Chefe de Estado, ele passou a se manifestar em questões políticas, o
que não era tradição anteriormente em Ancara. O novo palácio gover-
namental, que antes seria destinado ao Primeiro-Ministro, passou a ser
presidencial, por interferência pessoal dele.
Por outro lado, as urnas foram dando novas respostas. Nas
eleições parlamentares, o AK, mais uma vez ganhou. No entanto, com
um avanço muito pequeno, de apenas um assento. Por outro lado, foi
possível notar o avanço do HDP, um forte representante da minoria
curda. O AK cou com 327 cadeiras, de um total de 550 e 49,83% dos
votos. Em segundo lugar cou o CHP, kemalista, com 135 cadeiras,
e 25,98% dos votos. O MHP, liberal, (ou MP) obteve 53 cadeiras, e
13,01% dos votos. O HDP conseguiu 35 cadeiras e 5,67% dos votos
(TURKISH..., 2015). Toda a continuidade do processo político turco
teve no ano de 2015, o reexo das urnas, que conferiu uma nova
151
Egito e Turquia no Século XXI
composição. Na questão externa, a Turquia avançou ainda mais em
terreno sírio para atacar, não apenas os grupos curdos locais, utilizando
a prerrogativa do parlamento visando, desta também atacar o Estado
Islâmico, (ATENTADOS..., 2015).
A força dos votos de islâmicos e de curdos internamente serviu
como meio de Erdogan para cacifar poderes perante as Forças Armadas.
A sua atuação, enquanto governo, e como Estado começaram a ter no-
vos desdobramentos. Nessas circunstâncias, Erdogan e o AK se assumem
como os líderes respectivamente individual e coletivo que catalisam uma
posição de soberania, para concentrar poderes, a m de negociar poderes
de Estado. Com isso, a correlação de forças entre o poder do Estado em
relação ao governo modicava-se bastante. A questão das Guerras Ci-
vis síria e iraquiana, o Estado Islâmico, a questão dos refugiados, entre
outros fatores, foram aspectos bem capitalizados pela dupla Erdogan/
AK, enquanto negociadores soberanos autorizados para falar, ainda que
informalmente, em nome da totalidade da nação turca. Isso explica, em
grande parte, a ambivalência das ações da Turquia nessas questões. Ela
se tornou um ponto de grande recepção de refugiados, ao mesmo tempo
em que foi gradativamente assumindo o papel de uma interventora en-
tre dois “mundos” que estariam cada vez mais distintos politicamente: a
União Europeia, em sua crise pactual, e o Oriente Médio, mergulhado
nas suas guerras e conitos.
Internamente, isso serviu também para o governo do AK acu-
mular ainda mais forças. Em outubro, aconteceu atentado dentro de
uma manifestação pacíca que deixou pelo menos 80 mortos e mais
de 200 pessoas feridas. Estavam entre os participantes da manifestação
membros do partido HDP. Naquele momento especíco, o governo
do AK se aproveitava de uma convocação para novas eleições gerais
entre novembro e dezembro. No front externo, já havia sido quebrado
o cessar fogo entre o governo turco e a organização PKK (Partido dos
Trabalhadores do Curdistão), considerada pelo país como “terrorista”.
A questão eleitoral ganhava, mais uma vez, peso, e o desejo de obter
três quintos do Congresso era uma meta do AK, que poderia dar a este,
poderes para modicar a Constituição. No entanto, o que observou
152
Fábio Metzger
foi exatamente o resultado contrário. Em novembro, as novas eleições
tiveram uma composição ligeiramente diversa. O AK manteve a maio-
ria, mas dessa vez, com apenas 258 cadeiras, e 40,87% dos votos. O
CHP cou com 132 cadeiras, e 24,95% dos votos. O MP (ou MHP)
conseguiu 80 cadeiras e 16,29% dos votos. A surpresa foi o cresci-
mento do HDP, com 80 cadeiras e 13,12% dos votos (TURKISH...,
2015). O que obrigou o AK a ter que, mais uma vez ter que fazer
composições políticas internas. Enquanto isso, prosseguindo a realizar
as suas barganhas entre os atores externos, oscilando entre os países
ocidentais, a Rússia e os do Oriente Médio.
No ano de 2016, com o engajamento cada vez maior dos russos
na guerra civil síria, para deter o Estado Islâmico, a crise dos refugiados
aumentando, os países da União Europeia, especialmente a França,
bastante incomodados com os atentados provocados por simpatizantes,
a Turquia passou a ganhar um papel cada vez mais relevante. A despeito
das reações eleitorais que se manifestaram em novembro de 2015, as
questões de Estado começaram a ter mais força em relação aos aspectos
internos da sociedade. E com isso, questões de governo passaram a ter
muito mais relevância diante das razões do Estado turco. Onde a mino-
ria curda, e a preocupação com o avanço do Estado Islâmico se torna-
ram questões-chave. Ao mesmo tempo, a aproximação com a Rússia se
tornou um novo elemento. Seria importante manter essa nova inuên-
cia, sem perder as possibilidades de negociações com a União Europeia,
ainda que com possibilidades diminuídas de adesão: a questão passou
a ser a da contenção dos refugiados. Da mesma forma, era necessário
manter uma relação equilibrada com os EUA, ainda que o governo de
Washington pudesse ver com preocupação o avanço de setores políticos
islâmicos dentro da sociedade turca. Nesses termos, Erdogan aprovei-
tou a oportunidade para, em julho de 2016, reagindo a uma intentona
realizada dentro do Exército turco, realizar um grande contra-ataque, e
iniciar um processo de restrição das instituições da sociedade civil tur-
ca. Os efeitos deste acontecimento serviram de pretexto para Erdogan
assumir-se como liderança de fato, denitivamente. Os seus sonhos de
conferir poderes quase absolutos para a presidência poderiam ganhar
corpo a partir desse momento. A reação de seu governo, alinhado às for-
153
Egito e Turquia no Século XXI
ças hegemônicas do Exército foi esmagadora. Segundo o governo turco,
foram 161 mortos, 1440 feridos, entre civis e forças leais ao governo,
104 militares golpistas mortos e 2800 soldados presos (VEJA..., 2016).
O que se seguiu, no entanto foi uma escalada autoritária, em
que a Turquia passou a tomar medidas duríssimas. Por exemplo, fechou
cerca de 1000 escolas, uma semana depois do acontecimento (ZELLER;
WILLIAMS, 2016). Em outubro, o governo da Turquia prendeu o edi-
tor chefe do principal jornal do país o “Cumhuryiet”, além de terem
fechado 15 veículos de imprensa (BERCITO, 2016). Além de ter emiti-
do mandados de prisão para 189 juízes e promotores devido à tentativa
de golpe no país. A essa altura, 32 mil pessoas já tinham sido presas
e mais de 100 mil sido demitidas, desde julho (TURQUIA..., 2016).
Em novembro, 370 grupos não governamentais já estavam com as suas
atividades suspensas (TOKSABAY; SEZER, 2016). Onze deputados do
HDP foram presos e redes sociais como Facebook, Twitter, Whatsapp e
Youtube foram bloqueadas pelo governo (TURKEY..., 2016). Outras
fontes armam: demissões de 15 mil funcionários, fechamento de 550
associações, nove veículos de comunicações, 19 instituições privadas de
saúde (GOVERNO..., 2016). A intervenção política ganhou ares que
lembram bastante alguns momentos do regime militar brasileiro. Por
exemplo: depois de prender os governantes da cidade de maioria curda
de Dyiarbarkir, foi decidido nomear um interventor do AK (GOV´T
APPOINT..., 2016).
Em 2017, no referendo constitucional, no qual existiram di-
versas controvérsias, incluindo acusações de tratamento “desigual” em
favor de um dos lados, em detrimento ao outro, segundo entidades ob-
servadoras, e um resultado nal apertado de 51,41% dos votos válidos
a favor do “Sim”, contra 48,59% pelo “Não” (REFERENDO..., 2017),
aprovando, entre outras medidas, a extinção do cargo de Primeiro-Mi-
nistro. Tal concentração hoje está cobrando um processo muito alto no
que diz respeito à forma como o atual governo convive com a oposição,
tirando dela, cada vez mais espaços de manifestações.
Acompanhando todos estes dados, podemos vericar o cres-
cimento de uma autocracia que controla aspectos daquilo que ela não
154
Fábio Metzger
deseja dentro de seu sistema interno. Populações que se rebelem aos
interesses de Estado, grupos de imprensa, magistrados, meios de co-
municação analógicos e digitais, escolas, hospitais e outros órgãos que
possam ter ligações com grupos inimigos do regime. Aqui, ca claro
que o Estado turco se faz prevalecer sobre a sociedade civil, tornando o
governo cada vez mais uma continuação de seus interesses. Setores da
sociedade turca que se manifestaram por via das urnas, ainda que, de
maneira minoritária, mas representativa, estão sendo sufocados e per-
dendo um espaço que puderam conquistar pelas vias que são reconhe-
cidas em processos democráticos liberais. Nesse sentido, a associação
de Estado, governo, partido e liderança carismática podem se tornar
um segmento perigoso naquilo que se denomina apropriação da von-
tade de maiorias, para atingir os direitos fundamentais das minorias.
É o rápido caminho que a transição de um governo misto para uma
democracia pode ser feita para o seu sentido contrário: ou seja, rumo
à autocracia. Onde, mesmo que a sociedade civil se manifeste, existe
uma hegemonia em que a ideia de democracia possa ser entendida
mais como instrumento do que como valor. E é onde os perigos da
falta de prática de uma ética pluralista na política podem prevalecer.
Não que a presença de um político carismático, um partido forte, um
Estado sólido e um governo majoritário sejam impeditivos para a de-
mocracia. Mas o seu mau uso pode resultar exatamente no resultado
oposto, se as ideias de tolerância ao próximo não forem compreendi-
das como prática cotidiana dentro do poder.
5 O E M
157
O E M
Mapa 3 - Egito
Fonte: Central Intelligence Agency (2011a).
158
Fábio Metzger
Área:
total: 1,001,450 km
2
terra: 995,450 km
2
água: 6,000 km
2
População: 85.294.213 (estimativa de 2013).
Economia (estimativas de 2012):
Produto interno bruto (poder de paridade de compra):
537,8 bilhões de dólares.
Produto interno bruto (números ociais): 255 bilhões de
dólares.
PIB per capita (poder de paridade de compra): 6.600
dólares.
Grupos étnicos: egípcios (99,6%) e outros (0,4%) (censo de
2006).
Grupos religiosos: muçulmanos (90%) – em sua maioria,
sunitas –, cristãos coptas (9%) e outros cristãos (1%).
Fonte: Central Intelligence Agency (2011a).
O Egito é o epicentro da maior parte das formações ideológicas
do mundo árabe islâmico. Sua posição geopolítica entre África e Ásia e a
proximidade com a Europa Oriental tornam-no estratégico nos mundos
árabe e islâmico. Tudo isso data de grandes transformações da virada do
século XVIII para o XIX, que levaram o Egito a ocupar uma posição
central, tanto política quanto econômica. Em 1882, o Egito foi ocupado
pela Grã-Bretanha – que colonizou ocialmente o país durante 60 anos
– e obteve sua independência formal em 1922. Na prática, no entanto,
tal independência era uma subdependência de tipo neocolonial. De fato,
era uma colonização, com a presença de tropas britânicas controlando o
Canal de Suez de 1875 até 1956. Nesse último ano, o presidente egípcio
159
Egito e Turquia no Século XXI
Gamal Abdel Nasser nacionalizou o Canal de Suez, o que gerou uma
crise solucionada apenas com a saída das tropas britânicas, pressionadas
pelos EUA e pela URSS. Em meados do século XX, o nacionalismo
liberal, o pan-arabismo e o islã político cresceram nas grandes cidades
egípcias e posteriormente no restante do Oriente Médio.
Essa característica central é, na realidade, o reexo de um his-
tórico mais profundo, em que a sociedade política egípcia atua de acordo
com as circunstâncias nacionais e regionais em que está inserida. Em
muitos momentos, o Egito foi um centro civilizacional. Em outros, tor-
nou-se uma periferia ou então uma fronteira entre civilizações. Trata-se
de uma situação bastante propícia para que um país construa formas
mistas de governo. Mas de onde vem essa vocação, no caso do Egito?
Não podemos nos esquecer de que o Egito está em uma região que é um
importante ponto de encontro entre dois continentes (Ásia e África),
está na rota de dois mares (Mediterrâneo e Vermelho) e abriga a nas-
cente de um dos maiores rios do mundo (o Nilo). Ponto de encontro
que, aliás, desde o século XIX está marcado por uma grande intervenção
humana, que é o Canal de Suez, cuja posse foi bastante disputada pelas
grandes potências até o ano de 1956, quando o país nalmente pôde
tomar a soberania desse espaço para si.
Esse conjunto geoestratégico Mediterrâneo-Nilo-Suez garan-
te uma importante posição dentro da política internacional. O Medi-
terrâneo, para o antigo comércio marítimo; o Nilo, para a tradicional
agricultura dos povos locais; e o Canal de Suez, para o moderno comér-
cio intercontinental. Foi no delta do rio Nilo, ponto de encontro desse
conjunto, que convergiu um dinâmico centro de desenvolvimento eco-
nômico e político que nos permite compreender de forma mais ampla
o modo como o Egito construiu as suas formas de Estado e sociedade.
5.1 A AcumulAção de civilizAções e A FormAção híbridA do
estAdo
O Egito possui dentro de si camadas de civilizações que vão
se acumulando e moldando o seu Estado e a sua sociedade. Primeiro,
160
Fábio Metzger
temos de nos lembrar da herança cultural e política do Egito dos anti-
gos faraós – portanto, pré-islâmico. Não se pode esquecer que, quando
o islã surgiu no século VII, o Egito já era uma sociedade secular com
características próprias. As suas formações políticas originais, aliás, da-
tam de um período anterior à Era Comum e se constituíam em regimes
baseados em uma liderança pessoal divinizada (o faraó), que adotava
um modo de organização social centralizada em torno dela. A partir
dessa forma de liderança, o Egito desenvolveu uma civilização própria,
controlando o Vale do Rio Nilo e parte das margens do Mediterrâneo
Oriental Africano. Tratava-se de uma região de ponto de encontro de
diversas populações com rituais religiosos variados. O Egito teve uma
grande população de origem hebreia, para não falar de povos africanos
de origem sudanesa, como os núbios. O Egito se constitui em Estado
unicado já há mais de três milênios.
Com a ascensão do Império Romano, a civilização egípcia
foi absorvida, tornando-se província imperial de Roma a partir do ano
20. Os egípcios passaram pelo processo de helenização comum aos
povos que faziam parte de Roma. Desde o século I, quando o Impé-
rio Romano se subdividiu em Ocidente e Oriente, o cristianismo se
expandia, e o Império Romano do Oriente, iniciado em 395, adotou
o cristianismo como religião ocial (com o imperador Constantino).
Nessas circunstâncias, os egípcios também criaram a sua própria Igre-
ja, a Copta, em 451.
Com o avanço do islã, a partir do século VII, os egípcios rece-
beram gradativamente novas e importantes fontes culturais. A chegada
dos árabes e da religião muçulmana em 639 foi mais uma contribui-
ção para a formação social. Dessa época até 1805, o Egito esteve sob
o comando direto do Império Otomano. Quando Napoleão invadiu o
território egípcio, em 1798, a região passou pela primeira vez por modi-
cações fundamentais. Em síntese: entre 1805 e 1952, o Egito foi uma
monarquia semi-independente; de 1805 a 1882, permaneceu sob con-
trole indireto de Istambul; de 1882 a 1922, foi um mandato britânico.
Finalmente, de 1922 a 1952, permaneceu formalmente independente,
mas ocupado, na prática, por tropas do Reino Unido. Do ponto de vista
161
Egito e Turquia no Século XXI
civilizacional, o Egito foi, em diversos momentos, centro e órbita de
culturas e impérios, até se tornar, nalmente, um país independente e
reivindicar para si uma nova liderança política: a centralidade, enquanto
república secular, no mundo árabe, de 1956 até os dias atuais.
Nesse sentido, podemos observar que o Egito já constituiu um
império (na Antiguidade), uma província imperial, o centro de um ca-
lifado, uma monarquia, o mandato de outra monarquia e, nalmente,
uma república. É uma civilização que criou religiões próprias, seja na
Antiguidade, com os faraós, seja na Era Cristã, com a Igreja Copta.
Tornou-se o centro político, ao mesmo tempo, de um império e de uma
religião, dentro do islã, formando, inclusive, importantes quadros inte-
lectuais em sua tradicional Universidade Al-Azhar, a segunda mais anti-
ga instituição universitária do mundo, criada em 988.
Nessas circunstâncias, a formação do Estado egípcio ganhou
um caráter bastante peculiar. Assumiu formas híbridas em momentos
bastante distintos. Na Antiguidade romana, conciliou as formas greco-
-romanas do dominador, quando manteve antigos elementos de seu his-
tórico estado faraônico. Nos tempos medievais, acrescentou e colocou
acima dessas duas formas de Estado as leis islâmicas e com elas perma-
neceu até a chegada dos britânicos. Com a presença do Reino Unido, o
Egito adotou instituições análogas às do liberalismo britânico, como o
sistema parlamentarista tutelado a uma monarquia, e, enm totalmente
independente, construiu uma república secular, mas mantendo e admi-
tindo as leis islâmicas, sustentando-se como país não alinhado, no auge
do confronto entre EUA e URSS.
5.2 os governos tutelAdos: dA monArquiA nAcionAlistA
Ao nAsserismo
O Egito está em uma posição estratégica basilar no mundo ára-
be e muçulmano e dele têm surgido movimentos de vanguarda políticos,
sociais e ideológicos que geram um grande impacto em seus vizinhos
árabes e que fornecem, por muitas vezes, um aparato político ideológico
que serve de modelo para outros países muçulmanos. Nesse contexto,
162
Fábio Metzger
é preciso compreender que o islã político e o Estado secular egípcios
desenvolvem uma relação peculiar, produto de uma elite político-inte-
lectual que desde o início do século XX já estava em um permanente
embate em busca da identidade nacional religiosa do país.
Quando de sua independência, o Egito dos anos 1920 passou
por um processo de formação de um regime secular constitucional plu-
ripartidário, que buscava seguir modelos europeus, especialmente fran-
ceses e britânicos. Dentro dele, conviviam duas estruturas, uma monar-
quia, pró-ocidental e um sistema com a hegemonia de elites ocidentali-
zadas, liderado pelo partido reformista Wafd. Havia uma disputa entre o
Wafd, que buscava um projeto nacional independente para o Egito, e a
monarquia, que defendia os interesses mais próximos da Grã-Bretanha.
O Egito é o país com maior população de língua árabe. Dos
atuais 300 milhões de habitantes do Oriente Médio, por volta de 25%
estão no Egito. Esse país ocupa uma posição estratégica entre o Orien-
te Médio e o norte da África, podendo assumir uma posição de catali-
sador dos projetos políticos e das identidades culturais comuns a essas
duas regiões.
A questão é que o Egito tem pelo menos duas identidades
coletivas distintas: a árabe muçulmana e a faraônica. O Egito de identidade
faraônica originalmente tem uma narrativa que enfatiza seu passado pré-
árabe e pré-islâmico, do tempo do domínio dos faraós e, depois, da
minoria cristã copta. Os nacionalistas egípcios resgatam a identidade
faraônica” nos séculos XIX e XX. Cabe destacar o movimento faraonista,
que ganhou grande projeção nos anos 1920, quando o Egito lutava pela
sua independência. O movimento faraonista, naquelas circunstâncias,
era um grande propulsor para as elites políticas locais, que buscavam
uma ideologia de armação nacional perante os colonizadores britânicos.
Essa ideologia buscava justamente congregar elementos históricos do
país antes e depois do islã, junto com uma releitura e uma atualização
do pensamento nacional egípcio. Assim, no faraonismo, exaltava-se o
passado histórico do Egito dos faraós, lembrando a importância do país
enquanto força política do Mediterrâneo Oriental. Por outro lado, os
elementos árabe e muçulmano seriam partes posteriores da formação
163
Egito e Turquia no Século XXI
dessa identidade nacional milenar. Além dessas duas identidades, o
nacionalismo egípcio formulou uma proposta política de emulação e
adaptação ao Ocidente.
Dentro dessas circunstâncias, Taha Hussein, um dos maiores
intelectuais egípcios do século XX, busca articular estes três elementos
nacionais, dando uma formulação ainda mais elaborada para tal iden-
tidade. “O elemento árabe, e acima de tudo a língua árabe clássica; os
elementos trazidos de fora em diferentes épocas, e acima de tudo o ra-
cionalismo grego; e o elemento egípcio básico, que persiste por toda a
história” (HUSSEIN, 1945, p. 107-109 apud HOURANI, 1995, p.
343-344).
Essa identidade foi fundamental para a construção do partido
nacionalista egípcio Wafd, de inspiração liberal, com grande inuência
nas elites locais ocidentalizadas. Foi pela liderança do Wafd, junto com a
antiga monarquia pró-ocidental, que o Egito formou o primeiro governo
formalmente independente da Grã-Bretanha após a Primeira Guerra
Mundial, em 1922. Era de fato um governo tutelado: o parlamento sob
controle majoritário do Wafd e, por outro lado, o rei detendo amplos
poderes para formar e dissolver gabinetes. Assim, um primeiro-ministro
wafdista teria de passar pelo crivo da monarquia. O acordo monarquia-
Wafd (com clara hegemonia do rei) foi colocado em prática, com a
aprovação da Grã-Bretanha.
Mas essa proposta de narrativa nacionalista secular, sob um
governo tutelado, entrava em choque com toda a tradição do corpo
de clérigos muçulmanos, que enfatizava a identidade árabe e muçul-
mana do Egito. Havia, de fato, um conito. De um lado, uma elite
egípcia com forte inuência ocidental, representada pelo Wafd, bus-
cando um projeto de inspiração no Ocidente, mas em defesa de um
Egito independente. De outro, um rei pró-britânico. E ainda, um
segmento da população defensor das tradições da religião muçulma-
na e da identidade árabe.
A partir dos anos 1920, quando as tradições do islã no Egito
eram questionadas pelos governos wafdistas e pelas novas elites ociden-
talizadas, acontecia uma mudança de conjuntura no Oriente Médio. O
164
Fábio Metzger
Império Otomano tinha sido derrotado na Primeira Guerra Mundial
pela coalizão liderada pela Grã-Bretanha e pela França. No lugar do Im-
pério Otomano, foi erguida a República da Turquia, um projeto secular
de Estado, pelo líder Mustafá Kemal Ataturk, que abolira a instituição
do califado em Istambul em 1924. Essa abolição causou consternação
em grande parte do mundo muçulmano.
No mundo árabe, havia uma situação política de incerteza. O
monarca (sharif) Hussein, que dominava as cidades sagradas de Meca e
Medina, e a monarquia egípcia, ambos aliados dos vencedores da Pri-
meira Guerra Mundial, disputavam a herança do califado. Diante da
falta de unidade dos monarcas árabes, uma nova família real, os Saud,
avançou a partir da região do Najd, na porção ocidental da Península
Arábica, e acabaram por tomar da família do monarca Hussein (hache-
mita) as cidades sagradas de Meca e Medina.
Esse panorama aponta um dilema: em qual direção iria o Egi-
to? De uma sociedade realmente secular ou da manutenção das tradições
religiosas? E como se congurava a religiosidade do Egito na época?
Ficava nítido que as elites políticas do Egito pretendiam avançar em um
processo de secularização do Estado e das principais instituições locais,
resgatando uma identidade que abrangia, inclusive, o passado pré-islâ-
mico. No entanto, existia dentro da sociedade egípcia, e também em
todo o mundo árabe, uma resistência quanto a esse projeto, dada a forte
penetração e a grande inuência da religião islâmica.
Com isso, a realidade que se criou no Egito foi de um país
cujo Estado se propõe secular, mas cuja sociedade civil, a despeito dos
momentos em que aspectos da ocidentalização e, no limite, do liberalis-
mo político predominaram, o islã manteve a sua força. Isso se deu em
um momento em que, a despeito de sua independência formal, o Egito
sofria forte inuência da Grã-Bretanha. O governo britânico, mesmo
ocialmente desvinculado do Egito, ainda mantinha tropas na região
do Canal de Suez. As relações entre Estado e sociedade no Egito passam
por essas duas referências, ora em contraposição, ora em situação de
acomodação.
165
Egito e Turquia no Século XXI
A irmAndAde muçulmAnA
Em resposta a essa situação de “ataque às tradições” do islã,
começou a se articular um movimento islamista. Hassan Al-Banna, um
professor, discípulo de Abdu, Afghani e Rida
1
(ARMSTRONG, 2001,
p. 250), via na cidade de Ismaília (na região do Canal de Suez) uma
grande presença de britânicos pouco interessados na população local e
mais preocupados “em controlar a economia e as ações das empresas de
utilidade pública”.
A realidade era que o Egito, com seu projeto de Estado secular
constitucional, não atendia a todos os seus cidadãos. E a ideologia ocial
do Estado dava menos importância ao islã, fortalecendo outras narrati-
vas. Al-Banna notava a pouca presença de éis nas mesquitas, diante de
uma população perdida. Em 1928, ele e o pequeno grupo com o qual
estava associado fundaram a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, tendo
como objetivo inicial declarado a educação de éis. Tratava-se de um
projeto de reinserir o islã na população, de forma que a nação se tor-
nasse “muçulmana sem nenhuma conquista violenta” (ARMSTRONG,
2001, p. 251).
O programa de Al-Banna se baseava em cinco pontos (ABIDI,
1965, p. 197 apud ARMSTRONG, 2001, p. 252):
1. Interpretação do Alcorão no espírito da época
A ideia original desse ponto se baseava em interpretar o Al-
corão conforme o momento atual, ou seja, dentro de um processo de
modernização como o do século XX. Não está claro nesse ponto se a
Irmandade Muçulmana se arma como um movimento do islã político
ou como um movimento religioso islâmico que enfrenta questões mo-
dernas, sem necessariamente colocar o Estado confessional como uma
meta imediata.
Fundadores do movimento salasta na virada dos séculos XIX para o XX. Há que se destacar que hoje
em dia os salastas do Egito têm o seu próprio partido, o Al-Nour, e a Irmandade teve até 2013 o partido
“Justiça e Liberdade”. É notório que o salasmo permanece forte no Egito, o que se vericou nas eleições
parlamentares em 2012, quando obtiveram cerca de 25% dos assentos da Assembleia Popular, mantendo a
antiga plataforma conservadora mais radical da irmandade. Esta, por sua vez, foi moderando pontos de seu
programa, ao passo que se aproximou das esferas de poder nacionais.
166
Fábio Metzger
2. Unidade das nações islâmicas
Nesse ponto, já ca mais bem denida a proposta da Irmanda-
de Muçulmana, do ponto de vista da identicação religiosa. Sua busca
por uma identidade maior entre populações de fé islâmica é um aspecto
que reforça seu programa. O objetivo de Hassan Al-Banna era restaurar
o califado (KAMEL, 2004a).
3. Melhoria do padrão de vida e conquista de justiça e ordem social,
assim como combate ao analfabetismo e à pobreza
Esses dois pontos fazem parte dos aspectos progressistas do
programa da irmandade. Se, de um lado, existe o braço confessional,
religioso, de outro existe a preocupação em realizar melhorias sociais
e justiça interna. Atendendo essas questões, a Irmandade Muçulmana
reforçava sua legitimidade perante o povo pobre.
4. Emancipação em relação ao domínio estrangeiro
Em um contexto em que a Grã-Bretanha e a França exerciam
grande inuência no mundo muçulmano e em que havia um abandono
dos éis em relação ao islã, era importante que a própria população local
pudesse dar conta de si mesma. O discurso da irmandade, nesse sentido,
tomava ares de defesa do local contra o estrangeiro, o colonizador, aque-
le que estava no Egito apenas para lucrar com a extração das riquezas
locais.
5. Promoção da paz e da fraternidade islâmicas no mundo
A irmandade ainda não tinha adotado o discurso da Guerra
Santa contra os inéis. Nesse sentido, a ideia de “promoção da paz” ain-
da dava um caráter tolerante à irmandade, de forma que sua proposta
não fosse necessariamente uma rival frontal à ordem do Estado egípcio.
167
Egito e Turquia no Século XXI
A verdade é que a Irmandade Muçulmana representava um
movimento religioso muçulmano de vanguarda, contendo em si as tra-
dições da religião, mas utilizando técnicas da modernidade. A partir de
1945, Al-Banna levou o projeto da irmandade para além da militância
religiosa. A irmandade começou um ambicioso programa social de fun-
dação de escolas regulares e para trabalhadores, movimentos de escotei-
ros, mesquitas, hospitais, clínicas, etc. Eram organizados sindicatos, que
orientavam trabalhadores a respeito dos direitos que possuíam, incenti-
vavam-nos a abrir suas próprias empresas, em diversas áreas (indústrias
gráca, têxtil, rmas de engenharia, etc.), levavam os seus membros para
fazer reformas técnicas em propriedades rurais, com o objetivo de me-
lhorar as condições de vida população local, etc.
No entanto, a questão do confronto “islã versus secularismo
estava ainda pendente. A Irmandade Muçulmana se tornava uma con-
corrente interna do Estado egípcio. Este, que controlava mesquitas e
escolas religiosas, instituições de educação, repartições públicas, estabe-
lecimentos das mais variadas áreas, de repente via a Irmandade Muçul-
mana com escolas, fábricas, mesquitas, sindicatos, etc. O Estado egípcio
era uma monarquia com inuência de um arcabouço ideológico ociden-
tal, secularizado, mas abrangendo instituições islâmicas. A Irmandade
Muçulmana, por sua vez, não deixava clara sua posição com relação à
formação de um Estado islâmico. Al-Banna “sempre considerou prema-
tura qualquer discussão sobre um possível Estado islâmico, pois ainda
havia muito por fazer” (ARMSTRONG, 2001, p. 253-254).
Durante o início dos anos 1940, época em que começava a
Segunda Guerra Mundial, a falência do projeto wafdista do Egito gerava
uma situação de profunda instabilidade política. A modernização do
país fora feita de maneira restrita, e a maioria dos egípcios não acreditava
mais no regime que combinava a monarquia com o parlamentarismo,
liderado pelo partido Wafd e apoiado pela Grã-Bretanha. O crescimento
demográco era outro obstáculo. E, assim, a oportunidade de se realizar
um projeto bem-sucedido de modernização incluindo todos os segmen-
tos da população parecia ter sido perdida. E esse clima de instabilidade
também atingiu a Irmandade Muçulmana. Por mais que tentasse evitar
168
Fábio Metzger
dissidências internas, Al-Banna não pôde conter o surgimento de um
aparelho secreto, de proposta de ação política violenta.
Na verdade, o tamanho do aparelho secreto ainda não era tão
grande nos últimos anos da vida de Al-Banna. Se em 1949, quando ele
morreu, a Irmandade Muçulmana possuía cerca de “2 mil estabeleci-
mentos, cada um representando entre 300 e 600 mil irmãos e irmãs
(ARMSTRONG, 2001, p. 251), o aparelho secreto, em 1948, contava
com cerca de mil militantes. A maior parte dos irmãos nem tinha conhe-
cimento desse aparelho e abominava ações terroristas.
No entanto, era difícil controlar sua ação, e no nal dos anos
1940 o aparelho secreto começou a agir. O clima nos países árabes
era de grande violência. A criação do Estado de Israel, em 1948, que
desalojou 750 mil árabes, e a posterior derrota de uma coalizão de
cinco exércitos árabes (incluído o do Egito) para o pequeno país recém-
criado, levou a uma situação de mais desespero e humilhação. Para
muitos, a solução teria de vir da violência, do terror. E, nessa situação,
o aparelho secreto fez uma escalada em sua campanha, que culminou
com o assassinato do primeiro-ministro Muhammad Al-Nuqrashi, em
28 de dezembro de 1948.
O novo primeiro-ministro, Ibrahim Al-Hadi, aproveitou a si-
tuação para iniciar uma campanha de perseguição à Irmandade Mu-
çulmana, prendendo cerca de 4 mil irmãos. Hassan al-Banna morreu
fuzilado na rua (ARMSTRONG, 2001, p. 256). A Irmandade Muçul-
mana cara grande demais, e os governantes do Estado secular queriam
colocá-la na ilegalidade.
A derrubAdA dA monArquiA
Em 1952, a monarquia foi derrubada por um grupo de jovens
militares, os Ociais Livres. Seu projeto político era bem diverso do
anterior, que combinava uma monarquia tradicional com um governo
parlamentar. Nesse momento o projeto do Egito era republicano, en-
fatizando o nacionalismo árabe, e tinha um discurso não alinhado em
relação ao Ocidente ou à URSS, mas com uma conotação levemente
169
Egito e Turquia no Século XXI
socialista. Até 1954 o Egito foi comandado pelo general Muhammad
Naguib; a partir daí, até 1970, o Egito foi governado pelo coronel Ga-
mal Abdel Nasser. Reintegrada à sociedade egípcia, a Irmandade Mu-
çulmana inicialmente apoiou Nasser. No entanto, quando notou que
a intenção dele era manter sua posição de um Egito secular, então sob
expansão do nacionalismo árabe e do socialismo, e não estabelecer ba-
ses islâmicas para o Estado egípcio, os Irmãos Muçulmanos começaram
uma franca campanha contra o nasserismo. Essa campanha culminou
com um atentado ao próprio Nasser.
Os Irmãos Muçulmanos até poderiam aceitar o arabismo como
parte integrante do islã político. O ideólogo Sayyid Qutb chegou a apon-
tar o pan-arabismo como “um estágio intermediário para um posterior
período de domínio islâmico” (SIVAN, 1985, p. 28-29). No entanto,
cou claro, mais adiante, que a proposta de Nasser era criar um regi-
me secular, sem que o islã, sendo a religião ocial do Estado, assumisse
uma posição mais importante. Logo, os Irmãos Muçulmanos passaram
a denunciar o projeto pan-arabista como uma fabricação importada do
Ocidente, quer dizer, um nacionalismo secular, independente da religião
islâmica, tal como os nacionalismos europeus são, em relação às religiões
cristãs. Em 1954, a irmandade foi ocialmente proscrita.
Por outro lado, Nasser começava a se consolidar no contexto
do mundo árabe com uma posição inédita. Seu projeto era de expansão
de um nacionalismo pan-árabe, desenvolvimento econômico dirigido e
centralização de um aparato de segurança de Estado. Em 1956, quan-
do Nasser nacionalizou o Canal do Suez, França, Grã-Bretanha e Israel
rmaram uma aliança e atacaram o Egito. Este, por sua vez, recebeu o
apoio da URSS e dos EUA, que determinaram a retirada das tropas es-
trangeiras do Egito, do Canal de Suez e da Península do Sinai. A derrota
militar se transformou numa grande vitória política, que deu credibi-
lidade ao projeto de Nasser. O rais (presidente) organizou então um
partido denominado União Nacional – nacionalista e pan-arabista –,
formando a base e a burocracia político-estatal para as suas futuras ações.
Em 1958, o Egito articulou o início de uma unidade política ára-
be aliando-se à Síria. A República Árabe Unida, no entanto, por divergên-
170
Fábio Metzger
cias internas foi dissolvida em 1961. Nasser criou então o partido governista
União Socialista Árabe, dando continuidade ao projeto não alinhado do
Egito, com uma plataforma avançada que incluía reforma agrária, naciona-
lização de empresas e reformas políticas em relação à era anterior.
Na década de 1960, Nasser iniciou uma dura campanha de
perseguição aos Irmãos Muçulmanos. Nessa época, a ala radical da Ir-
mandade Muçulmana ganhava corpo com uma proposta bem diferente
da de Hassan al-Banna. Uma nova liderança conquistava espaço na ir-
mandade. E a proposta original, conservadora, mas relativamente tole-
rante, dava lugar a outra, bem mais radical, dentro da linha islamista.
É preciso, antes de tudo, esclarecer quem era essa liderança,
assim como falar a respeito da experiência dos dissidentes islamistas.
Como foi a experiência deles nas prisões, durante o regime de Nasser?
Quais eram as ideias que eles estavam formulando? Emmanuel Sivan cita
relatos de um grupo de presos políticos liderados pelo xeque Ali Abduh
Ismail que diziam que o Estado egípcio era inel e que Nasser e Israel
eram, ambas, variações tirânicas. Alguns desses prisioneiros se queixa-
vam de que “aqueles mesmos que tinham sido derrotados por Israel em
1948 nos colocaram na cadeia, e o zeram mais uma vez em 1966, um
ano depois de outra incursão israelense. “[...] os mesmos que aboliram
as cortes religiosas [...] transformando Al-Azhar em uma universidade
secular, [...] matam muçulmanos no Iêmen com bombas Napalm e gases
venenosos, ao mesmo tempo em que se aliam com os inéis da URSS”
(SIVAN, 1985, p 16, tradução do autor).
Sayyid Qutb, um muçulmano de formação conservadora, tra-
balhava para o Ministério da Educação do Egito. De 1948 a 1951, ele
esteve, a serviço desse ministério, em uma viagem aos EUA, para co-
nhecer mais a respeito dos métodos educacionais utilizados por lá. No
entanto, os efeitos dessa viagem foram impactantes de outra forma. Na
ótica de Qutb, o estilo de vida extremamente livre com relação a deter-
minados hábitos era muito chocante ou fútil. Em reação, Qutb voltou
para o Egito radicalmente mais religioso, questionador de toda a ordem
da cultura ocidental. Foi quando aderiu à Irmandade Muçulmana e de-
senvolveu sua teoria (KAMEL, 2004).
171
Egito e Turquia no Século XXI
Sayyid Qutb fazia uma distinção entre o período pré-islâmico
(Jahiliyya) e o islâmico e acusava os novos Estados nacionalistas árabes
de voltar à Jahiliyya, adotando símbolos que denotavam idolatria e as-
sim desaando o islã, tal como ocorria no Ocidente. O islã, em contras-
te, seria uma forma ideal de vida, que abrange o indivíduo e a soberania
divina. Um sistema de vida controlado por uma vontade soberana divi-
na não poderia ser desaado por inéis que promovem ideais tais como
a idolatria, o individualismo e o materialismo.
Qutb rejeita a distinção que é feita entre a religião e o secu-
larismo racionalista na modernidade ocidental. Para esta, enquanto a
primeira serviria para ns individuais, o segundo seria um modo de or-
ganização coletiva. Para Qutb, não há separação entre essas duas esferas.
Ambas estão sob o governo da entidade divina, Alá, tendo o el que
fazer uma grande Jihad, que era uma mudança espiritual interna, e uma
pequena Jihad, que era uma guerra santa para converter os inéis:
[a] religião é realmente a declaração universal da liberdade do homem
sobre a servidão imposta por outros homens e da servidão aos seus
próprios desejos, que é uma outra forma de servidão humana; é uma
declaração sendo a qual a soberania pertence a Deus apenas e que
somente Ele é o senhor de todos os mundos. [...] todo sistema no
qual as decisões nais estão referidas as seres humanos e nos quais as
fontes da autoridade são humanas, deicam os seres humanos por
designarem outros que não Deus como soberano sobre os homens.
Essa declaração quer dizer que a autoridade usurpada de Deus deve
ser reconduzida a Ele e que os usurpadores devem ser expulsos –
aqueles que por si próprios tramam leis para outros seguirem, assim
elevando-se ao status de senhores e reduzindo os outros ao status de
escravos. Em suma, proclamar a autoridade e a soberania de Deus
signica eliminar todo o domínio humano e anunciar a lei Daquele
que sustenta o universo sobre o mundo inteiro. Nos termos do
Corão. (QUTB, 1964 apud MILMAN, 2004, não paginado).
Qutb, na verdade, é mais preciso que Al-Banna. Isso porque,
enquanto Al-Banna não especica a questão do Estado islâmico e li-
mita a esfera do confronto com o secularismo nos territórios em que
predomina o islã, Qutb deixa bem claro que deve ser travada uma luta
mundial contra todos os inéis.
172
Fábio Metzger
Segundo essa formulação, o pan-arabismo seria uma nova re-
ligião jahili, tal como ocorria antes da fundação do islã por Maomé,
de forma que deveria ser combatida. A “religião do pan-arabismo” era
uma afronta que não poderia ser tolerada de forma alguma, uma ti-
rania que estava, na prática, cometendo atos contra o Islã, inclusive
torturando e perseguindo éis, em nome de uma etnia (árabe) quando
na verdade, a identidade dos muçulmanos deveria ser creditada pelo
pertencimento à umma.
Em 1966, Nasser decidiu, erradicar de vez a Irmandade Mu-
çulmana, dando ao Estado a prerrogativa de cooptar o establishment
religioso, enquanto a oposição islamista era silenciada. Os exilados for-
mavam ou ampliavam novas irmandades ou organizações de ideologia
similar, tanto na Síria quanto na Jordânia, na Arábia Saudita, no Líbano
ou no Iraque.
Em 1967, o Egito de Nasser liderou uma coalizão com Jor-
dânia e Síria contra Israel. Este rapidamente os derrota naquela que foi
conhecida como a Guerra dos Seis Dias. A segunda derrota para Israel
foi humilhante para a autoestima árabe, mais uma vez. E, diante disso,
Nasser chegou a anunciar sua renúncia. Aquele foi um marco em que o
projeto do nacionalismo pan-árabe sofreu um forte revés. Nasser acabou
por falecer em 1970.
5.3 de AnwAr sAdAt A hosni mubArAK
Assumindo em 1971, Anwar Sadat realizou um projeto de mo-
dernização capitalista da economia e de redenição dos espaços políticos,
a Intah. Mais uma vez, a Irmandade Muçulmana pôde se rearticular,
assim como outras organizações islamistas. Sadat, pessoalmente muito
religioso, pretendia contrabalançar o poder de nasseristas e esquerdis-
tas, dando aos movimentos islâmicos mais espaço, no contexto histórico
da Guerra Fria. Havia um inimigo comum do Egito, agora aliado dos
EUA, e dos islamistas: o bloco socialista pró-URSS.
A intah de Sadat se fez em duas vias. De um lado, ele deu es-
paço para que os islamistas voltassem a participar da política egípcia, da
173
Egito e Turquia no Século XXI
qual eles ainda permaneciam ocialmente proscritos enquanto organiza-
ção, apesar de tolerados em sua militância; de outro, se aproximou dos
EUA, atraindo investimentos para seu país. Era um caminho perigoso,
em que a tolerância em relação a grupos islâmicos radicais provenientes
de camadas pobres e médias da população, marginalizadas em relação
aos benefícios dos investimentos vindos de países ocidentais, levaria ine-
vitavelmente a um choque entre islamistas e egípcios ocidentalizados.
O crescimento desses movimentos, em grande parte, foi causa-
do pelas políticas econômicas de Anwar Sadat, de forma que o processo
de abertura econômica não beneciou grandes camadas da população
egípcia e excluiu especialmente jovens oriundos das zonas rurais ou
lhos de migrantes vindos dessas regiões. Esses jovens que buscavam
oportunidades nas grandes cidades nem sempre as encontravam. O mer-
cado de trabalho não atendia a toda a juventude, incluídos aqueles que
estudavam em universidades. Parte da população migrou para as cida-
des e foi excluída do processo de modernização, em que o crescimento
econômico se reetia na integração do Egito ao Ocidente e na presença
de novos ricos que ostentavam hábitos da cultura ocidental. Tudo isto
gerou entre populações mais pobres sentimentos de aversão e frustração.
Mais uma vez, o Estado egípcio se viu diante de uma situação
complicada: não conseguia atender às demandas básicas da população,
e, enquanto isso, a política de Intah de Sadat criava condições que for-
taleciam redes de caridade social islamistas. Ao mesmo tempo, a tentati-
va do Estado egípcio de controlar os clérigos mais uma vez falhava. Das
46 mil mesquitas que existiam no Egito, apenas 6 mil eram controladas
pelo governo, sendo que a maior parte delas era de origem privada (ES-
POSITO; VOLL, 1996, p. 176).
Nessa situação, os grupos políticos islamistas começaram a se
voltar contra o governo egípcio, de modo que este teve de iniciar uma
política de combate e repressão a eles.
Sadat, se colocando como um “presidente-el” e dando espaço
para militantes islâmicos, acreditou que poderia neutralizar totalmente a
ascensão do elemento islamista presente na sociedade egípcia. Não espe-
rava, enquanto dava esses passos, ao fazer os acordos de paz com Israel,
174
Fábio Metzger
perder parte importante da aceitação do Egito dentro do mundo árabe.
Ao estabelecer a paz com o Estado judeu, o Egito se isolou a ponto de ser
suspenso da Liga Árabe, em 1979. Foi nesse contexto, diante do confron-
to da Guerra Fria e do avanço do fundamentalismo islâmico, que Anwar
Sadat foi assassinado por militantes islamistas trajados de militares duran-
te uma exibição das forças armadas no Egito em outubro de 1981.
Foi nessa circunstância – uma situação de grande tensão e con-
ito – que Hosni Mubarak assumiu a presidência do Estado: o Egito,
próximo dos EUA, fora da Liga Árabe; islamistas mais radicais demons-
trando ser fortes o bastante para se inltrar nas forças armadas do país
e, inclusive, matar o seu antecessor. Essa conjuntura gerou uma nova
realidade: como manter os acordos com Israel e a aliança com os EUA,
reaproximar-se dos países árabes e se rearticular internamente?
Na década de 1980, sob o governo de Hosni Mubarak, isla-
mistas menos radicais começaram a integrar o mainstream da política do
Estado egípcio. A política de Mubarak envolvia, de um lado, a realização
de um processo de abertura política limitada para grupos islamistas de
ação não confrontacionista e, de outro, o combate implacável a grupos
islamistas que ameaçavam o Estado.
Críticos religiosos puderam ter mais espaço para se expressar e
concorrer em eleições parlamentares, publicar jornais e dar suas
opiniões na mídia. A televisão do Estado promoveu debates entre
militantes islamistas e professores da Al-Azhar, estes representando
o establishment religioso. (ESPOSITO; VOLL, 1996, p. 176, tradu-
ção do autor, não paginado).
A política de Mubarak diferiu da de Sadat na medida em que,
enquanto este oferecia espaço aos movimentos islamistas com o objetivo
de conter outros grupos políticos, Mubarak ofereceu áreas de participa-
ção aos islamistas, a m de promover uma acomodação entre religiosos
radicais e o restante da sociedade. Mubarak ltrou as diversas formas de
manifestação do islã político, que pode se manifestar, mas sempre dentro
de um limite estabelecido, seja nos meios de comunicação, seja em insti-
tuições de ensino, como as universidades, seja em outros espaços públicos.
175
Egito e Turquia no Século XXI
Por volta de 1985, Mubarak havia enfraquecido grupos políti-
cos islamistas – principalmente os de linha jihadista
2
. O novo autocrata
desenvolveu um estilo próprio de lidar com seus opositores, tornando
ilegais e semilegalizados alguns movimentos e tolerando a existência de
outros. O Partido Comunista, na clandestinidade, por exemplo, foi du-
ramente combatido, enquanto líderes do Novo Partido Wafd e nasseris-
tas foram libertados pelo governo. Com relação aos movimentos islamis-
tas, Mubarak tomou uma atitude semelhante; sua ação foi no sentido de
punir islamistas que o ameaçavam e incentivar os que se comprometiam
a reconhecer o regime egípcio.
Mubarak cou com uma herança pesada, e sua margem de
manobra se tornou bastante reduzida diante do crescimento dos mo-
vimentos islamistas, ocorrido principalmente na época em que Sadat
foi presidente. Mubarak fez concessões, reduzindo ainda mais o caráter
predominantemente secular do Estado egípcio, ao aprovar leis religiosas,
combater homossexuais, restringir os direitos das mulheres, permitir a
propaganda antissemita e antissionista e perder o pulso em situações de
ataques a cristãos coptas, por exemplo.
O regime originalmente secular egípcio teve um mesmo par-
tido no poder por mais de cinco décadas. Trata-se de um projeto polí-
tico autocrático, com momentos de distensão. Nos dias atuais, existe,
de fato, uma grande diculdade de se compor um regime democrático.
Mesmo momentos de distensão política interna não são capazes de per-
mitir que surja uma cultura política predominantemente democrática,
tal é a presença da religião e das instituições militares nos assuntos do
Estado e da sociedade egípcios, além, é claro, da falta de uma prática
mais prolongada sob regime pluripartidário.
Dessa forma, mesmo tendo realizado um processo de abertura
política limitado, Hosni Mubarak e seu governo passaram a se expor
cada vez mais à violência política islamista, assim como Sadat no pas-
sado. A partir de 1992, movimentos islamistas tais como a Jama’at Is-
Existe uma diferenciação que precisa ser feita. Jihadistas e salastas são identicados como os islamistas
mais radicais. Mas enquanto os salastas, por mais radicais que sejam, não priorizavam a violência política,
os jihadistas eram confrontadores diretos do Estado.
176
Fábio Metzger
lamiyya e a Al Jihad passaram a atacar turistas estrangeiros e membros
importantes do governo e do exército egípcios. O atentado que quase
matou Mubarak, na capital da Etiópia, Addis-Abeba, em 1995, foi um
marco que fez com que ele prosseguisse em uma ação ainda mais brutal
contra movimentos islamistas radicais. Ação que se tornou ainda mais
dura após o atentado contra um ônibus com estrangeiros na cidade de
Luxor, em 1997, quando morreram 58 pessoas.
Sem dúvida, existem diferenças entre as políticas e entre as
circunstâncias de ambos os governantes, Sadat e Mubarak. Durante o
governo Sadat ocorria uma reaproximação com o bloco ocidental lide-
rado pelos EUA, depois dos anos em que Nasser manteve uma aliança
estratégica com a URSS. Tratava-se de um mundo bipolarizado, em que
o confronto ideológico internacional EUA versus URSS pautava as rela-
ções internacionais. E, nesse aspecto, qualquer aproximação poderia ge-
rar reações mais bruscas, ainda mais em uma situação na qual o desnível
social do país aumentava e grupos políticos islamistas procuravam atrair
a seu favor a população, em torno de um projeto político alternativo,
uma vez que o projeto político nasserista malograra, desde então.
Já o governo de Mubarak, especialmente nos anos 1990, be-
neciou-se de uma situação geopolítica internacional unipolar, com a
predominância os EUA, e em que, com a aproximação em relação ao
Ocidente já consolidada, um novo problema se apresentou: o islã po-
lítico mais radical, antes um possível aliado contra o bloco socialista
soviético, se tornara um inimigo frontal de regimes de modelo ocidental
liderados pelos EUA, assim como de Estados com alianças com o gover-
no estadunidense.
Tais movimentos do islã político, antes bem atrelados a esses
regimes por conta do inimigo comum do bloco socialista, passaram a
se articular entre si de forma internacional, formando redes de atuação
em que tanto os militantes quanto os alvos são muito mais exíveis. O
islã político radical egípcio se interconectou com movimentos de outros
países, formando movimentos como a Al-Qaeda, tanto que a tentativa
de assassinato de Mubarak ocorreu em Adis-Abeba, capital da Etiópia,
país de maioria cristã, durante um encontro da Organização da Unidade
177
Egito e Turquia no Século XXI
Africana (OUA). Além disso, os alvos se tornaram mais amplos; com
Mubarak, os alvos não eram apenas políticos, mas também econômicos.
Ataques a estrangeiros, como o atentado de Luxor, visaram desestimular
a indústria do turismo.
Dessa forma, Mubarak lançou mão de uma política de com-
bate militar a essas organizações. Ele buscou ampliar a ecácia da polí-
cia egípcia, a m de sufocar estes movimentos até o ponto em que sua
representação se tornasse bastante reprimida. No entanto, na situação
de combate a esses grupos, outros setores da sociedade egípcia também
foram atingidos. Veículos de imprensa foram fechados, em março de
1998, por denunciar a perseguição do governo contra a minoria cristã
copta. Ao mesmo tempo, um dono de jornal foi condenado à prisão por
criticar o ministro do Interior.
A articulação do islã político fora das fronteiras egípcias por con-
ta de uma realidade global mais complexa foi uma realidade que o gover-
no de Mubarak não conseguiu combater. Muitos dos islamistas que são
cidadãos egípcios vivem em outros países, inclusive na Europa, de onde
veio Mohamed Atta (um dos executores dos atentados de 11 de setembro
de 2001, nascido no Egito, cidadão saudita e residente na Alemanha), e
possuem contatos entre si por meio do mundo virtual (internet). Por que
esses militantes não seriam uma ameaça aos governantes egípcios, como se
conrmou na tentativa de assassinato de Mubarak, na Etiópia?
Mubarak procurou manter a hegemonia sobre a burocracia
egípcia: nas eleições gerais, realizadas em 2005, ele se elegeu mais uma
vez, dada a sua capacidade de manipular o processo eleitoral e desesti-
mular a ação de seus opositores, tanto os islamistas quanto os não isla-
mistas. Na prática, isso não signicou uma abertura política efetiva. O
regime mubarakista permaneceu comandando um Estado autocrático.
Nas eleições parlamentares, os candidatos que tinham alguma ligação
com a Irmandade Muçulmana obtiveram 88 cadeiras (de um total de
454) na Assembleia Popular. Isso ainda a deixava distante do Partido
Nacional Democrático (PND), de Mubarak. A Irmandade, enquanto
organização, prosseguiu ocialmente sendo ilegal no Egito. Ainda assim,
ela continuava sendo tolerada pelo governo, e sua inuência era cada vez
178
Fábio Metzger
mais sentida na sociedade egípcia. A lista apresentada pelo grupo ligado
à irmandade não passava de 161 candidatos, o que deixava claro que
Mubarak realizava um controle e que, com toda a força que possuía, não
tinha sucesso o bastante para deter o avanço das organizações islâmicas,
pelo menos das que se afastaram do salasmo e do jihadismo.
As eleições de dezembro de 2006 não foram tranquilas. No
último dos três turnos de eleições parlamentares, houve confrontos entre
a polícia e eleitores, segundo reportagem do e New York Times de 9 de
dezembro de 2005 intitulada “Egyptians Rue Election Day Gone Awry”.
Nesse dia, oito pessoas foram mortas e dezenas caram feridas. Segundo
a reportagem,
Se era esperado que as eleições parlamentares fossem um exercício
de democracia, como o presidente Hosni Mubarak havia prometi-
do, em vez disso, elas serviram para relembrar muitos aqui do in-
exível e não controlável poder do Estado. Depois que a proscrita
Irmandade Muçulmana começou a desaar o monopólio do partido
do governo que está no poder, agentes policiais com equipamentos
antimotim ou à paisana e civis armados a serviço da polícia come-
çaram a interditar locais de votação para impedir que partidários
da irmandade votassem. (EGYPTIANS..., 2005, tradução do autor,
não paginado).
A irmandade, apesar de tolerada, permaneceu assistida perma-
nentemente pela polícia egípcia até 2011. Apesar de ocialmente ilegal
desde 1954, a Irmandade Muçulmana não deixou de exercer atividades
políticas no país. E, sendo permanentemente vigiada pelo governo egíp-
cio, sofreu um grande processo de metamorfose de seu programa. Suas
propostas ociais já não acompanhavam mais um programa próximo
ao salasmo, como aquele proposto por Hassan Al-Banna, tampouco
seguia a linha do jihadismo tal como imaginado por Sayyid Qutb. A
irmandade passou a focar mais as reformas políticas para o país, como a
adoção de um sistema pluripartidário e o m do estado de emergência
vigente no Egito de 1981 a 2011.
De fato, essa situação de ilegalidade tolerada fez com que a Ir-
mandade Muçulmana passasse a existir, ao longo do governo Mubarak,
179
Egito e Turquia no Século XXI
como uma organização conhecida, mas com funcionamento secreto.
Todo esse enraizamento da Irmandade Muçulmana na sociedade egípcia
foi bastante decisivo para que a política de Hosni Mubarak se voltasse
contra ela como um bumerangue. Certamente, essa grande capacidade
de articulação foi fundamental para que os Irmãos Muçulmanos, mais
adiante, pudessem ganhar eleições gerais no Egito, após a Revolução de
2011. Muito mais bem articulados e bastante assegurados na sociedade
civil egípcia, os irmãos estavam mais bem preparados que outras organi-
zações para chegar ao poder. No entanto, não se pode negar o papel de
instituições e movimentos não islâmicos no m do regime de Mubarak.
E é investigando a atuação deles que compreenderemos as razões de sua
queda, uma vez que a liderança da Revolução de 2011 não partiu da
irmandade, mas sim desses movimentos. Onde e como eles começaram?
E quando eles adquiriram massa crítica para derrubar Mubarak?
5.4 A crise no mundo árAbe e os outros movimentos
políticos
Não é possível contextualizar o crescimento dos movimentos
políticos egípcios antimubarakistas sem compreender a crise que os
países do mundo árabe passaram a viver no início dos anos 2000: uma
crise de natureza econômica e política, em que cada vez mais a opinião
geral era de afastamento do governo em relação às demandas populares.
Notava-se um desejo crescente dos egípcios e das populações de outros
países árabes de adoção de regimes democráticos. Em 2005, o Centro
Al-Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos indicava que 63,3% dos
egípcios que tinham entre 15 e 24 anos de idade acreditavam que a de-
mocracia era uma forma mais apropriada de governo, enquanto 24,5%
pensavam que era inapropriada e 12,5% defendiam não ser esse um
sistema bom (MIDDLE EAST REPORT, 2006). Esse estudo poderia
ter um lado animador e encorajador, na medida em que mostrava uma
maioria defensora de um regime aberto, mas demonstrava também o
ceticismo de três em cada oito egípcios em relação ao sistema demo-
crático. Obviamente, aconteceram muitas mudanças desde então. No
entanto, dados como esses podem ter sido bem utilizados pelo governo
180
Fábio Metzger
de Mubarak, a m de sustentar a sua premissa de “ou isso, ou um regime
islâmico”. Mubarak tentou de diversas formas cooptar parte da opinião
pública do país por alguns anos, nesse sentido.
Naquele momento, o Egito ainda estava sob forte controle do
sistema político do antigo regime. Instituições e organizações de dis-
curso mais combativo eram perseguidas e tornadas ilegais, com ativistas
sendo presos e tendo os seus direitos políticos cassados. Outros foram
levados ao exílio. Mubarak se aproveitou dessa situação que lhe favore-
cia, por exemplo, modicando a Constituição de 1971 e submetendo-a
a um referendo: foram 34 emendas que incluíam, entre outros pontos,
o reforço de seus poderes como presidente. Elas substituíam o estado
de emergência (sem anulá-lo, de fato) que vigorava desde 1981, com o
assassinato de Sadat. O presidente passara a ter poderes para dissolver o
parlamento sem necessitar de um plebiscito. Segundo a reportagem “Re-
ferendo aprova reformas constitucionais no Egipto, mas eleitores não
foram às urnas” do jornal português Público em seu site Última Hora
em 28 de março de 2008, o resultado
[...] foi aprovado por 75,9 por cento dos eleitores. Ocialmente,
foram às urnas 27,1 por cento dos eleitores, mas os dados de
organizações que acompanharam o referendo foram bem diferentes:
Apenas cinco a sete por cento votaram”, disse Gasser Abdel Razeq,
membro da Organização Egípcia dos Direitos Humanos [...]
(REFERENDO..., 2007, não paginado).
Não se pode deixar de levar em conta episódios outros que fo-
ram minando a credibilidade de Mubarak, não apenas no campo interno,
mas também no externo. O bombardeio de Israel a Gaza entre dezembro
de 2008 e janeiro de 2009, por exemplo, foi um desses episódios. En-
quanto o exército israelense atacava a região, o exército egípcio fechava as
fronteiras, impedindo a saída de palestinos que estavam sob bombardeio.
Essa medida vista como colaboracionista com Israel, por grande parte da
opinião pública do Egito, provocou enorme desgaste ao governo.
A crise econômica que se seguiu e as reformas que foram sen-
do feitas, com cortes em investimentos sociais e aumentos dos preços
de itens alimentícios básicos e do custo de vida contribuíram para que
181
Egito e Turquia no Século XXI
Mubarak se isolasse ainda mais. Nesse momento, ao longo do ano de
2010, movimentos populares e ligados à juventude, como o 6 de Abril,
conseguiram uma articulação ainda maior. Aquele ano pré-revolucioná-
rio viveu momentos de greves e manifestações cada vez mais intensos.
O estopim se deu no nal do ano em outro país do mundo árabe, a
Tunísia, onde explodiu a primeira das revoltas populares na região: a
autoimolação de um comerciante de hortaliças em Túnis ajudou a mobi-
lizar grandes massas – não mais por meio de um movimento partidário,
mas sim em redes sociais virtuais coletivas – a m de derrubar o regime
político de Ben Ali, de plataforma semelhante à de Mubarak.
O que poderia ser apenas uma questão local acabou tendo des-
dobramentos maiores. Os egípcios começaram a se organizar e, a partir
de janeiro de 2011, zeram manifestações diárias, principalmente no
centro do Cairo, a m de pedir a renúncia de Mubarak, enfrentando as
forças policiais. As forças armadas, originalmente fundadoras da Repú-
blica Egípcia em 1952, nesse momento abandonaram a base de apoio
a Mubarak. Enm, este teve de renunciar, forçado pelos seus antigos
colaboradores, que logo em seguida formaram uma junta de transição,
o Supremo Conselho das Forças Armadas (SCAF). Essa junta tomou a
liderança do processo político e, em um acordo com o Tribunal Cons-
titucional (com juízes nomeados pelo antigo regime) e com setores da
sociedade antes banidos (como os Irmãos Muçulmanos e os grupos li-
berais e democráticos), tomou uma primeira e imediata medida: a sus-
pensão do estado de emergência, que vigorou no país por quase 30 anos.
Um primeiro acordo previa que a Irmandade Muçulmana não lançasse
candidato próprio à presidência, optando pela via parlamentar. Isso, no
entanto, não foi suciente para que a transição fosse tranquila. A lide-
rança econômica das forças armadas se fazia sentir na sociedade egípcia.
Assim, os militares do país conseguiam estabelecer o seu poder de veto,
e o SCAF tomou medidas bastante semelhantes àquelas que Muba-
rak tomara anteriormente: em vez de convocar uma nova Assembleia
Constituinte, liderou um referendo em que seis artigos fundamentais da
Constituição foram modicados, processo político esse boicotado pelos
movimentos liberais e democráticos. Ocorria já naquele momento, um
grande acordo envolvendo a elite civil e militar do país, a m de isolar
182
Fábio Metzger
aqueles mesmos movimentos que semanas antes foram capazes de se
articular e derrubar o antigo regime. Certamente algumas mudanças já
se faziam notar, como a permissão para a organização partidária, antes
severamente restrita, e a dissolução do Partido Nacional Democrático.
Isso permitiu que os partidos políticos egípcios se reorganizassem.
Desse período até a formação do novo governo, de Mohammad
Morsi, ainda aconteceram diversos choques. Um ataque de manifestantes
à embaixada de Israel, por exemplo, serviu de pretexto para a suspensão
do estado de emergência. Grupos políticos ligados aos movimentos de-
mocráticos e liberais voltaram a ser reprimidos. As eleições parlamentares
que deniram a Assembleia Popular, em vez de eleger uma maioria liberal
e democrática, elegeram uma ampla maioria islâmica. A nova assembleia
eleita determinou a formação de uma nova Assembleia Constituinte, a
ser nalizada até o início de 2013, na qual os não religiosos se tornaram
minoritários (e, mais adiante, decidiram boicotar o processo político). A
Corte Constitucional, por sua vez, resolveu interferir: julgou ilegais as elei-
ções da Assembleia Popular. Ela e a SCAF interferiram diretamente na
escolha dos candidatos das eleições presidenciais. Seria, porventura, outra
forma de governo, em que algum ator político inesperado poderia ascen-
der? Vamos sustentar que o Egito não viveu processo revolucionário linear
e tradicional, mas sim um processo extremamente complexo, que começa
com uma revolução popular e é seguido de uma tentativa de contrarrevo-
lução para, nalmente, se consolidar como uma revolução pelo alto, com
uma liderança acima de todos os demais setores políticos e sociais.
5.5 As ForçAs ArmAdAs e de segurAnçA
Para começar não podemos deixar de levar em conta que as
forças armadas foram fundamentais no Egito republicano. A revolução
dos Ociais Livres, de 1952, cumpriu exatamente essa função, na derru-
bada no antigo monarca Farouk. A partir daí, podemos notar como esse
setor ganhou um notório espaço na sociedade:
os Estados Unidos que nanciaram grande parte dessa política e
concederam muitos subsídios aos generais. Os militares se bene-
ciaram de autorizações e isenções para construir centros comerciais,
183
Egito e Turquia no Século XXI
cidades no meio do deserto, balneários, além de terem sido admi-
tidos em clubes elitistas antes reservados apenas à aristocracia do
Cairo. Também ocuparam cargos públicos por todo o país, dirigem
empresas públicas e diversos ministérios. Os chefes de Estado, pa-
ralelamente, desenvolveram um sistema complexo de aparelhos de
segurança dirigidos por ociais do alto escalão e de acordo com ou-
tra lógica de inserção social. A missão do exército de proteger o Es-
tado se transformou, no Egito, em proteção do regime. Esse desvio
pode ser observado em muitas instâncias sociais, mas foi impulsio-
nado principalmente por dirigentes oriundos do próprio exército.
(KAWAKIBI; KODMANI, 2011, não paginado).
As forças armadas egípcias asseguraram o controle do Estado, do
regime e do governo, passando a deter, assim, grande parte do poder polí-
tico, econômico e ideológico. Um fenômeno importante a ser destacado,
porém, foi o desenvolvimento paralelo de forças de segurança, que acaba-
ram por ganhar um poder ainda maior que o das próprias forças armadas.
Esses aparelhos de segurança garantem o funcionamento do serviço
secreto de informação e a manutenção da ordem, além de contro-
larem as atividades cotidianas dos cidadãos. A multiplicação desses
organismos é a regra: segundo a lógica da boa segurança, eles passam
a se vigiar mutuamente. No Egito, os efetivos desses aparelhos de se-
gurança incharam até atingir quase o triplo do tamanho do exército
(1,4 milhão de pessoas contra 500 mil militares). [...] Concebidas
como o braço coercitivo dos regimes políticos, essas agências de se-
gurança se tornaram agentes diretos do poder. São elas que atuam
como interlocutoras privilegiadas junto à população – trabalhadores
em greve, desempregados ou ainda manifestantes que reivindicam
moradia e terra para cultivo. Também são responsáveis por aplicar as
ordens e as censuras ditadas pelo governo e pelas autoridades religio-
sas, além de xar os limites da liberdade de expressão. (KAWAKIBI;
KODMANI, 2011, não paginado).
Essa situação de crescimento do poder das forças de segurança
acabou por conferir um imenso poder de manobra a Hosni Mubarak,
ele mesmo um general da força aérea. Assim, as forças armadas se viam
contrabalanceadas pelos serviços de segurança, de maneira que Mubarak
levava adiante o seu projeto pessoal de poder – a ponto de, a partir de
um determinado momento, planejar nomear como vice-presidente não
184
Fábio Metzger
um membro do exército, priorizando um pequeno grupo de homens de
negócios e o seu lho Gamal. Isso acabou gerando descontentamentos
na corporação. Quando explodiu a crise política que levou à queda de
Mubarak, nalmente o exército tomou uma posição:
entre 10 e 11 de fevereiro, o exército facilitou amplamente aos
manifestantes o acesso a edifícios simbólicos do poder, como o
Parlamento e o Palácio Presidencial, para reivindicar-se como o
ator principal da queda do regime. Desde então, o setor militar
se reapropriou do papel de “mentor de sucessores” (KAWAKIBI;
KODMANI, 2011, não paginado).
Nessas circunstâncias, em que Mubarak perdia a sua autori-
dade, as forças armadas ocupavam um espaço de poder decisivo para
a transição política do país. Não auxiliavam as forças de segurança na
repressão aos manifestantes, mas também não impediam a ação repres-
siva contra os setores populares. Estavam na posição de “espectadores
engajados”, como diria Raymond Aron (1982), apenas aguardando para
se estabelecer como poder de fato no Egito.
5.6 revolução e contrArrevolução no egito
O que está acontecendo no Egito? Uma revolução popular, se-
guida de uma contrarrevolução conservadora, que se entrelaçaram e se
interfrearam. É nesse sentido que as formas híbridas de Estado se mani-
festam dentro do Egito. Sem dúvida, podemos observar todo um pro-
cesso de revolução popular que derrubou o autocrata Hosni Mubarak e
foi capaz de estabelecer uma nova dinâmica de poder, não mais baseada
em uma autocracia militar absoluta. São grupos políticos liderados por
liberais e democratas que conseguiram se articular nas principais gran-
des cidades egípcias para derrubar o antigo regime. No entanto, não ti-
veram a articulação necessária para se organizar orgânica e politicamente
em nível nacional e substituir os antigos burocratas e governantes. Nesse
sentido, há outros segmentos inltrados dentro do Estado egípcio que
tomaram a iniciativa de levar adiante uma contrarrevolução. Essa con-
trarrevolução foi freada por um movimento reformista e conservador
185
Egito e Turquia no Século XXI
interno do Egito, forte o bastante para conduzir uma revolução pelo
alto, coordenando contrarrevolucionários restauracionistas e submeten-
do revolucionários liberais e democráticos.
Isso ocorreu na medida em que, mesmo com o governo de
Mubarak tendo sido derrubado, ainda existiam setores remanescentes
do antigo regime bem organizados e articulados dentro da economia e
do aparelho estatais egípcios. Foram esses setores que iniciaram um pro-
cesso de contrarrevolução conservadora, detendo o andamento da revo-
lução popular. Essa contrarrevolução se baseou em um grande acordo
entre o setor militar e as elites seculares nacionais ambos controladores
de espaços estratégicos da economia e do Estado. Espaços fundamentais
como as mais altas instâncias burocráticas do Estado, que permaneciam
sob o controle de antigos ociais, por meio da SCAF, em substituição
ao antigo governo. O Tribunal Constitucional egípcio permanecia sob
o controle de civis nomeados por Mubarak antes de este ser derrubado.
De forma que a transição política tinha uma hegemonia dos
setores militares nas funções executivas e de segurança e uma hegemonia
mubarakista civil e burocrática nas instâncias judiciárias e legislativas.
Enquanto os militares se assumiam como aqueles que levariam adiante
o processo político, os civis mubarakistas estabeleciam, pelas vias do Tri-
bunal Constitucional, quais as mudanças que poderiam ser realizadas.
Assim, em vez de se promulgar uma nova Constituição, foram aboli-
dos os artigos da antiga que previam o estado de emergência e impe-
diam a organização política. Podemos armar que essa foi uma forma
de “transição tutelada”, em que os liberais e os democratas caram em
uma posição subalterna e de grande desvantagem. Conseguiram derru-
bar Mubarak nas principais cidades, como o Cairo ou Alexandria, mas
não tinham, de fato, a liderança necessária para organizar movimentos
populares mais amplos ao longo de todo o Egito, principalmente nos
setores agrários do país. Nesse momento, organizações islâmicas, nota-
damente a Irmandade Muçulmana, estavam mais enraizadas nos setores
periféricos das metrópoles, nas cidades menores e nas regiões rurais.
Por serem organizações que, por meio da ligação da religião
com a sociedade, tinham um canal já bastante desenvolvido de assis-
186
Fábio Metzger
tência social com populações menos assistidas pelo Estado, poderiam
agregar uma expressiva militância política, capaz de se confrontar com
o grande acordo seculares-militares mubarakistas. A Irmandade Mu-
çulmana era considerada clandestina desde 1954, quando Nasser ainda
comandava o Egito, e em 2011 voltou a ser reconhecida. No entanto,
durante essas mais de cinco décadas, jamais deixou de manter o seu for-
te vínculo com associações populares de todas as espécies, organizações
prossionais, órgãos de caridade, etc. Se de um lado era proibida, de
outro também foi tolerada, e se beneciou de distensões de outros go-
vernos, como foi a Intah de Anwar Sadat, a partir de 1971. Se, de 1981
a 2011, o estado de emergência que vigorou no país impediu uma ascen-
são política maior da organização, em momento algum ela deixou de se
manter conectada à sociedade egípcia. De modo que, na continuação do
processo revolucionário que derrubou Mubarak, os movimentos islâmi-
cos e islamistas eram aqueles que estavam mais bem organizados dentro
da sociedade, especialmente a Irmandade Muçulmana. Nesse sentido, as
elites seculares e militares buscaram se aproximar daquelas organizações
e de políticos islâmicos que fossem, ao mesmo tempo, os menos radicais
e os mais representativos possíveis, para um diálogo político.
Dessa aproximação, articulou-se um segundo acordo, que a-
nal isolou os movimentos democráticos e populares. Com a possibilida-
de de criar novos partidos políticos, a Irmandade fundou o seu, Justiça
e Liberdade, enquanto setores mais conservadores do islã (os salastas)
fundaram o Al-Nour. Em um acordo inicial, a irmandade abriu mão de
lançar um candidato próprio à presidência, enquanto a transição para
a formação de um novo governo prosseguia. Nas eleições parlamenta-
res, realizadas em três rodadas, entre novembro de 2011 e janeiro de
2012, juntos, os dois partidos mencionados conquistaram mais de 70%
dos votos e das cadeiras da nova composição da Assembleia Popular. A
grande ascensão da irmandade (com 47% dos votos), mas também dos
salastas, mais radicais e conservadores (com aproximadamente 25%
dos votos), e a revisão da posição dos Irmãos Muçulmanos, que decidi-
ram lançar um candidato próprio à presidência, foram fatores decisivos
para que o SCAF e o Tribunal Constitucional buscassem motivos para
interceder no processo político.
187
Egito e Turquia no Século XXI
O Tribunal Constitucional considerou ilegal a composição da
nova Assembleia Popular, alegando que os políticos nela eleitos estavam
ligados a organizações especícas, não tendo requisito de independência
para compor o poder legislativo. Ao mesmo tempo, o principal candi-
dato da Irmandade Muçulmana, Khairat Al-Chater, inuente empresá-
rio do país, foi vetado para as eleições presidenciais. A irmandade teve
de nomear outro candidato, um burocrata moderado da organização,
Mohamed Morsi.
O SCAF estabeleceu para si, por outro lado, atribuições gover-
namentais, independentemente do governante. Ficaria com autonomia
para gerir o orçamento das forças armadas e acumular o comando de
ministérios importantes, como o das Relações Exteriores. Assim, nota-
va-se que a revolução egípcia era cada vez mais detida e neutralizada pela
contrarrevolução conservadora.
As eleições presidenciais egípcias não tiveram a presença de
um candidato salasta. Os principais candidatos eram dois remanes-
centes do antigo regime mubarakista, um civil (Amro Musa) e outro
militar (Amhed Shak); um candidato representando uma ampla coali-
zão incluindo socialistas, nasseristas, democratas e liberais; um islâmico
dissidente da irmandade articulado com movimentos democráticos; e
Morsi. Shak, o candidato restauracionista, e Morsi, o representante da
irmandade, foram para o segundo turno das eleições. No nal, a vitória
foi de Morsi por estreita margem: 51,73% a 48,27% dos votos válidos.
Nessa situação, podemos observar o acordo mais amplo en-
tre, de um lado, civis e militares restauracionistas e de outro, os Irmãos
Muçulmanos, isolando os liberais e democratas à esquerda e os salastas
à direita. Morsi, por sua vez, abdicou de pertencer à Irmandade Muçul-
mana, quando assumiu a presidência e nomeou como vice-presidente
um importante membro do Tribunal Constitucional, Mahmud Mekki,
mais alinhado com posições democráticas e, por isso, um bom articula-
dor entre o presidente e o Judiciário.
Ali, estava bem clara a composição política: um governo mis-
to cujo chefe do poder executivo, eleito pelo voto popular, abdicou da
organização da qual pertencia e nomeou como o seu vice o membro de
188
Fábio Metzger
um tribunal que, sob o comando militar dos remanescentes do antigo
regime, vetou a participação de sua organização no poder legislativo.
Não que a Irmandade tenha desaparecido, no entanto sua presença se
tornou bem menos notada. Na formação do governo, ela teve apenas
quatro ministérios (de um total de 35). A Assembleia Popular perma-
neceu sem poder ser formada (apesar de Morsi a ter convocado após
assumir a presidência) por conta do veto do Tribunal Constitucional.
Morsi, eleito pela Irmandade Muçulmana e dela desliado, governando
sem um poder legislativo eleito e tendo como vice um importante mem-
bro de um tribunal formado no antigo regime, era então o presidente de
todos os egípcios.
A irmandade, mesmo não tendo o poder que poderia obter,
ainda via a oportunidade de realizar avanços dentro de sua agenda po-
lítica religiosa. Detendo alguns ministérios no novo governo, buscou
ampliar a sua presença no Estado. No entanto, mais uma vez os movi-
mentos democráticos e liberais, bastante preponderantes no Cairo e em
Alexandria, voltaram a se manifestar, dessa vez com organização mais
ampla (não sem o apoio de setores seculares restauracionistas), e con-
seguiram uma mobilização maior nas ruas, a m de deter o avanço da
religião sobre o Estado.
O presidente obteve, porém, vitórias importantes sobre mem-
bros do antigo regime. Ele “anulou também a declaração adicional à
Constituição adoptada pelo Conselho Superior das Forças Armadas
(CSFA)” (GRESH, 2012) do segundo turno das eleições presidenciais,
de modo que o presidente
não teria poder para exonerar os chefes das forças armadas. O novo
texto constitucional decretado pelo presidente [...] dá-lhe todos os
poderes executivos e legislativos, bem como a capacidade de designar
uma nova assembleia constituinte no caso da existente não ter condi-
ções para cumprir a sua tarefa. (GRESH, 2012, não paginado).
Quando ocorreu um incidente de fronteira entre Egito, Gaza e
Israel, no qual terroristas islâmicos conseguiram se inltrar e atingir o ter-
ritório israelense, ele aproveitou a oportunidade e utilizou a sua prerroga-
189
Egito e Turquia no Século XXI
tiva de presidente para afastar do comando das forças armadas os generais
da velha geração, mais identicados com Mubarak
3
. Morsi nomeou em
seus respectivos lugares ociais da nova geração, que pudessem ser leais ao
governo e não desagradassem os aliados externos do Ocidente.
Podemos observar, nesse amplo panorama de grandes atritos e
acomodações entre religiosos e seculares, civis e militares, democratas e
liberais versus restauracionistas, a construção de uma hegemonia política
em que o conceito de democracia liberal é, se tanto, frágil e cosmético.
Religiosos, militares e restauracionistas seculares são hegemônicos e, se
são exíveis o bastante para afastar os salastas, não parecem partilhar de
valores de democracia e pluralismo.
Quando movimentos democráticos e populares avançam no
Egito com as suas reivindicações, são frequentemente reprimidos. Uma
instituição como o Tribunal Constitucional não consegue respeitar a
vontade da maioria em uma eleição parlamentar. No entanto, aceita
outra, composta em uma eleição presidencial. Onde estão os valores
democráticos nesse caso? Sem dúvida, há avanços; os mubarakistas da
velha geração foram afastados de posições-chave. E, nesse sentido, o Egi-
to se afasta cada vez mais do modelo autocrático. No entanto, os muba-
rakistas ainda são fortes o suciente para tutelar um processo político
eleitoral e impedir que a vontade da maioria dos eleitores se traduza em
um governo da sociedade civil. E o bastante para reprimir movimentos
populares toda vez que estes saem às ruas e aumentam a sua pauta de
reivindicações.
Tanto em termos teóricos quanto em práticos, é possível iden-
ticar um governo de tipo misto. Se já não existe uma autocracia como
no passado, não dá para identicar no presente uma democracia plena.
O que temos é um governo em que coexistem Irmãos Muçulmanos, mi-
litares e civis restauracionistas, em um equilíbrio conservador e instável.
Existe, portanto, certo equilíbrio de setores antidemocráticos que, se
A decisão do presidente egípcio Mohamed Morsi de destituir o marechal Hussein Tantaui e de nomear, na
pessoa de Abdel Fattah Al-Sissi, um novo ministro da Defesa e comandante-chefe das forças armadas é uma
etapa importante na história (ainda breve, não se esqueça) da revolução egípcia iniciada a 25 de janeiro de
2011. O presidente demitiu também os principais chefes das forças militares, o chefe de estado-maior (Sami
Annan), os da força aérea e da marinha, bem como o da defesa aérea.” (GRESH, 2012a).
190
Fábio Metzger
rompido, pode levar o país a cenários negativos bem distintos do atual.
Pode-se pensar em alguns possíveis cenários. Não se descarta a possibi-
lidade de que a conjuntura evolua no sentido de avanço democrático,
com a sociedade civil se mobilizando, se articulando e construindo uma
hegemonia que contrabalanceie o poder da sociedade política. Mas é
possível também pensar em um retrocesso, ainda que parcial, do antigo
regime, uma espécie de mubarakismo sem Mubarak. Não se descarta
totalmente a hipótese de emergir um regime teocrático, no qual a força
de uma organização política como a Irmandade Muçulmana ou de uma
religião como o islã se sobreponha ao conjunto da sociedade.
Não se pode descartar que esses setores antidemocráticos po-
dem preservar o seu equilíbrio conservador mantendo um regime de
governo misto, no qual os resquícios da velha autocracia permanecem
ocupando espaços e organizações vinculadas a ele. Uma oligarquia se
preserva por meio do Tribunal Constitucional e de instituições liga-
das tradicionalmente ao Estado egípcio. Uma aristocracia religiosa se
sustenta com uma organização emergindo em porções desse mesmo
Estado. E alguns momentos de participação popular se vericam, no
período eleitoral, frequentemente cerceada pelas demais instâncias,
quando elas conseguem fazer de seu equilíbrio conservador uma hege-
monia de fato.
Assim, o grande dilema do Egito é: até que ponto liberais e
democratas de um lado, islâmicos e islamistas de outro, além de res-
tauracionistas militares e civis conseguirão sustentar o governo misto
que emergiu da revolução popular? Pois essa forma de governo se sus-
tenta em um equilíbrio bastante precário. Na primeira ponta, temos os
restauracionistas, que são os remanescentes de um regime militar cuja
autocracia data pelo menos de 1952. Em outra, temos islâmicos (mais
moderados) e islamistas. Aos islâmicos, a acomodação dos valores do islã
aos da democracia pode até ser possível, mas não é necessariamente obri-
gatória. Por exemplo: se fosse preciso escolher entre uma lei civil e uma
interpretação menos radical da sharia, qual seria a posição preponde-
rante dos islâmicos moderados? Quanto aos islamistas, o ponto é muito
claro: as leis islâmicas são superiores às leis civis. Aspectos normativos
191
Egito e Turquia no Século XXI
do islã, no que diz respeito aos direitos de gênero e de minorias e à utili-
zação de vestimentas no espaço público, são antagônicos ao conceito de
democracia, pelo menos na sua denição liberal.
Diante disso, democratas e liberais se observam em uma po-
sição em que a sua sobrevivência depende desse equilíbrio. Um equi-
líbrio que não se baseia em valores liberais, mas sim em valores con-
servadores. E é esse equilíbrio conservador que dá a brecha para que
liberais e democratas possam se sustentar. O rompimento desse equilí-
brio oferece um grande risco: ou o retorno ao antigo regime agiornado,
sem o velho déspota e em novas bases, ou o retrocesso a uma teocracia,
em que valores seculares e democráticos seriam sufocados perante os
intérpretes da lei religiosa.
No equilíbrio conservador que denimos, existe uma hegemo-
nia de forças que não prezam pela democracia, mas que têm consciência
de que um governo mais amplo do que uma autocracia ou teocracia
pura é mais funcional nas atuais circunstâncias. Esse equilíbrio não tole-
ra a ascensão de democratas e liberais, mas também não os exclui. Desde
que estes sejam o “primo pobre” da composição política.
Dentro do equilíbrio conservador, restauracionistas – civis e
militares – e islâmicos/islamistas se veem diante de uma questão-chave.
Os mais radicais dentre eles poderão desejar o regime militar autocrático
(os remanescentes mais próximos do círculo de Mubarak) ou a teocracia
islâmica (os salastas do partido Al-Nour) de formas mais puras. No
entanto, esses dois setores, até por conta de suas posições mais rígidas,
acabam se isolando e se tornando forças periféricas. Por outro lado, os
restauracionistas que conseguiram se desvencilhar da herança de Muba-
rak (em geral civis, como os do Tribunal Constitucional – nomeados em
sua grande maioria durante o antigo regime –, e generais da nova gera-
ção) e os Irmãos Muçulmanos estão na dianteira da formação desse novo
regime. A orientação desses dois grupos é mudar para manter as coisas
como estão. Ou seja, permitir determinadas mudanças, desde que não
atinjam as posições-chave ou as “cláusulas pétreas” do que representou
anteriormente o antigo regime. Em suma, um governo tutelado, no qual
as transformações políticas passam pelo crivo dessa nova composição
192
Fábio Metzger
de forças e em que forças liberais e democráticas podem até mesmo se
manifestar, desde que não rompam com a atual correlação de forças e o
novo status quo.
A política egípcia passa, assim, por uma questão interessante.
Até que ponto se pode armar que houve uma revolução popular? Esse
equilíbrio conservador é um avanço – um passo à frente – em relação à
autocracia militar que o país viveu, em estado de emergência por cerca
de três décadas. No entanto, ainda não pode ser comparável à separação
e ao equilíbrio de poderes que um regime democrático liberal vive, em
que os freios e os contrapesos entre os poderes já estão interiorizados
pela cultura da sociedade civil e da sociedade política.
Quando falamos de freios e contrapesos, nos referimos a forças
políticas que se aceitam, forjando o consenso e administrando o dissen-
so, sem colocar em crise todo do sistema de poder. Assim, um judiciário
não interfere interpretando as leis de modo a impedir, por exemplo,
que uma assembleia eleita se reúna. Essa assembleia, enquanto poder
legislativo, não busca aprovar leis minando a universalidade do Estado,
dando direitos maiores a uma corporação especíca ou a organizações
religiosas. E o executivo não é formado com a intervenção de uma força
militar, religiosa ou judicial ostensiva. Não é possível sequer observar
o princípio liberal da vontade da maioria, desde que respeitados os
direitos das minorias. Podemos, sim, notar a vontade da maioria ltrada
e obliterada pela força de duas minorias: uma receosa de perder seus
privilégios e seu poder remanescente e outra desejosa de conquistar um
espaço em que poderá se expandir mais adiante.
Existe um princípio de tutela de setores bem especícos que
prevalece sobre princípios de participação política efetiva. Essa tutela
pode permanecer e se institucionalizar, mas pode também ser rompida.
Nesse caso hipotético, mas não impensável, é possível observar ou um
recuo, ainda que parcial, à antiga ordem, ou um retrocesso relativo à
teocracia ou à instabilidade política estrutural, na qual uma ordem de-
mocrática pode vir a ser duramente construída.
193
Egito e Turquia no Século XXI
sobre As eleições e A sociedAde egípciAs
Em relação à revolução egípcia, é preciso compreender alguns
aspectos que fazem dela um fenômeno bastante peculiar. Por exem-
plo, a formação de modalidades híbridas de ação política, nas quais
conceitos políticos tradicionais e modernos se articulam. De acordo
com Sarah Bem Néssa, pesquisadora no Institut de Recherche pour le
développement (IRD),
[A] [...] classe política egípcia, inclusive a Irmandade Muçulmana,
foi surpreendida pelo aumento das contestações, não apenas no
meio operário como também nos bairros informais (espécies de fa-
velas). A população mais pobre é sensível ao discurso sobre “demo-
cracia”, “direitos humanos”, “cidadania” e “reformas políticas” que
invadiu o espaço público a partir de 2005 [...]. Uma característica
do movimento social egípcio é o crescimento das reivindicações que
usam referenciais identitários ou comunitários. Nos meios instruí-
dos, a linguagem do protesto fala em justiça e insiste na natureza
categorial e social das suas causas. (NÉFISSA, 2011, não paginado).
Segundo a autora, o Egito vive um:
[...] movimento que exige a renegociação das modalidades da uni-
dade nacional. [...] No momento em que vemos a “hibridação” dos
regimes políticos pelo mundo afora – uma teoria segundo a qual o
quadro da globalização está questionando as capacidades dos Es-
tados e tende a fazer desaparecer as distinções entre os regimes au-
toritários e os regimes democráticos –, os protestos [...] mostram
a hibridação paralela das formas da ação coletiva e dos modos de
expressão do político. [...] O Egito comprova que o endurecimento
autoritário coexiste com uma transformação fundamental das rela-
ções entre o Estado e a sociedade (NÉFISSA, 2011, não paginado).
Essa hibridização tem efeitos no processo político como um
todo. Movimentos democráticos e liberais correm riscos quando se
veem diante dessa realidade, em que o discurso nacional egípcio tem
uma articulação que, no seu todo, não se limita a um ou outro aspecto
da política. Existem reivindicações em relação ao reformismo social, e
a Irmandade Muçulmana parece bastante avançada, enquanto os mo-
vimentos democráticos e liberais não têm uma resposta imediata para
194
Fábio Metzger
oferecer à população como um todo. As questões de identidade e da
comunidade também são, nesse sentido, mais bem identicadas pelos
irmãos: a identidade da prática da religião islâmica e da comunidade dos
éis (umma) é mais ecazmente aproveitada, nesse sentido, por uma or-
ganização islâmica enraizada na sociedade egípcia. Ela tem mais possibi-
lidades de, pelas bases, construir um discurso que concilie reivindicações
sociais, identitárias e comunitárias de forma mais imediata que outros
movimentos políticos. Nesse sentido, podemos inclusive perceber a Ir-
mandade Muçulmana como uma organização baseada não em uma re-
volução política ou em uma contrarrevolução, mas sim em algo que está
entranhado entre esses dois movimentos políticos: o reformismo social.
Se por um lado as populações egípcias são, sem dúvida, sensíveis aos
discursos, que enfatizam “direitos humanos” e “cidadania”, demandas
bem características do movimento revolucionário, por outro não dá para
ignorar que o reformismo e o ativismo social engendrados por organi-
zações de cunho conservador encabeçadas pela Irmandade Muçulmana
são mais aceitas pelas populações mais humildes.
As eleições no Egito reetiram de forma bastante clara esse as-
pecto, que se manifesta no confronto entre as forças revolucionárias e
restauradoras. O que signicou a vitória de Morsi? Segundo a reporta-
gem “O Egito entre a revolução e a contrarrevolução”, de Alain Gresh,
de 3 de julho de 2012,
pela primeira vez na história do Egito republicano, um civil se tor-
nou presidente. Para entender essa reviravolta, basta passear pelas
ruas do Cairo e ouvir os egípcios, principalmente os jovens: qual-
quer que seja sua escolha, eles não querem mais que o poder seja
conscado, eles querem poder dizer o que pensam, querem que sua
opinião conte. É a geração da revolução, a que se mobiliza em cada
cidade e vilarejo. (GRESH, 2012a, não paginado).
Esse presidente civil – cesarista ou bonapartista –, que foi eleito
por uma organização religiosa e governa com políticos restauracionistas,
reete bem tal momento político. No entanto, por mais que a Irmanda-
de Muçulmana tenha captado esse potencial reformista antes dos movi-
mentos revolucionários, ela enfrentou uma grande desconança:
195
Egito e Turquia no Século XXI
O tempo dos ditadores passou. [...] No entanto, a pequena margem
da vitória de Morsi, apenas 1 milhão de votos, contra um candidato
representando a antiga ordem, contra a qual o povo se levantou no
início de 2011, diz muito sobre a rejeição que a Irmandade Muçul-
mana suscita em uma parte da população e sobre as contradições
da transição em andamento. [...] Os resultados do primeiro turno
das eleições presidenciais haviam criado um choque no seio das for-
ças revolucionárias. Emparelhados, mas obtendo cada um apenas
um quarto dos votos, Morsi, o candidato da Irmandade, chegou
ligeiramente na frente, seguido do general Shak, testa de ferro de
Mubarak, Hamdin Sabbahi, candidato pouco conhecido de ten-
dência nasserista, reuniu mais de 20% dos votos – [...] Sabbahi e seu
partido se aliaram à Irmandade para as eleições legislativas. O quar-
to colocado, Abul Fotouh, obteve 17,5% dos votos
[4]
. Juntos, os
candidatos próximos da revolução, Sabbahi, Abul Fotouh e alguns
outros reuniram quase 40% da preferência, mas se encontravam eli-
minados do segundo turno. (GRESH, 2012a, não paginado).
O general Ahmed Shak e o Amro Musa representaram o an-
tigo regime, ou seja, a restauração, ainda que parcial, o Mubarakismo
sem Mubarak; Shak, os militares; Musa, os civis. Somados, eles tiveram
quase 35% dos votos, o que não pode ser desprezado em uma eleição.
Morsi, o candidato da Irmandade, teve pouco mais de um quarto dos
votos. Sabbahi, o revolucionário secular, teve cerca de um quinto. E
Fotouh, o dissidente da Irmandade que aderiu à revolução, teve pouco
mais de um sexto da votação. Ou seja, restauracionistas, dentre civis e
militares, conseguiram ser representados em uma das parcelas das elei-
ções presidenciais egípcias. Reformistas islâmicos tiveram também uma
clara indicação de representação, seja pela adesão à sua principal organi-
zação, seja pelos votos dados a um dissidente. Se juntarmos os votos de
Fotouh e Morsi no primeiro turno, podemos observar algo em torno de
42% dos votos para candidatos islâmicos.
Assim, 35% da população optou pela restauração; 42%, pelo
reformismo social-religioso; e 40%, pela revolução. Nenhuma das partes
obteve uma maioria preferencial, ou, uma hegemonia moral e intelec-
tual no conjunto da sociedade civil e política. Todos os grupos políticos
Para sermos mais exatos: no primeiro turno nas eleições presidenciais do Egito, Morsi obteve 24,8% dos
votos; Ahmed Chak, 23,6%; Hamdin Sabbahi, 20,7%; Abul Futuh, 17,5%; e Amro Musa, 11,1%.
196
Fábio Metzger
são bastante rejeitados. Nenhum setor conseguiu obter mais de 50% das
preferências eleitorais. A divisão dos votos entre os candidatos ligados à
revolução deu certo fôlego para que os restauracionistas pudessem ainda
emplacar o seu candidato principal, ligado aos setores militares – o que
reforça ainda mais a impressão de que a formação de um governo misto
tem grandes chances de se concretizar no Egito, pelo menos na etapa
inicial do processo revolucionário.
Assim, quando observamos nas eleições presidenciais um com-
portamento do eleitor egípcio que não permitiria exprimir um amplo
consenso sobre a revolução, notamos também que posições contrarrevo-
lucionárias passaram a ganhar um espaço relativo.
Em meados de junho (de 2011), o Conselho Superior das Forças
Armadas proclamava que aplicaria sua decisão, tomada no dia se-
guinte de sua subida ao poder, de proibir as greves – que de fato
vêm sendo duramente reprimidas. Contudo, esses movimentos de
trabalhadores são limitados e não explicam de nenhuma forma os
atuais problemas econômicos agudos do país, gerados não somente
pela queda do turismo e pelo retorno de 500 mil trabalhadores à Lí-
bia, mas, sobretudo pelas políticas ultraliberais adotadas há décadas.
Esse é o “retorno à ordem” que desejam os militares, uma parcela
dos islamitas e das forças “liberais”. [...] “Duas forças se enfrentam:
o Exército, que fala em nome da revolução para poder colocá-la no
cabresto e na outra ponta, a própria revolução”, resume o escritor
Khaled Khamissi, autor de um romance de sucesso, Táxi. (GRESH,
2011, não paginado).
quAl revolução?
Obviamente, nesse último depoimento, podemos observar um
discurso que contrapõe a revolução ao conceito de “ordem” – e, nesse
caso, o contexto para falarmos de uma contrarrevolução por parte do
exército não pode ser ignorado. Por mais que as forças armadas falem
em nome da “revolução”, certamente ela está agindo em direção a uma
restauração, ainda que parcial. Mas, quanto à irmandade, o que dizer?
Segundo Gresh,
a confraria paga por seus erros e suas reviravoltas entre a revolução e
o exército. Fortemente reprimida no regime de Mubarak, começou
197
Egito e Turquia no Século XXI
a participar das manifestações somente em 28 de janeiro de 2011,
somente três dias depois do seu início, embora os militantes mais
jovens estivessem em movimento desde as primeiras horas. Eles tive-
ram um papel ativo durante o braço de ferro que opôs a rua contra
Mubarak e contribuíram amplamente, por sua organização, para a
resistência às ofensivas da polícia. [...] Depois da queda do “Faraó”,
essa organização fundamentalmente conservadora em suas orienta-
ções procurou um terreno de entendimento com o CSFA. Ela se
dissociou dos jovens manifestantes, principalmente em novembro
de 2011, quando os enfrentamentos com o exército do Cairo pro-
vocaram cerca de quarenta mortes. A Irmandade, desejosa que as
eleições legislativas fossem mantidas a qualquer custo, denuncia-
ram “ações irresponsáveis”, algo que muitos jovens não perdoaram.
(GRESH, 2012a, não paginado).
Certamente existem algumas diferenças que não podem ser
ignoradas na relação das forças armadas com o movimento político
revolucionário que derrubou Mubarak. Se nas manifestações na Praça
Tahrir em janeiro de 2011 as forças policiais seguiram a orientação
do regime, os militares naquele momento não o zeram, e, nesse
sentido, não podemos esquecer que a sua postura foi praticamente
decisiva para a queda de Mubarak. Isso não quer dizer que, quando
falamos de uma revolução popular, esses militares tenham liderado o
processo revolucionário – que, aliás, foi comandado por abrangentes e
diversicados setores da sociedade civil. Certamente podemos observar
as forças armadas como parte de um movimento mais amplo de uma
revolução passiva, que foi feita pelo alto e em cujo desfecho o acordo
entre as elites prevaleceu sobre a vontade dos setores populares. Do
ponto de vista de uma revolução popular, as forças armadas egípcias
foram um ator eminentemente contrarrevolucionário e restauracionista.
No entanto, ao analisar o processo político de uma perspectiva mais
global, certamente podemos situá-las dentro de uma revolução passiva
ou revolução pelo alto, no sentido gramsciano do termo.
Da mesma forma, a Irmandade Muçulmana não foi a principal
organização de vanguarda que liderou esse momento tão especial para
a história do Egito, apesar de sua inegável inuência sobre as bases da
sociedade egípcia. Aliás, foi essa ligação com a sociedade que permitiu
198
Fábio Metzger
às lideranças dos Irmãos Muçulmanos negociarem e acordarem com as
forças armadas uma transformação pelo alto.
Pela base, as manifestações tiveram diversas origens. Ao longo
do ano de 2010, movimentos de trabalhadores tiveram um grande papel
pré-revolucionário. Conforme a matéria “A revolução após a revolução”,
de Raphaëlle Bail.
“[...] não se passou um dia sem que houvesse pelo menos três pro-
testos no país”, destaca [...] o advogado Khaled Ali, diretor do
Centro Egípcio de Direitos Econômicos e Sociais. [...] “não foram
operários que lançaram o movimento de 25 de janeiro, porque eles
não dispõem de uma estrutura que lhes permita se organizar”. Mas
uma das etapas importantes [...] foi vencida quando eles começa-
ram a protestar e a dar uma coloração econômica e social à revolu-
ção, para além das exigências políticas”. [...] Esta análise é pouco
compartilhada pelos jovens de classe média conectados ao Facebook
e considerados pela imprensa os heróis da revolução. Para Ahmed
Maher, 30 anos, engenheiro e coordenador-geral do Movimento 6
de Abril, “os trabalhadores não tiveram papel algum na revolução.
Eles estavam afastados
[5]
. Certamente, esses jovens da classe média
pertencentes ao movimento da Praça Tahrir que derrubou Hosni
Mubarak estavam na vanguarda no mês de janeiro de 2011. No
entanto, o seu papel foi, sem dúvida, decisivo. “[...] Embora a queda
de Mubarak pudesse levar a crer em um reuxo dos movimentos
sociais, com a pressão para que o país retorne à vida normal, limpe
as ruas e o sistema, o fato é que numerosas greves e manifestações
setoriais foram desencadeadas alguns dias após o m da revolução.
Cada fábrica, cada ministério, cada empresa pôde então apresentar
suas reivindicações. Nos setores de petróleo, gás, aço, nos correios
e nas ambulâncias, greves e protestos multiplicaram-se, frequente-
mente para exigir a queda do presidente da empresa ou da fábrica ou
ainda de algum ministro”. (BAIL, 2011, não paginado).
Nesse ambiente, é inegável que existiu um processo revolu-
cionário pelas bases, a partir “de baixo”. Ao mesmo tempo, podemos
observar “pelo alto” uma organização contrarrevolucionária, que ten-
Segundo a reportagem, “É verdade que o movimento deve seu nome a um chamado à greve lançado no dia
6 de abril de 2008 pelos operários da maior fábrica do país, a Misr Fios e Tecidos, situada em Mahallah Al-
Kubra, no centro do Delta do Nilo. Na época, jovens cairotas juntaram-se aos operários e decidiram criar no
Facebook o Movimento de Jovens 6 de Abril. Mas rapidamente o movimento se afastou das reivindicações
sociais para se concentrar na questão democrática.” (BAIL, 2011).
199
Egito e Turquia no Século XXI
tou fazer com que essa revolução desembocasse num processo de res-
tauração. E, entre esses dois universos, havia uma organização religiosa
que atuou por décadas no reformismo social e que se tornou uma es-
pécie de força mediadora capaz de transformar os rumos desses proces-
sos. Essa organização sozinha – a Irmandade Muçulmana – não seria
capaz de articular e liderar esses movimentos. No entanto, a sua posição
privilegiada dentro do território egípcio permitiu que fosse ela (e não
os movimentos de trabalhadores ou as redes sociais e virtuais de uma
classe média ocidentalizada) que tivesse a possibilidade de se apresentar
como interlocutora da transição política diante dos civis e dos militares
remanescentes do antigo regime.
Podemos observar, de maneira mais ampla, que as duas organi-
zações nacionais que possuem maior penetração no Egito são a Irman-
dade Muçulmana e as forças armadas. Os Irmãos Muçulmanos, à frente
de movimentos assistenciais e sociais, formando uma capilaridade que se
estende por todo o país, e as forças armadas, por meio de sua ostensiva
presença ao longo de todo o território egípcio. Nesse sentido, movimen-
tos ligados aos trabalhadores e às classes médias talvez não tivessem o
nível de mobilização e presença necessária para rmar e consolidar sua
presença. Sem dúvida, esses últimos foram capazes de ocupar o Cairo e
Alexandria. Seus aparatos de comunicação puderam manter uma ampla
interlocução com os principais centros urbanos do país, o que foi deci-
sivo para a queda do antigo regime; o mesmo pode ser dito das redes
internacionais de difusão da informação, que deram mais legitimidade
externa às suas pautas. Embora necessário não se mostrou suciente para
que fossem esses os principais novos líderes do Estado egípcio.
Como observa Gresh (2011, não paginado),
Sem coordenação unicada, essas mil e uma rebeliões reetem a
amplitude dos problemas acumulados e ilustram os temas debatidos
pelo Conselho Supremo das Forças Armadas, pelo governo, pelos
partidos políticos e pelos meios de comunicação: a organização das
eleições vindouras; a nova lei sobre os lugares de culto; o futuro
dos meios de comunicação estatais; o processo jurídico contra os
responsáveis pelo antigo regime; o reaquecimento da economia; a
reorganização da polícia e das forças de segurança do Estado; a dis-
solução e eleição de centenas de conselhos municipais; o papel do
200
Fábio Metzger
Exército num Egito democrático; o estatuto das universidades; a
adoção de um salário mínimo; a substituição (ou não) de todos os
titulares de cargo do alto escalão; as leis sobre a organização sindical
etc. Um inventário que deveria dissuadir qualquer ser racional de
dirigir o país. Roma não foi feita em um dia, as revoluções tampou-
co. A amplitude das mudanças necessárias pressupõe ainda muitas
lutas – que podem durar anos e para as quais os sindicatos e a es-
querda política, fragmentados e enfraquecidos pela longa repressão,
devem se organizar. (GRESH, 2011, não paginado).
Pautas democráticas e populares puderam ser escutadas nos
principais centros urbanos e no ativismo social internacional em rela-
ção a esses setores. No entanto, essas pautas cam secundárias quando
se observa o poder de religiosos pertencentes a uma organização (a ir-
mandade) de origens não democráticas e de lideranças integradas a um
exército que, se foi ador de um importante acontecimento político (o
m da monarquia e o nascimento da república), certamente não foi em
suas leiras que nasceram movimentos em prol da democracia no Egito.
5.7 A interpretAção dos números dAs eleições do egito
Apesar de passar por alguns contratempos e interferências,
as eleições egípcias têm sido bastante importantes para a manifestação
do eleitorado. Seja elegendo seus representantes e governantes, seja se
manifestando com relação à sua nova Constituição, cou claro o dese-
jo de mudanças em relação ao que o antigo regime estabelecia. Se isso
não foi suciente para retirar os membros remanescentes do governo de
Mubarak, ao menos possibilitou algumas mudanças, fundamentais para
a transformação política do país. Se não levou o país a uma democracia
liberal, ao menos permitiu certo nível de abertura política, imperfeita,
mas necessária. Nesses termos, podemos notar como as eleições para os
poderes legislativo e executivo e para a Constituição inuenciaram a
modicação na forma de organização social do Egito, antes autocrática
e, no atual momento, uma composição de governo misto.
201
Egito e Turquia no Século XXI
As eleições pArA o poder legislAtivo
A Irmandade Muçulmana obteve 37,5% do total dos votos
(10,1 milhões), o correspondente a uma maioria relativa de 46,2% das
cadeiras na Assembleia Popular (235, em um total de 508), se tornando
um “centro” político entre correntes liberais e democráticas à esquerda,
de um lado, e salastas e restauracionistas, de outro.
Os liberais obtiveram 51 assentos, sendo que o principal par-
tido, o Novo Wafd, obteve 41 cadeiras e 2,5 milhões de votos. As forças
democráticas à esquerda conquistaram 45 assentos, sendo que a princi-
pal coligação, o Bloco Egípcio, de centro-esquerda, teve 35 cadeiras e
2,4 milhões de votos. O partido islâmico moderado Al-Wasat conseguiu
990 mil votos (3,7% do total), obtendo 10 cadeiras (1,9% do total dos
assentos). Juntas, todas as forças democráticas e liberais conseguiram 7,4
milhões de votos (27,6% da votação válida) e somaram 106 cadeiras, ou
20,8% do total.
Os salastas, à direita, tiveram 27,8% do total dos votos (7,5
milhões) e 123 cadeiras, ou 24,2% dos assentos da Assembleia Popular.
Os restauracionistas, com os partidos que se formaram após a dissolu-
ção do PND, conseguiram um total de 6,4% dos votos (1,7 milhões) e
obtiveram 18 cadeiras por eleição e mais 10 por indicação, em um total
de 28 (o que totaliza 5,5% das cadeiras da assembleia). Juntas, as for-
ças à direita (ou seja, os restauracionistas e os salastas) totalizaram 9,2
milhões de votos (35,5% da votação válida) e 151 assentos (29,7% das
cadeiras da assembleia).
Assim, podemos falar de um bloco à esquerda com pouco mais
de 20% dos assentos na assembleia, outro à direita, com quase 30%, e
a irmandade, que, sozinha, obteve pouco mais de 46%. Além de um
conjunto de deputados independentes, que conseguiram 21 assentos da
assembleia
(EGYPTIAN..., 2013a).
Se considerarmos o desempenho de partidos e coligações is-
lâmicas, incluindo desde as mais moderadas até as radicais, há que se
considerar que obtiveram votação e representação expressivas. O partido
Al-Wasat, os irmãos e os salastas somaram juntos 72,5% das cadeiras
202
Fábio Metzger
(368, de um total de 508) e 69% (18,5 milhões) dos votos válidos.
Esse perl eleitoral, com islâmicos e islamistas ocupando uma posição
fundamental, chamou a atenção daquelas instituições-chave do Egito
que ainda representam os resquícios do antigo restauracionismo (cujos
partidos obtiveram votação e representação pouco expressivas): a As-
sembleia Popular foi proibida de se reunir após um parecer do Tribunal
Constitucional, representado por uma quantidade signicativa de juízes
nomeados nos tempos de Mubarak. As eleições legislativas tiveram uma
participação 27 milhões de eleitores, de um total de 51 milhões de ins-
critos (participação de 52,9%) (IDEM, 2013a).
A Irmandade Muçulmana obteve outra maioria relativa no Se-
nado (105 cadeiras), em uma eleição em que foram eleitos 180 parla-
mentares outros 90 foram indicados pelos membros do antigo regime.
Portanto, a irmandade elegeu nessa casa 38,88% dos senadores, tendo
de trabalhar com 33,33% de parlamentares restauracionistas. Juntos,
os irmãos e os restauracionistas somam 72,22% do total das cadeiras.
Nas 27,78% restantes (75 cadeiras), temos 45 senadores salastas, o
que representa 16,67%, e 30 liberais, democratas e independentes, o
que representa 11,11% do total. A participação nessas eleições foi bem
reduzida. Apenas 6,4 milhões dos 51 milhões de inscritos votaram; o
que representa 12,5% do total. Para efeito de comparação, as eleições
para a Assembleia Popular tiveram um índice de 52,9% de participação.
O principal partido da coalizão da esquerda, Bloco Egípcio (Egípcios
Livres), anunciou o boicote às eleições para a Câmara Alta. Podemos
vericar o grande impacto que essa campanha gerou. Das eleições para
a Assembleia Popular, participaram 27 milhões de eleitores; para a Câ-
mara Alta, apenas 6,4 milhões: uma diferença de 20,6 milhões de parti-
cipantes (EGYPTIAN..., 2013b).
As eleições pArA A presidênciA dA repúblicA
As eleições presidenciais tiveram cinco candidatos importantes
no primeiro turno: um civil vindo do antigo regime (que obteve 11%
dos votos), um líder da esquerda (que obteve 20,7%), um líder islâ-
203
Egito e Turquia no Século XXI
mico moderado vindo dos movimentos liberais e democráticos (com
17,5%) – se somarmos as votações desses dois últimos candidatos, tere-
mos 38,2% dos votos válidos em favor de movimentos democráticos e
liberais, ou seja, sem um candidato unicado, não conseguiram eleger
o seu representante para o segundo turno –, o candidato dos Irmãos
Muçulmanos, Morsi, e um militar restauracionista Shak, cada um com
23,6% da votação total. No segundo turno, Morsi venceu Shak por
estreita margem: 51,73% a 48,27% (ou 13,2 milhões de votos contra
12,3 milhões) (ELEIÇÃO..., 2013).
A AssembleiA constituinte e o reFerendo pós-constitu-
cionAl
Com base na nomeação feita pelos representantes da Assem-
bleia Popular, foi instaurada uma Assembleia Constituinte com uma
maioria de irmãos e salastas, que aprovaram uma Constituição com
uma presença mais expressiva da religião (onde a sharia ganha impor-
tância), em detrimento da lei civil. Essa Constituição foi levada a um re-
ferendo, do qual apenas 32% dos eleitores inscritos participaram e cujo
texto nal foi aprovado por 64% dos votos válidos. Na prática, apenas
20,5% dos eleitores manifestaram concordância com a Constituição.
Houve uma campanha de boicote ao referendo feita pelos membros dos
movimentos democráticos e liberais, representados pela Frente de Salva-
ção Nacional, que inclui diversos partidos e coalizões que participaram
das eleições presidenciais. Levando em conta que as eleições presiden-
ciais tiveram uma participação que girou entre 46% e 48% (entre 23,5
milhões de eleitores no primeiro turno e 24,5 milhões de eleitores no
segundo) e o referendo, de 32% (17 milhões), é possível armar que esse
boicote teve um grande impacto, aumentando entre 12% e 15% (de
6,5 a 7,5 milhões) o número de abstenções e/ou anulações. Do outro
lado, se somarmos essas abstenções/anulações (utilizaremos os números
do primeiro turno) ao número de votantes que responderam “não” ao
referendo (6 milhões de votos), podemos falar de algo em torno de 12,5
milhões de pessoas que estavam participando regularmente das eleições
e que não manifestaram concordância com a Constituição (de um to-
204
Fábio Metzger
tal de 23,5 milhões de votos válidos). Isso representaria, em tese, 53%
de votos para o “não”. Como apenas os votos válidos contam para o
referendo (ou seja, nenhum desses 6,5 milhões de votantes teve sua opi-
nião computada), a Constituição foi aprovada, com grande contestação
por parte da sociedade – há que se lembrar de que o confronto entre o
Tribunal Constitucional e o legislativo não foi levado adiante nesse caso,
pois a Assembleia Constituinte encerrou as suas atividades antes que o
judiciário pudesse julgar a legalidade da reunião dessa casa parlamentar.
Curiosamente, a Frente de Salvação Nacional, que soma diver-
sos partidos democráticos e liberais, teve menos sucesso no boicote ao
referendo do que os Egípcios Livres nas eleições da Câmara Alta. Há que
se notar que, enquanto na Frente de Salvação Nacional ainda não tinha
uma posição unicada, e assim a estratégia de atuação cou bastante
diluída, os Egípcios Livres, atuando isoladamente nas eleições para a
Câmara Alta, tinham uma posição fechada quanto ao boicote.
5.8 presidente morsi: AutonomiA ou subordinAção?
Ao assumir, sucedendo a junta militar que comandou a transi-
ção desde a queda de Mubarak, Morsi tomou medidas para compor um
gabinete, nomeando um primeiro-ministro independente. O gabinete
nomeou apenas quatro Irmãos Muçulmanos como ministros (de um to-
tal de 35). Deixou para as forças armadas uma grande autonomia, com
três ministérios, podendo gerir o seu próprio orçamento, e o controle de
ministérios estratégicos, como o das Relações Exteriores e o da Defesa.
Ainda manteve um ministro ligado às forças de segurança no interior.
Os demais 27 ministérios foram concedidos a ministros independentes.
Destituiu antigos comandantes ligados ao mubarakismo e nomeou, em
seus respectivos lugares, ociais alinhados com a antiga política pró-O-
cidente, mas de uma nova geração, menos comprometida com o antigo
regime. As forças armadas passaram a ter uma nova posição: não mais
líder de um processo político, mas sim um observador participativo,
que periodicamente pode emitir as suas opiniões, lembrando aos egíp-
cios da sua força e da sua existência – é preciso lembrar que as forças
205
Egito e Turquia no Século XXI
armadas possuem uma participação fundamental na economia do país,
controlando indústrias, comércios e importantes corporações e também
lembrar que a ajuda que o Egito recebe dos EUA sustenta o setor militar.
Com a autonomia no orçamento mantida e o auxílio norte-americano,
as forças armadas mantêm-se muito presentes e possuem ainda grande
margem de manobra nos assuntos políticos egípcios.
Por outro lado, é preciso distinguir as forças armadas das forças
de segurança. Ambas podem ter interesses em comum, mas cada uma
tem atribuições especícas. As forças de segurança foram, em sua maior
parte, erguidas durante os anos de Mubarak e compõem, portanto, o
sustentáculo de defesa dos privilégios do antigo regime. São cerca de 1,4
milhão de membros, compondo algo em torno de 2% da população (e
de 2,7% do que seriam os eleitores inscritos regularmente nas últimas
eleições, cerca de 51 milhões de pessoas). As forças de segurança do
Egito são um elemento de poder que não pode ser ignorado: possuem
poder de coerção e coação dentro da sociedade egípcia, mesmo após a
queda de Mubarak, e defendem o que restou desse período anterior.
No entanto, as forças de seguranças não são tanto defensoras do Estado
quanto representantes do que restou do velho regime. As forças arma-
das, por sua vez, são históricas representantes da República Árabe do
Egito, tanto sob Nasser, Sadat e Mubarak quanto atualmente.
Anteriormente, esse Estado manteve lealdade à monarquia, até
que depuseram o rei, em 1952. Tratam-se, dessa forma, de defensores
não do regime, mas sim do Estado egípcio, na monarquia, no nasseris-
mo, no mubarakismo ou no momento atual. Não se podem descartar
atritos entre essas duas forças quando os interesses de Estado e os do
antigo regime entram em choque. Quando acontece uma situação de
desordem (manipulada ou não), as forças armadas se colocam de pron-
tidão para interferir no processo político. É nesse sentido que podemos
observar os momentos em que elas decretaram estado de emergência e
quando foi nomeado a junta militar (o SCAF), que tutelou todo o pro-
cesso de transição do país. Conitos entre membros do novo governo
(incluindo os neótos Irmãos Muçulmanos), do antigo regime (as forças
de segurança e o Tribunal Constitucional) e da sociedade civil (especial-
206
Fábio Metzger
mente liberais e democratas) podem servir de justicativa para que as
forças armadas se estabeleçam como um “poder moderador”.
Dessa forma, observamos um conito entre membros da so-
ciedade política – capitaneado, entre outros, pela Irmandade Muçul-
mana no governo, pelos restauracionistas no regime e pelas forças ar-
madas no Estado – e da sociedade civil (predominantemente seculares
e democratas). Dentro da sociedade política, temos um conito entre
restauracionistas, localizados nas forças de segurança e no judiciário, e
Irmãos Muçulmanos, concentrados cada vez mais dentro do governo.
Alternam-se momentos de conito e de cooperação entre o governo e
as forças armadas, nos quais são feitas concessões de parte a parte para
que todos possam acomodar-se: as forças armadas, com a sua autonomia
de ação e nanciamento para as políticas de Estado internas e externas,
e o governo, para questões administrativas internas, nas quais cada vez
mais a organização Irmandade Muçulmana tem ganhado terreno. Há
também atritos dentro da sociedade política, entre o Estado e o que resta
do regime. Nesse sentido, observamos as ações das forças de segurança
e as reações das forças armadas, também buscando uma acomodação de
forças, desde que as últimas mantenham a palavra nal. E existe também
um conito na sociedade civil, que não pode ser ignorado, entre forças
em favor da democracia ou, no mínimo, de uma liberalização do regime
de um lado, e islâmicos moderados e radicais de outro. Esse conito se
fez sentir principalmente quando aconteceu o referendo pela aprovação
da Constituição do país. De um lado, leigos defendem a lei civil, e de
outro, islâmicos defendem uma presença maior da religião na lei.
Assim, é possível notar que não existe ainda um equilíbrio está-
vel entre as sociedades civil e política no Egito. Isso tem reexo na forma
como o processo de democratização egípcio tem sido levado adiante: de
maneira acidentada, com avanços e retrocessos constantes. Ainda exis-
tem fortes atritos dentro da própria sociedade civil egípcia. Um reexo
disso é, por exemplo, a falta de unidade dos grupos políticos para apro-
var ou não um referendo – anal, que aprovação seria essa, em que a
maioria dos votantes pela aprovação é, na verdade, apenas cerca de um
quinto do total de eleitores inscritos? Se existe cerca de 20% a 21% que
207
Egito e Turquia no Século XXI
dizem “sim”, 11% a 12% que dizem “não” e 68% que não se manifesta,
qual é a real posição da sociedade civil egípcia? Há um consenso entre
os setores? Aparentemente não. A aprovação de uma Constituição é um
marco regulatório das relações da sociedade civil com a sociedade po-
lítica. Se dentro dessa sociedade civil não há consensos fundamentais,
ela acaba entrando em importantes disputas políticas, dividida e fracio-
nada, no momento em que se depara com aqueles que se mantêm na
sociedade política. Esses, por sua vez, estão em conito, mas buscam um
consenso hegemônico em torno de questões vitais. Governo, regime e
Estado brigam, lutam, mas anal, existem aqueles que possuem o poder
de fato para dar a palavra nal (as forças armadas), os que se encarregam
da administração do Estado (o governo) e os que servem de ponte nas
relações de comando entre Estado e governo (as forças policiais). Se essas
três instâncias brigam e não chegam a um acordo, a perspectiva é de uma
guerra civil e desmonte do Estado. Mas se, em meio aos conitos, en-
contram formas de acordo, associação e acomodação, por mais diferen-
ças que possuam entre si, estão, na prática, com o controle do processo
da sociedade política. Se tem uma sociedade política com um mínimo
de acomodação e uma sociedade civil rachada, o que podemos diagnos-
ticar é a preponderância da primeira sobre a segunda. Uma hegemonia
da sociedade política egípcia, um acordo de acomodações de forças ar-
madas, de segurança e governo, sobre todo o país. Nessa hora, a socie-
dade civil dividida tem pouco poder de ação, e ela só pode se consolidar
condicionada à hegemonia da sociedade política já estabelecida. Esse é
o grande entrave do movimento que foi capaz de derrubar a autocra-
cia Mubarakista, mas que não está conseguindo liderar a transição para
uma democracia pluralista: a existência de uma sociedade política com
hegemonia conservadora, que retarda ao máximo o processo de demo-
cratização do país e que tem força suciente para fazer o Egito retroceder
para novas formas de autoritarismo ou então para a manutenção de um
equilíbrio instável entre forças conservadoras, com as progressistas em
clara desvantagem ao entrar em debate com as demais.
A possibilidade de criar uma ética pluralista na política egíp-
cia – que viabilizaria de forma mais rápida uma democratização – é
menor do que a de manter a posição conservadora de forças, algumas
208
Fábio Metzger
emergentes, outras remanescentes na composição do poder de fato. As
forças que se mantêm hegemônicas na sociedade política egípcia e que
conseguem sobrepor à divisão da sociedade civil após a queda de Muba-
rak, não têm concepções pluralistas. Ao contrário, cada uma defende a
hegemonia, sobre as demais, de seu modo de pensar. Assim, os islâmicos
da Irmandade Muçulmana e os salastas do partido Al-Nour defendem
a superioridade do islã sobre a política e a sociedade – os irmãos de for-
ma mais moderada e pragmática, os salastas de maneira mais radical
e ideológica. Os restauracionistas, concentrados entre o judiciário e a
associação de juízes, de um lado, e as forças de segurança, de outro,
também defendem a superioridade, não de uma religião, mas sim de um
grande sistema de privilégios e favorecimentos que sustentou por cerca
de três décadas um regime político autoritário – é a defesa da supremacia
das corporações internas compostas por civis e militares sobre o restante
do país. Finalmente, os membros das forças armadas defendem a supe-
rioridade do Estado e de seus interesses sobre os interesses da população
e das demais corporações. Se esses grupos lutarem francamente entre si,
apenas uma concepção política tenderá a manter-se, sendo esmagadas as
demais. Então não se pode descartar um recuo a um regime islamista, a
um restauracionismo dos antigos membros do regime de Mubarak ou a
um totalitarismo militar semelhante ao que se conheceu, por exemplo,
em regimes como os de Pinochet, no Chile, ou de Saddam Hussein, no
Iraque, para citar um contexto mais próximo dessa realidade.
Mas esses são cenários extremos. O mais provável é que se
mantenham forças antidemocráticas e que haja um equilíbrio de forças
conservadoras. Talvez essa seja a única chance real de os movimentos de-
mocráticos, populares e liberais egípcios ascenderem ao poder. Mas essa
chance só poderá se concretizar se os grupos da sociedade civil egípcia
conseguirem se articular em um grupo hegemônico. Após as eleições
parlamentares e presidenciais do Egito, esses grupos procuraram se arti-
cular e formar uma frente ampla. Assim, democratas e liberais dos seto-
res socialista, nasserista, islâmico e wafdista se articularam na Frente de
Salvação Nacional, sob a liderança de Mohammed El-Baradei, ex-chefe
da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) da ONU e vence-
dor do Prêmio Nobel da Paz. Essa frente ainda não foi capaz de manter
209
Egito e Turquia no Século XXI
uma posição unicada, por exemplo, na questão do referendo constitu-
cional. A defesa ao boicote eleitoral e à participação com o “não” dividiu
as forças da frente e, assim, o voto pelo “sim” conseguiu sair vencedor.
As forças originais dessa frente ainda não estavam articuladas
em forma de organização ampla quando Mubarak caiu, mas eram, sem
dúvida, democratas e liberais que se articularam na queda do muba-
rakismo. Eram líderes sindicalistas, socialistas e nasseristas compondo
uma força à esquerda; representantes de uma fração importante da classe
média e média alta do país ocidentalizada e cosmopolita – como o então
executivo da Google do Egito, Wael Ghonin – ou mesmo remanescen-
tes do partido Novo Wafd que formaram uma frente de centro; líderes
islâmicos comprometidos com o processo de democratização e libera-
lização do país, como o partido Wasat e o candidato Abu Al-Fotouh.
Nas eleições presidenciais, foram organizadas duas frentes políticas, uma
com a liderança de esquerdistas e nasseristas, obtendo 20,7% dos votos
válidos do Primeiro Turno, e outra com a liderança do Wasat e de Aboul
Fotouh, que obteve outra parcela de 17,5% dos votos.
Nas eleições parlamentares, boa parte das forças à esquerda ou
não participou, ou boicotou o processo, e a maioria dos parlamentares
eleitos dentre os democratas e liberais eram membros do partido Novo
Wafd (tiveram um desempenho eleitoral inferior mesmo ao dos salas-
tas do partido Al-Nour).
Apenas a junção dessas forças, sob o nome de Frente de Sal-
vação Nacional (FSN), poderia oferecer um elemento político capaz de
contrapor as forças democráticas e liberais às conservadoras, tendo, entre
outras, lideranças com reconhecimento internacional, como El-Baradei,
representantes da juventude ocidentalizada egípcia, e Wael Ghonin, e lí-
deres como o islâmico moderado Aboul Foutouh e o nasserista Al-Han-
deen Sabahi. No entanto, mesmo sob o “guarda-chuva” de uma mesma
frente, ainda não foram capazes de estabelecer uma agenda mínima capaz
de fazer frente aos conservadores. O caso do referendo constitucional foi
uma constatação disso. Não existia uma posição denitiva comum acerca
do modo como enfrentar a proposta de nova Constituição aprovada pela
Assembleia Constituinte com maioria de islâmicos da irmandade.
210
Fábio Metzger
Esse não é um caso inédito em que forças progressistas da so-
ciedade civil entram em desvantagem em relação a conservadores re-
manescentes da sociedade política. Em diversos países isso pôde ser
observado. O dividido grupo dos defensores de valores democráticos e
liberais, apesar de compor um setor signicante da sociedade civil, está
à margem de pelo menos três instâncias que possuem alguma forma de
monopólio legítimo da violência; as forças armadas dão a palavra nal e
possuem o maior contingente de pessoas e equipamentos em relação ao
domínio territorial do país; as forças de segurança atuam policiando a
população e têm a seu favor o poder físico de suas corporações (nume-
rosas e sucientemente armadas) e uma lei anterior remanescente que
utilizam a seu favor; e o governo, que está concentrado em torno de um
gabinete em que cam claras as participações de três poderes autônomos
e interdependentes e mantém em funcionamento a administração esta-
tal. Esses três poderes são aqueles que aprovam novas leis (legislativo), as
colocam em funcionamento (executivo) e as interpretam (o judiciário).
São eleitos direta ou indiretamente pelo princípio seja da maioria dos
votantes (no executivo), seja da proporcionalidade (no legislativo), seja
da nomeação de especialistas intérpretes da lei (no judiciário) – esses úl-
timos indicados pelos representantes executivos e aprovados pelos repre-
sentantes legislativos. Apenas uma parte dessa composição – o governo –
tem a participação da sociedade civil. A sua maior fatia é construída pela
sociedade política remanescente, que está em uma posição privilegiada,
pois detém o monopólio da violência, por intermédio seja das forças
armadas, seja das forças policiais, ou então o monopólio da lei, por meio
de um governo legitimado pelo funcionamento pleno dos poderes exe-
cutivo, legislativo e judiciário. Governo esse que, em última instância,
só pode ser garantido com a aprovação das forças armadas e policiais.
o hibridismo nAs sociedAdes civil e políticA do egito
Nesse ponto, podemos fazer algumas reexões iniciais acerca
do Egito contemporâneo e do modo como se articulam as formas de se
fazer política no país. Estamos falando de uma sociedade política que,
construída ao longo de séculos, para não dizer milênios, preserva tradi-
211
Egito e Turquia no Século XXI
ções institucionais de origens diversas. A sociedade política egípcia se
ergueu em torno de um Estado que, desde sempre, convive com o hibri-
dismo. Trata-se de uma formação que aprendeu a construir e incorporar
civilizações e, dessa forma, não consegue agir como se fosse um bloco
isolado: arabismo, islã, republicanismo, tradições coptas, monarquismo
e militarismo são algumas das diversas facetas desse caleidoscópio. Elas
apontam para uma sociedade política extremamente complexa, em que
uma só fonte de poder não consegue atuar sozinha e isoladamente.
Por outro lado, a sociedade civil egípcia passa por esse mesmo
processo, que se manifesta, entretanto, de formas diferentes. Essa socie-
dade civil tem de lidar com o elemento da religião islâmica, importante
o bastante para criar organizações como a irmandade e inuente em
amplos setores sociais, mas é obrigada a conviver, ao mesmo tempo,
com a forte presença do exército, que se estende por todo o território
nacional. A queda de Mubarak não signicou o m do aparato militar
existente no país, mas, ao contrário, observa-se uma proximidade desse
aparato em relação a instâncias da sociedade civil e uma estrutura bas-
tante difundida, capaz de se manter sólida, com todo o questionamento
que herdou do antigo regime. Além disso, temos de levar em conta tam-
bém o segmento liberal dessa sociedade, desenvolvido principalmente
no momento em que o Egito iniciou o movimento pela independência,
na virada para o século XX. Foi esse segmento que criou um partido
nacionalista (o Wafd) e as instituições nacionais seculares (a Assembleia
Popular), sem contar os importantes setores que se construíram poste-
riormente em consequência desse desenvolvimento. Parte importante
dos manifestantes que estavam na Praça Tahrir em janeiro de 2011 per-
tencem a essa tradição, ainda que não representados por um partido,
mas sim mobilizados por redes sociais virtuais.
Essa hibridização que a sociedade civil sofre com o elemento
religioso, militar e liberal é, sem dúvida, uma fonte decisiva para a re-
lação povo-Estado. É ela que explica, em última instância, como uma
revolução pelo alto acaba prevalecendo em relação a uma revolução po-
pular democrática ou a uma contrarrevolução restauracionista. Há uma
grande quantidade de setores no Egito, com tradições muito variadas,
212
Fábio Metzger
tanto na base de sociedade civil quanto na sua sociedade política, de
maneira que uma revolução popular e uma contrarrevolução restaura-
cionista podem também interpenetrar-se por meio de outro agente polí-
tico, o reformismo conservador religioso, que, junto com eles, reproduz
uma espécie de “revolução pelo alto”.
o presidente morsi e A disputA pelA constituição
Não é irrelevante, nesse processo, ressaltar o papel-chave de
um indivíduo enquanto sujeito histórico, como é o caso do presidente
Mohammed Morsi. Ele poderá, no futuro, tanto ser visto como uma
personalidade que levou o Egito para a transição democrática como de-
sempenhar o papel de ator responsável pelo retorno do país a um regime
autocrático. Essa responsabilidade, no entanto, só poderá ser encarada
observando enquanto líder acima de todas as classes, à frente de um
governo misto que não representa valores democráticos. O governo de
Morsi poderá, inclusive, signicar um retrocesso a uma teocracia ou a
uma restauração parcial, dessa vez com a presença de Irmãos Muçulma-
nos ao lado dos antigos civis e militares.
Algumas de suas ações tiveram a importância de levar o
Egito à continuidade de uma transição. Por exemplo: poderia ele ter
permanecido na Irmandade e assumido a presidência do país, gerando
grande embaraço para militares e civis do antigo regime, além de para
os membros do movimento democrático. No entanto, ele preferiu
dividir o poder e deixar a organização da qual fazia parte com apenas
quatro ministérios. Buscou setores importantes dentre os civis (no caso,
nomeando como vice-presidente um importante juiz) e os militares, que
não tivessem ligações mais estreitas com o antigo regime. No entanto, em
alguns momentos, sua atuação extrapolou os limites daquilo que pode
ser denido como um sistema democrático. Baixou decretos atribuindo
a si amplos poderes, dando a sua gura de presidente a faculdade de
assumir declarações constitucionais, interferindo nas atribuições do
poder judiciário, tirando a prerrogativa desse poder de dissolver o poder
legislativo. Tais medidas propiciaram a Morsi um poder que, segundo
213
Egito e Turquia no Século XXI
os defensores dos movimentos democráticos egípcios, seria o de um
autocrata. O líder da coalizão democrática Frente de Salvação Nacional,
Mohammed El-Baradei, chegou, após tais medidas, a denominar Morsi
de “faraó”.
É certo que Morsi também tomou uma decisão importante,
tirando poderes do SCAF e, assim, substituindo os generais da velha
geração por novos ociais que, em tese, seriam mais leais aos civis. No
entanto, o que se viu foi a tentativa de passagem de uma forma de au-
toritarismo para outra: da autocracia militar para um autoritarismo
personalista, em que militares, islamistas e civis compartilham fatias da
estrutura do poder estatal, sendo Morsi uma espécie de centralizador
de todas as ações. Os movimentos democráticos caram contrários a
essas medidas no seu conjunto e no nal do mês de novembro de 2012
começaram a se reunir mais uma vez nas ruas das principais grandes
cidades do Egito, pedindo a saída de Morsi. A novidade, dessa vez, foi a
presença em massa da Associação dos Magistrados Egípcios. Essas ma-
nifestações tiveram, já no dia 27 de novembro de 2012, cerca de 100
mil participantes, em um crescente confronto, no qual se notou uma
escalada na violência: os manifestantes atacaram prédios pertencentes à
Irmandade Muçulmana, que mais tarde passaram a ser protegidos pe-
las forças armadas. A polícia reagiu a essas manifestações com grande
violência, matando participantes dos atos públicos. Morsi evitou fazer
críticas mais contundentes às forças policiais que reprimiram os mani-
festantes. A Irmandade Muçulmana fez críticas às medidas do presidente
sem, no entanto, deixar de apoiá-lo. Em síntese, Morsi manteve o apoio
dos religiosos, mas a antipatia dos democratas.
Há, certamente, questões de fundo que precisam ser conside-
radas. A primeira: a posição da Assembleia Constituinte do Egito que
fora nomeada pela Assembleia Popular. Majoritariamente composta por
membros da irmandade e tendo sido abandonada pelos seus membros
oriundos dos movimentos democráticos, essa assembleia permaneceu
funcionando (mesmo depois de a Assembleia Popular ter sido dissolvi-
da) com uma missão: redigir uma nova Constituição para o Egito até
dezembro de 2012. Dentro desse cenário, surge um questionamento:
214
Fábio Metzger
por que o Tribunal Constitucional do Egito proibira a Assembleia Po-
pular de reunir-se, alegando a falta de independência de seus membros
com relação a organizações políticas (islamistas) e não conseguiu fazer o
mesmo com a Assembleia Constituinte nomeada pela primeira?
Um fato que não pode ser esquecido é que os membros da
Assembleia Constituinte, antevendo a possibilidade de essa Assembleia
também ser dissolvida pelo Tribunal Constitucional em dezembro,
apressou-se em terminar os trabalhos para a elaboração dos 234 artigos
da Constituição. A nova Constituição contemplara, inclusive, o limite
de um mandato – de quatro anos – para o presidente. Permite, também,
aos demais, que a antiga escola religiosa Al-Azhar também seja intérpre-
te da lei. O fato é que essa Constituição é sujeita a aprovação em um
referendo popular. Mais uma vez, islâmicos e leigos foram convocados
a se pronunciarem.
Esse “neobonapartismo” ou “cesarismo” de Morsi e o “consti-
tucionalismo islâmico” são dois fatores que não podem ser dissociados
um em relação ao outro. Eles seguem outra lógica confrontacional no
Egito: o poder executivo e a Assembleia Constituinte, de um lado, o ju-
diciário e os movimentos democráticos, de outro. Entre esses dois cam-
pos estão os militares da velha guarda e os da nova geração, sendo que
esses últimos estão mais próximos do novo presidente e no comando
das forças armadas. É difícil fazer uma previsão: não se trata de armar
apenas quem sai vencedor em um embate como esses, mas também qual
é a visão política que deverá prevalecer.
A possibilidade de se pensar no princípio de “um homem, um
voto” da democracia, pode ser inibida, se levarmos em conta que um
processo político como o egípcio pode, sem dúvida, recuar para alguma
forma de sistema eleitoral restritivo. Como não se recordar, por exem-
plo, das eleições na Argélia entre 1991 e 1992, quando a Frente Islâmica
de Salvação (FIS) estava prestes a vencer e um golpe de Estado liderado
por militares levou o país a uma guerra civil que matou mais de 100 mil
pessoas? Acrescente-se ainda a seguinte indagação: que forma de gover-
no é essa em que um Tribunal Constitucional, com juízes nomeados
pelo antigo regime, é capaz de impedir a reunião de uma Assembleia
215
Egito e Turquia no Século XXI
Popular eleita por sufrágio universal? Isso pode ser comparado com o
princípio de freios e contrapesos do liberalismo clássico, sob a justicativa
de impedir a “tirania da maioria”, ou, de outra forma, é apenas um pre-
texto para uma futura restauração do antigo regime?
Nesse contexto, analisemos o papel do sujeito histórico que
representa Mohammed Morsi, que mesmo sendo um hábil negociador,
estava diante dos paradoxos históricos de seu país. De um lado, a pers-
pectiva de formar um governo misto de tipo tutelado, tal como já fez
no passado. De outro, as expectativas dos movimentos democráticos e
liberais frustrados com as intervenções realizadas pelas forças armadas, o
Tribunal Constitucional e a Irmandade Muçulmana. Ou então, o desti-
no de o Egito retroceder à restauração de um regime autocrático militar
ou de desembocar numa teocracia islâmica.
5.9 o golpe militAr do egito (2013-2016): A contrAr-
revolução
Logo após a queda de Morsi, assumiu como presidente interi-
no do Egito Adly Mansour, anteriormente presidente do Tribunal Cons-
titucional. A partir de sua interinidade, que compreendeu o período de
3 de julho de 2013 a 8 junho de 2014, ele levou a Constituição já apro-
vada por referendo a dois comitês: um menor, formados por 10 técnicos
legislativos, e outro, maior, composto por 50 membros da sociedade
civil egípcia, para adicionar emendas, em que foram feitas uma série de
modicações. Por exemplo: banindo partidos religiosos, ou que mistu-
rassem religião com política. Ou dando apenas uma única interpretação
ocial da sharia, impedindo que grupos como a Irmandade pudessem se
apropriar da ideia de liberdade religiosa, a m de estabelecer a sua hege-
monia. Além disso, eliminou o Conselho Superior, que equivale ao que
seria, no Brasil, o Senado (ou Shura, no caso egípcio), tornando o país
unicameral. A lei da nova Constituição Egípcia foi novamente submeti-
da a um referendo, e aprovada por 98% dos participantes, em janeiro de
2014, tendo a participação de apenas 38,6% do eleitorado. Os grupos
islâmicos sob a inuência da Irmandade que clamaram ao boicote ao
216
Fábio Metzger
pleito tiveram sucesso em obter mais da metade da não participação
eleitoral desse novo momento político, o que retrata, mais uma vez, a
divisão que o país vivia na transição.
Trata-se de um processo contraditório. Uma transição que, de
um lado, assegurou o secularismo do país, mas de outro, fez com que
este vivesse um momento crucial do fechamento de suas instituições.
Leigos e religiosos, democratas e islâmicos, liberais e esquerdistas, seto-
res importantes vêm perdendo importantes espaços dentro daquilo que
parecia tornar-se não um regime de democracia liberal, mas ao menos
uma forma mista de governo, que combinava um sistema eleitoral base-
ado nos princípios gerais do sufrágio universal, em uma sociedade com
base em uma teocracia autocontrolada e um Estado Nacional sustentado
em um comando militar/civil oligárquico. Entre essas três formas de
governo combinadas, um corpo político de cidadãos com propósitos
nem religiosos, tampouco militares, portanto focados na sociedade civil,
participando de uma ampla transição política.
As condições políticas para essa transição estavam dadas. O
antigo déspota, Hosni Mubarak, fora derrubado no início de 2011, após
uma revolução popular, e os atores que antes estavam à margem do pro-
cesso político começaram a emergir. Em especial, a Irmandade Muçul-
mana. Mas também, partidos nasseristas e liberais, há muito banidos e/
ou marginalizados dentro do cenário político egípcio. Uma juventude
que participara das manifestações contra o Antigo Regime via redes so-
ciais virtuais ou então importantes membros de movimentos operários
estavam se articulando. Junto com eles, lideranças no exílio como o prê-
mio Nobel da Paz, Dr. Mohammad El-Baradei, que se apresentou como
uma liderança com reconhecimento internacional e legitimidade para
falar em nome de setores progressistas egípcios, apesar de sua projeção
interna não ser tão grande quanto à de outros líderes.
No entanto, as condições para a mudança não pareciam ser tão
fáceis quanto se imaginava. Quem, de fato, derrubou Mubarak foram
os seus colaboradores mais próximos. Ou seja, a elite civil-militar que
o acompanhou por quase três décadas. A junta militar encabeçada pelo
Marechal Hussein Tantawi. E o Tribunal Constitucional, que ganhou
217
Egito e Turquia no Século XXI
a prerrogativa de estabelecer um cronograma eleitoral. A agenda desse
grande conjunto de antigos colaboradores era bem clara: tudo mudar,
para manter tudo como está. Ou seja: princípios de uma Revolução Pas-
siva, feita pelo Alto; não de uma Revolução Popular, feita pelas massas
(GRAMSCI, 1976; 1999; 2002). E por isso a expectativa não por uma
ampla transformação, mas sim por mudanças tuteladas, controladas.
A hipótese que poderia se apresentar era a de uma transição
bastante longa, dadas as condições de divisão entre as sociedades civil e
política egípcias, e dos setores religioso e laico dessas sociedades. Qual
seria o grau de participação da população em relação à construção do Es-
tado? Maior ou menor? Qual seria o papel da religião (no caso, o islã) na
articulação entre Estado, lei e sociedade? Marginal ou central em relação
ao país? São questões fundamentais de base que qualquer sociedade mais
avançada terá que ter respondido antes de se democratizar.
Dessa forma, o Egito teve que responder a uma transição que
em momento algum lembrou, por exemplo, aquelas que os países do
Leste Europeu e da América Latina viveram no nal dos anos 1980. Não
se tratava de falar da democratização. Mas sim de uma agenda mínima
de transição política a m de consolidar o Estado. Algo mais semelhante
ao que aconteceu com os países europeus a partir da Inglaterra à época
de suas revoluções (1642-1688); ou da França de sua primeira revolução
até a criação da I República (1789-1871). Britânicos e franceses não er-
gueram democracias a partir desses eventos. Mas discutiram os alicerces
de seus Estados modernos. Separaram totalmente, no caso francês, ou
acomodaram parcialmente, no caso britânico, a religião em relação ao
Estado. E estabeleceram regimes de participação indireta e de sufrágio
predominantemente não universal em seus processos eleitorais, bene-
ciando as elites locais e alienando pelo menos uma geração inteira de
seus povos da construção de seus governos.
Na verdade, não existiu democratização até o século XX, nem
para britânicos, tampouco para franceses. De fato, o que ocorreu, foi
a liberalização de estruturas tradicionalmente autoritárias. E, a partir
delas, a construção de governos mistos, que inicialmente eram de frágil
sustentação, em certos momentos, derrubados e substituídos por dita-
218
Fábio Metzger
duras, como foi o caso da Inglaterra de Oliver Cromwell em 1649, e da
França de Luís Bonaparte em 1852.
O Egito de hoje vive justamente o momento desse recuo. Não
teve, de fato, a oportunidade de se democratizar. Buscou, ao menos,
construir uma forma mista de governo, e anal, acabou sendo engolido
por um golpe de Estado em julho de 2013, após dois anos de transição
precária. O país está vivendo a sua contrarrevolução, após ter se perdido
nos rumos de sua Revolução (BAIL, 2012; GRESH, 2011; 2012).
Mas, anal, esse texto se propõe a responder a duas questões
iniciais:
1. Qual foi a importância desses acontecimentos para o Oriente
Médio, principalmente na questão da paz entre as nações e dentro de
cada sociedade?
2. Que espécie de governo é esse, que aqui denominamos
governo misto, que o Egito estava tentando construir? Era apenas uma
possibilidade política? Ou é um projeto que já existe em algum outro
local do Oriente Médio?
Em julho de 2013, uma grande onda de protestos começou
a tomar conta do Egito, mais uma vez. A administração de Morsi era
fortemente questionada por sua falta de eciência, paralisia econômi-
ca, perspectivas incertas para o futuro. Havia duas divisões claras: entre
aqueles que defendiam o antigo regime, e os defensores da revolução,
de um lado; e os laicos/leigos e islâmicos/islamistas, de outro. Havia
uma disputa intensa, se não pelas formas de governo, ao menos pela sua
essência: buscava-se um modo de Constitucionalismo e Constituição,
em que a religião poderia ocupar um papel maior ou menor na esfera da
sociedade egípcia.
Os defensores do antigo regime estavam ainda bem posiciona-
dos em cargos-chave na economia, em posições especiais nas Forças Ar-
madas, na Polícia e nos Magistrados, fruto de décadas de estabelecimen-
to da construção da República, desde 1952. As camadas leigas e laicas,
que eram defensoras da revolução, compreendiam setores melhor aten-
didos pelo Estado, mas claramente insatisfeitos com a situação em que
219
Egito e Turquia no Século XXI
viviam. Situavam-se principalmente nas áreas centrais da capital Cairo
e de Alexandria, entre outras, portanto, mais integradas aos circuitos de
poder tradicionais, apesar de historicamente alijadas. Por outro lado,
concentrando-se nas zonas rurais e periferias metropolitanas, os setores
mais religiosos da sociedade egípcia tinham mais poder de penetração
dentro da lógica do “um cidadão, um voto”, e, no entanto, estavam
distantes dos aparatos de poder nacionais e republicanos, além de não
terem a mesma integração das camadas urbanas centrais mais ocidenta-
lizadas e integradas com ideias de países da Europa e América do Norte.
O fato, que aqui deve ser sempre ressaltado é: desde a queda de Mubarak
em 2011, as Forças Armadas egípcias detinham a soberania, de fato, da
economia do país, controlando as mais variadas atividades produtivas.
De modo que eram mais do que meros garantidores do processo políti-
co: em determinado momento, seriam eles os seus próprios geradores.
Por outro lado, a sociedade egípcia estava dividida, tanto po-
lítica, quanto eleitoralmente. Foi o que se vericou nas eleições par-
lamentares, onde as tendências islamistas obtiveram 72% dos votos e
assentos parlamentares, 47% destes pertencentes à Irmandade Muçul-
mana (EGITO, 2012). O perl que se via no Egito era bem semelhante
ao da Turquia. Forças Armadas com tradição secularista e um partido
ou conjunto de partidos islâmicos controlando a maior parte dos pro-
cessos políticos eleitorais. Porém, não foram os islamistas e islâmicos os
principais participantes da revolução 2011. Pelo contrário: as principais
lideranças e o perl de militância dos que derrubaram Mubarak eram
formadas por indivíduos de formação liberal, democrática, esquerdista,
e, de modo geral, leiga ou laica. Esse setor, que foi capaz de se articular
e fazer presença na Praça Tahrir, durante diversas semanas consecutivas
até derrubar o Antigo Regime não conseguia se articular nas periferias
do Cairo e de Alexandria, tampouco nas zonas rurais, onde a caridade
religiosa dos Irmãos Muçulmanos e outras fundações estavam bem mais
presentes e atuantes (NÉFISSA, 2011).
Foi diante dessa divisão que as lideranças remanescentes do
Antigo Regime começaram a se articular. De um lado, o Tribunal Cons-
titucional acatou uma representação que questionava a independência
220
Fábio Metzger
dos deputados eleitos na Assembleia Popular e proibiu a sua reunião.
De outro, a Junta Militar começou a interferir diretamente na escolha
dos nomes das candidaturas à presidência do país. O primeiro nome
da Irmandade Muçulmana, o empresário Khairat Al-Chater, foi vetado.
Em seu lugar, foi colocado o burocrata Mohammad Morsi. No processo
eleitoral, a oposição revolucionária não conseguiu escolher um nome de
consenso, e, divididos, os seus candidatos não conseguiram votação para
o segundo turno. Enquanto o candidato que representava o Antigo Re-
gime Ahmed Shak conseguiu votação suciente para a etapa seguinte
do pleito. No nal, a vitória foi de Morsi por estreita margem: 51,73%
a 48,27% dos votos válidos. E mesmo assim, apenas após a aprovação
da junta militar, devido a questionamentos sobre a lisura da votação
(EGITO, 2012a).
No conjunto, Morsi tinha uma posição bastante peculiar: era,
ao mesmo tempo, um burocrata da Irmandade Muçulmana, com liga-
ções fortes com os clérigos islâmicos e islamistas. Mas também era um
bom conhecedor do ambiente burocrático do Estado egípcio, tendo sido
ele, antigo interlocutor entre a organização, que havia sido proscrita, em
1954, mas tolerada, a partir dos anos 1970. Sua intenção seria a de ligar
o Egito profundo, praticante da religião islâmica e distante do Estado
republicano, com a República secularizada, mas fortemente inuencia-
da por uma população crescentemente religiosa.
Ele tentou praticar uma revolução conservadora, montando
a mais ampla coalizão que poderia articular. Ele abdicou de pertencer
à Irmandade Muçulmana quando assumiu a presidência e nomeou
como vice-presidente um importante membro do Tribunal Consti-
tucional, mais alinhado com posições democráticas e, por isso, um
bom articulador entre o presidente e o judiciário. Ali, estava bem clara
a composição política: um governo misto, evitando a total forma de
autocracia, e buscando representações ainda que pálidas da sociedade,
sendo ele o chefe do poder executivo, eleito pelo voto popular. Ele
procurou vetar a participação de sua organização no poder executivo
de maneira mais direta. Não que a Irmandade tenha desaparecido, no
entanto sua presença se tornou bem menos notada. Na formação do
221
Egito e Turquia no Século XXI
governo, ela teve apenas quatro ministérios (de um total de 35). A As-
sembleia Popular permaneceu sem poder ser formada, apesar de Morsi
a tê-la convocado, o que já demonstrava fraqueza interna dele, perante
os poderes tradicionais no Estado.
A Irmandade, mesmo não tendo o poder que poderia obter,
ainda via a oportunidade de realizar avanços dentro de sua agenda po-
lítica religiosa. Detendo alguns ministérios no novo governo, buscou
ampliar a sua presença no Estado. No entanto, mais uma vez os movi-
mentos democráticos e liberais, bastante preponderantes no Cairo e em
Alexandria, voltaram a se manifestar, dessa vez com organização mais
ampla (não sem o apoio de setores seculares restauracionistas), e conse-
guiram uma mobilização maior nas ruas, a m de deter o avanço da re-
ligião sobre o Estado. Tentando ganhar tempo, os Irmãos Muçulmanos
aceleraram a elaboração da Constituição do país, colocando em dúvida
o secularismo da sociedade, dando ao corpo de clérigos islâmicos o po-
der de interpretar leis civis. Esse fato gerou um grande impasse. Tendo
sido terminados os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, co-
locou-se em votação popular a validade da Carta, que obteve aprovação
de 64%. Tendo, no entanto, uma votação teve a presença de apenas
32% dos eleitores inscritos. A maioria decidiu seguir o boicote proposto
pelos setores laicos e leigos.
A questão da Constituição foi o divisor de águas para Morsi.
Ao ter destituído o marechal Hussein Tantawi, colocou em seu lugar o
general Abdul Fatah Al-Sissi, militar mais novo e alinhado aos EUA; de-
monstrou exibilidade ao se apresentar como intermediário entre Israel
e o Hamas na crise de Gaza entre 2011 e 2012. Buscou evitar colorações
ideológicas mais contundentes em seu gabinete, nomeando burocratas
sem liações partidárias, inclusive para o cargo de primeiro-ministro.
Por outro lado, Morsi se perdeu entre ter de seguir a lealdade à sua
organização e ao comando de seu país. Na questão da Constituição,
não teve a velocidade e a energia necessárias para se posicionar. Dono
de uma oratória fraca, acostumado com articulações de bastidores, o
ex-presidente egípcio de repente se viu cercado por um movimento po-
lítico, formado especialmente por aqueles que paradoxalmente tinham
222
Fábio Metzger
derrubado Hosni Mubarak dois anos antes. Sua imagem cou deteriora-
da. Um movimento com milhões de assinaturas foi feito pedindo a sua
destituição (TURRER, 2013). Francamente desinteressados em mante-
rem-se colaborando com Morsi, os membros das Forças Armadas, colo-
cados como adores do processo político, aproveitaram a ocasião, e, em
julho de 2013, depuseram Morsi. Rearticularam uma nova composição
política, incluindo não apenas os remanescentes do Antigo Regime, mas
nomeando democratas, liberais e islamistas não pertencentes à Irmanda-
de. Com o tempo, aqueles que antes apoiavam a queda de Morsi foram
notando o que estava se passando. Mohammed El-Baradei, que compôs
esse governo como vice-presidente, renunciou ao cargo. Em sucessão,
outros políticos foram saindo. A Irmandade, que nunca aceitou a queda
de Morsi, rearticulou-se como principal força do novo Antigo Regime.
Tarde demais. As Forças Armadas conseguiram restabelecer o seu antigo
regime despótico: o Mubarakismo sem Mubarak. Baniu não apenas a
Irmandade, mas todas as organizações ligadas a ela. E a violência política
retornou às ruas. Dessa vez, sem a perspectiva de uma revolução.
A vitória da contrarrevolução no Egito parece nos dar algumas
lições. Mesmo a possibilidade de construir um governo misto, apesar de
ser a alternativa mais possível e viável, ao invés de um sistema demo-
crático liberal, é bastante difícil e acidentada, com grandes tendências a
recuos. É necessário observar a existência real da hegemonia das institui-
ções que de fato comandam o Egito: são as Forças Armadas que tiveram
e têm o poder de veto para determinar que espécie de regime que o país
terá. O comportamento e a atuação das Forças Armadas egípcias nesse
sentido são decisivos, enquanto corporação que representa uma oligar-
quia nacional, que possui autonomia não apenas para inuir no jogo
político, como também na economia do país. Se os interesses imediatos
não forem contemplados, elas imediatamente colocarão o Egito de volta
à estaca zero no quesito abertura política. Esses interesses são da ordem
política, geoestratégica e econômica, e não dizem respeito apenas ao
Egito, mas também aos demais países árabes de independência recente
(KAWAKIBI, KODMANI, 2011).
223
Egito e Turquia no Século XXI
As alianças que as Forças Armadas egípcias sustentam, espe-
cialmente com os EUA, no Sistema Internacional são determinantes.
A percepção de ameaça por parte de grupos internos no Egito, e exter-
nos, em relação à Irmandade Muçulmana também é um fator que pode
ser citado? Israel percebe essa organização como um inimigo histórico
maior, e prefere ter as Forças Armadas egípcias comandando, de fato, o
país a ter islâmicos nessa posição; a Arábia Saudita e o Catar percebem
a Irmandade como um concorrente dentro do Mundo Árabe enquanto
fonte de difusão da organização religiosa do Islã; as repúblicas leigas
do Mundo Árabe que não tiveram os seus líderes removidos do poder
também a temem; assim como o Irã enquanto difusor de uma forma de
república islâmica.
Por outro lado, o simples fato de que um governo liderado
pela Irmandade Muçulmana pudesse ter, no futuro, uma prerrogativa
para modicar as prioridades orçamentárias do país, gerava ainda mais
desconfortos para as Forças Armadas. A crise política por que passou o
Egito teve claros reexos econômicos. Se fosse necessária uma reforma
sob um regime, se não democrático, ao menos liberalizado, ou pelo me-
nos composto de forma mista, qual seria o espaço das Forças Armadas
nesse orçamento? Todo o apoio nanceiro dos EUA ao Egito estaria
condicionado à destinação dessas verbas ao Exército do país. E é esse o
condicionante vinha pautando, não apenas a continuação da revolução
egípcia, mas a sua contrarrevolução.
As condicionAntes dA contrArrevolução: A proscrição dA
irmAndAde, e As eleições de Al-sissi
Abdelfatah Al-Sissi nomeado por Mohammed Morsi para ser
o seu comandante de conança no Estado Maior das Forças Armadas.
Uma espécie de líder na nova geração de militares, com pouca ou nenhu-
ma ligação com os antigos colaboradores de Mubarak. O que poderia ser
um indicativo de mudança e acomodação em um novo Egito se revelou,
no entanto, o caminho para um novo retrocesso. Pessoalmente, Al-Sissi
é um muçulmano devoto, tal como seria um membro da Irmandade.
224
Fábio Metzger
No entanto, a sua atuação e lealdade ao secularismo da república egíp-
cia esteve acima de qualquer suspeita. No momento em que explodiu a
crise entre as forças secularistas e as religiosas, em julho de 2013, Al-Sissi
se posicionou em favor das primeiras, e aproveitando o forte receio de
islâmicos moderados, seculares, e leigos liberais e socialistas, aliou-se aos
membros do antigo regime, para aplicar um golpe de Estado sobre o
governo de Morsi. Os centros de Cairo e Alexandria estavam lotados de
simpatizantes de setores anti-fundamentalistas, no momento em que as
Forças Armadas intervieram.
Derrubado Morsi, o sinal que foi conferido nas ruas pelo Exér-
cito era o de ador e garantidor político da república. No âmbito exter-
no, a Arábia Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos anunciaram a
promessa de uma ajuda no valor de US$ 12 bilhões para o reaquecimen-
to da economia egípcia. Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita anunciou
o envio de equipes hospitalares para suprir estado de precariedade na
área de saúde (ESTADÃO, 2013). Após o golpe, os movimentos islâ-
micos liderados pela Irmandade Muçulmana foram tornados proscritos.
E foram às ruas protestar: eles receberam fortíssima opressão das forças
policiais. Morsi foi preso e condenado, acusado de insultar o Poder Ju-
diciário (NOVO..., 2014). Se de um lado, a Irmandade Muçulmana
foi cruelmente sufocada, por outro, os salastas do partido Al-Nour,
estiveram aliados a Al-Sissi, e, mais próximos da Arábia Saudita, perma-
neceram como base política, desta vez minoritária e mais centrada em
uma agenda de cultura e costumes do islã conservador.
Seguindo a tendência repressiva, cerca de 100 pessoas foram
mortas em um dos protestos, em nal de julho em um confronto no
bairro de Nasr City (EL SHAFEY, 2013). Este foi o ponto de partida para
uma brutal repressão, o prenúncio para um novo período. Em março, 529
seguidores de Morsi foram condenados à morte (KINGSLEY, 2014). As
reações não se limitaram ao primeiro alvo. Movimentos pró-democracia
foram também combatidos com grande força. O país sentiu explícita uma
ruptura interna. No nal de janeiro, durante o aniversário de três anos da
revolução que derrubou Mubarak, teve confrontos entre os apoiadores
e os opositores de Al-Sissi e sete manifestantes foram mortos. Na praça
225
Egito e Turquia no Século XXI
Tahrir, aconteciam manifestações de cunho nacionalista, enquanto que
os opositores liderados pelos Irmãos Muçulmanos, que tentavam se
aproximar do local, eram brutalmente reprimidos (MANIFESTANTES...,
2014). Essa situação tinha consequências diretas no funcionamento do
turismo no país, área essencial para a economia egípcia. A instabilidade
e a violência interna zeram com que turistas estrangeiros não viessem
ao país. A sensação descrita era a de um país instável, que precisaria de
investimentos para se reerguer. Entretanto, a situação política do Egito
cou em estado paradoxal. Avanços especícos em questões individuais,
e nas coletivas, o papel ampliado das Forças Armadas. Segundo Cohen
(2014, não paginado):
O papel da lei islâmica é limitado, e a liberdade religiosa e os direi-
tos iguais das mulheres são reforçados. As convenções de direitos
humanos raticadas pelo Egito agora terão peso de lei. São mudan-
ças bem-vindas. Por outro lado, os militares ganham o poder de
aprovar os nomes escolhidos para ministro da Defesa nos próximos
oito anos. O Exército recebe o direito de julgar civis em tribunais
militares por uma grande gama de crimes, e o orçamento das Forças
Armadas continua fora do âmbito da scalização civil efetiva.
O fato real era de que a forma de governo autocrática ganhava
contornos ainda mais efetivos. E o cenário de restauração ao status quo do
antigo regime ia se traduzindo em um novo calendário, que tinha muito
mais aderência aos interesses das Forças Armadas, das elites econômicas
nacionais e dos velhos Magistrados do que da vontade original da popu-
lação que se mobilizou em 2011 para derrubar Hosni Mubarak. A se-
quência que se deu, ao longo do ano de 2014, foi a de convocar eleições
presidenciais para maio de 2014, colocando a Irmandade Muçulmana
de fora. Al-Sissi saiu como candidato e teve vitória esmagadora, com
96,91% dos votos. Hamdeen Sabahi cou apenas com 3,09%. Segundo
os resultados ociais, o comparecimento foi de 47,5% dos eleitores ins-
critos. Esta foi uma eleição repleta de boicotes, abstenções e acusações
de fraudes por parte dos opositores de Al-Sissi (EGYPTIAN..., 2014).
No ano de 2015, Al-Sissi buscou se consolidar no poder, tendo
em boa parte conteúdo de ações nacionalistas. O seu ponto alto foi, em
226
agosto, a abertura do segundo Canal de Suez, acompanhada do alarga-
mento do primeiro. Tal empreendimento signica um meio potencial de
reaquecimento da economia (EGITO..., 2015). Um ato de demonstração
de poder e conança para a parte da base que sustenta o atual presidente.
Entre outubro e novembro de 2015, foram realizadas eleições legislati-
vas, onde o comparecimento eleitoral, segundo informações ociais das
instituições egípcias não passaram de 26%. O novo parlamento, que tem
596 deputados; ocialmente, são 28 deputados indicados pelo presidente,
448, eleitos sem ligação com partidos, e os 120 restantes, ocialmente
ligados a uma lista partidária. Na prática, são 351 cadeiras de candidatos
sem partidos, e 245 ligados a listas partidárias, sendo que as 120 ocial-
mente lançadas foram todas conquistadas pela lista “Por amor ao Egito
(composto pelo Partido Livre dos Egípcios – 65 cadeiras; Partido do Futu-
ro da Nação – 53 cadeiras; o Novo Wafd – Liberal, 36 cadeiras; Reforma e
Desenvolvimento – 3 cadeiras; Partido Conservador – 6 cadeiras; Partido
da Conferência – 12 cadeiras; e Partido do Egito Moderno – esquerda,
4 cadeiras). Esta lista é um conjunto de forças predominantemente libe-
rais e conservadoras, remanescentes do antigo regime, com a participação
de alguns deputados de esquerda, totalizando, na prática, mais do que
os 120 eleitos: 79 deputados possuem, de fato, ligações partidárias. Para
além destes partidos, há um conjunto de outros partidos, onde de di-
versas colorações ideológicas
6
(EGYPTIAN..., 2015). A composição da
Casa dos Representantes procurou seguir o princípio de ter a mais ampla
representatividade da sociedade egípcia, buscando interferir de modo a
desestimular a participação político-eleitoral de movimentos políticos, de
uma forma mais sistemática. De um modo, muitas vezes, bastante vio-
lento, ora com a determinação da Justiça, ou então com a mão dura das
Forças Armadas e Policiais. Tais eleições, que estavam programadas para
abril, foram prorrogadas após suspensão do Tribunal Constitucional. De
modo que o processo eleitoral passou por um conjunto de intervenções.
São os seguintes partidos: Defensores da Pátria (Esquerda Populista, 18 cadeiras); Popular Republica-
no (Liberal, do ex-chanceler Amro Mussa, 13 cadeiras); Al-Nour (Salasta, 11 cadeiras); Democrático da
Paz (Liberal, 5 cadeiras); Social-Democrata (Centro-esquerda, 4 cadeiras); Movimento Nacional Egípcio
(Secularista, 4 cadeiras); Partido da Liberdade (sem ideologia especíca, 3 cadeiras), Minha Pátria Egito
(linha-duras do antigo regime, 3 cadeiras); Nacional Progressista Unido (Socialista, 2 cadeiras); Árabe De-
mocrático Nasserista (Esquerdista, 1 cadeira); Guarda Revolucionária (1 cadeira); e Construção do Egito
Livre (1 cadeira).
227
Egito e Turquia no Século XXI
Inclusive na forma como a Constituição foi modicada, o processo de
sucessão presidencial, realizado, e as eleições legislativas foram feitas, limi-
tando os diversos aspectos da política egípcia, favorecendo a ascensão do
jovem marechal Al-Sissi ao poder, e assim, sendo possível notar uma forte
interferência das instituições militares sobre as civis.
o egito, A deFinão de democrAciA e os rumos Autori-
tários
É preciso observar que é bem possível estabelecer regras
democráticas e, sem a essência da democracia. Que é possível pensar a
democracia enquanto instrumento, mas não a observar, como valor. Para
que seja possível construir um regime democrático, não basta adotar leis
para tanto. É preciso que a população esteja familiarizada aos termos do
que seria o pensamento e a possibilidade de viver democraticamente. No
caso, enquanto uma democracia de tipo liberal, onde se pratica uma éti-
ca pluralista da tolerância, coexistência e convivência ao que é diferente.
Sem o desenvolvimento desse fundamento básico, é possível construir
Constituições com caráter universal. E, no entanto, manter uma série de
restrições ao pensamento de participação plural. A vontade das maiorias
expressas nas urnas pode não estar respeitando frações da sociedade que
possuem um modo de vida peculiar que, no caso do Egito, não estariam
obedecendo a regras de uma determinada forma de Islã, no caso, o Salas-
ta ou o da Irmandade. Por exemplo: o que fazer com o direito das mulhe-
res, quando elas optassem por não utilizar o véu? Esta é uma questão, que
pode ser inserida no contexto cultural do país, mas que também deve ser
encarada dentro da possibilidade de uma sociedade em que as mulheres
estejam sucientemente emancipadas para realizar esta escolha, entre ou-
tras. Será que o Egito poderia, pelas vias da Democracia Liberal, permitir
essa opção? E dentro de um governo misto? Não haveria o risco de outro
retrocesso, rumo a modelos teocráticos de governo, onde essas escolhas
fossem transferidas para os chefes de família? Todas essas são questões
que devem ser encaradas pela própria sociedade egípcia, de modo que ela
deve perceber os seus limites e possibilidades. A Constituição aprovada
em 2012, por exemplo, não mencionava os direitos femininos no tocante
228
Fábio Metzger
à igualdade de gênero. Trata-se de uma questão que a sociedade local não
coloca como prioritária, e tampouco as práticas mais fundamentalistas
conseguem aceitar.
Aqui, o Egito pode estar diante de dois autoritarismos, o de seu
próprio Estado, e o de setores importantes de sua sociedade civil. Nesse
sentido, ca a pergunta: como estabelecer uma abertura minimamente
estável para a ideia de um governo misto, que seja o início de uma traje-
tória, ainda que de longo prazo para uma democracia de modelo liberal?
Os riscos de um retrocesso são, sem dúvida, sempre fortes e crescentes, e
cada passo em falso é uma possibilidade para um recuo, seja para a ideia da
tirania majoritária temido por Tocqueville (1977), ou então para o Leviatã
de Hobbes (2003), que opta pelo pacto de dominação do Estado sobre o
povo como opção “menos pior”. O resultado é que o que se desenha na
prática é uma autocracia de Estado, que se alimenta do poder econômico,
de relações privilegiadas de antigos participantes da burocracia, desde a
fundação da República, e uma política de contenção a movimentos reli-
giosos que possam fugir ao controle da sociedade política. Ao passo que a
sociedade civil, conectada com as redes globais, importante participante
da revolução de 2011, está agora domada e controlada, diante de um os-
tensivo policiamento do regime político. A composição da nova Casa dos
Representantes teve algumas modicações. Tal situação pode mascarar um
grande descontentamento popular e, ao mesmo tempo, não vericar a
questão de como as redes de colaboração religiosas ainda são muito fortes,
onde o Estado egípcio está mais ausente e/ou afastado. Mesmo proscrita a
Irmandade, suas ideias podem estar bastante vigorosas, dentro de um país
onde a falta de assistência social para grandes parcelas da população confe-
re a possibilidade de apoio a discursos políticos que apelem para a religião.
Os exemplos dos boicotes e abstenções das últimas eleições não podem ser
ignorados, nesse cenário, com impacto aos boicotes promovidos anterior-
mente pelos movimentos políticos leigos e laicos, o que dá uma denição
clara, do quanto o Egito está dividido, enquanto à formulação de um pac-
to associativo. E isso signica um grande desprestígio ao sistema eleitoral,
enquanto um todo, preocupante para a manutenção da transição política
do país em médio e/ou longo prazo.
6 C 
231
C 
Após fazermos um balanço das principais particularidades de
Egito e Turquia em cada um dos estudos de caso, é necessário aprofun-
darmos a análise acerca de suas diferenças e semelhanças à luz da teoria
política contemporânea. Nesse sentido, não concluímos totalmente a
investigação, mas deixamos questões abertas para que se reita acerca da
relação entre os conceitos de democracia, autocracia e liberalismo (ou
democracia liberal), tão caros à teoria política moderna, e o conceito
de governo misto, em geral pensado e desenvolvido dentro da teoria
política clássica.
Turquia e Egito buscaram desenvolver governos mistos, deni-
ção histórica que envolve diversos elementos da teoria geral da política,
no qual é possível se pensar um horizonte democrático. Tanto o governo
turco de 2003 a 2016, como o egípcio de 2011 a 2013, por sua vez,
vislumbraram modelos de democracias liberais de inspiração ocidental
ao longo de sua formação. Enquanto modelo aplicável, podemos ob-
servar que a democracia liberal é uma forma de governo misto no que
há de mais avançado. Mas nem todo governo misto é uma democracia
liberal. Há governos mistos mais próximos de formas autocráticas de
poder e há governos mistos mais relacionados com formas democrá-
ticas. Até podemos considerar a democracia liberal como uma forma
232
Fábio Metzger
de governo misto moderno, inicialmente aplicado a países europeus e
americanos (portanto, ocidentais), mas que pode ser reproduzido em
outros casos (por exemplo, o Japão). As experiências políticas desses dois
países resultaram na constituição de instituições de governos mistos que,
no entanto, foram de fácil apropriação por parte de setores mais auto-
ritários da caserna e de religiosos mais radicais. Essas apropriações que
geralmente enfraquecem um regime democrático, e/ou tornam distante
a possibilidade participativa da sociedade na sua relação com o Estado,
resultaram em um retrocesso em que pilares básicos da democracia e do
liberalismo não tiveram sequer um desenvolvimento mais consistente.
As formas autocráticas de governo acabaram que, por prevalecer, a partir
de simulacros representativos da sociedade, de um lado, e pela força do
monopólio dos aparatos de Estado, de outro.
Certamente, isso não pode resumir a ideia de que nenhum des-
ses países deve desistir do caminho democrático. Se democracia liberal
é aplicável a outros casos, por que não poderíamos observar se ela se
aplica aos casos egípcio e turco? Quando analisamos o Egito e a Turquia,
estamos falando de repúblicas que derrubaram autocracias que existiram
durante muito tempo e que não chegaram a ser totalitárias como a da
Alemanha nazista de Hitler ou a da URSS de Stalin, países onde a lide-
rança era centralizada de tal forma que não havia meios de contestação
interna mínima. Eram autocracias de espécie autoritária em que, de um
lado, existia um chefe de Estado de natureza despótica, mas, de outro,
existiam instâncias não monolíticas, apesar de não democráticas, próxi-
mas à principal liderança, no momento em que ela tomava as principais
decisões. Quando analisamos esses dois casos, pensamos na evolução de
governos mistos republicanos. Então, antes de cogitarmos uma trans-
formação democrática, falemos de uma transformação republicana; de
como duas repúblicas do Oriente Médio evoluem, após romper com
formas autocráticas de poder e de como essas repúblicas começam auto-
cráticas e tendem a diversicar as suas fontes de poder
1
.
Diferentemente do que ocorreu no nazismo e no stalinismo, a economia da Turquia, como a do Egito,
ainda não estava totalmente atrelada ao Estado. Além disso, esses países tinham dissidências e opositores que,
mesmo ocialmente proscritos, eram tolerados (como a Irmandade Muçulmana no Egito, a partir de 1954,
e os liberais e democratas na Turquia, até 1950).
233
Egito e Turquia no Século XXI
Então estamos falando de países que evoluem da autocracia em
direção a uma forma mista de governo, ou seja, ainda não atingiram um
modelo democrático, mas já se afastaram de um modo autocrático de
governo. Nesse sentido, podemos observar que há formas diversas de au-
tocracia: monárquica totalitária, como a da França de Luís XIV, monár-
quica autoritária, como a da Inglaterra do rei Henrique VIII, onde ainda
havia um parlamento e uma Câmara de Lordes como fontes outras de
poder, a despeito do domínio inquestionável do monarca, e republicana
totalitária, tal como a da URSS. Nesses casos, podemos falar de países
que romperam formas autocráticas sob a república e democratizaram-se.
Podemos nos lembrar das repúblicas fascistas europeias, como o Portugal
salazarista, que em 1974 se transformou em um regime pluripartidário,
por meio de uma revolução popular. Ou então de regimes autocráticos
autoritários latino-americanos que zeram uma transição negociada, tal
como aconteceu no Brasil. Esses dois exemplos estão mais próximos da
realidade do Egito de 2011-2013 (mudança de regime, passando por
uma revolução) e da Turquia até 2016 (transição gradual e negociada),
mas mesmo eles são bastante especícos, não aplicáveis universalmente.
Cada país teve a sua história e a sua trajetória, e uma não necessariamen-
te invalida as outras. Não podemos, no entanto, deixar de emitir uma
escala de valores preferencial. Entre monarquia e república, entendemos
as formas republicanas como mais avançadas. Entre autocracia e governo
misto, consideramos o último mais avançado. Dentro dos modelos de
governo misto, as formas democrático-liberais parecem ser as mais e-
cientes, amadurecidas e estáveis.
6.1 AFinidAdes eletivAs entre os dois cAsos
Podemos apontar, dentro dessas considerações, pontos bási-
cos que são característicos tanto para o caso da Turquia quanto para o
do Egito. Cada um em uma etapa particular de sua transição política
combina forças para a composição de um governo que não são ape-
nas religiosas, especicamente militares ou puramente civis. Essas forças
combinadas, no Egito e na Turquia, têm sido fundamentais em uma
redenição do posicionamento dos países na ordem internacional: seja
234
Fábio Metzger
no sentido de um afastamento em relação à órbita ocidental em um
contexto mais amplo (casos de Israel e de países da União Europeia), seja
no de uma aproximação aos EUA, Rússia e Irã, de maneira especíca.
É essa dupla relação, afastamento do Ocidente e aproximação aos EUA
(sob o governo do Partido Democrata), Rússia e Irã, que permite outro
movimento político, mais local: uma associação de forças para moldar
um novo equilíbrio regional de países muçulmanos. Um equilíbrio de
países médios, como a Turquia e o Egito, que precisam se equilibrar, en-
quanto órbitas de atores mais importantes (Rússia, França, Alemanha,
Grã-Bretanha e EUA), de um lado, recompondo com extremos políticos
internos, não-muçulmanos, como Israel, islâmicos republicanos, como
o Irã e monárquicos tradicionais, como a Arábia Saudita.
Vamos especicar que tendências e que movimentos são esses,
do ponto de vista interno e externo, nas sociedades políticas do Egito e
da Turquia, assim como analisar o que os aproxima em termos de ani-
dades eletivas.
A novA correlAção de ForçAs
No Egito e na Turquia, assistimos a uma recomposição de for-
ças em que religiosos, liberais e militares buscavam um acordo mais am-
plo de poder. Em nenhum dos casos assistimos à criação de um governo
puro, mas sim à evolução em direção a um modelo misto, no qual estru-
turas religiosas, civis e militares buscaram se distribuir entre os poderes
executivo, legislativo e judiciário, entre governo e Estado, bem como
entre sociedade civil e sociedade política. Essa recomposição de forças
podia ser um fator de risco para Egito e Turquia, mas também uma
oportunidade única. Havia o risco de um recuo na formulação desses
regimes, se eles penderem mais para as tendências islamistas de governo
ou militaristas de Estado. O que se conrmou, no caso do Egito, para o
militarismo, e no da Turquia para as tendências islamistas.
Foi interessante notar que a Turquia tinha maiores avanços po-
líticos, não sob o comando exclusivo de um setor da sociedade, mas em
uma articulação e uma conjunção de vários segmentos, por estar mais
235
Egito e Turquia no Século XXI
acostumada à convivência com estruturas plurais de poder, a despeito
da forte presença das Forças Armadas no dia a dia do país. O Egito, por
sua vez, viveu mais tempo sob Estado de exceção das Forças Armadas,
o que dicultou mais a prática de um exercício rumo a um modelo
democrático. De qualquer forma, são duas repúblicas relativamente
jovens, tendo entre noventa e cem anos de existência, e a constatação
dessa semelhança básica é um ponto de partida indispensável para as
considerações a serem apontadas a serem apresentadas a seguir.
o mAl-entendido sobre A democrAciA liberAl no egito e
nA turquiA
Parece claro que o modelo político de democracia liberal con-
cebido no Ocidente não dá conta dos dois países mencionados. Talvez o
modelo político de democracia liberal tenha cado o mais próximo de
funcionar no caso turco. No Egito, é até possível construir instituições
republicanas nesse modo. No entanto, as formas de governo egípcias,
com pouca vivência de tolerância política, tendem a retornar para o mo-
dus operandi de uma autocracia. Por isso, cada um deles tem as suas par-
ticularidades. Ambos mantêm: comandantes-em-chefe; poderes legisla-
tivos; e participação de setores religiosos e militares. Mas o Egito ainda
sustenta remanescentes do antigo regime em grande escala, enquanto
a Turquia foi inuenciada principalmente na época em que buscou se
adaptar às condições de entrada na União Europeia, em que prevalecem
Estados democrático-liberais.
A intervenção das forças armadas na Turquia e das forças arma-
das e de segurança no Egito é uma fonte de obstáculo para uma transição
à ocidental”. A forte presença dos religiosos nas respectivas sociedades
também diculta uma transição linear. São fatos comuns não apenas a
esses dois países, mas também a muitos outros países muçulmanos ou de
maioria muçulmana. Há questões, como a separação/acomodação entre
religião e Estado, que não estão bem denidas e delimitadas nesses paí-
ses, ao contrário, por exemplo, de países de maioria cristã que já passa-
ram por um processo mais amplo de separação/acomodação, principal-
236
Fábio Metzger
mente do século XVIII até meados do século XX. A França, que viveu a
sua primeira revolução em 1789 e formou a sua primeira república em
1870, apenas conseguiu se livrar de uma forma de governo autocrático
após 1945, com a consolidação da IV e a posterior formação da V Repú-
blica. Estamos falando, portanto, de um processo político que os países
muçulmanos vivem no século XXI, mas que já foi consolidado há muito
mais tempo em países de outras conssões religiosas.
Por outro lado, aqueles países precisam solucionar questões
importantes com relação às suas minorias nacionais ou religiosas. Como
reage o Egito, onde a Irmandade Muçulmana cresce, perante a minoria
cristã copta, que reúne em torno de 10% da população? E como reage
a Turquia, que arma a inviolabilidade da nação turca, perante a mi-
noria da população não turca, quase toda ela de nacionalidade curda,
com idioma e costumes próprios? São questões debatidas dentro dos
setores militar e religioso, que exercem o seu poder de veto. Com isso,
não estamos falando da formação de um modelo de democracia liberal,
mas se tanto, da perspectiva de um governo misto, que pode ser mais
tolerante ou autoritário – nesse caso, congurar, sem dúvida, um regi-
me autocrático. A teoria política clássica, em combinação com a teoria
política moderna, parece dar mais respostas do que esta última sozinha.
E no, entanto, deixando claro, que esses países, ao invés de viverem si-
tuações de transição, tendem a se sustentar precariamente, muitas vezes,
retroagindo às formas autocráticas de regime. Percebemos que parece
mais plausível pensar na democracia liberal como uma variante do con-
ceito de governo misto implantada na Europa, na América e em algumas
regiões menos integradas da Ásia, da África e da Oceania, nas quais o
Ocidente tem maior presença. Parece mais possível, portanto, imaginar
que esses países apenas estão realizando uma transição de governos au-
tocráticos para governos mistos, não ao modo ocidental, mas dentro de
sua própria experiência histórica.
Assim, “democracia liberal” não é um juízo de valor, mas sim
uma importante referência historicamente útil para os países ocidentais
e que também servem para a análise desses dois casos. Que pode ser útil
para alguns países do Oriente, como o Japão, por exemplo. Se há algo
237
Egito e Turquia no Século XXI
que os países ocidentais exemplicados neste livro (França, Grã Breta-
nha, Itália, etc.) têm de mais avançado, no caso, não é o fato de ser mais
democrático, no sentido da participação política majoritária, – anal,
a participação política e eleitoral nesses países não parece diferir muito
do que conhecemos nos países ocidentais —, mas de ser mais pluralistas
que os exemplos estudados, ou seja, conseguirem, em meio à sua forma
de democracia, tolerar mais e de maneira mais duradoura as diferenças
internas. Isso, no entanto, tem muita ligação com uma forma de so-
ciedade especíca, que vive há mais tempo certo tipo de composição
política plural, perante experiências amargas que eles também viveram,
enquanto regimes autocráticos, anteriormente.
Essa forma plural de participação, fundamental para a forma-
ção de governos democráticos, caracteriza, na maioria dos casos, os re-
gimes políticos ocidentais. Mas será que o pluralismo será a pedra de
toque para a formação de governos para Egito e Turquia? Para que o
pluralismo seja efetivo, é preciso que Estado e religião se separem e/ou se
acomodem mutuamente. É preciso que as forças armadas se submetam
a um governo civil eleito. Isso é algo que ainda não se consolidou total-
mente na Turquia e que está apenas começando a acontecer no Egito.
Mesmo assim, tanto em um caso como em outro, ainda falamos de mi-
norias nacionais não efetivamente contempladas – no caso da Turquia,
em relação aos curdos – e minorias religiosas realmente integradas – no
caso do Egito, em relação aos cristãos coptas. Nacionalidades contem-
pladas dentro da nação, secularismo contemplando todas as religiões,
variados graus de religiosidade e participação efetiva da maioria da po-
pulação, sem prejuízo da minoria, são os elementos que formam as bases
pluralistas de uma democracia. Esses são os desaos que o Egito e a
Turquia precisarão enfrentar, considerando o momento atual.
reAlinhAmento dos estAdos egípcio e turco no sistemA
internAcionAl
Em ambos os casos, estamos assistindo a um realinhamento
político. Tanto Egito quanto Turquia estão se afastando de Israel e de
238
Fábio Metzger
países da União Europeia e EUA em alguns aspectos e se aproximando
em outros. Situações delicadas, em que a ambivalência das relações in-
ternacionais requer cuidados e correr riscos signica expor, não apenas
o governo, como também o Estado. Tanto Egito, quanto Turquia são
vizinhos de países onde as mudanças estão acontecendo com grandes
turbulências – no caso da Turquia, a fronteira com a Síria, na qual ocorre
uma guerra civil, e, no caso do Egito, a fronteira com a Líbia, em que,
após a queda do regime de Kadda, existe uma composição política
extremamente precária.
Síria e Líbia são países que vivem a questão da falta de unidade de
comando. Na Síria, províncias de maioria alauita/cristã estão em conito
com as de maioria sunitas, enquanto que na Líbia ocorre o confronto entre
grupos políricos rivais espalhados nas históricas regiões da Tripolitânia
e da Cirenaica. Em todos esses casos, observamos paradoxalmente a
ascensão de setores islâmicos radicais e de grupos pró-democracia.
Nesse sentido, Egito e Turquia cam sujeitos a grandes transformações.
Assim como necessitam marcar posição para contentar esses grupos,
não podem também abrir mão do apoio que recebem historicamente
dos EUA. Assim, ambos os governos buscam mais autonomia entre os
respectivos setores de suas sociedades. Esse reposicionamento tem gerado
importantes consequências na forma como esses países se comportam
atualmente. Ambos cam numa encruzilhada entre ter de se isolar de
países em conito e exercer uma posição de liderança regional. No caso
do Egito, uma posição de isolamento, e maior submissão à crescente
liderança saudita. E no da Turquia, o do crescimento de barganha entre
países do Oriente Médio, a Rússia e os países ocidentais.
6.2 diFerençAs entre os cAsos egípcio e turco
Nesse ponto passamos a especicar o que de diferente tem
acontecido no Egito e na Turquia. Se ambos criaram modos combina-
dos de transição e realinhamento de Estados, como cada um deles está
procedendo? Em qual estágio um e outro se encontram? É possível ob-
servar que a Turquia realizou uma tentativa de transição por mais tempo
239
Egito e Turquia no Século XXI
e, por isso, está mais bem consolidada internamente, apesar dos atuais
retrocessos. Mas de que maneira isso afeta o sistema político turco ou
o egípcio? Cada um vive a seu modo suas transformações. Esses avan-
ços podem ser analisados na forma como os sistemas partidários têm se
constituído: no Egito, um sistema pluripartidário fragmentado e esva-
ziado, em que a liderança forte e concentrada de um presidente militar
tem mais peso. Na Turquia, há um sistema pluripartidário concentrado,
resultado da continuidade de mais de seis décadas de sistemas partidá-
rios, com intervenções periódicas; onde há a hegemonia de um partido
(o AK), um líder carismático (Erdogan) e as Forças Armadas Nacionais.
Estes são os resultados de evoluções mais instantâneas, como no caso
egípcio, ou gradualistas, como no caso turco.
o retrocesso nA turquiA e no egito
O Egito vive, na atual conjuntura, numa encruzilhada política.
Movimentos populares conseguiram realizar uma obra política de enor-
me envergadura, que foi a articulação de uma grande série de protestos
para derrubar um regime autocrático que manietou o país por três déca-
das num estado de emergência. No entanto, tal situação não se traduziu
em um real avanço concreto. Civis e militares do período anterior ainda
conseguiram se sustentar com grande autonomia, o que lhes permitiu
exercer poderes de veto sobre decisões fundamentais da política, no Tri-
bunal Constitucional, no quais magistrados tomaram decisões capazes
de barrar o funcionamento normal da Assembleia Popular, eleita univer-
salmente e por meio das forças de segurança, capazes de impor grandes
constrangimentos aos demais setores da sociedade, especialmente quan-
to à repressão a protestos populares, muitas vezes por meio das forças
armadas, poderosas o bastante para sustentar autonomia na forma como
controlam a sua política de administração de recursos. Não se podem
negar os avanços pontuais dos defensores da democracia no Egito. A
transição do unipartidarismo de fato para o nascente pluripartidaris-
mo, a realização de eleições parlamentares e presidenciais e o surgimento
de novas lideranças são conquistas importantes no desenvolvimento de
240
Fábio Metzger
uma sociedade civil egípcia mais avançada. Isso, no entanto, não favore-
ceu a formação de um equilíbrio de poder democrático.
As forças remanescentes do antigo regime conseguiram manter
os seus privilégios e status de poder. Há também forças religiosas, antes
bastante inuentes na sociedade, que foram colocadas à margem após
terem, episodicamente, ascendido ao poder: só que, ao invés de defende-
rem valores democráticos, apoiaram valores religiosos fundamentalistas:
a sharia, em detrimento da lei civil. Conseguiram, nas urnas, fazer-se
representar enquanto maiorias efetivas, mas não enquanto maiorias de-
mocráticas. Tiveram bastante força para estabelecer, por exemplo, as
diretrizes de uma Constituição, aliando-se com os remanescentes do an-
tigo regime. Nessas horas, o boicote das forças democráticas aos proces-
sos eleitorais ainda não consegue reverter essa hegemonia conservadora.
Mas esta foi uma aliança pontual. Logo, os seculares do antigo regime, e
os revolucionários se uniram para derrubar os islâmicos. Tendo a hege-
monia, de fato, enquanto detentores das forças militares, econômicas e
do controle dos magistrados, os conservadores prevaleceram, e consegui-
ram estabelecer um processo de recuo nos avanços entre 2010 e 2013.
Na Turquia, já havia um cenário mais claro em construção.
Existia um acordo básico entre o governo e o sistema partidário e uma
situação e uma oposição com linhas mais bem denidas, que foram se
renovando a cada novo processo eleitoral. Um governo islâmico em tese
moderado, e uma oposição secular estavam alinhados em um debate
no qual o sistema político não era colocado, per se, em questão. Por
outro lado, começou a avançar um acordo entre Estado e governo,
esse mais recente, em que as bases do antigo Estado secular kemalista
foram preservadas; mas foi permitida uma maior inuência da religião,
sem que isso signicasse a islamização do país, pelo menos nos moldes
de uma república islâmica ou um emirado. De modo que, as urnas,
em determinado momento, foram decisivas para legitimar o partido
dominante, o AK, junto a setores importantes das Forças Armadas, no
redesenho institucional do país. Estado e governo turcos comandados
pelo partido islâmico AK, em parceria com as Forças Armadas renovadas;
a concentração de forças dessas duas instâncias nas mãos do carismático
241
Egito e Turquia no Século XXI
e autoritário líder Erdogan, como primeiro-ministro ou como
presidente. O pêndulo da ideia de governo misto entre democracia liberal
e autocracia, cada vez mais próxima dessa última. Enm, o governo
liderado por Erdogan, seguindo as diretrizes do estamento militar com
relação à nacionalidade curda ou ao episódio do genocídio armênio.
Essas diretrizes, que negam um terrível episódio do passado (a questão
armênia) e uma situação presente que já há décadas perdura (a questão
curda), limitam as possibilidades de construir um Estado realmente
democrático. Se há uma nacionalidade que compõe de 18% a 25% da
população e que não é reconhecida (os curdos), sendo sua armação
plena interpretada pelo Estado como um “insulto” à nação turca, como
esse segmento poderá realmente participar das decisões políticas do país?
Falamos de uma democracia para 75% a 85% da população? Ou de
uma democracia para todos? Estão dadas as condições, para tanto, do
avanço do Estado sobre a sociedade civil e os seus elementos opositores
ao governo. Antes a Turquia negociava para entrar na União Europeia:
aboliu a pena de morte; não executara um dos principais líderes dos
curdos, Abdullah Ocalan, do Partido dos Trabalhadores do Curdistão
(PKK); e ainda julgara e condenou militares participantes de um
governo golpista a partir de 1980; agora retrocedeu nesses temas. Está
perseguindo dissidentes, fechando veículos de comunicação, prendendo
acadêmicos, vozes dissonantes na política, no judiciário, e assim
por diante. De um lado, afasta-se da União Europeia na questão da
integração com o bloco. Por outro, barganha uma posição de poder na
questão de atender os refugiados da guerra civil da Síria, onde a Turquia
acaba tendo um envolvimento mais direto, com consequências ainda
incertas para o futuro.
o pluripArtidArismo histórico turco e o embrionário
egípcio
No que diz respeito à interferência das forças armadas em re-
lação ao sistema partidário, o Egito e a Turquia vivem uma situação de
forte interferência, cada um com as suas características próprias. Desde
que a república foi estabelecida no Egito, o que se vericou foi uma
242
Fábio Metzger
sequência de sistemas essencialmente unipartidários, modicando a es-
sência do partido no comando. Entre 1952 e 1956, ocorreu a primeira
transição de poderes no país, quando Gamal Abdel Nasser se consoli-
dou. Em 1956, o regime unipartidário foi estabelecido sob o coman-
do do partido não alinhado União Nacional Árabe. A aproximação em
relação à órbita soviética teve reexos na mudança da orientação dessa
organização, que em 1962 se tornou a União Socialista Árabe. Após a
morte de Nasser, em 1970, o seu sucessor, Sadat, aproximou o Egito
da órbita norte-americana. E, em 1978, o partido governante mudou o
seu nome para Partido Nacional Democrático, o qual comandou o país
até o início de 2011. Notamos o comando central de uma organização
partidária única e legal, com as outras organizações sendo colocadas à
margem ou na ilegalidade. Assim, a Irmandade Muçulmana, que hoje
participa do governo egípcio, foi uma organização ilegal por mais de
50 anos. Durante o governo de Sadat, nos anos 1970, políticos de ten-
dência nasserista foram sendo afastados. Podemos dizer que houve uma
desnasserização” da política egípcia, com a Intah (reforma) realizada
por Sadat. Essa reforma que proporcionou maior abertura para organi-
zações islâmicas, desde que não existisse um partido político legal que
as representasse. Dessa forma, observamos partidos políticos que saíram
há pouco de uma marginalização em relação ao Estado. Essas forças
não participavam efetivamente da política egípcia até 2011, quando
havia um núcleo de comando da política egípcia em uma associação
de partido único e Estado, com comando do antigo PND de Sadat e
Mubarak. Hoje, o que temos é uma experiência relativamente recente
de pluripartidarismo, na qual os antigos mubarakistas compõem uma
direita restauracionista, os nasseristas lideram uma esquerda nacionalis-
ta e a Irmandade Muçulmana, um centro conservador, em um sistema
de coalizões de diversos partidos e tendências que ainda buscam uma
agenda política comum, tanto na situação como na oposição. Podemos
falar, portanto, que esse ainda é um primeiro alinhamento partidário. A
coexistência dessas forças dentro de um mesmo sistema é algo um tanto
recente, portanto sujeito a grandes turbulências e alterações.
Em contraste, a despeito das inúmeras intervenções do Estado
no sistema partidário e de governo, a Turquia já conhece há mais tempo
243
Egito e Turquia no Século XXI
um sistema pluripartidário, no qual várias forças coabitam o ambiente
político. As interferências do estamento militar turco não eliminaram o
funcionamento do sistema pluripartidário, a despeito do grande impac-
to que elas causaram. Esse sistema político pluripartidário já existe na
Turquia há mais de 60 anos, desde 1950. Ao longo das décadas de 1960,
1970 e 1980, assim como nos anos de 1990 a 1997 e de 1997 a 2003,
o Estado Maior realizou golpes e removeu governos, mas não modicou
a característica do pluripartidarismo, apesar de ter colocado na ilegali-
dade uma série desses partidos. Então, podemos armar que a Turquia
apresentou de 1950 a 2003 um regime político pluripartidário tutelado
por um comando militar. Essa tutela tem perdido bastante de sua força
desde então, uma vez que o partido islâmico AK assumiu o poder e
realizou uma composição política com outros partidos em uma coali-
zão governamental. Um setor importante dos partidos políticos ligados
aos governos anteriores assumiu o papel de oposição, de modo que já
podemos observar um realinhamento das forças partidárias turcas. Se
de 1950 a 2003 existia a polarização de kemalistas à direita (do Partido
Democrático) e à esquerda (do Partido Popular), hoje, observamos essas
forças partidárias sendo, de fato, éis da balança em um governo lidera-
do pelo AK.
Assim, foi possível por um longo tempo vericar certo grau
de equilíbrio na Turquia entre representatividade e governabilidade.
Mais governabilidade que representatividade, na medida em que apenas
quatro partidos se representam no parlamento de 550 deputados. Isso
ocorre porque existe uma cláusula que impede que partidos com menos
de 10% do total dos votos válidos se representem. Em 2013, o maior
partido, o AK, possuía 326 cadeiras, 59,27% do total – tendo obtido
49,3% da votação válida (TURKEY, 2013), de maneira que o governo
comandado pelo AK já tem mantido certa estabilidade há cerca de dez
anos contínuos. No Egito, a correlação de forças entre os partidos ainda
não está consolidada. Os grupos mais ligados ao antigo regime estão
mais organizados, e as organizações democráticas e liberais ainda não
estão completamente articuladas em um objetivo comum. No entanto,
elas têm um grande potencial para avançar e se consolidarem como força
política, gerando um novo equilíbrio político.
244
Fábio Metzger
A trAnsFormAção AbruptA egípciA e o grAduAlismo turco
No Egito, ocorreu um processo de transformação bastante rá-
pido em um período relativamente curto de tempo. Um regime antigo
foi derrubado com a participação ativa da população e de movimentos
populares. A partir daí ocorreram avanços na política do país imediatos
e repentinos, o que podemos perceber no período entre 2003 e 2013.
O Egito saiu de uma autocracia para a formação de um governo misto
clássico, retrocedendo para um regime restauracionista, que foi se fe-
chando cada vez mais, como nos dias atuais. Em contraste, a Turquia
teve uma transição mais lenta nos últimos dez anos, mas mais constan-
te. Houve uma mudança de governo, assumindo o poder um partido
islâmico inicialmente moderado, que adotou medidas mais graduais.
Houve mudança de governo em 2002, por meio de eleições, mas não de
regime, por meio de uma revolução. Aconteceram choques entre gover-
no e Estado, incluindo uma tentativa de golpe mal sucedida por parte de
setores do exército. Antigos membros do exército que lideraram o golpe
de Estado de 1980 – quando, inclusive, ministros foram fuzilados – fo-
ram levados a julgamento. Mas tudo isso sem que as regras básicas de
funcionamento do sistema político tenham sido modicadas. Por outro
lado, a longa permanência no poder de um mesmo partido, sob a lide-
rança de um só líder (Erdogan), foi redesenhando as instituições turcas,
a ponto de serem redesenhados acordos entre Estado e setores religiosos
da sociedade. A Turquia não se transformou em uma república islâmica,
como o Irã. Mas cou notório o avanço da religião e do autoritarismo
dentro do Estado, até que em 2016, nalmente os valores de um Estado
autocrático se impuseram sobre o de práticas democráticas.
Certamente, podemos nos lembrar de alguns fatos históricos
distantes, quando percebemos as reações mais abruptas no Egito, e as
mais lentas e duradouras na Turquia. Isso diz respeito a um longo pro-
cesso de construção de Estado, onde avanços e retrocessos estão direta-
mente relacionados à experiência da população em lidar com as estru-
turas políticas históricas. Assim, vamos nos lembrar de que a queda da
monarquia na Turquia ocorreu em 1922, enquanto a do Egito acon-
teceu em 1952. Por isso, estamos falando de um processo político que
245
Egito e Turquia no Século XXI
demorou 30 anos a mais que o outro: essa diferença é fundamental na
transição política de um país em comparação com o outro.
6.3 A revolução pelo Alto e o trAnsFormismo político
Ao tratarmos do processo revolucionário no Egito, devemos
então identicar que revolução é essa. No seu conjunto, foi possível
observar um processo de revolução pelo alto; os setores hegemônicos
remanescentes e emergentes se posicionando e compondo uma nova
formação política, enquanto os setores populares, apesar da grande força
que tiveram para derrubar o antigo regime, não conseguiram se estabe-
lecer na formação do novo.
Ao analisar não o conjunto do processo revolucionário, mas
sim as suas etapas, podemos observar outra tendência: a síntese de uma
revolução popular que derrubou um regime e de uma contrarrevolu-
ção conservadora apropriada pelos setores dominantes da sociedade, os
quais mantiveram os seus privilégios e parte fundamental do comando
do país. Esse conjunto de revolução popular e contrarrevolução resulta-
ram em uma revolução pelo alto, liderada temporariamente pela Irman-
dade Muçulmana, a qual conta com penetração popular semelhante à
dos movimentos democráticos ou até maior que a deles, e reapropriada
pelos antigos setores, refazendo a releitura dos seus interesses, pós-revo-
lução. Podemos perceber bem o princípio de mudar para manter tudo
do jeito que está
2
, como citado na obra literária Il gattopardo (LAM-
PEDUSA, 2005), ou o de fazer uma revolução antes que o povo a faça
(uma declaração atribuída ao ex-governador de Minas Gerais, Antonio
Carlos, durante a Revolução de 1930 no Brasil).
Já na Turquia, não se tratou de uma revolução, mas sim de
um processo de transformações constantes dentro de um mesmo regi-
me. Nesse aspecto, observamos um processo de transformismo, em que
as estruturas políticas são modicadas apenas gradualmente. Não é um
processo de revolução, mas sim de transformação. Isso sucede quando,
dentro de uma mesma estrutura, acontecem mudanças sem que ela seja
Em Lampedusa (2005, p. 32): “bisogna che tutto cambi perché tutto resti com’è”.
246
Fábio Metzger
fundamentalmente alterada. Setores antes periféricos da sociedade turca
foram ascendendo em espaços importantes da sociedade política, como
os segmentos islâmicos. Esses setores utilizaram de elementos já conso-
lidados dentro do sistema político institucional. A partir desse avanço
ocorreram algumas transformações importantes, como a alteração da
antiga Constituição. Houve uma evolução, não uma revolução. Setores
antes centrais, como o exército, recuaram, mas conseguiram sustentar o
acordo básico da república turca formada nos anos 1920. Esse acordo
preservou como pilares ociais o Estado secular e a postura não religio-
sa, apesar de um maior relaxamento com a presença do islã em espaços
públicos. Os islâmicos abriram mão de realizar um processo de islami-
zação das sociedades civil e política na Turquia, tal como seria em uma
república islâmica como a do Irã. Em vez disso, realizaram reformas
conservadoras, que deram mais força para setores predominantemente
religiosos, pela hegemonia de espaços, naquilo que entendemos como
um transformismo.
6.4 AlgumAs questões sobre o governo misto
Nós não estamos discutindo teoria e realidade, estamos traba-
lhando com modelos das teorias das formas de governo e os casos reais
de Egito e Turquia. E quais destes modelos mais se aproximam das rea-
lidades destes países. Os governos puros existem no concreto pensado;
observamos, no concreto real, quais formas de governo se aproximam
desses tipos ideais. Primeiro, é preciso denir bem o que entendemos
como governo misto. É necessário retomar, nessa discussão nal, o signi-
cado de tal conceito para podermos compreender as ideias que estão
sendo trabalhadas. Comecemos pela seguinte armação: todo governo
é resultado de uma composição de forças. Uma forma determinada de
governo é o resultado da reformulação de outros governos anteriores no
tempo. Em tese, isso nos faz pensar que ao longo do tempo não existiu,
a não ser talvez em origens remotas, um governo totalmente puro na
realidade histórica concreta.
247
Egito e Turquia no Século XXI
No entanto, a proposta deste trabalho não é investigar as ori-
gens do primeiro governo da história e chegar até os tempos atuais em
que analisamos modelos de governos, a democracia e a autocracia, em
dois casos contemporâneos: o Egito e a Turquia. Trata-se de partir de
denições de modelos puros para analisarmos concretamente ambos
os casos. Esses modelos puros são encontrados no tempo e na história
enquanto uma formulação bem-acabada do moderno Estado nacional.
Esse Estado politicamente centralizado e apoiado por uma burocracia
civil e militar pode ser puro na medida em que ele é monárquico (gover-
no de um), aristocrático (governo de poucos) ou republicano (governo
de todos). Modernamente, também se pode adotar uma forma pura de
governo, na medida em que ele é autocrático (de caráter totalitário ou
autoritário), liberal (quando prevalecem os direitos da minoria) ou de-
mocrático (no qual vigora o princípio da maioria).
São denições puras que podem ser localizadas ao longo de
inúmeras formas de governo misto. Monarquia constitucional, repú-
blica representativa ou democracia liberal; entre um extremo e outro,
podemos até encontrar monarquias absolutas ou democracias radicais,
que são exemplos máximos de todas essas denições puras. Uma monar-
quia absoluta sem nenhum parlamento; ou então um governo em que
todos participam diretamente e são efetivamente representados e em que
prevalece a vontade coletiva mais ampla. No entanto, essas denições
teóricas são postuladas idealmente, e não no concreto real.
Nos presentes casos, observamos que Egito e Turquia não
são apenas repúblicas, também não são rotulados como “democracias
e tampouco pode se qualicar seus regimes como “absolutos”, mas
são países com elementos republicanos (por exemplo, ambos elegem
presidentes, ao invés de coroar monarcas) e características democráticas
(os parlamentos são eleitos por sufrágio universal) aos quais se somam
resquícios de um período anterior absoluto (quando reis ou generais
interferiam diretamente na montagem de governos e na organização de
Estados Maiores). Se Egito e Turquia têm características republicanas,
democráticas e autocráticas em seus respectivos Estados e governos,
como poderemos nos referir a eles? Aqui, retornamos à denição de que
248
Fábio Metzger
puderam ser governos mistos, mas pensando nas denições dos ciclos
aristotélicos. Teoricamente, eles poderiam se construir enquanto gover-
nos mistos, enquanto aquilo que de melhor eles poderiam produzir em
seus respectivos estágios históricos. No entanto, ambos degeneraram
para formas modernas de autocracias, em que os esqueletos dos gover-
nos mistos lá estavam. E, em ambos os casos, a presença de um autocrata
se faz presente, mais uma vez. No caso da Turquia, com Erdogan. No
caso do Egito, com Sissi. Os dois governantes procuram dar formas de
representar formalmente minorias, dar aparência de pluralidade. No en-
tanto, o que se vê, é uma associação de setores religiosos e militares na
Turquia; e leigos e militares no Egito; que se estabelecem através da força
em relação aos demais membros do que seria teoricamente um pacto
político representativo. É, na prática, o Estado legitimando a si mesmo,
em detrimento à vontade popular, na gura de um cidadão principal.
É necessário esclarecer que no outro extremo, em países onde
os valores democráticos são respeitados, não existe a total liberdade. Es-
ses países ltram a participação popular, por intermédio de eleições e da
criação de mecanismos representativos indiretos. Esse ltro só acontece
por conta de um processo histórico por eles vivenciado. Podemos tomar
a França como exemplo: será que esse país, avançada que é a partici-
pação da sua população, pode ser considerado uma “democracia”? Ou
então uma forma mista de governo, que denimos como “democracia
liberal”, sob regime republicano? Dentro da história europeia e ociden-
tal, faz sentido denirmos a democracia liberal republicana como uma
forma mista de governo, forma essa que tem tido a sua funcionalidade.
Isso é o resultado, no entanto, de uma prolongada história de lutas, em
que cada parte necessita abrir mãos de suas pretensões absolutas de seus
projetos de poder especícos, a m de que possam coexistir em nome
de um bem comum maior. Ao considerar que na Europa Ocidental já
ocorreu um processo mais amplo de separação entre Estado e religião,
podemos falar de governos mistos laicos, ou seja, com o papel de um
governo de Deus” (ou teocracia) reduzido ou inexistente. Por outro
lado, questionar que a separação de religião e Estado ainda está em pro-
cesso não acabado nos países do Oriente Médio, podemos então falar de
um governo que inclui a participação de um relevante setor que faz parte
249
Egito e Turquia no Século XXI
da esfera religiosa. A equação democracia, liberalismo e república sofre
uma importante intervenção, qual seja a denição de teocracia. Trata-se
de mais um elemento que interfere na formação desses governos médio-
-orientais. Nesse caso, como podemos deni-los? Repúblicas democráti-
cas liberais eles não são, pois o liberalismo evoca a liberdade individual,
e essa só pode existir na medida em que um clero (ou um estamento)
não interfere no dia a dia das populações. Então, do que falamos, anal?
De repúblicas democrático-teocráticas? Ora, mas onde está a coerência
nessa denição contraditória, em que a classicação de um “governo de
todos” coexiste com a de um “governo de Deus”?
Dessa forma, podemos apenas falar do Egito e da Turquia den-
tro de uma vivência bem especíca. O Egito foi por ora um governo
misto saído recentemente de um regime autocrático, e que retornou a
uma nova autocracia; e a Turquia foi um governo misto mais próximo
de um modelo de democracia liberal, que perdeu suas liberdades míni-
mas e viu ascender uma nova forma de autocracia. Viveram em graus e
períodos diferentes na escala intermediária de uma transição do que se
entende como “puro” autocrático e democrático – e uma transição que
não necessariamente far-se-ia pela via do liberalismo, que é a experiência
conhecida por países europeus e americanos. Então, quando falamos de
governo misto, não nos referimos a uma mera mistura de formas e princí-
pios de governo. Mas sim a um modo de transição de formas de governo
entre a autocracia e a democracia. Onde, a ausência de um mínimo co-
nhecimento do que é uma ética plural e tolerância pode fazer com que
um país retroceda para formas autocráticas de poder.
6.5 À guisA de conclusão: A democrAciA como método e
como vAlor
Em 24 de abril de 2013, portanto antes do golpe de Estado que
mais tarde (em julho) estava por depô-lo, o presidente Morsi suspendeu
as suas eleições parlamentares, e estabeleceu mais seis meses para que ela
fosse realizada. Enquanto a Turquia estava em negociações com os com-
batentes rebeldes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK),
250
Fábio Metzger
para que encerrassem a sua luta armada, de forma que os curdos priori-
zassem não mais a incorporação do sudeste turco a uma futura república
do Curdistão, mas sim a integração enquanto nacionalidade dentro da
Turquia. De forma que em 2015, foi eleito para o parlamento turco,
um partido à esquerda com forte representação curda, o HDP. Poste-
riormente, com as intervenções diretas do regime de Erdogan, membros
desse partido passaram a sofrer perseguições, assim como dissidentes de
outras organizações, populações da Sociedade Civil e dos poderes cons-
tituídos do Estado. São dois movimentos que expõem claramente até
onde um Estado e as suas respectivas populações podem se utilizar da
democracia enquanto método ou então como valor.
Enquanto valor, entendemos a democracia enquanto um go-
verno de todos. Uma denição dos antigos, no século V a.C. Mas até
onde esse governo pode representar a todos de forma que exista uma
participação efetiva de toda a população? Onde estão as perfeições e as
imperfeições do sistema, que fazem com que a democracia seja apenas
um método para governar ou então algo que já está incorporado a uma
sociedade? É preciso que essa sociedade desenvolva uma prática pluralis-
ta e que possa, dessa forma, traduzir democracia, de método, para valor.
A experiência do mundo ocidental, nesse sentido, ocorreu por meio do
princípio do liberalismo. Uma denição dos modernos que começou a
ser construída no século XVI. Democracia e liberalismo têm princípios
que aparentemente são contraditórios: o liberalismo busca combater a
tirania da maioria e a democracia se coloca contra a apatia da maioria.
Na associação entre democracia e liberalismo, as regras do jogo são cer-
tas, o que não é certo é o resultado. Essa incerteza é algo com a qual o
Egito não está acostumado a conviver. A Turquia, por sua vez, já convive
com elementos dessa forma de governo. Apesar de historicamente não
terem tal tradição, podemos dizer, sim, que tal tradição pode ser con-
quistada e desenvolvida. Anal, apesar de possuírem tradições bem dis-
tintas das dos países ocidentais, egípcios e turcos não estão alheios às
ideias que vêm da Europa ou dos EUA. Algumas de suas questões são
semelhantes a problemas com os quais o mundo ocidental vive ou viveu.
251
Egito e Turquia no Século XXI
Por isso, a primeira pergunta que fazemos, após as investiga-
ções que neste trabalho realizamos, é uma leve, mas necessária, provo-
cação: se certo povo, em determinada parte do mundo, for instado, de
maneira espontânea, a responder se ele prefere a democracia a outro re-
gime, qual será a sua resposta? A resposta, básica e franca, que vem em
primeiro lugar é: “não sei”. Ao pensar a Alemanha de 1933, certamente
a maioria dos alemães democraticamente optou por um governante não
democrático e a consequência foi a criação de autocracia totalitária. A
Rússia czarista, uma autocracia derrubada por uma revolução popular
em 1917, seguiu não o caminho para um regime democrático, mas sim
outra forma de autocracia já a partir de 1922, com o m da guerra civil,
com o governo monopartidário do Partido Comunista da União Sovi-
ética (PCUS), líder único (Stalin) e economia totalmente planicada.
Seja em um modelo capitalista – que seguiu para o regime de partido
único na Alemanha –, seja em um socialista – que estabeleceu um regi-
me marxista-leninista, em sua versão mais totalitária sob Stalin –, as pos-
sibilidades de evolução para a democracia foram descartadas – no caso
alemão, pela via eleitoral e, no russo/soviético, pela revolução. No caso
alemão, o regime que permitiu a construção da democracia de Weimar
vivia uma crise séria de governabilidade. A população não acreditava na
democracia enquanto instrumento para atingir-se o bem-estar, após a
humilhação da derrota política da Primeira Guerra Mundial e da crise
econômica que se seguiu.
Nesse sentido, podemos aproximar esse exemplo do exemplo
de um país muçulmano, que também pode estar sujeito a algo seme-
lhante pela via eleitoral, mas que, em vez de eleger um partido nazifas-
cista de modelo europeu, escolhe um partido islâmico. Foi usando essa
alegação na Argélia, de 1991 a 1992, que os militares do país impediram
a vitória da Frente Islâmica de Salvação (FIS), interrompendo o processo
eleitoral, o que acabou resultando em uma guerra civil que teve mais de
100 mil mortos. No caso argelino, sequer poderíamos falar em desenvol-
vimento de uma sociedade civil que pudesse fazer uma crítica denitiva
da democracia enquanto valor. Certamente, era um método útil para
eleger um partido islâmico, a FIS, que defendia a aplicação da sharia.
Aos olhos da população, a democracia poderia ser um instrumento mais
252
Fábio Metzger
ecaz do que a antiga autocracia monopartidária controlada pelo tam-
bém antigo partido secular Frente de Libertação Nacional (FLN), des-
gastado perante a população.
Tudo isso serve para explicar que a democracia, sem dúvida,
é um valor. Um valor que tende ao universalismo, se praticado por
diversas pessoas ao mesmo tempo, de forma compartilhada que pode,
teoricamente, produzir um intercâmbio de ideias muito maior entre
os setores da sociedade, gerando tolerância e moderação na hora de ser
formulada uma política comum. Nesse sentido, é um valor positivo.
Regimes democráticos são mais inclusivos, porque, pelo maior uxo
de ideias, permitem formulações menos estanques e mais maduras de
políticas. Mas isso só acontece na medida em que o jogo democrático
se desenvolve dentro de uma ética pluralista, sendo o pluralismo en-
tendido como uma forma de cada um defender a sua posição sem que
os demais atores percam o direito ou a prerrogativa de defender as suas
próprias posições.
Entretanto, por meios democráticos, podem ser eleitos líderes
e partidos que não compartilham de uma forma plural de fazer política.
No limite, tais lideranças e organizações podem, mais do que ferir um
modelo democrático, esvaziá-lo e colocá-lo a serviço de uma só pessoa ou
um só grupo, como aconteceu na Alemanha, com a ascensão de Hitler
e do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nazista).
Enquanto método, a democracia foi extremamente ecaz para o povo
alemão, que tirou do poder o Partido Social Democrata (SPD), que
não vinha obtendo bons resultados econômicos e sociais para a maior
parte da população e colocou outro partido que inicialmente foi mais
bem-sucedido nesses objetivos, restabelecendo o pleno emprego e aca-
bando com a inação do país. No entanto, se o SPD aceitava um regime
repleto de falhas, tolerava também a diferença entre os diversos atores
políticos, permitia situação e oposição, bem como o debate entre ambos,
o que caracteriza a existência do pluralismo. Para o nazismo, a pluralida-
de de opiniões deveria ser radicalmente eliminada em benefício de uma
organização e liderança únicas. Essa liderança monolítica combatia o
253
Egito e Turquia no Século XXI
pluralismo, ao proibir o funcionamento de uma imprensa opositora ou
a existência de outros partidos.
Podemos, mais uma vez, colocar o regime nazista como uma
denição extremada, em que não há espaço para governos mistos, tam-
pouco para democracias liberais: é a autocracia totalitária em sua mais
pura realização. Do mesmo modo, a URSS de Stalin, enquanto modo de
governo socialista, também pode ser citada como um modelo bem-aca-
bado de autocracia totalitária, mas não estamos interessados na maneira
como as formas puras de governo funcionam, até porque as estamos
denindo apenas em termos teóricos, ou seja, como concreto pensado
e não como concreto real. O nazismo é uma exceção, assim como foi a
URSS stalinista. Estamos mais interessados em notar como Turquia e
Egito foram capazes de sustentar governos mistos, enquanto um grau
intermediário de regime político. Tendo essa forma de governo dois ex-
tremos: 1) a autocracia totalitária, em uma matriz mais próxima ao na-
zismo ou ao stalinismo; e 2) a democracia direta, mais próxima ao que se
construiu nos cantões da Suíça, enquanto governos que funcionam com
base em constantes referendos populares. Podemos explicitar uma esca-
la, que começa no tipo puro de autocracia totalitária, depois passa pela
autocracia autoritária, pelo governo misto e pela democracia indireta
(ou liberal), nalmente atingindo outro tipo puro extremado, denido
como a democracia direta.
No Egito e na Turquia, tivemos casos de referendos (em maior
grau e mais adesões no caso turco); e certa experiência de eleições plu-
ripartidárias, grande na Turquia, limitada no Egito. Os referendos são
referências do que se pode obter em um sistema democrático direto, e as
eleições pluripartidárias, do que se pode obter em uma democracia indi-
reta. Há também em ambos os casos a interferência de setores da religião
islâmica e do exército (sem falar de setores ligados ao antigo regime, no
caso egípcio), levando a alterações no processo dessas eleições e referen-
dos, o que distancia de modelos democráticos os dois países. Mas não se
pode, nem em um caso, nem em outro, pelo menos por ora, classicar
o AK ou a Irmandade Muçulmana de organização totalitária (designa-
ção atribuída ao Partido Nazista e ao Partido Comunista da URSS),
254
Fábio Metzger
nem Erdogan, Morsi ou Sissi de déspotas totalitários, categoria em que
se enquadram Hitler, na Alemanha, e Stalin, na URSS. Podemos sem
dúvida, qualicá-los na categoria de lideranças autocráticas autoritárias,
como as de Kemal Ataturk, na Turquia, ou Mubarak, no Egito. Não são
líderes de sociedades civis liberais, com uma tradição pluralista de fazer
política, mas sim de sociedades, onde podem ter setores com elementos
civis democráticos e liberais (claramente minoritários no Egito, fortes e
presentes na Turquia, apesar de, no momento, estarem perdendo terre-
no) que coexistem com fortes elementos religiosos, autoritários/nacio-
nalistas e militares. São, sem dúvida, presidentes (chefes de Estado e/
ou governo) de sociedades políticas que poderiam ter a possibilidade de
democratização e liberalização, em seus respectivos Estados nacionais,
enquanto instituições em processo de evolução – e, no caso egípcio,
recém-saído de uma revolução. O que temos, de fato, são sociedades
milenares construídas a partir de Estados jovens. Estes, tendo herdado a
tradição de um antigo Império Islâmico, buscaram conciliar elementos
da cultura ocidental de Estados nacionais modernos, na medida em que
se descolonizaram (ou foram formados), e agora, mesmo expostos às
ideias das democracias liberais, ainda se debatem com resistências do
presente e do passado. É exatamente esse um estágio intermediário, em
que podem coexistir princípios democráticos diretos (como os referen-
dos), democráticos indiretos (o sistema parlamentar pluripartidário),
autocráticos autoritários (como a intervenção das forças armadas desses
países, a m de tutelar o sistema como um todo) e autocráticos totalitá-
rios (o constante risco de esses países recuarem para o ultranacionalismo
ou o “governo de Deus” dos islamistas). A essa forma, denominamos
governo misto”. E, no caso, o modelo de um governo misto autoritário,
e é em torno dele que podemos situar Egito e Turquia, cada um em seu
estágio particular e peculiar.
O Egito viveu as divisões e os embates das forças revolucio-
nárias e contrarrevolucionárias, onde as últimas acabaram que por pre-
valecer. Assim, pudemos observar um recuo a formas mais autoritárias
de governo, em um regime restauracionista comandado pelos antigos
membros do regime de Mubarak. Essas formas autoritárias foram cons-
truídas, não sem fortes choques entre o novo governo de Sissi e os mem-
255
Egito e Turquia no Século XXI
bros da Irmandade Muçulmana, e outros setores que foram sendo co-
locados à margem. O Estado egípcio ganhou contornos de um Leviatã
hobbesiano revisitado, e atualizado para o contexto do século XXI. A
Turquia, por sua vez, assistiu a um acordo com setores das forças ar-
madas e dos religiosos que compunham o Estado, onde nalmente se
consolidaram no poder. Estabelecendo, assim, uma nova hegemonia. A
partir de setembro de 2016, com o consco de veículos de imprensa,
prisões de jornalistas, magistrados e membros da oposição, outra forma
de autocracia autoritária se compôs desta vez, em Ancara, sob a liderança
de Erdogan, utilizando-se de instrumentos teoricamente democráticos.
E é aqui que ca a questão: como pensar a democracia enquanto ins-
trumento? E como pensá-la enquanto valores? Podemos aceitá-la apenas
como vontade da maioria? Ou também como o respeito às minorias? O
caso turco deve ser analisado sob este prisma. Pois, diante dos desejos
majoritários, a falta de garantias sobre as minorias nacionais pode forjar
uma tirania majoritária, e assim um Estado Autocrático, legitimado pelo
voto, e sustentado por um acordo de grupos especícos do Estado, e
estratégicos que fazem a ligação entre este e a sociedade civil.
Pouco adianta pensar nos avanços democráticos de um país,
se a construção de uma ética pluralista não for estabelecida de maneira
sólida. O uso das maiorias para atingir objetivos especícos, como Er-
dogan e o AK zeram na Turquia é um exemplo bem claro de como a
democracia pode ser pensada como instrumento, e não como valor. As
bases para pensar um projeto democrático, por outro lado, dependem
muito do cumprimento de acordos básicos. Se estes não são minima-
mente seguidos, segue-se a vontade do mais forte. E sequer a maioria
tem a oportunidade de participar efetivamente. A Irmandade Muçulma-
na detentora das maiorias votantes e os remanescentes do Mubarakismo
insistiram em não cumprir esses acordos básicos. Os últimos, em não
respeitar os resultados de uma eleição parlamentar, e os primeiros, em
lançar um candidato à presidência. Em grande parte, poderiam ter con-
tribuído para fazer surgir forças seculares que pudessem participar como
atores mais centrais em um primeiro momento no processo de escolhas
parlamentares, de modo que os religiosos pudessem ser participantes
graduais do processo político. No entanto, é preciso apontar essa não
256
Fábio Metzger
escolha, inclusive, devido à falta de experiência no exercício da política
eleitoral da sociedade egípcia. E isso só poderá acontecer, em um exame
consciente da própria população e sociedades deste país.
6.6 A pAz no oriente médio: primAverAs e invernos
Nos casos aqui estudados, pudemos observar que a ideia de go-
verno misto é de precariedade e tende mais para, no atual momento, au-
tocracia do que democracias liberais. No entanto, é preciso olhar além,
para poder compreender o que o Oriente nos permite pensar enquanto
esta ideia de governo pode nos permitir vislumbrar para algo mais am-
plo. O fato real é que o Oriente Médio vive uma “paz” armada cujos
condicionantes principais não fazem parte da política interna dos res-
pectivos países, mas sim de um macrossistema de Relações de poderes,
em que o Egito é peça central, pelo menos no Mundo Árabe. A queda
de Hosni Mubarak alterou ligeiramente os alicerces desse sistema. No
entanto, não desmontou a estrutura fundamental da lógica de comando.
São Estados Nacionais centralizados, sob a vontade de suas corporações,
seus reis ou seus déspotas que comandam as relações fundamentais des-
ses países e não os seus respectivos povos. Alguns Estados do Oriente
Médio tiveram a evolução de um sistema despótico para regimes de go-
verno misto. A Tunísia, a Líbia, o Iraque ou Iêmen, com a república, ou
o Marrocos e a Jordânia, com a monarquia, por exemplo, tiveram essa
evolução. Mesmo assim, nos casos marroquino e jordaniano, ainda com
forte inuência do braço do rei. Na Líbia e no Iêmen, o sistema eleitoral
não foi capaz de aplacar as disputas ideológicas entre islâmicos e secula-
res, entre clãs e entre regiões. No Iraque e no Iêmen, soma-se ao conito
de xiitas versus sunitas, uma questão que já aige o Líbano há muitas
décadas com um sistema eleitoral próprio baseado em sectos religiosos,
sub-religiosos e comunitários.
Então, o governo misto não é necessariamente uma solução,
mas sim uma possibilidade. Mas não o governo misto a partir do que se
deniu nos clássicos greco-romanos e com Maquiavel, quando o prin-
cípio de estabilidade é importante, para não dizer fundamental. Mas é a
257
Egito e Turquia no Século XXI
sombria e preocupante denição de governo misto enquanto construção
provisória. A triste notícia é que em alguns casos esta é a medida que
resta para não se mergulhar em uma guerra civil como a que a Síria vive.
Um acordo mínimo de setores políticos, no qual um equilíbrio pouco
estável é gerado até que o próximo desequilíbrio desestrutura a frágil
correlação de forças desses países. Por outro lado, é possível que um país
do Mundo Árabe possa criar uma forma estável de governo misto? O país
que talvez pretenda exportar esse modelo é a república da Turquia, onde
um governo islâmico consegue se manter há mais de dez anos no poder
de um Estado secular. Onde existem alguns espaços em que se notam
tendências de democratização (SANÇÕES..., 2011). Mas onde, entre-
tanto, existem outras instâncias dentro do país sujeitas à islamização
antidemocrática e à reação militaristas, que de tempos em tempos gera
tensão entre governo e Estado.
Nesse sentido, o caso turco poderia estabelecer um horizonte
para se pensar a forma de convivência entre as esferas laica e religiosa de
uma sociedade muçulmana, de modo que pluralismo político e a circu-
lação de ideias não sejam sacricados, seja em nome do militarismo, ou
em benefício da lei islâmica. Um acordo que modere as esferas religiosa
e laica da sociedade turca é um bom exemplo do que outras sociedades
muçulmanas podem experimentar para si. No entanto, os fatos que têm
acontecido desde julho de 2016, nos fazem ter que repensar a questão
do governo misto enquanto categoria de análise, não como um modelo
nal, mas como algo a se pensar em outros casos. A Tunísia pós-Ben Ali,
por exemplo, tem a oportunidade de se aproximar de tal modelo. Assim
como Marrocos, Jordânia e Argélia, desde que se estabeleçam acordos
nacionais onde o modus vivendi da religião e o seu status político não
interram no dia a dia do setor leigo, mais integrado à economia e às
políticas globais. Trata-se de um acordo difícil, no entanto, possível, se
as partes envolvidas souberem delimitar com clareza a fronteira entre a
vida civil e a religiosa de seus respectivos países. Tal processo, dentro do
islã, é acidentado já no momento em que se sabe que o limite que separa
as instituições religiosas das civis é bem menos nítido que no caso das
cristãs, em que a hierarquia de uma Igreja já está posta, em contraste
com a sociedade civil. Enquanto a base do islã é formada pela própria
258
Fábio Metzger
denição de comunidade dos éis (umma). Por mais rmes que sejam os
acordos entre clérigos e membros da sociedade civil, existe sempre a pos-
sibilidade de uma dissidência a contestar tal pacto, obrigando a todas as
partes a um novo acordo. De todo modo, a Turquia, se não se apresenta
como um caso democrático-liberal, ao menos pode oferecer um mode-
lo em que a sociedade civil moderna e a religiosa tradicional possam,
através de um acordo Estado-governo, construir um governo misto, com
uma esfera secular e outra religiosa, mantendo em acomodação os seus
princípios opostos operantes.
E aqui pode car uma pergunta. E Israel? Bem, nesse caso te-
mos o outro lado da moeda. Um país que se declara democrático e que
sustenta uma série de limitações políticas, cujo resultado é, de fato,
um misto em que convivem a participação popular, a separação entre
povos de diferentes origens, o militarismo e a religião enquanto deni-
dor identitário do Estado e da sociedade em maior ou menor grau. O
desao dos israelenses em criar um Estado ao mesmo tempo judaico e
democrático esbarra na não-denição de seu status político em relação
aos seus rivais históricos, os palestinos, cuja terra vem sendo, há dé-
cadas, colonizada e retalhada. Nesse sentido, Israel é bem menos uma
democracia do que um governo misto com alto grau de estabilidade e
os presidentes e primeiros-ministros vão entrando e saindo de suas
posições em processos políticos regulares. No entanto, isso só aconte-
ce na medida em que membros das Forças Armadas israelenses estão
intimamente ligados a posições executivas e legislativas do jovem país
que, desde a sua fundação, vive em Estado de guerra, o que presume
que não se trata de uma situação exatamente normal. Onde religiosos,
embora minoritários, têm a margem de manobra necessária, tal qual
nos países muçulmanos, de realizar constrangimentos que alteram o
funcionamento da vida pública comum. A força de seu exército torna
o Estado de Israel uma fonte paradoxal: gera segurança maior perante
uma possível guerra para os seus cidadãos; no entanto, gera uma imen-
sa insegurança para os seus vizinhos se um governo mais extremista for
eleito, ainda mais sob o beneplácito de Washington.
259
Egito e Turquia no Século XXI
E o Irã? Este é outro caso emblemático. Pois aqui, apesar de ter
claros atributos de governo misto, para todos os efeitos, já se apresenta
como uma república islâmica. A priori, a lei religiosa é ponto de partida
para tudo. Eleições, espaço público, divisão do trabalho, produção, etc.
De qualquer forma, é possível notar que está bem claro com quem está
a palavra nal: com o líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei. A margem
de manobra da Assembleia ou do presidente, e mesmo o Conselho de
clérigos, é pequena. As instituições republicanas, como o Exército, so-
frem o contrapeso decisivo das islâmicas como a Guarda Revolucionária.
Trata-se de uma separação institucional com linhas muito claras. De
tempos em tempos, este país sofre crises internas, em que os setores me-
nos e os mais religiosos entram em convulsão, que é quando a Guarda
Revolucionária e Khamenei entram como interventores decisivos. En-
quanto liderança de um governo de mais de dezenas de etnias, e mais de
70 milhões de habitantes, até conseguirem alguma estabilidade. Mas a
que custo? E que tipo de governo?
Ou seja: não é possível nem mesmo dizer que um governo mis-
to estável pode ser resposta para questões urgentes do Oriente Médio.
Porque a questão talvez nem seja a estabilidade do regime, que já ajuda
muito na previsibilidade do funcionamento do país. No entanto, cer-
tamente é decisiva a educação política desses povos. A realidade é que
nenhum país conquista um alto grau de democratização, ou ao menos
de abertura política, sem que se tenha um acúmulo de lutas políticas. Se
lembrarmos de como França e Grã-Bretanha mergulharam em guerras
civis e entre outros países, processos revolucionários, períodos ditato-
riais, de abertura, de avanços e recuos até atingir o grau maturidade
política que possui hoje (que anal não é necessariamente o grau mais
avançado que já puderam obter), por que outros países, como o Egito,
não poderiam superar caminhos históricos semelhantes? E necessaria-
mente a história política de um país não precisa se repetir de maneira
igual à de outros. Material e tecnologicamente, o Egito do século XXI
vive uma realidade bem distinta de França e Grã-Bretanha dos séculos
XVII, XVIII e XIX, e da Turquia do século XX. As oportunidades que
o povo egípcio tem de superar o atual momento contrarrevolucionário
estão postas na mesa. O povo egípcio já demonstrou que pode ser ator
260
Fábio Metzger
e objeto de sua própria história de 2011 a 2013. Assim como os de-
mais povos árabes. No entanto, é necessário que compreendam o seu
macrossistema político como algo maior do que apenas os seus Estados
Nacionais. E que possam compreender também como a lealdade entre
presidentes, reis, emires, sultões e aiatolás com os governantes ociden-
tais pode extrapolar as fronteiras de seus países. É necessário entender
que, a m de atingir qualquer estágio democrático, uma sociedade deve
antes criar uma vivência democrática. A simples luta por conferir poder
a clérigos em uma Constituição civil pode servir como uma irresistível
arma para aqueles que não desejam que o seu país não tenha abertura
política. Que alguns dos confrontos mais frontais entre forças políticas
antagônicas pode ser na realidade, assimétrico, como cou claro quando
os Irmãos Muçulmanos, após vencerem as eleições, viram-se isolados e
objetos de um golpe de Estado dos militares no Egito, para prejuízo das
forças mais democráticas, inclusive as que acreditaram honestamente no
atual comandante de fato do país. O fato é que nunca foi tão atual o
princípio de que tudo deve mudar, para tudo car como está.
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A democrAciA e o problemA dA rAcionAlidAde
José Geraldo A. B. Poker e Fábio Metzger
Em duas de suas muitas obras, A constelação pós-nacional (2001)
e A inclusão do outro (2002), Habermas insere-se no cenário do debate
intelectual sobre os problemas a serem enfrentados no século XXI, e de-
monstra uma vez mais a viabilidade da teoria da ação comunicativa como
recurso de compreensão e de superação dos descaminhos característicos
desta fase complicada da história da humanidade.
A tentativa contida nas obras mencionadas não é gratuita. O
conceito de ação comunicativa, desenvolvido exaustivamente em obras
anteriores, é o que se pode chamar de conceito-chave na teoria social
produzida por Habermas. Nesse sentido, a validação da teoria original-
mente proposta no início da década de 1980, implica a possibilidade de
ela servir de instrumento de interpretação e superação dos problemas
sociais do mundo surgido no pós-1989.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-013-9.p273-296
274
Fábio Metzger
Com a intenção de ser el ao raciocínio do autor, é preciso
fazer uma interrupção na consideração do conteúdo das obras recentes
e recorrer às antigas, nelas buscando a denição de conceitos retomados
por Habermas para compreender as transformações pelas quais passa-
ram Estado e Sociedade, atingidos pela ação da globalização e do capi-
talismo transnacional - fenômenos característicos da última década do
século XX e que inauguraram precocemente o século XXI.
Em suas obras anteriores, Habermas classica como ação co-
municativa uma modalidade de interação social que possui característi-
cas bem especícas, classicada da seguinte forma:
Chamo ação comunicativa àquela forma de interação social em que
os planos de ação dos diversos atores cam coordenados pelo inter-
câmbio de atos comunicativos, fazendo, para isso, uma utilização
da linguagem (ou das correspondentes manifestações extraverbais)
orientada ao entendimento. À medida em que a comunicação serve
ao entendimento (e não só ao exercício das inuências recíprocas)
pode adotar para as interações o papel de um mecanismo de co-
ordenação da ação e com isso fazer possível a ação comunicativa.
(HABERMAS, 1997, p. 419, grifo do autor)
Ou ainda:
Chamo comunicativas às interações nas quais as pessoas envolvidas
se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo
alcançado em cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersub-
jetivo de pretensões de validez... [que] os atores erguem com seus
atos de fala... [N]o agir comunicativo um é motivado racionalmente
pelo outro para uma ação de adesão – e isso em virtude do efeito
ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala
suscita. Que um falante possa motivar racionalmente um ouvinte à
aceitação de semelhante oferta [se explica] pela garantia assumida
pelo falante, tendo um efeito de coordenação, de que se esforçará,
se necessário, para resgatar a pretensão erguida... Tão logo o ouvinte
cone na garantia oferecida pelo falante, entram em vigor aquelas
obrigações relevantes para a seqüência da interação que estão contidas
no signicado do que foi dito... Graças à base de validez da comu-
nicação voltada para o entendimento mútuo, um falante pode, por
conseguinte, ao assumir a garantia de resgatar uma pretensão de
validade criticável, mover um ouvinte à aceitação de sua oferta de
ato de fala e assim alcançar para o prosseguimento da interação um
efeito de acoplagem assegurando a adesão. (HABERMAS, 1989, p.
79-80, grifo do autor)
275
Egito e Turquia no Século XXI
Retornando às obras recentes mencionadas de início, dentre os
principais problemas que observa na atualidade, Habermas elege aqueles
que se referem à ação desintegradora da globalização, que em princípio
destrói as formas tradicionais de solidariedade e dissolve as formas con-
sensuais necessárias à construção da identidade cultural sobre a qual se
constitui o sentido de interesse público.
A globalização uniformiza pessoas do mundo todo em torno
da produção e consumo de mercadorias materiais e simbólicas, criando
a possibilidade de uma universalização cultural nunca antes existente.
E ao mesmo tempo em que uniformiza culturalmente, a globalização
também individualiza, à medida que sobrepõe a condição de consumidor
a todas as outras formas de status de regulação de relações sociais em
qualquer matriz cultural.
Por outro lado, na descrição de Habermas (2001, p. 100) a
globalização também produz os fatores de enfraquecimento do Estado,
à medida que as decisões de agentes econômicos transnacionais pratica-
mente desconhecem as limitações estatais como parâmetros de regula-
ção. Segundo Habermas, o modelo de Estado Social construído na mo-
dernidade está seriamente abalado pelas forças do mercado global, que
atuam seguindo uma lógica contrária ao direito constitutivo do poder
público, apontando sempre para a concentração e nunca no sentido da
distribuição eqüitativa dos recursos e oportunidades necessária à manu-
tenção de uma sociedade democrática.
A lógica inerente às decisões econômicas tomadas em âmbito
global estabelece um padrão de concorrência que obriga todas as empre-
sas a ajustes organizacionais constantes, cujas conseqüências imediatas
são o aumento da produtividade com a diminuição dos postos de traba-
lho e demanda crescente por vantagens decorrentes da desoneração scal
nos territórios em que se localizam. Disso, Habermas conclui não ser
mais possível o ‘keynesianismo’ em um país” (2001, p. 100). A agenda
da globalização determina ao Estado a mudança de foco no planejamen-
to e execução de políticas públicas. Arma Habermas:
Sob as condições de uma economia globalizada, o “keynesianismo
em um país” não funciona mais. É mais promissora uma política
antecipadora, inteligente e cuidadosa de adaptação das condições
276
Fábio Metzger
nacionais à competição global. Fazem parte dessa política as conhe-
cidas medidas de uma política industrial prospectiva, o incentivo a
research anda development, e, portanto às inovações futuras, a quali-
cação da força de trabalho com base em uma melhor formação e
especialização, bem como uma “exibilização” reetida do mercado
de trabalho. (HABERMAS, 2001, p. 68)
A crise scal do Estado Social resultante da globalização se des-
dobra na crise de legitimidade e incapacidade de atender às demandas
sociais produzidas pelas mudanças estruturais do capitalismo, em que o
desenvolvimento econômico ocorre produzindo desemprego. A cons-
tante busca por melhores oportunidades de trabalho e vida provoca o
deslocamento de pessoas entre países, acompanhando o uxo de inves-
timentos do capitalismo transnacional.
Soma-se a isto um outro fator de deslocamento populacional,
qual seja aquele decorrente de guerras civis e conitos diversos, que
provoca a fuga massiva de cidadãos e cidadãs de seus territórios de
origem, em busca de lugares em que se sintam seguros e sejam tratados
com dignidade. Este é o caso dos chamados refugiados, que por causa
de características pessoais, religiosas ou étnicas, tornam-se alvo de per-
seguição na terra natal, e recorrem à migração como única chance de
continuarem vivos.
Notadamente, o resultado do processo migratório acentuado
é o aparecimento, concentrado em alguns países, mesmo periféricos, de
aglomerados humanos congurados como coleção desconexa de matri-
zes e identidades culturais as mais diversas, e que precisam ser acertados
de alguma forma para que os aglomerados possam tomar a forma de
sociedade, quer dizer, de um sistema estável de relações sociais em que
sejam possíveis a cooperação e as trocas. Por causa disto, acrescenta-se
à crise do Estado Social o conjunto de demandas e as cobranças por
políticas de inclusão ou reconhecimento decorrentes do surgimento das
sociedades multiculturais. Quer dizer, coletividades constituídas por di-
ferentes formas culturais entrecortadas e particulares de vinculação, que
geram múltiplas formas de subjetividade, cada uma delas reivindicando
legitimidade para si em relação às outras.
277
Egito e Turquia no Século XXI
O resultado do enfraquecimento do Estado, da homogeneiza-
ção das formas de produção e consumo e da diferenciação decorrente do
processo migratório, segundo o raciocínio de Habermas, é uma enorme
crise de legitimidade que atinge frontalmente o Direito, cujas bases ló-
gica, formal e normativa não correspondem à complexidade dos novos
conitos sociais e inter-individuais, nem se prestam a fornecer a estrutu-
ra simbólica sobre as quais sejam formuladas novas demandas políticas.
A despeito do cenário montado ser altamente complexo e ge-
ral, porque todos os participantes das Nações Unidas são Estados e são
atingidos da mesma forma pelos efeitos da globalização e do capitalismo
transnacional, Habermas permanece otimista quanto à possibilidade da
busca de solução para todos os problemas apontados. Segundo ele, de
início as soluções podem ser buscadas na armação do princípio bá-
sico de legitimação do Estado Moderno, qual seja a conjugação entre
soberania popular e direitos humanos. Isto signica que o Direito pode
ser reconstruído mediante o processo de autolegislação, como defen-
deu Rousseau, mas isso deve ser feito tendo como parâmetro os direitos
fundamentais contidos na Declaração dos Direitos Humanos, o que ga-
rantiria os elementos de justiça e de universalidade à regulamentação de
situações de convivência na extrema diversidade cultural/subjetiva, na
forma como ocorrem atualmente.
Para tanto, dois conjuntos de medidas são necessárias, um de
ordem externa e outro de ordem interna nos Estados. No aspecto exter-
no, recorrendo à fórmula de Kant, Habermas considera que, como os
problemas provocados pela globalização e pelo capitalismo são planetá-
rios, o enfrentamento deles exige a construção de instituições políticas
internacionais democráticas que permitam uma governança supra-na-
cional, alicerçada conceitualmente sobre uma republica mundial, cujas
decisões reconheçam a condição de cidadania cosmopolita de todos as
pessoas, por buscarem legitimação nos Direitos Humanos. E para atin-
gir este objetivo, novas instituições supra-nacionais devem ser criadas.
O modelo da Organização das Nações Unidas não serve, por não se
constituir num espaço de debate e de deliberação verdadeiramente de-
mocrático, avalia Habermas.
278
Fábio Metzger
No aspecto interno, quer dizer, dentro dos Estados, retomando
as teses da teoria da ação comunicativa, Habermas sugere a criação de
formas de exercício de cidadania deliberativa na esfera pública. Ou seja,
devem ser estabelecidos lugares em que pessoas das mais diferentes vin-
culações culturais possam se encontrar para debater democraticamente
acerca de um único problema: “cidadãos livres e iguais devem se con-
ceder quais direitos fundamentais, se quiserem regulamentar a sua vida
em comum por meio do direito positivo?” (Habermas, 2001, p. 147).
Para Habermas, em âmbitos assim constituídos, os discursos
podem conduzir à formulação de um sistema de direitos e de uma von-
tade política racional vinculados à uma concepção de solidariedade cívi-
ca ou de patriotismo constitucional, que são necessários à elaboração de
complexas soluções para os complicados conitos decorrentes da convi-
vência num contexto de diversidade multicultural.
Ao mesmo tempo em que os discursos proferidos em espaços
destinados à ação comunicativa se constituem no exercício efetivo da
soberania popular, eles também produzem concepções intersubjetivas
de direitos fundamentais sobre as quais torna-se possível reconstruir a
legitimidade dos Direitos Humanos na condição de serem armados
como direitos fundamentais universais, superando a conotação de direi-
tos ocidentais que pesa sobre eles.
Tendo em conta a diversidade como característica a ser mantida
nas novas sociedades, sem que ocorra a reconstrução da pretensão de va-
lidade universal dos Direitos Humanos, muito dicilmente os diferentes
modos de vida poderiam ser armados e reconhecidos como legítimos
no interior de uma mesma coletividade. Na ausência de uma referência
que permita substituir as formas de solidariedade de base étnicas pela
solidariedade cívica, não há como produzir as categorias conceituais exi-
gidas para fundamentar a atitude de reconhecimento diante das diversas
formas de vida possíveis numa situação de convivência multicultural.
Isto porque a solidariedade sustentada em fatores étnicos incide sobre a
homogeneização de padrões estéticos e conceituais, criando identidades
pessoais que se reconhecem reciprocamente apenas na condição de se-
rem pertencentes a um mesmo conjunto de referências.
279
Egito e Turquia no Século XXI
Em se tratando de sociedades multiculturais, as exigências de
reconhecimento devem considerar a presença de referências culturais al-
ternativas que se posicionam umas em relação às outras pretendendo a
mesma legitimidade. A condição de igualdade pretendida nas democra-
cias atuais depende da validação de inúmeras formas de diferenciação
pessoal, evitando ao mesmo tempo que delas decorram discriminações
ou quaisquer outros mecanismos sociais de inferiorização.
Por isso mesmo que as sociedades que se desenvolvem junta-
mente com os novos modelos de Estado não podem mais pretender-se
como derivadas do sentimento de nação, da crença na existência de uma
base cultural homogeneizadora que vincula todos os integrantes e da
qual são obtidos os regulamentos norteadores de todas as atitudes e con-
dutas. São os Estados pós-nacionais.
A inexistência de um sentimento de nação se torna um pro-
blema para os Estados porque afeta diretamente a legitimação da ordem
política. Como demonstra Habermas (2001, p. 143), a legitimação dos
Estados nacionais se baseia na legalidade sustentada no pressuposto de
atender a uma vontade unicada pelos mesmos objetivos e raticada
pela soberania popular. Mas a ausência do sentimento de nação se torna
problema também do ponto de vista do exercício convencional da sobe-
rania popular, que encontra obstáculos para se compor como tal devido
à diculdade de se chegar a um consenso, dada a quantidade de refe-
rências culturais e suas discrepâncias presentes no interior da sociedade.
Isso diculta a composição da esfera pública e a busca de soluções para os
problemas e conitos por intermédio da política.
Embora tudo pareça conspirar contra a manutenção das con-
quistas históricas ocidentais, efetivadas pelo Estado de Direito e Social,
Habermas apresenta uma saída teórica. Isto começa com a associação
do exercício da soberania popular, por meio da ação comunicativa em
ambientes democráticos, ao desenvolvimento dos meios adequados à
construção de uma sociedade para que ela possa se constituir para além
das vinculações decorrentes de mecanismos identitários derivados do
sentimento de comunidade próprio do conceito de nação. A ação comu-
nicativa tem a potencialidade de produzir uma cultura política, por meio
da qual as pessoas se vinculem umas às outras, consigam conviver e ter
280
Fábio Metzger
o domínio dos rumos da coletividade sem precisarem compartilhar de
tradições e memória comuns.
Para que isto aconteça, isto é, para que a cultura política criada
pela ação comunicativa substitua o sentimento de nação, é preciso am-
pliar os espaços democráticos no interior da sociedade. Na concepção
de Habermas, a democracia é a conguração do ambiente ideal à ação
comunicativa, porque proporciona a possibilidade de que a comunica-
ção ocorra livre de coações de quaisquer naturezas.
De outro modo, superar a legitimidade dependente apenas da
nacionalidade implica liberar a sociedade de amarras que impedem a ex-
pansão do conceito de igualdade. Quando isso ocorre, o resultado obtido
é o do nascimento de sociedades mais democráticas, quer dizer, mais aptas
ao reconhecimento recíproco de variações nas formas do ser social dos
integrantes, uns em relação aos outros. É isto propriamente que Haber-
mas nomeia como sociedade inclusiva, um tipo especíco de sociedade que
busca a construção da legitimidade necessária às práticas normativas da
convivência apenas nas qualidades procedurais do processo democrático.
Ou, nas palavras do próprio Habermas (2001, p. 93-94):
Observando-se normativamente, calcar o processo democrático em
uma cultura política comum não possui o sentido excluidor de efe-
tivação de um modo de ser próprio nacional, mas antes o sentido
inclusivo de uma prática de autolegislação que engloba igualmente
todos os cidadãos. Inclusão quer dizer que a coletividade política
permanece aberta para abarcar os cidadãos de qualquer origem sem
fechar esse outro na uniformidade de uma nação. Pois um consenso
de fundo, anterior e assegurado pela homogeneidade cultural, tor-
na-se supéruo como um dado pressuposto da democracia – tempo-
rário e catalisador –, à mesma medida que a construção da vontade
e da opinião estruturada publicamente na forma de uma discussão
torna possível um entendimento racional e político também entre
desconhecidos. (grifos do autor)
As vantagens de uma sociedade assim constituída são várias. Pri-
meiro, pode-se citar a característica de abertura provocada pela extensão
da igualdade que resulta no grau de reconhecimento exigido pela convi-
vência entre seres sociais marcados por diversidades culturais. A multicul-
turalidade deixa de ser um problema, porque na sociedade abre-se consi-
281
Egito e Turquia no Século XXI
deravelmente a possibilidade de escolhas válidas que indivíduos possam
fazer sobre si mesmos e sobre a coletividade. Depois, há que se pensar que
a ausência de fatores de homogeneidade cultural podem ser totalmente
substituídos pela condição de racionalidade que designa a igualdade con-
tida nas qualidades procedurais do processo democrático, que nomeia os
participantes como companheiros de direitos, ao invés de companheiros
de destino.
Por m, se for assegurada a manutenção do processo democrá-
tico incrementado pela ação comunicativa, realizada sob o entorno da
moldura dos Direitos Humanos, os fatores desintegradores da globaliza-
ção e da multiculturalidade podem ser revertidos positivamente.
A expansão do conceito de igualdade requerida pelo reconhe-
cimento das diversidades existentes no interior de sociedades multicul-
turais e possibilitada pela lógica contida nos Direitos Humanos, pro-
porciona não apenas a liberação da coletividade em relação às muitas
prisões advindas da identidade sustentada nos elementos tradicionais
compartilhados em situações de homogeneidade cultural. Implica isto
no desenvolvimento de formas de convivência, estratégias de relaciona-
mento e práticas de deliberação que somente são possíveis pelo desen-
volvimento da racionalidade.
A racionalidade que libera a sociedade e que proporciona a
abertura para experiências multiculturais de existências pessoais não se
restringe à fórmula weberiana.
Neste ponto, é preciso novo recuo. Na teoria de Weber, Haber-
mas (1997b, p. 197-198) identica três tipos de racionalidade: a racio-
nalidade instrumental (técnica, adequação ns e meios), a racionalidade
valorativa (escolha dos ns) e a racionalidade cientíca.
Apreciando a teoria weberiana, Habermas salienta que a ra-
cionalidade do Direito tornou-se fundamental para a construção das
instituições típicas da sociedade ocidental. O Direito possibilitou à ci-
vilização ocidental desenvolver saídas para as limitações lógico-organi-
zacionais presentes nas formas tradicionais de dominação ao conseguir
armar a legalidade como fundamento de legitimidade.
282
Fábio Metzger
Esse artifício tornou possível a edicação de instituições sociais
e políticas que funcionam mediante a burocracia, quer dizer, o conjunto
formado por um quadro de funcionários que cumprem determinadas
tarefas seguindo regras que lhes são impostas. A burocracia garante a
igualdade à medida que permite a distribuição impessoal do Direito, e
esta é a marca própria das instituições da sociedade ocidental, incluindo
o Estado, que para Weber também é uma instituição.
No entanto, apesar de a denição de Weber abranger aspectos
importantes, como a extensão da razão do campo do conhecimento para a
aplicação, decorrendo disto a organização de regulamentos e instituições,
a denição não é suciente para deslocar a centralidade da razão, que
continua sendo um predicado exclusivo do sujeito, que pode fazer suas
escolhas orientado pela racionalidade, pela afetividade ou pelas tradições.
Não é essa a racionalidade observada por Habermas como com-
ponente intrínseco da ação comunicativa. Segundo ele (HABERMAS,
1997, p. 506), “a teoria da ação comunicativa se propõe a investigar a
‘razão’ inscrita na própria prática comunicativa cotidiana e reconstruir a
partir da base de validez da fala um conceito não reduzido de razão” (grifo
do autor). A racionalidade centrada no sujeito não seria suciente para
possibilitar a busca de soluções adequadas aos problemas decorrentes da
globalização num contexto de multiculturalidade. Para tanto, não basta
a oferta do Direito na forma institucional da impessoalidade, e emanado
das instâncias do Estado. Trata-se de algo para além disso: da possibili-
dade de produção de novos tipos de Direito, provenientes dos espaços
democráticos instituídos dentro da sociedade para esse m, adequados à
convivência na diversidade e que sejam correspondentes às delimitações
propostas pelos Direitos Humanos, para não permitir inferioridades.
A razão e a racionalidade para Habermas são uma proprieda-
de da inteligência humana, cuja denição contém a dimensão inter-
subjetiva, quer dizer comunicativa, dialógica. Diferentemente de Kant
que, como Weber, situa a razão no âmbito exclusivo do sujeito e da
transcendentalidade, na concepção habermasiana a razão é concreta, de-
senvolvida mediante a reexão do sujeito envolvido em processos de
compreensão por ser participante de relações de compartilhamento de
problemas reais.
283
Egito e Turquia no Século XXI
Neste aspecto, a razão contém a dupla condição de ser ao mes-
mo tempo subjetiva (atributo do sujeito) e intersubjetiva (dependente
das formas pelas quais o sujeito participa da ação comunicativa com
outros sujeitos).
Não se trata portanto, de uma razão deduzida da relação sujei-
to-objeto, exclusivamente. Trata-se, mais do que isso, da razão desenvol-
vida mediante a complexidade da relação do sujeito com outros sujeitos
mediada pela linguagem e tendo como pano de fundo um contexto cul-
tural dentro do qual emergem problemas concretos e objetivos a serem
resolvidos – o mundo da vida.
A racionalidade também é constituída no sujeito, mas não des-
locada das relações entre sujeitos que buscam um entendimento. Devido
a isso é que o desenvolvimento da lógica necessária à razão e sua aplica-
ção, a racionalidade, somente se completam nas situações concretas de-
nidas pela práxis comunicativa. Segundo Habermas (1990b, p. 291),
Chamamos “racionalidade” em primeiro lugar à disposição por
parte do sujeito falante e atuante de adquirir e utilizar um saber
falível. Enquanto os conceitos básicos da losoa da consciência
impuseram que se compreenda o saber, exclusivamente como sa-
ber de algo no mundo objetivo, a racionalidade limita-se ao modo
como o sujeito isolado se orienta em função dos conteúdos das suas
representações se dos seus enunciados. [...] Quando, pelo contrário,
entendemos o saber como transmitido de forma comunicacional, a
racionalidade limita-se à capacidade de participantes responsáveis
em interações de se orientarem em relação às exigências de validade
que assentam sobre o reconhecimento intersubjetivo. A razão co-
municativa encontra os seus critérios no procedimento argumenta-
tivo da liquidação direta ou indireta de exigências de verdade propo-
sicional, justeza normativa, veracidade subjetiva e coerência estética.
Dessa forma, o que é paradigmático para a racionalidade co-
municativa, segundo Habermas (1987a, T.1, p. 395):
[...] não é mais a relação do sujeito isolado com algo no mundo
objetivo, representável e manipulável; o que é paradigmático, é ao
contrário a relação intersubjetiva que se instaura entre os sujeitos
capazes de falar e de agir, assim que eles se entendem entre si sobre
alguma coisa.
284
Fábio Metzger
Embora a racionalidade, no sentido empregado por Habermas,
possa ser observada pela produção de um saber, ela é algo que não pode
ser medida ou avaliada exclusivamente por isto, tendo em vista que ela
se desenvolve no processo argumentativo e se constitui tanto no sujeito
quanto na relação intersubjetiva estabelecida entre os participantes de
uma ação comunicativa.
Conforme Habermas (1990a, p. 69-70):
A racionalidade não tem tanto a ver com a posse do saber do que
com o modo como os sujeitos capazes de falar e de agir empregam o
saber. Ora, tanto as atividade não-linguísticas como as ações de fala
encarnam um saber proposicional; contudo, o modo especíco de
empregar o saber decide o sentido da racionalidade, que serve como
medida para o sucesso da ação. Se tomarmos como ponto de partida
o uso não-comunicativo do saber proposicional em ações teleológi-
cas, iremos detectar a idéia da racionalidade orientada para um m
(Zwekrationalität) tal como foi elaborada na teoria da escolha racio-
nal. E se partirmos do uso comunicativo do saber proposicional em
atos de fala, descobriremos a idéia da racionalidade orientada para
o entendimento (Verständigungsrationalität), que numa teoria do
signicado pode explicitar apoiando-se nas condições para a aceita-
bilidade de ações de fala.
Especicamente quanto à produção dos tipos de saber contin-
gentes e subsidiários à vida humana efetiva, para Habermas (1987a, T.
2, p. 151-152) a relação entre ação comunicativa e desenvolvimento da
razão, em toda sua abrangência de elemento construtor do ser social,
pode ser compreendida da seguinte forma:
Em relação ao aspecto funcional do entendimento, a ação comuni-
cativa serve à tradição e à renovação do saber cultural; em relação ao
aspecto de coordenação da ação, serve à integração social e à criação
da solidariedade; e, por m, em relação ao aspecto da socialização,
serve à formação de identidades pessoais. As estruturas simbólicas
do mundo da vida se reproduzem pela via da continuação do saber
válido, da estabilização da solidariedade dos grupos e da formação
de atores capazes de responder as suas ações. O processo de reprodu-
ção enlaça novas situações com os estudos do mundo já existentes.
[...] A estes processos de reprodução cultural, integração social e
socialização correspondem os componentes estruturais do mundo
da vida que são a cultura, a sociedade e a personalidade.
285
Egito e Turquia no Século XXI
Tanto quanto em qualquer outro modelo de sociedade, nas so-
ciedades multiculturais também é possível estabelecer lugares nos quais
se realizem ações comunicativas. Movimentos sociais, ONGs, sindicatos,
associações diversas, clubes, condomínios, escolas, universidades, em to-
dos estes ambientes de relacionamento ocorrem trocas comunicativas que
produzem elementos normativos na forma de autolegislação. No interior
destes campos, devidamente apropriados à práxis comunicativa e ao exer-
cício da razão intersubjetiva, é que torna-se possível produzir as referências
conceituais que vinculem os participantes a uma esfera pública.
Vale destacar que na concepção de Habermas, a esfera pública
se diferencia da esfera privada da seguinte forma: a esfera privada com-
porta a sociedade civil burguesa em sentido especíco, portanto o âm-
bito da troca de mercadorias e do trabalho compartilhado socialmente,
abrangendo também a família, com sua esfera íntima. A “esfera pública
política provém da literária; ela intermeia, através da opinião pública, o
Estado e as necessidades da sociedade” (Habermas, 1984, p. 46).
A esfera pública é algo que não se confunde com as instituições
políticas do Estado, que não é produzida pela legalidade nem sequer
controlada pela burocracia. Do mesmo modo, a esfera pública também
não corresponde ao campo da sociedade civil. É algo além disso, um
terceiro momento, conforme deniu Jessé Souza (2000: 59-60):
Talvez a maior contribuição de Jürgen Habermas ao pensamento
sociológico tenha sido a análise, que perpassou toda a sua carreira
acadêmica, das estruturas especícas de funcionamento da esfera
pública. Para ele, a esfera pública não se confunde com a interpre-
tação clássica da sociedade civil como “reino de necessidades” opos-
to ao Estado. Esfera pública passa a designar a partir da sua obra,
seminal para o pensamento sociológico deste século, um “terceiro
momento” das sociedades modernas, o qual não se confunde nem
com o mercado nem com o Estado.
A devida compreensão do que se chama terceiro momento pode
ser conseguida mediante o acréscimo do conceito de interação, que con-
siste no conteúdo das relações entre atores sociais em condições de co-
municação por meio de um processo intersubjetivo de mútuo reconhe-
cimento. A esfera pública é constituída pelas interações existentes numa
286
Fábio Metzger
situação de comunicação direcionada ao entendimento, e que para isso
exige a capacidade de descentração dos participantes, à medida que con-
siste numa situação dialógica presumida na relação eu-outro. Isto é, a
consecução de toda interação implica forçosamente numa situação em
que um eu se constitui como tal em referência a existência reconhecida
de um outro. Isto signica que as interações provocam situações que
terminam por explicitar a diversidade de pontos de vista que em maior
ou menor grau sempre está contida nas ações comunicativas, e que é
evidenciada pela descentração.
É por intermédio da descentração exigida pela interação que os
argumentos proferidos nos atos de fala são avaliados pelos participantes,
que podem chegar a acordos ou colocar em dúvida as pretensões de va-
lidez reclamadas por qualquer falante.
Um acordo qualquer na prática comunicativa da vida coti-
diana, diz Habermas (1989, p. 167-168), “pode se apoiar ao mesmo
tempo num saber proposicional compartido intersubjetivamente, numa
concordância normativa e numa conança recíproca”. Por outro lado,
quando alguém “rejeita uma oferta inteligível de ato de fala contesta
a validade do proferimento sob pelo menos um desses três aspectos da
verdade, da correção e da sinceridade” (idem, p. 168 (grifos do autor).
Na forma descrita por Habermas, as características das intera-
ções ocorridas numa ação comunicativa orientada para o entendimento
mútuo praticamente exigem que os participantes proram seus argu-
mentos imprimindo neles toda a carga de subjetividade possível. A com-
posição dos argumentos deve obrigatoriamente permitir a expressão dos
interesses, das preferências e de todos os outros atributos da subjetivi-
dade do falante a serem aceitos ou recusados pelos participantes. Como
estão submetidos à livre avaliação dos envolvidos, o grau de coerência na
racionalidade das proposições será evidenciado pela possibilidade de crí-
tica reciproca, que é inerente a um processo argumentativo democrático,
em que a única força válida é a força do melhor argumento.
É nesta característica que se constitui a principal diferença en-
tre as proposições de autolegislação de Habermas e Rawls. Se para Ha-
bermas todos os argumentos devem ser passíveis de contestação, e por
287
Egito e Turquia no Século XXI
isso podem conter carga subjetiva, para Rawls (2002) a racionalidade no
processo deliberativo é atingida à medida que os participantes concen-
tram-se no interesse público, ignorando os interesses próprios. Esta é a
situação que Rawls nomeia de posição originária ou véu da ignorância.
Habermas mantém sua esperança na probabilidade de que os
desaos da sociedade possam ser superados pela construção de espaços
democráticos, em que se desenvolveriam as ações comunicativas e as
interações sociais. Isso possibilitaria a formação de uma esfera pública
apta à discussão dos interesses presentes na sociedade de modo racional,
com a nalidade de produzir normas ético-jurídicas universais, as únicas
possíveis de serem aplicadas na solução pacíca dos complicados coni-
tos derivados da complexidade da convivência em âmbito multicultural.
Somente assim o contexto de multiculturalidade pode ser des-
dobrado na condição da interculturalidade, quer dizer, na maneira pela
qual sujeitos constituídos em diferentes culturas possam conviver uns
com os outros sem se fechar dentro das próprias referências. Do mesmo
modo, o diálogo intercultural presente nas situações de interação nos
espaços de ação comunicativa permite a denição de itens para uma
agenda de demandas transculturais, demandas que sejam referidas a ne-
cessidades, valores e interesses universais, ou que traduzam o sentido de
público para uma sociedade em que não há o conceito de nação.
Melhor dizendo, pode-se armar que a construção concei-
tual intercultural, resultante da ação comunicativa realizada nos espa-
ços existentes dentro de organizações e instituições da sociedade, têm
a potencialidade de permitir a superação das tentativas de armação
de particularidades, que é algo típico das demandas centradas apenas
nas especicidades de cada cultura, feitas sem considerar a condição de
universalidade das normas ou da distribuição de benefícios exigida para
contextos de diversidade, isto é, na situação inevitável de relação entre vá-
rias culturas que porventura venham a constituir uma mesma sociedade.
E depois de percorrido o caminho teórico aqui apresentado, tor-
na-se possível compreender as razões que levam Habermas a permanecer
otimista quanto às chances de construção de sociedades adaptadas ao Es-
tado pós-nacional, resultante da globalização e dos impactos do capitalis-
288
Fábio Metzger
mo transnacional, sem que disso decorram a barbárie, as injustiças gene-
ralizadas, a ampliação dos abismos sociais provocados pelas desigualdades
ou a completa ausência de formas pacícas de solução de conitos, que
são os cenários prováveis vislumbrados pelos céticos e pessimistas.
A pretexto de uma conclusão, acompanhando a coerência do
raciocínio de Habermas, pode-se concordar com ele na aposta de que a
melhor fórmula de superação de todos os problemas enfrentados por qual-
quer sociedade, não apenas a multicultural, consistirá sempre numa varia-
ção em torno da combinação de elementos de racionalidade com práticas
de democracia, tudo isto protegido pelo invólucro dos Direitos Humanos.
A novA ordem democráticA e As condições de liberdAde,
segundo gellner
A ideia de uma ordem democrática liberal é construída a par-
tir da experiência empírica original da experiência europeia ocidental.
Onde o iluminismo é peça central argumentativa. Neste sentido, a base
social que dá o dinamismo necessário para democracias liberais fun-
cionarem é a ideia de sociedade civil. Mas, anal, em que contexto, tal
conceito pode ser denido? Gellner localiza o desenvolvimento de tal
ideia, inicialmente na crítica aos antigos regimes absolutistas, estabe-
lecidos por monarcas, onde Estado e religião estavam associados. No
caso, a religião era o clero da Igreja Católica, dentro de um contexto,
onde ocorria a reforma protestantes, em que as bases tradicionais do
catolicismo estavam sendo questionadas. É apenas no rompimento com
esses regimes, que a denição de sociedade civil se desenvolve. De onde
o Estado com regime democrático liberal passa a se construir. Sendo a
sociedade civil o aparato de instituições capazes de se contrapor ao Es-
tado, de tal forma, que este acaba sento levado a evoluir junto com ela
(GELLNER, 1996, p. 9-20; p. 49-74).
O ponto de partida da análise de Gellner é a concepção de
sociedade civil. E o que seria seu oposto, a “comunidade de crentes”, a
Umma, a base social do Islã. A ideia básica é a de que Gellner verica a
Umma original, criada a partir do Mundo Muçulmano, que permanece
resiliente até hoje. O universo ocidental, onde se criou uma versão bem
289
Egito e Turquia no Século XXI
sucedida da Umma, quando as revoluções dos séculos XVII e XIX foram
levada a cabo. E a Umma malsucedida, que é o marxismo, segundo ele,
uma nova religião secular, de natureza material e dogmática, que faliu,
quando o seu Estado base, a URSS deixou de atender as expectativas que
prometia aos seus “eis” (GELLNER, 1996).
A base de um Estado liberal que vivia o paradoxo de sua cons-
trução, que era estabelecer a distância dos diferentes, a m de minimizar
os extremismos dentro da sociedade civil. O que exigiu um endureci-
mento com determinados setores. Por exemplo, dentro da construção
da Inglaterra protestante, onde os puritanos foram enquadrados. Os que
não aceitaram, migraram para a América, fundar outras sociedades. Os
que se submeteram, se resignaram ao seu trabalho enquanto núcleo fa-
miliar (GELLNER, 1996, p. 44-48; p. 72). É a esta forma de construção
sócio-religioso-política, que ele denomina de Umma bem sucedida. O
sucesso dela se dá pelo fato de ter sido capaz de separar os seus assuntos
religiosos da política cotidiana. E atuar na política cotidiana, de acordo
com a liberalização das instituições que eram levadas adiante pelos Esta-
do que se modernizava. Por outro lado, esse Estado acabou se subdivi-
dindo e modernizando a si mesmo e às suas atividades internas. Assim,
a racionalização das tarefas burocráticas pode ser atribuída em grande
parte à evolução deste Estado moderno liberal, onde a ideia de sociedade
civil gera tal nível de subdivisões internas, que é possível notarmos as
distinções das esferas militar, civil e religiosa bem mais nítidas que o seu
modelo antecessor. Perante o desenvolvimento da economia da classe
burguesa em ascensão, essas esferas passaram a ganhar uma autonomia
cada vez maior (WEBER, 1997).
No entanto, tais desenvolvimentos geraram contradições e
questionamentos. A ideia de uma sociedade civil em interação com um
Estado democrático liberal não teve necessariamente aprovação em to-
dos os locais e épocas. E este é um dado importante. É preciso com-
preender melhor os por quês de, na Europa Ocidental e na América do
Norte, tal modelo ter tido tão amplo sucesso, e em outras localidades
existirem questionamentos fortes. Historicamente, o ambiente da pró-
pria democracia dá espaço para que seja questionada, e este é um ponto
que pode gerar, de tempos em tempos, instabilidades institucionais. No
290
Fábio Metzger
entanto, sociedades civis que compartilham valores democráticos po-
dem inibir com maior sucesso o avanço de movimentos autoritários.
Duas possibilidades a se pensar imediatamente são: o momen-
to em que, ou a força militar interna com apoio de grupos antidemo-
cráticos, ou a política externa podem extrapolar a defesa democrática da
maioria da população de um país especíco. Se for levado em conta tais
casos em cenários extremos, uma sociedade civil bem desenvolvida pode
não resistir. Só que estes são dois cenários hipotéticos, que anal, di-
cilmente se realizam isoladamente. No entanto, há outras nuances que
precisam ser levadas em conta. Que formas outras de sociedades exis-
tem, para além daquelas que se entende como sociedade civil. E Gellner
aponta duas, uma que, segundo os termos dele, “fracassou”, o marxis-
mo, outra, que se mantém resiliente, o Islã. O que distingue ambas do
conceito de sociedade civil de Estados democráticos liberais? A base de
denição é que ambas se estabeleceriam a partir do que são dogmas
imutáveis.
Aqui, abrimos um parêntese. Gellner escreve nos anos 1990,
no contexto do nal da URSS e do que se entendia como socialismo
real. Naqueles tempos, uma abordagem losóca estava muito forte: a
de Francis Fukuyama, que entendia que a história teria acabado com o
m da URSS, e junto com ela, o marxismo-leninismo, com a vitória
denitiva da democracia liberal (FUKUYAMA, 1992). Gellner dene o
fracasso do marxismo como um todo, e não apenas o modelo marxista-
-leninista, diante do vazio político gerado pela ausência do bloco socia-
lista. A teoria do “m da história” inuenciou diversos lósofos. Não se
sabe até que ponto, e se Gellner foi inuenciado direta ou indiretamente
por esta teoria.
De qualquer forma, a crítica sobre o marxismo que Gellner faz
é sobretudo a partir de Lenin e seus seguidores. A ideia da formação de
uma sociedade socialista de perspectiva comunista, que pressupõe um
Estado a estabelecer regras de cima para baixo a toda a população. O
que não foi feito por Lenin por este ter morrido jovem, em 1924, sim,
por Stalin, por quase três décadas, e depois os seus sucessores, até a che-
gada de Gorbachev. O Estado construído pela URSS, segundo Gellner,
passou a constituir uma espécie de conjunto de dogmas, onde a socie-
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Egito e Turquia no Século XXI
dade estaria se submetendo; fosse à total secularização das instituições,
de modo que a prática religiosa cava restrita; fosse ao enrijecimento do
programa econômico, que restringia fortemente as atividades e a cria-
tividade do cidadão soviético; fosse a restrição à liberdade de expressão
e opinião. De uma certa forma, foi criada a ideia de uma “comunidade
de crentes” (em árabe, Umma) da ideologia socialista, como se ela fosse
uma religião. E o insucesso econômico e político da URSS leva àqui-
lo que Gellner denomina de a Umma malsucedida (GELLNER, 1996,
p. 33-43; p. 131-142). A “Umma” socialista que malogrou perante à
natureza de suas promessas, construídas dentro do mundo terreno. E
que só se realizam dentro do mundo terreno. Se as expectativas não são
verdadeiramente atingidas, o descrédito se dá, na mesma medida, uma
vez que as promessas terrenas esvaziadas levam consigo a perda de expec-
tativas dos que nela acreditaram.
Por outro lado, o pós-Guerra Fria proporcionou a ascensão de
uma situação paradoxal para aquela que Gellner denomina de sociedade
civil: a expansão em direção ao Islã. E aqui, a questão ganha um novo
contorno. É dentro das sociedades islâmicas que o conceito de Umma se
originou. Desde que a primeira comunidade muçulmana foi criada no
século VII, após o êxodo de Maomé de Meca para Yatribe, fundando a
cidade de Medina. Ora, se é dentro do conceito da Umma, que se pensa
uma “comunidade de crentes”, então, é possível pensarmos, não uma
sociedade civil, mas sim uma sociedade inerentemente religiosa, que foi
se expandindo ao longo de 13 séculos, pelo Norte da África, Sudeste eu-
ropeu e ao longo de todo o continente asiático. Dentro de uma religião
fundada ela mesma a partir de um pacto político que se denia, a partir
da pacicação de grupos em disputa. O próprio signicado da palavra
islam deriva de “submissão” (a Deus). Um pacto onde a assimilação à
religião e à vida cotidiana são bastante simples e acessíveis, estabelecidos
a partir de cinco pilares básicos: o testemunho da unicidade de Deus e
de Maomé como o profeta derradeiro; as cinco orações diárias; a peregri-
nação a Meca (aos que têm condições de fazê-lo); a caridade de 2,5% da
renda mensal (o zakat) e o jejum no mês sagrado de Ramadan.
Por outro lado, a Umma original tem uma característica que a
sustenta: como a crença na defesa em Terra de revelação divina, não será
292
Fábio Metzger
o governo em um plano terreno que irá desacreditar as crenças no plano
metafísico. E, quando uma religião se constrói por pilares simples e aces-
síveis e, ela pode, depois, estabelecer-se em outras dimensões, inclusive
em um plano concreto. No caso das sociedades islâmicas, o universo
jurídico foi capaz de extrapolar o ambiente da mesquita, e adentrar o
espaço público, a partir de um arcabouço jurídico, onde os textos sagra-
dos e a interação com o mundo real ganha dimensão incomparável a de
países cristãos. Desenvolveu-se por séculos uma hierarquia, onde o texto
sagrado do Alcorão é aproveitado dentro de seus aspectos jurídicos (o
Fiqh); das tradições escritas atribuídas a Maomé (o hadith); do consenso
entre os jurisconsultos da lei islâmica (o idjman) e, em última análise, a
analogia, caso a caso. Tudo isso dentro da literalidade de textos fundados
dentro do dogma histórico da epopeia de Maomé e os quatro califas que
o sucederam (DAVID, 2002, p. 511-544).
A sociedade civil gestada entre a Europa Ocidental e a América
do Norte pode ganhar formas adaptadas em países do Hemisfério Sul,
da África Subsaariana, do Pacíco, da Índia, onde as dimensões do civil
e do religioso se exibilizam, e os dogmas são reinterpretados de maneira
que não adentram o espaço, pelo menos não de forma a comprometer
a relação entre Estado e sociedade. Já nas sociedades muçulmanas, a
concepção de uma sociedade religiosa, com o dogma denido pela cons-
tituição de sua própria formação cria um novo elemento limitador para
as democracias liberais. Isto quer dizer que todos os países muçulmanos
são refratários à assimilação da democracia liberal? Há inúmeros casos de
países e sociedades muçulmanas, que se adaptaram à sua maneira, com
as suas peculiaridades. Até porque o Islã não é uma entidade fechada,
mas sim um sistema de pensamento que perpassa Estados e sociedades
das mais variadas matizes.
No entanto, chega determinado momento em que a expansão
das democracias liberais atinge um núcleo duro dentro do Islã. Núcleo
duro este que diz respeito a sociedades mais ortodoxas nos seus ritos e
interpretações da religião e da convivência desta com a formação do es-
paço público. Onde estão Estados árabes e muçulmanos vizinhos. Onde
leigo e religioso estão dados dentro da base do que seria, em tese, a
sociedade civil. Por outro lado, a ideia de Estado e governo também
293
Egito e Turquia no Século XXI
se confundem no topo do que seria, em tese, a sociedade política. De
modo que, quando se começa um processo de liberalização destes Es-
tados, as ssuras institucionais se manifestam, e ocorrem retrocessos;
seja para evitar o avanço de partidos religiosos antidemocráticos; seja
para evitar o avanço de partidos democráticos seculares e progressistas.
E aí, vericamos a predominância de Estados-leviatãs que se sobrepõem
ao pacto liberal das elites, ou à vontade popular inerente à democracia.
Egito e Turquia são dois exemplos de países seculares que se equilibram
entre neste pêndulo institucional, tendo como instituições básicas um
corpo estatal com clero ocial ou ocioso, um empresariado aliado, e
Forças Armadas nacionais. Arábia Saudita e Irã são os exemplos de socie-
dades baseadas diretamente em um arranjo misto teocracia-monarquia,
no caso, ou teocracia-república, no caso iraniano, onde clero ocial e
cúpula de Estado (família real saudita e guarda revolucionária iraniana)
se apresentam como forças hegemônicas.
De qualquer forma, essas sociedades não estão refratárias à ex-
pansão das ideias democráticas e liberais, tendo inclusive uma ampla cir-
culação de ideias nesse sentido entre e dentro dos países. A questão que
se faz presente é que, da mesma forma que existiu um processo longo
de construção de um modelo de sociedades civis modernas em países da
Europa e América do Norte, isso se faz possível também em países mu-
çulmanos. No entanto, é preciso se levar em conta que a concepção de
democracia liberal foi criada justamente dentro do continente europeu,
e expandida para o americano há dois séculos e meio atrás. Em países
onde, mesmo que Estado e religião estivessem associados, sempre foram
instituições distintas. Assim, o poder civil de um Rei não se confunde
com o poder religioso de um Papa, apesar da forte inuência que o Pa-
pado exercia no Reino em questão, fosse no âmbito meramente simbó-
lico, fosse no arranjo institucional mais amplo. Já no Islã, com o m do
Califado nos anos 1920, não há mais distinção entre o poder religioso
e o temporal. E mesmo quando o Califado estava instituído, o poder
do Califa sobre os religiosos era bem menor do que aquele que o Papa
tinha sobre os reis. Até porque, ao contrário do cristianismo, não existe
um clero marcadamente distinto da população civil no islã. Além disso,
a própria distinção de civil e religioso não está dada no Islã, tampouco a
noção construída dentro das concepções europeias de sociedade de divi-
294
Fábio Metzger
são do conhecimento, tendo a experiência dos textos sagrados islâmicos
um lugar destacado, antes mesmo da ciência moderna.
Desta forma, pensar uma ideia de sociedade civil exige uma
perspectiva, não apenas de defender e compartilhar os valores do ilu-
minismo. Mas também de levar em conta as peculiaridades de cada so-
ciedade. Gellner aponta, fazendo uso de um antigo pensador do Islã da
Idade Média, Ibn Khaldoun, no caso das sociedades muçulmanas, uma
tendência de muitos séculos, que é a dicotomia de um baixo Islã e um
alto Islã. De um lado, o baixo islã, afastado das cidades, sincrético, e
popular, que se articula com as crenças de divindades locais das tribos
beduínas. De outro lado, existe um alto Islã, mais ortodoxo, rígido, e
proveniente de elites locais, que, a m de se buscar se distinguir de ou-
tras populações, não admite tal sincretismo, predominante nas cidades.
Com o tempo, os usos e costumes destas cidades vai se relaxando. Em
determinado momento, o poder estabelecido decai, a tal ponto que são
justamente estas tribos beduínas que entram nas cidades, restabelecem
a ordem, e enrijecem, mais uma vez, os usos e costumes locais (GELL-
NER, 1996, p. 21-32).
Esta lógica se repete claramente em muitos dos Estados ára-
bes. No entanto, muito mais com repúblicas islâmicas ou monarquias
conservadoras do que com repúblicas seculares. As repúblicas seculares
restabelecem a autoridade justamente a partir de uma renovação da lei
religiosa, mas submetida a uma interpretação de hábito leigos. A Arábia
Saudita foi fundada por uma dinastia de origem beduína, os Saud, que
se uniram com um clérigo Al-Wahabbi, intérprete bastante ortodoxo do
Islã. Do outro lado, o Egito, que teve a queda de seu monarca, Faroukh,
viu um conjunto de ociais republicanos restabelecer a autoridade do
país, mas não com um Islã tradicional, e sim com uma interpretação
mais secularizada. Em ambos os casos, é possível se notar um enrijeci-
mento e restabelecimento de autoridade. No entanto, enquanto no caso
saudita, conrma-se a tendência de retornar a autoridade do Islã ao que
se imagina ter sido um modelo medieval, no Egito, o caminho foi o de
adaptar-se, pelo modo não liberal, às ideias iluministas do Ocidente.
É a tal resiliência da Umma original que os defensores dos va-
lores democráticos liberais precisam compreender melhor, antes de esta-
295
Egito e Turquia no Século XXI
belecer como os países do Mundo Muçulmano devem se comportar. Se,
no passado, as sociedades ocidentais foram mais violentas que as muçul-
manas, por outro lado, o Cristianismo vem perdendo poder, manifes-
tando a literalidade de seus textos sagrados em ambientes mais limitados
e privados (DEMANT, 2004, p. 342). Há, sem dúvida, um desejo entre
estes países de avançar e desenvolver sociedades civis. No entanto, existe
também uma realidade política e social, e a expansão democrática tem
um ritmo próprio de acontecer, que independe das vontades europeias
e norte-americanas. Mas, se isto pode parecer um impeditivo, a boa
notícia, é que agora sabemos que, mesmo com todos os retrocessos dos
últimos tempos, as populações destes países estão mais cientes daquilo
que desejam, e cada vez mais próximas das ideias e ideais da democracia
enquanto valor, mesmo que, em muitos casos, o que prevalece é a demo-
cracia enquanto instrumento.
Apenas o tempo e o passar das gerações darão a clareza de como
a racionalidade democrática ganhará formas nos países muçulmanos.
Em relação aos países do Leste Europeu, alguns se integraram à órbita
europeia. Outros, como a Rússia, resistem à antiga tradição do despotis-
mo oriental, que é bem anterior à URSS. A Federação Russa de Putin,
aliás, parece ser um caso bem claro de como uma democracia pode ser
exercida como instrumento, e não como valor. Para a China, nem mes-
mo a democracia é exercida, valendo-se de um despotismo de partido
hegemônico e esmagadoramente predominante, o Partido Comunista.
Paradoxalmente, as potências ocidentais e seus aliados estão mergulha-
dos em uma profunda crise de credibilidade do sistema democrático do
qual levaram séculos para desenvolver. Crise reetida nas preferências de
muitos de seus eleitores a candidatos e partidos autoritários. Em suma,
a reconquista dos valores iluministas é, hoje em dia, uma luta comparti-
lhada, não apenas por uma, mas por diversas formas de sociedade civil.
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F
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A
S
R
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V
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Fábio Metzger é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São
Paulo (USP) e Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Possui Mestrado
em História Social e Doutorado em Ciência Política, ambos pela USP. Suas
especialidades se concentram em áreas como Teoria do Estado, Política
Democrática e Relações Internacionais. Possui extensa carreira como
professor no Ensino Superior e pesquisador, tendo trabalhado, tanto na área
acadêmica quanto na jornalística. Conforme ele mesmo comenta, seu
trabalho deriva “(...) da experiência pessoal de lecionar, do exercício
constante da leitura, e das vivências pessoais do mundo empírico. Em um
mundo cada vez mais globalizado, é necessário compreender que teoria e
prática estão em constantes revisões uma com a outra, e essa é a natureza
de minha pesquisa”.
ISBN 978-85-7249-014-6