DEMOCRACIA E
DIREITOS HUMANOS
NO PENSAMENTO DE
NORBERTO BOBBIO
RAFAEL SALATINI &
CÉSAR MORTARI BARREIRA
ORGANIZADORES
C A P E S
Democracia e
Direitos Humanos
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2018
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
Prof. Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor
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Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
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Processo FAPESP Nº 2017/03326-5. Declare-se que as opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações
expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente reetem a visão da FAPESP.
Copyright © 2018, Faculdade de Filosoa e Ciências
D383 Democracia e direitos humanos no pensamento de Norberto Bobbio / Rafael Salatini &
César Mortari Barreira, organizadores. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo :
Cultura Acadêmica, 2018.
334 p.
Textos em português e textos em espanhol.
Apoio: CAPES e FAPESP
Inclui bibliograa
ISBN 978-85-7249-027-6 (Impresso)
ISBN 978-85-7249-026-9 (Digital)
DOI https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9
1. Bobbio, Norberto, 1909-2004. 2. Democracia. 3. Direitos humanos. 4. Ciência
política – Filosoa. I. Salatini, Rafael. II. Barreira, César Mortari.
CDD 320.01
CAPES: Processo PAEP Nº 118686/2016-01
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Celso Lafer .............................................. 07
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Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Instituto Norberto Bobbio) .... 09
Parte 01: Norberto bobbio e a democracia
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Mario Giuseppe Losano ...................................... 29
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Alfonso Ruíz-Miguel ........................................ 59
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Sérgio Cândido de Mello ..................................... 81
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Assis Brandão ............................................. 103
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Roberto Bueno Pinto ........................................ 123
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César Mortari Barreira ...................................... 145
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Parte 02: Norberto bobbio e os direitos humaNos
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Norberto Bobbio ........................................... 223
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José Alcebíades de Oliveira Junior ............................... 263
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Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori ...................... 279
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Gisele Mascarelli Salgado .................................... 305
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Marcelo de Azevedo Granato .................................. 317
sobre os autores ......................................... 329
7
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É muito abrangente a obra de Norberto Bobbio. Vai muito além
dos seus livros mais conhecidos, boa parte dos quais está disponível em
edições brasileiras. Compreende numerosos escritos de maior ou menor
ambição; todos, no entanto, dotados do rigor e da clareza que são a marca
registrada de sua identidade intelectual. A bibliograa de seus escritos,
criteriosamente organizados por Carlo Violi, publicada em 1995, com-
preende ensaios, prefácios, resenhas e entrevistas. Abrangem, no arco de
tempo entre 1934-1993, 9.386 entradas.
Dois desses escritos elencados por Violi, ainda não publicados
no Brasil, estão incluídos neste livro: um é de 1988, sobre a democracia
realista de Giovanni Sartori; outro de 1984, sobre a função promocional
do direito revisitada, ambos relacionados aos temas deste volume, organi-
zado por Rafael Salatini e Cesar Mortari Barreira, destacados estudiosos do
pensamento bobbiano, intitulado Democracia e direitos humanos no pensa-
mento de Norberto Bobbio.
O volume tem a sua origem na “I Semana Norberto Bobbio –
Democracia e Direitos Humanos”, que se realizou de 23 a 26 de agosto de
2016, em São Paulo, por obra de um convênio entre a Unesp, a PUC-SP e
o Instituto Norberto Bobbio.
A obra de Bobbio, como aponta Michelangelo Bovero – seu
sucessor na Cátedra de Teoria Política na Universidade de Turim e um
dos grandes intérpretes e continuadores do seu legado intelectual – “é
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p7-8
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
8
comparável a um vastíssimo laboratório de instrumentos teóricos para
observar o mundo, para compreendê-lo e para avaliá-lo”. Percorrer esse
laboratório explorando e lidando com os recorrentes desaos da con-
vivência humana é o que dá a este livro a sua especicidade própria.
Discute, na primeira parte, os temas da democracia, e, na segunda, os dos
direitos humanos, áreas do conhecimento que se interpenetram e para as
quais Bobbio deu notável e admirável contribuição. São temas de grande
relevância, e é muito oportuno que sejam discutidos e examinados na
atual conjuntura nacional e internacional, que enfrenta a pauta da crise
da democracia e dos direitos humanos.
O percurso empreendido neste livro no laboratório do pensa-
mento de Bobbio contou com a colaboração de dois consagrados estu-
diosos de sua obra, Mario Losano, da Itália, e Alfonso Ruiz-Miguel, da
Espanha, e reuniu um expressivo elenco de brasileiros que defenderam
dissertações e teses sobre Bobbio em instituições brasileiras, e que se va-
leram das lentes próprias dos seus interesses intelectuais para instigada-
mente discutir a obra de Bobbio.
O resultado é um livro importante e de qualidade, que assinala a
fecundidade da irradiação do pensamento de Bobbio no Brasil, que saúdo
neste prefácio como um bobbiano de primeira hora em nosso país.
Celso Lafer
9
A
No último século, diversos pensadores políticos, de todas as ma-
trizes teóricas se dedicaram ao estudo e à defesa da democracia e dos di-
reitos humanos, especialmente, como não poderia ser de outra maneira,
após os fatos políticos e morais virulentos que se desenrolaram no século
passado, desde a Primeira Guerra, passando pela Segunda Guerra, até o
ocaso da Guerra Fria. Nesse século, o lósofo italiano Norberto Bobbio
se notabilizou como uma das maiores referências intelectuais, senão a
maior, em defesa daqueles tão frágeis quanto nobres princípios de con-
vívio básico constituídos pela humanidade para aplicação nas complexas
sociedades modernas.
Obras como La teoria delle forme di governo nella storia del pensiero
político [A teoria das formas de governo na história do pensamento político]
(1976) – primeira obra bobbiana publicada no Brasil –, Dizionario di poli-
tica [Dicionário de política] (1976), Il futuro della democrazia [O futuro da
democracia] (1984), Liberalismo e democrazia [Liberalismo e democracia]
(1985), Stato, governo e società [Estado, governo, sociedade] (1985), L’età
dei diritti [A idade dos direitos] (1989), Destra e sinistra [Direita e esquer-
da] (1994), etc. – todas obras bobbianas publicadas já há vários anos no
Brasil – se tornaram obras referenciais para o pensamento político demo-
crático e humanitário em praticamente todo o mundo ocidental, e parti-
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p9-12
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
10
cularmente na América Latina, incluso Brasil, região onde as instituições
democráticas e humanitárias sempre se mostraram particularmente frágeis.
Ao mesmo tempo, obras de teoria jurídica como Teoria della nor-
ma giuridica [Teoria da norma jurídica] (1958), Teoria dell’ordinamento
giuridico [Teoria do ordenamento jurídico] (1960), Il positivismo giuridico
[O positivismo jurídico] (1961), Dalla struttura alla funzione [Da estrutu-
ra à função] (1977), Studi per una teoria generale del diritto [Estudos por
uma teoria geral do direito] (1970), etc. – todas obras bobbianas igual-
mente já publicadas no Brasil – se tornaram igualmente referência, inde-
pendentemente das matrizes teóricas, para os estudos jurídicos ocidentais
e, particularmente, brasileiros.
Tais elementos demonstram a importância ímpar assumida pelo
pensamento bobbiano, devido especialmente o seu profundo matiz de-
mocrático e humanitário, para a formação humanística ocidental. Nesse
sentido, em termos acadêmicos, em nosso país, um grande número de
dissertações de mestrado e teses de doutorado dedicadas especialmente ao
estudo do pensamento bobbiano (com o frequente recorte dos temas da
democracia e dos direitos humanos) foram defendidas nas últimas décadas
em nossas instituições acadêmicas, públicas e privadas, demonstrando a
formação de uma considerável massa crítica de professores e pesquisadores
acadêmicos dedicados à pesquisa sobre a obra bobbiana.
Nesse ínterim, em nosso país, em 2009, foi criado o Instituto
Norberto Bobbio, “como uma sociedade sem ns lucrativos, com o obje-
tivo de estudar, pesquisar e difundir no Brasil o legado do pensamento
de Norberto Bobbio, notadamente, nas suas fundamentais reexões sobre
democracia, direitos humanos e relações entre política e cultura” (www.
institutonorbertobobbio.org.br), com apoio tanto da família Bobbio (que
cedeu grande acervo inédito de escritos do lósofo) quanto do Centro Studi
Piero Gobetti (do qual Bobbio foi o primeiro presidente e que cuida agora
de seu legado na Europa).
Entre as atividades do Instituto Norberto Bobbio, já foram publi-
cadas no Brasil as seguintes obras bobbianas: Giusnaturalismo e positivismo
giuridico [Jusnaturalismo e positivismo jurídico] (1965), Studi per una te-
Democracia e Direitos Humanos
11
oria generale del diritto [Estudos por uma teoria geral do direito] (1970),
Dalla struttura alla funzione [Da estrutura à função] (1977), Il terzo assente
[O terceiro ausente] (1989) e Contro i nuovi dispotismi [Contra os novos
despotismos] (2008), além de Para uma teoria neobobbiana da democracia
(2015) de Michelangelo Bovero (discípulo de Bobbio) e outras inúmeras
obras que se encontram no prelo.
Dessa forma, um convênio bastante frutuoso entre a Unesp,
a PUC/SP e o Instituto Norberto Bobbio permitiu a organização da “I
Semana Norberto Bobbio – Democracia e Direitos Humanos” (https://
semananorbertobobbio.wordpress.com), entre os dias 23/08/2016 a
25/08/2016, organizada por Rafael Salatini (Unesp-Marília) e César
Mortari Barreira (Instituto Norberto Bobbio), que visava reunir num even-
to acadêmico-cientíco diversos(as) doutores(as) que defenderam teses so-
bre Norberto Bobbio no Brasil, em instituições públicas e privadas, entre
os quais participaram os(as) seguintes pesquisadores(as) da obra bobbiana:
Dra. Gisele Mascarelli Salgado, Dr. Roberto Bueno Pinto, Dr. Francisco
de Assis Brandão dos Reis, Dr. Sergio Candido de Mello, Dr. Giuseppe
Tosi, Dr. Samuel Antonio Merbach de Oliveira, Dra. Daniela Mesquita
Leutchuk de Cademartori e Dr. José Alcebíades de Oliveira Júnior.
Além do mais, foram especialmente convidados o Dr. Alfonso
Ruiz Miguel (Universidad Autónoma de Madrid), talvez o maior pesqui-
sador mundial do pensamento bobbiano, e o Dr. Mario Giuseppe Losano
(http://www.mariolosano.it/), lósofo do direito discípulo de Bobbio,
para apresentarem conferências no evento. Outras autoridades acadêmicas
e cientícas ligadas ao nome de Norberto Bobbio no Brasil também parti-
ciparam, como o Dr. Celso Lafer (USP), maior divulgador do pensamento
bobbiano no Brasil, Dr. Celso Fernandes Campilongo (PUC/SP, USP),
Dr. Tércio Sampaio Ferraz Jr. (USP), Dra. Silvia Carlos da Silva Pimentel
(PUC-SP) e Celso de Souza Azzi, presidente do Instituto Norberto Bobbio.
A Comissão Cientíca do evento foi composta por Dr. Celso
Lafer (USP), Dr. Marcelo de Azevedo Granato (FACAMP/FMU/Instituto
Norberto Bobbio), Dr. Rafael Salatini (Unesp-Marília) e Dr. Roberto
Bueno Pinto (UFU). A Comissão Organizadora do evento foi composta
por Me. César Mortari Barreira (Instituto Norberto Bobbio), Dr. Marcelo
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
12
de Azevedo Granato (FACAMP/FMU/Instituto Norberto Bobbio), Me.
Guilherme Arruda Aranha (PUC-SP), Dr. Rafael Salatini (Unesp-Marília)
e os estagiários Renan Lemos Ferreira Andrade Paiva (Instituto Norberto
Bobbio) e Fernanda de Azevedo Tubero (Instituto Norberto Bobbio).
O evento ainda contou com quatro sessões de comunicações, nas
quais apresentaram comunicações os(as) seguintes pesquisadores(as): José
Victor Pallis da Silva, Laura Farah Feitoza, Tatiane Bolsonaro Guimarães,
Antonio Carlos de Oliveira Santos, Mario adeu Leme de Barros Filho,
Adriana Silva Gregorut, Luiz Eduardo Lemos de Almeida, Daniela Akemi
Prado Ifuki, Luciano Lavor Terto Junior, Marcelo Aversa, Gabriel Leão
Ursi, Davi Nogueira Lopes, Fábio Metzger, Rafael Salatini, Emmanuel
Pedro Ribeiro, David Marcucci Pracucho, André Lucenti Estevam, Ana
Luiza de Morais Rodrigues e Marcelo de Azevedo Granato.
Gostaríamos de aproveitar para renovar os agradecimentos às in-
tituições que auxiliaram nanceiramente na organização do evento, sem
as quais nada seria possível: Fapesp, CAPES, PROEx/Unesp e Instituto
Norberto Bobbio. Um agradecimento especial é devido ao Escritório de
Pesquisa da Unesp-Marília, pelo apoio organizacional, e à PUC/SP, pela
sediação do evento.
O presente volume colige as principais participações desse ma-
ravilhoso evento, somadas a dois textos de Norberto Bobbio publicados
pela primeira vez no Brasil: “A democracia realística de Giovanni Sartori
(1987) e “A função promocional do direito revisitada” (1984).
Rafael Salatini
César Mortari Barreira
Parte 01
Norberto Bobbio e a democracia
15
A   
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Norberto Bobbio
Giovanni Sartori é amigo das citações de trechos clássicos coloca-
das como epígrafe no início de todo capítulo. A coletânea destas epígrafes
constituiria já por si mesma um bom guia para entrar no seu mundo de
ideias. Espero que não lhe desagrade se, para representar do modo mais
conciso a obra concluída por ele nos últimos trinta anos, para construir e,
pouco a pouco, terminar uma teoria da democracia cada vez mais rica de
dados e argumentos, resultante nos dois volumes recém-publicados, e
theory of democracy revisited [A teoria da democracia revisitada], valha-me,
eu também, de uma epígrafe muito célebre, o lucreciano “Crescit eundo
[Cresce como segue].
Texto revisto e corrigido da introdução ao encontro, organizado pelo Centro de Ciência Política da Fundação
Feltrinelli, em Milão, em 17 de novembro de 1987, sobre a obra de Giovanni Sartori, e theory of democracy
revisited [A teoria da democracia revisitada], Chatham House, New York de 1987. Publicado originalmente na
revista Teoria política [Teoria Política], IV, n. 1, 1988, pp. 149-158. Agradecemos ao Instituto Norberto Bobbio
pela gentileza da cessão dos direitos de tradução e publicação deste texto. Tradução de Erica Salatini. Revisão
técnica de Rafael Salatini.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p15-28
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
16
Em 1957, aparece o texto fundador, Democrazia e denizioni
[Democracia e denições], que, esgotado em seis meses, foi reeditado
no ano seguinte com um longo prefácio, que continha uma resposta
aos críticos. Em 1962, apareceu a tradução em inglês, feita pelo próprio
autor, com um novo título: Democratic theory [Teoria democrática]. O
título modicado demonstrava que a nova edição não era apenas uma
reprodução da edição italiana, mas continha alguma integração e alguma
oportuna adaptação para o público americano, além de dois capítulos
novos de caráter essencialmente metodológico. Sartori tinha dedicado
grande parte dos seus estudos, até o volume sobre a democracia, a pro-
blemas metodológicos, especialmente à distinção entre losoa e ciência
política, particularmente oportuna nos anos em que a ciência política
era introduzida na Itália como disciplina universitária. Em 1969, apare-
ceu a terceira edição italiana que voltava às duas primeiras, mesmo que
com alguma hesitação, mas acrescentava em apêndice dois ensaios escri-
tos para a International Encyclopedia of the Social Sciences [Enciclopédia
Internacional de Ciências Sociais], sobre Democrazia [Democracia] e
Sistemi rappresentativi [Sistemas representativos].
Já tive ocasião de me deter sobre a importância que teve este livro
na época, quando escrevi, tempos atrás, que com esta obra o debate polí-
tico italiano sobre a natureza da democracia tinha passado das mãos dos
ideólogos às dos estudiosos, que analisam os mecanismos da democracia
e colocam em evidência virtudes e defeitos: “obra – comentei – de sólida
cultura universitária, mesmo que não zesse mistério sobre a própria orien-
tação ideológica na direção da democracia liberal
2
. A importância da obra
residia também no fato que uma corrente de estudos sobre a democracia,
na Itália, a diferença de outros países, onde a democracia tinha raízes mais
profundas, como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos, não houve
nunca, e bem poucos eram os precedentes dos quais vale a pena perpetuar
a lembrança. Se existiram precedentes, estes foram devido a juristas. O
estudo do Estado e das suas instituições geralmente tinha sido de compe-
tência dos estudiosos de direito público, em vez dos cientistas políticos,
mesmo porque, antes do advento da escola técnica do direito público, a
Prolo ideologico del Novecento [Perl ideológico do século XX], in: Storia della letteratura italiana. Il Novecento
[História da literatura italiana. O século XX]. Milão: Garzanti, 1987, I, p. 168.
Democracia e Direitos Humanos
17
ciência política fazia parte, didaticamente, do direito constitucional. Em
1946, a Utet tinha publicado rapidamente o manual de Emilio Crosa, Lo
stato democratico [O Estado democrático], destinado a substituir precipita-
damente o manual de direito constitucional do mesmo autor, que era um
comentário, “va sans dire” [é inegável], apologético, do regime fascista.
(Mas o jurista, se queria ser um cientista, não deveria ser “wertfrei” [livre de
valor]?). Um confronto entre o manual de um jurista e o livro de Sartori,
que retomava uma não antiquada tradição de ciência política logo inter-
rompida (que remontava aos Elementi [Elementos] de Mosca), seria instru-
tivo. Perceber-se-ia que as matérias tratadas são um tanto diversas: quanto
maiores as formas e as estruturas, no livro do jurista, em que a parte central
é dedicada às “garantias constitucionais”, próprias do Estado democrático,
ou, para ser mais exatos, do Estado de direito, maiores os conteúdos e os
valores, a liberdade e a igualdade, liberalismo e dirigismo, democracia e
autocracia, no segundo. No livro de Sartori, os nomes de juristas se con-
tam nos dedos de uma mão. No capítulo Libertà e legge [Liberdade e lei], o
autor mais citado é Rousseau. (Não acontece de forma diversa nas relações
entre direito internacional e relações internacionais: ignoram-se).
Uma obra de teoria da democracia, para se colocar no elenco da
teoria geral da política, na Itália, não gostaria de me enganar, não havia
nunca existido, obra digna de ser posta ao lado de Modern democracies
[Democracias modernas] de Bryce, não obstante as grandes e corajosas
batalhas democráticas dadas nos anos da crise pós-bélica por Salvemini,
Amendola, Gobetti, por Guglielmo Ferrero.
Nos Elementi di politica [Elementos de política] de Croce, um au-
tor de que Sartori se ocupou durante muito tempo nos seus mais antigos es-
tudos, antes de se ancorar à ciência política, o problema da democracia não
é tocado nem mesmo de leve. Com Croce e com seu coetâneo Mosca, toda
a tradição liberal do século XIX via ainda na democracia dos modernos,
não o coerente desenvolvimento e, portanto, a continuação, mas a antítese
do liberalismo, através da “rebelião das massas” que teria sido seguida pelo
sufrágio universal e o desaparecimento das liberdades civis. Liberalismo e
democracia eram contrapostos e considerados incompatíveis, porque se
inspiravam, respectivamente, em dois ideais diversos e contraditórios: a li-
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
18
berdade e a igualdade. Ainda na segunda metade do século XIX, Francesco
De Sanctis contrapunha, também do ponto de vista literário, a escola li-
beral à escola democrática, cujos representantes principais eram os dois
grandes antagonistas do Risorgimento, Cavour e Mazzini. Também para De
Sanctis, o ideal da sociedade democrática era “a igualdade de direito que,
nos países mais avançados, é também igualdade de fato
3
.
A contraposição entre liberalismo e democracia começa a se ate-
nuar na Storia del liberalismo europeo [História do liberalismo europeu]
de De Ruggiero (1925), em que a ampla exposição histórica desemboca
em uma precisa análise conceitual. Em um capítulo dedicado justamen-
te ao confronto entre liberalismo e democracia, o autor admite que o
reconhecimento da liberdade política era o prosseguimento natural do
reconhecimento das liberdades civis, tanto que arma: “uma divisão en-
tre liberalismo e democracia não é, portanto, mais possível: o território
de ambos é comum”, e que “algumas diferenças que subsistiam origina-
riamente foram suavizadas com o tempo
4
. Apesar desta superação da
antítese, De Ruggiero não escondia a antiga desconança em relação à
democracia, que derivava da identicação entre democracia e jacobinis-
mo, tanto que arma que a democracia se tornara aceitável, sim, mas
somente com o enxerto do pensamento liberal. Que a democracia fosse
nalmente para se aceitar, com todos os seus perigos, não tanto porque
fosse a continuação progressiva natural do Estado liberal, mas porque
tinha acabado por compactuar com o seu antigo adversário, De Ruggiero
deixava exalar claramente com esta armação: “A exigência de uma en-
trada de liberalismo no núcleo da sociedade democrática diferencia a
estagnada uniformidade dos seus elementos e os reaviva por dentro
5
.
Para De Ruggiero, a democracia não era, portanto, o histórico e inevitá-
vel cumprimento da revolução nascida da armação dos direitos civis e
não poderia não prosseguir com a armação dos direitos políticos, mas o
temido advento de uma sociedade de massa, tornado menos ameaçador
pela sobrevivência, não obstante tudo, do espírito de liberdade.
 F. De Sanctis, Mazzini e la scuola democratica. [Mazzini e a escola democrática] Turim: Einaudi, p. 13.
 G. De Ruggiero, Storia del liberalismo europeo [História do liberalismo europeu]. Bari: Laterza, 1984, p. 393.
 Op. cit., p. 401.
Democracia e Direitos Humanos
19
Resta assinalar para os futuros estudiosos a maior obra italiana
sobre a democracia e a sua história, completamente esquecida, também
pelo próprio Sartori, que não a cita nunca, La démocracie [A democracia]
de Francesco Saverio Nitti, escrita em francês, durante o exílio na França,
publicada em 1932, e agora incluída na edição nacional das Opere [Obras]
do estudioso e homem de Estado, com organização de L. Firpo, em 1976.
Trata-se, essencialmente, de uma obra de polêmica política, complicada,
mas apaixonada e muito lúcida, em defesa da democracia contra o nacio-
nalismo, por um lado, destinado sempre a se transformar em imperialismo
(e no que se refere ao fascismo italiano, a previsão não poderia ser mais
clarividente); por outro, mesmo que de forma menos agressiva, contra as
ameaças que provinham do marxismo, em particular da doutrina da dita-
dura do proletariado. Mas era também uma obra de reconstrução histórica
e de elaboração doutrinal que, um dia ou outro, deverá ser “revisitada” ela
também; mesmo que não seja certo considerá-la uma obra de teoria políti-
ca, como a que estou examinando.
A nova edição é notavelmente acrescida de cerca de um terço a
mais. No título retoma também a edição americana. O autor adverte na
Introdução que, por mais que a nova obra “incorpore” a precedente, con-
tém capítulos novos e o que foi incorporado é quase sempre inteiramente
reformulado. As novidades formais, digamos assim, referem-se, antes de
mais nada, à redenição das palavras-chave da teoria política que são con-
tinuamente usadas, segundo Sartori, por capricho; em segundo lugar, a ne-
cessidade de levar em conta um retorno, nos Estados Unidos também, do
debate em torno do marxismo; em terceiro lugar, a crise da ciência política
empírica, anunciada, predicada, teorizada e provocada pelos movimentos
de contestação dos anos de 1960. Após um decênio de negação, observa
Sartori, e chegado um decênio de discussões altamente técnicas de losoa
política – e aqui aparecem os fatídicos nomes de Rawls e de Nozick – que
parecem ter feito tábua rasa de todo o passado. Teria nascido disso uma
bela confusão, da qual é necessário tentar sair, rejuntando, com paciência,
os pedaços e os fragmentos esparsos de uma teoria da democracia. Se a
democracia é, como foi dito, o governo mediante discussão, cada vez mais
se impõe a exigência de discutir a questão da democracia.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
20
A partir das reexões sobre os resultados do “decênio do tecnicis-
mo” que é seguido pelo decênio da contestação, nasceu um novo capítulo,
sobre a teoria do “Decision making [tomada de decisão] e a democracia”,
que dá conta de um tema, cuja discussão cada vez mais vivaz aconteceu nos
últimos vinte anos, e contém novas matérias para reexão para qualquer
um que pretenda alargar o campo da teoria da democracia. Distinguem-se
vários tipos de decisões ali, entre as quais interessam ao cientista políti-
co, sobretudo, aquelas que são chamadas “coletivizadas”, e são as decisões
que valem para todo o grupo, embora sejam tomadas por uma parte ou
mesmo por um só. Segue uma discussão sobre o tema dos custos internos
das decisões e dos seus riscos externos; sobre os métodos de formação das
decisões e sobre as regras com base nas quais as decisões são tomadas, com
particular atenção à regra da maioria; sobre o tipo de resultado (de soma
zero, de soma positiva, etc.) destas; sobre o contexto de decisão (contínuo
ou descontínuo); sobre a intensidade das preferências, que é desigual de
indivíduo para indivíduo em relação ao princípio de maioria que age como
nivelador das desigualdades.
Um parágrafo de particular interesse, e sobre o qual me agrada
chamar a atenção do leitor italiano, refere-se à natureza e à função do
comitê”, denido como grupo caracterizado como “small, interacting,
face-to-face” [pequeno, que interage, cara à cara] (p. 226), que tem uma
certa duração, institucionalizado, chamado a tomar decisões continua-
mente. Uma das razões pela qual uma teoria da democracia deve prestar
contas aos “comitês”, cuja relevância foi, até agora, negligenciada, reside
no fato que “the commettee systemis the most pervasive, crucial and mi-
sunderstood part of the real ‘stu’ of politics” [O sistema de comitês é a
parte mais difundida, crucial e mal compreendida do “material” real da
política] (p. 228). As decisões do comitê, diferentemente daquelas de uma
assembleia, são tomadas não pela maioria, mas predominantemente com
base no princípio do “do ut des” [dou para que dês], que Sartori chama
de “deferred reciprocal compensation” [compensação recíproca diferida],
e são, por conseguinte, de soma positiva. Uma das características de uma
democracia em relação a uma autocracia é a proliferação dos comitês, do
que deriva um aumento de participação, do qual o comitê singular cons-
Democracia e Direitos Humanos
21
titui a “unidade ideal”. Mesmo se o autor não dá este exemplo, o que ele
escreve sobre a natureza e a função dos comitês se adapta perfeitamente às
comissões parlamentares, à diferença entre o modo delas de decidir e o das
assembleias, de que uma das mais relevantes, e altamente positiva, segundo
Sartori, é a menor visibilidade.
Não obstante estas e outras inovações, a estrutura da obra per-
maneceu, através de todas as metamorfoses, a mesma. Os dois volumes da
presente edição correspondem às duas partes em que a obra era dividida,
desde a primeira edição, uma mais teórica e a outra mais histórica. Agora
as duas partes são intituladas e contemporary debate [O debate contem-
porâneo] e e classic issues [Os problemas clássicos], enquanto que na
outra edição tinham como subtítulo Un’analisi metodologica [Uma análise
metodológica] e Una verica storica [Uma vericação histórica], na edição
inglesa de 1962, incisivamente, e argument [O argumento] e e proof
[A prova]. O número de notas e de informações bibliográcas aumentou
muito. Para perceber este aumento, deve-se confrontar o índice de nomes
e de edições precedentes com o da última.
Naturalmente, a inspiração ética e ideológica também permaneceu
a mesma: para Sartori, não existe democracia para além da liberal-demo-
cracia. A doutrina liberal conuiu, após um século de contraposição, no
Estado democrático. O Estado democrático, fundado sobre a regra da maio-
ria e sobre a proteção da minoria, é o prosseguimento histórico do Estado
liberal. Na primitiva redação italiana se lia: “Na segunda metade do século
XIX, o ideal liberal e o democrático conuíram um no outro, e na fusão, se
confundiram” (p. 226). Na última redação que estamos examinando: “My
perspective is a liberal-democratic one” [Minha perspectiva é uma pessoa li-
beral-democrática] (p. 450). Contínuo, coerente, sem arrependimentos e re-
pensares, é a postura crítica nos confrontos do “perfeccionismo”, ou seja, das
teorias que pintam uma democracia ideal, que nunca existiu e nunca existirá
em nenhum lugar e acabam por alimentar o descrédito da democracia real,
com todos os seus defeitos, mas também com todos os seus méritos que as
outras formas de governo não têm. O único modo para salvar a democracia
é o de considerá-la como é, com espírito realista, sem iludir e se iludir. O
que não quer dizer aceitar a concepção realista da política, segundo a qual a
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
22
política é pura política, isto é, puro exercício do poder. Outro modo é ob-
servar realisticamente as coisas da política, e outro ainda é armar que existe
compatibilidade entre fé democrática e visão realista. Se Mosca e Pareto fo-
ram antidemocráticos, isto não dependeu do realismo deles. Sartori não tem
dúvidas sobre a compatibilidade entre ser realista e ser democrático: demo-
crático, porque, normativamente, exprime a própria preferência pelo gover-
no fundado no consenso, que contrapõe às formas de governo autocráticas;
realista, porque considera que a única democracia possível seja a representa-
tiva. Seguindo a doutrina italiana das elites e acolhendo a denição dada por
Schumpeter, arma que a democracia seja não o governo sem elites, mas o
governo de elites em concorrência entre elas. Na velha edição italiana se lê
que a democracia é “um sistema ético-político no qual a inuência da maio-
ria é conada ao poder de minorias concorrentes que a asseguram” (p. 105).
Na última edição, dene a democracia como “a selective poliarchy” [uma
poliarquia seletiva] (p. 169). Em todas as edições, até a última, a paixão pela
análise conceitual através da análise linguística é idêntica. Não por acaso, as
primeiras edições italianas tinham aquele estranho título em que a palavra
democracia” não era conjugada com uma palavra pertencente à mesma fa-
mília, como por exemplo, autocracia, mas com “denições”. Este conúbio
deixava entender claramente qual lugar ocupasse na obra a “questão de pala-
vras”. Não é que Sartori acredite que basta redenir os principais conceitos
da linguagem política para fazer uma boa teoria, mas é certo que, para ele, a
eliminação das confusões verbais é o pressuposto necessário para colocar or-
dem em um universo de conceitos tornados ambíguos pelo uso pragmático
e casual, não sempre inocente, que se faz deles na luta política.
Visto que acenei, no início, ao gosto de Sartori pelas citações,
uma entre todas se destaca e oferece a melhor chave para entender o propó-
sito principal do autor. Na edição atual, é colocado, no primeiro capítulo,
um trecho de Tocqueville que diz:
O que lança mais confusão no espirito é o uso que se faz das palavras:
democracia, governo democrático. Até quando não se conseguirá de-
ni-las claramente e entrar em acordo sobre esta denição, viver-se-á
em uma confusão de ideias inextricáveis, com grande vantagem dos
demagogos e dos déspotas.
Democracia e Direitos Humanos
23
O primeiro parágrafo é intitulado: e age of confused democracy
[A idade da democracia confusa] e começa com estas palavras: “Entre as
condições da democracia, uma delas é que as ideias erradas sobre a demo-
cracia fazem-na tomar uma direção ruim”. Logo depois, acrescenta: “Esta
é uma razão suciente para escrever este livro”. Parece mesmo, julgando
pelas primeiras páginas, que a confusão tenha aumentado, até mesmo por-
que, a discussão, eventualmente, por escasso conhecimento dos preceden-
tes ou pelo prazer de parecer inovadores, recomeça do início, como se os
bárbaros tivessem chegado para queimar a biblioteca de Alexandria. Para
dizer a verdade, as bibliotecas, em geral, não queimam mais. Mas cresce-
ram tanto que se assemelham cada vez mais à Biblioteca de Babel. No que
se refere à confusão e à diculdade de ler os livros, o resultado é o mesmo.
Por sorte, Sartori não perdeu o hábito de voltar atrás no tem-
po e de reler os clássicos. Em relação à falta de sentido da profundidade
histórica, que foi repreendida muitas vezes pela ciência política empírica,
não é por menos a losoa política que se desenvolveu em torno de obras
como aquelas de Rawls e de Nozick. A leitura dos clássicos torna imune
ao defeito que Sartori chama “novitism” [novidadismo] e que, somado ao
“beyondism” [para-além-de-ismo], considera uma das duas formas caracte-
rísticas de “ubris” [orgulho] dos intelectuais, denindo como a arrogância
necessária de ser originais a todo custo.
Subscrevo, pessoalmente, este juízo a duas mãos. Aliás, mais pa-
pista que o papa, mais sartoriano que Sartori, no que se refere à relação
entre a democracia dos antigos e a democracia dos modernos, sou mais
continuísta” que ele. Uma das teses historiográcas sempre rearmada
por Sartori é que é necessário tirar da mente que as duas democracias se
assemelhem. Essas, arma, têm entre elas apenas “a very slight resemblan-
ce” [uma semelhança muito ligeira]. Podemos reler o célebre epitáo de
Péricles proferido por Tucídides: reencontramos aqui todos os traços prin-
cipais daquela forma de governo que hoje chamamos democracia, mesmo
democracia liberal; o reconhecimento da liberdade individual, que é, a
despeito de Constant, a liberdade dos modernos, o elogio da participação
e a condenação do que hoje chamamos “apatia política”, a supremacia da
lei, ou seja, a armação do Estado de direito.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
24
Na base desta ideia de democracia está uma concepção individu-
alista de sociedade que implica repúdio de toda visão organicista ou ho-
lística. Vejam-se as considerações iniciais sobre “povo” e “people” [povo],
sobre a inadequação da noção orgânica de povo, que encontra a sua ex-
pressão culminante em Volk [povo], dos românticos, com o objetivo de
representar a democracia moderna, que é feita de indivíduos. Na sociedade
de massa que está na base da democracia moderna, o povo se tornou cada
vez mais uma Gesellschaft [sociedade], e cada vez menos uma Gemeinschaft
[comunidade]. O singular indivíduo, em uma democracia representativa,
deve ser considerado, porém, mais como um eleitor que como um decisor.
Daqui nasce um outro ponto nal da teoria democrática de Sartori: aque-
les que comandam são sempre parte da elite. A democracia direta é difícil
e, mesmo quando é possível, não é completamente desejável porque o pro-
cedimento referendário não consente, ao menos até agora, a discussão, e o
resultado é sempre de soma zero.
De um ponto de vista descritivo, a denição de democracia que
Sartori dá como sua é a chamada procedimental:
Democracy is a procedure and/or mechanism (a) that generates an
open polyarchy whose competition on electoral market (b) atributes
power to the people (c) specically enforces the responsiveness of the
leaders to the led. (p. 156)
[A democracia é um processo e/ou mecanismo (a) que gera uma poliar-
quia aberta cuja concorrência no mercado eleitoral (b) atribui poder ao
povo (c) especicamente impondo a capacidade de resposta dos líderes
ao liderado.]
Mas podemos nos contentar com uma denição descritiva?
Segundo Sartori, não basta falar de elite de modo prescritivo, porque esta
palavra foi cada vez mais usada com um signicado neutro (começando
por Pareto e terminando com Lasswell). É necessário distinguir elite de eli-
te. O problema não é, portanto, apenas de eleição, mas também de seleção,
entendendo por seleção a eleição do melhor. Disso descende uma denição
axiológica de democracia que ressoa: “A democracia deveria ser um sistema
seletivo de minorias eleitas em competição entre si” (p. 167). Em síntese,
Democracia e Direitos Humanos
25
se descritivamente a democracia pode ser denida como uma poliarquia
eletiva, axiologicamente será denida como uma poliarquia seletiva.
Pode-se objetar que esta denição contrasta com um dos valo-
res nos quais sempre se inspirou a democracia, a igualdade. A resposta de
Sartori a esta objeção consiste na distinção entre igualdade descendente,
que é própria daquela que ele chama a democracia horizontal (que rejeita)
e igualdade ascendente, que caracteriza a democracia vertical. Enquanto as
teorias antielitistas encorajam a igualdade descendente, existe uma igual-
dade que qualica a igualdade ascendente: é a igualdade segundo o mérito,
que é aristotelicamente uma igualdade proporcional. Esta ulterior especi-
cação serve para precisar melhor a denição axiológica: “A democracia é
uma poliarquia fundada no mérito”.
Permanece em aberto a pergunta: quais são as características de
uma democracia meritocrática e como se chega a ela? Parece que Sartori
lamenta que a democracia atual esteja bem longe de corresponder à de-
nição ideal. Mas qual seja o segredo para corrigi-la, não está claro nem
mesmo nas conclusões nais. A verdade é que este segredo nenhum dos
muitos médicos inclinados na cabeceira da grande enferma o possui. A
democracia se afasta cada vez mais do seu modelo ideal, posto que o seu
modelo seja, como o propõe Sartori, a meritocracia. O último argumento
dos bons democratas parece ter se tornado aquele do mal menor.
Quando a longa viagem no tempo e no espaço em busca da ilha
do tesouro está completa e o mapa da ilha está perfeitamente delineado,
percebe-se que o tesouro não existe ou é muito menos brilhante do que pa-
recia quando se via de longe e a névoa que impedia de vê-lo, mesmo quan-
do se estava já próximo, não tinha ainda se dissolvido. O que aconteceu?
Aconteceu que não basta dissolver a névoa, ou seja, sem metáfora, liberar o
discurso sobre a democracia de todas as confusões verbais e mentais que o
ofuscaram, cumprir a obra de limpeza conceitual a que Sartori se dedicou
com obstinada coerência e com sucesso por tantos anos, com o objetivo
de redenir a democracia, aliás, a liberal-democracia, uma vez armado
que não existe outra democracia senão a democracia liberal. Não basta,
caso se queira chegar à conclusão que a liberal-democracia é uma forma de
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
26
governo melhor que todas as outras. É necessário então tomar posição, que
é uma coisa bem diferente que denir.
Sartori é tão convicto desta denição que em todas as versões
do livro voltou ao tema em um dos capítulos mais difíceis, intitulado
Dimostrare la democrazia [Demonstrar a democracia], nas edições italia-
nas, depois e search of proof [A pesquisa de prova] na primeira edição
inglesa, e por m, What is democracy? Denition, proof and preference [O
que é democracia? Denição, prova e preferência], nesta última e mais
completa redação, em que o capítulo que nas edições precedentes era o
último da primeira parte se transformou no primeiro da segunda. Desde
o início Sartori está convencido que a democracia pode ser denida, mas
a sua “verdade” não pode ser demonstrada. “To dene is not the same
as to give reasons for” [Denir não é o mesmo que dar razões] (p. 267).
Pode-se somente comparar a democracia com as outras formas de gover-
no, autocráticas, totalitárias, despóticas, e apresentar boas razões para
defender as nossas preferências.
Mas as nossas preferências não devem ser continuamente con-
frontadas, não só com o que não preferimos, mas também com o que
preferimos, para provar que a realidade corresponde aos nossos desejos?
Enquanto na primeira edição, que data de trinta anos atrás, como dito
antes, esta correspondência parecia maior, agora no último capítulo, in-
titulado e poverty of ideology [A pobreza de ideologia], completamente
novo, seja em relação ao capítulo nal das edições italianas, intitulado
simplesmente de Conclusione [Conclusão], seja em relação ao da primei-
ra edição inglesa, intitulado Conclusions [Conclusões], o juízo sobre a
democracia real parece menos otimista. O acento recai sobre a perda dos
ideais, que animaram os pais fundadores da democracia, e, portanto, o
problema de fundo volta a ser o problema moral. Mas o problema moral
não se resolve só com denições.
Sartori está tão convencido que a sua fé na democracia (pare-
ce-me que a palavra “fé” seja a única justa neste contexto) não diminui
mesmo diante dos perigos, não só externos mas também internos, que
ameaçam as sociedades democráticas; tanto que se induz a pronunciar, no
nal, a célebre frase do herói de Corneille: “Faça o seu dever e deixe o resto
Democracia e Direitos Humanos
27
com Deus”. Mas qual é o maior perigo que ameaça hoje a democracia? Não
saberia responder melhor que citando a passagem em que, após ter arma-
do que a democracia tem fundamentos morais, Sartori observa que o sen-
tido do dever e do desinteresse foram corroídos por uma visão puramente
economicista da política. Para concluir, ao nal: “I do subscribe to the view
that the presente-day crisis of democracy is very much a crisis of ethical
foundantions” [Eu subscrevo a opinião de que a crise atual da democracia
é muito mais uma crise de fundamentos éticos] (p. 242).
Sartori não estará de acordo, e eu mesmo não estou tão certo
assim daquilo que estou por armar, mas a razão da crise moral da demo-
cracia poderia ser buscada no fato de que, até agora, a democracia política
conviveu, ou foi obrigada a conviver, com o sistema econômico capitalista.
Um sistema que não conhece outra lei além daquela do mercado, que é
por si mesma completamente amoral, fundada como é sobre a lei da oferta
e da procura, e sobre a consequente redução de tudo a mercadoria, com a
condição que esta coisa, seja a dignidade mesma, a consciência, o próprio
corpo, um órgão do próprio corpo, e porque não?, já que estamos falando
de um sistema político como a democracia que se rege sobre o consenso
expresso pelo voto, o voto mesmo, caso se encontre quem esteja dispos-
to a vendê-lo e quem esteja disposto a comprá-lo. Um sistema no qual
não é possível poder distinguir entre o que é indispensável e o que não é.
Partindo da soberania do mercado, como se pode impedir a prostituição e
o comércio da droga? Com qual argumento se pode impedir a venda dos
próprios órgãos? E, de resto, os sustentadores do mercado não andam ar-
mado que o único modo para resolver o problema da penúria dos rins para
transplante é o de colocá-los à venda?
Neste ponto, que mal há na venda dos votos? E como é possível
contrastar a consequência inevitável que quem é mais rico pode comprar
mais do que quem não o é? Na compra-venda dos votos, não se trata,
no nal das contas, senão de uma troca entre o cidadão, que com seu
voto, consente ao homem político de se estabelecer em um posto do
qual pode extrair benefícios econômicos, e o senhor representante do
povo que compensa o sustento recebido com uma parte dos recursos dos
quais pode dispor graças àquele voto. Em um paralelo com a compra do
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
28
órgão sexual da mulher ou da droga, ou ainda do olho de um menino
pobre, como se viu nos jornais, o que é a compra de um voto? Em uma
entrevista, Heinrich Böll disse: “Se não existe uma força capaz de se opor
ao materialismo de mercado, não importa de que tipo, religioso, político,
ideológico, então, nos nossos mercados venderemos nós mesmos, ou até
mesmo os nossos netinhos”.
É necessário reconhecer mesmo, lealmente, que até agora não se
viu, na cena da história, outra democracia que não seja aquela conjugada
com a sociedade de mercado. Mas começamos a nos dar conta que o abraço
do sistema político democrático com o sistema econômico capitalista é, tudo
somado, vital e mortal, ou melhor: é também mortal, mais que vital. Não
passará muito tempo e será necessário, talvez, “revisitar” os revisitadores.
29
N B     I:
     
Mario Giuseppe Losano
os viNte aNos de mussoliNi e a democracia recoNquistada
A evolução política de Norberto Bobbio está ligada à ideia de de-
mocracia desde os anos do fascismo e se manifestou plenamente do m da
segunda guerra mundial em diante. A sua “conversão” à doutrina pura de
Hans Kelsen o levou a aceitar a visão kelseniana da democracia procedi-
mental, isto é, da democracia das regras, que defendeu com determinação
enquanto intelectual laico, sem participar diretamente de órgãos políticos
ou de partido. Depois, a partir dos anos noventa, seguiu com apreensão e
amargura a degeneração da democracia parlamentar italiana. As páginas que
seguem descrevem sinteticamente essa sua trajetória através de algumas obras
signicativas, acompanhadas de alguns momentos “epifânicos” da sua vida.
Tradução de Marcelo de Azevedo Granato.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p29-58
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
30
Tais referências têm um valor sobretudo evocatório: cada um dos temas é
desenvolvido no meu livro sobre Norberto Bobbio, em curso de publicação
2
.
Para melhor seguir o desenvolvimento do pensamento e da ação
política de Bobbio, convém ter em mente três importantes rupturas na sua
vida: em 1938, a aprovação das leis raciais o levou a aderir ao antifascismo
militante e à democracia parlamentar; em 1949, teve lugar o que ele mes-
mo deniu como sua “conversão” a Kelsen, que foi, por toda a sua vida,
seu ponto de referência (criticamente) como lósofo jurídico e político;
enm, em 1972, a sua transferência da Faculdade de Direito para a de
Ciências políticas foi acompanhada pelo predomínio de seu interesse pela
losoa política (ainda que não tenha abandonado a losoa do direito,
assim como, nos anos anteriores, sempre se ocupara da losoa política
paralelamente à losoa jurídica, então dominante em seu trabalho).
*
Desde os anos do fascismo, Bobbio tinha se posicionado a favor
da democracia parlamentar. Nos seus escritos politológicos, pode-se notar
um envolvimento com os fatos quotidianos (guiado pelos três princípios
próprios da ciência política: vericabilidade dos resultados, nalidade cog-
noscitiva, não valoração) e, junto a ele, uma reexão crítica sobre esses fatos
no quadro geral de uma losoa política. Uma losoa política que vê na
democracia representativa a forma da “ótima República” e que, portanto,
é orientada segundo valores e tem caráter claramente e conscientemente
prescritivo: não é isenta de valoração e não pretende sê-lo
3
.
Bobbio se propõe a distinguir o núcleo mínimo da democracia,
isto é, aquelas características indispensáveis para que um regime possa ser
denido como democrático. Inuenciado também “pela deformação pro-
ssional de quem lecionou, por décadas, em uma faculdade jurídica”, con-
centra a sua atenção sobre o elemento formal das “regras do jogo”: “Por
regime democrático, entende-se primariamente um conjunto de regras de
 Mario G. Losano, Norberto Bobbio – Una biograa culturale, Marcial Pons, Madrid 2017 (no prelo).
Bobbio, Teoria generale della politica, Einaudi, Torino 1999, p. 12 s.
Democracia e Direitos Humanos
31
procedimento para a formação de decisões coletivas, em que é prevista e
facilitada a participação mais ampla possível dos interessados
4
; ou seja, re-
gras “que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e
com quais procedimentos
5
. Esta concepção procedimental da democracia,
como foi dito, provém do Kelsen teórico da política, bem conhecido por
Bobbio também como teórico do direito.
A democracia se realiza se, junto ao quem (elevado número de cida-
dãos) e aos procedimentos (por exemplo, a regra da maioria), é garantida aos
cidadãos a possibilidade de escolher entre alternativas precisas; em outras pala-
vras, se os cidadãos gozam dos direitos de liberdade próprios do Estado liberal
(sobretudo as liberdades de opinião, de associação e de voto, mas também as
liberdades de expressão, de reunião, de imprensa etc.). Consequentemente, “o
Estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do Estado demo-
crático
6
: apenas as liberdades fundamentais garantem o exercício da democra-
cia e apenas a democracia garante as liberdades fundamentais.
Nas democracias, as regras do jogo podem ser modicadas. De
fato, as constituições modernas preveem procedimentos para a modica-
ção dos procedimentos. O problema torna-se insolúvel se essa mudança
não ocorre por um impulso interno, mas por impulsos extrassistêmicos.
As críticas feitas por reformistas e revolucionários à democracia
representativa cingem-se à revisão ou à supressão dessas regras do jogo.
No caso da revisão, é necessário saber quais são as regras a serem substitu-
ídas e quais as substituirão, mas também é necessário se perguntar se um
sistema articulado, como aquele das regras democráticas, pode ser par-
cialmente modicado sem desabar: era esse o ponto principal (frequen-
temente não expresso) da áspera polêmica que acompanhou o referendo
constitucional de 4 de dezembro de 2016
7
. No caso da supressão revo-
lucionária das regras do jogo, ao contrário, é necessário saber qual novo
Cf. prefácio à coletânea de ensaios de Bobbio, de 1984, Il futuro della democrazia, Einaudi, Torino 1995, p.
XXII s. (essa edição não leva o subtítulo Uma defesa das regras do jogo).
Cf. o ensaio de 1984 Il futuro della democrazia, agora in Bobbio, Il futuro della democrazia, Einaudi, Torino
1995, p. 4.
Bobbio, Il futuro della democrazia, cit., p. 7.
Essa reforma constitucional propunha a modicação de 47 dos 139 artigos da Constituição de 1948, e o
referendo impediu essa reforma com 59,1% de votos contrários, contra 40,9% de votos favoráveis.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
32
sistema procedimental substituirá o velho. Quase sempre, essas contra-
propostas são insucientes ou inteiramente imprestáveis: por exemplo,
o marxismo-leninismo oferece um conjunto de regras para a tomada do
poder, mas não para o exercício do poder.
Em 1951, Bobbio publicou o seu primeiro escrito sobre os di-
reitos do homem
8
, mas se ocupou intensamente do tema apenas mais
tarde, quando, na Europa, já tinham se consolidado a paz e a demo-
cracia: de fato, sem elas, a armação dos direitos do homem é quase
impossível
9
. Assim, no universo intelectual de Bobbio, o problema dos
direitos do homem “está intimamente ligado àquele da democracia e da
paz”: de fato, “esses direitos estão na base das constituições democráti-
cas”, enquanto a paz é “o pressuposto necessário para o reconhecimento
e a efetiva proteção dos direitos do homem nos Estados individuais e no
direito internacional
10
.
Os escritos de Bobbio sobre todos esses temas nasceram em mo-
mentos diversos,mas ele sempre os viu intimamente ligados, “tanto que
repetidamente – escreveu em 1996 –, me ocorreu de apresentar sua ligação
como meta ideal de uma teoria geral do direito e da política, que, porém,
nunca consegui escrever”. Para ele, “direitos do homem, democracia e paz
são “três partes de um único sistema”: os direitos humanos “estão na base
das constituições democráticas modernas”, enquanto a paz os garante em
âmbito nacional e internacional; “sem direitos do homem reconhecidos e
protegidos, não existe democracia, sem democracia, não existem as condi-
ções mínimas para a solução dos conitos sociais
11
.
Hoje, também é frequente a forma “direitos humanos” (que prero), enquanto Bobbio usa “direitos do
homem”. Neste texto, porém, usarei sempre “direitos do homem”, para não criar descontinuidades frente
às citações de Bobbio. Gregorio Peces-Barba exercitou uma forte inuência sobre a concepção dos direitos
humanos em Bobbio: Gregorio Peces-Barba, Etica pubblica e diritti fondamentali. Traduzione e cura di Michele
Zezza. Prologo di Mario G. Losano, Franco Angeli, Milano 2016, 168 pp.
Esse tema é aprofundado in Bobbio, I diritti dell’uomo e la pace, conferência de 1982 agora in Bobbio, Il Terzo
assente. Saggi e discorsi sulla pace e sulla guerra, A cura di Pietro Polito, Sonda, Milano 1989, pp. 92-96.
10
Bobbio, L’età dei diritti, Einaudi, Torino 1992, p. VII.
11
Bobbio, De senectute e altri scritti autobiograci. A cura di Pietro Polito, Einaudi, Torino 1996, p. 165.
Democracia e Direitos Humanos
33
o socialismo libertário e as esquerdas uNidas: uma asPiração o
realizada
A formação política de Bobbio iniciou-se com o liberal-socialis-
mo de Rosselli, seguida da militância no Partido de Ação no pós-guerra e,
apenas mais tarde, no partido socialista. Entre 1992 e 1994, com a passa-
gem da Primeira à Segunda República, Bobbio, então com mais de oitenta
anos, embora senador vitalício, já tinha assumido a conduta de observador
sempre mais crítico da política governamental italiana, mas cava sempre
mais horrorizado com a irresponsabilidade, a pequenez e a vulgaridade que
vinham caracterizando seus novos protagonistas.
A elaboração teórica de Bobbio, que se articula ao longo desse
arco de tempo, pode ser subdividida aqui, por clareza, em três fases: a) a
fase da esperança pós-bélica (1945-1960, ligada ao Partido de Ação), quan-
do a liberdade reconquistada parecia tornar realizáveis as teorias democrá-
ticas e federalistas antes apenas imaginadas; b) a fase da ação democrática
(1950-1990 aproximadamente), obstada pela guerra fria e pelas diculda-
des das esquerdas, laceradas pelas tensões entre comunistas e socialistas e
pelas muito numerosas cisões entre socialistas e sociais-democratas; enm,
c) a fase do desconforto (1990-2004); de fato, a sua análise das ideais polí-
ticas da esquerda e a sua crítica à inteira política italiana continuou com o
advento dos governos Berlusconi, mas com um ritmo decrescente: não só
pelo progresso da idade, não só pelo caráter aventureiro dos novos atores
políticos, mas também pela inecácia da frágil oposição da esquerda em
face de políticas governamentais certamente não fundadas sobre elabora-
ções teóricas renadas. Na terceira e última parte deste parágrafo, veremos
o que Bobbio pensava sobre as esquerdas no contexto da ascensão da di-
reita, isto é, dos chamados “populismos”, deixando para o § 5 a reação de
Bobbio diante dos governos Berlusconi.
a) o liberal-socialismo.
Já que o fascismo combatia o liberalismo e o comunismo,
formou-se na Itália uma peculiar anidade crítica entre os dois movimentos
perseguidos. O liberal Piero Gobetti, antes de fundar a sua revista
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
34
“Revolução liberal”, colaborava com a “Ordem Nova” de Antonio Gramsci.
O “socialismo liberal” de Carlo Rosselli referia-se ao trabalhismo inglês,
conjugando democracia liberal e socialismo não marxista. Entre as duas
posições, colocava-se o “liberal-socialismo” de Guido Calogero e de Aldo
Capitini, posteriormente também um teórico da não violência. São alguns
dos mestres e companheiros que inuenciaram Bobbio diretamente
12
. Estes
movimentos convergiram em 1942 no Partido de Ação, cujo programa
projetava uma conciliação entre o liberalismo político e uma economia
mista, bem diversa, portanto, do liberismo econômico.
Assim, nos anos férvidos entre o m da ditadura e o início da de-
mocracia, oresceram hibridações generosas, mas caducas, como o comu-
nismo liberal, o socialismo liberal, o liberal-socialismo, a revolução liberal:
movimentos que hoje têm uma relevância apenas histórica, para explicar a
gênese da Itália democrática. Esse pensamento inclusivo “apresenta sempre
uma forma um pouco paradoxal, porque busca reunir dois sistemas de
ideias opostos
13
: eis porque o liberal-socialismo foi denido como um
oximoro” por Bobbio ou uma “quimera” por Croce.
O projeto político a que Bobbio aderiu ainda nos anos do fascis-
mo refere-se ao socialismo liberal de Carlo Rosselli
14
, que inspirava os dois
movimentos de que Bobbio participou ativamente: “Justiça e Liberdade
na Resistência e o Partido de Ação no pós-guerra. Esta teoria elitista tenta-
va unir dois elementos aparentemente em contraste: um liberalismo com
mais igualdade e um socialismo com mais liberdade. Que alguma concilia-
ção das duas posições fosse possível em teoria não signicava, porém, que
ela também fosse realizável na prática. Eram “construções doutrinárias e
articiais abstratas, mais verbais que reais”, comentava Bobbio ao m de
uma reconstrução do pensamento liberal-socialista também fora da Itália:
12
Sobre Rosselli: Norberto Bobbio, Maestri e compagni, Passigli, Firenze 1984, 299 pp.
13
Bobbio, Destra e sinistra. Ragioni e signicati di una distinzione politica, Donzelli, Roma 1994, p. 11.
14
Carlo Rosselli, Socialismo liberale. A cura di John Rosselli. Introduzione di Norberto Bobbio, Einaudi, Torino
1979, XLII-149 pp. (NUE); a tradução do italiano fora publicada durante o exílio: Carlo Rosselli, Socialisme
libéral, Librairie Valois, Paris 1930, 195 pp.
Democracia e Direitos Humanos
35
me parece que se caminha com os pés um pouco mais na terra se, ao invés
dos dois ‘ismos’, se fala em liberdade e igualdade
15
.
Quando a trajetória política do Partido de Ação já se concluíra,
em 1951, a revista “Il Ponte” promoveu uma Investigação sobre o Partido de
Ação, a que Bobbio contribuiu com uma análise sem reticências sobre as
razões daquele insucesso prático:
Nas posições morais, claros e rmíssimos, nas políticas tornam-se sutis
e dialéticos e, assim, extremamente móveis e instáveis, continuamente à
procura de uma “inserção” na vida política italiana que não conseguiam
encontrar. E permaneceram sem raízes na sociedade italiana daqueles
anos. A quem se voltavam? Moralistas d’abord sonhavam com uma res-
tauratio ab imis da vida política italiana, a começar pelo costume.Mas
julgavam que, para fazer essa restauratio, não era necessário fazer a revo-
lução. Assim, acabaram sendo rejeitados pelo grosso da burguesia, que
não queria a restauratio, e pelo grosso do proletariado, que não queria
renunciar à revolução. Acabaram, sim, face a face com a pequena bur-
guesia, que era a classe menos adequada para segui-los. E não foram
seguidos. Foi um espetáculo bem penoso ver estes enfants terribles da cul-
tura italiana em contato com os segmentos mais pávidos e mais apagados
[...] Por todo o tempo em que o Partido de Ação – comandantes sem
exército – desenvolveu sua função de movimento político, a pequena
burguesia – exército sem comandantes – foi politicamente indiferente
[qualunquista
[16]
]. Imaginem se poderia dar casamento
17
Ao mesmo tempo, porém, as sementes lançadas naquela estação
radiosa deram frutos no inteiro, longo decurso da obra de Bobbio: a con-
ciliação de ideais diversos exige a compreensão e o diálogo, enquanto o
regime que se funda sobre o diálogo e sobre a alternância de poder é a de-
mocracia parlamentar, por sua vez, indissoluvelmente conexa aos direitos
15
Bobbio, Sul liberalsocialismo, in Bobbio, Teoria generale della politica, cit., p. 320. Este escrito é a Introdução
ao volume Os dilemas do liberal-socialismo. A cura di Michelangelo Bovero, Virgilio Mura, Franco Sbarberi, La
Nuova Italia Scientica, Roma 1994, pp. 45-59. Cfr. também Bobbio, Socialismo e liberalismo, “Quaderni del
Circolo Rosselli”, 1986, n. 1, pp. 111-118; Bobbio, Socialismo liberale, “Il Ponte”, 1989, n. 5, pp. 158-167.
16
O “Partido do Homem Qualquer” (1945-1948) se propunha a representar o comportamento antipolítico
mais elementar e vulgar: numa vinheta clássica, um homem escreve no muro: “Abaixo Todos!”; uma célebre
máxima sua foi: “Chove, governo ladrão!”.
17
Inchiesta sul Partito d’Azione, “Il Ponte”, 1951, n. 8, p. 906 s.; reimpresso posteriormente com o título (que
retoma uma expressão de Bobbio) Quei “lividi” azionisti, “Nord e Sud”, 1992, n. 2, pp. 49-51. A investigação
de “Il Ponte” oferece um quadro variado de opiniões: “Il Ponte”, 1951, n. 7, pp. 769 ss.; e nel n. 8, pp. 901-915
(este último fascículo contém a resposta de Bobbio, p. 906 s.).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
36
fundamentais e à paz. Com essa bagagem, a losoa militante de Bobbio
encarava a reconstrução moral e material da Itália pós-bélica.
b) as esquerdas divididas.
Já se passaram cerca de setenta anos do m da guerra e a at-
mosfera daqueles tempos é difícil de imaginar hoje, especialmente para os
mais jovens. Na guerra de liberação, a contribuição dos comunistas e dos
socialistas fora preponderante; no momento da liberação, os operários ocu-
param as fábricas para impedir a sua demolição pelos alemães em retirada;
a União Soviética, embora stalinista, contribuiu para a derrota do nazi-fas-
cismo pagando um altíssimo preço; os partidos marxistas italianos saídos
da clandestinidade eram guiados por líderes reconhecidos e dispunham de
uma robusta organização, colocada à prova em anos de oposição clandesti-
na e de luta também armada. Isso explica por que os intelectuais daqueles
anos, de Bobbio a Kelsen, criticaram o marxismo e a União Soviética com
um rigor nunca dissociado do respeito. Respeito que provocava fortes rea-
ções em um Ocidente conservador
18
, no qual o “antissovietismo” da guerra
fria era exasperado ao ponto de fazer perdoar boa parte dos pecados dos
regimes nazifascistas que acabavam de cair.
Na Itália, a depuração dos ex-fascistas ocorreu de forma branda. É
exemplar a trajetória de Giacomo Acerbo, autor da lei que atribuiu aos fascistas
a maioria absoluta no parlamento, relator, em 1938, da lei que substituiu o
Parlamento pela “Câmara dos Fascistas [Fasci] e das Corporações”, além de pre-
sidente do “Conselho superior para a demograa e a raça”. Condenado a mor-
te ao nal da guerra, graças a uma série de recursos judiciários foi reintegrado
à sua Faculdade de economia em Roma e, em 1962, recebeu do Presidente da
República Antonio Segni a medalha de ouro para os “beneméritos da escola
19
.
Em um tal contexto, a simples abertura de um diálogo com
os comunistas era considerada um ato subversivo. Bobbio passava por
18
Cf., por exemplo, Losano, Hans Kelsen “criptocomunista” e l’FBI ai tempi del maccartismo: in margine al suo
libro postumo “Religione Secolare (no prelo).
19
Giacomo Acerbo, I fondamenti della dottrina fascista della razza, Azienda Tipograca Editrice Nazionale
Anonima, Roma 1940, 96 pp.; sobre o caso de Acerbo: Barbara Raggi, Baroni di razza. Come l’università del
dopoguerra ha riabilitato gli esecutori delle leggi razziali, Editori Riuniti, Roma 2012, pp. 21-37, p. 167 s.
Democracia e Direitos Humanos
37
criptocomunista, e o católico Giorgio La Pira – cuja beaticação está em
curso – era ironizado como “o peixe vermelho na pia de água benta”.
As forças políticas se encastelaram sobretudo nos dois partidos-i-
greja, isto é, na Democracia Cristã, área de captação dos moderados e dos
conservadores, e no Partido Comunista Italiano, o mais forte do Ocidente.
Porém, esse bipartidarismo era imperfeito, porque o veto dos Estados
Unidos impedia o acesso do partido comunista ao governo. Impensável,
portanto, uma coalização de governo entre os dois maiores partidos italia-
nos: em 1948, já se tornara inviável a repetição da colaboração política en-
tre as forças antifascistas do imediato pós-guerra, que seguiu a unidade na
luta partigiana da Resistência. Nesse contexto, Bobbio iniciou um diálogo
com as duas partes políticas, exortando a introduzir mais liberdade nas es-
querdas e mais solidariedade na direita. Entretanto, os seus interlocutores
eram sobretudo os comunistas, força a conquistar ou ao menos aproximar
da democracia parlamentar.
A anomalia política da Itália é sintetizada em um breve escrito de
Bobbio de 1987, que rememora os capítulos da relação entre comunistas
e socialistas até quase as vésperas do processo “Mãos Limpas”, de 1992:
“Hoje [em 1987] na Itália, o Partido socialista é diferente de todos os ou-
tros partidos socialistas da Europa ocidental porque o Partido comunista
italiano é, ele próprio, diferente de todos os outros partidos comunistas.
[…] Não existe uma questão socialista na Itália: existe uma questão socia-
lista e comunista ou, se quiser, uma questão da esquerda, da qual o Partido
comunista e o socialista são os dois componentes principais”. O partido
comunista tinha deixado de ser “um partido comunista no sentido históri-
co da palavra” no pós-guerra, desde quando Togliatti compreendeu “que a
grande escolha diante da qual se encontrava o país depois da queda do fas-
cismo não era entre fascismo e comunismo, mas entre fascismo e democra-
cia
20
. Em síntese, o Partido comunista vinha adquirindo as características
ideológicas e a posição política de um partido socialdemocrata europeu, e
isso empurrava o Partido socialista em direção ao centro, isto é, em direção
à aliança com o partido católico.
20
Bobbio, L’abito fa il monaco, p. 34 s., in AA. VV., La questione socialista. Per una possibile reinvenzione della
sinistra. A cura di Vittorio Foa e Antonio Giolitti, Einaudi, Torino 1987, X-210 pp.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
38
Para se ter uma ideia do quão difuso e inamado era aquele debate,
considere que – quando Bobbio publicou, em 1994, Direita e esquerda
21
– as
quinze mil cópias da primeira edição acabaram em dois dias. Esse pequeno
e exitoso livro se junta a Política e Cultura, de 1955, e a Qual Socialismo?, de
1976, completando o que Bobbio chama “minha trilogia de escritos de polêmi-
ca política
22
. Direita e esquerda não é uma coletânea de ensaios, mas um único
ensaio unitário, em que Bobbio se põe as questões: “Direita e esquerda ainda
existem? E se ainda existem, e têm força, como se pode dizer que perderam
totalmente seu signicado? E se ainda têm um signicado, qual é?
A seu ver, o critério mais adotado “para distinguir a direita da
esquerda é o diferente comportamento [...] diante do ideal da igualdade,
que é, junto com o da liberdade e o da paz, um dos ns últimos” persegui-
dos pela humanidade. Bobbio não se pergunta se a igualdade é preferível
à desigualdade ou vice-versa, mas analisa o seu conteúdo, indicando três
variáveis a se ter em consideração: “os sujeitos entre os quais se propõe a
repartição dos bens; os bens a repartir; os critérios pelos quais reparti-los”.
Da sua combinação, “deriva um número enorme de tipos diversos de divi-
sões igualitárias
23
, que tornam relativo o conceito de igualdade a partir do
momento em que uma igualdade absoluta seria impossível na prática, além
de desarrazoada, uma vez que as pessoas são desiguais.
Bobbio denomina “igualitários” aqueles que, frente à diversida-
de das pessoas, dão maior importância àquilo que as torna iguais, e “não
igualitários” aqueles que, ao contrário, dão maior importância àquilo que as
torna desiguais. Além disso, os igualitários veem a origem da desigualdade
sobretudo em causas prevalentemente sociais, portanto elimináveis, enquan-
to os não igualitários entendem que aquelas causas são naturais, portanto
prevalentemente inelimináveis. “O igualitário tende a eliminar as diferen-
ças, o não igualitário a reforçá-las”; em concreto, “a diferença entre os dois
tipos ideais se traduz praticamente na contrastante avaliação daquilo que é
21
Bobbio, Destra e sinistra. Ragioni e signicati di una distinzione politica, Donzelli, Roma 1994, X-100 pp.;
indica-se, para um aprofundamento do debate sobre a crise da esquerda, o Apêndice de Pietro Polito, Ripensare
la sinistra. Primi orientamenti bibliograci (1980-1994), pp. 91-100. L’anno prima era stato pubblicato Bobbio,
Sinistra punto zero. A cura di Giancarlo Bosetti, Donzelli, Roma 1993, 164 pp. Fra le discussioni che lo
seguirono, cfr. Francesco Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, Reset – Donzelli, Roma 1994, 63 pp.
22
Bobbio, De senectute, cit., p. 168.
23
Bobbio, Destra e sinistra, cit., p. 71 s.
Democracia e Direitos Humanos
39
relevante para justicar ou não uma discriminação”. O direito de voto foi
negado às mulheres enquanto se entendeu ser relevante a diferença natural
frente ao homem; no direito censitário de voto, julgou-se relevante a diferen-
ça social entre a propriedade e a pobreza; o mesmo espírito igualitário inspira
os direitos sociais, fruto de um século de lutas da esquerda, que tem como
característica “a propensão a tornar mais iguais os desiguais
24
.
Ao contrário, a aspiração à liberdade – o outro grande ideal humano
ao lado da orientação à igualdade – não se identica com o par direita-
esquerda: “existem doutrinas e movimentos libertários e autoritários tanto
na direita quanto na esquerda”. Identica-se, sim, com o par extremista-
moderado: o extremista de direita ou de esquerda se distingue do moderado
de direita ou de esquerda pela diferente posição frente ao valor da liberdade.
O principal fator de desigualdade é a propriedade privada e, por
isso, os movimentos libertários tendem a limitá-la (se moderados) ou a
aboli-la (se extremistas). O comunismo utópico, do qual se fala desde os
tempos de Platão, “entrou na história” com a Revolução de outubro, mas
aquela “utopia igualitária se transformou no seu contrário”. O olhar de
Bobbio se eleva da disputa eleitoral em curso em uma península ao ex-
tremo apêndice ocidental da Ásia e se interroga sobre as desigualdades do
Terceiro e do Quarto mundo:
O comunismo histórico faliu. Mas o desao que ele lançou permanece.
Se, para nos consolarmos, dizemos que nesta parte do mundo demos
vida à sociedade dos dois terços, não podemos fechar os olhos diante da
maior parte dos países onde a sociedade dos dois terços, ou até mesmo
dos quatro quintos ou dos nove décimos, é invertida. Frente a essa
realidade, a distinção entre a direita e a esquerda, para a qual o ideal
da igualdade sempre foi a estrela polar que mirou e continua a mirar,
é claríssima. Basta deslocar o olhar da questão social no interior dos
Estados, da qual nasceu a esquerda no século passado, à questão social
internacional para se dar conta de que a esquerda não só não comple-
tou o próprio caminho, mas apenas o iniciou
25
.
24
Bobbio, Destra e sinistra, cit., p. 77-79.
25
Bobbio, Destra e sinistra, cit., p. 85 s.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
40
c) as esquerdas eNfeitiçadas Pela direita.
Duas novidades caracterizaram as eleições de 1994: a formação –
a partir das empresas de Berlusconi e no arco de poucos meses
26
– de um
partido-empresa capaz de vencer as eleições e, contemporaneamente, uma
campanha televisiva pré-eleitoral sem precedentes, conduzida sobretudo
pelo conglomerado Mediaset, de propriedade de Belusconi. Mais em geral,
o controle de três redes nacionais pelo proprietário desembarcado na polí-
tica criava distorções inéditas: por exemplo, para ter espaços televisivos, os
adversários deviam pagar as redes de televisão de Berlusconi, assim nan-
ciando sua campanha eleitoral. Uma vez que, sobre essa traumática passa-
gem da Primeira à Segunda República, já existe uma vasta literatura, por
brevidade, limito-me a reportar alguns dados extraídos do livro que termi-
nei concomitantemente àquelas eleições, publicado apenas em alemão
27
.
*
Direita e esquerda, de Bobbio, havia sido publicado no mês de mar-
ço de 1994, quase em concomitância com as eleições, que não só reduziam
a zero a esperança nas esquerdas, cautamente expressa naquele livro, mas pu-
nham interrogações inquietantes sobre a involução da democracia na Itália.
Para discuti-las, a revista “Reset” rapidamente promoveu um encontro entre
Norberto Bobbio, o lósofo Gianni Vattimo e o diretor da própria revista,
Giancarlo Bosetti, que assim formulava os argumentos em debate: de um
lado, “a necessidade de que a esquerda consiga liberar-se da posição conser-
vadora que continua a ocupar no confronto político com uma direita que
tem o monopólio da iniciativa e frequentemente se mostra, a propósito e
despropósito, mais dinâmica”; de outro lado, “a televisão e as suas conse-
26
Mas foi repetidamente observado que, naqueles poucos meses, a publicidade eleitoral de Berlusconi encontrara
um público preparado por doze anos de televisão comercial, que propagandeava estilos de vida homogêneos
àquela mensagem política.
27
Mario G. Losano, Sonne in der Tasche. Italienische Politik seit 1992, Antje Kunstmann Verlag, München 1995,
pp. As passagens reportadas aqui são extraídas do meu texto inédito em italiano.
Democracia e Direitos Humanos
41
quências
28
. Na discussão, entrelaçavam-se considerações contingentes sobre
o apoio que a esquerda tinha perdido nas eleições e que devia reconquistar
(Bobbio era pessimista a respeito), e considerações gerais sobre as relações
entre direita e esquerda, que são as que interessam aqui.
A esquerda tinha assumido uma posição conservadora porque
tendia a conservar, isto é, a defender a Constituição de 1948 e a estrutu-
ra institucional da Primeira República frente a uma direita agressiva, que
pretendia mudar a Constituição e que colocava em discussão a unidade
nacional. Bobbio explicava esse comportamento, em primeiro lugar, no
plano psicológico: “O meu amadurecimento político ocorreu nos anos da
Resistência e da elaboração da Constituição. Sinto-me muito ligado àque-
las experiências”; além disso, a ideia de uma Segunda República “foi apre-
sentada por Bettino Craxi e por um grupo dirigente do PSI
29
pelos quais
nunca tive muita simpatia”. Estes argumentos, porém, “contam pouquíssi-
mo para os ns da nossa discussão
30
.
O ponto crucial na defesa da Constituição não são as normas
sobre a organização do Estado (“uma república presidencialista não parece
uma modicação assombrosa”), mas “aquelas relativas aos direitos de liber-
dade e aos direitos sociais
31
. Diante de uma direita subversiva, a esquerda
deve conservar a Constituição, isto é, a democracia. Porém, a sua capacida-
de de mobilização é reduzida porque, na sociedade dos dois terços,os dois
terços estão satisfeitos com sua situação e, portanto, não se empenham po-
liticamente. Para Bobbio, o fato “de que o terço marginalizado não possa
nunca vencer é um fato gravíssimo”, diante do qual a esquerda deveria “fa-
zer uma oposição dura, obtendo resultados daí, como soube fazer na pri-
meira parte da história da República. A esquerda soube, então, condicionar
o desenvolvimento do país. E graças àquela oposição que a Democracia
Cristã foi pressionada a instituir o Estado social. A esquerda não governou,
mas certamente inuiu para que não prevalecesse na Itália um liberismo
28
O relatório daquele encontro foi publicado em maio como suplemento ao n. 1994/6 de “Reset”: Francesco
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, Reset – Donzelli, Roma 1994, 63 pp. A citação está na p. 11.
29
Partido Socialista Italiano (nota do tradutor).
30
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 21.
31
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 23.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
42
selvagem, como aquele que ameaça impor-se agora
32
, isto é, em 1994. De
então até hoje, aquele risco se transformou em realidade: a esquerda con-
tinuou frágil nas décadas seguintes àquela eleição e o “liberismo selvagem
foi favorecido também pela crise econômica iniciada em 2008.
Se o problema da esquerda é o de reobter apoio através da mo-
bilização, o problema da organização – segundo o lósofo Vattimo – deve
ser posto em primeiro plano: o velho partido comunista era um partido
estruturado; transformado em “Partido Democrático da Esquerda” (Pds) em
1991, “cessou a atenção a questões organizativas. Ora, se toda a rede da
comunicação política passa pelos mass media detidos por sabemos quem, po-
de-se prever com certeza que, para a esquerda, não existem muitas perspecti-
vas”
33
. Assim, o discurso se deslocava para o duopólio televisivo italiano, em
que três redes nacionais pertenciam a Berlusconi e as outras três ao Estado,
que as tinha ocupado através dos partidos: o risco era que Berlusconi domi-
nasse toda rede nacional, de um lado como proprietário e, de outro, como
Presidente do Conselho. Bobbio, já em 1994, tinha ideias claras a respeito:
Pensem, ainda no Natal [de 1993], em uma discussão entre pessoas
de esquerda que falam do futuro do país, o nome do ex-presidente da
Fininvest [isto é: Berlusconi] sequer é pronunciado. Portanto, aquilo
sobre o que devemos reetir, antes mesmo de nos perguntarmos se a
esquerda errou e onde, é esse fenômeno absolutamente sem preceden-
tes. Berlusconi, desfrutando da ramicação do seu poder econômico
em toda a Itália, conseguiu, em três meses, tornar-se o protagonista
das eleições, vencer, e vencer estrondosamente. Se existe um governo
de direita hoje, é porque Berlusconi conseguiu reunir dois troncos que
podiam parecem absolutamente incompatíveis: a Lega
34
, que quer a
divisão da Itália, e os fascistas, que são ultranacionalistas. Por que tudo
isso ocorreu? Eu creio que a televisão tenha sido determinante, mas não
porque Berlusconi apareceu ali muito mais que outros, mas porque a
sociedade criada pela televisão é uma sociedade naturaliter de direita
35
.
32
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 27 s.
33
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 33.
34
Trata-se da Lega Nord, partido político regionalista do norte da Itália, normalmente identicado, no campo
ideológico, com a (extrema-)direita (nota do tradutor).
35
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 35 s. A referida discussão está in Paul Ginsborg – Vittorio Foa
– Sandro Bartolomeo (eds.), Le virtù della Repubblica. Conversazione a Formia, Il Saggiatore, Milano 1994, 94 pp.
Democracia e Direitos Humanos
43
O perigo, portanto, era a penetração da televisão, que exigia um
controle. Em 1964, Umberto Eco era um dos primeiros a analisar criti-
camente a televisão no famoso Apocalittici e integrati
36
, contrapondo “a
intimidade crítica do leitor” àrendição passiva”, à “forma de hipnose
induzida pela televisão. Em 1994, Eco voltava a se perguntar: pode a tele-
visão chegar, sem regras e gratuitamente, a todas as casas? Se as torneiras
de casa distribuíssem alcoólicos ao invés de água, não seria necessária uma
regulamentação em defesa da saúde pública?
37
A parte conclusiva do debate se concentrava sobre o fato de que,
segundo Vattimo, “os eleitores premiaram a direita enquanto portadora
de valores de eciência
38
. Bobbio discordava: “Eu não acredito que a
direita tenha vencido tanto em nome da eciência quanto da liberdade
contra as regras, contra o estatismo. Eles sustentaram, contra a ideia de
alcançar a meta da igualdade através de intensas intervenções do Estado,
uma linha política inspirada em princípios liberistas. Porém, e escrevi isso
também em Direita e esquerda, eu contraponho à igualdade não a liberda-
de, mas a desigualdade
39
.
O relatório daquele colóquio provocou uma série de comentários
desfavoráveis, que Bobbio sumariou iniciando assim: “Sustentar uma tese
que seja imediatamente rejeitada tanto pela direita quanto pela esquerda
não acontece todo dia”. Mais do que os argumentos dos adversários, em
geral bem superciais, e as respostas de Bobbio, que repetem as ideias já
examinadas, é útil recordar aqui a sua conclusão, formulada há mais de
vinte anos: “O que ignoro, mas não sei quantos outros o saibam, é se os
teledependentes são, no nosso país, a maioria ou a minoria dos cidadãos.
Se forem a maioria, e se, como maioria, tiverem o peso que tem qualquer
maioria em um sistema democrático, o destino da nossa sociedade, não
só da italiana, está marcado. Será a sociedade dos “servos contentes”. Essa
36
Umberto Eco, Apocalittici e integrati. Comunicazioni di massa e teorie della cultura di massa, Bompiani, Milano
1964, XV-389 pp.
37
Entrevista de Umberto Eco a Eugenio Scalfari, “La Repubblica”, 2 de março de 1994.
38
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 43.
39
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 50.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
44
é apenas uma hipótese deplorável, admito, mas que a esquerda faria bem
em levar a sério
40
.
Em 2000, Bobbio retornou ao tema do controle público sobre a
televisão em um breve comentário ao documento que deveria ter sido sub-
metido ao Congresso nacional dos Democratas de Esquerda: “A esquerda
deve se defender da acusação de estatismo. Então, o problema da relação
entre direita e esquerda, com ou sem razão, torna-se de fato o tema da rela-
ção entre Estado e mercado, menos Estado e mais mercado, ou vice-versa,
entre a maior ou menor extensão da esfera pública frente à privada. O que
ainda e sempre distingue e distinguirá a esquerda da direita será, de um
lado, a armação dos limites do mercado, que são limites não só econô-
micos, mas também éticos, a contestação da teoria ou ideologia da merci-
cação universal, de outro, uma avaliação mais ponderada da importância
da esfera pública, em palavras simples, que a intervenção do Estado não
deveria ser motivo de escândalo”. Em suma, “é realmente verdadeiro que a
intervenção pública é sempre, por natureza, nefasta?”
41
.
A discussão se concluía rebatendo os ataques da direita contra
os intelectuais, prevalentemente de esquerda, que cultivam o pensamento
geral, isto é, a losoa. “O m da losoa seria o m da democracia”, de
modo que “restariam apenas ciências especiais, as dos técnicos”, conclui
Vattimo; “O desprezo da direita pelos intelectuais de esquerda remete tam-
bém ao seguinte: ao primado que a losoa tem sobre os saberes. Eles que-
rem uma democracia dos especialistas. Mas a democracia dos especialistas
não é democracia
42
.
3. Paz e guerra: Pode o Pacifismo derrotar a guerra?
A geração que saía da Segunda guerra mundial devia encontrar
uma resposta a uma dupla questão: como evitar a repetição de outra ca-
tástrofe bélica e como conservar a paz conquistada a um preço tão caro? A
40
Bobbio, Luoghi comuni dei servi contenti, “Reset”, luglio-agosto 1994; também nas pp. 117-123, in Gruppo di
Resistenza Morale, Argomenti per il dissenso. Nuovo, non nuovo, Celid, Torino 1995, 134 pp.
41
Commento di Norberto Bobbio, in Progetto per la sinistra del 2000. Presentazione di Walter Veltroni, Donzelli,
Roma 2000, p. 85 s.
42
Erbani (ed.), La sinistra nell’era del karaoke, cit., p. 58.
Democracia e Direitos Humanos
45
resposta se tornara ainda mais árdua e urgente pelo fato de que a Segunda
guerra mundial se concluíra com o aparecimento da bomba atômica no
cenário estratégico e político: um desao sem precedentes na história da
humanidade. Paz e guerra tornaram-se, assim, dois temas centrais e recor-
rentes no pensamento e na militância de Bobbio, que via a humanidade
posta diante de uma terrível alternativa: “ou os homens conseguirão resol-
ver os seus conitos sem recorrer à violência” ou “a violência os varrerá da
face da terra
43
.
Ele próprio indica dois livros seus como síntese do seu ponto
de vista sobre toda a temática: O problema da guerra e as vias da paz, de
1979, e O terceiro ausente, de 1989
44
. Os dois volumes são coletâneas de
textos, mas os dez anos que os separam não devem fazer pensar que os
ensaios reunidos se reram a dois momentos sucessivos do pensamento de
Bobbio. Na realidade, o primeiro volume compreende artigos publicados
entre 1966 e 1975, enquanto O terceiro ausente compreende escritos que
vão de 1966 a 1988 (e não apenas ensaios, mas também discursos e artigos
publicados no jornal “La Stampa”). Consequentemente, os ensaios do pri-
meiro volume devem ser integrados aos escritos do segundo.
“Os meus escritos sobre a paz – escreve Bobbio – nasceram nos
anos do equilíbrio do terror, da constatação de que as novas armas termo-
nucleares ameaçavam, pela primeira vez, a vida [...] de toda a humanida-
de”. A uma tal “guerra exterminadora”, não eram mais aplicáveis “as tra-
dições justicações que haviam sido dadas dos conitos entre os Estados,
em particular, a teoria da guerra justa
45
. Era preciso, portanto, proceder
a “uma revisão da tradicional losoa da história”, que sempre fora “mais
justicadora que justiceira” da guerra
46
. Bobbio compreende o aspecto
losóco da passagem da guerra quente à guerra fria, mas, da reexão teó-
rica, extrai os princípios para a ação política.
43
Bobbio, Il problema della guerra e le vie della pace, Il Mulino, Bologna 1979, p. 26 s.
44
Cfr. Bobbio, De senectute, cit., p. 161 s. As primeiras edições dos dois volumes são: Bobbio, Il problema della
guerra e le vie della pace, Il Mulino, Bologna 1979, 163 pp.; Bobbio, Il Terzo assente. Saggi e discorsi sulla pace e
sulla guerra, A cura di Pietro Polito, Sonda, Milano 1989, 236 pp. Ambos tiveram mais edições, o primeiro com
algumas variações de conteúdo.
45
Bobbio, De senectute, cit., p. 162.
46
Bobbio, Il problema della guerra, cit., p. 21.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
46
O problema da guerra atômica era difusamente sentido no pós-
guerra, e Bobbio falou a respeito, em várias ocasiões, também no rádio. Em
1996, reuniu suas ideias sobre o tema em um amplo ensaio cujo título dá
nome à primeira coletânea
47
e marca o início de uma série de reexões que
durarão até os anos noventa.
O ocaso do mundo comunista pôs m ao equilíbrio (bipolar) do
terror, mas não eliminou o pesadelo da guerra atômica, já que a multipli-
cação dos detentores dessa arma (detentores nem sempre conáveis) au-
mentou o risco de uma catástrofe nuclear. Além disso, o uso dessas armas
dependia de sistemas informáticos sempre mais sosticados e, portanto,
potencialmente vulneráveis
48
. Os vários “escudos espaciais” ou “guerras es-
trelares” não estavam isentos de erros: a rede militar “Arpanet” deu origem
à rede civil “Internet”, e hoje constatamos cotidianamente como a tão evo-
luída Internet tem suas imperfeições.
Hoje, o electronic warfare ou cyberwar se juntou à guerra atômi-
ca, e talvez esteja destinado a substituí-la em parte ou inteiramente: mas
estes problemas não se colocavam quando Bobbio escrevia as páginas aqui
citadas. No novo milênio, a mudança das técnicas bélicas foi tão radical
que, hoje, quase todos os argumentos tradicionais sobre a paz e a guerra
são confrontados e eventualmente repensados diante das “guerras híbri-
das”, conduzidas com mercenários e drones, sem respeitar a soberania de
Estados aliados ou inimigos, sem distinguir entre militares e civis, sem um
limite de tempo e de espaço: na guerra híbrida, não há mais distinção entre
a guerra e a paz
49
.
A evolução da guerra, ligada a tecnologias em rápido progresso,
e a veloz transformação de um mundo político sempre mais planetário já
se reetia nos prefácios que Bobbio antepôs às primeiras quatro edições do
47
Bobbio, Il problema della guerra e le vie della pace, “Nuovi Argomenti”, 1966, pp. 29-90.
48
Losano, Guerra nucleare da equivoco informatico, “Zerouno”, giugno 1984, n. 29, pp. 21-25. Falei muitas vezes
com Bobbio desse aspecto tecnológico da guerra atômica, e ele não o desprezou: “Não falemos da possibilidade,
de que tanto se discutiu e se deve ter em conta, de que a ruptura do equilíbrio [do terror] se dê por erro, por
acaso ou por insanidade” (Bobbio, Il problema della guerra, cit., p. 52).
49
Uma referência a esses problemas e à literatura a respeito está in Losano, La Rete e lo Stato Islamico. Internet
e i diritti delle donne nel fondamentalismo islamico, Mimesis, Milano 2017, pp.51 s., 67-74 (§ 8. Hybrid war:
scompare il conne tra guerra e pace) e in Losano, Guerre, diritto e disordine globale, in Atti del Convegno
Internazionale: Sicurezza e libertà in tempo di terrorismo globale, Università Milano Bicocca (no prelo).
Democracia e Direitos Humanos
47
seu livro, “porque cada um reete a situação e a ocasião histórica em que
a reedição ocorreu
50
. Em 1996, era necessário moldar uma “consciência
atômica” e indicar como opor-se ao perigo (através do pacismo, como
veremos). Em 1984, a tensão entre as duas potências tinha gerado um
equilíbrio do terror”, em que não faltava quem justicasse a guerra atô-
mica. As esperanças suscitadas pela queda do Muro de Berlim, em 1989,
eram ofuscadas em 1991, pela primeira Guerra do Golfo. Mas Bobbio,
conante na intervenção indireta da ONU, declarava-se a favor do paci-
smo institucional, isto é, da paz através do direito: direito que se devia
fazer respeitar – também entre os Estados – por um terceiro super partes,
aquele terceiro infelizmente ausente, que dá título ao outro volume sobre
a paz e a guerra.
A partir desse momento, os dois volumes coexistem: a O terceiro
ausente, impresso em 1989, se junta a quarta edição de O problema da guer-
ra e as vias da paz, de 1997. Entre essas duas datas, ocorrem a dissolução
da Iugoslávia em uma guerra civil cruel, as guerras tribais na África, a cres-
cente tensão no Oriente Médio e o terrorismo internacional. Entretanto,
mesmo diante desses eventos, Bobbio rearma o seu pacismo: “Melhor
morrer como Abel que viver como Caim
51
.
Bobbio se detém sobre a noção de pacismo, distingue entre “pa-
cismo passivo” e “pacismo ativo”. E indica a paz como a nalidade últi-
ma do pacismo: não, porém, a paz que seja apenas uma trégua entre duas
guerras, mas a paz que Bobbio denomina “de satisfação”, isto é, aquela “en-
tre partes que não têm mais reivindicações recíprocas a apresentar
52
. Esta
noção de paz reaparecia também nas reuniões da Société Européenne de
Culture, cujo fundador proclamava uma paz que não tivesse a guerra como
alternativa
53
. De fato, apenas esse tipo de paz pode ser duradoura e poten-
50
Bobbio, Il problema della guerra, cit., p. VII.
51
Bobbio, Il problema della guerra, cit.,p. X.
52
Bobbio, Il problema della guerra, cit., p. 139. Bobbio distingue a paz “de potência” (exercitada com a força:
a pax romana ou americana); “de impotência” (típica do equilíbrio do terror, em que cada uma das partes –
na realidade, duas – pode destruir a outra); e “de satisfação” (fundada sobre a conança recíproca, como na
Europa pós-bélica) (pp. 136 ss.). Bobbio extrai esta distinção de Raymond Aron, Paix et guerre entre les nations,
Calmann-Lévy, Paris 1962, 794 pp.
53
Umberto Campagnolo, La paix, une idée révolutionnaire, “Comprendre”, 1968, p. 106.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
48
cialmente universal. Para os pacistas, a paz é um bem não absoluto, mas
instrumental: a paz é a condição preliminar para a realização da liberdade.
No entanto, depois das distinções losócas e das avaliações mo-
rais, chega o momento das escolhas concretas. E Bobbio não se esquiva
delas: “Quando eu digo que a minha escolha é a de não abdicar de nenhum
meio visando à formação de uma consciência atômica, e a losoa que
hoje não se empenha nisso é um ócio estéril, não faço previsões. Limito-
me a deixar claro o que, com todas as minhas forças, gostaria que não
acontecesse, ainda que, no fundo da minha consciência, tenho o obscuro
pressentimento de que acontecerá. Mas a aposta é muita alta para que não
se deva, cada um, tomar uma posição, mesmo que as probabilidades de
vitória sejam pequeníssimas
54
.
Infelizmente, a ocasião para se tomar uma posição não tardaria.
De fato, passara-se apenas um ano da publicação de O terceiro ausente
quando, em 2 de agosto de 1990, o Iraque invadiu o Kuwait, dando início
à primeira guerra do Golfo Pérsico. Em 15 de janeiro de 1991 – data em
que vencia o ultimato do Conselho de Segurança da ONU, que determi-
nava ao Iraque retirar-se do Kuwait – Bobbio foi entrevistado na televi-
são. A sua tomada de posição suscitou uma onda de polêmicas, fundadas
prevalentemente sobre mal-entendidos. Na realidade, Bobbio avaliava a
situação do ponto de vista da sua teoria aqui examinada, mas quem o es-
cutava interpretava termos como “guerra justa”, “licitude”, “ecácia” não
segundo a teoria de Bobbio, mas, na melhor das hipóteses, segundo os
próprios esquemas mentais (senão segundo os próprios preconceitos po-
líticos). Bobbio queria sublinhar como “o único pacismo plausível era o
institucional”, ao contrário, “nasce daí um debate em que a maioria dos
participantes sustentou que eu errei
55
.
Aqui se ingressa também no problema da difícil relação entre
intelectuais e política. A teoria de Bobbio sobre a paz e a guerra é uma
acurada construção teórica na qual os termos são denidos com precisão
e, depois, analisados e subdivididos em categorias e subcategorias. Se o in-
terlocutor parte de denições diversas daqueles termos, a recíproca incom-
54
Bobbio, Il problema della guerra, cit., p. 97.
55
Prefácio à quarta edição, de junho de 1997, in Bobbio, Il problema della guerra, cit., p. VIII.
Democracia e Direitos Humanos
49
preensão é garantida. Se a esta consideração de fundo se acresce a brevidade
da comunicação televisiva, a agitação ligada à evolução dos eventos e a
clara divisão política entre defensores e adversários da intervenção militar
direta, percebe-se os motivos extracientícos que levaram à distorção da
acurada terminologia usada por Bobbio na sua entrevista.
Nessa entrevista, de 15 de janeiro de 1991, o discurso de Bobbio
era ainda teórico porque apenas em 17 de janeiro as tropas da aliança
liderada pelos Estados Unidos entraram no Iraque. Bobbio recorreu às di-
cotomias “guerra justa e injusta” e “guerra ecaz e inecaz”, elaboradas nos
anos anteriores. Aludiu ao fato de que a guerra do Golfo era justicada
(“justa” em sentido jurídico) porque constituía uma legítima defesa, apro-
vada pela ONU, contra a invasão de um Estado soberano como o Kuwait,
mas concentrou sua análise sobre a duvidosa ecácia da eventual interven-
ção militar. Bobbio falava de guerra justa em termos jurídicos, enquanto
os seus comentadores interpretavam aquela manifestação em termos éti-
cos. Surpreso pelas críticas inamadas e por cautelosos distanciamentos,
Bobbio buscou esclarecer a sua posição em uma entrevista ao “Corriere
della Sera”, contra a qual, entretanto, se posicionaram alguns docentes da
Universidade de Turim através de uma carta aberta. Os jornais italianos já
falavam em “caso Bobbio”, que foi retomado pelo “e Guardian” com o
artigo Between Evils, de 25 de janeiro, e pela “Folha de São Paulo”, com um
comentário de Celso Lafer e uma entrevista de Bobbio.
Concomitantemente, aquela que então era considerada a maior
campanha militar depois da Segunda guerra mundial estava se encaminhando
para uma rápida conclusão (terminaria de fato em 28 de fevereiro de 1991) e
Bobbio publicou, em 1 de fevereiro, o artigo A grande tragédia, “em que es-
crevi que a disputa sobre a guerra justa, que tinha provocado tantas discussões
puramente doutrinais, tornara-se inútil diante da ‘escolha trágica’ da guerra”.
Os principais escritos desta polêmica foram recolhidos por Bobbio com uma
introdução novamente explicativa e com um amargo comentário conclusivo:
“Nunca senti, como nessas horas, a futilidade de tantas palavras
56
.
56
Bobbio, Una guerra giusta? Sul conitto del Golfo, Marsilio, Venezia 1991, 90 pp. As frases citadas estão na p.
35. A entrevista a Marco Augusto Gonçalves (Bobbio discute a dimensão trágica da guerra, “Folha de São Paulo”,
29 gennaio 1991) está traduzida com o título Certezze e congetture [Certezas e conjecturas] nas pp. 67-75.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
50
4. federalismo eNtre iguais: Paz duradoura e liberdades
democráticas
Na história da unidade da Itália, a vitoriosa concepção centralista
e monárquica foi acompanhada por uma corrente republicana e federalis-
ta, vigorosa apesar de derrotada. Bobbio se aproximara dela principalmen-
te ao nal da guerra, com a leitura das obras de Carlo Cattaneo, recebidas
em 1943 de Gioele Solari como presente de casamento. Outros impulsos
vieram em seguida, dos autores ingleses. A sociedade aberta e seus inimigos,
de Karl Popper
57
, revelara a Bobbio a compreensão dos mecanismos da de-
mocracia, enquanto, “no que se refere ao federalismo, descobri os escritores
ingleses, que tinham feito várias propostas de superação da Sociedade das
Nações e para a construção de um sistema federal internacional”
58
, como
Lord Lothian
59
e Lionel Robbins
60
.“Falo de “descobertas” porque ousei
encarar a tarefa de democrata e de pacista militante partindo do estado
de ignorância em que nos deixara o fascismo
61
.
A essas fontes se junta o Manifesto por uma Europa livre e unida,
de 1941, também chamado Manifesto de Ventotene por conta do nome da
ilha onde o seu principal autor, Altiero Spinelli (1907-1986), vivia exilado
por determinação do fascismo
62
. Esse texto era conhecido por todos os an-
tifascistas e, continuando a tradição iluminista, via na armação das cons-
tituições republicanas a condição para uma ordem internacional pacíca,
dirigida por estruturas federais. Dado que a soberania nacional (acom-
panhada dos arcana imperii e da razão de Estado) é a causa das guerras,
apenas o federalismo democrático podia garantir uma paz duradoura, ou
melhor, kantianamente perpétua.
57
Karl R. Popper, e Open Society and its Enemies, Routledge, London 1945, 2 voll. (trad. it. La società aperta
e i suoi nemici, Armando, Roma 1977, 2 voll.).
58
Bobbio, De senectute, cit., p. 166.
59
Philip Henry Kerr, 11° Marquês de Lothian (1882-1940), diplomata e político, autor de numerosos escritos
(não confundir com o atual romancista escocês Philip Kerr).
60
Durante a guerra, Ernesto Rossi tinha traduzido, para a editora Einaudi, o livro de Lionel Robbins, As causas
econômicas da guerra, Einaudi, Torino 1944, 119 pp., a que Bobbio se refere na passagem citada.
61
Bobbio, De senectute, cit., p. 166.
62
Raaele Cananzi (ed.), L’Europa dal Manifesto di Ventotene all’Unione dei 25. Con un saggio di Norberto
Bobbio. Postfazione di Romano Prodi, Guida, Napoli 2004, 230 pp. O texto está in <http://it.wikisource.
org/wiki/Manifesto_di_Ventotene>. Outros documentos sobre o manifesto in <http://www.altierospinelli.org/
manifesto/it/manifestoit_it.html>.
Democracia e Direitos Humanos
51
Já nos últimos anos da guerra, o pensamento federalista vinha se
armando na Europa, na convicção de que o vazio de poder que inevitavel-
mente se seguiria à queda das ditaduras permitiria a cessão de partes da sobe-
rania das nações a entidades supranacionais, em vista de um futuro utópico:
os Estados Unidos da Europa. Na Itália, foram até elaborados dois projetos
de constituições federais, inéditos até pouco tempo atrás: um de 1942-43,
pelos antifascistas piemonteses Duccio Galimberti (advogado, 1906-1944)
e Antonio Rèpaci (magistrado, 1904-2005)
63
, o outro de 1943, escrito
pelo amigo de Bobbio e único aluno italiano de Hans Kelsen, Umberto
Campagnolo (1904-1976)
64
.
Para alimentar, na direção federalista, o debate político que fervia
na Itália com a queda do fascismo, Bobbio publicou em 1945 uma antologia
de escritos de Cattaneo, cujo título – embora não presente nos escritos de
Cattaneo – tinha um forte impacto sobre o imaginário social daqueles anos,
nos quais a Itália saia da guerra civil e da divisão entre o Norte ocupado
pelos nazistas e o Centro-Sul sob a tutela dos aliados democráticos: Estados
Unidos da Itália
65
. Bobbio antepôs aos textos de Cattaneo uma verdadeira
monograa de cerca de cem páginas, que, com seu típico understatement,
intitulou Introdução, mas que considerou “um dos meus escritos de que sou
mais acionado
66
. No imediato pós-guerra, este manifesto do federalismo
bobbiano foi acompanhado pelos seus artigos sobre o federalismo, publica-
63
Duccio Galimberti – Antonino Rèpaci, “Progetto di Costituzione confederale europea ed interna. Con scritti
di Luigi Bonanante, Gustavo Zagrebelsky, Lorenzo Ornaghi, Aragno, Torino 2014, VI-206 pp. < http://www.
costituzionalismo.it/articoli/554/ >Além disso: Chiara Tripodina, La costituzione di Duccio. Il “Progetto di
Costituzione confederale europea ed interna” di Duccio Galimberti e Antonino Rèpaci a settant’anni dalla prima
pubblicazione (1946-2016), “Costituzionalismo.it”, 2016, n. 1, pp. 37-102.
64
Umberto Campagnolo, Verso una costituzione federale per l’Europa. Una proposta inedita del 1943. A cura
di Mario G. Losano, Giurè, Milano 2003, XV-229 pp., com a minha introduçãoUna “rivoluzione federale
europea” alla ne della Seconda guerra mondiale, pp. 1-80. Além disso: Iring Fetscher, Alle radici della costituzione
europea. Una proposta di Umberto Campagnolo scritta nel 1943, “Teoria Politica”, 2004, n. 3, pp. 3-13; Iring
Fetscher, Was wir sind, sind wir durch Verträge. Umberto Campagnolos Konzept für einen Bundesstaat Europa,
“Frankfurter Allgemeine Zeitung”, 20 marzo 2004, Nr. 68, Feuilleton.
65
Carlo Cattaneo, Stati Uniti d’Italia. A cura di Norberto Bobbio, Chiantore, Torino 1945, 344 pp. Após
numerosas reimpressões parciais do prefácio, o volume foi republicado com o nome dos dois autores: Carlo
Cattaneo – Norberto Bobbio, Stati Uniti d’Italia. Scritti sul federalismo democratico. Prefazione di Nadia
Urbinati, Donzelli, Roma 2010, 148 pp.
66
Bobbio, Tra due repubbliche. Alle origini della democrazia italiana, Donzelli, Roma 1996, p. 102, e esclarece
que aquela Introdução aos textos de Cattaneo foi escrita “em 1944, nas horas de liberdade que a militância no
clandestino Partido de Ação me concedia”.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
52
dos no jornal do Partido de Ação, “Giustizia e Libertà”, e, nos anos seguintes,
foi constantemente retomado, no todo ou em parte.
Através de Cattaneo, Bobbio ingressa no rol dos grandes refor-
madores, do iluminismo italiano de Verri e Beccaria a Romagnosi, que
foi o mestre de Cattaneo. Cattaneo fornece a inspiração ao federalismo
de Bobbio e, segundo Nadia Urbinati, “o federalismo ao qual Bobbio
faz referência é um federalismo como teoria da liberdade reinterpretada
à luz das lutas dos séculos XIX e XX para a inclusão das mulheres e das
classes trabalhadoras na cidadania, para a emancipação da miséria e da
subordinação tanto dentro dos Estados quanto no mundo
67
. Através de
Cattaneo, Bobbio persegue um modelo de federalismo que, partindo dos
Estados Unidos da Itália, abre caminho para os Estados Unidos da Europa:
“Federalismo europeu e federalismo no âmbito de cada Estado nacional
são, por assim dizer, o ponto de partida e o ponto de chegada do liberalis-
mo de Cattaneo
68
.
As autonomias regionais foram reconhecidas já na constituição
republicana de 1948, mas realizadas apenas em 1970. Todavia, a institui-
ção das regiões não foi nem apresentada nem sentida como uma transição,
em direção ao federalismo, do Estado unitário italiano, centralizado desde
sua origem. Enquanto, desde 1950, a Itália participava da progressiva uni-
cação da Europa, o federalismo “interno” tornou-se um tema de atuali-
dade política na Itália a partir de 1989, quando alguns movimentos locais
da Itália setentrional se uniram em um partido denominado “Movimento
Lega Nord”, que, com alguma mudança no nome, participou da vida po-
lítica italiana nas décadas seguintes ao lado das formações partidárias de
Silvio Berlusconi. O objetivo da Lega Nord era o “federalismo” das regiões
da Itália setentrional, identicadas em uma “Padania” de duvidosa realida-
de geopolítica.
Partindo de um Estado unitário como a Itália, este conceito de
federalismo se transformou bem cedo em “secessão”, para depois voltar,
prudentemente, à reivindicação de um “federalismo scal” fundado sobre
um “etnonacionalismo”.
67
Nadia Urbinati, La federazione come politica di unità, in Cattaneo – Bobbio, Stati Uniti d’Italia, cit., p. XVIII.
68
Bobbio, Introduzione, in Cattaneo – Bobbio, Stati Uniti d’Italia, cit., p. 18.
Democracia e Direitos Humanos
53
Num primeiro momento, essas posições políticas se inspiraram
nas doutrinas de Gianfranco Miglio (1918-201), aluno de Alessandro
Passerin d’Entrèves e, depois, professor da Universidade Católica de
Milão
69
. Eleito ao Senado como independente da Lega Nord, distanciou-
se desta última em 1994, contrariado com a aliança com Berlusconi:
“Para Bossi – declarou ele, referindo-se ao secretário daquele partido –,
o federalismo foi instrumental à conquista e à manutenção do poder. O
seu último exploit foi ter conseguido emplacar cinco ministros no governo
Berlusconi
70
. Aqui não é o lugar para seguir os eventos governamentais
desse federalismo improvisado e instrumental; importa, ao contrário, ver
como Bobbio reagiu a ele.
A partir de 1994, o partidário da secessão travestida de federalismo
(Bossi) e o manager televisivo que ingressou na política para defender os
seus próprios interesses (Berlusconi) dominarão a cena política italiana. As
descrições que Bobbio fez a respeito por anos são realistas, mas (à luz dos
sucessivos eventos que caram de fora) quase benévolas. “Bosi me parece
uma pessoa vulgar, ignorante e, no seu comportamento diante de pessoas
diferentes dele, também racista. Inventou a Padania, uma região que nunca
existiu nem historicamente, nem geogracamente, nem culturalmente, que
não se sabe onde nasce e onde termina. Nem ele o sabe”. O leader padano
será, por anos, o assistente do tycoon televisivo: “Berlusconi, inteligente e
obstinado, inescrupuloso, é um homem de poder que, depois de ter con-
quistado o poder econômico, voltou-se com sucesso à conquista do poder
político. Sofre ou, se quiser, goza de um soberbo complexo de superioridade:
há ainda quem se lembre de quando ele se apresentou pela primeira vez na
cena política como o ungido pelo Senhor, que é, para quem não sabe, Jesus
Cristo? Tem uma capacidade infalível de ludibriar: de um lado, que ele é um
perseguido; de outro, que a sua tarefa é a de liberar a Itália do comunismo”.
A clamorosa derrota eleitoral do centro-esquerda em 2000 deixou Bobbio
69
Gianfranco Miglio, Vocazione e destino dei lombardi, in AA.VV., La Lombardia moderna, Electa, Milano
1989, republicado in Gianfranco Miglio, Io, Bossi e la Lega. Diario segreto dei miei quattro anni sul Carroccio,
Mondadori 1994, 96 pp.
70
Miglio: Con Bossi è un amore nito, “Corriere della Sera”, 17 maggio 1994, p. 4. <http://archiviostorico.
corriere.it/1994/maggio/17/Miglio_con_Bossi_amore_nito_co_0_9405176590.shtml>
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
54
desconcertado e desconfortável”: “Estou deprimido de ver os italianos se
entregarem de corpo inteiro a dois personagens como Berlusconi e Bossi”
71
.
5. os viNte aNos de berluscoNi e a democracia ofeNdida
Os vinte anos de Silvio Berlusconi duram do seu ingresso na po-
lítica em 1993 até sua candidatura em 2012 para as eleições de 2013,
quando busca sua quinta premier ship
72
. Pode-se falar em vinte anos, ainda
que tenham sido interrompidos pelos dois governos de Romano Prodi, o
primeiro em 1996-98 e o segundo em 2006-08, porque esses governos de
centro-esquerda se revelaram incapazes de agir sobre a arquitetura berlus-
coniana do poder, modicando ou revogando as leis ad personam, intervin-
do na lei eleitoral, denida como “uma porqueira” pelo seu próprio autor
e, sobretudo, regulando o seu conito de interesses.
Já foi recordada a preocupação de Bobbioquanto à Lega Nord
(“partido fantasma” de estatuto inencontrável e lacunoso) e ao incontrola-
do liberismo econômico daqueles governos. Na última década da sua vida,
Bobbio conrmou sua desconança em relação aos governos de centro-di-
reita de Berlusconi em alguns escritos que serão sumariamente recordados
aqui. Eles se relacionam aos escritos teóricos anteriores, dos quais consti-
tuem uma aplicação, mas raramente um aprofundamento, porque o ló-
sofo está diante de situações politicamente extremas, mas culturalmente
inconsistentes. O próprio tom dos seus escritos é outro, quase impaciente.
Aquele primeiro governo, que se apresentara como “o novo que
avança”em 10 de maio de 1994, caía já em 17 de janeiro de 1995, e os
tempos da Primeira República pareciam estar de volta. Bobbio traça um
balaço fulminante:
Resumamos: muitos partidos, logo, governos de coalização; governos
de coalização, logo, instáveis; governos instáveis, logo, de breve dura-
ção. Onde está o novo? “Sim, o novo existe e é a interpretação que o
Presidente do Conselho [...] dá à Constituição, continuando a susten-
tar, apesar da cortês, mas rme advertência do Presidente da República,
71
Bobbio, “Sconcertato e sconfortato, intervista di Alberto Papuzzi, “La Stampa”, 22 aprile 2000, p. 59 s.
72
Silvio Berlusconi foi Presidente do Conselho dos ministros em 1994 (XII Legislatura), em 2001-05 e 2005-06
(XIV Legislatura) e em 2008-11 (XVI Legislatura).
Democracia e Direitos Humanos
55
que o Parlamento, tendo-lhe retirado o voto de conança [ducia] que
lhe fora dado depois das eleições, está (só por isso?) deslegitimado. Mas
não se dá conta de que se trata de um verdadeiro erro de gramática?
Lê-se no artigo 94 da Constituição: “Cada Câmara concede ou revoga
a conança [ducia]...” ao governo, que “deve ter a conança das duas
Câmaras”; em suma, é o Parlamento que retira o voto de conança ao
governo, não o contrário
73
. As tomadas de posições berlusconianas não
contêm análises sutis: por exemplo, objeta-se que o sistema parlamen-
tar acabou. Mas como? Em uma constituição rígida, como a nossa,
não basta uma reforma eleitoral para revogar uma norma fundamental
como o artigo 94”.
De todo modo, com a queda do governo, era necessário estabele-
cer um outro, e aqui Bobbio manifesta toda a sua aversão a um futuro go-
verno Berlusconi: “Me pergunto, porém, se conar novamente o governo a
Berlusconi não seria um favor imerecido a quem nestes meses se distinguiu
por ter feito aquilo que absolutamente não devia fazer, como colocar as
mãos na Rai
74
ou boicotar os juízes de Mãos Limpas [Mani Pulite], e, ao
contrário, não cumpriu seu primeiro dever, que era o de ocupar-se de uma
reforma eleitoral, prevista por todos os partidos, e sem a qual não é possível
agora [...] realizar novas eleições
75
.
Em seu primeiro governo, Berlusconi seguiu o primeiro gover-
no técnico da Itália, de Lamberto Dini, que permaneceu no cargo de 17
de janeiro de 1995 a 17 de maio de 1996. Os ataques da direita contra
esse governo foram violentos, e Bobbio os replicou em um breve escrito,
datado de 27 de abril de 1995
76
. O texto de Bobbio renuncia às argumen-
tações politológicas diante da arrogância de Berlusconi, que se proclama-
ra “Ungido pelo Senhor” (“a insolência de Berlusconi superou todos os
limites”), e do servilismo dos seus subalternos (“um amontoado de grupos
muito diversos entre si, unidos apenas na corrida ao poder”). Em face do
73
Bobbio, Il vecchio che torna, “La Stampa”, 6 gennaio 1995, p. 1 e 6. Agora também in Norberto Bobbio, Verso
la Seconda Repubblica, I Libri de La Stampa, Torino 1997, pp. 81-83.
74
Empresa estatal de televisão e rádio (nota do tradutor).
75
Bobbio, Il vecchio che torna, “La Stampa”, 6 gennaio 1995, p. 6.
76
Bobbio, Prima e dopo le elezioni, pp. 125-130 (texto anteriormente inédito), in Bobbio, Nuove riessioni sulle
vicende italiane, pp. 113-139, in Gruppo di Resistenza Morale, Argomenti per il dissenso. Nuovo, non nuovo,
Celid, Torino 1995, 134 pp.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
56
governo técnico de Dini, Berlusconi armava que não existia mais de-
mocracia na Itália (argumento que retornou em 2011, contra o governo
Monti), enquanto Bobbio obviamente apontava que o governo Dini fora
empossado segundo as regras constitucionais. A verdadeira anomalia an-
tidemocrática, rebate Bobbio com base nas críticas também da Comissão
europeia anti-trust, “é o fato, sem precedentes, de que um homem inicie a
carreira política de posse de excepcionais meios de comunicação de massa”.
Bobbio é el à posição expressa em 1995 até o último de seus
dias. Nos vinte anos berlusconianos, os argumentos do populismo per-
maneceram imutáveis, e imutável permaneceu a crítica de Bobbio. Seria
excessivamente técnico seguir os escritos militantes de Bobbio, mesmo nos
limitando àqueles já recolhidos em vários volumes
77
. O decorrer dos even-
tos apenas conrmava as críticas de fundo que Bobbio vinha formulando
desde o aparecimento de Berlusconi na cena política. Para concluir esse
aspecto da análise política de Bobbio, é útil deter-se sobre um escrito mais
meditado, ainda que breve: na realidade, a essência das críticas de Bobbio
ao berlusconismo arrivista, mas também aos seus frágeis adversários, está
presente já em 1994, em um artigo publicado em “Il Ponte”.
A ocasião para esse balanço veio no cinquentenário (1944-
1994) da fundação de “Il Ponte”, a revista fundada no nal da guerra
por Piero Calamandrei. O jurista orentino também encomendara o
desenho daquilo que hoje chamaríamos o logo que dá nome à revista, e
ao qual Bobbio imediatamente se refere: uma ponte em ruínas, reduzida
a dois arcos destruídos, mas unidos por uma tábua sobre a qual passa um
homenzinho com uma enxada nas costas. Aquele logo devia simbolizar a
vontade de reconstruir – material e moralmente – aquilo que o fascismo
tinha destruído.
Cinquenta anos depois, Bobbio se pergunta: “Mas como? O
homenzinho ainda está sobre o mesmo ponto daquela tábua instável,
ainda não passou para o outro lado, a ponte não foi reconstruída ainda?”
Assim, o logo de “Il Ponte” torna-se o símbolo da república que permane-
77
Norberto Bobbio, Verso la Seconda Repubblica, I Libri de La Stampa, Torino 1997, XVIII-203 pp.; Bobbio,
Contro i nuovi dispotismi. Scritti sul berlusconismo. Premessa di Enzo Marzo. Postfazione di Franco Sbarberi,
Dedalo, Bari 2008, 111 pp.; Bobbio – Maurizio Viroli, Dialogo intorno alla repubblica, Laterza, Roma Bari
2001, V-121 pp.
Democracia e Direitos Humanos
57
ceu incompleta. “Encerrou-se um ciclo histórico que durou meio século,
tal como durara meio século o período entre a Unidade [da Itália] e o
advento do fascismo. Recomeçar sim, mas de onde?”
78
. E imediatamente
tomam corpo os temores de Bobbio, que, em 1994, recordava o processo
“Mani Pulite” [Mãos Limpas], que eliminou o partido socialista da cena
política italiana e pôs m à Primeira República. Bobbio é um homem da
Primeira República, nascida da Resistência, e nela pensa quando escreve
este duro julgamento:
A república, a “nossa república”, terminou mal, ainda que não na
violência de facções opostas, como muitas vezes nos ocorreu temer.
Terminou na desonra, e não diante do Tribunal da História, como ter-
minaram, para o bem ou para o mal,as grandes épocas, mas, caso sem
precedentes, creio, diante de um tribunal de homens de carne e osso,
onde juízes e advogados litigam sobre a aplicação desse ou daquele ar-
tigo do código penal. Terminou pior do que aquilo que mesmo os mais
severos difamadores poderiam prever.
Em 1994, Bobbio, não podia ter sob os olhos os crimes não só co-
muns, mas também infamantes, que, cerca de vinte anos depois, minariam
também a Segunda República; ainda assim escrevia esse duro julgamento
sobre os homens que, sob princípios populistas, estavam assumindo o co-
mando do Estado: o confronto com a Primeira República e seus fundado-
res – Parri, Einaudi, De Gasperi, Nenni, Togliatti, La Malfa – é devastador.
Mas se chegamos onde chegamos mesmo tendo dado os primeiros pas-
sos guiados por uma classe dirigente digna desse nome, me pergunto
com uma certa apreensão onde acabaremos começando o novo cami-
nho muito mais embaixo. Não da terra, mas mesmo do subsolo me pa-
rece ter saído o mago plebeu, a que acompanham os grandes demago-
gos e os grandes trapaceirosem nome, ouçam!, da liberal-democracia.
A única esperança que nos resta é que não se pode descer abaixo disso,
e que, uma vez alcançado o fundo, e não chegamos lá ainda, é possível
subir novamente, percorrendo, no curso da Segunda República, o ca-
minho inverso da primeira
79
.
78
Bobbio, Cinquant’anni e non bastano, “Il Ponte”, 1994, n. 1, p. 8.
79
Bobbio, Cinquant’anni e non bastano, cit., p. 10.
59
H      
Alfonso Ruiz Miguel
La pregunta del título de este escrito
1
pretende poner en cuestión
la armación de Hans Kelsen, seguramente el mayor jurista y lósofo del
Derecho del siglo XX, de que la democracia liberal presupone el relativismo
ético. Kelsen argumentó de manera excelente en favor de la democracia
parlamentaria en un librito ejemplar de 1920 titulado Esencia y valor de
la democracia. Sin embargo, años después, en un artículo de 1953 cuyo
título preguntaba “¿Qué es justicia?”, respondió que la justicia es un “ideal
irracional”, un valor meramente relativo, aprobando como democrático el
escepticismo de Poncio Pilato sobre la verdad, que dejó decidir a la plebe
la muerte de Jesús.
Mi propósito aquí es mostrar que Kelsen acertó en su defensa de
la democracia liberal pero que se equivocó en suscribir el relativismo ético.
Este texto es una reelaboración de las principales ideas que se desarrollan en dos textos previos míos: Democracia
y relativismo (México: Fontamara, 2011) y “Dworkin y el limbo de la metaética” (en José M. Sauca [ed.], El
legado de Dworkin a la losofía del derecho. Tomando en serio el imperio del erizo, Madrid: Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 2015, p. 39-71).
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p59-80
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
60
Así pues, mi respuesta a la pregunta del título va a ser claramente negativa:
“No, no hay que ser relativista para ser demócrata”. Más aún, no me voy
a limitar a negar quesea preciso ser relativista para ser demócrata, sino que
armaré de manera más comprometida que un demócrata no puede ser
relativista, es decir, que una defensa apropiada y rme de la democracia es
racionalmente incompatible con el relativismo ético.
Desarrollaré mi argumentación en dos partes. En la primera,
comentaré tres argumentos internos al tema de la democracia, que
también podríamos denominar políticos y que aparentemente parecen
justicar una cierta conexión entre ese sistema de gobierno y alguna
forma de relativismo. Su discusión servirá también, de paso, para intentar
ir delimitando los rasgos y problemas fundamentales de la noción de
democracia que me parece defendible. En la segunda parte, tomando
sobre todo el relativismo de Kelsen como motivo crítico, entraré en
una argumentación externa y general, de naturaleza más bien losóca,
sobre las incoherencias e insuciencias del relativismo ético como forma
de defensa de la democracia. En la conclusión propondré una distinción
importante entre objetivismo y dogmatismo (o absolutismo) éticos que
permite conrmar el valor de la democracia como sistema de prueba y
error comprometido con la búsqueda de la verdad (o, si se quiere, de la
objetividad) también en materias ético-políticas.
i
El primer argumento interno por el que parecería que la
democracia tiene algún compromiso con el relativismo, al menos en el
sentido de que en la política democrática las verdades, si las hay, son
provisionales y meramente relativas, proviene de la compleja relación entre
el procedimiento democrático y los resultados obtenidos mediante ese
procedimiento. La democracia, suele decirse, es un procedimiento por el que,
mediante la deliberación entre todos los ciudadanos, o sus representantes
elegidos por todos, al nal se llega por mayoría a un resultado que puede
ser erróneo. Que la mayoría puede adoptar decisiones desacertadas, incluso
Democracia e Direitos Humanos
61
gravemente injustas, no suele negarlo ningún demócrata. Pero lo que, al
menos a simple vista, parece que identica a la democracia con alguna
suerte de relativismo es que el buen demócrata debe comprometerse con
un procedimiento que, incluso desde su propio punto de vista, puede dar
lugar a decisiones profundamente equivocadas, si resulta que tal demócrata
se encuentra en el sector de la minoría. El defensor de la democracia se
encuentra así ante una cierta paradoja, que se puede denominar paradoja
del demócrata puro: por un lado, en cuanto persona con convicciones
sustantivas, cree que ciertas decisiones democráticas son erróneas, en
algunos casos incluso injustas, pero, por otro lado, en cuanto demócrata,
está comprometido con un procedimiento que puede dar lugar también a
ese tipo de decisiones. Por así decirlo, está comprometido de manera rme,
en algún sentido absoluto o casi absoluto, con un procedimiento que puede
producir decisiones o resultados discutibles, meramente relativos.
La paradoja del demócrata puro es genuina porque el posible
conicto entre procedimiento y resultados no es meramente accesorio
ni accidental, sino que está en el centro de la justicación del sistema
democrático. El demócrata deende o debe defender el procedimiento
democrático no por razones a su vez meramente “procedimentales” o
adjetivas, por el mero hecho de que algún procedimiento hay que tener,
como si la deliberación por mayoría valiera lo mismo que el sorteo o que
la decisión de un comité de sabios o cientícos. Para el demócrata, las
razones del procedimiento democrático son sustantivas, pues se relacionan
directamente, como lo vio muy bien Kelsen y comentaré en seguida más
despacio, con los valores últimos de libertad y de igualdad.
Se puede comenzar a disolver en parte la paradoja del demócrata
relativizando el contraste entre procedimiento y resultados. En realidad,
ningún procedimiento político garantiza de manera perfecta, ni siquiera de
manera aproximada, la bondad o justicia de las decisiones que se adoptan.
Pero podría decirse que, frente a otros procedimientos alternativos — sea
autoritarios, aleatorios o carentes de controles públicos —, el democrático
puede tener mayores posibilidades de acercarse a decisiones justas gracias
a la mayor inclusión de personas y puntos de vista, a la publicidad en
la toma de decisiones y a la disposición al debate y la crítica de ideas.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
62
Pero es verdad, en todo caso, que tener mayores posibilidades de acierto
no signica contar con garantía de acierto, de modo que la paradoja no
termina de disolverse con esa réplica.
Lo que disuelve por completo la paradoja es que resulta razonable
que el demócrata otorgue prioridad al procedimiento sobre las decisiones
concretas, incluso a costa del riesgo de que sean erróneas, porque lo
que tiene valor dominante es el procedimiento antes que los resultados
del procedimiento, en la medida en que estos últimos deben tomarse
siempre como provisionales o, si se quiere, como relativos. El argumento
en favor del procedimiento democrático, sin embargo, no es dogmático
ni incondicional. El valor prioritario que el demócrata debe otorgar al
procedimiento depende esencialmente de tres tipos distintos de razones,
una relativa a su fundamentación, otra a su contenido y una última al
alcance de sus consecuencias.
La primera razón, ya enunciada hace un momento, es su
fundamentación en la igual libertad de todos los ciudadanos. A n de
cuentas, la decisión por mayoría de votos, tomada tras una deliberación
libre, es el procedimiento que respeta en mayor medida la igual libertad
de cada votante, es decir, la igualdad en la autonomía de cada individuo,
entendida como la capacidad de participar en los asuntos colectivos:
establecer una regla que exija mayorías superiores a la mitad más uno de
los votos (de tres quintos o de dos tercios, por ejemplo) establece una regla
que otorga a la minoría correspondiente un peso por encima de la mayoría
(donde, por ejemplo, un tercio más un voto vale más que dos tercios). En
el límite, cuando se exige la unanimidad para adoptar una decisión, lo que
se hace es dar a una sola persona el poder de veto, es decir, dar más peso a la
voluntad o autonomía de esa única persona que a la suma de la autonomía
de todos los demás.
La segunda razón que justica la prioridad del procedimiento
democrático es que, quizá paradójicamente, no tiene un contenido
meramente procedimental, sino que comprende y debe comprender
garantías y derechos sustantivos que justican su adopción y sin los
cuales su defensa carecería de suciente sustancia y sustento. En efecto,
la democracia no es sólo un procedimiento. Como vio bien Norberto
Democracia e Direitos Humanos
63
Bobbio, defensor ya clásico de una denición procedimental y mínima
de la democracia, el propio procedimiento democrático, para mantener la
básica y necesaria igualdad en la autonomía de todos los ciudadanos, exige
la garantía de algunos derechos que, además de ser condición esencial del
procedimiento, no dejan de tener contenidos sustantivos y son además
sustanciales para las personas, como las libertades de expresión, reunión y
asociación, todas ellas al menos en materias políticas
2
. Además, hay otros
derechos esenciales que, aun sin afectar al procedimiento, no pueden
violarse sistemáticamente sin convertir en injusto el sistema político, como
el derecho a no ser torturado, la libertad de residencia, la seguridad frente
a juicios arbitrarios, la presunción de inocencia, la irretroactividad penal,
la libertad religiosa, etc. Para sintetizar, el sistema democrático liberal es
un procedimiento que además debe respetar unos contenidos en forma de
derechos básicos sin los cuales o bien el procedimiento no puede operar
apropiadamente o, aunque lo hiciera, carecería de justicación si permitiera
la violación sistemática de esos derechos.
En n, la tercera razón que justica el valor prioritario que el
demócrata atribuye al procedimiento es que el alcance de las decisiones
democráticas no es ilimitado, puesto que se trata de un procedimiento
que ha de quedar abierto a la revisión de las decisiones tomadas por la
posibilidad de abrir nuevas deliberaciones que permitan, en su caso,
corregir los errores cometidos. Dicho de otra manera, en el procedimiento
Bobbio propuso denir la democracia mediante seis “universali procedurali”, en el sentido de que establecen el
cómo y no el qué se debe decidir, pero por lo menos cuatro de ellos exigen condiciones sustanciales, en el sentido
de que si no se cumplieran o se decidiera contra ellas el sistema no cumpliría el mínimo de la democracia:
el primero, que exige la no discriminación en los derechos políticos; el tercero y el cuarto, que hablan de
la libertad de voto en un marco que garantice la deliberación y la diversidad de programas y alternativas
políticas; y el sexto, que demanda la garantía de los derechos de las minorías (cf. “Dall’ideologia democratica
agli universali procedurali” [1987], en Teoria generale della politica, ed. de M. Bovero, Turín: Einaudi, 1999,
p. 381). Los anteriores compromisos sustantivos de la democracia como procedimiento se conrman, y hasta
se amplían, en otros textos de Bobbio en los que reconoce que los “derechos del hombre y del ciudadano que
vienen considerados como «inviolables» [...] no pueden ser limitados ni mucho menos suprimidos por una
decisión colectiva incluso tomada por mayoría” (“La regola di maggioranza: limiti e aporie” [1981], en Teoria
generale della politica cit., p. 399) o que “sin derechos humanos reconocidos y protegidos y hay democracia
(“Introduzione” a L’età dei diritti, Turín: Einaudi, 1990, p. VII).
Por lo demás, es de interés añadir aquí que si bien Bobbio mostró en una ocasión alguna reticencia teórica a la
ya mencionada fundamentación kelseniana del criterio de mayoría en la maximización de la igual autonomía
individual para las decisiones colectivas (cf. “La regola di maggioranza...” cit., p. 389-391), lo cierto es que
terminó reconociendo que “[l]os valores últimos [...] en los que se inspira la democracia [...] son la libertad y la
igualdad” y que “el fundamento ético de la democracia es el reconocimiento de la autonomía del individuo, de
todos los individuos” (“Dall’ideologia democratica...” cit., p. 376).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
64
democrático resulta esencial que las minorías, y en general todas las
opciones perdedoras, puedan seguir abogando lealmente por sus posiciones
sustantivas e intentando convencer a los ciudadanos para que cambien de
criterio. Esta posibilidad de seguir manteniendo los criterios minoritarios
permite dar prioridad al procedimiento democrático y exigir obediencia y
una cierta lealtad política a lo decidido por mayoría, precisamente porque
el sistema no obliga ni mucho menos a aceptar tal decisión como único y
último criterio moral, es decir, como objetivamente correcta.
El segundo argumento interno que parece comprometer a la
democracia con el relativismo tiene que ver con el adjetivo liberal con
el que, con buen criterio, calicamos a los sistemas democráticos que
consideramos aceptables. La esencia del genuino liberalismo político
reside en el reconocimiento de la igual consideración y respeto de la
autonomía individual. El respeto a la autonomía individual comprende
de manera esencial la garantía de los derechos relacionados con la libertad
de pensamiento, opinión, religión, etc., con el único límite del recíproco
respeto a los demás derechos básicos. El liberal, por tanto, está comprometido
con un criterio superior y dominante, un supracriterio, según el cual el
sistema democrático debe garantizar la expresión de criterios distintos y
plurales en materia religiosa, ideológica, losóca o política. Esta defensa
superior del pluralismo ideológico supone considerar valiosas la diversidad
y la competición entre distintos partidos políticos, en último término
entre izquierda y derecha, siempre con el límite de la común y general
aceptación del propio sistema pluralista como condición de viabilidad de
la democracia. El verdadero liberal debe suscribir la enseñanza de estas
bellas y felices palabras de Norberto Bobbio:
De la observación de que las creencias últimas son irreductibles he
sacado la lección más grande de mi vida. He aprendido a respetar
las ideas ajenas, a detenerme ante el secreto de cada conciencia, a
comprender antes de discutir y a discutir antes de condenar. Y puesto
que estoy en vena de confesiones, hago todavía una, tal vez superua:
detesto a los fanáticos con toda mi alma
3
.
 “Prefazione” a Italia civile. Bari: Laterza, 1964. p. 78.
Democracia e Direitos Humanos
65
Ahora bien, el liberalismo así caracterizado es un liberalismo
suprapartidario que se coloca en un plano superior a las diversas opciones
ideológicas y ello sugiere lo que puede llamarse la paradoja del verdadero
liberal. La paradoja se produce porque el liberal no solo mantendrá el
supracriterio del pluralismo ideológico y político, sino que, como cualquier
persona normal, tendrá además opiniones concretas sobre muchos asuntos
públicos en discusión, en algunas ocasiones como criterios morales a los
que otorga una importancia especial e incluso última. En este plano de
la contienda ideológica concreta, el liberal asumirá como erróneas las
opiniones opuestas a la suya, a las que pretenderá derrotar en los procesos
de decisión democráticos. Pero entonces, ¿las posiciones partidistas
del liberal, perfectamente legítimas, no ponen en entredicho el criterio
suprapartidista que exige defender el superior valor de la controversia entre
distintas posiciones?
En realidad, también la paradoja del verdadero liberal, como la
del demócrata puro, resulta aparente. Y se disuelve en cuanto se cae en la
cuenta de que el liberalismo genuino no impide defender coherentemente
el sistema plural de libertades en el que deben caber distintas opciones
partidistas y, a la vez, ser un participante comprometido en favor de alguna
de esas opciones. La condición para mantener la coherencia es que, en
cuanto participante, no deje de mantener su punto de vista en favor del
sistema pluralista, de modo que su posición partidista no le ciegue hasta
el punto de descalicar el valor del propio sistema. Ese es el signicado
de la famosa frase atribuida a Voltaire pero al parecer apócrifa: “Monsieur
l’abbé, je déteste ce que vous écrivez, mais je donnerai ma vie pour que vous
puissiez continuer à écrire». La democracia liberal es el procedimiento que
permite dirimir entre opiniones opuestas mediante la deliberación y una
regla de decisión razonable, y ese es el marco que el liberal debe respetar
como imprescindible para la defensa y debate de las distintas posiciones
partidistas, incluidas las propias.
El tercer argumento interno que podría alegarse para defender la
conexión entre democracia y relativismo es que, incluso sin referirse a las
formas clásicas de democracia, tan distintas de las modernas, las diferencias
institucionales, así como de contenidos y de logros, entre los sistemas que
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
66
consideramos democráticos son tan grandes que inclinan a dudar de que
exista un patrón ideal rme que permita calibrar cuál es el modelo de la
mejor democracia. Incluso entre democracias reconocidas, la diversidad
de modelos institucionales va desde los sistemas presidencialistas a los
parlamentarios, de los federales a los unitarios, de los que dan primacía
normativa absoluta al parlamento a los que establecen controles de
constitucionalidad de las leyes, de los de fuerte rigidez constitucional
a los de gran exibilidad para cambiar la constitución. En cuanto a los
contenidos y logros, hay democracias que aceptan la pena de muerte o
el derecho a llevar armas y democracias que lo prohíben, o que protegen
una libertad de expresión casi ilimitada frente a otras que prohíben
la apología de ciertos delitos o el discurso del odio (hate speech), o que
garantizan derechos sociales como el acceso a la educación o la sanidad o
a un mínimo vital frente a otras que atienden mucho más decientemente
a tales derechos.
En realidad, la variedad de fórmulas institucionales y de contenidos
y logros en los distintos sistemas democráticos es una consecuencia inevitable
de la combinación del procedimiento democrático con la exigencia liberal
de respeto al pluralismo político, una combinación que es normal que
dé lugar a distintos resultados institucionales y sustantivos en diferentes
momentos y circunstancias, quizá ninguno de ellos del todo ajustado a un
hipotético modelo ideal o perfecto. Pero esta constatación, sin embargo,
no impugna la pregunta por si hay alguna combinación institucional de
procedimientos y de contenidos que pueda proponerse como modelo ideal
de democracia liberal.
Precisamente, esa pregunta puede conectarse con una tercera
paradoja, o quizá mejor un dilema, el demócrata liberal perfecto. Esta gura
surge de la tensión entre el mejor procedimiento democrático y la mejor
formulación de los derechos básicos, que seguramente produce dilemas
a los que no es fácil dar una solución simple y denitiva y, sobre todo,
ante los que cabe dudar de si existe un punto de equilibrio óptimo válido
para cualquier momento y lugar. Quizá la respuesta a esta situación de
indeterminación deba ser aceptar la existencia de diversas formas de
realización de la democracia liberal y, por tanto, que no es pensable proponer
Democracia e Direitos Humanos
67
su combinación perfecta o ideal. Quizá debamos conformarnos con señalar
un marco institucional amplio, vago y gradual, solo delimitado por unos
criterios básicos sobre los procedimientos institucionales y los contenidos
en derechos. Tales criterios básicos sabemos que deben incluir la división de
poderes, la independencia judicial y el imperio de la ley como instituciones
indeclinables por su ecacia frente al viejo y permanente problema de que el
poder corrompe, así como, al menos, los básicos derechos políticos, civiles
y sociales sin los cuales el pluralismo político termina siendo ahogado por
poderes autocráticos. Todo ello quiere decir que la paradoja, o el dilema,
del demócrata liberal no afecta tanto a los criterios básicos de denición
de la democracia como sobre todo a su modelo ideal o perfecto, e incluso
a la zona intermedia y difusa en la que la mala calidad de la democracia
comienza a degenerar en autocracia.
Para echar las sumas de lo dicho en esta primera parte, cabe
concluir que los tres argumentos considerados se reeren más bien al
problema de la relatividad de la democracia, esto es, a la calicación de
la democracia como una noción relativa, en el sentido de imprecisa, de
contornos y alcance no claramente denidos, pero no a la cuestión de
que la justicación misma de la democracia sea relativa. La democracia
liberal aparece como un sistema complejo y variado, como corresponde a
una noción que, aun teniendo un núcleo esencial sucientemente claro,
admite en la práctica diversas formas de realización y de concreción. Pero
los criterios por los que se adopta son moralmente rmes y correctos: el
igual valor de la autonomía individual en el procedimiento democrático, la
prioridad del pluralismo ideológico y la necesidad de proteger los derechos
básicos limitando el poder político. Cierto que, salvado su núcleo, la noción
de democracia es eminentemente gradual, y conforme a esa gradualidad
podemos armar que existen diferentes sistemas más o menos democráticos
y diferentes formas de concebir y organizar un sistema democrático. Pero
sin olvidar que ese núcleo nos indica dos cosas: de un lado, que hay un
límite más allá del cual se abandona el sistema democrático, y, de otro
lado, que si no hay una noción de democracia absoluta, en el sentido de
completa y acabada, tampoco estamos ante una noción del todo relativa,
por la que cualquier sistema pueda valer como democrático.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
68
ii
En la segunda parte de esta intervención afronto un reto distinto:
la pretensión de que la democracia sea una opción ideológica que no pueda
fundamentarse objetivamente, sino que su valor depende de la adopción
de un punto de vista relativo, en el sentido de subjetivo, particular y no
universal, propio de una determinada persona o grupo, de una cultura o
de un tiempo y lugar especíco. Hans Kelsen ejemplica bien la posición
del demócrata que deende de manera relativista la democracia. Kelsen
arma, por un lado, que
Decir que los juicios de valor solo tienen una validez relativa —
principio éste básico en el relativismo losóco — implica que los
juicios de valor opuestos son lógica y moralmente posibles;
y, por otro lado, que
El principio moral especíco de una losofía relativista de la Justicia
es el de la tolerancia, que supone comprender las creencias religiosas o
políticas de otras personas sin aceptarlas pero sin evitar que se expresen
libremente. [...]. Si la democracia es una forma justa de gobierno,
lo es porque supone libertad, y la libertad signica tolerancia. [...]
Verdaderamente, no sé ni puedo armar qué es la Justicia, la Justicia
absoluta que la humanidad ansía alcanzar. Sólo puedo estar de acuerdo
en que existe una Justicia relativa y puedo armar qué es la Justicia
para mí. Dado que la Ciencia es mi profesión y, por tanto, lo más
importante en mi vida, la Justicia, para mí, se da en aquel orden social
bajo cuya protección puede progresar la búsqueda de la verdad. Mi
Justicia, en denitiva, es la de la libertad, la de la paz; la Justicia de la
democracia, la de la tolerancia
4
.
Kelsen expresa muy bien el criterio de justicia del demócrata
liberal, pero yerra claramente en su defensa del relativismo, que socava la
fuerza argumentativa de su criterio democrático. Para apreciar en qué y por
qué Kelsen está manteniendo una posición errónea conviene diferenciar tres
formas distintas de relativismo ético, que se suelen denominar relativismo
What is Justice? Justice, Law, and Politics in the Mirror of Science. Collected Essays. Berkeley and Los Angeles:
University of California Press, 1957. p. 206, y 2224, respectivamente (cursivas mías).
Democracia e Direitos Humanos
69
descriptivo, relativismo normativo y relativismo metaético o epistémico.
Esas tres formas de relativismo vienen a mantener una tesis aparentemente
similar, que puede ser formulada en la primera idea mencionada de Kelsen:
que dos criterios de justicia contradictorios entre sí pueden ser válidos a la
vez. Sin embargo, más allá de las apariencias, esas tres formas de relativismo
signican cosas bien diferentes porque en la denición anterior la palabra
válidos” tiene tres signicados también muy diferentes.
El relativismo descriptivo arma que distintas culturas, así como
diferentes personas mantienen de hecho criterios morales y políticos
distintos y aun contradictorios que son considerados por ellos moralmente
válidos o correctos. Esta armación reconoce el hecho trivial del pluralismo
ideológico, sin el cual no tendría sentido hablar de tolerancia ni de
intolerancia hacia las ideas ajenas, que ya sabemos que muchas veces son
distintas y aun opuestas a las nuestras. Para Kelsen, como para cualquier
demócrata, este hecho es un presupuesto esencial de la democracia pero no
supone un relativismo fuerte o relevante: se limita a decir que cada persona,
desde su punto de vista, tiene por correcta moral o políticamente una
determinada posición y que esa posición puede no coincidir con la de otras
personas, que tienen por correcta una posición distinta (y por cierto que
la suelen tener por correcta objetivamente, no como subjetiva o relativa).
Reconocer este hecho es simplemente reconocer el pluralismo ideológico
y no implica en absoluto que consideremos igual de correctas nuestras
opiniones y las opuestas: si uno deende el matrimonio de personas del
mismo sexo o que debe despenalizarse la eutanasia consentida de enfermos
incurables, reconocer que otros tienen un criterio opuesto que consideran
correcto no implica armar que ellos están en la posición correcta.
El relativismo normativo, en cambio, sostiene la tesis de que
criterios de justicia contradictorios, como por ejemplo los que acabamos
de ver, pueden ser válidos o correctos no ya desde el punto de vista de
los respectivos participantes en la discusión sino también del propio
observador. Esta es la posición engañosamente condescendiente de muchos,
normalmente occidentales, que, como Richard Rorty, creen que los
derechos humanos y la democracia son un modelo local y no universalista,
que vale para nosotros pero no para otras culturas y pueblos. Obsérvese
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
70
que quien arma esto no dice que está bien que cada grupo cultural o cada
persona deenda sus propias convicciones, lo que se limita a reconocer,
acertadamente, el derecho a la libertad de expresión, sino que cada cual
está en lo correcto cuando arma sus convicciones y actúa conforme a
ellas. Ello signica que en caso de conicto serio entre dos convicciones
distintas sobre la justicia cada parte puede acudir legítimamente a la fuerza
para imponer su criterio
5
.
Esta posición tan olímpica propone no solo una distante
neutralidad por encima del bien y del mal, sino también una especie de
concepción deportiva de la ética política, para la que, al igual que yo juzgo
a mi equipo de fútbol como el mejor o, en todo caso, deseo que gane,
también sé y me parece perfecto que los partidarios de otros equipos piensen
lo mismo, de modo que en la inevitable competición acepto de buen grado
que gane quien meta más goles. Ahora bien, quien, como Kelsen, deende
como superiores los valores de libertad y tolerancia propios de los sistemas
democráticos no está manteniendo una concepción deportiva de la política
para la que sea indiferente que venza la democracia o el totalitarismo. Si su
convicción democrática es sólida, no puede mantener que el totalitarismo
es tan correcto como la democracia, de modo que considere correcto que
gane el más fuerte. Y si esto es así, no puede mantener en serio que la
democracia y los derechos humanos son una posición relativa, correcta
solo para los occidentales en una época determinada, sino que la debe
considerar superior y preferible a las alternativas, si no hay más remedio
incluso para defenderla justicadamente por la fuerza, como ocurrió en la
Segunda Guerra Mundial ante el nazismo.
Este es lugar oportuno para precisar que el relativismo normativo puede ser perfectamente razonable para
aquella parte de la moral que se reere a la esfera de lo bueno (las virtudes de autoperfeccionamiento, las
acciones heroicas y meritorias, los deberes de naturaleza religiosa, etc.), en la que es posible aceptar criterios y
comportamientos plurales que se acomodan de forma pluralista mientras no entren en conicto con la esfera de
lo justo: así, virtudes como la generosidad, la moderación, la prudencia, la valentía, la constancia, la diligencia,
la paciencia, etc. pueden diversicarse en muchas personas en distintos grados y combinaciones sin dar lugar en
principio a conictos sociales. En cambio, la esfera de la justicia es siempre fuente potencial de tales conictos,
pues se reere a aquel núcleo central de los deberes y prohibiciones exigibles a todos los individuos como
garantía básica de la convivencia humana. Es a esta parte especíca de la moral — que es la relacionada con la
imposición de deberes y prohibiciones a través del aparato coactivo del Derecho y, por tanto, con la democracia
como la forma de gobierno que mejor justica esa imposición — a la que se reeren mis observaciones en este
artículo, en donde las alusiones sin más a la moral o a la moralidad deben entenderse siempre como circunscritas
a dicha esfera de la justicia.
Democracia e Direitos Humanos
71
La tercera forma de relativismo, el relativismo metaético o epistémico,
arma que dos criterios éticos contradictorios pueden ser ambos correctos
o válidos según distintos supracriterios o códigos de fundamentación moral
y, además, que ambos son equivalentes desde un punto de vista epistémico
o cognoscitivo porque a n de cuentas no hay ningún supracriterio
racionalmente válido que permita decidir de manera objetiva qué es lo
correcto o lo incorrecto moralmente. En realidad, el relativista epistémico
sostiene dos tesis distintas: por un lado, la tesis relativista descriptiva de
la igual validez de dos juicios morales contradictorios desde el respectivo
punto de vista de distintos marcos de justicación; y, por otro lado, la tesis
escéptica de la igual invalidez cognoscitiva de dichos juicios morales (y en
realidad de cualesquiera otros) desde el propio punto de vista del relativista
epistémico. La primera tesis es una armación descriptiva relativa a las
diferencias de fundamentación de las concepciones ético-políticas que
podemos reconocer como un hecho, al igual que reconocemos el hecho
de las diferencias en los criterios éticos sustantivos. En cambio, la tesis
escéptica de que en realidad no hay supracriterios que nos permitan
saber qué es lo correcto presenta un importante reto a quienes deenden
la democracia como el único sistema de gobierno éticamente aceptable.
Seguramente, esta tesis epistémica era la que Kelsen presuponía cuando,
tras negar que exista un criterio absoluto u objetivo de justicia, se limitó a
reivindicar la democracia liberal como su propia opción subjetiva.
Esta forma de escepticismo, que Dworkin ha denominado
externo, se diferencia del escepticismo interno en la adopción de una
posición arquimédica o exterior, que no niega la posibilidad de hacer
juicios morales sino solamente la de que tales juicios sean objetivos. El
escepticismo interno puede ser ejemplicado por el escepticismo antiguo,
en la cultura greco-romana, que se manifestaba en la actitud práctica de
suspender todo juicio moral en una negación o indenición moral radical,
pero también aparece en la indeterminación olímpica del actual relativismo
normativo hace poco ilustrada. En contraste, el escepticismo externo puede
ejemplicarse en una línea de excelentes lósofos modernos, comenzando
por Michel de Montaigne, que tan magistralmente razonó sus dudas sobre
la razón, de la cual decía que, andando “siempre de lado, coja y derrengada,
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
72
y con la mentira como con la verdad, [...] es difícil descubrir su error y
desorden
6
, pero sin que esas dudas le impidieran formular muy sensatos y
argumentados juicios morales. Pero fue David Hume el lósofo que inició la
forma hoy más extendida de relativismo epistémico: el no cognoscitivismo
ético, para el que nuestros principios y normas morales están basadas en
último término en nuestros deseos o preferencias subjetivas, en nuestras
pasiones y no en nuestra razón
7
. La versión más extrema de esta teoría es
el emotivismo ético, que en la formulación del lósofo del Derecho danés
Alf Ross, contemporáneo de Kelsen, remitía tales deseos directamente
a emociones equivalentes a dar golpes en la mesa como producto de la
excitación de nuestras glándulas suprarrenales
8
. Aunque haya versiones
mucho más matizadas que esta última, el escepticismo epistémico siempre
se caracteriza por considerar la ética una proyección subjetiva que carece de
cualquier criterio objetivo de validación, como lo compendió de manera
excelente Baruch Spinoza cuando dijo que “nosotros no deseamos algo
porque lo juzguemos bueno, sino que lo llamamos ‘bueno’ porque lo
deseamos” (Ética, III, XXXVIII).
Frente a este escepticismo epistémico creo que tiene razón Ronald
Dworkin en rescatar la “visión ordinaria” o común de la ética, según la
cual creemos que nuestros juicios morales reexivos y considerados no
dependen esencialmente de nuestros sentimientos, deseos o preferencias,
sino que los juzgamos independientes de nosotros porque corresponden
con algún estándar externo y objetivo. Dicho de manera rápida y sintética:
en nuestros juicios morales ordinarios mantenemos, para nosotros y para los
demás, una pretensión de objetividad o de corrección que es incompatible
con el escepticismo epistémico. Con una salvedad que enseguida haré, la
Apología de Ramón Sibiuda”, en Los ensayos según la edición de 1595 de Marie de Gournay. Barcelona:
Acantilado, 2007. p. 847.
De ahí sus dos provocativas armaciones: “[l]a sola razón no puede nunca producir una acción o dar origen
a la volición [...] No nos expresamos de un modo preciso ni losóco cuando hablamos del combate entre la
pasión y la razón. La razón es y debe ser únicamente esclava de las pasiones, sin que pueda pretender otro ocio
que el de servirlas y obedecerlas [...]. No es contrario a la razón el preferir la destrucción del mundo entero a
sufrir un rasguño en mi dedo. No es contrario a la razón que yo preera mi total ruina para evitar el más mínimo
sufrimiento de un indio o de una persona totalmente desconocida para mí...” (A Treatise of Human Nature, ed.
de L. A. Selby-Bigge, 2ª ed., Oxford: Clarendon Press, 1978, II.III.iii, p.414-416).
 Cf. Sobre el derecho y la justicia, Buenos Aires, Eudeba, 1963, pp. 2678.
Democracia e Direitos Humanos
73
actitud ordinaria sobre los juicios morales reexivos es y debe ser similar
a la del historiador italiano Luciano Canfora sobre los juicios históricos:
Me gusta ver las variantes entre textos, tratar de confrontarlos y
acercarme a lo que se llama la verdad. La verdad, que es una palabra
gruesa, pero que tiene que estar en alguna parte, no puede no estar
9
.
También en materia moral la verdad tiene que estar en alguna parte,
aunque no sepamos bien exactamente dónde y, sobre todo, con la salvedad
— si no para todos sí al menos para muchos defensores del objetivismo
ético, como Dworkin o yo mismo — de que no estamos ante un tipo de
verdad que, como la histórica o la cientíca, podamos comprobar mediante
la corroboración de los hechos por experimentos, observaciones empíricas,
documentos, testimonios, etc., sino solo mediante las razones apropiadas.
Volvamos ahora al demócrata relativista: ¿es compatible ser
demócrata y relativista metaético o epistémico? Creo que no, que quien
deende convencidamente la democracia liberal como un sistema legítimo
de gobierno, es decir, como un criterio aceptable por y para todos,
debe presuponer que su criterio es fundado y correcto, y más fundado
que otros criterios alternativos, en el sentido de que no depende de sus
propios sentimientos o preferencias subjetivas. La defensa de la democracia
comporta adoptar un punto de vista interno (en el sentido de que lo hacemos
desde una convicción práctica comprometida) por el que no tenemos más
remedio que presuponer la hipótesis opuesta a la de Spinoza, esto es, que
no llamamos bueno a lo que preferimos sino que preferimos algo porque
lo consideramos “objetivamente” bueno; o, dicho de otra manera, que más
que “elegir” o adoptar subjetivamente nuestras preferencias morales, es la
exigencia de imparcialidad la que nos impone esas preferencias o criterios.
Frente al anterior punto de vista interno, que es el punto de
vista ordinario, el relativista epistémico adopta un punto de vista externo
o arquimédico que presenta un tipo de objeción impertinente, que solo
sirve para interrumpir la conversación sacándola del quicio en el que se
desarrolla y debe desarrollarse cualquier debate político-moral. Se trata de
un tipo de interrupción conocido, que no es inusual observar en debates
 “Democracia cadáver”, entrevista de Pablo Ordaz, El País. Babelia, sábado, 26 de abril 2014.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
74
con y entre estudiantes, cuando en el curso de una discusión sustantiva,
como por ejemplo sobre la despenalización del aborto, alguien contradice
a otro diciendo: “Pero esa es solo tu opinión”. Esta armación, si tiene la
inmediata pretensión de desactivar o socavar la objetividad de los oponentes,
en realidad desactiva y socava también no solo el propio criterio sustantivo
del escéptico, que no puede dejar de ser más que otra opinión, sino la
totalidad del debate y su sentido, que ha pasado a versar sobre otro asunto: el
del estatus epistemológico, supuestamente no objetivo, de nuestros criterios
morales. La objeción termina siendo una intromisión impertinente en la
argumentación moral sustantiva similar a la interrupción de un partido
de fútbol por un jugador que detiene el juego para discutir si el fútbol es
más entretenido que el baloncesto, o si jugar al fútbol es en sí misma una
actividad valiosa o una pérdida de tiempo. Cuando argumentamos en moral
entramos en un tipo de juego, valga la expresión, en el que resulta absurdo
alegar o aceptar un argumento como el del relativismo epistémico, que
descalicaría nuestra propia pretensión de corrección. Y cuando defendemos
el sistema democrático como el mejor — o incluso solo como el menos malo
— también resulta absurdo que armemos que lo hacemos como un criterio
válido únicamente para nosotros y no para todos los demás y que se trata
nada más que de nuestra opinión subjetiva formulada desde una posición
metaética que es tan correcta o incorrecta como cualquier otra
10
.
10
En el coloquio que siguió a la exposición de este texto en la “I Semana Norberto Bobbio”, Giuseppe Tosi
planteó la peliaguda cuestión de si mi objeción se podría aplicar también a la posición de un fascista. A primera
vista, cualquier criterio mantenido como moralmente justo parece que ha de tener una pretensión de corrección
universal, y en tal sentido tampoco el fascista sería coherente si mantuviera un relativismo epistémico. Sin
embargo, a diferencia del demócrata, el fascista (como el racista) mantiene una concepción esencialmente
antiigualitaria y jerárquica sobre los seres humanos cuya aceptabilidad universal le debería resulta indiferente,
al menos por parte de quienes considera radicalmente inferiores, de modo que el fascista podría no ser
incoherente al asumir que su posición no es aceptable universalmente. Más todavía, si el fascista pretendiera
que su concepción es también aceptable para todos, también para los que considera esencialmente inferiores,
convertiría en incoherente su propia concepción, que se diría que incurre en la paradoja de la pretensión del amo
de reconocimiento por el esclavo, pretensión que presupone atribuir a éste la igualdad esencial negada por la
concepción que justica la esclavitud. Por lo demás, si alguien continuara el debate indicando que mi denición
de moralidad, como criterio universalizable, excluye denitoriamente como manifestaciones de la moral a
posiciones como el fascismo o el racismo, estaría dispuesto a aceptar tal conclusión. Pero si, alternativamente,
yo asumiera una denición menos exigente de moralidad, meramente como criterio último y dominante en
materia práctica y sin referencia a la universalizabilidad, mi conclusión sería que concepciones como la fascista
ola racista son, sin más, sustantivamente inmorales.
Democracia e Direitos Humanos
75
iii
Paso a la conclusión para diferenciar entre pretensión de
objetividad y pretensión de infalibilidad. La idea de Kelsen de que “los
juicios de valor opuestos son lógica y moralmente posibles” seguramente
pretende armar un relativismo epistémico que, conforme he intentado
argumentar, es incompatible con su defensa de la democracia y la tolerancia.
Esa defensa no puede mantenerse “relativamente”, en el sentido de que
sea lógica y moralmente posible armar a la vez el criterio opuesto, sino
que presupone la pretensión de que es válido y preferible para todos, es
decir, tiene una pretensión de corrección objetiva y universal. Bajo esa
pretensión, la cláusula “para mí” utilizada por Kelsen puede tener tres
signicados distintos.
El primero, probablemente en el que pensaba Kelsen, es de
carácter epistémico. Conforme a él, se pretende mantener el criterio como
correcto solo de forma subjetiva o particular, al igual que se admiten otros
criterios distintos y opuestos como correctos también subjetivamente, de
modo que en realidad ninguno se consideraría correcto universalmente:
esto es correcto sólo para mí pero no para otros, porque en realidad
no hay criterios de corrección objetivos”. Esta interpretación, como he
venido insistiendo, contradice la pretensión de corrección universalista
lógicamente necesaria para quien deende la democracia como criterio
superior de legitimidad.
En un segundo signicado, improbable en el conjunto de la
argumentación de Kelsen pero en cambio bien defendible, el “para mí”
podría operar como cláusula de cautela o advertencia con la función retórica
de señalar que no se deende la propia posición de forma dogmática y
absolutista, a modo de criterio irrevisable, sino como una propuesta que se
está dispuesto a matizar e incluso revisar en caso de que se muestre incorrecta:
esto es lo correcto para mí, o en mi criterio, pero podría estar equivocado”.
Y un tercer signicado, aparentemente trivial y redundante, es
el meramente informativo de que la posición moral que se mantiene es la
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
76
propia, no la de otros, y que se rearma como correcta: “esto es lo correcto
para mí o según mi criterio, que mantengo como correcto”.
Como sobre el primer signicado ya he hablado bastante,
terminaré comentando los otros dos signicados, que nos proponen dos
enseñanzas distintas aunque relacionadas.
En el segundo signicado dicho, donde la expresión “para mí”
equivale a la cláusula de cautela “este es mi criterio, pero podría estar
equivocado”, no estamos ante una posición relativista en ningún sentido.
Tal cautela no niega, sino todo lo contrario, la pretensión de que la
propia posición haya de ser tenida por correcta en tanto no sea matizada
o revisada. Cuando alguien incluye dicha cláusula de cautela presupone
necesariamente que por el momento está en la posición correcta, es decir,
mantiene la pretensión de corrección del punto de vista ordinario y lo
que formula mediante tal cláusula es perfectamente legítimo y sano: esto
es, formula la armación de que la pretensión de corrección no debe
confundirse con la pretensión de infalibilidad, que consiste en la creencia
dogmática o fundamentalista de que nuestro juicio moral es verdadero sin
posibilidad de revisión ni refutación alguna. La distinción es básica y sobre
ella fue bien claro John Stuart Mill en el capítulo de On Liberty dedicado a
“la libertad de pensamiento y discusión”, donde dice:
Nunca podemos estar seguros de que la opinión que tratamos
de ahogar sea falsa, y si lo estuviéramos, el ahogarla sería todavía
un mal. En primer lugar, la opinión que se intenta suprimir por la
autoridad puede ser verdadera. Quienes desean suprimirla niegan, por
supuesto, su verdad; pero no son infalibles. [...]. Negarse a oír una
opinión porque se está seguro de que es falsa equivale a armar que su
certidumbre equivale a una certidumbre absoluta. Todo acallamiento
de una discusión es asumir la infalibilidad.
[...]
La libertad completa de contradecir y desaprobar nuestra opinión es la
condición misma que justica que la aceptemos como verdadera para
llevarla a la práctica; y de ningún otro modo puede un ser humano
tener certeza racional de estar en lo correcto
11
.
11
Sobre la libertad. 2.ed. Madrid: Alianza, 1979. p. 77 y 80.
Democracia e Direitos Humanos
77
Una enseñanza de las advertencias de Mill es que, aunque sólo
la discusión nos puede dar la certeza de estar en lo correcto, la propia
discusión, si es una discusión genuina y no una mera ejercitación en el arte
de la retórica, exige la creencia en la corrección de nuestras posiciones y en
los argumentos que las apoyan. Uno puede y debe defender sus creencias
como correctas sin necesidad de ser dogmático o creerse infalible.
El tercer signicado, que pretende describir o informar de que
uno es consciente de que el propio criterio, creído y mantenido como
objetivamente correcto, es impugnado de hecho desde otras posiciones, quizá
no es tan trivial como puede parecer a simple vista. Aquí no estamos, como
en el primer signicado, en la interrupción de la conversación del relativista
escéptico, que — lo recuerdo — venía a decir: “Pero esa es tu opinión, y
yo tengo la mía (así que se acabó la discusión)”. En nuestro tercer caso la
misma armación vendría a decir algo muy distinto: “Pero esa es sólo tu
opinión, y yo tengo la mía (y puesto que las dos no pueden ser correctas a la
vez, deberíamos seguir argumentando para ver cuál de las dos tiene mejores
razones en su favor)”. Creo que esta posición, lejos de ser trivial, podría poner
de maniesto la cautela de no infalibilidad implícita en la pretensión de
objetividad no ya solo en materia moral sustantiva, sino también en el propio
plano metaético o epistemológico, como una invitación al debate racional,
por lo demás tan esencial y necesario en el procedimiento democrático. Esta
es la mejor enseñanza del Sócrates del Critón, ajeno al fuerte objetivismo
platónico del mito de la caverna y respetuoso como nunca con la democracia
ateniense. Recuérdese que Sócrates, ya al borde de su muerte y frente a la
propuesta de Critón de que eluda la condena de los atenienses, comienza su
argumentación con una apelación objetivista al mejor razonamiento pero
apoyada en su criterio personal:
yo, no sólo ahora sino siempre, soy de condición de no prestar atención
a ninguna otra cosa que al razonamiento que, al reexionar, me parece
el mejor. (Critón 46b)
A lo que poco después, tras argumentar su criterio de que no es
bueno responder a la injusticia con la injusticia, añade:
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
78
Procura, Critón, no aceptar esto [que no se debe responder a la injusticia
con la injusticia] contra tu opinión, si lo aceptas; yo sé, ciertamente,
que esto lo admiten y lo admitirán unas pocas personas. No es posible
una determinación común para los que han formado su opinión de esta
manera y para los que mantienen lo contrario, sino que es necesario
que se desprecien unos a otros, cuando ven la determinación de la otra
parte. Examina muy bien, pues, también tú si estás de acuerdo y te
parece bien, y si debemos iniciar nuestra deliberación a partir de este
principio, de que jamás es bueno ni cometer injusticia, ni responder
a la injusticia con la injusticia, ni responder haciendo mal cuando se
recibe el mal. ¿O bien te apartas y no participas de este principio? En
cuanto a mí, así me parecía antes y me lo sigue pareciendo ahora, pero
si a ti te parece de otro modo, dilo y explícalo. Pero si te mantienes en
lo anterior, escucha lo que sigue. (Critón 49c-d)
Obsérvese cómo Sócrates, lejos de cerrar la conversación la está
abriendo para que pueda progresar en la busca de la verdad, bien sea
volviendo a poner en discusión el criterio del punto de partida, bien sea
para continuar a partir de ese criterio a donde nos lleven las mejores razones
dentro de la coherencia de la argumentación. ¿Qué más podríamos pedir?
Un comentario nal. Toda mi argumentación anterior ha
girado en torno a la idea de que defender la superior legitimidad del
sistema democrático no es racionalmente compatible con el relativismo,
entendido como cualquier forma de escepticismo hacia el criterio que uno
mismo cree correcto. En realidad, los argumentos que aquí he aportado,
de naturaleza metodológica o epistemológica, son de naturaleza similar
a los que se presentan en cualquier debate ético o político: no pueden
apelar a la evidencia comprobable en los hechos, sino solo a las mejores
razones disponibles dentro de un marco de coherencia entre creencias lo
más abarcador posible. Lo cual comporta, al menos, dos consecuencias con
las que concluyo: primera, que quien, siendo demócrata convencido, desee
seguir manteniendo una posición relativista sobre la democracia, deberá
preguntarse si no está obligado a defender tal relativismo desde un punto
de vista epistemológico objetivista y si, con ello, no entra en contradicción,
ahora una contradicción de segundo o superior nivel; y, segunda, que
cualquiera que, como yo mismo, mantenga una epistemología objetivista
Democracia e Direitos Humanos
79
como la aquí propuesta debe cuidarse de la pretensión de ser infalible.
Lo que signica que debe estar dispuesto a abrir el debate y a recibir toda
suerte de objeciones.
81
L    
   
N B
Sérgio Cândido de Mello
bobbio: víNculos iNtelectuais e trajetória
O pensamento político de Norberto Bobbio é amplo e diversi-
cado quanto aos temas tratados. O autor tem sólida formação intelectual,
navegando com facilidade através da Filosoa Política e da Ciência Política.
Mostra, sobretudo, vasto conhecimento dos clássicos sobre os quais assenta
grande parte de seu pensamento político. Trata de Aristóteles, dos jusnatu-
ralistas ou de Weber com a mesma tranquilidade, demonstrando enorme
erudição. Além disso, como poucos pensadores políticos da atualidade,
faz referência contínua a esses autores, utilizando-os como subsídio para
a compreensão de problemas políticos atuais. Entretanto, apresenta no
conjunto de sua obra posições no mínimo ecléticas, dando margem a lei-
turas diversas. Será ele estritamente um liberal? Ou, de modo diverso, um
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p81-102
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
82
socialista? Será Bobbio simplesmente um democrata no âmbito político?
Ou, ainda, como ele mesmo se dene, um homem de esquerda? Em que
medida essas coisas são compatíveis?
Para Perry Anderson (1989, p. 28), “o pensamento de Bobbio
é um liberalismo que acolhe simultaneamente discursos socialistas e con-
servadores, revolucionários e contra-revolucionários”. Tomando como re-
ferência alguns de seus livros, teve-se acesso a uma grande quantidade de
exemplos dessas várias manifestações. Em Liberalismo e democracia (1994),
Bobbio associa a constituição e a vigência da democracia moderna ao libe-
ralismo. Arma, ademais, em Política e cultura (1955), a impossibilidade
da existência de uma democracia não liberal. No seu livro Qual socialismo?
(1987), argumenta que numa sociedade socialista a democracia será ainda
mais difícil, o que nos termos do supracitado historiador inglês (1989,
p. 37) representa uma conclusão paradoxal para um socialista democrático.
Entretanto, em As Ideologias e o poder em crise (1988, p. 40-41), Bobbio
arma ser “o ideal socialista superior ao ideal liberal, na medida em que o
primeiro engloba o segundo, mas não vice-versa”. Ele faz tal armação no
contexto em que analisa as relações entre liberdade e igualdade, conside-
rando esta enquanto equivalência ou reciprocidade de poder como uma
condição para o exercício da liberdade, não sendo o contrário verdadeiro.
E, ainda, quando se considera as análises que desenvolve em Direita e es-
querda (2001) pode-se observar uma interpretação original desses mesmos
temas: uma interpretação plenamente coerente com a condição de um in-
telectual de esquerda, atribuindo-se a esse termo uma conotação ampla¹.
Qual o peso relativo que teriam estas colocações no conjunto de seu pen-
samento? Poderiam representar sua evolução enquanto pensador político?
Em que medida formariam um todo coerente? Quais são suas contribui-
ções mais importantes?
Essas são algumas das interrogações orientadoras da presente re-
exão que originou este artigo, tudo indicando que reveladoras da existên-
cia de questões que continuam em aberto no conjunto da obra de Bobbio,
o que justica a presente leitura crítica da mesma, como um ponto de in-
exão sobre o vigor de sua contribuição ao debate político contemporâneo.
Sem perder de vista o que este vigor pode signicar enquanto obstáculo à
Democracia e Direitos Humanos
83
própria coerência interna de seu pensamento e, mais uma vez, na esteira de
sua própria exigência de uma postura metodológica preocupada com a jus-
ta adequação da teoria política à realidade política a ela relacionada – exi-
gência que é também aqui interrogada –, enquanto possível complicador
da coerência interna do pensamento político de Bobbio. Até que ponto seu
desejo de intervir no debate político de seu tempo² lhe teria dicultado a
tarefa da construção de sua teoria política? Ou, no sentido inverso, em que
medida o vigor de sua contribuição não se deve, exatamente, a suas práticas
de intervenção e a sua consequente necessidade de manter-se atualizado
no reconhecimento da especicidade da evolução dos processos políticos
de seu tempo? Essas questões também ajudam a compor a problemática
central deste texto.
O trabalho de pesquisa que orienta esta reexão partiu do reco-
nhecimento da importância do aporte trazido pela obra de Bobbio ao pen-
samento político contemporâneo³ e buscou, na melhor compreensão de
suas análises a propósito dessas questões especícas, o maior conhecimento
da extensão de sua contribuição intelectual como um todo. Sem perder de
vista que Bobbio insistia na necessidade da combinação permanente do
método analítico com o método histórico, enquanto exigência epistemo-
lógica e, especicamente, dos processos de conhecimento das diferentes
realidades históricas analisadas
4:
1. A conotação que vem sendo dada às forças políticas progressis-
tas no interior das sociedades capitalistas da atualidade, isto é, uma conota-
ção não necessariamente vinculada a um compromisso orgânico da teoria
ou da prática políticas com o marxismo. Na acepção do próprio Bobbio, as
várias esquerdas caracterizam-se, basicamente, pelo sentimento comum de
revolta contra as desigualdades sociais existentes nas diversas sociedades e,
a partir daí, por uma luta pela ampliação da igualdade.
2. Uma parte importante da obra política de Bobbio consiste em
artigos que ele escreveu tendo em vista suscitar o debate das proposições
ideológicas e da prática dos partidos políticos da esquerda: um debate que
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
84
ele começa com o Partido Comunista Italiano, logo após a segunda guerra
e que envolve, pouco a pouco, socialistas e sociais- democratas. Esses textos
são parte importante das fontes aqui utilizadas.
Nunca considerei os dois métodos incompatíveis. Sempre pensei, ao
contrário, que eles se integram reciprocamente. Quem trabalha com
o método analítico nunca deve esquecer que a realidade é bem mais
rica do que as tipologias abstratas, que devem ser continuadamente
revistas para dar conta dos novos dados ou de novas interpretações dos
dados já conhecidos. Mas o historiador também deve se dar conta de
que, para compreender, descrever e ordenar a realidade de fato revelada
pelos documentos, não pode abrir mão de conceitos abstratos, cujo
signicado, saiba ou não saiba, lhe é fornecido pelos cultores da análise.
(BOBBIO, 2001, p. 33).
Na prática, essa proposição de Bobbio impôs à pesquisa realizada,
a adoção de um procedimento analítico coerente com a própria dinâmica
interna do pensamento bobbiano. Isto é, um procedimento capaz de, ao
mesmo tempo, analisar sua obra em constante relação com as situações
históricas em que ela se produzia e encaminhar a reexão sobre as questões
especícas selecionadas em constante relação com os pressupostos teóricos
dos textos analisados. Um desao sem dúvida difícil que se procurou en-
frentar recorrendo, no primeiro caso, a fontes bibliográcas e, no segundo,
recortando cuidadosamente a parte da obra a ser analisada – a obra política
de Bobbio – e procurando, a partir desse recorte, identicar e analisar as
questões teórico-metodológicas por ela suscitadas. O que signicou tra-
balhar com as referidas contribuições do pensamento de Bobbio à luz de
suas reexões situadas no âmbito da Ciência Política e da Filosoa Política
enquanto áreas especícas do conhecimento.
A trajetória de Bobbio durante setenta anos foi marcada forte-
mente pela defesa, bem como pela constante análise da democracia. No
essencial, movido pela preocupação de criar um espaço comum para a re-
exão sobre a possibilidade de uma relação orgânica
5
entre o socialismo e
a democracia ou, numa outra dimensão, sobre a importância fundamental
do aporte teórico vinculado ao tema da democracia ao bom desenvolvi-
mento do pensamento – e dos partidos – de esquerda.
Democracia e Direitos Humanos
85
3. A contribuição da obra política de Bobbio, traduzida para di-
ferentes línguas e publicada em diferentes países, tem sido reconhecida
por analistas políticos da maior importância na atualidade. Em especial,
dentre outras coisas, no que se refere à análise da questão da democracia
nas sociedades modernas. Ademais, o historiador inglês Perry Anderson
chega mesmo a armar, num artigo destinado à análise de suas anidades
teórico-ideológicas, que hoje “toda reexão sobre as relações entre o libera-
lismo e o socialismo precisa levar em consideração de modo central a obra
de Bobbio” (ANDERSON, 1989, p. 17).
4. Bobbio concebe o método analítico em integração recíproca
com o método histórico no bojo de um debate acadêmico estabelecido so-
bretudo em torno do signicado da díade direita-esquerda. Nesse contex-
to, está entendendo por método histórico aquele que recorre à observação
sistemática da realidade, por oposição ao método utilizado pela losoa,
predominantemente analítico (BOBBIO, 1997, p. 60-71).
5. A expressão relação orgânica foi escolhida para qualicar o que
se entende ser a relação entre o socialismo e a democracia proposta por
Bobbio: a convivência da democracia representativa com a organização da
sociedade proposta pelo socialismo.
Sabe-se que a democracia, embora em princípio não seja incom-
patível com o socialismo, esteve afastada historicamente das experiências
socialistas concretas, bem como das preocupações centrais de diferentes
movimentos e partidos políticos de esquerda. Considera-se que uma das
grandes contribuições de Bobbio para o debate político contemporâneo
resulta desse seu esforço de interrogação permanente sobre o caráter demo-
crático/não democrático da teoria e das práticas políticas da esquerda. Essa
é uma questão informada, ao mesmo tempo, pelo recurso ao pensamento
dos clássicos e pela observação dos processos políticos de seu tempo e,
principalmente, uma interrogação militante, porque construída no diálo-
go que estabelece com as principais forças políticas da esquerda, das quais
nunca deixou de participar direta ou indiretamente.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
86
Bobbio adere à esquerda no nal da década de trinta, no auge da
resistência italiana ao fascismo, participando a seguir, em 1942, da criação
do Partito d’Azione, que tinha como objetivo declarado a realização de
uma síntese entre o liberalismo e o socialismo, um tema comum a vários
intelectuais desse período, ao qual Bobbio dedicou uma parte de sua obra.
Trata-se de uma ideia que ele renegaria formalmente mais tarde, embora
não seja certo que a tenha abandonado na prática.
De formação liberal na origem, Bobbio entraria em contato com
o ideário socialista, representado na Itália por diversas vertentes-liberal,
reformista e marxista. Tanto o liberalismo quanto o socialismo foram mar-
cados, no mais das vezes, por posições profundamente ecléticas, quando
não contraditórias. Na esteira da Revolução Russa, parte signicativa de
uma geração de intelectuais representariam essas diversas posições. Piero
Gobetti, por exemplo, foi admirador de Lênin e simpático ao comunis-
mo russo, tendo também colaborado com Gramsci no Ordine Novo, ao
mesmo tempo em que defendia o livre-comércio e propunha uma revo-
lução liberal. Carlo Roselli, de modo distinto, defendia um socialismo li-
beral, distanciado da perspectiva marxista e da experiência soviética. Aldo
Capitini, por sua vez, defendia uma profunda socialização econômica com
a máxima liberdade no plano político-institucional. Tendo em vista este
contexto, destaca então Perry Anderson (1989, p. 24):
Revolução liberal, liberalismo socialista, socialismo liberal, comunismo
liberal: alguma outra nação produziu uma lista comparável de híbri-
dos? Eles foram possíveis na Itália porque depois da I Guerra nem a de-
mocracia burguesa nem a socialdemocracia teriam tempo de se insta-
lar, estabelecendo um quadro de contornos estáveis para a política sob
o capitalismo. Uma década de fascismo signicava que o liberalismo
continuava sendo uma força estranhamente não consumada, enquanto
o socialismo se estabelecia como uma força relativamente não dividida;
também signicava que liberalismo e socialismo, juntos, enfrentavam
um inimigo contra o qual, em última instância, a resistência só podia
ser insurrecionaria. Nessas condições, a Resistência italiana podia apre-
sentar todos os tipos de generoso sincretismo. Bobbio é um herdeiro
desse momento excepcional, que foi – como ele tantas vezes explicou
– a experiência política central que o moldou.
Democracia e Direitos Humanos
87
Anderson (1989) realiza um importante esforço de análise do que
chama as anidades eletivas do pensamento de Bobbio, lembrando o cará-
ter predominantemente histórico de grande parte da obra desse autor, e a
consequente necessidade de construir sua análise sobre o reconhecimento
da qualidade da inserção do mesmo na vida política da Itália de seu tempo.
Assim, sem perder de vista seu objetivo principal, ele reconstrói a traje-
tória intelectual de Bobbio, procurando articular cada um de seus textos
políticos mais importantes com as situações históricas em que eles foram
produzidos, de modo a conduzir o leitor á matriz de sua análise: no es-
sencial, a convivência, no interior do pensamento de Bobbio, de tradições
teóricas não apenas diferentes, mas contraditórias. Em síntese, uma convi-
vência mediada pela própria experiência distintiva da política italiana que,
no decorrer de quase todo o século XX, veio combinando um liberalismo
ainda vigoroso, com o socialismo e o comunismo, através de composições
– um buque de híbridos – que não teriam sido possíveis nos demais países
europeus que adentraram aquele século tendo já, no essencial, esgotado os
aportes político-ideológicos oferecidos à bandeira do liberalismo.
Nesse contexto, como estudioso das questões ligadas à democra-
cia e defensor desta no plano político, Bobbio aderiu às ideias socialistas.
E o seu diálogo a propósito da relação socialismo/democracia se deu, na
maior parte das vezes, com os comunistas, integrantes do PCI – Partido
Comunista Italiano. A estes intelectuais marxistas ele rearmaria reiteradas
vezes o que considera a importância permanente das instituições políti-
cas liberais, procurando dissuadi-los de uma aliança incondicional com o
Estado soviético, considerado por ele uma ditadura. Já a partir da década
de 50, debate intensamente com esses intelectuais comunistas a questão
dos direitos de liberdade. Como fruto deste debate publica pela Einaudi,
em 1955, Política e cultura, reunindo vários de seus textos acerca deste
tema. Neste livro, ele insiste na subestimação histórica por parte do mar-
xismo das instituições liberais da separação e da limitação de poderes, que
deveriam ser tomadas como legados históricos essenciais para a convivên-
cia nas sociedades contemporâneas.
Assim, convencido da importância de suscitar entre socialistas e
comunistas uma reexão sistemática sobre o exercício do poder – regis-
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
88
tre-se o debate realizado com vários intelectuais marxistas e socialistas na
década de 70, onde Bobbio sustenta a inexistência de uma teoria marxista
do Estado desenvolvida –, de modo a induzi-los à superação dos limites
históricos de suas reexões sobre a tomada do poder, Bobbio vai reiterar
permanentemente uma denição mais comportamental do que substanti-
va da democracia.
Fortemente marcado pela questão do fascismo, Bobbio insiste
em armar que a democracia é o governo das leis por excelência, opondo-se,
portanto, a qualquer forma autocrática de governo ou, mais precisamente,
à incorporação das leis pelos governantes (BOBBIO, 1986, p. 169-171).
Assim, ele desenvolve uma longa reexão a propósito dessa oposição em O
futuro da democracia (1986), no capítulo intitulado “Governo dos homens
ou governo das leis”, onde chama de governo dos homens o exercício do
poder pessoal dos governantes, em oposição ao governo das leis, que ca-
racterizaria a democracia. Valendo-se da clássica análise de Weber contida
em “Os três tipos puros de dominação legítima” (COHN, 2008), Bobbio
contrapõe a dominação carismática – típica do governo dos homens – à
dominação legal, característica do governo das leis.
democracia e liberalismo: origeNs e evolução
Historicamente, democracia e liberalismo apresentam origens di-
versas. Como forma de governo, a democracia tem sua origem na Grécia
antiga, com a democracia ateniense, exercida diretamente pelos cidadãos
na Ágora. Já o liberalismo – como teoria política e concepção da história –
é moderno, tendo-se difundido a partir das revoluções inglesa e francesa.
Ademais, pode-se dizer que enquanto a democracia nasce visando
à distribuição do poder, o liberalismo surge tendo como objetivo a limita-
ção do poder estatal. Em outras palavras, o liberalismo nasce manifestando
uma grande desconança para com qualquer forma de governo popular,
tendo defendido o sufrágio restrito até o nal do século XIX e, em vários
casos, até depois disso.
Democracia e Direitos Humanos
89
Não obstante essa diferença originária, Bobbio observa que a mo-
derna democracia – que é representativa e não direta –, além de não ser
incompatível com o liberalismo, é seu prosseguimento natural sob vários
aspectos. Evidentemente, desde que se considere o termo democracia em
seu signicado jurídico-institucional e não no seu signicado ético, ou
enquanto ideal de igualdade em sentido amplo. Nas suas próprias palavras,
desde que se tome a democracia num signicado mais procedimental do que
substancial. E, continuando sua argumentação, ele arma:
É inegável que historicamente “democracia” teve dois signicados
prevalecentes ao menos na origem, conforme se ponha em maior
evidência o conjunto das regras cuja observância é necessária para que
o poder político seja efetivamente distribuído entre a maior parte dos
cidadãos, as assim chamadas regras do jogo, ou o ideal em que um
governo democrático deveria se inspirar, que é o da igualdade. À base
dessa distinção costuma-se distinguir a democracia formal da substan-
cial, ou, através de outra conhecida formulação, a democracia como
governo do povo da democracia como governo para o povo [...] Dos
dois signicados é o primeiro que está historicamente ligado à forma-
ção do Estado liberal. (BOBBIO, 1994, p. 37-38).
Sabe-se que é neste signicado que o termo democracia está
historicamente vinculado à formação do Estado liberal. Mas, ao mesmo
tempo em que associa a democracia procedimental ou formal ao Estado
liberal, Bobbio arma que no caso de se assumir o segundo signicado – o
da democracia substancial – o problema das relações entre democracia e
liberalismo se encaminhará para a complexa relação entre liberdade e igual-
dade. Ele ressalta também que dentro da doutrina liberal, a única forma de
igualdade que é compatível com a liberdade (sendo, deste modo, reivindi-
cada pelos liberais) é a igualdade na liberdade, isto é, a igualdade perante
a lei e a igualdade de direitos. A igualdade perante a lei deve ser entendida
como uma forma especíca e historicamente determinada de igualdade jurídi-
ca, manifestada, por exemplo, no direito conferido a todos ao acesso a uma
jurisdição comum, bem como aos diversos cargos civis ou militares, inde-
pendentemente de origem ou nascimento. A igualdade de direitos, por sua
vez, refere-se à igualdade em todos aqueles direitos fundamentais elenca-
dos numa constituição, podendo ser considerados fundamentais apenas os
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
90
direitos que podem ser usufruídos pela totalidade dos cidadãos, qualquer
que seja sua classe social, raça, sexo, religião, etc. O conjunto dos direitos
fundamentais varia historicamente, de povo para povo, e sendo assim não
se pode xá-los de maneira denitiva. É possível dizer somente que são
direitos fundamentais aqueles que em uma determinada constituição são
conferidos a todos os cidadãos de forma indistinta, ou seja, os direitos
perante os quais todos são iguais (Ibid., p. 39-41).
Quanto à distinção entre democracia formal – que se refere es-
pecicamente à forma de governo – e democracia substancial, que está
referida ao conteúdo desta forma. Bobbio (2007, p. 157-158) destaca que
estes dois signicados aparecem em perfeita fusão na teoria rousseaunia-
na da democracia, visto que o ideal igualitário na qual essa é inspirada se
realiza na formação da vontade geral, e, portanto, são ambos historicamente
legítimos. Esta legitimidade histórica não implica, entretanto, em dizer
que possuam um elemento conotativo comum, tanto que historicamente
podem ser observadas democracias formais que não conseguem manter os
principais objetivos contidos nas propostas de uma democracia substan-
cial e, vice-versa, ou seja, a existência de democracias substanciais que se
sustentam sobre formas não democráticas de exercício do poder. Assim, o
autor observa:
Desta ausência de um elemento conotativo comum temos a prova na
esterilidade do debate sobre a maior ou menor democraticidade dos
regimes que se inspiram uns no princípio do governo do povo, outros
no princípio do governo “para” o povo. Cada um dos regimes é demo-
crático segundo o signicado de democracia escolhido pelo defensor
e não é democrático no signicado escolhido pelo adversário. Além
do mais, o único ponto sobre o qual um e outro poderiam concordar
é que uma democracia perfeita deveria ser ao mesmo tempo formal e
substancial. Mas um regime deste gênero pertence, até agora, ao gênero
dos futuríveis. (Ibid., p. 158).
Os referidos limites da democracia formal – igualdade perante
a lei e igualdade de direitos – não coincidem com aqueles denidos pelos
princípios do igualitarismo democrático, que vão interrogar a igualdade
diante da lei através da demanda de uma igualdade de fato ou material,
Democracia e Direitos Humanos
91
estendendo, com isso, os limites da igualdade para o plano econômico.
Trata-se, nesse sentido, de um profundo questionamento acerca dos limi-
tes da igualdade (e da própria liberdade) no âmbito do liberalismo.
Diante desses impasses, Bobbio procura ressaltar que, com relação às
várias acepções possíveis de igualdade, liberalismo e democracia estão fadados
a não se encontrar, de onde, provavelmente em grande medida, a sua longa
contraposição histórica. E que, para se considerar a democracia enquanto
desenvolvimento natural do Estado liberal – uma tese da qual ele não abre
mão – é preciso levar em conta, não o lado de seu ideal igualitário, mas o lado
de seu princípio da soberania popular (BOBBIO, 1994, p. 42-43).
E será ressaltando a questão da soberania popular, que Bobbio
desenvolverá os seus argumentos em defesa da democracia como forma de
governo, lembrando que o único modo de tornar possível o exercício da
soberania popular está em atribuir aos cidadãos o direito de participar – direta
ou indiretamente – das decisões que são coletivas: pela já consagrada extensão
dos direitos políticos até o sufrágio universal masculino e feminino, ressalvado
o limite de idade, que comumente se confunde com a maioridade. E, ainda,
com a condição de que a participação nas eleições possa se desenvolver
livremente, de modo a permitir um exercício político capaz de conduzir à
formação das vontades coletivas. Trata-se de uma argumentação que o leva, no
que se refere à relação entre a democracia e o liberalismo, à seguinte conclusão:
Ideais liberais e método democrático vieram gradualmente se combi-
nando num modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade
foram desde o início a condição necessária para a direita aplicação
das regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro que, em
seguida, o desenvolvimento da democracia se tornou o principal
instrumento para a defesa dos direitos de liberdade. Hoje apenas os
Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas
os Estados democráticos protegem os direitos do homem: todos os
Estados autoritários do mundo são ao mesmo tempo antiliberais e
antidemocráticos. (Ibid., p. 44).
A partir de toda essa reexão, Bobbio arma a impossibilidade
de se pensar contemporaneamente na existência de Estados liberais não
democráticos, nem de Estados democráticos que não sejam também libe-
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
92
rais. Vincular o liberalismo ao que Bobbio considera como sendo as únicas
democracias atualmente existentes pode levar a uma conclusão simplica-
da sobre o caráter supostamente conservador de seu pensamento político.
Entretanto, o liberalismo em Bobbio é político, e não econômico, reve-
lador de um intenso compromisso com o Estado constitucional, com os
direitos de liberdade, mais do que qualquer consideração especial para com
o livre mercado. Essa questão remete a uma distinção corrente na lingua-
gem política italiana – e tornada conhecida por Croce –, onde se fala de
liberalismo para designar o âmbito do liberalismo político e de liberismo
para identicar o universo do liberalismo econômico, do livre mercado. O
importante a assinalar é que Bobbio parece concordar com essa distinção,
uma vez que defende nos seus textos dirigidos às tendências políticas de
esquerda um socialismo que incorpore as referidas instituições políticas
liberais. Assim, não obstante incorpore as ideias socialistas, ele irá insistir
que a democracia implica também na proteção dos direitos fundamentais
do homem e dá ênfase especial aos direitos de liberdade, de modo a poder
concluir que esses direitos não devem:
ser considerados uma conquista da burguesia com a qual o proletariado
não saberia o que fazer, mas sim uma armação da qual antes nascera
o Estado liberal, depois o Estado democrático e à qual os próprios co-
munistas deveriam chegar para salvar uma revolução, cuja importância
histórica eu mesmo, no decorrer do diálogo, muitas vezes reconheci.
(BOBBIO, 1997, p. 133).
É certo, entretanto, que esse reconhecimento não o dispensa de
trabalhar a mediação entre sua proposição de democracia representativa
e os Estados democráticos reais. Parecem explicar-se por aí suas críticas à
democracia representativa tal como ela se apresenta nas realidades políticas
contemporâneas, arrolando uma série de processos objetivos que tendem a
minar os próprios ideais da mencionada democracia. Grande parte destas
críticas dirigidas por Bobbio à democracia representativa aparece de modo
inequívoco em três de seus já mencionados livros: O futuro da democracia,
Qual socialismo? e Estado, governo, sociedade. Trata-se, nos três casos, de
críticas ligadas à complexidade das modernas sociedades industriais.
Democracia e Direitos Humanos
93
A democracia é denida por Bobbio (1986) como sendo o
governo das leis por excelência, em contraposição ao governo dos homens,
característico das diversas autocracias. O autor enfatiza a importância das
chamadas regras do jogo, necessárias ao bom funcionamento da democracia
representativa. Associando a democracia moderna ao desenvolvimento do
Estado liberal, Bobbio especica os termos em que as instituições políticas
liberais denem fundamentalmente as regras do jogo, que devem permitir
a maior – e mais correta – participação dos cidadãos nas decisões coletivas.
Estas regras são elencadas por ele na seguinte ordem: a) todos os cidadãos
maiores, sem restrições oriundas de raça, religião, situação econômica, sexo,
etc., devem ter garantidos os direitos políticos, que se referem à possibilidade
de expressar através do voto a própria vontade e/ou eleger representantes
que o façam por ele; b) deve ter peso idêntico o voto da totalidade dos
cidadãos, ou seja, cada voto deve valer por um; c) o conjunto de todos os
cidadãos, que gozam de direitos políticos, deve ser livre para votar de acordo
com a própria opinião, tendo formado tal convicção da forma mais livre
possível, isto é, em livre concorrência com grupos políticos organizados;
d) devem, ainda, ter liberdade no sentido de estar diante de situações em
que existam reais alternativas, ou seja, a possibilidade de escolher entre
soluções distintas; e) deve, tanto para as deliberações coletivas quanto para
a eleição de representantes, valer o princípio da maioria numérica, ainda
que em suas diversas formas – absoluta, relativa ou qualicada –, tudo isto
em circunstâncias determinadas, estabelecidas previamente; f) a decisão
da maioria não pode, de modo algum, limitar os direitos da minoria e, em
especial o direito desta, em situação de igualdade, vir a se tornar maioria
(BOBBIO, 1987, p. 56).
Entretanto, Bobbio faz essa exposição sobre as regras do jogo de-
mocrático para armar, logo a seguir, que embora elas qualiquem a demo-
cracia no seu signicado preponderante no atual universo da política, não
deixam de ter um caráter evidentemente restrito. E é a partir da constatação
dessa restrição, que ele passa a desenvolver críticas à democracia represen-
tativa tal como ela vem se concretizando na atualidade. Trata-se de críti-
cas que têm como pressuposto o aperfeiçoamento desta forma de governo,
quando menos, pela melhor adequação de suas regras à maior complexi-
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
94
dade das sociedades contemporâneas, mas que não deixam de conduzi-lo,
pouco a pouco, para algumas indagações sobre as possibilidades históricas
desse aperfeiçoamento. Essas críticas compõem o que Bobbio denomina de
quatro paradoxos da democracia, ou conforme ele mesmo arma, em outras
palavras, os quatro inimigos da democracia (Ibid., p. 89).
os quatro iNimigos da democracia
O primeiro desses inimigos da democracia refere-se às grandes
e crescentes dimensões das organizações atuais, em especial da organiza-
ção estatal, em razão da diculdade de se fazer respeitar as regras do jogo
democrático no interior das mesmas. Esta é uma questão que, segundo
Bobbio, está longe de ser resolvida com a simplicação do assembleísmo
dos defensores da democracia direta e que contém a substância da explica-
ção da lei de ferro das oligarquias, elaborada por Michels em Sociologia dos
partidos políticos (1982), para quem se torna difícil o exercício da democra-
cia nas grandes organizações, nas quais a base é extensa e pulverizada. Nos
termos de Bobbio,
O primeiro paradoxo da democracia dos modernos, contraposta à de-
mocracia dos antigos (para repetir uma célebre distinção), nasce daí:
pedir sempre mais democracia em condições objetivas sempre mais
desfavoráveis. Há muito tempo nos foi explicado que nada é mais difí-
cil que fazer respeitar as regras do jogo democrático nas grandes orga-
nizações: e as organizações, a começar pela estatal, tornam-se sempre
maiores. (BOBBIO, 1987, p. 59).
A democracia direta não seria para o autor uma solução adequa-
da para o bom funcionamento das já supracitadas regras democráticas,
visto que as assembleias se limitariam, de forma piorada em relação aos
parlamentos, a raticar no mais das vezes por aclamação o que decide o
Executivo, e este investido de maneira carismática, no sentido em que esta
forma se opõe à democrática, e sendo este poder (o Executivo) muito mais
estável e irresistível que o de qualquer corpo representativo (Ibid., p. 59).
Uma segunda diculdade enfrentada pela democracia representa-
tiva nas sociedades modernas é mais complicada e origina-se do fato de que
Democracia e Direitos Humanos
95
o Estado moderno cresceu não apenas em suas dimensões, mas também
em suas funções. E este aumento das funções do Estado implica ademais
no crescimento do aparelho burocrático, que é um aparelho de estrutura
hierárquica e não democrática, de poder descendente e não ascendente.
É certo que esse caráter antidemocrático da burocracia estatal não permi-
te esquecer que o processo de burocratização é também consequência do
processo de democratização. Na medida em que o alargamento do sufrágio
permite sempre às novas massas levar suas reinvindicações ao vértice, o que
acarreta a exigência de que o Estado assuma novos deveres e, portanto,
novos ônus, já que obrigado a aumentar suas prestações de serviço deve
aumentar com isso seu aparelho (BOBBIO, 1987, p. 59-60).
Bobbio (1987) assinala que este é o velho e conhecido problema
do crescimento paralelo do Estado burocrático e do Estado democrático,
um problema insolúvel em si mesmo – daí o paradoxo –, que tem sido
abordado por diferentes estudiosos da política e cuja análise é importante
porque ajuda a tomar consciência das enormes diculdades a serem en-
frentadas pelas sociedades que se propõem democráticas. Deste modo, o
paralelo crescimento do Estado democrático e do Estado burocrático é
uma antiga ideia de todos aqueles que assistiram satisfeitos ou preocupa-
dos, ao crescimento do Estado moderno. Silvio Spaventa destacava há mais
de cem anos que:
Uma sociedade democrática, na qual foi proclamada a igualdade jurí-
dica de todos diante da lei tem exigências que impõem ao Estado um
número sempre maior de serviços e repartições, cujo objetivo é o de
criar as condições através das quais cada indivíduo possa, com sua pró-
pria atividade, conquistar um Estado que, de algum modo corresponda
à sua igualdade de direitos. Daí a necessidade de alargar sempre mais
os limites da administração comum, que cria sempre novas relações
entre cidadãos e o representante dessa administração comum, que é
justamente o Estado. (SPAVENTA, 1913, p. 556).
O terceiro paradoxo – de maiores dimensões – é resultado do
grande desenvolvimento técnico das sociedades industriais, sejam elas ca-
pitalistas ou socialistas. Nestas sociedades aumentam de forma contínua e
cada vez mais rápida os problemas cuja resolução exige soluções técnicas,
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
96
devendo ser conados a especialistas, de onde deriva a frequente tenta-
ção de governar unicamente através de técnicos ou da tecnocracia, o que
contraria as regras do jogo democrático e contrapõe, em permanência, o
técnico ao cidadão, conforme demonstra Bobbio:
O protagonista da sociedade industrial é o sábio, o especialista [...]
o protagonista da sociedade democrática é o cidadão comum, o ho-
mem da rua, o quiosque e populo. Não existe paralelo possível entre
as diculdades que teve que enfrentar o homem da sociedade arcaica
e aquelas com as quais nos defrontamos hoje. Para só dar um exem-
plo: quantos são os indivíduos que dominam os problemas econômi-
cos de um grande Estado e estão à altura de propor soluções corretas,
uma vez colocados certos objetivos? Ou, pior ainda, de indicar os
objetivos que devem ser alcançados a partir de certos recursos? E,
no entanto, a democracia se sustenta sobre a ideia – limite de que
todos possam decidir tudo. Pode-se exprimir o paradoxo ainda de
um outro modo: segundo o ideal democrático o único especialista
em negócios políticos é o cidadão (e, neste sentido, o cidadão pode-se
dizer soberano). Mas, na medida em que as decisões se tornam sem-
pre mais técnicas e menos políticas, não ca mais restringida à área
de competência do cidadão e consequentemente sua soberania? Não
é, portanto, contraditório pedir sempre mais democracia em uma
sociedade sempre mais tecnicizada? (1987, p. 61).
Segundo o autor, o reconhecimento desse paradoxo não signica
aderir à tecnocracia no sentido de acreditar que o aumento dos problemas
que envolvem soluções técnicas difíceis tende a eliminar a esfera dos tra-
dicionais problemas políticos. Para ele, o que ocorre é exatamente o con-
trário, já que o desenvolvimento técnico cria problemas políticos sempre
novos, embora não se possa negar que, hoje, reivindicar mais democracia
signica pleitear:
a extensão das decisões que competem àquele que, pelas condições
objetivas do desenvolvimento da sociedade moderna, se torna sempre
mais incompetente: o que é válido sobretudo no setor da produção,
justamente o que escapou até agora – tanto nos países de economia
capitalista como nos de economia socialista – a qualquer forma de con-
trole popular, e que é aquele no qual se vence ou se perde o desao
democrático. (Ibid., p. 61).
Democracia e Direitos Humanos
97
Note-se que Bobbio, desta vez, menciona com destaque a questão
da produção econômica e a importância decisiva do controle desta para o
avanço democrático. Mas apenas menciona, não analisa. Ele, aliás, malgra-
do sua enorme erudição, não se mostra afeito a analisar ou a incorporar
análises econômicas – e, ainda, as relações entre economia e política – em
seus escritos.
Tocqueville, em A Democracia na América (1977), escreveu na
primeira metade do século XIX sobre o que entendia ser a ascensão irresis-
tível da democracia – para a qual o melhor modelo enxergava nos Estados
Unidos – vinculada a um processo de ampliação da igualdade observado
por ele à época:
Por isso mesmo, o gradual desenvolvimento da igualdade é uma reali-
dade providencial. Dessa realidade, tem ele as principais características:
é universal, é durável, foge dia a dia à interferência humana; todos os
acontecimentos assim como todos os homens servem ao seu desenvol-
vimento. Seria prudente imaginar que um movimento social de tão
remotas origens pudesse ser detido por uma geração? Pode-se conceber
que, após ter destruído o sistema feudal e vencido os reis, irá a demo-
cracia recuar ante a burguesia e a classe rica? Agora que se tornou tão
forte, e tão frágeis os seus adversários, deter-se-á ainda? (1977, p. 13).
Subestimou Tocqueville, entretanto, o enorme poder dos burgue-
ses e dos ricos no sentido de mitigar a democracia. De fato, este poder
mostrou-se avassalador, restringindo a democracia sempre que esta pudesse
avançar sobre seus interesses. Prova contundente disto é que a democracia
não alcança a esfera econômica e que o próprio plano político – campo
por excelência da democracia formal – encontra-se limitado ou viciado
em razão do uso abusivo do poder econômico por parte de quem o detém.
Quanto à mencionada dimensão econômica, vale lembrar que a proprie-
dade privada está resguardada no âmbito das várias constituições de cunho
liberal. Isto se manifesta no fato de que ela (a propriedade privada) é cláu-
sula pétrea ou imutável, ou seja, que não pode ser objeto de modicação
(mesmo a partir de qualquer maioria) no âmbito das supracitadas consti-
tuições, inclusive da brasileira. Acrescente-se a isso o fato de que a esfera
eleitoral, essencial para a democracia, sofre inuência direta – e, em muitos
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
98
casos decisiva – da mídia (da qual Bobbio trata na sequência), controla-
da pelos detentores do poder econômico. Não estaria a democracia, nesse
caso, consolidando um governo de poucos?
Finalmente, o quarto e último paradoxo da democracia advêm do
contraste entre o processo democrático e a sociedade de massa, denindo-se
pelo desencontro entre a pressuposição de que a democracia assegura o livre
desenvolvimento das faculdades humanas e a constatação de que ela se faz
acompanhar, nas grandes sociedades, pelo processo de massicação e suas
conhecidas consequências em termos de um conformismo generalizado:
O doutrinamento característico das sociedades de massa tende a repri-
mir e a suprimir o senso de responsabilidade individual. A propaganda
bem organizada visa a tornar sempre menor o espaço reservado às es-
colhas pessoais ou racionais, às convicções não baseadas nas emoções
momentâneas ou na imitação passiva do comportamento dos demais.
Ao lado da indústria cultural, que suscitou tantas recriminações, existe
ainda uma indústria política em todos os países nos quais não se pode
governar sem um mínimo consenso das massas, isto é, onde existe um
processo de democratização. Como a indústria cultural nasce do acesso
de um número sempre maior de indivíduos à posse dos instrumentos
necessários para usufruir dos produtos da cultura, também a indústria
política nasce do alargamento das bases do poder, e prospera e cresce
à medida em que são postas em prática as instituições (do sufrágio
universal à formação dos partidos políticos organizados) que condu-
zem o princípio abstrato da soberania popular do mito à realidade.
(BOBBIO,1987, p. 62).
Observe-se que Bobbio reconhece que as grandes democracias
não podem prescindir de alguma forma de indústria política, na medida
em que se trata de sociedades em que todos os cidadãos, participando dire-
ta ou indiretamente tenham o direito de inuir na construção das decisões
políticas, não seria plausível conceber uma sociedade onde não fosse neces-
sária – de maneira mais ou menos intensa – a utilização de uma tecnologia
voltada para a organização do consenso.
Entretanto, o autor destaca a necessidade de avaliar as consequ-
ências de se empregar tais técnicas. Observa ele que uma das característi-
cas da democracia participativa são as chamadas manifestações de massa,
Democracia e Direitos Humanos
99
com suas passeatas e reuniões em praças públicas, dentre outras coisas.
Observando o caráter cívico de muitas destas manifestações destaca, não
obstante, o seu caráter de estímulo, bem como sua função na promoção
e conservação da solidariedade e da coesão do grupo. Ressalta também
Bobbio a necessidade de se reconhecer que a ecácia das manifestações
não possui vida longa, na medida em que com o término destas desaparece
com rapidez o excitamento provocado e, por conseguinte, a disposição
para a ação. O autor acrescentará:
que o hábito que manifestações desse gênero alimentam – com a repe-
tição obsessiva dos “slogans”, a exibição de cartazes com frases elemen-
tares, a gritaria agitada substituindo o pacato raciocinar, a intimação
(que persiste como tal, isto é, jogada ao vento) à discussão – é uma
das tantas formas de alienação de que é pródiga a sociedade massica-
da, e que atinge também aqueles que a condenam (e dela são vítimas
sem saber). Cada vez que, ao entrar na universidade, vejo novas frases
pichadas nas paredes, pobres de fantasia e vigor polêmico, meço, me-
lancolicamente, toda a distância que existe entre o homem-massa e o
cidadão (uso esta palavra no sentido rousseauniano). (Ibid., p. 63).
Bobbio considera que uma forma muito importante de amplia-
ção da democracia nas sociedades contemporâneas – e, com isso, a supera-
ção de muitos dos seus impasses – estaria vinculada à extensão do princí-
pio representativo a outras esferas que não aquelas estritamente políticas.
Trata-se da passagem da democracia unicamente política à democracia so-
cial. O autor entende esta ampliação como essencial, na medida em que
o indivíduo não será exclusivamente considerado de modo genérico como
cidadão, o que ocorre na esfera política, mas sim na sua multiplicidade de
status, nas muitas instituições ou organizações que compõem a sociedade
civil, tais como a família, a escola ou a fábrica, dentre outras. Tendo já
sido alcançado em grande parte dos países o direito à participação política,
representado pela extensão do sufrágio universal masculino e feminino,
manifestado na possibilidade de escolher representantes para os poderes
Legislativo e Executivo nos diferentes âmbitos (federal, estadual e muni-
cipal), trata-se agora de estender este direito à participação e deliberação a
outras esferas da sociedade. Nesse sentido, observa:
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
100
Hoje quem deseja ter um indicador do desenvolvimento democrático
de um país deve considerar não mais o número de pessoas que têm o
direito de votar, mas o número de instâncias diversas daquelas tradi-
cionalmente políticas nas quais se exerce o direito de voto. Em outros
termos, quem deseja dar um juízo sobre o desenvolvimento da demo-
cracia num dado país deve pôr-se não mais a pergunta “Quem vota?”,
mas “Onde se vota?”. (BOBBIO, 2007, p. 157).
Tendo em vista esse contexto, nalmente, Anderson analisa os ar-
gumentos de Bobbio em relação à democracia, conduzindo seu raciocínio
para uma conclusão sobre o impasse da análise bobbiana no que se refere
às suas críticas dirigidas à democracia representativa. Este é um impasse
ligado ao fato de que Bobbio analisa o que entende serem as diculdades
ou deciências da democracia representativa tal como ela vem se realizan-
do nas sociedades contemporâneas, procurando, com isso, demonstrar a
possibilidade da superação desses limites através da extensão dos próprios
princípios democráticos representativos, de modo que eles possam alcan-
çar de forma ampla o Estado e a sociedade civil. Nas suas palavras:
Não pode haver dúvida quanto à sinceridade de suas propostas. Mas
como uma tal crítica pode ser relevante para uma ordem política
incapaz sequer de realizar seus próprios princípios no interior de seus
limites atuais – e não por falta de vontade subjetiva, mas sob o peso
de irresistíveis pressões objetivas? Ou bem a democracia representativa
está fatalmente destinada a uma contração de sua substância; ou
bem ela é potencialmente receptiva a uma extensão dessa substância.
As duas coisas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo [...].
(ANDERSON,1989, p. 33).
Bobbio considera ter a democracia um caráter subversivo, na
medida em que subverte as concepções tradicionais de poder, segundo as
quais estas várias dimensões – política, econômica, sacerdotal, patriarcal
– descem de uma esfera superior para uma inferior, ou seja, do alto para
baixo. Ele considera também a democracia mais subversiva que o próprio
socialismo, considerando-se este de modo adequado como corresponden-
do à socialização dos meios de produção, qual seja, a transferência da pro-
Democracia e Direitos Humanos
101
priedade econômica destes da esfera privada para o Estado, por excelência
uma forma descendente de poder. Ademais, observa o autor:
Tão subversiva é a democracia que se fosse realmente e plenamente
realizada, segundo a ideia limite de Rousseau, seria ela, e não a
hipotética sociedade sem classes, o m do Estado, a sociedade sem
Estado (porque o Estado, qualquer Estado que tenha existido até hoje,
nunca pode dispensar as relações de poder descendente). Apesar de
Marx e de cem anos de socialismo prático e realizado, o problema
fundamental do homem moderno, problema não resolvido (resolvível?)
é aquele que foi colocado, ainda que através de fórmula sugestiva mas
ambígua, por Rousseau: como pode o indivíduo, alienando a própria
liberdade ao corpo político do qual faz parte, ser... “mais livre que
antes?” (BOBBIO, 1987, p. 64).
De todo modo, se a democracia – como considera Bobbio – é
realmente subversiva, é plausível pensar que ela (democracia representativa)
possa superar barreiras até então não superadas, sendo receptiva a uma
extensão de sua substância. É possível, deste modo, pensar que ela possa
ser estendida às várias esferas da sociedade, inclusive a econômica, além de
subverter todas as outras concepções tradicionais de poder. Nesse caso, ter-
se-ia uma integração entre democracia formal e democracia substancial,
numa forma que seria capaz de realizar em grau elevado os ideais supremos
de liberdade e igualdade.
referêNcias
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1989.
BOBBIO, N. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
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Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
102
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SPAVENTA, S. Discorsi parlamentari. Roma, 1913.
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte:
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103
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1
Assis Brandão
iNtrodução
Bobbio é um dos maiores pensadores liberais do século XX e é
provavelmente o italiano que mais e melhor pensou a democracia nesse
século. Antes de tornar-se liberal-democrata, no entanto, teve alguma
militância no fascismo, que detinha base de apoio relativamente ampla na
Itália, incluindo os seus familiares, por meio dos quais lhe foi transmitida a
ideologia mussoliniana. Em carta, datada de 1935, ele arma:
“Cresci num ambiente patriótico fascista (meu pai, cirurgião-chefe
do Hospital S. Giovanni desta cidade, está inscrito no PNF desde
1923, um dos meus dois tios paternos é general-do-exército em Ve-
rona, o outro é general-de-brigada na escola de Guerra)” (BOBBIO,
1998, p. 26-27).
Este artigo discute e desenvolve a relação entre a democracia e o liberalismo em Norberto Bobbio, um tema
que está presente em minha Tese de Doutorado, A concepção de democracia em Bobbio, defendida no Doutorado
em Ciências Humanas: Sociologia e Política da UFMG, em 2001.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p103-122
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
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O próprio Bobbio chegou a estar inscrito no PNF (Partido
Nacional Fascista) e no GUF (Grupo Universitário Fascista). De qualquer
maneira, por volta dos seus 26 anos, quando, em Turim, escreveu essa carta
– ele nasceu em 1909 –, já abandonara o fascismo, tornando-se opositor
ao regime.
Em um artigo sobre a relação entre a democracia e o liberalismo
em Bobbio, a referência a esse primeiro período da sua militância política
pode parecer algo supéruo, posto que o fascismo nega, como sempre ob-
servado por ele, tanto uma como o outro. No entanto, o fato de focarmos a
referida relação em perspectiva histórica obriga-nos, para dar maior clareza
à trajetória política do autor, a essas breves observações. Inclusive, ao que
parece, ele não considera esse período como fazendo parte da sua formação
política. “Minha educação política”, observa, “não veio da família, mas da
escola” (BOBBIO, 1998, p. 10). Nesta, em contato com grupos antifas-
cistas, ele foi progressivamente se distanciando do regime de Mussolini e
dando nova direção para a sua vida política.
Ao abandonar o fascismo, Bobbio torna-se ao mesmo tempo li-
beral e socialista, ou, aglutinando os dois termos, liberalsocialista. Na re-
alidade, na Itália, havia dois grupos que procuravam juntar liberalismo e
socialismo, cada um ao seu modo. Um desses grupos, organizado em torno
das ideias de Carlo Rosselli, autor da obra Socialismo liberale, era conheci-
do como socialistaliberal. O outro, que girava em torno de dois professores
do ensino superior da cidade de Pisa, Aldo Capitini e Guido Calogero,
era o liberalsocialista. Segundo Bobbio (1997, p. IX), “o socialismo liberal
poderia ser denido como um socialismo de direita e o liberalsocialismo,
ao contrário, como um liberalismo de esquerda”.
Bobbio recebeu inuência de ambos, e quando Socialistas Liberais
e Liberalsocialistas fundaram o Partido da Ação, em 1942, ele integrou-se
ao mesmo. O partido, no entanto, teve vida breve. Finda a sua missão
fundamental de luta antifascista, não conseguiu sobreviver ao processo
eleitoral para a constituinte, em 1946. Com votação pía – apenas 1,5%
dos votos –, o seu Conselho Nacional resolveu, em 1947, integrá-lo ao PSI
(Partido Socialista Italiano). Pelo Partido da Ação, Bobbio tentou, sem su-
cesso, eleger-se constituinte na circunscrição Pádua-Vicenza-Verona. Essa
Democracia e Direitos Humanos
105
foi a única disputa eleitoral de sua vida. Derrotados o Partido da Ação
e Bobbio nas eleições constituintes, o primeiro extingue-se e o segundo
refugia-se na Universidade. Nesse período, a Itália inicia o seu processo de
reconstrução sob a égide da Democracia Cristã.
O objetivo deste artigo é focar a relação entre democracia e libe-
ralismo em Bobbio, em termos históricos, a partir do momento em que ele
se torna liberalsocialista, etapa que se cristaliza em seu período acionista, até
os anos 80 do século passado. A meu ver, existem, de forma mais destacada,
nesses pouco mais de 50 anos de reexão política bobbiana, duas concepções
de democracia e uma de liberalismo. Assim, procurarei mostrar quais são
essas concepções de democracia, a concepção de liberalismo e a relação entre
elas ao longo do tempo, tendo por marco temporal a ideia de década.
No que se relaciona às duas concepções de democracia, elas
são a ética e a procedimental. A concepção ética é esgrimida
pelo autor na década de 40 do século passado, em seu período acionis-
ta; a procedimental, da década de 50 em diante. A concepção ética é
participativa; a procedimental, ora mais participativa, ora mais elitista.
A concepção ética de democracia é a concepção de um Bobbio mais
jovem, mais otimista, que dava mais relevância à participação da cida-
dania e acreditava na democracia como uma forma de governo capaz
de educar os cidadãos para a liberdade. A concepção procedimental é a
concepção de um Bobbio mais maduro, mais realista, ora mais ora me-
nos desencantado com as possibilidades da democracia, ora mais ora
menos participativo, que acreditava na democracia desprovida de sua
natureza ética, apenas como um procedimento. (BRANDÃO, 2013,
p. 140-141).
Quanto ao liberalismo, esse também apresenta as suas particula-
ridades. Segundo Perry Anderson (1989, p. 23), o liberalismo de Bobbio
é uma doutrina de direitos cívicos e liberdade individual de pura estirpe
anglo-saxônica, cuja fonte de inspiração principal vem das obras de John
Stuart Mill sobre O governo representativo e a Liberdade”. Na realidade,
Bobbio é um liberal não-liberista. Como em Croce, o liberalismo, em
Bobbio, é um fenômeno não-econômico. Croce (s/d, p. 48-49) dividia a
percepção global do liberalismo em duas partes, liberalismo e liberismo.
Por “liberismo”, ele entendia o liberalismo econômico. E por “liberalis-
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
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mo”, o que tradicionalmente é entendido por liberalismo ético ou político.
E achava que um podia existir sem o outro. Croce era apenas liberal, nunca
foi socialista ou, mesmo, sequer, democrata. Bobbio, liberal e socialista, em
termos crocianos, é um liberal não-liberista. Ou seja, defendia o liberalismo
político, mas nunca morreu de amores pelo mercado, sendo contrário ao
liberalismo econômico, cujos males sempre foram foco de suas denúncias.
Por m, no que tange à ideia de década, ela é um recurso utili-
zado por mim em outro trabalho (BRANDÃO, 2001), para pesquisar a
democracia no autor italiano, que, visto cum grano salis, parece-me adequa-
do para atribuir marcos temporais à sua reexão. Como é evidente, toda
periodização envolve alguma arbitrariedade. Esta não poderia ser diferente.
De qualquer maneira, ao optar por uma abordagem temporal em termos
de décadas – sempre tomadas de maneira mais ou menos exível –, acredi-
to não estar incorrendo em arbitrariedade absoluta, posto que há mudan-
ças sensíveis na reexão do autor, de década a década – pelo menos no que
tange àquela sobre a democracia –, que, a meu ver, funcionam como uma
espécie de âncora substantiva, dando credibilidade à periodização.
Isto posto, desenvolverei o artigo de acordo com as diretrizes que
seguem: 1. Focarei a relação entre a democracia e o liberalismo na década
de 40, que corresponde mais ou menos ao período acionista do autor, pe-
ríodo em que defendia uma democracia ética e participativa. 2. Verei essa
mesma relação nas décadas seguintes, período em que defendia a democra-
cia procedimental, ora mais ora menos participativa. Essa segunda seção
será constituída por subseções referentes às décadas de 50, 60, 70 e 80.
relação democracia e liberalismo Na década de 40.
Período acioNista.
Os anos em que Bobbio esteve envolvido com o Partido da Ação
são aqueles em que apresentou posições políticas mais à esquerda. Inclusive,
os 20 meses da Resistência – entre 8 de setembro de 1943 e 25 de abril
de 1945 –, zeram-no despertar alguma simpatia pelo Partido Comunista
Italiano. Não no sentido de adesão, pois nunca foi marxista. No entanto,
Democracia e Direitos Humanos
107
referindo-se ao período, ele diz: “Eu era um daqueles que acreditavam na
força já irresistível do Partido comunista [...] [e] pensava que os intelectu-
ais deveriam agir junto com as novas classes para uma radical reforma da
estrutura do Estado Italiano” (BOBBIO, 1955, p. 199). A ação abnegada
dos comunistas na Resistência dera-lhes notável autoridade política. De
qualquer maneira, Bobbio e os acionistas acreditavam no socialismo com
liberdade, qualidade que percebiam inexistir no socialismo marxista.
O Bobbio acionista defendia uma democracia participativa, cons-
tituída por três pilares fundamentais: a participação ativa da cidadania, o
federalismo e a “democracia direta”. É no âmbito da discussão sobre esses
pilares que se expõe a visão do autor sobre o liberalismo, a democracia e a
relação entre ambos no período.
Ao enfatizar a participação ativa da cidadania, Bobbio (1996a,
p. 28) destaca a necessidade de que a democracia seja vista etimologica-
mente como governo do povo, mesmo que não entre em maiores deta-
lhes sobre os seus contornos institucionais. Sua preocupação é destacar a
natureza participativa dessa democracia. Com isso, ele procura demarcar
a separação que existe entre sua ideia de democracia e a democracia que
existia antes do advento do fascismo. Sua inspiração vinha do futuro, e não
do passado. Suas perspectivas eram otimistas. Na democracia pré-fascis-
ta havia um completo vazio de participação. Era uma liberal-democracia
quase apenas liberal e pouco ou quase nada democrática. Nela, havia um
amplo fosso separando o Estado da sociedade civil. “Em um Estado assim
constituído”, observa, “a separação entre indivíduo e Estado permanece
profunda, impreenchível” (BOBBIO, 1996a, p. 28). Nesse contexto, ele
aborda criticamente o pensamento liberal. Reconhece o seu lado historica-
mente progressista na luta pela armação dos direitos de liberdade contra
o Estado absolutista, mas o vê como patrocinando a organização do Estado
liberal, que se transformou “em um instrumento dócil do poder de quem
primeiro lhe põe as mãos” (apud SBARBERI, 1994, p. 22). Este Estado
expunha-se como uma comunidade apenas ctícia, deixando-se apreender
pela burguesia e excluindo a grande maioria da cidadania. No entanto, ele
arma, de maneira ao mesmo tempo crítica e propositiva, que a “democra-
cia hoje quer dizer, antes de tudo, dar o Estado aos cidadãos, preencher, o
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
108
quanto for possível, a separação entre indivíduo e Estado, em suma trazer
novamente o Estado ao nível dos homens” (BOBBIO, 1996a, p. 29).
No que tange ao federalismo, Bobbio foca o tema reetindo so-
bre as questões do debilitamento do poder estatal e da sua descentraliza-
ção. O federalismo apresentaria duas faces, a externa e a interna. Ambas
contribuiriam para o enfraquecimento do poder dos Estados unitários, a
primeira, por meio da transferência de parte da sua soberania para uma fe-
deração europeia, e a segunda, pelo fortalecimento da autonomia local. O
princípio do federalismo é visto pelo autor, nas pegadas de Cattaneo, como
uma teoria da liberdade. Para Cattaneo, “O Estado unitário, enquanto tal
não pode não ser autoritário e, portanto, no m, cesarista e despótico, por-
que a unidade é, por si mesma, sufocadora das autonomias, da livre inicia-
tiva, em uma palavra, da liberdade” (BOBBIO, 1971, p. 21). Em sua face
interna, de acordo com Bobbio, o federalismo propugna uma sociedade
civil constituída por um conjunto de instituições de autogoverno popular.
Seriam fábricas, escolas, estruturas prossionais, etc., todos participativos.
“Hoje”, diz Bobbio (1996a, p. 17), “sabemos que a democracia progride
não tanto em proporção à extensão meramente quantitativa do sufrágio,
quanto proporcionalmente ao multiplicar-se das instituições de autogover-
no.” Ao mesmo tempo, no âmbito do Estado, de maneira descentralizada,
a cidadania, a partir das comunas, participaria do governo e da adminis-
tração pública. Estado e sociedade seriam, assim, participativos. Na reali-
dade, o temor bobbiano em relação ao Estado unitário é uma preocupa-
ção simultaneamente liberal e democrática. É o temor liberal ao Estado
todo-poderoso, mas é, também, a desconança democrática em relação ao
Estado vazio de participação. A solução federalista é, igualmente, um misto
de liberalismo e democracia. Ela é liberal ao apostar na descentralização
do poder como forma de debilitar o Estado unitário. E é democrática,
ao pleitear que essa descentralização seja feita através do autogoverno das
estruturas descentralizadas de poder.
Por m, no que diz respeito à “democracia direta”, esta, apesar
do nome, é representativa. Segundo Bobbio, “hoje, as demandas da nova
democracia vão no sentido da instituição de uma ‘democracia direta’, não
no sentido abstrato e puramente ideológico de Rousseau, que deseja a eli-
Democracia e Direitos Humanos
109
minação de toda forma de representação, mas [...] no sentido de uma co-
laboração efetiva de todos os cidadãos ativos na coisa pública, através da
descentralização máxima, por meio da multiplicidade das instituições re-
presentativas, graças à vivicação do Estado, quer dizer, da vontade geral de
proposição e de deliberação em todo pequeno centro habitado, toda oci-
na, em todo lugar onde se trabalha e se constrói” (apud SBARBERI, 1994,
p. 24). A particularidade da “democracia direta”, ou melhor, da democracia
representativa bobbiana, está em seu caráter participativo. A existência do
princípio federalista em ação, levando à descentralização das estruturas de
poder da sociedade, permite a ocorrência de um número variado de insti-
tuições representativas, em torno das quais gira uma ampla participação da
cidadania. A multiplicidade descentralizada de instituições representativas,
colocando as referidas instituições mais próximas dos seus membros, em
um contexto de uma sociedade participativa, pode aproximar sobremanei-
ra a democracia representativa da democracia direta, mesmo que elas não
possam, de maneira alguma, ser confundidas. A “democracia direta” de
Bobbio, rigorosamente, nunca deixou de ser representativa.
As preocupações de Bobbio em torno da participação, da des-
centralização e da autonomia nunca estiveram distantes do liberalismo,
mesmo que seja evidente que nesse momento da sua vida o foco da sua
atenção voltava-se principalmente para a liberdade positiva, e não para a
liberdade negativa, ou, de outro modo, mais para a liberdade democrática
do que para a liberdade liberal.
O liberalismo aparece no contexto da discussão democrática do
Bobbio acionista sob vários ângulos. Em primeiro lugar, há a ideia de que
os acionistas defendiam um socialismo com liberdade, em contraposição
ao apresentado pelos marxistas. Nesse registro, o foco principal tende a
ser a ausência dos direitos de liberdade clássicos no socialismo defendido
pelo PCI, algo inaceitável para os acionistas. Em segundo lugar, ao criti-
car a liberal-democracia pré-fascista, ele parece reconhecer nesse regime
político a existência dos direitos de liberdade clássicos, vistos como fun-
damentais, mas percebe o Estado liberal como facilmente apreensível pela
burguesia, excluindo da participação a maior parte da cidadania, o que
ataca fortemente. Em terceiro lugar, ao propugnar uma ampla participação
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
110
da cidadania, expõe o temor do totalitarismo, que acolheria uma espécie
de panpoliticismo das ações humanas, deletério para a liberdade dos indi-
víduos. A participação, portanto, deveria ser ampla, mas sem estender-se
além do âmbito em que o indivíduo é portador de um interesse comum
(BOBBIO, 1996a, p. 83). Por m, em quarto lugar, ao criticar a centra-
lização do Estado unitário em nome do federalismo, esgrime a ideia de
que este tipo de Estado é sempre autoritário e vincula a descentralização à
liberdade, um tema clássico de inspiração liberal.
O Bobbio acionista era inquestionavelmente mais democrático
do que liberal. Essa particularidade do seu pensamento torna-se explícita
no processo da defesa que faz da democracia ética e participativa enquanto
critica a liberal-democracia existente no período pré-fascista. Entretanto,
ele não deixa de ser liberal. Apenas a maior ênfase do seu pensamento recai
sobre a liberdade como autonomia, e não sobre a liberdade como não-im-
pedimento. Vemos, inclusive, que, no bojo da discussão que faz relativa à
democracia participativa, o autor lança mão de princípios do liberalismo
para auxiliar na sua conguração.
Bobbio defendia nesse momento a democracia ética e participati-
va e acreditava no caráter desenvolvimentista da participação, que educaria
os homens para liberdade. Essa democracia, no entanto, manteve-se em
termos de um ideário, sem concreção histórica. A reconstrução da Itália
pós-fascista deu-se sob a direção da democracia cristã, que esgrimia ideias
sobremodo distintas daquelas do ex-professor da Universidade de Turim.
relação democracia e liberalismo No Período ProcedimeNtalista.
a. década de 50.
A democracia procedimental, defendida por Bobbio a partir da
década de 50, representa uma virada em sua concepção de democracia. Antes,
defensor da democracia ética, por inuência de Kelsen, passou a defender a
democracia procedimental. “Kelsen”, arma Bobbio, (1998, p. 134), “ocupa
um lugar fundamental não apenas nos meus estudos sobre a teoria do direito,
mas também de teoria política. A ele devo o fato de ter-me tornado um
Democracia e Direitos Humanos
111
sustentador da chamada concepção processual da democracia”. Em outro
local, com outras palavras, ele repete mais ou menos a mesma ideia: “Não
esqueço que, então, eu sustentava a concepção ética da democracia a que
sobrepus, em seguida, aquela concepção procedimental que o próprio Kelsen
havia atingido” (BOBBIO, 1996a, p. 105). Além da inuência de Kelsen,
cabe destacar a realidade adversa da Itália do período da reconstrução, pouco
propício ao otimismo participativo do Bobbio acionista.
São duas as características principais do procedimentalismo bob-
biano do período. Em primeiro lugar, está o fato de esse procedimenta-
lismo, pouco desenvolvido, não apresentar ainda as regras que o consti-
tuem. Há a ideia do método, mas inexistem denidas as referidas regras.
Em segundo lugar, está a existência, em sua conguração, de uma base de
conteúdos. A liberal-democracia é acolhida enquanto um procedimento –
portanto, um método – que realiza ns explícitos: os direitos de liberdade
clássicos, civis e políticos.
Em Política e cultura, a mais destacada obra de Bobbio dos anos
50, a relação entre o liberalismo e a democracia expõe-se no âmbito da
polêmica do autor com os comunistas italianos. Bobbio defendendo a li-
beral-democracia e a indissolubilidade entre o liberalismo e a democracia
e os comunistas argumentando em favor da ditadura do proletariado. Os
argumentos de Bobbio são sobremodo sólidos e persuasivos. Destaca-se
a ideia de que as liberdades clássicas, civis e políticas, tendo sido criadas
no momento em que ascendia socialmente a burguesia, tinham valor uni-
versal. Temos aqui a problemática da gênese e da validade desses direitos.
Para o autor, eles haviam sido gerados pela burguesia, mas sua validade
estava além dos interesses dessa classe, ganhando contornos universais. Ele
criticava na ditadura do proletariado a sua inexistência e arguia pela supe-
rioridade da liberal-democracia, em que eles ocorriam.
A relação entre o liberalismo e a democracia se apresenta aqui de
maneira bastante diferente de como se apresentava no período acionista.
Inclusive, a própria liberal-democracia, que havia sido criticada duramente
nesse período, passa a ser vista como o melhor dos regimes políticos. O li-
beralismo torna-se um pressuposto para a existência da democracia. Como
esta, na modernidade, surge, historicamente, depois do primeiro, Bobbio
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
112
(1995, p. 177-178) arma que ela é “um corretivo, uma integração, um
aperfeiçoamento” do mesmo, não sendo nem a sua “substituição”, nem a
sua “superação”. Eles tornam-se indissolúveis. Essa ideia de indissolubili-
dade é algo que não está presente em sua reexão anterior. “Mas há não
apenas a percepção da referida indissolubilidade, termina por existir tam-
bém uma profunda valorização do legado político liberal quando de sua
incorporação na democracia, uma temática que igualmente inexistia na
reexão política do Bobbio acionista” (BRANDÃO, 2001, p. 82).
Na realidade, essa virada mais liberal e menos democrática da
reexão do autor termina por implicar o abandono, por ele, de todos os
três pilares fundamentais constitutivos da sua defesa da democracia parti-
cipativa: a participação ativa da cidadania, o federalismo e a “democracia
direta”.Agora, o que resta é a estrutura representativa clássica da liberal-de-
mocracia tradicional, mais ou menos centralizada e apática.
b. década de 60.
A marca distintiva da reexão democrática de Bobbio na década
de 60 é o seu foco em torno da teoria das elites e do elitismo democrático.
Após abandonar a democracia ética do período acionista e inserir-se no
âmbito do procedimentalismo democrático, ele envereda pela discussão
da teoria das elites e do elitismo democrático, incorporando o último e
acolhendo alguns dos pressupostos da primeira, mesmo que em registro
particular. O resultado é um procedimentalismo destacadamente elitista. A
obra emblemática desse período é Saggi sulla scienza politica in Italia. Nela,
o autor explicitamente não apenas acolhe a teoria das elites como procura
colocá-la em compasso com a democracia.
O primeiro texto de Bobbio focando as elites é a conferência
“Quale Democrazia?”, de 1959, que, embora ainda da década de 50, já traz
o espírito das discussões presentes em Saggi sulla scienza politica in Italia.
Nessa conferência, ele arma, em confronto com suas ideias acionistas, que
a concepção de que a democracia consiste “no autogoverno do povo é um
mito que a história continuamente desmente” (apud MEAGLIA, 1994, p.
56). Acrescenta que a história, dando razão a Mosca e a Pareto, tem mos-
Democracia e Direitos Humanos
113
trado que “em todos os Estados quem [...] governa é sempre uma minoria,
um pequeno grupo, ou vários grupos minoritários em concorrência entre
si” (apud MEAGLIA, 1994, p. 56). E vincula a teoria das elites à democra-
cia, destacando que “as democracias se expandem em todo o mundo, mas
as classes políticas permanecem” (apud MEAGLIA, 1994, p. 56).
Para o autor, portanto, a existência das elites é uma dimensão da
realidade factual. Em sua opinião, “que as minorias guiem e as maiorias
sejam guiadas, manobradas, manipuladas, mesmo nos sistemas democrá-
ticos – falo daqueles reais, não daqueles apenas imaginados – é um fato
(BOBBIO, 1996b, p. 198). Desta forma, temos as elites – que existem e
persistem – incorporadas à democracia.
Nesse diapasão, podemos armar que a característica mais
expressiva do procedimentalismo democrático do autor nos anos 60 é a sua
aproximação com a teoria das elites. É igualmente relevante a observação
de que nesse procedimentalismo à inuência de Kelsen é aduzida aquela
de Schumpeter, por meio da ideia de concorrência entre elites. Por m,
parece-nos digno de menção a circunstância de que também nesse período
– como na década anterior – ainda não se faziam presentes as famosas
regras do jogo” da democracia bobbiana.
Voltando a nossa atenção para o liberalismo, vemos que ele se
congura como o conjunto de liberdades que possibilitam a realização da
livre concorrência entre partidos, que é uma condição fundamental para a
ocorrência de eleições livres no âmbito do elitismo competitivo. É o libe-
ralismo ajudando a constituir e chancelando a ideia de democracia elitista.
Liberalismo e elitismo entrelaçam-se aqui na conguração de uma demo-
cracia esvaziada de participação popular e oligarquizada.
Essa democracia, como a da década anterior, relaciona-se com o
liberalismo de forma integrativa, mas com a predominância deste. Dentre
as liberdades, liberal e democrática, a ênfase recai sobre a primeira em
detrimento da última. No elitismo democrático, desaparece a ideia da ci-
dadania ativa, restando ao cidadão tão-somente a participação eleitoral.
Nesse sentido, não podemos falar de verdadeira autonomia da cidadania,
em sua acepção clássica. O cidadão pouco participativo, no entanto, é livre
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
114
e independente para realizar os seus objetivos e interesses privados, inclusi-
ve para participar, ou não, de eleições.
c. década de 70.
Na década de 70, o procedimentalismo democrático bobbiano
sofre uma inexão no sentido de acolher maior participação popular. Essa
mudança está expressa principalmente em “Qual Socialismo?”, de meados
dessa década. Nessa obra, Bobbio recupera algo do espírito participativo
do período acionista, distanciando-se da perspectiva das duas décadas se-
guintes, em que a participação era pouco relevada. A democracia passa a
ser entendida como
um conjunto de regras – as chamadas ‘regras do jogo’ – que per-
mitem a mais ampla e mais segura participação da maior parte dos
cidadãos, seja de forma direta, seja de forma indireta, nas decisões
políticas, isto é, nas decisões de interesse de toda a coletividade
(BOBBIO, 1979a, p. 34).
Antes, ele a via como o regime político em que a “classe política
era escolhida por via eleitoral. O foco, assim, muda da forma de esco-
lha dos chefes para as regras que permitem a participação da cidadania
(BRANDÃO, 2001, p. 101).
A referida inexão ocorre no âmbito da segunda polêmica de
Bobbio com os comunistas italianos – a primeira aconteceu nos anos 50.
Ele critica a ausência de uma doutrina marxista do Estado – no sentido
de não haver um Estado alternativo, socialista e democrático, ao Estado
liberal-burguês – e defende a democracia representativa contra qualquer
tentativa de substituí-la pela democracia direta. No entanto, ao defender
a democracia representativa, o faz acolhendo um nível relativamente alto
de participação da cidadania, ao contrário das duas décadas anteriores, em
que essa defesa era feita em contexto de completo vazio participativo.
As três características principais do procedimentalismo dos anos
70 são as seguintes: 1. Nele já existem denidas as famosas “regras do jogo
democrático. 2. Ele é mais participativo. 3. É realista. Em primeiro lugar,
Democracia e Direitos Humanos
115
quanto às regras do jogo, elas, em número de seis, resumidamente, são
assim compostas: a) todos os cidadãos votam; b) o voto de todo cidadão
tem peso igual a um; c) os cidadãos devem ser livres para votarem entre
propostas que lhe são oferecidas em livre concorrência; d) deve haver al-
ternativas reais para a escolha dos cidadãos; e) as decisões são tomadas por
maioria; e f) nenhuma decisão de maioria deve tolher os direitos da mino-
ria, máxime o de vir a tornar-se maioria (BOBBIO, 1979a, p. 34). Essas
regras, tomadas em conjunto, constituem o método democrático. Em tese,
elas são apenas um meio, e não um m. Mas, evidentemente, incorporam
em seu seio uma série de conteúdos relativos à democracia e ao liberalismo,
tais como igualdade, liberdade, participação, tolerância, etc. Em segundo
lugar, ele é mais participativo, porque o autor pretende ampliar a sua utili-
zação no âmbito do próprio Estado e levá-lo para as instituições da socie-
dade civil, isto é, avançar da democracia política para a democracia social.
Bobbio (1979b, p. 244) resume essa sua perspectiva, armando que “o
problema atual do desenvolvimento democrático não pode mais interessar
a ‘quem’ vota, mas a ‘onde’ se vota”. Ele concebe a sociedade de maneira
pluralista, com múltiplos focos de poder democratizado. Em terceiro lugar,
é realista, no sentido de perceber as diculdades existentes para a realização
dessa ampliação democrática. Essas diculdades são apresentadas por ele
sob o título de “os paradoxos da democracia” e signicam a necessidade de
pleitear mais e mais democracia sob condições cada vez mais adversas, pela
existência de fenômenos tais como a burocracia, a tecnocracia, a sociedade
de massa e a “lei de ferro” da oligarquia.
Observamos que não há no procedimentalismo bobbiano da dé-
cada de 70 a natureza utópica da democracia ética dos anos 40. Ele é realis-
ta. Também não há nele seja a ideia de trazer o Estado ao nível dos homens,
seja o ímpeto cattaneano contra o Estado unitário, presentes nessa demo-
cracia. Porém, existe sensível ênfase participativa – algo que não acontece
no procedimentalismo das décadas de 50 e 60 –, que ocorre no contexto
de existência da própria liberal-democracia, para a qual não haveria mais
alternativa, pois o liberalismo passou a ser parte integrante da democracia
moderna (BRANDÃO, 2001, p. 109).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
116
O liberalismo é percebido historicamente por Bobbio através de
um quadro muito claro. Ele é um fenômeno moderno anterior à democra-
cia moderna. Surge na luta contra o poder absoluto, procurando estabe-
lecer-lhe limites, através do respeito a direitos fundamentais dos homens,
tais como a liberdade de pensamento, expressão, religião, etc. O derrube
das monarquias absolutas permitiu o reconhecimento desses direitos atra-
vés do advento dos estados liberais, que eram representativos, mas não
democráticos (BRANDÃO, 2001, p. 122-123). Os Estados liberais, no
entanto, foram progressivamente se tornando democráticos com a amplia-
ção da cidadania política até alcance do sufrágio universal, que permitiu
o surgimento das liberal-democracias. De acordo com Bobbio (1992, p.
324), essa transição “consiste numa transformação mais quantitativa do
que qualitativa do regime representativo”, surgindo a democracia, não
como uma alternativa para ele, mas como o “seu complemento”, de ma-
neira a funcionar como uma espécie de “correção” para o mesmo.
Assim, a relação entre a democracia e o liberalismo é vista, aqui
também, de forma integrativa. Há uma articulação entre ambos na con-
guração do método democrático, que incorpora valores tanto de um quan-
to da outra. Depois de integrados nas liberal-democracias, eles se tornam
praticamente inseparáveis, no sentido que já não pode existir um sem o
outro. “Na história do Estado moderno”, diz Bobbio (1995, p. 63), “as
duas liberdades (a liberdade liberal e a liberdade democrática) são estrita-
mente coligadas e interconexas, de tal sorte que onde cai uma cai a outra.
Mais precisamente, sem a liberdade civil, como a liberdade de imprensa
e de opinião, como a liberdade de associação e de reunião, a participação
popular no poder político é um engano; mas, sem participação popular no
poder, as liberdades civis têm poucas probabilidades de durar”.
Salientamos, no entanto, que a integração entre as liberdades liberal
e democrática nos anos 70 se dá sem a preponderância da primeira, como nas
duas décadas anteriores, mas com alguma inclinação para a última, principal-
mente em razão do destaque dado por Bobbio à participação nesses anos.
Democracia e Direitos Humanos
117
d. década de 80.
O procedimentalismo Bobbiano dos anos 80 não é muito di-
ferente daquele da década anterior. Talvez a diferença mais signicativa
esteja no fato de haver no procedimentalismo desses anos,comparativa-
mente, uma tendência elitista mais destacada. Enquanto na década de 70
sobressaía a ênfase participativa do procedimentalismo, na década seguinte
a reexão de Bobbioapresenta certa tensão: em alguns textos, há a conti-
nuidade dessa ênfase e, em outros, produzidos mais ou menos no mesmo
período, contraditoriamente, aparece o destaque elitista, congurado pela
presença de alguma racionalização sobre a apatia política.
Em “Democracia socialista?”, texto da década de 70, por exem-
plo, Bobbio, voltando-se contra os autores que justicam a apatia política,
argumenta que, nesses autores, ela “é interpretada, erradamente, como ex-
pressão do máximo grau de consenso do sistema” (BOBBIO, 1983, p. 33).
Em outro texto do mesmo período, “Qual democracia?”, ele argui contra
a apatia política – juntamente com a manipulação do consentimento –,
armando que ambas “são dois vícios que acompanham o processo de
democratização independentemente das diculdades de outro tipo encon-
tradas no seu caminho” (BOBBIO, 1979b, p. 246). Os textos dessa década
vão todos nessa direção.
Na década de 80, a apatia política, contraditoriamente, é ora
louvada, ora combatida.Essas duas tendências estão expressas em artigos
contidos em O futuro da democracia, a principal obra do autor no período.
No artigo “Os vínculos da democracia”, de 1983, arma que nas democra-
cias modernas “a abstenção do voto aumentou, mas até agora de maneira
não-preocupante; de resto, a apatia política não é de forma alguma um
sintoma de crise de um sistema democrático, mas, como habitualmente
se observa, um sinal de perfeita saúde: basta interpretar a apatia política
não como recusa ao sistema, mas como benévola indiferença” (BOBBIO,
1989, p. 70). Em outro artigo, “Contrato e contratualismo no debate
atual”, de 1982, ele observa, na mesma direção, que “ninguém até agora
considerou os fenômenos de apatia política como uma séria ameaça aos re-
gimes democráticos” (BOBBIO, 1989, p. 141). Esse um lado da questão.
Do outro, no artigo “O Futuro da Democracia”, de 1984, Bobbio (1989,
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
118
p. 32) arma que “nas democracias mais consolidadas assistimos impoten-
tes ao fenômeno da apatia política, que, frequentemente, chega a envolver
cerca da metade dos que têm direito ao voto”, para imediatamente após
colocar-se contra essa situação, dizendo:
“Sei bem que também podem ser dadas interpretações benévolas
da apatia política. Mas inclusive as interpretações mais benévolas
não conseguem tirar-me da mente que os grandes escritores demo-
cráticos recusar-se-iam a reconhecer na renúncia ao uso do próprio
direito um benéco fruto da educação para a cidadania” (BOBBIO,
1989, p. 32-33).
Ao focarmos o liberalismo de Bobbio nos anos 80, percebemos
que ele não é diferente do período anterior. No entanto, a sua relação com
a democracia sofre algumas alterações. Desde a década de 50, ele arma
repetidas vezes que o seu liberalismo deve ser entendido “como a teoria
que sustenta que os direitos de liberdade são a condição necessária – ainda
que não-suciente – de toda democracia possível, inclusive da socialista”.
Por sua vez, a democracia é vista como “um corretivo, uma integração,
um aperfeiçoamento” do liberalismo (BOBBIO, 1994, p. 100). A ideia de
aperfeiçoamento, continuação, complementação, transformação quantita-
tiva e não qualitativa, etc. da democracia em face ao liberalismo persiste
até a década de 80. Para isso, segundo ele, a democracia deve ser concebida
em seu signicado jurídico-institucional, e não no ético, ou seja, num sig-
nicado mais procedimental do que substancial” (BOBBIO, 1988, p. 37).
Esse núcleo, denido pelo signicado do liberalismo e pela re-
lação deste com a democracia, é mais ou menos constante. As alterações,
no âmbito dessa relação, nos anos 80, são fundamentalmente duas, sendo
uma menos e outra mais signicativa. A primeira tem o sentido de deta-
lhamento e precisão conceitual. Bobbio procura denir mais claramente a
situação do liberalismo em face às “regras do jogo”. Ele acolhe a ideia de
que os direitos de liberdade são “o pressuposto necessário para o correto
funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedi-
mentais que caracterizam um regime democrático” (BOBBIO, 1989, p.
20). A partir dessa perspectiva, o autor chega à conclusão de que as normas
constitucionais que acolhem os referidos direitos “não são exatamente re-
Democracia e Direitos Humanos
119
gras do jogo: são regras preliminares que permitem o desenrolar do jogo
(BOBBIO, 1989, p. 20). Como tais direitos constituem o núcleo funda-
mental que deu origem ao Estado liberal, Bobbio termina por acolher esse
Estado não apenas como o pressuposto histórico do Estado democrático,
mas também como o seu pressuposto jurídico, no sentido de que sem as
normas constitucionais que asseguram os direitos de liberdade, possibili-
tando a ação daquelas normas que, de fato, regulam o “jogo” democrático,
a própria democracia deixaria de existir (BRANDÃO, 2001, p. 128).
A segunda alteração, mais relevante, diz respeito às preocupações
do autor com a tensão existente entre o liberalismo e a democracia, algo
que, sob o ângulo aqui discutido, inexistia nas décadas anteriores. O pro-
blema se apresenta sob o título de “ingovernabilidade” e tem por núcleo
a ideia da “sobrecarga de demandas”. Cria-se uma contradição entre as
liberdades liberais, que possibilitam as reivindicações da sociedade civil, e
os procedimentos democráticos de tomada de decisões coletivas, que res-
pondem lentamente – e às vezes não o fazem – às referidas reivindicações.
Na realidade, essa questão foi trazida para a discussão política, em
meados da década de 70, pelos neoliberais, que propõem a sua resolução
dando tons autoritários para a democracia, ao que se contrapõe Bobbio.
“Hoje”, diz ele, “a reação democrática diante dos neoliberais consiste em
exigir a extensão do direito de participar na tomada das decisões coletivas
para lugares diversos daqueles em que se tomam as decisões políticas, con-
siste em procurar conquistar novos espaços para a participação popular e,
portanto, em prover à passagem – para usar a descrição das várias etapas do
processo de democratização feita por Macpherson – da fase da democracia
de equilíbrio para a fase da democracia de participação” (BOBBIO, 1988,
p. 96). Bobbio trabalha com a ideia de que o espraiamento da democracia
para outros espaços, além daqueles estritamente estatais, possibilitaria uma
canalização variada para as reivindicações da sociedade civil, dando mar-
gem a que as respostas para elas ocorressem dentro de uma opção mais – e
não menos – democrática (BRANDÃO, 2001, p. 160).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
120
coNclusão
A relação entre a democracia e o liberalismo, em Bobbio, ao lon-
go da sua extensa reexão sobre a primeira, apresenta, assim, três momen-
tos fundamentais: 1. O primeiro, correspondente ao período acionista,
em que a ênfase em torno da liberdade democrática e a crítica ao Estado
liberal-democrático de antes do fascismo colocam o liberalismo – mesmo
presente – em situação secundária em face à democracia. É um momento
de predominância da liberdade democrática sobre a liberdade liberal. 2.
O segundo, que abrange o período procedimentalista, desde a década de
50 até aquela de 70. Neste momento, a democracia é vista de modo inte-
grativo com o liberalismo, de modo que este é o pressuposto daquela que
o aperfeiçoa. Eles são acolhidos como indissolúveis, de modo que um já
não mais poderia existir sem o outro. No âmbito dessas três décadas de
procedimentalismo, o liberalismo destaca-se nas duas primeiras, em que se
expõe mais enfaticamente do que a democracia, diferentemente da última,
em que algum destaque da democracia é recuperado, principalmente em
razão da ênfase do autor na dimensão participativa. 3. Por m, o terceiro,
que envolve a década de 80, em que, para além do discurso presente nas
três décadas anteriores, de que o liberalismo é o pressuposto da democra-
cia, que o aperfeiçoa, e da ideia de que há alguma integração entre ambos,
passa a existir um campo de forte tensão entre eles. E é essa tensão que se
salienta nesta década, caracterizando-a. Ela aora sob o título de “ingo-
vernabilidade” e tem por base a chamada “sobrecarga de demandas”, que
surge da contradição entre as liberdades liberais e os procedimentos demo-
cráticos, na medida em que as primeiras possibilitam as reivindicações da
sociedade civil que os últimos têm diculdade de resolver.
Não poderíamos nalizar este texto sem pelo menos mencionar
dois outros campos de expressão da relação entre o liberalismo e a demo-
cracia focados por Bobbio. Eles têm dimensão algo lateral, mas signica-
tiva. Ei-los: 1. O receio dos liberais em face ao avanço histórico da demo-
cracia, que, em termos de teoria política, se nos é apresentado sob o título
de “tirania da maioria”. 2. A ideia, também histórica, de que o Estado
liberal, ao democratizar-se, ganha mais funções, caminhando no sentido
Democracia e Direitos Humanos
121
da social-democracia, que nega o Estado mínimo, liberal. Por este ângulo,
a democracia, ao m e ao cabo, termina por negar o Estado liberal.
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P  :    
  
Roberto Bueno Pinto
iNtrodução
Este trabalho analisa a relação de tensão entre as instituições da
democracia representativa liberal e as poderosas instâncias invisíveis que
efetivamente as coordenam desde as sombras, operando incisivamente so-
bre as instituições legitimamente constituídas amparadas no sufrágio. É
realizada crítica da reexão sobre a inserção da oligarquia econômica (e sua
esfera de ação, os arcana rei œconomicæ) no campo da representação polí-
tica democrática (e sua esfera de ação, arcana potentiæ absconditæ) operante
desde o campo da invisibilidade, estratégia causadora de desequilíbrio no
âmbito da política e, sobradamente, da penetração e estabilidade das con-
vicções democráticas populares. Este texto que ao fundo do debate político
Este trabalho é parte de um projeto mais amplo sobre a democracia que está em curso há alguns anos e que no
próximo mês conhecerá o primeiro resultado impresso em livro em publicação intitulada “Democracia em crise”.
Esta é a versão que resultou de reexão pormenorizada, mas ainda inconclusa, que consta em capítulo deste projeto.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p123-144
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
124
há uma latente e insolúvel tensão no que concerne a expressão da verdade
no campo político mas que, desde o plano democrático-popular requer
intervenção moderadora através da ampliação do campo da visibilidade.
Desde este campo político libertário há forte demanda pela ampliação do
raio de visibilidade das instâncias da política e do poder, demanda con-
traposta aos discursos e retóricas que objetivam a manipulação da opinião
pública, segundo função desconstitutiva do cerne das instituições da de-
mocracia. Este texto destaca a importância no momento atual de estabele-
cer reexão sobre o seu objeto, em especial considerando a presente crise
brasileira, fazendo-o sob o referencial da losoa política progressista e
social de Norberto Bobbio.
o bloqueio à traNsParêNcia e os arcana: imperii, potentiæ
absconditæ e rei oeconomicæ
Em sua origem, os arcana imperii (segredos políticos do império)
foram arcana ecclesiæ, e uma vez transpostos desta esfera teológica para os
assuntos de Estado, logo passaram a ser compreendidos como conteúdos
que precisavam ser mantidos à distância do olhar e do escrutínio público.
A nalidade superior era a preservação dos interesses do Estado, que então
tinha a sua interpretação confundida com o teor do juízo que deles zesse
o soberano. Em perspectiva histórica, uma leitura mais acurada do segredo
de Estado remete a um conceito de absolutismo de fundo medieval.
A respeito desta conexão Kantorowicz comenta que o segredo
de Estado “Es un tardío brote de aquel hibridismo secular-espiritual que,
como resultado de las innitas relaciones entre Iglesia y Estado, puede
hallar seen cada uno de los siglos de la Edad Media” (KANTOROWICZ,
1955, p. 37). Os segredos do altar e os insondáveis mistérios da divindade
foram migrados de seu hibridismo religioso para o unitarismo (aparente-
mente) laico para que, com isto, cumprissem a nalidade de isolar o poder
temporal ao acesso do público contestador. Deste modo o poder temporal
poderia operar com força idêntica a da esfera teológica, ordenando de for-
ma perfeita a hierarquia e obtendo a submissão inconteste de seus súditos.
Democracia e Direitos Humanos
125
Os momentos sucessivos ao medievo e ao absolutismo foram mar-
cados pelo esforço losóco Iluminista em sentido inverso, seccionador da
forte união entre Estado e Igreja, mas com a constituição do primeiro sob
a orientação dos atributos de poder típicos da Igreja. Os seus impenetráveis
mistérios e hierarquias alimentavam a ação política de autoridades eclesi-
ásticas operantes sob referenciais dogmáticos,e reveladoras de eciência na
obtenção de submissão a ponto de serem emuladas pelo campo seculariza-
do do político, quando a cultura iluminista já fazia sentir os seus efeitos no
campo da política. Este cenário ilustrou a migração das características do
corpus mysticum da Igreja para as esferas de poder temporal do Estado, o
corpus morale et politicum (cf. KANTOROWICZ, 1955, p. 57), e é através
desta colonização do temporal pelo espiritual que o mistério e o dogma se
posicionaram e consolidaram no universo político demarcando este campo
e, assim, ao próprio miolo do moderno Estado secular, que foi levado a
operar sob o manto do segredo próprio do misticismo teológico.
Em conexão com este modelo, e quando já era entrado o pri-
meiro quarto do século XX Carl Schmitt destacava que os arcana imperii
eram absolutamente necessários para a consecução dos propósitos de um
Estado absolutista, e neste sentido armava que “arcana, [são] segredos
técnico-políticos, de fato tão necessários ao absolutismo como conaturais
a toda política, assim como o segredo dos negócios e das nanças é pró-
prio da vida econômica baseada na propriedade privada e na competição
(SCHMITT, 2010, p. 48)
2
. Quando Schmitt propõe esta aproximação
íntima entre os segredos técnico-políticos do Estado e a forma de organi-
zação absolutista do Estado, percebe-se que está a indicar que é inexorável
a interferência dos arcana imperii para normalizar a realidade política do
Estado. Schmitt aponta o segredo do poder como uma realidade insupe-
rável, prática indispensável a um exercício voltado a segurança do Estado,
e nisto assinala certa similaridade com uma visão teológica da política na
qual a potência do poder de Deus no mundo preserva o mistério para,
deste modo, interferir com autoridade irrebatível em todos os assuntos
Segundo o texto original: “Arcana gehören, politisch-technische Geheimnisse, die in der Tat für den
Absolutismus ebenso notwendig sind, wie Geschäfts- und Betriebsgeheimnisse für ein auf Privateigentum und
Konkurrenz beruhendes Wirtschaftsleben”.
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126
humanos, sem que, à razão destes, seja dado rebater ou se opor de alguma
forma àquele irresistível e arrebatador poder transcendente.
Na época moderna o conceito de arcana imperii foi deslocado
e mobilizado predominantemente para o cumprimento de nalidades
distintas daquelas inicialmente cumpridas voltadas a proteção do Estado.
O conceito transcendeu as fronteiras da retórica do interesse público do
Estado e, já modicado, adentrou na esfera puramente política da vida
político-parlamentar para ser instrumentalizada para o cumprimento de
ns constituídos em esfera alheia ao interesse público. Este deslocamento
conceitual obedeceu ao interesse oculto de uma elite manipuladora que en-
contra diversos instrumentos para cumprir seu desiderato, e neste sentido
Lucas Martín indica que o conceito de segredo está composto ao menos
por três variáveis que ilustram este movimento de ocultação, a saber, (a) o
não mostrar, o não comunicar ou (b) o silêncio, o rechaço à pretensão de
conhecer, o não responder ou negar-se a mostrar, ou, ainda, (c) o dissimulo
(cf. LUCAS MARTIN, 1990, p. 131).
O ângulo analítico do conceito de segredo que nos ocupamos
aqui não é do tipo que revela utilidade para preservar a saúde do Estado,
mas sim de outra ordem. Quando a oligarquia econômica colonizou as
instituições estatais, ipso facto, herdou os arcanas e os transgurou de uso
para a proteção da res publica para a proteção de seus exclusivos interesses
econômicos. A partir de então, do que se trata é da ocultação deliberada
de informações por parte de oligarquias nanceiras preocupadas em ma-
ximizar os seus próprios benefícios através de articulações subterrâneas ao
poder político legítimo, desinteressando-se das consequências solapadoras
dos fundamentos e das instituições democráticas, o que é conrmado pela
leitura de Galli de que “[la política se hunde cada vez más en los manejos
de oligarquías que especulan en el terreno económico” (GALLI, 2013, p.
61), movimento que com clareza distancia a organização política de uma
perspectiva humanista-progressista consistente.
Neste sentido, conforme Kantorowicz, considerando que o se-
gredo de Estado foi uma derivação tardia do hibridismo secular-espiritual
originado das relações entre Igreja e Estado, agora sob a nova conguração
oligárquico-econômica no poder após os desdobramentos do Iluminismo,
Democracia e Direitos Humanos
127
então, o segredo de Estado passa a ser um hibridismo entre o mundo se-
cular e o econômico. Esta é perspectiva antidemocrática por antonomásia,
cuja conexão com Bobbio se encontra na declarada importância concedida
pelo autor à análise da visibilidade do poder, reveladora de agrante in-
compatibilidade com as pretensões de segredo das oligarquias que coorde-
nam o mundo nanceiro, mas que em sua aplicação à esfera pública não
poderia ser considerada senão enquanto exceção (cf. LUCAS MARTIN,
1990, p. 134).
A aplicação do segredo a segmentos especícos das engrenagens
da política é coordenada pelo establishment nanceiro. É estabelecida
uma linha de proteção de certos conteúdos aos quais não pode ser dado
o conhecimento, controle que segue a lógica do desestímulo à articulação
da autonomia política pública. A crítica democrática ao segredo não é
compartilhada pelo Estado absolutista referido por Schmitt, senão que é
tipologia de Estado que se contrapõe ao universo político libertário, e ela,
a democracia, é que prioriza a aplicação da visibilidade. Destaca Lucas
Martins que a incompatibilidade da democracia com os segredos reside em
que estes últimos “escapen a la ley, que no estén regulados jurídicamente
(LUCAS MARTIN, 1990, p. 140), pois o que caracteriza a democracia e a
própria atividade política não é a ausência de segredos senão, precisamente,
que seja de domínio público “quien, como y por qué cabe restringir elaccesso
al conocimiento y que ladecisión sobre todo esto [...] queda en manos
del Pueblo a través de sus representantes” (LUCAS MARTIN, 1990, p.
140). Efetivamente, a oligarquia nanceira não tem interesse em realizar a
normatização das vias de acesso ao segredo na política, e por isto se pode
dizer com Galli que “la escena está dominada por un capital profundamente
transformado y substancialmente fuera de control” (GALLI, 2013, p. 66),
e esta é uma intensidade que nada tem a ver com a descrição histórica
de Ostrogorski de que as minorias sempre governaram, fosse em uma
democracia ou em uma autocracia (cf. OSTROGORSKI, 2008, p. 41),
e esta é a cena especíca reveladora das insuciências históricas do regime
das liberdades populares, que a duras penas logram avanços e sob grau de
diculdade inverso experimentam submissões e golpes vários, mas sempre
sob a égide destas autocracias as quais se refere Ostrogorski.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
128
A leitura e prática do conservadorismo autoritário moderno sobre
a democracia aponta para que cada vez mais amplos nichos de poder pre-
cisam ser preservados da percepção e perscrutação pública, o que se deve a
falta de convicção das oligarquias nos termos básicos de projeto ilustrado
que põe em evidência cenário em que os homens devem exercer a razão
pública e a íntegra do povo a autonomia política. O fato da predominância
de grupos restritos nas mais diversas formas de organização social, e que
mesmo a democracia se encontre em muitos casos exposta a controle de
uma elite, sem embargo, não é impeditivo, senão uma questão de justiça,
que dela se possa esperar que sejam pluralistas e competitivos, para que seja
possível a conguração de um cenário político democrático (cf. GALLI,
2013, p. 50). O empenho em bloquear o projeto ilustrado
3
se evidencia,
por exemplo, no trato reservado aos temas econômicos onde uma renata
versão do darwinismo é aplicada a esfera do econômico, produzindo como
resultado um puro darwinismo social sob a égide teórica de um suposto
cienticismo econômico neoliberal. Nesta seara os processos e as discus-
sões assim como as decisões são antipolíticas, posto que tomadas em gabi-
netes hermeticamente fechados.
Este movimento não poderia ter ocorrido tão exitosamente sem
que houvesse sido realizada a migração da aplicação predominante do
conceito de arcana imperii para os arcana potentiae absconditæ (segredos
de um poder escondido), que ocorreu sob a égide da ocultação das reais
motivações dos poderosos em novos tempos. O que está em causa é que a
moderna forma de Estado e da política retira a coroa do soberano e a co-
loca no povo, a quem o primeiro precisa render contas e justicar política
e publicamente as suas ações. Sem embargo, ainda sem coroa, as novas
oligarquias todavia seguem a antiga lógica do poder, operando-o como
se ainda possuísse o cetro e a coroa e, portanto, como se não tivessem de
apresentar públicas justicativas.
Os arcana potentiae absconditæ são elaborações dos prepostos da
oligarquia nanceira para bem executar o seu mister a partir dos arcana rei
Esta eciente estratégia ideológica de bloqueio de projetos políticos inspirados em modelos ilustrados
cumpre dupla função solapadora das bases da democracia, posto que (a) distancia o parlamento de uma função
libertário-republicana e (b) congura o desenho mínimo da constituição do moderno estado autoritário, cujas
vias de realização em nada o distanciam das versões absolutistas de exercício de poder que a história conheceu.
Democracia e Direitos Humanos
129
œconomicæ. A sua existência nas sociedades democráticas ocidentais tem
se revelado indissociável da política e da condução dos assuntos de Estado,
tanto quanto os arcana imperii que foram tradicionalmente descritos pela
literatura especializada. De forma análoga aos arcana imperii, a oligarquia
nanceira busca ocultar arcana rei œconomicæ e o opera sob a retórica
pública da tutele da democracia, da Constituição e das instituições repre-
sentativas do poder político. Esta descrição da lógica de funcionamento do
poder não é nova mas, isto sim, os meios de que lançam mão, pois edi-
cam sucessivas substituições históricas na organização do poder. De forma
análoga aos arcana imperii citados por Schmitt, os arcana rei œconomicæ
mostram alta operatividade no mundo dos negócios e das nanças ao tem-
po em que permanecem ocultos aos olhos do grande público, para o que
necessitam da ação no nível político de prepostos que edicam uma segun-
da via de contenção, os arcana potentiæ absconditæ, operante no campo do
político, e que por fazê-lo compromete a realização das aspirações dos reais
titulares do poder de nossas democracias.
A democracia dos Estados modernos tem em sua base a noção de
representação política, mas é precisamente este o conceito frente ao qual a
oligarquia nanceira que controla o poder se mostra refratária in extremis.
Tal resistência implica na busca por mecanismos que desloquem o eixo do
poder (popular) sem macular o próprio instrumental que se encontra formal
e juridicamente disponível para tanto, implica, em suma, em elaborar um
mecanismo que faça crer que a população está no domínio e controle do pro-
cesso político quando, em verdade, não está. As ocultações e os segredos vêm
a funcionar como recursos intrassistêmicos para manter o corpo (interesses)
ao tempo em que corrói a alma (valores) do sistema democrático. Neste
sentido convém recordar a característica identicada por Canetti de que o
segredo opera sempre em um só corpo (cf. CANETTI, 1995, p. 290), quer o
consideremos coletiva ou individualmente, e nesta identicação de Canetti é
que se percebe que, em realidade, o corpo econômico precisa aderir o corpo
político, tornando-se este um movimento de cooptação indispensável para
os desdobramentos práticos da oligarquia nanceira, mas mantendo uma
dupla face em que ao público só é dado ver o político desde a perspectiva que
lhe apresenta como autônomo e independente.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
130
A oligarquia nanceira realiza o movimento de apresentar como
uno o que é plural, como unicado aquilo que é um completo e irredutível
conjunto de funções e opiniões democráticas. Precisa fazê-lo ocultando o
conito e as ideologias competitivas porque, em verdade, é a única forma de
resguardar os seus interesses, fazendo-o através da concretização dos planos
operativos derivando dos arcana rei œconomicæ os arcana potentiæ abscondi-
. Tal como em uma encenação de marionetes em que ao público apenas é
dado observar o jogo dos fantoches mas não a manipulação deles, é em espa-
ço similar que os atores econômicos e políticos revelam estar em indissolúvel
união, sendo que a primeira esfera de segredos (econômicos) é constituída
pelo núcleo duro dos atores da oligarquia nanceira, que se revela determi-
nante da segunda esfera de segredos (políticos), seguindo um movimento in-
verso a própria percepção das entranhas da democracia mantida por Bobbio.
Segundo esta construção da esfera política em que as forças econô-
micas emergem como determinantes, ao passo em que a transparência não é
concebida como categoria reguladora, é que se cumprem as condições ideais
para o poder absoluto, pois é justamente sob a obscuridade que o poder sem
controles recrudesce. Ele desfruta das favoráveis circunstâncias de ausência
de controles ecazes, que são peça nevrálgica da democracia para que a de-
mocracia encontre condições de sobrevivência (cf. LUCAS MARTIN, 1990,
p. 135), sendo indispensável que os poderes do Estado atuem tendo a trans-
parência como sua guia (cf. DELGADO GIL, 2005, p. 3).É notável como
as democracias ocidentais de média ou alta voltagem constituem espaço em
que o discurso e a retórica do poder controlado pela oligarquia nanceira
oculta pretende apresentar como superada a prática da política, resumindo-a
a um circuito de funções técnico-cientícas, e com isto ultrapassam as fron-
teiras do neoliberalismo e adentram com força o território do autoritarismo.
A subsunção das esferas de ação e, mesmo, de constituição do
poder político às oligarquias nanceiras não são exatamente uma novida-
de, senão as formas de sua aparição histórica é que são variáveis. Trata-se
de categoria recorrente e observável ao longo da história, tanto na Idade
Média em seus momentos posteriores à queda do Império Romano (cf.
GANZ, 2002, p. 4) quanto no mais recente cenário pré-republicano bra-
sileiro, período cujo evolver social e político foi bem traçado por Florestan
Democracia e Direitos Humanos
131
Fernandes enquanto objeto de controle por uma oligarquia econômica,
então situada no espaço rural (ver FERNANDES, 2005, p. 119-139).
A esfera política foi alvo de diversas formas de controle por dife-
rentes capas históricas de atores econômicos cuja forma de atuação tam-
bém foi variável, mas que em qualquer de suas formas, expressas (escra-
vidão) ou implícitas (turbocapitalismo de mercado oligopolista), foram
documentadas e bem descritas em seu funcionamento. Deriva desta rea-
lidade a construção de um cenário político de alta aplicação da força das
oligarquias nanceiras, principalmente nas sociedades de alta especializa-
ção e complexidade, nas quais as formas de exercício do domínio precisam
ser mascaradas. Os atores centrais desta empresa estão cientes de que o
sistema que lhes favorece não pode operar sem que seja realizado o prévio
deslocamento do eixo do fazer político legitimado pelo voto para a titula-
ridade do campo econômico, mas também estão absolutamente cientes de
que este precisa ser um movimento sutil e oculto, e para tanto elaboram a
razão econômica de fundo no campo dos arcanarei œconomicæ. Mas com
o cuidado de outra dimensão operativa, esta no campo político, através dos
arcana potentiæ absconditæ.
Esta função de mascaramento requer a constituição e interven-
ção de homens de gabinete desconhecidos associados a outros que operem
em frente às câmeras e nas cédulas eleitorais mas que, em verdade, são
prepostos que nem sempre conhecem os seus senhores e patrões, senão
que não raro são apenas um pequeno elo bem pago de uma cadeia de co-
mando obscura mas cuja lógica é perceptível, embora oculta. Neste espaço
executivo das ordens emitidas e executadas por uma cadeia de comando
triunfam, incógnitos, os experts em seu incansável labor tecnocrático es-
cudados cotidianamente no valor da neutralidade da ciência, mas cujos
efeitos ideológicos são potentes, impactantes e corrosivos das perspectivas
de empoderamento popular.
4
Independentes quanto a responsabilização
4
A classicação do papel da burocracia no Estado foi bastante bem traçada modernamente por Max Weber. Sem
embargo, o que está aqui em causa é o trânsito para uma potente tecnoburocracia que serve sob o signo declarado
da imparcialidade à realização de ns desconectados daqueles que interessam aos reais titulares do poder que o
Estado, atores que delegam tais poderes a governantes de diversos matizes, com maior ou menor acerto, mas
sempre temporariamente. Em nenhum caso, contudo, se trata de atividade realmente neutra, pois há um viés
concreto neste acionamento da tecnoburocracia, possuidor de uma função ideológica relevante para perpetuar
determinadas formas de organização em detrimento de alternativas menos promissoras para o establishment.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
132
por seus atos e de qualquer justicativa a eleitores, este corpo de tecnobu-
rocratas são impassíveis de contestação e respondem tão somente aos seus
patrões do mundo nanceiro, retoricamente calçados que se encontram
na dogmática hermética da economia que procura sustentar a absoluta
conabilidade de suas opções mundanas no processo de ancoragem de seu
fazer, que alegadamente não é político, mas puramente cientíco.
Em que pese indubitável, o impacto prático do papel exercido
pelos especialistas em qualquer tipologia de organização social – e não me-
nos nas democráticas –, é claro que certas calibragens sobre a amplitude de
suas competências são indispensáveis, e precisamente a isto é que Giovanni
Sartori chama a atenção (cf. SARTORI, 1993, p. 85)
5
. Portanto, é relevan-
te especicar qual seja o grau de domínio sobre a esfera da política que se
pretende outorgar a estes tecnoburocratas, e tal delimitação se justica na
medida em que a esfera da política é a única legitimamente constituída
pelo sufrágio e também a única referência eciente para legitimar qual-
quer organização do Estado com pretensões democráticas. Desconhecer ou
apenas relevara centralidade desta ponderação é incidir nas circunstâncias
desconstitutivas da ordem política que a tecnoburocracia de corte eminen-
temente elitista visa ampliar, supostamente voltada a concretização de uma
ordem mais sosticada.
A densidade da ideologia da tecnoburocracia resume-se ao prag-
matismo para executar as ordens da oligarquia cujo conservadorismo tema-
tiza objetos cuja execução demandam a cobertura do segredo, quer seja este
entendido este como ocultação plena de informações ou como estratégico
mascaramento ideológico ou mescla com investida publicitária. Neste sen-
tido, é razoável supor que a oligarquia concorde e logo, tente evitar estraté-
gias que desmontem o diagnóstico de Ostrogorski de que a melhor educa-
ção popular permitiria ao povo compreender melhor as suas circunstâncias
e mais ecazmente intimidar aos governantes (cf. OSTROGORSKI, 2008,
p. 42), o que, de fato, funciona como excelente elemento regulador dos go-
vernos (cf. OSTROGORSKI, 2008, p. 43-44). Convergindo com Schmitt
Importa notar que quando o projeto escolhido pelas urnas livremente termina por não ser executado, seja por
quais forem as contingências históricas – desde que sejam variáveis ínsitas ao mundo da cultura e não ao mundo
natural – eis que, em tal momento, começa a ser delinear um duplo Estado com forte viés para a realização de
uma organização antidemocrática, malgrado mantenhas as vestes típicas da democracia.
Democracia e Direitos Humanos
133
sobre existir uma dimensão de temas que precisa ser analisada na esfera
dos segredos técnico-políticos, deriva daí a necessidade crucial de cuidados
para que a ampliação desmesurada desta órbita de segredo desempenhada
pela tecnoburocracia via radicalização da racionalidade instrumental não
redunde na constituição de um Estado autoritário moderno ou alguma
renovada forma de ditadura tecnologicamente executada.
Segundo Galli, sem embargo, o Estado democrático vem se ca-
racterizando é por não ser político, e por este motivo teria perdido o seu
elã dialético vital e, assim, teria passado a ser mera atividade administra-
tiva, com o qual já “no es liberal sino autoritaria” (GALLI, 2013, p. 55).
A operacionalização deste tipo de Estado está comprometida com as cir-
cunvizinhanças do fascismo, alvo das críticas bobbianas em seu momento.
Portanto, a manutenção de perspectivas de uma sociedade democrático-li-
bertário-socialdemanda uma calibragem dosicada e bastante modesta dos
temas que mereceriam inserção na órbita do segredo, ao tempo estabeleci-
das linhas públicas de acesso e scalização.
democracia como traNsParêNcia: ecoNomia e autoritarismo
Assumimos resolutamente a leitura de Bobbio de que a articulação
do conceito de democracia com o da transparência é essencial para as suas
possibilidades de armação e sobrevivência. Neste sentido assiste razão a
Delgado Gil ao armar que, por princípio, “cualquier actuación por parte
de alguno de los órganos del Estado que no pueda ser conocida por los
ciudadanos atentaría contra su propio fundamento” (DELGADO GIL,
2005, p. 3), pois, à partida, este é o vetor que deve ser assumido para
orientar as instituições de uma democracia. Sem embargo, ainda quando
assumamos este como um princípio e convirjamos com o otimismo expresso
por Bobbio quanto às consequências da consolidação da transparência, é
preciso reconhecer que a sua estratégia falha ao não estabelecer contrapesos
aos desdobramentos prometeicos da potencialização de sua crença nos
efeitos redentores da transparência. Contudo, é certo que a sua percepção de
fundo sobre os efeitos da transparência para a democracia é absolutamente
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
134
correta, tanto pelas razões apresentadas na seção anterior como por outras
que precisam ser explicitadas.
O autoritarismo conservador da oligarquia nanceira desconhece
as vias da política em prol da armação do econômico, isolando a democra-
cia como uma categoria que será recepcionada apenas na medida em que
apresentar funcionalidade para os ns superiores da maximização de seus
altos interesses no mundo das nanças
6
. Isto faz com que o capitalismo se
sinta à vontade para operar independentemente da política e do direito e
à revelia da razão libertária, voltando-se a concentrar esforços em eliminar
custos insuportáveis, e dentre eles pontica como objetivo o Estado social
(cf. GALLI, 2013, p. 60) cujos benefícios populares ocupam a rubrica de
mero custo para as oligarquias. O Estado social é substituído pelo Estado
capital, e o homem enquanto meio ou engrenagem (cujo desgaste pouco
interessa) de quem se exige máxima eciência e produtividade substitui
um modelo de Estado em que o homem é m, e nunca meio.
É possível observar que não existe uma natural discrepância
entre o mundo da política e o mundo das nanças, mas que este é um
divórcio concretizado em face da pretensão de maximização dos benefícios
econômicos em um jogo em que a soma a alcançar pretende ser positiva tão
somente para a oligarquia na medida em que obtém ainda mais benefícios
ao avançar e desconstruir a concretude o substrato dos direitos sociais e
políticos. Deste modo, quando as categorias ínsitas ao mundo das nanças
avançam, o mundo das instituições democráticas retrocede, mas quando
estas últimas avançam pela pressão popular, tocará as primeiras retroceder
(cf. BOBBIO, 2013, p. 36).
Este jogo de sucessivos avanços e retrocessos, em verdade, tem
sido congurado no mundo empírico pelo avanço contínuo dos interesses
do mundo das nanças. Os retrocessos em favor das instituições demo-
Interessa referência da verdadeira patologia das sociedades modernas quando os atores e dirigentes ocultos
do capitalismo de mercado manobram para despistar a importância da esfera política. A este respeito Flinders
chama a atenção para o fato do super estímulo ao individualismo consumista, que é utilizado como método de
governo (cf. FLINDERS, 2013, p. 68), o que termina aproximando o cidadão-médio de profunda apatia pelo
fazer genuinamente político através de sua distração continuada (e estimulada) através do consumo incessante
no mercado. Neste sentido Flinders sublinha esta utilização do mercado como uma estratégia diversionista, uma
tactic that absorbed the intensity of democratic life” (Ib.) e que, por m, é capaz de destroçá-la lentamente e
sem maior alarde, e que por carcomida soçobra com o apoio iludido dos seus beneciários.
Democracia e Direitos Humanos
135
cráticas têm sido apenas aparentes, não passando da aparência, maximi-
zada enganosamente por atores que lançam mão da construção de chaves
ideológico-publicitário-culturais para realizar a tarefa de encobrimento do
real. Antípodas, a democracia ou o autoritarismo encontram terreno fértil
para avançar na razão direta em que o poder, os atores e as instituições
sejam mais visíveis (democracia) ou menos visíveis (autoritarismo) e que,
portanto, os segredos políticos desfrutem de um estatuto especial, sendo
cristalino que quando a visibilidade passa a ser uma mera excepcionalidade
no sistema, então, o que está em causa é um sistema fechado, autoritário
ou autocrático (cf. BOBBIO, 2013, p. 36).
A razão pela qual há empenho em fortalecer a transparência indi-
cada por Bobbio converge com a admissão da superioridade qualitativa da
organização democrática sobre a autoritária. Ela reside em que a primeira
tende a consolidar regime armativo das liberdades e de meios que favo-
reçam a realização de diferentes projetos de vida. Enquanto meio virtuoso
para o acesso a inuência no poder a transparência é uma categoria-chave
que deve desfrutar de estatuto absolutamente privilegiado e protegido para
a consolidação deste valor político libertário e das expectativas de realiza-
ção de uma sociedade democrático-libertária-social. Ao expor o poder a
transparência é categoria que trabalha de forma resoluta contra o vírus au-
toritário que opera nas sombras de forma solapadora das melhores e mais
vivas essências da democracia, posto que alimenta as forças que conguram
o duplo Estado – bastante presente nas democracias contemporâneas – em
cujo âmago se encontra a sobreposição da economia à política através da
operacionalização dos arcana rei œconomicæ.
A transparência funciona como elemento desarticulador das
tentativas de hiperdimensionar a esfera coberta pelo segredo para além das
mínimas órbitas em que o republicanismo democrático pode recepcioná-
lo. A maximização da esfera do segredo potencializa o poder das forças
obscuras que projetam o sequestro do público por uma casta permanente
e bem assentada para além da esfera da representação, oligarquia cuja
pretensão é de permanecerem sua posição de controle, à revelia dos titulares
do poder político escolhidos pelas urnas. A transparência opera de forma
ecaz para desarticular uma profunda e bem enraizada rede de atores
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
136
com alta inuência na determinação dos rumos das políticas públicas
que modernamente respondem escassamente ao poder político legítima
e democraticamente constituído, e é por esta razão que as oligarquias
nanceiras precisam conter demandas em favor da expansão do nível de
transparência da política e das instituições.
A “secretização” da esfera política interdita o núcleo do fazer de-
mocrático, posto que inviabilizador do exercício da razão pública. O segre-
do em matéria política deve ser compreendido como a chave de bloqueio
a visualização do político e de seus condutores, estratégia eciente para
consolidar e magnicar as próprias instâncias do poder e do establishment,
que aspira perpetuar a cultura produzida pela oligarquia nanceira atra-
vés de seu denso campo magnético de atração de capas populares através
da reconguração ideológica travestida de genuína reprodução cultural. O
bloqueio ao campo do político funciona ecazmente a partir da interdição
da razão pública ao contato e avaliação das diferentes ideologias e formas
de organização social ao tempo em que veiculando massivamente tão so-
mente uma das formas possíveis.
O esforço por bloquear o acesso ao núcleo de informações políticas
e em paralelo conduzir o processo de formação da opinião pública é um
dos eixos sobre o qual trabalha o argumento conservador autoritário, para
quem a mais sosticada técnica é o único referencial válido para pautar a
condução os assuntos públicos. É desconsiderado o papel da população na
tomada de decisões, cujo compartilhamento empresta potencialmente maior
legitimidade e ecácia ao processo, ao passo em que, por si só, constitui uma
semente promissora da qualidade da democracia em questão. Desentendido
desta realidade, para o conservadorismo autoritário esta via de decisões é de
qualidade inferior pelo só fato de não serem tomadas por técnicos mas com
alta inuência popular. Este é argumento desconsidera o aspecto político e
democrático, consagrando a lógica maximizadora de resultados e da utilida-
de econômica no processo de tomada de decisões políticas.
As decisões políticas são tratadas pelo campo conservador autori-
tário exclusivamente pelos padrões de maior ou menor eciência, orientan-
do as decisões políticas e as ações segundo este critério aplicado a produti-
vidade e retorno nanceiro. O teor do que o conservadorismo autoritário
Democracia e Direitos Humanos
137
considera ser eciência em matéria política está desconectado da avaliação
sobre o seu impacto na promoção de ns sociais, senão que admite até
mesmo aquelas absurdamente menos ecientes do ponto de vista da pro-
moção de ns sociais. A eciência derivada das estratégias operantes sob o
signo dos arcana rei oeconomicæ discrepa da nalidade de aglutinar forças
para perseguir os ns sociais e coletivos porque não é do interesse das oli-
garquias realizar a política através da aglutinação de perspectivas e da mo-
bilização de expectativas em processos de criação coletiva da política, pois
apenas concentram atenções na realização de ns privados.
A democracia social percorre caminho inverso ao projeto político
do conservadorismo autoritário, pois ao propugnar meios mais ecientes a
democracia prioriza o viés social para a consecução de ns econômicos. A
democracia social está pronta a realizar ns econômicos mas não a ponto
de instrumentalizar os ns sociais e os valores humanos, dentre os quais a
representação política como única base legítima da articulação política de-
mocrática, ainda que a despeito de alegações de superioridade e eciência
das decisões porventura tomadas por um grupo de tecnocratas ao arrepio
desta variável política.
A via democrático-social pressupõe o não acoplamento e sobre-
posição da lógica econômico-empresarial ao funcionamento político das
instituições democráticas ou as suas relações sociais ou trabalhistas. A de-
mocracia social não dá guarida a exacerbação de funções de maximização
do econômico, pois isto gesta intensos prejuízos aos ns sociais e da ordem
política com os quais ela está comprometida. É imperioso que a democra-
cia entronize o político em posição de comando porque de outra forma a
economia remanesce fora de controle, e quando ocupa tal posição ela passa
a não responder a outra lógica senão a sua própria (cf. GALLI, 2013, p.
61) em que o segredo impera e, por conseguinte, a democracia denha.
Este é problema concreto de nossas sociedades democráticas ocidentais em
que o político perdeu a proeminência para os gabinetes fechados, situação
que requer providências imediatas somente possíveis desde a intensicação
da esfera democrático-participativa e pela pressão popular destacada por
Ostrogorski (ver OSTROGORSKI, 2008, p. 41-43).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
138
Sendo as discussões realizadas e as decisões tomadas em locais
alheios aos parlamentos, por suposto, é natural a opção pelo segredo em
detrimento da transparência. Os grandes temas políticos e econômicos são
alvo de misticação cientíca para dourar o autoritarismo que subjaz a sua
falta de argumentos. Não está em curso a ação de um inofensivo tecno-
burocratismo cujas escolhas fundamentais na esfera das políticas públicas
são neutras, senão a ocultação de suas escolhas pelo véu do cienticismo.
A oligarquia sustenta interesses e ideologia compatíveis com práticas que
demandam a disseminação do segredo, e cada vez a níveis ainda mais eleva-
dos até mesmo nos parlamentos, espaço em que as relações deveriam estar
destacadamente pautadas pela publicidade.
Este fenômeno possui uma explicação tão clara quanto evidente,
e se deve ao descaso político com uma versão séria e congruente da de-
mocracia, se deve ao desinteresse em empregar meios adequados para não
apenas manter a democracia como fortalecê-la. O interesse das oligarquias
pelo segredo também se explica pelo fato de que as cadeiras dos represen-
tantes políticos legitimamente eleitos tem apenas funcionado como escri-
tório de execução das tarefas determinadas no espaço dos mais sosticados
e luxuosos gabinetes para os quais a democracia não é convidada e nem o
voto é lembrado como recurso de avaliação de preferências, senão enquan-
to mero objeto de manipulações.
O tom crítico a falta de transparência da democracia representativa
contemporânea conecta até mesmo antípodas como Bobbio e Schmitt, que
apontam para alternativas políticas absolutamente diversas a partir da crítica
comum ao parlamento. Ontem, como hoje, são os gabinetes sem identi-
cação em locais alheios a inuência pública em que operam e decidem
os magnatas das nanças sobre o futuro das políticas públicas e da política
econômica, sendo o “humor” do mercado gestado nestes espaços e a única
forma pública de comunicação é o alerta público que emitem sobre os rumos
que um Governo deve ou não tomar. Esta é uma variável que se consolida
quando o governo éproclive a concepção de organização social em que o
mercado é quem deve dar as cartas e os poderes do Estado são nalmente
concentrados e amplamente mobilizados para realizar a cartilha neoliberal.
Democracia e Direitos Humanos
139
Neste diapasão, devidamente instrumentalizado, o Estado ca
restrito a concretização dos ns da oligarquia nanceira, ator que exerce
o real controle da vida política e das instituições, ainda quando o faça
por vias subterrâneas e na superfície habite a normalidade democrática.
Esta prática contrária essencialmente o conceito essencial de democracia
enquanto autogoverno popular, de que o mérito não é a base legitimadora
do exercício do poder, senão a aprovação popular através do exercício do
sufrágio. Neste sentido arma Polack que “quien gobierna en una demo-
cracia no lo hace porque posea las condiciones de una capa superior cua-
litativamente mejor, frente a una capa inferior” (POLACK, 2011, p. 56).
Certamente, este é um princípio democrático inaceitável pelas vias obscu-
ras do conservadorismo autoritário cujas práticas políticas são travestidas
de ilustração para obter os favores eleitorais necessários para implementar
as suas políticas opressivas.
É desde a esfera do mundo das nanças, alheia ao mundo parla-
mentar, que a lógica do mundo político é concebida. Ela é alimentada pela
força motriz do interesse da máxima reprodução de benefícios, sejam estes
entregues em espécie ou não, mas sempre mantida publicamente a retóri-
ca da maximização dos interesses públicos. Sem embargo, esta orientação
não ultrapassa o terreno do discurso e está vinculada ao seu real propósito
maximizador das instâncias do privado. A alta voltagem do mundo das oli-
garquias nanceiras produz a concentração das operações de seus interesses
em um consistente grupo de tecnoburocratas, tangenciando a esfera deli-
berativa. Tal é o indefectível sinal de que a democracia começa a sucumbir,
e todavia mais intensamente quando considerada a hermética blindagem
de que desfruta o corpo tecnoburocrático em face de quaisquer interferên-
cias da esfera política. É desde este espaço do mundo dos negócios que é
estabelecida a arquitetura, a estética e a retórica do publicizável bem como
o teor dos interesses que precisam permanecer em absoluto segredo, pois
publicizar o que não interessa às oligarquias representa comprometimento
da mínima legitimação pública necessária para um regime cuja orientação
básica não é democrática e popular.
A invasão da órbita parlamentar por uma lógica estranha ao
seu funcionamento perverte o debate público que do ponto de vista de
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
140
sua estrutura deveria ocupar o centro das atenções, e isto leva a que não
se cumpra a promessa liberal destacada por Bobbio, qual seja, de que
qualquer que seja a classe social que tem as chaves do poder, ela não governa
despótica e totalitariamente” (BOBBIO, 20015, p. 370). Este movimento
colonizador da esfera representativa foi sendo realizado paulatinamente,
e sem a devida percepção pública, a ponto de não serem constatáveis
signicativas resistências da opinião pública ao fenômeno. Longa manus
da ideologia da oligarquia, a mídia compartilha e dissemina a ideologia
do establishment alimenta a falsa crença de que o remédio idôneo para os
males da democracia é a participação em novos pleitos, e que pela via de
melhor opção sufragista a democracia logrará regenerar a sua vitalidade.
Nada mais falso, nada mais comprometedor da própria democracia do que
instigar os indivíduos a crer nesta falsa promessa, cujo favor popular tende
a esgotar-se ao negar o valor da própria democracia.
O movimento de desadensamento da esfera da política e, para-
lelamente, de adensamento das funções outorgadas aos tecnoburocratas,
ocorre de forma silenciosa, segundo curso ordinário por um poder que
aspira agir de forma oculta. A abstinência política popular é reveladora de
fastio acompanhado de falsa convicção de que o maquinário democrático
se move por si só. A máquina de propaganda ensejou profundo proces-
so de desalojamento do exercício da razão política, cujas consequências
mais evidentes são o solapamento dos institutos e das práticas que vivi-
cam as atividades parlamentares que, em resumidas contas, alimentam
diretamente a descrença popular nos fundamentos da democracia. Esta
descrença é arma letal para a manutenção da democracia, eis que ao ser
atingida em cheio pela radicalização dos movimentos antidemocráticos
já não encontra na cidadania quem a defenda, senão que cede espaço às
oligarquias de sempre, eventualmente já sem os trajes dos senhores de
engenho. Cedo ou tarde, em face da inércia cidadã para resistir e conter
o forte avanço das forças que operam desde a invisibilidade a democracia
certamente soçobrará.
Democracia e Direitos Humanos
141
coNsiderações fiNais
A “publicização” da esfera da vida política que apoia a via de-
mocrática encontra seu antípoda na “secretização”, sendo a primeira uma
estratégia compatível com a democracia, enquanto a segunda o é com o
autoritarismo. Tornar visíveis os atores do poder, as instituições e as esfe-
ras de poder em que operam bem como construir publicamente (mais do
que expor) as justicativas das decisões políticas, são estratégias compatí-
veis com a democracia mas inimigas do autoritarismo. Realizar a política
segundo processos compartilhados e compatíveis com as esferas públicas
populares de constituição do querer é a consolidação da qualicação da
vocação democrática de uma determinada sociedade.
A aspiração democrática depende de que os processos e as insti-
tuições não estejam balizados pelo agir oculto ou secreto. Para evitar a der-
rocada do sistema das liberdades populares é necessário que “os que estão
em posições de comando sejam explícitos a seu próprio respeito: mostrem
com clareza o que podem e o que não podem fazer” (SENNETT, 2001, p.
222), mas que também coordenem as suas ações com as forças dinâmicas
populares da sociedade civil e, logo, que não sejam as oligarquias ou os
seus prepostos a qualquer título que ocupem a posição de proeminência
nas decisões políticas.
Quando o poder é enfeixado nas mãos de uma inabordável
e infalível gura ou grupo, que aja em desconsideração da noção de
transparência e visibilidade de suas ações, dos processos públicos e da
tomada de decisões políticas e administrativas, então, o que este quadro
indica é a existência de um regime autoritário. A visibilidade do poder é
essencial em um sistema democrático-social, posto ser esta a única via para
que os sujeitos de direito do povo possam exercer a devida inuência na
esfera política e também o controle sobre o poder. Compartilhar o exercício
da razão pública, intervir em sua elaboração, direta ou indiretamente, é pré-
condição para que a força da oligarquia através dos arcana rei oeconomicæ
não encontre as condições ideais de domínio e a tendência de proliferação
do autoritarismo no terreno abandonado pelas instituições de controle.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
142
As aspirações perfeccionistas voltadas a absoluta transparência e
os arroubos pela realização da absoluta justiça na terra podem realizar o m
diametralmente oposto ao perseguido, e por isto precisam ser contidas. É
preciso recordar a máxima “Fiat justitia, et pereat mundus”, máxima orien-
tadora de uma perspectiva redentora que apenas os homens com mente
teológica podem almejar, mas não os atores políticos e jurídicos da esfera
temporal responsáveis e convictos do real valor da democracia. A trans-
parência deve ser a regra, mas quando a luminosidade é levada a níveis
absolutos também pode cegar, colocando a própria vida social a perder e,
então, é chegado o momento de perceber a necessidade de utilizar lentes
que minimizem o impacto da luz sem menoscabar a sua centralidade.
Sob tal contexto preocupante de consolidação do domínio invi-
sível por parte dos estratos social e economicamente altamente favorecidos
da população é preciso recordar uma atualíssima citação de Bobbio na qual
alertava intelectuais italianos de seu momento para que “numa sociedade
democrática em formação, como a nossa, os intelectuais não podem car
de lado, como acontece numa sociedade funcional na qual cada coisa ca-
minha para o seu rumo” (BOBBIO, 2015, p. 275). Mas se este era o papel
dos intelectuais em tempos de alguma esperança, todavia mais importante
seria quando os tempos eram de vida em “numa sociedade totalitária na
qual não há alternativa a ou não participar ou colaborar” (BOBBIO, 2015,
p. 275). Hesito em qualicar os nossos dias como democráticos, mas não
em armar o papel dos intelectuais em perscrutar se neles os direitos sub-
jetivos do povo estão sendo respeitados pelas instituições, muito embora
também estejamos cientes do quadro evolutivo da história, e assim pode-
mos concordar com Ostrogorski que “la opresión moral de la mayoría se
ha ejercido siempre en todas partes desde que los hombres viven en socie-
dade” (OSTROGORSKI, 2008, p. 45).
A relevância do papel dos intelectuais é reconhecível sobretudo em
sociedades em que a democracia é todavia uma aspiração possível, quando,
ontem como hoje, como diria Bobbio, “Não estamos mais, felizmente,
em tempos de regime totalitário, mas também não estamos, infelizmente,
numa sociedade democrática estavelmente constituída” (BOBBIO, 2015,
p. 275).Mas não estando em um regime totalitário podemos estar a dar os
Democracia e Direitos Humanos
143
primeiros passos em uma tipologia autoritária, e é justamente nesta quadra
histórica que a covardia intelectual cobrará ainda mais alto preço da poste-
ridade, pois o valor de assegurar as liberdades sempre é consideravelmente
menor do que aquele que terá de ser pago para restaurá-la algum dia.
Com Bobbio concluímos que o tempo presente é, indefectivelmen-
te, temperado para a ação em defesa de nossas instituições, de nossos valores
democráticos mas, sobretudo, de nossa Constituição. Para fazê-lo é preciso
empregar os melhores esforços contra violentos golpes de qualquer gênero
que a ela pretendam impor os homens que pretendem aplicar projetos de
poder construídos na esfera da invisibilidade dos gabinetes fechados, de onde
exercem os seus altíssimos poderes que o controle popular não alcança e em
que os seus interesses não são considerados. Estes são tempos em que o for-
cejar para realizar a transparência política requer a coragem de homens como
o barbeiro, de Machado de Assis, a conclamar os seus concidadãos: “Meus
amigos, lutemos até o m! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas
e heroicas” (ASSIS, 2014, p. 56), mas para invocar a vida é preciso o ato, e a
aventura heroica reclamada por Machado de Assis demandava nada menos
que “Destruamos o cárcere de vossos lhos e pais, de vossas mães e irmãs,
de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água,
talvez a chicote, na masmorra daquele indigno” (Ib.). Este nosso é tempo de
coragem, é tempo de resistência civil, e isto pelo motivo de que a defesa da
Constituição é tarefa-mor que não pode ser cumprida sem forte e decidida
ação. O preço da covardia será a eterna sela em nossas costas.
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 “” 
César Mortari Barreira
iNtrodução
Os debates acadêmicos que procuram esmiuçar a relação entre
neoliberalismo e democracia vêm sendo desenvolvidos, em grande parte,
a partir de análises marxistas. Ainda que o “rótulo neoliberal” também
marcasse a adesão de economistas como Friedrich von Hayek, Ludwig von
Mises e Milton Friedman aos princípios de livre mercado da economia
neoclássica defendidos por William Stanley Jevons, Karl Menger, Leon
Walras e Alfred Marshall (HARVEY, 2014b, p. 30)
1
, na vasta literatura
A escola neoclásica foi responsável pela chamada “Revolução Marginalista”, que “procurou subverter os
alicerces da economia política, abandonando a investigação sobre as leis do movimento do capitalismo, para
postular as condições de equilíbrio no processo de troca. O ataque marginalista incidiu, desde logo, sobre
a teoria do valor-trabalho, que explicava a forma-valor dos produtos a partir das relações entre produtores
independentes, para se xar no conceito de utilidade, que realça as relações entre os indivíduos e bens escassos
(BELLUZO, 2013, p. 38).
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p145-186
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
146
marxista sobre o tema pode-se destacar a ênfase dada à transição do cha-
mado “regime de produção fordista” para o “regime de acumulação exí-
vel”, isto é, de um modelo baseado no rígido controle e organização sobre
o trabalho industrial que tinha como contraparte não só uma política de
aumento salarial (possibilitando via consumo em massa a sustentação da
produção em massa), mas também a garantia de acesso da classe trabalha-
dora a bens de consumo duráveis e serviços públicos
2
, para um modelo
em que se observa práticas mais exíveis do mercado de trabalho e do
emprego, constantes transformações no âmbito da automação e inovação
de produtos, um extenso período de desindustrialização (característico,
por exemplo, de Detroit) e transferência geográca de fábricas (HARVEY,
2014a, p. 179), bem como a intensicação do papel das novas tecnologias
de informação para o incremento da produtividade do trabalho e integra-
ção dos mercados nanceiros em escala global.
Essa passagem ca ainda mais clara quando se percebe a dete-
rioração das economias capitalistas avançadas a partir da década de 70
(BRENNER, 1998, p. 6), acompanhada da chamada “nanceirização da
economia”. Apesar das inúmeras matrizes teóricas que buscam compreen-
der esse fenômeno e sua atual conguração enquanto “crise sistêmica
(GUTTMANN, 2008, p. 12) – seja a nança compreendida como um
setor da economia, um conjunto de mecanismos ou uma lógica particular
de funcionamento (BRUNHOFF, 2010, p. 23) –, no âmbito das análises
marxistas
3
é importante considerá-lo como base para a transnacionalização
da produção, facilitando a concentração da renda e da riqueza e sustentan-
do a hegemonia política do neoliberalismo por meio de constantes amea-
ças de fuga de capitais (SAAD FILHO, 2011, p. 244), além de também
permitir o desenvolvimento da “propriedade patrimonial”, cuja principal
nalidade está no “rendimento”, e não mais no consumo de massa e na
criação de riquezas que aumentam a capacidade de produção (CHESNAIS,
Trata-se do famoso “compromisso de classe” entre capital e trabalho, típico do chamado “novo liberalismo
(liberal socialismo) ou “liberalismo embutido”. Uma análise da construção desses arranjos nos Estados Unidos
e na Suécia pode ser encontrado em (BLYTH, 2002, p. 49-95; p. 96-125).
Não se ignora aqui que não há consenso na identicação das atuais crises capitalistas como sendo crises nanceiras.
E que sequer há um “entendimento geral” sobre como compreender a teoria marxiana da crise. A este respeito,
ver o capítulo “O caráter fragmentário e a recepção redutora da teoria marxiana da crise” [Der fragmentarische
Charakter und die verkürzte Rezeption der Marxschen Krisentheorie], em (KURZ, 2012, p. 244-273).
Democracia e Direitos Humanos
147
2005, p. 50)
4
. Seguindo a caracterização de Costas Lapavitsas, seria possí-
vel compreender a “nanceirização” como uma “transformação sistêmica
composta por três elementos principais: i) grandes corporações não nan-
ceiras reduziram a tomada de empréstimos de bancos e, simultaneamente,
desenvolveram setores nanceiros; ii) os bancos expandiram suas atuações
de mediação em mercados nanceiros para as famílias; iii) as famílias tor-
naram-se cada vez mais atuantes em nanças, tanto como devedoras quan-
to como detentoras de ativos (LAPAVITSAS, 2011, p. 611-612). É neste
contexto em que autores salientam ser possível observar um distanciamento
do “capital nanceiro” em relação ao “capital produtivo”, um “se pôr em
posição de exterioridade à produção”. Em sua última potência, a economia
nanceirizada se representa como uma sinédoque, como a totalidade da
economia (STÄHELI, 2007, p. 11).
Ainda que essas alterações fossem associadas à um projeto
utópico de reorganização do capitalismo, com suas promessas de
crescimento, emprego e bem-estar a partir da atuação conjunta entre
Estado e mercado
5
, a prática neoliberal demonstra que o capital nanceiro
nancia ele mesmo, mas não nancia investimentos em capital produtivo,
isto é, não nancia a economia real (DUMÉNIL; LÉVY, 2004, p. 127).
Por isso Harvey arma que “talvez as práticas contemporâneas relativas
ao capital nanceiro e às instituições nanceiras sejam as mais difíceis
de conciliar com a ortodoxia neoliberal” (HARVEY, 2014b, p. 83).
Daí a possível compreensão de que a “nanceirização da economia” da
Daí a centralidade do conceito de “acumulação nanceira” enquanto “centralização em instituições especializadas
de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, que têm como por encargo valorizá-los sob
a forma de aplicação em ativos nanceiros – divisas, obrigações e ações – mantendo-os fora da produção de
bens e serviços” (CHESNAIS, 2005, p. 37). Esta é a razão pela qual Guttmann considera que “a dominação dos
interesses de acionistas, reforçada pela predominância de opções de ações e bônus por desempenho baseados
em lucros como componentes principais da gestão de pagamentos, é suspeita de ser a maior culpada pelo
desempenho apático dos investimentos com relação aos níveis historicamente elevados da lucratividade das
empresas nas duas últimas décadas. O investimento envolve dispêndios com custos e adiamento de benefícios
imediatos, portanto, tende a primeiramente reduzir os lucros para depois impulsioná-los... algo não muito bem-
aceito quando o foco primário tornou-se o lucro trimestral”, (GUTTMANN, 2008, p. 13).
A cartilha neoliberal pretendia nos ensinar que a globalização nasceu de uma espantosa revolução tecnológica
capaz de aproximar o homem do momento em que vai se livrar da maldição do trabalho e gozar dos encantos da
vida cosmopolita. A microeletrônica, a informática, a automação dos processos industriais, etc. prometem nos
libertar das limitações impostas pelo espaço e pelo tempo. O indivíduo livre pode trabalhar em casa e se tornar,
além de patrão de si mesmo, um partícipe da prosperidade universal. A globalização, associando tecnologia
e transformação das formas de trabalho, estaria realizando essa maravilhosa promessa da modernidade”,
(BELLUZZO, 2009, p. 303).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
148
sociedade neoliberal seria um projeto político de restauração do poder das
elites econômicas, isto é, “um evento de natureza política, uma expressão
direta da luta de classes” que tinha como objetivo “recolocar o poder e a
riqueza tão plenamente quanto possível nas mãos da fração superior das
classes capitalistas” (CHESNAIS, 2005, p. 57).
Em suma, como salienta Alfredo Saad Filho, podem ser observa-
dos quatro tipos de análises marxistas que buscam conceituar o neolibera-
lismo: (i) como um conjunto de ideias inspiradas nos autores da Escola de
Chicago e do ordoliberalismo alemão
6
, que teve na Sociedade do Mont-
Pèlerin sua principal instituição articuladora; (ii) como um conjunto de
políticas, práticas e instituições inspiradas por essas ideias; (iii) como um
ofensiva de classe liderada pelo Estado contra os trabalhadores e pobres, em
nome da burguesia em geral ou das nanças em particular, e (iv) como
uma estrutura material de reprodução econômica, social e política, de tal for-
ma que o neoliberalismo seria um particular modo de existência do capi-
talismo contemporâneo ou, como já salientado, um especíco sistema de
acumulação (SAAD FILHO, 2015, p. 59).
Do exposto até aqui não é difícil perceber que a compreensão e
crítica do neoliberalismo têm sido feita por autores tradicionalmente dis-
tantes da matriz liberal. No entanto, o presente artigo sugere que as críticas
feitas por Bobbio ao “novo liberalismo” (neoliberalismo), em defesa da
democracia, bem como sua dúvida acerca da sobrevivência desta diante do
poder dos mercados nanceiros, de um lado, e daquele tipo de política do
espetáculo característico da berlusconização da democracia, do outro, po-
dem contribuir para um novo movimento de aproximação e diálogo com
a literatura marxista.
Diante daquelas duas teses fundamentais do “Marx economista
que ainda demonstrariam, segundo Bobbio, sua atualidade e importância,
a saber (i) o primado do poder econômico sobre o poder político e (ii) a
Uma primeira abordagem que diferencia o neoliberalismo americano do neoliberalismo alemão
(ordoliberalismo) e francês pode ser em encontrada no curso de Michel Foucault no Collège de France, no
ano de 1979. Naquele momento, o autor já destacava que “o liberalismo desempenhou nos Estados Unidos,
no período da guerra de Independência, mais ou menos o mesmo papel, ou um papel relativamente análogo
ao que o liberalismo desempenhou na Alemanha em 1948. Foi a título de princípio fundador e legitimador do
Estado que o liberalismo foi convocado. Não é o Estado que se autolimita pelo liberalismo, é a exigência de um
liberalismo que se torna fundador de Estado”, (FOUCAULT, 2008, p. 299-300).
Democracia e Direitos Humanos
149
previsão de que por meio do mercado tudo pode se tornar mercadoria
(a chamada “mercadorização universal”), tratar-se-ia, então, de aceitar o
convite feito em 1992 para que se releia Marx (BOBBIO, 2006, p. 299),
principalmente no âmbito do atual capitalismo nanceiro. Naturalmente,
diante das inúmeras abordagens que caracterizam os marxismos
7
, restaria
saber a partir de qual perspectiva isso poderia ser feito.
Nas próximas páginas, após apresentação da importância e
atualidade das críticas bobbianas ao neoliberalismo, bem como da defesa
de um projeto democrático social, será sugerida uma proposta de (re)
aproximação entre Bobbio e Marx, a partir de breve indicação acerca
do potencial de desenvolvimento crítico de alguns textos inéditos publi-
cados recentemente (BOBBIO, 2014). Se os debates que marcaram as
décadas de 50 e 70, reunidos em Política e cultura, Nem com Max nem
contra Marx e em Qual socialismo?, demonstraram a fecundidade que
o diálogo entre liberais e marxistas pode ter, as recentes publicações de
Contra os novos despotismos: Escritos sobre o berlusconismo e Escritos sobre
Marx: Dialética, Estado, sociedade civil talvez possam contribuir para a
atual necessidade de construção de um terreno crítico comum como for-
ma de reação à hegemonia neoliberal.
eNtre democracias e liberalismos
Parece ser de bom tom iniciar essas reexões a partir daquela pre-
ocupação analítica
8
que sempre caracterizou os escritos de Bobbio. Ainda
que no limite do presente artigo não seja possível traçar um rico panorama,
naturalmente não exaustivo, acerca do abc do alfabeto liberal, o intuito de
se compreender a distinção “liberalismo” e “neoliberalismo” nada mais sig-
nica do que “esclarecer exatamente os termos nos quais são propostas as
antíteses” (BOBBIO, 2015, p. 69). Trata-se, assim, de apresentar, ao me-
Sigo aqui a distinção feita por Ingo Elbe entre o “Marxismo tradicional”, ou “Marxismo” (em singular),
fruto da interpretação partidária até então dominante, e as formas dissidentes e críticas da recepção da obra de
Marx, os “Marxismos” (em plural), dentre as quais insere-se a Nova Leitura de Marx, que será oportunamente
tematizada (ELBE, 2010, p. 13).
Utilizo aqui a conceituação de “analítico” em sentido lato, enquanto “dissecar situações, objetos e linguagem
nos elementos simples que os constituem” (BORSELINNO, 1987, p. 323).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
150
nos resumidamente, o tipo de articulação que perpassa esses liberalismos
9
,
isto é, entre um liberalismo clássico, o novo liberalismo e o neoliberalismo,
sendo necessário destacar que o “novo liberalismo” analisado por Bobbio
(BOBBIO, 2000a, p. 85-91) constitui, hoje, o núcleo duro do que se de-
nomina como neoliberalismo.
Aqui é importante destacar que o novo liberalismo, em resposta ao
liberalismo clássico (econômico) característico do período vitoriano, salien-
tava a necessidade de se abandonar o “livre-cambismo” e de tolerar a inter-
venção estatal na economia, desde que isso salvaguardasse os direitos indi-
viduais. Dessa forma, esse movimento também se apresentava como uma
alternativa ao socialismo coletivista e marxista, rejeitando a luta de classes
como motor de transformação social. Por isso mesmo, seus autores aderem
de preferência a uma forma de liberal-socialismo
10
. Como destaca Gilles
Dostaler, “naturalmente, esse novo liberalismo é o exato oposto daquilo
que hoje chamamos de neoliberalismo, que é, em primeiro lugar, uma
reação ultraliberal contra o intervencionismo keynesiano” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p. 60, n. 45).
Especiquemos um pouco mais o emaranhado conceitual do
novo liberalismo”: o conjunto de meios políticos, jurídicos e econômicos
que o caracterizam nasciam da necessidade de levar adiante a constatação
de que não existe nenhum nexo histórico ou conceitual necessário entre
democracia e socialismo, nem entre socialismo e democracia
11
. Durante
os debates da década de 70 e 80, na Itália, em que muitos defendiam a
necessidade de um salto qualitativo para a “autêntica sociedade socialista”,
as polêmicas quanto aos meios necessários para se atingir esse m marca-
Não se ignora aqui as diculdades de denição do termo “liberalismo”. Para uma análise ampla dos seus vários
sentidos e contextos, ver (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 686-705).
10
Na introdução ao livro de Carlo Rosseli, Bobbio sintetiza muito bem a particularidade da relação entre
socialismo e liberalismo: o socialismo seria a “consequência lógica”/”herdeiro” do liberalismo, “no sentido de
que, colocado o problema da liberdade como problema essencial da história, o que decorre da formulação
do liberalismo como losoa da liberdade, o socialismo é o grande movimento histórico que remove outros
obstáculos à liberdade” (ROSSELLI, 1988, p. 25).
11
Conforme a precisa colocação de Bobbio: “Se a experiência histórica nos mostrou, até agora, que um sistema
socialista surgido de modo não democrático (isto é, por via revolucionária ou por conquista), não consegue
transformar-se em sistema político-democrático, também nos mostrou que um sistema capitalista não se
transforma em socialista democraticamente, isto é, através do uso de todos os expedientes de participação,
de controle e de liberdade de dissenso, que as regras do jogo democrático permitem” (BOBBIO 1983, p. 33).
Democracia e Direitos Humanos
151
ram as intervenções de Bobbio, cujas sucessivas aproximações assinalavam
sua defesa de um socialismo democrático. Daí a consideração de Andrea
Greppi, de que os estudos de Bobbio sobre a democracia “se desenvolve-
ram em função desse ideal liberal socialista, como o único método possível,
e por sua vez aceitável desde o ponto de vista ético, para a transformação
da sociedade” (GREPPI, 1998, p. 287).
É nesse contexto em que se enquadram, quanto à forma, suas re-
exões acerca da ausência de uma teoria do Estado nos escritos marxistas
12
,
ou seja, o fato de não existir um modelo alternativo de organização políti-
ca, “um modelo que possa se dizer ‘democrático e socialista’ em contraste
com o modelo tradicional ‘democrático e liberal’”(BOBBIO, 1983, p. 65).
Daí a notória preocupação bobbiana de tematizar o “socialismo possível”,
isto é, que pode ser realizado na medida em que respeite as limitações que
o método democrático impõe, suas regras do jogo, ou “conjunto de regras
de procedimento” (BOBBIO, 2000b, p. 22), que “estabelecem não o que
se deve decidir, mas sim apenas quem deve decidir e como” (BOBBIO,
2000c, p. 427). Trata-se aqui, naturalmente, de contrapor os ns possíveis
e desejáveis ao signicado restrito da democracia, que implica somente o
requisito formal (e uma denição mínima) para que um Estado seja con-
siderável democrático
13
.
A menção aos ns nos leva diretamente para a questão refe-
rente ao conteúdo do “novo liberalismo”. Ainda que Bobbio tenha certa
vez manifestado acreditar ser o ideal socialista superior ao ideal liberal
(BOBBIO, 1999, p. 40), diante da falta de concordância sobre o elemen-
to que deveria servir de critério de distinção entre o que é ou não é um
regime socialista, salientava que este, “em todas as suas diferentes e con-
trastantes encarnações, signica, antes de tudo, uma coisa: mais igualda-
de” (BOBBIO, 1999, p. 39). Mas assim como Bobbio procura esclarecer
12
“Os teóricos do marxismo foram muito hábeis ao criticar a teoria das elites e sua aplicação nos estados
capitalistas (das críticas de Lukacs e Gramsci à obra de Michels até a crítica de Sweezy à obra de Wright Mills),
mas não tão solícitos em promover estudos sobre o fenômeno (ou inexistência do mesmo) nos estados socialistas”
(BOBBIO, 1983, p. 23).
13
“Estou até disposto a admitir que para que um Estado seja verdadeiramente democrático não basta a
observância dessas regras, ou seja, reconheço os limites da democracia apenas formal, mas não tenho dúvidas
sobre o fato de que basta a inobservância de uma dessas regras para que um governo não seja democrático, nem
verdadeiramente, nem aparentemente” (BOBBIO, 2000c, p. 427).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
152
as diferenças de signicado entre a liberdade segundo a doutrina liberal
(enquanto não impedimento) e a liberdade segundo a doutrina democrá-
tica (enquanto não constrangimento), é fundamental especicar em que
sentido “ao dizer ‘mais igualdade’ quero dizer também mais liberdade
(BOBBIO, 1999, p. 400.
Devemos atentar para a seguinte relação: diante da premissa de
que o único nexo social e politicamente relevante entre liberdade e igualda-
de é aquele em que a liberdade é considerada como aquilo em que os mem-
bros de um determinado grupo social são ou devem ser iguais (BOBBIO,
2009, p. 5), o que importa destacar é a perspectiva da igualdade na liber-
dade, isto é, igual liberdade como reciprocidade de poder: “a maior causa da
falta de liberdade depende da desigualdade de poder, isto é, depende do
fato de haver alguns que têm mais poder econômico, político e social do que
outros. Portanto, a igualdade do poder é uma das maiores condições para
o crescimento da liberdade” (BOBBIO, 1999, p. 41). Já presente no curso
Teoria da justiça: Lições de losoa do direito, de 1953, essa ideia era então
articulada com o conceito de justiça enquanto “ordenamento da igual li-
berdade” (BOBBIO, 2012, p. 119)
14
.
Em outras palavras, a relação entre liberdade e igualdade mani-
festa-se naquela fundamental articulação entre “liberdades de” (liberdades
civis) e “liberdades para” (direitos sociais, econômicos e culturais). Aqui
deve-se ressaltar que a “liberdade para” atribui ao indivíduo não apenas
a faculdade, mas também o poder para fazer. É este empoderamento que
suporta e garante que as “liberdades de” não sejam mera forma abstrata
da igualdade. Como bem destacado por Bobbio, “se houvesse apenas as
liberdades negativas, todos seriam igualmente livres, mas nem todos teriam
igual poder” (BOBBIO, 2000c, p. 504). Este é o signicado atual da li-
berdade após a passagem da liberdade hobbesiana como liberdade negativa
(não-impedimento) para a liberdade rousseauniana enquanto autonomia,
e da transmutação desta para uma concepção positiva da liberdade, em que
14
Bobbio já especicava a questão da seguinte forma: “segundo este critério [igualdade na liberdade], a justiça
consiste não no fato de que os homens sejam abstratamente iguais, mas que sejam iguais na liberdade, isto é,
iguais na faculdade de usar a própria liberdade e, assim, iguais não em sentido genérico (que é, também, um
sentido impróprio), mas em um sentido bem especíco [...]: é justo que os homens tenham a igual possibilidade
de desenvolver a própria liberdade” (BOBBIO, 2012, p. 118).
Democracia e Direitos Humanos
153
aquilo que conta é o poder positivo, isto é, “capacidade jurídica e material
de tornar concretas as abstratas possibilidades garantidas pelas constitui-
ções liberais” (BOBBIO, 2000c, p. 489).
Ou seja, ao considerarmos os indivíduos como pessoas sociais, isto
é, enquanto inscritas na materialidade da sociedade, é necessário “que sejam
reconhecidos outros direitos, tais como os direitos sociais, os quais devem
colocar cada indivíduo em condições de ter o poder para fazer aquilo que é
livre para fazer
15
. Esta concepção também demarca um tipo de compreen-
são muito particular do indivíduo. A concepção individualista presente na
repetida frase de que “a democracia moderna repousa em uma concepção
individualista da sociedade”, em Bobbio, não prescinde da consideração de
que o homem é também um ser social. E o que isso signica? Que para ns
de compreensão do tipo de enquadramento teórico que orienta o indivíduo
tal como colocado pelos autores neoliberais é imprescindível diferenciar o
individualismo da tradição liberal-libertária e o individualismo da tradição
democrática: o primeiro, ao arrancar o indivíduo do corpo social, isola-o
e condena-o a lutar pela própria sobrevivência, onde cada um deve cuidar
de si mesmo em luta perpétua, ao passo que o segundo busca reconciliar
o indivíduo com a sociedade, sendo esta o resultado de um livre acordo.
Segundo Bobbio, “o primeiro faz do indivíduo um protagonista absoluto,
fora de qualquer vínculo social. O segundo faz dele o protagonista de uma
nova sociedade” (BOBBIO, 2000c, p. 383).
Não por outra razão, em entrevista a Nello Ajello no ano de 1995,
Bobbio, ao abordar a democracia enquanto forma de governo em que to-
dos são igualmente livres, salientava que “esta igualdade requer, ao meu
ver, o reconhecimento também dos direitos sociais, a começar por aqueles
essenciais (instrução, trabalho, saúde), que aliás tornam possível um me-
lhor exercício dos direitos de liberdade. Os direitos sociais, o compromisso
de satisfazê-los e defendê-los: eis o critério fundamental para distinguir
a esquerda da direita” (BOBBIO, 1998, p. 119). Em 1996, ao retomar
o tema acerca da antítese entre liberalismo e socialismo, Bobbio volta a
armar a compatibilidade entre os dois termos, por considerar “que o re-
conhecimento de alguns direitos sociais fundamentais [educação, trabalho
15
Idem.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
154
e saúde] seja o pressuposto ou a precondição para um efetivo exercício dos
direitos de liberdade” (BOBBIO, 2000c, p. 508). Daí também a assertiva
de Bovero, após criticar a aporia presente no pensamento de Friedrich von
Hayek e salientar que a liberdade de alguns é limitada pela não intervenção
na redistribuição dos meios: “uma política de direitos sociais, entendidos
como dotações de meios para o exercício da autonomia pessoal, não apenas
não é incoerente com o princípio liberal de liberdade individual, mas é por
ele exigido” (BOVERO, 2002, p. 109).
No entanto, é a partir do compromisso bobbiano entre igualdade
e liberdade que podemos compreender, de um lado, o movimento “da
democratização do Estado à democratização da sociedade” (BOBBIO,
2000b, p. 67), que diz respeito à consideração de que existem outros centros
de poder além daquele que se manifesta na seara política e, do outro, a
consolidação do Estado de Bem-Estar Social, “enquanto resposta a demandas
justas provenientes de baixo” (BOBBIO, 2000b, p. 137). Daí a conceituação
sintética” da democracia “que tem por fundamento o reconhecimento dos
direitos de liberdade e como natural complemento o reconhecimento dos
direitos sociais ou de justiça” (BOBBIO, 2000c, p. 502).
Mas é justamente no “projeto de democratização” que as di-
culdades se mostram com toda a força e nitidez, principalmente para a
esquerda. Se esta, por exemplo, teve no reconhecimento dos direitos sociais
a maior materialização de sua razão igualitária (BOBBIO, 2001a, p. 125),
para além do conhecido desao político frente aos direitos dos homens –
não é tanto o problema de justicá-los, mas o de protegê-los” (BOBBIO,
2004, p. 23) –, e do pessimismo manifestado ao se constatar a não reali-
zação destes – “o novo ethos mundial dos direitos dos homens resplandece
apenas nas solenes declarações internacionais e nos congressos mundiais
que os celebram e comentam” (BOBBIO, 2000c, p. 677) –, subsiste a
constatação da inecácia de participação democrática na área dominada
pelo poder econômico. Como salienta Bobbio, é um fato que tanto nos es-
tados capitalistas como nos socialistas, as grandes decisões de política eco-
nômica são tomadas autocraticamente, constatação a partir da qual lança-
-se a inquietante pergunta, ainda em 1976: “quem pode excluir a hipótese
de que exista um limite de tolerância do sistema, de tal forma que o sistema
Democracia e Direitos Humanos
155
se despedace somente para não se dobrar às exigências?” (BOBBIO, 1983,
p. 90). Hoje, naturalmente, a história nos diz para qual lado a balança
tombou. No âmbito da “economia nanceirizada” não restam dúvidas de
que no embate entre aqueles dois tipos ideais de indivíduos, o liberal e o
democrático, este foi derrotado por aquele (BOVERO, 2015, p. 24).
uma chave de leitura bobbiaNa Para a crítica do Neoliberalismo:
Poder fiNaNceiro, Poder midiático e aNtiPolítica
As décadas de 70 e 80 são o pano de fundo do exame crítico
que Bobbio faz frente ao “novo liberalismo” (neoliberalismo, como já
destacado). Dois anos após a pergunta acima, o pensador de Turim, ao
analisar os processos de democratização da sociedade e burocratização do
Estado, “paralelos, interdependentes, e, até prova em contrário, irreversí-
veis” (BOBBIO, 1999, p. 73), achava “pouco provável uma inversão de
rota, como poderia ser aquela que levasse, em certo sentido, à privatização
do público, e, em sentido oposto, à restrição dos direitos civis e políti-
cos” (B0BBIO, 1999, p. 74). Já em 1984, Bobbio, a partir do diagnóstico
das chamadas “promessas não-cumpridas da democracia” (sobrevivência
do poder invisível, permanência das oligarquias, supressão dos corpos in-
termediários, revanche da representação dos interesses, participação inter-
rompida, ausência de uma educação para a cidadania), sustentava que a
partir dessas situações “não se pode falar precisamente de “degeneração
da democracia, mas sim de adaptação natural dos princípios abstratos à
realidade ou de inevitável contaminação da teoria quando forçada a sub-
meter-se às exigências da prática” (BOBBIO, 2000b, p. 20).
Neste contexto, é conhecida sua interpretação de que tais promes-
sas não poderiam ser cumpridas em razão de três obstáculos: (i) aumento
dos problemas políticos que requerem competências técnicas (tecnocracia
e democracia são antitéticas); (ii) contínuo crescimento do aparato buro-
crático (a burocracia pressupõe um poder ordenado hierarquicamente, ao
passo que democracia pressupõe um poder democrático) e (iii) ingover-
nabilidade da democracia decorrente da quantidade e rapidez com que as
demandas da população chegam ao sistema político (a democracia tem a
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
156
demanda fácil e a reposta difícil) (BOBBIO, 2000b, p. 46-49). E diante
da pergunta “se a democracia é predominantemente um conjunto de re-
gras de procedimento, como pode pretender contar com cidadãos ativos?”,
igualmente famosa é sua resposta, em que enumera seu apelo aos valores da
tolerância, não-violência, livre debate das ideias e fraternidade (BOBBIO,
2000b, p. 51-52).
No entanto, não seria possível suspeitar que essas diculdades de
avanço na concepção da igualdade na liberdade traduzem um questiona-
mento do núcleo teórico daquele “socialismo possível” caracterizado pelo
método democrático? Quando Bobbio questiona se “é possível a sobre-
vivência de um Estado democrático numa sociedade não-democrática?”
(BOBBIO, 2000b, p. 68), não deveríamos, então, perguntar “se a desejada
democratização de outros âmbitos da sociedade é efetivamente possível
(GREPPI, 1998, p. 295)? Se até mesmo aquele parâmetro normativo (res-
trito) das regras do jogo não encontra guarida nas “democracias” de hoje
em dia, se aqueles dois elementos nucleares do liberal-socialismo, a igual-
dade e a liberdade, estão em decadência nítida, a primeira, por se afogar
em quase toda a parte, numa enxurrada de cultura anti-igualitária”, a se-
gunda, por ser arrastada “pelo poder das oligarquias globais” e reduzida “a
um simulacro pela colonização midiática das consciências” (BOVERO,
2015, p. 35;41), como compreender essas alterações?
Segundo Bovero, “Bobbio costumava repetir que a Itália é um
laboratório político”, e acrescenta: “Permito-me acrescer: frequentemen-
te, assemelha-se ao laboratório de Frankenstein. Produz monstros perigo-
sos, que às vezes se apresentam com uma aparência agradável, cativante
(BOVERO, 2015, p. 44). Se Bobbio, na década de 80, já percebia que o
avanço do neoliberalismo colocava em jogo não apenas o Estado de Bem-
Estar Social, mas a própria democracia (BOBBIO, 2000b, p. 141), será
mesmo que as profundas alterações que passam a caracterizar o mundo
após a década de 70 são reações do “sistema”, manifestações daquele já
destacado limite de tolerância do “sistema” (BOBBIO, 1983, p. 90)? Ou
seriam ações de grupos? Indivíduos? Classes?
De toda forma, parece razoável dizer que o início da desconan-
ça e crítica de Bobbio frente ao neoliberalismo alcança seu clímax com o
Democracia e Direitos Humanos
157
pessimismo que tanto caracteriza seus escritos sobre o berlusconismo. Não
à toa Bovero salienta que “a ideologia neoliberal, que nos últimos tempos,
transformou-se em uma espécie de meta-orientação política global, vê na
democracia um obstáculo para o capitalismo, como já observava Norberto
Bobbio há mais de trinta anos. E assim, o capitalismo – ou o neocapitalis-
mo nanceiro – acabou por desautorizar a democracia, isto é, o poder de
autodeterminação política, instaurando uma espécie de rule of capital no
lugar do ruleoaw” (BOVERO, 2015, p. 26).
Isso signica que talvez seja possível encontrar em Bobbio uma
chave de leitura para compreender o contexto estrutural neoliberal em
que ocorrem as recentes e constantes guinadas da direita não liberal (no
sentido bobbbiano). Se o autor italiano, por um lado, sabe muito bem
que o berlusconismo fortica-se na anomalia relativa àquelas obscuras re-
lações, ainda a regular, entre poder político e poder televisivo (BOBBIO,
2016, p. 51), podendo tal movimento ser compreendido enquanto “uma
direita que promete, em primeiro lugar, segurança”, sendo que “existe
uma outra segurança, que é de esquerda, do trabalho e sobre o trabalho,
enquanto a segurança que Berlusconi garante é a típica solicitação de law
and order, na tradição da direita mais reacionária” (BOBBIO, 2016, p.
51), por outro lado, quando indagado acerca da possibilidade dos inte-
lectuais ainda poderem ter o papel de orientar os destinos da política, ao
melhor estilo azionisti, responde: “frequentemente, tenho a impressão de
que nesse universo continuamos a discutir sobre ideias, enquanto o que
conta agora são os grandes interesses econômicos e nanceiros, que pas-
sam por cima da política e não estão muito preocupados com a cultura
(BOBBIO, 2016, p. 81).
Como já destacado logo no início do artigo, a transformação
em poder político de poderes econômicos oriundos do setor televisivo
e nanceiro pode ser compreendida como uma característica recente do
híbrido processo de neoliberalização, algo que não passou desapercebido
por Bobbio, que em análises anteriores já havia destacado algumas de suas
características. Vale a pena recapitular: se os resultados do Estado Social se
apresentavam como “demandas justas provenientes de baixo”, e se isso era
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
158
fruto do processo de desenvolvimento (e alargamento) da democracia
16
,
então nada mais “natural” do que a compreensão da democracia como
novo obstáculo ao capitalismo nanceiro.
Em uma aguçada descrição, Bobbio considerava que “a crise do
Estado assistencial é o efeito também do contraste [...] entre o empreen-
dedor econômico que tende à maximização do lucro e o empreendedor
político que tende à maximização do poder através da caça aos votos [...].
No fundo, a exigência feita pelo neoliberalismo é a de reduzir a tensão
entre os dois, cortando as unhas do segundo e deixando o primeiro com todas
as garras aadas” (BOBBIO, 2000a, p. 140). Pouco tempo depois, Bobbio
rearmaria suas preocupações, salientando uma vez mais que o neolibera-
lismo apresenta uma defesa intransigente da liberdade econômica, daquele
individualismo liberal acima mencionado, “da qual a liberdade política é
apenas um corolário” (BOBBIO, 2000a, p. 87), de tal forma que a “for-
mulação hoje mais corrente”, a doutrina do “Estado mínimo”, teria que
acertar as contas com a tradição do pensamento democrático, não tanto no
que se refere à democracia igualitária, quanto à própria democracia formal
(BOBBIO, 2000a, p. 91).
Essa apreensão acerca das relações entre neoliberalismo e democra-
cia é de todo justicável, não somente pelo ideal de democracia apresentado
por Bobbio já em 1959, quando considerou a igualdade (na liberdade) como
ponto de chegada”, como ideal de um tipo de democracia a ser alcançada:
não é que os homens sejam iguais. Os homens devem ser iguais. A igualda-
de não é um fato a ser constatado, mas um dever a ser realizado” (BOBBIO,
2010, p. 39). Pois é na própria ressalva àquela nuclear relação entre igualda-
de e liberdade que a ameaça neoliberal se revela de modo mais claro. Se “a
16
Essa articulação entre “justiça” e “Estado social” é, naturalmente, mais complexa. Ainda que aqui não seja
possível abordar tal questão de forma detalhada, cumpre ressaltar a necessidade de um certo balanceamento
valorativo diante das especicidades de cada momento histórico. Em 1953, Bobbio, enquanto homem do
diálogo e mediador por excelência, já apontava a necessidade dos teóricos se conscientizarem dos problemas
atinentes ao “conito entre liberdade e igualdade”. Diante da então “crise do liberalismo” enquanto crise da
liberdade econômica fruto da “ameaça socialista”, Bobbio diferenciava duas posições extremas: de um lado, os
liberais defensores de uma liberdade espiritual e econômica total, do outro, os socialistas de uma planicação
total. Uma vez constatado o “paradoxo histórico” entre uma demanda cada vez maior por liberdade e um
avanço técnico cada vez acelerado que exige uma sempre maior organização da sociedade, Bobbio salientava a
necessidade de conciliar o individualismo dos liberais com o universalismo dos socialistas: “o problema de hoje
é de conciliar o individualismo espiritual e o universalismo econômico, encontrar o ponto em que um não deva
ceder ao outro” (BOBBIO, 2012, p. 137).
Democracia e Direitos Humanos
159
única forma de igualdade compatível com a liberdade tal como entendida
pela doutrina liberal, mas que é inclusive por essa solicitada, é a igualdade na
liberdade, o que signica que cada um deve gozar de tanta liberdade quanto
compatível com a liberdade dos outros, podendo fazer tudo que não ofenda
a igual liberdade dos outros” (BOBBIO, 2000a, p. 39), isso demonstra que o
segundo princípio fundamental daí decorrente é aquela “igualdade dos direi-
tos” (BOBBIO, 2000a, p. 39-40), que compreende “a igualdade em todos os
direitos fundamentais enumerados numa constituição” (BOBBIO, 2000a,
p. 41), o que inclui, notadamente, os direitos sociais, como já destacado. Se
retomarmos aqueles três direitos sociais fundamentais (educação, trabalho e
saúde) que Bobbio considera indispensáveis para o próprio exercício da liber-
dade (BOBBIO, 2000c, p. 506), e zermos uma análise do desempenho do
neoliberalismo em desconstruir esses arranjos nos últimos 35 anos, podemos
perceber nitidamente tanto o sucesso colossal do empreendimento neolibe-
ral em desativar estes dispositivos quanto o enorme desao que se apresenta
para o que resta da esquerda.
Ainda assim, que as consequências do neoliberalismo para a de-
mocracia constituem sua própria precarização é algo que Bobbio soube
muito bem diagnosticar (BOBBIO, 2016, p. 45)
17
. E aqui a questão da
antipolítica” parece ser a que mais salta aos olhos. Anal, que poderes
17
Hoje já é perceptível como a racionalidade neoliberal vai muito além. Não somente “democracia precária”,
mas “des-democratização”, (BROWN, 2006, p. 690-714). Ainda que o objeto deste artigo seja uma proposta
de reaproximação entre Bobbio e Marx, como será demonstrado, cabe aqui deixar desde já registrado a
fundamental importância de se incorporar os estudos de matriz foucaultiana, fundamentais para a compreensão
da arqueologia do pensamento neoliberal. Um trecho da “conclusão” dos autores Pierre Dardot e Christian
Laval, signicativamente intitulada “O esgotamento da democracia liberal” pode contribuir para tanto. Após
apresentarem as principais características da “razão-mundo neoliberal”, os autores salientam que ela “faz
desaparecer a separação entre esfera privada e esfera pública, corrói até os fundamentos da própria democracia
liberal. De fato, esta última pressupunha certa irredutibilidade da política e da moral ao econômico [...].
Além do mais, pressupunha certa primazia da lei como ato do Legislativo e, nessa medida, certa forma de
subordinação do poder Executivo ao Poder Legislativo. Também implicava, se não uma preeminência do direito
público sobre o direito privado, ao menos uma consciência aguda da necessária delimitação de suas respectivas
esferas. Correlativamente, vivia de certa relação do cidadão com o “bem comum”, ou “bem público”. Por isso
mesmo, pressupunha uma valorização da participação direta do cidadão nas questões públicas, em particular
nos momentos em que está em jogo a própria existência da comunidade política. A racionalidade neoliberal, ao
mesmo tempo que se adapta perfeitamente ao que restou dessas distinções no plano da ideologia, opera uma
desativação sem precedentes do caráter normativo destas últimas. Diluição do direito público em benefício do
direito privado, conformação da ação pública aos critérios de rentabilidade e da produtividade, depreciação
simbólica da lei como ato próprio do Legislativo, fortalecimento do Executivo, valorização dos procedimentos,
tendência dos poderes de polícia a isentar-se de todo controle judicial, promoção do “cidadão-consumidor”
encarregado de arbitrar entre “ofertas políticas” concorrentes, todas são tendências comprovadas que mostram o
esgotamento da democracia liberal como norma política” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 379-380).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
160
econômicos e midiáticos desestabilizam e distorcem o jogo democrático é
algo que se pode perceber pelas notícias dos quatro cantos do mundo. Mas
hoje, no início de 2017, basta pensarmos no mundo em que vivemos para
constatarmos aquilo que Bovero designa como uma estratégia de partidos
e movimentos que buscam consenso a partir de “fórmulas demagógicas
neopopulistas”, valendo-se, para tanto, de articulações simplistas, como a
contraposição entre uma suposta vontade “verdadeira” do “povo”, de um
lado, e aquela outra vontade (antiquada, corrupta?) associada ao tradicional
sistema de partido, do outro (BOVERO, 2015, p. 42). Bovero, que prefere
o termo “antidemocracia”, caracteriza a hodierna situação dizendo que,
apesar do consenso eleitoral obtido, esses atores são “uma caricatura, ou
melhor, um arremedo da democracia: de uma democracia aparente que re-
veste e traveste formas incipientes de autocracia eletiva” (BOVERO, 2015,
p. 42). Ora, a encarnação da berlusconização da democracia (entendida
aqui enquanto articulação entre poder econômico nanceiro, poder mi-
diático e discurso da “antipolítica”) na eleição de Trump como Presidente
dos Estados Unidos, para carmos apenas com um exemplo, parece revelar
a força deste espírito nesta segunda década do século.
Quais seriam, então, as estratégias que a esquerda deve desempe-
nhar para encarar o neoliberalismo? Por que seria frutífero, hoje, insistir
na defesa da leitura liberal de Bobbio (que jamais foi um defensor do li-
berismo, isto é, do liberalismo econômico, mas sim um árduo defensor do
liberalismo político) – que há tempos destaca, entre outros, a fundamen-
tal preocupação com a diminuição das desigualdades sociais (BOBBIO,
2010, p. 39), a ponto do autor preferir, em um de seus escritos da década
de 90, que um “grande partido de esquerda, em vez de deixar-se seduzir
pela reproposição da “revolução liberal” [...], levantasse a bandeira da “jus-
tiça social”, a bandeira sob a qual percorreram uma longa estrada milhões
e milhões de homens e mulheres que zeram a histórica do socialismo
(BOBBIO, 2001, p. 47-48)? E por que fazer isso a partir de uma (re)apro-
ximação com a literatura marxista?
É claro que uma resposta direta seria: porque as abordagens que
denunciam o custo social e subjetivo da nanceirização da economia são,
Democracia e Direitos Humanos
161
em grande parte, marxistas
18
. Mas algo além disso merece ser destacado. A
partir dos textos até agora traduzidos para o português, pode-se dizer (de
forma generalíssima) que Bobbio, na década de 50, foi fundamental para
a análise crítica de certo marxismo messiânico e de uma redução das con-
quistas liberais às “garantias burguesas
19
, defendendo, em polêmicas com
comunistas italianos, que um regime democrático deve não só remover a
desigualdade de poder econômico, político e cultural, mas também ga-
rantir os limites do poder estatal. Daí sua discussão com Togliatti, em que
arma: “é muito fácil desembaraçar-se do liberalismo se ele for identicado
com uma teoria e prática da liberdade como poder (em particular do poder
da burguesia), mas é bastante mais difícil desembaraçar-se dele quando é
considerado como a teoria e a prática dos limites do poder estatal, sobre-
tudo numa época como a nossa na qual reaparecem tantos Estados onipo-
tentes” (BOBBIO, 2015, p. 372).
Já na década de 70, os debates acerca da inexistência de uma teo-
ria marxista do estado socialista, do projeto democrático da esquerda frente
à democracia representativa e quanto à compatibilidade entre o projeto de
transformação socialista e a permanência da democracia, levaram Bobbio
a criticar o chamado “abuso do princípio de autoridade”, destacando, por
exemplo, que talvez fosse mais sábio utilizar a obra de Marx “para aquilo
18
Vale a pena rearmar a já mencionada importância das análises que partem de Foucault, que também realçam
a necessidade de se voltar a Marx. A mero título de exemplicação, veja-se as considerações de Wendy Brown:
“O ponto aqui não é corrigir Foucault com Marx, mas apresentar certas dimensões da análise do capitalismo de
Marx que teriam que ser fundidas com a apreciação da razão neoliberal feita por Foucault para produzir uma
rica explicação da desdemocratização neoliberal” (BROWN, 2015, p. 77). Ainda que inuenciado por inúmeros
outros autores, notadamente, Deleuze e Guatarri, as reexões de Maurizio Lazzarato caminham em direção
próxima: “Michel Foucault, de fato, negligencia completamente levar em conta a função da moeda na mudança
do “regime de acumulação” (passagem do capitalismo “gerencial” e “industrial” para o capitalismo “acionarial” e
pós-industrial” para utilizar noções frequentemente empregadas pelos economistas)” (LAZZARATO, 2011, p.
34). Por isso o autor já havia lançado a questão em livro anterior: “Mas, por que razão o sistema nanceiro tem
hoje em dia um tal poder de escolha, de avaliação, de decisão e inuência sobre a economia, ditando sua lei à
indústria e invertendo a correlação entre indústria e nanças que era característica das sociedades disciplinares?
É que a moeda é a existência, de uma maneira próxima à da linguagem, do “possível enquanto tal”. É a partir
dessa característica que ela pode, com mais facilidade do que a economia real, controlar e capturar a articulação
da diferença e da repetição, e ramicar-se com o seu motor: o virtual” (LAZZARATO, 2006, p. 118).
19
No “balanço” que Bobbio faz desses anos podemos observar essa mesma linha de raciocínio: “No início da
década de 1950 escrevi alguns ensaios em civilizado diálogo com alguns intelectuais comunistas, a quem eu
estimava pela seriedade de estudiosos e pela honestidade intelectual, com o propósito de persuadi-los do erro
em que sua admiração incondicional pelo país do socialismo os zera incorrer: o erro de interpretar os direitos
de liberdade como “direitos burgueses” que o Estado proletário poderia dispensar se fosse instaurado com a
ascensão deles ao poder” (BOBBIO, 1997, p. 166).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
162
em que é ainda utilizável, para dela tirar instrumentos adaptados à análise
da sociedade contemporânea” (BOBBIO, 1983, p. 40)
20
.
Hoje, esta mesma metodologia poderia servir como base para dar
conta daquelas duas teses gerais que na década de 90 ainda conservavam,
segundo Bobbio, a força de Marx: “a) o primado da economia sobre a política
e a ideologia, que se pode constatar continuamente também em nossas
democracias liberais, nas quais o peso do poder econômico para determinar
as escolhas dos eleitores é enorme; b) o processo de mercantilização universal
produzido pela universalização do mercado, para o qual qualquer coisa
pode se tornar mercadoria” (BOBBIO, 2006, p. 305). De um lado, os
dois conjuntos de crises nanceiras inter-relacionadas que caracterizam a
década de 90, a chamada “crise da tequila” (que atingiu o México em 1995
e se espalhou para o Brasil e a Argentina) e a “crise asiática” (que começou
na Tailândia em 1997, e se espalhou para a Indonésia, Malásia, Filipinas,
Hong Kong, Taiwan, Cingapura e Coréia do Sul) (HARVEY, 2014b, p.
105-106), além da “crise dos subprime”, em 2008, e sua política pragmática
subsequente que “não trouxe uma resposta duradoura para os problemas
estruturais que tornaram a crise possível, em particular a falta gritante de
transparência nanceira e o crescimento da desigualdade” (PIKETTY, 2014,
p. 460-461), do outro, o amplo processo de comoditização (mercadorização)
de tudo (HARVEY, 2014b, p. 178), expressado nos inacreditáveis casos de
venda de bebês por meio da organização de um mercado de distribuição
para adoção – ideia apoiada e defendida, naturalmente, pelo “expert” em
direito e economia, Richard Posner (POSNER, 1987, p. 59-72) –, dentre
outros
21
, parecem manifestar não só a atualidade das mencionadas “teses
generalíssimas”, mas a necessidade de construção de um quadro analítico
suciente amplo que permita problematizar essas questões.
Para tanto, é fundamental considerar que a hegemonia atual
das práticas e pensamentos neoliberais é fruto de um extenso desenvol-
20
Neste segundo momento, o “balanço” bobbiano é o seguinte: “Eu sustentava que Marx não se preocupara em
prever quais deveriam ser as regras para dar vida a um Estado “com rosto humano”, como se costumava dizer
então, porque o Estado enquanto tal estava destinado a desaparecer. Mas como o Estado não havia desaparecido
e não parecia destinado a desaparecer em futuro próximo, a questão era mais uma vez: “Qual Estado? Havia uma
alternativa aceitável para a democracia representativa?” (BOBBIO, 1997, p. 166-167).
21
Inúmeros exemplos podem ser encontrados em (SANDEL, 2014).
Democracia e Direitos Humanos
163
vimento teórico e de inúmeras alianças construídas ao longo de décadas.
Do Colóquio Walter Lippmann, em 1938 à criação da Sociedade Mont-
Pèlerin, em 1947, seguindo até as políticas de austeridade pós crise de
2008, a “vitória do mercado” vêm se manifestando de forma cada vez mais
vigorosa. No entanto, Bobbio sabia muito bem que o mercado, ao mesmo
tempo em que cria riqueza e libera imensas energias, também cria enormes
e intoleráveis desigualdades e, por isso mesmo (de forma absolutamente
coerente com o critério igualdade/desigualdade que norteia sua distinção
entre direita e esquerda), essa vitória signica, também, não o m da es-
querda (e muito menos o propagado “m da história”), mas a contínua
recriação das condições para a sua perpetuação” (BOBBIO, 1995, p. 68),
manifestada naquele compromisso possível (e de difícil dosagem) entre
liberalismo e socialismo, tal como colocado por Bobbio em entrevista a
Bresser-Pereira: “se se quer falar de social-liberalismo deve-se falar de um
compromisso de liberalismo político e de socialismo econômico e, portan-
to, de correção dos defeitos do livre mercado
22
.
O caminho para que essas condições permitam uma retomada
do “liberalismo de esquerda” (Bobbio) frente ao “liberalismo de direita
(Hayek) (BOVERO, 2002, p. 94) é, indiscutivelmente, longo. Se um
Bobbio “velho e acabado” salientava não saber como os potentados eco-
nômicos e nanceiros movem o mundo, para então questionar, se “valerão
ainda as regras do Estado democrático e de direito, que até agora foi nosso
modelo ideal?”, se “sobreviverá a distinção entre o que é lícito e o que é
ilícito?” (BOBBIO, 2016, p. 81), as próximas páginas apresentarão breves
apontamentos que buscam sugerir de que forma algumas das “linhas de
convergência” com o marxismo, que o próprio Bobbio colocava, em 1975,
como factíveis de um novo momento de aproximação (BOBBIO, 2014,
p. 109), podem ser hoje retomadas e, assim, contribuírem para a consoli-
dação de uma nova agenda de pesquisa que busque melhor compreender
de que maneira nanceirização da economia e neoliberalismo subvertem
nossos frágeis arranjos democráticos.
22
Em “Bobbio defende o ‘compromisso’ entre liberalismo e socialismo”, de Carlos Bresser-Pereira, que contém
a entrevista que ocorreu em outubro de 1994, no escritório de Bobbio, em Turim. Disponível em http://www.
bresserpereira.org.br/articles/94.5.12.entrevista-bobbio.pdf (acesso em 24/11/16).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
164
aPoNtameNtos Para uma retomada de diálogos
A recente publicação de artigos inéditos de Bobbio sobre Marx,
selecionados e organizados por Cesare Pianciola e Franco Sbarberi
(BOBBIO, 2014), vem à tona justamente num momento de retomada
de discussões que buscam utilizar o referencial teórico marxiano para
compreender os fenômenos contemporâneos
23
. Não seria para menos. Se
no âmbito do chamado Welfare State ainda era possível acreditar naquele
tipo de política de compromisso típico da política de pleno emprego ke-
ynesiana e que tanto inuenciou o liberal-socialismo, alicerçada em taxas
de câmbio administradas, taxas de juros xas e controle dos uxos nan-
ceiros internacionais (notadamente, com o objetivo de conter a especu-
lação), medidas que caracterizaram o Acordo de Bretton Woods (SILVA,
2015, p. 51), a chamada agonia do “consenso keynesiano” durante o
processo de consolidação do poder dos mercados nanceiros e das me-
didas para assegurar a todo custo a centralidade do dólar (desvinculação
do ouro em 1971; introdução das taxas de câmbio utuantes em 1973
e o fatídico aumento unilateral da taxa de juros em 1979) constituem
algumas das razões pelas quais “hoje, mais do que nunca, a crítica da
sociedade existente não pode ser feita sem a crítica da economia política
(BELUZZO, 2009, p. 109).
É certo que, de modo geral, o leitor familiarizado com as dis-
cussões anteriores entre Bobbio e o marxismo encontrará neste último
livro a retomada de algumas considerações bastante conhecidas. No
entanto, também descobrirá alguns textos
24
que apresentam reexões
até então inéditas que merecem atenção. Aqui merece ser destacada
uma obviedade: naturalmente, não se pode exigir de Bobbio a incorpo-
ração de uma crítica da economia política em seu projeto de estudos. O
autor italiano nunca fez isso, e parece razoável dizer que as condições e
particularidades de seu tempo dicultavam a percepção de quanto isso
poderia ser relevante.
23
Uma breve compilação de exemplos em diversas áreas pode ser encontrada em (GONÇALVES, 2014, p.
302-305).
24
Em especial, Il marxismo teórico in Italia (1951), Il marxismo teórico in Italia (1958), Italo-marxismo (1967),
Marxismo e scienze sociali (1975), La Storia del marxismo Einaudi (1978) e Marx vivo? (1983).
Democracia e Direitos Humanos
165
Se hoje a situação é absolutamente diversa, não há que se descuidar
que o marxismo teórico na Itália, na visão de Bobbio, percorreu caminhos
bastante especícos. Uma vez que nosso autor pertence a uma geração que
estudou Marx a partir da crítica feita por Croce às teses de Labriola, é im-
portante considerar o tipo de leitura que caracterizou a chamada “primeira
fase do marxismo teórico na Itália”. Trata-se, aqui, de uma leitura losóca
(também presente em Gentile) de Marx que objetivava liquidá-lo enquanto
losoa. Existia então uma estratégia muito bem articulada: Labriola pro-
curou desconstruir a associação então dominante entre marxismo e posi-
tivismo, isto é, reuniu esforços para libertar os escritos marxianos de uma
interpretação positivista. Essa tentativa, no entanto, suscitou um grande
alarme entre os expoentes da losoa burguesa, e não seria para menos.
Como bem destacado por Bobbio, o marxismo interpretado pelas lentes
do positivismo era simplesmente inócuo, já que, positivado, “poderia ser
considerado um aspecto secundário da losoa burguesa e, assim, poderia
enquanto tal ser facilmente digerido e neutralizado” (BOBBIO, 2014, p.
61-62). Da mesma forma, se identicado com o positivismo, a superação
deste pelo idealismo também levaria irremediavelmente à superação do
próprio marxismo. É neste preciso sentido que a primeira fase do marxis-
mo italiano é conceituada enquanto uma negação losóca.
Mas após a guerra, a “segunda fase do marxismo teórico na
Itália”, inuenciada pela robustez do movimento operário, pela publicação
de escritos losócos então inéditos de Marx e pela ruptura com a
espiritualidade romântica, procurou armar, também no plano losóco,
o aspecto decisivo [decisività] do marxismo (com autores como Del
Noce, Balbo e Della Volpe) (BOBBIO, 2014, p. 31). Ainda que Bobbio
saliente que o “ítalo-marxismo” é caracterizado pela interpretação não
materialista de Marx, que culmina em uma leitura hegeliana do mesmo,
ou seja, seu enquadramento enquanto uma fase do pensamento losóco
europeu, de tal forma que “a característica dos italianos – impregnados de
hegelianismo – é a operação de reconduzir Marx a Hegel para enobrecê-lo
(BOBBIO, 2014, p. 39), o pensador de Turim não deixava de salientar
que o referido aspecto decisivo de Marx estaria na descoberta da tese do
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
166
materialismo histórico e da losoa da práxis (BOBBIO, 2014, p. 64)
25
.
Essa apresentação contextualizada do tipo de marxismo que predominou
na Itália até a década de 60 pode ser considerada a primeira contribuição de
alguns dos textos inéditos de Bobbio sobre Marx recentemente publicados.
A segunda contribuição parece estar intimamente associada
à anterior, na medida em que problematiza em que medida outro tipo
de marxismo poderia ser desenvolvido a partir das inúmeras abordagens
marxistas que surgem a partir da década de 60. Em um texto também
denominado “Marxismo e ciências sociais
26
, Bobbio demonstra estar
absolutamente a par das controvérsias do período. “O que se entende
hoje por marxismo? Tantos marxismos. O marxismo não é mais um
universo, mas um pluriverso” (BOBBIO, 2014, p. 103). As perguntas são
inúmeras: qual é o denominador comum para ser considerado marxista?
Uma concepção do mundo? Um método especíco? Possuir uma losoa
da história? Ou uma crítica política? É necessário um certo modo de
fazer losoa ou de fazer política? O materialismo? Qual materialismo?
E assim por diante... Bobbio reconhece que naquela época ninguém
refutaria totalmente Marx, assim como provavelmente ninguém o aceitaria
integralmente. O problema está justamente neste espaço intermediário,
que deixa aberta a possibilidade das posições mais diferenciadas: o não-
marxista, o lo-marxista, o quase-marxista, o neo-marxista, o marxista tout
court, etc (BOBBIO, 2014, p. 105).
Ainda assim, diante da dupla constatação de que “nenhum
dos grandes personagens da cultura italiana foi marxista (Croce Gentile,
Salvemini, Einaudi)”, e de que existem obras de Marx que constituem um
momento importante para o estudo da sociedade humana, “não se pode
negar que essas obras tiveram e têm crescentemente uma enorme inu-
ência sobre as ciências que se ocupam do homem em geral e do homem
25
Isso não signica que Bobbio tenha simpatia por esta linha de pesquisa, já que pessoalmente considerava que
mesmo o “Marx dialético” não superava a “metafísica marxista” (BOBBIO, 2014, p. 70. Em outro texto, Bobbio
também armava sua preferência pelo método analítico, ao invés do dialético, por não apreciar muito a ideia de
síntese” (BOBBIO, 2014, p. 73). Naturalmente, aqui não é o espaço para discutir até que ponto essas oposições
de Bobbio seriam remanescentes de uma leitura bastante particular de Marx, talvez decorrente daquele tipo de
marxismo teórico característico da Itália.
26
Em 1974 é publicada uma conferência de Bobbio que ocorreu em 1972, em Catania, no seminário Ciências
sociais e marxismo, cujo título também é “Marxismo e ciências sociais” (este texto foi inserido na coletânea Nem
com Marx nem contra Marx). Apesar da mesma nominação, os textos são diferentes.
Democracia e Direitos Humanos
167
social em espécie” (BOBBIO, 2014, p. 105). Conclusão: “necessidade do
encontro” (BOBBIO, 2014, p. 107). Após os debates das décadas passadas
com autores marxistas, em que sentido isso poderia acontecer?
Bobbio menciona, então, as chamadas “linhas de convergência”:
em primeiro lugar, a ideia da autonomia relativa do político. O que isso
signica? Citando as reexões de Poulantzas, a esfera política não seria um
puro e simples reexo daquilo que ocorre na esfera das relações de pro-
dução e de classe, tendo por isso mesmo uma função especíca, qual seja
constituir um fator de coesão social dos vários níveis da formação social,
isto é, como forma de regulação do equilíbrio global de uma formação so-
cial, enquanto sistema” (BOBBIO, 2014, p. 110). Daí a própria armação
de Bobbio, de que “hoje a teoria da autonomia do político pode ser um
bom ponto de encontro entre aqueles que partem de Marx e aqueles que
partem de outros pontos de vista. Um ponto de encontro e de fecunda
discussão” (BOBBIO, 2014, p. 110).
Outro tema que poderia contribuir para essa (re)aproximação
com a literatura marxista está no processo de burocratização do Estado.
Aqui Bobbio destaca a diculdade de se compreender tal fenômeno junto
com aquele outro processo paralelo da democratização das instituições pú-
blicas, destacando que, se um dos temas da ciência política não marxista
é a transformação do estado em um grande aparato, e se “o nosso destino
depende de qual dos dois processos superará o outro”, então “marxistas
e não marxistas têm que se beneciar das pesquisas de uns e dos outros
(BOBBIO, 2014, p. 111).
Por m, o problema da democracia é apresentado por Bobbio
como sendo uma terceira linha de convergência com os marxistas: Após
salientar que os marxistas corrigiram – e muito – seu tiro, e que uma dis-
cussão como aquela que aconteceu nos anos 50 seria naquele momento (o
artigo é de 1975) improvável, Bobbio reconhece que o “democratismo fá-
cil” de autores liberais seria então impossível. Se naquele período ninguém
poderia refutar algumas propostas marxistas de alargamento das bases de-
mocráticas do poder, características do chamado programa da democracia
radical, ninguém também poderia ignorar a experiência secular da demo-
cracia chamada primeiramente de “burguesa”, sem a qual não existiria nem
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
168
democracia burguesa nem democracia não burguesa. O arremate? “Aqui
está um grande terreno de encontro, desde que seja explorado sem precon-
ceitos, sem falsidade, sem recorrer ao ipse dixit” (BOBBIO, 2014, p. 112).
Mas a indicação de temas que permitiriam a continuidade de um
debate com os marxistas não acaba aqui. Em um artigo que buscava con-
tribuir para a chamada “crise do marxismo” no âmbito de livro intitulado
História do marxismo, Bobbio já salientava um aspecto crucial, qual seja a
prevalência de estudos sobre o “Marx losóco” em detrimento do “Marx
economista”, armando que “diante da massa innita e agora crescente de
estudos sobre O Capital e sobre todas as obras econômicas de Marx, há
uma certa desproporção entre os estudos dedicados às suas obras losócas
e políticas, e aqueles dedicados à crítica da economia política” (BOBBIO,
2014, p. 116). Coerentemente, ao ler um ensaio de Robert Heilbroner que
exaltava Marx como o maior lósofo depois de Platão e como inventor da
ciência crítica da sociedade, dizia: “Estou de acordo. Mas o que se entende
por crítica? Certamente existem vários signicados, mais quais são? Me
pergunto: não teria sido mais interessante um ensaio ‘Marx crítico’, ‘Marx
e a crítica’, mais que ‘Marx lósofo’?” (BOBBIO, 2014, p. 117). Não sa-
tisfeito, além de indicar a importância de se incluir em uma “história do
marxismo” os estudos sobre ciência e ideologia, muitas vezes esquecidos,
Bobbio considerava fundamental escrever algo como “Marx sociólogo”, ou
“Marx e a teoria da sociedade”, salientando que não existiria sociólogo na-
quele período que não travasse contato com ele (Pareto e Marx, Durkheim
e Marx, Weber e Marx, Parsons e Marx): “a obra de Marx é a mais gran-
diosa tentativa feita até agora de elaborar não somente uma teoria global
da sociedade, mas de encontrar as linhas de desenvolvimento da sociedade
humana como um todo. Tudo isso se chama hoje sociologia, goste ou não
goste” (BOBBIO, 2014, p. 118).
Do exposto até aqui não resta dúvidas de que Marx esteja vivo.
Como disse Robert Kurz em sua compilação dos textos marxianos mais
importantes para o século XXI: “Tot gesagte leben länger” [Aqueles de quem
se diz estarem mortos vivem mais] (KURZ, 2015, p. 15). Ao que Bobbio
já considerava: “Marx está vivo? Vivo sim, pelo fato de que ninguém
pode hoje prescindir de Marx”, ainda que “vivo não queira dizer válido
Democracia e Direitos Humanos
169
(BOBBIO, 2014, p. 120). As ponderações do pensador turinês são uma
vez mais extremamente sugestivas. Mesmo diante dos recorrentes abusos
de autoridade e revisionismos que tanto marcaram a marcha histórica do
marxismo em busca do “verdadeiro Marx”, Bobbio serenamente coloca a
vitalidade e validade de Marx naqueles dias (o artigo é, provavelmente, de
1983) da seguinte forma: “Trata-se de saber se podemos prescindir de Marx
para compreender o mundo contemporâneo, ou ao menos uma parte. Eu
creio que não [...] Não se pode negar que enquanto existir a sociedade capi-
talista a crítica marxiana não perderá nada de sua extraordinária força sub-
versiva” (BOBBIO, 2014, p. 121). Ainda que pessoalmente acreditasse
que a esquerda europeia deveria se libertar de Marx, Bobbio sugestivamen-
te dizia ter a impressão “de que a palavra nal cabe aos economistas”.
Qual o signicado dessas considerações para uma proposta de
retomada de encontros entre liberais e marxistas no âmbito da atual hege-
monia neoliberal? Qual é a atualidade de Bobbio para uma (re)aproxima-
ção com o “pluriverso” marxista? Se for razoável dizer que a publicação de
Scritti su Marx: Dialettica, Stato, società civile permite a consideração de ao
menos duas contribuições (em primeiro lugar, a caracterização das leituras
marxistas na Itália até a década de 60 como predominantemente losócas;
em segundo lugar, a percepção de que uma abordagem pautada na crítica
da economia política poderia levar o marxismo a caminhos possivelmente
mais frutíferos), então pode ser pertinente reetir sobre o modo a partir
do qual as “linhas de convergência” e sugestões de pesquisa apresentadas
por Bobbio na década de 70 e início da década de 80 poderiam ser, hoje,
tematizadas.
Aqui é fundamental perceber que não se trata tanto de retomar
Bobbio, mas de compreender o vasto e riquíssimo desenvolvimento dos
estudos marxistas após a década de 60 e, assim, problematizar como tais
estudos (que não foram nem poderiam ter sido analisados por Bobbio,
ainda que ele tenha indicado caminhos que foram de fato seguidos) podem
contribuir tanto para um diagnóstico preciso da atual sociedade capitalista
neoliberal, quanto para uma avaliação retrospectiva das chamadas “linhas
de convergências”.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
170
Notas sobre oPluriversomarxista aPós a década de 60
Se Bobbio já delineava O Capital e, assim, a crítica da economia
política, como eixo central de uma renovação dos estudos marxistas, o
que não deixa de ser surpreendente para um autor liberal, é curioso notar
que, de fato, no nal da década de 60, ganha espaço na Europa um outro
tipo de leitura de Marx, caracterizada, de modo geral, por efetuar uma
contraposição ao marxismo da “política de partido” da primeira metade do
século XX, que apresentava Marx como “o grande economista que provou
a existência da exploração dos trabalhadores, o colapso inevitável do capi-
talismo e a inevitabilidade da revolução proletária” (HEINRICH, 2005).
Trata-se aqui de observar uma crítica ao chamado “marxismo tradicional”,
que englobaria aquelas abordagens que analisam o capitalismo do ponto de
vista do trabalho, isto é, que compreendem o trabalho como uma atividade
social nalística, presente desde sempre na história do homem. Tal en-
tendimento seria marcado por uma concepção trans-histórica do trabalho
(ontológica), subvertendo o que em Marx seria uma categoria especíca da
sociabilidade capitalista. A partir desta grade conceitual, a sociedade era
concebida essencialmente em termos de relações de classe estruturadas pela
propriedade privada dos meios de produção (como se a dominação social
capitalista fosse externa ao próprio processo de produção) e uma economia
regulada pelo mercado (POSTONE, 2014, p. 21-22).
A contraposição à essa abordagem, a “nova esquerda”, no en-
tanto, não estava unicada. Tal como destacado por Michael Heinrich
(HEINRICH, 2005), uma corrente defendia, de um lado, que o motor do
desenvolvimento social estava na luta de classes, e não nas leis econômicas
objetivas que serviam aos sindicatos e partidos de esquerda como uma es-
pécie de álibi para dominar e controlar politicamente a classe trabalhadora.
Tendo o operaísmo italiano como um dos seus principais representantes,
essa tendência criticava a ortodoxia marxista pelo excesso de contemplação
estrutural e teórica. Do outro lado, observava-se uma corrente que acusava
a referida ortodoxia, inversamente, de falta de profundidade teórica, razão
pela qual seria necessária uma “reconstrução”, notadamente no plano me-
todológico, que livrasse as categorias marxianas das contrações dogmáticas
ortodoxas. Este é o início da chamada “nova leitura de Marx” (neue-Marx
Democracia e Direitos Humanos
171
Lektüre)
27
(representada, na Alemanha, por Helmut Reichelt e Hans-Georg
Backhaus, e posteriormente reformulada pelo próprio Heinrich).
Isso signica que é possível conectar historicamente as avaliações
de Bobbio com essas novas abordagens. Especicando um pouco mais
seu signicado, essa nova recepção da teoria marxiana afastava-se tanto
do “marxismo-leninismo”, quanto do “stalinismo” e da “social democra-
cia”, procurando recolocar os problemas da teoria do estado e da crítica da
economia política a partir de novas bases (notadamente, a partir de uma
retomada da crítica categorial). Mesmo não sendo uma escola homogê-
nea (muito menos consensualmente aceita (BIDET, 2015, p. 10-49)), “o
núcleo paradigmático da nova leitura de Marx consiste [...] numa crítica
da interpretação historicista ou empiricista da análise formal marxista por
parte do marxismo ocidental e de muitos representantes do neo-marxismo
no tocante à socialização” (ELBE, 2010, p. 32).
Seu escopo é não partir daquele tipo de reconstrução dos escri-
tos marxianos que “pressupunham a existência de um discurso coerente e
correto que seria simplesmente retirado dos vários manuscritos de Marx
(HEINRICH, 2014, p. 16). Ou seja, o que está em disputa aqui não é um
novo argumento de autoridade, a descoberta de um “verdadeiro Marx”,
mas “ir com Marx além de Marx” (KURZ, 2012, p. 24), razão pela qual
não se enquadra em nenhuma das duas estratégias (“o enxerto do pen-
samento de Marx nas losoas de tempos em tempos dominantes” ou
o retorno a um marxismo originário, autêntico”) criticadas por Bobbio
como forma de sair da crise do marxismo
28
. Como destaca Robert Kurz, “o
que está em causa não é somente uma disputa lológica em torno da in-
terpretação ‘correta’ das formulações de Marx, que teria de permanecer em
aberto. Pelo contrário, as contradições na argumentação de Marx remetem
para contradições reais do desenvolvimento histórico, de cuja concepção
27
Uma análise do início dessas novas leituras pode ser encontrada (BACKHAUS, 1997, p. 9-40).
28
Ao passo que a primeira estratégia, que deu origem aos diversos revisionismos, cumpre uma obra de
atualização sem jamais renunciar ao núcleo forte a teoria econômica, política ou losóca de Marx, a segunda
visa a uma espécie de restitutio in integrum, mediante a redescoberta do verdadeiro Marx, que não é este, nem
aquele, nem aquele outro, mas um outro ainda, a respeito do qual ninguém havia até então se dado conta
(BOBBIO, 2006, p. 283).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
172
diversa também têm de resultar consequências opostas para a crítica do
capitalismo e sua abolição” (KURZ, 2012, p. 44-45)
29
.
Ainda assim, pode ser útil apontar, mesmo que brevemen-
te, como essa nova leitura de Marx relaciona-se com o Engelianismo, já
que o próprio Bobbio, em 1975, destacava “o problema da relação entre
Marx e Engels”, salientando que “existe uma tendência de rebaixar Engels
(BOBBIO, 2014, p. 104). Segundo Elbe, o termo “marxismo” foi em-
pregado pela primeira vez pelo socialdemocrata alemão Franz Mehring,
em 1879. No entanto, o nascimento de uma escola propriamente “mar-
xista” tem início com a publicação de Anti-Dühring, de Engels, em 1878,
e de sua posterior recepção por Karl Kautsky, Karl Liebknecht, Eduard
Bernstein, entre outros. Elbe destaca que “os escritos de Engels – ainda
que conceitos como “Marxismo” ou “materialismo dialético” não se en-
contrassem neles – forneceram para gerações inteiras de leitores, Marxistas
e anti-Marxistas, o modelo interpretativo através do qual a obra de Marx
foi apreendida. [...]. Sobretudo o Anti-Dühring é elevado à categoria de
manual da doutrina Marxista” e de uma “cosmovisão marxista” retratada
positivamente” (ELBE, 2010, p. 14).
Mantendo contato com Bobbio, que no artigo acima citado
menciona a distinção entre um “Marx exotérico” e um “Marx esotérico”,
pode-se dizer que a sistematização e o conteúdo do “código marxista” de-
senvolvido por Engels seriam característicos do “Marx exotérico”. Robert
Kurz, que não aceita a distinção althusseriana entre um “jovem Marx” e
um “Marx maduro”, por considerar que o caráter contraditório da teoria
de Marx encontra-se em toda a sua obra, foi o responsável por tornar fa-
mosa a análise de um “duplo Marx”. O primeiro (do Manifesto Comunista)
seria o “exotérico” e positivo, universalmente conhecido como mentor do
movimento operário que atuava na “luta de classes”. O segundo (d’ O
Capital) seria o “esotérico”, obscuro e pouco conhecido, em que o capi-
29
Aqui não é possível esmiuçar a complexidade dessas novas leituras. Ainda que neste artigo autores como
Heinrich, Kurz e Postone sejam citados em conjunto, já que o objetivo neste instante é apresentar algumas
características gerais da neue Marx-Lekturë, deve car registrado desde já que a chave de leitura de cada um desses
autores é signicativamente diferente. Postone, por exemplo, tem como porto seguro de suas considerações os
primeiros capítulos d’ O Capital (lidos a partir dos Grundrisse), ao passo que Kurz não só destaca os problemas
entre o Livro I e o Livro III, valendo-se principalmente deste para construir sua perspectiva do colapso, como
também considera as formulações de Heinrich como sendo extremamente dogmáticas e simplistas.
Democracia e Direitos Humanos
173
tal aparece enquanto relação social, como sujeito automático” (KURZ,
2001, p. 28). Pois bem. O que há de novo nesse emaranhado conceitual?
Aqui é fundamental perceber que o modo de se considerar as
categorias marxianas (e sua retomada) é ponto de partida para compreen-
der a reinterpretação proposta pelos autores que compartilham essa nova
abordagem. Trata-se, primeiramente, de afastar a leitura puramente econô-
mica de categorias como mercadoria, trabalho abstrato, valor e capital, para
então reconsiderá-las como “formas de ser, as determinações de existência
(MARX, 2011, p. 59) de uma sociedade determinada, como já destacavam
Isaak Rubin em 1924
30
, e Roman Rosdolsky em 1968
31
, ou seja, enquanto
determinações do ser social no capitalismo” (POSTONE, 2014, p. 33)
32
.
Em segundo lugar, é importante considerar que a ordem de apresentação
das categorias marxianas não obedece uma sequência histórica, já que isso
seria, além de falso, impossível. Se nos pautarmos pela perspectiva de Kurz,
ainda que o capital, historicamente, tenha se desenvolvido na esfera da cir-
culação para depois tomar conta da produção, no capitalismo, na socieda-
de historicamente determinada por Marx, “o capital nasce exclusivamente
na produção
33
. Ou seja: o capital é, na verdade, pressuposto, ainda que
gure como resultado na exposição, assim como a simples forma da mer-
cadoria ou do dinheiro aparecem como pressuposto lógico, embora sejam
30
As diferentes categorias da Economia Política descrevem as diferentes funções sociais das coisas,
correspondendo a diferentes relações de produção entre pessoas. Mas a função socialque é realizada através de
uma coisa confere a essa coisa um particular caráter social, uma determinada forma social, uma “determinação
de forma” (Formbestimmheit), como Marx com frequência escreveu”, e “O sistema de Marx examina uma série
de crescentemente complexas “formas econômicas” de coisas ou “determinações formais” (Formbestimmheiten), que
correspondem a uma série de crescentemente complexas relações de produção entre as pessoas”, em RUBIN, Isaak
Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Editora Polis, 1987, p. 50; 51.
31
“Não se tratava apenas de descobrir o caráter alienado das categorias econômicas, mas sim de entender como
essa “inversão de sujeito e objeto”, próprio do modo de produção capitalista, era necessária e condicionada por
causas reais”, e “só Marx conseguiu superar sem reservas o pensamento fetichista da economia burguesa; a ele
devemos a prova de que, quanto mais se desenvolve o modo de produção capitalista, mais as relações sociais
de produção se alienam dos próprios homens, confrontando-os como potências externas que os dominam
(ROSDOLSKY, 2001, p. 363; 364).
32
De forma ainda mais precisa: “a teoria de Marx não é necessariamente uma teoria da primazia da esfera
econômica (“dinheiro”) sobre a política (“poder”), mas, pelo contrário, uma teoria do desenvolvimento histórico
dialético que insere, molda e transforma a economia e política, e suas inter-relações” (POSTONE, 2014, p.
295, nota 114).
33
“Este simples facto devia ser suciente para demonstrar que em Marx a relação entre a génese lógica e a
sucessão histórica é de uma natureza muito particular. Marx desenvolveu, no plano lógico, a totalidade do
capitalismo a partir da forma da mercadoria, que é o respectivo “germe”, o “núcleo” do capitalismo” (JAPPE,
2006, p. 86-87).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
174
o verdadeiro resultado (KURZ, 2012, p. 39-40). Consequentemente, as
categorias aparecem em razão da “relação que têm entre si na moderna
sociedade burguesa” (MARX, 2011, p. 60), ou seja, elas expressam a repro-
dução econômica e social não como surgiram inicialmente na história, mas
como existem no capitalismo (SAAD FILHO, 2002, p. 11). Trata-se do
célebre “problema da exposição” de Marx na crítica da economia política:
“O que é, na realidade, a totalidade social do capital, não pode aparecer
imediatamente na exposição teórica como tal. Pelo contrário, o objeto deve
ser desenvolvido no pensamento como uma série sucessiva de determina-
ções que, na realidade, não existe assim, mas imediatamente como um
todo” (KURZ, 2012, p. 39).
discussões Para uma (re)aProximação
Percorrido todo este caminho, o que pode ser dito sobre uma pos-
sível (re)aproximação entre Bobbio e a literatura marxista? Qual a relação
entre as duas contribuições extraídas dos escritos bobbianos sobre Marx
recentemente publicados (em primeiro lugar, a caracterização das leituras
marxistas na Itália até a década de 60 como predominantemente losócas;
em segundo lugar, a percepção de que uma abordagem pautada na crítica da
economia política poderia levar o marxismo a caminhos possivelmente mais
frutíferos) e o breve panorama da neue Marx-Lekturë apresentado? Se já é
possível perceber que aquelas duas teses marxianas fundamentais que ainda
demonstrariam, segundo Bobbio, sua atualidade e importância – (i) o pri-
mado do poder econômico sobre o poder político e (ii) a previsão de que
por meio do mercado tudo pode se tornar mercadoria (a chamada “mer-
cadorização universal”) –, são atualmente compreendidas a partir de uma
crítica categorial e de uma abordagem que enfatize as consequências do
processo de “nanceirização da economia”, como propor pautas concretas
para um novo encontro? Seguindo a sugestão de Bobbio de encontrar as
pontes de contato” entre liberais e marxistas (BOBBIO, 2014, p. 112),
mas restringindo as discussões, neste momento, ao campo da política e do
direito, os próximos parágrafos apresentarão algumas considerações que
objetivam servir como “estruturas” para um novo encontro.
Democracia e Direitos Humanos
175
No plano político, a primeira questão a ser colocada diz respeito
ao impacto que as novas abordagens tiveram naquelas três linhas de con-
vergência apresentadas: a autonomia relativa do político, a burocratização
e a democracia. Ou seja, se naquele período, no âmbito da “doutrina mar-
xista do Estado’, Bobbio se interessava pelos escritos de Poulantzas, exis-
tiria algo “novo” desde então que poderia servir como o condutor para
novos estudos? Aqui seria fundamental incorporar não somente o “debate
derivacionista do Estado” [Staatableitungsdebatte], mas também as elabo-
rações recentes que buscam levá-lo adiante. De maneira manifestamente
simplista: a importância da neue Marx-Lektüre está justamente no fato da
crítica derivacionista salientar que as análises de Poulantzas (e de Miliband)
seriam insucientes, já que tentatam compreender a relação entre Estado
e modo de produção capitalista sem incorporar as categorias marxianas de-
senvolvidas nO Capital. Se essas categorias não dizem respeito somente
à crítica do “nível econômico”, mas à crítica materialista da economia po-
lítica, isto é, à crítica da tentativa burguesa (liberal) de analisar a econo-
mia “isolada” das relações de classe e exploração em que se baseia, então,
como destacado por Holloway e Picciotto, “o objetivo não é desenvolver
conceitos políticos’ para complementar os ‘conceitos econômicos’, mas
desenvolver os conceitos dO Capital em uma crítica não somente da for-
ma econômica das relações sociais, mas também política” (HOLLOWAY;
PICCIOTTO, 1978, p. 04). Tratar-se-ia, então, de compreender o Estado
como expressão de uma especíca forma social, e não como simples reexo
de uma superestrutura econômica, como salientado por Joachim Hirsch
(HIRSCH, 2005, p. 18). Isso signica tanto uma crítica a Engels, por
restringir a análise do Estado à dominação de classe, como uma crítica a
Oe e Habermas, que tentam construir uma teoria especíca do político
(HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 57).
Se deste brevíssimo panorama percebe-se como o “debate
derivacionista” expande consideravelmente o conjunto de questões
analisadas por Bobbio em livros como Política e Cultura, Qual socialismo e
Nem com Marx, nem contra Marx, tais como “o Estado como superestrutura”,
“Estado burguês como domínio de classe”, “Estado de transição e formas
de governo” e “Extinção do Estado”, o que dizer então sobre a possível
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
176
contribuição do balanço crítico da própria teoria da derivação? Holloway e
Picciotto salientam que o debate da década de 70 possui limites, o que não
exclui, naturalmente, o valor da abordagem. Assim, as análises pautadas nas
determinações formais” não representariam uma “estrada da realeza para a
ciência” em que sequer seriam encontrados obstáculos para a compreensão
da política. Se o maior avanço dessa proposta não é “ter resolvido todos os
problemas da teoria marxista do Estado, mas ter estabelecido o pré-requisito
essencial para a compreensão do Estado com base na dialética da forma e do
conteúdo da luta de classes” (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 30),
e se mesmo Hirsch, após participar ativamente daquele debate, formula
uma hipótese acerca da passagem do Estado burguês “keynesiano” para
o Estado burguês “neoliberal” incorporando o conceito poulantziano de
“burguesia interna” (HIRSCH, 2005, p. 183), não haveria aqui material
suciente para a retomada de um diálogo com Bobbio?
No que se refere ao plano jurídico, deve-se ressaltar que a “for-
ma jurídica” também foi abarcada por autores do “debate derivacionista”,
que denunciavam o caráter meramente instrumental do direito em discus-
sões marxistas (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 109-110)
34
. Ou
seja, não há como ignorar que as relações sociais – incluindo as políticas
– assumem no capitalismo atribuição jurídica objetiva e subjetiva. Nesse
sentido, Picciotto já associava forma jurídica e forma política, salientando
que os debates jurídicos não colocavam a questão de saber “qual forma de
coerção está envolvida e como o consenso é obtido” (PICCIOTTO, 1979,
p. 165). Se uma coletânea de artigos publicados em 1991(BONEFELD;
HOLLOWAY, 1991) já procurava avaliar o “debate derivacionista” (bem
como a interessante “teoria da regulação”, cujos conteúdos e variações
não podem ser aqui abordados), fornecendo com isso um interessante
arcabouço teórico para compreende o papel social do direito, atualmente
também podemos observar algumas abordagens que podem contribuir
para um (re)encontro entre liberais e marxistas.
Note-se, por exemplo, a recente análise do próprio Picciotto,
que busca compreender as alterações jurídicas no âmbito da integração
34
Aqui também não é possível dissecar a fundamental importância dos estudos de Pachukanis para tal
compreensão, já que foi o jurista soviético quem já em 1924 criticava as compreensões do Estado e do Direito
como categorias estanques.
Democracia e Direitos Humanos
177
econômica nanceira internacional, como os direitos de propriedade
intelectual, cuja suposta legitimidade estaria na proteção dos autores
e inventores, ainda que, praticamente, sejam explorados por grandes
corporações (PICCIOTTO, 2011, p. 383). Ao analisar a perspectiva do
pluralismo jurídico, Picciotto considera que seu aspecto positivo (trazer
à tona a quantidade de modos possíveis de interação entre diversos
sistemas normativos) tende a ocultar a necessidade de análise da forma de
relacionamento do Estado de Direito com essas outras fontes normativas,
salientando, por isso, como abordagens que buscam revigorar o conceito
de Lex marcatoria possuem um alcance descritivo maior para explicar de
que maneira a autoridade da lei, mediante os conceito de propriedade
privada, foi utilizada para se opor às noções políticas de soberania estatal
durante as lutas neoliberais para recongurar o poder político e econômico
(PICCIOTTO, 2011, p. 448).
Neste contexto também pode ser sugestivo perceber, de um lado,
como diferentes abordagens podem contribuir para um estudo renovado
das relações jurídicas internacionais: de um lado, Picciotto parte da ideia
de que também deve ser dada atenção ao papel do direito em modelar e
denir os direitos de propriedade a partir dos quais os processos de troca
se estabelecem (PICCIOTTO, 2011, p. 450), o que pode contribuir para
a consolidação de um tipo de interpretação que, na esteira das conside-
rações de Sonja Buckel acerca do direito enquanto “tecnologia de coesão
social” (BUCKEL, 2007, p. 229), considera uma “autonomia relacional
do direito
35
como fator fundamental para um “potencial emancipatório
do direito” (BUCKEL, 2007, p. 312), tal como na abordagem de Andreas
Fischer-Lescano e Kojla Möller acerca da necessária transnacionalização
dos “direitos sociais globais”, não como eixo nuclear de um “projeto de
uma ordem mundial melhor”, mas enquanto forma de desencadeamento
das “contradições do direito global a partir de modestas reivindicações
(FISCHER-LESCANO; MÖELLER, 2012, p. 84); do outro, China
35
Toda autonomia é relativa, enquanto autonomização das relações sociais, isto é, “momento de uma totalidade
social”. Segundo Buckel, “autônomo é o direito somente em abstração dessa totalidade”. Daí a utilização do
termo “autonomia relacional” (à totalidade social), em substituição à ideia de autonomia relativa (BUCKEL,
2007, p. 243-244.) Também em (BUCKEL 2013, p. 30-31). Um aspecto fundamental da reconstrução proposta
por Buckel está na atualização do conceito de “reicação” enquanto “esquecimento do reconhecimento”, tal
como proposto por Axel Honneth (HONNETH, 2005, p. 68).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
178
Miéville, buscando atualizar a teoria pachukaniana na esfera internacional,
suspeita das abordagens “críticas” que partem da noção de que o direito se-
ria um “espaço de contestação em que um advogado comprometido pode
expor uma alternativa, até mesmo radical” (MIÉVILLE, 2006, p. 296).
As recentes análises acerca da instrumentalização do discurso dos direitos
humanos para ns de legitimação das chamadas “intervenções humanitá-
rias
36
aparecem, então, como formas de refrear o propagado humanitaris-
mo do “novo” direito internacional
37
.
Se articularmos os dois eixos a partir dos quais a crítica marxis-
ta vem se desenvolvendo, a crítica da “nanceirização da economia” e a
crítica categorial associada à crítica das relações de classe, como cam as
considerações de Bobbio sobre “Marx e a teoria do direito” e “Relações
internacionais e marxismo”? Ainda seria razoável insistir na análise sobre
infraestrutura/superestrutura? Sustentar que Marx e o marxismo “não dão
e provavelmente não pretendem dar qualquer contribuição” para questões
como origem, natureza, função e diferenciação entre os diversos sistemas
normativos (BOBBIO, 2006, p. 211)? Ou então destacar que a contri-
buição possível (mas ainda não “provada”, e por isso “defeituosa”) dos
marxistas estaria em salientar a relação entre direito e classe? (BOBBIO,
2006, p. 212)
38
. Se as análises do “debate derivacionista” que buscavam
realçar a importância da análise da “forma social” também enfatizavam
que seria um erro insistir numa “falsa polaridade” entre “lógica do capital”
e “luta de classes”, já que a aquela não seria nada mais do que expressão
desta (HOLLOWAY; PICCIOTTO, 1978, p. 29), não estaria aqui um
pré-requisito essencial” que poderia servir como base comum para pro-
36
“O que se denomina aqui de globalização de direitos é a estratégia ideológica do neoliberalismo na defesa
da universalização dos direitos humanos em seu aspecto puramente liberal, permitindo, a partir dessa matriz,
um controle ideológico das sociedades ditas democráticas com a nalidade de assegurar o ingresso do capital
estrangeiro, o acesso aos recursos naturais e a padronização cultural e de consumo, e que pode, inclusive,
justicar uma fundamentação para as intervenções armadas” (RICOBOM, 2010, p. 307).
37
Daí a assertiva de Miéville, de que “para alterar fundamentalmente a dinâmica do sistema seria necessário não
reformar as instituições, mas erradicar as formas do direito – o que signica a fundamental reformulação do
sistema político econômico do qual elas são expressão” (MIÉVILLE, 2006, p. 318).
38
Um pouco adiante, mesmo diante da variedade de interpretações marxistas, Bobbio arma que “na verdade,
não obstante a aparente riqueza das teses marxianas sobre o direito em que essa multiplicidade de interpretações
poderia fazer pensar, ela podem ser reunidas, se olharmos bem, à tese, ou melhor, à hipótese, como armei, ainda
a ser vericada, do direito como instrumento de domínio de classe e portanto como instituição ou conjunto de
instituições características de uma sociedade dividida em classes antagônicas” (BOBBIO, 2006, p. 214).
Democracia e Direitos Humanos
179
blematizar a ideia apresentada por Bobbio em 1978, de que as interpreta-
ções da teoria potencial de Marx sobre o direito são “tão diversas entre si
que não deixam sequer entrever o que têm em comum, põem seriamente
em dúvida a existência de algo que possa ser chamado de teoria marxista
do direito” (BOBBIO, 2006, p. 214)? Essa mesma contribuição da neue
Marx-Lektüre não poderia ao menos tornar mais complexa a relação apre-
sentada por Bobbio, de que “existe um nexo muito estreito entre a teoria
do Estado como instrumento de domínio de classe nas relações internas e
a teoria econômica do imperialismo nas relações internacionais
39
? Se na
década de 70 Bobbio já percebia que os debates em torno do pacismo e
da losoa da história estavam “em contraposição à realidade histórica de
uma sociedade humana cada vez mais beliciosa e conituosa” (BOBBIO,
2003, p. 163), qual o espaço de discussão para um “pacismo jurídico
no âmbito da “economia nanceirizada” e da guerra por drones que vem
alterando os fundamentos do jus in bello para um jus ad bellum
40
? Qual a
resposta frente à associação de grupos armamentistas e mercados nan-
ceiros (CHESNAIS, 2005, p. 223-247)? A construção de uma instituição
com autoridade superior? A ONU?
coNclusão?
Pode parecer estranho inserir um item intitulado “conclusão
em um artigo que tem como principal objetivo contribuir para um (re)
encontro entre diferentes tradições do pensamento. Anal, alguns temas
39
As duas teorias estão ligadas positivamente, na medida em que ambas estão fundadas sobre a tee central
do primado do econômico, mas também, e ainda mais, negativamente, com respeito à crítica da sociedade
existente, na medida em que os dois aspectos negativos do Estado (ditadura no interior, imperialismo no
exterior) dependeriam da única causa determinante, a sociedade dividida em classes antagônicas, ou seja, em
detentores de meios de produção e em possuidores da força de trabalho, pouco importando se se trata da
sociedade nacional ou da sociedade internacional” (BOBBIO, 2006, p. 230-231).
40
A guerra por drones, desenvolvida efusivamente pelos EUA desde o começo do século, implica uma profunda
alteração na estrutura de reciprocidade que permeava a base normativa da descriminalização do homicídio em
tempos de guerra. Ao aniquilar a dimensão do entrematamos por suprimir qualquer relação de combate, a ética
da “guerra justa” se desloca para uma “ética do abate” (necroética). Segundo Chamayou, “Como, nessa situação,
manter, para seus defensores, a possibilidade de um direito ao assassinato pelo ar? A solução consiste em nada
menos que um golpe de força no direito da guerra. Pois só haveria uma única possibilidade teórica para embasar
esse direito ao assassinato unilateral: rebater o jus in bello sobre o jus ad bellum, condicioná-lo ao outro, de modo
que se reserve ao “guerreiro justo”, de forma monopolística, segundo um modelo policial-penal de aparência não
convencional, o direito de matar sem crime” (CHAMAYOU, 2015, p. 182-183).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
180
que poderiam auxiliar no desenvolvimento deste percurso já foram apre-
sentados. Naturalmente, outros poderiam ser elencados: a importância da
reinserção do capitalismo na sociologia para o estudo da sociedade neolibe-
ral (DÖRRE; LESSENICH; ROSA, 2012) (uma daquelas “linhas de con-
vergência”) e seus possíveis resultados para a sociologia do direito, já que o
próprio Bobbio considerava fundamental “adequar a teoria geral do direito
às transformações da sociedade contemporânea” (BOBBIO, 2007, p. XI),
naquele período, no âmbito do Estado social; o sugestivo desenvolvimento
de uma “teoria crítica dos sistemas” (AMSTUTZ; FISCHER-LESCANO,
2013, p. 14) que busca inserir a sociologia luhmanniana no campo dos
estudos marxistas
41
, o que certamente assustaria Bobbio, que em sua obra
refere-se a Luhmann ora como o “mais renado (e complicado) teórico da
função do direito
42
, ora como um representante da “direita iluminista
(BOBBIO, 2000b, p. 122)
43
; ou mesmo um estudo que procure questio-
nar a importância da economia política (ou das crises do capitalismo) na
própria evolução conceitual do direito, já que é o próprio Bobbio quem
busca tensionar as bases da identicação entre função do direito e sanção
negativa, armando ser surpreendente “o peso que exerceu a concepção
privatista da economia e a correspondente concepção negativa do Estado
na determinação comum do conceito de direito” (BOBBIO, 2007, p. 97).
A própria explicação de Bobbio, ao destacar que tal interpretação restritiva
decorre de uma longa tradição que sempre procurou estabelecer as carac-
terísticas distintivas do direito relacionando-o à moral, e não à economia,
poderia servir de abertura para um novo encontro entre liberais e mar-
xistas... Ou então, comecemos com a crítica categorial, a nanceirização
da economia, a berlusconização da democracia e as relações midiáticas, a
antipolítica e suas consequências para aquela semântica do “bem comum”,
41
Antes de incorporar o conceito de autopoiese em sua teoria (1984 – Soziale Sisteme), Luhmann expressamente
considerava que a economia exercia um primado social (LUHMANN, 1970, p. 285). A ideia de que a
diferenciação funcional da economia torna necessária a diferenciação funcional dos demais sistemas sociais está
presente em LUHMANN, Niklas. Evolution und Geschichte (LUHMANN, 1975, p. 193).
42
“Inutilmente complicado” é a expressão utilizada por Bobbio em nota de rodapé. (BOBBIO, 2007, p. 112).
43
A recepção da teoria luhmanniana no Brasil é sensivelmente contraditória. De um lado, ela já foi compreendida
como proposta conservadora, defensora do sistema e, consequentemente, do status quo. Do outro, atualmente
ela passa por um processo de supervalorização, notadamente no âmbito da teoria do direito, sem atentar para o
fato de que Luhmann está preocupado em descrever o que é a sociedade moderna. Uma análise mais detalhada
pode ser encontrada (GONÇALVES; VILLAS BÔAS FILHO, 2013, p. 11-16).
Democracia e Direitos Humanos
181
o esgotamento da democracia liberal, ou a necessidade de luta por direitos
sociais globais, algo tão próximo do pensamento de Bobbio, etc. Qualquer
que seja a ordem de apresentação, tais exemplos são meramente ilustrativos.
Por isso mesmo, não há qualquer relevância em continuar tal exposição,
cujo aceite e desenvolvimento devem ser feitos em outra oportunidade.
Ainda assim, a título de uma conclusão normalmente esperada,
poder-se-ia destacar que as reexões aqui apresentadas buscam fornecer
elementos que, ao propor a plausibilidade do referido (re)encontro, ob-
jetivam servir como base para uma crítica ao giro normativo na teoria do
direito (tão bem cultivada pelos constitucionalistas), indagando as possi-
bilidades de uma teoria crítica do direito (enquanto críticaimanente) que
contribua para uma prática transformadora. Daí a necessidade de discus-
são da possibilidade de um potencial emancipatório do direito no âmbito
do capitalismo nanceiro, e da forma que isso poderia ter em nossas demo-
cracias estruturalmente liberais.
Talvez não fosse preciso ir muito além do convívio universitário
para perceber que nosso mundo parece se deslocar de um liberalismo rela-
tivamente democrático (e aqui está a importância bobbiana de denunciar e
manter aquele tipo de realismo e pessimismo que tanto o caracterizavam)
para um “sistema oligárquico avançado
44
. Se é improvável pensar que no
futuro teremos “homens autônomos” e um tipo de socialização em que
o “mercado” e o “direito burguês” não estejam presentes, isso reforça a
necessidade de uma teoria jurídica crítica que consiga (i) não só descrever
a complexidade da sociedade (neo)liberal atual, mas que (ii) também seja
capaz de condensar os pontos de contradição que podem ser explorados
para a construção de uma estratégia contra-hegemônica.
No entanto, em se tratando de Faculdades de Direito, talvez o
problema esteja principalmente no ambiente universitário. Professores li-
berais e os poucos marxistas que existem constantemente se esforçam para
construir feudos imunes, impassíveis de diálogo e com uma produção em
massa de adversários teóricos (espantalhos, na verdade). Naturalmente, esse
44
Utilizo aqui o termo que foi amplamente discutido nas aulas do crédito “Sociologia Política”, do Professor
José Maurício Domingues, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da UERJ, no segundo semestre
de 2016.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
182
tipo de ação não deixa de reetir o caráter muitas vezes pré-moderno das
universidades, com suas hierarquias e dominações pessoais características
e muito bem conhecidas pelos alunos. Este ambiente está hoje turbinado,
com suas contradições inerentes, pelas determinações de mercado que pa-
dronizam e transformam questões jurídicas, literalmente, em questões de
múltipla escolha. Neste labirinto, não resta muita coisa a não ser a banali-
zação dos estudos e do ensino. Poderia ser óbvio salientar que grande parte
do “descompasso” das análises de Bobbio sobre Marx e os marxismos está
relacionada com seu respectivo momento histórico. Mas isso pressuporia
uma articulação entre seu pensamento político e jurídico cuja problema-
tização ultrapassaria (de longe!) “discussões” meramente temáticas do tipo
“Bobbio e Kelsen”, “Bobbio e a norma jurídica”, “Bobbio e o ordenamento
jurídico”, “Bobbio e os direitos humanos”, justamente os temas até hoje
discutidos nos primeiros anos da árdua graduação jurídica.
O convite, feito por Bobbio em 1992, ainda está aberto.
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G     
 N B ( C S)
Giuseppe Tosi
Em comparação com a brutalidade das guerras religiosas e de partidos,
que por natureza são guerras de aniquilação
e nas quais os inimigos se discriminam mutuamente como criminosos e piratas,
isso [o m da doutrina da guerra justa]
signica uma racionalização e uma humanização,
com efeitos profundos.
(SCHMITT, 2014, p. 151)
Contrariamente ao que parecem acreditar os meus críticos,
o efeito do abandono da doutrina da guerra justa
não foi o princípio “todas as guerras são injustas”,
mas exatamente o princípio oposto:
todas as guerras são justas”.
(BOBBIO, 1991, p. 55-56)
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p187-220
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
188
Pretendo desenvolver o tema desta comunicação a partir de uma
questão central no pensamento internacionalista de Bobbio. Com a cons-
tituição dos Estados modernos, o soberano impõe o monopólio da força
legítima, destruindo, assimilando e homogeneizando os velhos corpos in-
termediários feudais, e criando assim as condições para uma ordem inter-
na; mas o mesmo não acontece nas relações internacionais. Depois do m
da respublica christiana medieval e das suas duas máximas autoridades, o
Papa e o Imperador que a governavam, os Estados soberanos modernos se
relacionam entre si quase como os indivíduos no estado de natureza hobbe-
siano, ou seja, num estado de guerra latente ou manifesta.
Sobre este ponto crucial se confrontam as teorias cosmopolitas,
que defendem a necessidade política, jurídica e moral de superar este esta-
do de anarquia internacional e as teorias realistas que, de alguma maneira,
justicam e legitimam esta condição, como algo insuperável que só pode
ser administrado, mas não eliminado. Bobbio, apesar das oscilações e da
prudência que lhe são características, se lia à primeira família de teorias,
como procuraremos demonstrar.
Embora não tenha elaborado uma doutrina sistemática das rela-
ções internacionais, Bobbio voltou repetidas vezes a trabalhar o tema da
relação entre democracia, direitos humanos, guerra e paz. Suas reexões
estão espalhadas em vários ensaios, desde aqueles reunidos em O problema
da guerra e as vias da paz (1979), passando por O terceiro ausente (1989), o
ensaio nal de O futuro da democracia (democracia e sistema internacional,
1991) até a sua autobiograa Diário de um século (1997)
1
. Os ensaios, con-
forme o estilo de Bobbio, são densos e não é sempre fácil entender se ele
está analiticamente descrevendo os dilemas da realidade ou prescrevendo
uma solução (cf. LAFER, 2013, p. 59-76).
Antes de tudo, queria justicar a ausência de uma atenção mais
detalhada ao tema do “equilíbrio do terror nuclear”, que ocupa uma par-
te relevante das reexões de Bobbio. Fiz isto não porque não considere
mais atual a ameaça atômica; ao contrário, ela continua tão atual como
na época de Bobbio. Os arsenais nucleares de várias nações continuam
repletos de armas e, ao perigo da deagração de uma guerra termonu-
 As datas se referem à primeira edição italiana.
Democracia e Direitos Humanos
189
clear entre Estados, − que aterrorizava os cidadãos durante a guerra fria
e que continua atual −, se acrescenta a ameaça bastante plausível de um
atentado terrorista atômico”, de efeitos catastrócos e consequências
imprevisíveis (GLEISER, 2016). Só que este tema, pelo seu caráter de
excesso”, ultrapassa qualquer discussão e elimina qualquer justicativa
de guerra justa, preventiva, defensiva, ameaçando a própria sobrevivência
humana, como Bobbio descreveu com muita propriedade (BOBBIO,
2003, p. 49-116).
Portanto, concentrarei o foco na guerra com as armas convencio-
nais, que aumentaram imensamente o seu poder de destruição, analisando
três aspetos: o problema da guerra e da paz, em particular o debate sobre
a guerra justa; a superação da soberania dos Estados através de uma asso-
ciação ou Federação de Estados, como condição necessária para a paz; e a
democratização das relações internacionais como premissa necessária de
todo o discurso.
Mas antes disso vou começar apresentando a posição oposta à de
Bobbio a respeito do tema, a de Carl Schmitt.
realismo Político e guerra justa: carl schmitt
Schmitt não é um autor com o qual Bobbio tenha se relacionado
com frequência
2
. Ele não é certamente um dos mestres de Bobbio, aliás, é
o adversário principal de um dos seus mestres, Hans Kelsen. Não é tam-
bém um interlocutor como, por exemplo, Marx, ao qual Bobbio dedica
uma grande atenção e um grande número de ensaios. Não é tampouco um
autor como Nietzsche e Heidegger que ele simplesmente ignora. Bobbio
conhece bem a obra de Schmitt, teve em 1937 um encontro pessoal com
ele
3
, mas o considera um teórico do nazismo e ironiza com a esquerda ita-
liana que rende homenagem ao seu pensamento.
Na antologia organizada por Marco Revelli, em mais de 1700 páginas de escritos de Bobbio, o nome de
Schmitt aparece poucas vezes e quase sempre de forma crítica (BOBBIO, 2009b).
O episódio é citado in Revelli, 2009, p. LXXXIV. Depois deste episódio, os dois pensadores trocaram
correspondências entre si durante um certo período. Ver Bobbio; Schmitt, 1997 e Sørensen, 2005.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
190
Carl Schmitt, que por um certo período de tempo foi não só promo-
tor, mas teórico do Estado nazista, acabou por ser, ao menos na Itália,
redescoberto e homenageado sobretudo por estudiosos de esquerda,
apesar de ter sido adversário, durante o grande debate constitucionalis-
ta da época de Weimar, de Hans Kelsen, maior teórico da democracia
daqueles anos. (BOBBIO, 2009b, p. 16)
Carl Schmitt − um dos grandes pensadores realistas do século
XX – em O nomos da terrano direito das gentes do Jus publicum europæum
(2014) arma que a paz de Westfalia de 1648 − que pôs m à Guerra dos
Trinta Anos e, mais em geral, à época das guerras de religião -, é um marco
na criação do moderno direito internacional, a partir do qual os únicos
sujeitos de direito passam a ser os Estados independentes e autônomos em
sua jurisdição, que não reconhecem nenhuma autoridade superior; ou seja,
que vivem num estado literal da anarquia. É o que Schmitt chama de jus
publicum europæum e que encontra no m da doutrina da guerra justa um
dos seus marcos fundamentais (SCHMITT, 2014, p. 117-160).
Seguindo uma tradição muito antiga, a doutrina da guerra justa
(justum bellum) defende que a guerra exige uma autoridade legítima que
a proclame, a boa intenção de quem a promove, a retidão no seu desen-
volvimento e a existência de causas justas que são fundamentalmente
três: a reparação contra uma injustiça sofrida (repellere iniuriam), a recu-
peração dos bens materiais injustamente subtraídos, a imposição do justo
castigo contra quem cometeu a ofensa (iniuria). Sem tais premissas, a
guerra se transformaria num crime (latrocinium), como havia armado
Santo Agostinho na Cidade de Deus, o primeiro padre da Igreja a elaborar
uma doutrina da guerra justa que terá uma enorme repercussão durante
toda a Idade Média
4
.
As guerras adquirem mais ou menos legitimidade dependendo do
tipo de inimigo que enfrentam: na Idade Média, os inéis muçulmanos,
que não reconheciam a fé cristã e haviam invadidos os territórios cristãos,
eram considerados inimigos perpétuos (perpetui hostes) da cristandade e as
guerras contra eles eram eo ipso justas.
Para uma reconstrução histórica do conceito de guerra justa ver: Walzer, 2003; Cassi, 2003, 2015;
Verhoeven, 1994.
Democracia e Direitos Humanos
191
O direito é chamado aqui não somente a formalizar e ritualizar
a guerra, mas a viabilizar a justiça; a guerra é vista como um instrumento,
ainda que extremo (extrema ratio), a serviço da justiça e da paz. Esta teo-
ria pressupõe a existência de uma autoridade superior que possa servir de
árbitro e de juiz sobre a legitimidade da guerra, porque esta pode ser justa
somente para um dos contendentes e não para ambos. Nesta doutrina, a
guerra é considerada um mal relativo que deveria sempre servir para ga-
rantir a paz
5
.
Schmitt confere à superação da doutrina da guerra justa uma
grande relevância histórica, porque de todas as causas de guerra justa só
resta uma: a autoridade legitima, todas as outras são eliminadas. Nesta
concepção, o direito de promover a guerra por parte da autoridade
constituída (jus ad bellum), está fora de questão. Qualquer Estado
soberano, por denição, possui este direito; portanto, o que podem ser
regulamentados são os comportamentos durante a guerra (jus in bello). A
guerra é legal, quando respeita certos parâmetros e convenções do direito
internacional e quando é exercida pelos Estados soberanos, os únicos que
possuem legitimidade para tanto e que não precisam do reconhecimento ou
da autorização de nenhuma autoridade superior (non expectata auctoritate
principis superioris).
Segundo Schmitt, esta mudança provoca três consequências
relevantes.
Há uma laicização da doutrina da guerra, que é retirada da com-
petência dos teólogos. A respeito disso Schmitt cita como momento para-
digmático a armação de Alberico Gentili
6
:
Silete theologi in munere alieno [Teólogos, fazei silêncio em matéria
alheia!], exclama Alberico Gentili, para manter os teólogos afastados da
discussão do conceito de guerra e salvar um conceito de guerra não dis-
Sobre as várias interpretações históricas da guerra justa desde a Antiguidade aos nossos dias, ver: Calore, 2003.
Em 1598, na Inglaterra elisabetana, o jurista italiano Alberico Gentili (1552-1608), exilado porque havia
abraçado o protestantismo, se tornou o primeiro professor de Direito Civil em Oxford e denunciou a intromissão
dos teólogos em assuntos que não lhes diziam respeito, assinalando assim, segundo Carl Schmitt, o m da
doutrina medieval da guerra justa e o início do jus publicum eropæum: “Alberico Gentili, um autêntico jurista
dessa época de mudança, deu o grito de guerra e encontrou a formulação que pode ser considerada o lema do
conhecimento sociológico da época: Silete theologi in munere alieno!”. (SCHMITT, 2014, p. 127 e p. 131-135).
A citação é retirada de: GENTILI, A. De iure belli libri tres, lib. I, cap. 12.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
192
criminatório. Na condição de nova ordem racional, o Estado se mos-
tra como o portador histórico da des-teologização e da racionalização.
(SCHMITT, 2014, p. 170).
7
Há uma racionalização ou ritualização da guerra: a humanida-
de sempre conviveu e continuará a conviver com a guerra, e o que pode
ser feito, dizem os realistas, é organizar, ritualizar, formalizar, delimitar,
através do direito, o âmbito do que é legítimo em caso de guerra, como
arma Schmitt:
No novo direito das gentes europeu, a guerra entre Estados surgiu
em oposição à guerra religiosa e à guerra civil, neutralizando e su-
perando as oposições entre os partidos. A guerra tornar-se agora
uma “guerra em forma”, “une guerre en forme”, pois se torna uma
guerra entre Estados europeus como tais, claramente delimitados
no que concerne ao seu território, um confronto entre unidades es-
paciais representadas como personae publicae [pessoas públicas] que
formam, no solo comum europeu a “família” europeia e que, desse
modo, estão aptas a ser ver mutuamente como justi hostes [inimigos
justos]. (SCHMITT, 2014, p. 150).
Há também uma humanização da guerra:
Em comparação com a brutalidade das guerras religiosas e de partidos,
que por natureza são guerras de aniquilação e nas quais os inimigos se
discriminam mutuamente como criminosos e piratas, e em compara-
ção coma as guerras coloniais, conduzidas contra povos “selvagens”,
isso signica uma racionalização e uma humanização, com efeitos pro-
fundos. (SCHMITT, 2014, p. 151).
Esta doutrina, segundo Schmitt, dominou os séculos que vão des-
de a paz de Westfalia de 1648, até a primeira guerra mundial com a criação
da Sociedade das Nações, que pôs m à época do jus publicum europæum
8
.
Esta armação pode ser vista como uma resposta quase que literal ao teólogo dominicano Francisco de Vitória
(1483-1546) que havia armado: “Ocium ac munus theologi tam late patet, ut nullum argumentum, nulla
disputatio, nullus locus alienus videatur a theologica professione et instituto” (“O ofício e a competência do
teólogo são tão vastos que nenhum argumento, nenhuma disputa, nenhuma matéria, parecem alheios à prossão
e à instituição teológica”). VITORIA, De Potestate Civili, 2016, p. 194.
Estranhamente Schmitt não inclui a segunda guerra mundial como parte desta mesma época; mais adiante
veremos os motivos desta opção.
Democracia e Direitos Humanos
193
Numa concepção decisionista e realista da política como aquela
de Schmitt, o direito internacional é lho da guerra, enquanto expressão
das relações de força entre os Estados. Neste caso, a máxima é: o direito
nasce do fato (ex facto oritur jus), o direito legitima uma situação de fato, ex
post factum.
A questão central em Schmitt no caso da guerra justa é a mu-
dança, segundo ele radical, da condição do inimigo, que não é mais visto
como injusto, mas como justo (justus hostis). O que chama a atenção nes-
sas reexões de Schmitt,− elaboradas de maneira muito elegante e culta e
repetidas com insistência em O Nomos da terra − é a sua paradoxalidade, o
que, aliás constitui uma das características do pensamento do lósofo do
direito alemão, apesar da (ou talvez devido à) clareza e contundência dos
seus argumentos (ALMEIDA FILHO, 2014, p. 57-69).
Em primeiro lugar, não se vê como se possa historicamente sus-
tentar a tese de que a formalização permitiu, além de uma laicização e
racionalização, uma “humanização” da guerra. Segundo Schmitt, o jus
publicum europæum vigorou desde a paz de Westfalia até o m da pri-
meira guerra mundial, com a paz de Versalhes e a criação da Sociedade
das Nações. No entanto, esta periodização é meramente formal, porque,
como se sabe, a Sociedade das Nações não conseguiu implementar o pro-
jeto cosmopolita wilsoniano e o que continuou vigorando foi o sistema da
soberania absoluta dos Estados pelo menos, até o m da segunda guerra
mundial, com a criação da ONU.
Este longo período de mais de 300 anos foi caracterizado por
inúmeros conitos armados entre Estados soberanos, como por exemplo
as guerras napoleônicas, e foi indubitavelmente um período marcado por
guerras continuas tão ou mais sangrentas e aniquiladoras do que as me-
dievais e renascentistas, devido ao desenvolvimento tecnológico do poder
de destruição das armas, mas também ao poder absoluto dos soberanos
de proclamar a guerra, que a formalização e racionalização não limitou e
humanizou nos seus efeitos destrutivos. Esta situação havia se tornado tão
grave ao ponto de suscitar a preocupação de vários pensadores iluministas:
o “projeto losóco” de À Paz Perpétua de Kant (2008), não é que o um
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
194
dos inúmeros escritos sobre o tema para tentar superar este estado sempre
mais intolerável de guerra e de anomia
9
.
Há um segundo aspecto paradoxal, que o próprio Schmitt põe
em evidência. As guerras acima citadas foram combatidas entre europeus,
dentro das linhas de fronteira de guerra e/ou de amizade (amity lines), que
caracterizavam a divisão dos espaços geopolíticos (SCHMITT, 2014, p.
85-146, p. 196-224). Nestes espaços teria havido a suposta delimitação
da guerra (Hegung des Krieges); mas além dessas linhas as guerras contra os
povos considerados “inferiores, selvagens e bárbaros” − praticadas durante
os séculos da colonização europeia do mundo, que começa com aquele
evento que Schmitt considera o maior evento histórico da humanidade: a
descoberta da América −, não teriam esta limitação. Estas guerras são legi-
timadas por Schmitt com o argumento da superioridade da “civilização
europeia sobre o resto do mundo. Há numerosas armações a este respeito
em O Nomos da terra:
Na realidade, a justicação da grande tomada de terra de solo não euro-
peu por potências europeias residia, naquele tempo, somente no desco-
brimiento. Descobrir – reperire, invenire, logo, découvrir – mares, ilhas
e terras rmes até então desconhecidos, isto é, desconhecidos por sobe-
ranos cristãos, constitui o único título jurídico verdadeiro que restou a
um direito das gentes eurocêntrico quando a ordem espacial medieval
da Respublica Christiana foi destruída e a argumentação teológica foi
suprimida. (SCHMITT, 2014, p. 137-138).
Disso deriva a crítica de Schmitt a Francisco de Vitoria e o seu
desconcerto diante da falta de reconhecimento por parte do teólogo es-
panhol do direito de descoberta (ius inventionis), como título legitimo de
domínio no Novo Mundo.
Na Relectio de Indis (1539), o teólogo de Salamanca havia liqui-
dado em poucas linhas esta tese armando:
Mas sobre tal título, que é o terceiro, não é preciso estender-se (non
oportet multa verba facere), porque, como se provou acima, os bárbaros
eram verdadeiros senhores, tanto pública quanto privadamente. [...]
Ficou famoso o projeto do Abbé de Saint-Pierre:Projeto para tornar Perpétua a Paz na Europa, 2002 (Clássico
IPRI); que provocou as reexões de J. J. Rousseau (2003).
Democracia e Direitos Humanos
195
Assim, ainda que tal título possa ter algum efeito junto com outro
(como se dirá abaixo), no entanto, tomado por si só e isoladamente,
não é de nenhuma serventia para justicar a dominação daqueles ín-
dios não mais do que se eles é que tivessem nos descobertos (non plus
quam si ipsi invenissent nos (VITORIA, 2016, II, 10, p. 130).
10
Vitoria usa um desconcertante argumento de reciprocidade que
demonstra, segundo Schmitt, uma “objetividade e neutralidade aparente-
mente ilimitadas” e provocam o seu comentário irônico:
Se cristãos e não cristãos, europeus e não europeus, civilizados e bár-
baros são dotados dos mesmos direitos, todos os conceitos têm de ser
reversíveis. Por isso, a respeito do título jurídico do descobrimento e
da ocupação, Vitoria arma o seguinte: um título jurídico como esse
(sc. occupatio bonorum nullius) não serve aos espanhóis em grau maior
do que se, ao contrário, “os índios nos tivessem descobertos” (non plus
quam si illi invenissent nos). [...] Mas, o que dirão os representantes da
civilização moderna sobre o fato de Vitoria não mencionar absoluta-
mente o direito de uma civilização ou cultura superior, nem fazer men-
ção ao direito de dominação dos civilizados sobre os semicivilizados ou
não civilizados? Ou de tampouco falar de “civilização”, um conceito
que, do século XVIII ao século XX, domina época inteira do direito
público europeu? (SCHMITT, 2014, p. 110-111).
Efetivamente, falta em Vitoria (como também em Bartolomeu
de Las Casas, e é ao contrário presente in Ginés de Sepúlveda
11
) a ideia
do direito de uma civilização superior a dominar sobre uma inferior, ar-
gumento típico das justicações ideológicas de grande parte das teorias
modernas eurocêntrica do direito internacional; e que é tão bem represen-
tada, segundo Schmitt, por Hegel: “Nas vorlesungen uber die Philosophie
der Geschichte, de Hegel, encontra-se a frase segundo a qual a cultura dos
mexicanos e dos peruanos “tinha de perecer logo que o espírito se apro-
ximasse dela”. E comenta: “Manifesta-se nessa frase a soberba autoconsci-
ência de uma losoa idealista da história” (SCHMITT, 2014, p. 111)
12
.
10
Cotejei a tradução da UnB-IPRI com o texto latim da edição bilíngue italiana (VITORIA, 1996),
modicando-a em alguns casos.
11
A respeito deste tema me permito assinalar: Tosi, 2006, p. 277-320.
12
Por uma crítica desta concepção hegeliana, ver Dussel, 1993, p. 17-26; Tosi, 2010.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
196
Por isso, para Schmitt, Vitoria à diferença do que armavam
Ernest Nys e James Brown Scott, não é o pai do direito internacional mo-
derno, mas permanece ainda no âmbito do jus gentium medieval e não do
jus inter gentes moderno (SCHMITT, 2014, p. 121-124)
13
.
Finalmente, Schmitt chega aonde queria chegar com todo este
longo excursus, ou seja, ao objetivo polêmico de toda a sua pesquisa e que
lhe interessava mais: a contemporaneidade. O m da segunda guerra mun-
dial, encerra a longa (e para ele gloriosa) era do jus publicum europæum e
inaugura o novo direito internacional, a partir da Sociedade das Nações
e depois da sua falência, da ONU e dos organismos internacionais. Este
novo direito internacional tem como momento central o reaparecimento
da doutrina da guerra justa, embora não mais num contexto teológico. E
Schmitt faz isto não para estigmatizar os regimes totalitários como o nazis-
mo, o fascismo, ou estalinismo e as suas políticas de extermínio, que rein-
troduziram o conceito de inimigo injusto que deve ser aniquilado como
nas guerras santas contra os inéis, mas para criticar os aliados, os vence-
dores da guerra que, com o julgamento de Nuremberg e de Tóquio haviam
criminalizado o inimigo (incluindo ele próprio), retomando assim a gura
do inimigo injusto e da guerra como uma forma de conseguir a justiça e a
paz (SCHMITT, 2014, p. 278-303)
14
.
Não deixa de ser surpreendente que Schmitt, no seu longo e eru-
dito ensaio, nada diga a respeito do regime político ao qual ela havia ade-
rido, que criou a gura do inimigo absoluto que deveria ser aniquilado
da maneira brutal, mais do que o inimigo das guerras medievais, através
do extermínio total dos judeus e dos outros povos considerados inferio-
res. Não se vê como Schmitt possa fugir deste dilema: se a guerra que os
nazistas empreenderam contra o inimigo interno e externo é ainda uma
expressão dos Estados soberanos, então ela se situa ainda na lógica do ius
13
Schmitt considera esses dois autores responsáveis pelo “renascimento” do pensamento de Vitória e Suarez
no século XX, considerados por eles como os fundadores do moderno direito internacional das gentes, e da
doutrina da criminalização da guerra, teses com a qual o lósofo alemão não concorda. Ver: Pietropaoli, 2008.
14
Danilo Zolo, apesar de apoiar a tese de Schmitt sobre a guerra justa, reconhece que: “Em Der Nomos der Erde,
como é notório, Schmitt suspende inesperadamente a sua exposição, não indo além do período posterior à
Primeira Guerra Mundial. Mesmo tendo presente como pano de fundo a tragédia da Segunda Guerra Mundial,
Schmitt nunca se pronuncia sobre os gravíssimos crimes cometidos pelo regime nazista em sua pátria e no
exterior”. (ZOLO, 2011, p. 231) (A profecia da guerra global). (ZOLO 2011, p. 203).
Democracia e Direitos Humanos
197
publicum europæum, e constitui o exemplo máximo de que a racionalização
e formalização da guerra não promoveram nenhuma humanização, mas ao
contrário a mais brutal desumanização.
Por outro lado, se ela pertence ao novo direito surgido depois da
segunda guerra mundial, que inclui a volta da doutrina da guerra justa − na
medida em que não trata o inimigo como o justus hostis, mas como perpe-
tuum hostis −, então este deveria ser o máximo exemplo da periculosidade
da guerra justa, muito mais do que a doutrina das “intervenções humani-
tárias” dos aliados que ele denuncia
15
.
O que nos cabe agora é confrontar e colocar em diálogo o rea-
lismo schmittiano sobre guerra e a paz com o cosmopolitismo bobbiano.
Como veremos, o objeto central de discordância é a guerra: enquanto os
realistas, apesar das diferenças, concordam que ela não pode ser eliminada,
mas somente limitada; os cosmopolitas defendem a necessidade da sua
eliminação, que seria kantianamente um sinal do progresso moral e políti-
co da humanidade. Para isso, as duas doutrinas elaboram deferentes con-
cepções das relações internacionais, os primeiros considerando os Estados
soberanos como os principais quando não os únicos sujeitos do direito
internacional, os segundos procurando a superação da soberania absoluta
dos Estados em favor de algum poder super partes.
o cosmoPolitismo de Norberto bobbio
O cosmopolitismo é uma doutrina antiga que encontra suas raí-
zes na losoa estoica que inuenciou o jus gentium do direito romano e
da respublica christiana medieval, retomada no Renascimento por Erasmo
e pela Segunda Escolástica espanhola (Francisco de Vitoria e Bartolomeu
de Las Casas), tradição que, pela mediação da doutrina da civitas máxima
de Cristian Wolfe e do pacismo e universalismo iluminista, chega até
Immanuel Kant (SCUCCIMARRA, 2006; FERRAJOLI, 2002).
O cosmopolitismo kantiano, apesar da sua força profética, não
encontrou ressonância nos séculos XIX e XX, período em que o poder
15
Jürgen Habermas, ao reetir sobre os 200 anos de À Paz Perpétua de Kant, analisa de maneira muito crítica
às teses de Schmitt sobre a guerra. Ver Habermas, 2002, p. 185-227.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
198
soberano dos Estados, inclusive os democráticos, foi dominado por um
fenômeno que Kant no havia previsto: os nacionalismos. Foi somente após
a terrível experiência das duas guerras mundiais e dos totalitarismos de
esquerda e de direita, − que podem ser considerados os últimos e mais radi-
cais exemplos do poder destruidor e incontrolável do sistema internacional
de soberania absoluta dos Estados −, que o projeto kantiano reapareceu
com força na cena internacional, inspirando e fundamentando as insti-
tuições cosmopolitas e encontrando um número expressivo de seguidores.
Na losoa política e do direito, o “globalismo jurídico” (ZOLO,
1998, p. 133-148), é hoje uma corrente da teoria do direito e da política in-
ternacional amplamente difundida entre estudiosos do direito internacio-
nal, lósofos e cientistas políticos, juristas, moralistas e teólogos que aderem
a uma visão cosmopolita das relações internacionais. Pensamos a um dos
maiores lósofos do direito do século XX, Hans Kelsen (1990), a Eric Weil
(1990), a Jürgen Habermas (2002 e 2006), a John Rawls (2002/2003), a
Hans Küng (1992/1999), e entre eles o nosso autor Norberto Bobbio.
a doutriNa da guerra justa seguNdo bobbio
Bobbio se lia explicitamente à tradição cosmopolita e pacista
que não considera a guerra como um mal aparente, nem como um mal ne-
cessário para o progresso moral, civil e técnico da humanidade (BOBBIO,
2003, p. 84-88; p. 90-93). Ao contrário, para Bobbio como para Kant,
a abolição das guerras seria um sinal do progresso moral da humanidade
(BOBBIO, 1992, p. 1-14; p. 131-142).
Bobbio, porém, não concorda com a teoria da guerra como um
mal absoluto, defendida pelo pacismo moral e religioso, porque há alguns
casos, como a guerra de defesa, em que ela é legítima porque “justicada
com base num princípio válido em todo ordenamento jurídico e aceito por
toda doutrina moral (com exceção das doutrinas da não violência): vim
vi repellere licet” (é lícito repelir a força com a força) (BOBBIO, 2003, p.
79). Portanto, nem todas as guerras são injustas, e aqui entra a discussão
da guerra justa.
Democracia e Direitos Humanos
199
Bobbio, sem citá-lo, concorda com Schmitt de que a época das
doutrinas da guerra justa, nos moldes teológicos tradicionais, acabou e
associa a crise da doutrina da guerra justa à crise do jusnaturalismo:
A sua decadência [da teoria da guerra justa] foi um dos muitos aspetos
da crise do direito natural ou jusnaturalismo e do advento do posi-
tivismo jurídico no início do século XIX. Para o jusnaturalismo não
havia diferença entre direito e justiça: uma lei para ser válida deveria
ser também justa. [...] Para o positivismo jurídico para que uma lei pu-
desse ser considerada válida não era necessário que fosse também justa:
era suciente que fosse emanada pela autoridade legítima”. (BOBBIO,
2003, p. 81).
Aplicando o método positivista ao conceito de guerra, Bobbio
constata que:
Em relação à guerra, os Estados se comportam entre si como se não
existisse nenhuma regra concorrente aceita para distinguir guerras jus-
tas de guerras injusta. Em outras palavras, os Estados consideram a
guerra um processo sempre lícito. Dessa consideração nascia a neces-
sária conclusão de que os critérios de distinção entre guerras justas e
injustas propostos por teólogos, lósofos e moralistas, [...] não tinham
se tornado até então direito positivo internacional. Em síntese, o pro-
blema da legitimação da guerra era uma questão moral; não ainda, e
talvez jamais, um problema jurídico. (BOBBIO, 2003, p. 82).
Utilizando as categorias tradicionais da guerra justa, o que não
está mais em discussão é o ius ad bellum, uma vez que cada Estado sobe-
rano é legitimamente autorizado a promover a guerra, portanto “em rela-
ção às causas de guerra, nenhum Estado tem limites jurídicos (de direito
positivo) mas apenas morais (ou de direito natural)” (BOBBIO, 2003, p.
83). O que ainda cabe é uma discussão sobre o ius in bello, ou seja, sobre a
conduta a ser seguida durante a guerra: “Em relação à conduta da guerra,
há limites também jurídicos, isto é estabelecidos por um direito vigente na
comunidade internacional à qual ele [o Estado] pertence e que ele próprio
contribuiu para produzir”.
E conclui que:
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
200
Se o direito internacional positivo não estava em condições de proteger
os homens do desencadeamento da violência (não tendo a sociedade
internacional o monopólio da violência), podia pelo menos protegê-lo
contra o uso indiscriminado da violência ou mais especicamente con-
tra a crueldade inútil (BOBBIO, 2003, p. 83).
Então, Bobbio comenta que na era atômica, a possibilidade de
uma guerra com armas termonucleares suprime denitivamente tanto o
ius ad bellum como o ius in bello, uma vez que “A guerra atômica, no senti-
do mais exato da expressão, é legibus soluta (BOBBIO, 2003, p. 84).
Mas é justamente este caráter destrutivo, tanto da guerra nuclear
como das guerras convencionais devido ao poder sempre maior das armas,
que coloca a necessidade da sua eliminação como armam as teorias pacistas:
Para nós interessa aqui o problema da eliminação da guerra, isto é, o
pacismo, cujo princípio inspirador poderia ser formulado com es-
tas palavras: os homens procuraram até agora em vão conter a guerra
dentro de certos limites; agora que esses limites foram pouco a pouco
eliminados e não parece possível introduzir novos, ou nos resignamos
à destruição indiscriminada, ou pomos a guerra denitivamente no
ostracismo. (BOBBIO, 2003, p. 130).
Bobbio, analiticamente distingue entre pacismo passivo e ativo,
e opta pelo pacismo ativo, que, por sua vez, divide em três tipos: instru-
mental, nalista e institucional ou jurídico, optando por este último, cuja
tese central ele assim dene: “A guerra é uma prerrogativa da soberania;
para abolir as guerras é preciso abolir o sistema atual das relações interna-
cionais baseado na igualdade dos Estados mediante a criação de um siste-
ma supra-Estatal universal” (BOBBIO, 2003, p. 133).
E comenta que, “o pacismo institucional é ao mesmo tempo
mais exequível, que o pacismo nalista e mais ecaz que o instrumental.
Por isso – mas aqui exprimo uma opinião fortemente pessoal – preferível
aos outros dois” (BOBBIO, 2003, p. 134).
Mas, enquanto a situação das relações internacionais continua
como está (rebus sic stantibus) o pacismo de Bobbio não abandona to-
Democracia e Direitos Humanos
201
talmente a ideia de guerra justa, pelo menos nas guerras com armas con-
vencionais não atômicas, e reconhece que ela, abandonada no século XIX,
voltou no século XX após a primeira guerra mundial, embora sem se tor-
nar uma opinião compartilhada por todos (communis opinio) (BOBBIO,
2003, p. 120)
16
.
O exemplo maior da volta da doutrina da guerra justa foi o deba-
te sobre a primeira guerra do Golfo (1990-91), que ele deniu como uma
guerra justa e legal, uma vez que foi uma legitima defesa a uma agressão
(invasão do Kuwait por parte do Iraque) e foi promovida por uma autori-
dade legítima, a coalizão liderada pelos Estados Unidos, e autorizada pelo
Conselho de Segurança da ONU (BOBBIO, 1991).
Esta sua posição provocou uma forte polêmica que transbordou
para a opinião pública em artigos de jornais e revistas. Alguns autores, entre
eles Celso Lafer (2013a, p. 77-85; 2013b, p. 305-319) procuraram mostrar
que a postura de Bobbio é coerente com o seu pacismo institucional:
Observa Bobbio que, de acordo com a tradição jurídica existem dois
tipos de guerra justa: a de defesa e a de reparação de um dano, apesar de
ser hoje difícil, por força do potencial destrutivo das armas, considerar
justa uma guerra. A qualicação de guerra do Iraque como uma san-
ção, e, portanto, como meio para armar o Direito através dos proce-
dimentos legais da Carta das Nações Unidas dá a ela os pressupostos de
uma guerra justa e legal. Esse é o parecer de Bobbio, que, em entrevista
ao Corriere, diz também que não se pode car passivos diante de uma
agressão. (LAFER, 2013b, p. 80)
Outros autores, entre eles Danilo Zolo, foram mais críticos e po-
lemizaram asperamente com Bobbio através de cartas, artigos em jornais
e revistas e ensaios acadêmicos. Zolo criticou Bobbio por ter se limitado
a uma avaliação “formal” do direito de legítima defesa sem ter entrado
no mérito de uma operação de enorme potencial destrutivo com terríveis
efeitos colaterais” sobre a população civil e militar (ZOLO, 2008a, p. 85-
98; 2003)
17
.
16
Provavelmente uma alusão as teorias realistas como as de Schmitt.
17
Uma ampla discussão sobre este tema pode ser encontrada na revista eletrônica fundada por Danilo Zolo, Jura
Gentium: http://www.juragentium.eu/jg/home.html .
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
202
Bobbio respondeu aos críticos sem mudar de opinião, mas diante
da brutalidade da guerra, reconheceu que houve excessos na sua condução
e que não havia previsto e calculado devidamente este aspecto. Em uma
carta a Danilo Zolo de 25 de fevereiro de 1991, em relação à polêmica
sobre a guerra justa, Bobbio escrevia:
Sou eu o primeiro a reconhecer que foi um erro de minha parte usar
a palavra “justo”, sem me dar conta de que poderia ser interpretada
de maneira diferente de como eu a havia entendida, ou seja, muito
simplesmente como “guerra justicada” como resposta a uma agressão.
Porém, desde a primeira entrevista disse e repeti dezenas de vezes que
o problema relevante não era aquele da licitude, mas da ecácia e da
conformidade com o escopo. (ZOLO, 2008, p. 154. Tradução minha).
De qualquer forma, apesar deste reconhecimento, alguns intér-
pretes consideraram esta sua postura uma “notável atenuação da oposição
de Bobbio a qualquer justicativa ética ou jurídica da guerra” (ZOLO,
2008a, p. 96) e identicaram uma descontinuidade do pacismo bobbia-
no, um “antes” e um “depois” da guerra do golfo (STAICO, 2006).
Mas a discussão sobre a guerra justa inevitavelmente nos obriga
a voltar à questão das relações internacionais e da superação da soberania
absoluta dos Estados nacionais.
as relações iNterNacioNais eNtre aNarquia e imPério
Como defensor do pacismo jurídico de inspiração kantiana e
kelseniana, Bobbio – à diferença de Schmitt e dos realistas políticos – não
considera a passagem da doutrina da guerra justa para a doutrina da guerra
en forme como algo positivo. Com uma frase lapidar, inspirada em Hans
Kelsen, Bobbio arma: “Contrariamente ao que parecem acreditar os meus
críticos, o efeito do abandono da doutrina da guerra justa não foi o prin-
cípio ‘todas as guerras são injustas’, mas exatamente o princípio oposto:
todas as guerras são justas’” (BOBBIO, 1991, p. 55-56).
Democracia e Direitos Humanos
203
A escolha pelo pacismo institucional ou jurídico implica numa
superação da guerra através de uma analogia entre direito público interno
e internacional:
O pacismo jurídico é aquela forma de pacismo que concebe o pro-
cesso de formação de uma sociedade internacional, na qual os conitos
entre Estados possam ser solucionados sem recorrer em última instân-
cia à guerra, por analogia ao processo pelo qual se teria formado, se-
gundo a hipótese contratualista, o Estado. (BOBBIO, 2009a, p. 168).
E aqui entra em jogo o que se convém chamar nas relações in-
ternacionais de domestic analogy (GREWAL, 2016): assim como os in-
divíduos no estado de natureza hobbesiano, que é um estado de guerra,
rmam um contrato para sair do estado de guerra permanente, os Estados
deveriam assinar um pacto de união entre eles que lhe permita sair deste
estado de guerra e garanta uma paz estável e duradoura
18
.
Para o pacismo jurídico o remédio por excelência [à guerra] é a
instituição do supra-Estado ou Estado mundial: já que, em certas
fases de um conito internacional, aquilo que torna inevitável o uso
da força é a falta de uma autoridade superior aos Estados isolados em
condição de decidir que tem razão e quem não tem e de impor uma
própria decisão com a força. A única via para eliminar as guerras é a
instituição desta autoridade superior, que não pode ser outra senão
um Estado único e universal acima de todos os Estado existentes.
(BOBBIO, 2003, p. 102-103).
Apesar desta armação peremptória (que, porém, não está claro
se seja descritiva ou prescritiva) há em Bobbio uma oscilação sobre qual
seria o tipo de pacto mais adequado: se seria suciente um pacto “horizon-
tal” de união ou de associação (pactum societatis) ou se seria necessário um
pacto “vertical” de submissão (pactum subiectionis) a um poder superior.
Bobbio arma que:
18
Trata-se, porém, de uma analogia e não de uma identidade; porque, por exemplo, enquanto no estado de
natureza o medo pode levar os indivíduos a aceitar um poder superior para garantir a paz e a segurança de
todos, nas relações entre Estados soberanos isto não acontece necessariamente, sobretudo para os Estados mais
poderosos, que não teriam motivos para ceder a sua soberania para um terceiro a eles superior.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
204
Nos séculos passados, e especialmente nos últimos séculos, caracteri-
zados pela expansão colonial das grandes potências europeia, sempre
que deixou de existir o estado anômico isto não se deu por meio de
acordo ou de formação de confederações ou estados federais, [...] mas
por meio da imposição de um Estado ou de um grupo de Estados so-
bre outros, quer dizer, mediante a forma típica do poder autocrático.
[...] Até hoje em dia, a história das relações internacionais conheceu
prevalentemente ou a relação anômica ou a relação autocrática, ou a
anarquia ou o império. (BOBBIO, 1991, p. 197-198).
E cita a Sociedade das Nações e a ONU como tentativas de supe-
rar esta dicotomia, saindo da anomia sem cair na heteronomia:
Estas duas instituições internacionais tendencialmente universais fo-
ram produto de um autêntico pactum unionis, ao qual, porém ainda
não se seguiu um pactum subiectionis, vale dizer, a submissão dos diver-
sos contraentes a um poder comum a quem se atribui a exclusividade
do poder coercitivo. (BOBBIO, 2000, p. 198).
Bobbio, embora com muita prudência, toma posição pela segun-
da hipótese, porque defende um conceito positivista de direito que neces-
sariamente está associado à força para ser efetivar, sem a qual não seria um
direito, mas uma mera aspiração ideal. “Segundo a ideia de direito que
aqui sustentei, para alcançar um estado de paz permanente não basta o pri-
meiro tipo de pacto, é necessário também o segundo” (BOBBIO, 2009a,
p. 169). E explicita este conceito:
A solução projetada pelo pacismo jurídico não visa a eliminação do
uso da força pelas relações sociais, mas apenas a uma mais ecaz regula-
mentação e limitação dele; tende a favorecer a passagem de um regime
jurídico em que vigora o direito à autotutela para um regime jurídico
baseado exclusivamente na heterotutela. (BOBBIO, 1991, p. 103).
O que signica que não é suciente uma Confederação de Estados
livres, que seria um Estado de direito provisório, mas um Estado Federal,
que seria um Estado de direito peremptório, “ou seja, aquele Estado no qual
foi se constituindo um ordenamento normativo no qual existe, segundo
Democracia e Direitos Humanos
205
a denição própria do positivismo jurídico, um poder coativo capaz de
tornar ecazes as normas do ordenamento” (BOBBIO, 2009a, p. 170).
Mas o lósofo não aprofunda a discussão sobre qual seria o tipo
de arquitetura jurídica e política deste pacto federativo senão através de
elementos esparsos (BOBBIO, 2009a, p. 119-138). O que me parece mais
interessante na reexão de Bobbio é a premissa fundamental de todo o
discurso sobre a paz e a guerra nas relações internacionais, ou seja, o caráter
democrático dos Estados.
a democratização das relações iNterNacioNais
No ensaio nal de O futuro da democracia, que é um dos últimos
ensaios sobre o tema publicado por Bobbio (em 1991), após a queda do
muro de Berlim, Bobbio coloca as seguintes questões:
1) Se as democracias são mais pacícas que as autocracias; 2) se, ad-
mitindo-se que sejam mais pacícas, a paz externa pode depender de
uma progressiva extensão dos Estados democráticos e da democrati-
zação da comunidade internacional; 3) que consequências podem ter
sobre a democracia interna dos Estados democráticos a presença de
Estados não democráticos no sistema internacional [...], em outras pa-
lavras se é possível ser democrático em um universo não democrático.
(BOBBIO, 2009a, p. 188).
Com relação ao primeiro e fundamental aspecto, Bobbio defende
que a forma democrática de governo é uma das condições para a paz:
Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários
do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconheci-
dos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as
condições mínimas para a solução pacíca dos conitos. Em outras pa-
lavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam
cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais;
haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa,
somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele
Estado, mas do mundo. (BOBBIO, 1992, p. 1).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
206
Em relação à segunda questão, a resposta pode ser encontrada
no ensaio coevo reunido em O terceiro ausente, publicado em 1989 pouco
antes da queda do muro de Berlim e de começo do m do bipolarismo
da guerra fria:
O futuro da paz está estritamente conectado com o futuro da demo-
cracia. [...] Entendida a democracia como a forma de governo que se
funda sobre:
1. Um pacto preliminar e negativo de não agressão entre as partes que
pretendem constituir entre sim uma associação permanente;
2. Um segundo pacto positivo no qual as partes decidem estabelecer
regras para a solução das controvérsias futuras, sem que seja necessário
recorrer ao uso da força recíproca;
3. A sujeição a um poder comum tão forte ao ser capaz de fazer respei-
tar os dois pactos precedentes:
4. O reconhecimento e a efetiva proteção de alguns direitos de liberda-
de, civil e política, que impeçam o poder assim constituído de se tornar
despótico. (BOBBIO, 2009a, p. LIV)
O raciocínio de Bobbio se desenvolve em quase perfeita analogia
com o percurso proposto pelos jusnaturalistas na passagem do estado de
natureza para o Estado civil, retomando o primeiro “artigo denitivo” de
À Paz Perpétua de Kant, no qual o lósofo iluminista defende a necessi-
dade de que a forma de governo dos Estados que se associam em uma liga
pacíca deve ser “republicana”, forma que podemos traduzir nos termos
atuais por democrática, apesar de Kant considerar a democracia como um
despotismo (KANT, 2008, p. 10-23; ROHDEN, 1997).
O primeiro pacto seria negativo, no sentido que exclui o uso da
violência nas relações recíprocas e cria as condições para o segundo pacto,
positivo, nos quais os contraentes entram em acordo para estabelecer regras
para solucionar os conitos. Bobbio, citando uma terminologia de Julien
Freund, dene este pacto como a passagem do estado polêmico ao estado
agonístico
19
: “Que não signica a passagem de um estado não-conituoso,
19
Polêmico no sentido etimológico, estado no qual se luta de forma agressiva pelos próprios interesses; e estado
agonístico no sentido de estado no qual se compete a partir de regras arbitradas.
Democracia e Direitos Humanos
207
mas a um estado no qual o que muda é o modo como são resolvidos os
conitos” (BOBBIO, 2000, p. 192).
Mas há um terceiro passo a ser dado, ou seja, a intervenção de um
terceiro, “vale dizer de um personagem (individual ou coletivo) distinto das
partes contraentes” (BOBBIO, 2000, p. 193). Esta é uma terceira passagem,
de uma situação de terceiro excluído a uma situação de terceiro incluído.
O terceiro incluído pode assumir, para Bobbio, várias guras.
Excluindo as guras do Aliado, que é um terceiro aparente porque não está
acima das partes; e do Neutro, que é um terceiro passivo, porque ca fora
do conito; o que interessa é um terceiro ativo, que intervêm diretamente
na solução do conito.
E aqui Bobbio apresenta várias guras possíveis de “terceiros”: a
do Mediador “que põe as duas partes em relação, mas não se substitui a
elas”, a do árbitro “a quem as partes delegam a decisão, comprometendo-se
a se submeter a ele”; e a do Juiz “autorizado por uma instância superior a
intervir para resolver o conito”, e que é, portanto, a única gura efetiva-
mente superpartes (BOBBIO, 2000, p. 194).
O Juiz, por sua vez por ser uma “instância que não possui o po-
der coercitivo de fazer com que a decisão seja cumprida, um “juiz im-
potente”; ou um juiz “cuja instância superior detém este poder, porque,
mediante um pacto de submissão lhe foi atribuído o uso da força legítima
(BOBBIO, 2000, p. 193-195).
Se aplicarmos estas guras ao direito internacional atual, pode-
mos dizer que as relações internacionais continuam sendo regulamen-
tadas por formas de terceiro aparente (aliado) ou passivo (neutro), por
formas de mediação e arbitrado (diplomacia e ONU), ou de juiz impo-
tente (Corte Internacional de Justiça) na grande maioria dos casos. E
que somente após a criação, em 2002, do Tribunal Penal Internacional
de Haia, fruto da assinatura do tratado de Roma de 1998, temos um pri-
meiro exemplo de um Terceiro com poder coercitivo, embora sua jurisdi-
ção não seja aceita que por um número limitado de Estados do mundo.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
208
Finalmente Bobbio elabora um conjunto de reexões sobre o
caráter democrático deste terceiro e do pacto de submissão que lhe dá
sustentação que não pode ser imposto, mas deve ter o consentimento
das partes.
Para que se possa falar de um pacto democrático, é necessário que se
incluam ao menos estas duas condições: a) que o poder soberano [...]
não se estenda sobre todas as liberdades...[...]; b) que sejam estabeleci-
das regras para as decisões coletivas de modo a permitir que sejam to-
madas com a máxima participação e o máximo consenso dos próprios
contraentes. (BOBBIO, 2000, p. 195-196).
A verdadeira premissa e aposta central de todo o discurso de
Bobbio é que todas essas propostas de arquitetura institucional das relações
geopolíticas mundiais, seriam um mero exercício teórico se não se realiza-
rem duas premissas fundamentais: a democratização das relações políticas
internas e internacionais. E volta aqui a domestic analogy kantiana:
Trata-se de uma conjectura que se inspira na ideia kantiana segundo a
qual a paz perpétua só é possível entre Estados que tenham a mesma
forma de governo e quando esta forma de governo for a forma republi-
cana [...] integrada pela ideia segundo a qual a união de todos os Es-
tados também deve ter forma republicana. (BOBBIO, 2000, p. 207).
Em suma, Bobbio arma que a história das relações internacio-
nais conheceu ou a relação anômica (anarquia)
20
ou a relação autocrática
(império), e que a Sociedade das Nações antes e a Organização das Nações
Unidas depois tentaram uma terceira via, que, porém, ainda não foi total-
mente percorrida.
As relações internacionais estariam assim entre o novo (“com base
no tácito consenso expresso pela maior parte dos membros da comunidade
20
Danilo Zolo é também um crítico desta perspectiva que prevê a concentração do poder militar nas mãos
de uma suprema autoridade internacional, armando que “no âmbito internacional, a falta de uma jurisdição
centralizada não parece equivaler a uma situação de anomia e de anarquia no radical sentido hobbesiano de
bellum omnium contra omnes. Apesar da falta de qualquer “harmonia de interesses”, os atores estatais mostram a
tendência, mesmo no contexto de imponentes assimetrias de poder e de recursos, a interagir, par “adaptar-se” e
cooperar com outros atores em busca de vantagens recíprocas”. Defendendo assim uma concepção de “sociedade
internacional anárquica” ou de “anarquia regulada” preferível, segundo ele, a uma concentração do poder, assim
como a denem autores como Kenneth Waltz ou Hedley Bull (ZOLO, 2013, p. 330). Sobre o debate entre os
dois pensadores, ver as cartas de Bobbio a Zolo, in: Zolo,2008a, p. 85-126.
Democracia e Direitos Humanos
209
internacional que deram vida e continuam a manter com vida a ONU”) e
o velho (que, “apesar de ter perdido a legitimidade com respeito à letra e
ao espírito do estatuto da ONU”, continua a ser efetivo”).
E conclui: “é difícil prever qual desses dois sistemas está destinado
a prevalecer hoje em dia” (BOBBIO, 2000, p. 200). Esta é a questão que
vamos analisar na última parte deste ensaio.
osobstáculos o Previstosou as Promessas o cumPridas
do cosmoPolitismo com relação à Paz
As análises de Bobbio, em toda a sua complexidade e ambiguida-
des, precisam ser reinterpretadas à luz das mudanças rápidas e preocupan-
tes do cenário internacional nos últimos decênios.
Limitarei minhas observações a discutir uma das premissas prin-
cipais do discurso de Bobbio sobre a guerra, ou seja, a que “as democracias
seriam mais pacícas que as autocracias”. Um dos principais argumentos de
Bobbio é a constatação factual de que, na contemporaneidade, nenhum es-
tado democrático promoveu uma guerra contra outro estado democrático:
No entanto, embora admitindo que possa estar correndo um certo
risco, creio ser possível fazer uma constatação nal: nenhuma guerra
explodiu até agora entre estados dirigidos por regimes democráticos. O
que não quer dizer que os estados democráticos não tenham feito guer-
ras, mas apenas que jamais as zeram entre si (BOBBIO, 2000, p. 50).
Concordo com esta armação que tem o seu exemplo mais
claro na experiência da União Europeia (UE), cuja formação parece ter
sido moldada literalmente a partir dos três artigos denitivos de À paz
perpétua: 1) toda Constituição deve ser republicana. Nesse sentido, as
cláusulas democráticas são uma conditio sine qua non para os Estados
serem admitidos na União Europeia. 2) Os Estados republicanos (hoje
diríamos democráticos) devem se unir numa Federação de Estados livres.
A União Europeia é uma união de Estados livres da qual os estados-
membros podem se associar ou dissociar livremente (ver o exemplo da
recente saída da Grã-Bretanha); 3) Esta união de Estados deve se submeter
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
210
a um direito cosmopolita. Para Kant, este direito correspondia ao de
hospitalidade universal, e para a União Europeia são os tratados como
o de Nice (2001), que garantem os direitos humanos fundamentais do
bloco regional (Ver SORTO, 2013, p. 335-362).
À luz das considerações de Bobbio, a ambiguidade da UE está
justamente no fato de que houve um pactum unionis, mas não um verda-
deiro pactum subiectionis, o que diculta a governance desta instituição sui
generis que não é uma Confederação, nem um Estado Federal, mas uma
“União”, que não possui uma política interna e externa unicada, e à qual
os Estado delegam poucas das suas atribuições soberanas.
Porém, apesar de todas as suas ambiguidades e tensões e apesar da
crise atual, há um fato inegável: foi a UE que permitiu, pela primeira vez
desde os tempos da pax Augusta, (que foi uma paz autocrática/imperial),
um longo período de paz, de prosperidade e de democratização das socie-
dades nunca antes visto na longa história da região, que sempre foi um
foco de guerras internas e externas que arrastaram o mundo inteiro.
A história da Europa mostra, porém, um aspecto que talvez tenha
sido subestimado por Bobbio: os Estados podem ser democráticos no seu
interior, mas imperialistas ou antidemocráticos nas suas relações externas.
Isto é um fato histórico, desde a Atenas de Péricles, até a primeira demo-
cracia moderna, os Estados Unidos e as potências coloniais europeias. A
armação dos direitos e das liberdades na Europa durante a modernidade
se deu contemporaneamente ao processo de conquista, ocupação, coloni-
zação do mundo (LOSURDO, 2006).
Também na atualidade as potências democráticas continuam man-
tendo uma política totalmente diferente se tratando dos seus cidadãos ou dos
cidadãos de outros Estados e o recurso à guerra (seja ou não autorizada pela
ONU) é bastante comum e corriqueiro, como podemos ver nas recentes “in-
tervenções humanitárias” nos conitos do Oriente Médio. Ao nal, apesar
de não mais existirem formalmente, as linhas globais de demarcação de que
fala Schmitt continuam separando os povos “bárbaros” dos “civilizados”, os
que podem ser “bombardeados” e os que não podem ser “bombardeados”.
Democracia e Direitos Humanos
211
O direito de hospitalidade universal, característica principal do
jus cosmopoliticum preconizado por Kant é hoje um dos direitos mais viola-
dos diante do drama e da tragédia dos milhões de imigrantes (a maior onda
migratória desde a segunda guerra mundial) expulsos dos seus países e que
vivem na condição dos apátridas descritos por Hannah Arendt em Origens
do Totalitarismo (1989).
Há também uma outra consideração: após a queda do muro de
Berlim que signicou o m do bipolarismo da guerra fria, muitos analistas,
entre eles Bobbio (embora com a prudência que o caracteriza) se deixaram
seduzir pela perspectiva de um processo de democratização da sociedade
internacional, os mais incautos chegaram até a hipotetizar o “m da histó-
ria”. No entanto, apesar dos avanços consideráveis no processo de demo-
cratização, no Leste europeu, na América Latina, na África post-apartheid
e em outras partes do mundo, hoje o Estado democrático de direito en-
frenta, do ponto de vista ideológico e prático, enormes desaos.
Na Ásia, os defensores da ideologia dos valores asiáticos (asian
values), legitimam sistemas políticos como o da China, do Vietnã, de
Singapura, que admitem a liberdade econômica, mas negam as liberdades
políticas. E a ilusão ocidental de que, aos poucos, as liberdades econômicas
levariam a uma democratização do Estado, do governo, das instituições, e
da sociedade parece não se conrmar. Os regimes autocráticos continuam
rmes e estáveis nos seus propósitos e na sua justicação teórica, se colo-
cando como alternativas ao Estado democrático de direito ocidental
21
.
Outro desao vem da Rússia, que após a dissolução da União
Soviética, entrou na órbita econômica capitalista, mas com forte presença
do Estado sobre a economia e a sociedade, e um regime político autoritário
e policialesco (sempre em equilíbrio entre a sua alma oriental e ocidental),
que é difícil denir, mas que certamente não corresponde aos cânones do
Estado democrático de direito ocidental.
E nalmente o terceiro e mais grave desao é aquele lançado pelo
islamismo no seu conjunto e por setores radicais, como o “califado islâ-
mico”. Há uma diculdade intrínseca à religião e à ideologia islâmica em
21
Sobre a questão de os “valores asiáticos” ver os ensaios sobre “Estado de direito e cultura orientais”, em Costa;
Zolo, 2006, p.827-992.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
212
aceitar os valores da democracia ocidental, devido à falta de uma clara dis-
tinção ou separação entre Estado e religião, e a falta de garantia dos direitos
individuais. A superação destes impasses só poderá acontecer deixando que
as próprias sociedades islâmicas se democratizem internamente; mas o que
se viu após a chamada “primavera árabe” de 2013, foi a substituição de
regimes autocráticos não por regimes democráticos, mas por formas de di-
taduras, como no Egito, ou de regimes autoritários como a Turquia ou de
guerra civil como no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia. Situações
que estão promovendo um confronto e uma ofensiva ideológica e militar
contra a democracia ocidental que alimentam as ideologias dos vários fun-
damentalismos islâmicos (Ver: COSTA; ZOLO, 2006, p. 747-826).
O que têm em comum estas situações, apesar das suas diferenças,
é a falta de uma tradição democrática, o que pode explicar a diculdade da
transição de regimes autocráticos para regimes democráticos, transição que
precisa de uma série de condições e de amadurecimentos históricos, que
não podem impostos pelo exterior com a força.
Por outro lado, o que preocupa é que, também nas sociedades
ocidentais, a democracia representativa está em forte crise, e estão surgindo
movimentos populistas e demagógicos sempre mais fortes, à direita como
à esquerda, que estão minando as bases das democracias, inclusive das apa-
rentemente mais consolidadas.Volta assim a ser atual a questão posta por
Bobbio: “se é possível ser democrático em um universo não democrático”.
A frustração com a esperança de uma democratização das relações interna-
cionais repercute sobre as sociedades democráticas submetidas a pressões
externas e internas sempre maiores com retrocessos institucionais graves.
Em lugar de um movimento expansivo da democracia, como se
esperava após o m da guerra fria, assistimos com preocupação a um mo-
vimento contrário de avanço de regimes não democráticos, ao que cor-
responde, não por acaso, o recrudescimento dos conitos e das guerras.
O que, de certa forma não deixa de ser uma demonstração a contrario do
axioma bobbiano, de que somente regimes com um mínimo de homoge-
neidade (democráticos) podem garantir uma paz mais duradoura entre si,
para que se possa pensar a uma arquitetura institucional que supere a anar-
quia dos Estados soberanos e garanta senão a paz perpétua, profetizada por
Democracia e Direitos Humanos
213
Kant, pelo menos, uma paz mais estável do que uma simples trégua entre
guerras. Sem este pressuposto, o presente e o futuro das relações interna-
cionais está absolutamente aberto e incerto.
Acredito que Bobbio veria com grande preocupação estes fe-
nômenos, porque, se há um ponto rme na sua reexão, este é o va-
lor universal do Estado Democrático de Direito e a necessidade da sua
internacionalização.
coNsiderações fiNais
Além das aporias internas ao próprio pensamento de Bobbio, as
suas reexões sobre a guerra e a paz deixam muitas questões abertas e se
prestam a receber críticas de vários pontos de vista: evidenciaria pelo me-
nos três grandes grupos de questões.
Segundo o realismo político, o cosmopolitismo, mesmo se fosse
idealmente desejável, não seria praticamente possível por dois motivos:
porque dicilmente os Estados, sobretudo os mais poderosos, estariam
dispostos a ceder parte signicativa da sua soberania a um poder superior.
Mesmo se isto por ventura acontecesse, que garantias teríamos de que a
entidade assim criada, − seja ela um Estado mundial ou uma Federação ou
Confederação de Estados −, não se tornaria um governo despótico e tirâni-
co devido à enorme concentração de poder que teria? Quais garantias tería-
mos de que seria democrático assim como o descreve ou prescreve Bobbio?
Os pacistas armam que o pacismo jurídico de Bobbio pode
ser o “mais exequível e o mais ecaz”, mas que para que tenha um mínimo
de chance de se realizar precisaria estar acompanhado pelas outras formas
de pacismo, o instrumental, ou seja, o desarmamento dos Estados e dos
cidadãos, e o nalista que tem como meta última a reforma moral dos
humanos. Ou seja, é preciso que o pacismo não se fundamente só nas
instituições dos Estados, mas tome conta da sociedade civil, através de uma
mobilização popular que conteste ativamente o instrumento militar como
resolução dos conitos e elabore estratégias alternativas de pacismo.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
214
Uma oura objeção vem dos defensores do pluralismo jurídico, os
críticos da globalização como ocidentalização do mundo, os defensores do
multiculturalismo que colocam em dúvida a universalidade do modelo de
democracia e de direitos humanos ocidentais, não somente porque se trata
de impor a culturas diferentes um modelo externo que pouco tem a que
ver com a sua história, mas também porque foram os Estado Democráticos
de Direito ocidentais, com a sua face democrática interna e imperialista ex-
terna, que provocaram e continuam provocando tantos conitos e guerras
para poder impor a sua dominação sobre o mundo.
Bobbio poderia responder que se é ilusório pensar que os Estado
soberanos cedam voluntariamente a sua soberania, é igualmente ilusório
esperar que a “laicização e racionalização” da guerra levem a uma sua “li-
mitação ou humanização” como pretendia Carl Schmitt. A guerra é, ar-
ma Bobbio, sempre mais legibus soluta num sentido estrito, a antítese do
direito; e o direito pode intervir antes da guerra, mas não durante a guerra:
inter armas enim silent leges. Com o desenvolvimento das armas nucleares e
das armas convencionais com poder de destruição sempre maior, a guerra
não encontra mais nenhuma justicativa teórica, em nome de nenhum
progresso técnico, cientíco, moral, político ou religioso e nenhuma jus-
ticativa prática diante dos enormes “efeitos colaterais” de destruição de
vidas humanas e de bens que arrasta consigo.
A única alternativa que resta é a sua eliminação, que passa neces-
sariamente pela superação da soberania absoluta dos Estados, fonte princi-
pal dos conitos e a entrega de uma parte deste poder de coação ao um ter-
ceiro super partes, que ainda está ausente, mas cuja existência é sempre mais
necessária; processo que, por sua vez, pressupõe uma certa homogeneidade
política entre os Estados, ou seja, uma crescente internacionalização da
democracia, ou democratização das relações internacionais, para evitar que
se torne um poder tirânico.
Quanto ao pacismo, Bobbio havia já previsto a objeção:
Infelizmente o direito sozinho não basta. [...] Mas justamente porque
o pacismo jurídico não basta, não se deve deixar de tentar as outras
vias. A paz hoje é uma tarefa demasiado importante para que se deixe
de percorrer todos os caminhos que possam levar, mais cedo ou mais
Democracia e Direitos Humanos
215
tarde, à meta. Além do mais as três vias não são incompatíveis: podem
ser percorridas paralelamente sem cruzar-se, como de fato hoje está
acontecendo nas conferencias de desarmamento, no reforço da organi-
zação da comunidade internacional, na expansão dos movimentos pela
não violência. (BOBBIO, 2003, p. 134).
A tarefa do pacismo é tão gigantesca que é preciso utilizar todas
as estratégias e as forças possíveis.
Bobbio é um pensador eurocêntrico, os seus referencias teóricos
e históricos são todos ocidentais; nesta perspectiva, uma das suas teses cen-
trais está na crença da universalidade da democracia e dos direitos huma-
nos. Para ele, a DUDH e os tratados que compõem o sistema da ONU,
demonstram a existência de um consensus omnium gentium tendencialmen-
te universal, e constituem um sinal promissor (signum prognosticum et re-
memorativum) que faz esperar de que, após a era dos totalitarismos, estamos
entrando na era dos direitos (BOBBIO, 1992, p. 26; p. 131-141).
Devemos, portanto, entender as considerações de Bobbio, kan-
tianamente, como ideias ou ideais reguladores: não sabemos se serão al-
cançados, mas sua função primordial é apontar o rumo e o caminho a
ser seguido, sem o qual não saberíamos nem sequer para onde ir. Como a
história não está nas mãos da Providência divina ou do “ardil da natureza
kantiano ou da “astucia da razão” hegeliana, mas nas mãos dos próprios
homens, a única losoa da história em que podemos acreditar é aquela
em que as profecias que se (auto)realizam são aquelas nas quais o maior
número de pessoas se compromete a crer e a trabalhar para realizá-las.
Concluo esta sumária reconstrução do pensamento bobbiano so-
bre o tema fazendo minha as palavras de Danilo Zolo a respeito das ques-
tões deixadas por Bobbio sobre a guerra e a paz:
São, todos estes, problemas cruciais que a reexão de Bobbio deixa
abertos para dúvidas e investigações ulteriores. O que, ao contrário,
é indubitável, na minha opinião, é o rigor intelectual a intensidade
moral com os quais um pessimista existencial como Bobbio se colocou
diante do problema da guerra e se esforçou para encontrar uma via para
a paz. (ZOLO, 2008a, p. 98. Tradução minha).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
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Parte 02
Norberto Bobbio e os direitos humanos
223
A   
 
Norberto Bobbio
1. Quando me encontrei diante do título que me propuseram:
A função do direito revisitada”, coloquei-me logo, com certa angústia,
a pergunta: “Mas de qual visita se trata?”
2
. De cortesia, de felicitação, de
condolência, de controle, de digestão? Pensando bem, aquela que mais
me adiciona é, em parte, uma visita de circunstância, porque, provavel-
mente, se não tivesse recebido o cortês convite da professora Forlati, não
teria encontrado outra ocasião de voltar ao tema, em parte uma visita de
despedida porque, tendo mudado, nestes últimos anos, a direção dos meus
estudos, outros temas me atormentam (e as estações de colheita são ainda,
presumivelmente, poucas).
Publicado originalmente na revista Sociologia del Diritto [Sociologia do Direito], n. 3, 1984, pp. 7-27.
Agradecemos ao Instituto Norberto Bobbio pela gentileza da cessão dos direitos de tradução e publicação deste
texto. Tradução de Erica Salatini. Revisão técnica de Rafael Salatini.
Para dizer a verdade, coloquei-me uma outra pergunta: se propor mudar o anglicismo “revisitado” pelo mais
familiar aos meus ouvidos “reconsiderado”.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p233-246
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
224
Escrevi o meu primeiro artigo sobre o assunto, Sobre a função
promocional do direito
3
, publicado na Itália e nos Estados Unidos, em 1969,
cerca de quinze anos atrás. Mas desde 1972, por razões que seriam longas
demais (e não muito interessante) expor, passei do ensino de losoa do
direito, na faculdade de Jurisprudência, ao ensino de losoa política na
faculdade de ciências políticas e não me ocupei mais especicamente do
tema. Além da voz Sanção, escrita para o Novissimo Digesto Italiano, que é
de 1968, no qual é dedicado um parágrafo às sanções positivas, publiquei
ainda um ensaio sobre as sanções positivas em 1971 e um sobre a análise
funcional do direito, que me foi sugerido pelo amigo Renato Treves para
a sua revista, em 1975
4
. Não lhes escondo, portanto, que me causa certa
fadiga voltar a tratar de uma questão sobre os desenvolvimentos dos quais
não estou certo de estar completamente ao corrente.
Para continuar a metáfora do título, e fechar esta premissa propi-
ciatória, existem também as visitas inúteis: são aquelas cujo visitante bate à
porta e não vem ninguém abrir, porque o visitado não está em casa ou não
tem vontade de se fazer achar.
2. Começo com uma bela história retrospectiva que me serve
como ponto de partida para as coisas que direi. A ocasião para me ocupar
do tema me foi oferecida durante os últimos cursos de teoria geral do direi-
to que ministrei na tempestade de 1968. Tinha adotado o livro de Hart, Il
concetto del diritto [O conceito do direito], cuja tradução italiana apareceu,
por mérito de Mario Cattaneo (um dos meus antriões de hoje), em 1965.
Diante da contestação de alguns estudantes e de um então assistente meu,
muito capaz, que consideravam a teoria de Hart muito formalística, minis-
trei dois ou três cursos de sociologia do direito para mostrar que o estudo
da teoria geral do direito não era de fato incompatível com o da relação
3
Na Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile [Revista Trimestral de Direito e Processo Civil], XXXIII,
1969, pp. 1312-29 e com o título “e promotion of action in the modern State” [A promoção da ação no
Estado moderno], no volume Law, reason and justice. Essays in legal philosophy [Lei, razão e justiça. Ensaios sobre
losoa jurídica], organizado por G. Hughes, New York University Press, Nova York, 1969, pp. 189-206; agora
no volume Dalla struttura alla funzione. Nuovi studi di teoria del diritto, Edizione di Comunità, Milão, 1977, pp.
13-32 (traduzido no Brasil, com o título: Da estrutura à função. Novos estudos de teoria do direito. Trad. Daniela
Beccaria Versiani. Barueri, SP, Mande, 2007).
4
Os dois no mesmo volume, citado na nota precedente, pp. 32-42 e 89-121.
Democracia e Direitos Humanos
225
entre direito e sociedade, que, aliás, um e outro se complementam reci-
procamente. Mas comecei a reetir sobre o fato que o renovado interesse
pela sociologia do direito, cultivando o que se acreditava reagir ao excessivo
formalismo da ciência jurídica tradicional, tinha induzido a teoria geral
do direito a passar de estudos dedicados predominantemente a estruturas
do ordenamento jurídico e a temas estruturais (como aqueles relativos à
completude e à coerência do ordenamento jurídico, capaz de favorecer o
nascimento e o desenvolvimento de uma nova disciplina, a lógica deôntica
que teve a sua primeira expansão nos anos de 1960), a estudos dedicados
ao tema da função do direito, que conduzia naturaliter a reexão sobre o
nexo entre direito e sociedade que não podia não iniciar com a pergunta:
“Qual é a função do direito na sociedade?”
Quando, em 1974, foi fundada a revista Sociologia del Diritto
[Sociologia do Direito] e o seu diretor, Renato Treves, convidou alguns co-
laboradores a expressar a própria opinião sobre o modo de entender a nova
disciplina, armei, se bem me lembro, pela primeira vez, que a passagem
das teorias gerais do direito não sociológicas àquelas sociológicas poderia
ser interpretada como uma passagem das teorias gerais, que tomam como
objeto da sua análise predominantemente a estrutura do direito, a teorias
que consideram predominantemente a função destas, precisando que as
primeiras se preocupam mais em saber “como o direito é feito”, e as demais
com “para que serve”. Quando Kelsen dene o direito como ordenamen-
to dinâmico, quando Hart dene o direito como composto de normas
primárias e secundárias, as características evidenciadas são claramente es-
truturais. Não nos dizem nada sobre qual seja o objetivo do direito. Por
séculos, o direito é diferenciado da moral pelo objeto (ações externas versus
ações internas) ou pelo m (bem coletivo versus bem individual) ou pelo
tipo de sanção (externa e institucionalizada versus interna e difusa). Apenas
com Kelsen o direito começou a ser diferenciado da moral com base na
diversa estrutura dos dois diversos sistemas normativos (sistema dinâmico
versus sistema estático). Pareceu-me, então, e me parece ainda hoje, que
quem quiser saber mais sobre a função do direito na sociedade e quiser
até mesmo contradistinguir o direito de outros sistemas normativos, deve
voltar-se para pesquisas antropológicas e sociológicas que considerem o di-
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
226
reito como subsistema no âmbito do sistema social global, e que coloquem
em destaque o serviço que este rende à sociedade
5
.
No que toca à minha descoberta da função promocional do di-
reito (“minha” não no sentido de que eu a tenha feito, mas no sentido de
que cheguei a este ponto eu também)
6
, lembro dois precedentes. Em 1966,
a Rivista di Filosoa [Revista de Filosoa] publicou alguns artigos sobre o
conceito de obrigação em homenagem a Hart, em parte já apresentados
em um congresso que ocorreu em Villa Serbelloni, em 1965, na presença
do próprio Hart. Neste fascículo, o estudioso argentino, aluno de Hart,
Genaro Carriò, escreveu um artigo no qual observava que a teoria geral
do direito permanecera xa à imagem tradicional do direito como instru-
mento repressivo do próprio estado policial que “com técnicas limitadas
perseguia ns também limitados” e que, portanto, o aparato conceitual
elaborado pela teoria do direito tradicional tinha se tornado antiquado em
relação às mudanças radicais que tinham acontecido na função do Estado.
Carrió não se aprofundava muito, mas indicava detalhadamente algumas
destas mudanças armando:
Hoje o estado regula a economia nos seus aspectos mais sutis. As suas
armas são a direção da política scal e monetária, o controle do câmbio
e do crédito, a regulamentação do comércio exterior. Muitos serviços
públicos principais, senão mesmo a maior parte, estão nas suas mãos
ou sob o seu controle imediato [...] Existem atividades subsidiadas ou
facilitadas; outras, ao contrário, estão sobrecarregadas de forma discri-
minatória para desencorajá-las. Todo um complexo sistema de contin-
gentes, licenças, repartições, permissões, preventivos, etc., condiciona
a atividade produtiva nas suas fases mais importantes.
7
“Teoria sociologica e teoria generale del diritto” [Teoria sociológica e teoria geral do direito], Sociologia del
Diritto [Sociologia do Direito], I, 1974, pp. 9-15.
Tenho a obrigação de lembrar que, em um artigo publicado em 1967, “Controllo sociale e sanzione giuridica
[Controle social e sanção jurídica], G. Lumia já dizia: “Para induzir os componentes de um grupo a manter certo
comportamento (ou, o que dá no mesmo, a abster-se do comportamento contrário), podem-se usar duas técnicas:
a técnica “promocional” que consiste em religar consequências favoráveis ao comportamento socialmente
desejado, ou a técnica “dissuasiva”, que consiste em ligar consequências desfavoráveis ao comportamento
desviante”, isto é, usando o termo “promocional”, que desde então se tornou de uso comum (in: Studi in onore
di Gioacchino Scaduto [Estudos em homenagem a Gioacchino Scaduto], Cedam, Padova, 1967, p. 5 do extrato).
G.R. Carrió. “Sul concetto di obbligo giuridico” [Sobre o conceito de obrigação jurídica]. Rivista di Filosoa
[Revista de Filosoa], LVII, 1966, p. 150.
Democracia e Direitos Humanos
227
Tal elenco de atividades do Estado levantava imediatamente dúvi-
das em relação ao conceito restritivo de obrigação entendido como o efeito
de uma sanção negativa, isto é, entendido como aquela situação em que
me encontro quando tenho fortes razões para acreditar que, se não cumpro
a ação prevista pela norma, disso derivará uma consequência desagradável.
Talvez o mesmo conceito de obrigação seja um resultado restrito demais,
em qualquer modo que fosse entendido, para dar uma resposta satisfatória
aos interrogatórios da multiplicação das tarefas do Estado e para a atuação
dos quais o Estado se serve do instrumento jurídico.
No mesmo ano de 1966, vinha publicado em uma revista italiana
um artigo do conhecido economista austríaco, Friedrich von Hayek, e
principles of a liberal social order [Os princípios da ordem social liberal],
que se colocava o problema da contraposição entre Estado liberal e Estado
dos serviços, do mesmo ponto de vista jurídico, mas reetindo não tanto
sobre o conceito de obrigação quanto sobre o conceito de norma
8
. Mesmo
sendo um economista, von Hayek acreditava poder usar um critério emi-
nentemente jurídico para distinguir as duas diversas formas de Estado: a
distinção entre normas de conduta e normas de organização. Com base
neste critério, o Estado liberal seria aquele que se serve unicamente de
normas de conduta, como são as normas penais (normas repressivas por
excelência), o Estado assistencial se serve largamente, ao invés, das normas
de organização. Com as palavras do autor:
Uma característica da sociedade liberal é que o cidadão pode ser obri-
gado a obedecer apenas às normas de direito privado e penal; a progres-
siva contaminação do direito privado com o direito público durante
os últimos oitenta ou cem anos, ou seja, a progressiva substituição de
normas de comportamento com normas de organização é um dos mo-
dos principais com o qual se cumpriu a destruição da ordem liberal
9
.
Mesmo prescindindo do juízo de valor totalmente negativo sobre
o Estado de bem-estar, que eu, pessoalmente, não compartilho, pareceu-
F. von Hayek. “e principles of a liberal social order” [Os princípios de uma ordem social liberal], in: Il
Politico [O Político], XXXI, 1966, pp. 601-18. Deste artigo, apareceu uma tradução italiana, com o título “Il
liberalismo de F. Hayek” [O liberalismo de F. Hayek], in: Biblioteca della libertà [Biblioteca da liberdade], IV,
1967, pp. 28-55.
 Artigo cit., p. 609.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
228
me que esta resolução da diferença entre Estado liberal e Estado assistencial
em uma distinção jurídica não fosse certeira.
Em 1970, escrevi um artigo para criticar esta resolução, fazendo
notar que qualquer instituição, no sentido weberiano de Anstat (diferente
de Verband, que se traduz, comumente, com um termo genérico como
grupo), e, portanto, também o “Estado mínimo”, o menor dos menores, à
maneira de Nozick, para esclarecer melhor, não pode abrir mão de normas
de organização.
10
Contra o critério normativo usado por von Hayek, eu
propunha um critério diverso, que me parecia mais correto: a distinção
entre sanções positivas e sanções negativas (sempre um critério do limitado
ponto de vista jurídico que não exclui outros critérios de outros pontos de
vista), e o ilustrava brevemente deste modo (que transcrevo por inteiro, li-
teralmente, para esclarecer a dimensão e também os limites da minha tese,
repetidamente criticada, como veremos):
Sociólogos e economistas, cientistas políticos e juristas concordam sobre
o fato de que o processo de industrialização das sociedades modernas
tenha aumentado enormemente as tarefas do Estado, contrariamente ao
que tinha profetizado Spencer e em conformidade com o que previram
Durkheim e, naturalmente, Max Weber. É inegável que esse aumento de
tarefas do Estado tenha determinado um aumento das normas de organi-
zação, como sustenta [von] Hayek. Todavia, dado que entre essas tarefas
é predominante a de dirigir a atividade econômica, é igualmente inegável
que o Estado moderno se vale cada vez mais das técnicas de encoraja-
mento, além das técnicas de desencorajamento que lhe eram habituais.
Entre essas técnicas de encorajamento o uso do aparato jurídico (isto é,
do sistema normativo coativo) assume um papel sempre mais evidente,
não para tornar difíceis ou desvantajosos os comportamentos considera-
dos nocivos à sociedade, mas para tornar fácil ou vantajosos os compor-
tamentos considerados úteis, isto é, o uso das sanções positivas. Isso é tão
evidente que nos faz considerar agora inadequadas as teorias do direito
que não as levem em consideração, e desfocada a imagem essencialmente
repressivo-protetora, ainda predominante, do ordenamento jurídico
11
.
10
N. Bobbio, Dell’uso delle grandi dicotomie nella teoria del diritto [Do uso das grandes dicotomias na teoria do
direito], agora in: Dalla struttura alla funzione [Da estrutura à função], cit., pp. 123-144.
11
Dalla struttura alla funzione [Da estrutura à função], cit., p. 144. Cito da tradução brasileira: Da estrutura à
função, p. 137. (Nota da tradutora)
Democracia e Direitos Humanos
229
O que estava errado neste trecho era o fato de ter conectado o
aumento das tarefas do Estado ao processo de industrialização. O Welfare
State de hoje tinha tido um precedente histórico no Wohlfahrt Staat dos
princípios iluminados de 1700, no também chamado Polizei Staat, o qual
tinha se imposto tarefas de política econômica, perseguidos com técnicas
que hoje chamaríamos de incentivo. Mas o tema nunca foi devidamente
levado em consideração pela teoria do direito. A política econômica consi-
derada como uma seção da administração do Estado, o tema do Wohlfahrt
Staat era encarregado à chamada Polizeiwissenschaft, que compreendia no-
ções de economia, política econômica, ciências das nanças, legislação, ad-
ministração (como aprendi, todos aprendemos, das importantes pesquisas
de Pierangelo Schiera). Ao invés, era justo destacar como a doutrina liberal
do Estado, cujo núcleo fundamental é a redução das tarefas do Estado ao
mínimo indispensável, tivesse contribuído para reforçar a teoria tradicio-
nal da função puramente repressiva-protetora do direito que se reduzia
em comandar, proibir e punir, segundo a famosa passagem de Modestino.
Basta retomar, mesmo que só por um momento, a constante polêmica
dos escritores liberais, como Kant, Humboldt, Constant, contra o Estado
paternalista, entendido justamente como o Estado que não se limita a ga-
rantir a liberdade dos seus cidadãos, mas os ajuda com medidas de natureza
econômica e com auxílios morais, como faz o pai com o lho menor de
idade, e aceito, eventualmente (como será para John Stuart Mill) como
remédio necessário para os povos que ainda não atingiram a maturidade.
3. Este é o antefato. Porém, devo acrescentar logo que a minha
consciência dos precedentes históricos da literatura sobre o assunto era
então muito limitada. Não tinha nem mesmo em mente uma obra que
conhecia muito bem e da qual tinha me servido por outros motivos, como
La giustizia [A justiça] de Giorgio Del Vecchio, na qual há uma longa nota
sobre o direito premial, rica de referências a autores do passado, alguns
até mesmo inusitados, merecedores de serem retomados e ampliados
12
.
Ademais, mesmo através de todas estas citações, ainda uma vez se extrai a
12
G. Del Vecchio, La giustizia [A justiça], 6ª. ed. Roma: Casa Editrice Studium, 1959, pp. 227-230. Del
Vecchio nota, no início, que esta forma de justiça, que entra na distributiva (do que, para dizer a verdade, é lícito
duvidar) “não foi até agora muito estudada”, e as referências a esta tiveram frequentemente “caráter incidental”.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
230
conrmação de que a justiça premial tenha sido sempre considerada como
uma forma de exceção da ação do Estado, enquanto estaria relacionada
com ações menos relevantes aos ns da ordem pública, que sempre foi
considerada como o m primário do direito e do Estado, ou melhor, do
Estado por meio do direito.
Devo fazer uma emenda maior por não ter levado em considera-
ção naquele momento, entre os escritores de direito público, a única obra
que colocava com uma clareza insólita o problema. Fiz referência a Kelsen,
a Carnelutti, e naturalmente a Jhering, o pai da teoria geral contempo-
rânea do direito, para chamar a atenção sobre o quão pouco os juristas
estivessem interessados no tema da sanção positiva. Havia me esquecido
daquele áureo livrinho, que havia levado em conta muitas vezes, que é
a Introduzione alle scienze giuridiche [Introdução às ciências jurídicas] de
Tommaso Perassi, que data nada menos que 1922 (mas o cito aqui da re-
edição de 1953). Já que acredito que esta obra seja pouco consultada hoje
em dia, cito textualmente alguns trechos dela:
A norma social é aprendida pelos indivíduos sob a forma de um critério
diretivo da conduta humana: essa, isto é, age sobre a consciência dos
indivíduos como um motivo, que direciona a conduta, ora como con-
tenção do fazer alguma coisa, ora como incentivo a agir
13
.
Note-se que Perassi usa a palavra “incentivo”, muito mais apro-
priada ao debate atual que aquela tradicional “prêmio”. Com maior preci-
são, em nota:
As normas que anexam uma pena são, por exemplo, normas que ope-
ram como motivos de abstenção do cometer as ações que levam a uma
pena; mas as normas sociais tendem, por vezes, a suscitar também de-
terminadas ações ou fatos, considerados conformes à utilidade social.
Assim, por exemplo, as normas que concedem determinadas facilita-
ções ou isenções de impostos a quem constrói casas dentro de certos
termos, agem como incentivos a promover a construção de casas
14
.
13
T. Perassi, Introduzione alle scienze giuridiche [Introdução às ciências jurídicas], segunda reimpressão. Padova:
Cedam, 1953, p. 12.
14
Op. cit., p. 12.
Democracia e Direitos Humanos
231
A única observação a fazer é que, aqui, Perassi não destaca a
distinção entre comandos positivos e negativos, de um lado, e a distinção
entre sanções positivas e negativas, de outro; e passa do comando negativo
que impõe uma obrigação de não fazer à sanção positiva que estabelece um
incentivo a fazer, esquecendo que existem as outras duas situações, ou seja;
o comando de fazer e o incentivo a não fazer.
4. Enquanto não era desculpável o fato de não ter considerado
autores importantes como Del Vecchio e Perassi na teoria do direito, era
mais desculpável então o de não ter considerado a ciência política, a qual
toma o problema do Estado não do ponto de vista do sistema normativo,
mas do ponto de vista do sistema de poder. Mas naquela época conhecia
muito menos da literatura de política sobre o problema do poder do que
conheço hoje. Somente nestes últimos anos consegui estabelecer com certa
clareza que o difícil encontro entre teóricos do direito público e teóricos da
política, os quais estudam o mesmo objeto, o Estado, mas se ignoram uns
aos outros, depende do fato que veem o mesmo objeto de dois pontos de
vista opostos: os juristas do ponto de vista das normas que regulam o exer-
cício do poder; os cientistas políticos do ponto de vista do poder que pro-
duz as regras que vinculam uma coletividade inteira. A confusão entre os
dois pontos de vista nasceu também da bem conhecida teoria de Schimitt
do “decisionismo”, considerado como uma das três formas de pensamento
jurídico: não, o decisionismo é o ponto de vista da teoria política contra-
posto ao normativismo, que é o ponto de vista da teoria do direito. Nada
serve mais para explicar esta contraposição que uma ulterior reexão sobre
o misterioso objeto que sempre foi a norma fundamental de Kelsen: a nor-
ma fundamental é a lógica consequência do ponto de vista normativo que
considera o poder sub specie legis do mesmo modo que o poder último, o
soberano, é a lógica consequência do ponto de vista da teoria política que
considera o direito sub specie potestatis
15
.
15
Sobre este ponto, remeto a dois artigos meus recentes: “Kelsen e il problema del potere” [Kelsen e o problema
do poder], Rivista Internazionale di Filosoa del Diritto [Revista Internacional de Filosoa do Direito], LXIII,
1981, pp. 549-570 e “Kelsen e il potere giuridico” [Kelsen e o poder jurídico], in: AA.VV., Ricerche Politiche
[Pesquisas Políticas], Milão: Il Saggiatore, 1982, pp. 3-26.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
232
No que se refere ao nosso problema, a distinção entre sanções ne-
gativas e positivas, é mais que natural que a teoria política se depare com o
mesmo problema com o qual se depararam os juristas por séculos: uma vez
denido o poder como a capacidade que um sujeito A tem de condicionar o
comportamento de um sujeito B, em outras palavras, de induzir B a agir do
modo desejado por A, e, portanto, em um modo diferente daquele que teria
feito se A não existisse, surge logo a pergunta: como acontece este condicio-
namento? Com todas as variações possíveis, a resposta é dúplice: o condicio-
namento acontece com a ameaça de um mal ou com a promessa de um bem.
Já que a literatura é vastíssima, limito-me a duas referências es-
senciais. No ensaio Exchange and power in social life [Troca e poder na vida
social] (1964), Peter Blau, que é considerado o fundador da teoria que foi
chamada do poder como troca (ou exchange power theory) distingue o po-
der coercitivo que repousa sobre o efeito de sanções negativas e a inuência
que repousa sobre recompensas (rewards), retomando outros autores como
French e Raven que, alguns anos antes, haviam diferenciado o coercive
power [poder coercivo] do reward power [poder de recompensa]; e Parsons
que distingue sanções negativas e inducements [incentivos] (aliciamento,
incentivos e similares) que repousam sobre sanções positivas
16
.
A segunda referência me foi sugerida pela leitura de Luhmann,
cujas obras foram amplamente difusas no nosso país, nestes últimos dez
anos. No ensaio sobre o Potere e complessità sociale [Poder e complexidade
social] (que é de 1975, mas apareceu traduzido em italiano por obra de
Danilo Zolo em 1979), lê-se:
O poder pressupõe uma situação em que ambos os parceiros indivi-
duam alternativas que ambos desejam evitar, mas de modo desigual, de
tal modo que o sujeito que sofre o poder está comparativamente mais
propenso a evitar a própria alternativa do que o detentor do poder
17
.
Em outras palavras: “O poder consiste no fato que existem de-
terminadas possibilidades cuja realização é evitada
18
. Não escondo que
16
P.M. Blau, Exchange and power social life [Troca e poder na vida social]. New York: John Wiley and Sons,
1964, cap. V.
17
Op. cit., p. 24.
18
Op. cit., p. 24.
Democracia e Direitos Humanos
233
poderia ter sido usada uma expressão mais clara para dizer uma coisa muito
banal como o poder se manifesta na capacidade de evitar uma conduta
considerada indesejável da parte do detentor do poder. Mas o que nos
interessa é o seguinte. Após ter observado que, por mais que a distinção
entre sanções positivas e negativas seja velha e de uso comum, não existem
muitas pesquisas empíricas centradas em um confronto entre umas e ou-
tras; Luhmann arma que o poder está relacionado apenas com as sanções
negativas e não com as positivas. Arma:
O amor, o dinheiro, a persuasão ao consenso relativo a determinados
valores não podem ser especicadas como casos de poder [...] Estamos
diante de um uso do poder apenas no caso de, em relação a uma dada
situação caracterizada por determinadas expectativas, ser construída
uma combinação de alternativas menos favoráveis
19
.
Esclarecedor e particularmente adequado ao nosso tema é o
exemplo que segue:
As subvenções públicas subordinadas a determinadas condições não
constituem enquanto tal uma manifestação de poder, não mais do
que o é uma aquisição normal. Estas se tornam a base sobre a qual
se explica o poder somente no momento em que se usa a ameaça de
anulá-las com o objetivo de impor um determinado comportamento
não previsto pelo programa de nanciamento
20
.
Naturalmente que, seja para Blau, seja para Luhmann, o termo
poder” é corretamente usado quando o seu exercício se explica através de
sanções negativas, não quando o meio usado para condicionar o compor-
tamento dos outros são os aliciamentos ou os incentivos
21
, isto não muda
nada em relação ao problema que aqui nos interessa. O problema que aqui
19
Op. cit., p. 24.
20
Op. cit., p. 25.
21
Não é para excluir que esta limitação do termo “poder” somente para o uso das penas, e não para os prêmios
também, contenha uma referência à conhecida teoria do poder de Bertrand Russel, o qual, após denir o poder
como a capacidade de produzir os efeitos desejados, distingue três espécies de poder: o poder físico, ou seja,
o uso da força bruta, o poder mediante inducements [incentivos], que compreende tanto as penas quanto os
prêmios, por exemplo tanto o tirar um emprego quanto dá-lo, e o poder-inuência, do qual o exemplo clássico
é o que se explica no processo educativo (Power. A new social analysis [Poder. Uma nova análise social]. Londres:
Unwin Books, 1962, p. 25).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
234
nos interessa é o do uso crescente das sanções positivas no momento da
passagem do Estado liberal ao Estado social, que foi aumentando a função
promocional do Estado que geralmente é desenvolvida através da institui-
ção de prêmios e incentivos. Como consequência, também nos interessa a
conrmação que desta situação se pode obter pela atenção que também os
sociólogos e os cientistas políticos dedicam à distinção entre sanções ne-
gativas e sanções positivas e à relevância destas últimas na sociedade atual,
independentemente da maior ou menor apropriação do termo “poder”,
para falar indiferentemente do uso de umas e de outras. Eventualmente se
pode ainda observar que, sendo o objeto da nossa análise exclusivamen-
te os prêmios e os incentivos jurídicos, dicilmente se pode evitar fazer
referência ao poder do Estado, no sentido especíco de poder coativo, já
que apenas através do exercício deste poder, dos prêmios e dos incentivos
públicos, pode ser garantida a execução.
5. Outro aspecto do problema que havia negligenciado era a pes-
quisa de precedentes históricos na doutrina jurídica e política relativa à
ação que o Estado explica não com penas, mas com prêmios. Uma das
chas mais interessantes com a qual enriqueci o meu dossiê foi retirada da
leitura de A educação de um príncipe cristão [1515] de Erasmo, onde se lê
este trecho (que nunca é demais denir como antológico):
Em seu Oeconomicus [Econômico], Xenofonte sagazmente demons-
trou que todas as criaturas podem ser induzidas a obedecer por duas
coisas em particular: incentivos, tais como alimentos, se forem do tipo
inferior, ou mimos, se forem mais nobres, como um cavalo; ou pan-
cadas, se forem teimosas, como o asno. Porém, visto que o homem
é a mais nobre das criaturas, é simplesmente adequado que ele deva
ser induzido a obedecer à lei mediante recompensas, e não coagido
mediante ameaças e punições. Portanto, a lei deve não apenas estipular
as penas para os malfeitores, mas também oferecer recompensas para
incentivar a prestação de serviço ao Estado. Sabemos que os antigos
tinham muitas leis deste tipo [...] É claro que o melhor tipo de cidadão
sempre irá seguir a melhor conduta, mesmo que nenhuma recompensa
seja oferecida, mas esses incentivos são úteis para inspirar as pessoas
menos educadas a procurar seguir uma conduta honrada
22
.
22
Cito da tradução brasileira: Erasmo de Roterdã. A educação de um príncipe cristão. Trad. Bras. V.T. Souza. In:
Conselho aos Governantes. Brasília: Senado Federal, 2003, pp. 389-390. (Nota da tradutora)
Democracia e Direitos Humanos
235
Esta passagem não necessita de nenhum comentário, pois é clara,
exceto sobre um ponto de particular interesse: os exemplos que Erasmo
dá de ações que merecem ser “promovidas” pelo Estado se referem, todas,
a atividades militares e guerreiras, enquanto hoje o que distingue a ação
promocional do Estado daquela tradicional, é a intervenção na esfera eco-
nômica. Tradicionalmente o Estado se identicou com o poder militar.
Na idade moderna, mesmo sendo ainda representado pelo poder militar,
progressivamente alargou sua esfera de atividade à economia atribuída tra-
dicionalmente à esfera dominada pelo poder familiar e privado.
Outra solicitação me veio do admirável livro de Elias Canetti,
Massa e poder, cuja leitura devo à tradução publicada pela Adelphi, em
1981. No capítulo sobre a Ordem, em que o autor fala da “fuga” como
modo primitivo, instintivo, de se subtrair à ordem, observa que aquele
que obriga o outro a fugir poderia matá-lo. Mas, já que entre os homens
ocorreu uma domesticação da ordem e a domesticação aconteceu por meio
de uma espécie de corrupção pela qual o poderoso obtém do outro homem
obediência a suas ordens não pela ameaça, mas pelo suborno, eis que o
inferior domesticado acaba por aceitar a ordem sem fugir:
Quando o animal faz o que deve fazer, ele recebe seu petisco da mão
do amestrador [...] Em vez de se ameaçar com a morte e obrigar à fuga,
promete-se o que, antes de mais nada, toda criatura deseja e cumpre-
se rigorosamente essa promessa. Em vez de servir de alimento a seu
senhor, em vez de ser devorada, a criatura que recebe uma ordem desse
tipo obtém ela própria algo para comer
23
.
Trata-se, no fundo, da troca hobbesiana entre a vida e a escra-
vidão, que permite a Hobbes dizer que mesmo a relação entre senhor e
escravo é uma relação consensual. A passagem da pena ao prêmio repre-
senta, para Canetti, a passagem da selva à sociedade, mesmo que a uma
sociedade de desiguais, na qual o animal de presa é, ao nal, substituído
pelo animal doméstico.
Estas duas citações, respectivamente de um antigo e de um mo-
derno, mostram o quão grande tenha sido o interesse dos escritores de
23
E. Canetti, Masse und Macht (1960). Cito da tradução brasileira: Massa e poder. Trad. Sérgio Tellaroli. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 308. (Nota da tradutora)
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
236
assuntos políticos pela ação promocional do Estado e a sua função especí-
ca. Retomei aqui estas citações unicamente como estímulo para pesquisas
ulteriores. No entanto, são para assinalar os estudos históricos de Serenella
Armellini, Saggio sulla premialità del diritto nell’età moderna [Ensaio so-
bre a graticação do direito na idade moderna] (Roma, Bulzoni, 1976),
em que se reconstrói a teoria do direito premial em Hobbes, Spinoza,
Cumberland, Genovesi, Filangieri e os iluministas italianos, e Il premio in
relazione al rapporto uomo-società nel riformismo italiano. Aspetti e tendenze
[O prêmio no que se refere à relação homem-sociedade no reformismo
italiano. Aspectos e tendências] (in: Rivista Internazionale di Filosoa del
Diritto, LX, 1983, pp. 3-27).
6. Para além das pesquisas históricas, que têm um valor unica-
mente retrospectivo, o problema da ação promocional do Estado foi cada
vez mais reconhecido, nestes últimos dez anos, como merecedora de aná-
lises teóricas e de estudos de direito positivo vigente. Um livro de Mario
Losano sobre o direito econômico no Japão traz em um dos capítulos um
título, Il diritto come strumento d’incentivazione economica [O direito como
instrumento de incentivo econômico], que, poucos anos atrás, teria sido
insólito e agora não é mais.
Nesta matéria, o evento mais signicativo foi o congresso sobre
o direito premial e o direito penal, promovido pela Fundação Lazzari di
Como, por iniciativa do professor Mario Pisani, a quem se deve também
o relatório introdutório, Diritto premiale e sistema penale: rapporti e inter-
dizioni [Direito premial e sistema penal: relações e interdições]
24
. No qual,
após ter citado uma passagem de Beccaria: “Outro meio de prevenir os
delitos é o de compensar as virtudes” e retomar uma armação lapidária
de Merchiorre Gioia: “Mais de uma centena de volumes versam sobre os
24
Veja-se no volume que recolhe as atas do congresso: AA.VV. Diritto premiale e sistema penale [Direito premial
e sistema penal]. Milão: Giuré, 1983, pp. 11-36. O volume contém contribuições muito interessantes
sobre o direito premial, seja do ponto de vista histórico e comparativo, seja do ponto de vista da análise e da
interpretação do direito italiano vigente. Do ponto de vista teórico, que aqui recebeu particular consideração,
deve-se considerar as contribuições de G. Gavazzi, “Diritto premiale e diritto promozionale” [Direito premial
e direito promocional], pp. 37-52; de A. Febbrajo, “Pene e ricompense come problemi di politica legislativa
[Penas e recompensas como problemas de política legislativa]; e de F. Bricola, “Funzione promozionale, tecnica
premiale e diritto penale” [Função promocional, técnica premial e direito penal], pp. 121-36.
Democracia e Direitos Humanos
237
delitos e sobre as penas e apenas alguns sobre o mérito e sobre as recom-
pensas”, ilustra o tema do direito premial no sistema penal, que se tornou
particularmente atual, após as várias disposições sobre os assim chamados
arrependidos”, com uma ampla reconstrução histórica. Referindo-se ao
meu ensaio de 1969, observa (e é uma observação muito justa) que o direi-
to premial “tem a seu favor uma tradição histórica que remonta no tempo,
a uma época que antecede a fase da passagem do Estado liberal clássico ao
Estado assistencial”
25
. Observação muito justa, repito, mesmo levando em
consideração o fato que as razões do direito premial no sistema penal são
completamente diferentes daquelas do direito premial na esfera econômi-
ca, tendo, no primeiro caso, como o próprio Pisani reconhece, o objetivo
de trazer algumas medidas complementares e alternativas a uma execução
das sanções considerada inapropriada e inecaz, e, por outro lado, pela exi-
gência de dispor de instrumentos mais ecazes para tutela das instituições e
da vida coletiva
26
; no segundo caso, como foi dito muitas vezes, promover
atividades favoráveis ao desenvolvimento econômico e à tutela das classes
economicamente mais fracas.
Não obstante isso, o próprio Pisani, que expõe um programa de
pesquisas de direito positivo para “dar evidência às componentes, ao perí-
metro e às linhas evolutivas daquilo que, com todas as letras, não apenas
Jhering, mas também Enrico Ferri, Giuseppe Maggiore e outros, têm cha-
mado de direito premial”; programa que não se pode não aderir, demanda
que para o estudioso contemporâneo de direito positivo se trata de uma
tarefa de “sabor pioneiro
27
.
7. Até aqui tudo bem. Mas não posso ignorar as objeções que
foram levantadas contra algumas das minhas teses, no mesmo volume so-
bre direito premial no sistema penal citado há pouco, e antes, ainda, na
revista Sociologia del Diritto [Sociologia do Direito]. Digo logo que nenhu-
25
Op. cit., p. 218.
26
Op. cit., p. 18.
27
Op. cit., p. 16. De resto, na mesma declaração programática do congresso se diz que “o congresso propõe focar
uma dimensão quase sempre negligenciada pelo ordenamento jurídico: a promocional e mais particularmente a
premial”, p. III, das Atas, citado acima.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
238
ma objeção foi levantada em relação à detecção geral, que era o objetivo
principal dos meus escritos sobre o assunto, da correspondência entre a
função promocional do Estado, característica do Estado social, e o au-
mento das técnicas premiais ou de incentivo; nem mesmo em relação à
consideração inicial, segundo a qual uma das características do Estado so-
cial em relação ao Estado liberal reside justamente na passagem da função
exclusivamente de garantia à função de promoção, como é demonstrável
de forma irrepreensível por meio do elenco de todos os numerosos artigos
da nossa Constituição, na qual é usado o verbo “promover” e similares
28
. As
objeções são de caráter analítico e conceitual: todas se referem a distinções
entre planos diversos que eu deveria ter feito ou esclarecido melhor, por
exemplo, a distinção entre as duas funções, repressiva e promocional, e a
distinção entre as duas técnicas, sanções negativas e sanções positivas; ou
então, distinções que introduzi e teriam se revelado inúteis, como a entre
prêmios e incentivos. Visto que se tratam de críticas construtivas, ou seja,
de críticas que ajudam a aperfeiçoar a nossa compreensão de um campo
ainda insucientemente explorado (nas palavras de todos), as minhas res-
postas se limitam a algum esclarecimento quando tive a impressão que
tivesse acontecido um mal-entendido involuntário.
Reconheço ter cometido a imprudência de ter me aventurado
em uma oresta muito intricada, da qual ninguém, até agora, conseguiu
sair vivo, da análise funcional e do funcionalismo em geral: já que o mes-
mo termo “função” é usado com signicados diversos (tanto que alguém
observou que teria feito melhor em não usá-lo), repito aqui a denição
que dei no artigo, frequentemente criticado, L’analisi funzionale del diritto:
tendenze e problemi [A análise funcional do direito: tendências e proble-
mas], especicando que sempre o associei a uma interpretação orgânica ou
organicista da sociedade:
por “função” se entende a prestação continuada que um determinado
órgão dá à conservação e ao desenvolvimento, conforme um ritmo de
nascimento, crescimento e morte, do organismo inteiro, isto é, do or-
ganismo considerado como um todo
29
.
28
A esta tese, veja-se expressamente, entre outros, o artigo citado de Bricola, pp. 121-122.
29
Dalla struttura alla funzione [Da estrutura à função], cit., p.111. Cito da tradução brasileira: Da estrutura à
função, p. 103. (Nota da tradutora)
Democracia e Direitos Humanos
239
As primeiras objeções sérias foram levantadas por Mario Jori, em
um artigo cujo título é já por si mesmo eloquente: “Existe uma função
promocional do direito?”
30
. A sutileza de Jori é tal que, concentrando-me
apenas sobre dois pontos das suas observações, provavelmente opero uma
simplicação indevida.
O primeiro ponto se refere à acusação de ter caído em um círculo
vicioso, porque teria denido a função promocional mediante as sanções
positivas e as sanções positivas como as que têm uma função promocional.
Pode ser: mas não me parece. Posso ter cometido o erro de ter denido a
função promocional por meio do tipo de sanção (porque corretamente
se pode observar que se pode promover também impondo penas, mes-
mo que seja consenso que as penas sejam usadas predominantemente para
impedir de fazer), mas não cometi o erro de usar um argumento circular,
denindo as sanções positivas por meio das suas funções: repetidamente
deni as sanções positivas, de resto, segundo a doutrina comum a juristas,
sociólogos e cientistas políticos, como aquelas que se servem de prêmios e
incentivos, mais que de penas ou desincentivos; vale dizer, através do meio
com o qual tendem a alcançar o objetivo, entendendo por prêmio ou in-
centivo a promessa do que geralmente se considera agradável e, portanto,
tentador; e por pena ou desincentivo, a ameaça de uma coisa desagradável
e, portanto, descartável. Que depois possa acontecer que um prêmio não
seja agradável (Jori exemplica com a nomeação para senador fascista dada
a um não fascista) e, acrescento (caso ainda mais frequente), que uma pena
não seja desagradável (o pobre coitado que se deixa ir para a prisão para ter
um teto), e Jori extraia destes casos-limite a conclusão que uma distinção
30
O artigo foi publicado na revista Sociologia del Diritto [Sociologia do Direito], IV, 1977, pp. 405-419. Uma das
críticas de Jori foi retomada um pouco depois por G. Lumia, “A proposito di struttura, funzione e ideologia del diritto
[A propósito de estrutura, função e ideologia do direito], na mesma revista no ano seguinte, em uma ampla nota sobre
o meu livro, Dalla struttura alla funzione [Da estrutura à função], V, 1980, pp. 431-439. Lumia observa que não existe
correspondência entre o par função promocional – função repressiva e o par técnica incentivadora-técnica dissuasiva: “Se
é verdade que quaisquer ns de promoção social não podem ser realizados (ou podem ser melhor) a não ser mediante
técnicas jurídicas incentivadoras, enquanto que outros ns de repressão do desvio se realizam melhor mediante técnicas
jurídicas dissuasivas, é também verdade que é prática seguida pelos regimes déspotas conectar algumas vantagens ao
pertencimento ao partido único, exemplo, este, eloquente mas não peculiar, de uma função repressiva (do dissenso)
que se exercita mediante uma técnica incentivadora” (p. 437). Mesmo se o exemplo não me parece muito apropriado,
já que as vantagens conexas ao pertencimento ao partido único têm essencialmente o objetivo de favorecer a inscrição
ao mesmo, e, portanto, têm principalmente um objetivo incentivador; a observação em geral é justa: a relação entre
função promocional e técnica incentivadora foi colocada por mim em destaque com particular atenção ao estado social
contraposto ao estado liberal clássico.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
240
geral entre prêmios e penas acabe por ser enganosa, é, na minha opinião, o
efeito daquele hiper-empirismo obsessivo e paralisante que, se aceito, não
se pode dizer mais nada de nada, especialmente em um universo do “mais
ou menos” e da “maioria das vezes”, como é aquele em que são obrigados
a se moverem os estudiosos dos fenômenos sociais
31
.
A segunda objeção consiste essencialmente na observação que o
falar de função do legislador impede de ver que realisticamente o que conta
são os efeitos de uma norma, e não é dito que um legislador que se propo-
nha a obter certos efeitos (ou, dito de maneira diversa, acredite desenvolver
certa função) os obtenha realmente. O exemplo de Jori é o seguinte: o
legislador se propõe a promover a construção de casas e ao invés disso ob-
tém como único efeito o enriquecimento de algum empreiteiro. Mas este
também é um caso-limite: temo que à força de casos-limite se reduza ao
silêncio (um caso-limite, caso se considere que o de enriquecer o emprei-
teiro seja o único efeito da lei, em se tratando na maioria das vezes de um
efeito complementar, como demonstra o fato visível a olhos nus que nas
cidades dos empreiteiros, as casas, bem ou mal, foram construídas, talvez
até mesmo muitas). De resto, o mesmo se pode dizer, com maior razão, e
Jori o reconhece, da função repressiva: o legislador promulga normas para
impedir o uso da droga e o efeito primordial é a difusão da sua venda clan-
destina; proíbe o aborto e oresce o tráco ilícito dos médicos e das par-
teiras sem escrúpulos. Diz textualmente Jori: “Não se vê por qual motivo
elevar à função de direito o quanto se pode constituir a sua fachada ocial
(p. 417). A observação é justa contanto que se admita também a armação
contrária: “Não se vê porque elevar à função de direito o quanto se pode
constituir o conjunto dos seus efeitos perversos”. Os funcionalistas já re-
solveram há tempos o dilema distinguindo as funções manifestas daquelas
latentes, aquelas reais das aparentes, as declaradas das efetivas, etc. Não se
vê porque não se possam aplicar estas distinções ao nosso tema da função
promocional, distinguindo a função primária da secundária e vericando
caso a caso o eventual descarte entre a intenção e a realidade. Use-se mes-
31
Um típico exemplo de “mais ou menos” é a distinção que fazem os cientistas políticos entre partidos grandes,
pequenos (talvez muito pequenos também) e médios, ou a que fazem os sociólogos entre classe média, médio-
alta, médio-baixa, etc.; um exemplo de “na maioria das vezes” é o elemento da obediência habitual que serve
para caracterizar a efetividade de uma norma jurídica (im grossen und ganzen, como diz Kelsen).
Democracia e Direitos Humanos
241
mo o método da vericação empírica como pede o sociólogo do direito,
sociologize-se” a teoria do direito, comprometida demais com uma longa
tradição formalista, embora não se veja, como foi observado por Vicenzo
Ferrari, na mesma revista, em um fascículo dedicado em parte ao proble-
ma da função do direito
32
, porque também as intenções do legislador não
possam constituir material de pesquisa empírica para construir hipóteses
sobre os efeitos, ainda mais que não se pode excluir a priori que exista uma
relação entre intenções e resultados.
O objetivo que Jori retica com a sequência fechada das suas ob-
jeções é, sobretudo, o de colocar o leitor em guarda contra a terminologia
funcionalista usada por mim, observando que o uso do termo “função
se mostra ainda uma vez vago e perigoso e propondo substituí-lo com a
análise dos objetivos, dos conteúdos e dos efeitos da norma. Parece-me que
o conceito de função responda às mesmas exigências aos quais respondem
os conceitos de objetivo, conteúdo, efeito, em um nível mais alto de abs-
tração, pelo qual se possa dizer, uma vez acertados conteúdos, objetivos,
efeitos promocionais de uma norma, que esta norma tem uma função pro-
mocional. O termo “função” aparece, então, mais vago unicamente porque
é mais geral. O que me parece mais difícil de entender é porque sendo mais
geral seja também “perigoso”. Do pouco que Jori diz sobre isso, no nal do
artigo, onde acena para o perigo de se permanecer prisioneiros da metáfora
organicista, não me parece possível extrair um argumento decisivo para
evitar o uso do termo de agora em diante.
8. Se não o funcionalismo como tal, o conceito de função e o uso
feito por mim dele constituem o objeto de outra intervenção crítica, o de
Letizia Gianformaggio, este também duvidoso desde o título: Funzione o
32
V. Ferrari, “L’analisi funzionale in sociologia del diritto. Problemi terminologici e problemi metodologici” [A
análise funcional em sociologia do direito. Problemas terminológicos e problemas metodológicos]. In: Sociologia
del Diritto [Sociologia do Direito], VII, 1980, p. 67. Neste fascículo, além do artigo de Ferrari e o de Letizia
Gianformaggio, ao qual me rero no parágrafo seguinte, estão outros dois artigos referentes ao tema geral da
função do direito, mesmo que mais laterais em relação ao tema especíco da função promocional e dos meios
para executá-la: V. Frosini, “Neostrutturalismo e dialettica funzionale del diritto” [Neoestruturalismo e dialética
funcional do direito], pp. 11-24, que trata o tema da relação entre estrutura e função; V. Tomeo, “Il diritto come
segno del potere” [O direito como sinal do poder], pp. 25-42, que evidencia os limites da teoria funcionalista
por uma compreensão global do fenômeno jurídico.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
242
tecnica? Considerazioni provvisorie sulla dottrina della repressione [Função ou
técnica? Considerações provisórias sobre a doutrina da repressão] (Sociologia
del Diritto [Sociologia do Direito], mesmo fascículo, pp. 71-91).
O ponto principal da crítica é o seguinte: o discurso sobre as san-
ções, positivas e negativas, é um discurso sobre certas técnicas do direito
e não sobre as funções, razão pela qual a minha abordagem de teoria do
direito, que pretende sair da análise estrutural e se ancorar à análise funcio-
nal, permanece interna à primeira. Esta observação deve ser levada muito a
sério porque foi feita contemporaneamente a Riccardo Guastini e indepen-
dentemente dele em um ensaio publicado nos Materiali per una storia della
cultura giuridica [Materiais para uma história da cultura jurídica] (X, n. 2,
dezembro de 1980, pp. 483-508), intitulado: “Norberto Bobbio teorico
del diritto” [Norberto Bobbio teórico do direito] (Série III, que inclui os
anos 1966-1980). A primeira diz assim:
O debate sobre as sanções positivas está incluído inteiramente em uma
teoria estrutural do direito [...] Um discurso sobre estas técnicas é outra
coisa pelo discurso sobre as funções, repressiva e promocional [..] É,
denitivamente, um discurso que tem fundamentalmente como objeto
a estrutura da norma (p. 76).
A segunda, assim:
A passagem é breve para entender o discurso de Bobbio de um modo
diverso de como o próprio Bobbio o entende. Ele não estende a análise
do direito da estrutura à função, mas, mais que isso, estende a análise
estrutural mesma. Não se aventura no campo da teoria sociológica,
mas permanece sobre o terreno da teoria formal. (p. 502)
Esta crítica também deriva de uma desconança inicial sobre o
conceito de função. Mas enquanto aquela precedente tendia, sobretudo, a
dissociar a distinção entre função promocional e função repressiva da (cor-
responde) distinção entre sanções positivas e sanções negativas, esta tende
mais a reduzir o discurso sobre as funções a um discurso sobre técnicas.
Confesso que não estou certo de ter entendido a razão desta crí-
tica. De fato, que as sanções possam ser ditas das técnicas com as quais um
Democracia e Direitos Humanos
243
sistema normativo tenta obter a observância das próprias regras, é tão obvio
que ninguém, acredito, pode colocar isso em dúvida. Mas é típico de uma
técnica ser o meio para um objetivo. Não consigo entender que se possa
falar de uma técnica sem colocá-la em relação com um objetivo. Associo o
martelo aos pregos para pregar (mesmo que algumas vezes possamos nos
servir dele para dar uma martelada na cabeça do nosso rival); a enxada à
terra para escavar; a máquina de escrever que estou usando neste momento
à página para preencher com letras. Não posso não associar as sanções aos
comportamentos que estas impõem ou proíbem, permitem ou autorizam,
facilitam ou dicultam. O homem é um animal teleológico: não se pode
entender (no sentido de verstehen) a sua conduta se não se dá conta a cada
vez do objetivo pelo qual faz o que faz. Desao a compreender as decisões
de um governo ou de um legislador sem se dar conta dos objetivos que a
decisão tem como alvo: um dos objetos da interpretação do direito é a as-
sim chamada ratio legis, que dá origem à interpretação teleológica, da qual
nenhum jurista pode prescindir.
Introduzi o argumento sobre as sanções positivas em um discurso
mais amplo que se refere às alteradas tarefas do Estado e, consequentemen-
te, os seus ns. Ou seja: falei das sanções positivas como técnica especíca
do Estado social, de um Estado que possui algumas tarefas e, portanto, dos
ns, diversos daqueles do Estado liberal. Se nos detemos nas técnicas, o
discurso é incompleto. Mais que incompleto, infundado. Se para indicar a
atividade que o Estado social exerce mediante as sanções positivas não qui-
sermos usar a expressão “função promocional”, podemos encontrar outra.
A questão não é de palavras, mesmo se concordo com os meus críticos que
o uso de uma palavra em vez de outra possa ter determinadas consequên-
cias. O problema sobre o qual pretendi chamar a atenção é o do aumento
da técnica das sanções positivas procedentes em conjunto com o armar-se
e o estender-se do Estado social, ou seja, de um Estado que se atribuiu a
tarefa de intervir usando justamente técnicas especícas, como as sanções
positivas, em outros lugares e em outros tempos, reservadas à iniciativa pri-
vada. Quem fala em técnicas, e não de funções também, renuncia a ver o
nexo entre o uso de certas técnicas e a formação de um Estado diferente da-
quele que havia dominado durante a estação do livre mercado. Mas, já que
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
244
nenhum dos meus interlocutores colocou em dúvida este nexo, o discurso
sobre as técnicas se liga diretamente e estritamente ao da função (se depois
se pretender usar outra palavra, não será difícil encontrar um acordo).
9. A última crítica sobre a qual pretendo me deter é talvez insuperá-
vel, mas é também, por sorte, marginal. Relaciona-se à diferença que eu quis
propor, no âmbito das sanções positivas, entre prêmios e incentivos. Sem
perceber, acabei por exagerar: não me contentei em distinguir a função (ou
o objetivo, ou o efeito) promocional da ação do Estado daquela repressiva,
mas pretendi, talvez com um excesso de zelo, distinguir a técnica do prêmio
daquela do incentivo, armando que o prêmio encoraja, o incentivo facilita;
o prêmio vem após a ação concretizada (como a pena), o incentivo precede e
acompanha a ação que se pretende encorajar (como o impedimento).
Contra o critério usado por mim para a distinção (não tanto contra
a distinção mesma), Giacomo Gavazzi escreveu páginas muito ans, no vo-
lume citado muitas vezes, organizado por Pisani, com um artigo intitulado:
Diritto promozionale e diritto premiale [Direito promocional e direito pre-
mial]. Trata-se disso: tendo sempre presente a distinção entre estrutura e fun-
ção, eu teria distinguido os prêmios dos incentivos em relação à estrutura, no
sentido que o prêmio seria o elemento de uma norma condicionada, do tipo
se faz a pode (pretender) x”, e o incentivo, ao invés, o elemento de uma nor-
ma técnica, do tipo “se quiser y, deve a”; mas os teria unido na mesma função
(a função promocional). Gavazzi arma que se deveria dizer o inverso, ou
seja, que é difícil distinguir prêmios e incentivos em relação à estrutura, já
que o prêmio também pode agir, antes que seja atribuído, como incentivo,
e o incentivo, no momento em que é dado, em qualquer momento do pro-
cesso da conduta prevista pela norma, pode agir como prêmio; enquanto
que é mais fácil distingui-los em relação à função, já que apenas a função do
incentivo pode ser considerada promocional e a função do prêmio seria mais
de se considerar como retributiva, analogamente à pena. Em suma:
Se as minhas críticas têm fundamento, a concepção de Bobbio seria
literalmente virada do avesso: prêmios e incentivos não poderiam ser
distintos em base à estrutura, mas deveriam ser distintos em base à
função. (p. 51)
Democracia e Direitos Humanos
245
Na conclusão, Gavazzi levanta uma ulterior hipótese: que prê-
mios e incentivos tenham perdido as suas sionomias especícas pelo fato
que ambos foram investidos por um processo de legalização maciça e, pa-
rece, irreversível. O prêmio estava estritamente ligado à doutrina das vir-
tudes e podia ser considerado como um incitamento a cumprir boas ações.
Mas nos dias de hoje quem se interessa ainda pelo homem virtuoso? Deixo
esta pergunta sem resposta. O jurista faz bem em não cruzar o limiar que
separa o direito da ética. Nunca como neste caso vale o antigo ditado: “Ne
sutor...” com aquilo que segue.
Disse que este problema é, no conjunto do debate, marginal: de
resto, Gavazzi não coloca em discussão a distinção, mas o critério com
o qual tentei justicá-la. Posso dizer que, em geral, a distinção foi bem
acolhida
33
. Resta o problema que esta distinção, seja válida ou não, suscita
e que mereceria ser aprofundada, talvez mais que o problema essencial-
mente terminológico sobre o uso e o abuso do conceito de função e sobre a
existência ou não existência de uma correspondência entre as funções e as
técnicas. Trata-se de afrontar, de agora em diante, uma pesquisa analítica
de todas as técnicas de encorajamento que são – e sobre isto estamos todos
de acordo – uma das características do Estado contemporâneo, com a mes-
ma atenção aos particulares com que foi conduzida, por séculos, a análise
das medidas repressivas. Não sei se uma pesquisa do gênero está por ser
feita. Sei, pelo programa de pesquisa que a professora Forlati me mandou
ano passado, que o propósito do seu grupo de pesquisa é o de recolher
um amplo material de documentação em cerca da ação promocional das
Comunidades europeias. Não há dúvidas que, justamente da coletânea de
dados retirados de pesquisas empíricas, a tipologia das medidas relativas
possa ser enriquecida e aperfeiçoada e, portanto, o debate sobre o direito
premial possa ser alimentado e melhor orientado.
Neste ponto, minha visita acabou. A vantagem das visitas é a de
serem breves. Os ouvintes já começaram a olhar para o relógio e a dar sinais
de impaciência. É hora, como se diz, de parar de incomodar.
33
Veja M. Pisani, “Diritto premiale e sistema penale” [Direito premial e sistema penal], cit., pp. 15-16, e A.
Febbrajo, “Pene e ricompense come problemi di politica legislativa” [Penas e recompensas como problemas de
política legislativa], cit., pp. 98-99.
247
A      
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Samuel Antonio Merbach de Oliveira
iNtrodução
No que se refere às origens dos direitos do homem Almir de
Oliveira (2000, p. 100) nota que: “Tal como são hoje concebidos, os direi-
tos humanos não foram conhecidos na Antiguidade. Isso aconteceu por-
que, naqueles tempos, não se tinha da pessoa humana o mesmo conceito
que, hoje, serve de fundamento a esses direitos”.
Dessa maneira, nos primórdios da civilização se tem o germe
dos direitos do homem que são encontrados no Código de Hamurabi
(Babilônia, século XVII a. C), no Código de Manu (séc. XIII, a. C.), no
Direito Romano e inúmeras culturas ancestrais (OLIVEIRA, 2000).
Desta forma, diferentes ordenamentos jurídicos da Antiguidade,
como as leis hebraicas, estabeleciam princípios de proteção de valores hu-
manos sob a óptica religiosa, conforme Almir de Oliveira (2000, p. 103)
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p247-262
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
248
explica: “Compõe um conjunto de regras morais, sociais e religiosas, de
observação obrigatória para o povo de Israel”.
Na Era Medieval, o direito natural era identicado com o divino
por ser baseado nos textos sagrados. Esta concepção originária do cristia-
nismo se iniciou com a Patrística que teve como principal representante
Santo Agostinho sendo que, a posteriori, se consolidou na Escolástica, de
São Tomás de Aquino, nota que da concepção do direito natural de inspi-
ração cristã se derivou a tendência permanente no pensamento jusnatura-
lista de considera-lo como proeminente ao direito positivo, pois o direito
natural independente de estar escrito no ordenamento jurídico, tal como
Bobbio (1995, p. 25) assevera:
o direito natural é considerado superior ao positivo, posto seja o pri-
meiro visto não mais como simples direito comum, mas como norma
fundada na própria vontade de Deus e por este participada à razão
humana ou, como diz São Paulo, como a lei escrita por Deus nos co-
rações dos homens.
Para destacar-se a concepção cristã da lei natural, Bobbio (1995,
p. 26) observa o Decretum Gratiani, em que: “Direito Natural é o que está
contido na lei e no Evangelho”, entende-se por Lex o Antigo Testamento e
por Evangelho o Novo.
Com efeito, os direitos ou valores fundamentais variam de acordo
com o momento histórico-cultural da sociedade; e consequentemente, o
reconhecimento e a proteção dos direitos do homem no mundo alcança-
ram o seu estágio atual de uma forma lenta e gradual, passando por várias
fases históricas, conforme ressalta Bobbio (1992, p. 5):
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender,
fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por
mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos
em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas li-
berdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos
de uma vez e nem de uma vez por todas.
Democracia e Direitos Humanos
249
Estas etapas da evolução histórica dos referidos direitos são deno-
minadas de gerações, pois se constituíram em momentos históricos distin-
tos, sendo que a teoria geracional se originou quando o jurista tcheco, na-
turalizado francês, Karel Vasak, em 1979, foi convidado para lecionar,
em Estrasburgo, a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional
dos Direitos do Homem, conforme George Marmelstein (2008, p.
40) observa, Vasak: “Sem muito tempo para preparar uma exposição,
ele lembrou a bandeira francesa, cujas cores simbolizam a liberdade, a
igualdade e a fraternidade”. Fundamentando-se nisso, desenvolveu a
teoria, objetivando, metaforicamente, mostrar a evolução dos direitos
fundamentais (MARMELSTEIN, 2008).
direitos do homem, direitos humaNos, direitos fuNdameNtais
Em relação aos vocábulos Direitos do Homem, Direitos
Humanos e Direitos Fundamentais, a expressão Direitos do Homem, é
considerada pioneira e se aduziu em comutação ao termo direitos naturais,
sendo notada na obra Os Direitos do Homem (e Rights of Man) de autoria
de omas Paine, publicado primeiramente em 1891. Nesta obra, há um
entendimento que considera: “os direitos humanos como a conjunção dos
direitos naturais, que correspondem ao Homem pelo mero fato de existir, e
dos direitos civis, vale dizer, aquele conjunto de direitos que correspondem
ao Homem pelo fato de ser membro da sociedade” (TAVARES, 2008, p.
447 e PAINE, 2005).
Diferentemente da posição de outros lósofos, Ingo Wolfang
Sarlet (2009, p. 30), também entende que há diferença entre os termos
direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais:
Assim, como base no exposto, cumpre traçar uma distinção, ainda que
de cunho predominantemente didático, entre as expressões “direito
do homem” (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não posi-
tivados), “direitos humanos” (positivados na esfera do direito interna-
cional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos ou outorgados
e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado). [...]
A utilização da expressão “direitos do homem”, de conotação marca-
damente jusnaturalista, prende-se ao fato de que se torna necessária
a demarcação precisa entre a fase que, nada obstante sua relevância
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
250
para a concepção contemporânea dos direitos fundamentais e huma-
nos, precedeu o reconhecimento destes pelo direito positivo interno e
internacional e que, por isso, também pode ser denominada de uma
pré-história” dos direitos fundamentais.
A expressão direitos humanos é adotada tanto pelos autores bra-
sileiros quanto estrangeiros, sendo resultante da tradução das palavras in-
glesas human rights, consagrada na Carta que deu fundamento ao exórdio
da Organização das Nações Unidas e, posteriormente, sofreria a mesma
assimetria relativa à expressão direitos do homem, pois conforme explica
Almir de Oliveira (2000, p. 51): “todos os direitos são humanos, porque se
dirigem ao ser humano, mediata ou imediatamente”.
Bobbio (1992, p. 20), entende os direitos fundamentais como:
os que não são suspensos em nenhuma circunstância, nem negados
para determinada categoria de pessoas, são bem poucos: em outras pa-
lavras, são bem poucos os direitos considerados fundamentais que não
entram em concorrência com outros direitos também considerados
fundamentais, e que, portanto, não imponham, em certas situações e
em relação a determinadas categorias de sujeitos, uma opção.
Bobbio (1992, p. 20) esclarece que “o reconhecimento do direito
de não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos;
o reconhecimento do direito de não ser torturado implica a supressão do
direito de torturar”.
Com efeito, no fato anterior, a escolha é fácil, entretanto, em
muitos outros casos a triagem por ser mais difícil poderá se fazer necessária
a sua justicativa, o que no entendimento de Bobbio (1992, p. 21), a sua
resolução se faz mediante a colocação de “limites à extensão de um dos
dois direitos, de modo que seja em parte salvaguardado também o outro”.
Antonio E. Perez Luño (2007, p. 44) pressupõe a seguinte distin-
ção entre direitos humanos e direitos fundamentais:
Os termos “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são utilizados,
muitas vezes, como sinônimos. Sem dúvida, não tem faltado tentativas
doutrinárias encaminhadas a explicar o respectivo alcance de ambas
Democracia e Direitos Humanos
251
expressões. Assim, se tem feito esforço na pretensão doutrinária e nor-
mativa para reservar ao termo “direitos fundamentais” para designar
os direitos positivados a nível interno, enquanto que a fórmula “di-
reitos humanos” seria mais usual para denominar os direitos naturais
positivados nas declarações e convenções internacionais, assim como a
aquelas exigências básicas relacionadas com a dignidade, a liberdade e
a igualdade da pessoa que não alcançou um estatuto jurídico positivo.
Por m, Martín Agudelo Ramírez (2006, p. 200) observa que
Bobbio: “Prefere utilizar a expressão “direitos do homem” a de “direitos
fundamentais”, que é empregado quando de refere ao processo de especi-
cação dos direitos do homem, fundados geralmente em regras constitucio-
nais”. Dessa forma, no presente trabalho em consonância com a teoria de
Bobbio, privilegiou-se o uso do termo direitos do homem.
a teoria geracioNal dos direitos do homem Na filosofia de
Norberto bobbio
Para Bobbio (1992, p. 55-56) no direito antigo se encontra ape-
nas o germe dos direitos do homem:
No início, as regras são essencialmente imperativas, negativas ou po-
sitivas, e visam a obter comportamentos desejados ou a evitar os não
desejados, recorrendo a sanções celestes ou a terrenas. Logo nos vêm à
mente os Dez mandamentos, para darmos o exemplo que nos é mais
familiar: eles foram durante séculos, e ainda são, o código moral por
excelência do mundo cristão, a ponto de serem identicados com a
lei inscrita no coração dos homens ou com a lei conforme à natureza.
Mas podem-se aduzir outros inúmeros exemplos, desde o Código de
Hamurabi até a Lei das doze tábuas.
Dessa maneira, para Bobbio (1992, p. 62) os direitos do ho-
mem nascem no início da era moderna, pois é com a origem do Estado de
Direito que os súditos se transformam em cidadão (Era dos Direitos), já
que no Estado despótico, os indivíduos só tinham deveres e não direitos;
e, por conseguinte, se teve o aparecimento dos direitos do homem: “no
pensamento político dos séculos XVII e XVIII”.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
252
A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789 representaram para Bobbio (1992, p. 101) o início
da Era dos Direitos, sobretudo, em razão da transformação dos súditos em
cidadãos tornando possível a participação dos mesmos na órbita política,
sendo que através das eleições os novos cidadãos poderiam concorrer ou
eleger seus representantes:
Ao contrário, observemos mais uma vez os dois primeiros artigos da
Declaração. Primeiro, há a armação de que os indivíduos têm direi-
tos; depois, a de que o governo, precisamente em consequência desses
direitos, obriga-se a garanti-los. A relação tradicional entre direitos dos
governantes e obrigações dos súditos é invertida completamente.
Assim, para Bobbio (1992), os direitos do homem surgiram no
início da Era Moderna, pois, antes da Revolução Francesa, não havia direi-
tos e sim deveres. Uma das principais contribuições da Revolução é iniciar
a transformação de súditos em cidadãos.
De Plácido e Silva (2008, p. 288) explica que a cidadania: “é ex-
pressão, assim, que identica a qualidade de pessoa que, estando na posse
de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo de
seus direitos políticos, que se indicam, pois, o gozo dessa cidadania”.
O conteúdo da cidadania vem se expandindo historicamente;
pois, atualmente não tem apenas o conteúdo civil e político de sua for-
mulação primitiva, já que sua nova concepção engloba outras dimensões,
conforme Bobbio esclarece na obra O marxismo e o Estado propondo um
padrão mínimo para a cidadania que pode ser reconhecido por meio das
seguintes regras ele elencadas:
a) todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade, sem distin-
ção de raça, religião, condição econômica, sexo etc, devem gozar dos
direitos políticos, isto é, do direito de expressar através do voto a pró-
pria opinião e/ou eleger quem se expresse por ele; b) o voto de todos os
cidadãos deve ser de peso igual (isto é, deve valer por um); c) todos os
cidadãos que gozam dos direitos políticos devem ser livres para votar,
conforme opinião própria formada, quanto mais livremente possível,
isto é, numa competição entre grupos políticos organizados que dispu-
tam entre si para agregar os anseios e transformá-los em deliberações
coletivas; d) devem ser livres, também, no sentido de que devem ser co-
Democracia e Direitos Humanos
253
locados na condição de possuírem alternativas reais, isto é, de poderem
escolher entre várias soluções; e) seja por deliberações coletivas, seja
por eleições de representantes, vale o princípio da maioria numérica,
mesmo que possam se estabelecer diversas formas de maioria (relativa,
absoluta, qualicada) em determinadas circunstâncias estabelecidas;
f) nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da
minoria, em particular o direito de tornar-se maioria em igualdade de
condições. (BOBBIO et al., 1979, p. 34)
Assim, para Bobbio os itens anteriores referem-se às exigências
mínimas para o reconhecimento da cidadania, a m de torná-lo mais efe-
tivo em favor dos hipossucientes da sociedade, adequando os elementos
da cidadania às novas exigências da democracia moderna que são tidos na
losoa bobbiana como elementos essenciais para o desenvolvimento dos
Direitos do Homem, conforme prescreve Bobbio (1992, p. 101) na obra A
era dos direitos: “Hoje, o próprio conceito de democracia, é inseparável do
conceito de direitos do homem”.
Bobbio (1992, p. 5) trouxe outra grande contribuição ao explicar
que as gerações de direitos do homem são produto de seu desenvolvimento
histórico, uma vez que “nascidos de certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez, e nem todos de uma vez por todas”.
Dessa maneira, é importante salientar que uma geração de direi-
tos do homem não suplanta a anterior, já que todas as gerações convivem e
assim se garante a concorrência dos diversos direitos do homem, conforme
Bobbio (1992, p. 23) observa: “a realização dos direitos do homem é uma
meta desejável”.
Com efeito, Vasak criou e fundamentou a teoria geracional de
direitos do homem nos três ideais da Revolução Francesa: liberdade, igual-
dade e fraternidade; sendo que os direitos de primeira geração referem-se
a liberdade; os de segunda geração referem-se a igualdade e os de terceira
geração referem-se a fraternidade (MARMELSTEIN, 2008).
Por sua vez, com base na teoria de Karel Vasak, Bobbio de-
senvolveu sua losoa dos direitos do homem, sendo que para Vasak
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
254
os direitos do homem se constituem em três gerações de modo similar
aos ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade
(MARMELSTEIN, 2008), ao passo que Bobbio (1992) completou a refe-
rida teoria acrescentando a quarta geração que se refere às questões ligadas
a Bioética e ao Biodireito. Dessa forma, conforme Bobbio observa na obra
A era dos direitos (1992) têm-se quatro gerações de direitos do homem.
A Primeira Geração evidencia os Direitos Individuais que pressu-
põem a igualdade formal perante a lei e consideram o sujeito abstratamen-
te; mediante as conquistas da Revolução Francesa os súditos se transforma-
ram em cidadãos (Era dos Direitos), conforme entende Bobbio (1992, p.
21): “Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem,
além dos direitos tradicionais, que consistem em liberdades”.
Na Segunda Geração prevalecem os Direitos Coletivos que no
entendimento de Bobbio (1992, p. 9): “Já a maior parte dos direitos so-
ciais, os chamados direitos de segunda geração, que são exibidos brilhante-
mente em todas as declarações nacionais e internacionais”. Dessa forma, o
indivíduo é inserido no contexto social, ganhando evidência a classe traba-
lhadora, e o Direito do Trabalho (século XIX).
A Terceira Geração – os Direitos dos Povos ou os Direitos de
Solidariedade: a partir do século XX, têm-se, os direitos transindividuais
que abrangem o consumidor e, sobretudo a preservação do meio ambien-
te, conforme salienta Bobbio (1992, p. 6): “O mais importante deles é o
reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambien-
te não poluído”.
A Quarta Geração refere-se aos Direitos de Manipulação
Genética, bem como às questões ligadas à biotecnologia e à bioengenha-
ria, que tratam de questões sobre a vida e a morte e que necessitam de
um discernimento ético, conforme observa Bobbio (1992, p. 6): “Mas
já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos
de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da
pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético
de cada indivíduo”.
Democracia e Direitos Humanos
255
Para Bobbio (1992), o desenvolvimento das gerações de direitos
do homem se equivale ao avanço democrático e moral das sociedades, sen-
do que a democracia é considerada mais desenvolvida quanto mais os di-
reitos do homem forem garantidos e respeitados, conforme explica Bobbio
(1992, p. 101): “Hoje, o próprio conceito de democracia é inseparável do
conceito de direitos do homem”.
Bobbio (1992, p. 43) explica que para a efetivação dos direitos
do homem no que se refere à presença do Estado, é de grande importân-
cia ocorrer a interação entre os poderes e as liberdades conforme esclarece
que denomina como: “’liberdades’ os direitos que são garantidos quando o
Estado não intervém; e de “poderes” os direitos que exigem uma interven-
ção do Estado para sua efetivação”.
Nesse contexto, Bobbio (1992, p. 44) complementa que na socie-
dade atual se busca com maior intensidade a eciência, já que para se obter
uma parcela de poder se tem que abrir mão de uma parcela de liberdade e
esta diferença: “entre dois tipos de direitos humanos, cuja realização total e
simultânea é impossível, é consagrada, de resto, pelo fato de que também
no plano teórico se encontram frente a frente e se opõem duas concepções
diversas dos direitos do homem, a liberal e a socialista”.
Por m, numa sociedade socialista o valor da igualdade prevalece
sobre o valor da liberdade e, em sentido diverso, numa sociedade liberal, a
liberdade prevalece sobre a igualdade.
a Primeira geração dos direitos do homem
Os direitos do homem de primeira geração representam os direi-
tos civis e políticos que se baseiam nos direitos individuais que emergem
no século XVIII com as Declarações Norte-Americana e Francesa, confor-
me Celso Lafer (1988, p. 126) nota: “São vistos como direitos inerentes ao
indivíduo e tidos como direitos naturais, uma vez que precedem o contrato
social”. Esses direitos representam a liberdade do homem contra o poder
absoluto do Estado, conforme acrescenta Celso Lafer (1988, p. 126-127):
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
256
Por isso, são direitos individuais: (I) quanto ao modo de exercício – é
individualmente que se arma, por exemplo, a liberdade de opinião;
(II) quanto ao sujeito passivo do direito – pois o titular do direito indi-
vidual pode armá-lo em relação a todos os demais indivíduos, já que
estes direitos têm como limite o reconhecimento do direito do outro,
[...] e, (III) quanto ao titular do direito, que é o homem individual na
sua individualidade.
Esta geração estabelece as premissas da cidadania perante o poder
público, buscando controlar e limitar os desregramentos do governo a m
de que o mesmo se atente as liberdades individuais da pessoa humana,
conforme ressalta Adriana Galvão de Moura (2005, p. 23): “São os direitos
civis e políticos. Tais direitos têm por titular o indivíduo e são oponíveis
ao Estado, traduzindo-se como faculdades ou atributos da pessoa”. Daí a
importância de se estudar a segunda geração de direitos do homem.
a seguNda geração dos direitos do homem
Os direitos do homem de segunda geração surgem no século
XX, como reivindicação dos excluídos a participarem do “bem-estar
social” como, por exemplo, os direitos ao trabalho, à saúde e à educa-
ção, sendo o titular de tais direitos o indivíduo e o sujeito passivo o
Estado, pois na interação entre governados e governantes este assume a
responsabilidade de atendê-los, sendo que Celso Lafer (1988, p. 127-
128) afirma que estes direitos:
podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais:
procuram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho
num sentido amplo, impedindo, desta maneira, a invasão do todo em
relação ao indivíduo, que também resulta da escassez dos meios de vida
e de trabalho.
A liberdade individual sem controle do Estado desequilibrou a
sociedade capitalista do Ocidente, gerando injustiças sociais em razão do
conito entre o trabalho e o capital diante de um Estado que facilitava
a opressão dos trabalhadores pela burguesia, sendo que Adriana Galvão
Democracia e Direitos Humanos
257
Moura (2005, p. 23) salienta que: “As normas constitucionais consagrado-
ras desses direitos exigem do Estado um atuação positiva, através de ações
concretas desencadeadas para favorecer o indivíduo (também são conheci-
dos como direitos positivos ou direitos de prestação)”.
Por m, a segunda geração fundamenta-se no truísmo da igual-
dade, não mais na conjuntura de deixar de fazer alguma coisa, e sim na
premissa de que o poder público deve atuar em prol do cidadão.
a terceira geração dos direitos do homem
A terceira geração de direitos do homem refere-se ao direito à paz,
ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, à comunicação, ao desen-
volvimento, aos direitos dos consumidores e vários outros direitos, sobre-
tudo, aqueles relacionados a grupos de pessoas mais vulneráveis: a criança,
o idoso, o deciente físico etc; sendo que no entendimento de Celso Lafer
(1988, p. 131) os direitos humanos de terceira geração são aqueles direitos
de titularidade coletiva: “Estes direitos têm como titular não só o indi-
víduo na sua singularidade, mas sim grupos humanos como a família, o
povo, a nação, coletividades regionais ou étnicas e a própria humanidade”.
No século XX, após duas guerras mundiais novas pretensões
surgiram tanto na esfera internacional quanto no âmbito das sociedades
contemporâneas, sendo que diante das antinomias e demandas se zeram
necessárias respostas com a nalidade de se garantir e proteger tanto a
vida quanto as liberdades, conforme Adriana Galvão Moura (2005, p. 24),
assevera: “Em suma, a referida geração de direitos se distingue do período
imediatamente anterior pela preocupação com o destino da humanidade
e se materializa na defesa do ambiente, na proteção do consumidor e no
repúdio à falta de limites exploratórios”.
Durante a Segunda Guerra Mundial, as ditaduras de Hitler,
Mussolini e Hiroito foram responsáveis por inúmeras violações aos direitos
do homem ocorridas em campos de concentração, mediante o massacre
milhões de judeus e de outros grupos minoritários, sendo que, em 1945,
com o término da Segunda Guerra Mundial, tivemos uma nova realidade
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
258
mundial, momento em que o mundo se dividiu em dois blocos políticos
(Estados Unidos x União Soviética), sob a grave ameaça da guerra fria ve-
ricada após a explosão das bombas atômicas em Hiroxima e Nagasáqui
pelos Estados Unidos: macabro ensaio geral da “Era Nuclear” que, pela
primeira vez na história humana, mostrou como o conhecimento e a ciên-
cia podem ser utilizadas para o exercício ilimitado do poder, possibilitando
a completa destruição do mundo” (DORNELLES, 1997).
Em 10 de dezembro de 1948, foi aprovada pela Assembléia Geral
das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, sen-
do que Bobbio (1992, p. 34) reete que: “A Declaração Universal repre-
senta a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores
fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado
e uma inspiração para o futuro”.
Assim, para Bobbio (1992, p. 6) o sentido da história somente
pode ser derivado da realidade concreta os direitos:
Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento
do poder do homem sobre o homem – que acompanha inevitavelmen-
te o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de
dominar a natureza e os outros homens - ou cria novas ameaças à liber-
dade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigên-
cias: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do
poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o
mesmo poder intervenha de modo protetor.
Nesse contexto, Hannah Arendt (1989) na obra Origens do totali-
tarismo, analisa as circunstâncias que viabilizaram a origem de um método
de repressão política se distingue das demais: o totalitarismo.
Para compreender do fenômeno totalitário, também presente no
momento do desenvolvimento da terceira geração de direitos do homem,
Celso Lafer faz uma importante reexão entre o pensamento de Arendt e
o estudo do Direito, especialmente no que tange aos Direitos Humanos.
Com efeito, na obra A reconstrução dos direitos humanos, Lafer (1988, p.
117) assevera que: “O totalitarismo representa uma proposta de organiza-
Democracia e Direitos Humanos
259
ção da sociedade que almeja a dominação total dos indivíduos”; fazendo
do homem um ser irrelevante.
a quarta geração dos direitos do homem
A quarta geração dos direitos do homem se refere à manipulação
genética, à biotecnologia e à bioengenharia, abordando reexões acerca da
vida e da morte, inferindo efetivamente uma antecedente ponderação ética
por meio da qual se busca determinar a base jurídica tanto das inovações
tecnológicas quanto seus limites constitucionais (MOURA, 2005); e, con-
forme Bobbio (1992, p. 6) observa tais direitos se reporta: “aos efeitos cada
vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações
do patrimônio genético de cada indivíduo”.
Por m, é interessante observar a posição de Paulo Bonavides
(2008, p. 571), que de maneira contrária a teoria de Bobbio, classica
os direitos de quarta geração como sendo: “o direito à democracia, o
direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concre-
tização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima uni-
versalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as
relações de convivência”.
coNclusão
Bobbio opta em utilizar a expressão direitos do homem a
direitos fundamentais, que é usado à medida que ocorre o processo
de especificação dos direitos do homem, fundados habitualmente em
normas constitucionais (RAMÍREZ, 2006). Dessa forma, no presente
trabalho privilegiou-se o uso do termo direitos do homem.
De fato, se verica que no entendimento de Bobbio (1992) os
direitos do homem são históricos, sendo que os períodos que marcam a sua
evolução na história são denominados de gerações, pois foram arquitetadas
em momentos históricos distintos.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
260
A Revolução Francesa foi o marco inicial da Era dos Direitos,
uma vez que nela se vericou a transformação dos súditos em cidadãos;
e, por conseguinte a possibilidade deles exercerem a cidadania por meio
das eleições onde os cidadãos poderiam concorrer ou eleger seus represen-
tantes. Antes da Revolução o que havia era apenas uma Era dos Deveres
(BOBBIO, 1992).
De fato, as três primeiras gerações de direitos do homem cor-
respondem ao apoderamento pela humanidade das referidas gerações
fundamentadas nos axiomas dos revolucionários franceses: liberdade,
igualdade e fraternidade, sendo que cada um dos referidos valores cor-
responde a uma geração de direitos a ser conquistada. Em sentido com-
plementar, Bobbio nota que a quarta geração de direitos do homem se
refere a engenharia genética, bem como as questões que tratam da vida e
da morte (BOBBIO, 1992).
Por fim, houve uma grande evolução na história ao se passar
migrar de uma “era dos deveres” para uma “era dos direitos. Dessa ma-
neira, é importante salientar que uma geração de direitos do homem não
suplanta a anterior, já que todas as gerações convivem e assim se garante a
concorrência dos diversos direitos do homem (BOBBIO, 1992).
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A    : B 
José Alcebiades de Oliveira Junior
iNtrodução
Inicialmente, gostaríamos de agradecer aos professores Doutores
Rafael Salatini de Almeida e Cesar Barreira, o convite para participar da I
Semana Norberto Bobbio (Unesp/INB/PU-CSP), de 23 a 25/08/2016, na
PUC-SP, bem como ao ilustre Prof. Dr. Celso Lafer, pela cordial recepção
aos participantes do evento. Este texto, elaborado para obra alusiva a
esse acontecimento, contém a nossa apresentação no evento, associada
a estudos que viemos desenvolvendo já há longos anos sobre o rico e
extenso pensamento losóco, jurídico e político de Norberto Bobbio
(1980). Muito embora sendo um autor eclético e intenso, possui algumas
marcas notáveis, dentre as quais uma metodologia analítica rigorosa de
contraposições conceituais, bem como um posicionamento ponderado e
prudente diante de temas complexos e controversos. Mas o que este nosso
texto almeja preferencialmente enfatizar é que, em algumas áreas, como a dos
Direitos Humanos, a investigação de Bobbio (1980) foi não só precursora,
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p263-278
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
264
mas também permanente, isto é, são lições que vieram para car. De aí o
título de este trabalho falar de “uma nova era dos direitos” (modernos e pós-
modernos), que Bobbio viu nascer e a tratou em várias de suas dimensões,
sobretudo com relação à especicação de grupos detentores desses direitos
e em relação ao trato dos direitos desses grupos. Nesse campo, dos direitos
humanos, povoados pelas paixões e por extremistas de vários matizes, palco
de graves desencontros, é atualíssimo também o enfoque que o professor
italiano delimitou em sua obra o Elogio da Serenidade (2011, p.10-12 e 35
e segs.), sobre a necessidade dos operadores e das instituições associarem
posturas cientícas de atuação do Estado, com perspectivas de moralidade,
prudência, reconhecimento e serenidade de seus agentes. Assim, Bobbio é
atual porque soube revisar sua condição de jurista destacado em um marco
cienticista e positivista, na direção de um reencontro com o seu lado de
lósofo da moral, que de fato nunca o abandonou completamente.
coNsiderações gerais sobre bobbio e a sua obra
Como já escrevemos em inúmeros trabalhos, dentre os quais a
nossa tese de doutorado defendida na UFSC em 1991, e publicada em
1994 pelo Sérgio Antonio Fabris Editor, bem como nos Dicionários coor-
denados pelo prof. Dr. Vicente Barretto, de Filosoa do Direito (2006,
p. 109-113) e de Filosoa Política (2010, p. 67-70), Bobbio é um dos
maiores teóricos do direito e da política; sua obra monumental pode hoje
ser consultada em muitas plataformas. De outra parte, tornamos a repe-
tir manifestação de Perry Anderson (1989, p. 14-41, especialmente p.21)
(ANDERSON, 1993) na qual arma em outras palavras que Bobbio,
além de enorme formação, enfrentou-se com a fenomenologia de Husserl
e de Scheler um pouco antes da 2ª. Guerra, e com o existencialismo de
Heidegger y Jaspers durante a guerra, bem como com a importante cor-
rente (neo)positivista, basicamente desenvolvida por Carnap e Ayer, logo
após o m da guerra.
Por outro lado, a tese de Bobbio sobre a inuência da fenome-
nologia de Edmund Husserl na losoa jurídica e social e escrita sob a
orientação de Gioele Solari teve uma grande importância inicial (RUIZ
Democracia e Direitos Humanos
265
MIGUEL, 1983, p. 23-24). Mas, como também armou o Prof. Dr.
Alfonso Ruiz Miguel (1983, p. 23, 24 e segs), dileto discípulo de Bobbio no
campo do direito, o autor turinês logo baixou das nuvens da losoa para
a planície da ciência. Voltado, inicialmente, para a losoa do Direito, de-
limitou desde cedo os vários campos nos quais trabalharia Epistemologia
Jurídica, Teoria Geral do Direito, Sociologia Jurídica e Deontologia ou
Filosoa Política. De modo que, mesmo de forte formação jurídica e de-
fensor de um cienticismo de base kelseniana, nunca perdeu de vista a
relação do Direito com a Política (RUIZ MIGUEL, 1983, p. 23-129).
Tanto isso é verdade que Bobbio atravessou momentos importan-
tes com o texto Scienza del diritto e analisi del linguaggio escrito nos anos
1950 (SCARPELLI, 1976, p. 287-324), quando propôs com êxito e de
modo original o resgate da metodologia do Neopositivismo do Círculo de
Viena em Rudolf Carnap para a Ciência Jurídica, ressaltando a importân-
cia da losoa da linguagem para análise da ciência dos juristas; mas, já em
1966, após o auge do positivismo normativista de cunho analítico em Itália
e com a crise dessa matriz, muito em razão da crise econômica e política
da Europa no pós-guerra, passou a desenvolver uma outra preocupação
no texto Essere e dover essere nella scienza giuridica apresentado em 1967
(BOBBIO, 1992), politizando mais essa ciência e tendo que se deparar
com a problemática das funções do direito. Com efeito, também como já
escrevemos com base em Enrico Lanfranchi (1989, p. 155-195) cada vez
mais emerge em Bobbio uma preocupação com a função social do direito
e com o papel dos juristas, e que pode ser associada a uma dar-se conta
com as transformações do Estado, que de liberal veio a assumir colorações
mais sociais ou socialistas, ou mesmo de um Estado de bem-estar-social
(LANFRANCHI, 1989, ver especialmente as pgs. 155-195), conduzin-
do-o à realização de vários estudos que terminaram por serem reunidos no
importante livro Dalla struttura alla funzione (1977), que, praticamente,
diríamos, dá por nalizada a sua fase analítica.
Economizando o leitor de várias outras análises possíveis, interes-
sa ressaltar aqui que Bobbio paulatinamente foi ampliando suas preocupa-
ções sociológicas com a Ciência Jurídica, emergindo um Bobbio cada vez
mais político e mais interdisciplinar, cuja constatação pode ser encontrada
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
266
em seu livro fundamental para estes nossos escritos consoante sua biblio-
graa italiana, L’età dei diritti (1990), no qual, dentre outras coisas, lê-se,
em destaque, na contracapa que, “Diritti dell’uomo, democrazia e pace
sono ter momenti necessari dello stesso movimento storico: senza diritti
dell’uomo riconosciuti e protetti non c’é democrazia; senza democrazia
non ci sono le condizioni minime per la soluzione pacica dei conitti”,
interpretação que rendeu excelente síntese e reexão do Prof. Celso Lafer
(2004), na apresentação da obra na versão brasileira. E dentre as teses
fundamentais do livro estão a da historicidade dos direitos humanos, que
nascem no início da idade moderna com a concepção individualista da
sociedade, se apresentando como certo progresso histórico, e numa lúci-
da expansão do entendimento de que os fundamentos (absolutos ou não)
dos direitos do homem são históricos e o importante seria a discussão do
como protegê-los e torná-los efetivos, concretos, como referiu o mencio-
nado professor Celso Lafer (2004) na apresentação citada. Acrescentamos
que esse enfrentamento subentende a questão coletiva e de grupos desses
direitos, e é sobre isso que gostaríamos de chamar a atenção neste artigo
e por isso mesmo passaremos a tratar desse assunto nesse tom nas partes
seguintes deste trabalho.
coNsiderações de bobbio sobre os direitos humaNos: da era dos
direitos à Nova era
Caminhemos, pois, a partir de agora na direção das problemá-
ticas relativas às funções do Direito e a realização dos direitos humanos.
Não precisamos insistir que o nosso foco passa a ser então a obra A era dos
direitos de Bobbio (2004), com a excelente tradução brasileira de Carlos
Nelson Coutinho, obra na qual Bobbio a partir de autores importantes
como Kant, bem como seu estudo sobre a era clássica do liberal indivi-
dualismo, adentrou a uma discussão sobre a complexidade das socieda-
des contemporâneas, sobretudo quanto às problemáticas resultantes dos
direitos coletivos ou mesmo difusos, e que requerem uma atitude não só
passiva, mas também ativa do próprio Estado, dos seus agentes e, por que
não dizer, de toda a sociedade. Por isso, nossa leitura dessa obra dirige-se a
explicitar que a proliferação dos direitos humanos demonstra ser necessária
Democracia e Direitos Humanos
267
a consideração de direitos individuais, mas, sobretudo de direitos sociais
e transindividuais, e assim a discussão sobre a efetividade e a considera-
ção concreta desses direitos, terá de enfrentar-se com as transformações
do Estado, na busca da harmonização de interesses de diferentes sujeitos,
objetivos, sociais e culturais, dos diferentes grupos por vezes em posições
contrárias, como veremos a seguir (OLIVEIRA JUNIOR, 2005; 2007;
2015) (OLIVEIRA JUNIOR; LEAL JUNIOR, 2012, p. 03-31).
do liberal-iNdividualismo aos direitos coletivos e de gruPos No
âmbito dos estados sociais marcados Pela diversidade cultural
moderNidade e Pós-moderNidade
Embora não se possa dizer que Bobbio (2004) tenha tratado
explicitamente essa transposição, o fato é que suas reexões nos anos
1970 e 1980 do século passado já permitem uma ilação quanto à exis-
tência de uma preocupação com as insuciências de uma versão negativa
e passiva de Estado, próprias de uma modernidade que se reinventa e
que reivindica também as possibilidades de uma atuação mais promo-
cional e nalística desse Estado, o que paulatinamente se acelerou desde
aquele momento até hoje. De modo que há que se ressaltar que mesmo
tendo partido de uma conguração de mundo tradicional quanto aos
valores, sua preocupação com a função e a promoção dos Direitos pelo
Estado, contiveram na sua essência uma preocupação com o incremento
da diversidade social e cultural, pois sempre se manifestou extremamente
preocupado também em como tratar o objeto dessa função, referindo-se
ao quanto, ao que e aos quais Direitos deveriam ser promovidos, assim
como com referência ao quem, ou as quais sujeitos deveriam ser prio-
ritariamente considerados, demonstrando assim uma grande incógnita
quanto ao como pensar essas transformações, e, por via de consequência,
uma grande incógnita em como pensar a aquisição, a manutenção e a
transmissão do poder. De modo que é certo que Bobbio não se utili-
zou, salvo melhor juízo, da expressão pós-modernidade, muito embora
vivesse nessa transição e estivesse atento às crises econômico-sociais e
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
268
multiculturais ali presentes e carentes de uma séria atenção por parte dos
intelectuais (OLIVEIRA JUNIOR, 2015, p. 27-42).
dos direitos humaNos às questões de ideNtidade cultural
Dito isso, um ponto explícito que se destaca em sua obra A era
dos direitos e que denominamos de “nova era”, é o da passagem de uma
preocupação com os Direitos humanos de uma visão formal dos sujeitos
para uma visão relacionada à problemática da identidade e da diversidade
cultural, temáticas muito bem desenvolvidas por Andrea Semprini(1999),
Stuart Hall (1999) e Emmanuel Levinas (2006). De modo que não há
dúvida de que das visões generalizantes dos sujeitos, cada vez mais Bobbio
passava também a se preocupar com as diferenças e circunstâncias dos su-
jeitos, como são exemplos às questões de gênero, masculino e feminino,
homem e mulher, crianças e velhos, marcos, aliás, nos anos setenta, das
questões referentes ao multiculturalismo. Muitos sociólogos reputam a
luta feminista como um dos principais elementos desencadeadores da nas-
cente problemática multicultural.
Assim, de um sujeito abstrato volta-se para o sujeito situado. As
preocupações de Bobbio, pois, dizem com a multiplicação dos sujeitos e
bens a serem protegidos pelos direitos humanos. Do sujeito genérico, é
bem conhecida a argumentação de Bobbio sobre o fato dos sujeitos terem
de ser considerados de maneira situada, isto é, de acordo com suas circuns-
tâncias, como homem e mulher, como criança e adolescente, como adulto,
novo e idoso, etc. Por outro lado, segundo Bobbio os bens se multiplica-
ram, pois além daqueles referentes aos sujeitos, ter-se-ia que considerar
aqueles referentes à natureza e aos animais. Como se vê, cada vez mais os
direitos se multiplicam e um Estado com atuação passiva cada vez mais se
torna insuciente.
Indiscutivelmente, da igualdade formal seria preciso passar-se às
questões materiais dos sujeitos, e, nesse sentido, dois ângulos são essenciais
e dizem respeito, por um lado, aos problemas econômico-sociais, e, por
outro, aos problemas relacionados à identidade cultural. Hoje em dia, cada
vez mais as diferenças e proximidades entre esses dois ângulos estão sendo
Democracia e Direitos Humanos
269
discutidas por autores como Nancy Fraser e Axel Honneth (2003), e que
dizem respeito às questões de redistribuição econômica e o reconhecimen-
to cultural.
De modo que esse quadro ao especicar diferentes sujeitos e suas
diferenças, no mínimo subentende e coloca em questão de modo conco-
mitante a existência de diferentes grupos, e a possibilidade de eventuais
conitos de interesses entre eles. E é essa a grande transformação percebida
pelo professor italiano e que nos autoriza a dizer que Bobbio foi não so-
mente um dos precursores de uma nova era, como também um dos profes-
sores que inspiraram grandes transformações no Direito de vários países,
inclusive o Brasil, sobre a necessidade de um avanço e transição, por um
lado, das perspectivas estruturalistas de ciência para perspectivas funciona-
listas, e, por outro, acerca da necessidade de uma legislação que tratasse de
interesses coletivos e de grupos, dada a diversidade de sujeitos e bens que
requerem uma atuação positiva dos Estados, em busca de uma cidadania
coletiva (OLIVEIRA JUNIOR; MORATO LEITE, 1996, p. 07-14).
cidadaNia coletiva e Proteção traNsiNdividual
Pois bem. Desde os anos de 1996 quando coordenamos com o
prof. José Rubens Morato Leite a obra Cidadania coletiva (1996, p.07-
14), já nos utilizávamos de Bobbio para reetir sobre as transformações
do mundo aludidas há pouco e que deveriam ser atualizadas no campo
do Direito (OLIVEIRA JUNIOR, 1996, p. 15-25). E dentre o que res-
saltávamos àquela época, estava o fato de que os tempos haviam muda-
do e estavam surgindo “novos direitos”, “novas gerações de Direitos”. De
conitos intersubjetivos, havíamos avançado para problemáticas coletivas.
A realidade liberal-individualista entronizada desde o Século XIX estava
perdendo espaço. E tudo porque, como já foi referido neste trabalho, o
desenvolvimento econômico, cientíco e tecnológico do mundo moderno
e pós-moderno conduziram a conitos coletivos – como são exemplos à
degradação do meio ambiente, a diversidade cultural e até mesmo a cor-
rupção nas relações entre o Estado e o poder econômico, e que termina por
alimentar” o seu desenvolvimento. E foi assim que desde o início dos anos
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
270
1980, no Brasil, como dissemos no livro em comento, tivemos um incre-
mento da legislação nessa direção da proteção coletiva, com o surgimento
de vários textos importantes como a Lei 7.347/88 – LACP – Lei de Ação
Civil Pública, a própria Constituição Federal de 1988, incisos III de seu
artigo 129, fortalecendo a legitimidade para agir do Ministério Público na
defesa desses interesses coletivos dos diferentes grupos. Posteriormente, ad-
veio ainda o importante Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.088/90,
que dentre outras leis, vem se tornando essencial em uma sociedade inter-
nacionalizada economicamente e que poderia causar danos coletivos imen-
sos e através de várias maneiras.
Não obstante, ainda hoje no Brasil os problemas de realização
e efetivação dos direitos humanos, quer sejam individuais, coletivos e/ou
difusos, requerem avanços não só da legislação, mas, também e principal-
mente, da atuação dos demais poderes instituídos, executivo e judiciário,
este último enquanto instância recursal última de que as sociedades civili-
zadas dispõem para a efetivação dos seus direitos. Com efeito, é nesse sen-
tido, como veremos um pouco adiante, que se materializa a atualidade de
Bobbio, ao ressaltar que necessitamos não só de legislação, mas de homens
comprometidos com valores de interesses sociais e coletivos. É, portan-
to, fundamentalmente nessa direção que buscamos sustentar nossa tese da
atualidade de Bobbio, ao referirmos que diante de temas novos e comple-
xos como esses da diversidade social e multicultural é que necessitamos de
homens “serenos”, conceito que Bobbio atribui uma grande importância
por ser ele signatário daquelas pessoas que em suas atitudes públicas con-
seguem ver e escutar o “Outro”, e aqui no sentido maiúsculo atribuído por
alguns pensadores, dentre os quais Emmanuel Levinas (2006).
obstáculos e aNálises críticas Para a efetivação dos direitos
humaNos No brasil a Partir de alguNs exemPlos
Levantadas algumas premissas fundamentais à nossa reexão, gos-
taríamos de agora reprisar uma vez mais o que temos dito em vários ou-
tros textos (OLIVEIRA JUNIOR, 2007; 2015) (CABALLERO LOIS e
SIQUEIRA, 2016, p. 171-184), que um dos primeiros ângulos de dicul-
Democracia e Direitos Humanos
271
dades para o trato dos direitos humanos na área multicultural parece ser o
eterno conito entre liberalismo e comunitarismo, duas ideologias contrárias
e que, Gisele Cittadino (1999, p.14-60)
1
e Carla Faralli (2006, p. 78-83),
trabalharam e esclareceram de maneira apropriada. Assim, segundo essas au-
toras, em linhas gerais e em breve referência às suas obras, para as teses libe-
rais a identidade cultural é um problema privado, e o tratam de uma forma
negativa, a exemplo da defesa da não discriminação. Já para as teses comu-
nitaristas, a identidade cultural é um problema de Estado, pois pode haver
grupos em posição marginal em uma dada sociedade, cujos membros desses
grupos precisam lidar com uma imagem de inferioridade de si mesmos. E
esta é a realidade do Brasil, que a nosso juízo atribui a marginalidade de
pessoas de cor e de determinadas raças as suas “supostas características”. Ora,
necessário se faz, como veremos adiante, a intervenção do Estado através de
ações armativas (e serenas), como, por exemplo, na direção dos problemas
inerentes às relações entre os indígenas ou nativos e o Estado brasileiro, assim
como no que tange as exclusões dos afrodescendentes ou negros pelos ditos
brancos no Brasil, a partir de um rol injusticado de preconceitos que se
perpetuam, dentre outros muitos problemas.
Também acreditamos ser importante abordar aqui outra linha
de raciocínio construída dentre outros por Manuel Atienza em sua obra
Podemos hacer mas (2013, p.31-60) sobre o tema de que a inefetividade
dos Direitos sociais e multiculturais reside no complexo tema das rela-
ções entre “Constitucionalismo, globalización y Derecho” (2013, p. 31-
60). Conforme salienta o Prof. Atienza (2013, p. 31-32-40-50 e segs)
(ATIENZA, 2015), indiscutivelmente é possível observar que a globali-
zação conduz a um esvaziamento dos Direitos Sociais. E que sem dúvida,
também se assiste a uma priorização dos interesses corporativos, tudo em
prol dos sistemas bancários corporativos e o sistema econômico nanceiro
internacional. Com efeito, não estaríamos a dizer nem uma novidade ao
armar que no atual momento, o Estado brasileiro cada vez se volta mais
para um dito “enxugamento” e um desaquecimento das políticas públi-
cas em várias áreas, muito embora se entenda que o sistema econômico e
capitalista, dado o seu alto grau sistêmico e “autopoiético”, nos imponha
Ver também sobre debate entre as várias losoas políticas (libertários, liberais contratualistas, comunitaristas
e os crítico-deliberativos), o prefácio do prof. José Eduardo Faria no livro de Gisele Cittadino, ora referido.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
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exigências diante das quais não possuímos poder de manobra. Enm, as-
siste-se hoje a um predomínio da Lex Mercatoria (Soft Law), desregula-
mentação e, consequentemente, uma cada vez menor atenção aos direitos
humanos, o que a nosso juízo conforma-se num quadro bastante grave e
preocupante, porque a falta de apoio social redundará seguramente em um
aumento da marginalização e exclusão.
Claro está do que foi dito, que assistiu razão a Bobbio quando em
sua obra A era dos direitos (2004) demonstrou a multiplicação e especica-
ção dos direitos humanos e que a sua concretização e efetivação conduzi-
riam a ter-se que pensar o Direito a partir de sua função promocional, isto
é, de um modo interventivo em momentos nos quais se observa uma desi-
gualdade de oportunidades em função de diferenças culturais. Ou, então,
quando um olhar de menosprezo produzir uma marginalização, em muito
devido ao fato de que ele se dá como o resultado de um sentimento de
superioridade sobre outro de inferioridade, diferenças pouco enfrentadas,
sobretudo no âmbito do ensino brasileiro em todos os seus níveis. Como
dissemos no verbete acenado ao início deste trabalho e agora repetimos
aqui, muito embora alguns entendam a diferença como uma decorrência
natural da própria dinamicidade da cultura, na verdade estamos pratica-
mente em meio a uma guerra, para não dizer contínuo terrorismo, que
alguns consideram fruto de um conservadorismo e outros como inerente
ao desenvolvimento da humanidade.
Voltando-nos, então, para exemplos resultantes do caráter multi-
cultural do Brasil e que temos reiteradamente expostos nos últimos tempos
como possibilidade didática das muitas vezes em que falta serenidade ao
Estado e aos agentes públicos, não nos cansamos de trazer à tona o trabalho
do Des. Cândido Alfredo Leal Junior (2011)
2
que alerta de modo basilar
sobre a necessidade de preparo dos agentes públicos para o enfrentamen-
to do multiculturalismo. Como diz esse Desembargador Federal Cândido
Alfredo Leal Junior (2011) (OLIVEIRA JUNIOR; LEAL JUNIOR (2011,
p. 13 e 14), “no exercício da jurisdição na Vara Ambiental e Agrária de
Ver “Tratamento judicial de conitos entre grupos indígenas e agentes públicos: estudo de dois casos discutidos
e julgados na Vara Ambiental e Agrária de Porto Alegre.(mimeografado), 2011. Como já referido, este trabalho de
Cândido Leal Junior foi também publicado em artigo conjunto com este autor, intitulado “O Direito na Guerra
entre Culturas”. In: “Direitos Fundamentais e Contemporâneos”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p.03-31.
Democracia e Direitos Humanos
273
Porto Alegre, em menos de uma semana, tivemos oportunidade de julgar
dois processos envolvendo discussão sobre reparação de danos morais por
discriminação que teria sido praticada pela atuação do Poder Público con-
tra comunidades indígenas”. E dito isso, refere-se a duas ações envolven-
do indígenas em confronto com o Poder Público, a primeira chegando à
conclusão de que não houve dano moral ao grupo indígena e foi negada a
respectiva indenização (processo 2008.71.00.016340-8). No outro caso, se
reconheceu que houve dano moral e foi deferida a respectiva indenização
(processo 2008.71.00.024096-8).
Como não cabe entrar em detalhes sobre essas ações, deve-se pelo
menos rearmar que o despreparo do qual falamos tem muito a ver com
a incompreensão da sociedade como um todo em relação à diversidade
cultural, quer em relação a problemas raciais, quer em relação a problemas
étnicos, e muito seriamente em relação a questões de gênero.
A título de ilustração, o primeiro caso referido por Cândido dizia
respeito a um conito entre scais da prefeitura e indígenas que pretendiam
vender artesanato no Parque da Redenção em Porto Alegre. Ao que parece,
bastou uma má colocação do indígena quanto aos lugares adequados para
fazer o seu negócio, para que tenha havido uma intervenção inadequada da
scalização, tendo sido gerado para além de desentendimentos, agressões
corporais. E a pergunta imediata que se faz? Onde estaria a função promo-
cional do Estado e do Direito a que se referia Bobbio? Mas é preciso dizer,
que não é fácil compreender o tema e encontrar os caminhos corretos para
a atuação do Estado. Mas é certo que a tolerância deveria prevalecer, pois
certamente essas pessoas nem sempre possuem o esclarecimento equivalen-
te que os demais artesãos possuem.
O outro caso foi muito pior e tratou-se de uma “Reintegração de
Posse”, na qual as forças de segurança intentavam realizar não só a reinte-
gração com a tribo indígena incorreta (Guaranis ao invés de Kaingangs),
assim como com referência ao local equivocado. Um claro dano moral
resultante de uma ação desastrada, para não dizer outra coisa (OLIVEIRA
JUNIOR e LEAL JUNIOR, 2012, p.03-31).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
274
coNsiderações fiNais: a atualidade e o elogio da serenidade em
bobbio
Como desfecho deste texto sobre a atualidade de Bobbio e ques-
tões relativas a nova era dos direitos, em uma das grandes revisões meto-
dológicas desse signicativo mestre em sua própria obra, tal como a as-
sociação da problemática da ciência jurídica a aspectos estruturalistas e
funcionalistas de ciência quando de sua leitura dos direitos humanos e da
diversidade cultural, gostaríamos de rearmar nossa tese, talvez polêmica,
mas real e que diz respeito ao fato de que Bobbio tem muito a nos ensinar
sobre progresso moral, qualicação e aperfeiçoamento dos seres humanos
e de suas instituições.
A atualidade de Bobbio também sobre as diculdades de se esta-
belecer qual a função do Direito é inegável, haja vista a realidade brasileira
por nós muito parcialmente aqui apresentada. E na pós-modernidade essas
diculdades se ampliam, e desaam muito seriamente o como se pensar a
função promocional e funcional do Estado e do Direito. Como temos ob-
servado, infelizmente, a atuação do Estado tem sido muito mais repressiva
do que promocional, procurando tão somente ou principalmente garantir
o funcionamento do mercado. De modo que são muitas as diculdades
para as altas esferas decisórias do poder do Estado, exigindo, muitas vezes,
como já dissemos um preparo que as faculdades de Direito não fornecem,
que os exemplos de vida pública não contribuem e assim, se avolumam
as diculdades para o cumprimento das diligências cabíveis a um viver
pleno, em meio a uma burocracia estatal que exige e em muitos casos
não oferece “as condições necessárias para o exercício da função”, como
dissemos em trabalho escrito em outro momento (OLIVEIRA JUNIOR,
2015, p.27-42).
Enfatizando o que temos dito reiteradamente ao longo dos últi-
mos quinze anos, esses acontecimentos retratam em muito as diculdades
de reconhecimento das diferentes identidades culturais dos diferentes gru-
pos que compõem as etnias existentes no território nacional brasileiro, de-
monstrando, sobretudo, o quanto as questões multiculturais, além de pou-
co compreendidas, são vistas ainda numa perspectiva ideologizada, como
se um grupo civilizado estivesse a combater outro grupo que o ameaça e
Democracia e Direitos Humanos
275
que poderá cometer barbáries. E a pergunta é: mas quais são os bárbaros,
os que agem de acordo com sua cultura que em muitos casos se diferencia
de uma visão homogênea da sociedade, ou as forças policiais que agem em
nome de um todo que apenas se mantém a partir de formalidades legais?
(OLIVEIRA JUNIOR, 2015, p.27-42) (OLIVEIRA JUNIOR; ROCHA
DE SOUZA, 2016).
Mas o fundamental para este texto neste nal seria rearmar com
o mestre Bobbio, alguns dos aspectos desenvolvidos em sua obra Elogio da
Serenidade (2011), entendidas como contribuições para o funcionamento
adequado dos Estados-nação no mundo globalizado, na direção do enfren-
tamento da necessidade urgente de efetivação dos direitos humanos.
Assim, em primeiro lugar, para usar terminologia do lósofo ale-
mão Jürgen Habermas (1997; 2007), rearmar que o poder público tem
de deixar de agir apenas “estrategicamente”, isto é, com interesses muitas
vezes obscuros e apenas voltados para uma perpetuação no poder, e passar
a agir “comunicativamente”, isto é, de maneira transparente de tal maneira
que a sociedade possa compreender e interagir de modo efetivo nas deci-
sões de interesse das coletividades;
Em segundo lugar, rearmar que esse agir deveria ser marcado
por atitudes serenas, entendidas da seguinte forma: a) serenidade signi-
ca atuar sem embaralhar o interesse público com os interesses privados,
situação historicamente ocorrida, reconhecida e criticada no Brasil; b) que
o combate à violência, a marginalização e a exclusão dependem, segura-
mente, mais de investimentos em direitos sociais do que da construção de
prisões, ou unicamente do aumento do aparato policial; c) que o enfren-
tamento dos direitos humanos, depende muito do combate à corrupção,
um dos focos centrais de desvio das verbas necessárias às políticas públicas;
d) de considerarmos que quando Bobbio fala em serenidade, ele está que-
rendo dizer, a nosso juízo, que a partir do nascimento da política ninguém
pode se atribuir a condição de dono da verdade, e que necessário se faz
haver uma preocupação do poder público não só com a positivação de
leis e direitos, mas, sobretudo, com a seriedade e serenidade dos homens
públicos, enquanto possibilidade de combate à degeneração das institui-
ções; e, enm, e) que por serenidade deve-se entender um vocábulo que
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
276
tem absolutamente tudo a ver com a ideia de uma boa República como
aquela centrada no virtuoso, isto é, centrada em uma visão do Estado que
se afaste dos extremismos, no sentido de querer unicamente preservar suas
ditas “razões de Estado” , e procure as associar as teorias Éticas, quer no
sentido aristotélico de busca pelo “bem comum”, mas, sobretudo na pers-
pectiva de que o Estado para se legitimar precisa saber ouvir os cidadãos.
Literalmente, como diz Bobbio (2011, p. 35), “a serenidade é [...] uma
disposição de espírito que somente resplandece na presença do outro: o
sereno é o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro de si”.
Por derradeiro, a serenidade abraça a não violência diz Bobbio
(2011, p.10-12), defendendo, portanto, a Paz como uma política necessá-
ria, a exemplo do que fez Ghandi com o seu pacismo... Assim sendo, com
essas reexões gostaríamos de ndar estas linhas sobre o grande pensador
italiano Norberto Bobbio e a nova era dos direitos, sua atualidade e sua se-
renidade (BOBBIO, 2011), agradecendo uma vez mais pela oportunidade
de ter participado desta “I Semana Norberto Bobbio” realizada pela PUC-
SP/Unesp/INB, em agosto de 2016.
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O     , 
 ,   ,    
   N B
Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori
O mestre não é apenas aquele que ensina noções, que deixa que você par-
ticipe dos seus conhecimentos, mas é também aquele que com a sua vida e
com as suas palavras ensina o rigor moral, o respeito pelo outro, a recusa de
todas as falsidades e supercialidades, a capacidade de escolher com base
nos seus próprios princípios. (Maurílio Guasco)
iNtrodução
Apesar de Bobbio ter reconhecido em um programa de entrevis-
tas à rádio ocial italiana que havia se ocupado de muitos temas e que era
difícil encontrar o o condutor que unisse a todos eles, esse ensaio objetiva
evidenciar o importante nexo estabelecido pelo autor entre temas funda-
mentais da losoa política e do direito.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p279-304
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
280
De início, cabe recordar que para Andrea Bobbio a característica
mais importante do trabalho de seu pai, Norberto Bobbio, sempre foi a
disciplina nos estudos. Em toda a sua vida ele leu, anotou, juntou, classi-
cou artigos, documentos, livros. Atualmente seu arquivo, localizado no
Centro studi Piero Gobetti (Via Antonio Fabro, 6, 10122 Torino, Itália),
podem ser encontradas os milhares de folhas e chas catalográcas que
possibilitam circular por sua trajetória intelectual, entre os anos vinte e
noventa do século XX. Anotava e preenchia chas de tudo que chamava
a sua atenção: livros, leituras, mas também impressões, imagens, observa-
ções, sentimentos, etc. Duas arquivistas que trabalharam com seu acervo
descreveram seu método de trabalho através de uma metáfora. A leitura
dos livros de Bobbio equivale a assistir a um exercício de ginástica. Parece
que os movimentos uem com naturalidade, possibilitando uma exibição
harmônica e prazerosa, o que esconde que eles foram possibilitados por um
treinamento árduo e demorado. Assim também, os ensaios de Bobbio são a
consequência de um trabalho rigoroso, disciplinado, cansativo de estudos
que pode ser percebido quando se observa o seu arquivo.
1
Nesse ensaio, parte-se daquilo que se denomina de metodologia
bobbiana ou o seu modo inovador de abordar as temáticas e suas consequên-
cias práticas para as disciplinas da teoria do direito e a losoa política. O
guia da trajetória desta análise pode ser encontrado nos quatro nexos teóricos
e práticos de Kelsen, aprimorados e desenvolvidos por Bobbio: democracia e
direito, direito e razão, razão e paz e entre paz e direitos humanos. O ponto
de chegada, é o da compreensão procedimental da democracia.
sobre o método
A opção feita por Bobbio por ensaios curtos em comparação com
as “obras monográcas” é decorrência da prevalência da análise crítica so-
bre o espírito de sistema, no dizer do próprio autor. “Quien escribe un
tratado o un manual tiene el deber de la plenitude. Pero para estar en con-
diciones de tratar toda una material como la losofía del Derecho hay que
Sobre o depoimento de Andrea Bobbio, ver: O lado humano de Norberto Bobbio. In: TOSI, G. (Org.).
Norberto Bobbio: democracia, direitos humanos, guerra e paz. João Pessoa: UFPB, 2013. V. I, p. 37-50.
Democracia e Direitos Humanos
281
ser omnisciente, mientras que yo he estudiado algunos temas y otros no.
(BOBBIO, 1980b, p. 9-10).
Reconhece que no início de seus estudos de teoria geral do direito
e metodologia da ciência jurídica se sentiu atraído pelo neopositivismo e
pela losoa analítica. A inuência dessas correntes de pensamento fez
com que ele não estivesse disposto a aborrecer-se com os discursos muito
gerais sobre o “ser” e o “não ser” e permanecesse “con los pies en la tierra”,
movendo-se, caso necessário “dando un paso cada vez”. Apesar de não se
considerar um neopositivista e muito menos um lósofo da linguagem,
dos primeiros assimilou o gosto pelo rigor conceitual e, dos segundos, a
importância das questões de palavras em especial, na interpretação – pro-
cedimento intelectual próprio dos juristas. Para ele, aqueles que preferem
o paciente trabalho da análise movimentam-se em espaços
tan pequeños como para no conseguir recorrer, incluso en el curso de
toda una vida, todo un territorio. Para cultivar un campo inmenso,
como es el del Derecho, en todos sus aspectos, seríanecesario poseer
un potente tractor, mientras que el único instrumento que he llegado a
manejar son las tijeras del jardinero. (BOBBIO, 1980b, p. 12).
Apesar de considerar ser evidente, Bobbio reconhece que dentre
os juristas, sua maior dívida é com Kelsen. Uma dívida que ele tem prazer
em admitir.
A él le debo, aparte del planteamiento general de mis estudios, la selec-
ción de algunos temas y un cierto modo distanciado y desapasionado
(al menos, me ilusiono con que es así) de plantear los problemas in-
cluso allí donde las soluciones son distintas. (BOBBIO, 1980b, p. 12).
Sobre Kelsen, Bobbio arma que o valor da obra de um jurista
imponente como ele, não pode ser medido com a “régua” das correntes de
opinião que surgem e desaparecem com os acontecimentos e as ideologias
e muito menos com a “régua” dos humores e das “impressões” pessoais.
(BOBBIO, 1980a, p. 119).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
282
Outro ponto diz respeito a fragmentariedade da obra bobbiana.
Admitindo-a Bobbio acrescenta razões pessoais, psicológicas em sentido
amplo. Em primeiro lugar,
un exceso de dispersión por el que constantemente he puesto aliado de
los estudios de losofía del Derecho estudios de otra naturaleza, como
aparece desde la primera página de la introducción, y por el que conti-
nuamente he tenido un pie en cada orilla, la de la cultura académica y
la de la cultura militante […]. (BOBBIO, 1980b, p. 12).
A segunda razão reside em um certo “temor reverencial” quando
o tema é o das obras dos grandes lósofos do passado “a los que he admi-
rado pero frente a los que me he sentido demasiado pequeño para tener el
atrevimiento de imitarles” (BOBBIO, 1980b, p. 12).
Em suma, a maior parte de seus livros são, pois, recompilações e
ensaios.
Analisando a bibliograa bobbiana, seu aluno, Luigi Ferrajoli
mostra que desde seus primeiros escritos, se alternam estudos de teoria do
direito – teoria das normas e teoria do ordenamento, estudos de lógica e
de epistemologia do direito sobre as antinomias e as lacunas – com “me-
moráveis” ensaios de losoa política: “desde los ensayos históricos sobre
Hobbes, sobre Locke, sobre Kant, sobre Marx, hasta aquellos que dedicó
a los grandes temas de la losofía política como la libertad, la igualdad,
la justicia, la paz y la guerra, la relación entre lo público y lo privado.
(FERRAJOLI, 2005, p. 16).
Comparando o pensamento de Bobbio com os de Stuart Mill,
Russell e Dewey, Perry Anderson considera que, contrariamente aos ou-
tros, lósofos originais de estatura superior, trata-se de um lósofo cujas
ideias centrais são derivadas dos clássicos: apesar das contribuições teóricas
não poderem ser comparadas, seu entendimento das grandes tradições do
pensamento político ocidental “é maior, não apenas no que diz respeito ao
tempo, mas também em escopo e profundidade. Em Bobbio, o conheci-
mento da losoa política é fundamentado por estudos de direito consti-
tucional e familiaridade com a ciência política” (1989, p. 21-22).
Democracia e Direitos Humanos
283
O pensamento de Bobbio “é um liberalismo que acolhe simulta-
neamente discursos socialistas e conservadores, revolucionários e contra-
-revolucionários.” Além disto, o o condutor de suas intervenções teóricas,
nos últimos trinta anos, foi “uma defesa e uma ilustração da democracia
enquanto tal”. Ele sublinha a importância das instituições liberais (parla-
mentos e liberdades cívicas) nas sociedades de classe, dominadas por uma
camada capitalista. Estas instituições têm, como função primordial, asse-
gurar a liberdade negativa dos cidadãos, funcionando através de mecanis-
mos duais, representados pelos direitos civis e por uma assembleia repre-
sentativa, contra uma possível prepotência do Estado.
O elo entre ambos constitui o que Bobbio denomina núcleo irredutível
do Estado Constitucional [...] forma um legado que pode ser utilizado
por qualquer classe social. Sua origem histórica, argumenta Bobbio, é
tão irrelevante para sua utilização contemporânea quanto a de qual-
quer instrumento tecnológico, seja ele o telefone ou a ferrovia. Não há
justicativa para que a classe trabalhadora não possa apropriar-se desse
complexo em sua própria construção do socialismo, e tem a mais forte
razão para fazê-lo. (ANDERSON, 1989, p. 28-29).
A análise da teoria política de Bobbio não pode deixar de consi-
derar seu efeito sobre o clima político italiano. Ao invés de dedicar-se ex-
clusivamente aos “jogos de poder (a linguagem maquiavélica)” ele passou
a examinar o Estado como complexo institucional. Também foi o respon-
sável por incutir no PCI (Partido Comunista Italiano) a ideia do euroco-
munismo avant la lettre.
A particularidade de sua teoria democrática consiste em pregar a
expansão da democracia para várias áreas da vida social, ao invés de propor
a substituição da democracia representativa pela democracia direta, que ele
teme ver transformada em fetiche por alguns setores da esquerda.
2
Assim,
para Bobbio o atual problema do desenvolvimento democrático não é o de
quem vota, mas o de onde se vota (BOBBIO, 1983a, p. 103).
“Pois nem os referendos, nem as assembléias populares, nem os mandatos imperativos de descendência
rousseauniana se dariam bem em nosso ambiente moderno. Os referendos não teriam qualquer possibilidade
de enfrentar toda a carga de legislação complexa de uma sociedade tecnoburocrática; as assembléias populares
são excluídas tendo em vista a escala demográca da maioria dos países modernos. Os mandatos revogáveis
poderiam ser vantajosos para o autoritarismo, e os mandatos imperativos já existem na forma de disciplina
partidária parlamentar – em detrimento da democracia”. (MERQUIOR, 1991, p. 210-211).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
284
Para além da ruPtura eNtre teoria do direito e filosofia Política,
o Positivismo jurídico e a questão da justiça
De acordo com Luigi Ferrajoli, um dos ensinamentos mais valio-
sos da obra de Bobbio foi a superação da incomunicabilidade entre a teoria
do direito e a losoa política, através do vínculo que ele estabeleceu entre
a democracia e o direito, em especial: entre democracia, direito, razão e paz
(FERRAJOLI, 2005, p. 17).
Duas são as causas que determinaram a separação dos estudos ju-
rídicos daqueles losóco-políticos. Em primeiro lugar, a auto-suciência
e o isolamento cultural da ciência jurídica que sempre defendeu, em nome
de sua tradição milenar, sua autonomia em relação às demais ciências so-
ciais. Também há que se considerar a inacessibilidade do saber jurídico
para os não juristas, decorrente do tecnicismo e da especialização.
Só que juristas e lósofos se ocupam dos mesmos temas: o poder,
as liberdades, as instituições, as relações entre autoridade e liberdade e
entre Estado e mercado, a organização da esfera pública, a administração
da justiça, a redistribuição da riqueza e as formas da democracia. A
incomunicabilidade é motivada por uma operação político-cultural, de
signo anti-ilustrado que remonta o século XIX. O período das codicações
europeias, seguidas que foram por duas grandes escolas jurídicas – Exegese e
Histórica – e sua obsessão pela “cienticidade”, determinou uma concepção
formal da interpretação da lei e o isolamento epistemológico da ciência
do direito. Esta concepção levou a adoção do método técnico-jurídico na
construção dogmática e a rme defesa da autonomia epistemológica das
disciplinas jurídicas (FERRAJOLI, 2005, p. 17-18).
O “ataque dos juristas à losoa política” enquanto reexão sobre
os fundamentos axiológicos e as funções políticas desses artifícios que são
o Direito e o Estado, foi devolvido por uma boa parte dos lósofos “com
equivalente dureza” e até, uma certa superioridade. O desinteresse e a ig-
norância do direito foram características comuns à losoa idealista (na
Itália, Croce e Gentile) e a cultura marxista, nos trinta anos posteriores à II
Guerra Mundial (FERRAJOLI, 2005, p. 20).
Democracia e Direitos Humanos
285
O que Ferrajoli denomina de “magistério metodológico” de
Bobbio, num itinerário teórico-losóco que parte da teoria do direito
e chega à teoria da democracia, começou nos anos posteriores à I Guerra
Mundial. Nesse sentido, seu ensinamento mais valioso foi a promoção do
m da separação dos estudos de teoria do direito daqueles de losoa po-
lítica, dirigindo uma dupla tarefa de “alfabetização”. O primeiro trabalho
consistiu em fazer com que os lósofos da política tivessem a necessidade
de conhecer o direito como condição para a formulação das teorias da
democracia, concebidas como “regras do jogo” – denominação bobbia-
na das regras jurídicas que dão vida a mecanismos delicados e equilíbrios
complexos, impossíveis de serem dominados, caso não sejam conhecidos
a partir de dentro. A segunda, em fazer ver aos juristas o caráter, não só
técnico-jurídico, também político do objeto de seu trabalho.
3
A originalidade na superação da separação entre teoria do direito
e losoa política decorre de ter tematizado a distinção entre ambas como
enfoques distintos e essenciais de um mesmo objeto. O momento históri-
co foi o da defesa do positivismo jurídico, logo após a II Guerra, acusado
por promotores de um “retorno ao direito natural” e de ser corresponsável
pelos totalitarismos. A defesa de Bobbio distingue no positivismo jurídico
o enfoque metodológico, da teoria do direito.
Él no niega en absoluto la importancia y la relevancia de las instancias
de justicia que el iusnaturalismo formula. Simplemente las adscribe
a la losofía de la justicia – es decir, a la losofía política normativa
– reservando para la ciencia jurídica el estudio del derecho positivo.
Y todo esto sobre la base de la distinción elemental entre derecho y
justicia, frente a dos posibles y opuestas confusiones consistentes la
una en reducir el derecho a la justicia, como hace el iusnaturalismo, y
la otra en reducir la justicia al derecho, como hace el legalismo ético.
(FERRAJOLI, 2005, p. 22).
A defesa da articialidade do direito é acompanhada pela arma-
ção da sua laicidade e de sua separação da moral, na linha da tradição -
losóca que procede de Hobbes, Bentham, Austin, Kelsen e Hart. Bobbio
pues uno y otro no tienen que ver con una tecnología neutra del poder y de la organización social, sino con las
formas, las condiciones y las garantías de las libertades y de la democracia, que están elaboradas principalmente
por el pensamiento losóco-político”. ( FERRAJOLI, 2005, p. 21).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
286
traduz esta distinção nos termos da grande divisão da losoa analítica da
linguagem entre “ser” e “dever ser”, isto é, entre o “direito assim como ele
é” e o “direito como deve ser”, “direito como fato” e “direito como valor”
ou, em última instância, entre teses e discursos jurídicos assertivos ou des-
critivos e teses e discursos jurídicos de caráter prescritivo ou valorativo.
Tais distinções mostram o papel metateórico das distinções na
metodologia bobbiana, características do estilo empírico-analítico por ele
inaugurado na losoa jurídica e política. Com isso, delimita os diferentes
e complementares espaços da ciência jurídica e da teoria do direito, de um
lado, e da losoa da justiça e da losoa política normativa, de outro.
O valor extraordinário das distinções e das claricações concei-
tuais está em que uma tese de teoria do direito aparentemente banal como
é a distinção/separação entre direito e moral serve para fundar – com seus
corolários da positividade e da articialidade do direito, da laicidade do
Estado e da concepção utilitarista como instrumentos de tutela dos direitos
fundamentais – outras tantas teses da losoa política bobbiana. Esta foi
a base a partir da qual Bobbio propôs uma refundação epistemológica da
ciência jurídica, em especial da sua teoria do direito e da losoa política.
Outro aspecto especíco e original é o de ter conjugado a teoria
do direito e o normativismo kelseniano com a losoa analítica, promo-
vendo a teoria e a losoa jus-analítica. Inovou ao propor (ensaio de 1950,
Ciencia del derecho y análisis del lenguaje) o método da análise da linguagem
– em especial a linguagem do legislador – para a interpretação operativa
do direito, assim como para a elaboração dogmática da ciência jurídica.
(FERRAJOLI, 2005, p. 25-26)
Nos cursos monográcos dos anos cinquenta e sessenta
4
, Bobbio
propôs a refundação epistemológica da teoria do direito. Para tanto, recor-
re a duas componentes do empirismo lógico: a lógica, própria do neopo-
sitivismo lógico – assegurada pelo caráter formal e formalizável próprio da
teoria geral – e a componente empírica, assegurada pela análise da lingua-
gem legal das disciplinas jurídicas particulares, dado o reconhecimento do
Teoria da norma jurídica de 1958, Teoria do ordenamento jurídico de 1960, O positivismo jurídico de 1961 e
mais tarde com as recompilações de escritos Estudios sobre la teoría general del derecho de 1995 e Estudios para
una teoría general del derecho de 1970.
Democracia e Direitos Humanos
287
caráter linguístico do discurso do jurista positivo. A refundação da ciência
jurídica é feita com base em uma teoria formal do direito convenciona-
lista elaborada a partir do modelo kelseniano, conjugada com a análise
da linguagem para a dogmática jurídica e a teoria como espaço diferente
da dogmática jurídica. Conceitos como norma, ordenamento, validade,
direito subjetivo e similares, não pertencem mais a dogmática jurídica e,
sim, a teoria, porque são fruto de denições convencionais. São respalda-
dos pela ordem legislativa e elaborados através de redenições léxicais, fru-
to da análise da linguagem legal, objeto de interpretação e de explicação
5
(FERRAJOLI, 2005, p. 28).
o Nexo eNtre democracia, direito, razão e Paz
A teoria do direito encontrou-se com a losoa política e não,
com as disciplinas jurídicas dogmáticas. Nesse sentido, fala-se do valor
losóco e político – bem como liberal e utilitarista – da separação entre
direito e moral ou entre direito e justiça. O primeiro fundamento da -
losoa política bobbiano, é o de que a separação é a base da laicidade das
instituições políticas, dos limites estabelecidos pelas liberdades individuais,
de seu caráter instrumental – propiciada por sua forma jurídica – para
ns externos a elas e precisamente para a tutela dos direitos fundamentais
(FERRAJOLI, 2005, p. 28-29).
Aliado a isso, introduz um estilo novo na losoa política: o mé-
todo da análise da linguagem e das claricações e diferenciações concei-
tuais que já havia aplicado à teoria do direito. Através deste método – que
parte dos conceitos comuns à teoria do direito e à teoria política – é feita
a mediação entre as duas disciplinas. Outro aspecto original da obra de
Bobbio contribui para essa mediação: o uso teórico das categorias dos clás-
sicos da losoa política. Ele utiliza os textos clássicos como peças das teo-
rias jurídica e política. São conceitos comuns: poder, liberdade, igualdade,
Para Ferrajoli, é lamentável que o encontro com a ciência juridica só tenha se produzido minimamente.
Somente os lósofos e teóricos do direito formados na escola de Bobbio fazem ciência jurídica com os
instrumentos da análise da linguagem. Ferrajoli pensa nos trabalhos de Tarelo sobre direito civil e sobre direito
do trabalho, nos de Guastini de direito constitucional e nos trabalhos de direito penal. Os outros juristas, com
raras exceções, têm ignorado, apesar da análise ser útil nos temos atuais de crise da legalidade e dos sistemas de
fontes (FERRAJOLI, 2005, p. 28).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
288
autoridade, direitos, pessoa, paz, guerra, violência, Estado, separação de
poderes, Estado de direito, dentre outros.
A partir dessa base irá se produzir o momento mais interessante
do encontro (ou talvez, desencontro, diz Ferrajoli), entre teoria do direito
e losoa política. Ele envolve a crítica de Bobbio à carência da cultura
jurídica e ao vazio da teoria do direito que caracterizam o marxismo, do-
minante na Itália dos anos setenta.
6
A confrontação, além de ser entre o en-
foque liberal-democrático e o marxista também é entre o enfoque analítico
e o sintético ou entre o enfoque lógico-empírico e o metafísico.
A polêmica é aberta com uma pergunta provocadora ao mesmo
tempo que retórica: existe uma teoria marxista do Estado? Ela,
golpea en el corazón de una larga, secular tradición losóco-política,
que atestó las bibliotecas de millares de libros y revistas sin por ello
haber producido otra cosa que una ingente literatura sobre los escasos
escritos políticos de Marx y sobre El Estado y la revolución de Lenin.
(FERRAJOLI, 2005, p. 30).
Embora admita a existência de uma teoria da extinção do direito
e do Estado, uma espécie de profecia, elaborada com base em citações de
Marx e Lenin, em outras palavras, com invocações ao princípio da autori-
dade. Bobbio desvela a ausência e mesmo o desprezo ao direito praticado
pela cultura losóco-política de esquerda. O que é mais grave é que essa
falta leva a consagração “del que ha sido el mayor error teórico y estratégico
del comunismo real: la devaluación del derecho como conjunto de reglas,
límites y controles impuestos al poder político, y por ende la conanza en
un poder bueno que estaría destinado a triunfar junto con la victoria del
sujeto revolucionario” (FERRAJOLI, 2005, p. 30).
A inexistência de uma teoria marxista do Estado e do direito en-
volve a inexistência de regras que regulem e garantam a democracia so-
cialista. O vazio acaba por invalidar a teoria marxista do socialismo e é
responsável pelo fracasso histórico dos comunismos reais. A doutrina mar-
Diz respeito à polêmica de 1976 sobre a democracia – presente nos ensaios Existe uma doutrina marxista do
Estado? e Quais as alternativas à democracia representativa? que se vincula idealmente a polêmica anterior sobre
a liberdade com Galvano della Volpe.
Democracia e Direitos Humanos
289
xista-leninista da ditadura do proletariado não é senão uma nova versão
da opção em favor do governo dos homens, em alternativa ao governo das
leis. “Es una crisis radical, que no tiene precedentes en la historia del mar-
xismo: bibliotecas enteras de teoría política marxista quedaron inservibles
de un plumazo” (FERRAJOLI, 2005, p. 31).
A partir da constatação do divórcio entre a teoria do direito e a
teoria política ou da ideia do direito sem política e de uma política sem
direito e de que ela é a responsável pelo isolamento losóco da cultura
jurídica e pela involução autoritária da teoria política, Bobbio institui qua-
tro nexos racionais, teóricos e práticos, vinculados circularmente entre si:
entre democracia e direito, entre direito e razão, entre razão e paz, entre
paz e direito – e de modo especíco – entre paz e direitos humanos.
O primeiro é o nexo racional entre democracia e direito. O direi-
to e suas instituições não são valores intrínsecos, isto é, ns em si mesmos.
Como teórico do direito, ele ensinou que o direito positivo não implica
nem em justiça, nem em democracia, podendo ser injusto, anti-liberal e
anti-democrático. O inverso não é válido: o direito pode existir sem a de-
mocracia, mas a democracia não pode existir sem o direito.
Por cuanto la democracia es un conjunto de reglas – las reglas del
juego” democrático, como ya se ha recordado – y consi-
guientemente de normas jurídicas: no cualquier regla, sino las reglas
constitucionales que aseguran el poder de la mayoría y, a la vez, los
límites y las ataduras que a éste se le imponen a n de garantizar la paz,
la igualdad y los derechos humanos. (FERRAJOLI, 2005, p. 31-32).
Em segundo lugar, existe o nexo entre direito e razão: se a demo-
cracia é uma construção jurídica e o direito o instrumento necessário para
modelar e garantir as instituições democráticas, é ainda mais certo que o
direito é uma construção racional, visto que a razão é o instrumento neces-
sário para projetar e elaborar o direito.
O terceiro ensinamento faz referência ao vínculo entre razão e
paz. Depois da tragédia da II Guerra Mundial, constata-se que assim como
o direito, a paz é uma construção articial, “um ditame da reta razão”. O
denominado “estado da natureza” não é uma hipótese e sim
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
290
el estado del mundo contemporáneo, el de la ley salvaje del más fuerte
y de la guerra innita, la salida del cual “es el producto de los hombres
mismos, y más exactamente de la voluntad de los hombres en cuanto
seres racionales; o si se quiere de la voluntad racional del hombre”.
(FERRAJOLI, 2005, p. 32).
A construção e a garantia da paz são possíveis quando se coloca
em ação o quarto nexo: um direito cujo m exclusivo é a paz e a garan-
tia dos direitos humanos (direito à vida, às liberdades fundamentais e aos
direitos sociais à sobrevivência). A violação desses direitos no mundo é
responsável pelas violências, pelas guerras e pelo terrorismo. A advertên-
cia é realista e Bobbio a repetiu ao comentar o preâmbulo da Declaração
Universal, identicando na tutela dos direitos humanos “o fundamento da
paz no mundo” e o único caminho capaz de fazer com que o homem não
recorra à rebelião como instância derradeira em caso de opressão e anar-
quia (FERRAJOLI, 2005, p. 32-33).
Durante mais de meio século nos quais Bobbio ensinou, repetiu
e aprimorou os quatro nexos que constituem o ensinamento mais valioso
de Kelsen.
7
Na atualidade, a ilusão de uma democracia sem direitos volta a
ser proposta na ideia de uma política e de um mercado sem regras, domi-
nados por poderes políticos e econômicos sem limites. Os ensinamentos
de Bobbio são atuais porque se referem à crise das nossas democracias,
originadas pela crise do direito e de sua capacidade para regular e limitar
os grandes poderes.
O neoilustracionismo da losoa jurídica bobbiana e de sua
escola consistiu em ter reproposto os nexos entre direito e política, razão
jurídica e razão política, teoria do direito e teoria da democracia, au-
sentes na ciência jurídica e na losoa política de orientação marxista.
Bobbio nos ensinou que o direito é um produto dos homens e, portanto,
Ferrajoli aponta um último nexo, de ordem prática, entre a política e a cultura e, de modo mais geral, entre
trabalho cientíco, rigor analítico e paixão civil. “Bobbio –el teórico Bobbio, el metodólogo Bobbio, que siempre
defendió la validez de la teoría del derecho y de la teoría política– nos enseñó que nuestros estudios no son estudios
meramente académicos. Y nos mostró con su vida entera de estudioso, que su losofía, por tomar nuevamente el
título de otro de sus libros dedicado a Carlo Cattaneo, fue una ‘losofía militante’.” (2005, p. 34).
Democracia e Direitos Humanos
291
da política, assim como a democracia e a paz são modeladas e garantidas
pelo direito. O direito não é uma entidade natural e sim, um artifício da
razão, elaborado pelas teorias, sendo da responsabilidade de todos: cida-
dãos, juristas e lósofos.
PeNsar a democracia a Partir das teorizações de haNs KelseN
A teoria da democracia se insere no pensamento de Kelsen unida
às demais áreas de estudo do autor: uma concepção particular do direito,
do Estado e da moral inseridas na vertente positivista. Essa é a base teórica
a partir da qual desenvolve sua concepção de democracia como técnica de
produção do ordenamento jurídico, com a entrega da produção normativa
a um órgão especializado, composto através de eleições nas quais votam
o maior número possível de eleitores e que de modo geral delibera, por
maioria simples.
Em Kelsen, direito, Estado e democracia estão estreitamente vin-
culados. O primeiro recebe do autor uma denição ontológica, percebido
como uma “técnica social que consiste em obter a desejada conduta social
dos homens mediante a ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada
em caso de uma conduta contrária”. Direito e Estado se fundem, levando
à armação de que “o Estado é aquela ordem da conduta humana que cha-
mamos de ordem jurídica, a ordem à qual se ajustam as ações humanas, a
idéia à qual os indivíduos adaptam sua conduta”. Assim, o poder do Estado
é o poder organizado pelo direito positivo – é o poder do direito.
8
A losoa jurídica de Kelsen quando aplicada à esfera política, sa-
lienta a dimensão do Estado enquanto estrutura de normas. Abandonando
a teoria de Jellineck que dividia o Estado – “uma Rechtslehre lidaria com o
Estado como um corpo de leis, enquanto uma Sociallehre preocupar-se-ia
com o Estado como uma instituição social” – Kelsen o concebe como uma
ideia puramente jurídica. Apropriando-se da distinção de Ernest Cassirer,
entre substância e função, o Estado de Kelsen é apenas uma idéia lógica útil,
isto é, o conceito de unidade do sistema jurídico (KELSEN, 1987, p. 168).
Cf. KELSEN, H. Teoria pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
292
Por outro lado, ele buscou fundar sua teoria jurídico-política em
novas abordagens do conhecimento, recorrendo a uma modernização epis-
temológica. Abandonando os conceitos causais, critica o marxismo consi-
derando que
juntava o anacronismo de postular essencialismo causal com uma mís-
tica de profecia histórica. Tudo isso foi sugerido por Kelsen, numa crí-
tica poderosa, Sozialismus und Staat (Socialismo e Estado, 1920).
Os marxistas se equivocaram a respeito das relações entre Estado e so-
ciedade de duas maneiras. Primeiro, reduziram o Estado à expressão de
forças sociais, tornando assim um paradoxo a sua famosa reivindicação
de abolição nal do Estado. Em segundo lugar, os marxistas erravam
ao armar que havia uma contradição (Widerspruch) entre o Estado e
a sociedade. Pois a sociedade é para o Estado o que um conceito mais
amplo é para um conceito mais estreito, como “mamífero” para “ho-
mem”. O relacionamento, portanto, é de distinção e implicação, e não
de contradição: é um Gegensatz, não um Widerspruch. (KELSEN,
1987, p. 168-169).
Atente-se para a riqueza das reexões kelsenianas sobre a demo-
cracia representativa. Kelsen se surpreende com manutenção, a longo pra-
zo, da tensão entre a ideologia democrática da liberdade e a realidade de
um regime político denominado democracia, eis que leva a crer na ilusão
da liberdade como função precípua da ideologia democrática.
9
Dado que a realidade social da democracia exige a existência de
líderes, apesar de o ideal de liberdade democrático pregar a ausência de
domínio, Kelsen questiona a formação da vontade dominadora, ou seja,
quer elucidar como se dá o surgimento dos líderes.
Nesse sentido, a perspectiva individualista de Kelsen é próxima à
abordagem de Joseph Schumpeter (1883-1950): ambos buscam elaborar
teorias descritivas e neutras, despidas de conteúdo ideológico. O mesmo
indivíduo kantiano, realizando escolhas racionais, subjaz às teorias. No
Kelsen de Essência e valor da democracia a proximidade com Schumpeter é
KELSEN, H. Essência e valor da democracia. Arquivos do Ministério da Justiça, Ano 40, n. 170, p. 104-105,
out- dez. 1987. Ainda para Kelsen, a função da ideologia democrática parece ser a mesma representada pela
ilusão ética do livre arbítrio perante o fato, já estabelecido pela psicologia, da inelutável determinação causal de
todo desejo humano. “Entre estes dois grupos de problemas não existe um paralelismo exterior, mas uma íntima
comunhão” (1987, p. 104-105).
Democracia e Direitos Humanos
293
signicativa, já que em ambos prevalece a concepção de democracia como
técnica. Posteriormente, o autor irá acentuar a base popular da competi-
ção eleitoral criticando o modelo schumpeteriano, em especial seus traços
mais formais. No que tange a esse aspecto, a concepção de democracia de
Bobbio mantém uma maior proximidade com a de Kelsen, tendo assumin-
do o princípio da concorrência político-eleitoral e sobretudo sua funda-
mentação na defesa da liberdade e dos direitos fundamentais.
Considerando a oposição entre ideologia e realidade, não é pos-
sível dar uma resposta unívoca à questão da separação de poderes: ela é ou
não um princípio democrático? Salienta Kelsen que em alguns momen-
tos, a separação dos poderes age em um sentido democrático: dividido o
poder, impede-se uma concentração que poderia favorecer o seu exercício
arbitrário; além disso, tende a tirar da inuência direta do governo o es-
tágio da formação da vontade geral, permitindo aos súditos inuenciá-lo
diretamente, reduzindo a função do governo à raticação legislativa das leis
(1987, p. 106-107).
Tudo isto faz com que a criação de líderes em grande número pas-
se a ser um problema central da democracia real. Em oposição ao proposto
pela ideologia, abandona-se denitivamente a ideia de uma coletividade
sem líderes. Diferentemente das autocracias, a democracia real surge como
coletividade de muitos líderes em que “um método particular de seleção
dos líderes da coletividade de governadores aparece como elemento essen-
cial”: a eleição. A análise sociológica desta prática adquire uma importân-
cia fundamental para a compreensão da essência da democracia real. Aqui
reaparecem os problemas da divergência entre ideologia e realidade e da
identicação ctícia dos eleitores com os eleitos.
10
Formalmente, a democracia surge como sendo, em essência, um
método de criação de órgãos, diferente de outros métodos por duas carac-
terísticas principais: 1) a complexidade da questão. A democracia é cons-
tituída de “uma multidão de órgãos incompletos; 2) o órgão criado pela
eleição é superior aos órgãos criadores, já que, pela eleição, é formado um
10
“Na ideologia democrática, a eleição deve ser uma delegação da vontade do eleitor para o eleito. E deste
ponto de vista ideológico, a eleição e, por conseguinte, a democracia que nela se apoia seriam, como já foi
‘impossibilidades lógicas intrínsecas’; de fato, a vontade, na realidade não pode ser delegada; celui qui délègue,
abdique” ( KELSEN, 1987, p. 108).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
294
órgão que cria a vontade dominadora que submete os eleitores, isto é, as
normas que os vinculam” (o que leva, em última instância, à “hipocrisia
da delegação de vontade”, já que os governados designam seu líder, e su-
jeitam-se às normas designadas pela autoridade que criaram) (KELSEN,
1987, p. 108).
A direção exercida pelos líderes na ideologia democrática apre-
senta um valor relativo: o líder só é líder por um tempo e de acordo com
certos pontos de vista. No mais, o líder é igual a todos os outros e portanto,
sujeito à críticas. A publicidade dos atos do exercício do poder deriva dessa
ideia. “Em conseqüência, uma das características da democracia real é uma
ascensão constante da massa dos governados à posição de líder” (KELSEN,
1987, p. 109-110).
Já os direitos do homem e do cidadão apresentavam-se original-
mente como uma proteção do indivíduo contra o poder executivo, sendo
também a proteção da minoria pela maioria, uma função essencial dos
direitos e liberdades fundamentais. Esta auto-limitação racional signica
que o catálogo destes direitos e liberdades transforma-se, de instrumento
de proteção do indivíduo contra o Estado, em instrumento de proteção da
minoria (KELSEN, 1987, p. 91).
No que concerne o princípio da maioria é preciso ainda fazer a
distinção entre ideologia e realidade. Nem sempre a maioria numérica é
decisiva.
11
Do ponto de vista da realidade, é a força de integração social
que, em primeiro lugar, caracteriza o princípio da maioria. Seu verdadeiro
signicado em uma democracia real surge no procedimento parlamentar,
através de sua técnica dialético-contraditória, e objetiva um compromisso.
A proporcionalidade é melhor realizada quanto maior for o número de
mandatos a distribuir. Resumindo, “enquanto a idéia da proporcionalida-
11
Renato Janine Ribeiro lembra que a regra da maioria, assim como ela é conhecida hoje, origina-se dos
colegiados clericais da Idade Média. Nestes últimos, quando os assuntos eram controversos, deveria prevalecer
a vontade da “parte maior e mais sadia (sanior)”: avaliava-se não apenas a quantidade, também a qualidade
da decisão tomada. A partir desta ideia, desenvolve-se mais tarde outra, a de que a maioria representa o todo,
inclusive os que foram derrotados, isto é, a minoria. “O arremate desse processo está na vontade geral de
Rousseau, descrita no Livro 2
o
. do ‘Contrato Social’ como uma simples regra da maioria, mas que depois, no
Livro 4
o
., é condicionada por procedimentos (a inexistência de facções e a redução do papel enganador da
oratória) que a convertem quase que em revelação da verdade. Ora, é exatamente essa relação entre maioria
e indivíduo, da ordem da representação ou mesmo (no caso de Rousseau) da revelação, o que Hobbes nega
(RIBEIRO, 2000, p. 7).
Democracia e Direitos Humanos
295
de insere-se na ideologia democrática, sua efetiva ação insere-se na realida-
de da democracia: o parlamentarismo” (KELSEN, 1987, p. 93, 95).
Caso se recorresse a um puro sistema majoritário nas eleições par-
lamentares, somente a maioria estaria representada. A necessidade de coali-
zão dos partidos sai do âmbito do eleitorado, passando para o do parlamen-
to. Só que a integração política representada pela necessidade de coalizão
é um progresso social e não um mal. O resultado produzido – que arma
não ser o interesse de um só grupo a vontade do Estado – constitui-se na
essência do Estado de partidos democráticos. É preciso então, garantir que
todos os interesses de partido possam ser expressados pelo procedimento a
ser desenvolvido no seio de um parlamento.
Pode-se ter uma ideia exata de um dos problemas mais difíceis e
perigosos do parlamentarismo, o obstrucionismo, através da compreensão
do verdadeiro e particular sentido da maioria. Quando a minoria, abu-
sando dos direitos que as regras de procedimento lhe reconhecem, tenta
obstaculizar e/ou impedir as decisões da maioria, paralisando temporaria-
mente o mecanismo parlamentar, ocorre a obstrução que pode ser técnica
ou física. A obstrução é um meio que poderá, por um lado, servir para
tornar praticamente impossível a formação da vontade parlamentar e, por
outro, orientar esta vontade no sentido de um compromisso entre maioria
e minoria (KELSEN, 1987, p. 97).
Hans Kelsen, compreendendo que a ideia de democracia é de-
terminada em primeiro lugar pelo valor liberdade e não pela igualdade,
opõe-se terminantemente à oposição entre eles, já que na formação da
ideologia democrática a participação da ideia de igualdade tem um sentido
negativo, formal e secundário”. A igualdade se dá na formação da vontade
do Estado. Já a igualdade formal na liberdade – a igualdade nos direitos
políticos – nada tem a ver com a ideia de democracia. Historicamente, a
luta pela democracia é a luta pela participação do povo nas funções legisla-
tiva e executiva, isto é, a liberdade política (KELSEN, 1987, p. 113).
A situação ca clara quando se observa que a igualdade material,
não a política formal, realiza-se também – ou talvez melhor – em um regi-
me ditatorial, autocrático, diz Kelsen. Isto sem deixar de considerar o fato
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
296
de que esta igualdade signica, em última instância, justiça e suas inúmeras
acepções. Em resumo, o termo “democracia” designa “um certo método de
criação da ordem social”, e não o conteúdo dessa ordem.
Com esta noção de democracia social, oposta à noção formal de
democracia, nega-se simplesmente a diferença entre democracia e ditadura
e considera-se a ditadura, que arma realizar a justiça social, como “ver-
dadeira” democracia. Disto resulta, indiretamente, um injusto aviltamen-
to da democracia atual e, como conseqüência, do mérito da classe que
a tem favorecido até, em parte, contra seus próprios interesses materiais
(KELSEN, 1987, p. 113).
Se a igualdade continua sendo apenas política é porque o pro-
letariado – a quem interessa a igualdade econômica e a socialização da
produção – ainda não se transformou na esmagadora maioria do povo
(KELSEN, 1987, p. 114).
Seguindo Kelsen, e respondendo a críticas que acusam essa e logo,
a sua concepção de democracia de tecnológica, Norberto Bobbio acrescen-
ta que a democracia substancial “tem a ver com o problema de superar o
capitalismo.” Como considera que a democracia substancial estabelece um
marco teórico-político especíco, Bobbio a trata sob outro prisma, numa
concepção não tecnológica: “Exatamente para eliminar estas desigualdades
é que se coloca o problema de superar o capitalismo, isto é, se coloca o
problema da democracia substancial” (BOBBIO, 1983c, p. 101).
Em suma a compreensão de democracia de Kelsen ocupa espaço
relevante no século XX na construção das ideias democráticas, e perdu-
ra hoje. Identicada com a tradição liberal é passível de apropriação por
qualquer Estado, quaisquer que sejam os conteúdos de seus compromissos
políticos. É, nesse sentido, obra dotada de atualidade e interesse.
uma defiNição míNima de democracia
Um conceito crucial para Kelsen é o de nomogênese, isto é, o
processo de formação de normas. Ele é utilizado em seu artigo de 1920,
“Essência e valor da democracia”, um clássico entre as modernas exposi-
Democracia e Direitos Humanos
297
ções do tema, de acordo com Merquior. Ao destacar a forma pela qual as
Constituições regulam a produção de normas num dado Estado ou sistema
jurídico, Kelsen salientou que a democracia nada mais é do que uma espé-
cie particular de nomogênese, na qual o destinatário – diferentemente da
autocracia – toma parte da elaboração das normas. Assim, a democracia é
um processo de nomogênese autônoma, já que traz em si o princípio do
autogoverno (MERQUIOR, 1991, p. 170).
E qual é o pensamento de Bobbio sobre democracia? Para se che-
gar a ele, como bem diz o próprio autor, é necessário começar, com um
pouco de paciência, por estabelecer os termos da questão. Primeiramente,
tem-se que na história do pensamento político, em relação ao conceito de
democracia, o que muda é o uso prescritivo (em oposição ao descritivo),
isto é, o juízo de valores dado ao conceito. O critério do número de go-
vernantes era útil para distinções como a de Maquiavel, entre a monarquia
e a república, enquanto o critério no qual se baseia uma ordem jurídica é
válido para distinguir a democracia da autocracia. Neste ponto, Bobbio
remete a Kelsen e suas lições sobre a criação de normas em uma ordem
jurídica (BOBBIO, 1983a, p. 79-80).
Produto de uma visão relativista, Kelsen salienta que a grande
questão reside na existência ou não de um conhecimento da verdade ou de
valores absolutos: é ela que gera a antítese entre autocracia e democracia,
entre uma concepção metafísica e místico-religiosa do mundo e outra críti-
co-relativista. A atitude política que considera inacessível ao conhecimento
humano a verdade absoluta, também declara que as opiniões dos outros
são possíveis. Em outras palavras, o pluralismo político leva ao reconhe-
cimento de perspectivismo ou de crenças não absolutas. É por isso que
a democracia dá para cada convicção política a mesma possibilidade de
se manifestar e de conquistar o apoio dos outros homens através da livre
concorrência (KELSEN, 1987, p. 116).
Ao argumento de que a democracia é o governo dos bazóos e
demagogos, Kelsen contrapõe o de que é justamente o método da demo-
cracia que coloca a luta pelo poder sobre uma base mais ampla, na medida
em que o poder passa a ser objeto de uma concorrência pública que propi-
cia uma maior base para a seleção.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
298
A isto se acrescenta que a democracia, como a experiência ensina, faci-
lita a ascensão ao poder, garantindo, ao mesmo tempo, a rápida remo-
ção do líder que não provar seu valor, enquanto a autocracia, com seus
princípios de função vitalícia ou até de transmissão hereditária das fun-
ções, age em sentido exatamente oposto. […] São míopes, portanto,
aqueles que vêem na democracia maior corrupção que na autocracia.
(1987, p. 111).
Inspirado nas ideias de Kelsen e objetivando esclarecer o sentido
que se deve dar à democracia quando se pensa em uma via democrática para
o socialismo, Bobbio esclarece ele não é um conceito elástico (BOBBIO,
1983b, p. 80-81): quando contraposto à autocracia, mostra que tem contor-
nos precisos. Qualquer consideração sobre política, pois, só pode ser válida
quando a denição de democracia é a mínima, isto é, quando é considerado
primariamente como sendo um regime democrático, o “conjunto de regras
de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e
facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.” Como é parte
integrante desta denição de democracia uma “estratégia de compromisso
entre as partes através do livre debate para a formação de uma maioria”, ela
reete melhor a realidade da democracia representativa que a da democracia
direta. Se, por um lado, este conceito enquanto método, abre-se a todos os
conteúdos possíveis, por outro, ele é muito exigente “ao solicitar o respei-
to às instituições, exatamente porque neste respeito estão apoiadas todas as
vantagens do método e dentre estas instituições estão os partidos políticos
como os únicos sujeitos autorizados a funcionar como elos de ligação entre
os indivíduos e o governo” (BOBBIO, 1986, p. 12).
Assim é que, para Bobbio, a única maneira de alcançar um acor-
do quando se fala em democracia (entendida como uma forma de governo
contraposto à autocracia) é considerá-la um “conjunto de regras (primárias
ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões
coletivas e com quais procedimentos” (BOBBIO, 1986, p. 18-19). Aceita
a denição mínima da democracia, as regras do processo que dela derivam
como uma consequência necessária, devem estabelecer quais são os indiví-
duos que podem tomar as decisões vinculatórias para todo o grupo e com
quais procedimentos. Um regime democrático é aquele que atribui este po-
Democracia e Direitos Humanos
299
der ou direito a um número extremamente elevado de membros do grupo.
12
Uma segunda regra, derivada da primeira, é a que estabelece que o voto de
todos os cidadãos deverá ter peso idêntico, isto é, deverá valer por um. A
terceira regra, também fundamental, principalmente quando a questão gira
em torno do tema das modalidades da decisão, é a da maioria: são decisões
coletivas, as aprovadas por pelo menos a maioria dos que devem decidir.
13
Bobbio observa que o conteúdo das regras que estabelecem o que
será considerado como decisão coletiva, pode variar; o que não muda é
a necessidade de sua existência. Assim, o critério da maioria, mecânico e
extrínseco, não pode valer como critério absoluto e denitivo, devendo-se
prever uma periódica revisão dos resultados (tutela da minoria) (BOBBIO,
1983b, p. 80-81).
Para uma denição mínima de democracia, além destas três re-
gras é necessário o preenchimento de uma quarta condição: as alternativas
de quem decide (ou elege) devem ser reais, isto é, eles devem ter opções.
O sistema democrático deve garantir uma pluralidade de grupos políticos
competindo entre si, a m de reunir as reivindicações e transformá-las em
deliberações coletivas. Os eleitores devem poder escolher entre alternativas
diversas e a minoria – através de consultas eleitorais periódicas – deve ter
garantido o seu potencial de tornar-se maioria (BOBBIO, 1983b, p. 80-81).
Nunca é demais advertir que para que a democracia funcione, é
necessário que sejam garantidos os direitos básicos do Estado de direito
originados no modelo liberal, ou seja: os direitos de liberdade, opinião,
expressão, reunião, associação, etc. O Estado não apenas exerce o poder sub
lege, como exerce-o dentro de limites derivados do reconhecimento cons-
titucional dos direitos “invioláveis” do indivíduo, pressuposto necessário
12
No estabelecimento do número dos que tem direito ao voto entram considerações históricas. Para esse tipo de
análise é preciso um juízo comparativo: “pode-se dizer apenas que uma sociedade na qual os que têm direito ao
voto são os cidadãos masculinos maiores de idade é mais democrática do que aquela na qual votam apenas os
proprietários e é menos democrática do que aquela em que têm direito ao voto também as mulheres. Quando se
diz que no século passado ocorreu em alguns países um contínuo processo de democratização quer-se dizer que
o número dos indivíduos com direito ao voto sofreu um progressivo alargamento” (BOBBIO, 1986, p. 18-19).
13
Sobre as decisões tomadas com base na unanimidade, diz Bobbio: “Se é válida uma decisão adotada por
maioria, com maior razão ainda é válida uma decisão adotada por unanimidade. Mas a unanimidade é possível
apenas num grupo restrito ou homogêneo, e pode ser exigida em dois casos extremos e contrapostos: ou no
caso de decisões muito graves em que cada um dos participantes tem direito de veto, ou no caso de decisões de
escassa importância em que se declara consciente quem não se opõe abertamente” (BOBBIO, 1986, p. 19-20).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
300
para o funcionamento das regras procedimentais do regime democrático.
Em outras palavras: “As normas constitucionais que atribuem estes direitos
não são exatamente regras do jogo: são regras preliminares que permitem o
desenrolar do jogo.” (BOBBIO, 1986, p. 20).
Um “forte discernimento ‘jurídico’ bobbiano” é constituído por
sua análise da atual natureza contratualista do Estado moderno, aborda-
da então, a partir da dicotomia “público-privado” (MERQUIOR, 1991,
p. 216). Neste ponto, é possível perceber novamente a contribuição de
Kelsen, visto que neste autor a democracia, sob essa perspectiva, é o regi-
me mais desejável, eis que o único a conciliar maximização da liberdade
com prevalência da ordem social. Esse ambiente, pressupõe um indivíduo
atomizado e uma sociedade contratualizada, acaba por não aceitar a ideia
de povo como unidade, admitindo-a apenas como sistema de atos indivi-
duais, ligados à ordem social por um liame jurídico. O vínculo se expressa,
por meio da Constituição que deve normatizar a própria democracia de-
nindo procedimentos e conteúdos para a formação de acordos em torno
da vontade geral estatal
14
.
Também é possível perceber na análise bobbiana as observações
de Weber quanto aos dois principais meios de se chegar a decisões coleti-
vas – o do governo majoritário, quando as partes são iguais e o do acordo,
na Idade Média – são aplicadas à análise das democracias atuais, em que
ocorreria um “crescente entrelaçamento da ‘lógica privatista do contrato’ e
a ‘lógica publicista da dominação’”
15
.
14
Criticando a noção kelseniana de democracia, especialmente sua defesa da democracia como técnica, centrada
no parlamento e resguardada pela Constituição, Schmitt se esmerou em denunciar a ausência de elementos
substantivos na versão kelseniana de Estado democrático, o individualismo contra uma noção orgânica de povo,
tendo como base uma política hipostasiada no Estado e a adoção de um princípio de identidade, a amalgamar
a relação entre Estado, governante e soberania popular. A crítica schmittiana à democracia parlamentar foi
apropriada por importantes autores nas últimas décadas, entre os quais podem ser citados Paul Hirst, Chantal
Moue e Giorgio Agamben, os quais, em certa medida, atualizam o debate em termos contemporâneos. Já a
crítica marxista a modelos democráticos como o kelseniano remanesce em autores como Boaventura Santos, que
impugna o formalismo, o individualismo, o monismo, com uma perspectiva que associa pluralismo jurídico,
multiculturalismo e uma concepção de substantiva de democracia e direito como meios de emancipação social.
15
“Mas ao mesmo tempo Bobbio se recusa a abrandar as diferenças entre o velho e o novo contratualismo.
Nossos contratos sociais, adverte ele, nunca podem esquecer a base individualista da sociedade moderna – uma
base, apressou-se a acrescentar, que não é mais ‘burguesa’. Ele também assinala que o impulso ascendente da
idéia do contrato social moderno implica uma base social muito mais ampla do que jamais foi permitido pelos
rapports de force que prevalecem no tempo dos castelos, guildas e estados” (MERQUIOR, 1991, p. 206).
Democracia e Direitos Humanos
301
Por outro lado, a combinação, pois, que Bobbio faz entre os limi-
tes da democracia e a busca de novos espaços democráticos, isto é, a ênfase
na difusão, pelo tecido social, de tanta democracia quanto for possível, le-
vou neomarxistas como Perry Anderson a interpretarem erroneamente sua
posição como um criptoconservadorismo. Anderson aponta contradições
entre as deciências da democracia apresentadas por Bobbio. A primeira
contradição consistiria em que Bobbio apresenta estas deciências como
potencialmente superáveis através da extensão dos princípios democráti-
cos, a m de impregnarem o Estado e atingirem a sociedade civil.
16
Aparentemente esta contradição foi o resultado não previsto da
posição teórica de Bobbio: o ideal da democracia liberal à duas críticas
opostas e antagônicas, não chegou a síntese nal. A primeira delas – com
raízes em Pareto e Weber – conservadora, identica os fatores que tendem
a esvaziar o Estado representativo em seu valor e vitalidade, “tornando-o
sempre uma sombra decepcionante de si mesmo”. A segunda, socialista,
parte da concepção da emancipação humana, não a essencialmente política
de Marx, e faz um trabalho de identicação das áreas de poder autocrático
existentes nas sociedades capitalistas intocadas pelo Estado representativo
privando-se a si mesmo, desse modo, das únicas bases sociais que have-
riam de transformá-lo numa autêntica soberania popular” (ANDERSON,
1989, p. 34).
Por derradeiro, é preciso lembrar que em suas polêmicas com o
marxismo, Bobbio arma que “a forma como o poder é conquistado não
pode ser indiferente ao seu futuro exercício”, insistindo na ideia de que a
esquerda revolucionária acabou por devotar muita atenção ao partido e
pouca ao Estado que estava por vir
17
(BOBBIO, 1983c, p. 212). Desse
16
“Não pode haver dúvida quanto à sinceridade de sua proposta. Mas como uma tal crítica pode ser relevante
para uma ordem política incapaz sequer de realizar seus próprios princípios no interior de seus limites atuais
– e não por falta de vontade subjetiva, mas sob o peso de irresistíveis pressões objetivas? Ou bem a democracia
representativa está fatalmente destinada a uma contração em sua substância, ou bem ela é potencialmente
receptiva a uma extensão dessa substância. As duas coisas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo
(ANDERSON, 1989, p. 33).
17
A diculdade em se saber quais são os melhores resultados e em se obter sobre os mesmos o acordo de um
certo número de pessoas (que podem ser, também, dezenas de milhões), nos obriga a examinar as operações
feitas para obtê-lo e nos leva à conclusão de que o resultado melhor é aquele que se atinge com as melhores
regras, entre as quais a mais importante é, certamente, a da maioria. Daí a enorme importância das regras e a
necessidade de um acordo sobre as mesmas, para se chegar também a um acordo sobre os resultados” (BOBBIO,
1983b, p. 56-58).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
302
modo, retoma-se o início dessa discussão e ao tema da importância dos
procedimentos na compreensão dos dois autores: Kelsen e Bobbio.
coNsiderações fiNais
A concepção de democracia de Kelsen propicia um diálogo va-
riado, ao mesmo tempo que diversas apropriações. Seu núcleo permanece
apto a contribuir com o debate político contemporâneo, especialmente no
que concerne a valorização do procedimento e do jurídico, percebido como
mediação social, bem como a abertura que possibilita a uma pluralidade
de valores e interesses. Esse modelo de democracia sendo procedimental,
formal e instrumental é capaz de conciliar realismo político, relativismo
moral, positivismo jurídico e individualismo. Assim, a principal questão a
ser resolvida pela democracia remete à relação entre o Estado – percebido
como ordem jurídica –, e a liberdade individual.
É possível perceber em concepções de democracia que
fundamentam as relações político -jurídicas na construção de um discurso
intersubjetivo ou da democracia deliberativa, tais como a de Habermas e
Höe, que elas apresentam com a concepção de democracia kelseniana
pontos de contato e de atrito. A par da fundamental divergência episte-
mológica, tem-se, aqui, por exemplo, democracia como organização para
a execução das decisões do poder, operando segundo a regra da maioria,
admitindo-se a funcionalidade do parlamento, assim como o papel dos
direitos humanos, da divisão de poderes e da Constituição como apara-
to contramajoritário oponível às decisões tomadas por procedimentos
democráticos.
Nesse caso, o modelo kelseniano cumpre o importante papel de
fundamentar, em bases pragmáticas, relações jurídicas e políticas em har-
monia com ideais de liberdade, igualdade e pluralismo político, legado das
tradições liberal e republicana que marcam a experiência das sociedades
contemporâneas.
Por outro lado, no caso de Bobbio, percebe-se que sua ênfase na
importância das instituições liberais e suas funções de garantia das liber-
Democracia e Direitos Humanos
303
dades negativas ou no núcleo irredutível do Estado Constitucional tam-
bém faz de sua obra um legado “instrumental” passível de apropriação
por todos. Sobre as inuências de Kelsen sobre Bobbio, nunca é demais
recordar que durante mais de meio século nos quais Bobbio ensinou, re-
petiu e aprimorou os quatro nexos que constituem o ensinamento mais
valioso de Kelsen. Percebe-se o quanto o ensinamento foi fundamental ao
se considerar a ilusão representada pela ideia de um socialismo sem direito,
responsável pelo fracasso do comunismo real.
Bobbio nos ensinou que na construção da democracia e da paz
não existem opções for a do direito; que na construção do direito não
existem alternativas à razão e que esta razão, é essencialmente a razão dos
oprimidos”, titulares de tantos direitos prometidos e não cumpridos.
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A       
      
N B
Gisele Mascarelli Salgado
iNtrodução
Este texto parte de uma reelaboração da minha tese de doutora-
do publicada com o título Sanção na teoria do direito de Norberto Bobbio
(SALGADO, 2010). Nesse trabalho tratei dos diferentes tipos de sanção
encontrados em cada fase da obra de Norberto Bobbio. Nessa oportuni-
dade discutirei como os vários conceitos de sanção de Bobbio também se
interligam com conceitos diferentes de Direito, que percorrem as várias
fases e várias obras de Bobbio. Este texto foca-se nas obras de Bobbio que
tratam sobre Direito, uma vez que são nelas que os conceitos de sanção
aparecem. A hipótese do artigo é que o conceito de sanção como parte do
conceito de Direito acaba por desaparecer nas obras de Bobbio políticas,
em que a questão do poder passa a ser a mais central da discussão.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p305-316
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
306
Bobbio como todos os autores com uma produção extensa e
uma vida longeva, reformulam seus conceitos e acabam alterando suas
ideias principais. Norberto Bobbio poucas vezes chega a falar expressa-
mente que mudou os rumos de seu pensamento. Um desses momentos
é no artigo La funcione promozionale del diritto revisitata, em que diz
expressamente que abandona a noção da noção de função promocional
no Direito (BOBBIO, 1984). Essas alterações do pensamento de Bobbio
são geralmente sutis e um leitor pouco habituado a leitura do autor, pode
tratar esses conceitos em momentos e obras diferentes como um todo,
deixando de compreender a reelaboração conceitual de Bobbio, que é
essencial para se entender sua obra.
Outra diculdade de se percorrer o conceito de sanção na obra
de Bobbio e relacioná-lo com as denições de Direito é que Bobbio não
escreveu muitas obras completas, como tratados ou manuais. Grande parte
das obras de Bobbio são formadas de artigos, compilações e de reunião
de escritos para aulas. Esse método fragmentário de Bobbio, permite que
ele altere os conceitos ao longo do tempo, sem que o leitor possa perce-
ber. Como a variação parece sútil, essas obras fragmentárias parecem es-
tar tratando sempre dos mesmos conceitos, denidos dos mesmos modos.
Bobbio não nega esse seu caráter de diculdade de denir os conceitos e
estabelecer uma obra nal, como aponta em sua obra O tempo da memória:
Nunca escondi que o que eu escrevia tinha – precisava ter – um caráter
provisório. Sempre adiei a passagem do provisório para o peremptório
– para retomar duas expressões kantianas –, para um futuro que nunca
esteve bem denido, que nunca se realizou, e que agora é tarde demais
para iludir-me que ainda possa realizar. (BOBBIO, 1997, p.147).
O próprio método analítico de Bobbio pode ser uma das tentati-
vas de atenuar as variações dos conceitos utilizadas nas suas diversas obras.
Tentando denir os conceitos iniciais que iria utilizar, Bobbio não somente
visa esclarecer ao público o que entende por determinado conceito, mas
parece esclarecer para si mesmo. Nessas denições é possível perceber o
quanto os conceitos variam na obra do autor.
Democracia e Direitos Humanos
307
Fiel ao método analítico, cuido de observar cada problema de diversos
ângulos. Observando um objeto a partir de diversos ângulos, acabo por
não conseguir dar uma denição linear e deixar a questão em aberto.
(BOBBIO, 1997, p.145).
Pode-se dizer que Bobbio altera seu conceito de Direito, mas o
Direito é ainda para o autor um instrumento de controle social e não como
instrumento de transformação da sociedade. Isso porque Bobbio ainda se
mantem el ao conceito tradicional do Direito como norma jurídica esta-
tal, nas suas obras jurídicas. Mesmo quando insere elementos novos nessa
denição, ela ainda permanece ligada ao Estado como fonte legítima da
produção de normas.
Os textos de Bobbio da fase política, o caráter sancionador pa-
rece sumir da denição de Direito. Entender cada fase da obra de Bobbio
parece ser uma chave para se estabelecer as mudanças dos conceitos de san-
ção. Segundo Greppi, em seu texto Teoria e ideologia en el pensamiento de
Norberto Bobbio (1998) pode-se identicar diversas fases do pensamento
de Bobbio. Porém, algumas dessas fases não dizem respeito a suas obras em
que a questão do Direito está presente. Mário Losano (1968) irá classi-
car a obra de Bobbio, no âmbito do Direito, em décadas, iniciando pela
década de 50 com aproximação de Carnelutti, 60 com a discussão a partir
do pensamento de Kelsen e na década de 70 com a inuência de Renato
Treves. Destaca-se aqui cinco fases em que o conceito de direito é tratado:
1) busca da superação da teoria kelseniana via fenomenologia, 2) busca
da superação da teoria kelseniana pela teoria da linguagem, 3) aceita-
ção da teoria kelseniana com algumas reservas, 4) busca da superação
da teoria kelseniana via teoria funcionalista, 5) mistura de um padrão
conservador e reformista ao pensar o Direito por meio da política.
(SALGADO, 2010).
Apresenta-se abaixo três dessas cinco posições, discutindo o con-
ceito de Direito que está colado a cada uma delas. Essa relação entre sanção
e conceito de Direito pode ser vista em algumas obras com textos compila-
dos de Bobbio, destaca-se aqui: Teoria da Norma, Teoria do ordenamento
jurídico, Da estrutura à função e A era dos Direitos. Privilegiou-se aqui
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
308
uma discussão a partir das obras do Bobbio e não propriamente a partir de
comentadores do autor. Essas discussões já estavam presentes nos estudos
anteriores e buscou-se evitar a repetição. Buscou-se também resumir os
pontos discutidos, para uma visão mais objetiva. Com isso acaba-se sempre
perdendo na questão das explicações, porém buscou-se evitar ao máximo
se perder a clareza.
saNção Na teoria do ordeNameNto jurídico e Na teoria da Norma
e o direito como ordeNameNto jurídico
A sanção na obra Teoria do ordenamento jurídico (1995) e na
Teoria da norma jurídica (2002) é apresentada aos moldes da teoria kel-
seniana, uma vez que o próprio autor aponta que esses textos são fruto de
sua atuação como professor em que visava explicar Kelsen. Bobbio faz a
divisão clássica entre normas e sanções: sociais, morais e jurídicas. Para di-
ferenciá-las Bobbio apresenta critérios: quanto ao seu conteúdo, quanto ao
seu m, quanto ao valor da justiça e quanto ao destinatário; mas termina
apontando que nenhum desses critérios é suciente. O que irá distinguir as
normas é sua ecácia reforçada, que é garantida pelo Estado. Assim, a san-
ção é denida no livro Teoria da norma jurídica, como “expediente através
do qual se busca, em um sistema normativo, salvaguardar a lei da erosão
das ações contrárias” (BOBBIO, 2002, p. 153).
Bobbio não deixa tão claro como na Teoria pura do direito de
Kelsen (1994), que é o Estado que irá salvaguardar a norma jurídica. A
norma jurídica é tida como aquela mais forte, com coerção externa e a
que pode ser exigida mesmo contra a vontade. Mas essa coerção externa
se dá por meio da força que é empregada pelo Estado, que é detentor do
monopólio legislativo da norma jurídica. O que Kelsen deixa explicito,
parece que Bobbio acaba deixando implícito, ou por não concordar ou por
concordar em partes. Bobbio chega a falar em organização, uma institucio-
nalização (BOBBIO, 1995, p. 27).
As discussões sobre a necessidade da limitação das conclusões da
Teoria Pura do Direito, que vieram pós segunda guerra, podem ser um
desses motivos. Isso porque, segundo Kelsen seria possível normas e san-
Democracia e Direitos Humanos
309
ções injustas, desde que essas fossem normas e sanções estatais. Essa de-
nição foi amplamente combatida por muitos autores, principalmente os
jusnaturalistas. Porém, deve-se ressaltar que Kelsen sabia dos limites de sua
teoria e que seus conceitos serviam para estudo de normas e não para seu
julgamento. Assim, não há entrelaçamento entre a teoria pura do direito de
Kelsen e as questões da moral e, portanto, do valor justiça.
A tese de que o Direito é segundo sua própria essência, moral é, de que
somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura
do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas
ainda porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominan-
te numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação
acrítica da ordem coercitiva estatal que constitui tal comunidade. Com
efeito, pressupõe como evidente que a ordem coercitiva estatal própria
é Direito. (KELSEN, 1994, p.78).
No texto Teoria da norma jurídica (2002), Bobbio repetindo
Kelsen entende que o caráter da norma jurídica é ter como elemento essen-
cial a sanção, porém não é necessária que essa sanção esteja na própria nor-
ma, mas ela poderá estar no ordenamento jurídico em seu conjunto, como
reelabora no texto Teoria do ordenamento jurídico (BOBBIO, 1995, p. 29).
Bobbio parece alterar a questão da teoria do ordenamento, quanto alarga
o conceito de fontes do Direito, que é denido segundo ele como: “Fontes
do direito são aqueles fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz
depender a produção de normas jurídicas” (BOBBIO, 1995, p. 45).
Para Bobbio o papel histórico das fontes (1995, p. 41) é funda-
mental para sua compreensão do Direito, saindo totalmente dos conceitos
kelsenianos de uma teoria pura do direito, em que a questão da história e
de sua importância não está presente. O que fundamenta não é uma grun-
dnorm com caráter hipotético, mas sim o poder originário, que tem suas
variações no tempo e no espaço. Esse poder originário é denido como:
É um conjunto de forças políticas que num determinado momento
histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento
jurídico.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
310
Bobbio parece também amenizar o papel da força física na sanção
jurídica estatal, que Kelsen deixa explicito. Bobbio entende que Kelsen e
Ross, ao tratarem da questão da força e do ordenamento jurídico confun-
dem o todo com a parte e o instrumento com o m (BOBBIO, 1995, p.
70). Isso porque para ele:
As regras para o exercício da força são, num ordenamento jurídico,
aquela parte de regras que serve para organizar a sanção e portanto para
tornar mais ecazes as normas de conduta e o próprio ordenamento em
sua totalidade. O objetivo de todo legislador não é organizar a força,
mas organizar a sociedade mediante a força. (BOBBIO, 1995, p. 70).
Para Norberto Bobbio o poder pode ser denido como forma es-
sencial para garantir o ordenamento jurídico, mas também destaca o papel
do consenso.
Quando a norma fundamental diz que se deve obedecer ao poder
originário, não deve absolutamente ser interpretada no sentido de que
devemos nos submeter à violência, mas no sentido de que devemos nos
submeter àqueles de detém o poder coercitivo. Mas esse poder pode
estar na mão de alguém que tem a força necessária para fazer respeitar
as normas que deles emanam. Nesse sentido a força é um instrumento
necessário do poder. Isso não signica que ela seja o fundamento.
A força é necessária para exercer o poder, mas não para justicá-lo.
(BOBBIO, 1995, p. 66).
Bobbio insere a questão da justiça para resolver o problema de
uma denição do direito somente pautada na lógica. Assim, há corres-
pondência entre a justicação do poder e justicação da norma jurídica.
A questão do poder começa se tornar grande trunfo para a superação da
teoria pura de Kelsen. Bobbio passa a fazer denições circulares de Direito,
norma e poder, que podem ser vistos em sua obra Studi per una teoria ge-
nerale del diritto:
A justiça se funda na legitimidade e a legitimidade funda a validade,
a validade funda a legalidade [...] O poder nasce da norma e produz
norma; a norma nasce do poder e produz outros poderes [...] O orde-
namento jurídico é considerado no seu complexo um entrelaçamento
Democracia e Direitos Humanos
311
de normas e poderes, de poderes que pressupõe normas e de normas
que dão vida a novos poderes. (BOBBIO, 1970, p. 84-86).
saNção Positiva e Negativa e o direito como um coNtrole social
fluido- fuNção PromocioNal do direito
A sanção positiva é considerada por muitos como um elemento
inovador da teoria de Bobbio, porém ela já está presente em outros autores,
dentre eles o próprio Kelsen. Bobbio inova ao dar peso maior à sanção po-
sitiva, encarando-a como um conceito próprio, que a tradição dos juristas
não deu tanta atenção.
A sanção negativa é entendida na tradição como um mal, seja
ele econômico, moral, social, físico ou jurídico. Bobbio entende que esse
tipo de sanção pode ter duas espécies de medidas instituídas: medidas re-
tributivas e medidas de reparadoras, que buscam um ressarcimento do
dano (BOBBIO, 2007, p. 25). Esse tipo de sanção é geralmente atrelado
ao caráter de controle social da população. A sanção negativa está muito
presente nas leis penais, em que há uma sanção explícita e impressa pelo
Estado ao condenado. Grande parte dessas leis penais hoje em dia são san-
ções restritivas de liberdade, levando a um encarceramento em massa como
aponta Wacquant. Bobbio não chega a problematizar as sanções negativas
nesse ponto, dando mais ênfase à questão da teoria geral do direito do que
do ponto de vista da sociologia.
A sanção positiva também tem um caráter de controle social, mas
esse parece ser mais uido, uma vez que ele visa promover comportamen-
tos desejados por meio de prêmios e não de uma repressão. A recompensa
pelo comportamento esperado, é dada ao indivíduo dentro de um Estado
e requer um comportamento ativo e não somente de omissão de condutas
não queridas (BOBBIO, 2007, p. 17). Bobbio dene a sanção positiva em
oposição à sanção negativa do seguinte modo:
A noção de sanção positiva deduz-se a contrario sensu, daquela mais
bem elaborada de sanção negativa. Enquanto o castigo é uma reação
a uma ação má, o prêmio é uma reação a uma ação boa. No primeiro
caso, a reação consiste em restituir o mal ao mal; no segundo, o bem ao
bem. (BOBBIO, 2007, p. 24).
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
312
A sanção positiva dicilmente pode ser pensada na esfera do
Direito penal, mas é possível encontra-la com facilidade no Direito tri-
butário, como no caso de contribuições nanceiras, facilitação de crédito
ou mesmo isenção scal (BOBBIO, 2007, p. 18). É possível destacar em
Bobbio dois grandes grupos de sanções positivas: a facilitação e os prê-
mios. A diferenciação entre elas não é muito clara quando o autor utiliza-se
do Direito, porém ele traz um caso cotidiano para esclarecer a diferença.
Quando um pai busca encorajar uma determinada ação do lho para fazer
uma tarefa de casa difícil, ele pode auxiliá-lo com um livro ou prometer ao
lho que ao m da tarefa irá levá-lo ao cinema (BOBBIO, 2007, p. 17). A
primeira facilita e a segunda premia.
Pode-se armar que as sanções positivas estão presentes em outro
tipo de direito e que são destinadas àqueles que tem algum tipo de posses
ou renda, mesmo que mínimo. Quanto mais uma pessoa tenha de pagar
impostos é muito mais provável que ela possa se utilizar do Direito tribu-
tário e ter contato mais direto com a sanção positiva, caso contrário ela
pode estar mais sujeita ao Direito Penal. Assim, pode-se ver que a medida
que o Direito avança rumo ao século XX a importância da sanção negativa
diminui, em especial para alguns sujeitos. Surge novos tipos de controle,
que não precisam ser necessariamente os de uma sanção como um mal,
mas que levam a um direcionamento das condutas dos indivíduos. Essa
ideia de que não se pode governar somente com uma espada de ferro, já
está presente em um lósofo que Bobbio estudou muito bem: Hobbes.
Bobbio entende que uma sociedade que está fundada somente
nas sanções negativas é uma sociedade menos avançada tecnicamente do
que as sociedades que aplicam as sanções positivas (BOBBIO, 2007, p.
90). Segundo Bobbio, há um progresso social quando deixa-se de aplicar
a força ou se restringe seu uso. O Direito começa a ser denido como
um ordenamento de normas jurídicas em que a força direta deixa de ter
importância, mas que o controle das ações sociais não deixa de existir.
Bobbio não nega o papel das sanções negativas, mas começa a armar que
as sanções positivas são tão importantes: “Longe de mim a ideia de inverter
a tese tradicional, sustentando que as sanções positivas são tão importantes
quanto as negativas” (BOBBIO, 2007, p. 67).
Democracia e Direitos Humanos
313
O que Bobbio ressalta é o papel do Estado na inuência da eco-
nomia e o papel dessa na vida dos indivíduos. Bobbio também destaca que
o Estado está mudando e a economia também, por isso não se pode falar
somente em sanções negativas como apontava a tradição. Assim, o direito
passa a ter um controle social mais uido:
O Estado, à medida que dispões de recursos econômicos cada vez mais
vastos, vem a se encontrar em condição de determinar o comporta-
mento dos indivíduos, não apenas como exercício da coação, mas tam-
bém com o de vantagens de ordem econômica, isto é, desenvolvendo
uma função não apenas dissuasiva, mas também como foi dito, promo-
cional. Em poucas palavras, essa função é exercida como uma promes-
sa de uma vantagem (de natureza econômica) a uma ação desejada, e
não como uma ameaça de um mal a uma ação indesejada. (BOBBIO,
2007, p. 68).
A inspiração para a construção de sua construção de sanções ne-
gativas e positivas pode estar na distinção das normas de conduta e normas
de organização, presentes em Hayek, que também foi lido e comentado
por Bobbio. As primeiras estão associadas as normas penais, ao direito
privado, sanções na liberdade do indivíduo e à um Estado assistencial e as
segundas as normas públicas e de um Estado Liberal (BOBBIO, 2007, p.
12). Porém, Bobbio faz uma crítica a essa distinção de Hayek, uma vez que
entende que um Estado possui esses dois tipos de normas. O que Bobbio
contesta, na sua interpretação de Hayek é a substituição de um tipo de
norma e de sanção por outro.
direito defiNido Pela saNção ou Pela Política
A incursão de Bobbio pelas discussões do papel da sanção parece
chegar a ao m, quando Bobbio alarga um pouco o seu conceito de Direito
nas suas obras de política. Ao sair de uma losoa do direito ou de uma
teoria geral do direito e passar para preocupações no âmbito da política,
Bobbio deixa um pouco de lado as sanções como parte da denição do que
é direito e passa a pensar em um direito ligado à política. No livro A era dos
direitos, Bobbio arma:
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
314
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não
é tanto o de justicá-los, mas de protegê-los. Trata-se de um problema
não losóco, mas político. (BOBBIO, 1992, p. 24).
Percebe-se que o Direito aqui não é mais o direito nacional, mas
sim um direito supra-nacional, que por seu caráter de sanção fraca, por-
que não poderia ser garantido via força física, não chegando a ser consi-
derado direito no sentido estrito para Kelsen. Bobbio não chega discutir
nessa fase dedicada aos estudos mais políticos, que os direitos humanos
não são direitos. Bobbio entende que se trata de dois tipos diferentes de
Direito, um que se restringe ao direito positivado pelo Estado e outro
que não:
Uma coisa é um direito; outra a promessa de um direito futuro. Uma
coisa é o direito atual; outra um direito em potencial. Uma coisa é ter
um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é ter um di-
reito que deve ser, mas que, para ser, ou para que passe do dever ser ao
ser; precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembleia
de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado
do poder de coerção. (BOBBIO, 1992, p. 82).
Porém, esse tipo de denição de Direito não cabe no âmbito de
uma teoria geral do Direito, que está presa a um conceito de Direito que é
interno e estatal. Bobbio começa a migrar para conceitos mais alargados de
Direito e também do papel do Estado. A superação do conceito de Direito
ligado somente as normas jurídicas estatais com sanção negativa está pre-
sente nos estudos de Bobbio sobre a política, em que outros conceitos que
eram importantes para o autor, passam a ter um caráter fundamental como
a questão do poder. Bobbio se diz um positivista, mas não no sentido tra-
dicional, uma vez que para ele o âmbito do direito ainda é um âmbito do
dever-ser, da obrigatoriedade das normas estatais e de um Estado que pode
exercer força física para o cumprimento das normas, por meio de sanções.
Porém, surge um outro tipo de preocupação, a de um Direito que está
interessado nas questões políticas, como a questão da democracia. Bobbio
sobre isso irá armar:
Democracia e Direitos Humanos
315
a passagem do direito à política é absolutamente necessária para enten-
der o direito. e a passagem do direito e da política para as exigências de
certos princípios morais é necessária hoje, não só para entender, como
também – e com isso concluo – para sobreviver. (2007, p. 35).
coNsiderações fiNais
Bobbio foi alterando os conceitos de sanção e de Direito ao longo
de seus textos, podendo-se estabelecer diversas fases de seu pensamento.
Pertencem a última fase seus textos de política, em que a sanção do Direito
deixa de ser o elemento denidor daquilo que é direito, pelo menos do
Direito estatal. Bobbio ainda se mantem preso a uma política que não é
propriamente a uma análise, mas um dever ser. Ao tratar sobre os Direitos
humanos, Bobbio amplia o conceito de Direito, porém não fala propria-
mente do tema no mundo do ser. Bobbio faz mais propriamente uma
losoa política, em que o Direito é uma das partes fundamentais e outra
o Estado.
O Direito não é unívoco no pensamento de Bobbio e as suas
nuances ajudam a entender como o pensamento de um autor se transfor-
ma ao longo do tempo e as reformulações que estabelece auxiliam na com-
preensão da complexidade do pensamento. Assim, estudar a sanção em
Bobbio, não é apenas dizer que Bobbio repete Kelsen, nem que ele o nega
completamente; pois é possível compreender que é possível encontrar nos
vários textos de Bobbio um pouco dessas armações, sem que nenhuma
seja denitiva
referêNcias
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Leite dos Santos.
Brasília: UnB, 1995.
______. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2002.
______. O tempo da memória. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
______. Studi per una teoria generale del diritto. Torino: Giappicheli, 1970.
______. Da estrutura à função. Trad. Daniela B. Versiani. Barueri: Manole, 2007.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
316
______. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992.
______. La funzione promozionale del diritto revisitata. Rivista Sociologia del Diritto,
v. XI, n. 3, p.7- 27, 1984.
GREPPI, A. Teoria e ideologia en el pensamiento politico de Norberto Bobbio. Madrid:
Marcial Pons, 1998.
KELSEN, H. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
LOSANO, M. Sistema e strutura nel diritto. Torino: Giappichelli, 1968.
SALGADO, G. Sanção na teoria do direito de Norberto Bobbio. Curitiba: Juruá, 2010.
317
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Jusnaturalismo e positivismo Jurídico, 
N B.
Marcelo de Azevedo Granato
iNtrodução
O propósito deste texto é cotejar brevemente as considerações -
nais feitas por Luigi Ferrajoli em seu prefácio à edição italiana, de 2011, de
Jusnaturalismo e positivismo jurídico, de Norberto Bobbio
1
, com dois textos
de Bobbio de 1971, ano que antecedeu o de sua transferência da Faculdade
de Direito para a Faculdade de Ciências Políticas de Turim.
As considerações nais do prefácio de Ferrajoli se voltam contra
duas teses: a “equivalência entre validade e existência das normas jurídi-
 A tradução das citações de obras não publicadas no Brasil é de responsabilidade do autor.
https://doi.org/10.36311/2018.978-85-7249-026-9.p317-328
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
318
cas
2
e o “princípio da total ausência de intenção valorativa na abordagem
cientíca do estudo do direito
3
.
Para Ferrajoli, a defesa dessas duas teses por Bobbio – defesa que, a
julgar pelo prefácio, manteve-se ao longo de sua obra
4
– indica que Bobbio
não atentou à mudança de paradigma do direito ocorrida a partir das consti-
tuições rígidas do segundo pós-guerra, que “positivaram, através da estipula-
ção dos direitos fundamentais, o ‘dever ser’ jurídico do próprio direito. Esse
dever ser constitucional do direito é um dever ser positivamente normativo,
que pode bem ser violado ou irrealizado pelas fontes subordinadas a ele, dan-
do lugar, assim, a um direito ilegítimo, ainda que formalmente existente
5
.
Disso decorre, segundo Ferrajoli, a inviabilidade tanto (i) da
tese da equivalência entre validade e existência das normas jurídicas, fun-
dada no só cumprimento dos requisitos formais para o ingresso das dis-
posições jurídicas no sistema, quanto (ii) da tese de que a ciência jurídica
deve abstrair de análises valorativas (críticas) em seu exame e comentário
do direito positivo.
Essas conclusões de Ferrajoli, que têm base em diversos escritos
de Bobbio, serão contrapostas a dois textos do autor, ambos de 1971, nos
quais Bobbio (i) problematiza a relação entre existência e validade das nor-
mas jurídicas e (ii) reconhece o papel crítico da ciência jurídica, vale dizer,
a interferência de seus juízos (de valor) na própria conformação do direito
6
.
a equivalêNcia eNtre validade e existêNcia das Normas jurídicas
Nesse ponto, a crítica de Ferrajoli a Bobbio é que a validade das
leis “não depende mais [...] apenas das formas dos atos legislativos, previs-
tas pelas normas sobre a sua formação, mas depende também da substância
2
Ferrajoli, 2011, p. XV.
3
Ferrajoli, 2011, p. XVI.
É o que também se extrai do livro de Ferrajoli que nos servirá de base, o ótimo La democracia attraverso i diritti.
Il costituzionalismo garantista come modello teorico e come progetto politico (2013).
Ferrajoli, 2011, p. XVII.
Esses dois pontos poderiam ser ilustrados através de alguns outros (poucos) textos de Bobbio, mas a escolha
daqueles de 1971 deveu-se ao fato de que, no ano seguinte, Bobbio transferiu-se da Faculdade de Direito para a
Faculdade de Ciências Políticas de Turim. Esse fato merecerá um breve comentário ao nal deste texto.
Democracia e Direitos Humanos
319
das normas de lei produzidas; não depende mais da simples conformidade
dos primeiros, mas também da coerência ou compatibilidade das segun-
das com as normas constitucionais superordenadas a elas
7
. Assim, para
Ferrajoli, “pode muito bem haver normas inválidas: existentes por força
das suas formas, mas ilegítimas por causa dos seus conteúdos
8
.
A conrmar que Bobbio não teria avançado para essa compreen-
são “substancial” ou “material” da validade, Ferrajoli cita um trecho da
Teoria geral do direito
9
, no qual Bobbio arma que o problema da validade
é o problema da existência da regra enquanto tal [...] Enquanto o proble-
ma da justiça é resolvido com um juízo de valor, o problema da validade é
resolvido com um juízo de fato. Ou seja, trata-se de constatar se uma regra
jurídica existe ou não, ou melhor, se essa regra, determinada de um modo
ou de outro, é uma regra jurídica
10
.
Isso não signica, segundo Ferrajoli, que Bobbio não aceitava o
conteúdo vinculante da Constituição ou a possibilidade de normas supe-
riores condicionarem forma e conteúdo de normas inferiores (essa possibi-
lidade, aliás, é referida por Bobbio linhas após o trecho que Ferrajoli cita
da Teoria geral do direito).O ponto de Ferrajoli é que a identicação entre
validade e existência da norma jurídica, ou: validade e pertencimento ao
ordenamento jurídico
11
,desemboca numa concepção apenas formal, insu-
ciente ao seu ver, da validade (“a identicação da validade com a existên-
Ferrajoli, 2011, p. XV-XVI.
Ferrajoli, 2011, p. XVI.
Registre-se que o livro Teoria geral do direito resulta da união de dois cursos universitários de Bobbio: Teoria
da norma jurídica e Teoria do ordenamento jurídico, dos anos acadêmicos 1957-1958 e 1959-1960 (o trecho
citado por Ferrajoli pertence à Teoria da norma jurídica). A reunião desses cursos no livro Teoria geral do direito
foi feita pela primeira vez – com anuência, mas não por iniciativa de Bobbio – na Colômbia, em 1987. Vide,
nesse sentido, o prefácio de Bobbio na Teoria geral do direito (cf. edição brasileira utilizada neste texto).
10
Bobbio, 2010, p. 38.
11
“Em particular, para decidir se uma norma é válida (ou seja, se existe como regra jurídica pertencente a um
determinado sistema) [...]” (BOBBIO, 2010, p. 38). Este trecho aparece na primeira parte do livro, relativa à
teoria da norma jurídica (vide nota anterior). Na parte relativa ao ordenamento jurídico (especicamente, na
discussão da norma fundamental), Bobbio arma: “Uma norma existe como norma jurídica, ou é juridicamente
válida, uma vez que pertence a um ordenamento jurídico” (BOBBIO, 2010, p. 221). A transcrição destes
trechos visa esclarecer a posição de Ferrajoli, e não discuti-la com base nestes ou em outros trechos da Teoria
geral do direito.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
320
cia tem como inevitável consequência uma concepção, em última análise,
apenas formal da validade”)
12
.
Tanto que, ao examinar os juízos de validade formal e material
em “Sul ragionamento dei giuristi”
13
, o último desses juízos não é entendi-
do por Bobbio “como juízo crítico ou valorativo, mas é, ao contrário, con-
traposto, como juízo assertivo, aos juízos de valor em termos de justiça
14
.
O trecho a que Ferrajoli se refere
15
é o seguinte:
Quando a pesquisa se volta ao juízo de validade material [...] o jurista
atua prevalentemente como lógico, resolvendo-se sua demonstração
no estabelecimento de certas premissas das quais necessariamente de-
vem derivar certas conclusões. Em nenhum dos dois momentos
16
, o
discurso do jurista pode ser identicado com um discurso moral [...]
formado por termos de valor, com os quais se aprova e se condena, e
condenando e aprovando, busca-se induzir outrem a agir numa direção
ao invés de outra.
Portanto, para Ferrajoli, embora Bobbio reconheça uma dimen-
são material da validade, ele o faz de maneira contida, isto é, (i) preser-
vando a tese da equivalência entre validade e existência e (ii) tratando a
validade material como uma questão de lógica, não de opinião, afastada,
assim, de pontos de vista valorativos, subjetivos.
(i). “quale giustizia, quale legge, quale giudice” (1971)
O texto acima constitui o pretendido contraponto à análise de
Ferrajoli no tema da validade/existência das normas jurídicas
17
; texto que
12
“Certamente, tanto Kelsen quanto Bobbio admitem que a constituição pode vincular o conteúdo das leis e,
em geral, que as normas superiores podem condicionar não só as formas, mas também os conteúdos das normas
inferiores. Mas a identicação da validade com a existência tem como inevitável consequência uma concepção,
em última análise, apenas formal da validade” (FERRAJOLI, 2013, p. 39-40).
13
Bobbio, 1955.
14
Ferrajoli, 2013, p. 43.
15
Tanto em seu prefácio quanto em La democrazia attraverso i diritti (e esse não é o único trecho de “Sul
ragionamento dei giuristi” que apoia sua tese).
16
I.e.validade formal e material.
17
Eventualmente, há outro(s) modo(s) de confrontara análise de Ferrajoli. Alfonso Ruiz Miguel, em seu
Filosoa y derecho en Norberto Bobbio (1983, p. 171), refere-se, em nota de rodapé, a uma resenha de Bobbio
Democracia e Direitos Humanos
321
reproduz a intervenção de Bobbio num colóquio de janeiro de 1971, em
Brescia, Itália, sobre a justiça. Embora essa intervenção não possa ser reto-
mada como um todo, sobressai ali o tratamento de Bobbio da concepção
de justiça como conformidade à lei, isto é, como conformidade a “uma
norma geral e abstrata posta por um órgão que é ou deveria ser a expressão
da vontade geral”
18
.
Essa concepção, diz Bobbio, implica “uma rigorosa divisão de
trabalho entre quem é chamado a pôr o direito, isto é, a estabelecer o que
deve ser considerado justo e injusto, e quem é chamado a aplicá-lo. Com
base nesta divisão de trabalho, o juiz não deve se preocupar, senão em casos
excepcionais, em dizer qual é a solução mais justa, mas deve limitar-se a
declarar qual é a lei a aplicar”
19
. Esse recurso à “lei a aplicar”, porém, não
resolve o problema.
Nesse sentido, Bobbio recorda que as primeiras constituições ti-
nham como “inimigo a abater” o poder incontrolado do soberano, do que
adveio o controle do rei pelo Parlamento, a supremacia do Legislativo so-
bre o Executivo. Mas esse remédio não foi suciente, pois aqueles que, na
imagem ideal da democracia representativa, deviam controlar o poder, não
raras vezes eram facilmente controlados por ele. Assim emergiu a ideia de
que era necessário instituir “um supremo controle também sobre a ativida-
de do Parlamento
20
.
Um controle, Bobbio prossegue, “fundado sobre a distinção en-
tre leis propriamente ditas e superleis, e sobre a instituição de um órgão
a que fosse conado o controle de legitimidade das primeiras”. Assim se
concretizava um segundo passo na luta contra o despotismo: “O primeiro,
de 1966, sobre o livro Il problema dell’eettività nella teoria della validità giuridica, de Ruggero Meneghelli,
em que “Bobbio aceptabaen esta recensión la crítica al estrictoconcepto kelseniano de validez formal – como
ajustamiento de una norma a las potestades procedimentales otorgadas por una norma superior --, que no
sería más que uno de los posibles criterios de validez: así, reconocía Bobbio que tambíen se utilizan criterios de
validez material – que atienden a los contenidos normativos – y criterios de validez empírica – que constatan la
repetición regular de uma conducta”.
18
Bobbio, 1971, p. 268.
19
Bobbio, 1971, p. 269.
20
Bobbio, 1971, p. 269.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
322
da supremacia do executivo à supremacia do legislativo [...]; o segundo, da
supremacia do legislativo à supremacia do poder constituinte
21
.
Os reexos disso sobre a concepção de justiça como conformida-
de à lei são assim reportados por Bobbio (e é esse o trecho que nos interessa
particularmente):
A partir do momento em que todo juiz está autorizado a submeter ao
juízo de legitimidade da Corte constitucional uma norma de lei antes
de aplicá-la, a existência, ou melhor, a validade de toda lei ordinária se
torna, no limite, problemática, não é mais um dado a constatar, mas
um problema a resolver. [...] o próprio fato de que a lei ordinária não
seja mais o critério último para o juízo sobre o que é justo e injusto,
mas esteja ela mesma sujeita a um critério de julgamento superior (e
note-se que, à medida que ascendemos a critérios superiores, estes são
sempre mais vagos e, portanto, suscetíveis de interpretações diversas e
eventualmente contratastes [...]) mostra o quanto é ilusória, e digamos
também hipócrita, toda solução que tenda a subtrair o juiz da respon-
sabilidade pessoal de escolher uma solução ao invés de outra.
22
Esse trecho indica a atenção de Bobbio – acima daquela que lhe
parece atribuir Ferrajoli no prefácio em comento – ao fato de que a vali-
dade das leis deixa de ser uma questão de mero pertencimento ao ordena-
mento jurídico nos ordenamentos organizados sob constituições rígidas,
com seus direitos e princípios de status superior (adiante no mesmo texto,
Bobbio se refere aos princípios como “superleis
23
), controlados por um
Tribunal especíco.
Advém daí certa instabilidade da validade das leis, que faz com
que ela não se resolva na existência, na integração da lei ao ordenamento –
a existência, ou melhor, a validade [...] se torna, no limite, problemática”.
A validade deixa de ser “um dado a constatar” para tornar-se “um
problema a resolver”, relativizando-se a distinção estabelecida pelo mesmo
Bobbio – e ressaltada sem ressalvas por Ferrajoli – na Teoria geral do direi-
21
Bobbio, 1971, p. 269.
22
Bobbio, 1971, p. 269.
23
Bobbio, 1971, p. 270.
Democracia e Direitos Humanos
323
to: “Enquanto o problema da justiça é resolvido com um juízo de valor, o
problema da validade é resolvido com um juízo de fato”.
ciêNcia jurídica e valoração
A referida supremacia da Constituição, com seus critérios “sem-
pre mais vagos e, portanto, suscetíveis de interpretações diversas e even-
tualmente contratastes”, lança o intérprete no mundo por vezes vago e
ambíguo dos direitos e princípios proclamados no texto constitucional;
direitos e princípios cuja carga valorativa se condensa nos valores do pró-
prio intérprete. Daí, a observação de Bobbio sobre “o quanto é ilusória,
e digamos também hipócrita, toda solução que tenda a subtrair o juiz da
responsabilidade pessoal de escolher uma solução ao invés de outra”.
24
Essa observação, voltada ao juiz, pode ser estendida a toda a ciên-
cia jurídica. Como diz Ferrajoli em seu prefácio, a ciência jurídica teve de
acompanhar a mudança de paradigma do direito (“estranhamente negli-
genciada por Bobbio
25
) ocorrida com as constituições rígidas do segundo
pós-guerra; mudança que trouxe o “afastamento deôntico [...] entre o ‘de-
ver ser’ e o ‘ser’ do direito dentro do próprio direito positivo
26
.
24
“Que a interpretação fosse uma operação lógica era uma tese que [...] era pura e simplesmente uma ideologia:
uma ideologia que serviu para corroborar o modelo político da separação dos poderes [...] A separação dos
poderes teria sido vã [...] se se devesse admitir que o juiz não é a voz da lei, mas o seu manipulador mais ou
menos consciente”. Bobbio, 1971, p. 269.
25
Ferrajoli, 2011, p. XVII.
26
Ferrajoli, 2011, p. XVIII.“A identicação do juspositivismo como abordagem do direito ‘como ele é’, como
o único ‘direito do qual o jurista deve ocupar-se’, segundo a denição aqui recordada no § 2, é ainda hoje
sustentável, nos hodiernos ordenamentos dotados de constituições rígidas, sob uma condição: a condição de
que se reconheça que, do ‘direito como ele é’, ou do ‘direito real’ ou ‘como fato’, também é parte integrante,
e num nível normativamente superior, o seu ‘dever ser jurídico’ desenhado pelas constituições, do qual, por
isso, qualquer abordagem que se considere ‘juspositivista’ não pode não se ocupar”. Ferrajoli, 2011, p. XV.
As duas teses – a tese teórica da distinção entre existência e validade das normas jurídicas e a tese meta teórica
do papel crítico da ciência jurídica em relação ao direito ilegítimo – estão claramente ligadas (não menos
que as teses opostas), seguindo-se ambas ao afastamento deôntico, inevitavelmente produzido pelo paradigma
constitucional, entre o ‘dever ser’ e o ‘ser’ do direito dentro do próprio direito positivo. O que signica, com
efeito, dizer que os princípios constitucionais e os direitos fundamentais neles estabelecidos situam-se em
níveis superiores, e por isso normativos, em relação com a legislação ordinária? Signica que eles impõem ao
legislador proibições de lesão e obrigações de satisfação, cuja virtual inobservância se manifesta em antinomias
e em lacunas estruturais, ou seja, na produção ilegítima [indebita] de normas inválidas ou na omissão indevida
[indebita] de normas de atuação”. Ferrajoli, 2011, p. XVII-XVIII.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
324
A tarefa da ciência jurídica, então, não seria mais a de apenas
averiguar o sentido das normas existentes e formalmente válidas, mas
também de avaliar a sua invalidade substancial e de criticar a sua ilegitimi-
dade constitucional, para promover a sua superação pela via legislativa ou
jurisdicional”
27
. A ciência jurídica, Ferrajoli prossegue, “acaba investida,
em relação ao direito positivo, de um papel não mais puramente descriti-
vo, mas também crítico e projetual, ao qual não pode subtrair-se porque
ditado pela própria estrutura do seu objeto de pesquisa
28
.
Porém, segundo Ferrajoli, essa visão sobre a ciência jurídica es-
taria ausente da obra de Bobbio, que teria rmemente defendido, como
valor deontológico e metodológico, o “princípio da total ausência de inten-
ção valorativa na abordagem cientíca do estudo do direito
29
.
(i). “direito e ciêNcias sociais
O texto acima, originalmente publicado como “O direito” em
1971 e republicado sob o título acima em Da estrutura à fundação
30
,
constitui o pretendido contraponto à análise de Ferrajoli no tema da
ciência jurídica.
Embora tal análise tenha indiscutível base textual, deve-se notar
que, em “Direito e ciências sociais”, Bobbio é claro a respeito da mudança
ou acréscimo no papel da ciência jurídica
31
(que ele relaciona, introdutória
e aproximativamente, com a “redução da função especíca do direito como
27
Ferrajoli, 2011, p. XVII.
28
Ferrajoli, 2011, p. XVIII.
29
“Este princípio, rmemente defendido por Bobbio como valor deontológico, além de metodológico, e como
primeira acepção de positivismo jurídico’, é, de fato, sustentável, do mesmo modo que a tese da equivalência
entre validade e existência da qual é um corolário, somente se referido ao estado legislativo de direito, no qual
a lei formalmente existente é a fonte suprema e onipotente do ordenamento, e a ciência jurídica e a jurisdição
devem apenas averiguar o seu sentido”. Ferrajoli, 2011, p. XVI-XVII.
30
Bobbio, 2007.
31
Na verdade, essa constatação de Bobbio antecede, em alguns poucos anos, “Direito e ciências sociais”. Mas
percorrer a evolução do pensamento de Bobbio nesse tema é uma tarefa inviável aqui. Um artigo interessante
a respeito é o de Max Abbott, “Algunas consideraciones acerca de la evolución de laciencia jurídica en Bobbio
(2005). Também Alfonso Ruiz Miguel trata do assunto (1983).
Democracia e Direitos Humanos
325
instrumento de controle social”
32
, a ensejar “um contato maior entre juris-
tas e cientistas sociais
33
). Os trechos abaixo são esclarecedores:
Parto de uma premissa que nem sempre é levada em consideração: não
existe uma única ciência jurídica (permitam-me, para abreviar, chamar
de “ciência jurídica”, ainda que a expressão seja equivocada, a atividade
do jurista), mas tantas “ciências jurídicas” quantas são as imagens que
o jurista tem de si mesmo e da própria função na sociedade. [...] creio
ser possível distinguir duas imagens típico-ideais da função do jurista,
as quais inuenciam os diversos modos de conceber a própria ciência
jurídica: o jurista como conservador e transmissor de um corpo de
regras já dadas, de que é o depositário e guardião; e o jurista como
criador, ele mesmo, de regras que transformam – a ele integrando-se e
inovando-o – o sistema dado, do qual não é mais apenas receptor, mas
também colaborador ativo e, quando necessário, crítico.
34
Observa-se acima que, para Bobbio, o campo do jurista vai além
(da convalidação) do direito construído através de suas fontes formais;
o jurista da segunda metade do século XX ultrapassa o direito “que é
e busca “a legitimação, com base em princípios materiais de justiça, do
direito que deve ser
35
.
Apresenta-se, assim, uma “função não apenas de reconstrução,
mas também normativa do trabalho dos juristas, os quais, segundo a ima-
gem transmitida pela escola do positivismo jurídico, jamais deveriam ter
erguido os olhos para além do horizonte do jus conditum
36
. Tomando
como exemplo o direito sindical, Bobbio arma que, em algumas matérias,
32
Bobbio, 2007, p. 35.
33
Bobbio, 2007, p. 37.
34
“Essas duas imagens da função do jurista na sociedade podem depender: a) do diferente tipo de sistema
jurídico dentro do qual o jurista trabalha (variável institucional); b) da diferente situação social em que o
jurista desenvolve o próprio trabalho (variável social); c) da diferente concepção do direito e da relação direito-
sociedade que forma a ideologia do jurista em um dado momento histórico (variável cultural)” (BOBBIO,
2007, p. 37-38).
35
Bobbio, 2007, p. 40. Bobbio chega até a enumerar as sucessivas operações dessa pesquisa do direito a cargo
do jurista: “a) a análise da situação para a qual se quer encontrar a regra ou as regras apropriadas, mediante as
técnicas de pesquisa elaboradas e praticadas pelas ciências sociais; b) a análise e o confronto dos diversos critérios
de valoração com base nos quais a situação pode ser regulada (que claro que, entre esses critérios de valoração,
estão, também, as regras postas ou transmitidas); c) a escolha da valoração e a formulação da regra” (BOBBIO,
2007, p. 41).
36
Bobbio, 2007, p. 42.
Rafael Salatini & César Mortari Barreira (Org.)
326
nas quais se vericou uma prolongada ausência do legislador [...] os juris-
tas não apenas ousaram encarar o jus condendum, como também foram
eles próprios os conditores do novo jus
37
. Em suma:
O que distingue a situação presente são exatamente aquelas condições
que consideramos particularmente favoráveis à formação de uma ciên-
cia do direito antitradicionalista, que busca o próprio objeto, em úl-
tima instância, não tanto nas regras do sistema dado, mas na análise
das relações e dos valores sociais a partir dos quais se extraem as regras
do sistema e que, longe de se considerar, como por muito tempo foi,
uma ciência autônoma e pura, busca, cada vez mais, a aliança com as
ciências sociais, a ponto de considerar a si própria como um ramo da
ciência geral da sociedade.
38
Como se vê, em “Direito e ciências sociais”, a ciência jurídica não
se circunscreve à descrição isenta das disposições incluídas no ordenamen-
to. Ali, Bobbio reporta o caráter prescritivo dessa ciência, que conforma
o direito a partir dos fatos e dos valores que acolhe, em nova discrepância
com as (fundamentadas) indicações de Ferrajoli em seu prefácio
39
.
observações fiNais
Como dito na Introdução, os textos de Bobbio trazidos como
contrapontos aos comentários de Ferrajoli no prefácio de Jusnaturalismo e
positivismo jurídico são de 1971, ano que antecedeu o ingresso de Bobbio
na Faculdade de Ciências Políticas de Turim, deixando a Faculdade de
Direito. São desse mesmo período os escritos em que Bobbio realça a
função do direito na sociedade; uma sociedade “profundamente mudada,
em que o estado não tem mais (e não terá mais), goste-se ou não, uma
função meramente garantidora, mas tem e terá também uma função,
para nos exprimirmos com uma palavra que necessitaria de explicações
ulteriores, promocional” (“Quale giustizia, quale legge, quale giudice
40
).
37
Bobbio, 2007, p. 42.
38
Bobbio, 2007, p. 46.
39
Sem prejuízo de que, como visto, os diagnósticos de Bobbio e de Ferrajoli trazidos aqui, sobre esse novo perl
da ciência jurídica, não partem das mesmas premissas.
40
Bobbio, 1971, p. 273.
Democracia e Direitos Humanos
327
Embora o direito possa ser analisado tanto de uma perspectiva
estrutural quanto promocional, é inegável que, no segundo caso, direito e
política vinculam-se irremediavelmente (na realização dos objetivos cons-
titucionais, na regulação, indução, prevenção de comportamentos etc.).
Talvez esse tenha sido um fator a redirecionar a atenção, senão também a
docência, de Bobbio do direito para a losoa e ciência políticas.
referêNcias
ABBOT, M. Algunas consideraciones acerca de la evolución de laciencia jurídica en
Bobbio. In: Norberto Bobbio: su pensamiento político y jurídico. Edeval: Valparaiso,
2005. p. 39-109.
BOBBIO, N. Sul ragionamento dei giuristi. Rivista di Diritto Civile, Padova, Anno I,
n. 1, 1955.
______. Quale giustizia. 2, n. 8, p. 268-274, 1971. Disponível em : http://www.erasmo.
it/gobetti/f_catalog.asp.
______. Direito e ciências sociais. In: ______ Da estrutura à função: novos estudos de
teoria do direito. Trad. Daniela Beccaccia Versiani; revisão técnica de Orlando Seixas
Bechara, Renata Nagamine. Barueri, SP: Manoel, 2007.
______. Teoria geral do direito. Tradução Denise Agostinetti; revisão da tradução Silvana
Cobucci Leite. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FERRAJOLI, L. Prefácio. In: BOBBIO, N. Giusnaturalismo e positivismo giuridico.
Laterza: Roma-Bari, 2011.
______. La democracia attraverso i diritti. Il costituzionalismo garantista come modello
teorico e come progetto politico. Laterza: Roma-Bari, 2013.
RUIZ MIGUEL, A. losoa y derecho en Norberto Bobbio. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1983.
Sobre os Autores
331
alfoNso ruiz miguel é professor de Filosoa do Direito na Universidad
Autónoma de Madrid. Publicou Filosoa y derecho en Norberto Bobbio
(1983) e Política, historia y derecho en Norberto Bobbio (2000)
assis braNdão é doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal
de Minas Gerais e professor de Teoria Política na Universidade Federal do
Pernambuco.
césar mortari barreira é doutorando em Teoria e Filosoa do Direito
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e coordenador cientíco do
Instituto Norberto Bobbio.
daNiela mesquita leutchuK de cademartori é doutora em Direito
pela Universidade Federal de Santa Catarina e professora do Centro
Universitário La Salle (Canoas). Publicou O diálogo democrático – Alain
Touraine, Norberto Bobbio e Robert Dahl (2007)
gisele mascarelli salgado é pós-doutora em Direito pela Universidade
de São Paulo e professora da Faculdade de Direito de São Bernardo do
Campo. Publicou Sanção na teoria do direito de Norberto Bobbio (2010)
giusePPe tosi é doutor em Filosoa pela Universidade de Pádua e professor
do Departamento de Filosoa da Universidade Federal da Paraíba. Publicou
Norberto Bobbio – Democracia, direitos humanos, guerra e paz (2013) e 10
Lições sobre Bobbio (2016)
josé alcebíades de oliveira juNior é doutor em Filosoa pela
Universidade Federal de Santa Catariana, professor titular da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador 1D
do CNPq. Publicou Bobbio e a losoa dos juristas (1994)
332
marcelo de azevedo graNato é doutor em Direito pela Universidade de
São Paulo e pela Università degli Studi di Torino e professor das Faculdades
de Campinas. Pesquisador do Instituto Norberto Bobbio.
mario giusePPe losaNo é professor emérito de Filosoa do Direito e de
Introdução à Informática Jurídica na Faculdade de Direito da Università
del Piemonte Orientale (Alessandria) e professor da Scuola di Dottorato in
Diritti e Istituzioni da Università degli Studi (Turím).
rafael salatiNi é pós-doutorando em Ciência Política pela Universidade
de São Paulo e professor de Ciência Política da Unesp-Marília.
roberto bueNo é pós-doutor em Filosoa do Direito pelo Centro
Universitário Eurípedes de Marília e professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília. Publicou A losoa jurídico-política de Norberto
Bobbio (2006)
samuel aNtoNio merbach de oliveira é pós-doutor em Filosoa pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pós-doutorando em
Psicologia Social pela Universidade Argentina J. Kennedy e professor da
Faculdade de Direito de Campo Limpo Paulista. Publicou O socialismo
liberal na losoa de Norberto Bobbio (2016)
sérgio câNdido de mello é doutor em Ciência Política pela Universidade
de São Paulo e professor da Universidade Estadual de Maringá. Publicou
Norberto Bobbio e o debate político contemporâneo (2003)
Catalogação
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
Normalização
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
Elizabete Cristina de Souza de Aguiar Monteiro
CRB - 8/7963
Capa e diagramação
Gláucio Rogério de Morais
Produção gráca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
Assessoria Técnica
Maria Rosangela de Oliveira
CRB - 8/4073
Renato Geraldi
Ocina Universitária
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
2018
Impressão e acabamento
Gráca Shimohara
Marília - SP
Formato
16X23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
Acabamento
Grampeado e colado
Tiragem
150
sobre o livro
C A P E S
Processo PAEP Nº 118686/2016-01
Processo FAPESP Nº 2017/03326-5
É muito abrangente a obra de Norberto Bobbio. Vai muito além
dos seus livros mais conhecidos, boa parte dos quais está
disponível em edições brasileiras. Compreende numerosos
escritos de maior ou menor ambição; todos, no entanto, dotados
do rigor e da clareza que são a marca registrada de sua identidade
intelectual. A bibliografia de seus escritos, criteriosamente
organizados por Carlo Violi, publicada em 1995, compreende
ensaios, prefácios, resenhas e entrevistas. Abrangem, no arco de
tempo entre 1934-1993, 9.386 entradas.
Dois desses escritos elencados por Violi, ainda não publicados no
Brasil, estão incluídos neste livro: um é de 1988, sobre a
democracia realista de Giovanni Sartori; outro de 1984, sobre a
função promocional do direito revisitada, ambos relacionados aos
temas deste volume, organizado por Rafael Salatini e Cesar
Mortari Barreira, destacados estudiosos do pensamento bobbiano,
intitulado Democracia e direitos humanos no pensamento de
Norberto Bobbio.
ISBN 978-85-7249-027-6