Esta obra foi publicada a partir de
edital interno de publicação de
trabalhos de docentes e egressos do
Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGFIL) da Unesp, como
parte das comemorações de seus 25
anos. Este e os demais livros
publicados por este edital podem ser
baixados gratuitamente no catálogo
da editora Oficina Universitária:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index
.php/lab_editorial. São eles:
- Eichmann e a incapacidade de
pensar: alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt.
Renato de Oliveira Pereira
- Hábitos motores e identidade
pessoal. Ana Paula Talin Bissoli &
Mariana Claudia Broens
- O estatuto científico da ciência
cognitiva em sua fase inicial: uma
análise a partir da estrutura das
revoluções científicas de Thomas
Kuhn. Marcos Antonio Alves e
Alan Rafael Valente
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. I. Ivo Assad Ibri
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. II. Ivo Assad
Ibri
- Verdade e arte: a concepção
ontológica da obra de arte no
pensamento de Martin Heidegger.
Juliano Rabello.
O ponto de partida deste livro é o
caso Eichmann, tal como analisado
por Hannah Arendt em Eichmann em
Jerusalém (1963), obra que resulta de
sua participação no julgamento do
ex-tenente-coronel da SS responsável
pela logística de transporte dos
judeus para os campos de concentra-
ção e extermínio durante o regime
nazista na Alemanha. Conforme
mostra o autor, o descompasso entre
a monstruosidade dos crimes que
Eichmann ajudou a perpetrar e a sua
figura perante o tribunal – que não
pareceu monstruosa ou maléfica a
Arendt, mas completamente normal
e até medíocre –, levou-a a cunhar a
expressão banalidade do mal. Com
tal noção, Arendt designa um novo
tipo de mal, o qual não é causado por
motivos torpes, instintos corrompi-
dos ou por uma vontade maligna, e
sim pela obediência ao dever de
ofício ligada a uma recusa do agente
em pensar naquilo que faz. Com o
objetivo de compreender quais são as
condições que propiciam essa incapa-
cidade ou ausência de pensar
(thoughtlessness), o autor examina,
dentro do arcabouço teórico de
Arendt, como não só os regimes
totalitários, mas também a própria
Era Moderna, produzem a experiên-
cia da solidão (loneliness) no interior
da sociedade de massa. Tal experiên-
cia prejudica a instauração de um
mundo comum no qual possa se
afirmar a pluralidade humana, condi-
ção para o exercício da capacidade de
agir, sentir e também de pensar.
Aprovado pelo EDITAL No. 01/2020 –
PPGFIL/UNESP - Publicações de livros
autorais e tradução de artigos científicos
aceitos para publicação
Eichmann e a incapacidade de pensar
alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
Renato de Oliveira Pereira
Este livro foi publicado a partir de edital interno de
publicação de trabalhos de docentes e egressos do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL) da Unesp. Como parte
das comemorações de seu jubileu de prata, o PPGFIL vem
realizando e promovendo uma série de atividades em diversos
segmentos. As obras aprovadas no edital foram publicadas em
conjunto pelas editoras Oficina Universitária e Cultura
Acadêmica.
A Oficina Universitária é um selo editorial da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília, apoiada pelo
Laboratório Editorial da FFC. Foi instituída com o objetivo de
criar condições e oportunidades para a difusão de pesquisas e
tornar públicos os resultados dos trabalhos do corpo docente
da FFC. Já a Cultura Acadêmica, selo da Fundação Editora da
Unesp, visa auxiliar principalmente o atendimento às
múltiplas demandas editoriais da Unesp. Com a ampliação do
número de títulos editados pelo selo, são abertas novas
oportunidades de publicação num momento em que a pesquisa
acadêmica e sua divulgação são cada vez mais necessárias.
Eichmann e a incapacidade de pensar:
alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
Renato de Oliveira Pereira
ISBN 978-65-5954-064-8
Eichmann e a incapacidade de
pensar: alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
R  O P
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Prof.ª Dr.ª Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Prof.ª Dr.ª Ana Claudia Vieira Cardoso
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2021, Faculdade de Filosoa e Ciências
Pereira, Renato de Oliveira.
P436e Eichmann e a incapacidade de pensar : alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt / Renato de Oliveira Pereira. – Marília :
Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
166 p.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-064-8 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-065-5 (Digital)
DOI https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-065-5
1. Arendt, Hannah, 1906-1975. 2. Eichmann, Adolf, 1906-1962. 3.
Totalitarismo. 4. Ideologia. 5. Pensamento. 6. Alienação (Psicologia social). 7.
Ciência política - Filosoa. I. Título.
CDD 320.01
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em
Filosoa da UNESP:
Marcos Antonio Alves (Coordenador); Ana
Maria Portich (Vice-Coordenadora); Hércules
de Araújo Feitosa; Reinaldo Sampaio Pereira
Aprovado pelo EDITAL No. 01/2020 –
PPGFIL/UNESP - Publicações de livros
autorais e tradução de artigos cientícos aceitos
para publicação
Pareceristas
Adriano Correia da Silva
Universidade Federal de Goiás
| 5
[...] a mente humana não está disposta a enfrentar realidades que,
de uma ou outra maneira, contradizem totalmente a sua estrutura
de referência. Infelizmente, parece ser muito mais fácil condicionar o
comportamento humano e fazer as pessoas se portarem da maneira mais
inesperada e abominável possível do que convencer alguém a aprender
com a experiência, como diz o ditado; isto é, começar a pensar e julgar
em vez de aplicar categorias e fórmulas que estão profundamente
arraigadas em nossa mente, mas cuja base de experiência foi esquecida
há muito tempo, e cuja plausibilidade reside antes na coerência
intelectual do que na adequação a acontecimentos reais.
Hannah Arendt (2004, p. 100)
S
Apresentação
Marcos Antonio Alves -------------------------------------------------------------- 9
Prefácio
Adriano Correia Silva ------------------------------------------------------------- 13
Introdução ------------------------------------------------------------------------- 21
1. Arendt em JerusAlém: A bAnAlidAde do mAl e A incApAcidAde de
pensAr de eichmAnn ----------------------------------------------------------- 27
1.1 O julgamento ---------------------------------------------------------- 28
1.2 Um novo tipo de mal ------------------------------------------------ 49
1.3 O problema: por que Eichmann era incapaz de pensar? -------- 73
2. A produção dA incApAcidAde de pensAr no totAlitArismo: umA Análise A
pArtir do ensAioideologiA e terror --------------------------------------- 81
2.1 Uma nova forma de governo: Arendt à luz de Montesquieu --- 84
2.2 A natureza do domínio total: o terror ----------------------------- 102
2.3 O princípio de ação (movimento) do totalitarismo: a ideologia - 113
2.4 A “lógica de uma ideia” e a incapacidade de pensar de Eichmann 120
8 |
3. A produção dA incApAcidAde de pensAr nA modernidAde: AlienAção do
mundo e burocrAciA ----------------------------------------------------------- 127
3.1 A solidão (loneliness) do homem de massa como experiência
fundamental do regime totalitário -------------------------------------- 128
3.2 A condição humana e a vitória do animal laborans -------------- 141
considerAções FinAis --------------------------------------------------------- 153
reFerênciAs --------------------------------------------------------------------- 159
sobre os Autores --------------------------------------------------------------- 165
| 9
A
Esta obra foi publicada a partir de edital interno de publicação
de trabalhos de docentes e egressos do Programa de Pós-Graduação em
Filosoa (PPGFIL) da Unesp. Situado no campus de Marília, o PPGFIL
iniciou suas atividades em 1996. Trata-se de um programa consolidado
que apresenta bons resultados em diferentes âmbitos. São dignas de nota
a quantidade e a qualidade das publicações de seus docentes, discentes
e egressos. Atividades de ensino, pesquisa e extensão, inserção social,
internacionalização, bem como a formação de novos quadros para a
losoa também são marcantes. Já são tradicionais e de grande visibilidade,
por exemplo, alguns eventos promovidos e realizados pelo programa. Já
são mais de 250 egressos, muitos deles concursados nas redes estaduais de
ensino básico ou em instituições de ensino superior em todo o país. Boa
parte deles cursou doutorado, realizou estágio ou pesquisa em instituições
nacionais e estrangeiras de renome.
Como parte das comemorações de seu jubileu de prata, o
PPGFIL vem realizando e promovendo uma série de atividades em diversos
segmentos. Em uma frente, vem reestruturando suas linhas de pesquisa, seu
corpo docente, bem como seus projetos e grupos de pesquisa. Em relação
às linhas, em 2020 elas passaram a ser apenas duas, intituladas “Filosoa
da Informação, da Cognição e da Consciência” e “Conhecimento, Ética
e Política”. Tais modicações buscam manter e respeitar a liberdade, a
autonomia e a visão losóca dos grupos ou dos integrantes do programa.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-065-5.p9-12
Renato de Oliveira Pereira
10 |
Com as mudanças, resultado de seu processo de autoavaliação,
o programa reuniu docentes em torno de temas e pesquisas convergentes.
Com isso, visa a favorecer o desenvolvimento ainda mais substancial
e aprofundado de pesquisas, produzindo conhecimento qualicado,
ampliando a internacionalização, melhorando a formação de seus discentes,
a inserção social através da socialização do conhecimento, realização de
eventos, desenvolvimento de projetos de ensino, pesquisa e extensão.
O programa está solicitando, depois de um longo trabalho
coletivo, a abertura do seu doutorado. O curso pretende atender à demanda
de discentes formados na graduação e mestrado em losoa e em outros
cursos da própria Unesp, além de estudantes oriundos de diversas regiões
do país interessados em aprofundar suas pesquisas nos temas e problemas
abordados no PPGFIL. Com isso, favorecerá a formação continuada
de discentes na Unesp, da graduação ao doutorado, acolhendo também
candidatos de outras instituições interessados em desenvolver pesquisas
nas áreas de especialidade de seus docentes.
Em outra frente, o programa reformulou e intensicou sua
interação com a comunidade por meio das redes sociais. Por meio das
publicações em sua página no Facebook, no endereço https://www.
facebook.com/poslmarilia, deixa os seguidores informados das suas
atividades. Já a sua página ocial está hospedada no site da FFC/Unesp/
Campus de Marília, que pode ser acessada no endereço http://www.marilia.
unesp.br/posl. Além de publicações sobre sua atividade cotidiana, oferece
variadas informações referentes a seu histórico, missão, objetivos, processo
seletivo, bem como possui seções especicamente direcionadas a discentes,
docentes e egressos. Buscando melhor comunicação, acessibilidade e
transparência, a página, depois de reformulada, está mais leve, informativa
e acessível.
A socialização do conhecimento e contato com a comunidade
também é efetivada através das revistas cientícas vinculadas ao programa.
Dentre elas, estão a Kínesis: Revista dos Estudos dos Pós-Graduandos em
Filosoa, e a Trans/Form/Ação: revista de losoa da Unesp, já considerada
patrimônio do curso de losoa da Unesp e um dos mais conceituados
periódicos na área tanto no Brasil quanto no exterior. A Kínesis, como
diz o próprio sobrenome, é voltada principalmente, mas não somente, à
publicação de trabalhos de pós-graduandos. Já a Trans/Form/Ação publica
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 11
textos de prossionais em losoa e áreas ans. Ambas são voltadas à
publicação de trabalhos de losoa ou de interesse losóco, difundindo o
conhecimento produzido na área tanto no Brasil quanto no exterior.
Ainda como parte da comemoração dos seus 25 anos, o PPGFIL
lançou o edital para publicação de livros de docentes e egressos, ao qual este
livro foi submetido e aprovado para publicação. As propostas submetidas
foram avaliadas na plataforma da revista Trans/Form/Ação, no caráter de
parecer duplo-cego. Tal acordo de cooperação foi pensado para garantir
transparência e conabilidade no processo seletivo das submissões. Ao
receber a solicitação de avaliação, os pareceristas também foram convidados
a produzir o prefácio do livro, caso deliberassem pela aprovação da obra.
Além de favorecer ainda mais o cuidado no trabalho avaliativo, com essa
atitude buscamos valorizar ainda mais a contribuição dos avaliadores.
As obras aprovadas no edital foram publicadas em conjunto
pelas editoras Ocina Universitária e Cultura Acadêmica. A Ocina
Universitária é um selo editorial da Faculdade de Filosoa e Ciências da
Unesp, campus de Marília, apoiada pelo Laboratório Editorial da FFC.
Foi instituída com o objetivo de criar condições e oportunidades para a
difusão de pesquisas e tornar públicos os resultados dos trabalhos do corpo
docente da FFC. Já a Cultura Acadêmica, selo da Fundação Editora da
Unesp, visa auxiliar principalmente o atendimento às múltiplas demandas
editoriais da Unesp. Com a ampliação do número de títulos editados pelo
selo, são abertas novas oportunidades de publicação num momento em
que a pesquisa acadêmica e sua divulgação são cada vez mais necessárias.
É com grande prazer e satisfação que publicamos este livro,
intitulado Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt, de autoria de Renato de Oliveira Pereira e
prefaciado por Adriano Correa.
Conforme o próprio autor, o ponto de partida deste livro é o
caso Eichmann, tal como analisado por Hannah Arendt em Eichmann em
Jerusalém (1963), obra que resulta de sua participação no julgamento do
ex-tenente-coronel da SS responsável pela logística de transporte dos judeus
para os campos de concentração e extermínio durante o regime nazista na
Alemanha. Renato lembra que o descompasso entre a monstruosidade dos
crimes que Eichmann ajudou a perpetrar e a sua gura perante o tribunal
– que não pareceu monstruosa ou maléca a Arendt, mas completamente
Renato de Oliveira Pereira
12 |
normal e até medíocre –, levou-a a cunhar a expressão banalidade do
mal. Com tal noção, Arendt designa um novo tipo de mal, o qual não é
causado por motivos torpes, instintos corrompidos ou por uma vontade
maligna, e sim pela obediência ao dever de ofício ligada a uma recusa do
agente em pensar naquilo que faz. Com o objetivo de compreender quais
são as condições que propiciam essa incapacidade ou ausência de pensar
(thoughtlessness), o autor examina, dentro do arcabouço teórico da lósofa,
como não só os regimes totalitários, mas também a própria Era Moderna,
produzem a experiência da solidão (loneliness) no interior da sociedade de
massa. Tal experiência prejudica a instauração de um mundo comum no
qual possa se armar a pluralidade humana, condição para o exercício da
capacidade de agir, sentir e também de pensar.
Este e os demais livros publicados por este edital podem ser
baixados gratuitamente no catálogo da editora Ocina Universitária:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial. São eles:
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e
do pensamento em Hannah Arendt. Renato de Oliveira Pereira
Hábitos motores e identidade pessoal. Ana Paula Talin Bissoli e
Mariana Claudia Broens
O estatuto cientíco da ciência cognitiva em sua fase inicial:
uma análise a partir da estrutura das revoluções cientícas de
omas Kuhn. Marcos Antonio Alves e Alan Rafael Valente
Semiótica e Pragmatismo. Interfaces teóricas. Vol. I. Ivo Assad Ibri
Semiótica e Pragmatismo. Interfaces teóricas. Vol. II. Ivo Assad Ibri
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no
pensamento de Martin Heidegger. Juliano Rabello
Esperamos, com esta atividade, fazer cumprir um dos objetivos de
um programa de pós-graduação, o de produzir e socializar o conhecimento.
Desejamos aos leitores desta e das demais obras uma reexão profícua
oriunda de sua leitura.
Marcos Antonio Alves
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosoa da Unesp
| 13
P
Se considerarmos a função desempenhada por Otto Adolf
Eichmann no comando do Departamento IV-B4, que, apesar de não
muito evidenciado no organograma da Gestapo, era o responsável
pelos assuntos judaicos, não deixará de nos surpreender o fato de ele
ser mencionado apenas uma vez em Origens do totalitarismo, justamente
quando Hannah Arendt está a examinar a amora planejada do regime
nazista, promovida por deslocamentos constantes dos centros de poder
e pela criação de estruturas de fachada que ocultavam o verdadeiro
centro do poder – no caso especíco da questão judaica, precisamente o
Departamento de Assuntos Judaicos da Gestapo. Apesar de sugerir que “o
verdadeiro centro da autoridade” (ARENDT, 2004, p. 452) na questão
judaica era o departamento IV-B4, e a despeito da centralidade dos
temas do antissemitismo e da Solução Final para sua análise do regime
totalitário, Arendt não volta a mencionar Eichmann, mesmo na terceira
edição revista, publicada após a polêmica desencadeada por Eichmann
em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963).
Em uma carta a sua amiga Mary McCarthy em meados de 1960,
quando estava “tentada” ou “brincando com a ideia” de conseguir que alguma
revista a enviasse para cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém,
Arendt chegou a armar que Eichmann “era um dos mais inteligentes
do bando” (ARENDT; McCARTHY, 1995, p. 100). Ao acompanhar o
julgamento e também ao ter acesso aos depoimentos concedidos antes por
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-065-5.p13-20
Renato de Oliveira Pereira
14 |
Eichmann, Arendt, como muitos outros que acompanharam o julgamento
(CESARANI, 2007, p. 256-257), cou impressionada com a normalidade
e mesmo a trivialidade do réu. Embora certamente fosse incompatível
com suas próprias análises desde Origens do totalitarismo que ela esperasse
encontrar um monstro, deparou-se com alguém que dicilmente poderia
ser tomado por um dos “mais inteligentes do bando”.
Em Eichmann em Jerusalém (1963), ela observa que “apesar
de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse
homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconar que fosse
um palhaço” (ARENDT, 1999, p. 67). No posfácio adicionado à
segunda edição de Eichmann em Jerusalém, de 1964, quando já tem
em consideração a ampla repercussão negativa do livro, Arendt dedica-
se a desenvolver com mais vagar e precisão, dentre outros temas, sua
compreensão da expressão “banalidade do mal” e observa o seguinte:
Eichmann “não era burro. Foi pura irreexão (thoughtlessness) [...]
que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época
(ARENDT, 1999, p. 311). Por m, em uma entrevista a Joachim Fest,
também de 1964, reitera que Eichmann era muito inteligente, mas de
uma “estupidez ultrajante” (ARENDT; FEST, 2011, p. 43-44), que se
traduziria na “incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de
vista de outra pessoa” (ARENDT, 1999, p. 62).
Arendt conta então a Fest uma estória relatada por Ernst Jünger
em seus diários. Ele teria encontrado agricultores alemães na Pomerânia
e um deles, ao contar que recebeu um prisioneiro de guerra russo vindo
direto do campo de concentração, observa: “são subumanos... parecem
gado! É fácil perceber: eles comem a comida dos porcos”. E Arendt conclui:
o homem não percebe que isto é o que fazem pessoas esfomeadas, que
qualquer um faria a mesma coisa. Mas há algo realmente ultrajante nessa
estupidez” (ARENDT; FEST, 2011, p. 43, tradução nossa).
Mas essa estupidez, a falta de imaginação para gurar ou
representar o ponto de vista de outra pessoa, é apenas um dos traços do
caráter de Eichmann – embora, talvez, o mais decisivo do ponto de vista
moral e político. Com uma fala permeada por clichês, autovangloriador e
ao mesmo tempo esquecidiço, carreirista adesista e subserviente, vagamente
conhecedor do programa do partido nazista, cadavericamente obediente,
“idealista” ideologicamente pouco articulado que dizia nada ter contra os
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 15
judeus, Eichmann era alguém normal que em tempos normais dicilmente
teria chamado a atenção ou se tornado um criminoso: “o problema com
Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não
eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e
assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de
nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais
apavorante do que todas as atrocidades juntas” (ARENDT, 1999, p. 299),
pois indicava o surgimento de um novo tipo de criminoso, incapaz de
avaliar a desproporção entre o que aspiravam e a magnitude da devastação
que ajudavam a promover para atingir seus objetivos.
Em Origens do totalitarismo, Arendt identica vários personagens
que para ela eram típicos e dotados de validade exemplar. Eles ajudavam a
compreender o fenômeno totalitário, tanto por seu entusiasmo ideológico
ou oportunista quanto por sua eventual disposição para se ajustar a
qualquer contexto a qualquer custo. Já no volume sobre o antissemitismo,
Arendt destaca o membro da ralé, caricatura do povo constituída por
resíduos de todas as classes que, por odiar “a sociedade da qual é excluída
e “o parlamento onde não é representada” (ARENDT, 2004, p. 129),
quando se envolve em política, geralmente em períodos de crise aguda,
aspiram pelo homem forte, pelas consultas plebiscitárias e pela ação
extraparlamentar. Justamente por não jogar o jogo político da democracia
burguesa, do qual é expelido, tende a identicar as verdadeiras forças
políticas “naqueles movimentos e inuências que os olhos não veem e que
atuam nos bastidores” (ARENDT, 2004, p. 130) – os judeus, os maçons,
os jesuítas etc.
Arendt chama a atenção desde o início para os donos do
capital supéruo, parasita improdutivo em sua própria nação, primeiro
seguimento da classe burguesa “a desejar lucros sem exercer qualquer
função social verdadeira – mesmo que se tratasse da função de um
produtor que explorasse os outros” (ARENDT, 2004, p. 179), que daria
início à era imperialista aliando seu capital supéruo aos aventureiros e à
escória que constituíam a ralé – na África do Sul “estabeleceram, juntos,
o primeiro paraíso de parasitas, cujo sangue vital era o ouro” (ARENDT,
2004, p. 181). Instrumentalizaram as instituições nacionais para
garantir seus investimentos e inseriram no cenário da política mundial
a perspectiva de uma expansão ilimitada a garantir uma acumulação
Renato de Oliveira Pereira
16 |
ilimitada, em um contexto em que a política não passa de polícia e o
poder é simplesmente violência.
1
Já no começo da terceira parte de Origens do totalitarismo,
no capítulo intitulado “A sociedade sem classes”, Arendt retoma sua
caracterização do tipo burguês e o situa no contexto do movimento e
do regime totalitários. A inicial apatia burguesa, engendrada por sua
sociedade competitiva de consumo, e a subsequente exigência de direção
monopolística e ditatorial do poder político, “arraigava-se em um modo
e uma losoa de vida tão insistente e incisivamente centrada no sucesso
ou no fracasso do indivíduo em implacável competição que os deveres e
responsabilidades do cidadão podiam ser percebidos apenas como gasto
desnecessário do seu tempo e da sua energia limitados” (ARENDT, 2004,
p. 363). Não obstante, ainda que as atitudes burguesas anassem com a
ditadura do “homem forte”, principalmente sua hostilidade em relação
às instituições políticas e em relação à vida pública revelava também um
profundo individualismo, partilhado pela ralé, que, mesmo fragilizando a
vida política, não era tolerado pelos movimentos e pelo regime totalitário,
o que não tardou a car claro para a burguesia sob Hitler.
Enquanto a ralé era forjada por resíduos desajustados de todas as
classes, as massas se constituem a partir do colapso do sistema de classes
e dos fragmentos desamparados da sociedade atomizada, amalgamando
seus membros insatisfeitos e desesperados, provenientes também de todas
as classes, em uma unidade anônima de indivíduos isolados sem interesse
comum. Em vez do individualismo competitivo que o membro da ralé
compartilhava com a burguesia, com as massas “a abnegação, no sentido
de não se importar consigo mesmo, o sentimento de ser dispensável, não
era mais a expressão do idealismo individual, mas um fenômeno de massa
(ARENDT, 2004, p. 365), consoante “um tipo de mentalidade que, como
Cecil Rhodes quarenta anos antes, raciocinava em termos de continentes
Para Arendt, Hobbes foi o verdadeiro lósofo da burguesia, não apenas por ter concebido a sociedade política
como um agregado de indivíduos amedrontados que não formam comunidade e a política mesma como um
meio para obter segurança privada com o custo de um medo pervasivo e da total privação da liberdade política.
Ele ainda teria traçado o perl psicológico do homem burguês: “previu como necessária a idolatria do poder por
esse novo tipo humano e que ele se sentiria lisonjeado ao ser chamado de animal sedento de poder, embora na
verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas as suas forças naturais, suas virtudes e seus vícios, e zesse dele
o pobre sujeitinho manso que não tem sequer o direito de se erguer contra a tirania e que, longe de lutar pelo
poder, submete-se a qualquer governo existente e não mexe um dedo nem mesmo quando o seu melhor amigo
cai como vítima inocente de uma raison d’état incompreensível” (ARENDT, 2004, p. 175-176).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 17
e sentia em termos de séculos” (ARENDT, 2004, p. 366). Foram esses
indivíduos que Heinrich Himmler se pôs a organizar.
Himmler, ao contrário da maioria dos outros líderes do
movimento e do regime, não provinha da ralé, mas era antes de tudo um
listeu, “um burguês isolado da própria classe”. Ele era
[...] “mais normal”, isto é, mais listeu do que qualquer outro
dos primeiros líderes do movimento nazista. Não era um boêmio
como Goebbels, nem criminoso sexual como Streicher, nem louco
como Rosenberg, nem fanático como Hitler, nem aventureiro
como Göring. Demonstrou sua suprema capacidade de organizar
as massas sob o domínio total ao pressupor que a maioria das
pessoas não é constituída de boêmios, fanáticos, aventureiros,
maníacos sexuais, loucos nem socialmente fracassados, mas,
acima e antes de tudo, de empregados e bons pais de família
(ARENDT, 2004, p. 388).
O pai de família é o melancólico símbolo das multidões
desesperadas e isoladas que se ajustaram ao regime. Arendt chega a armar
que ele foi “o grande criminoso do século” (ARENDT, 2008, p. 157)
_ o alemão médio que a furiosa propaganda antissemita não conseguiu
fazer com que agredisse um judeu sequer passou a servir servilmente à
máquina de destruição, com a condição de que não fosse responsabilizado
por seus atos. Para Arendt, “cou evidente que esse tipo de homem, para
defender sua aposentadoria, o seguro de vida, a segurança da esposa e dos
lhos, se disporia a sacricar suas convicções, sua honra e sua dignidade
humana” (ARENDT, 2008, p. 157). Filisteus isolados em suas vidas
privadas, obstinados com cuidar da sua segurança e dos seus, convictos da
importância suprema do interesse privado, viram sua moralidade pessoal
destruída sem maior diculdade.
Pai de família, listeu, fanático, aventureiro, boêmio armado,
maníaco, criminoso sexual, aventureiro, membro da ralé, homem de massa
e burguês acabaram por ser caracterizações relevantes para a compreensão do
fenômeno totalitário. Não parece haver um tipo único no qual Eichmann
pudesse ser acomodado à vontade, mas certamente, como bem observa
Renato de Oliveira Pereira, a imagem do listeu certamente é a que mais o
acolhe, como “burguês” e pai de família.
18 |
Este livro preciso e bem escrito aposta em uma hipótese que se
revelou ricamente promissora: parece haver uma conexão entre a experiência
da solidão típica das sociedades de massa e a capacidade de pensar; e
parece haver uma conexão entre a irreexão ou ausência de pensamento e
a condição da multidão de solitários aglomerados pelo terror e mobilizados
pela ideologia – compreendida não como um conjunto complexo de
princípios sistematicamente articulados, mas como a “lógica de uma ideia
na qual os indivíduos são mobilizados antes pelo movimento implacável
da dedução que por qualquer conteúdo que a comporte, mesmo que seja
a ideia de raça. O recurso ao texto “Ideologia e terror” por Renato de
Oliveira Pereira se mostrou altamente promissor precisamente por isto.
Com efeito,
[...] o que as massas se recusam a compreender é a fortuidade que
permeia a realidade. Predispõem-se a todas as ideologias porque
explicam os fatos como simples exemplos de leis e eliminam as
coincidências inventando uma onipotência que a tudo atinge e que
supostamente está na origem de todo acaso. A propaganda totalitária
prospera nessa fuga da realidade para a cção, da coincidência para
a consistência (ARENDT, 2004, p. 401).
Como é bem destacado no segundo capítulo deste livro, o súdito
ideal da dominação totalitária é aquele para quem o conteúdo ideológico
do regime não tem qualquer relevância frente ao caráter axiomático da
dedução ideológica. A lealdade total e irrestrita exigida dos membros
do partido só pode ser esperada de indivíduos atomizados cuja vida só
encontra sentido no movimento, no partido ou no regime. Com efeito, “a
lealdade total só é possível quando a delidade é esvaziada de todo o seu
conteúdo concreto, do qual mudanças de opinião poderiam naturalmente
surgir” (ARENDT, 2004, p. 373).
Um dos traços mais decisivos da autocompreensão de Eichmann
era sua identicação como um “idealista”, o que o distancia notavelmente
de uma assimilação sem mais à gura do listeu, que de resto é a que mais
bem lhe cabe. Para ele, “um ‘idealista’ era um homem que vivia para a sua
ideia – portanto não podia ser um homem de negócios – e que por essa
ideia estaria disposto a sacricar tudo e, principalmente, todos” (ARENDT,
1999, p. 54). Trata-se de alguém que jamais permitiria que seus afetos
| 19
atrapalhassem a execução de sua “ideia”. Sua “obediência cadavérica”, da
qual tanto se orgulhava, confere um aspecto bizarro a seu caráter e faz com
que permaneça, como bem observa Renato de Oliveira Pereira em suas
considerações nais, um desao para o pensamento, enfrentado de modo
inspirador neste livro.
reFerênciAs
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens
Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
ARENDT, Hannah. “Culpa organizada e responsabilidade universal”. In: Compreender: formação, exílio e
totalitarismo. Org. Jerome Kohn; trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte:
UFMG, 2008.
ARENDT, Hannah; FEST, Joachim. Eichmann war von empörender Dummheit: Gespräche und Briefe.
Munique: Piper, 2011.
ARENDT, Hannah; MCCARTHY, Mary. Entre amigas: a correspondência de Hannah Arendt e Mary
McCarthy. Org. e int. Carol Brightman. Trad. Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
CESARANI, David. Becoming Eichmann: rethinking the life, crimes, and trial of a “desk murderer”.
Cambridge: Da Capo Press, 2007.
Adriano Correia Silva
Universidade Federal de Goiás e CNPq
| 21
I
No livro alfa da Metafísica, Aristóteles arma que a losoa nasce
do thaumazein, isto é, do espanto, da admiração ou perplexidade que algum
aspecto do mundo causava àquele que o contemplava. O espanto gerava
uma espécie de paralisia no lósofo, que precisava enveredar esforços para
compreender aquele aspecto da realidade que se impunha como um desao
ao pensamento. Este livro é o resultado de uma situação de perplexidade
para a qual o nosso pensamento foi levado em face da gura de Adolf
Eichmann tomada não em si mesma, mas por meio do relato que Hannah
Arendt fez ao participar do julgamento do antigo tenente-coronel da SS,
em Jerusalém, no ano de 1961.
Eichmann foi o responsável pela logística de transporte dos
judeus para os campos de concentração e extermínio durante a Alemanha
nazista, função que desempenhou com zelo, apesar de, na ocasião de seu
julgamento, armar não ser um antissemita. Em 1960, ele foi sequestrado
na Argentina pelo serviço secreto israelense, o Mossad, e levado para ser
processado e julgado pelo recém-criado Estado de Israel. O caso despertou
a atenção pública mundial, pois se tratava da primeira vez em que o povo
judeu iria julgar um de seus algozes.
Em um primeiro momento, analisaremos a obra Eichmann em
Jerusalém (1999[1963]), na qual Arendt apresenta seu relato do processo do
ex-tenente-coronel nazista, para entendermos como a pensadora elaborou
a noção de banalidade do mal, o mal que não tem raiz ou profundidade,
Renato de Oliveira Pereira
22 |
mas que está ligado a uma supercialidade do agente que o pratica. Arendt
percebe que a incapacidade de pensar (thoughtlessness), notável pelo fato
de Eichmann evocar com frequência frases de efeito e clichês em sua fala,
fez com que ele não se sentisse responsável pelo destino dos judeus. O
ex-tenente-coronel entendia que o cumprimento de seu dever de ofício
e a obediência às ordens que ele recebia de seus superiores justicavam
de forma plausível seus atos, os quais contribuíram para a prática do mal
extremo. Não se trata, pois, de um mal ontológico ou teológico, que
nasce de desejos e instintos humanos pervertidos ou de alguma tentação
demoníaca, mas sim de um mal político, a violência extrema que tem a sua
imagem mais desoladora nos campos de concentração.
Diante deste quadro, nosso ímpeto não é compreender se e como
a atividade do pensamento poderia ser capaz de evitar a prática do mal,
tema que a pensadora desenvolveu mais detidamente em seu derradeiro e
inacabado livro, A vida do espírito (e life of mind), publicado postumamente
em 1977. Nesta obra, Arendt explora o que ela considera as três atividades
do espírito (mind), a saber, o pensar, o querer e o julgar. Para Arendt, há uma
relação entre a atividade do pensar e a do julgar, de modo que o pensamento,
ainda que não apareça no mundo, tem papel fundamental para a atividade
do juízo e, por esse motivo, acaba por ser relevante na vida política.
No primeiro capítulo, em vez de apresentarmos o problema
arendtiano acerca da possibilidade da atividade do pensar constituir uma
espécie de barreira para a prática do mal, enfocaremos outra questão: se
partirmos do pressuposto de que o pensamento é uma capacidade inerente a
todos os seres humanos, por que em determinado contexto social e político
essa capacidade não é utilizada? Ou seja, aceitamos como pressuposto a
relação entre a prática do mal e a incapacidade do pensar para reetirmos
sobre o seguinte problema: por que Eichmann era incapaz de pensar?
Quais são as condições que propiciam aquilo que Arendt denomina de
incapacidade de pensar (thoughtlessness)?
Para respondermos a essas questões, partiremos da hipótese de que há
algum elemento no sistema totalitário responsável por produzir a incapacidade
de pensar, uma vez que a obediência, ou melhor, o apoio a um regime político
pode ser obtido justamente em função da ausência de pensamento. Nesse
sentido, buscar minar a capacidade de pensar dos indivíduos parece claramente
ser uma estratégia importante para a dominação totalitária.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 23
Admitir essa hipótese, contudo, nos leva a um problema inicial,
posto que, para demonstrá-la, é preciso recorrer a obras de Arendt que
foram escritas antes de sua participação no tribunal de Jerusalém – em
particular, Origens do totalitarismo (1951). O receio aqui é o de tentar
procurar evidências acerca de um assunto sobre o qual Arendt ainda não
havia reetido antes do caso Eichmann. Tal percepção é corroborada pelo
fato de, em muitos textos, como na própria introdução de A vida do espírito,
Arendt armar que notou a relação entre a incapacidade de pensar e a
prática do mal apenas durante o julgamento. Seria, pois, legítimo utilizar
textos em que Arendt ainda não estava consciente dessa relação? Será que,
se o zermos, corremos o risco de deturpar o pensamento arendtiano?
O que nos tranquiliza acerca desses questionamentos é uma carta
de 20 de setembro de 1963 que Hannah Arendt enviou a sua amiga Mary
McCarthy, uma escritora norte-americana. Nessa carta, a pensadora confessa
à amiga que a sua participação no julgamento em Jerusalém mostrou que
ela havia superestimado o peso da ideologia sobre o indivíduo (ARENDT;
MCCARTHY, 1995, p. 154). Não obstante, Arendt arma que, no ensaio
“Ideologia e Terror”, ela mesma já notara como o movimento engendrado
pela ideologia, no interior dos regimes totalitários, torna-se mais relevante do
que o próprio conteúdo ideológico. Isso porque o conteúdo de uma ideologia
acaba por se perder no processo de sua execução, isto é, no momento em que
a ideologia é colocada em prática. Desse modo, a política de extermínio
nazista, por exemplo, não chegaria ao m mesmo que todos os judeus
fossem eliminados. Essa observação de Arendt chamou nossa atenção para a
questão da ideologia não enquanto convicção – pois Eichmann, a conar no
relato de Arendt, carecia de fortes convicções ideológicas –, e sim enquanto
uma espécie de movimento que acaba por engolfar de maneira mecânica os
membros de um regime totalitário.
Seguindo essa pista, dedicamos o segundo capítulo deste livro à
análise do ensaio “Ideologia e terror: uma nova forma de governo”. Esse
ensaio foi publicado originalmente em 1953 e acrescentado como capítulo
nal da segunda edição de Origens do totalitarismo, de 1958. Como o próprio
título indica, nesse texto Arendt busca apresentar o totalitarismo como uma
forma de governo inaudita. Para tanto, ela se baseia na teoria das formas de
Montesquieu, das quais extrai as noções de natureza, princípio de ação, bem
como de experiência fundamental. A novidade do sistema totalitário reete o
Renato de Oliveira Pereira
24 |
fato de que sua natureza, princípio de ação e experiência fundamental jamais
foram utilizadas em política, apesar de serem, naturalmente, conhecidos dos
homens. Com efeito, Hannah Arendt aponta o terror como a essência do
governo totalitário, responsável por executar a lei da natureza (nazismo) ou
da história (stalinismo), e a ideologia enquanto princípio não de ação, mas
de movimento, já que, em termos estritos, as pessoas não agem dentro de um
regime totalitário, mas são capturadas pelo movimento do regime.
Arendt dene a ideologia como a “lógica de uma ideia”, a qual
tem o papel de preparar os indivíduos para o exercício da sua função de
vítima ou de carrasco sem levar em conta as suas convicções e opiniões
pessoais. É na ideologia, pois, que reside o mecanismo que o totalitarismo
utiliza para impedir os homens de pensar por conta própria, uma vez que
a lógica de uma ideia cria um movimento automático que distancia os
homens de seus semelhantes e da realidade. Dessa maneira, os homens
perdem a capacidade de sentir e também de pensar, o que completa o
trabalho do terror em torná-los seres supéruos.
Contudo, ao descobrirmos a ideologia, entendida enquanto
a “lógica de uma ideia”, como o elemento responsável pela produção da
incapacidade de pensar no totalitarismo, somos levados a outro problema:
será que a incapacidade de pensar é uma característica apenas dos regimes
totalitários? Qual a relação da ideologia com a experiência na qual o regime
totalitário se sustenta? Assim, iniciamos nosso terceiro capítulo com o exame
da última parte do ensaio “Ideologia e terror”, na qual Arendt aponta a solidão
(loneliness) como a experiência fundamental na qual o totalitarismo se baseia.
A solidão é experiência de não pertencer ao mundo de forma alguma, o
que representa uma situação em que os seres humanos estão completamente
isolados uns dos outros tanto no domínio público quanto no privado. Há,
pois, uma ruptura total das relações humanas, de modo que os homens
perdem não apenas a capacidade de agir, como ocorre nas tiranias, mas
também a capacidade de pensar e de aprender com a experiência.
Arendt acredita que é a pluralidade humana, ou seja, o fato de
o homem não ser um ser único, mas de existir no plural, que possibilita
a intersubjetividade, que garante as nossas certezas tanto sobre aquilo que
os sentidos revelam acerca do mundo (o que Arendt denomina de senso
comum) quanto acerca de nós mesmos. Em outras palavras, nossa experiência
do mundo depende dos outros seres humanos tanto quanto a nossa própria
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 25
identidade, que só pode ser dada por uma espécie de reconhecimento que o
eu recebe dos outros. Para Arendt, cada ser humano é dual, é um dois-em-
um. Esse dois-em-um se manifesta mais claramente quando, na ausência da
companhia de outro ser humano, pensamos, isto é, realizamos um diálogo
conosco mesmo, o diálogo entre o eu e o mim mesmo. Enquanto realizamos
esse diálogo, isto é, enquanto pensamos, não estamos solitários, mesmo se
estivermos sozinhos, já que estamos na companhia de nós mesmos. Assim,
o contato com o mundo e com os outros seres humanos não é perdido, pois
é como se os outros, a pluralidade humana, estivesse representada por esse
mim mesmo que dialoga com o eu.
O problema, contudo, é quando esse diálogo deixa de ser possível,
de modo que o próprio eu acaba por se perder, já que ele não pode ter sua
identidade reconhecida por outrem. Dessa forma, os seres humanos tornam-
se solitários, perdendo a companhia não só dos outros, mas também de si
mesmos. Por conseguinte, o ser humano deixa de ser capaz de sentir e de
pensar, perde o mundo e o eu ao mesmo tempo, de modo que tudo aquilo
que lhe apareça já não é digno de conança, uma vez que não há mais o
lastro da intersubjetividade, seja externa (relação com os outros homens),
ou seja interna (relação do eu consigo mesmo). É este ser humano solitário,
incapaz de sentir e pensar e, por isso, incapaz de aprender com a experiência,
de conar nos outros e de criar um sentido para a própria vida, que é passível
de ser capturado pelo movimento lógico totalitário.
A capacidade de raciocínio lógico é a única que não precisa nem
do eu nem dos outros para funcionar, de modo que é essa capacidade que
vai ser explorada pelos regimes totalitários. Por deduzir tudo da mesma
premissa, ainda que esta seja a mais absurda possível, os regimes totalitários
são internamente coerentes e, por isso, os homens solitários lhe dão a sua
conança para tentar fugir da realidade da solidão. É uma “fuga suicida”,
como classica Arendt, pois, ao aderir à coerência de uma estrutura vazia que
parte de uma determinada premissa (a superioridade da raça ariana, no caso
do nazismo), os seres humanos tornam-se ainda mais incapazes de pensar e
de agir, o que os faz habitar e viver em uma realidade ctícia e abominável.
Ao mostrar como a solidão é a experiência básica do totalitarismo,
que passa a ser denido como a organização de homens solitários, isto é, como
um modo de imprimir movimento a um deserto de seres humanos solitários,
Arendt revela que a experiência da solidão, já presente nas sociedades de massa,
Renato de Oliveira Pereira
26 |
é aprofundada pelos regimes totalitários. Isso signica que o totalitarismo não
é fruto do acaso, um mero acidente histórico, mas um acontecimento que
só foi possível em função de certas relações estabelecidas na modernidade.
Com efeito, o homem solitário é o típico homem de massa, cuja principal
característica é o desinteresse pela política e a ausência de interesses comuns
a todos os membros da comunidade. Arendt passa, como ressalta Duarte
(2001, p. 251), de uma crítica do totalitarismo para uma crítica da própria
modernidade. Essa mudança de perspectiva também nos leva a mudar o nosso
foco, uma vez que passamos a entender que a incapacidade de pensar também
já estava presente antes da ascensão do totalitarismo. Isso revela que, enquanto
um homem de massa com traços de listeu, isto é, do burguês isolado de
sua classe e preocupado com a sua segurança e sobrevivência, Eichmann era
incapaz de pensar antes mesmo de tornar-se membro da SS.
Deste modo, buscamos indicar, ainda que brevemente, como a
modernidade produz a incapacidade de pensar, ou seja, como as relações
que os seres humanos passam a estabelecer entre si trazem consigo esse
efeito. No próprio ensaio “Ideologia e terror”, Hannah Arendt apresenta
os insights para essa questão ao apontar a possibilidade de redução do ser
humano ao modo de vida do animal laborans na sociedade de massa, ou
seja, o homem enquanto reduzido ao seu aspecto biológico, preocupado
unicamente com a sua sobrevivência. Como esse ensaio foi adicionado
ao livro Origens do Totalitarismo no mesmo ano da primeira edição de A
condição humana, acreditamos que o ensaio cumpre a função de ligar as
duas obras, como uma espécie de ponte que possibilita a passagem dos
problemas em aberto de uma obra para a outra.
Assim, recorremos à obra A condição humana com o intuito de
colhermos algumas pistas de como a modernidade gera condições que são
propícias para a promoção da incapacidade de pensar. Nossa hipótese é
de que a incapacidade de pensar está ligada ao tema da vitória do animal
laborans e às consequências desse acontecimento, como Arendt já anuncia
em “Ideologia e terror”. Também apontamos como a burocracia enquanto
um “governo de ninguém” no interior da modernidade contribui para
a promoção da incapacidade de pensar. Dessa maneira, acreditamos ser
possível notar a emergência da incapacidade de pensar a partir de duas
imagens que não são excludentes, já que a segunda está incluída no quadro
da primeira: Eichmann enquanto homem de massa e enquanto burocrata.
| 27
1
A  J: 
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E
Essa distância da realidade e essa incapacidade de pensar
[thoughtlessness] podem gerar mais devastação do que todos os maus
instintos juntos (ARENDT, 1999, p. 311).
Neste capítulo, apresentaremos a problemática a ser desenvolvida
ao longo deste livro. Para tanto, (1.1) iniciaremos com algumas considerações
acerca da ida de Hannah Arendt ao tribunal de Jerusalém e dos problemas
jurídicos e políticos relativos ao rapto e ao julgamento de Eichmann
realizados pelo Estado de Israel. Em seguida, (1.2) adentraremos nas
impressões e análises losócas de Arendt acerca da gura do ex-tenente-
coronel nazista, as quais levaram a autora a utilizar a sua polêmica noção
de banalidade do mal e relacioná-la com uma ausência ou incapacidade de
pensar (thoughtlessness). Apontaremos, também, como a noção de pensar
é utilizada de maneira bem especíca enquanto o diálogo do eu consigo
mesmo, ideia da qual Arendt se apropria a partir da losoa socrático-
platônica. Por m, (1.3) introduziremos o problema acerca das condições
que dicultam ou prejudicam a capacidade de pensar de indivíduos como
Renato de Oliveira Pereira
28 |
Eichmann e, assim, facilitam a adesão a regimes totalitários, os quais se
pautam e se exercem na exclusão e na eliminação do outro, ou seja, de
indivíduos e grupos considerados como inimigos.
1.1 o JulgAmento
O julgamento de Adolf Eichmann foi um acontecimento
marcante para Hannah Arendt e serviu como uma espécie de fonte para
os problemas que constituíram parte signicativa dos estudos e reexões
da pensadora até o m de sua vida. Ao saber pelos jornais que o Estado
de Israel havia capturado e decidido processar o ex-tenente-coronel da SS,
Arendt sentiu-se tentada a ir a Jerusalém para acompanhar o caso. À sua
amiga Mary McCarthy, ela escreve em uma carta de 20 de junho de 1960:
“[...] estou meio que brincando com a ideia de conseguir que alguma
revista me mande cobrir o julgamento de Eichmann. Muito tentada. Ele
era um dos mais inteligentes do bando. Poderia ser interessante – além
de horrível” (ARENDT; MCCARTHY, 1995, p. 100). Seus amigos,
porém, tentaram dissuadi-la dessa ideia, pois acreditavam que o relato das
crueldades e da violência levadas a cabo pelos nazistas poderia despertar
em Arendt lembranças e sentimentos tristes. O lósofo e psiquiatra alemão
Karl Jaspers (1883-1969), um de seus principais interlocutores e seu
mentor no doutorado, também temia a crítica possivelmente polêmica que
Arendt faria do processo e sugeriu que talvez fosse melhor que a pensadora
guardasse suas análises para si mesma (ADLER, 2007, p. 403).
Mas a pensadora, que não havia participado dos julgamentos de
Nuremberg – nos quais foram processados e condenados muitos partidários
de Hitler que exerciam funções proeminentes durante o Terceiro Reich
–, queria ter a oportunidade de ver um criminoso nazista “em carne e
osso” (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 296). Judia e alemã, Arendt não
vivenciou pessoalmente a situação extrema da Alemanha nazista, pois
fugiu de seu país natal em 1933, após car oito dias na prisão por ter sido
pega com documentos comprometedores sobre a propaganda antissemita
que ela havia reunido para a organização sionista da qual participava.
1
Segundo Laure Adler (2007), ao contrário de amigos e intelectuais como Gershom Scholem e Hans Jonas,
Hannah Arendt jamais defendeu a tese do movimento sionista, segundo a qual os judeus deveriam estabelecer
sua nação na Palestina. Sua ligação com o movimento sionista vinha justamente da proximidade com amigos
sionistas e, sobretudo, de seu forte vínculo e conança com relação a Kurt Blumenfeld, um dos líderes do
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 29
Ela só conseguiu escapar da prisão porque mentiu para o policial que a
interrogou, de modo a convencê-lo de sua inocência (ADLER, 2007, p.
131-132; YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 106-108). Apesar disso, a jovem
Arendt sabia que, caso sua ação fosse julgada, ela poderia voltar à prisão.
A perspectiva de agravamento da perseguição aos judeus em razão
da ascensão de Adolf Hitler ao posto de chanceler em janeiro do mesmo
ano, somada à inquietação de poder ser presa novamente, fez Arendt tomar
a decisão de fugir do país com a sua mãe. Ela passou por Tchecoslováquia
e Suíça até se instalar em Paris, na França. No início da Segunda Guerra
Mundial, Arendt chegou a ser internada no campo de Gurs junto com
outros alemães que também residiam em território francês e que passaram
a ser considerados inimigos em razão da guerra. Ela conseguiu fugir depois
de cinco semanas e, após se reencontrar e se casar com Henrich Blücher,
seu segundo marido, emigrou para os Estados Unidos em 1941 (ADLER,
2007; YOUNG-BRUEL, 1997). Arendt viveu como apátrida até 1951,
quando recebeu a cidadania norte-americana.
Por ter acompanhado a distância os acontecimentos terríveis do
regime nazista, a pensadora encarava a decisão de acompanhar o julgamento
de Eichmann como uma obrigação que ela tinha em relação ao seu próprio
passado, o que a levou a submeter uma proposta para a revista e New
Yorker. De acordo com Young-Bruehl, William Shawn, editor da revista,
recebeu a oferta “[...] com alegria, satisfeito por ter uma correspondente tão
ilustre e bem informada, mais qualicada do que seus prossionais regulares
(1997, p. 295). Garantido o nanciamento para sua ida a Jerusalém, Arendt
tratou de reprogramar seus cursos e outros compromissos, bem como iniciou
seus estudos sobre os aspectos jurídicos do caso.
novo sionismo alemão. No entanto, como lembra Adler, “[...] sob o peso da ascensão do nazismo, a partir
de 1930, ela começa a pensá-lo como engajamento político, arma de sobrevivência, meio de ação e forma de
resistência” (ADLER, 2007, p. 112). A relação de Arendt com o movimento sionista se constituiu enquanto
uma possibilidade de fazer parte de um movimento político judeu no qual ela podia agir, fazer algo concreto
contra o nazismo e o crescente antissemitismo. Isso porque outros movimentos políticos da época, como o
comunista, do qual participou seu primeiro marido, Günther Stern, não se preocupavam com o recrudescimento
do antissemitismo. Arendt se “[...] lembrará após a guerra”, escreve Adler, “das discussões violentas com alguns
comunistas, que pregavam a revolução mundial, colocando como prioridade a luta de classe, negando a ascensão
do antissemitismo. Durante muito tempo, irá maldizer seus camaradas que fecharam os olhos voluntariamente
ao que vinha acontecendo. Para ela, as coisas são claras: se somos atacados como judeus, é como judeus que
devemos nos defender. E não como alemão, cidadão do mundo, nem mesmo em nome dos direitos humanos
(ADLER, 2007, p. 98). Na Alemanha do início dos anos 1930, o movimento sionista aparece para Arendt
“[...] como o único movimento capaz de ajudar os judeus em diculdade e, ao mesmo tempo, alertar a opinião
pública [sobre o perigo representado pelos nazistas]” (ADLER, 2007, p. 113).
Renato de Oliveira Pereira
30 |
O réu, Otto Adolf Eichmann (1906-1962), havia participado
da denominada “Solução Final” para o problema judeu. Durante o
Terceiro Reich, ele chegou a conquistar a patente de tenente-coronel da
SS (Schutzstael, “a tropa de proteção” ligada ao partido nazista alemão e
a Hitler) e tinha como função a organização e a gestão do transporte em
massa dos judeus e de outros grupos para os campos de concentração e
de extermínio. Apesar de seu nome não gurar na lista de acusados nos
julgamentos de Nuremberg (1945-1946), uma testemunha chamada Dieter
Wisliceny, que havia sido subordinado de Eichmann na Eslováquia, citou
o nome do ex-tenente-coronel durante o seu depoimento, indicando-o
como o responsável pela “solução nal” (ADLER, 2007, p. 401).
Para Arendt, Wisliceny pretendia construir com o seu testemunho
um álibi que o livrasse de seus próprios crimes, o que “[...] não lhe valeu
de nada, uma vez que foi extraditado para a Tchecoslováquia e julgado e
executado em Praga [...]” (ARENDT, 1999, p. 163). Ao ser informado do
depoimento de Wisliceny, Eichmann, cujo paradeiro era desconhecido na
época, sentiu-se ameaçado e tomou precauções para não ser encontrado
e julgado. Ele conseguiu fugir para a Argentina, país no qual viveu sob
o nome de Ricardo Klement até ser localizado e sequestrado pelo serviço
secreto israelense, o Mossad, em 1960. Laure Adler detalha bem a trajetória
do ex-tenente-coronel de sua fuga até a sua captura:
Sabe-se hoje qual foi a sua odisseia: feito prisioneiro de guerra pelos
americanos, assume uma nova identidade. Evade-se ao ser informado
sobre o depoimento de Wisliceny. Esconde-se durante quatro dias
no lado ocidental da Alemanha, sob nome falso, foge rumo à Áustria
e à Itália. Em Gênova, um monge franciscano providencia para
ele um falso passaporte para a Argentina, e dois anos mais tarde
ele manda buscar sua família. Em 1957, os alemães comunicam a
informação ao serviço secreto israelense. No mesmo ano, Eichmann
aceita conceder entrevista a um jornalista, um ex-nazista holandês
chamado Sassen. Dois anos mais tarde, um agente israelense localiza
a casa, sem água corrente ou eletricidade, em que Eichmann mora
com a família em um bairro pobre de Buenos Aires. Em 11 de maio
de 1960, Eichmann é preso e trancado em uma casa em Buenos
Aires, onde aceita assinar um texto que lhe foi preparado [...] Em
20 de maio, maquiado e drogado, Eichmann embarca em um avião
israelense com destino a Tel-Aviv (ADLER, 2007, p. 401-402).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 31
O caso gerou muita repercussão porque, além de todos os
problemas e questões legais envolvidas, sobretudo a questão do sequestro,
tinha uma especicidade: tratava-se da primeira vez que um criminoso
nazista seria julgado por um tribunal judaico, ou seja, pelas próprias vítimas
do holocausto. Um segundo processo do tipo só ocorreu novamente após
mais de duas décadas, com o caso de Ivan Demjanjuk, criminoso nazista
que viveu sob o nome de John Demjanjuk nos Estados Unidos até ser
identicado em meados dos anos 1970 pela Divisão de Investigações
Especiais do Departamento de Justiça americano. Demjanjuk vivia
normalmente com a sua família em um subúrbio de Cleveland, no estado
de Ohio, e trabalhava em uma montadora da Ford. Após ser reconhecido,
ele perdeu a cidadania americana e foi deportado para Israel, onde foi
julgado e condenado por crimes de guerra em 1988. A corte, amparada nos
testemunhos de sobreviventes, o identicou como “Ivan, o terrível”, um
violento e cruel algoz que atuava no campo de concentração de Treblinka.
Porém, em 1993 o caso sofreu um revés: na posse de documentos soviéticos
obtidos da antiga Alemanha Oriental após a queda do muro de Berlim, seu
advogado conseguiu anular o julgamento na corte de apelação ao criar
dúvida suciente sobre a real identidade de “Ivan, o terrível”. Segundo os
documentos, o guarda de Treblinka tinha características físicas diferentes
de Demjanjuk e era identicado nos registros como Ivan Marchenko (O
MONSTRO..., 2019).
Com a anulação da sentença, Demjanjuk retornou a Cleveland,
nos Estados Unidos, o que só foi possível porque o processo de retirada
de sua cidadania havia sido anulado em razão da descoberta, feita pelos
seus familiares, de que os agentes da Divisão de Investigações Especiais
não tinham compartilhado com a defesa alguns arquivos que poderiam
favorecer o acusado perante o tribunal de Jerusalém (USHMM, [s. d.]).
Mas, após alguns anos, integrantes dessa mesma divisão entraram em
contato com as autoridades alemãs e conseguiram convencê-las a processar
Demjanjuk na Alemanha, pois, ainda que Demjanjuk não fosse “Ivan,
o terrível”, o julgamento e outras investigações realizadas nos Estados
Unidos haviam mostrado que ele havia atuado como guarda no campo
de concentração de Sobibor por pelo menos seis meses durante o ano
de 1943. Assim, em 2002, Demjanjuk perdeu novamente a cidadania
americana e foi extraditado para a Alemanha, onde foi julgado, desta vez
por cumplicidade com os atos realizados durante o regime nazista. Em
Renato de Oliveira Pereira
32 |
maio de 2011, aos 91 anos, ele foi sentenciado a cinco anos de prisão pela
colaboração na morte de mais de vinte e cinco mil pessoas em Sobibor
(USHMM, [s. d.], s/p; O MONSTRO..., 2019).
O réu morreu em março de 2012, antes de seus recursos serem
julgados, o que fez o caso ser anulado sem uma condenação efetiva.
Contudo, o precedente aberto pelo caso Demjanjuk foi importante para
o julgamento de outros criminosos nazistas, como Oskar Gröning, um
ex-ocial da SS que trabalhava como contador no campo de concentração
de Auschwitz-Birkenau.
2
Gröning foi condenado em 2015, aos 94 anos,
por sua colaboração no assassinato em massa. Ele foi descoberto devido a
uma entrevista que concedeu à BBC na qual relatou suas experiências em
Auschwitz para testemunhar contra grupos que negavam o acontecimento
do holocausto (O CONTADOR..., 2018).
3
Ambos os julgamentos
revelam um esforço tardio por parte do sistema judiciário alemão que,
durante muitos anos, relutou em levar criminosos nazistas a julgamento.
Ao processar criminosos já idosos, após mais de seis décadas da realização
dos crimes, a esperança dos procuradores alemães era estabelecer para o
futuro o entendimento acerca da culpa pessoal de agentes que atuaram em
crimes contra a humanidade, ainda que na condição de cúmplices.
4
De acordo com a Holocaust Encyclopedia, Auschwitz se localizava no sul da Polônia, mas não era um único
campo de concentração, e sim um complexo formado por 48 campos, dos quais 45 eram campos-satélites. Os
três campos maiores eram: Auschwitz I-Stammlager, campo principal que servia de centro administrativo do
complexo; Auschwitz II-Birkenau, um campo de extermínio; e Auschwitz III-Monowitz, que era um campo de
trabalhos forçados, também conhecido como Auschwitz-Buna, por prestar serviços para a fábrica de borracha
Buna-Werke, de propriedade do conglomerado alemão IG Farben (USHMM, [s. d.]).
A memória do holocausto, cujo desrespeito e ignorância é evidente em movimentos contemporâneos que
negam sua ocorrência, era algo de que tanto os prisioneiros quanto os algozes dos campos de concentração tinham
consciência. Primo Levi, judeu italiano e sobrevivente de Auschwitz-Monowitz, lembra que as experiências dos
campos de concentração eram tão cruéis e absurdas que os próprios carrascos sabiam bem que, caso algum
prisioneiro escapasse, o seu testemunho não aparentaria ser crível. Os nazistas transformaram essa possibilidade
em ameaça, e diziam que, na hipótese de restar algum sobrevivente, “[...] as pessoas dirão que os fatos narrados
são tão monstruosos que não merecem conança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão
em nós, que negaremos tudo, e não em vocês” (LEVI, 2004, p. 9). O temor da desconança e do descrédito
do mundo exterior fazia os prisioneiros dos campos ter pesadelos desesperados sobre essa possibilidade, como
descreve Levi: “[...] quase todos os sobreviventes, oralmente ou em suas memórias, recordam um sonho muitas
vezes recorrente nas noites de connamento, variado nos particulares mas único na substância: o de terem
voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida,
e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se
virava e ia embora silenciosamente” (LEVI, 2004, p. 10).
4
A história dos julgamentos de Demjanjuk é relatada na série documental “O monstro mora ao lado” (2019), de
Yossi Bloch e Daniel Sivan, e a de Gröning no documentário “O contador de Auschwitz” (2018), de Matthew
Shoychet.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 33
Em relação ao julgamento de Eichmann, uma das pretensões do
então primeiro-ministro israelense David Ben-Gurion, o responsável por
designar ao Mossad a tarefa de capturar o ex-tenente-coronel da SS, era a de
que o processo em Jerusalém contribuísse para revelar criminosos nazistas
não julgados em outros países, o que, segundo Arendt, foi uma tarefa bem-
sucedida na época. No entanto, para a pensadora, as intenções políticas
do governo de Israel acabavam por fazer do julgamento uma espécie
de espetáculo, com direito a transmissão internacional – interrompida
periodicamente para os anúncios comerciais –, que visava lembrar ao
mundo e, sobretudo, aos mais jovens, todos os males cometidos contra a
comunidade judaica. Com a recordação de tão dolorosa história, deveria
car evidente a importância de Israel enquanto único local seguro para os
judeus (ARENDT, 1999).
Mas Arendt temia essa instrumentalização política de um
processo criminal que, enquanto tal, deveria enfocar os atos do acusado,
e não aspectos e objetivos secundários. Para ela, a atitude do governo
israelense, que no tribunal estava representado pelo procurador-geral
Gideon Hausner, responsável pela acusação, tornou ainda mais difícil o
entendimento das questões legais e das irregularidades que permeavam
o julgamento. No “Epílogo” de Eichmann em Jerusalém,
5
obra publicada
inicialmente em 1963, resultado da série de artigos que a autora escreveu
para a revista e New Yorker em razão de sua ida a Jerusalém, Arendt trata
dos problemas jurídicos do caso e frisa esse aspecto negativo da atitude do
Estado israelense:
O próprio estado de Israel, pelas declarações pré-julgamento do
primeiro-ministro Ben-Gurion e pela maneira como a acusação
foi formulada pelo promotor, confundiu ainda mais as coisas,
arrolando um grande número de objetivos que o julgamento
deveria atingir, os quais eram todos objetivos secundários quanto
à lei e ao comportamento numa sala de tribunal [...] (ARENDT,
1999, p. 275).
O julgamento na Corte Distrital de Jerusalém não foi simples. As
anormalidades e mesmo irregularidades do caso diziam respeito, sobretudo,
às questões legais relativas ao rapto do acusado, uma vez que Argentina e
 Doravante, referida apenas com as letras EJ, em itálico.
Renato de Oliveira Pereira
34 |
Israel não tinham um tratado de extradição – e, enquanto cidadão alemão,
Eichmann só poderia ser extraditado para a Alemanha –, bem como à
complexa natureza do crime, o qual foi cometido em um contexto político
em que as ações do réu não eram consideradas ilegais. Além disso, o Estado
de Israel sequer existia quando os crimes foram perpetrados. Que direito
teria Israel de julgar Eichmann? O julgamento não deveria ser realizado
por uma corte internacional?
Os eventos relativos à captura de Eichmann permitiam à defesa
questionar o direito da Corte Distrital de Jerusalém de processar o ex-
tenente-coronel, já que o réu havia sido levado a julgamento por meio de
um ato que congurava uma clara violação da soberania da Argentina e da
Lei Internacional. Como, a partir de um ato ilegal e criminoso, a Corte
Distrital de Jerusalém esperava estabelecer justiça? Na sentença, a corte
respondeu que, em relação ao seu direito de julgar, o próprio Eichmann
havia escrito uma declaração (que não se sabe se foi escrita de maneira
forçada ou não) na qual reconhecia a competência da corte e aceitava ser
por ela julgado. Arendt observa, porém, que esse documento “[...] embora,
sem dúvida, genuíno, tem uma particularidade: sua data omite o dia em
que foi assinado. A omissão dá margem à suspeita de que a carta foi escrita
não na Argentina, mas em Jerusalém, onde Eichmann chegou em 22 de
maio” (ARENDT, 1999, p. 263).
A corte também frisou na sentença que, em 3 de agosto de 1960,
antes do início do julgamento, os governos da Argentina e de Israel zeram
uma declaração conjunta na qual ambos os Estados deram por encerrado
o incidente que resultou na captura do réu. Isso pareceu ser suciente para
o tribunal. Para Arendt, porém, a corte apenas evitou tocar na questão
da legalidade ou ilegalidade do sequestro de Eichmann, de modo a não
armar nem negar que o rapto tinha sido um ato de Estado. A pensadora
chama a atenção para o fato de que “[...] a Argentina não teria cedido em
seus direitos com tanta disposição se Eichmann fosse cidadão argentino
(ARENDT, 1999, p. 261). Além disso, para todos os efeitos, o acusado
continuava a ser cidadão alemão, mas como ele não havia conseguido asilo
político na Argentina, a República Federal Alemã utilizou esse “[...] bem-
vindo pretexto para suspender a costumeira proteção devida a seus cidadãos
no exterior” (ARENDT, 1999, p. 261). Ou seja, nem a Argentina, nem
a Alemanha – que podia solicitar a extradição – zeram qualquer esforço
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 35
para lidar com a questão do rapto de Eichmann. Com efeito, Arendt
conclui que aquilo que possibilitou ao Estado de Israel contornar conitos
internacionais tanto com a Argentina, que teve seu território violado por
agentes do serviço secreto israelense, quanto com a Alemanha, pátria do
acusado, era o fato de que, na prática, Eichmann se encontrava numa
situação de apátrida:
[...] apesar das páginas e páginas de argumentos legais, baseados
em tantos precedentes, acaba-se com a impressão de que o rapto
estava entre os modos mais frequentes de prisão, e que foi o fato de
Eichmann ser apátrida de fato, e nada mais, que permitiu à corte
de Jerusalém levá-lo a julgamento. Eichmann, embora não fosse
nenhum perito legal, devia ser capaz de avaliar isso, pois ele sabia,
por sua própria carreira, que se podia fazer o que se quisesse com
uma pessoa apátrida; os judeus tinham de perder sua nacionalidade
antes de poder ser exterminados [...] (ARENDT, 1999, p. 261-2).
A condição de “apátrida de fato” do acusado permitiu que Israel
se livrasse de quaisquer processos acerca da violação da Lei Internacional,
bem como possibilitou a realização do julgamento. E a ironia dessa situação,
como nota Arendt, é que os judeus só puderam ser exterminados por se
encontrarem na condição de apátridas, pois, sem um Estado que oferecesse
proteção legal e garantisse seus direitos – e nenhum Estado reclamou os
judeus, nem mesmo o Vaticano –, é como se tais direitos não existissem.
Este é, aliás, o cerne da crítica aos direitos humanos que Arendt analisa no
nal do segundo livro de Origens do totalitarismo:
6
[...] a calamidade que vem se abatendo sobre um número cada vez
maior de pessoas não é a perda de direitos especícos, mas a perda de
uma comunidade disposta e capaz de garantir quaisquer direitos. O
homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem
perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana.
Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade
(ARENDT, 2012, p. 405).
Para Arendt, os direitos humanos tornam-se uma mera cção
para indivíduos que se encontram destituídos da proteção de uma
 Doravante, referido apenas pelas letras OT, em itálico.
Renato de Oliveira Pereira
36 |
comunidade política, de um Estado que possa fazer valer tais direitos para
seus cidadãos. Nesse sentido, a pensadora defende que os direitos humanos
não têm como fundamento a simples existência humana por si mesma,
a qual se daria como uma essência e, como tal, seria capaz de impor o
respeito à dignidade de cada ser humano. Pelo contrário, como mostra a
experiência dos refugiados, dos apátridas e dos sobreviventes dos campos
de concentração e extermínio durante o regime nazista, “[...] o mundo
não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano
(ARENDT, 2012, p. 408). O que retira a dignidade humana não é, pois, a
perda de direitos, e sim a perda da comunidade política e, por conseguinte,
a perda de um lugar no mundo, condição que ainda hoje se expressa na
gura dos refugiados e dos apátridas.
Apesar de ter sido contornada, a questão da captura do Eichmann
é, para Arendt, o único traço sem precedentes do julgamento e, também,
o mais perigoso, pois, como escreve a autora: “o que vamos dizer amanhã
se algum Estado africano resolver mandar seus agentes ao Mississippi para
raptar um dos líderes do movimento segregacionista local? E o que vamos
responder se uma corte de Gana ou do Congo citar o caso de Eichmann
como um precedente?” (ARENDT, 1999, p. 286). No entanto, apesar de
notar a irregularidade e o perigo desse ato, Arendt aponta que a Argentina
tinha o costume de não extraditar criminosos nazistas, de modo que um
pedido de extradição – ainda que houvesse um tratado de extradição entre
Argentina e Israel, o que não era o caso – dicilmente seria atendido. Um
pedido de extradição por parte da República Federal Alemã também seria
incerto, já que pedidos anteriores do governo alemão ao país sul-americano
haviam sido negados.
Arendt lembra que “[...] pela lei argentina, todos os crimes ligados
à última guerra caíram no estatuto da limitação quinze anos depois do nal
da guerra, de forma que, depois de 7 de maio de 1960, Eichmann não
poderia ser extraditado” (ARENDT, 1999, p. 287). Assim, a pensadora
conclui que, do ponto de vista estritamente legal, não havia a possibilidade
de levar Eichmann a julgamento, principalmente em Israel. Nesse sentido,
ela compreende a atitude de Israel como “[...] um ato desesperado, sem
precedentes e incapaz de congurar um precedente, necessário devido à
condição insatisfatória da lei internacional” (ARENDT, 1999, p. 287). E
essa ação desesperada para levar o réu a julgamento só pode ser justicada
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 37
perante a Argentina, a Alemanha e toda a comunidade internacional pelo
fato de a culpa do acusado – e não sua inocência, como nos processos
criminais normais – estar presumida, de modo que o veredicto era
claramente previsível. Arendt comenta que:
Em Israel, como na maioria dos países, uma pessoa que se apresenta
na corte é considerada inocente até prova em contrário. Mas no
caso de Eichmann isso era uma evidente cção. Se ele não fosse
considerado culpado antes de aparecer em Jerusalém, culpado
além de toda dúvida, os israelenses jamais teriam ousado, nem
desejado, raptá-lo; o primeiro-ministro Ben-Gurion, explicando
ao presidente da Argentina, em carta datada de 3 de junho de
1960, por que Israel havia cometido uma “violação formal da
lei argentina”, armou que “foi Eichmann quem organizou o
assassinato em massa [de 6 milhões de pessoas do nosso povo],
numa escala gigantesca e sem precedentes, em toda a Europa”. Ao
contrário das prisões de casos criminosos comuns, onde a suspeita
de culpa tem de ter provas substanciais e razoáveis, mas não além de
toda dúvida – isso é tarefa do julgamento subsequente –, a captura
de Eichmann podia ser justicada, e foi justicada aos olhos do
mundo, tão-somente pelo fato de o resultado do julgamento poder
ser seguramente antecipado (ARENDT, 1999, p. 231).
Na visão de Arendt, a única alternativa ao rapto seria a execução
de Eichmann e o posterior julgamento de seu assassino, como aconteceu
com o caso de Shalom Schwartz, ocorrido em Paris, em 26 de maio de
1926, e o caso do armênio Tehlirian, que aconteceu em Berlim, em 1921.
Nessas condições, o réu seria considerado um herói e o seu julgamento
serviria para trazer à tona toda a história da vítima que, apesar dos crimes
e atos brutais realizados, não podia ser levada ao tribunal. Mas a autora
pondera que o problema dessa alternativa é que os assassinos dos casos
precedentes eram pessoas comuns, e não agentes a serviço de um Estado.
Além disso, Buenos Aires dos anos 1960, onde Eichmann se encontrava,
“[...] não oferecia nem as mesmas garantias, nem a mesma publicidade
para o acusado que Paris ou Berlim ofereciam” (ARENDT, 1999, p. 289).
Em relação à questão da retroatividade da lei, que enfatiza o fato
de que o crime foi cometido em um contexto em que as ações do réu, além
de não serem consideradas ilegais, eram promovidas pelo regime político
Renato de Oliveira Pereira
38 |
vigente, Arendt lembra que essa objeção contra a possibilidade de processar
criminosos nazistas não era nova. Durante os julgamentos de Nuremberg
(1945-1946), cujo escopo era julgar e punir os criminosos de guerra das
forças do Eixo, principalmente os líderes proeminentes da Alemanha
nazista, os advogados de defesa já haviam utilizado esse argumento.
Ademais, a própria instauração do Tribunal Militar de Nuremberg foi
questionada, uma vez que ele foi organizado pelos Aliados, ou seja, pelos
países vencedores da Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos, União
Soviética, Reino Unido e França). Daí, portanto, a alegação, que se
repetia também em Jerusalém, segundo a qual se tratava de uma corte dos
vitoriosos, ou seja, de um tribunal de exceção que não buscava justiça,
mas sim vingança por parte dos vencedores da guerra contra os vencidos.
Arendt observa que essa alegação deveria ser sentida como um peso
maior no julgamento de Jerusalém, pois este não permitiu que a defesa
apresentasse testemunhas (ARENDT, 1999, p. 297).
Como mostra Celso Lafer (1991, p. 167-168), o Tribunal Militar
de Nuremberg constituiu um marco na medida em que se tornou a
primeira corte penal internacional a ser realizada. Para tanto, foi necessário
que os Aliados estabelecessem um estatuto especíco, o que foi feito a
partir do Acordo de Londres, assinado em 1945. De acordo com Lafer, o
referido Tribunal “[...] tinha competência e jurisdição, nos termos do art.
6º de seu estatuto, em relação aos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os
crimes contra a humanidade” (LAFER, 1991, p. 167, grifo do autor). Dos
três crimes previstos, apenas o terceiro tipo era desconhecido até a Segunda
Guerra Mundial – embora seja apenas no estatuto de Nuremberg que os
dois primeiros passassem a congurar como crimes passíveis de punição.
Em relação à concepção de crimes contra a humanidade, Lafer (1991, p.
168) comenta que ela
[...] procurava identicar algo novo, que não tinha precedente
especíco no passado. Representava um primeiro esforço de
tipicar, como ilícito penal, o ineditismo da dominação totalitária,
que pelas suas características próprias – o assassinato, o extermínio,
a redução à escravidão, a deportação, os atos desumanos cometidos
contra a população civil, as perseguições por razões políticas, raciais
e religiosas, para usar termos do art. 6º “c” do Estatuto acima
mencionado – tinha uma especicidade que transcendia os crimes
contra a paz e os crimes de guerra.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 39
Para julgar e punir um tipo de crime que, enquanto era realizado,
não era visto enquanto tal, mas sim como atividades comuns, promovidas
pelo próprio Reich, foi preciso que os Aliados criassem uma tipicação
nova. E essa tipicação só pode ser estabelecida posteriormente à realização
dos crimes, porque estes simplesmente não existiam antes da ascensão dos
regimes totalitários, no caso, o domínio nazista na Alemanha, o qual se
caracteriza como um evento de ruptura. Nesse sentido, a tipicação dos
crimes contra a humanidade tinha o objetivo de “[...] situar no âmbito do
Judiciário a reação dos vencedores aos crimes do nazismo” (LAFER, 1991,
p. 169). É nos julgamentos de Nuremberg, portanto, que se iniciam os
esforços para tipicar o crime de genocídio, o qual era entendido como
crime contra a humanidade. Por esse motivo, a despeito da acusação dos
julgamentos de Nuremberg ser uma corte dos vencedores, Lafer (1991, p.
169) faz uma ressalva:
[...] Se é certa a armação de que as potências vitoriosas criaram
um Direito Internacional Penal ad hoc através do estatuto do
Tribunal, é igualmente válido dizer-se que elas o zeram sem
desvio de poder, pois não incidiram na tentação das represálias e
das violências incontroladas. Esta conquista da consciência jurídica
teve desdobramentos importantes no tempo, pois Nuremberg não
se esgotou nas sentenças de um tribunal ad hoc, mas acabou se
convertendo no momento inicial que levou à armação, no plano
do Direito Positivo, de um Direito Internacional Penal.
Em razão da natureza especíca do crime que se almejava punir,
o tribunal de Jerusalém pode utilizar como precedente os julgamentos de
Nuremberg para responder a objeção da defesa que apontava o caráter
retroativo da lei sob a qual Eichmann foi processado (ARENDT, 1999, p.
276). Arendt acrescenta que a retroatividade da lei
[...] viola apenas formalmente, não substancialmente, o princípio
de nullum crimen, nulla poena sine lege [não há crime, nem
pena, sem lei anterior que os dena], uma vez que este se aplica
signicativamente apenas a atos conhecidos pelo legislador; se um
crime antes desconhecido, como o genocídio, repentinamente
aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei
[...] (ARENDT, 1999, p. 276-7).
Renato de Oliveira Pereira
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Arendt tem em mente que o caráter sem precedentes do genocídio
está ligado ao ineditismo do evento totalitário, que inaugura uma ruptura
com toda a tradição ocidental. Essa ruptura fez com que critérios morais e
jurídicos tradicionais se tornassem inadequados para se pensar e julgar os
crimes levados a cabo nesse sistema, bem como o próprio sistema totalitário
em si. Daí, pois, a necessidade de propor uma nova denição para um
crime inédito, um esforço que se inicia com o estatuto do Tribunal Militar
Internacional de Nuremberg. No entanto, Arendt atenta para algumas
incoerências entre o que estabelecia o estatuto e os julgamentos, como o
fato de os crimes contra a paz serem denidos como o crime internacional
supremo e, não obstante, os juízes de Nuremberg aplicarem
[...] a punição mais severa, a pena de morte, apenas àqueles que
foram considerados culpados de atrocidades bastante incomuns,
que efetivamente constituíam um “crime contra a humanidade
ou, como disse o promotor francês, François de Menthon, com
maior exatidão, um “crime contra o status humano” (ARENDT,
1999, p. 280).
Mas a importância dos princípios estabelecidos no estatuto de
Nuremberg está no fato de, como indica Lafer, a Comissão de Direito
Internacional da ONU ter, a pedido da Assembleia Geral da organização,
sistematizado e reformulado os referidos princípios, de modo a chegar na
forma de alguns artigos acerca do genocídio que, como escreve Lafer, “[...]
converteram-se em normal geral, internacionalmente positivada em hard
law, através da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de
Genocídio, de 11 de dezembro de 1948, que entrou em vigor em 12 de
janeiro de 1951” (LAFER, 1991, p. 169-170).
A partir dessa convenção, da qual Israel era signatário, o genocídio
é denido como crime internacional e implica a responsabilidade criminal
não só dos agentes diretamente envolvidos como também daqueles que
contribuem indiretamente para a sua perpetração, como, por exemplo,
no caso do incitamento e da cumplicidade (LAFER, 1991, p. 171). No
entanto, um aspecto problemático da Convenção para a Prevenção e a
Repressão do Crime de Genocídio é que ela foi construída na condição
de uma norma criminal internacional e, por isso, segundo a lógica que
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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rege o sistema internacional. Com efeito, alguns requisitos jurídicos para
julgamentos penais caram em aberto, como escreve Lafer ( 1991, p. 172):
[...] a convenção não xa a pena – a norma de repressão –, deixando
esta incumbência ou à legislação e aos tribunais competentes em
cujo território o ato foi cometido (é o princípio do forum deliti
comissi), ou então ao tribunal internacional competente em relação
às partes-contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição
(art. VI).
É neste ponto que se ancoram as objeções acerca da competência
da Corte Distrital de Jerusalém, uma vez que, segundo a Convenção de
1948, o crime de genocídio deveria ser julgado e punido pelo Estado em cujo
território o crime foi cometido, em acordo com o princípio de forum deliti
comissi (foro do delito cometido), ou então por um tribunal internacional.
Nos termos da Convenção, Israel não poderia ser considerado o forum
deliti comissi e, portanto, não teria competência para realizar o julgamento,
o que levaria a necessidade de se estabelecer um tribunal internacional para
julgar Eichmann.
Para rebater esse tipo de objeção, os juízes lançaram mão na
sentença do julgamento de três princípios do Direito Internacional
Público, a saber, o princípio da personalidade passiva, isto é, do forum
patriae victimae (foro do país da vítima), o da competência universal, e o
territorial. O primeiro princípio parte da ideia de que o Estado de Israel,
na condição de pátria de parte signicativa do povo judeu, consiste no
forum patriae victimae dos milhões de judeus que sofreram as atrocidades
durante o Terceiro Reich e, por isso, teria competência para julgar os
algozes nazistas. No entanto, Arendt rejeita esse princípio porque entende
que, nele, subjaz a ideia de julgamento como uma espécie de vingança que
as vítimas têm o direito de exercer sobre seus algozes, o que foi explorado
como argumento contra o julgamento: os judeus não queriam justiça, e
sim vingança.
Arendt discorda deste princípio na medida em que compreende
que o objetivo desse tipo de processo criminal não é oferecer compensações
para as vítimas, como no caso de processos civis, e sim estabelecer a justiça
nas condições em que esta pode ser realizada. Ela escreve que “[...] o
malfeitor é levado à justiça porque seu ato perturbou e expôs a grave risco
Renato de Oliveira Pereira
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a comunidade como um todo [...]; é a ordem pública que foi tirada de
prumo e tem de ser restaurada, por assim dizer. Em outras palavras é a lei,
e não a vítima, que deve prevalecer” (ARENDT, 1999, p. 283).
Em relação ao segundo princípio elencado pela Corte Distrital,
o da jurisdição universal, Arendt também o nega devido ao fato de que
ele é utilizado em matéria de pirataria, um tipo de crime clássico que
não se baseia na lei criminosa de um Estado, o que faz a analogia com o
genocídio não ter sentido. Assim, para justicar a competência da corte de
Jerusalém, Arendt aceita o terceiro princípio elencado pela corte, a saber,
o da territorialidade, mas não da maneira como a corte distrital deniu,
e sim a partir de uma posição sui generis: Arendt propõe uma redenição
da noção de território que, para ela, além de ser um conceito geográco,
é também um conceito político e jurídico. Ela acredita que a noção de
território
[...] Diz respeito não tanto, e não primordialmente, a um pedaço de
terra, mas ao espaço entre indivíduos de um grupo cujos membros
estão ligados e ao mesmo tempo separados e protegidos uns dos
outros por todo tipo de relações, baseadas em língua comum,
religião, história comum, costumes e leis. Tais relações se tornam
especialmente manifestas na medida em que elas próprias constituem
o espaço em que os diferentes membros de um grupo se relacionam e
interagem entre si. Nenhum Estado de Israel teria surgido se o povo
judeu não tivesse criado e mantido seu próprio espaço intersticial ao
longo dos muitos séculos de dispersão, isto é, antes da retomada de
seu velho território (ARENDT, 1999, p. 285).
O conceito de território proposto por Arendt tem, como base,
as relações entre as pessoas que constituem um povo e que, por si sós,
estabelecem o espaço de interação entre os indivíduos, o qual é tomado
como uma espécie de condição para a fundação de um Estado – como é
o caso de Israel. Celso Lafer nota que essa noção expandida de território
reete a postura do sionismo na vertente de Bernard Lazare, o qual, ao
contrário da linha de Hertz, seguida majoritariamente, propunha que
“[...] os judeus sionistas deveriam prioritariamente emancipar-se como
povo na forma de nação, e não procurar escapar ao antissemitismo através
da criação de um Estado, como queria Hertz” (LAFER, 1991, p. 175).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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A partir do conceito extensivo de território, Arendt pode justicar a
competência da Corte israelense e, portanto, a não necessidade de um
tribunal internacional para julgar Eichmann, uma vez que outros tribunais
nacionais já tinham julgado criminosos e colaboradores nazistas. Mas,
apesar de aceitar a competência da Corte Distrital, Arendt não aprovava a
“[...] a competência legislativa de Israel e a posição da promotoria que nela
se baseou” (LAFER, 1991, p. 175).
Embora o Estado de Israel fosse signatário da Convenção para
a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, a corte de
Jerusalém não baseou o julgamento de Eichmann nessa convenção, e sim
em uma legislação própria que, de acordo com Lafer, foi constituída a partir
da “[...] legislação penal comum de Israel, combinada com a lei israelense
nº 5710, de 1950” (LAFER, 1991, p. 175). Lafer também lembra que “[...]
a lei israelense, que se inspirou nos princípios de Nuremberg, contemplava
três crimes: crimes contra o povo judeu cometidos no período nazista
(1933-1945); crimes contra a humanidade e crimes de guerra” (LAFER,
1999, p. 175).
É na distinção entre crimes contra o povo judeu e crimes contra
a humanidade que Arendt concentra a sua crítica ao julgamento, uma
vez que tal tipicação acaba por obscurecer o fato de que as atrocidades
levadas a cabo pelo regime nazista, sobretudo nos campos de concentração,
constituíam um crime sem precedentes. Na visão de Arendt, a distinção
presente na legislação israelense apenas corroborou a percepção comum
dos judeus no caráter ubíquo do antissemitismo ao longo da história e, ao
mesmo tempo, gerou diculdades para o julgamento. Escreve a pensadora:
[...] Aos olhos dos judeus, pensando exclusivamente em termos
de sua própria história, da catástrofe que se abateu sobre eles com
Hitler, na qual um terço deles morreu, esse não parecia o mais
recente dos crimes, o crime sem precedentes do genocídio, mas, ao
contrário, o crime mais antigo que conheciam e recordavam [...]
Esse equívoco está na raiz de todos os fracassos e diculdades do
julgamento de Jerusalém. Nenhum dos participantes jamais chegou
a um entendimento claro do horror efetivo de Auschwitz, que é de
natureza diferente de todas as atrocidades do passado, porque foi
considerado pela acusação e pelos juízes como nada mais do que
um horrendo pogrom da história judaica (ARENDT, 1999, p. 290).
Renato de Oliveira Pereira
44 |
Para Arendt, o genocídio dos judeus que ocorreu durante o regime
nazista foi integrado como mais um tópico da longa história de perseguição
aos judeus, de modo a dicultar a percepção de que o extermínio dos
judeus e outros grupos levado a cabo nos campos de concentração não era
apenas algo mais extremo que a perseguição e a expulsão dos judeus de um
determinado país, e sim um crime novo, de natureza diferente de tudo que
já havia acontecido. Já em 1951, no primeiro volume de OT, dedicado
ao antissemitismo, a pensadora havia apresentado essa reexão ao traçar
uma distinção clara entre o antissemitismo moderno e o antissemitismo
tradicional.
Na concepção arendtiana, o antissemitismo tradicional
era baseado em preconceitos religiosos e teológicos, ao passo que o
antissemitismo moderno tem, como cerne, questões políticas que
surgiram a partir da identicação entre os judeus e o Estado moderno.
Essa identicação foi criada em razão do nanciamento que judeus ricos
propiciavam a Estados europeus em um momento no qual a burguesia
ainda não tinha o interesse de dominar mercados externos e, portanto, não
precisava do poder estatal. Mesmo após a perda desse papel de nanciar
o Estado, os judeus mantiveram seus privilégios e, ao mesmo tempo, por
preferirem se manter como um grupo isolado, continuaram sem poder
político, embora inúmeras teses e teorias da conspiração alimentassem a
crença de que eles dominavam secretamente todo o mundo. Esse tipo de
preconceito somado ao descontentamento das classes sociais com o Estado,
o qual era identicado com os judeus, acabaram por criar as sementes para
o antissemitismo moderno que foi apropriado por Hitler no ímpeto de
colocar em prática seu projeto de dominação total (ARENDT, 2012).
De acordo com Arendt, a confusão entre antissemitismo tradicional
e moderno contribuiu para a interpretação equívoca de que o genocídio
não era nada novo, mas sim um crime tal como a discriminação legalizada,
a perseguição e a expulsão em massa, os quais não eram desconhecidos e
ocorreram inclusive na Idade Moderna. Mas, para a pensadora, a novidade
relativa ao destino dos judeus no Terceiro Reich deveria ser compreendida
a partir de um fato especíco:
Foi quando o regime nazista declarou que o povo alemão não só não
estava disposto a ter judeus na Alemanha, mas desejava fazer todo o
povo judeu desaparecer da face da Terra que passou a existir o novo
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 45
crime, o crime contra a humanidade – no sentido de “crime contra
o status humano”, ou contra a própria natureza da humanidade. A
expulsão e o genocídio, embora sejam ambos crimes internacionais,
devem ser distinguidos; o primeiro é crime contra as nações irmãs,
enquanto o último é um ataque à diversidade humana enquanto tal,
isto é, a uma característica do “status humano” sem a qual a simples
palavra “humanidade” perde o sentido (ARENDT, 1999, p. 291).
Arendt entende que, quando os nazistas buscaram eliminar um
grupo inteiro da face da Terra, eles atacaram não só esse grupo, mas também
a própria humanidade, na medida em que a destruição total desse grupo
implica uma perda irreparável para a diversidade humana. A pensadora
esperava que um julgamento com foco nos crimes cometidos contra os
judeus teria a vantagem de explicitar a distinção entre crimes de guerra
e atos desumanos, bem como a diferença desses últimos, que tinham um
propósito criminoso, mas conhecido – como no caso da aniquilação de
populações nativas para a expansão da colonização, por exemplo –, e o crime
contra a humanidade, cujo propósito era sem precedentes (ARENDT,
1999, p. 298). Contudo, a corte em Jerusalém, por se basear na legislação
israelense, foi incapaz de notar as diferenças entre discriminação, expulsão
e o genocídio e, por conseguinte, não entendeu que “[...] o crime supremo
com que se defrontava o extermínio físico do povo judeu, era um crime
contra a humanidade, perpetrado no corpo do povo judeu, e que só a escolha
das vítimas, não a natureza do crime, podia resultar da longa história de
ódio aos judeus e de antissemitismo [...]” (ARENDT, 1999, p. 291-2,
grifo nosso).
O programa de eliminação de milhões de pessoas que foi levado
a cabo, sobretudo, nos campos de concentração e extermínio tratava-se de
um crime inédito. O caráter sem precedentes desse crime assinala, como
observa Celso Lafer, “a especicidade da ruptura totalitária, que pôs o
mundo às avessas” (LAFER, 1991, p. 167). No direito internacional, tais
crimes foram entendidos como um crime contra a humanidade: genocídio.
Mas Hannah Arendt, no “Pós-escrito” de EJ, prefere utilizar a expressão
massacres administrativos”, um termo que provém do imperialismo
britânico que, segundo Arendt, não utilizou esse tipo de procedimento
para manter seu domínio na Índia (ARENDT, 1999, p. 311). Para
a autora, massacres de povos inteiros já ocorriam desde a Antiguidade.
Renato de Oliveira Pereira
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Assim, o uso da expressão massacres administrativos tem “[...] a virtude de
dissipar a suposição de que tais atos só podem ser cometidos contra nações
estrangeiras ou de raça diferente” (ARENDT, 1999, p. 311). Ela continua:
É bem sabido que Hitler começou seus assassinatos em massa
brindando os “doentes incuráveis” com “morte misericordiosa”,
e que pretendia ampliar seu programa de extermínio se livrando
dos alemães “geneticamente defeituosos” (os doentes do coração
e do pulmão). Mas à parte isso, é evidente que esse tipo de morte
pode ser dirigido contra qualquer grupo determinado, isto é, que o
princípio de seleção é dependente apenas de fatores circunstanciais
[...] (ARENDT, 1999, p. 311-312).
A percepção comum dos judeus acerca de sua história bem como
a indução a esta crença que a legislação israelense promovia ao distinguir
crimes contra a humanidade e crimes contra o povo judeu obscureceram
o caráter inaudito do massacre do qual os judeus foram vítimas. Na visão
de Arendt, esse fato fez o julgamento de Eichmann trazer à tona uma série
de equívocos e diculdades tanto para os juízes quanto para o promotor
do caso. Arendt critica veementemente este último pelo tipo condução que
ele tentou impor ao processo e pelo caráter teatralizado de seus discursos
no tribunal. Ela aponta o caráter excessivamente retórico e teatral do
procurador desde o início do julgamento, quando Hausner inicia seu
discurso preliminar, que durou mais de dez horas, com a seguinte frase:
“Quando me ponho diante dos senhores, juízes de Israel, nesta corte, para
acusar Adolf Eichmann, eu não estou sozinho. Aqui comigo neste momento
estão 6 milhões de promotores. Mas eles não podem levantar o dedo
acusador na direção da cabine de vidro e gritar j’accuse [...]” (ARENDT,
1999, p. 283). A pensadora também demonstra descontentamento com
os olhares que ele trocava com a plateia, os quais revelam uma espécie de
vaidade que atinge o clímax quando Hausner recebe os cumprimentos do
presidente dos Estados Unidos pelo “belo trabalho”.
7
Outros observadores do julgamento tiveram uma impressão diferente do procurador. Laura Adler relata que,
ao nal das dez horas do discurso inicial em que Hausner reconstituiu o passado das vítimas e o massacre de
mais de um milhão de crianças judias, os “[...] jornalistas chora[ra]m em silêncio. Foi um momento inesquecível
para todas aquelas e aqueles que estavam presentes. Haïm Gouri, repórter para o jornal israelense Lamerhav
e professor, conta que, no desfecho do discurso de Hausner, estava tão emocionado que não podia falar para
dizer o que sentia, e que, quando voltasse à sua escola, leria poemas para os seus alunos a m de tentar reduzir a
distância que o separava de si mesmo, tamanha era a força com que o choque afetivo o tinha dividido em dois
(ADLER, 2007, p. 409).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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Arendt observa que, ao longo do julgamento, as testemunhas de
acusação falavam de coisas horrendas e verdadeiras, mas que tinham pouca
ou nenhuma ligação com os feitos de Eichmann. Toda a linha de acusação
do procurador-geral Hausner parecia não focar naquilo que o ex-tenente-
coronel da SS havia feito, pelo contrário:
“Não é um indivíduo que está no banco dos réus nesse processo
histórico, não é apenas o regime nazista, mas o antissemitismo ao
longo de toda a história”. Foi esse o tom estabelecido por Ben-
Gurion e seguido elmente pelo sr. Hausner, que começou o seu
discurso de abertura (que durou três sessões) com o faraó do Egito
e com o decreto de Haman de “destruir, matar, e fazê-los perecer
(ARENDT, 1999, p. 30).
Colocar o antissemitismo no centro de um processo criminal era
uma estratégia problemática para o julgamento, pois, além de reforçar a
crença na ubiquidade do antissemitismo, também implicava a normalização
do massacre dos judeus realizado por não judeus. Robert Servatius,
o advogado de defesa de Eichmann, chegou a aproveitar desse ponto
perigoso ao sugerir uma interpretação dos martírios sofridos pelo povo
judeu ao longo da história que se aproximava da orientação antissemita dos
protocolos dos Sábios de Sião – um documento falsicado que revelava a
conspiração de judeus e maçons em um projeto de dominação mundial
pautado na destruição do mundo ocidental – pronunciada pelo ministro do
exterior egípcio Hussain Zulcar Sabri. A pensadora relata a interpretação
de Servatius:
Hitler era inocente da matança dos judeus; ele era uma vítima
do sionismo, que o levara a “perpetrar crimes que acabariam por
permitir que eles atingissem o seu objetivo – a criação do Estado
de Israel”. Só que o dr. Servatius, adotando a losoa da história
exposta pelo promotor, pusera a História no lugar geralmente
reservado aos Sábios de Sion (ARENDT, 1999, p. 31).
Com base numa visão distorcida dos processos históricos, a defesa
tentou incutir a ideia perigosa de que Eichmann, assim como Hitler, não
passaria de um inocente executor de um misterioso destino predeterminado
e, por esse motivo, poderia ser, de certo modo, perdoado. Nesse sentido, a
Renato de Oliveira Pereira
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tentativa da promotoria em colocar o antissemitismo ao longo da história
no centro do julgamento, de modo a absorver o massacre que os judeus
sofreram durante o regime nazista como apenas mais um capítulo da
história do antissemitismo, era uma estratégia contraproducente, pois
oferecia substância para a defesa do acusado. Ao longo de EJ, Arendt
critica a linha de argumentação da promotoria e enfatiza que o tribunal
tinha em suas mãos uma única tarefa, a saber, o estabelecimento de um
veredicto para Eichmann em razão daquilo que ele fez: “[...] em juízo estão
os seus feitos, não o sofrimento dos judeus, nem o povo alemão, nem
a humanidade, nem mesmo o antissemitismo e o racismo” (ARENDT,
1999, p. 15). No “Epílogo” de EJ, a pensadora salienta essa ideia:
O objetivo de um julgamento é fazer justiça, e nada mais; mesmo
o mais nobre dos objetivos ulteriores – “compor um registro do
regime hitlerista que sobrevivesse à história”, como Robert G.
Storey, advogado executivo dos julgamentos de Nuremberg,
formulou como suposto objetivo dos julgamentos de Nuremberg
– só pode deturpar a nalidade principal da lei: pesar as acusações
contra o réu, julgar e determinar o castigo devido (ARENDT,
1999, p. 275).
Na visão de Arendt, até mesmo o objetivo secundário, embora
nobre, de utilizar processos criminais para construir uma memória histórica
dos acontecimentos acaba por perverter as nalidades da própria lei. Por
esse motivo, a pensadora elogia a conduta dos juízes, principalmente
Moshe Landau, o juiz-presidente. Em contraste com o “amor pela
teatralidade” que a pensadora enxerga nas atitudes do procurador Hausner,
e com o caráter lacônico de Robert Servatius, advogado do réu, que não
questionava pontos muito frágeis da acusação, Arendt considera que os
juízes trabalharam como éis servidores da justiça, nos limites em que
ela é humana e juridicamente possível por meio dos procedimentos de
um tribunal. A conduta irrepreensível dos juízes também é notada pela
pensadora nas duas primeiras seções da sentença de Eichmann, nas quais
eles esclarecem que a corte não pode ter nenhum propósito mais alto do
que julgar os atos do indivíduo que se apresenta como réu: “[...] ela [a corte]
não só não tem a seu dispor ‘os instrumentos necessários à investigação de
questões mais gerais’, como fala com uma autoridade cujo próprio peso
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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depende dessas limitações. ‘Ninguém nos fez juízes’ de coisas externas ao
reino da lei [...]” (ARENDT, 1999, p. 276).
1.2 um novo tipo de mAl
Logo no início dos trabalhos do tribunal, uma atitude incomum
chamou a atenção de Arendt: Eichmann se declarava “inocente, no sentido
da acusação” e negou durante todo o julgamento o cometimento de
qualquer assassinato.
8
Por outro lado, ele não discordou de que havia agido
conscientemente, isto é, o réu sabia que a morte era o destino dos judeus
que ele se encarregava de embarcar rumo aos campos de concentração e
extermínio durante o domínio nazista. Nas palavras da pensadora,
A atitude de Eichmann era diferente. Em primeiro lugar, a acusação
de assassinato estava errada: “Com o assassinato dos judeus não tive
nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não-judeu – nunca
matei nenhum ser humano. Nunca dei ordem para matar fosse
um judeu, fosse um não-judeu; simplesmente não z isso”, ou,
conforme conrmaria depois: “Acontece [...] que nenhuma vez eu
z isso” – pois não deixou nenhuma dúvida de que teria matado o
próprio pai se houvesse recebido ordem nesse sentido (ARENDT,
1999, p. 33).
A opinião corrente sobre Eichmann e outros criminosos nazistas
– não apenas das pessoas em geral, mas também de intelectuais e políticos
É interessante destacar que Arendt não acompanhou o julgamento na íntegra. O julgamento começou no dia
12 de abril de 1961. Arendt permaneceu em Jerusalém até o dia 6 de maio e chegou a acompanhar o início da
segunda fase do julgamento, na qual começaram os depoimentos das testemunhas que tratavam das mortes em
série. Em sua biograa sobre a pensadora, Laure Adler relata que Arendt “[...] não ouviu a totalidade dos relatos
dos sobreviventes nem dos resistentes. Não ouviu a defesa de Eichmann e não estava presente nem no momento
da sentença nem no do anúncio da execução. Na realidade, ao contrário de Léon Poliakov [historiador russo
radicado na França, especialista no tema do holocausto] e Haïm Gouri [jornalista, poeta e escritora israelense],
que o acompanharam do início ao m e acabaram transtornados, ela mantém com o próprio desenrolar do
processo uma relação essencialmente intelectual. Não trabalha com sua emoção e com a memória desse momento
inesquecível, mas com textos. Desse processo, longo curso de histórias de sobreviventes que dão testemunho do
indizível pela primeira vez desde o m da guerra no recinto de um tribunal, ela não viveu tudo” (ADLER,
2007, p. 431-432, grifo nosso). Apesar de não ter acompanhado os trabalhos da corte na íntegra, Arendt leu as
transcrições de todo o julgamento, bem como outros documentos e artigos relativos ao processo. Atualmente,
as transcrições do julgamento de Jerusalém estão disponibilizadas, em inglês, pelo Projeto Nizkor (em
hebraico, “vamos lembrar”), o qual busca difundir documentos e evidências a m de combater movimentos de
revisionismo histórico que negam o holocausto. As transcrições do caso Eichmann estão disponíveis em: http://
www.nizkor.com/hweb/people/e/eichmann-adolf/transcripts/. Acesso em: 24 mar. 2020.
Renato de Oliveira Pereira
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importantes – era a de que eles pareciam menos com seres humanos e mais com
monstros, criaturas malécas, sádicas, que se regozijavam enormemente com
a prática do mal. Entretanto, durante o julgamento, Arendt não conseguiu
vislumbrar na gura do acusado a encarnação do mal – e mesmo a hipótese
de que ele teria alguma patologia mental, o que inviabilizaria a realização
do processo judicial, foi descartada por uma junta de médicos psiquiatras
(ARENDT, 1999, p. 37). Diferentemente de suas próprias expectativas –
“Ele era um dos mais inteligentes do bando” (ARENDT; MCCARTHY,
1995, p. 100) –, Eichmann lhe pareceu uma pessoa comum, que carecia
tanto de traços distintivos quanto de fortes convicções ideológicas; alguém
que não se caracterizava nem pela burrice, nem pela inteligência. Suas falas,
carregadas pelo jargão ocial e pelos clichês, muitas vezes não faziam nenhum
sentido no contexto em que ele as usava, de modo que, como observa Arendt,
apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse
homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não suspeitar que fosse um
palhaço” (ARENDT, 1999, p. 67).
Arendt (2017, p. 17-18) compreende que a tradição do
pensamento literário, teológico e losóco ocidental tende a considerar o
fenômeno do mal como algo ligado a uma natureza humana supostamente
defeituosa ou corrompida. Inclinada para o mal, tal natureza se expressaria
na realização de atos moralmente reprováveis cuja motivação estaria
relacionada com sentimentos ruins e apetites imoderados, como a inveja,
o orgulho, o ódio exacerbado, a busca pela satisfação de desejos a qualquer
custo e até mesmo o desejo de ver o outro sofrer (sadismo). Na perspectiva
judaico-cristã, os homens seriam instigados a realizar o mal por um ser
maligno: o demônio. Ao ter sua vaidade e seus desejos mais censuráveis
instigados pelo diabo, os seres humanos são tentados a realizá-los, de modo
a desviar do reto caminho moral e, assim, a incorrer no erro, a cometer
pecados, a praticar o mal.
As tentações são quase irresistíveis porque a prática do mal
aparece como prazerosa e até como vantajosa para os seres humanos na
medida em que geralmente representa a realização de paixões e desejos
arraigados. Abdicar da prática do mal é, nesse sentido, algo penoso para
os seres humanos, daí, pois, a súplica presente no nal da oração do
pai-nosso descrita em Lucas (11.4): “E não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do mal.” Apenas com o auxílio divino é que o ser humano
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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poderia tornar-se capaz de resistir às tentações e, desse modo, escapar do
mal. Mesmo quando acreditam que há um benefício superior atrelado à
prática de boas ações, os seres humanos ainda estão sujeitos a fazer o mal,
dado o caráter quase irresistível que as tentações exercem sobre eles. Com
efeito, é possível conceber a tentação como uma propriedade inerente à
prática do mal.
Mas não foi esse tipo de mal que a pensadora observou em
Eichmann. O ex-tenente-coronel nazista não se sentia um monstro, o que
fez Arendt supor que o réu talvez tivesse se declarado culpado se a acusação
fosse não de assassinato, mas sim a de cúmplice de um assassinato. Poderia
ele, no entanto, ter agido diferentemente? Para além disso, ele gostaria
de ter agido de outra maneira, de não ter embarcado milhões de seres
humanos para um destino mortal? Ele se arrependia do que tinha feito?
Não. Eichmann se recusava a demonstrar arrependimento. O acusado
considerava que os tempos haviam mudado e que as circunstâncias
vivenciadas durante o Terceiro Reich eram muito diferentes, de modo que
“[...] ele não queria ser um daqueles que agora ngiam que ‘tinham sido
sempre contra’ [o regime], quando na verdade estavam muito dispostos
a fazer o que lhes ordenavam” (ARENDT, 1999, p. 36). Assim, o antigo
tenente-coronel da SS não pretendia negar o que fez outrora, “[...] ao
contrário, propunha ‘ser enforcado publicamente como exemplo para todos
os antissemitas da Terra’. Com isso, não queria dizer que se arrependia de
alguma coisa: ‘Arrependimento é para criancinhas’” (ARENDT, 1999, p.
36). Apesar de não se sentir um monstro e de não se arrepender de seus
feitos, Eichmann tentou fazer de si mesmo um bode expiatório para redimir
os jovens alemães do sentimento de culpa que carregavam em relação ao
passado de seu país. Na perspectiva de Arendt, esta é uma das explicações
para o fato de o acusado ter cooperado integralmente no interrogatório
anterior ao julgamento.
Ao contrário do que o promotor tentou provar ao longo do
julgamento, o acusado nem mesmo se considerava um antissemita. A
pensadora nota que o seu caso não era “[...] de um fanático antissemitismo
ou de doutrinação de um ou outro tipo. ‘Pessoalmente’, ele não tinha nada
contra os judeus; ao contrário, ele tinha ‘razões pessoais’ para não ir contra
Renato de Oliveira Pereira
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os judeus” (ARENDT, 1999, p. 37).
9
Evidentemente essas razões pessoais
para não ir contra os judeus – que ele não esclareceu quais seriam – não eram
fortes o suciente para fazer com que ele se opusesse aos partidários do mais
exacerbado antissemitismo. Isso mostra que Eichmann era profundamente
indiferente ao que acontecia com os judeus no regime nazista e que, muito
provavelmente, ele teria agido de forma completamente distinta em outro
momento histórico.
Essa constatação tornava o julgamento mais complexo, pois o
que zera o acusado senão cumprir as ordens recebidas de seus superiores?
De fato, uma de suas maiores preocupações, senão a principal, era o
cumprimento do que ele considerava ser o seu dever: “[...] ele se lembrava
perfeitamente de que só cava com a consciência pesada quando não fazia
aquilo que lhe ordenavam – embarcar milhões de homens, mulheres e
crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado
(ARENDT, 1999, p. 37). Executar com precisão as ordens dadas por
Hitler, as quais tinham força de lei durante o Terceiro Reich, parecia ser a
principal motivação das ações de Eichmann, as quais – como discutimos
no tópico anterior (1.1) – só podiam ser consideradas crimes em uma visão
retrospectiva, isto é, após a queda do regime. Na Alemanha sob o poder
dos nazistas, as ações realizadas pelo réu estavam amparadas na ideologia
política hegemônica e na legalidade vigente.
10
Por essa razão, o réu se apresentava perante o tribunal como um
cidadão respeitador das leis de sua pátria, preocupado em cumprir com
zelo os seus deveres e, assim, progredir em sua carreira. Eichmann almejava
reconhecimento social, sucesso, e, no interrogatório prévio ao julgamento,
Em 2011, a lósofa alemã Bettina Stangneth publicou o livro Eichmann vor Jerusalém: Das unbehelligte
Leben eines Massenmörders (Eichmann antes de Jerusalém: a vida não examinada de um assassino de massas),
no qual ela analisa com rica documentação os anos em que Eichmann estava foragido na Argentina. De acordo
com o historiador britânico Richard J. Evans (2014), a visão de Hannah Arendt acerca do ex-tenente-coronel
nazista é questionada no livro e a autora conclui que Eichmann havia planejado bem a maneira como queria
aparecer perante o tribunal. No entanto, ainda que a visão de Arendt esteja equivocada e que Eichmann
tenha sido, de fato, um antissemita convicto e um fervoroso partidário do nazismo, acreditamos que é a partir
dessa perspectiva que Arendt pôde abrir uma via de problematização fecunda sobre a questão da ausência ou
incapacidade de pensar nos regimes totalitários e de como esse aspecto acaba sendo utilizado como sustentáculo
para esses mesmos regimes – e, se pudéssemos ampliar o escopo desta obra, para os regimes políticos em geral.
Por esse motivo, consideramos a interpretação de Hannah Arendt para o caso Eichmann cientes de seu possível
equívoco, mas convencidos da fecundidade de sua reexão e dos problemas losócos reais que ela suscita
10
A legalidade vigente durante o regime nazista não emanava da Constituição da República de Weimar que,
como veremos no capítulo seguinte (seção 2.2), os nazistas não cumpriam e não se preocuparam em abolir, mas
sim das palavras do Führer, as quais tinham, na prática, força de lei.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 53
ele se lamentou por conseguir alcançar apenas a patente de tenente-
coronel. Aliás, era esse o tipo de distinção social que o acusado admirava
em Hitler, pois, embora ele até concedesse que o líder nazista tinha agido
de maneira errada, continuou a enfatizar a gura de Hitler sob a insígnia
do sucesso que tanto lhe fascinava e atribuía sentido à sua obediência: “[...]
uma coisa está acima de qualquer dúvida: esse homem conseguiu abrir seu
caminho de cabo lanceiro do Exército alemão até Führer de um povo de
quase 80 milhões [...] Bastava o seu sucesso para me provar que eu devia
me subordinar a esse homem” (ARENDT, 1999, p. 143).
Em um momento do interrogatório policial e no tribunal, o
acusado chegou a invocar de maneira enfática, para o espanto de Arendt e
de pelo menos um dos juízes, o imperativo categórico de Kant para dizer
que conduziu a sua vida segundo a noção kantiana de dever. Arendt, porém,
o recrimina, uma vez que “[...] a losoa moral de Kant está intimamente
ligada à faculdade do juízo do homem, o que elimina a obediência cega
(1999, p. 153). Mas, desde a denominada Conferência de Wannsee,
reunião que aconteceu nesse bairro de Berlim em janeiro de 1942 e que
visava angariar apoio por parte de todo o aparelho estatal na aplicação da
denominada Solução Final para o problema judeu – não apenas a expulsão
e a concentração, primeira e segunda soluções, mas o extermínio –, as
dúvidas de Eichmann acerca do terrível destino dos judeus haviam sido
dissipadas.
Durante a reunião, o acusado percebeu que os seus próprios
superiores e toda a burocracia de Estado não só não questionavam as
ordens recebidas, como também não apresentavam nenhum problema de
consciência acerca dessa violenta e radical solução. Pelo contrário, eles até
concorriam entre si para tomar a dianteira da referida política de extermínio.
Como ele poderia, então, pensar diferente de todos ao seu redor? Quem
era ele para ousar questionar o que havia sido decidido? Como Pôncio
Pilatos, o tenente-coronel da SS eximiu-se da necessidade de julgar, bem
como da culpa e da responsabilidade pelo que acontecia: “lavou as suas
mãos”. Em seu relato, Arendt (1999, p. 130, grifo da autora) detalha:
Ali, naquela conferência, as pessoas mais importantes tinham
falado, os papas do Terceiro Reich.” Agora ele podia ver com os
seus próprios olhos e ouvir com os próprios ouvidos não apenas
Hitler, não apenas Heydrich [diretor do escritório de segurança do
Renato de Oliveira Pereira
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Reich] ou a “esnge” Müller [líder da Gestapo], não apenas a SS e
o partido, mas a elite do bom e velho serviço público disputando
e brigando entre si pela honra de assumir a liderança dessa questão
sangrenta”. “Naquele momento, eu tive uma espécie de sensação
de Pôncio Pilatos, pois me senti livre de toda culpa.Quem
haveria de ser o juiz? Quem era ele para “ter suas próprias ideias
sobre o assunto”? Bem, ele não era o primeiro nem o último a ser
corrompido pela modéstia. ).
Modéstia é como a pensadora denomina, de forma irônica, a
atitude politicamente cômoda de não questionar as ordens recebidas, a
recusa em julgar os acontecimentos e fazer o mal simplesmente porque os
outros também o fazem. Tendo sempre sobre si a cobertura de um superior
que, como ele, se recusava a questionar as ordens e a julgar as ações do
regime, o acusado considerou que deixou de ser senhor de si mesmo a
partir do momento em que tomou parte na Solução Final: ele passou a
se considerar um mero dente da engrenagem. Para Eichmann, já não era
mais possível fazer algo para mudar as coisas e viver segundo o imperativo
categórico kantiano. Todavia, Arendt entende em sua análise que o réu,
em vez de deixar de seguir o imperativo categórico, passou a viver de
acordo com uma versão distorcida que pode ser expressa na sentença: “[...]
aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da
legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o ‘imperativo
categórico do Terceiro Reich’ [...]: ‘Aja de tal modo que o Führer, se souber
de sua atitude, a aprove” (ARENDT, 1999, p. 153).
Eichmann era tão rígido com o cumprimento de seu dever
que ele se sentia incomodado e entrava em conito aberto com os seus
superiores imediatos quando estes, próximo à derrota nazista, passaram
a fazer mais acordos para liberar judeus economicamente privilegiados e
defendiam o m da Solução Final – não tanto por convicção, mas no caso
de Heinrich Himmler, chefe da polícia alemã e líder da SS, para que, frente
à posterior queda do regime nazista, ele pudesse ser visto como alguém que
tentou ajudar os judeus, de modo a ter atenuada uma eventual punição
(ARENDT, 1999, 154-155).
A rigidez que o acusado tinha com os seus superiores era a mesma
que ele tinha para consigo mesmo. Isso chama a atenção de Arendt, pois
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 55
é esperado que uma pessoa que pratique o mal o faça por ter caído em
tentação, por ter seguido os seus impulsos, e não por ter seguido as regras.
Mas Eichmann, nesse sentido especíco, era uma pessoa praticamente
incorruptível, que não estava disposto a cair em tentações. Aliás, ele
demonstrou profundo desconcerto ao confessar que havia, em duas
ocasiões, intercedido para salvar judeus. Do ponto de vista do acusado,
salvar seu primo meio-judeu e, a pedido de seu tio, um casal judeu de
Viena representava uma grande incoerência com o seu dever, o que lhe
causava um desconforto que chocou os juízes, como descreve Arendt
(1999, p. 154):
Essa atitude intransigente em relação aos seus deveres assassinos
condenou-o mais do que qualquer outra coisa aos olhos dos juízes,
o que era compreensível, mas aos seus próprios olhos era exatamente
ela que o justicava, assim como antes silenciara a consciência que
pudesse lhe restar. Sem exceções – essa era a prova de que ele havia
sempre agido contra seus “pendores”, fossem eles sentimentais ou
inspirados por interesse, em prol do cumprimento do dever.
Eichmann tentava evidenciar ao tribunal que a sua participação
em atividades que contribuíram para a efetivação de atos de violência
extrema, como o extermínio dos judeus – ou seja, a prática do mal –,
não resultava de suas inclinações, de seus interesses ou de algum desvio
de conduta que o levou a cair em tentação. Pelo contrário, ele tentava
provar que todos os seus atos foram realizados em razão daquilo que se
esperava dele enquanto um funcionário exemplar, o que implicava abrir
mão tanto de seus impulsos e interesses egoístas quanto daquilo que sua
própria consciência lhe dizia para, simplesmente, obedecer às ordens
de seus superiores. No entendimento do acusado, cumprir o dever em
detrimento de suas próprias inclinações justicava o que ele tinha feito e,
por conseguinte, comprovava a sua inocência – ao menos no sentido da
acusação.
Arendt lembra que outros criminosos nazistas também recorreram
a essa justicativa durante os julgamentos de Nuremberg. Porém, ela
defende que, ao contrário de Eichmann, as alegações desses criminosos “[...]
podiam ser descartadas mais facilmente porque combinavam o argumento
da obediência a ‘ordens superiores’ com várias bazóas sobre ocasionais
Renato de Oliveira Pereira
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desobediências” (ARENDT, 1999, p. 299). Ao tentar explorar alguns
episódios nos quais haviam desobedecido às ordens para ajudar os judeus,
os referidos criminosos nazistas ofereciam indícios de que era possível agir
de forma diferente daquilo que lhes era ordenado. Tais indícios estavam em
agrante contradição com o argumento de obediência às ordens superiores,
do qual eles se utilizavam para justicar as suas práticas criminosas. Por isso,
era fácil constatar a má-fé dos acusados nesse caso e desconsiderar o seu
argumento. Por outro lado, comprovar a má-fé de Eichmann se mostrava
uma tarefa mais complexa, posto que ele não se orgulhava dos episódios
em que tinha se desviado ligeiramente de seu dever.
De todo modo, cumprir o dever é uma justicativa que choca e
parece uma fantasia bem inventada para muitos, mesmo quando se trata
de crimes cometidos em um regime cujos atos terríveis são promovidos
pelo próprio Estado. Ao contrário de Arendt, o tribunal em Jerusalém
desconsiderou prontamente a versão de Eichmann e preferiu acreditar que
ele era mentiroso, pois o contrário criava um dilema: como acreditar que
uma pessoa normal pode, conscientemente, contribuir para a prática de
ações terríveis sem que isso seja o seu objetivo, sem que ela, de algum
modo, não queira isso? Como aceitar que tarefas criminosas que ocasionam
o mal a pessoas inocentes possam ser executadas com diligência por alguém
que apenas deseja obedecer à lei? A pensadora relata a atitude do tribunal
perante tal problema:
Claro, ninguém acreditou nele. O promotor não acreditou, porque não
era essa a sua função. O advogado de defesa não lhe prestou atenção
porque, ao contrário de Eichmann, ele não estava, aparentemente,
preocupado em questões de consciência. E os juízes não acreditaram
nele, porque eram bons demais e talvez também conscientes demais das
bases de sua prossão para chegar a admitir que uma pessoa mediana,
normal”, nem burra, nem doutrinada, nem cínica, pudesse ser
inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado. Eles preferiram
tirar das eventuais mentiras a conclusão de que ele era um mentiroso
– e deixaram passar o maior desao moral e mesmo legal de todo o
processo. A acusação tinha por base a premissa de que o acusado,
como toda “pessoa normal”, devia ter consciência da natureza de seus
atos, e Eichmann era efetivamente normal na medida em que “não era
uma exceção dentro do regime nazista”. No entanto, nas condições do
Terceiro Reich, só se podia esperar apenas que as “exceções” agissem
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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normalmente”. O cerne dessa questão, tão simples, criou um dilema
para os juízes. Dilema que eles não souberam nem resolver, nem evitar
(ARENDT, 1999, p. 38).
A corte de Jerusalém considerou as justicativas oferecidas
por Eichmann como uma mentira, uma vez que não podia admitir que
uma pessoa normal fosse incapaz de distinguir o certo do errado e de
perceber a natureza de seus próprios atos. Se isso fosse possível, então o
julgamento não poderia ocorrer. O tribunal partia do pressuposto de que
Eichmann, como todo ser humano normal, era capaz de distinguir o certo
do errado e, por isso, podia ter se comportado de outra forma, ainda que
agir corretamente implicasse a desobediência às ordens recebidas de seus
superiores e, no limite, do próprio Hitler. Mas o que intriga Arendt é o
fato de o ex-tenente-coronel nazista não ser uma exceção nas condições
do Terceiro Reich, de modo que a corte exigia do acusado um tipo de
atitude que a maior parte da sociedade alemã não teve. Embora tal fato não
impedisse a condenação do réu, ele certamente fazia emergir problemas
difíceis de serem enfrentados.
Não obstante, muitos intelectuais, ligados ao judaísmo ou não,
bem como a opinião pública em geral estavam de acordo com a convicção
do tribunal acerca do caráter mentiroso das justicativas oferecidas por
Eichmann. Primo Levi (1919-1987), judeu italiano que, após sobreviver
ao campo de Auschwitz-Monowitz, dedicou sua vida ao testemunho
das experiências que viveu no campo, insere-se nesse debate com uma
interessante posição. Em Os afogados e os sobreviventes, livro publicado
originalmente em 1986, Primo Levi atribui grande importância às
motivações e justicativas apresentadas nos julgamentos, entrevistas e
mesmo nos livros de memórias de pessoas que cometeram crimes horrendos
(não só nazistas). Isso porque a descrição que os opressores oferecem acerca
do horror que praticaram condiz, em geral, com o relato das vítimas, de
modo que toda a atenção acaba por se voltar às seguintes indagações: “por
que você fez isso? Você se dava conta de que cometia um delito?” (LEVI,
2004, p. 21). Para Levi, as respostas dadas a essas questões são muito
parecidas:
Expressas com formulações diversas, e com maior ou menor
insolência segundo o nível mental e cultural de quem fala, elas
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terminam por dizer substancialmente a mesma coisa: z porque
me mandaram; outros (meus superiores) cometeram ações piores
que as minhas; dada a educação que recebi e dado o ambiente
em que vivi, não podia fazer outra coisa; se não o tivesse feito,
outro agiria com maior dureza em meu lugar. Para quem lê estas
justicações, o primeiro movimento é de asco: eles mentem, não
podem acreditar que se acredite neles, não podem deixar de ver o
desequilíbrio entre suas desculpas e a dimensão de dor e morte que
provocaram. Mentem sabendo que mentem: estão de má-fé (LEVI,
2004, p. 21-2).
Diferentemente de Arendt, que caracteriza Eichmann como
um personagem comum, sem grandes traços distintivos, Levi o qualica
como “um gélido fanático” (LEVI, 2004, p. 21), ou seja, como um
agente frio e calculista, plenamente convencido acerca de seu papel e da
grandiosidade do sistema para o qual trabalhava. O autor italiano observa
que as justicativas do ex-tenente-coronel da SS não se diferenciam das
que foram dadas por outros indivíduos envolvidos em crimes do mesmo
tipo e constituem, por si sós, um ato de má-fé: Levi entende que se trata
de mentiras. O desequilíbrio existente entre a dimensão do sofrimento e
da morte causados a um número gigantesco de pessoas e as justicativas
desses agentes é tão patente que Levi não é capaz de conceber como se
pode acreditar em tais criminosos.
O escritor italiano compreende que as pressões que o Estado
totalitário exerce sobre os indivíduos são fortes, mas não acredita que
elas sejam capazes de determinar completamente a ação desses mesmos
indivíduos ao exigir obediência. Em outras palavras, Levi defende que as
pressões totalitárias não são irresistíveis: é possível dizer não, se negar a
realizar o que é ordenado. Isso mostra que, mesmo nas condições de um
regime totalitário, os indivíduos realizam suas ações por escolha. Por esse
motivo, Levi enfatiza que a “[...] adesão [ao regime nazista] havia sido uma
escolha, ditada mais pelo oportunismo do que pelo entusiasmo” (LEVI,
2004, p. 24). Mas, se isso é verdadeiro, então qual a razão de criminosos
nazistas dizerem em juízo que estavam apenas cumprindo ordens, que
não poderiam agir de outra maneira, uma vez que nem mesmo os seus
superiores questionavam as ordens recebidas?
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 59
Levi observa que é difícil negar um dado factual como a realização
de determinada ação. Por outro lado, é muito fácil alterar os elementos
psicológicos que antecedem e acompanham uma dada ação, isto é, as
motivações que impelem o indivíduo à realização de determinado ato e
as paixões que o acompanham durante a sua execução. Para o autor, isso
ocorre porque “[...] os estados de ânimo são voláteis por natureza, e ainda
mais volátil é sua memória” (LEVI, 2004, p. 25). Ele observa que, muitas
vezes, pessoas que foram vítimas de crimes e violências exacerbadas realizam
uma espécie de reelaboração do passado para evitar o sofrimento que aora
com a recordação dos eventos traumáticos. De modo análogo, o escritor
italiano acredita que não só Eichmann, como outros criminosos nazistas
realizaram diante do tribunal uma espécie de manipulação do passado.
“Também eles”, escreve Levi, “tão fortes diante da dor alheia, quando o
destino os colocou diante dos juízes, diante da morte que mereceram,
construíram um passado de conveniência e terminaram por acreditar nele
(LEVI, 2004, p. 24). O ex-prisioneiro de Auschwitz acredita que essa
reelaboração foi feita de maneira lenta e, provavelmente, não metódica,
conforme os acontecimentos se distanciavam cada vez mais no tempo.
Arendt, por seu turno, não é ingênua a ponto de aceitar as
justicativas de Eichmann e admitir que, nas condições do regime
nazista, o ex-tenente-coronel não tinha escolha a não ser seguir as ordens
recebidas, fato que o inocentaria. A pensadora não exime Eichmann de
sua responsabilidade e culpa, mas não desconsidera o fato de que muitos
agentes que contribuíram para a realização de atividades que resultavam
em violência extrema e em morte, ou seja, para perpetrar o mal, armaram
que haviam feito aquilo sem convicção. Apesar dessa justicativa consistir
em uma mentira na medida em que é utilizada para transferir toda
responsabilidade e culpa àquele que deu as ordens, de modo a eximir os
que executaram os comandos, Arendt percebe que essa mentira não era tão
simples quanto parecia. Em “Responsabilidade sob ditadura”, ensaio de
1964, Arendt (2004, p. 97-98, grifo nosso) escreve:
[...] quando o dia do ajuste de contas nalmente chegou, descobriu-
se que não houvera adeptos convictos, pelo menos não do programa
criminoso pelo qual eram julgados. E o problema é que, embora isso
fosse mentira, não era uma mentira simples ou total. Pois o que tinha
começado nos estágios iniciais com pessoas politicamente neutras,
que não eram nazistas mas cooperavam com o regime, aconteceu
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60 |
nos últimos estágios com os membros do partido e até com as
formações de elite das SS: até no Terceiro Reich havia muito poucas
pessoas que concordavam devotamente com os últimos crimes do
regime, mas um grande número ainda assim estava perfeitamente
disposto a cometê-los.
Arendt chama a atenção para o fato de que as mentiras contadas nos
julgamentos de criminosos nazistas do pós-guerra trazem consigo indícios
importantes: talvez não fosse necessário ter um ódio profundo e arraigado
aos judeus para participar de seu programa de extermínio; talvez não fosse
necessário estar integralmente convicto em um regime político para aderir
a ele. Com efeito, o antigo tenente-coronel da SS não era uma exceção
dentro do regime nazista: “[...] ele não precisava ‘cerrar os ouvidos para a
voz da consciência’, como diz o preceito, não porque não tivesse nenhuma
consciência, mas porque sua consciência falava com ‘voz respeitável’, a voz da
sociedade respeitável a sua volta” (ARENDT, 1999, p. 143).
Essa constatação era estarrecedora para Arendt, pois ela via na gura
de Eichmann não apenas um criminoso que cometeu crimes inimputáveis
durante a Alemanha nazista, e sim o sintoma paradigmático de uma
profunda crise nas categorias de pensamento e nos critérios de moralidade
tradicionais que o totalitarismo colocou à tona. Ela escreve: “Desde que
a totalidade da sociedade respeitável sucumbiu a Hitler de uma forma ou
de outra, as máximas morais que determinam o comportamento social
e os mandamentos religiosos – ‘Não matarás’ – que guiam a consciência
virtualmente desapareceram” (ARENDT, 1999, p. 318). É como se, de
um dia para o outro, todos os valores morais tivessem sido colocados em
suspenso, fora de vigência, como se a sociedade tivesse trocado um sistema
de valores por outro e, desse modo, feito com que as palavras ética e moral
retomassem o seu signicado etimológico original de hábito (ethos) e
costume (mores), os quais podem ser facilmente trocados como se trocam
os modos de se portar à mesa (ARENDT, 2004, p. 113-114).
A moralidade e, com ela, a capacidade de distinguir o bem e o
mal parecem ter sofrido uma transformação no regime nazista na medida
em que se tornava confusa a diferença entre cumprir as ordens e agir
moralmente bem. Em outras palavras, é como se agir moralmente bem, ou
seja, fazer aquilo que era correto, signicasse cumprir de maneira eciente
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 61
e ecaz as ordens recebidas. É aqui que Arendt aponta para a existência de
um fenômeno novo que emerge no regime totalitário nazista, qual seja, um
novo tipo de mal, o qual não é fruto das tentações, mas sim da obediência
cega às ordens, aos comandos, à lei.
Ao não conseguir enxergar em Eichmann a gura de um criminoso
terrível, do monstro moral que desempenhou papel fundamental em um
dos maiores crimes contra a humanidade, perpetrado no corpo do povo
judeu, e que, por isso, representaria a própria encarnação do mal, Arendt
constata a existência de um abismo entre o agente e o resultado monstruoso
de suas ações. É esse descompasso, essa desproporção entre o caráter do
agente – normal, medíocre, nem estúpido, nem muito perspicaz – e o
resultado de seus atos – o mal extremo dos campos de concentração – que
leva Arendt a cunhar a expressão banalidade do mal. Ao assimilar “mal”
com “banalidade”, a pensadora não quer indicar, como foi acusada após a
publicação de seu relato, que o mal realizado nos regimes totalitários era
algo trivial e, portanto, perdoável, mas sim que a prática do mal, do ponto
de vista de seus perpetradores, não era vista enquanto tal e não tinha como
causa uma motivação maléca por parte de seu agente, daí, pois, a sua
banalidade.
11
Para Arendt, tanto as falas quanto o próprio tipo físico e postura
do acusado não caracterizavam um indivíduo perverso, sádico, mas sim a
gura de uma pessoa “terrível e assustadoramente normal”, medíocre, sem
11
A publicação de Eichmann em Jerusalém desencadeou uma série de controvérsias que fez Hannah Arendt, uma
intelectual já reconhecida e respeitada, sobretudo por sua obra Origens do Totalitarismo, ver-se como pauta de
discussão dentro e fora dos meios acadêmicos. A polêmica em torno da obra girava em torno de três aspectos,
como bem resume Eduardo Jardim (2011): além da questão relativa ao signicado da expressão banalidade
do mal, há também a acusação de que Arendt teria dito que os judeus não opuseram resistência aos seus
perseguidores – apesar de a autora armar em seu livro que nenhum outro povo conseguiu oferecer resistência
aos nazistas e que, portanto, isso não seria uma peculiaridade do povo judeu – e a denúncia de colaboracionismo
entre alguns líderes de comunidades judaicas e membros da burocracia nazista. Arendt recebeu diversas cartas e
resenhas negativas, além de ser ofendida e ver amigos como Kurt Blumenfeld e Gershom Scholem se afastarem
dela. Este último chegou a acusá-la de odiar a si mesma enquanto judia – acusação semelhante foi feita
recentemente à lósofa americana Judith Butler na ocasião da publicação de seu livro Caminhos divergentes:
judaicidade e crítica ao sionismo (LEONÊS, 2018). Mas Arendt considerava tais críticas injustas na medida
em que pareciam focar “[...] na ‘imagem’ de um livro que nunca foi escrito e que supostamente versava sobre
assuntos que muitas vezes não só não foram mencionados por mim, mas que nunca me ocorreram antes” (1999,
p. 306). Para sua amiga Mary McCarthy, ela escreve: “como é arriscado dizer a verdade em termos factuais, sem
ornamentos teóricos e acadêmicos. Deste lado da coisa, admito, eu gosto sim; ensinou-me umas quantas lições
sobre a verdade e a política” (ARENDT; MCCARTHY, 1995, p. 152). O lme de Margarethe von Trotta,
Hannah Arendt (2012), retrata bem a polêmica da qual a pensadora foi vítima. Neste livro, não exploraremos
essa polêmica em suas especicidades, posto que o nosso escopo é apresentar o caso Eichmann para enunciar o
problema da incapacidade de pensar.
Renato de Oliveira Pereira
62 |
grandes convicções ideológicas e sempre pronto a repetir frases de efeito e
clichês que ouvira ao longo de sua vida, ainda que não tivessem sentido no
contexto em que o réu os utilizava. Acerca do uso constante do ocialês,
isto é, dos jargões ociais e dos clichês, a pensadora relata que:
Quer estivesse escrevendo suas memórias na Argentina ou em
Jerusalém, quer falando com o interrogador policial ou com a corte,
o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas
palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio cava que sua
incapacidade [inability] para falar estava intimamente relacionada
com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de
vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com
ele, não porque mentia, mas porque se cercava da mais conável
de todas as salvaguardas contra as palavras e a presença dos outros,
e, portanto, contra a realidade enquanto tal (ARENDT, 1999, p.
61-62, grifo da autora).
Mesmo diante do cadafalso, Eichmann não abandonou essa
caraterística ao utilizar clichês da oratória fúnebre, esquecendo-se de
que ele próprio seria enforcado por determinação da sentença proferida
pelo tribunal de Jerusalém. Longe de ser um elemento fortuito, Arendt
compreende que o uso constante que Eichmann fazia dos clichês criava
uma espécie de barreira que se interpunha entre o ex-tenente-coronel e a
realidade, o que prejudicava a sua capacidade de sentir e de pensar e, por
consequência, de considerar as coisas a partir do ponto de vista do outro
– no caso, os judeus. Com a expressão banalidade do mal, Arendt denota,
portanto, essa ligação entre a prática do mal e a incapacidade de pensar
naquilo que estamos fazendo e julgar os acontecimentos. A pensadora
escreve que:
A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos
pessoais, ele [Eichmann] não tinha nenhuma motivação. E essa
aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele certamente
nunca teria matado seu superior para car com o seu posto. Para
falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o
que estava fazendo (ARENDT, 1999, p. 310).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 63
O relato do julgamento contribuiu para Arendt mudar o foco
de análise acerca do fenômeno do totalitarismo na medida em que cou
evidente que os regimes totalitários não têm o poder de transformar pessoas
comuns em monstros morais. Em grande medida, as ações terríveis – isto
é, o mal – levadas a cabo nesses regimes são realizadas não por indivíduos
sádicos, mas por pessoas comuns, burocratas que o fazem com a justicativa
de realizar o seu trabalho, o seu dever. Como comenta Adriano Correia, a
incapacidade de Eichmann “[...] consistia, por exemplo, em não perceber
que os seus atos, ainda que compatíveis com a ordem moral, jurídica e
social instaurada pelo nazismo, não seriam coadunáveis com qualquer
contexto moral, jurídico ou social até então existente ou imaginado
(CORREIA, 2013a, p. 75). Há, pois, um elemento de indiferença e
também de irreexão acerca daquilo que se faz, ainda que o indivíduo
a serviço do regime totalitário esteja mais ou menos ciente dos fatos que
se passam ao seu redor. Em outras palavras, apesar da percepção de tais
indivíduos permanecer intacta, sua capacidade de sentir algo, bem como
de reetir sobre o signicado dos acontecimentos e da experiência vivida
parecem estar, de alguma maneira, prejudicadas.
12
Na obra Desobedecer, o lósofo francês Frédéric Gros atenta para
a questão em termos de uma transição histórica. Com base no pensamento
de Michel Foucault, de quem é estudioso, Gros nota que, no contexto
nazista, a obediência às ordens e à lei deixa de ser atrelada à prática do
bem e passa a ser vista como aquilo que leva os homens a realizarem o mal.
A experiência totalitária do século XX”, escreve Gros, “evidenciou uma
monstruosidade inédita: a do funcionário zeloso, do executor impecável.
Monstros de obediência” (2018, p. 32, grifo do autor). A partir de então, não
é mais a obediência à norma que humaniza o ser humano ao afastá-lo de
seus instintos animais, mas justamente a desobediência. Assim, recusar-se a
fazer algo e seguir os seus “instintos” é o modo como um indivíduo pode se
humanizar no interior de um sistema político voltado para a prática do mal –
é como Eichmann poderia não ter se tornado um dos principais criminosos
do século passado. Nas palavras de Gros (2018, p. 32, grifo do autor):
12
Essa visão de Arendt assemelha-se a algumas das conclusões de eodor Adorno em Estudos sobre a
personalidade autoritária. De acordo com Virgínia Ferreira da Costa, “[...] a racionalidade do autoritário se
mostra bastante irracional ao substituir uma reexão mais profunda por estereótipos e racionalizações recebidas
prontas. Suas opiniões – emitidas sob formas socialmente aceitas e difundidas que ocultam autoritarismos –
seriam compreendidas como modos de afastamento da realidade externa, fruto de certa inacessibilidade às
experiências vividas” (COSTA, 2019, p. 23).
Renato de Oliveira Pereira
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O subterfúgio, a evitação, a desobediência, a recusa, eis o que poderia
tornar humanos os gestores impecáveis dos crimes e do horror. Para
sua defesa, eles nos contrapõem essas virtudes preconizadas nas
salas de aula e no seio das famílias: docilidade, aplicação, exatidão,
senso de ecácia, lealdade, credibilidade, meticulosidade. Podia-se
contar com eles para que o trabalho fosse feito, e bem-feito. Mas
que trabalho?
Gros (2018) também salienta uma característica da obediência:
a obediência desresponsabiliza. Quem obedece não se sente pessoalmente
responsável pelos atos que pratica – o que Arendt denomina de
responsabilidade pessoal (ARENDT, 2004, p. 89-92). É como se, ao
obedecer, o indivíduo fosse forçado a renunciar a sua liberdade e, ao fazê-
lo, a responsabilidade de seus atos recairia sobre quem expede as ordens, ou
seja, ao superior, ao líder, ao sistema burocrático ou político que estabeleceu
as diretrizes.
13
Essa transferência de responsabilidade, contudo, não apaga
o fato de que pessoas especícas cometeram atos especícos, ainda que em
nome de algo que tais pessoas acreditavam ser superior ou mais forte do
que elas próprias. Por isso o ato de desobedecer, nesses casos, humaniza o
homem, pois o torna responsável por aquilo que ele faz.
Esse nexo entre humanização e responsabilidade é constatado
também por Primo Levi que, ao falar sobre a ocasião em que foi libertado do
campo de concentração de Auschwitz, escreve: “Naquele momento, quanto
voltávamos a nos sentir homens, ou seja, responsáveis [...]” (LEVI, 2004,
p. 31). A vida dos prisioneiros nos campos de concentração era uma vida
degradada de tal forma que eles se encontravam quase que completamente
reduzidos ao seu aspecto biológico. Em O que resta de Auschwitz, o lósofo
italiano Giorgio Agamben comenta que essa passagem de Levi expressa de
forma clara como os campos de concentração levam a uma perda da dignidade
13
No lme Dois papas (2019), do diretor brasileiro Fernando Meirelles, o tema da suposta perda da liberdade
face a regimes políticos autoritários é explorado no diálogo ctício entre o então papa Bento XVI e o cardeal
Jorge Mario Bergoglio, futuro papa Francisco. No diálogo, Bergoglio conta como os seus atos, enquanto chefe
do Colégio de Jesuítas na Argentina durante a ditatura militar do país, acabaram por prejudicar, ao invés de
proteger, clérigos ligados à chamada teologia da libertação, entre eles amigos próximos e um antigo professor, os
quais foram presos e torturados por agentes do Estado ditatorial argentino. Após ouvir a conssão de Bergoglio,
Bento XVI diz: “Mas você fez tudo o que podia”. Em contrapartida, o cardeal argentino responde: “Não foi o
suciente”. É então que o papa alemão arma: “Todas as ditaduras roubam nossa liberdade de escolha [freedom
to choose]. Nós sabemos disso.” “Ou revelam nossas fraquezas”, responde o futuro papa Francisco (DOIS...,
1h21min, 2019).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 65
humana: “o sobrevivente conhece [...] a necessidade comum da degradação,
sabe que humanidade e responsabilidade são algo que o deportado teve que
abandonar fora dos portões do campo” (AGAMBEN, 2008, p. 66).
A perda compulsória da dignidade humana, no entanto, não
havia ocorrido com Eichmann e outros criminosos nazistas. Arendt
lembra que o funcionamento dos regimes totalitários, do mesmo modo
que as burocracias, tem uma “[...] inevitável tendência a transformar os
homens em funcionários, meros dentes de engrenagem na maquinaria
administrativa, e assim desumanizá-los” (ARENDT, 2004, p. 122). Apesar
de saber o valor desse fato para as ciências políticas e sociais, Arendt atenta
que, em termos jurídicos e morais, as condições extremas do Terceiro Reich
não implicavam um determinismo em relação ao comportamento de todos
os súditos, o que pode ser comprovado pelos exemplos de pessoas que se
negaram a participar das ações do regime. Por esse motivo, Arendt admite
as condições do regime nazista em termos de elementos circunstanciais
que, eventualmente, podem implicar a atenuação da culpa de um agente,
mas sem o eximir de sua responsabilidade.
Ao questionar a razão pela qual algumas pessoas foram capazes de
resistir e desobedecer ao regime totalitário, Arendt percebe que a capacidade
de pensar e julgar pode funcionar em situações-limites, como é o caso dos
regimes totalitários, enquanto o último refúgio que permite aos indivíduos
se negarem a praticar o mal. Ela nota que “[...] os poucos que foram
sucientemente ‘arrogantes’ para conar em seu próprio julgamento não
eram, de maneira nenhuma, os mesmos que continuavam a se nortear pelos
velhos valores, ou que se nortearam por crenças religiosas” (ARENDT, 1999,
p. 318). Contra a (falsa) modéstia daqueles que não se sentiam em posição
de questionar e julgar as ordens recebidas e os seus superiores, Arendt aposta
na “arrogância” daqueles que tiveram audácia suciente para guiarem-se
pelos próprios juízos e decidir o que fazer em cada situação particular, já que
“[...] não existiam regras para o inaudito” (ARENDT, 1999, p. 318). Esse
modo de enxergar a questão confere uma perspectiva nova para os problemas
morais, como escreve Arendt (2004, p. 108. Grifo nosso):
[...] o total colapso moral da sociedade respeitável durante o regime
de Hitler pode nos ensinar que, nessas circunstâncias, aqueles que
estimam os valores e se mantêm éis a normas e padrões morais não
são conáveis: sabemos agora que as normas e os padrões morais
Renato de Oliveira Pereira
66 |
podem ser mudados da noite para o dia, e que tudo o que então restará
é o mero hábito de se manter el a alguma coisa. Muito mais conáveis
serão os que duvidam e os céticos, não porque o ceticismo seja bom
ou o duvidar, saudável, mas porque são usados para examinar as
coisas e para tomar decisões. Os melhores de todos serão aqueles
que têm apenas uma única certeza: independentemente dos fatos
que aconteçam enquanto vivermos, estaremos condenados a viver
conosco mesmos.
Arendt nota que os não participantes da engrenagem do mal não
eram aqueles que compartilhavam de um conjunto especial de valores
morais por meio dos quais pudessem decidir pelo certo. Pelo contrário, a
pensadora percebe que esses valores poderiam ser facilmente trocados, pois
o crucial não é o conteúdo dos valores e crenças morais de um indivíduo,
e sim o hábito de acreditar e de se manter el a algo. Com efeito, Arendt
entende que os indivíduos que se recusaram a aderir ao regime assim o
zeram porque se perguntavam se seriam capazes de viver em paz consigo
mesmos após realizar determinados atos. “Em termos francos”, explica
Arendt, “recusavam-se a assassinar, não tanto porque ainda se mantinham
éis ao comando ‘Não matarás’, mas porque não estavam dispostos a
conviver com assassinos – eles próprios” (ARENDT, 2004, p. 107).
Essa maneira de pensar a moralidade coloca o problema da
natureza e da função do juízo como o centro dos problemas morais, uma
vez que é exigido desses criminosos que eles tenham “[...] um ‘sentimento
de legalidade’ profundo dentro de si próprio, para contradizer a lei do país
e o conhecimento que dela possuem” (ARENDT, 2004, p. 103, grifo da
autora). Mas o exercício da capacidade de julgar por si próprio necessita
de algo anterior, a saber, o exercício da capacidade de pensar, como escreve
Arendt (2004, p. 107):
A precondição para esse tipo de julgamento não é uma inteligência
altamente desenvolvida ou uma sosticação em questões morais,
mas antes a disposição para viver explicitamente consigo mesmo, se
relacionar consigo mesmo, isto é, estar envolvido naquele diálogo
silencioso entre mim e mim mesma que, desde Sócrates e Platão,
chamamos geralmente de pensar. Esse tipo de pensar, embora
esteja na raiz de todo pensamento losóco, não é técnico, nem diz
respeito a problemas teóricos. A linha divisória entre aqueles que
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 67
querem pensar, e portanto têm de julgar por si mesmos, e aqueles
que não querem pensar atinge todas as diferenças sociais, culturais
ou educacionais [...].
Arendt concebe o pensamento à maneira da losoa socrático-
platônica, ou seja, enquanto um diálogo que o eu estabelece consigo
mesmo. É essa disposição do eu para viver consigo mesmo que permite
ao indivíduo a capacidade de julgar por si próprio. Para Arendt, isso era
o oposto do que acontecia com Eichmann que, em vez de pensar e julgar
por si mesmo, operava com clichês que o afastavam da realidade.
14
Na
introdução do volume sobre o Pensar de A vida do espírito, ela reitera que:
Clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta
convencionais e padronizados têm a função socialmente
reconhecida de proteger-nos da realidade, ou seja, da exigência de
atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em
virtude de sua mera existência. Se respondêssemos todo o tempo a
essa exigência, logo estaríamos exaustos; Eichmann se distinguia do
comum dos homens unicamente porque ele, como cava evidente
[no tribunal], nunca havia tomado conhecimento de tal exigência.
Foi essa ausência de pensamento – uma experiência tão comum em
nossa vida cotidiana, em que dicilmente temos tempo e muito
menos desejo de parar e pensar – que despertou meu interesse [...]
(ARENDT, 2017, p. 18-19. Grifo nosso).
Arendt compreende que não é possível pensarmos a todo instante
sobre as coisas e os acontecimentos ao nosso redor, de modo que é preciso
fazermos uso de hábitos e costumes já estabelecidos para sermos capazes de
viver neste mundo. O problema, contudo, é quando a capacidade de pensar
não é utilizada nem mesmo em situações-limites, isto é, em circunstâncias
nas quais o modo como agimos possui grandes implicações éticas e
14
Em sua resenha sobre a tradução inglesa do livro Eichmann antes de Jerusalém (cf. nota 7), Roger Berkowitz
(2014), diretor do Hannah Arendt Center no Bard College, observa que um dos pontos de conito entre
Bettina Stangneth, autora do referido livro, e Arendt estaria na armação desta última segundo a qual Eichmann
era incapaz de pensar (thoughtless). À luz dos documentos que teve acesso, Stangneth argumenta que os discursos
e as ações de Eichmann eram fruto de alguém que realmente pensava. No entanto, como observa Berkowitz
(2014), em nenhum momento de sua obra Stangneth analisa a concepção de pensamento de Arendt. Ele escreve
que, apesar da análise exaustiva que a pesquisadora empreende acerca da gura de Eichmann, ela “[...] não faz,
em seu livro, nenhum esforço para entender o que Arendt quis dizer com pensar e, portanto, com a incapacidade
de pensar [thoughtlessness], que é a raiz da ‘banalidade do mal’ [...]” (BERKOWITZ, 2014).
Renato de Oliveira Pereira
68 |
políticas, como é o caso da violência extrema dos campos de concentração.
Nessas ocasiões, a atividade do pensamento parece assumir uma relevância
extraordinária. Nesse sentido, o caso Eichmann tem como principal lição,
nas palavras de Arendt, o fato de que “[...] essa distância da realidade e a
incapacidade de pensar [thoughtlessness] podem gerar mais devastação do que
todos os maus instintos juntos” (1999, p. 311, grifo nosso). Ainda que não
haja uma vontade maligna ou motivos torpes, a prática do mal é possível
se os indivíduos estiverem distanciados da realidade que os cerca, sendo-
lhes profundamente indiferente justamente por não se interrogarem pelo
sentido dela, por abrirem mão do exercício do pensamento e, portanto,
de não viverem consigo mesmos. Arendt enfatiza: “Foi pura irreexão
[thoughtlessness] – algo de maneira nenhuma idêntico à burrice – que o
predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época” (ARENDT,
1999, p. 311, grifo nosso).
O caráter banal do antigo tenente-coronel nazista não diz respeito
a uma pretensa falta de erudição ou de sólidos conhecimentos técnico-
cientícos, mas sim à sua incapacidade de pensar. Na visão de Arendt, a
ausência de reexão “pavimentou a estrada” para que Eichmann pudesse
aderir ao nazismo com entusiasmo e dedicação. É preciso ressaltar, no
entanto, que aquilo que autora denomina de ausência ou incapacidade
de pensar [thoughtlessness] não signica que um determinado indivíduo
seja um ser humano incapaz da atividade do pensamento, mas sim que
ele, ao abrir mão da capacidade de pensar, se distancia de si mesmo e
da realidade que o cerca. Em tais condições, o indivíduo acaba por ter
prejudicada também a sua capacidade de formular e emitir juízos, isto é, a
sua capacidade de julgar, o que o impede de distinguir adequadamente o
bem do mal. Por conseguinte, aquilo que é posto pelo regime político ou
pelo todo da sociedade como verdadeiro ou falso, bom ou mau acaba por
ser aceito, mesmo à revelia dos próprios valores morais que outrora esse
indivíduo tenha acreditado e defendido.
Essa crise na capacidade de julgamento e nos critérios de
moralidade e de pensamento torna-se ainda mais patente para Arendt a partir
do caso Eichmann. Isso porque, já em 1945, no texto “Culpa organizada
e responsabilidade universal”, presente na coletânea Compreender (2008),
a pensadora percebe que o regime nazista não teria sido possível sem a
contribuição de pessoas comuns, de “bons pais de família” que, em busca
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 69
do sustento de seus familiares, não se negaram a colaborar com um regime
criminoso. Para ela, foi Heinrich Himmler, principal comandante da SS
(1929-1945), o responsável por descobrir e se aproveitar do fato de que,
“[...] para defender sua aposentadoria, o seguro de vida, a segurança da
esposa e dos lhos”, o pai de família, em um contexto de diculdades
econômicas e desemprego, “[...] se disporia a sacricar suas convicções, sua
honra e sua dignidade humana” (ARENDT, 2008, p. 157). A pensadora
denomina este tipo de homem como listeu.
Como bem lembra Duarte (2000), entre os dois estratos sociais
cuja união propiciou a ascensão do totalitarismo na Alemanha, a saber,
a elite, a intelectualidade europeia do período pós-Primeira Guerra, e a
ralé, formada pelo submundo da classe burguesa – “boêmios, desajustados,
fracassados socialmente, aventureiros, demagogos e revolucionários
(DUARTE, 2000, p. 49) – estava a gura do listeu, cuja principal
característica era a grande importância que atribuía ao interesse privado.
Em OT, Arendt escreve que, diferentemente do burguês propriamente
dito, isto é, da burguesia industrial alemã,
O listeu é o burguês isolado de sua própria classe, o indivíduo
atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O
homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores
crimes de massa jamais cometidos na história, tinha os traços do
listeu, e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas de
seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a
sacricar tudo a qualquer momento – crença, honra, dignidade.
Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade
pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar as suas vidas
privadas [...] (ARENDT, 2012, p. 472-3).
Para que tais homens, preocupados com a segurança e
sobrevivência sua e de sua família, pudesse cooperar com a realização de
crimes monstruosos, apenas uma exigência era feita: “[...] car totalmente
isento da responsabilidade por seus atos” (ARENDT, 2008, p. 157). Isso
que era obtido com a justicativa de apenas cumprir ordens, de ser um
mero dente de engrenagem e, por isso, um componente não só substituível
como facilmente descartável no interior da maquinaria nazista. Assim,
Renato de Oliveira Pereira
70 |
ca claro como, a partir do modelo conceitual do listeu, Hannah Arendt
realiza a sua análise do caso Eichmann (DUARTE, 2000, p. 50).
Em outro ensaio, resultado de uma série de conferências que
Arendt ministrou entre 1965 e 1966, presente na coletânea Responsabilidade
e julgamento (2004) com o título “Algumas questões de losoa moral”,
a autora vai considerar a possibilidade do mal ser realizado por pessoas
que agem sem convicção como a grande questão moral que surge com
a experiência nazista (ARENDT, 2004, p. 117). Ela lembra que, ao
longo das duas décadas após o m da Segunda Guerra Mundial, esse
problema não recebeu muita atenção. Isso porque tal questão permaneceu
adormecida em face de algo “[...] muito mais difícil de falar e com o qual
é quase impossível chegar a um acordo – o próprio horror na sua nua
monstruosidade” (ARENDT, 2004, p. 118). Arendt se refere, sobretudo, à
experiência dos campos de concentração e extermínio, a qual ela se dedicou
a compreender em OT. O julgamento de Eichmann parece ter sido, nesse
sentido, o acontecimento que tirou o véu sobre a questão da derrocada dos
padrões morais e possibilitou que a autora se dedicasse a essa temática.
A pensadora, todavia, pondera que a banalidade do mal é só uma
lição que se pode extrair do caso Eichmann. Ela não vê o seu livro como
um rigoroso tratado losóco sobre a natureza do mal ou qualquer outro
assunto, mas sim como um relato jornalístico que, ao examinar os fatos
surgidos no julgamento, revelou esse fenômeno desaador. Eichmann
é um novo tipo de criminoso e, como tal, muito perigoso, pois “[...]
efetivamente hostis generis humani [hostil ao gênero humano], que comete
seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para
ele saber ou sentir que está agindo de modo errado” (ARENDT, 1999,
p. 299). Essa impossibilidade de distinguir o certo do errado, ou seja, de
julgar, está ligada à distância da realidade promovida pela incapacidade de
pensar. Tal constatação, no entanto, não faz com que a pensadora exima
Eichmann de culpa e responsabilidade de seus atos. No nal do “Epílogo
de EJ, a pensadora coloca-se no lugar de juíza e sentencia que:
[...] em política, obediência e apoio são a mesma coisa. E, assim
como você apoiou e executou uma política de não partilhar a
Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações
– como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar
quem devia e quem não devia habitar o mundo –, consideramos
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 71
que ninguém, isto é, nenhum membro da raça humana, haverá de
querer partilhar a Terra com você. Esta é a razão, e a única razão,
pela qual você deve morrer na forca (ARENDT, 1999, p. 302).
Diante de qualquer regime político, a obediência não pode ser
considerada como algo involuntário, por mais difícil que seja resistir ao
poder estabelecido. Em “Responsabilidade sob ditadura”, Arendt ainda é
mais dura ao sugerir que o termo obediência seja excluído do vocabulário
político, de modo que “a pergunta endereçada àqueles que participaram e
obedeceram a ordens nunca deveria ser: ‘Por que vocês obedeceram?’, mas:
‘Por que vocês apoiaram” (ARENDT, 2004, p. 111, grifo da autora).
É preciso salientar, mais uma vez, que a justicativa de obedecer às
ordens não se restringe ao caso Eichmann e, em grande medida, foi utilizada
não só por perpetradores dos crimes durante o Terceiro Reich, como
também em outros massacres ao longo da história, como nota Levi (2004).
Em Puricar e destruir: usos políticos dos massacres e dos genocídios, o
sociólogo francês Jacques Sémelin observa como essa justicativa também
foi utilizada pelos executores dos massacres de Ruanda e da Bósnia, entre
outros. Para ele, o dispositivo que dispara a morte em massa é composto
por uma dupla pressão, a saber, a pressão vertical, exercida por quem detém
a autoridade e, por isso, dita as ordens e exige obediência, e a pressão
horizontal, que é exercida pelos próprios colegas, ou seja, pelo grupo ao
qual o indivíduo deseja se enquadrar e que, por isso, exige conformidade
(SÉMELIN, 2009, p. 356).
Mas, assim como Arendt, Sémelin não acredita que essa dinâmica
deixe o indivíduo sem escolha senão a de participar: “Claro, ele se vê preso
em uma engrenagem cujo controle lhe escapa e que, em certos casos, vai
levá-lo mais longe do que havia imaginado [...] Nada disso contradiz o fato
de ter aceito, de início, se engajar” (2009, p. 357). O indivíduo escolhe
participar, escolhe ser o executor do massacre. Nesse sentido, não se deve
considerar que os indivíduos agiram contra a sua vontade, pelo contrário:
[...] a obediência não é uma atitude puramente passiva. Ela
implica, faz apelo a um consentimento inicial, voluntário. E os
motivos para se consentir tamanha obediência são múltiplos.
Razões ideológicas, em primeiro lugar: o indivíduo aceitar matar
porque realmente “acredita”, porque, sinceramente, pensa servir
Renato de Oliveira Pereira
72 |
sua nação e está convencido da urgência de se livrar dos “inimigos”.
Razões econômicas, também: quando ele vê que pode obter
vantagens materiais naquela situação em benefício próprio. As
duas, é claro, são perfeitamente compatíveis entre si. O modo mais
comum de se consentir obediência, porém, é outro: para a maioria
dos executores, ela vem da convicção de servir a uma autoridade
legítima [...] (SÉMELIN, 2009, p. 359).
Como nota Jacques Sémelin, os motivos que levam alguém a se
tornar agente-carrasco em um massacre são múltiplos, ou seja, a lógica
dos algozes não se restringe às observações e reexões que Arendt realiza
a partir do caso Eichmann. Por esse motivo, Sémelin (2009) recrimina
Arendt por generalizar o caso Eichmann para explicar a lógica dos algozes
e por apresentar o termo banalidade do mal apenas no subtítulo e no
nal do último capítulo de EJ. Mas, de certa forma, a própria Hannah
Arendt parece perceber isso. Em “Algumas questões de losoa moral”, ela
admite a existência de outras motivações para a realização de tais crimes.
Ao comentar sobre a importância dos julgamentos do pós-guerra para as
questões morais, ela circunscreve melhor o seu problema:
[...] essas pessoas não eram consideradas criminosas comuns, mas
antes pessoas comuns que tinham cometido crimes com mais ou
menos entusiasmo, simplesmente porque zeram o que lhes foi
mandado. Entre elas, havia também criminosos comuns que no
regime nazista podiam fazer com impunidade o que sempre tinham
desejado fazer; mas por mais que os sádicos e os pervertidos estivessem sob
o foco dos reetores na publicidade desses julgamentos, em nosso contexto
eles são menos importantes (ARENDT, 2004, p. 122, grifo nosso).
A análise de Arendt não se concentra nos criminosos comuns e nos
adeptos fanáticos dos regimes totalitários, mas sim nas pessoas comuns que, em
condições totalitárias, realizaram coisas incomuns, monstruosas. A verdadeira
questão moral, para a pensadora, diz respeito àqueles que não agiram por
convicção, que não tinham um ódio arraigado contra as vítimas ou outra forte
motivação ideológica para colaborar na realização do massacre. Em tais casos, a
obediência, ou melhor, o apoio ao regime se traduz em ações que contribuem
para a prática do mal – a violência extrema, ou seja, o assassinato em massa –,
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 73
ainda que o agente, por acreditar não ter escolha, também acredite estar isento
de qualquer culpa e responsabilidade pelos resultados monstruosos gerados
pelos seus atos – o mal banal. A não percepção de outra possibilidade que
não a obediência cega – nos termos de Eichmann, a “obediência cadavérica
(Kadavergehorsam) (ARENDT, 1999, p. 152) –, isto é, a impossibilidade de
oferecer uma resposta razoável à pergunta “por que não aderir ao regime?”
(CORREIA, 2013a, p. 73), é o que intrigou Hannah Arendt frente à gura do
antigo tenente-coronel nazista.
1.3 o problemA: por que eichmAnn erA  de pensAr?
Se partirmos do pressuposto de que o pensamento é uma
capacidade inerente a todos os seres humanos, então a incapacidade de
pensar de Eichmann nos aparece, em si mesma, como um problema. Isso
porque se o mal banal é o resultado catastróco dos atos de um agente
que se recusa a pensar – isto é, a dialogar e a viver consigo mesmo – e, por
isso, não se sente responsável pelos seus atos, já que apenas faz o que lhe é
ordenado, então é na incapacidade de pensar que Arendt parece identicar
o nó problemático que leva à realização do mal banal.
A pensadora continuou a reetir sobre o tema da relação entre
o mal e a incapacidade de pensar em suas obras posteriores a EJ. Em A
vida do espírito este tema aparece com maior profundidade e grau de
desenvolvimento, apesar de tal obra permanecer inacabada. “Seria possível
que a atividade do pensamento como tal”, questiona Arendt no início
desta obra, “[...] estivesse entre as condições que levam os homens a abster-
se de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os ‘condicione’ contra ele?”
(ARENDT, 2017, p. 20). Contudo, em vez de nos debruçarmos sobre
a relação entre a incapacidade ou ausência de pensar (thoughtlessness) e a
prática do mal, acreditamos ser relevante reetir sobre uma questão que
nos parece ser anterior: por que Eichmann era incapaz de pensar? Dito de
outro modo, se o pensamento é um atributo inerente aos seres humanos,
por que essa capacidade não é utilizada em determinado contexto social e
político? Quais são as condições que possibilitam que alguém renuncie à
sua capacidade de pensar, do diálogo do eu consigo mesmo?
Ao colocarmos o problema dessa maneira, é preciso ponderar
que a própria Hannah Arendt (2017, p. 18-19) admite, como vimos, que
Renato de Oliveira Pereira
74 |
os seres humanos não podem responder a todo momento à exigência de
pensar imposta pelos fatos e acontecimentos, uma vez que isso os deixaria
exaustos. Para Arendt, é comum e cotidiana a experiência de, seja por falta
de tempo ou desejo, não pararmos para pensar (ARENDT, 2017, p. 19).
Tal fato revela que os seres humanos agem sem pensar em várias ocasiões da
vida, o que só é possível porque se adere a certos hábitos, costumes, normas
e saberes já estabelecidos. No entanto, abrir mão da capacidade de pensar
torna-se um problema quando isso é feito sempre, ou seja, quando os seres
humanos jamais tomam conhecimento da exigência do pensamento. É
essa a incapacidade de pensar que Arendt vislumbra na gura de Eichmann
perante o tribunal.
Nesse sentido, admitimos como pressuposto a interpretação
arendtiana da gura de Eichmann enquanto um ser humano que se
revelou incapaz da atividade do pensar, isto é, que preferiu pautar suas
ações em expedientes como clichês e jargões, em vez de atualizar a sua
capacidade de pensar para examinar e lidar com a realidade. Em outras
palavras, o termo incapaz não denota aqui uma impossibilidade de pensar,
mas, de fato, uma recusa: o ex-tenente-coronel nazista se recusou a pensar,
e esta recusa parece ser fundamental para que ele tenha participado do
regime e executado atividades que resultaram em um mal extremo. Nosso
interesse é, pois, compreender quais são os elementos e as condições que
prejudicaram o exercício da capacidade de pensar de Eichmann, de modo
a levá-lo a contribuir com um regime criminoso.
Com efeito, nossa hipótese inicial é que a incapacidade de pensar
é, de alguma maneira, produzida pelo totalitarismo. Isso porque se, de
acordo com Hannah Arendt, a irreexão de Eichmann, isto é, a recusa do
acusado em dialogar consigo mesmo, o predispôs a tomar parte em um dos
maiores crimes do século XX, então podemos concluir que a incapacidade
de pensar é importante para a efetivação do domínio totalitário. Assim, se a
obediência e, por conseguinte, o apoio a um regime político pode ser obtido
em função da ausência de pensamento, em que medida o totalitarismo, em
sua própria dinâmica de atuação, em seu modus operandi, não impulsiona
– e trabalha com – essa incapacidade de pensar? Qual é, de fato, a relação
da ausência de pensamento com o totalitarismo?
Para reetirmos sobre os problemas expostos acima, recorremos
à própria Hannah Arendt, especicamente ao seu ensaio intitulado
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 75
“Ideologia e terror”. Esse texto foi acrescentado à segunda edição de OT,
em 1958, mesmo ano da publicação de A condição humana, e é fruto de
uma conferência que Arendt proferiu em Heidelberg em 1952, publicada
originalmente como artigo em 1953 (CORREIA, 2010). Embora seja
escrito cerca de uma década antes do julgamento em Jerusalém (1961-1962),
nesse ensaio há indícios que estão alinhados com algumas constatações que
Arendt realizou ao vislumbrar a gura de Eichmann no tribunal.
A escolha por investigar esse assunto no referido ensaio não é
acidental ou arbitrária. Em uma carta a sua amiga Mary McCarthy datada de
20 de setembro de 1963, Arendt alude a uma das muitas críticas que recebeu
em meio às polêmicas ocasionadas pela publicação de EJ.
15
A autora discorda
da crítica porque, em sua visão, ela parece ser dirigida para um livro que não
foi escrito efetivamente. Ela refuta tal crítica e, ao mesmo tempo, indica três
pontos de seu relato do julgamento que estariam em conito com o que ela
mesma tinha escrito mais de uma década antes, em OT.
Um desses pontos é sobre a questão dos “poços de esquecimento”:
enquanto no primeiro livro Arendt dizia que esses poços existiam, em EJ
a autora defende que há muitas pessoas no mundo, de sorte que sempre
haverá alguém para contar história, fato que inviabilizaria o esquecimento.
Ela utiliza esse argumento no nal do capítulo 14 de EJ para argumentar
contra uma ideia expressa por Peter Bamm, médico alemão que serviu
no front russo. Em Die Unsichtbare Flagge (A bandeira invisível), seu livro
de memórias publicado em 1952, Bamm narra o assassinato de judeus
em Sebastopole e revela que, apesar dele e de outros soldados comuns
saberem que os homens das unidades da SS assassinavam os judeus, eles
nada zeram em relação a isso, nem ao menos protestaram. Ele justica a
sua inação e a de seus companheiros em razão da inutilidade de qualquer
ato que contrariasse o regime, uma vez que a prisão e a eliminação era
o que se esperava de um Estado totalitário, o qual produzia uma morte
anônima para se certicar que o indivíduo morto não se convertesse em
um mártir, ou seja, em um símbolo de resistência que apontasse para uma
possibilidade de comportamento incompatível com o regime.
Bamm acreditava que resistir era impossível, pois “[...] qualquer
um que tivesse ousado morrer para não tolerar silenciosamente o crime
15
Trata-se da resenha negativa de Lionel Abel sobre EJ publicada na Partisan Review que Arendt viu como parte
de uma campanha política contra ela (ARENDT; MCCARTHY, 1995, p. 153-154).
Renato de Oliveira Pereira
76 |
teria sacricado sua vida em vão” (ARENDT, 1999, p. 145). Contudo,
apesar de acreditar que a morte para ajudar os judeus seria em vão, Bamm
compreendia que tal atitude não era desprovida de valor moral: “Isso não
quer dizer que tal sacrifício teria sido moralmente inútil. Nenhum de nós
tinha convicções tão profundas a ponto de tomar para si um sacrifício
praticamente inútil em prol de um sentido moral superior” (ARENDT,
1999, p. 254). Ou seja, escolher a morte ao ir contra aquilo que se
considerava ser errado era algo que tinha um sentido moral muito superior
a não fazer nada para continuar vivendo. No entanto, isso exigia uma
convicção moral profunda que nem Bamm nem os seus companheiros
tinham, não obstante ele não perceber que isso tornava vazia a enfática
decência que ele atribuía a todo o seu grupo (ARENDT, 1999, p. 254).
Arendt, por sua vez, discorda que os atos seriam em vão, uma
vez que a tentativa do Estado totalitário de aniquilar qualquer ato de
resistência com a morte anônima não era perfeita e, portanto, as histórias
de resistências não seriam completamente esquecidas. Ela escreve que:
É verdade que a dominação totalitária tentou estabelecer esses
buracos de esquecimento nos quais todos os feitos, bons e maus,
desapareceriam, mas assim como estavam fadadas ao fracasso todas
as tentativas nazistas, feitas de junho de 1942 em diante, de eliminar
os vestígios dos massacres – por meio da cremação, da queima em
poços abertos, do uso de explosivos e lança-chamas e máquinas
trituradoras de ossos – assim também todos os esforços de fazer
seus oponentes “desaparecerem em silencioso anonimato” foram
em vão. Os buracos de esquecimento não existem. Nada humano
é tão perfeito, e simplesmente existem no mundo pessoas demais
para que seja possível o esquecimento. Sempre sobra um homem
para contar a história. Portanto, nada pode ser “praticamente
inútil”, pelo menos a longo prazo (ARENDT, 1999, p. 254).
Para comprovar essa posição, Arendt lembra-nos de atos como o
do sargento Anton Schmidt, um alemão que ajudou inúmeros judeus. Para
a autora, tais atos, apesar de todo o risco que envolvem, trazem consigo
uma lição política essencial:
Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a
maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 77
mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi
proposta é que ela “poderia acontecer” na maioria dos lugares, mas
não aconteceu em todos os lugares. Humanamente falando, não é
preciso nada mais, e nada mais pode ser pedido dentro dos limites
do razoável, para que este planeta continue sendo um lugar próprio
para a vida humana (ARENDT, 1999, p. 254, grifo da autora).
Essa lição é de extrema importância, uma vez que ela revela que,
mesmo em um regime totalitário, há a possibilidade de agir diferentemente,
de desobedecer às ordens recebidas. Nesse ponto, a perspectiva de Arendt é
compartilhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1998). No nal
de Modernidade e Holocausto, Bauman conclui que a experiência nazista do
holocausto tem uma lição positiva que serve de esperança, a saber, o fato de
que mesmo no pior dos contextos totalitários, é possível resistir e não fazer
o mal (BAUMAN, 1998, p. 236). Por esse motivo, Eichmann não pode
ser perdoado, embora as condições do regime totalitário possam ser vistas,
como observa Arendt, como circunstâncias atenuantes que, contudo, não
o isentam de sua responsabilidade.
Outro ponto presente na carta diz respeito ao subtítulo da obra:
um relato sobre a banalidade do mal”.
16
Inspirada na losoa moral de
Immanuel Kant, Arendt utilizou a expressão mal radical no nal da primeira
edição de OT para descrever os resultados terríveis das práticas dos governos
totalitários, a saber, o mal absoluto expresso nos campos de concentração
e extermínio. Em EJ, contudo, ela utiliza a expressão banalidade do mal
para indicar o descompasso entre a monstruosidade dos crimes cometidos
no nazismo e o caráter do agente que os perpetrou. Essa modicação tem
implicações importantes e, de certo modo, denirá os rumos intelectuais
tomados por Arendt, levando-a até A vida do espírito, sua derradeira obra.
Alguns autores veem essa mudança como uma contradição interna
no pensamento de Arendt. Richard Bernstein (1997, p. 142) lembra que
Gershom Scholem, intelectual judeu amigo de Arendt, contribuiu para
essa polêmica em uma carta de 23 de junho de 1963 que ele enviou à
16
De acordo com Bethania Assy, “o subtítulo foi originalmente sugerido por Heinrich Blücher, marido de
Arendt. Inuenciado por suas leituras de Bertolt Brecht e por seu humor sarcástico, Blücher sugeriu o subtítulo
acreditando que ele serviria como meio de enfatizar a possibilidade inédita do mal ser algo supercial. Blücher
forneceu a Arendt a referência que ela citaria no seu ensaio sobre Brecht no livro Men in Dark Times [...]”
(ASSY, 2015, p. 6, n. 15).
Renato de Oliveira Pereira
78 |
pensadora. Nesta carta, Scholem critica a obra EJ e recrimina Arendt por
ter abandonado a noção de mal radical pela expressão banalidade do mal, a
qual ele considera um simples slogan (ARENDT; SCHOLEM, 2017). Em
uma carta endereçada a Scholem de 20 de julho de 1963, Arendt responde
que a expressão banalidade do mal não se trata de um slogan, uma vez que
ela acredita ser a primeira a ter utilizado. Sobre a mudança dos conceitos,
ela escreve:
Você tem razão: eu mudei de ideia e não falo mais de “mal radical”
[...] Eu de fato penso atualmente que o mal nunca é “radical”, que
ele é apenas extremo e não possui profundidade nem qualquer
dimensão demoníaca. Ele pode proliferar e devastar o mundo
inteiro porque ele se espalha como um fungo sobre a superfície.
Ele desaa o pensamento, como eu disse, porque o pensamento
procura alcançar alguma profundidade, ir às raízes, e, no momento
em que lida com o mal, ele se frustra porque não há nada. Isto é,
“banalidade”. Apenas o bem tem profundidade e pode ser radical
[...] (ARENDT, 2016, p. 763).
Ao concluir a carta, Arendt arma que pretende desenvolver
o tema em outro contexto – provavelmente A vida do espírito, sua obra
inacabada – e que “Eichmann pode muito bem permanecer o modelo
concreto do que eu tenho a dizer” (ARENDT, 2016, p. 763). No entanto,
o trecho acima citado, como percebe Bernstein (1997), contribui para
a confusão acerca da relação entre mal radical e mal banal, pois passa a
impressão de que Arendt mudou mesmo de opinião e que o conceito
de mal radical não faz sentido para ela. Adriano Correia (2013a) lembra
que a pensadora explica em outra ocasião que designava por “radical” um
mal absoluto, extremo. Assim, após perceber que a palavra mal radical
indicava, etimologicamente, não um mal extremo, e sim um mal arraigado,
enraizado, característica que ela não notou em Eichmann, Arendt decidiu
fazer a mudança na terminologia.
Apesar dessas considerações, Richard Bernstein (1997) e Adriano
Correia (2013a) defendem que os dois conceitos não são contraditórios,
e sim complementares. Para Correia, o uso do termo banalidade do mal
em detrimento de mal radical não representa uma contradição interna
ao pensamento arendtiano, mas sim “[...] uma mudança de ênfase: da
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 79
superuidade e da destruição da humanidade no homem para a ausência
de pensamento, para o caráter sem precedentes do totalitarismo e o desao
que ele representa para a compreensão” (CORREIA, 2013a, p. 76, grifo do
autor). Em outras palavras, é como se a noção de mal radical se voltasse para
os massacres administrativos, ou seja, o crime inédito realizado pelo regime
totalitário nazista, com ênfase no processo de criação de seres humanos
supéruos levado a cabo nos campos de concentração e extermínio, o qual era
a preocupação central de Arendt em OT. Por outro lado, o termo banalidade
do mal apontaria para o caráter banal dos agentes que executaram tais crimes
monstruosos, preocupação que Arendt cultiva a partir do caso Eichmann.
Tanto Bernstein (1997) quanto Correia (2013a) entendem que
o conceito de mal radical kantiano não é importante nessa polêmica,
uma vez que a própria Arendt arma ter se apropriado do termo com
um sentido próprio, diferente do que propõe Kant. Nádia Souki observa
que Arendt usa “[...] radical no sentido de essencial, absoluto e total,
sentido que não corresponde absolutamente ao do conceito kantiano,
pervertendo, assim, inteiramente seu signicado” (SOUKI, 1998, p.
97). No entanto, diferentemente de Bernstein (1997) e Correia (2013a),
a pesquisadora argumenta que há uma congruência entre a concepção
de mal radical, tal como proposta por Kant em A religião nos limites da
simples razão, e a noção arendtiana de mal banal. Ela escreve que “[...] em
relação à recusa da malignidade, o pensamento de Hannah Arendt está
inteiramente consistente com o mal radical kantiano, embora ela pareça
não ter percebido isso” (SOUKI, 1998, p. 97).
Mas o ponto de conito entre EJ e OT aludido por Arendt na carta
à Mary McCarthy que nos interessa aqui diz respeito à questão da ideologia.
Uma das constatações da pensadora diante da gura de Eichmann é a de
que ele não tinha grandes convicções ideológicas: o ex-tenente-coronel
da SS sequer se considerava um antissemita. Mas se não foi uma forte
convicção ideológica que levou o Eichmann a contribuir com o nazismo,
o que teria sido? Ao contrário do tribunal, que considerou isso como uma
mentira, Arendt levou a sério a fala do acusado e, a partir dela, cunhou a
noção de banalidade do mal, apontando a incapacidade de pensar como
um elemento-chave para as ações levadas a cabo por Eichmann.
Na carta, a pensadora admite ter superestimado o papel da
ideologia sobre os indivíduos na sua obra OT e reete sobre a importância
Renato de Oliveira Pereira
80 |
de outro aspecto das ideologias, a saber, não o seu conteúdo, mas sim o
fato de que a tentativa de colocar uma dada ideia em prática engendra uma
espécie de movimento que adquire, em si mesmo, mais importância que o
próprio conteúdo ideológico. Nas palavras da autora:
[...] lendo o livro [EJ] com atenção, dá para ver que Eichmann foi
muito menos inuenciado pela ideologia do que pressupus no livro
sobre totalitarismo [OT]. Posso ter superestimado o impacto da
ideologia no indivíduo. Mesmo no livro sobre totalitarismo, no
capítulo sobre ideologia e terror, menciono a curiosa perda de conteúdo
ideológico que ocorre na elite do movimento. O movimento em si
assume a máxima importância; o conteúdo do antissemitismo, por
exemplo, se perde na política de extermínio, pois o extermínio não
teria chegado ao m quando não restasse mais nenhum judeu a ser
morto. Em outras palavras, o extermínio per se é mais importante
que o antissemitismo ou o racismo (ARENDT; MCCARTHY,
1995, p. 154, grifo nosso).
Como bem observa Eduardo Jardim, Arendt deixa claro nesse
excerto que “[...] poderia ter explorado melhor as pistas abertas no capítulo
nal de OT” (JARDIM, 2011, p. 200). Assim, seguindo a trilha legada pela
pensadora na carta à sua amiga McCarthy, e tendo em vista a hipótese de
que o caso Eichmann contribuiu para Arendt retomar e ampliar problemas
sobre os quais ela já havia reetido antes de participar do julgamento
em Jerusalém, investigaremos, no próximo capítulo, o ensaio “Ideologia
e terror: uma nova forma de governo”. Uma vez que a incapacidade de
pensar, isto é, de dialogar consigo mesmo e, por conseguinte, de viver
consigo mesmo, parece contribuir para a sustentação dos governos
totalitários, procuraremos elucidar a maneira como essa incapacidade para
o pensamento é, de certo modo, promovida nesses regimes por meio da
ideologia. Em outras palavras, procuraremos examinar, na perspectiva
de Hannah Arendt, como a capacidade ou a disposição dos indivíduos
para a atividade do pensamento pode ser prejudicada ou dicultada
no totalitarismo. Desse modo, acreditamos que também será possível
problematizar melhor o fenômeno da banalidade do mal colocado pela
gura de Eichmann.
| 81
2
A   
   :
     
“  
O súdito ideal do regime totalitário não é o nazista convicto nem o
comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre
o fato e cção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre
o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento) (ARENDT,
2012, p. 632).
Nosso objetivo neste capítulo é compreender a relação entre a
incapacidade de pensar e o totalitarismo. Para tanto, recorremos ao ensaio
“Ideologia e terror”. Em um primeiro momento (2.1), apresentaremos a
teoria na qual Arendt se inspira para realizar a sua análise do totalitarismo
como nova forma de governo, a saber, a teoria das formas de governo de
Montesquieu. A pensadora extrai as noções de natureza e princípio de
ação desta teoria, bem como a noção de experiência fundamental que ela
acredita estar presente na obra do lósofo francês. Em seguida, analisaremos
como Arendt dene o totalitarismo ao apontar (2.2) o terror como a sua
essência e (2.3) a ideologia enquanto seu princípio de movimento. A partir
disso, poderemos compreender (2.4) como a incapacidade de pensar e
Renato de Oliveira Pereira
82 |
também de agir é produzida nos regimes totalitários por meio da ideologia
enquanto lógica de uma ideia. Desta maneira, será possível evidenciar
como a incapacidade de pensar de Eichmann está relacionada à tentativa
de transformar os homens em seres supéruos que o totalitarismo opera
por meio do terror e da ideologia, os quais se encarnam nos campos de
concentração.
***
O desao teórico de Hannah Arendt em seu ensaio “Ideologia e
terror: uma nova forma de governo” é, como indica o próprio subtítulo,
demonstrar a razão pela qual o totalitarismo consiste em uma forma de
governo diferente de todas as outras formas legadas pela tradição política
ocidental. Essa tarefa é crucial para a pensadora que, ainda na introdução
da terceira parte de OT, escreve: “[...] a distinção entre eles [governo
totalitário e outros] não é de modo algum uma questão acadêmica
que possa ser deixada, sem riscos, aos cuidados dos ‘teóricos’, porque
o domínio total é a única forma de governo com a qual não é possível
coexistir” (ARENDT, 2012, p. 420). Ela recomenda cautela no uso do
termo totalitarismo e vê como regimes totalitários apenas a Alemanha
nazista e a Rússia soviética, especicamente dos anos 1930 até a morte
de Stálin (ARENDT, 2012, p. 430).
O totalitarismo é comumente confundido com alguma forma de
governo tradicional, sobretudo a tirania, a ditadura ou o despotismo. O
motivo principal dessa confusão é o fato de o totalitarismo surgir a partir
de sistemas unipartidários. Entretanto, Arendt observa que, quando se
tornavam efetivamente totalitários, tais regimes “[...] passavam a operar
segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros
que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias – legais, morais,
lógicas ou de bom senso – podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever
o seu curso de ação” (2012, p. 512, grifo nosso). A posse de um sistema
de valores ímpar na história é a base que, para a pensadora, propiciou aos
governos totalitários um modo de funcionamento tão peculiar que sua
adequada compreensão extrapola o prisma da losoa política ocidental,
incluindo as formas de governo clássicas.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 83
Assim, com o intuito de compreender o fenômeno totalitário
enquanto um regime político inaudito, Arendt promove ao longo do
ensaio uma série de distinções conceituais. Segundo André Duarte
(2013), essa maneira de proceder via oposição e relação entre os
diferentes conceitos, de modo a estabelecer fronteiras entre eles, é
comum na elaboração do pensamento arendtiano. Ele acredita que “[...]
ao traçar suas distinções conceituais, Arendt não pretendeu engessar os
fenômenos políticos do presente em quadros estanques, mas confrontar
os perigos teóricos oriundos de nossa incapacidade contemporânea para
separar e articular fenômenos e categorias distintos” (DUARTE, 2013,
p. 54). A diculdade em analisar e relacionar os fenômenos do presente
e as categorias é fruto da crise da tradição ocidental que emerge com
o totalitarismo, que também é sintoma dessa crise. Sem um quadro
conceitual capaz de explicar o que aconteceu, já que a derrocada dos
valores e das concepções tradicionais expôs o fato de que a tradição não
ilumina mais o presente, Arendt procurou nos próprios acontecimentos
o seu sentido e o parâmetro para traçar suas distinções conceituais, como
ela evidencia no prefácio de seu Entre o passado e o futuro.
1
Ainda que em seu artigo Duarte (2013) enfatize as distinções
conceituais arendtianas presentes mais propriamente em obras como a
Condição Humana e Sobre a violência – “[...] público, privado e social;
política e economia; liberdade e necessidade; poder e violência; trabalho,
fabricação e ação; bíos e zoé [...] (DUARTE, 2013, p. 48) –, acreditamos
que ter em vista esse modo de elaboração do pensamento de Arendt
contribui para melhor apreender as ideias e a articulação argumentativa
de “Ideologia e terror”. Isso porque Arendt precisa distinguir neste
ensaio o regime total da tirania, o conceito de lei positiva do conceito
de lei totalitária, entre outras distinções, para apresentar o totalitarismo
como uma nova forma de governo. Por esse motivo, acompanharemos as
distinções que a autora traça para mostrarmos como o regime totalitário,
na perspectiva da pensadora, se constitui enquanto uma novidade. Antes
Ao apresentar os ensaios de Entre o passado e o futuro como exercícios de pensamento político, Arendt escreve
algo que é o ímpeto não só deste livro, mas de todo o esforço intelectual materializado em sua obra: “[...] meu
pressuposto é que o próprio pensamento emerge de incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer
ligado, já que são os únicos marcos por onde pode obter orientação” (ARENDT, 2011, p. 41). Dado que
o passado não orienta mais o presente, é a partir dos próprios acontecimentos que essa orientação deve ser
buscada, o que revela como o próprio passado e a tradição podem ser ressignicados na compreensão dos
eventos do presente.
Renato de Oliveira Pereira
84 |
disso, porém, faremos algumas considerações sobre a principal teoria
política em que Arendt se inspira para realizar sua análise do totalitarismo
enquanto uma forma de governo inaudita.
2.1 umA novA FormA de governo: Arendt à luz de montesquieu
Ao propor que o totalitarismo é, de fato, uma nova forma de
governo e não apenas “[...] um arranjo improvisado que adota os métodos
de intimidação, os meios de organização e os instrumentos de violência
do conhecido arsenal político da tirania, do despotismo e das ditaturas
[...]” (ARENDT, 2012, p. 612), Arendt supõe que deve ser possível, então,
identicar a natureza desse governo. Por conseguinte, se existe essa natureza,
o totalitarismo pode ser comparado com as demais formas de governo que
se conhece desde a Antiguidade e, assim, “[...] denido como elas podem
ser denidas” (ARENDT, 2012, p. 612). Ela acredita que os diversos tipos
de governo nos quais os seres humanos vivem são descritos mais ou menos
do mesmo modo dos gregos até Kant. Mas como se denem os diferentes
tipos de regime político?
Para respondermos a esta questão, recorreremos a dois textos
que foram escritos na mesma época de elaboração de “Ideologia e terror”,
quais sejam: a primeira parte de “A grande tradição” (2011 [1953]) e “A
revisão da tradição em Montesquieu” (2009); manuscritos selecionados
postumamente por Jerome Kohn – este último compõe a coletânea A
promessa da política, também organizada por Kohn. Ambos os escritos foram
elaborados no período entre a primeira edição de As origens do totalitarismo
(1951) e a publicação de A condição humana (1958). Consciente do
décit em relação à análise da vertente totalitária do comunismo, uma
vez que a maior parte de OT se destina ao exame do regime totalitário
nazista,
2
Arendt passou a dedicar seus estudos do início da década de 1950
à compreensão dos elementos totalitários presentes na respeitável tradição
marxista (DUARTE, 2000; KOHN, 2009).
Para André Duarte, este décit em relação à análise dos elementos da versão stalinista do totalitarismo é
“justicável em vista da escassez de fontes primárias relativas àquela forma de dominação” (DUARTE, 2000, p.
35). Apesar disso, Duarte defende que “[...] o referido desequilíbrio metodológico jamais signicou que Arendt
houvesse compreendido o fenômeno totalitário como especíco às tradições históricas alemãs, isto é, como
um evento para o qual apenas aquele país estaria destinado” (DUARTE, 2000, p. 35). Isso porque o que há de
comum entre nazismo e stalinismo não é a existência de uma tradição em particular, e sim a destruição de todas
as tradições promovida por ambas as vertentes de dominação totalitária.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 85
No decorrer de sua pesquisa, porém, Arendt passou a se interessar
mais propriamente pela tradição da losoa política como um todo e na
maneira como o pensamento político de Karl Marx se inseria nessa tradição
como uma espécie de acabamento. Ela passou a enfatizar a existência de
uma tensão entre a losoa e a política que provém da atitude negativa
que a primeira tem em relação à segunda desde o início da tradição. Para
Arendt, a tradição do pensamento político ocidental foi fundada não
devido a uma atitude de admiração ou de curiosidade dos lósofos acerca
do modo como os diferentes povos se organizavam, e sim de uma repulsa
à pólis em decorrência da condenação e morte de Sócrates pelo tribunal de
Atenas. Diante deste acontecimento, os lósofos, em particular, Platão,
começaram a se preocupar com a política porque acreditavam que a pólis,
da maneira como era organizada, não era um lugar seguro para aqueles que
se dedicavam à atividade do losofar. Assim, losofar acerca da política e
dos assuntos humanos em geral passou a ter uma nalidade bem precisa,
qual seja, a de encontrar uma forma de organização política na qual o
lugar do lósofo estivesse garantido. Este foi, na perspectiva de Arendt, o
movimento inaugural da tradição do pensamento político ocidental que
reverberou ao longo de mais de dois mil anos de história (ARENDT, 2011,
p. 43-45).
Em seu comentário à tradução de “A grande tradição”, Bodziak
Jr. e Correia armam que a tradição tem um “[...] início bem denido na
substituição platônica da ação pela sabedoria losóca e m não menos
denido na transformação da losoa em ação” (In: ARENDT, 2011, p.
273, n. 1).
3
No início da tradição, é aquele que conhece a ideia de bem
que deve governar: tem-se, portanto, a gura do rei-lósofo. No m da
tradição, os lósofos deveriam deixar de lado a atividade de contemplação
para realizar a losoa na prática, isto é, engendrar uma sociedade ideal.
Em ambos os casos, a ação e a peculiaridade da qual os gregos antigos
tanto se orgulhavam e que os distinguia dos bárbaros, a saber, o privilégio
da palavra sobre a força, isto é, da persuasão em vez da violência, perdem
sua função de elemento basilar da vida política. O domínio político deixa
de ser visto como um espaço no qual os homens aparecem uns para os
outros e agem em concerto para ser uma esfera cujas decisões são tomadas
Essas ideias de Arendt são desenvolvidas em A condição humana e nos ensaios “Tradição e época moderna”,
inserido na coletânea Entre o passado e o futuro, e “Filosoa e política”, publicado na coletânea A dignidade da
política e também em A promessa da política, com o título de “Sócrates”.
Renato de Oliveira Pereira
86 |
por aquele que detém o saber ou, no nal da tradição, como algo que
deve ser fabricado a partir de uma espécie de modelo ideal pré-concebido
estabelecido losóca e cienticamente.
A atitude de Platão de deixar de lado a ação política era resultado
de sua preocupação com os riscos que a imprevisibilidade inerente aos atos
humanos pode levar – como a morte de Sócrates e outras injustiças. Ao fazê-
lo, Platão teria priorizado a relação de governo em detrimento dos atos e das
palavras no espaço público que constituíam a ação política, de modo que
a divisão entre governantes e governados tornou-se o elemento-chave para
se pensar a organização política dos homens: alguns devem governar (para
Platão, aquele que conhece a ideia de bem) e outros devem ser governados.
Segundo Arendt, apenas em um segundo momento – em um de seus últimos
diálogos, denominado As leis – Platão destaca as leis como conteúdo da vida
política, aí entendidas como “[...] o visível, tradução política das ideias da
República” (ARENDT, 2011, p. 276). Assim, é a partir da atitude negativa
dos lósofos em relação à pólis e dessa prioridade da relação de governo que
o pensamento político passa a ter, como foco, a busca pela melhor forma
de governo. Com isso, a tradição já nasce engastada na busca do melhor
governo, a qual serve como uma espécie de parâmetro para se julgar as
experiências políticas, como escreve Arendt (2011, p. 276):
Desde então [desde o início da tradição], a busca pelo melhor
governo tem servido para conceitualizar e transformar todas
aquelas experiências políticas que encontram sua casa na tradição
do pensamento político, a qual talvez em nenhum outro lugar
mostre sua abrangência de modo mais impressionante que no
espantoso fato de que nenhuma nova forma de governo foi
adicionada durante 2.500 anos. A República Romana, o Império
Romano, o reinado medieval e a emergência do Estado-nação não
foram percebidos como razão suciente para uma revisão ou adição
no que já era familiar a Platão.
A tradição do pensamento político, cuja autoridade é demonstrada
pelo fato de que as formas de governo permanecem mais ou menos as mesmas
desde Platão, tem como base a denição dos diferentes regimes políticos. De
acordo com Arendt (2011, p. 274), a natureza ou essência de cada forma
de governo é denida com base em dois pilares conceituais: o poder, isto é,
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 87
a sua distribuição – se é um único homem, apenas alguns ou todo o povo
que possui o poder de governar –, e a lei, ou seja, o papel que a legislação
desempenha no exercício do poder – se as leis são cumpridas ou não.
O primeiro pilar diz respeito ao número daqueles que governam
e, portanto, à divisão entre governantes e governados – ou, se quiser, entre
quem comanda e quem é comandado, entre quem manda e quem obedece.
Já o segundo pilar corresponde à qualidade do exercício do poder, isto
é, se as leis – o direito positivo – são observadas pelo(s) governante(s), o
que confere legitimidade ao exercício do poder e faz a forma de governo
ser considerada boa; ou se elas são desrespeitadas, de modo que o uso
do poder é arbitrário e ilegítimo, o que faz a forma de governo ser má,
corrompida. A lei ou o direito é entendido como uma barreira imposta ao
poder, uma limitação que impede que haja abuso no exercício do poder e,
assim, não deixa o regime resvalar para a corrupção – e esse é o único tipo
de movimento que a teoria das formas de governo clássica leva em conta: a
passagem de um regime bom para um regime mau/degenerado.
Em resumo, os dois pilares denem a natureza de cada forma de
governo ao indicar quem governa e como se governa. A maneira como o
poder está distribuído (primeiro pilar), somada à observância ou não das
leis (segundo pilar), leva à distinção tradicional de três formas de governo
boas (realeza, aristocracia e politeia) e suas correlatas corrompidas (tirania,
oligarquia e democracia). Em uma célebre formulação de sua Política,
Aristóteles descreve os diferentes tipos de governo:
Dentre as formas de governo por um só, chamamos realeza à que visa
o interesse comum. Chamamos aristocracia à forma de governo por
poucos (mas sempre mais que um) seja porque governam os melhores
ou porque se propõe o melhor para a cidade e os seus membros.
Finalmente quando os muitos governam em vista ao interesse
comum, o regime recebe o nome comum a todos os regimes: “regime
constitucional” [politeia] [...] Os três desvios correspondentes são: a
tirania em relação à realeza; a oligarquia em relação à aristocracia; a
democracia em relação ao regime constitucional. A tirania é o governo
de um só com vista ao interesse pessoal; a oligarquia é a busca do
interesse dos ricos; a democracia visa o interesse dos pobres. Nenhum
desses regimes visa o interesse da comunidade (ARISTÓTELES, Pol.
III, 1279a 34 – 1279b 10, grifo nosso).
Renato de Oliveira Pereira
88 |
Arendt aponta uma diferença sutil na teoria das formas de
governo de Aristóteles na medida em que o lósofo estabelece como o
bom governo não simplesmente aquele que observa a lei, mas sim aquele
que age em prol do interesse da comunidade – o interesse de todos –, ao
passo que é ruim o governo cujo poder é exercido em função das paixões
e dos interesses particulares seja de um único ser humano (tirania), seja
de um dos grupos que compõe a sociedade, a saber, os ricos, ou seja, os
oligarcas – daí a oligarquia, o regime dos ricos –, ou os pobres, isto é,
o povo – daí a noção de democracia, o governo do povo, e a razão pela
qual o termo democracia designa na Antiguidade uma forma de governo
degenerada, em contraposição à politeia ou regime constitucional. Arendt,
contudo, não acredita que esta diferença seja signicativa, uma vez que
“[...] o governo no interesse de todos [de Aristóteles] [...] não é muito mais
que uma interpretação particular do governo de acordo com leis justas
(ARENDT, 2011, p. 274).
A classicação tradicional dos regimes políticos, baseada no poder
e o direito positivo, constitui a teoria clássica das formas de governo que,
para Arendt, é a nervura da grande tradição da losoa política ocidental.
Mas a tradição não inclui apenas a possibilidade de distinguir as naturezas
das diferentes formas de governo e avaliar as experiências, como também
implica e traz como pressuposto uma visão acerca da natureza da própria
política cuja pedra de toque é a necessidade da divisão entre governantes
e governados. Com efeito, o poder é visto como uma espécie de atributo
daquele(s) que governa(m), de modo que a relação entre governantes e
governados – entre os detentores do poder e aqueles que são comandados,
que devem obedecer –, torna-se o centro da vida política, o que esvazia
outras possibilidades de organização da pólis e retira da ação a condição de
categoria central da política.
No seio dessa tradição, se Arendt almeja denir a natureza do
totalitarismo, então ela precisa descrever como o poder está distribuído e
qual o papel que o direito desempenha no interior dessa forma de governo,
de maneira a revelar o ineditismo dos regimes totalitários. Mas Arendt
não se contenta apenas com esse o da tradição e com a visão de política
que lhe subjaz. Por isso ela busca inspiração em um pensador que, mesmo
inserido na linha da tradição, procurou repensar alguns de seus problemas.
Esse pensador é Montesquieu. Como ressalta Adriano Correia, o ensaio
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 89
“Ideologia e terror” tem como articulação principal “uma interpretação
do regime totalitário à luz da teoria das formas de governo concebida
por Montesquieu” (CORREIA, 2010, p. XV). A interpretação de Arendt
acerca do totalitarismo como nova forma de governo é feita, portanto, à
luz do pensamento de Montesquieu.
Arendt vê Montesquieu como “[...] um escritor político muito
mais que um pensador sistemático”, condição que lhe possibilitou “[...]
considerar livremente e reformular quase involuntariamente os grandes
problemas do pensamento político” (ARENDT, 2011, p. 281). Ou seja,
a pensadora sugere que justamente o fato de Montesquieu estar mais
próximo de ser um escritor político do que um lósofo ou um acadêmico
prossional é que lhe permitiu recolocar velhas questões e indagar acerca
da natureza da política. O olhar diferenciado de Montesquieu o levou
a perceber e repensar os problemas políticos para além das categorias já
consolidadas, de modo a promover uma revisão na tradição.
4
Embora seja famoso pela sua divisão dos ramos do governo
em executivo, legislativo e judiciário, o que Arendt enfatiza é que “[...]
a descoberta de Montesquieu, tanto da natureza divisível do poder
quanto dos três ramos do governo, emergiu de sua preocupação com o
fenômeno da ação como a condição central de todo o domínio da política
(ARENDT, 2011, p. 282). Arendt entende que mesmo os três ramos do
governo estão ligados à ação: “os três ramos do governo representam para
ele as três principais atividades políticas do homem: a criação de leis, a
execução de decisões e a sentença judicial que deve acompanhar ambas.
Cada uma dessas atividades engendra o seu próprio poder” (ARENDT,
2011, p. 282). Na visão de Arendt, Montesquieu entende que as origens
do poder “repousam nas capacidades múltiplas dos homens para a ação
(ARENDT, 2011, p. 282), o que o leva a tomar a ação como a categoria
central da política.
A relevância que Montesquieu confere ao fenômeno da ação
para o domínio político faz com que ele perceba um problema na
tradição. A natureza dos regimes políticos – que, como vimos, é denida
tradicionalmente por meio de recurso aos dois pilares conceituais da
É importante ressaltar que Arendt se apropria do pensamento de Montesquieu para lidar com os seus próprios
problemas teóricos e políticos. Em razão dos objetivos e também dos limites desta obra, seguiremos aqui a
interpretação que Arendt realiza do pensamento do autor francês, sem nos ocuparmos com a sua fortuna crítica.
Renato de Oliveira Pereira
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distribuição do poder e da lei – constitui a essência, a estrutura de cada
forma de governo. Montesquieu não desconsidera essa noção, embora
sua tipologia das formas de governo apresente uma inovação em relação
à tradição. Com efeito, no segundo capítulo da obra Espírito das Leis, o
lósofo francês defende a existência de três formas de governo e as dene
do seguinte modo:
[...] “o governo republicano é aquele em que o povo, como um
todo [república democrática], ou somente uma parcela do povo
[república aristocrática], possui o poder soberano; a monarquia
é aquele em que um só governa, mas de acordo com leis xas e
estabelecidas, enquanto, no governo despótico, uma só pessoa,
sem obedecer a leis e regras, realiza tudo por sua vontade e
caprichos”. Eis aí o que denomino de natureza de cada governo
(MONTESQUIEU, 1973, p. 41, grifo nosso).
Norberto Bobbio (2001), em seu comentário à teoria do lósofo
francês, salienta a anomalia que ela representa ao não diferenciar formas
de governo boas de suas correlatas más, corrompidas – como faz Platão
e Aristóteles, por exemplo. Isso é possível porque o autor converge dois
aspectos para delimitar a natureza de cada forma de governo, quais sejam,
“[...] o dos sujeitos do poder soberano, que permite distinguir a monarquia
da república, e o do modo de governar, que leva à distinção entre monarquia
e despotismo” (BOBBIO, 2001, p. 131). Embora seja considerada anômala,
a denição que Montesquieu oferece das formas de governo se mantém na
esteira da tradição na medida em que preserva os pilares da distribuição
do poder e da lei, ainda que os correlacione de uma maneira distinta da
tradicional, o que resulta em três diferentes formas de governo. Duas dessas
formas (república e monarquia) são consideradas boas, pois são governos
que observam as leis, enquanto apenas uma é considerada corrompida (o
despotismo), uma vez que o déspota governa segundo os seus interesses
particulares e, portanto, sem levar em conta as leis.
Mas o problema que o lósofo francês observa é que essa
estrutura das formas de governo, tomada em si mesma, é incapaz de
engendrar ação ou movimento, isto é, de levar os seres humanos, sejam
governantes ou governados, a agirem. Como escreve Arendt, Montesquieu
notou que “[...] as ações concretas de cada governo e dos cidadãos [...] não
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 91
podem ser explicadas em conformidade com os dois pilares conceituais
das denições tradicionais do poder como a distinção entre governar e ser
governado e a lei como limitação desse poder” (ARENDT, 2009, p. 110-
111). Por considerar a ação como o centro da vida política, Montesquieu
indagava: o que leva os homens a agirem? O que os coloca em movimento?
E ao examinar a estrutura das formas de governo denida pela tradição,
sobretudo as leis de cada uma delas, Montesquieu não conseguia resolver
este problema.
De acordo com Arendt, a incapacidade da estrutura das formas
de governo levar os homens à ação remonta ao momento inaugural da
tradição. Ela observa que Montesquieu percebeu que os próprios termos
essência” e “natureza” do governo remetem, em seu sentido platônico, à
imobilidade, a uma permanência. Ao buscar a melhor forma de governo,
Platão buscava a mais imutável e inamovível delas, ou seja, aquela que
permaneceria intacta em meio às circunstâncias instáveis dos assuntos
humanos. Nas palavras de Arendt (2009, p. 111):
A razão dessa curiosa imobilidade, que, até onde sei foi Montesquieu
o primeiro a descobrir, é que os termos “natureza” ou “essência
do governo, tomados em seu sentido platônico original, indicam
permanência por denição, uma permanência que se tornou,
por assim dizer, ainda mais permanente quando Platão buscou o
melhor de todos os governos. Para ele, era natural que a melhor
forma de governo fosse também a mais imutável e inamovível em
meio às circunstâncias instável dos homens. A suprema prova de
que a tirania é a pior forma de governo é ainda, para Montesquieu,
o fato de ela estar sujeita a ser destruída por dentro – a decair por
sua própria natureza – ao passo que as outras formas são destruídas
fundamentalmente por circunstâncias externas.
A busca de Platão por uma forma de governo perfeita tinha como
pressuposto que este regime político deveria ser o mais estável possível, o
que signica que, frente às constantes mudanças nas circunstâncias em
que os homens vivem, o regime deveria manter a sua estrutura e o seu
funcionamento. Assim, a forma de governo ideal seria aquela mais difícil
de ser corrompida, de tornar-se degenerada. É por esse motivo que a tirania
Renato de Oliveira Pereira
92 |
(ou o despotismo)
5
é considerada mesmo por Montesquieu como a pior
forma de governo, uma vez que ela é, por sua própria natureza, a mais
instável das formas de governo. Para impedir a perversão de uma forma
de governo é que, de acordo com Arendt, Platão percebeu tardiamente
a necessidade de se estabelecer as leis. Ela escreve que “foi somente nas
Leis, não na República nem no Político, que Platão pensou que a legalidade
em si mesma, as leis da cidade, podia ser concebida de modo a impedir
toda perversão possível do governo, a única mudança que levou em conta
(ARENDT, 2009, p. 111).
Ao coibir os governantes de abusarem do seu poder, isto é, de
governarem em prol de seus desejos e interesses particulares, e não em
vista do bem comum, as leis exercem a função de impedir o movimento
de corrupção. Mas Arendt lembra que, para Montesquieu, o movimento
de corrupção, a mudança para o pior, não é o único tipo de movimento
ao qual a política e as formas de governo estão sujeitas, como pensava
Platão. O lósofo francês se preocupava com o movimento dos homens,
com as ações humanas: o que faz com que homens ajam no interior de
uma determinada forma de governo? O que leva alguém a tomar parte
do regime político no qual vive, a exercer o papel que lhe cabe e, assim,
possibilitar que o regime funcione de maneira perfeita, isto é, inteiramente
de acordo com a sua própria natureza? A legalidade não pode exercer esse
papel, como comenta Arendt (2009, p. 111-112):
[...] a legalidade, tal como Montesquieu a entendia, só pode impor
limites às ações, nunca inspirá-las. A grandeza das leis numa
sociedade livre é que elas nunca nos dizem o que devemos fazer, mas
somente o que não devemos. Em outras palavras, Montesquieu,
precisamente por ter tomado como ponto de partida a legalidade
dos governos, viu que direito e poder não são sucientes para
explicar tanto as ações concretas e constantes dos cidadãos que
vivem entre os muros da lei quanto o desempenho dos próprios
corpos políticos, cujo “espírito” é tão obviamente diverso.
Na visão do lósofo francês, a lei possui um caráter negativo: elas
demarcam limites para aquilo que os indivíduos podem fazer, mas não
Arendt utiliza o termo tirania para designar o que Montesquieu nomeia de despotismo, mudança que não
representa nenhum problema conceitual grave, pois, como lembra-nos Bobbio, Montesquieu dene despotismo
“[...] nos mesmos termos com que se vinha denindo tradicionalmente a tirania” (BOBBIO, 2001, p. 130-131).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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denem aquilo que os homens devem fazer. Para Arendt, essa concepção
de lei de Montesquieu reete a concepção pré-losóca dos gregos da
legalidade enquanto “[...] a armação no interior da qual as pessoas se
movimentam e agem, como fator de estabilização de algo que por si mesmo
está vivo e se movendo sem se desenvolver necessariamente em uma direção
prescrita, seja de ruína, seja de progresso” (ARENDT, 2011, p. 283). A
função da legalidade é, nesse sentido, o estabelecimento de muros entre
os homens que funcionam como marcos a partir dos quais eles podem
agir. Por ter esse caráter negativo, a legalidade ou o direito positivo não é
suciente para explicar por que os indivíduos agem da maneira como agem
em uma dada comunidade, tampouco para promover as ações necessárias
ao funcionamento perfeito de determinada forma de governo.
Ao mostrar que “[...] estas estruturas [formadas pelos pilares da
lei e do poder] por si mesmas são mortas e não correspondem às realidades
da vida política e às experiências dos homens de ação” (ARENDT, 2011,
p. 282-283), Montesquieu realizou o que Arendt considera uma revisão
na tradição do pensamento político ocidental. Em sua teoria das formas
de governo, o lósofo francês introduziu a noção de princípio de ação
como um novo critério para se pensar e classicar as formas de governo.
Ele especica os dois critérios do seguinte modo: “[...] entre a natureza
do governo e seu princípio, há esta diferença: sua natureza é o que o faz
ser como é, e seu princípio é o que o faz agir. A primeira constitui sua
estrutura particular e, a segunda, as paixões humanas que o movimentam
(MONTESQUIEU, 1973, p. 49). A natureza diz respeito, portanto, à
própria essência do governo, enquanto o princípio de ação corresponde a
uma paixão que leva as pessoas a tomarem parte do regime político no qual
vivem. Com o princípio de ação, há movimento, historicidade no interior
das próprias formas de governo, e não apenas na passagem de uma forma
boa para uma forma corrupta.
Cada forma de governo tem o seu próprio princípio de ação, o
qual é responsável por inspirar e orientar os atos tanto dos governantes
quanto dos cidadãos na vida pública. Para Montesquieu, os princípios de
ação da república, da monarquia e do despotismo são, respectivamente,
a virtude,
6
a honra e o medo. Com efeito, o funcionamento perfeito e a
Não a virtude ética, como adverte o lósofo francês, mas a política: “[...] o amor à pátria, isto é, o amor à
igualdade” (MONTESQUIEU, 1973, p. 29).
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estabilidade de uma república exigem a virtude de seus cidadãos, ou seja,
o tratamento dos assuntos públicos não deve conferir maior notoriedade
a um cidadão em relação aos seus concidadãos, uma vez que todos são
vistos como iguais. Do mesmo modo, a busca pela distinção conferida pela
hierarquia social inerente à monarquia é o que faz os agentes, sobretudo
os que compõem os estratos mais elevados da sociedade, tomarem a boa
reputação como estímulo para a prática de determinadas ações, o que
mantém a estrutura monárquica. Por m, no despotismo, o medo que o
povo tem de seu governante sustenta a dominação despótica. No entanto,
como observa Arendt (2009, p. 112), o déspota também tem medo dos
seus governados, de modo que o seu poder depende de uma vigilância
constante para fazer o povo sucumbir ao temor.
O predomínio de uma ou outra paixão enquanto princípio
de ação não signica, por exemplo, que uma república seja formada,
necessariamente, apenas por cidadãos virtuosos, nem que não se busque a
honra ou que não se tenha medo nesse regime político. Para Arendt, isso
apenas “signica que a esfera público-privada se inspira numa ou noutra, de
modo que a honra numa república e a virtude numa monarquia se tornam
assunto mais ou menos privado” (ARENDT, 2009, p. 112). Os princípios
de ação estão ligados à esfera pública da vida dos homens e inspiram as
ações humanas nesta esfera, de maneira a permitir que uma determinada
forma de governo se mantenha. Isso porque os princípios de ação não
são propriamente motivações psicológicas, e sim “critérios orientadores
a partir dos quais “todas as ações na esfera pública são julgadas para além
do padrão meramente negativo da legalidade” (ARENDT, 2009, p. 112).
Assim, se o princípio de ação perde a sua validade, isto é, se as pessoas não o
levam mais em conta ao agirem, então a forma de governo correspondente
se corrompe, como explica Arendt (2009, p. 113):
[...] se esses princípios já não são válidos, se perdem sua autoridade
de modo que já não se creia na virtude numa república ou na honra
numa monarquia, ou se, numa tirania, o tirano deixa de temer seus
súditos ou os súditos deixam de ter medo de si mesmos e de seu
opressor, então cada uma dessas formas de governo chega ao seu m.
O movimento de corrupção, a mudança para o pior na teoria
das formas de governo de Montesquieu está ligada diretamente à perda
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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de validade do princípio de ação. Há, portanto, uma conexão intrínseca
entre o princípio de ação e a natureza das formas de governo. Essa conexão
aponta, na interpretação de Arendt, para uma “profunda percepção da
unidade das civilizações históricas” (ARENDT, 2009, p. 113). Por isso,
Arendt vê a teoria do lósofo francês como “o pano de fundo das ciências
históricas e da losoa da história do século XIX”, o que a faz gurar como
uma espécie de precursora das noções de espírito do povo (Volksgeist) de
Herder, e de espírito do mundo (Weltgeist) de Hegel (ARENDT, 2009, p.
113). Não obstante, Arendt considera que a descoberta de Montesquieu
se mostra ainda mais fecunda no terreno da política, uma vez que “[...]
dela surge a questão das origens da virtude e da honra, cuja resposta levou
Montesquieu a resolver inadvertidamente o problema de por que tão
poucas formas julgadas sucientes ao longo de uma história tão longa e tão
cheia de mudanças radicais” (ARENDT, 2009, p. 113).
Não é mero acaso que as formas de governo, a despeito das
inúmeras transformações históricas e políticas, permaneceram as mesmas
de Platão até Kant. Arendt acredita que Montesquieu lançou luz a esta
questão ao perceber que o princípio de ação e a natureza de cada forma de
governo estão unidos por algo que serve como base fundamental, como a
fonte tanto das leis quanto daquilo que faz os seres humanos agir. Essa base
fundamental é indicada quando o lósofo francês aponta qual a origem da
virtude e da honra. Arendt escreve: “a virtude, diz Montesquieu, brota do
amor à igualdade, e a honra do amor à diferença, ou seja, do ‘amor’ por
um ou outro dos dois traços fundamentais e interconectados da condição
humana da pluralidade” (ARENDT, 2009, p. 113). Há, portanto, um solo
de onde a virtude e honra enquanto princípios de ação podem brotar: a
pluralidade.
7
A virtude está ligada à igualdade que os homens experimentam
por serem membros da espécie humana, enquanto a honra está ligada ao
aspecto da diferença que cada ser humano expressa por ser único. “Em
ambos os casos”, escreve Arendt, “somos confrontados com o que somos
por nascimento: nascemos iguais na absoluta diferença e distinção em
relação aos outros” (ARENDT, 2009, p. 114).
Pluralidade é uma das categorias que Arendt desenvolve mais detidamente em sua obra A condição humana
(1958). Nessa obra, a pensadora entende que a pluralidade corresponde “[...] ao fato de que os homens e não o
Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (ARENDT, 2010, p. 8). Os seres humanos são iguais enquanto
membros da espécie humana, mas diferentes uns dos outros “[...] de um modo tal que ninguém jamais será igual
a qualquer outro que viveu, vive ou viverá” (ARENDT, 2010, p. 10).
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Assim como os princípios de ação da virtude e da honra, a
própria estrutura ou natureza do governo republicano e do monárquico
também encontra na pluralidade o seu solo fundamental. Nas palavras de
Arendt, “[...] esse ‘amor’, ou, como diríamos, a experiência fundamental
da qual brotam princípios da ação, é para Montesquieu o traço-de-união
entre a estrutura de um governo representado pelo espírito de suas leis e as
ações de seu corpo político” (ARENDT, 2009, p. 113-114). A experiência
fundamental é, portanto, o terreno comum a partir do qual emerge
a estrutura e o princípio de ação de cada forma de governo. Ou seja, a
experiência fundamental se expressa politicamente nas leis que constituem
a estrutura de cada forma de governo tanto quanto na paixão que leva os
homens a se engajarem e a agirem nessa mesma estrutura.
Igualdade e distinção são experiências que os seres humanos
compartilham quando vivem juntos e mantêm relações uns com os
outros. Arendt observa que a “igualdade republicana não é o mesmo que
igualdade de todos os homens perante Deus ou igual destino de todos os
homens perante a morte” (ARENDT, 2009, p. 114). Em face de Deus
ou da morte, todas as diferenças entre os homens tornam-se irrelevantes,
de modo que os homens são vistos como iguais uns aos outros. Mas essa
igualdade não é política, e sim uma igualdade do âmbito teológico ou da
mera vida biológica (o fato de que todos os seres vivos morrem algum dia).
A igualdade de que fala Arendt tem outro fundamento, como ela explica:
Politicamente, nascer igual signica a igualdade de força
independentemente de todas as outras diferenças, o que permitiu a
Hobbes denir a igualdade como igual capacidade de matar. Uma
concepção similar é inerente à noção de estado da natureza de
Montesquieu, que a dene como medo de todos”, por oposição
à ideia hobbesiana de uma primordial “guerra de todos contra
todos”. A experiência sobre a qual repousa o corpo político de
uma república é a convivência dos que são iguais em força e a sua
virtude, que governa a vida pública, a alegria de não estar só no
mundo. Estar só não signica não ter iguais: “Um é um e mais
ninguém e sempre será sem ninguém”, conforme uma rima infantil
medieval ousou indicar o que pode ser humanamente concebido
como a tragédia de um único Deus. É só na medida em que estou
entre iguais que não estou só, e nesse sentido o amor pela igualdade
que Montesquieu chama de virtude é também a gratidão por ser
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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humano, e não igual a Deus (ARENDT, 2009, p. 114-115, grifo
nosso).
Na esfera política, nascer igual signica ter a mesma força que os
outros. A pensadora recupera a teoria política do lósofo inglês omas
Hobbes para corroborar essa assertiva na medida em que, na interpretação
de Arendt, essa igualdade de força foi denida por Hobbes como “igual
capacidade de matar”.
8
É da igualdade de força entre os homens que,
em um momento histórico no qual as relações entre os seres humanos
não eram regidas por leis (o estado de natureza), estabelece-se um estado
constante de guerra de todos contra todos. Tal estado caracteriza-se por
instabilidade e insegurança, já que os homens, iguais em força, precisam se
manter em um constante estado de vigília, já que não podem conar uns
nos outros. Dessa instabilidade surge o medo da morte violenta e é esse
medo que impulsiona os homens, na visão de Hobbes, a buscarem criar
o Estado enquanto o artifício pelo qual a segurança seja garantida. Para
Arendt, Montesquieu tem uma visão semelhante à de Hobbes, e dene
esse medo da morte violenta como “o medo de todos”.
Tendo em vista essa noção de igualdade, Arendt entende que a
experiência fundamental que subjaz a um corpo político republicano é a
convivência dos que são iguais em forças. Numa república, os homens,
iguais em força, são capazes de conviver juntos, e o que os leva à ação
é a alegria de não estar só no mundo. Princípio de ação dos governos
republicanos, a virtude é, então, essa gratidão por ser humano, por ter
iguais, o que possibilita que os seres humanos não estejam sozinhos no
mundo e, por isso, possam sempre desfrutar da companhia de outrem.
Essa alegria provém da própria condição humana, que é diferente, por
exemplo, da maneira de ser de Deus, que, por ser único, é um ser que não
tem iguais e, portanto, não pode desfrutar a companhia de seus pares.
Por outro lado, a experiência que subjaz à monarquia – e,
para Arendt, também as aristocracias, já que estas também são governos
hierárquicos – é a distinção. Esta, no entanto, só possível, como Arendt
Uma das passagens em que omas Hobbes arma a ideia de igualdade de força entre os homens encontra-se
no início do capítulo XIII do Leviatã, onde o lósofo inglês escreve: “[...] quanto à força corporal o mais fraco
tem força suciente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se
encontrem ameaçados pelo mesmo perigo” (HOBBES, 1983, p. 45).
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salienta, “por causa da igualdade, sem a qual todas as distinções nem sequer
poderiam ser medidas” (ARENDT, 2009, p. 115). Se os homens fossem
completamente diferentes, então não haveria a possibilidade de distinção,
posto que entre duas coisas completamente diferentes uma da outra, a
distinção é um dado, e não o resultado de uma conquista ou esforço. Para
que se possa distinguir um objeto de outro ou um ser humano de outro é
necessário, pois, essa igualdade de fundo, a partir da qual, nas monarquias,
enfatiza-se o aspecto da singularidade de todo ser humano. E é justamente
essa busca em expressar aquilo que é único em cada ser humano que subjaz
aos governos monárquicos, como escreve Arendt (2009, p. 115):
[...] a experiência fundamental sobre a qual ela [a monarquia]
repousa é a experiência da singularidade de todo ser humano, que
na esfera política só se pode revelar medindo-se uns em relação
aos outros. Quando a honra é o princípio de ação, a orientação
inspiradora das atividades de um corpo político é proporcionar
a cada súdito a possibilidade de sair-se bem, de tornar-se um
indivíduo singular que nunca foi antes e nunca será outra vez e,
como tal, conquistar reconhecimento em sua posição social.
A singularidade de cada ser humano só pode ser revelada no
espaço público, isto é, quando o ser humano se coloca à vista dos seus
iguais. As ações numa monarquia são inspiradas pela busca dos homens
distinguirem-se uns dos outros, de se tornarem um indivíduo singular que
possa ser objeto de reconhecimento público – e é por isso que a honra
é o princípio de ação dessa forma de governo. Do mesmo modo, as leis
monárquicas devem favorecer e reconhecer a distinção dos homens para
que o regime se mantenha.
Para Arendt, a monarquia oferece uma vantagem que está
ausente nos regimes republicanos. Essa vantagem consiste no fato de que
os indivíduos nunca serão confrontados com todos os outros juntos, isto
é, com uma massa na qual os indivíduos e suas diferenças estão quase
que completamente apagadas. Contra essa massa, um indivíduo poderia
congregar apenas a “desesperada minoria de só” (ARENDT, 2009, p. 115).
Como o funcionamento perfeito do governo republicano exige leis que
assegurem a igualdade de poder de seus cidadãos, Arendt adverte para “a
possibilidade de esgotamento da sua estrutura de legalidade, a partir da
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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qual a igualdade recebe signicado, direção e sentido” (ARENDT, 2009,
p. 116). Em outras palavras, quando a estrutura legal de uma república
não é suciente para impossibilitar que a força de muitos indivíduos anule
a força de um único indivíduo, então o regime deixa de ser uma república
autêntica e se encaminha para uma espécie de tirania da maioria. Apesar
desse perigo do governo republicano, Arendt (2009, p. 116) acredita que:
Quer o corpo político repouse sobre a experiência da igualdade ou
da distinção, em ambos os casos viver e agir juntos aparecem como
a única possibilidade humana na qual a força, dada pela natureza,
pode se transformar em poder. É assim que os homens, que apesar
de sua força cam essencialmente impotentes no isolamento,
incapazes até de desenvolver a própria força, estabelecem a única
esfera da existência na qual eles próprios, e não a natureza, Deus ou
a morte, podem ser poderosos.
Neste trecho, a partir de sua interpretação da teoria de
Montesquieu, Arendt explicita a sua concepção de poder, a qual é
importante para entendermos a razão pela qual a monarquia e a república
são formas de governo legítimas, ao contrário do terceiro tipo de governo
classicado pelo lósofo francês, a saber, a tirania. Para Arendt, poder é
diferente de força. Enquanto a força é inerente ao ser humano, o poder é
algo que surge apenas quando os homens vivem e agem juntos. Quando
está isolado dos seus pares, o homem é um ser impotente, já que sua força
é subjugada pela força das circunstâncias e da natureza, de modo que, no
isolamento, o homem sequer pode desenvolver sua força. Nesse sentido,
Arendt acredita que a única esfera em que os homens são poderosos é,
pois, a esfera pública, na qual a força dos homens é transformada em poder
quando eles agem juntos. Na monarquia e na república, o espaço comum
no interior do qual os homens podem conviver e agir em concerto, de
modo a gerar poder, é garantido pelas leis. Desta maneira, ambas as formas
de governo tornam possível a ação política e expressam a condição humana
da pluralidade, uma enfatizando o aspecto da distinção e, a outra, o da
igualdade, o que faz tais aspectos constituírem a experiência fundamental
desses regimes.
Em relação ao governo tirânico, Arendt lembra que o próprio
Montesquieu, “como toda a tradição, não pensava na tirania como
Renato de Oliveira Pereira
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um corpo político autêntico” (ARENDT, 2009, p. 116). É por este
motivo que o lósofo francês não se preocupou em indicar qual seria a
experiência fundamental subjacente às tiranias. Não obstante, Arendt
acredita que a estrutura do governo tirânico e o medo, enquanto seu
princípio de ação, baseiam-se em uma experiência que é conhecida dos
homens. Assim, a partir de sua leitura de Montesquieu, Arendt aponta
qual a origem do medo:
O medo como princípio de ação público-político tem uma estreita
ligação com a experiência fundamental de falta de poder que todos
conhecemos de situações nas quais, por alguma razão, somos
incapazes de agir. A razão pela qual essa experiência é fundamental –
e nesse sentido a tirania pertence às formas elementares de governo
– é que todas as ações humanas, e por essa mesma razão todas
as possibilidades de poder humano, têm limites. Politicamente
falando, o medo (e não estou falando de angústia) é o desespero
com a própria impotência quando atingimos os limites dentro dos
quais a ação não é possível. Cedo ou tarde, toda a vida humana
experimenta esses limites (ARENDT, 2009, p. 116).
A experiência sobre a qual as tiranias repousam é o isolamento.
Quando estão isolados uns dos outros, os homens não podem agir
politicamente, são impotentes. Na vida humana, a experiência da falta
de poder, de não ter forças sucientes para agir, é comum. Nas tiranias,
porém, a impotência dos seres humanos não é um acontecimento fortuito.
Pelo contrário, faz parte da natureza desse governo privar os seres humanos
de sua capacidade de ação, o que é feito a partir da destruição do espaço
público que os governos tirânicos operam ao apagar as fronteiras legais.
Como escreve Arendt, a “ilegalidade signica em cada caso não apenas que
o poder, gerado por homens agindo juntos, já não é possível, mas também
que a impotência pode ser articialmente criada” (ARENDT, 2009, p.
117). As tiranias são governos ilegais, ou seja, não há nenhuma lei que
garanta a existência de um espaço comum no qual os homens possam
viver e agir juntos. Ao impossibilitar a existência do espaço público e união
dos homens no agir em concerto, o tirano tolhe a capacidade de ação dos
homens e, dessa forma, cria articialmente a experiência de impotência,
de falta de poder. Com efeito, escreve a pensadora, “[...] dessa falta de
poder surge o medo e desse medo provêm tanto a vontade do tirano de
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 101
subjugar todos os outros quanto a preparação de seus súditos para padecer
a dominação” (ARENDT, 2009, p. 117). O tirano tem medo dos súditos,
por isso os subjuga. Os súditos, por sua vez, também têm medo do tirano
e de si mesmos, por isso não conseguem estabelecer relações uns com os
outros e, assim, acabam por padecer da dominação tirânica.
Para Arendt, o medo não é exatamente “um princípio de ação,
mas um princípio antipolítico dentro do mundo comum” (ARENDT,
2009, p. 119). A pensadora faz a seguinte comparação entre os princípios
da república e da tirania: “Se a virtude é o amor pela igualdade no
compartilhamento do poder, o medo é a vontade de poder proveniente da
impotência, a vontade de dominar ou ser dominado” (ARENDT, 2009,
p. 119). Nesse sentido, a tirania não pode ser vista, em um sentido estrito,
como uma forma de governo, mas sim uma forma de dominação. Arendt,
assim como Montesquieu, observa que esse corpo político, ao contrário da
monarquia e da república, não tem estabilidade, isto é, não pode manter-
se a si mesmo. Para o lósofo francês, o princípio do governo despótico
é corrompido por si só, de modo que “[...] os outros governos perecem
porque acidentes particulares violam seu princípio: este perece por seu
vício interior, quando causas acidentais não impedem seu princípio de se
corromper” (MONTESQUIEU, 1973, p. 125). Esse vício interior, para
Arendt, corresponde ao fato de que a sede de poder engendrada pelo medo
não pode ser remediada na tirania, uma vez que o poder só pode surgir
quando os homens agem juntos, o que não pode ocorrer na tirania. Por
esse motivo, ela acredita que “[...] as tiranias, enquanto persistem, cam
cada vez menos poderosas” (ARENDT, 2009, p. 117).
Tendo em vista essa interpretação que Arendt realiza da teoria das
formas de governo de Montesquieu, é possível concluir que a denição de
cada forma de governo deve responder a três questões: (1) qual é a natureza
desse governo, isto é, qual é a sua estrutura particular e o papel exercido
pelas leis? (2) qual é o seu princípio de ação, ou seja, o que leva os seus
membros a se movimentarem? E, por último, (3) sobre qual experiência
esse regime repousa? Assim, se Arendt compreende o domínio totalitário
como uma forma de governo inaudita, então ela precisa responder a essas
três questões. É justamente essa tarefa que ela realiza em “Ideologia e
terror”, que passaremos a analisar a seguir.
Renato de Oliveira Pereira
102 |
2.2 A nAturezA do domínio totAl: o terror
Como já aludimos, o totalitarismo é comumente visto como
uma expressão moderna da tirania. Se Arendt almeja apresentar o domínio
totalitário como uma nova forma de governo, então ela precisa distingui-lo
do governo tirânico. Para tanto, ela chama a atenção para a denição de
tirania:
[...] somos tentados a interpretar o totalitarismo como forma
moderna de tirania, ou seja, de um governo sem leis no qual poder é
exercido por um só homem. De um lado, [como natureza] o poder
arbitrário, sem o freio das leis, exercido no interesse do governante
e contra os interesses dos governados; e, de outro, o medo como
princípio de ação, ou seja, o medo que o povo tem pelo governante
e o medo do governante pelo povo – eis as marcas registradas pela
tirania no decorrer da nossa tradição (ARENDT, 2012, p. 612-3).
É digno de nota que Arendt segue de perto a denição de
despotismo de Montesquieu para constatar os sinais pelos quais um
governo tirânico é reconhecido pela tradição política ocidental. Mas
seria o totalitarismo uma espécie de tirania? Se isso for verdadeiro, então,
dada a denição de tirania, o soberano totalitário deveria agir em prol
dos seus próprios interesses, sem levar em conta as leis e utilizando-se do
medo como instrumento de dominação. Todavia, na ótica arendtiana,
tal interpretação do totalitarismo é supercial, pois não compreende as
características singulares que constituem esse fenômeno. Ela defende que
o governo totalitário “[...] destruiu a própria alternativa sobre a qual se
baseiam, na losoa política, todas as denições da essência dos governos,
isto é, a alternativa entre o governo legal e o ilegal, entre o poder arbitrário
e poder legítimo” (ARENDT, 2012, p. 613).
Na tradição do pensamento político ocidental, as distinções entre
legalidade e ilegalidade, legitimidade e ilegitimidade são fundamentais.
Um governo legal é aquele regido por leis, por uma Constituição, como é o
caso, na teoria de Montesquieu, da monarquia e da república. Um governo
ilegal, pelo contrário, é aquele no qual o soberano atua sem observar as leis.
Essa distinção entre legalidade e ilegalidade remete à segunda distinção:
quando o soberano age em conformidade com as leis estabelecidas em uma
dada comunidade, buscando o bem comum, então o poder é exercido de
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 103
maneira legítima. E, pelo contrário, quando o soberano não observa as leis
e almeja realizar seus próprios desejos e interesses, trata-se de um caso de
uso arbitrário do poder. A tirania é um caso deste último tipo, de modo
que podemos classicar os tipos de governo em tirânicos e não tirânicos
(monarquia e república). Assim, a ilegalidade (não seguir as leis) é a essência
dos governos tirânicos, enquanto a legalidade é a essência dos governos não
tirânicos. A oposição entre governo legal e ilegal corresponde, portanto, à
distinção entre poder legítimo e ilegítimo, o que Arendt enxerga como a
alternativa pela qual se denem as formas de governo tradicionais.
9
Os governos totalitários rompem com essa alternativa, pois
eles não observam as leis estabelecidas. Arendt lembra que os nazistas
não cumpriam e nunca se preocuparam em revogar a Constituição da
República de Weimar, ao passo que o stalinismo também não cumpria a
Constituição Soviética de 1936, que os próprios revolucionários criaram.
Por não seguir as leis constitucionalmente estabelecidas, o totalitarismo,
tal como a tirania, deveria ser considerado um governo ilegal e, por isso
mesmo, arbitrário, ilegítimo. Mas Arendt percebe que a questão é mais
complexa, uma vez que os governos totalitários lançam um desao às leis
positivas ao não as seguir: eles armam basear-se em uma forma superior
de legitimidade. Essa legitimidade decorre de sua obediência não ao direito
positivo estabelecido por um povo, mas sim àquilo que se acredita ser a
fonte mesma das leis positivas, a saber, as leis da Natureza (no caso do
nazismo) ou da História (no caso do stalinismo). Escreve a pensadora:
A armação monstruosa e aparentemente irrespondível do governo
totalitário é que, longe de ser “ilegal”, recorre à fonte de autoridade
da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade nal; que, longe
de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas
que qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu
poder no interesse de um só homem, está perfeitamente disposto a
sacricar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que
supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza. O seu desao às leis
Em “A grande tradição”, a pensadora arma que se a lei é vista enquanto aquilo que controla o poder, então
pouco importa se um, poucos ou muitos/todos governam. O relevante é se a lei é cumprida ou não. Por isso,
arma Arendt, a expressão tirania “[...] de Platão em diante, era usada não apenas para a perversão do governo
de um único homem, mas também indiscriminadamente para qualquer tipo de governo ilegal [...] Encontramos
a última consequência desta linha de pensamento no Zum Ewigen Frieden [À paz perpétua] de Kant, no qual
ele conclui que em vez de se distinguir muitas formas de governo, poder-se-ia dizer que há apenas duas, a
saber: o governo legal ou o constitucional, independentemente de quem ou de quantos possuem o poder [...]”
(ARENDT, 2011, p. 275).
Renato de Oliveira Pereira
104 |
positivas pretende ser uma forma superior de legitimidade que, por
inspirar-se nas próprias fontes, pode dispensar legalidades menores [...]
(ARENDT, 2012, p. 613, grifo nosso).
Arendt deixa patente, pois, a diferença estrutural entre a tirania e
o totalitarismo: este não é um regime arbitrário, que opera em função dos
interesses pessoais de quem exerce o poder soberano, tampouco funciona
sem a orientação de uma lei. Mas as leis que os governos totalitários seguem
não correspondem à Constituição de um determinado Estado, e sim às
forças naturais ou históricas que transcendem os seres humanos e, em tese,
constituem a fonte originária de todo ordenamento jurídico. É precisamente
a obediência às leis da Natureza ou da História que confere legitimidade
para os governos totalitários. Isso torna irrelevante a observância das leis
positivas nesses governos, já que estas são vistas como detalhes pequenos
que podem ser dispensados em prol da perfeita execução de uma lei maior,
transcendente.
Leitor de Hannah Arendt, Giorgio Agamben tem uma
interpretação diferente para esse problema. Baseado no jurista e teórico
nazista Carl Schmidt (1888-1985), ele vê essa forma de legitimidade como
o “estado de exceção”, um estado em que a constituição é colocada fora de
vigência para, em tese, restaurar a ordem social necessária para que as leis
possam ser adequadamente aplicadas. Nesse estado – que, para o autor, não
é privilégio dos regimes totalitários, embora estes sejam o exemplo mais
notório –, poder executivo e legislativo se confundem, já que o primeiro
assume a função do segundo por meio da emissão de decretos. O lósofo
italiano escreve que:
[...] tal confusão dene [...] uma das características do estado de
exceção. (O caso limite dessa confusão é o regime nazista em que,
como Eichmann não cansava de repetir, “as palavras do Führer têm
força de lei [Gesetzeskraft]”). Porém, do ponto de vista técnico, o
aporte especíco do estado de exceção não é tanto a confusão entre
os poderes, sobre a qual já se insistiu bastante, quanto o isolamento
da “força de lei” em relação à lei (AGAMBEN, 2004, p. 60-61).
Para Agamben, as palavras de Hitler tinham força de lei porque
a própria lei já não tinha mais força para ser aplicada, daí a inutilidade
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 105
de se abolir a Constituição da República de Weimar e, de modo geral, a
razão pela qual um soberano, em determinadas circunstâncias, se sente
desobrigado a observar as leis. Por outro lado, Arendt (2012, p. 613-614)
entende que:
[...] A legalidade totalitária pretende haver encontrado um meio
de estabelecer a lei da justiça na terra – algo que a legalidade da
lei positiva certamente nunca pôde conseguir. A discrepância entre
legalidade e justiça nunca pôde ser corrigida, porque os critérios
de certo e errado nos quais a lei positiva converte a sua fonte de
autoridade – a “lei natural” que governa todo o universo, ou a lei
divina revelada na história humana, ou os costumes e tradições que
representam a lei como para os sentimentos de todos os homens
– são necessariamente gerais e devem ser válidos para um número
sem conta e imprevisível de casos, de sorte que cada caso individual
concreto, com o seu conjunto de circunstâncias irrepetíveis, lhes
escapa de certa forma.
A pensadora acredita que as leis positivas derivam sua autoridade
de uma fonte originária, seja esta uma lei natural que rege o cosmos, uma
lei criada por um ser superior ou mesmo os costumes que os homens
produzem ao longo da história. Nas leis positivas, essa fonte de autoridade
é transformada em critérios de certo e errado, os quais servem de guia para
a conduta dos homens. Mas esses critérios são sempre gerais, de modo
a não poder guiar completamente a conduta humana em todos os casos
particulares, pois, dada a quantidade imprevisível desses casos, estes acabam
por não se encaixar adequadamente e por inteiro no quadro normativo de
referência. Por esta razão, a legalidade tradicional nunca pode promover
a justiça de maneira plena na terra, pois há sempre algo que escapa da
generalidade dos critérios que fundamentam as leis positivas. Isso explica
por que novas leis precisam ser criadas enquanto leis antigas devem ser
abolidas ou atualizadas na medida em que mudam as circunstâncias nas
quais os seres humanos vivem, de modo que a justiça, embora não seja
integralmente realizável, continua a pairar como uma espécie de horizonte
do qual os homens buscam se aproximar.
Em contraposição a esse limite inerente à legalidade e, por
conseguinte, aos governos legais, o totalitarismo tenta resolver a discrepância
Renato de Oliveira Pereira
106 |
entre legalidade e justiça ao não converter sua fonte de autoridade em
critérios de certo e errado que possam guiar a conduta individual. Por
não realizar essa conversão, os governos totalitários deixam de lado a
instauração de uma nova forma de legalidade, isto é, de um novo conjunto
de leis positivas, mas não recaem em tirania porque se mantêm rmes na
execução do que eles tomam como a lei da Natureza e da História. Essa
prática é possível no totalitarismo porque se “[...] aplica a lei diretamente
à humanidade, sem atender à conduta dos homens” (ARENDT, 2012, p.
614). Desta maneira, as singularidades que permeiam os atos humanos
desaparecem, pois se tem diante de si não uma multiplicidade de seres
humanos com características peculiares, mas sim uma abstração: o Homem,
isto é, o ser humano enquanto espécie.
A autora nota que “[...] a política totalitária arma transformar
a espécie humana em portadora ativa e inquebrantável de uma lei à qual
os seres humanos somente passiva e relutantemente se submeteriam
(ARENDT, 2012, p. 614). Ao identicar a espécie humana com a lei da
Natureza ou da História, o assentimento dos homens às leis deixa de ser
necessário para a sua aplicação. Assim, a pensadora enfatiza a diferença
entre o conceito totalitário de lei e os demais:
A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro,
não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma
revolução, uma nova forma de legalidade. O seu desao a todas as
leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica a crença
de que pode dispensar qualquer consensus iuris e ainda assim não
resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da arbitrariedade e
do medo. Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar
o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a
justiça na terra porque arma tornar a humanidade a encarnação
da lei (ARENDT, 2012, p. 615).
Arendt se apropria da noção de consensus iuris de Cícero, que não
discutiremos aqui.
10
Para os nossos propósitos, basta entendermos que o
10
Em sua obra denominada República, o lósofo romano escreve que um “[...] populus [povo] é não toda união
de homens de qualquer modo congregados, mas a união de inumeráveis homens associados por assentimento de
direito [consensus iuris] e utilidade comum” (CICERO. Da república, I, XXV apud SILVA FILHO, 2013, p. 85)
Para Cícero, um povo é a união de seres humanos com vistas a uma utilidade comum mediada por um conjunto
de leis que estes mesmos seres humanos, seguindo o direito natural, criam e aceitam obedecer em prol da cidade
da qual fazem parte. Celso Lafer observa que o conceito de consensus iuris foi substituído na modernidade pela
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 107
consensus iuris é uma espécie de assentimento às leis que é imprescindível para
os sistemas legais tradicionais, pois, como explica a pensadora, “[...] tanto
o julgamento moral como a punição legal pressupõem esse consentimento
básico; o criminoso só pode ser julgado com justiça porque faz parte do
consensus iuris, e mesmo a lei revelada de Deus só pode funcionar entre
os homens quando eles a ouvem e aceitam” (ARENDT, 2012, p. 614).
Sem o consentimento dos homens às leis, estas não têm nenhum poder
sobre eles. O consentimento às leis é dado porque são elas que regulam
as relações entre os membros de uma sociedade e impedem que o regime
político se torne arbitrário e violento. Os regimes totalitários, por sua vez,
não precisam do assentimento dos homens, já que não criam uma nova
legalidade. Mas isso, como vimos, não faz com que o governo totalitário
recaia em tirania, pois ele continua a ser orientado pela lei da Natureza ou
da História que está encarnada na própria espécie humana e que, por isso
mesmo, independe dos indivíduos humanos para se realizar.
A pensadora considera que o modo como os homens vivem
é sempre inconstante, o que faz necessário o estabelecimento de leis
positivas que, por derivarem sua autoridade de uma fonte tida como
eterna e, portanto, imutável, como a Natureza ou a Divindade, funcionam
como “[...] elementos estabilizadores para os movimentos dos homens
(ARENDT, 2012, p. 615, grifo nosso). Mas essa tentativa de estabilização
não é realizada para tolher o potencial dos seres humanos, limitando sua
liberdade e seu potencial de criar coisas novas. Pelo contrário, as leis têm o
papel justamente de garantir que esse potencial possa ser realizado, como
escreve a autora:
No governo constitucional, as leis positivas destinam-se a erigir
fronteiras e a estabelecer canais de comunicação entre os homens,
cuja comunidade é continuamente posta em perigo pelos novos
homens que nela nascem. A cada nascimento, um novo começo
surge para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir
[...] As leis circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo,
asseguram a sua liberdade de movimento, a potencialidade de algo
inteiramente novo e imprevisível; os limites das leis positivas são
para a existência política do homem o que a memória é para a
noção de constituição, particularmente na losoa kantiana, que o entende “[...] enquanto ideia reguladora
da razão prática, necessária para estabelecer-se um estado de direito entre uma multiplicidade de homens em
relação recíproca na res publica” (LAFER, 1989, p. 216).
Renato de Oliveira Pereira
108 |
sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo
comum, a realidade de certa continuidade que transcende a duração
individual de cada geração, absorve todas as novas origens e delas se
alimenta (ARENDT, 2012, p. 619).
A legalidade guarda uma relação intrínseca com a natalidade –
conceito que Arendt desenvolverá em A condição humana (1958) –, isto
é, ao fato de que os homens não são apenas seres mortais, que perecem,
mas também seres natais, que em algum momento aparecem em um
mundo desconhecido para eles e no qual precisam se inserir. A cada
nascimento, a cada novo ser humano que surge no mundo, uma nova
possibilidade se abre, inclusive para o próprio mundo. Em função dessa
condição, as leis positivas buscam garantir que haja certa continuidade
entre as diferentes gerações humanas para que as relações dos homens
entre si não precisem recomeçar sempre do nada. Isso não é feito para
impedir que a novidade possa emergir, ou seja, o caráter mutável de tudo
que é humano não é eliminado, e sim mediado pelas leis positivas com
o intuito de garantir uma estrutura de estabilidade na qual os homens
possam se movimentar e agir.
Nos regimes totalitários, as leis são interpretadas de modo oposto:
não como elementos estabilizadores, mas sim como leis do movimento.
Arendt relaciona essa maneira de enxergar a lei à mudança intelectual que
ocorreu no século XIX e que se baseia “[...] na recusa de encarar qualquer
coisa ‘como é’ e na tentativa de interpretar tudo como simples estágio de
algum desenvolvimento ulterior” (ARENDT, 2012, p. 617). Tanto as
coisas humanas quanto as naturais deixam de ser vistas da maneira como
elas aparecem para serem tomadas como parte de um processo mais amplo
que as abarca e as fazem ser o que são. Tal processo não é, contudo, um
movimento qualquer, uma vez que ele se encaminha para uma determinada
direção, ou seja, é um movimento unidirecional. Pelo fato de não ter
se esgotado, esse movimento continua a ocorrer, de sorte que as coisas
existentes hoje – assim como as coisas que existiam no passado –, serão,
no futuro, um estágio superado desse mesmo processo que as engendrou,
o que revela que tal movimento é também progressivo. Estamos, pois, em
face da ideia de progresso, que ganha força na losoa e na ciência do
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 109
século XIX e, para Arendt, embasa não só a atitude naturalista de Charles
Darwin como também a atitude histórica de Karl Marx.
11
A partir dos trabalhos de Darwin, a natureza deixou de ser
vista como um ciclo eterno no qual as mesmas espécies de animais e
plantas se reproduzem ao longo do tempo. Ao descobrir que as espécies
não são xas, Darwin propôs que elas resultam de um movimento (o
processo de evolução) desencadeado pela lei da natureza, isto é, pela
lei de sobrevivência dos mais aptos – daquelas espécies que conseguem
melhor se adaptar às condições do ambiente em que vivem e, assim, são
selecionadas naturalmente. Tendo em vista que esse processo evolutivo se
encontra inacabado, conclui-se que as espécies atuais não constituem o
ápice da evolução e, por conseguinte, que apenas as mais aptas das espécies
atuais sobreviverão ao porvir. Considerado enquanto uma espécie animal
dentro do movimento da natureza, o ser humano também não está no
estágio último do processo evolutivo, e é nessa ideia que, segundo Arendt,
se alicerça “[...] a crença nazista em leis raciais como expressão da lei da
natureza” (ARENDT, 2012, p. 616).
A teoria de Marx, por sua vez, apresenta a história como o produto da
luta de classes que se estabelece entre os homens. As diferentes classes, dentro
de uma mesma sociedade, se constituem em função do desenvolvimento das
forças produtivas e da maneira como essas são desigualmente apropriadas
pelos homens. Em função dessa desigualdade, cria-se uma luta de classes que
só poderá ndar – e, com ela, a própria história – quando a classe dominante
for extinta e os meios de produção que ela detém – razão pela qual ela é a
classe dominante – forem socializados. Arendt também identica em Marx
um movimento unidirecional e progressivo regido por uma lei, a saber, a lei
de sobrevivência das classes mais progressistas. Tal ideia fundamenta “[...] a
crença bolchevista numa luta de classes como expressão da lei da história
(ARENDT, 2012, p. 616).
As ideias de Darwin e Marx chamam a atenção de Arendt na
medida em que ambas trabalham com a noção de uma força motriz
11
Devido os limites deste livro, restringir-nos-emos a apresentar apenas a perspectiva arendtiana acerca das
ideias de Charles Darwin e de Karl Marx, sem recorrermos às obras mesmas desses autores. Arendt reconhece a
grandiosidade deste último, embora seja crítica de suas ideias, sobretudo em relação à categoria trabalho. Sobre
essa questão, conferir: ARENDT, 2007 (Cap. I – A Tradição e a Época Moderna) e ARENDT, 2010 (Cap.
III – Trabalho). É preciso ressaltar, no entanto, que Arendt não responsabiliza nem Darwin nem Marx pelo
uso que nazistas e stalinistas, respectivamente, zeram de suas ideias para fundamentar e justicar suas ações e
objetivos políticos.
Renato de Oliveira Pereira
110 |
transcendente”, de modo que tanto a lei da natureza quanto a da história
dizem respeito a um só e mesmo movimento: a lei “natural” de Darwin
também é histórica, pois ela se realiza historicamente, de modo que é
possível a identicação de diferentes momentos dentro do movimento
unidirecional no qual as transformações das diferentes formas de vida se
manifestam. Da mesma maneira, o processo histórico revelado por Marx
é também natural, já que, como escreve a autora, o trabalho, componente
basilar das forças produtivas, “[...] não é uma força histórica, mas natural-
biológica – produzida pelo ‘metabolismo [do homem] com a natureza’,
através do qual ele conserva a sua vida individual e reproduz a espécie
(ARENDT, 2012, p. 616).
A ênfase no aspecto processual das coisas, considerando-as como
expressão de um estágio do desenvolvimento de forças sobre-humanas,
intriga a pensadora porque um nal (um télos) para esses movimentos é
vislumbrado, o qual tende a ser visto como um objetivo a se perseguir.
Para Arendt, os governos totalitários almejam liberar essas forças sobre-
humanas da natureza ou da história para alcançar seu objetivo nal, a
saber, a fabricação da humanidade: o estágio em que o homem alcançará
a plenitude de seu desenvolvimento natural ou histórico. Em vista desse
m, o papel que nos regimes legais cabe às leis positivas é substituído
nos regimes totalitários pelo terror, como escreve Arendt: “o terror é a
legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-
humana, seja a Natureza ou a História” (ARENDT, 2012, p. 618). Nesse
sentido, o terror é a própria essência do domínio totalitário e sua função
não é apenas eliminar a oposição ao regime, uma vez que ele continuaria
a atuar mesmo que não houvesse opositores. A pensadora explica que, do
mesmo modo como “[...] a ausência de crimes numa sociedade não torna
as leis supéruas, mas, pelo contrário, signica o mais perfeito domínio da
lei [...]” (ARENDT, 2012, p. 617), o terror “[...] reina supremo quando
ninguém mais lhe barra o caminho” (2012, p. 618).
Mas se as forças da Natureza e da História são sobre-humanas,
por que é preciso que os homens se utilizem do terror para propagá-las?
Por que é necessário que os homens, por meio de um regime político,
cooperem com a execução de leis que, por os transcenderem, deveriam
submetê-los mesmo contra a sua vontade? As leis do movimento da
Natureza e da História precisam do terror para se realizar? Ora, por serem
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 111
sobre-humanas, tais leis não necessitam de qualquer auxílio por parte dos
homens, pois suas forças sobrepõem imensamente às forças que podem
ser exauridas dos seres humanos, de sorte que o movimento da natureza/
história continuaria a uir independentemente da vontade ou das ações
humanas. No entanto, Arendt observa que, se as ações humanas não
podem impedir inelutável movimento, elas podem retardá-lo. Assim, o
objetivo do terror é acelerar o movimento da Natureza ou da História.
Tal intento é realizado por meio da tentativa de estabilizar os homens,
isto é, de impedi-los de se movimentar, de agir, o que só é possível pelo
aniquilamento da liberdade humana. Escreve a pensadora:
[...] como servo obediente do movimento natural ou histórico, [o
terror] tem de eliminar não apenas a liberdade em todo sentido
especíco, mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento
do homem e na sua capacidade de começar algo novo. No cinturão
de ferro do terror que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos
aquele Um que invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte
da corrente da história ou da natureza, encontrou-se um meio não
apenas de libertar as forças históricas ou naturais, mas de imprimir-
lhes uma velocidade que elas, por si mesmas, jamais atingiriam.
Na prática, isso signica que o terror executa sem mais delongas as
sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra
aquelas raças ou aqueles indivíduos que são “indignos de viver”, ou
que a História decretou contra as “classes agonizantes”, sem esperar
pelos processos mais lerdos e menos ecazes da própria história ou
natureza (ARENDT, 2012, p. 620-621).
Diferentemente da tirania, o governo totalitário não só restringe
a liberdade humana como também almeja eliminar a própria fonte da
liberdade, ou seja, ele busca retirar do homem a capacidade de iniciar algo
novo – de desencadear por sua ação uma nova série de acontecimentos
– para que todo e qualquer início ou m sejam sempre os do próprio
movimento da Natureza ou da História. Com este to, o terror atua para
suprimir todas as diferenças entre os homens, isto é, a pluralidade humana,
de modo que é como se todos os seres humanos singulares fossem cingidos
por um cinturão de ferro que, ao pressionar uns contra os outros, elimina
qualquer espaço no qual os homens podem agir e se distinguir dos demais.
Para destituir os homens de um espaço de ação, o terror destrói tanto a
Renato de Oliveira Pereira
112 |
vida pública, como faz a tirania, quanto o próprio interior do lar, isto é,
a vida privada, a qual foi muitas vezes o refúgio onde a liberdade cava
resguardada do tirano.
Ao ter sua singularidade e sua liberdade impedidas de se efetivar,
os homens deixam de agir e passam apenas a se comportar, como se fossem
um único Homem de dimensões gigantescas. É nessa humanidade articial
que as leis da Natureza ou da História podem se propagar de maneira veloz
por meio da execução das sentenças de morte levadas a cabo pelo terror,
que, como escreve a pensadora, “[...] elimina os indivíduos pelo bem da
espécie, sacrica as ‘partes’ em prol do todo” (ARENDT, 2012, p. 618).
Mas o terror é apenas um executor, ou seja, ele mesmo não
escolhe as suas vítimas, nem os seus carrascos, mas age de acordo com leis
transcendentes. Não são as ações dos indivíduos, portanto, que denem
se eles são culpados ou inocentes, se são ou não inimigos da humanidade.
Após ter sua espontaneidade eliminada, os homens nada mais podem fazer
senão sofrer as consequências de causas externas que determinam o seu
comportamento e o seu destino. Assim, do ponto de vista dos sujeitos,
não há culpa nem inocência, já que são as leis da Natureza ou da História
que determinam a cada indivíduo o papel que lhes cabe dentro do regime
totalitário, como arma Arendt (2012, p. 618):
Culpa e inocência viram conceitos vazios; “culpado” é quem
estorva o caminho do processo natural ou histórico que já emitiu
julgamento quanto às “raças inferiores”, quanto a quem é “indigno
de viver”, quanto a “classes agonizantes e povos decadentes”. O
terror manda cumprir esses julgamentos, mas no seu tribunal todos
os interessados são subjetivamente inocentes: os assassinados porque
nada zeram contra o regime, e os assassinos porque realmente não
assassinaram, mas executaram uma sentença de morte pronunciada
por um tribunal superior. Os próprios governantes não armam
serem justos ou sábios, mas apenas executores de leis históricas ou
naturais; não aplicam leis, mas executam um movimento segundo
a sua lei inerente.
A convicção que se tem é a de que o movimento da Natureza
realizar-se-ia mais rapidamente se não houvesse as raças inferiores que
atrapalham o seu caminho. De forma análoga, o movimento da História,
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 113
por sua vez, alcançaria mais facilmente o seu m se as classes agonizantes
não interrompessem o seu desenvolvimento. São os indivíduos que
pertencem a esses estratos da natureza ou da sociedade que os governos
totalitários buscam eliminar, e isso não pelo que eles eventualmente
zeram contra ou a favor do regime, mas simplesmente por serem o que
são. Como o movimento é a própria essência do totalitarismo, Arendt
atenta para o aterrorizante fato de que “[...] a lei de matar, pela qual os
movimentos totalitários tomam e exercem o poder, permaneceria como lei
do movimento mesmo que conseguissem submeter toda a humanidade ao
seu domínio” (ARENDT, 2012, p. 617).
2.3 o princípio de Ação (movimento) do totAlitArismo: A
ideologiA
Ao contrário das demais formas de governo, o domínio totalitário
perfeito não necessita de um princípio de ação, isto é, de uma paixão que
leve os homens a agirem. Isso ocorre porque os homens sequer podem
agir, mas apenas operar aquilo que foi denido de antemão pelas leis do
movimento da Natureza ou da História. Como esse movimento corresponde
a uma espécie de legalidade executada pelo terror, então o próprio terror
também exerce a função de princípio não de ação – “[...] pois este só fará
eliminar no homem precisamente a sua capacidade de agir” (ARENDT,
2012, p. 622) –, mas de movimento, o que torna desnecessária a existência
de um princípio distinto da essência do regime totalitário. Porém, Arendt
nota que, enquanto o totalitarismo não submete o mundo todo ao seu
domínio, o terror não consegue exercer sua dupla função de essência e de
princípio. Quando domina apenas uma parte do mundo ou um país, o
totalitarismo necessita, assim como as outras formas de governo, de um
princípio de movimento diferente de sua essência para “[...] inspirar e
guiar o comportamento humano [e não a ação humana, pois os homens
não agem nesse domínio]” (ARENDT, 2012, p. 622).
Em geral, compreende-se que o medo, tal como na tirania, é o
princípio de movimento do totalitarismo. Arendt, todavia, descarta essa
possibilidade, tendo em vista que “[...] o medo perde sua utilidade prática
quando as ações que inspira já não ajudam a evitar o perigo que se teme
(ARENDT, 2012, p. 622). Não obstante ser um sentimento disseminado
Renato de Oliveira Pereira
114 |
entre os indivíduos que vivem sob um governo totalitário, o medo não
pode mover o corpo político, porque aquilo que se teme é denido por leis
que transcendem os desejos e as ações dos homens e, por isso, nada pode
ser feito para evitar o perigo, o que torna o medo inútil. O totalitarismo
exige um princípio que, diferente das outras formas de governo, não tenha
origem na esfera da ação humana. Como escreve Arendt, é por esse motivo
que esse regime introduziu:
[...] um princípio inteiramente novo no terreno das coisas públicas
que dispensa inteiramente o desejo humano de agir, e atende à
desesperada necessidade de alguma intuição da lei do movimento,
segundo a qual o terror funciona e da qual, portanto, dependem
todos os destinos pessoais (ARENDT, 2012, p. 623).
A pensadora indica duas nalidades que o princípio de
movimento do totalitarismo deve cumprir, a saber: (1) ser independente
do desejo humano de agir e trabalhar justamente para eliminar tal desejo
– que, como vimos, emerge da liberdade inerente aos homens, isto é, da
própria condição humana da natalidade; (2) oferecer aos súditos do regime
algum tipo de noção da lei do movimento da Natureza ou da História
– que rege a sociedade por meio do terror – para poder capturá-los por
esse movimento, ou seja, para inseri-los na lógica do regime. Essas duas
nalidades do princípio de movimento expressam a necessidade do regime
totalitário preparar os seus súditos para que eles “[...] se ajustem igualmente
bem ao papel de carrasco e ao papel de vítima” (ARENDT, 2012, p. 623).
Para a efetivação do domínio totalitário, é necessário que os
indivíduos assumam adequadamente o lugar que lhes cabe dentro do
regime, o que exige uma preparação. Esta é feita por meio do princípio dos
regimes totalitários que, ao destituir os indivíduos do desejo e da vontade
de agir e fazê-los intuir a lei do movimento que rege o governo totalitário,
prepara-os para o exercício do papel que lhes cabe dentro do regime: o
de vítima ou de carrasco. É preciso notar que os carrascos de hoje podem
se tornar as vítimas de amanhã, de modo que a preparação é bilateral:
os indivíduos são igualmente preparados para se adequar a qualquer um
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 115
dos dois papéis. Arendt entende que esse preparo bilateral, que dene as
vítimas e também os carrascos, é realizado pela ideologia.
12
O conceito arendtiano de ideologia não se restringe à ideia da
ideologia, isto é, ao seu conteúdo ideológico, mas enfatiza a lógica que se
aplica a tal ideia. Nas palavras da pensadora:
Uma ideologia é bem literalmente o que o seu nome indica: é a lógica
de uma ideia. O seu objeto de estudo é a história, à qual a “ideia” é
aplicada; o resultado dessa aplicação não é um conjunto de postulados
acerca de algo que é, mas a revelação de um processo que está em
constante mudança. A ideologia trata do curso dos acontecimentos
como se seguisse a mesma “lei” adotada na exposição lógica da sua
“ideia”. As ideologias pretendem conhecer os mistérios de todo o
processo histórico – os segredos do passado, as complexidades do
presente, as incertezas do futuro – em virtude da lógica inerente de
suas respectivas ideias (ARENDT, 2012, p. 624).
Uma ideologia não é um estudo cientíco sobre uma determinada
ideia do mesmo modo que a biologia, por exemplo, é o estudo sobre a bíos,
isto é, sobre as diferentes formas de vida. As ideologias não visam revelar
algo acerca da natureza do ser, dizer o que uma coisa é. Seu objeto é o
movimento, o uxo dos acontecimentos, isto é, a história. Não importa se
essa ideologia corresponda a uma lei histórica propriamente dita (como no
caso do stalinismo) ou a uma lei da natureza (como no caso do nazismo),
pois, como vimos, o movimento da natureza é realizado na história, de
sorte que diferentes momentos sucessivos do movimento da lei da natureza
são expressos historicamente. Nesse sentido, o objetivo do racismo, por
exemplo, não é estudar cienticamente a ideia de raça, mas sim utilizar a
ideia de raça para realizar uma leitura unívoca e coerente do movimento
da história.
Essa leitura só pode ser feita porque se supõe implicitamente
que “o movimento da história e o processo lógico da noção de história
supostamente correspondem um ao outro, de sorte que o que quer que
aconteça, acontece segundo a lógica de uma ‘ideia’” (ARENDT, 2012, p.
12
O conceito de ideologia recebeu diversas conotações ao longo da história do pensamento político. Contudo,
em razão dos limites deste livro, trabalharemos com a noção de ideologia proposta por Hannah Arendt, sem nos
preocuparmos, neste momento, em realizar um embate crítico entre o conceito arendtiano e o de outros autores.
Renato de Oliveira Pereira
116 |
625). Mas o movimento lógico não é senão um processo dedutivo que parte
de uma premissa tida como axiomática, isto é, evidente por si mesma, a
partir da qual tudo o mais é deduzido. A história, por sua vez, expressa um
curso de acontecimentos que não tem um o condutor bem denido, isto é,
não é constituída por relações causais e, por isso mesmo, admite reviravoltas
e contradições que a lógica não pode aceitar. São movimentos distintos,
mas, quando a lógica de uma ideia se aplica à história, as contradições são
eliminadas. Isso ocorre porque ao aplicar “[...] a uma ideia a lógica como
movimento de pensamento – e não como o necessário controle do ato
de pensar – essa ideia se transforma em premissa” (ARENDT, 2012, p.
626). Quando a ideia é tomada como premissa de um movimento lógico,
o que se segue dela, isto é, o que dela pode ser deduzido, ganha um poder
explicativo capaz de encaixar o mundo em seus esquemas e, assim, ignorar
experiências que possam contradizê-la. Arendt (2012, p. 626) explica:
As ideologias pressupõem sempre que uma ideia é suciente para
explicar tudo no desenvolvimento da premissa, e que nenhuma
experiência ensina coisa alguma porque tudo está compreendido
nesse coerente processo de dedução lógica. O perigo de se trocar
a necessária insegurança do pensamento losóco pela explicação
total da ideologia e por sua Weltanschauung [visão de mundo] não
é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente
vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade
inerente da capacidade humana de pensar pela camisa de força
da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente
quanto uma força externa.
A ideologia promove um distanciamento da realidade factual,
uma vez que, como tudo é explicado segundo o seu movimento coerente,
nada pode escapar: as contradições são, assim, perfeitamente evitadas, já
que o pensamento, aprisionado pela força coercitiva do movimento lógico,
simplesmente não é capaz de reconhecê-las enquanto tal. E é justamente
aqui que surge o perigo, pois, quando se troca a capacidade de pensamento
pela prisão da lógica, não se consegue vislumbrar nada diferente do que é
imposto como verdadeiro pela ideologia. Isso tem o poder de subjugar o
homem internamente de maneira quase tão violenta quanto uma força que
é externa, uma vez que os homens acabam atuando como se a realidade
fosse a imagem falseada que lhes é oferecida.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 117
Embora acredite que as ideologias não engendrem, por si
mesmas, o totalitarismo, Arendt pensa que todas elas possuem elementos
totalitários que se manifestam quando elas são colocadas em movimento,
isto é, quando movimentos totalitários delas se apropriam. Com efeito,
nazismo e stalinismo se apropriaram de suas ideologias não porque essas
ideologias eram providas de elementos totalitários que as outras não
detinham, mas sim “[...] porque os elementos da experiência nos quais
originalmente se baseavam – a luta entre as raças pelo domínio do mundo,
e a luta entre as classes pelo poder político nos respectivos países – vieram a
ser politicamente mais importantes do que outras ideologias” (ARENDT,
2012, 626).
A pensadora identica três elementos totalitários que compõem
todas as ideologias. O primeiro desses elementos é a tentativa de oferecer
uma explicação total da realidade, de modo que esta se torna um todo
coerente que pode ser explicado por meio do movimento que a constitui,
isto é, pela própria história, lida e contada segundo o movimento da lógica
de uma ideia. Com a aplicação da lógica de uma ideia à história, torna-se
possível “[...] esclarecer todos os acontecimentos históricos – a explanação
total do passado, o conhecimento total do presente e a previsão segura do
futuro” (ARENDT, 2012, p. 627).
O segundo elemento totalitário presente nas ideologias é capacidade
de emancipar-se da experiência, isto é, da realidade factual que nos é dada
pelos nossos sentidos. As ideologias fazem isso ao insistirem na existência
de uma realidade oculta, porém “mais verdadeira”, cujo acesso não pode
ser realizado por meio dos sentidos comuns, e sim por meio de um sexto
sentido, qual seja, a própria ideologia, que desvela a verdadeira constituição
da realidade. Ou seja, nada é o que parece, de modo que não é possível
conar nas aparências. O totalitarismo fomenta essa desconança em relação
aos fatos por meio da propaganda totalitária, a qual procura “[...] injetar
um signicado secreto em cada evento público tangível e farejar intenções
secretas atrás de cada ato político” (ARENDT, 2012, p. 627).
Da mesma maneira, Arendt pensa que a ideia de conspiração que
os governos totalitários adotam logo após assumirem o poder contribui
para criar uma atmosfera de desconança que resvala para todos os âmbitos
da vida, inclusive para o pensamento. Isso ocorre porque, na medida em
que os governos totalitários proclamam que seus verdadeiros inimigos são
Renato de Oliveira Pereira
118 |
conspiradores, as aparências são postas em xeque, pois os conspiradores
são justamente aqueles que aparentam estar a favor do regime quando, de
fato, se utilizam de meios escusos para prejudicar o corpo político como
um todo. Arendt escreve que o conceito de conspiração “[...] produz uma
mentalidade na qual já não se experimenta e se compreende a realidade em
seus próprios termos [como ela se apresenta] – a verdadeira inimizade ou
a verdadeira amizade – mas automaticamente se presume que ela signica
outra coisa” (ARENDT, 2012, p 627-628). É como se tudo se tornasse
nebuloso, o que faz do raciocínio lógico o único instrumento no qual os
homens podem se amparar para supostamente obter alguma certeza.
O terceiro elemento totalitário que Arendt acredita estar presente
nas ideologias é a libertação do pensamento da experiência. Uma vez que as
ideologias não podem criar completamente a realidade nem a transformar,
elas utilizam-se da dedução, a qual faz o pensamento apreender o
movimento da realidade diferentemente da maneira como ele se apresenta.
A autora explica que “[...] o pensamento ideológico arruma os fatos sob a
forma de um processo absolutamente lógico que se inicia a partir de uma
premissa aceita axiomaticamente; tudo o mais sendo deduzido dela; isto
é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da
realidade” (ARENDT, 2012, p. 628). Essa arrumação dos fatos é o cerne
da lógica de uma ideia aplicada à história, a qual atribui aos acontecimentos
uma coerência que só pode existir articialmente. O único ponto em que
a realidade é chamada para dar seu testemunho é no estabelecimento da
premissa, que exige que a ideia – o conteúdo da ideologia – seja vericada
no mundo, já que todo axioma é indemonstrável. Após a aceitação da
ideia como premissa, a realidade não é mais consultada, pois o movimento
lógico de dedução que parte da premissa “[...] não emana da experiência,
mas gera-se a si próprio” (ARENDT, 2012, p. 628), ou seja, é independente
da realidade factual. E é aqui que pensamento e experiência se separam,
pois “[...] uma vez que tenha estabelecido a sua premissa, o seu ponto de
partida, a experiência já não interfere com o pensamento ideológico, nem
este pode aprender com a realidade” (ARENDT, 2012, p 628).
Apartado da realidade, o pensamento está preso à tirania da
lógica, condição para que seja possível que os líderes totalitários consigam
mobilizar as massas. Eis, portanto, o resultado do princípio de movimento
do totalitarismo, aquele preparo bilateral:
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 119
O preparo das vítimas e dos carrascos, que o totalitarismo requer em
lugar do princípio de ação de Montesquieu, não é a ideologia em si
– o racismo ou o materialismo dialético –, mas a sua lógica inerente.
Nesse ponto, o argumento mais persuasivo – argumento muito a
gosto de Hitler e de Stálin – é: não se pode dizer A sem dizer B e
C, e assim por diante, até o m do mortífero alfabeto (ARENDT,
2012, p. 630, grifo nosso).
A ideia da ideologia, embora seja o aspecto que mobilize as
massas no momento inicial dos governos totalitários, não é o aspecto
que movimenta o corpo político. Arendt acredita que é da natureza das
políticas ideológicas a perda do conteúdo ideológico, pois o que seduz
líderes como Hitler e Stálin é o processo lógico que pode ser deduzido da
ideia. Como consequência, “[...] o verdadeiro conteúdo da ideologia (a
classe trabalhadora ou os povos germânicos)”, acaba por ser “[...] devorado
pela lógica com que a ‘ideia’ é posta em prática” (ARENDT, 2012, p.
630). O movimento, que adquire uma importância em si, se estabelece
justamente porque, além da destruição que o terror promove nos espaços
onde a liberdade política podia ser exercida, a liberdade interior dos homens
é aniquilada quando “[...] a força autocoercitiva da lógica é mobilizada
para que ninguém jamais comece a pensar” (ARENDT, 2012, p. 631).
Torna-se patente, pois, o mecanismo de que o totalitarismo se
utiliza para prejudicar a capacidade dos indivíduos de exercer a atividade
do pensamento: o movimento desencadeado pelo processo dedutivo da
ideologia destrói o contato que os homens têm com os seus semelhantes e
também com a realidade, condição propedêutica para que eles exerçam o
seu papel dentro do regime. Ao comparar a ação do terror e da ideologia,
Arendt (2012, p. 632) escreve:
Do mesmo modo como o terror, mesmo em sua forma pré-total e
meramente tirânica arruína as relações entre os homens, também
a autocompulsão do pensamento ideológico destrói toda relação
com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdem
o contato com os seus semelhantes e com a realidade que as
rodeia; pois, juntamente com esses contatos, os homens perdem
a capacidade de sentir e de pensar. O súdito ideal do regime
totalitário não é o nazista convicto, nem o comunista convicto,
mas aquele para quem já não existe diferença entre o fato e a
Renato de Oliveira Pereira
120 |
cção (isto é, a realidade) e a diferença entre o verdadeiro e o falso
(isto é, os critérios do pensamento).
Os regimes totalitários não almejam insuar convicções
ideológicas nos indivíduos, mas antes impedir que eles possam adquiri-las.
Isso faz com que o súdito ideal do regime totalitário não seja aquele que
tem plena convicção na ideia em que se baseia a ideologia ocial do governo
totalitário, mas sim aquele que, completamente imerso no movimento da
lógica de uma ideia, já não tenha condições de pensar por si próprio para
discernir o verdadeiro do falso e diferenciar o fato da cção. Dessa maneira,
a ideologia complementa o processo de transformação dos homens em
seres supéruos que o terror inicia, de modo a eliminar sua espontaneidade
e retirar-lhes a fonte de sua liberdade: a natalidade. Os homens tornam-se
supéruos, seres reduzidos à mera função biológica, que não podem agir,
pois estão mergulhados “[...] naquele gigantesco movimento da História ou
da Natureza que supostamente usa a humanidade como material e ignora
o nascimento e a morte” (ARENDT, 2012, p. 631). Por conseguinte,
certamente tais homens não têm condições de julgar eticamente as ações
do regime. Não seria Eichmann – retomando as questões que colocamos
ainda no primeiro capítulo deste livro – uma gura bem próxima ao súdito
ideal do regime totalitário?
2.4 A “lógicA de umA ideiAe A incApAcidAde de pensAr de
eichmAnn
Em “Domínio total” (“Total domination”), última seção do
terceiro capítulo da parte III de OT, Arendt assevera que o domínio
totalitário não é atingido completamente “[...] enquanto todos os homens
não se tornam igualmente supéruos – e isso só se consegue nos campos
de concentração” (ARENDT, 2012, p. 605). Arendt foi uma das primeiras
pensadoras a considerar os campos de concentração e extermínio como a
instituição central dos regimes totalitários, uma vez que, em suas palavras,
os campos “servem como laboratórios onde se demonstra a crença
fundamental do totalitarismo de que tudo é possível” (ARENDT, 2012,
p. 581). Para a pensadora, os campos funcionam como laboratórios em
que se experimenta a transformação da própria condição humana, isto é, o
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 121
aniquilamento da liberdade, a redução do homem a um simples organismo
biológico. A centralidade do campo de concentração reside no fato de que
é nessa instituição que terror e ideologia se encarnam de maneira perfeita
e completa, de modo que, sem campo de concentração, não se pode falar
em dominação totalitária.
Outros autores também corroboram as armações de Arendt
acerca dos campos de concentração. Em É isto um homem?, Primo Levi
fornece um impressionante relato da vida no campo de concentração de
Auschwitz-Monowitz e de como ele conseguiu sobreviver por uma série
de acasos e de oportunidades. Em seu testemunho, o escritor italiano
mostra como os campos de concentração nazistas não se reduziam ao
extermínio ou ao trabalho forçado, mas que eram, sobretudo, “[...]
uma notável experiência biológica e social” (LEVI, 1988, p. 88). Levi
relata como os prisioneiros – conjunto composto por presos políticos,
criminosos comuns e, majoritariamente, por judeus – eram colocados
em condições degradantes nas quais sofriam com o frio, a fome, a
sede, a sujeira, a higiene precária, as doenças, os trabalhos pesados,
as roupas imundas, os dormitórios abarrotados pelos connados que
compartilhavam as mesmas camas, a constante tensão e medo acerca
do que iria acontecer, a violência física, as humilhações, a difícil
comunicação devido às diferentes línguas que os prisioneiros falavam
e a desorientação resultante da não compreensão das ordens dadas
em alemão, entre outras. Para Levi (1988), essas condições faziam os
prisioneiros viverem de um modo muito mais próximo aos animais
selvagens do que como seres humanos civilizados, fato que se expressava,
entre outros aspectos, na sionomia dos prisioneiros, no seu odor, no
seu desamparo – daí a pergunta provocativa no título do livro de Levi:
É isto um homem?
Em O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben também
chama a atenção para a experiência de desumanização que ocorre nos
campos de concentração e que atinge seu ponto máximo na gura do
mulçumano. Essa gura representa o caso extremo descrito por Levi
(1998; 2004) do prisioneiro que praticamente perdeu sua capacidade
de falar e de agir, e apenas sobrevive como uma espécie de animal,
quase como um feixe de reações. É justamente a produção dessa gura,
ou seja, de seres completamente condicionados, que Hannah Arendt
Renato de Oliveira Pereira
122 |
denomina de “mal radical” com intuito de expressar o mal extremo,
absoluto (ARENDT, 2012, p. 604). Agamben (2008, p. 60) escreve
que a gura do mulçumano:
[...] implica que o paradigma do extermínio, que até aqui
orientou de maneira exclusiva a interpretação dos campos, seja
não substituído, mas acompanhado por outro paradigma, que
lança nova luz sobre o extermínio, tornando-o de algum modo
ainda mais atroz. Antes de ser o campo da morte, Auschwitz
é o lugar de um experimento ainda impensado, no qual, para
além da vida e da morte, o judeu se transforma em mulçumano,
e o homem em não-homem. E não compreenderemos o que é
Auschwitz se antes não tivermos aprendido a olhar com ele [o
mulçumano] para a Górgona.
O lósofo italiano enfatiza que não só a destruição física dos
judeus movia os campos, mas sim a transformação do homem em não
homem, ou seja, da vida humana digna de tal nome (um bíos) em uma
vida pura e simples, similar à de um animal (zoé). Embora ele acredite que
esse tipo de análise tenha sido deixado de lado, é patente que os estudos
de Arendt corroboram para essa perspectiva. Porém, enquanto Arendt
acreditava que os campos eram uma instituição dos regimes totalitários, os
quais ela temia que pudessem ser reativados em momentos que pareçam
“[...] impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo
digno do homem” (ARENDT, 2012, p. 610), Agamben defende que os
campos se tornaram o paradigma biopolítico do moderno no seio das
chamadas democracias liberais (AGAMBEN, 2002).
Mas, em relação ao caso Eichmann, sabemos que ex-tenente-
coronel da SS não foi prisioneiro de um campo de concentração, e sim um
carrasco a serviço do regime nazista. De onde vem, então, a sua justicativa
de que era apenas executor de atividades que resultavam no mal extremo
e de que não se sentia em condições de fazer nada a respeito? Como
entender que sua armação de que ele só cumpria ordens, sem ao menos
ter um ódio arraigado aos judeus? Como compreender que ele tenha se
disposto a realizar operações que resultavam em violência extrema, na total
degradação de outros seres humanos?
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 123
Se levarmos em conta que no ensaio “Ideologia e terror
Arendt arma que tanto as vítimas quanto os carrascos são selecionados
de maneira objetiva, independentemente de suas convicções pessoais,
podemos supor que Eichmann era, em certa medida, um indivíduo
supéruo, justamente porque ele se recusava a pensar por conta própria
e a agir e, por isso, se aproximava do modelo ideal de cidadão do
totalitarismo. Assistente e herdeiro testamentário das obras de Arendt,
Jerome Kohn (2001, p. 14) comenta:
De acordo com as regras originadas da ideologia com que o
movimento nazista respondia ao mundo no qual cresceu, um
homem fora condicionado a ser um assassino, embora assassino
frio, sem emoção, sem motivação e agindo muito mais como o
cachorro de Pavlov que fora condicionado a salivar sem sentir fome.
Eichmann não era um cachorro e sim um homem, mas realizou o
exercício da livre escolha como se fosse um animal condicionado.
Arendt procura mostrar através de seu “relato” que Eichmann
não agiu espontaneamente ou tomou a iniciativa, que ele evitou a
responsabilidade e não julgou.
Eichmann agiu como se fosse um animal condicionado, ou
seja, como se não fosse um ser humano livre. É aqui que o ex-tenente-
coronel da SS aparece para Arendt como um desao ao pensamento: o
papel de Eichmann, em um dos maiores crimes contra a humanidade,
foi realizado sem nenhuma motivação profunda em função de um modo
de viver mecânico – ele agia como um simples burocrata que cumpria
ordens, sem nunca questioná-las. Esse modo de conduzir a vida – quase no
piloto automático – faz parte da maneira como o princípio de movimento
dos regimes totalitários atua, de modo a distanciar os indivíduos de seus
semelhantes e da realidade e, assim, impedi-los de pensar e de agir. Não é
fortuito, então, que em EJ Arendt possa constatar que o distanciamento da
realidade e a incapacidade de pensar podem causar mais destruição de que
todos os maus instintos juntos.
Em verdade, como escreve Kohn, Eichmann pode ser considerado
como um modelo ideal de cidadão do regime totalitário, mas o aspecto
que chama a atenção é que sua humanidade “[...] não lhe foi retirada
por nenhuma espécie de força ou violência” (KOHN, 2001, p. 13-14, n.
Renato de Oliveira Pereira
124 |
21).
13
Eichmann não precisou passar por um campo de concentração para
tornar-se um ser supéruo: ele simplesmente renunciou à sua capacidade
de agir e de pensar de maneira livre. A ideologia, não enquanto convicção
ideológica, mas sim como a lógica de uma ideia, teve papel preponderante
para a realização desse condicionamento.
A lógica de uma ideia fez com que Eichmann praticasse o mal sem,
contudo, transformá-lo em um criminoso sem escrúpulos. Um criminoso
sem escrúpulos é aquele que, mesmo ciente dos resultados malécos de
sua ação, pratica-a deliberadamente em busca de algum tipo de vantagem.
Diferente de um criminoso sem escrúpulos, Eichmann tem alguns limites:
ele não mataria o seu superior para tomar o seu cargo, por exemplo. Ou
seja, prejudicar o seu superior em busca de vantagens pessoais era, para ele,
um limite ético que ele não poderia ultrapassar. Mas conduzir milhões de
judeus para a morte não era. Por quê?
O antigo tenente-coronel da SS, apesar de negar ser um
antissemita, não via como problemático o papel que exercia na morte
de judeus e de outros grupos considerados como inimigos do regime
nazista. Como esse tipo de atividade não era considerada ilegal, Eichmann
praticava o mal acreditando realizar bem a sua função, sem pensar
naquilo que estava fazendo, o que o tornava indiferente para aquilo que
estava em jogo: pessoas que nunca tinham feito nada concretamente
contra o regime eram condenadas a um destino fatal. Na ótica de
Arendt, Eichmann decidiu não se importar com o resultado maléco
das ações que ele realizava em busca da satisfação de seu desejo por uma
vida bem-sucedida. Sua consciência mantinha-se imperturbada por ter
sido condicionada pelo regime: Eichmann abriu mão da sua própria
liberdade, da sua capacidade de julgamento e, consequentemente, não se
via como responsável pelo que ocorria.
Longe de ser casual, a incapacidade de pensar (thoughtlessness) é
promovida pelos regimes totalitários como parte de sua estratégia de tornar
os homens seres supéruos. Na perspectiva arendtiana, esses regimes tentam
13
Como aponta Richard Bernstein (1997), embora Arendt escreva em OT sobre o processo de desumanização
dos indivíduos que o totalitarismo empreende ao tornar os homens seres supéruos, é preciso lembrar que a
autora é mais cuidadosa em A condição humana. Nesta obra, Arendt não considera a humanidade como uma
essência que se pode perder ou ganhar. Isso ocorre porque Arendt pensa os seres humanos e as suas relações a
partir das condições nas quais eles vivem, e não a partir de um a priori, ou seja, de uma denição de natureza
humana. Para a pensadora, os regimes totalitários operam a transformação da condição humana ao retirar dos
homens aquilo que os dignica, a saber, sua capacidade de pensar e de agir.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 125
destruir a pluralidade de opiniões e maneiras distintas de compreender
o mundo por meio de uma ideologia única, entendida como lógica de
uma ideia, que aprisiona a capacidade de pensar dos indivíduos em uma
cadeia de dedução lógica que parte de uma ideia tida como verdadeira em
si mesma – um axioma: a ideia de raça superior ou de classe progressista. O
movimento lógico, que se deduz da ideia, conquista um poder explicativo
totalizante ao ser aplicado à realidade e ao movimento histórico que
a produz. O mundo, contudo, não é um todo coerente, não é estável,
sempre há algo que escapa das capacidades humanas de apreendê-lo em sua
totalidade, e é por esse motivo que a ideologia adquire tanta importância
no regime totalitário: ela é uma espécie de simplicação que torna o real
completamente inteligível porque, na prática, distancia os homens da
realidade que os cerca. O real é substituído por algo articial, isto é, pelo
próprio movimento de dedução lógica a partir de uma ideia, como se este
correspondesse à realidade factual.
Do mesmo modo que o terror procura destruir os espaços
públicos e privados para impedir o homem de agir, a lógica de uma ideia
tem como alvo a capacidade humana de pensar e de sentir na medida em
que elas constituem uma ameaça para os regimes totalitários. Essa ameaça
provém do fato de que sentir e pensar são capacidades humanas que podem
apontar para outra visão de mundo, ou seja, para criar uma percepção
diferente da realidade e, por conseguinte, vislumbrar outra possibilidade
de vida. Por esse motivo, o totalitarismo precisa minar a capacidade de
pensamento que, no fundo, é buscar o aniquilamento da liberdade interior
dos homens. Como a capacidade de raciocínio lógico é comum a todos os
seres humanos e não necessita da experiência, é a partir dela que a ideologia
totalitária opera para impor uma visão única da realidade, à qual os homens
aderem em função de uma espécie de autocompulsão que se assemelha à
anuência que damos perante a conclusão de um silogismo qualquer. Isso
ocorre porque, como os homens não conseguem criar um sentido próprio
para o mundo, o apelo a um discurso lógico bem construído e que explica
completamente a realidade torna-se quase irresistível.
Mas será que esse perigo que o totalitarismo representa para
os seres humanos é, de fato, uma peculiaridade dos regimes totalitários?
Será que a incapacidade de pensar é engendrada apenas nesses regimes?
Certamente, o totalitarismo só pode se realizar porque encontrou um solo
Renato de Oliveira Pereira
126 |
adequado para tal. Filha da revolução industrial, a sociedade de massas
gera cotidianamente uma experiência que é o solo em que os regimes
totalitários puderam se alicerçar: a solidão (loneliness), como veremos no
próximo capítulo.
| 127
3
A   
   :
   

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos,
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso
(KAFKA, 1997, p. 6).
O objetivo deste capítulo é mostrar que a incapacidade de pensar
(thoughtlessness) não resulta somente da ideologia enquanto a lógica de uma
ideia no interior da dominação totalitária. Em outras palavras, embora a
incapacidade de pensar tenha cado evidente para Arendt na gura de
um ex-tenente-coronel da SS, essa característica já estava colocada antes
da ascensão do regime nazista. Com este intuito, examinaremos (3.1) a
última parte do ensaio “Ideologia e terror”, na qual a pensadora apresenta a
experiência fundamental sobre a qual o regime totalitário se alicerça, a saber,
a solidão (loneliness): a experiência radical de não pertencer ao mundo.
Para Arendt, embora a solidão possa ser apropriada e criada articialmente
pelo totalitarismo, ela não está restrita a esta forma de dominação. Pelo
contrário, é uma experiência comum nas modernas sociedades de massa.
Tendo isso em vista, recorreremos (3.2) à obra A condição humana para
Renato de Oliveira Pereira
128 |
entendermos como a própria modernidade produz a experiência da solidão
e, na esteira desta, a incapacidade de pensar. Para tanto, tomaremos como
base algumas reexões que Arendt faz sobre a vitória do animal laborans,
ou seja, da quase total redução de todas as ações humanas à atividade
do trabalho (labor), tema que a pensadora já antecipa em “Ideologia e
terror”. Desta maneira, elucidaremos algumas pistas acerca das condições
que prejudicam a capacidade de pensar a partir das imagens de Eichmann
enquanto homem de massa e enquanto burocrata.
3.1 A solidão (loneliness) do homem de mAssA como experiênciA
FundAmentAl do regime totAlitário
Após apontar a essência e o princípio de movimento do regime
totalitário, Arendt busca examinar na última parte de “Ideologia e terror”
a experiência básica sob a qual o domínio totalitário repousa. Ela acredita
que essa experiência é conhecida dos homens, uma vez que o totalitarismo,
enquanto uma nova forma de governo, “[...] foi planejado por homens e,
de alguma forma, está respondendo a necessidades humanas” (ARENDT,
2012, p. 632). Com efeito, o totalitarismo não é uma forma de governo
que surge do nada: ele tem um lastro e se apresenta enquanto uma solução
para problemas e necessidades que a vida comum dos homens gera. Além
disso, dado o ineditismo do evento totalitário, Arendt acredita que essa
experiência jamais tenha sido utilizada como fundamento para uma forma
de domínio político.
Assim como procedeu ao longo do ensaio, Arendt inicia sua análise
da experiência fundamental do totalitarismo com uma breve caracterização
da experiência fundamental da tirania para, em seguida, distinguir a primeira
da segunda. Como vimos (seção 2.1), a experiência básica dos governos
tirânicos é o isolamento, ou seja, a experiência de homens que se encontram
isolados de seus pares, o que faz com que eles sejam impotentes, já que o poder
surge quando os homens “agem em concerto”,
1
isto é, quando eles podem
agir juntos em prol da realização de algum interesse comum. Arendt ressalta
que “os contatos políticos entre os homens são cortados no governo tirânico,
e as capacidades humanas de ação e poder são frustradas” (ARENDT, 2012,
A expressão citada é de Edmund Burke (ARENDT, 2012, p. 632). Arendt frequentemente a utiliza para
explicitar a sua concepção de poder.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 129
p. 633). Isolados, os homens são incapazes de agir juntos e de gerar poder,
o que possibilita que a dominação tirânica se mantenha. Por esse motivo,
os governos tirânicos atuam para destruir o espaço comum dos homens, ou
seja, a vida pública, o que provoca o isolamento e, consequentemente, mina
a capacidade humana de ação.
Em relação ao totalitarismo, Arendt assinala que o terror, essência
do domínio totalitário, também precisa do isolamento e dele advém.
Contudo, a pensadora arma que “[...] esse isolamento é, por assim
dizer, pré-totalitário” (ARENDT, 2012, p. 632). Em outras palavras, o
isolamento é condição necessária para que o terror possa se instaurar, mas
não é condição suciente para que o regime totalitário se estabeleça. Tal
fato mostra que a experiência fundamental do totalitarismo expressa uma
ruptura das relações dos seres humanos entre si mais ampla do que aquela
que a tirania realiza. Com efeito, Arendt lembra que na tirania nem todas
as relações dos homens entre si são rompidas, uma vez que “toda a esfera
da vida privada, juntamente com a capacidade de sentir, de inventar e de
pensar, permanece intacta” (ARENDT, 2012, p. 633). Por outro lado, no
governo totalitário todos os contatos dos homens entre si são rompidos,
o que implica a destruição não só da esfera da vida pública, minando a
capacidade de ação, como também da vida privada, de modo a prejudicar,
pelo terror e pela lógica de uma ideia, a capacidade humana de sentir,
pensar e criar. Esta espécie de isolamento hiperbolizado que o regime
totalitário produz é a experiência que Arendt denomina de solidão.
2
Nas
palavras da pensadora:
Enquanto o isolamento se refere apenas ao terreno político da
vida, a solidão se refere à vida humana como um todo. O governo
totalitário, como todas as tiranias, certamente não poderia
existir sem destruir a esfera pública, isto é, sem destruir, através
do isolamento dos homens, as suas capacidades políticas. Mas o
domínio totalitário é novo no sentido de que não se contenta com
esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na
solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma
das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode
ter (ARENDT, 2012, p. 634).
2
O termo em inglês é loneliness. Alguns tradutores preferem traduzi-lo por desamparo, ou, seguindo o termo
vertido para o alemão, Verlassenheit, por desolação (ALVES NETO, 2013, p. 53).
Renato de Oliveira Pereira
130 |
Ao distinguir a experiência do isolamento e da solidão, Arendt
demarca mais uma vez a diferença entre totalitarismo e tirania, bem como
o caráter inaudito do primeiro enquanto forma de governo. As experiências
do isolamento e da solidão não se confundem, já que é possível estar isolado
sem estar solitário e, ao contrário, é possível estar solitário mesmo não
estando isolado. A solidão expressa não só o abandono de toda a companhia
humana, já que os contatos são interrompidos, como também a perda de
contato com o mundo. Este, aliás, é o aspecto distintivo mais relevante
entre o isolamento e a solidão e diz respeito à capacidade produtiva dos
seres humanos. Quando estão isolados dos seus pares, os seres humanos
não são capazes de agir politicamente, mas podem exercer a atividade da
fabricação (poiesis, work), ou seja, são capazes de criar coisas, sejam objetos
de uso, sejam obras de arte. Para que o homem possa atuar como homo
faber, é preciso que ele se afaste momentaneamente da coletividade e dos
interesses comuns, ou seja, da vida política.
3
Nas tiranias, portanto, a
atividade da ação é prejudicada, mas a fabricação e o potencial produtivo
do ser humano são mantidos.
Ao produzir objetos e acrescentá-los ao seu redor, os homens
passam a ver o mundo como algo articial, ou seja, como uma obra que
eles próprios constroem. É dessa maneira que o homo faber – o homem
enquanto ser que fabrica objetos – se relaciona com o mundo: enquanto
uma obra humana, ou seja, como obra sua, algo de si que ele acrescenta
ao seu redor. Ao construir objetos articiais, o homem constrói o próprio
mundo enquanto artifício humano. Na sua atividade fabricadora, portanto,
os seres humanos, apesar de estarem isolados de seus pares e, por isso,
incapazes de agir, não estão isolados do mundo, distanciados deste. A perda
de contato com o mundo ocorre, para Arendt, quando os seres humanos
são despojados até mesmo de seu potencial produtivo. Nas palavras da
pensadora, “[...] somente quando se destrói a forma mais elementar de
criatividade humana, que é a capacidade de acrescentar algo de si mesmo
ao mundo ao redor, o isolamento se torna inteiramente insuportável”
(ARENDT, 2012, p. 633). Para Arendt, a destruição dessa capacidade
pode ocorrer:
Arendt apresenta aqui as três atividades do que ela denomina de vita activa: ela distingue a fabricação ou obra
(poiesis, work) da ação (práxis, action) e também do trabalho (labor). A distinção entre as três atividades da vita
activa é o tema central de A condição humana, como veremos na próxima seção.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 131
[...] num mundo cujos principais valores são ditados pelo trabalho
[labor], isto é, onde todas as atividades humanas se resumem
em trabalhar. Nessas condições, a única coisa que sobrevive é o
mero esforço do trabalho, que é o esforço de se manter vivo, e
desaparece a relação com o mundo como criação do homem. O
homem isolado que perdeu o seu lugar no terreno político da ação
é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é
reconhecido como um homo faber, mas tratado como animal
laborans cujo necessário “metabolismo com a natureza” não é
do interesse de ninguém. É aí que o isolamento se torna solidão
(ARENDT, 2012, p. 634).
Quando o homem isolado, incapaz de agir, é também
impossibilitado de realizar a atividade da fabricação, então o contato com
o mundo enquanto obra humana também se perde. Isso ocorre em um
momento histórico em que tudo aquilo que os seres humanos realizam é
reduzido à atividade do trabalho, ou seja, àquele esforço que os homens
empreendem para suprir as suas necessidades biológicas e, assim, garantir a
sua sobrevivência. Desta maneira, o próprio ser humano é reduzido ao seu
aspecto biológico: ele passa a ser tratado não mais como um homo faber,
um ser capaz de produzir objetos e construir um mundo articial, e sim
como um animal laborans, um organismo biológico que, como todos os
seres vivos, realizam atividades com o to de sobreviver.
4
A transformação da experiência do isolamento em solidão ocorre
porque o ser humano, restrito ao modo de vida do animal laborans, sente-se
abandonado tanto pelos outros seres humanos, já que não faz parte de uma
comunidade política, quanto pelo mundo, pois este deixa de ser obra humana,
e torna-se estranho. Esse duplo abandono faz com que os outros seres humanos
e o próprio mundo pareçam hostis ao homem solitário, o qual acaba por se
retrair sobre si mesmo para se ocupar unicamente com o seu metabolismo com
a natureza. É no contexto de uma sociedade de trabalhadores, isto é, de homens
reduzidos à sua qualidade de animal laborans que a experiência da solidão se
manifesta com força, de modo a poder ser utilizada como o fundamento de
uma forma de dominação, qual seja, o totalitarismo. Em termos históricos,
Arendt antecipa aqui a vitória do modo de vida do animal laborans, tema que será central em A condição
humana. De acordo com Adriano Correia (2013b, p. 200), a expressão animal laborans aparece pela primeira
vez aqui, no ensaio “Ideologia e terror”.
Renato de Oliveira Pereira
132 |
Arendt remete a solidão às experiências do desarraigamento e da superuidade
que as massas sentem pelo menos desde a Revolução Industrial:
A solidão, o fundamento para o terror, a essência do governo
totalitário, e, para a ideologia ou a lógica, a preparação de seus
carrascos e vítimas, tem íntima ligação com o desarraigamento e a
superuidade que atormentavam as massas modernas desde o começo
da Revolução Industrial e se tornaram cruciais com o surgimento do
imperialismo no m do século passado e o colapso das instituições
políticas e as tradições sociais do nosso tempo. Não ter raízes signica
não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros;
ser supéruo signica não pertencer ao mundo de forma alguma. O
desarraigamento pode ser a condição preliminar da superuidade, tal
como o isolamento pode (mas não deve) ser a condição preliminar da
solidão (ARENDT, 2012, p. 634-635).
O desarraigamento e a superuidade já atormentavam as massas
desde a Revolução Industrial,
5
mas ganharam fôlego com o surgimento do
imperialismo no m do século XIX e com o colapso das instituições políticas
e sociais da primeira metade do século XX, o que pode ser exemplicado de
forma paradigmática pela ascensão dos regimes totalitários. Arendt acredita
que a experiência de não ter um lugar no mundo, que é o caso, por exemplo,
dos apátridas, e a experiência de ser supéruo, de não pertencer ao mundo
de forma alguma, que é a situação, por exemplo, dos judeus nos campos
de concentração nazista, estão diretamente relacionadas com a experiência
da solidão. Há uma relação entre desarraigamento e a superuidade que
é semelhante à relação entre o isolamento e a solidão: um indivíduo que
não tem raízes não se tornará, necessariamente, supéruo, já que ele pode,
por exemplo, ser reconhecido como o cidadão de um determinado Estado
e passar a ter seus direitos resguardados por este, como aconteceu com a
Em “A tradição e a época moderna”, ensaio presente na coletânea Entre o passado e o futuro, Arendt escreve
que: “o evento [totalitário] assinala a divisão entre a época [ou Era] moderna – que surge com as Ciências
Naturais no século XVII, atinge seu clímax político nas revoluções do século XVIII e desenrola suas implicações
gerais após a Revolução Industrial do século XIX – e o mundo do século XX, que veio à existência através
da cadeia de catástrofes deagrada pela Primeira Guerra Mundial” (ARENDT, 2011, p. 54). Ao fazer essa
distinção entre época ou era moderna e o mundo moderno, Arendt localiza alguns eventos importantes que
demarcam transformações, como o desenvolvimento cientíco, as revoluções inglesa e francesa, bem como a
revolução industrial. Esta última, em especial, tem implicações importantes que mudam o modo de vida dos
seres humanos e é por esse motivo que, em “Ideologia e terror”, Arendt acentua a Revolução Industrial, apesar
de não ser uma pensadora que se dedique profundamente ao estudo desse evento.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 133
própria Hannah Arendt, que conquistou a cidadania estadunidense em
1951, após viver cerca de 18 anos na condição de apátrida. Contudo, em
determinadas circunstâncias, como no caso dos judeus nos campos de
concentração nazista, o desarraigamento leva à superuidade, do mesmo
modo que o isolamento se transforma em solidão com a redução do
homem a um animal laborans.
Assim como o desarraigamento e a superuidade, a solidão é
uma experiência que emerge no contexto de uma sociedade de massas. Isso
signica que o governo totalitário não cria, por si mesmo, tal experiência,
mas se apropria dela como o fundamento para a sua dominação, de modo a
fazer uso político de uma experiência que jamais foi utilizada para tais ns.
Daí, portanto, o ineditismo do evento totalitário. Para além disso, é possível
observar que Arendt evidencia aqui uma mudança em sua perspectiva
de análise: ela passa de uma crítica do totalitarismo para uma crítica da
modernidade. Ao empreender um exame do totalitarismo à luz dos critérios
distintivos que ela extrai da teoria das formas de governo de Montesquieu,
Arendt acaba por isolar a experiência fundamental do domínio totalitário e
mostra que ela é fruto do modo de vida que a modernidade produziu. De
certa forma, os outros sistemas políticos não foram capazes de remediar o
problema que essa experiência representa na vida de muitos indivíduos, por
isso o totalitarismo pode fazer dele o seu cerne.
Isso demonstra que o totalitarismo não é simples acidente histórico,
fruto do acaso ou da imaginação de algum indivíduo enlouquecido, mas
que ele tem base na experiência cotidiana de muitos seres humanos.
6
Por
essa razão, Arendt é levada a investigar como a modernidade cria essa
experiência do ser humano que perde o próprio mundo, de modo a tornar
a solidão uma das principais experiências de uma grande massa de seres
humanos. Esse momento de transformação pode ser demarcado, por
exemplo, pela Revolução Industrial,
7
e Arendt já nos aponta a experiência
Essa tese de Arendt é similar à tese que Zygmunt Bauman apresenta em Modernidade e Holocausto. Nesta
obra, o sociólogo polonês defende que a sociologia precisa deixar de compreender o holocausto como um
evento restrito à história judaica ou como um acidente que expressa a ausência dos valores da modernidade. Para
Bauman, o holocausto é um acontecimento que testa os limites e as possibilidades da modernidade na medida
em que é, de fato, produto desta (BAUMAN, 1998).
Claude Lefort observa que Arendt parece não se preocupar em indicar com precisão o ponto de origem da crise
relacionada à experiência da solidão. A autora parece enfatizar “[...] ora a formação da ciência da natureza, ora sua ligação
com a técnica, ora a Revolução Industrial, ora a plena manifestação da sociedade burguesa no início do século XX. Mas
ela sustenta sempre a ideia de uma crise que se acelera, até atingir o ápice em nosso tempo” (LEFORT, 1999, p. 30).
Renato de Oliveira Pereira
134 |
solidão na modernidade enquanto a redução do homem a apenas uma das
atividades que ele realiza, a saber, a atividade do trabalho. André Duarte
enfatiza essa mudança no pensamento arendtiano ao armar que este
[...] se elaborou à sombra das rupturas que enegreceram o
presente, iniciando-se com a análise crítica da ruptura totalitária,
para complementar-se com uma vigorosa crítica da tradição
do pensamento político ocidental, cuja ruptura e acabamento
internos se explicitaram na inépcia dos conceitos tradicionais
para compreender os eventos políticos do presente e para
sugerir alternativas capazes de revigorar a política no mundo
contemporâneo. (DUARTE, 2000, p. 23-24).
Acreditamos que o ensaio “Ideologia e terror” é o locus privilegiado
onde Arendt realiza essa mudança de perspectiva. Com efeito, o fato de o
ensaio ter sido incluído na segunda edição de Origens do totalitarismo em
1958, mesmo ano da primeira publicação de A condição humana, parece
revelar uma tentativa de conectar as duas obras (OT e CH), como se o
ensaio pudesse servir como uma espécie de ponte que permite a passagem
dos problemas de uma para outra das duas grandes obras da autora.
Mas de que maneira o totalitarismo pode explorar politicamente
a solidão, de modo a fazer dela a sua experiência fundamental? Antes de
responder a essa questão, é preciso compreender o que é essa experiência.
Após relacionar de maneira pontual a solidão com o contexto histórico em
que ela é produzida, Arendt analisa a solidão em si mesma. De início, ela
aponta o caráter paradoxal dessa experiência, na medida em que a solidão
é “[...] ao mesmo tempo, contrária às necessidades básicas da condição
humana e uma das experiências fundamentais de toda a vida humana
(ARENDT, 2012, p. 635). A solidão parece contrária às necessidades
da vida humana porque até mesmo a nossa experiência sensorial do
mundo depende do nosso contato com os outros seres humanos, pois,
na perspectiva de Arendt, é este contato que possibilita a constituição do
nosso senso comum, o qual atua como regulador e controlador de todos
os outros sentidos. Sem esse senso comum, a pensadora acredita que “[...]
cada um de nós permaneceria enclausurado em sua própria particularidade
de dados sensoriais, que, em si mesmos, são traiçoeiros e indignos de fé
(ARENDT, 2012, p. 635).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 135
A conabilidade da nossa própria experiência sensorial imediata
depende do nosso relacionamento com os outros, com os quais construímos
um senso que é comum a todos nós, o que é o mesmo que dizer que a pluralidade
humana, o fato de que os homens, e não o Homem, habitam a Terra é o
que confere certa conabilidade às experiências sensoriais dos seres humanos:
“[...] somente por termos um senso comum, isto é, somente porque a terra é
habitada, não por um homem, mas por homens no plural, podemos conar
em nossa experiência sensorial imediata” (ARENDT, 2012, p. 635).
Ainda que o nosso relacionamento com os outros seja condição sine
qua non para própria experiência sensorial dos homens, em alguns momentos
da vida o ser humano inevitavelmente experiencia a solidão. Para Arendt,
a solidão se manifesta quando os homens se atentam para a sua própria
mortalidade, ou seja, para o caráter nito da vida humana. A pensadora
escreve que “[...] basta que nos lembremos que um dia teremos de deixar este
mundo comum, que continuará como antes, e para cuja continuidade somos
supéruos, para que nos demos conta da solidão e da experiência de sermos
abandonados por tudo e por todos” (ARENDT, 2012, p. 635). Ao notar o
contraste entre a permanência do mundo e a instabilidade e impermanência
inerente ao ciclo humano de nascimento-morte, o ser humano vê-se como
supéruo, como um ser que não tem importância para a continuidade do
mundo, pois, independente do que ele faça, um dia ele morrerá, e o mundo
continuará a existir sem ele. É aí que o ser humano se sente abandonado, o
que faz a experiência da solidão ser constitutiva da vida humana. O homem é,
nesse sentido, um ser que depende dos outros seres, especialmente dos outros
seres humanos, mas, ao mesmo tempo, é um ser solitário, pois a certeza da
morte o faz sentir sua irrelevância para a existência do mundo e dos outros.
Arendt salienta que a solidão (loneliness) não se confunde com o
estar só (solitude), ou seja, com o estar desacompanhado. A pensadora remete
a distinção entre solidão e ausência de companhia a uma armação de Catão
citada por Cícero e ao pensamento do lósofo estoico Epicteto. Catão
teria dito “[...] ‘nunca ele esteve menos só do que quando estava sozinho’,
ou, antes, ‘nunca ele esteve menos solitário do que quando estava a sós’”
(ARENDT, 2012, p. 635).
8
Epicteto, por sua vez, teria armado que:
É interessante observar que Arendt utiliza esta armação de Catão no nal de A condição humana (1958)
e como epígrafe de A vida do espírito, sua última grande obra, que permaneceu inacabada e foi publicada
postumamente em 1977.
Renato de Oliveira Pereira
136 |
[...] o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os
quais não pode estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto.
O homem só, ao contrário, está desacompanhado e, portanto,
pode estar em companhia de si mesmo”, já que os homens têm a
capacidade de “falar consigo mesmos” (ARENDT, 2012, p. 635-6).
Tanto no caso de Catão quanto no de Epicteto, o que Arendt
observa é que a ausência de companhia não implica necessariamente a
experiência da solidão. É justamente quando me encontro rodeado
por outras pessoas e, mesmo assim, sinto-me sozinho, que a solidão se
manifesta de forma contundente. Em tal circunstância, a solidão se faz
presente porque, apesar da proximidade física com os outros, não consigo
estabelecer um contato com eles na medida em que eles me parecem hostis
e eu pareço hostil a eles também: não há conança mútua, de modo que
estabelecer algum tipo de relação torna-se uma tarefa difícil. Por outro
lado, quando um ser humano qualquer está desacompanhado, tal fato
não signica que ele está, necessariamente, solitário. Na interpretação
que Arendt faz de Catão e Epicteto, isso ocorre porque todo ser humano
é capaz de fazer companhia para si mesmo, sem a necessidade de outra
pessoa estar presente. Tal possibilidade está ligada a capacidade que o ser
humano tem de “falar consigo mesmo”, ou seja, de pensar.
Quando pensamos, não estamos solitários, e sim na companhia
de nós mesmos. Para Arendt, o ato de pensar (como observamos na seção
1.2) é como um diálogo em que o eu se desdobra em dois, passando a ser
dois-em-um: dois interlocutores, o eu e o mim mesmo, travam um diálogo
interno. O dois-em-um permite que a pluralidade esteja representada no
próprio eu, de modo a fazer com que um ser humano, enquanto pensa,
não perca o contato com o mundo e com os outros, ainda que se encontre
longe de outras pessoas. Todavia, como aponta Arendt, o perigo de estar
sempre sozinho é que o indivíduo pode perder a própria identidade
em razão da dualidade inerente à atividade do pensamento. Apenas na
presença de outros é que tal dualidade pode ser desfeita e, assim, o dois-
em-um pode tornar-se apenas um novamente, de modo a recuperar sua
identidade perante o mundo e os outros. Quando o eu vive a sós, ele não
pode alcançar “[...] a graça redentora de uma companhia que os salve da
dualidade, do equívoco e da dúvida” (ARENDT, 2012, p. 636), o que
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 137
pode esgotar a capacidade de pensar. É apenas sob estas condições que o
viver a sós pode levar à solidão, fazendo com que o eu se perca.
O risco do estar a sós levar à solidão ganhou destaque, segundo
Arendt, no século XIX, no momento em que “[...] os lósofos, os únicos
para os quais estar a sós é um meio de vida e uma condição para o trabalho,
já não se contentavam com o fato de que ‘a losoa é apenas para uns
poucos’, e puseram-se a insistir que ninguém os ‘compreendia’” (ARENDT,
2012, p. 636). Contudo, Arendt acredita que o movimento contrário
é também é possível: “existe sempre a possibilidade de que um homem
solitário se encontre a si próprio e inicie o diálogo pensado dos que estão
a sós” (ARENDT, 2012, p. 636). Ou seja, o homem solitário pode deixar
a sua solidão se a sua capacidade de pensar for reativada, se ele reencontrar
a si mesmo e começar a pensar, isto é, a dialogar consigo mesmo. Arendt
utiliza-se do exemplo de Friedrich Nietzsche em Assim falava Zaratustra,
que relata “a expectação vazia e a ansiosa espera do homem solitário, até
que, de repente, [...] ‘ao meio-dia, o Um tornou-se Dois... Certos de
que venceremos unidos, celebraremos a festa das festas; chegou o amigo
Zaratustra, o convidado dos convidados’” (ARENDT, 2012, p. 637).
Essas considerações de Arendt acerca da solidão mostram que
ela é uma experiência problemática para os seres humanos na medida em
que o seu oposto, a saber, a experiência da pluralidade, é fundamental
para a condição humana. Por impossibilitar a pluralidade, a experiência
da solidão é duplamente insuportável. De um lado, ela leva à perda do eu,
pois a ausência de companhia impossibilita que a identidade do indivíduo
seja reconhecida e conrmada. De outro, ela leva a uma perda do mundo,
pois já não é possível conar nas experiências sensoriais trazidas pelo
mundo, posto que o senso comum não pode ser criado sem a companhia
de outros homens. Com efeito, há uma dupla perda que torna insuportável
a experiência da solidão: “o eu e o mundo, a capacidade de pensar e de
sentir, perdem-se ao mesmo tempo” (ARENDT, 2012, p. 637).
O que se pode esperar de seres humanos solitários, ou seja, de
seres cujas capacidades de pensar e de sentir encontram-se prejudicadas?
Arendt acredita que, diferentemente da experiência do mundo (o sentir)
e do pensamento, a capacidade de raciocínio lógico é capaz de funcionar
sem errar mesmo na solidão absoluta, de modo a constituir “[...] a única
Renato de Oliveira Pereira
138 |
verdade’ segura em que os seres humanos podem apoiar-se quando
perdem a garantia mútua, que é o senso comum, de que necessitam para
sentir, viver e encontrar o seu caminho num mundo comum” (ARENDT,
2012, p. 637). O problema, contudo, é que a verdade que provém da
capacidade de raciocínio lógico é vazia, uma vez que ela não releva nada de
novo, mas apenas extrai, por um processo de dedução, aquilo que estava
contida numa premissa tida como evidente por si mesma. Com efeito, na
solidão, a capacidade de raciocínio lógico passa a ser produtiva, de modo a
desenvolver suas próprias linhas de pensamento, em vez de servir como um
parâmetro de controle do intelecto. Assim, escreve Arendt, “[...] o famoso
extremismo dos movimentos totalitários, longe de se relacionar com o
verdadeiro radicalismo, consiste, na verdade, em ‘pensar o pior’, nesse
processo dedutivo que leva às piores conclusões possíveis” (ARENDT,
2012, p. 638).
O totalitarismo pode operar com a ideologia enquanto “lógica de
uma ideia” porque os seres humanos mantêm a capacidade de raciocínio
lógico funcional mesmo quando se encontram solitários. E é justamente
em uma sociedade de seres humanos cujos laços entre si e com o mundo
estão rompidos que os regimes totalitários encontram as condições para
empreender seu projeto de dominação total. Por este motivo, Arendt
considera que:
O que prepara os homens para o domínio totalitário no mundo
não totalitário é o fato de que a solidão, que já foi uma experiência
fronteiriça, sofrida geralmente em certas condições sociais marginais
como a velhice, passou a ser, em nosso século, a experiência diária de
massas cada vez maiores. O impiedoso processo no qual o totalitarismo
engolfa e organiza as massas parece uma fuga suicida dessa realidade.
O “raciocínio frio como o gelo” e o “poderoso tentáculo” da dialética
que nos “segura como um torno” parecem ser o último apoio num
mundo onde ninguém merece conança e onde não se pode contar
com coisa alguma. É a coerção interna, cujo conteúdo único é a
rigorosa evitação de contradições, que parece conrmar a identidade
de um homem independentemente de todo o relacionamento com
os outros (ARENDT, 2012, p. 638, grifo nosso).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 139
O regime totalitário tem como solo as sociedades de massa, as
quais produzem cotidianamente a experiência da solidão. Com o objetivo
de sair de uma condição de vida solitária, no interior da qual não é possível
conar em nada e em ninguém, os seres humanos são tentados a aderir a
um regime que se apresenta como uma referência sólida de ordem. Para que
tal ordem possa funcionar, é preciso que a primeira premissa seja aceita, a
partir da qual todo o resto é deduzido sem nenhuma contradição. Diante
desse contexto, os seres humanos tendem a não questionar a primeira
premissa que dá origem a todo o processo dedutivo, pois sabem que estarão
sozinhos se não estiverem inseridos nesse movimento lógico. O homem
solitário, isolado de seus semelhantes e do mundo, incapaz de sentir e de
pensar, tem a sua própria identidade e o sentido de sua existência atribuída
por sua inserção dentro do movimento lógico do regime totalitário.
A adesão ao sistema totalitário como uma fuga da solidão é, no
entanto, contraproducente ou, nos termos de Arendt, suicida, uma vez
que o totalitarismo não só não resolve o problema da solidão como o
aprofunda, posto que é justamente a experiência da solidão que o permite
levar a cabo seu projeto de dominação total. Com esse intuito, os regimes
totalitários eliminam todo o espaço entre os homens e as suas relações,
como descreve Arendt:
[...] Prende-o [o homem] no cinturão de ferro do terror mesmo
quando ele está sozinho, e o domínio totalitário procura nunca
deixá-lo sozinho, a não ser na situação extrema da prisão solitária.
Destruindo todo o espaço entre os homens e pressionando-os
uns contra os outros, destrói-se até mesmo o potencial produtivo
do isolamento; ensinando e gloricando o raciocínio lógico da
solidão, onde o homem sabe que estará completamente perdido
se deixar fugir a primeira premissa que dá início a todo o processo,
elimina-se até mesmo a vaga possibilidade de que a solidão
espiritual se transforme em solidão física, e a lógica se transforme
em pensamento. Quando comparamos esse método com o da
tirania, parece-nos ter sido encontrado um meio de imprimir
movimento ao próprio deserto, um meio de desencadear uma
tempestade de areia que pode cobrir todas as partes do mundo
habitado (ARENDT, 2012, p. 638-639).
Renato de Oliveira Pereira
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Assim como a tirania isola os seres humanos para impedi-los de
agir politicamente – ou seja, cria articialmente a experiência do isolamento
–, o totalitarismo também atua para que os homens não deixem de ser
solitários. Com esse objetivo, ele pressiona os homens uns contra os
outros, mas não para que estes estabeleçam relações entre si, já que reina
o medo e a inimizade, o que faz a desconança ser mútua, e sim para que
eles se sintam constantemente vigiados. O contato com o mundo também
continua rompido, já que essa pressão impede que o isolamento possa ser
utilizado para a realização de atividades produtivas. Além disso, a gloricação
do raciocínio lógico, única capacidade na qual os homens podem conar
na ausência de qualquer companhia e contato com o mundo, acaba por
diminuir as possibilidades de que o pensar seja reativado.
Pressionados uns contra os outros, os seres humanos se encontram
solitários. Nesse deserto de homens mudos e incapazes de agir, a única
conança possível parece encontrar-se no próprio regime totalitário, no
qual os homens se apoiam ao assumirem sua posição dentro do movimento
lógico. Por esse motivo, o totalitarismo pode ser denido, em última análise,
como a organização das massas de seres humanos solitários (ALVES NETO,
2013). Arendt assevera que “[...] a solidão organizada é consideravelmente
mais perigosa que a impotência organizada de todos os que são dominados
pela vontade tirânica e a arbitrária de um só homem” (ARENDT, 2012,
p. 639). Para a pensadora, a crise que se revela a partir do início do século
XX e a experiência da solidão propiciaram o surgimento de uma forma de
governo totalmente nova que, adverte Arendt, “[...] como potencialidade
e como risco sempre presente, tende infelizmente a car conosco de agora
em diante, como caram, a despeito de derrotas passageiras, outras formas
de governo surgidas em diferentes momentos históricos e baseadas em
experiências fundamentais [...]” (ARENDT, 2012, p. 639).
Em suma, podemos considerar a presença de três linhas
argumentativas entrelaçadas na última parte do ensaio “Ideologia e terror”:
a primeira é um apontamento sobre a produção histórica da solidão na
modernidade. Arendt identica a maneira pela qual a solidão veio a ser
a experiência de massas cada vez maiores. A pensadora indica que isso
ocorre pela redução do homem à sua condição de animal laborans. A
segunda linha é uma tentativa de explicitar a experiência da solidão e
suas características, a saber, a perda do senso comum, a perda do eu e do
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 141
mundo e, consequentemente, a perda da capacidade de pensar e sentir.
Para Arendt, a única capacidade humana que funciona mesmo sob a
solidão, isto é, que independe do relacionamento com o mundo e com
os outros, é a capacidade de raciocínio lógico, a qual deixa de ser vista
como um instrumento do intelecto para o controle do pensar, e passa a
ser produtivo, de modo a gerar as suas próprias linhas de “pensamento”.
Com efeito, a terceira linha trata do uso político da experiência da solidão,
isto é, da solidão enquanto fundamento de uma forma de governo – ou
melhor, de dominação – inaudita na tradição da losoa política ocidental:
o totalitarismo. Essa forma de governo não só não resolve o problema da
solidão, como aprofunda tal experiência por meio do terror e da ideologia,
a m de manter a dominação totalitária sobre os homens. Com intuito de
compreendermos melhor como essa experiência ocorre e a sua relação com
a incapacidade de pensar, examinaremos alguns elementos sobre os quais
Arendt discorre em A condição humana.
3.2 A condição humAnA e A vitóriA do animal laborans
Em A condição humana, Arendt utiliza a expressão vita activa
em contraposição à vita contemplativa – a vida destinada à contemplação
muda – para designar três atividades humanas: o trabalho (labor),
a obra (work) e a ação (action).
9
Para Arendt, essas três atividades “são
fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições
básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra” (ARENDT, 2010,
p. 8). Devemos dar atenção ao local especíco onde o homem vive – “na
Terra” –, pois, no Prólogo” do livro, Arendt relata a tentativa do homem
de se libertar do seu próprio planeta, o qual, em vez de ser visto como uma
condição que possibilita a existência humana, passa a ser visto como um
empecilho para a realização dos homens, como uma verdadeira prisão que
limita as potencialidades humanas.
A pensadora considera que a vida dos seres humanos na Terra
é condicionada, o que os leva a realizar certas atividades relativas a essas
Não nos propomos a realizar aqui uma análise completa e exaustiva desta que é considerada uma das grandes
obras de Hannah Arendt, A condição humana. Restringir-nos-emos a apresentar alguns elementos que explicitem
a relação entre a incapacidade de pensar e a experiência da solidão, as quais se ligam ao tema da perda ou
alienação do mundo entendido enquanto o mundo comum, o qual possibilita o lugar para a palavra e a ação.
Para uma análise pormenorizada dessa obra, remetemos a Aguiar (2001) e a Duarte (2000).
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condições. Assim, em primeiro lugar, Arendt fala do trabalho, o qual ela
dene como “a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo
humano” (ARENDT, 2010, p. 8). O corpo humano tem um metabolismo
próprio: cresce espontaneamente e, depois, entra em declínio. Tais processos
estão ligados às necessidades vitais, que, segundo Arendt, são produzidas e
fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A condição humana do trabalho
é, assim, a própria vida entendida em um sentido biológico.
A obra ou fabricação, por sua vez, “é a atividade que corresponde à
não-naturalidade da existência humana, que não está engastada no sempre-
recorrente ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por
este último” (ARENDT, 2010, p. 8). Em outras palavras, a obra é atividade
que proporciona a construção de mundo articial de coisas que é diferente
de qualquer ambiente natural. Arendt nota que dentro das fronteiras desse
mundo articial se abriga a vida do homem enquanto indivíduo. Ela
assinala, no entanto, que esse mundo se destina a sobreviver e a transcender
todas essas vidas individuais, permanecendo enquanto estas se acabam. A
condição humana da obra é o que Arendt denomina de mundanidade.
Para a pensadora, a ação é a única atividade que ocorre diretamente
entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria. Ela escreve que
a ação “[...] corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de
que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo
(ARENDT, 2010, p. 8). Para Arendt, o homem só existe no plural: homens.
Por habitarem o mesmo mundo, que é nito, os seres humanos precisam
entrar em relação entre si, daí, portanto, a necessidade da vida política.
Arendt arma que, apesar de os vários aspectos da condição
humana terem relação com a política, a “pluralidade é especicamente a
condição – não apenas conditio sine qua non, mas a conditio per quam
de toda a vida política” (ARENDT, 2010, p. 8-9). Em outras palavras, a
pluralidade não é apenas uma condição importante da vida política, sem
a qual esta não existe, mas sim a condição suciente, a base fundamental
de toda a vida política. Para corroborar essa proposição, Arendt observa
que os romanos, que ela aponta como o povo mais político que já existiu,
empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens
(inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens” (inter
homines esse desinere), o que sugere que não estar entre os homens é como
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 143
estar morto, é como não ter uma vida humana, de fato (ARENDT, 2010,
p. 9). Ela também assinala que se os homens não fossem seres plurais,
ou seja, se não estivessem submetidos à condição humana da pluralidade,
então a ação seria um luxo desnecessário e, por conseguinte, a política não
teria sua razão de ser:
[...] a ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência
nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem repetições
interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza
ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a
natureza ou essência de qualquer coisa (ARENDT, 2010, p. 9).
Arendt considera que as três atividades humanas (trabalho,
obra e ação) e as suas condições correspondentes (vida, mundanidade e
pluralidade) estão intimamente relacionadas com a condição mais geral
da existência humana, a saber, o nascimento e a morte, a natalidade e a
mortalidade. Ou seja, a pensadora enfatiza o fato de o homem não ser
apenas um ser mortal, mas também um ser “natal”, o que implica a ideia
de que cada ser humano é sempre um novo começo. Nesse sentido, o
trabalho, a obra e a ação estão enraizados na natalidade na medida em que
têm a tarefa de prover e preservar o mundo para o constante inuxo de
recém-chegados que nascem no mundo como estranhos, além de prevê-los
e levá-los em conta (ARENDT, 2010). Apesar disso, das três atividades, é
a ação que tem relação mais estreita com a condição humana natalidade:
[...] a ação tem a relação mais estreita com a condição humana
da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-
se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a
capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de
iniciativa, a todas as atividades humanas é inerente um elemento de
ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade
política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser
a categoria central do pensamento político, em contraposição ao
pensamento metafísico (ARENDT, 2010, p. 10, grifo da autora).
A natalidade é categoria central do pensamento político porque se
refere à capacidade humana de iniciar algo novo, de agir, de criar um mundo
novo, ou seja, trata-se da própria liberdade humana, de sua espontaneidade.
Renato de Oliveira Pereira
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Arendt assinala que “[...] a condição humana compreende mais que as
condições sob as quais a vida foi dada ao homem” (ARENDT, 2010, p. 10).
Isso ocorre pelo fato de os seres humanos terem esse potencial de iniciar algo
novo: o próprio ser humano é capaz de criar condições para a sua existência.
Nesse sentido, o homem é um produto e, ao mesmo tempo, um produtor. A
pensadora lembra que a razão pela qual os homens são seres condicionados
é o fato de que “[...] tudo aquilo com que eles entram em contato torna-se
imediatamente uma condição de sua existência” (ARENDT, 2010, p. 10).
Assim, seja a condição dada ao homem ou criada por ele mesmo, ela possui
o mesmo poder condicionante, como escreve a autora:
O que quer que toque a vida humana ou mantenha uma duradoura
relação com ela assume imediatamente o caráter de condição
da existência humana. Por isso os homens, independentemente
do que façam, são sempre seres condicionados. Tudo o que
adentra o mundo humano por si próprio, ou para ele é trazido
pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana
(ARENDT, 2010, p. 11).
A realidade do mundo causa impacto na existência humana. Esse
impacto é “sentido e recebido como força condicionante” (ARENDT,
2010, p. 11). Mas, apesar de a existência humana ser condicionada, é
preciso entender que condição não se confunde com natureza. Por essa
razão, esse condicionamento não pode ser entendido como absoluto, isto
é, ele não anula a ação humana e o seu potencial. Com efeito, Arendt
escreve que as condições da existência humana “jamais podem ‘explicar’
o que somos ou responder à pergunta sobre quem somos, pela simples
razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto” (ARENDT,
2010, p. 13). Arendt acredita que este fato foi demonstrado até mesmo
pela ciência:
[...] embora vivamos agora sob condições terrenas, e provavelmente
viveremos sempre, não somos meras criaturas terrenas. A ciência
natural deve os seus maiores triunfos ao fato de ter considerado e
tratado a natureza terrena de um ponto de vista verdadeiramente
universal, isto é, de um ponto de vista arquimediano escolhido,
voluntária e explicitamente, fora da Terra (ARENDT, 2010, p. 13).
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 145
Do ponto de vista da ciência, não somos criaturas terrenas:
somos criaturas do universo. É como se o cientista – o observador que
produz a ciência – não se localizasse no planeta, mas fora dele, em um local
privilegiado que propiciaria uma visão ampla sobre os vários fenômenos
do universo, sendo a Terra e os seus acontecimentos apenas uma parte da
vasta gama de fenômenos naturais. Isso só foi possível graças à ascensão da
ciência moderna no processo que conhecemos de Revolução Cientíca.
Como bem descreve Alexandre Koyré (2006), o abandono da visão de
um universo geocêntrico, qualitativo e heterogêneo (existência de uma
dicotomia entre cima-baixo, celeste-terrestre, supralunar-sublunar), em
prol de um universo heliocêntrico, quantitativo e homogêneo é um dos
principais resultados desse processo. Por ser composto pelo mesmo tipo de
material, o universo passa a ser então um local que homem pode explorar
e levar a cabo a sua existência. Com efeito, nem mesmo a Terra condiciona
o homem de maneira absoluta, já que, para a ciência moderna, o homem
não é um ser terreno, mas sim um ser do universo, que pode ter uma
existência completamente diferente da que leva neste planeta.
Na interpretação de Young-Bruehl (1997, p. 288), Arendt toma
como base em A condição humana três categorias principais: condições,
espaços (público, privado) e atividades. As mudanças na hierarquia das
atividades são correlacionadas com mudanças nos espaços destinados à cada
atividade. Todas essas três categorias sofreram transformações ao longo da
história humana, mas as condições permaneceram relativamente constantes
até o mundo moderno, no qual o desenvolvimento tecnocientíco
possibilitou aos seres humanos o poder de interferir em processos naturais.
A grande transformação operada no limiar entre a era moderna
e o mundo moderno diz respeito ao trabalho. Na Antiguidade, o trabalho
estava restrito ao âmbito da família e do lar (oikos), ou seja, ao domínio
privado, o qual se regia pela necessidade e por uma desigualdade entre o
senhor ou pai de família (paterfamilias) e sua mulher, lhos e escravos. A
ação, considerada a atividade mais digna do homem, ocorria na pólis, isto é,
no espaço público, onde os homens, após terem suprido suas necessidades
no âmbito privado, eram considerados iguais entre si e podiam aparecer
uns para os outros, de modo a armar a pluralidade humana e também a
exercer a sua liberdade por meio da ação e do discurso (ARENDT, 2010, p.
34). No nal da era moderna, porém, o trabalho acaba por não só alcançar
Renato de Oliveira Pereira
146 |
o grau mais alto da hierarquia de atividades humanas, como também por
absorver todos os atos que os seres humanos realizam.
A preponderância que a atividade da fabricação ou obra adquiriu
na era moderna fez com que houvesse um esvaziamento do espaço público,
já que, para Arendt, a atividade da obra ocorre quando os homens estão
isolados e, embora seja necessário que os seres humanos entrem em contato
uns com os outros no mercado de trocas para realizar o intercâmbio de
objetos, tal mercado, por si só, não é capaz de instaurar um espaço público
comum no qual os seres humanos possam agir juntos e a pluralidade
humana ser armada. Assim, a esfera pública acaba sendo regida por
princípios utilitários e instrumentais, típicos da mentalidade do homo
faber, isto é, do homem enquanto ser que fabrica, que constrói objetos. No
entanto, esse predomínio da atividade da fabricação acaba por sofrer uma
transformação: com a nova forma de produção desenvolvida na Revolução
Industrial, a obra passa a ser enquadrada na atividade do trabalho. Correia
(2013b, p. 216) resume que:
Com a moderna divisão do trabalho e a mecanização do
processo de produção, a fabricação assume o caráter do
trabalho, dada tanto a ausência de autoria quanto a repetição e
a interminabilidade do processo, algo que só é possível, assinala
Arendt, porque a abundância mesma condena os objetos de uso
a bens de consumo [...].
A mecanização dos processos produtivos e a moderna divisão no
trabalho fazem com que a atividade da obra ou fabricação seja realizada
de maneira anônima, já que cada trabalhador realiza apenas uma pequena
etapa da produção composta de um conjunto de movimentos repetitivos
que não exigem a criatividade, mas apenas o vigor do próprio corpo.
Por conseguinte, o produto deixa de ter a marca de seu criador, o que
antes ocorria pelo fato de o artíce idealizar o objeto e produzi-lo do
início ao m. Além disso, dado o aumento do ritmo da produção, os
objetos produzidos tornam-se abundantes, de modo que é preciso que
eles percam a sua durabilidade para que o ciclo da produção continue a
funcionar incessantemente. Dessa forma, os objetos fabricados passam
a ser vistos não mais como objetos de uso, mas sim de consumo, e, ao
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 147
mesmo tempo, o processo de produção torna-se um ciclo interminável
que exige a constante repetição de seus subprocessos e etapas.
O homo faber prima pela construção de um mundo humano
articial que seja permanente e, assim, possa servir de abrigo estável para
o homem perante a natureza. A permanência do mundo é possibilitada
justamente pela durabilidade dos objetos que o constituem. No entanto,
a maneira de realizar a atividade da fabricação a partir das inovações da
Revolução Industrial – na qual não importa quem são os artíces que
criam os objetos mundanos, mas apenas que os trabalhadores utilizem
o vigor do próprio corpo para realizar os movimentos que constituem
sua função dentro da divisão do trabalho – e a relação de consumo com
objetos produzidos, devorando-os de uma vez, não são próprias do homo
faber. Pelo contrário, são características próprias do animal laborans,
cujo metabolismo não é do interesse de ninguém e cujos “produtos
do trabalho são consumidos imediatamente para a sua sobrevivência e
para a reprodução da espécie. Em tal contexto, apenas a atividade do
artista guarda alguns resquícios da obra, de modo que o artista é o único
operário” (worker) em uma sociedade de trabalhadores (laboring society).
Para Arendt, o surgimento da moderna sociedade de
trabalhadores não reete a emancipação das classes trabalhadoras, e sim
o fato de que a própria atividade do trabalho havia sido emancipada
há muitos séculos, de modo que “[...] quase conseguimos reduzir todas
as atividades humanas ao denominador comum de assegurar as coisas
necessárias à vida e de produzi-las em abundância” (ARENDT, 2010,
p. 157). Tomar o trabalho como denominador comum faz com que
todas as atividades humanas sejam realizadas em vista das necessidades
vitais impostas aos seres humanos pelo fato de eles serem organismos
biológicos, ou seja, tudo é feito para garantir a própria sobrevivência
humana: “[...] não importa o que façamos, supostamente o faremos com
vistas a ‘prover nosso próprio sustento’; é esse o veredicto da sociedade, e
vem diminuindo rapidamente o número de pessoas capazes de desaá-lo
(ARENDT, 2010, p. 157). Tem-se, portanto, a ascensão de preocupações
que antes eram relativas à esfera do lar ao âmbito público, o que faz
o espaço público perder a sua característica de armar a pluralidade
humana e de articular interesses comuns. Assim, a política transforma-se
Renato de Oliveira Pereira
148 |
em uma mera função da economia (oikonomia), isto é, das necessidades,
da busca por sustento (ARENDT, 2010, p. 53)
Com a absorção de todas as atividades dos seres humanos
ao trabalho, o modo de vida do animal laborans acaba por se tornar
preponderante e a criar uma sociedade de consumidores. Arendt fala de
uma sociedade de consumidores e, portanto, de trabalhadores, uma vez
que ela considera que “o trabalho e o consumo são apenas dois estágios
do mesmo processo, imposto ao homem pela necessidade da vida
(ARENDT, 2010, p. 156). Para satisfazer suas necessidades biológicas,
ou seja, àquelas ligadas ao fato de o homem ser um organismo vivo,
os seres humanos precisam trabalhar para, então, consumir aquilo que
foi realizado através de seu trabalho e satisfazer suas carências. Como as
carências são suprimidas apenas momentaneamente, consumir é um ato
que prepara o homem para o posterior processo de trabalho, o que torna
trabalho e consumo polos de um mesmo processo.
A equalização de todas as atividades ao trabalho está presente,
para Arendt, nas teorias do trabalho atuais, as quais o denem como o
oposto do divertimento. Na perspectiva da autora, esta oposição tem
como pressuposto outra oposição, ainda mais basilar, a saber, aquela entre
necessidade e liberdade, de modo que “[...] todas as atividades sérias,
independentemente dos frutos que produzam, são chamadas de trabalho,
enquanto toda a atividade que não seja necessária, nem para a vida do
indivíduo nem para o processo vital da sociedade, é classicada como
divertimento [playfulness]” (ARENDT, 2010, p. 157). Nesse sentido, o
trabalho seria uma atividade do âmbito do necessário, ao passo que todas
as atividades não necessárias estariam no âmbito da diversão.
Esse diagnóstico das teorias do trabalho leva a sociedade de
trabalhadores/consumidores ao seu extremo, uma vez que até mesmo a
obra do artista “foi dissolvida no divertir-se e perdeu o seu signicado
mundano” (ARENDT, 2010, p. 158). Em outras palavras, a obra de
arte deixa de ser vista como um objeto que compõe o mundo, de modo
que a atividade artística passa a ser compreendida simplesmente como
um divertimento, um passatempo (hobby) a ser realizado nos momentos
em que não se está a trabalhar. A emancipação do trabalho do domínio
restrito do lar para toda a esfera do social resulta, pois, em um predomínio
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 149
quase incontestável dele sobre as outras atividades da vita activa, de modo
que “do ponto de vista de ‘prover o próprio sustento’, toda atividade não
relacionada com o trabalho torna-se um ‘passatempo’” (ARENDT, 2010,
p. 158-9).
Como observa Correia (2013b, p. 217), a vitória do animal
laborans implica a hegemonia de um modo de vida paradoxal, na medida
em que, por se basear nas necessidades impostas pelo ciclo vital, o
trabalho não poderia constituir um modo de vida digno do ser humano
(um bíos). É preciso lembrar, todavia, que o trabalho, enquanto atividade
humana, é fundamental para que o homem garanta a sua sobrevivência,
condição para o exercício das outras atividades. No entanto, o problema
ocorre quando as todas as atividades são absorvidas pelo trabalho. Em
tal contexto, perde-se o contato com o mundo enquanto obra humana
e, ao mesmo tempo, a ação torna-se irrealizável. Isso porque, na medida
em que o modo de vida animal laborans se volta para a satisfação das
suas necessidades biológicas, tem-se que os seres humanos, no contexto
da sociedade massicada, não mais agem, mas apenas se comportam
(ARENDT, 2010, p. 51). Assim, é como se na era moderna o ser humano
tivesse, parafraseando o trecho inicial de A metamorfose, de Franz Kafka,
se transformado, de um dia para o outro, em um inseto monstruoso, isto
é, em um animal laborans.
Na sociedade de trabalhadores/consumidores, o espaço público
encontra-se esvaziado, de modo que a política acaba por ser substituída
por uma administração burocrática. Denida como governo de ninguém,
a burocracia é, para Arendt, a mais tirânica das formas de governo, uma
vez que ela normatiza o comportamento dos seres humanos e, assim,
contribui para a homogeneização desse comportamento e também do
pensamento (ARENDT, 2010, p. 49). A burocracia desresponsabiliza
os seres humanos de suas ações, já que os coloca em uma situação em
que apenas devem realizar as funções determinadas em função de uma
suposta necessidade, o que acaba por condicionar a capacidade de pensar
e de agir e, assim, dicultar aos seres humanos massicados o exercício
de tais capacidades.
Batista enfatiza que a crítica de Arendt à sociedade de massa diz
respeito ao fato dessa sociedade abrir “[...] a possibilidade muito concreta
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nos dias de hoje de o homem e o mundo perder todo sentido e signicado
inteiramente humanos” (BATISTA, 2001, p. 214). É justamente essa
perda de signicado e de sentido, diretamente vinculada à perda de um
mundo comum, ou seja, das relações dos seres humanos entre si, que
gera a experiência da solidão e instaura a crise para a qual os regimes
totalitários se apresentam como uma solução. Para seres humanos
completamente isolados uns dos outros, o totalitarismo se apresenta
como uma referência bem estabelecida de ordem e, por isso, tais seres
humanos tendem a conceder-lhe sua total lealdade. Nas palavras de
Arendt: “não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos
completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais – de
família, amizade, camaradagem – só adquirem o sentido de terem lugar
neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao
partido” (ARENDT, 2012, p. 454).
A busca do animal laborans por uma vida bem-sucedida e
dotada de sentido pode, portanto, levar à adesão ao totalitarismo e, por
conseguinte, à prática do mal. Com efeito, além de exprimir a busca
por reconhecimento social ou sucesso por meio da ascensão prossional
em uma carreira, o desejo de Eichmann de fazer parte de uma estrutura
organizacional considerada por ele grandiosa revela também a tentativa
de encontrar sentido em um mundo aparentemente sem sentido. Ao fazê-
lo, o ex-tenente-coronel da SS se recusou a fazer considerações morais
e integrou-se a um regime político criminoso, em vez de buscar, pelo
exercício do pensamento e por outras práticas, atribuir um novo sentido
ao mundo que é a morada não só dele, de Hitler, de seus companheiros de
partido e dos alemães em geral, mas também dos judeus, dos dissidentes
do regime e de todos os outros povos e nações.
O desejo de uma vida bem-sucedida implícita na busca por
ascensão prossional reete uma tentativa de singularização, isto é, uma
busca do indivíduo de se singularizar perante os seus pares. Para Arendt,
contudo, essa singularização só poderia acontecer na esfera pública, na
qual a política e a ética são possíveis. Odilio Alves Aguiar escreve que “[...]
a ética possível em Arendt é uma ética da singularização, da passagem
do homem como ser mudo, membro da espécie animal para membro
da comunidade humana, inserindo-se como ser singular na pluralidade
inerente à comunidade dos homens” (AGUIAR, 2002, p. 86). A necessidade
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
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de singularização dos homens os impele a se distinguir dos seus pares,
o que só é possível no interior de uma comunidade. Nas condições dos
regimes totalitários, as relações humanas são rompidas, daí a tentativa de
singularização ser realizada em outros âmbitos que não a política – como
a carreira prossional, por exemplo. Contudo, a pluralidade humana não
pode se realizar em uma sociedade em que os homens estão completamente
à mercê de ordens superiores e, portanto, não agem e não pensam por si
mesmos, mas apenas se comportam de acordo com o papel que lhes cabe.
Isso faz com que a tentativa de singularização pela obtenção de fama ou
de altas patentes seja uma cção que não desvela o homem por trás do
uniforme. Pelo contrário, insere-o mais ainda no interior da ordem que
ele representa, fazendo-o comportar-se da maneira como o regime espera:
como um executor eciente das ordens recebidas que ignora o diálogo do
eu consigo mesmo, ou seja, a capacidade pensar e, portanto, a possibilidade
de viver bem consigo mesmo.
No entanto, é preciso salientar que, embora o modo de vida do
ser humano no mundo moderno possa favorecer a adesão aos regimes
totalitários e, consequentemente, levar à prática do mal, da violência
extrema, tal fato não pode ser utilizado como justicativa. Isso porque,
como aponta Arendt no início de A condição humana, nada condiciona
o ser humano de maneira absoluta. Ou seja, o fato de o homem ser um
ser condicionado – e não importa se as condições são dadas ou criadas
pelos próprios seres humanos – não elimina a sua a espontaneidade, que
se baseia na própria condição humana da natalidade. Assim, apesar de
Eichmann ter sido um ser humano condicionado pelo regime nazista,
pela sociedade de massas e pela burocracia, o que dicultava a sua
capacidade de pensar e de julgar, isso não faz dele uma mera vítima, um
mero dente da engrenagem, como ele tentou se defender.
A lealdade de Eichmann ao sistema totalitário, a sua eciência
e rigidez quanto ao cumprimento do seu dever apenas indicam que,
como Arendt diagnostica acerca dos personagens da obra de Kafka, “a
competência absoluta é o motor da máquina em que estão presos os
heróis kafkianos, insensível e destrutiva, mas que funciona sem atrito
(ARENDT, 2008, p. 103, grifo nosso). A pressão que a máquina, isto
é, que o próprio sistema totalitário exerce sobre as suas engrenagens não
pode ser uma desculpa ou justicativa quando estas funcionam sem
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152 |
nenhum atrito, ou seja, quando os indivíduos se adequam perfeitamente
ao regime e executam as ordens sem impor nenhum empecilho, sem
pensar e julgar e, portanto, sem valer a sua liberdade e responsabilidade.
| 153
C F
A partir de uma consideração de Martin Heidegger, segundo a
qual os grandes pensadores passam sua vida a pensar num único problema,
Odilio Alves de Aguiar observa que “[...] todo o pensamento de Arendt é
motivado, no fundo, pela tentativa de decifrar, compreender os massacres
administrativos, como foi possível o aparecimento no interior da cultura
ocidental desse tipo de realidade e qual o antídoto para isso” (AGUIAR,
2001, p. 204). Na presente obra, procuramos explorar o pensamento de
Hannah Arendt com base em um ponto de partida bem denido: o caso
Eichmann, ou, mais precisamente, a caracterização da gura do ex-tenente-
coronel da SS que a pensadora realiza ao participar de seu julgamento em
Jerusalém.
Ao caracterizar Eichmann como uma gura sem grandes traços
distintivos, sem arraigadas convicções ideológicas, sem motivações
malécas e sem propósito denido, a não ser o de cumprir o seu dever
de ofício, Arendt compreende que, longe de ser um monstro moral, o ex-
tenente-coronel nazista era uma pessoa comum que, porém, não hesitou em
tomar parte na perpetração de crimes monstruosos que tinham os judeus
como vítima principal. O descompasso entre o caráter de Eichmann e a
dimensão monstruosa dos massacres promovidos pelo regime totalitário
nazista que ele ajudou a executar, cuja face mais extrema e perversa se
revela na experiência dos campos de concentração e extermínio, leva a
pensadora a cunhar a expressão banalidade do mal para designar um crime
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que, enquanto é cometido, não é visto enquanto tal, ou seja, não é visto
como a prática do mal.
O fato de Eichmann repetir os mesmos clichês e frases de efeito,
os quais provinham principalmente do jargão ocial do regime nazista,
fez Arendt notar que a diculdade do acusado em se expressar sem o uso
desse expediente implicava uma diculdade para pensar e para perceber a
realidade nela mesma, uma vez que tais clichês funcionavam como uma
espécie de barreira que o protegia da realidade. Com efeito, Eichmann
não precisava parar para pensar com o intuito de lidar com as questões
suscitadas pelos próprios acontecimentos de sua vida cotidiana, posto
que seus clichês já ofereciam “respostas prontas” que se sobrepunham
a qualquer evidência que a realidade pudesse apresentar. Nesse sentido,
Arendt conclui que havia uma ligação entre essa incapacidade de pensar
(thoughtlessness) de Eichmann e os seus feitos, a qual contribuía para a
prática do mal banal: o ex-tenente-coronel nazista se recusava a estabelecer
o diálogo do eu consigo mesmo, isto é, a pensar e, por isso, obedecia às
ordens de seus superiores como se não tivesse outra escolha, como se não
fosse um ser humano livre, e sim um animal totalmente condicionado que
agisse por necessidade.
A partir dessa constatação de Arendt presente em EJ, tomamos a
incapacidade de pensar de Eichmann e sua relação com a prática do mal banal
como um pressuposto e passamos a investigar a questão da incapacidade de
pensar nela mesma com o intuito de entendermos quais são as condições
que prejudicam ou dicultam o pensar. Nossa hipótese inicial era a de
que o totalitarismo era responsável por produzir a incapacidade de pensar
na medida em que esta contribuía para arregimentar pessoas dispostas a
levar a cabo suas diretrizes. Assim, analisamos o ensaio “Ideologia e terror:
uma nova forma de governo”, no qual Arendt, com base nas noções de
natureza, princípio de ação e experiência fundamental de cada governo
que ela extrai do pensamento de Montesquieu, explicita como o regime
totalitário se congura enquanto uma forma de dominação que, além de
inédita, instaura uma ruptura em relação à tradição ocidental. Para Arendt,
os regimes totalitários se utilizam do terror como legalidade e da ideologia
como princípio de ação (ou, mais precisamente, de movimento) para
organizar a massa de seres humanos que se encontram isolados uns dos
outros tanto no âmbito público como também na esfera privada.
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 155
A análise do ensaio “Ideologia e terror” nos levou a compreender
que a ideologia, entendida enquanto a “lógica de uma ideia”, prejudica a
capacidade dos seres humanos de pensar por conta própria, uma vez que,
ao preparar os seres humanos para serem vítimas ou carrascos da lei da
Natureza (nazismo) ou da História (stalinismo), ela cria uma espécie de
movimento automático a partir de uma única ideia (a ideia de raça, no caso
do nazismo). Quando essa ideia é tomada como premissa, um processo
de dedução é desencadeado, de modo a impor as asserções deduzidas aos
seres humanos que, por terem aceitado a ideia inicial, precisam aceitar
tudo que pode ser deduzido logicamente dessa mesma ideia para manter a
coerência. Dessa maneira, o movimento lógico acaba por ser confundido
com o movimento da realidade, o que faz com que esta seja explicada pela
lógica de uma ideia. Engolfados por esse movimento mecânico, os seres
humanos acabam por terem prejudicadas a sua capacidade de sentir, isto é,
de aprender com a experiência, e de pensar.
Apesar desse papel que a lógica de uma ideia desempenha nos
regimes totalitários, Arendt observa que tais regimes só puderam ascender
porque encontraram um solo fértil para tal, qual seja, a sociedade de
massas da era moderna. Para Arendt, essa sociedade produz a experiência
da solidão (loneliness), que é a experiência de não ter lugar no mundo. Essa
alienação do mundo está ligada à alienação do pensamento, uma vez que
tanto a capacidade de sentir quanto a capacidade de pensar dependem da
intersubjetividade e, portanto, da pluralidade humana. Se não pudessem
confrontar suas experiências sensíveis com a de seus pares, os seres humanos
não conseguiriam ter certeza daquilo que seus sentidos lhes apresentam
da realidade. Em relação ao pensamento, Arendt observa que ele ocorre
quando o ser humano está sozinho. No entanto, este estar-só (solitude)
não implica uma negação da pluralidade humana, visto que o pensar se
manifesta enquanto o diálogo do eu consigo mesmo, fato que faz com
que a pluralidade esteja representada no próprio eu. O problema, todavia,
é que a ruptura das relações dos seres humanos entre si implica a perda
do mundo comum, o que destrói a possibilidade de cada ser humano se
singularizar e, assim, armar a pluralidade. Dessa forma, mesmo que o
pensar possa ser visto como o último refúgio que aponte para a pluralidade,
essa capacidade pode se perder na medida em que o ser humano necessita
de outrem para sair do seu estado de dois-em-um, no qual ele permanece
sempre equívoco, e, assim, conrmar a sua própria identidade.
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Sem um mundo comum em que a pluralidade possa se armar,
as capacidades de sentir e de pensar acabam por serem limitadas. Nesse
sentido, é na experiência da solidão, que já estava presente nas sociedades
de massa e que é hiperbolizada no interior do projeto de dominação
totalitária, que reside a chave para a compreensão de como a capacidade de
pensar pode ser prejudicada. Tal experiência, como vimos, emerge a partir
das mudanças ocorridas na era moderna que redundam na alienação ou
perda de um mundo comum como efeito da vitória do modo de vida do
animal laborans, fato que leva todas as atividades humanas a se reduzirem a
trabalhar e a consumir. Esse modo de vida não produz sentido e signicado,
pois se restringe à busca pelo sustento, ou seja, da própria sobrevivência,
algo que diz respeito apenas às necessidades vitais de cada indivíduo e à
reprodução da espécie e, por conseguinte, não é capaz de instaurar um
mundo comum no qual os seres humanos consigam se singularizar e agir
junto com os outros.
Nessas condições, o apelo ao totalitarismo se torna sedutor, pois
tal regime consegue atribuir, por meio da lógica de uma ideia, um sentido
para o mundo, ainda que tal sentido seja completamente falso e perigoso, já
que pode levar à prática da violência extrema, ou seja, do mal. No entanto,
tal apelo acaba por encontrar ressonância, posto que o regime totalitário é
visto como uma referência bem estabelecida de ordem por indivíduos cuja
capacidade de sentir, de pensar e, por conseguinte, de julgar, ou seja, de
atribuir um sentido para o mundo e de distinguir adequadamente o certo
do errado, encontram-se prejudicadas.
Este parece ser, pois, o drama de Eichmann: um homem comum,
ou melhor, um homem de massa com traços de listeu, preocupado
com a sua segurança e sobrevivência, que, ao tomar parte em um regime
criminoso com a execução de atividades que resultam na prática do mal, o
faz no papel de um burocrata que busca cumprir o seu dever de ofício para,
assim, ascender em sua carreira e alcançar patentes maiores – o que, na
sua visão, o distinguiria de seus pares. Tal caracterização de Eichmann, no
entanto, não é consensual. De todo modo, como observa Roger Berkowitz
na resenha que faz da biograa do ex-tenente-coronel nazista escrita por
Bettina Stangneth:
Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
| 157
Se Eichmann era, no nal, um antissemita raivoso e fanático
comprometido com a ideia da destruição dos judeus – como
Stangneth sugere, mas não prova – ou se ele era uma alma solitária
que encontrou sentido no movimento nazista e se amarrou
ideologicamente à lógica fria de pedra de suas demandas – como
Arendt conjecturou – é uma questão que não pode ser respondida.
A alma humana não é um livro aberto (BERKOWITZ, 2014).
Eichmann e os nazistas continuam a ser, nesse sentido, um
mistério. Tal conclusão só corrobora a lição da banalidade do mal e
evidencia a importância do tema da incapacidade de pensar (thoughtlessness)
na medida em que, como escreve Giorgio Agamben na “Advertência” de
O que resta de Auschwitz, “[...] entender a mente de um homem comum é
innitamente mais difícil do que compreender a mente de Spinoza ou de
Dante [...]” (AGAMBEN, 2008, p. 21). Essa diculdade de compreensão
a que se refere o lósofo italiano não signica que a mente de pessoas como
Spinoza e Dante, expressa na rigorosa dedução geométrica da Ética e na
cosmovisão dos cantos da Divina Comédia, seja menos complexa ou rica
que a mente de um homem como Eichmann. Pelo contrário, sugere que,
a despeito da complexidade, a mente de grandes autores(as) resulta de um
esforço de pensamento. A mente de homens como o ex-tenente-coronel
nazista, por outro lado, é “obscura” para a compreensão, justamente por
não ter a experiência como lastro para a compreensão da realidade e por ser
supercial na medida em que tais indivíduos não se dispõem ao diálogo do
eu consigo mesmo, ou seja, ao pensar. Ao fazê-lo, tais indivíduos também
abrem mão de viverem consigo mesmos, o que, para Arendt, impossibilita
o exercício da ação ética e responsável.
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Renato de Oliveira Pereira
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PISIER, Evelyne et al. História das ideias políticas. Trad. Maria Alice Farah Calil
Antonio. Barueri, SP: Manole, 2004.
FilmogrAFiA
DOIS papas (2019). Direção de Fernando Meirelles. Roteiro de Anthony McCarten.
Produção de Dan Lin, Jonathan Eirich e Tracey Seaward. Estados Unidos: Netix,
2019.
HANNAH Arendt (2012). Direção e roteiro de Margarethe Von Trotta. Produção de
Heimatlm Gmbh. França, Alemanha: 2012.
O CONTADOR de Auschwitz (2018). Direção de Matthew Shoychet. Roteiro de Ricki
Gurwitz. Produção de Ricki Gurwitz,Ric Esther Bienstock. Estados Unidos: Netix,
2018.
O MONSTRO mora ao lado (2019). Direção de Yossi Bloch, Daniel Sivan. Estados
Unidos: Netix, 2019.
OPERAÇÃO Final (2018). Direção de Chris Weitz. Produção de Fred Berger et al.
Estados Unidos: Automatik Entertainment, 2018.
THE EICHMANN Show (2015). Direção de Paul Andrew Williams. Produção de
Laurence Bowen e Ken Marshall. Reino Unido: BBC Films, 2015.
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S  
AdriAno correiA silvA
Professor de ética e losoa política da Universidade Federal de Goiás desde
2006, concluiu o doutorado em losoa (2002) na Universidade Estadual
de Campinas. Realizou pesquisas de Pós-doutorado na Freie Universität
Berlin (em 2011, com bolsa CAPES/DAAD) e e New School (Nova
York, 2017, com bolsa CAPES). Foi professor e pesquisador visitante
em várias universidades estrangeiras e desenvolve pesquisas nas áreas de
losoa política, ética e losoa do direito, discutindo principalmente as
obras dos seguintes autores: Hannah Arendt, Michel Foucault, Immanuel
Kant, Giorgio Agamben, Jürgen Habermas e Friedrich Nietzsche.
Atualmente atua como professor permanente nas pós-graduações em
Filosoa da UFG e da UFES e em Artes da Cena da UFG. É membro da
Associação Iberoamericana de Filosoa Política, vice-presidente da Rede
Iberoamericana de Filosoa no período 2018-2022 e diretor (vocal) da
Sociedade Interamericana de Filosoa, de 2019-2024. Foi presidente da
Associação Nacional de Pós-graduação em Filosoa no período de 2017-
2020. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq desde 2010.
Renato de Oliveira Pereira
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renAto de oliveirA pereirA
Mestre (2020), bacharel (2018) e licenciado (2017) em Filosoa pela
Faculdade de Filosoa e Ciências da Unesp. Entre 2010 e 2011, ainda no
ensino médio, foi bolsista do CNPq pelo Programa de Iniciação Cientíca
Júnior (PIBIC-Jr.). Durante a graduação, foi bolsista da Fundação para o
Vestibular da Unesp (Vunesp) pelo Programa de Inclusão dos Melhores
Alunos da Escola Pública. Sua pesquisa de mestrado contou com uma bolsa
da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
e diz respeito ao pensamento político de Hannah Arendt. Participou da
comissão editorial da revista Filogênese e da organização de eventos de
pesquisa voltados para graduandos em losoa. Atualmente é professor de
losoa na rede pública do estado de São Paulo.
cAtAlogAção
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
normAlizAção
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
cApA e diAgrAmAção
Gláucio Rogério de Morais
produção gráFicA
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
AssessoriA técnicA
Renato Geraldi
oFicinA universitáriA
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
FormAto
16 x 23cm
tipologiA
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tirAgem
100
impressão e AcAbAmento
2021
sobre o livro
Esta obra foi publicada a partir de
edital interno de publicação de
trabalhos de docentes e egressos do
Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGFIL) da Unesp, como
parte das comemorações de seus 25
anos. Este e os demais livros
publicados por este edital podem ser
baixados gratuitamente no catálogo
da editora Oficina Universitária:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index
.php/lab_editorial. São eles:
- Eichmann e a incapacidade de
pensar: alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt.
Renato de Oliveira Pereira
- Hábitos motores e identidade
pessoal. Ana Paula Talin Bissoli &
Mariana Claudia Broens
- O estatuto científico da ciência
cognitiva em sua fase inicial: uma
análise a partir da estrutura das
revoluções científicas de Thomas
Kuhn. Marcos Antonio Alves e
Alan Rafael Valente
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. I. Ivo Assad Ibri
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. II. Ivo Assad
Ibri
- Verdade e arte: a concepção
ontológica da obra de arte no
pensamento de Martin Heidegger.
Juliano Rabello.
O ponto de partida deste livro é o
caso Eichmann, tal como analisado
por Hannah Arendt em Eichmann em
Jerusalém (1963), obra que resulta de
sua participação no julgamento do
ex-tenente-coronel da SS responsável
pela logística de transporte dos
judeus para os campos de concentra-
ção e extermínio durante o regime
nazista na Alemanha. Conforme
mostra o autor, o descompasso entre
a monstruosidade dos crimes que
Eichmann ajudou a perpetrar e a sua
figura perante o tribunal – que não
pareceu monstruosa ou maléfica a
Arendt, mas completamente normal
e até medíocre –, levou-a a cunhar a
expressão banalidade do mal. Com
tal noção, Arendt designa um novo
tipo de mal, o qual não é causado por
motivos torpes, instintos corrompi-
dos ou por uma vontade maligna, e
sim pela obediência ao dever de
ofício ligada a uma recusa do agente
em pensar naquilo que faz. Com o
objetivo de compreender quais são as
condições que propiciam essa incapa-
cidade ou ausência de pensar
(thoughtlessness), o autor examina,
dentro do arcabouço teórico de
Arendt, como não só os regimes
totalitários, mas também a própria
Era Moderna, produzem a experiên-
cia da solidão (loneliness) no interior
da sociedade de massa. Tal experiên-
cia prejudica a instauração de um
mundo comum no qual possa se
afirmar a pluralidade humana, condi-
ção para o exercício da capacidade de
agir, sentir e também de pensar.
Aprovado pelo EDITAL No. 01/2020 –
PPGFIL/UNESP - Publicações de livros
autorais e tradução de artigos científicos
aceitos para publicação
Eichmann e a incapacidade de pensar
alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
Renato de Oliveira Pereira
Este livro foi publicado a partir de edital interno de
publicação de trabalhos de docentes e egressos do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia (PPGFIL) da Unesp. Como parte
das comemorações de seu jubileu de prata, o PPGFIL vem
realizando e promovendo uma série de atividades em diversos
segmentos. As obras aprovadas no edital foram publicadas em
conjunto pelas editoras Oficina Universitária e Cultura
Acadêmica.
A Oficina Universitária é um selo editorial da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília, apoiada pelo
Laboratório Editorial da FFC. Foi instituída com o objetivo de
criar condições e oportunidades para a difusão de pesquisas e
tornar públicos os resultados dos trabalhos do corpo docente
da FFC. Já a Cultura Acadêmica, selo da Fundação Editora da
Unesp, visa auxiliar principalmente o atendimento às
múltiplas demandas editoriais da Unesp. Com a ampliação do
número de títulos editados pelo selo, são abertas novas
oportunidades de publicação num momento em que a pesquisa
acadêmica e sua divulgação são cada vez mais necessárias.
Eichmann e a incapacidade de pensar:
alienação do mundo e do pensamento em Hannah Arendt
Renato de Oliveira Pereira
ISBN 978-65-5954-064-8