Este livro foi publicado a partir de edital interno de publicação
de trabalhos de docentes e egressos do Programa de Pós-Gradu-
ação em Filosofia (PPGFIL) da Unesp. Como parte das comemo-
rações de seu jubileu de prata, o PPGFIL vem realizando e
promovendo uma série de atividades em diversos segmentos. As
obras aprovadas no edital foram publicadas em conjunto pelas
editoras Oficina Universitária e Cultura Acadêmica.
A Oficina Universitária é um selo editorial da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília, apoiada pelo
Laboratório Editorial da FFC. Foi instituída com o objetivo de
criar condições e oportunidades para a difusão de pesquisas e
tornar públicos os resultados dos trabalhos do corpo docente da
FFC. Já a Cultura Acadêmica, selo da Fundação Editora da
Unesp, visa auxiliar principalmente o atendimento às múltiplas
demandas editoriais da Unesp. Com a ampliação do número de
títulos editados pelo selo, são abertas novas oportunidades de
publicação num momento em que a pesquisa acadêmica e sua
divulgação são cada vez mais necessárias.
Verdade e arte:
a concepção ontológica da obra
de arte no pensamento de
Martin Heidegger
Juliano Rabello
Aprovado pelo EDITAL No. 01/2020 –
PPGFIL/UNESP - Publicações de livros
autorais e tradução de artigos científicos
aceitos para publicação
Esta obra foi publicada a partir de
edital interno de publicação de
trabalhos de docentes e egressos do
Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGFIL) da Unesp, como
parte das comemorações de seus 25
anos. Este e os demais livros
publicados por este edital podem ser
baixados gratuitamente no catálogo
da editora Oficina Universitária:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index
.php/lab_editorial. São eles:
- Eichmann e a incapacidade de
pensar: alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt.
Renato de Oliveira Pereira
- Hábitos motores e identidade
pessoal. Ana Paula Talin Bissoli &
Mariana Claudia Broens
- O estatuto científico da ciência
cognitiva em sua fase inicial: uma
análise a partir da estrutura das
revoluções científicas de Thomas
Kuhn. Marcos Antonio Alves e
Alan Rafael Valente
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. I. Ivo Assad Ibri
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. II. Ivo Assad
Ibri
- Verdade e arte: a concepção
ontológica da obra de arte no
pensamento de Martin Heidegger.
Juliano Rabello.
ISBN 978-65-5954-066-2
O objetivo central deste livro
consiste em abordar o tema da arte
em Martin Heidegger. Ligada à
questão da essência da verdade, a
reflexão heideggeriana sobre a obra
de arte é elaborada a partir de uma
retomada da expressão grega
Alétheia. A fim de apresentar tal
noção como uma intuição funda-
mental que orientará o percurso
filosófico de Heidegger, o autor
perpassa os desenvolvimentos da
“Ontologia Fundamental” de Ser e
Tempo (1927) ao contexto da
viragem (Kehre) de seu pensamento
(1930), onde se situa o tema da
arte. Nessa direção, procura abor-
dar nos textos analisados como
Heidegger desenvolve suas refle-
xões no tocante a esse tema, princi-
palmente no ensaio A origem da obra
de arte (1935-36), na qual o filósofo
apresenta, juntamente com a ques-
tão da essência da linguagem e da
poesia, as noções diretrizes de sua
concepção ontológica da obra de
arte, que, por sua vez, diverge das
teorias tradicionais da Estética
Filosófica.
Verdade e arte:
a concepção ontológica da obra
de arte no pensamento de
Martin Heidegger
V  :
    
    
M H
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
J R
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretora
Prof.ª Dr.ª Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Prof.ª Dr.ª Ana Claudia Vieira Cardoso
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2021, Faculdade de Filosoa e Ciências
Rabello, Juliano.
R114v Verdade e arte : a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin
Heidegger / Juliano Rabello. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2021.
117 p.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-066-2 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-067-9 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-067-9
1. Heidegger, Martin – 1889-1976. 2. Arte – Filosoa. 3. Verdade. 4. Ontologia. 5.
Poesia. 6.Linguagem - Filosoa. I. Título.
CDD 193
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em
Filosoa da UNESP:
Marcos Antonio Alves (Coordenador); Ana
Maria Portich (Vice-Coordenadora); Hércules
de Araújo Feitosa; Reinaldo Sampaio Pereira
Aprovado pelo EDITAL No. 01/2020 –
PPGFIL/UNESP - Publicações de livros
autorais e tradução de artigos cientícos aceitos
para publicação
Pareceristas
Irene Borges Duarte
Universidade de Évora (Portugal)
Telma Jaqueline Dias Silveira - CRB 8/7867
| 5
A
Aos que, direta ou indiretamente, colaboraram com a realização
desta obra.
À Cássia Alves do Nascimento, com amor, admiração, gratidão e,
sobretudo, por sua presença intelectual ao longo do período de elaboração
do presente trabalho.
Ao professor Ubirajara Rancan de Azevedo Marques, pelo
cuidado, atenção e dedicação em todas as etapas de minha pesquisa de
mestrado, que agora se constitui em livro.
Aos docentes do Departamento de Filosoa da UNESP/Marília
que colaboraram com minha formação acadêmica, em especial, ao professor
Márcio Benchimol e ao professor Andrey Ivanov, pela apreciação crítica e
sugestões dadas ao desenvolvimento desta obra;
Aos amigos mais próximos que sempre contribuíram com meu
enriquecimento intelectual;
Ao meu pai, em sua memória, minha querida mãe e a meus irmãos;
À CAPES pelo suporte nanceiro durante o período de estudos e
elaboração da presente obra.
6 |
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber orir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as ores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
(Alberto Caeiro)
S
Apresentação
Marcos Antonio Alves -------------------------------------------------------------- 9
Introdução ------------------------------------------------------------------------- 13
1. O prOblema da verdade em ser e tempo --------------------------------- 19
1.1 O projeto fundamental de Ser e tempo: sentido do ser e verdade - 19
1.2 Fenomenologia e “Analítica Existencial” -------------------------- 23
1.3 A constituição ontológica do ser-aí -------------------------------- 27
1.3.1 “Ser-no-mundo” e “abertura ---------------------------------- 27
1.3.2 Ser-com outros: impropriedade e propriedade da existência 32
1.4 Verdade no § 44 de Ser e tempo ------------------------------------- 43
1.4.1 O caráter derivado do conceito tradicional de verdade --- 43
1.4.2 O fenômeno originário da verdade: a não-verdade -------- 49
1.4.3 O sentido do desvelamento como vínculo ontológico entre
verdade e ser-aí -------------------------------------------------------- 52
2 verdade e arte: a essencializaçãO dO ser na Obra de arte ------------ 59
2.1 Da analítica existencial à história da verdade: a arte no contexto da
viragem do pensamento heideggeriano -------------------------------- 59
2.2 A crítica de Heidegger às concepções tradicionais da Estética - 67
2.2.1 A coisa, os instrumentos e as obras -------------------------- 67
2.2.2 Matéria e forma ------------------------------------------------ 71
2.3 O acontecimento originário da verdade na obra de arte ------- 79
8 |
2.3.1 Explicitação das noções de mundo e terra ----------------- 79
2.3.2 Arte e técnica --------------------------------------------------- 88
2.3.3 A dimensão poética da verdade como essência da obra de arte 98
cOnsiderações Finais --------------------------------------------------------- 109
reFerências --------------------------------------------------------------------- 113
sObre O autOre ----------------------------------------------------------------- 117
| 9
A
Esta obra foi publicada a partir de edital interno de publicação
de trabalhos de docentes e egressos do Programa de Pós-Graduação em
Filosoa (PPGFIL) da Unesp. Situado no campus de Marília, o PPGFIL
iniciou suas atividades em 1996. Trata-se de um programa consolidado
que apresenta bons resultados em diferentes âmbitos. São dignas de nota
a quantidade e a qualidade das publicações de seus docentes, discentes
e egressos. Atividades de ensino, pesquisa e extensão, inserção social,
internacionalização, bem como a formação de novos quadros para a
losoa também são marcantes. Já são tradicionais e de grande visibilidade,
por exemplo, alguns eventos promovidos e realizados pelo programa. Já
são mais de 250 egressos, muitos deles concursados nas redes estaduais de
ensino básico ou em instituições de ensino superior em todo o país. Boa
parte deles cursou doutorado, realizou estágio ou pesquisa em instituições
nacionais e estrangeiras de renome.
Como parte das comemorações de seu jubileu de prata, o
PPGFIL vem realizando e promovendo uma série de atividades em diversos
segmentos. Em uma frente, vem reestruturando suas linhas de pesquisa, seu
corpo docente, bem como seus projetos e grupos de pesquisa. Em relação
às linhas, em 2020 elas passaram a ser apenas duas, intituladas “Filosoa
da Informação, da Cognição e da Consciência” e “Conhecimento, Ética
e Política”. Tais modicações buscam manter e respeitar a liberdade, a
autonomia e a visão losóca dos grupos ou dos integrantes do programa.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-067-9.p9-12
Juliano Rabello
10 |
Com as mudanças, resultado de seu processo de autoavaliação,
o programa reuniu docentes em torno de temas e pesquisas convergentes.
Com isso, visa a favorecer o desenvolvimento ainda mais substancial
e aprofundado de pesquisas, produzindo conhecimento qualicado,
ampliando a internacionalização, melhorando a formação de seus discentes,
a inserção social através da socialização do conhecimento, realização de
eventos, desenvolvimento de projetos de ensino, pesquisa e extensão.
O programa está solicitando, depois de um longo trabalho
coletivo, a abertura do seu doutorado. O curso pretende atender à demanda
de discentes formados na graduação e mestrado em losoa e em outros
cursos da própria Unesp, além de estudantes oriundos de diversas regiões
do país interessados em aprofundar suas pesquisas nos temas e problemas
abordados no PPGFIL. Com isso, favorecerá a formação continuada
de discentes na Unesp, da graduação ao doutorado, acolhendo também
candidatos de outras instituições interessados em desenvolver pesquisas
nas áreas de especialidade de seus docentes.
Em outra frente, o programa reformulou e intensicou sua
interação com a comunidade por meio das redes sociais. Por meio das
publicações em sua página no Facebook, no endereço https://www.
facebook.com/poslmarilia, deixa os seguidores informados das suas
atividades. Já a sua página ocial está hospedada no site da FFC/Unesp/
Campus de Marília, que pode ser acessada no endereço http://www.marilia.
unesp.br/posl. Além de publicações sobre sua atividade cotidiana, oferece
variadas informações referentes a seu histórico, missão, objetivos, processo
seletivo, bem como possui seções especicamente direcionadas a discentes,
docentes e egressos. Buscando melhor comunicação, acessibilidade e
transparência, a página, depois de reformulada, está mais leve, informativa
e acessível.
A socialização do conhecimento e contato com a comunidade
também é efetivada através das revistas cientícas vinculadas ao programa.
Dentre elas, estão a Kínesis: Revista dos Estudos dos Pós-Graduandos em
Filosoa, e a Trans/Form/Ação: revista de losoa da Unesp, já considerada
patrimônio do curso de losoa da Unesp e um dos mais conceituados
periódicos na área tanto no Brasil quanto no exterior. A Kínesis, como
diz o próprio sobrenome, é voltada principalmente, mas não somente, à
publicação de trabalhos de pós-graduandos. Já a Trans/Form/Ação publica
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 11
textos de prossionais em losoa e áreas ans. Ambas são voltadas à
publicação de trabalhos de losoa ou de interesse losóco, difundindo o
conhecimento produzido na área tanto no Brasil quanto no exterior.
Ainda como parte da comemoração dos seus 25 anos, o PPGFIL
lançou o edital para publicação de livros de docentes e egressos, ao qual este
livro foi submetido e aprovado para publicação. As propostas submetidas
foram avaliadas na plataforma da revista Trans/Form/Ação, no caráter de
parecer duplo-cego. Tal acordo de cooperação foi pensado para garantir
transparência e conabilidade no processo seletivo das submissões. Ao
receber a solicitação de avaliação, os pareceristas também foram convidados
a produzir o prefácio do livro, caso deliberassem pela aprovação da obra.
Além de favorecer ainda mais o cuidado no trabalho avaliativo, com essa
atitude buscamos valorizar ainda mais a contribuição dos avaliadores.
As obras aprovadas no edital foram publicadas em conjunto
pelas editoras Ocina Universitária e Cultura Acadêmica. A Ocina
Universitária é um selo editorial da Faculdade de Filosoa e Ciências da
Unesp, campus de Marília, apoiada pelo Laboratório Editorial da FFC.
Foi instituída com o objetivo de criar condições e oportunidades para a
difusão de pesquisas e tornar públicos os resultados dos trabalhos do corpo
docente da FFC. Já a Cultura Acadêmica, selo da Fundação Editora da
Unesp, visa auxiliar principalmente o atendimento às múltiplas demandas
editoriais da Unesp. Com a ampliação do número de títulos editados pelo
selo, são abertas novas oportunidades de publicação num momento em
que a pesquisa acadêmica e sua divulgação são cada vez mais necessárias.
É com grande prazer e satisfação que publicamos este livro,
intitulado Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento
de Martin Heidegger. Conforme explicita o autor, Juliano Rabello, seu
objetivo central consiste em abordar o tema da arte em Martin Heidegger.
Ligada à questão da essência da verdade, a reexão heideggeriana sobre
a obra de arte é elaborada a partir de uma retomada da expressão grega
Alétheia. A m de apresentar tal noção como uma intuição fundamental
que orientará o percurso losóco de Heidegger, Juliano perpassa os
desenvolvimentos da “Ontologia Fundamental” de Ser e Tempo (1927) ao
contexto da viragem (Kehre) de seu pensamento (1930), onde se situa o
tema da arte. Nessa direção, procura abordar nos textos analisados como
Heidegger desenvolve suas reexões no tocante a esse tema, principalmente
Juliano Rabello
12 |
no ensaio A origem da obra de arte (1935-36), na qual o lósofo apresenta,
juntamente com a questão da essência da linguagem e da poesia, as noções
diretrizes de sua concepção ontológica da obra de arte, que, por sua vez,
diverge das teorias tradicionais da Estética Filosóca.
Este e os demais livros publicados por este edital podem ser
baixados gratuitamente no catálogo da editora Ocina Universitária:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial. São eles:
• Eichmann e a incapacidade de pensar: alienação do mundo e
do pensamento em Hannah Arendt. Renato de Oliveira Pereira
• Hábitos motores e identidade pessoal. Ana Paula Talin Bissoli e
Mariana Claudia Broens
• O estatuto cientíco da ciência cognitiva em sua fase inicial:
uma análise a partir da estrutura das revoluções cientícas de
omas Kuhn. Marcos Antonio Alves e Alan Rafael Valente
Semiótica e Pragmatismo. Interfaces teóricas. Vol. I. Ivo Assad Ibri
Semiótica e Pragmatismo. Interfaces teóricas. Vol. II. Ivo Assad Ibri
• Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no
pensamento de Martin Heidegger. Juliano Rabello
Esperamos, com esta atividade, fazer cumprir um dos objetivos de
um programa de pós-graduação, o de produzir e socializar o conhecimento.
Desejamos aos leitores desta e das demais obras uma reexão profícua
oriunda de sua leitura.
Marcos Antonio Alves
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosoa da Unesp
| 13
I
Em todo o pensamento heideggeriano se faz presente a questão
sobre o sentido do ser. Enquanto problema fundamental, tal questão se
anuncia nas reexões do lósofo de maneira expressiva desde Ser e tempo
(1927), sua principal obra, e, posteriormente, será a marca de todo seu
projeto losóco. Todos os temas de relevância no pensamento de Heidegger
devem ser pensados a partir dessa questão inicial, e, mais ainda, a partir
do que o lósofo chamou de esquecimento da verdade do ser. É sob essa
perspectiva que encontramos também formulada a temática da arte em
seu pensamento. Como nos relata Irene Borges-Duarte, “poucos lósofos
concederam à arte uma atenção tão preferente e um lugar tão essencial no
cerne do seu pensamento como Martin Heidegger” (BORGES-DUARTE,
2014, p. 37). No entanto, é preciso compreender adequadamente esse
“lugar” no qual surge o tema no pensamento do lósofo.
A reexão de Heidegger a respeito da arte começa a tomar
forma em meados da década de 1930, contexto em que se identica uma
mudança de perspectiva em relação ao que o lósofo havia desenvolvido
em Ser e tempo. Essa transformação operada em seu modo de pensar é
chamada pelos intérpretes de seu pensamento de viragem (Kehre), na qual
se constata uma inversão da Ontologia fundamental (formulada em Ser e
tempo a partir da “Analítica Existencial”), para a história da verdade do
ser (em que Heidegger abandona a perspectiva de análise do ser a partir
Juliano Rabello
14 |
do ser-aí [Da-sein] e passa à abordagem do ser a partir de sua própria
temporalização histórica).
Dentro deste contexto, o ensaio A origem da obra de arte (1935-
36), principal texto sobre o tema da arte, surge como o início de um novo
percurso do pensamento de Heidegger. Pensada juntamente com a questão
da essência da linguagem e da poesia, a concepção da verdade abordada
a partir da obra de arte passa a apontar, no contexto da viragem, o o
condutor que caracteriza o vínculo fundamental entre a arte, a verdade do
ser e o ser-aí (Da-sein), vínculo este que instaura, dentro da perspectiva do
esquecimento do ser, um dos traços decisivos que marca o destino histórico
do homem na era da técnica, impondo, assim, a necessidade de um novo
pensar diante da história ocidental.
Nesse sentido, inserindo-se dentro da tentativa de ultrapassar os
conceitos da metafísica tradicional, a concepção que Heidegger tem sobre
a arte não é propriamente uma interpretação estética ou uma da teoria da
arte; trata-se, antes de tudo, de buscar qual a essência da obra de arte, ou
seja, saber qual a proveniência da arte, sua origem, e, nesse sentido, seus
objetivos são fundamentalmente ontológicos.
Como intuição fundamental que permeia toda obra de Heidegger,
a questão da verdade é pensada a partir da retomada da expressão grega
alétheia, que, por sua vez, difere do conceito tradicional tal como fora pensado
pela História da Filosoa; a saber: a verdade lógica e proposicional polarizada
na estrutura da enunciação como adequação entre sujeito e objeto.
A reexão heideggeriana sobre a obra de arte se mostra intimamente
ligada a essa crítica empreendida por Heidegger ao conceito tradicional de
verdade, o que leva, inevitavelmente, a uma tentativa de superação tanto
do subjetivismo como do idealismo modernos que até então conferiam à
estética um fundamento último por meio de uma verdade total e absoluta.
Na “Introdução” escrita para o ensaio A Origem da obra de arte, Gadamer
nos relata que, para Heidegger, o reconhecimento da pergunta pela obra
de arte e sua signicação no interior dos problemas fundamentais da
losoa provém de um esgotamento que tem origem na própria tradição
em que seus conceitos se engendram. Segundo Gadamer (2004, p. 70):
“[...] requeria-se abertamente a visada nos preconceitos presentes no
conceito de uma estética losóca. Requeria-se uma superação do próprio
conceito de estética”. Nesse texto, Gadamer nos explica alguns fatores que
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 15
foram determinantes para a consolidação da Estética enquanto disciplina
losóca e contra os quais se volta o pensamento de Heidegger. Desde a
formulação do termo com a obra de Baumgarten, passando pelos esforços
da Crítica da faculdade do juízo de Kant, que consolida sua sistematização,
até a fundação da arte como potência do Espírito Absoluto de Hegel, a
estética se inscreve num horizonte de uma “perigosa subjetivação” na qual
a teoria da obra de arte ainda ca num horizonte ontológico universal”
(GADAMER, 2004, p. 71).
É contra esse mesmo horizonte subjetivista – nos diz Gadamer
– que Heidegger, desde Ser e tempo, se opõe e que em A origem da obra
de arte se expressa no sentido de conferir à interrogação sobre a arte uma
dimensão de superação dos conceitos legados pela tradição metafísica,
e, consequentemente, da estética losóca. Em seu ensaio sobre a arte,
Heidegger (2004, p. 32) apresenta a tese de que a essência da arte seria,
pois, “o por-se-em-obra da verdade do ente”.
Assim como já estava expresso de maneira radical na “Analítica
Existencial” de Ser e tempo, a verdade não é mais pensada a partir dos
pressupostos metafísicos e universais de uma verdade absoluta. Porém,
dando um passo adiante em sua interrogação, ou melhor, por meio de uma
viragem em seu modo de interrogar, o lósofo inscreve a verdade no plano
do acontecimento (Ereignis) originário do ser aberto pela obra de arte.
Tendo isso em vista, o presente livro visa compreender, a partir
do conceito de verdade, de que modo Heidegger nos oferece uma maneira
especíca de se compreender a obra de arte, a saber: uma compreensão
ontológica da obra de arte,
1
que, por sua vez, difere das concepções
tradicionais da Estética Filosóca. Nessa direção, temos diante dessa
abordagem a seguinte questão: que sentido Heidegger atribui à relação
entre verdade e arte? Ou, ainda: como em Heidegger a verdade, pensada
como essência da obra de arte, possibilita a esta um estatuto ontológico?
Heidegger não é o primeiro lósofo que se propõe a pensar a obra de arte em uma perspectiva ontológica. Antes
dele outros pensadores o zeram. Porém, diferentemente dos lósofos que o antecedem, o que está em jogo
para Heidegger é que toda a tradição losóca – em especial a Estética Filosóca – mesmo quando pretendera
pensar a arte ontologicamente, se movimentara na perspectiva do esquecimento da questão do ser, ou seja: se
movimentara pelo esquecimento da diferença ontológica entre ser e ente. “Pelo fato de a metafísica interrogar o
ente, enquanto ente, permanece ela junto ao ente e não se volta para o ser enquanto ser” (HEIDEGGER, 1979,
p. 55). O que Heidegger tenta fazer é justamente propor uma compreensão da obra de arte que se oriente pela
tentativa de superação dos entraves conceituais cunhados no interior da tradição metafísica.
Juliano Rabello
16 |
Nossa orientação central baseia-se no fato de que, ao pensar
a obra de arte como acontecimento da verdade, o autor traz a questão
para um âmbito mais originário e fundamental em relação às concepções
anteriormente pensadas no interior da tradição, pois a verdade, entendida
como ocultamento do ser que se manifesta na obra de arte, difere das
noções tradicionais de fabricação, construção, representação ou mímesis
que entendem a obra de arte como um simples objeto de fruição estética.
Nessa direção, pretendo analisar a verdade não apenas como
um conceito losóco indispensável para a compreensão do pensamento
heideggeriano sobre a arte, mas, também, em que medida, ao inscrever
a questão da arte no mesmo horizonte da questão do ser, o lósofo
possibilita à arte um estatuto ontológico que, ao mesmo tempo que
diverge das perspectivas correntes da tradição losóca, nos permita uma
abertura para uma nova forma de compreendê-la, congurando-se, assim,
uma proposta de superação não só da Estética Filosóca, mas da própria
tradição metafísica que a fundamenta.
Diante disso, os capítulos desta obra seguem a seguinte organização:
No primeiro capítulo, cujo título é “O problema da verdade em
Ser e tempo” buscaremos mapear como emerge a questão da verdade, a
m de caracterizá-la como uma intuição fundamental que norteará toda
produção posterior do lósofo. Em Ser e tempo, como já mencionamos,
a questão da verdade é pensada a partir do que Heidegger considera ser
a questão fundamental da losoa: o sentido do ser, ou, melhor dizendo,
o esquecimento da questão do ser. A resposta para tal pergunta exige de
Heidegger denir o método pelo qual ela deve ser interrogada, donde a
necessidade de elucidarmos a importância que o método fenomenológico
assume na obra, principalmente no que diz respeito à “Analítica Existencial”,
modo de análise desenvolvida por Heidegger em todo o tratado, que tem
por objetivo desvelar as estruturas fundamentais do ser-aí (Da-sein) como
via de acesso” ao sentido do ser. Como veremos, a questão da verdade
aparece de maneira explícita no decisivo §44, que encerra a primeira seção
de Ser e tempo, o qual, tendo suma importância para nossa investigação,
analisaremos de maneira mais detida. Porém, para não perdermos de vista
a complexidade de tal parágrafo, algumas noções são imprescindíveis nesta
análise, tais como os conceitos de ser-no-mundo, abertura, ser-com outros,
propriedade e impropriedade, angústia, preocupação solícita etc.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 17
Após ter tratado do problema da verdade em Ser e tempo,
abordaremos no segundo capítulo, “Verdade e arte: a essencialização do ser
na obra de arte”, como se dá a relação entre verdade e arte no pensamento
de Heidegger. A principal obra a ser analisada será A origem da obra de
arte (1935-36), na qual trataremos da tese de Heidegger de que a obra
de arte é o pôr-se-em-obra da verdade, no intuito de mostrar como, a
partir do conceito de verdade, o lósofo fundamenta a essência da obra de
arte. Paralelamente, serão também analisados os textos Sobre a essência da
verdade, Sobre o humanismo e Tempo e ser para especicar a preocupação
fundamental do autor com a problemática do ser. Porém, tendo presente o
fato de que tal problemática, após 1930, sofre uma mudança em seu ponto
de partida, caracterizando assim a chamada viragem (Kehre), mostraremos
a transição entre o tratamento dado pelo lósofo à questão da verdade
em Ser e tempo e a questão da verdade sob a ótica da história do ser, assim
situando o tema da arte no pensamento do lósofo.
A seguir, abordaremos o confronto de Heidegger com a estética
tradicional, na qual o autor se depara com o fato de que as teorias que
fundamentam a obra de arte se orientam pela perspectiva ôntica que
se apresenta pela infraestrutura da coisa, perdendo de vista o caráter
ontológico da obra de arte. Em A origem da obra de arte, o lósofo irá
analisar três interpretações tradicionais de coisa
2
que, segundo ele, são
incapazes de desvelar a essência da obra de arte, com destaque à terceira
interpretação; a saber: a coisa como união entre a matéria e a forma,
na qual iremos nos deter com mais pormenor. Heidegger se afasta das
concepções tradicionais da estética para inserir a reexão da arte dentro
de um novo horizonte, no qual as caracterizações ônticas da obra de arte
apresentam-se sempre insucientes para responder o que para ele congura
a questão fundamental; a saber: a busca pelo sentido do ser.
Com isso, tentaremos demonstrar que a preocupação de Heidegger
não é propriamente uma interpretação estética ou uma teoria da arte, mas
buscar qual a essência da obra de arte, evidenciando, assim, a orientação
fundamentalmente ontológica do ensaio. Na sequência, explicitaremos a
tese heideggeriana que diz ser a arte um acontecimento da verdade por
meio dos “conceitos” de mundo e terra, que, inéditos dentro da reexão
sobre a arte, assumem relevância especial no sentido de trazer à tona a
 São elas, respectivamente: suporte de suas características, multiplicidades de sensações e matéria enformada.
Juliano Rabello
18 |
dimensão ontológica da obra de arte, pois, segundo Heidegger, é pela
tensão entre mundo e terra que ocorre o desvelamento da verdade na obra.
Para explicitar estas noções, apresentaremos a descrição que Heidegger faz
em A origem da obra de arte do quadro de Van Gogh Um par de sapatos e
do templo grego, com o objetivo de mostrar a importância que o método
fenomenológico assume na interpretação heideggeriana da verdade e sua
íntima relação com a obra de arte.
Como aprofundamento de tais noções, será abordada também a
relação entre arte e técnica sob a perspectiva da noção de verdade. O principal
texto a ser analisado será “A questão da técnica”, contido no livro Ensaios e
conferências. Entendemos que, além de compreender a noção de verdade e
sua relação com a arte, é intrinsecamente necessário apreendê-las juntamente
com a reexão de Heidegger sobre a essência da técnica, pois esta se apresenta
fundamentalmente ligada à própria dimensão da destinação histórica do
ocidente. Segundo Heidegger, tal destinação é o que marca decisivamente
o esquecimento do ser e que, na era moderna, reete-se no perigo que se
anuncia pela instrumentalização da ciência, e, consequentemente, pela
indigência da condição existencial do homem frente à falta dos fundamentos
metafísicos tradicionais. Nesse âmbito, a reexão de Heidegger sobre a arte
surge como uma nova possibilidade de articulação entre verdade, arte e ser-
aí, que, como veremos, exige a retomada da dimensão originária da relação
entre arte e verdade a partir do termo grego τέχνη.
Por m, pretendemos aprofundar nosso tema discorrendo sobre a
tese de Heidegger que diz ser a arte, em sua essência, poesia. Antecipando
temas que farão parte de suas reexões da maturidade, Heidegger encerra o
ensaio A origem da obra de arte com uma profunda análise sobre a essência da
poesia, associando a esta a questão da essência da linguagem e a destinação
histórica da verdade do ser. Desvinculados da “Analítica Existencial”, esses
temas são característicos da viragem, constituindo, assim, a tônica do
pensamento tardio do lósofo. Paralelamente, faremos referência a outro
texto de suma importância na abordagem da arte, Hölderlin e a essência
da poesia, que, datado da mesma época em que surge A origem da obra de
arte, colabora no sentido de ampliar a compreensão da obra de arte como
ditado poético” (Dichtung) da verdade do ser.
| 19
1
O      

1.1 O prOjetO Fundamental de ser e tempo: sentidO dO ser e
verdade
Heidegger (2012, p. 31) inicia o tratado Ser e tempo com
uma citação do Sosta de Platão: “Pois é manifesto que estais há muito
familiarizados com o que pretendeis propriamente signicar empregando
a expressão ‘ente’, que outrora acreditávamos certamente entender mas
que agora nos deixa perplexos”. Essa passagem expõe, ao mesmo tempo, a
tematização da obra e a tonalidade de seu projeto fundamental, a saber, a
elaboração explícita da questão do ser. Ao inserir este trecho como abertura
da obra, Heidegger tem em vista a necessidade de formulação da questão do
ser e também o fato de que tal problemática ainda permanece sem solução
desde a aurora do pensamento ocidental. Para Heidegger, esta passagem
expressa a confusão entre ser e ente (diferença ontológica), que, segundo
ele, se projetou por toda a tradição metafísica, marcando decisivamente o
esquecimento do ser. De acordo com sua análise, na tentativa de nomear o
ser, a metafísica não fez outra coisa além de nomear o ente. “Pelo fato de a
metafísica interrogar o ente, enquanto ente, permanece ela junto ao ente e
não se volta para o ser enquanto ser” (HEIDEGGER,1979, p. 55).
Neste sentido, ao iniciar o livro com uma citação de Platão, Heidegger
se volta para o solo de onde tal questão emerge, penetrando, assim, em seu
Juliano Rabello
20 |
sentido originário. De acordo com Casanova (2010, p.77), tal postura é “uma
forma de indicar que a obra Ser e Tempo se inicia com um problema de origem,
com um problema que nasce juntamente com a própria história da losoa e
que continua clamando incessantemente por solução”.
Heidegger considera que desde o início da losoa com os gregos
a questão do ser mergulhou em uma série de preconceitos que, além de não
penetrar no sentido profundo que está na base de sua expressão, manteve
inalterada sua compreensão: “Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da
interpretação do ser construiu-se um dogma que não só declara supérua a
pergunta pelo ser, mas além disso sanciona sua omissão” (HEIDEGGER, 2012,
p.33). Tais preconceitos se enraizaram na tradição, de tal modo que, desde a
origem do pensamento ocidental, a denição do ser manteve-se, tomando-o
como conceito “mais universal”, “indenível” ou ainda como um “conceito-que-
pode-ser-entendido-por-si-mesmo” (HEIDEGGER, 2012, p. 35-39).
Como ressalta MacDowell (1970, p. 204), na concepção de
Heidegger, depois de Aristóteles a história da Filosoa, embora tenha tido
magnícos exemplos de investigação sobre o ser do ente, jamais atingiu o
nível dos próprios fundamentos da metafísica”, de forma que “o losofar
de Descartes, de Kant ou de Hegel, longe de constituir um começo
absoluto, revela-se, à luz do sentido do ser, como a transplantação acrítica
de preconceitos antigos”.
Portanto, para se colocar a pergunta sobre o sentido do ser, é
preciso, para Heidegger, livrar-se das amarras da tradição. Tal pergunta,
para o lósofo, só pode efetuar-se quando o pensamento atingir sua
experiência originária fundamental, mas, para que tal ocorra, é preciso
realizar a tarefa de uma destruição do conteúdo transmitido pela ontologia
antiga” (HEIDEGGER, 2012, p. 87).
Mas o que o lósofo entende por destruição? “Destruir” a história
da ontologia não é desconsiderá-la ou anulá-la, pois para Heidegger (2012,
p. 89) tal destruição não assume o “caráter negativo de se desfazer da tradição
ontológica”, tampouco o de se comportar “negativamente em relação ao
passado”, pois “sua crítica atinge o ‘hoje’ e o modo predominante de tratar a
história da ontologia”. Destruir signica superar, livrar o ser das interpretações
que encobrem seu sentido. Sendo assim, superar a história da ontologia não
é dirigir-se contra a tradição; ao contrário, é no interior da própria ontologia
que se sustenta a possibilidade de sua superação, pois é justamente em sua
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 21
base que a questão do ser se anuncia e o pensamento se dirige para penetrar
no sentido de seu esquecimento. Com isso, podemos compreender que
[...] só no efetuar a destruição da tradição ontológica é que
a questão-do-ser conquista sua verdadeira concretização.
Na destruição a questão-do-ser consegue a plena prova da
imprescindibilidade da pergunta pelo sentido de ser e demonstra
assim o sentido do discurso sobre a ‘repetição’ dessa pergunta
(HEIDEGGER, 2012, p. 99).
É justamente a partir dessa necessidade de “repetição” da
pergunta sobre o sentido do ser que emerge o problema da verdade em
Heidegger, designada pelo termo grego Alétheia, ou seja, a manifestação ou
o desocultamento do ser. Se ao tomar o ser pelo ente a tradição ocultou-lhe
o sentido originário, marcando seu esquecimento, a tarefa fundamental
que se coloca para o pensamento é retomar o que foi esquecido e ocultado.
O signicado contido na expressão Alétheia é para Heidegger o caminho
em direção à compreensão do sentido originário do ser.
Nesta direção, rompendo com as concepções tradicionais,
Heidegger distancia-se de um modo habitual
1
de se compreender a verdade
para voltar-se para o sentido originário que, segundo ele, emerge da expressão
Alétheia. Uma primeira aproximação de seu signicado pode indicar o que
está em jogo quando nos referimos a este termo grego. Sua composição
vincula o caráter de negação presente na partícula “a”, signicando o não
privativo, com a palavra lethes, signicando esquecimento, velamento,
ocultação. Sua origem remete aos termos aletheuein (tirar do encobrimento)
e alethes (o desencoberto) (INWOOD, 2002, p. 4-7).
Quando analisamos a volta de Heidegger a essa expressão,
percebemos que sua pretensão ao interpretar a palavra grega Alétheia não
é esgotar suas possibilidades etimológicas. Sua interpretação nos oferece
elementos signicativos pelo fato de o lósofo ter se atentado não apenas
para a questão semântica que envolve esse termo, mas, principalmente,
para a profundidade que tal conceito assume no contexto em que o homem
grego o pensou. Dessa forma, a orientação de sua interpretação busca
1
Esse modo habitual refere-se, segundo Heidegger, à verdade como “concordância” entre pensamento e coisa.
Abordaremos mais adiante as críticas que o lósofo faz a essa interpretação da verdade quando tratarmos da
análise do §44 de Ser e Tempo.
Juliano Rabello
22 |
um fundamento oculto que não pôde ser sucientemente trabalhado
pela vasta bibliograa losóco-linguística a respeito desta expressão.
Ademais, a crítica feita por Heidegger dirige-se ao fato de os lósofos
terem tomado tal conceito isoladamente, como uma ideia que se separa
de seu conteúdo imanente. Isso se torna evidente no questionamento que
o próprio lósofo empreende:
Mas, qual é, então, a situação desta enigmática Alétheia, que se
tornou um escândalo para os intérpretes do mundo grego, pelo
fato de se aterem apenas a esta palavra isolada e sua etimologia, em
vez de pensarem, a partir da questão para onde apontam palavras
como desvelamento e velamento? (HEIDEGGER, 1979, p. 213).
Como comenta Stein (2001, p. 78), nessa retomada heideggeriana
do conceito grego de Alétheia, “não se trata de uma mística da palavra, de
um fetichismo linguístico”; de fato, ela “revela um modo particular de
movimentar-se em seu pensamento”. Ou seja, para Heidegger, o conteúdo
de tal conceito não se resume a um trato meramente linguístico. Nele se
esconde um horizonte que só pode ser conquistado quando trilhado o
caminho do pensar originário.
Nesse sentido, Ser e tempo é uma tentativa, ainda que provisória,
de retomada do que os gregos pensaram à luz de Alétheia. No entanto, isso
sugere que este não é um mero conceito inscrito na História da Filosoa;
pelo contrário, o lósofo nos adverte que “se verdade está em pleno direito
numa originária conexão com o ser, então o fenômeno da verdade entra no
âmbito da problemática ontológica-fundamental” (HEIDEGGER, 2012,
p. 593, grifo do autor). Como ele arma em Hegel e os gregos:
Reetindo sobre a Alétheia, experimentamos, pois, que com ela
recebemos um apelo de algo que antes do início da “losoa” e
através de toda a sua história já recebeu o pensamento junto a si.
A Alétheia antecipou a história da losoa, mas de tal maneira que
subtrai à determinabilidade losóca enquanto aquilo que exige sua
discussão pelo pensamento. A Alétheia é o impensado digno de ser
pensado, a questão do pensamento (HEIDEGGER, 1979, p. 214).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 23
A passagem acima ajuda-nos a compreender o signicado que a
expressão “Ontologia fundamental” assume em Ser e tempo. Para Heidegger,
esta expressão não designa um novo fundamento para se pensar a questão do
ser. Também não se trata de com ela pensar uma ontologia que abarque todas
as outras ontologias existentes. O que aí está em jogo para ele é o fato de que,
ao recolocar a pergunta sobre o sentido do ser, a interrogação se dirige para o
solo fundamental em que o ser foi pela primeira vez interrogado. Em outras
palavras, ontologia fundamental remete à questão da possibilidade de toda
e qualquer ontologia. Ao recolocar a verdade no sentido grego de Alétheia,
ou seja, como não-ocultamento, Heidegger assume justamente a tradição da
ontologia, reivindicando a necessidade de interpretar a verdade em conexão
com o modo pré-fenomenológico para onde o pensamento deve se dirigir, a
saber, o sentido do ser (Cf. Ser e tempo, p. 51-57).
Portanto, necessário se faz compreender como se dá o movimento
de articulação da questão sobre o sentido do ser e da verdade em Ser e
tempo. Nesse sentido, abordaremos a seguir, como requisito necessário para
adentrarmos a interrogação sobre a verdade, o método que, segundo o
lósofo, caracteriza-se como o condutor da questão: a fenomenologia.
1.2 FenOmenOlOgia eanalítica existencial
Na introdução de Ser e Tempo, Heidegger (2012, p. 101) arma
que o modo de tratamento para a pergunta fundamental, o sentido do
ser, é fenomenológico. Segundo ele, a expressão ‘fenomenologia’ “tem a
signicação primária de um conceito-de-método”. Sendo assim, ela “não
caracteriza o conteúdo-de coisa dos objetos da pesquisa losóca, mas o
seu como [sic]” (HEIDEGGER, 2012, p. 101); ou seja, ela não dene
o tema (o que) do tratado, mas refere-se ao modo como a investigação
será conduzida. A fenomenologia não visa, portanto, postular conceitos
categoricamente concebidos como medida prévia para uma sistematização
teórica. Para Heidegger, ela aponta precisamente para uma forma de
descrição, uma maneira de adentrar a profundidade da questão sobre o
sentido do ser.
Entretanto, não se trata de uma escolha fortuita, como se
pudéssemos elencar uma série de métodos possíveis e assim destacar
a fenomenologia como a mais ecaz das metodologias. Como lembra
Juliano Rabello
24 |
Nunes (2008, p. 61), o método fenomenológico “retoma a questão do
ser, e o retorno às coisas mesmas por ela inicialmente anunciado é a volta
da Filosoa à questão mesma do pensamento (das Sache des Denkens)
[sic]”, ou seja, a fenomenologia aponta para uma necessidade primária de
descrição dos fundamentos antes de qualquer âmbito cientíco que possa
eventualmente ser assumido como orientação de pesquisa. Nesse sentido,
o lósofo se contrapõe a um tratamento meramente objetivo e técnico para
justicar a importância a que tal método conduz:
Quanto mais autenticamente um conceito-de-método se desenvolve
e quanto mais abrangente é sua determinação dos princípios
condutores de uma ciência, tanto mais originariamente ele se enraíza
na confrontação com as coisas elas mesmas e tanto mais ele se afasta
do que hoje denominamos um manejo técnico, algo que ocorre, e
muito, nas disciplinas teóricas também.
O termo ‘fenomenologia’ exprime uma máxima que pode ser assim
formulada: ‘às coisas elas mesmas!’, em oposição a todas as construções
que utuam no ar, aos achados fortuitos, à assunção de conceitos só
em aparência demonstrados, às perguntas só aparentemente feitas
e que são transmitidas com frequência ao longo de gerações como
problemas’ (HEIDEGGER, 2012, p. 101).
Heidegger indica que a denição de fenomenologia tem seu
signicado implícito nos termos gregos phainómenon e lógos. Sendo assim,
ela comporta, de um lado, a expressão fenômeno como o-que-se-mostra-
por-si-mesmo, o manifesto, e, por outro, o λόγος, como fazer ver algo como
algo (φαίνεσται), discorrer (λόγος), tornar algo manifesto (φαινόμενον)
à palavra (HEIDEGGER, 2012, p. 113). Fenomenologia é, portanto, o
método para se deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra a
partir de si mesmo, ou seja, enquanto método, ela é justamente o modo
de exposição do ente em seu ser manifesto, em seu desvelamento. Em
outras palavras, manifestação e desvelamento do ente remete-nos, como já
indicamos, para o termo grego Alétheia (verdade).
Como ressalta MacDowell (1970, p. 129), “a aspiração a deixar
os fenômenos anunciarem, por si mesmos, o seu sentido, entendida
radicalmente, implica que a verdade, meta de toda a inquisição losóca,
não signica senão aquilo que os Gregos chamavam já de Alétheia, o des-
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 25
ocultamento do ente”. Portanto, se, em seu conteúdo, a fenomenologia
caracteriza-se como ciência do ser dos entes, sua função, então, é demonstrar
a via de acesso ao sentido dos entes que se apresentam, pois, na medida em
que conduz ao manifestar e fazer-ver pelo dizer que mostra o ente naquilo
que ele é em si mesmo, o modo de exposição da investigação confunde-se
com o tema investigado.
Dessa forma, a máxima husserliana de “retorno às coisas mesmas
irá coincidir com a concepção originária do pensar presente na aurora da
Filosoa ocidental. É nessa direção que para Heidegger (2012, p. 123) “a
ontologia só é possível como fenomenologia”, pois, enquanto a primeira
dene o método de abordagem, a segunda aprofunda o tema próprio ao
sentido do pensar losóco. Nesse sentido, de acordo com Nunes (2008,
p. 60, grifo do autor):
Não há para a fenomenologia outro tema senão o ontológico. A
Fenomenologia é Ontologia, e como Ontologia uma Hermenêutica
fenomenológica, porquanto, em sua nova possibilidade, a
descritividade do método terá o alcance de um trabalho de
interpretação, de acesso ao sentido. Descrever o fenômeno, o ser
dado nas vivências, consiste em explicitar o sentido que nelas se
encobre, assim como se explicita, por meio de uma interpretação,
o signicado original de um texto, de uma obra de arte ou de um
produto histórico, em geral encoberto nas signicações, e que o
esforço hermenêutico desembaraça ou restitui.
Tendo em vista esta ligação essencial entre método fenomenológico
e ontologia, Heidegger irá assumir como ponto de partida o ente no qual
o sentido do ser pode ser colocado em questão. Assim, o o condutor
da análise fenomenológica será expresso por Heidegger com o termo
Da-sein” (ser-aí), expressão que está implícita na composição do verbo
sein (ser) com o advérbio “Da” (). “Esse ente que somos cada vez nós
mesmos e que tem, entre outras possibilidades-de-ser, a possibilidade-de-
ser do perguntar, nós o apreendemos terminologicamente como Dasein
(HEIDEGGER, 2012, p. 47). O ser-aí
2
é caracterizado por Heidegger
como sendo o espaço de abertura (cf. Ser e Tempo, §28) em que se dá a
Optamos por utilizar a tradução de Dasein por “ser-aí”. Porém, manteremos Dasein quando a expressão
aparecer nas citações e referências das traduções do texto de Heidegger ou nos textos dos comentadores.
Juliano Rabello
26 |
manifestação do ser, a estrutura ontológica fundamental em que o ente
se constitui enquanto fenômeno de descoberta. Para Heidegger, o ser-aí
é o único ente que compreende o ser; assim, seu modo de ser caracteriza-
se como puro descobrir (des-velar) do ente. O mostrar-se por si mesmo
(fenômeno) e o deixar-ver conduzido por um dizer (λόγος) tem seu
fundamento no modo de ser (comportamento) do ser-aí frente aos entes
enquanto ser descobridor (cf. Ser e tempo, §4, §28 e §44). Em outras
palavras, ao ente manifesto subjaz a própria estrutura da compreensão.
Como nota Pöggeler (2001, p. 59), “o compreender situado que se articula
constitui a abertura da existência, o ser-na-verdade da existência como a
verdade primordial”.
Neste sentido, Heidegger empreende em Ser e tempo uma “Analítica
Existencial”, com o objetivo de mostrar, pela descrição fenomenológica ou
hermenêutica existencial, as estruturas essenciais do ente em que é possível
o acesso ao sentido do ser e sua verdade. Como arma Stein (2001, p. 23):
“O problema do ser e da verdade surgirá da própria análise da condição
humana, da nitude da interrogação pelo ser e pela verdade”. Dessa forma,
entende-se que em Ser e tempo a perspectiva básica da interrogação acerca
da verdade emerge do desvelamento das estruturas fundamentais do ser-aí,
na medida em que ele é o ente que, em sua existência temporal, oferece o
horizonte de compreensão ao sentido do ser.
Heidegger (2012, p. 91-93) enfatiza que a falta de uma
compreensão explícita da questão do ser deve-se ao fato de a tradição ter
omitido uma “ontologia do Dasein”. É tomando a existência temporal
do ser-aí como primeira exigência que se deve “preparar a mais originária
interpretação do ser, pondo-em-liberdade o horizonte dessa interpretação
(HEIDEGGER, 2012, p. 73-75). Na verdade, o que o lósofo está tentando
indicar ao referir-se ao esquecimento do ser pela tradição da ontologia,
e que está implícito na já citada passagem do Sosta de Platão, é o fato
de que a tradição não pôde penetrar no sentido profundo que envolve a
pergunta pelo ser. Segundo ele, este sentido só pode ser interpretado à luz
da temporalidade. Sendo assim, “[...] a destruição se vê colocada ante
a tarefa de interpretar o solo sobre o qual se ausenta a ontologia antiga
à luz da problemática da temporalidade” (HEIDEGGER, 2012, p. 95).
Como o próprio título do tratado indica, o “serestá ligado ao “tempo.
A novidade de tal conexão deve-se ao fato de que o que se ausentou da
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 27
tradição foi uma “interpretação do tempo como o horizonte possível de
todo entendimento-de-ser em geral” (HEIDEGGER, 2012, p. 31).
Segundo MacDowell (1970, p. 136), ao transformar a análise
fenomenológica em hermenêutica, Heidegger “pretende encontrar a
perspectiva original dentro da qual o ser do ente pode manifestar-se na sua
plena verdade”. É neste sentido que a fenomenologia assumirá em Ser e tempo
o caráter de uma analítica ou hermenêutica existencial, pois na medida
em que o modo de tratamento é fenomenológico, Heidegger descobre
justamente na existencialidade as estruturas que conduzem ao sentido
originário e subjacente do ente humano, ou seja, o sentido do ser do ente.
Sendo assim, na elaboração da pergunta sobre o sentido do ser
e sua verdade, o ser-aí assume uma posição central, pois, para Heidegger,
colocá-lo como o condutor na elaboração da questão do ser signica,
de antemão, tomá-lo como o lugar essencial em que a verdade acontece,
pois só há verdade por haver um horizonte de sentido (hermenêutico) no
qual ela se instaura e se oferece à compreensão. Em outras palavras, para
Heidegger, a verdade depende do modo pelo qual o ser-aí se comporta no
mundo, seu ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), como a abertura originária
em que a verdade do ser se impõe diante da existência do ente que pode se
lançar à sua compreensão (cf. Ser e tempo, §2, §3 e §4).
1.3 a cOnstituiçãO OntOlógica dO ser-
1.3.1 “ser-no-mundoeabertura
Para compreendermos melhor em que consistem os fundamentos
ontológicos do ser-aí, vejamos a descrição que Heidegger dele
nos oferece no §4 de Ser e tempo:O Dasein não é um ente que
só sobrevenha entre outros entes. Ao contrário, ele é onticamente
assinalado, pois para esse ente está em jogo em seu ser esse ser
ele mesmo. Mas é também inerente a essa constituição-de-ser do
Dasein que, em seu ser, o Dasein tenha sua relação-de-ser com esse
ser. E isso por sua vez signica: o Dasein, de algum modo e mais
ou menos expressamente, entende-se em seu ser. É próprio desse
ente, com seu ser e por seu ser, o estar aberto para ele mesmo.
O entendimento-do-ser é ele mesmo uma determinidade-do-ser do
Dasein. O ôntico ser-assinalado do Dasein reside em que ele é
ontológico (HEIDEGGER, 2012, p. 59, grifo do autor).
Juliano Rabello
28 |
Como expresso na citação acima, ao ser-aí pertence um “estar em
jogo” seu próprio ser, ou seja, na medida em que existe onticamente e tem
de decidir sobre sua existência, ele se lança em possibilidades de realização
inerentes à sua constituição. Por conseguinte, tendo que lidar com seu
ser, ele sempre se orienta por certa compreensão de ser; portanto, além
de ôntico, ele é também ontológico. “Sendo, o Dasein entende algo assim
como ser” (HEIDEGGER, 2012, p. 75).
Como constituição ontológica do homem, o ser-aí assume a
condição de ser um ente privilegiado, pois sua diferença em relação aos
outros entes presentes no mundo fundamenta-se no fato de ele existir
(ex-sistere). Os outros entes são, mas somente o ser-aí existe, ou seja, ao
relacionar-se consigo mesmo, cabe a ele, a todo momento, decidir sobre
seu próprio ser. “O Dasein sempre se entende a si mesmo, a partir de sua
existência, a saber, a partir de sua possibilidade de ser si mesmo ou de
não ser si mesmo” (HEIDEGGER, 2012, p. 61). A existência é o modo
de ser pelo qual o ser-aí determina a sua essência. Ela aponta para uma
exposição aos entes, ou seja, a existência é o que o mantém projetado,
lançado, aberto às possibilidades de ser.
3
Por isso, Heidegger dirá em Ser
e tempo que sua constituição ontológico-existencial é ser-no-mundo.
4
Enquanto existente (ser), o ser-aí está lançado às situações possíveis
de ser, seu . O mundo caracteriza-se, portanto, como o horizonte
existencial onde o ser-aí sempre se move ao ter de lidar com seu próprio
ser. Nesse sentido, apenas ele, o ser-aí, tem mundo, pois ao projetar-se,
constitui-se originariamente na abertura.
Heidegger dene a abertura (Erschlossenheit) como o modo pelo
qual o ser-aí constitui-se essencialmente pelo seu “aí”.
5
A condição desse
aí” remete, no entanto, ao caráter relacional deste com o mundo. Dessa
Sobre a centralidade do conceito de existência em Ser e tempo, MacDowell (1970, p. 218) ressalta: “Tomar a
existência por guia na determinação da essência do homem constitui não só algo de completamente novo no
campo da Filosoa, mas também provoca uma verdadeira revolução nas suas teses mais arraigadas.
Heidegger vai tratar exaustivamente do “fenômeno do mundo” como um momento imprescindível da
analítica existencial no segundo capítulo da primeira seção de Ser e tempo (O ser-em-o-mundo em geral como
constituição-fundamental do Dasein).
As dimensões ontológicas da abertura são o encontrar-se (Belindlichkeit), o entender (Verstehen) e o discurso
(Rede), tratados em Ser e tempo no quinto capítulo, “O ser-em como tal”, do §28 ao §38. Não é nosso objetivo
explorar detalhadamente cada um desses conceitos. Para os propósitos deste trabalho cabe apenas ressaltar a
abrangência que a temática da abertura assume no tratado e, principalmente, destacá-la como uma constituição
ontológica fundamental da “Analítica Existencial” imprescindível de ser explorada para a devida compreensão
da noção de verdade no pensamento de Martin Heidegger.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 29
forma, seu “modo de ser” implica um movimento de exteriorização, no
qual ele, projetado para fora de si, está ao mesmo tempo exposto ao mundo
e entregue à responsabilidade por si mesmo.
Como já indicamos acima, na medida em que a constituição
ontológica do ser-aí consiste em sua essência ser a sua existência, a condição
fática em que ele sempre se encontra é a de ser um ente no qual “está em
jogo seu próprio ser”, ou seja, cabe a ele, primariamente, uma decisão sobre
si mesmo. Com isso, o caráter de abertura assume uma dupla implicação
originária: ela designa, ao mesmo tempo, a abertura do ser-aí ao mundo
e a abertura dos entes que são acessíveis dentro do mundo. Porém, isso
não signica que o ser-aí se determine por uma condição espacial, como
um ente que pode aparecer “aqui” ou “ali”. Ao contrário, “a espacialidade
existenciária do Dasein que assim lhe determina seu ‘lugar’ funda-se ela
mesma sobre o ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2012, p. 379). Como
arma Beaini (1981, p. 40): “O espaço se caracteriza pela proximidade que
um ente tem em relação ao homem, não visando assim um âmbito físico,
mas sempre existencial, de acordo com o modo de situar-se do homem”.
Sendo assim, “o ‘aqui’ e o ‘lá’ só são possíveis em um ‘aí’, isto é, se um
ente que, como ser do ‘aí’, abriu a espacialidade” (HEIDEGGER, 2012,
p. 379). Sua essência, portanto, só pode ser compreendida enquanto um
modo de realização na sua condição de existente dentro do mundo.
Desse modo, o campo de abertura dos entes se realiza pela
manifestação destes ao poder-ser do ser-aí. O acesso aos entes depende,
então, de seu comportamento no mundo e da forma pela qual ele, existindo,
orienta suas realizações, ações e movimentos. Essas são designadas por
Heidegger com a expressão factualidade (Faktizität). “A fatualidade do
Faktum Dasein, como o modo em que o todo Dasein é cada vez, nós o
denominamos factualidade” (HEIDEGGER, 2012, p. 177).
A factualidade é uma condição existencial na qual o ser-aí sempre
se apresenta numa correspondência ôntica frente aos outros entes, ou seja,
o mundo fático é o horizonte de possibilidades no qual ele se move nas
diversas situações de seu ser-no-mundo e no qual o próprio mundo se
expõe como acessibilidade imediata.
O ser-no-mundo do Dasein por sua factualidade, já se dispersou
ou mesmo se despedaçou cada vez em determinados modos
do ser-em. A multiplicidade de tais modos do ser-em pode ser
Juliano Rabello
30 |
mostrada em exemplos, na seguinte enumeração: ter de se haver
com algo, produzir algo, cultivar algo e cuidar de algo, empregar
algo, abandonar algo ou deixar que algo se perca, empreender,
levar a cabo, averiguar, interrogar, considerar, discutir, determinar
(HEIDEGGER, 2012, p. 179).
Contudo, o ser-aí não é um ente que tem o caráter de um
em-si” assim como uma mesa ou uma árvore. Para Heidegger, existir é
essencialmente o modo de ser em que o ser-aí se manifesta no mundo em
oposição ao ente à mão (Vorhandenheit) que, como entes simplesmente
dados, são manipuláveis e, por sua vez, estão dispostos no mundo, mas
não estabelecem uma relação compreensiva com seu existir. O ser-aí, ao
contrário dos entes subsistentes, sempre está num exercício de existir;
portanto, ele não possui um caráter estático frente ao mundo. É no mundo
que ele se faz e é no fazer-se que ele se relaciona com os entes que vêm
ao seu encontro. Na realidade, o que Heidegger (2012, p. 205) descreve
em toda a primeira seção de Ser e tempo são, justamente, as estruturas
ontológico-fundamentais de onde emerge o modo mais cotidiano e
habitual do ser-aí existir, seu mundo ambiente (Umwelt). O mundo
ambiente refere-se à relação imediata na qual o ser-aí se encontra ao se
ocupar com os entes. A ocupação (Besorgen), por sua vez, designa o modo
cotidiano de lidar com os entes na medida em que estes se apresentam
como instrumentos (Zeug)
6
acessíveis ao uso no interior do mundo.
“Denominamos instrumento o ente que-vem-de-encontro no ocupar-se
(HEIDEGGER, p. 211). Todo instrumento é um “ser para”, sua essência
consiste em sua utilizabilidade
7
(Zuhandenheit) (HEIDEGGER, 2012,
p. 213), ou seja, em sua serventia, no seu “para que” especíco que o
dene enquanto instrumento. Por exemplo: um marceneiro, ao utilizar o
martelo, não apreende sua “propriedade substancial”, mas sim a nalidade
de seu uso, de modo que, na ocupação, “o martelar ele mesmo descobre
a especíca ‘maneabilidade’ do martelo” (HEIDEGGER, 2012, p. 213).
Como lembra Nunes (2008, p. 91) “o ser do utensílio descoberto não é o
mesmo que o ser das coisas”, ou seja, Heidegger pretende mostrar que o
O termo alemão “Zeug” é traduzido como “instrumento” ou como “utensílio”. Manteremos em nosso texto o
mesmo termo optado pelos tradutores em cada obra em causa.
A palavra alemã “Zuhandenheit” é normalmente traduzida para o português por “manualidade”. Optamos por
utilizabilidade” acolhendo a tradução de Fausto Castilho. Para um melhor esclarecimento do signicado do
termo no pensamento heideggeriano cf. Inwood (2002, p. 113-115).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 31
acesso ao mundo se estabelece numa relação originária com os entes que,
fenomenologicamente, se manifestam como utensílios disponíveis ao uso
numa totalidade instrumental. Nunes comenta ainda que:
Usando a caneta, descobrimos o que ela é: descoberta que difere de
um ‘conhecimento’ a respeito do objeto, de sua natureza, de suas
propriedades. O escrever revela a serventia, o ser disponível, à mão,
do utensílio. Por outro lado, a serventia não é apenas o manejo físico
da caneta; o simples uso dela estende-se ao emprego adequado de
outros meios e instrumentos, que não existem isoladamente: a tinta e
o papel, a mesa e a cadeira encadeadas no serviço que prestam, cada
qual como termo de uma práxis remetendo aos outros, e todos, em
conjunto, formando um complexo referencial. O escrever como que
levanta essa rede de referências que conguram o ser do utensílio,
e que a sua disponibilidade, a sua serventia, o seu uso pressupõem.
Ser-à-mão (Zuhanden) signica, portanto, mais do que o episódico
oferecer-se de algo prestativo, tornado ponto de aplicação da práxis;
a disponibilidade é como o a priori da práxis.
Portanto, o mundo não pode ser entendido como um aparato
substancial dos entes que nele estão presentes como subsistência, ou
seja,“não se dá algo assim como ‘o estar-um-ao-lado-do-outro’ de um ente
denominado ‘Dasein’ e de outro denominado ‘mundo’” (HEIDEGGER,
2012, p. 175). O ser-no-mundo refere-se, antes, a um conteúdo
fenomênico da constituição de ser do ser-aí. De forma alguma expressa um
encontro de realidades distintas. Ao contrário, o que Heidegger sugere é
que tal constituição implica que o ser-em que mantém a conexão entre ser-
e mundo é uma estrutura originária na qual ambos são essencialmente
familiares. Nessa familiaridade está presente um horizonte de signicação
no qual o Dasein sempre se move. No entanto, essa familiaridade com o
mundo “não exige necessariamente uma transparência teórica das relações
do mundo que constituem o mundo como mundo”; ao contrário, “a
possibilidade de uma expressa interpretação ontológico-existenciária dessas
relações funda-se na familiaridade com o mundo que é constitutiva do
Dasein” (HEIDEGGER, 2012, p. 259). Assim, arma Heidegger:
No dirigir-se para... e no apreender, o Dasein não sai de uma
esfera interna, na qual estaria inicialmente encapsulado, mas, por seu
modo-de-ser primário, ele já está sempre ‘fora’, junto a um ente que
Juliano Rabello
32 |
vem-de-encontro no mundo já cada vez descoberto. E o determinante se
deter junto ao ente por conhecer não é algo como um abandonar a esfera
interna, mas nesse ‘ser fora’ junto ao objeto, o Dasein está ‘dentro’, em
um sentido corretamente entendido, a saber, é ele mesmo quem conhece
como ser-no-mundo. Por sua vez, o perceber o conhecido não é regressar
do que saiu para apreender, trazendo de volta para a ‘gaiola’ da consciência
a presa capturada, mas também no perceber, no conservar e no reter, o
Dasein cognoscente como Dasein permanece fora (HEIDEGGER, 2012,
p. 193-195, grifo do autor).De acordo com a citação acima, podemos
armar que na “Analítica Existencial” não existe espaço para se pensar o
ser-aí enquanto subjetividade, assim como um sujeito isolado no mundo e
apartado deste. Quando ele se entende como existente, já se compreendeu
originariamente em seu mundo. Em outras palavras, o modo de ser-em,
aberto pelo comportamento do ser-aí frente aos entes é seu mundo, de
forma que “essa possibilidade só pode ser assumida na medida em que o
Dasein se tenha ele mesmo dado a tarefa de uma interpretação originária
do seu ser e de suas possibilidades, ou mesmo do sentido do ser em geral”
(HEIDEGGER, 2012, p. 259).
1.3.2 ser-com OutrOs: imprOpriedade e prOpriedade da existência
Na sequência da “Analítica Existencial”, após tratar exaustivamente
da constituição ontológico fundamental do ser-no-mundo (§12 ao
§24), Heidegger desenvolve o problema da relação entre o ser-si-mesmo
(Selbstsein) e o ser-com (Mitsein) os outros (§25 ao §27), com vistas a
determinar o “quem” do ser-aí. Como já abordamos acima, enquanto
projetado em situações possíveis de ser, o ser-aí tem o primado de ser
um ente que se relaciona consigo mesmo e com os entes que vêm ao seu
encontro na factualidade. Porém, além de estar inserido no mundo-
ambiente da ocupação com os entes subsistentes, o ser-aí também é ao
modo da convivência, ou seja, compartilha o mundo com outros entes que
têm a mesma determinação ontológica que a sua. Para Heidegger, a estrutura
ontológico-fundamental ser-no-mundo indica que o “quem” do ser-aí
pode ser devidamente compreendido à luz do existencial ser-com outros.
“Sobre o fundamento desse ser-com no ser-no-mundo, o mundo já é sempre
cada vez o que eu partilho com os outros” (HEIDEGGER, 2012, p. 343).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 33
Nesta direção, Heidegger chama a atenção para o fato de que este
compartilhamento não é simplesmente uma diferenciação neutra como se
o outro se mostrasse como um âmbito de exteriorização de um “eu isolado
do ser-aí. Como ele arma: “‘os outros’ não signica algo assim como o todo
dos que restam fora de mim, todo do qual o eu se destaca” (HEIDEGGER,
2012, p. 343). Trata-se, antes de tudo, de uma co-presença (Mit-Dasein)
originária, de um encontro entre seres-aí (Daseins) no qual o âmbito que
estabelece a relação é o próprio mundo compartilhado da ocupação. “O
mundo do Dasein é mundo-com. O ser-em é ser-com com outros. O ser-
em-si do interior-do-mundo desses últimos é ser-‘aí’-com”(HEIDEGGER,
2012, p. 343-345, grifo do autor).
Segundo Duarte (2002, p. 163), em Ser e tempo Heidegger
rompe com o encapsulamento epistemológico da consciência, pois o outro
e o mundo deixam de ser pensados como se fossem alheios ao eu para
se transformarem “num horizonte de sentidos compartilhados por entes
que se compreendem e que, portanto, se encontram sempre uns com os
outros, e não uns ‘ao lado dos outros’ no ‘mundo exterior’”. Dessa forma,
Heidegger destitui toda possibilidade de interpretar o ser-aí dentro de um
solipsismo do sujeito,
8
pois o reconhecimento do ser-com ultrapassa a
caracterização de fechamento para constituir tanto o ser-aí como o outro
essencialmente na abertura.
Nesse sentido, enquanto ser-no-mundo que possui a mesma
constituição ontológica do ser-aí, o outro, sendo um ente que possibilita
o ser-com, não pode ser considerado “nem utilizável, nem subsistente,
mas assim como o Dasein que ele mesmo põe-em-liberdade – é ele também
concomitantemente ‘aí’” (HEIDEGGER, 2012, p. 343, grifo do autor).
De acordo com Heidegger, ser-com é uma determinação ontológico-
“Heidegger evita identicar a ipseidade ou o si-mesmo às noções tradicionais de eu e de sujeito, motivo pelo
qual elas aparecem entre aspas em várias formulações do §25. O eu e o sujeito não são mais pensados como
isolados dos outros e do mundo, pois não são concebidos como o substrato da autorreexão, como o subjectum
que se pensa a si mesmo e que, portanto, é o suporte que acompanha os diversos atos e representações do sujeito,
permanecendo sempre o mesmo no tempo. A pergunta pelo ser do eu ou do sujeito deixou de ser a pergunta
o que se é?”, para se transformar na pergunta “quem se é?”, de sorte que a ipseidade já não podia mais ser
pensada como a instância substancial que proporcionaria a identidade imutável do ente que somos. A partir
dessa transformação conceitual decisiva, Heidegger buscou destruir os parâmetros tradicionais da ontologia
da coisa, que pensa a existência como meramente subsistente (Vorhandenheit). Para garantir o acesso a um “ser
não coisicado do sujeito, da alma, da consciência, do espírito, da pessoa”, Heidegger visa a própria origem da
coisicação ontológica, o que, por sua vez, exige uma interrogação originária do modo de ser do homem, do
ente que compreende ser em seu próprio ser” (DUARTE, 2002, p. 166).
Juliano Rabello
34 |
existencial; portanto, o outro não aparece como um ente estático diante do
ser-aí. O ser-com implica, fundamentalmente, um modo de ser do Dasein.
“O ‘com’ é um conforme-ao-Dasein, que ‘também’ signica igualdade do
ser como um ser-no-mundo do ver-ao-redor-ocupado” (HEIDEGGER,
2012, p. 343).
Com isso Heidegger quer caracterizar que a linha de intersecção
entre o ser-si-mesmo e o ser-com surge no interior da própria existência
fática, pois o âmbito de relações com a totalidade instrumental já aponta a
remissão do ser-aí a um comum-pertencimento. Para Heidegger, a relação
com o outro tem origem no próprio mundo compartilhado em que o ser-aí
se encontra essencialmente, pois “ser-no-mundo é ser-com os outros com
os quais se coexiste em um mundo comum, cuja totalidade originária dos
nexos de referência signicativo está sempre e de antemão aberta, isto é,
compreendida por todos [sic]” (DUARTE, 2002, p.163-164). O lósofo
assinala ainda que, mesmo o modo deciente de relacionar-se com o outro,
como por exemplo, o estar só, o ocupar-se consigo mesmo, ou a estranheza,
já implica a constituição ontológica do ser-com. “Também o ser-sozinho do
Dasein é ser-com no mundo. Só em um e para um ser-com um outro pode
faltar. O ser-sozinho é um modus deciente do ser-com, sua possibilidade é a
prova deste” (HEIDEGGER, 2012, p. 349, grifo do autor).
Com efeito, esses modos de ser que se referem ao caráter de
abertura do si-mesmo e do ser-com apontam, na interpretação de
Heidegger, para as noções de ocupação (Besorgen), preocupação (Fürsorge)
e cuidado (Sorge), que, para os propósitos de nosso trabalho, assumem
uma especial relevância, pois em Ser e tempo tais noções são decisivas por
situarem-se esquematicamente dentro do tratado como preparação para
a abordagem da verdade, realizada no “§ 44”. A seguir, exploraremos
brevemente esses conceitos a m de demonstrar a pertinência deles à
elaboração do problema da verdade.
Heidegger salienta que, quando nos referimos ao modo de ser em
que o ser-aí está diante do ente subsistente, do ente “simplesmente
dado”, a relação que ele estabelece é de um tratamento meramente
instrumental, de ocupação. “O Dasein encontra de imediato a ‘si
mesmono que faz, naquilo de que necessita, no que se espera e evita
– no utilizável do mundo-ambiente do qual de pronto se ocupa
(HEIDEGGER, 2012, p. 345, grifo do autor). Isso indica que, ao
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 35
lidar com os entes subsistentes, o ser-aí entende-se em sua existência
fática a partir da totalidade instrumental do mundo-ambiente na
qual a relação estabelecida é prática, de manuseio: “O Dasein de
pronto e no mais das vezes entende-se a partir de seu mundo e
o Dasein-com dos outros vem-de-encontro, de muitas maneiras,
a partir do utilizável do-interior-do-mundo” (HEIDEGGER,
2012, p. 347). No entanto, quando nos referimos à relação que
o ser-aí estabelece com os “outros”, embora esta também possa
adquirir aspectos de uma relação de subsistência, ela transcende a
esfera do meramente utilizável, pois ambos possuem a constituição
ontológica da abertura. A passagem a seguir esclarece essa diferença
e mostra como o ser-com outros possibilita o reconhecimento
a partir de um entendimento de ser, constituindo, assim, o ser-
num horizonte de correlação originária:O ser relativamente a
outros é sem dúvida ontologicamente diverso do ser em relação a
coisas subsistentes. O ente ‘outro’ tem o modo-de-ser do Dasein.
No ser com outros e no ser em relação a outros reside, portanto,
uma relação-de-ser de Dasein a Dasein. Mas essa relação, poder-se-
ia dizer, já é no entanto constitutiva de cada Dasein próprio, o qual
tem por si mesmo um entendimento-do-ser e, assim, se comporta
em relação ao Dasein (HEIDEGGER, 2012, p. 359).
Conforme podemos entender da citação acima, nesta relação
entre o si-mesmo e o ser-com há uma clara diferença entre o caráter
ôntico e o ontológico do ser-no-mundo. No seu entendimento de ser, o
ser-aí reconhece o outro como um “outro de si mesmo”, o que o leva a ter
um comportamento diferente para com este. Porém, não se trata, como
nos diz Duarte (2002, p. 163), de um “somatório ou a mera justaposição
de um Dasein ao lado de outro”. Esse modo de ser em que o ser-aí abre
originariamente a preocupação (Fürsorge) é designado por Heidegger pelo
termo Sorge,
9
normalmente traduzido por cuidado ou cura. “O ente em
relação ao qual o Dasein se comporta como ser-com, mas não tem o modo-
de-ser-do-instrumento utilizável, é ele mesmo Dasein. Desse ente o Dasein
não se ocupa, pois com ele se preocupa” (HEIDEGGER, 2012, p. 351,
grifo do autor). Trata-se da constituição ontológica que remete o ser-aí ao
Em Ser e tempo encontramos várias modulações entre as palavras Besorgen (ocupação), Fürsorge (preocupação/
solicitude) e Sorge (cuidado/cura). Para uma apreciação mais pormenorizada desses termos, cf. Inwood (2002,
p. 26-28).
Juliano Rabello
36 |
seu próprio entendimento de ser a partir da correlação originária com os
outros. Com isso, para o lósofo, a compreensão sobre o ser-si-mesmo
assegura, ao mesmo tempo, a compreensão do ser-com os outros.
A abertura pertencente ao ser-com do Dasein-com de outros
signica: no entendimento-do-ser do Dasein já reside, porque seu ser é
ser-com, o entendimento de outros. Esse entender, como entender em
geral, não é um conhecimento nascido de um conhecer, mas um originário
modo-de-ser existenciário, sem o qual nenhum conhecer ou conhecimento
é possível. O se conhecer mutualmente se funda no originário ser-com
entendedor. Ele se move de imediato conforme o imediato modo-de-ser do
ser-no-mundo com outros, no entendedor conhecimento de que o Dasein
encontra os outros e deles se ocupa no ver-ao-redor do mundo-ambiente. A
partir de aquilo-de-que-se-ocupa e tendo disso o entendimento, a ocupação
preocupada-com é entendida. O outro é assim aberto de pronto na ocupada
preocupação-com (HEIDEGGER, 2012, p. 357).Diferentemente da
ocupação (Besorgen), a preocupação (Fürsorge), congura-se, portanto,
como um modo especíco do ser-aí relacionar-se com os outros, o que abre
a possibilidade extrema de ele existir propriamente ou impropriamente,
perfazendo assim os diversos modos de estruturação da preocupação
como cuidado (Sorge). Isto se tornará cada vez mais evidente pela análise
do impessoal, em que Heidegger descreve o caráter cotidiano e familiar
do a-gente (das Man), que se constitui como o modo pelo qual o ser-aí
faticamente se move em vista de um “perder-se” ou “encontrar-se”.
Pelo fato de o ser-aí ser constituído existencialmente na
cotidianidade, suas ações podem ser condicionadas por escolhas que não
são suas, e que, portanto, o lançam na impropriedade existencial. Quando
está nesse modo de ser, o ser-aí está inserido no âmbito do impessoal. Este,
tendo a forma neutra do “a-gente” (das Man), caracteriza a indiferença do
nós”. No impessoal, o ser-aí é absorvido de tal forma que sua singularização
se vê impedida estruturalmente, pois “a-gente” não se diferencia, ou seja, o
impessoal pode referir-se a “todos” ou a “ninguém”. Como Heidegger (2012,
p. 367) arma: “Cada um é o outro e nenhum é ele mesmo. A-gente, com
a qual se responde a pergunta pelo quem do Dasein cotidiano é o ninguém
ao qual todo Dasein já se entregou cada vez em seu ser-um-entre-outros.
Dessa forma, absorvido pelo impessoal, o ser-aí se distancia de seu ser-si-
mesmo para submeter-se às ocupações de outros. Nesse distanciamento
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 37
inerente ao ser-com, o Dasein como cotidiano ser-um-com-outro está na
sujeição aos outros. Ele não é si-mesmo, os outros lhe retiram o ser. Os
outros também dispõem a seu bel-prazer sobre as cotidianas possibilidades
de ser do Dasein. Nisso esses outros não são outros determinados. Ao
contrário, cada outro pode representá-los. Decisivo é somente o domínio
dos outros, não surpreendente, despercebido e já assumido, que o Dasein
sofre com o ser-com. A-gente mesma pertence aos outros e consolida seu
poder. ‘Os outros’, como a-gente os chama, para encobrir nossa própria
essencial pertinência a eles, são aqueles que no cotidiano ser-um-com-
outro de pronto e no mais das vezes ‘são aí’. O quem não é este nem
aquele, nem a-gente mesma, nem alguns, nem a soma de todos. O ‘quem
é [em alemão] o neutro: a-gente (HEIDEGGER, 2012, p. 363-365, grifo
do autor).Por estar em geral e na maioria das vezes mergulhado no mundo
público do impessoal, o ser-aí não se apropria de seu próprio ser, delegando
suas decisões a terceiros. Ele deixa-se levar pelas decisões comuns e, dessa
forma, não se apropria de si mesmo. Com isso, estando seu ser-si-mesmo
oculto, ele não atinge um estado de autonomia pelo seu ser, pois ele passa
a submeter-se aos projetos alheios, perdendo-se assim no mundo público
da ocupação dos outros. O impessoal exerce, então, o poder de subtrair a
propriedade sobre o ser-si-mesmo para jogá-lo na impropriedade de seu
existir. “Esse se-um-com-outro dissolve por completo o Dasein próprio, no
modo-de-ser ‘dos-outros’, e isto de tal maneira que os outros desaparecem
mais e mais em sua indiferenciação e expressividade” (HEIDEGGER,
2012, p. 365). Segundo Heidegger, constitui-se, assim, uma “mediania
da convivência cotidiana” na qual o ser-aí, tutelado por outros, deixa-se
privar da responsabilidade de sua existência para lançar-se no mundo
compartilhado em que são os outros que decidem por ele. Nessa ausência
de surpresa e de identicação, a-gente desenvolve sua verdadeira ditadura.
Gozamos e nos satisfazemos como a-gente goza; lemos, vemos e julgamos
sobre literatura como a-gente vê e julga; mas nos afastamos também da
grande massa’ como a-gente se afasta; achamos ‘escandaloso’ o que a-gente
acha escandaloso. A-gente que não é ninguém determinado e que todos são,
não como uma soma, porém, prescreve o modo-de-ser da cotidianidade
(HEIDEGGER, 2012, p. 365). Como podemos compreender pela citação
acima, a indiferença do “a-gente” passa a orientar o “quem” do ser-aí,
fazendo que ele seja sobrepujado pela conjuntura estabelecida pelo mundo
já consolidado da convivência cotidiana. Seu ser-si-mesmo sucumbe
Juliano Rabello
38 |
então a um tipo de dominação designada por Heidegger como a “ditadura
do impessoal”. Esta impõe ao Dasein modos de ser nos quais seu ser-si-
mesmo torna-se oculto e velado.
Assim, a ditadura do impessoal o conduz à publicidade de
relações, no modo do falatório (Gerede), da curiosidade (Neugier) e
da ambiguidade (Zweideutigkeit), modos estes que o constituem na
decadência (Verfallen), na qual ele já não pode se ver em sua diferenciação
ontológica.
10
Constituído no mundo como um ente falante, portanto pelo
discurso (Rede), o ser-aí sempre entende-se a partir do mundo em que
ele sempre está, ou seja, a publicidade do mundo oferece os modos de
entendimentos e interpretações de mundo que são prontos e acabados
e que encobrem suas possibilidades. Como arma Casanova (2010, p.
105):Jogado em um mundo, o ser-aí vê-se de início e na maioria das vezes
submetido ao discurso de seu mundo e não faz outra coisa senão repetir em
inumeráveis variações as possibilidades de composição desse discurso. De
início e na maioria das vezes o ser-aí encontra-se decaído no mundo e sob o
domínio do impessoal, do falatório como repetição incessante do discurso
já expresso no mundo, não possuindo nenhuma relação própria com o
seu caráter de poder-ser.Com isso, é anulada toda possibilidade de decisão
na qual o ser-aí poderia assumir a responsabilidade por sua existência. O
seu “quem” ca assim comprometido, pois tal publicidade cotidiana faz
que ele perca de vista quem ele realmente é. O impessoal exerce, então,
o poder de subtrair a propriedade sobre o ser-si-mesmo para jogá-lo na
decadência do mundo público e cotidiano do ser-com.
No entanto, a decadência, segundo Heidegger, não deve ser
entendida em sentido negativo. Como ressalta Casanova, ela não congura
uma situação “em si mesma nefasta” de um vazio existencial do qual o
ser-aí deva se conscientizar. Ao contrário, decadência e impessoalidade
são termos que designam uma “compreensão de ser especíca (de uma
ontologia) de uma visão de mundo determinada” (CASANOVA, 2010, p.
105). O próprio Heidegger (2012, p. 493, grifo do autor) explica isso:O
termo, que não expressa nenhuma avaliação negativa, deve signicar: o
Dasein, de pronto e no mais das vezes, é junto ao ‘mundo’ da ocupação.
10
“Falatório, curiosidade e ambiguidade caracterizam o modo em que o Dasein é cotidianamente o seu ‘aí’, o
qual é a abertura do seu ser-no-mundo. Esses caracteres, como determinidades existenciárias, não são subsistentes
no Dasein, mas constituem o seu ser. Neles e em sua conexão conforme-ao-ser, desvenda-se um modo-de-ser
fundamental do ser na cotidianeidade, a que damos o nome de o decair do Dasein (HEIDEGGER,2012, p. 493).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 39
Esse absorver-se junto a... tem usualmente o caráter do estar perdido na
publicidade do a-gente. O Dasein, como poder-ser si-mesmo próprio, já
sempre desertou de si mesmo, decaindo no ‘mundo’. O ser do decair no
mundo’ signica ser-absorvido no ser-junto-um-com-o-outro, na medida
em que este é conduzido por falatório, curiosidade e ambiguidade [...]
O não-ser-si-mesmo tem a função de uma possibilidade positiva do ente
que, essencialmente ocupado, é absorvido em um mundo. Esse não-ser
deve ser concebido como o imediato modo-de-ser em que no mais das
vezes o Dasein se mantém.Como ressalta Reis (2001, p. 8): “[...] todos os
traços que Heidegger destaca para os comportamentos normalizados, na
análise do das Man, são derivados da natureza normativa e estruturada do
impessoal”. Sendo assim, “[...] compreende-se, então, que o esquecimento
de si na decadência impessoal das ocupações e preocupações resulta de
uma possibilidade mais fundamental que se mantém o mais das vezes
encoberta, mas que é constitutiva da nossa cisão existencial” (DUARTE,
2002, p.176).
Como já salientamos neste trabalho, a existência do ser-aí
caracteriza-se pela situação de exterioridade e projeção. Constituído
essencialmente pelo poder-ser, ele sempre se projeta para as possibilidades
de seu mundo fático. Estas são abertas pela própria conjuntura signicativa
do mundo no qual ele orienta suas ações e realizações existenciais. É neste
horizonte que ele pode ter uma experiência radical com seu existir de
modo a assumir a propriedade sobre si mesmo, como sendo a constituição
ontológica fundamental do cuidado (Sorge).
Segundo Heidegger (2012, p. 513), a “Analítica Existencial”,
ao penetrar no fenômeno do cuidado, “deve preparar a problemática
ontológica-fundamental: a pergunta pelo ser em geral”. Disso decorre a
necessidade de se deter em especial neste existencial, pois é justamente
a partir da estrutura ontológica do cuidado (Sorge), especicamente
pelo fenômeno da angústia (Angst), que o ser irrompe como âmbito de
abertura para constituir o ser-aí diante da propriedade de seu existir.
Como Heidegger (2012, p. 511, grifo do autor) arma: “A angústia,
como possibilidade-de-ser do Dasein e o Dasein ele mesmo que nela se
abre, fornece o solo fenomênico para a explícita apreensão da originária
totalidade-de-ser do Dasein, cujo ser é a preocupação”. Portanto, segundo
o lósofo, por meio da angústia, há a possibilidade de rompimento com o
Juliano Rabello
40 |
modo de ser impróprio para realizar a abertura para a propriedade sobre o
seu ser-si-mesmo. Esta é um fenômeno que coloca o ser-aí diante de suas
determinações existenciais para lançá-lo diante de seu próprio ser.
Fundamentalmente diferente do medo (Furcht), que possui
sempre um objeto especíco com o qual o ser-aí entra em contato, na
angústia não se sabe o que angustia. Como Heidegger (2012, p. 521) diz:
o diante-de-quê da angústia não é nenhum ente do interior-do-mundo”.
Ou seja, na angústia não existe nada que a determine, nenhum ente
especíco, acontecimento ou ameaça que retire o ser-aí de sua tranquilidade
cotidiana, pois “a ameaça não tem aqui o caráter de uma nocividade
determinada, que atingiria o ameaçado, ameaça do ponto-de-vista de um
poder-ser factual particular” (HEIDEGGER, 2012, p. 521). O fenômeno
da angústia apresenta-se, então, como uma “não signicatividade” diante
do mundo, pois não há nenhum ente subsistente que a impulsione, pois
nela a totalidade do ente se esvai lançando-o na falta de sentido do mundo.
Desse modo, o ser-aí, na angústia, não sabe sobre o que angustia.
Como ele diz: “o diante-de-quê da angústia não é nenhum ente do
interior-do-mundo” (HEIDEGGER, 2012, p. 521). Ou seja, existe uma
antecedência em sua determinação que não se relaciona diretamente com os
entes que estão dispostos para o ser-aí. Essa antecedência é o próprio mundo
no qual o ser-aí, a cada vez, sempre é. Como Heidegger (2012, p. 521)
arma, “o diante-de-quê da angústia é o ser-no-mundo como tal”. Sobre
isso Nunes comenta:Não estando a ameaça em parte alguma, o não-saber da
angústia é relação com algo que não é intramundano. O que nela é temido
se desloca para o mundo. A nenhum objeto podemos apegar-nos, porque
o intramundano torna-se insignicante, e perigo, que nos espreita em toda
parte, sem que de nós se aproxime numa paragem determinada, é o mundo
como mundo, originária e diretamente (ursprünglich und direkt) aberto para
o Dasein, que, reduzido a si mesmo, à singularidade de sua existência fáctica
e de seu ser possível (Möglichsein), resvala da envolvência familiar dos entes
para a incômoda e desabrigada condição de ser-no-mundo (NUNES, 1986,
p. 109, grifo do autor).Dessa forma, podemos compreender que, segundo
Heidegger, o esvaziamento de sentido que a angústia propicia não é um
anulamento do mundo. Ao contrário, o “angustiar-se abre originariamente
e diretamente o mundo como mundo” (HEIDEGGER, 2012, p. 525).
Nela, o próprio mundo é desvelado em sua essência fundamental, pois ela
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 41
retira o ser-aí de seu “sufocamento” do mundo cotidiano do impessoal,
já que “resgata o Dasein do seu decair no ‘mundo’ em que é absorvido. A
familiaridade cotidiana se desfaz” (HEIDEGGER, 2012, p. 529). Com isso,
a angústia abre a possibilidade radical do ser-aí tomar consciência” de seu
ser-no-mundo e, dessa forma, colocar-se diante de seu poder-ser de modo
próprio. A angústia manifesta no Dasein o ser para o poder-ser mais próprio,
isto é, o ser livre para a liberdade do-a-si-mesmo-se-escolher e se-possuir.
A angústia põe o Dasein diante do seu ser livre para... (propensio in...), a
propriedade do seu ser como possibilidade que ele sempre já é. Mas esse
ser é ao mesmo tempo aquele a que o Dasein está entregue como ser-no-
mundo (HEIDEGGER, 2012, p. 525-527, grifo do autor).Portanto, para
Heidegger, a angústia não caracteriza uma referência negativa diante do
mundo. Na verdade, ela é a estranheza que retira o ser-aí da familiaridade,
da segurança e do conforto traçado pelo modo de ser do impessoal, para
colocá-lo diante de seu próprio existir. Enquanto projeto fundamental, o
ser-aí está lançado às suas possibilidades fáticas de realização, de modo que
sempre cabe a ele uma decisão sobre seu existir.Quando o Dasein descobre
propriamente o mundo e dele se aproxima, quando ele abre para si mesmo
seu próprio ser, esse descobrir de ‘mundo’ e abrir do Dasein sempre se efetua
como remoção de encobrimentos e de obscurecimentos, como quebra das
contrafações com que o Dasein se fecha para si mesmo (HEIDEGGER,
2012, p. 371-373). Projetado no mundo da decadência, o ser-aí constitui-se
pela recusa, pelo fechamento e pela ocultação. No entanto, ao lidar consigo
mesmo na angústia, em seu modo de ser-no-mundo como cuidado, ele
antecipa-se ao mundo, ou seja, o que se revela ao ser-aí caracteriza-se por seu
ser-si-mesmo que “salta” por cima do fenômeno do mundo, antecipando
situações possíveis de ser. Dessa forma, a decadência do mundo público do
ser-com outros, do impessoal e do falatório, oferece, por sua inautenticidade
fundadora, a base que lança o ser-aí para a possibilidade radical do relacionar-
se com seu próprio ser. Dessa forma, na “Analítica Existencial” o fenômeno
do cuidado congura-se como “a unidade de sentido em que se libera a
autocompreensão pré-ontológica nativa do homem por si mesmo” e que “é
também o fenômeno em que se desvela a compreensão do ser” (NUNES,
2008, p. 113).
Nesse sentido, a relação do ser-aí com seu ser só pode partir da
compreensão de seu mundo fático e sedimentado, pois é imerso nele que se
radicam as possibilidades de rompimento com a própria sedimentaridade do
Juliano Rabello
42 |
mundo. Como arma Reis (2001, p. 12), em tal rompimento “trata-se da
impessoalidade como fonte última da identicação e individuação ontológica,
ou seja, a impessoalidade como limitação da projeção de ser, do sentido e da
identidade ontológica em todas as direções da transcendência do Dasein.
Portanto, na medida em que o ser-aí enraíza-se na relação entre
impropriedade e propriedade, estabelece-se, então, uma situação de
ambivalência (velamento e desvelamento) que pode ser compreendida a
partir da diferenciação entre o plano ôntico e o ontológico que emerge do
ser-no-mundo. Nas palavras de Stein (2001, 111):O homem está envolto
na ambivalência de velamento e desvelamento. O homem está condenado ao
movimento dessa ambivalência. Não é apenas aquele a quem ele se dá como
velamento e desvelamento. Ele mesmo é velamento e desvelamento. Sua
própria constituição é ambivalente [...] Dessa ambivalência emerge a relação
que o homem tem com o ser. O homem somente o atinge como velamento-
desvelamento. A circularidade do Ser-aí atrai o ser, na sua relação com o
homem, para dentro dessa circularidade. Esta circularidade, porém, é já um
resultado do próprio ser em sua ambivalência.Se voltarmos à problemática
ontológica fundamental traçada por Heidegger em Ser e tempo (a busca pelo
sentido do ser), encontraremos a formulação existencial da circularidade
da compreensão na qual o ser-aí sempre se move. Ora, se o ser-aí é o ente
que tem o primado ôntico-ontológico de interrogar o sentido do ser, ele
apresenta-se como o ente privilegiado em que, justamente por se mover nessa
estrutura ambivalente da compreensão, o sentido do ser pode se dar. Por isso,
Heidegger destaca no §38 dessa obra o modo de ser da decadência como
sendo a constituição fundamental que comporta ao mesmo tempo uma dupla
imbricação existencial do ser-aí, a saber, propriedade e impropriedade, que,
levadas às últimas consequências no § 44, assumem a estrutura ambivalente
da essência da verdade e da não-verdade, da qual trataremos adiante.
O que cabe compreendermos aqui é que o “modo de ser” do
ser-aí descrito em toda a primeira seção de Ser e tempo na “Analítica
Existencial” refere-se justamente ao que Heidegger entende por verdade, à
luz de seu signicado primeiro de Alétheia. Portanto, essas caracterizações
enquanto “modos de ser” constitutivos do ser-aí que procuramos elucidar
até agora assumirão especial relevância no interior de Ser e tempo, pois com
elas Heidegger antecipa o sentido ulterior da Alétheia que será radicalizado
na análise subsequente do §44. Se observarmos, a “Analítica Existencial”
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 43
anuncia, desde os parágrafos introdutórios, uma série de modulações
ôntico-ontológicas que apontam para o caráter de abertura enquanto
possibilidade do velamento-desvelamento da verdade do ser.
1.4 verdade nO § 44 de ser e tempo
Heidegger termina a primeira seção de Ser e tempo com o
desdobramento radical da verdade no decisivo §44, no qual este conceito
recebe sua elaboração mais pormenorizada. Embora, de maneira implícita,
a verdade já houvesse sido abordada na “Analítica Existencial” empreendida
nos parágrafos anteriores, é neste parágrafo que ela assume relevância
dentro do projeto geral do tratado.
11
Entretanto, nossa exposição não
pôs a claro ainda o todo estrutural que está em jogo quando analisamos a
verdade em seu sentido originário de velamento/ desvelamento (A-létheia).
Para isso, é preciso adentrarmos de maneira mais especíca o movimento
da interrogação do §44, e, com isso, ampliarmos a compreensão deste
conceito tal como ele é tratado por Heidegger em Ser e tempo.
Nessa direção, faz-se necessário clarear a distinção de dois âmbitos
de signicação da verdade: o caráter derivado do conceito tradicional
de verdade, que para o lósofo é a abordagem da verdade tal como foi
pensada no interior da História da Filosoa, polarizada na estrutura da
enunciação, como verdade lógica e proposicional; o fenômeno originário
da verdade, justamente a verdade pensada enquanto ocultamento/des-
ocultamento (A-létheia).
Passaremos então a expor esses dois pontos fundamentais com o
objetivo de nos aproximar do modo como Heidegger entende o conceito
de verdade.
1.4.1 O caráter derivadO dO cOnceitO tradiciOnal de verdade
O conceito tradicional da verdade apresenta, segundo Heidegger, a
concepção da verdade como “adaequatio intellectio et rei”, ou seja, a verdade
11
O §44 é o último parágrafo da primeira seção de Ser e tempo. Ao mesmo tempo que encerra as análises
preparatórias da constituição ontológica do Dasein, leva-o às últimas consequências por radicalizar seus
desdobramentos no problema da verdade, preparando, assim, o horizonte de toda interpretação da segunda
seção, que tem por escopo pensar a questão do ser a partir da temporalidade.
Juliano Rabello
44 |
é uma adequação (concordância) entre o intelecto e a coisa (ente). Nessa
elaboração, a verdade é entendida como correspondência entre aquilo que
é pensado, a representação, e a coisa, o ente subsistente. Tradicionalmente,
dizemos que a verdade seja algo que se substancializa na realidade das coisas,
e, sobretudo, que ela reside na enunciação que fazemos sobre as mesmas
coisas. Na enunciação, portanto, está a certeza ou a falsidade da armação.
Temos, então, por um lado, a concordância entre a coisa e o que se presume
dela, e, por outro, a conformidade entre o que é signicado pela enunciação
e a coisa. Se digo, por exemplo, “O livro está sobre a mesa”, tal armativa será
verdadeira na medida em que a realidade concordar com o que está sendo
enunciado. Estabelece-se, assim, uma relação entre o dizer (λόγος) e aquilo
que está manifesto na realidade (φαινόμενον). Com efeito, entendemos que
a proposição é um enunciado proferido por um sujeito. Esse enunciado,
para ser válido, deve ter uma razão de ser em que o que é enunciado pelo
sujeito (juízo) corresponda àquilo que ele enuncia. Portanto, deve conter em
si uma lógica que estabeleça uma ordem para o que é armado ou negado
na enunciação, ou seja, sustentado pelo sujeito, o enunciado fundamenta a
verdade ou a falsidade do que se arma ou se nega sobre as coisas do mundo.
No entanto, rompendo com esta concepção tradicional, Heidegger
arma que para elucidar a estrutura da verdade não basta apenas pressupor
uma relação de aquisição de conhecimento entre sujeito e objeto. Antes,
a pergunta pela verdade deve retroceder aos fundamentos, até alcançar a
origem que estabelece a “conexão-de-ser” que suporta o próprio conhecer
(HEIDEGGER, 2012, p. 599). Ou seja, a questão da verdade impõe por si
mesma uma anterioridade à própria constituição do conhecimento. Nesse
sentido, para o lósofo, pensar essa relação não signica se ater a um simples
tema no sentido de uma teoria-do-conhecimento ou de uma teoria do
juízo” (HEIDEGGER, 2012, p. 591), tal como comumente é abordado
pela História da Filosoa, em especial pela teoria do conhecimento. Como
arma Stein (1990, p. 23) “Antes da evidência de qualquer teoria e ponto
de partida da ‘teoria do conhecimento’ e antes de qualquer subjetividade
fundante, há uma evidência operando na situação de ser-no-mundo.
Essa evidência, segundo Heidegger, impõe o fundamento ontológico que
mantém tal relação que, por conseguinte, não pode ser esgotada na relação
entre sujeito e objeto ou, mais especicamente, não podemos deduzir desse
caráter relacional seu processo psíquico real ou seu conteúdo ideal. Sendo
assim, segundo Heidegger (2012, p. 601), a análise da verdade deve antes
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 45
elucidar “como o fenômeno da verdade caracteriza o conhecimento” e não
simplesmente optar por um fundamento qualquer, seja ele do ponto de
vista do sujeito, seja do do objeto.
Neste sentido, cabe aqui o seguinte questionamento: para
Heidegger, quando o conhecer se comprova como verdadeiro?
Essa questão lança-nos diante da própria essência da comprovação.
Comprovar é tornar evidente o que se mostra na enunciação. Sendo assim,
devemos buscar aquilo que na enunciação conduz à comprovação do que
é enunciado. Heidegger arma que o enunciar “é um ser voltado para a
coisa sendo ela mesma” e que a comprovação se realiza quando “o ente
visado se mostra ele mesmo assim como ele é em si mesmo, isto é, que
ele é na mesmidade assim como a enunciação o mostra e descobre sendo
(HEIDEGGER, 2012, p. 605, grifo do autor). Se digo, por exemplo: “A
porta esta aberta”, tal armação terá comprovação quando alguém olhar
o referido objeto “porta” e realmente constatar que ela está “aberta”. A
essência da comprovação fundamenta-se, então, num “mostrar-se do ente
na mesmidade” e esta só é possível “porque o conhecer que enuncia e se
comprova é, segundo seu próprio sentido ontológico, um ser que-descobre
voltado para o ente real ele mesmo” (HEIDEGGER, 2012, p. 605, grifo do
autor). Portanto, “a enunciação é verdadeira signica: que ela descobre
o ente em si mesmo. Ela enuncia, mostra, ‘faz ver’ o ente em seu ser-
descoberto. O ser-verdadeiro da enunciação se deve entender como um
ser-descoberto” (HEIDEGGER, 2012, p. 605).
Segundo Heidegger, para haver proposição é necessária uma
antecipação que se ofereça livremente a uma apresentação, pois só podemos
considerar que existe concordância na medida em que a enunciação apresenta
e diz da coisa o que em si mesma ela é. Em outras palavras, poderíamos dizer
que, fenomenologicamente, o ente sempre está acessível como fenômeno da
descoberta, de modo que, em seu aí, o ser-aí se constitui essencialmente como
ser-verdadeiro e como ser descobridor pela própria estrutura do entender
que lhe é fundadora. Temos, então, a dupla implicação entre o ser-aí e a
verdade. Como arma Heidegger (2012, p. 609):Ser-verdadeiro como ser-
descobridor é um modo-de-ser do Dasein. O que esse descobrir possibilita ele
mesmo deve ser chamado necessariamente ‘verdadeiro’ em um sentido ainda
mais originário. Os fundamentos ontológico existenciários do descobrir ele
mesmo mostram pela primeira vez o fenômeno mais-originário da verdade.
Juliano Rabello
46 |
Esse âmbito de manifestação dos entes em que eles se dão a descoberto recebe
em Ser e tempo a designação ontológica expressa pelo termo grego λόγος.
“O ser verdadeiro do λόγος como ἀπόφανσις é o ἀληθεύειν no modo do
ἀποφαίνεσθαι: um fazer ver o ente em sua não-ocultação (ser-descoberto),
tirando-o da ocultação” (HEIDEGGER, 2012, p. 607). A palavra grega
λήθεια nos remete, segundo Heidegger, diretamente para a essência do
λόγος originário, um dizer que traz à luz a presença do que se apresenta.
Como o lósofo arma: “Pertence, portanto, ao λόγος a não-ocultação, a
ἀ-λήθεια” (HEIDEGGER, 2012, p. 607). O λόγος torna-se manifesto na
medida em que pelo dizer os entes se mostram tal como eles são. Em outras
palavras, o λόγος é a própria estrutura constitutiva do enunciado, pois nele
o ente se manifesta naquilo que é. Nesse sentido, ao des-ocultar o ente, o
λόγος realiza a própria essência da comprovação, pois a ele corresponde a
determinação do ente que se revela em seu “deixar ver” que é trazido à tona
pelo descobrir.
Para Heidegger, a referência ao λόγος, como âmbito originário da
estrutura do enunciado indica que a Alétheia não designa uma explicitação
dos atributos ônticos das coisas. Sua função não revela a propriedade dos
entes, mas a essência que conduz à presença reveladora. A verdade do ente
é trazida à luz pela Alétheia no sentido de ela manter uma relação primitiva
com a própria origem do λόγος que anuncia pela palavra aquilo que o ente
é. Portanto, não é a Alétheia que tira sua medida e direção das qualidades
das coisas, mas as próprias coisas são desveladas por serem, elas mesmas,
conduzidas à descoberta.
Dessa forma, não existe propriamente um encontro entre
pensamento e coisa” (intellectio et rei), pois, na medida em que o ser-aí
como ser-verdadeiro constitui-se como um ser-descobridor, ambos já
estão manifestos originariamente na relação de abertura do ser-no-mundo.
Sendo assim, a verdade sempre se refere a determinado comportamento
que o ser-aí realiza diante do ente (fenômeno) que se manifesta e se
apresenta. Como Heidegger (1979, p. 135) arma em Sobre a essência da
verdade: “Toda relação de abertura, pela qual se instaura a abertura para
algo, é um comportamento.
Em sua lida com os entes em sua cotidianidade, o ser-aí se constitui
pelo discurso (Rede) e é por constituir-se como falante, pela linguagem,
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 47
que ele expressa o ente naquilo que ele é em si mesmo e o conduz ao seu
aparecimento.
Contudo, discorrer sobre o ente é manifestar-se a si mesmo na
enunciação. O discurso sobre o ente remete-se ao ser próprio do ser-aí,
à sua abertura. “O Dasein, que [ao percebê-lo] recebe a comunicação,
põe-se a si mesmo no ser descobridor voltado para o ente de que fala
(HEIDEGGER, 2012, p. 619).
Com isso, Heidegger aponta para o fato que o λόγος, enquanto
comportamento especicamente humano, realiza a diferenciação entre o ser-
e os outros entes do mundo, fazendo que pela fala os entes se manifestem,
revelando assim a própria essência constitutiva do mundo, seu ser-no-mundo.
Assim, podemos dizer que é pelo ser-descobridor que o ente realiza sua
determinação no λόγος, pois é nele que o ente, enquanto um “deixar ver”
é conduzido ao seu ser-descoberto. Nesse sentido, para Heidegger, o lugar
original e essencial da verdade não está na proposição. Esta retira sua orientação
daquilo que é expresso na abertura do comportamento. Como ele arma em
Sobre a essência da verdade:A enunciação recebe sua conformidade da abertura
do comportamento. Pois, somente através dela, o que é manifesto pode
tornar-se, de maneira geral, a medida diretora de uma apresentação adequada.
Isto quer dizer: o comportamento mesmo deve receber antecipadamente o
dom prévio desta medida diretora de toda apresentação. Isto faz parte da
abertura que o comportamento mantém. Mas se somente pela abertura
que o comportamento torna possível a conformidade da enunciação, então
aquilo que torna possível a conformidade possui um direito mais original de
ser considerado como essência da verdade (HEIDEGGER, 1979, p. 136).
Portanto, a verdade não tem “de modo algum a estrutura de uma concordância
entre conhecer e objeto, no sentido de uma adequação de um (sujeito) a outro
(objeto)” (HEIDEGGER, 2012, p. 605). Sendo assim, segundo Heidegger,
a conformidade que a proposição instaura, a adequação entre pensamento e
coisa, é uma derivação do des-ocultamento do ente possibilitada anteriormente
pela verdade originária (Alétheia). O ente manifesto, aquilo que está presente
e diante de nós, somente é possível na enunciação por existir um fundamento
(λόγος) de onde a sua essência é retirada, pois toda representação só pode
existir porque ela é antecipada pela essência do ente des-ocultado na abertura.
Dessa forma, Heidegger (2012, p. 625) conclui:A enunciação não só não é o
‘lugar’ primário da verdade, mas, ao inverso, como modus-de-apropriação do
Juliano Rabello
48 |
ser-descoberto e como modo do ser-no-mundo, ela se funda no descobrir ou,
o que é igual, na abertura do Dasein. A ‘verdade’ mais-originária é o ‘lugar’ da
enunciação e a condição ontológica da possibilidade de que as enunciações
possam ser verdadeiras ou falsas (descobridoras ou encobridoras).O que se
evidencia então é que, para Heidegger, não é a enunciação que comporta
a verdade; antes, é esta que possibilita toda e qualquer enunciação sobre o
ente, pois este já foi, ontologicamente, manifestado pelo ser-no-mundo do
ser-aí. É por já estar sempre descoberto pela abertura que o ente pode ser
enunciado como sendo isto ou aquilo. Na compreensão, o mundo já foi
revelado ao ser-aí e, desta forma, todas as possibilidades de armações ou
negações fundam-se na verdade desvelada, na Alétheia. Portanto, a adequação
entre pensamento e coisa, entre consciência e realidade, interior e exterior é,
para Heidegger, um contrassenso ou um falso problema, pois a verdade já está
pressuposta na unidade constitutiva entre ser-aí e mundo. Nesse sentido, a
verdade proposicional assume uma posição secundária no sentido de ser um
desdobramento, uma extensão da verdade originária na qual o ser-aí sempre
está enquanto fundamento de seu ser-no-mundo.
Com isso, podemos compreender que a verdade em Heidegger não
se refere aos atributos dos entes subsistentes que transformados em enunciado
tornam-se proposições válidas adequadas à realidade. Verdade não tem a ver
com conhecimento ou conteúdo de juízo, seja armativo ou negativo, pois
o que está em questão não é a validade lógica da enunciação, sua “verdade
ou “falsidade”. Para Heidegger, falar em verdade é remeter a uma condição
de possibilidade do compreender que antecede todo e qualquer juízo
enunciativo ou conhecimento. Por isso, em Ser e tempo Heidegger arma
que toda verdade é referente ao modo de ser do ser-aí, pois este, enquanto
abertura de seu , já compreendeu, desvelou originariamente seu mundo.
Sobre essa diferenciação da noção de verdade em Heidegger em relação às
teorias do conhecimento tradicionais, comenta Stein (1993, p. 178-179):
Para Heidegger existe um modo de fundamentar, um modo de dar
conta dos critérios de verdade e falsidade que é antepredicativo,
que segue um modelo pragmático e que não se baseia naquilo que
denominamos ‘um modelo proposicional’. O que não signica
que Heidegger não proceda, ao descrever este modelo pragmático,
através de armações e negações. Só que as proposições que aí são
emitidas ou as sentenças que aí são proferidas, não se submetem
ao critério de verdade e de falsidade, objeto do nível lógico-
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 49
semântico. Porque se fosse assim, elas exigiriam, por sua vez, outras
proposições e estas, outras proposições. E assim, cairíamos numa
espécie de regresso ao innito. Há, portanto, um lugar em que se
faz esta fundamentação que é o lugar concreto do ser-no-mundo,
do Dasein. Quer dizer, com a verdade originária, a fundamentação
que Heidegger busca não é uma fundamentação que tem a
pretensão de encontrar um ponto a partir se fundamenta a teoria
do conhecimento. Portanto, ser-no-mundo, dizer que a verdade
e falsidade estão baseadas ou não se dão sem o caráter de ser-no-
mundo, não signica denir, no nível epistemológico ou no nível
da teoria do conhecimento, o problema do conhecimento.
1.4.2 O fenômeno originário da verdade: a nãO-verdade
Não é por acaso que o termo Alétheia é retomado tendo em vista a
negação que está contida na partícula privativa “a” que antecede a “lethes”.
Para Heidegger (2012, p. 182), o termo grego Alétheia é a verdade que
surge como “negação do encobrimento e, neste sentido, o encobrimento
é uma espécie de contraponto ao conceito de verdade, de contraponto do
velamento”. Heidegger destaca que só é possível algo ser desvelado por
existir velamento. Isto signica que a essência da verdade está também
ligada ao que se oculta, ou seja, é por existir o ocultamento que a Alétheia
cumpre sua função de “trazer à luz” o que está escondido. Portanto, a
essência da verdade pressupõe também a não-verdade, ou seja, a verdade
aponta para o duplo caráter de velamento-desvelamento.
Com efeito, essa não-verdade é tratada por Heidegger em Ser e
tempo dentro da própria constituição ontológica do ser-aí. Como vimos,
em seu ser-no-mundo o ser-aí está perdido na impessoalidade do mundo
público, do ser-com outros. Desviando-se do sentido do ser, ele perde-
se nas determinações ônticas nas quais apenas o ente aparece, subtraindo
desse aparecimento a verdade originária que se oculta. A totalidade do
ente é assim dissimulada pela aparência, e, com isso, o mundo apresenta-se
dentro de um horizonte sedimentado. Dessa forma, embora acessível, o
ente se fecha na obscuridade. Sendo assim, mesmo sendo o ser-descoberto
uma constituição do ser-aí, à factualidade do existir (situação) pertence o
fechamento e o encobrimento expresso por Heidegger como o modo de ser
Juliano Rabello
50 |
da decadência. Sobre esta relação entre não-verdade e decadência, arma
Heidegger (2012, p. 613-615, grifo do autor):
À constituição de ser do Dasein pertence o decair. De pronto e no
mais das vezes o Dasein está perdido em seu ‘mundo’. O entender,
como projeto de possibilidades-de-ser, extraviou-se no mundo. O
absorver-se em a-gente signica o predomínio do ser-do-interpretado
público. O descoberto e aberto está no modus da contrafação e do
fechamento, por efeito do falatório, da curiosidade e da ambiguidade.
O ser para o ente não se extingue, mas é erradicado. O ente não ca
por completo encoberto, é precisamente descoberto, mas, ao mesmo
tempo contrafeito; mostra-se – mas no modus da aparência. De igual
maneira, o que foi descoberto volta a se afundar na dissimulação e
na ocultação. O Dasein, porque essencialmente decaído e segundo sua
constituição de ser, é na ‘não verdade. Esse termo, do mesmo modo
que a expressão ‘decaído’, é aqui empregado ontologicamente. Toda
avaliação’ onticamente negativa deve ser afastada do seu emprego
na análise existenciária. À factualidade do Dasein pertencem
o fechamento e o encobrimento. O pleno sentido ontológico
existenciário da proposição “o Dasein é na verdade” diz, com igual
originaridade: ‘o Dasein é na não-verdade’. Mas só na medida em
que é aberto, o Dasein é também fechado; e na medida em que o
ente do-interior-do-mundo é cada vez descoberto com o Dasein, esse
ente, podendo vir-de-encontro no-interior-do-mundo, é encoberto
(oculto) ou dissimulado.
Como podemos entender da citação acima, ser na não-verdade
signica que, na medida em que o ser-aí constitui-se pela abertura, o ente
lhe irrompe como horizonte de possibilidades inerentes ao próprio poder-
ser. No entanto, estando absorvido no mundo público do impessoal,
o ser-aí, na maioria das vezes, está perdido em seu mundo, de forma
que, ao mesmo tempo que se determina pela projeção do poder-ser, a
totalidade do ente lhe aparece como uma indeterminação correlata de seu
modo de ser fragmentário, próprio da situação fática. No entanto, essa
indisponibilidade e indeterminação é o que assegura o próprio manifestar
do ente, pois estando o ser-aí aberto às possibilidades de ser, na medida
em que um ente é descoberto, outro é igualmente dissimulado, ou seja, tal
descoberta pressupõe que algo sempre esteja ocultado. Em outras palavras,
tendo como horizonte existencial a descoberta do ente, o ser-aí tira-o do
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 51
velamento, e, ao fazê-lo, ao mesmo tempo o encobre, pois pertence à sua
natureza intrínseca se manter numa relação de velamento e desvelamento.
Dessa forma, a abertura do comportamento, como pura
liberdade (deixar-ser) do ente impõe, pela própria estrutura ontológica
da decadência, a possibilidade da não-verdade. Esta pode se expressar de
muitas maneiras, seja na forma de um mero engano, um erro de cálculo,
de decisão ou atitude a que o ser-aí está sujeito em seu ser-no-mundo.
Portanto, por manter-se, em seu comportamento, na livre abertura do
ente em totalidade, o ser-aí constitui-se também de maneira igualmente
originária na não-verdade, pois a ele também pertence o erro. Em Sobre a
essência da verdade,
12
Heidegger (1979, p. 142-143) nos dá uma explicitação
contundente dessa forma do comportar-se na não-verdade:
O homem erra. O homem não cai na errância num momento dado.
Ele somente se move dentro da errância porque in-siste ek-siste e já
se encontra, desta maneira, sempre na errância. A errância em cujo
seio o homem se movimenta não é algo semelhante a um abismo ao
longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando.
Pelo contrário, a errância participa da constituição íntima do Ser-aí
a qual o homem historial está abandonado. A errância é o espaço
de jogo deste vaivém no qual a ek-sistência insistente se movimenta
constantemente, se esquece e se engana sempre novamente [...] A
errância é a antiessência fundamental que se opõe à essência da
verdade. A errância se revela como espaço aberto para tudo que se
opõe à verdade essencial. A errância é o cenário e o fundamento do
erro. O erro não é uma falta ocasional, mas o império desta história
onde se entrelaçam, confundidas, todas as modalidades do errar.
Nesse sentido, para Heidegger, assumir como essência da verdade
a não-verdade não é uma contradição, pois “aquilo que o hábito e as
doutrinas losócas chamam erro, isto é, a não-conformidade do juízo e a
falsidade do conhecimento, é apenas um modo e ainda o mais supercial de
errar” (HEIDEGGER, 1979, p. 142-143). Portanto, decair na não-verdade
não é um mero erro de conduta ou de julgamento. Ao contrário, é por ser
12
A conferência Sobre a essência da verdade é um texto de 1930 no qual Heidegger aprofunda a noção de verdade.
Cabe ressaltar que neste texto a interrogação heideggeriana já se movimenta a partir da chamada viragem (Kehre)
na qual a pergunta pelo sentido do ser é feita não mais dentro do contexto da “Analítica Existencial”, e sim
do ponto de vista da história da verdade do ser. Utilizamos este texto aqui como referência com o objetivo de
esclarecer a compreensão de Heidegger acerca da noção de não-verdade.
Juliano Rabello
52 |
própria à constituição ontológica do ser-aí que a não-verdade se expressa
fundamentalmente como essência originária da verdade. Dessa forma,
verdadeira ou falsa, a enunciação como conformidade do conhecimento
constitui-se como um modo derivado da verdade originária, pois ao ente
subsistente só se pode armar ou negar porque pertence ao ser-aí, em sua
abertura, a revelação da verdade originária. Portanto, o ser-na-não-verdade é
uma determinação ontológica do ser-no-mundo: “Que a deusa da verdade,
que conduz Parmênides, o coloque diante de dois caminhos, o do descobrir
e o do encobrir, nada mais signica senão que o Dasein é cada vez na verdade
e na não-verdade” (HEIDEGGER, 2012, p. 615-617). Assim, a não-verdade
pertence à essência da verdade, pois, além de constituir-se como des-velamento
(A-létheia), pressupondo sua ocultação pertencente ao âmbito originário que
lhe é próprio, a verdade também constitui-se faticamente na abertura do ser-aí.
Portanto, é a partir do caráter de decadência que verdade e
não-verdade ligam-se ontologicamente, pois ambas emergem da unidade
ambivalente da compreensão do mundo cotidiano do ser-aí. Nesse sentido,
podemos inferir que, para Heidegger, a compreensão da não-verdade é
fundamental para compreender a própria essência da verdade, pois ambas
se mantêm, igualmente, sob o duplo fundamento oculto da verdade do ser.
1.4.3 O sentidO dO desvelamentO cOmO vínculO OntOlógicO
entre verdade e ser-
Tendo em vista os desdobramentos conquistados no interior da
Analítica Existencial”, Heidegger insere, no §44, a seguinte questão:
Mas, se verdade está com pleno direito numa originária conexão
com ser, então o fenômeno da verdade entra no âmbito da
problemática ontológico-fundamental. Mas nesse caso tal
fenômeno já não deveria ter-vindo-de-encontro também no
interior da análise-fundamental preparatória da analítica do
Dasein? Em que conexão ôntico-ontológica está ‘a verdade’ com
o Dasein e com sua determinidade ôntica por nós denominada
entendimento-do-ser? Pode-se mostrar, a partir deste fundamento
pelo qual ser e verdade e verdade e ser caminham necessariamente
juntos? (HEIDEGGER, 2012, p. 593).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 53
Heidegger constata que a relação entre ser e verdade não é um
problema novo na história da losoa. Na realidade, esta relação está na
base do que o lósofo considera a problemática ontológica fundamental
(o sentido do ser). Embora o lósofo admita que tal conexão já fora
amplamente tratada no interior da tradição, tal problemática permaneceu
encoberta, de modo que se faz necessário à investigação assumir um novo
ponto de partida (cf. HEIDEGGER, 2012, p. 593). Este, por sua vez,
impõe por si mesmo o fundo no qual tal problemática se move e no qual o
sentido do ser já estava implicado: a “Analítica Existencial”. Para Heidegger,
a relação entre ser e verdade só pode surgir diante do próprio ente em que
esta questão pode ser mobilizada, ou seja, o problema do ser e da verdade
tem a ver com o modo de ser do ser-aí.
Como vimos acima, a verdade enquanto enunciação reivindica
o ente em seu ser-descoberto e este deve levar em consideração o ser-
descobridor. Nesse sentido, a verdade depende não só de uma armação
ou negação, de um juízo, mas do resultado do comportamento do ser-aí,
resultado que pode ser designado como “verdadeiro”. “A ‘denição’ da
verdade como ser-descoberto e ser-descobridor não é também uma mera
explicação-nominal, mas nasce da análise dos comportamentos do Dasein
que costumamos chamar ‘verdadeiros’” (HEIDEGGER, 2012, p. 609).
Ora, se a verdade surge de um comportamento, então ela depende de uma
colocação, ou melhor, de uma disposição deste ente (ser-aí) no mundo.
Nesse sentido, a reexão ontológica sobre o fenômeno da verdade em Ser e
tempo está mobilizada pela própria estrutura dos existenciais elucidados em
toda a “Analítica Existencial” que a precede. Isso se evidencia mais adiante no
texto, onde Heidegger (2012, p. 609) nos lança diante de uma consideração
ambígua, aparentemente contraditória: “o Dasein é ‘na verdade’”. Do
ponto de vista da compreensão de ser, a abertura originária reete uma
dupla possibilidade desse “ser na verdade”. Em primeiro lugar, a verdade
se dá enquanto o ser-aí se ocupa dos entes com os quais ele se relaciona
(ser-descobridor). Em segundo lugar, a verdade se dá enquanto poder-ser,
ou seja, o ser-aí é, e na medida em que é, se mostra e se revela a si mesmo
enquanto ser-no-mundo (ser-descoberto) (HEIDEGGER, 2012, p. 611).
Porém, esta dupla possibilidade do ser-aí “ser na verdade” não
indica que ele “esteja sempre ou cada vez inserido “em toda verdade”,
mas que a abertura de seu ser mais-próprio pertence à sua constituição
Juliano Rabello
54 |
existenciária” (HEIDEGGER, 2012, p. 611). Com isso, o ser-descobridor
e o ser-descoberto se constituem por uma ambivalência originária que
integra sua constituição de ser-no-mundo. “Na medida [em] que o Dasein
é essencialmente sua abertura e, aberto, abre e descobre, ele é essencialmente
verdadeiro’. O Dasein é ‘na verdade” (HEIDEGGER, 2012, p. 611).
Com efeito, a verdade assim entendida não é algo conquistado
como consequência de uma busca. O próprio buscar se estabelece
enquanto a verdade o fundamenta, ou seja, para Heidegger, a verdade não
é o resultado do conhecimento humano, mas é o próprio conhecer que se
dá na medida em que o ser-aí é.
O Dasein, como constituído pela abertura, é essencialmente na
verdade. A abertura é um modo-de-ser essencial do Dasein. Só ‘se
’ verdade na medida e enquanto o Dasein é. O ente só então
é descoberto e só é aberto enquanto o Dasein em geral é. As leis
de Newton, o princípio da contradição e em geral toda verdade
só são verdadeiros enquanto o Dasein é. Antes que houvesse em
geral algum Dasein e depois de que já não haja Dasein, não havia
e não haverá verdade alguma, porque a verdade como abertura,
descoberta e ser-descoberto, já não pode ser então. Antes que as
leis de Newton fossem descobertas, elas não eram ‘verdadeiras’, do
que não se segue que elas fossem falsas, nem menos ainda que se
tornariam falsas se já não fosse onticamente possível nenhum ser-
descoberto. Tampouco há nessa ‘restrição’ uma diminuição do ser-
verdadeiro das ‘verdades’ (HEIDEGGER, 2012, p. 625).
Para Heidegger, apenas quando o ser-aí é, existe como compreensão
de ser, dá-se o ser. Portanto, verdade não é algo de que ele se aproprie, como
se estivesse separado dela como um sujeito alheio a seu objeto. Ou seja, se
à abertura do ser-aí pertence o seu ser-descoberto, o mundo, enquanto
âmbito de possibilidades do existir está sempre acessível, pois a verdade
não surge de uma compreensão quantitativa dos entes subsistentes. O ser-
sempre “está verdade”, pois, ele “é” no mundo, ou seja, sempre se liga a
ele a compreensão de seu ser. No entanto, compreender e ter de lidar com
seu próprio ser, tal não signica que o ser-aí tenha para si a compreensão de
ser em geral. Essa compreensão que é inerente à sua constituição é aberta
pelo próprio mundo que é seu como um horizonte temporal nito e fático
que o lança nas diversas “situações” possíveis de ser.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 55
Contudo, ao sustentar que toda verdade é conforme ao ser do ser-aí,
Heidegger poderia, por consequência de sua armação, cair no subjetivismo
do arbítrio humano e, dessa forma, a verdade estaria fadada à relativização.
No entanto, com tal armação, o lósofo nos diz que o fenômeno originário
da verdade só pode ser pensado diante da pergunta pela “essência” da
verdade. Esta, por conseguinte, aponta para um “modo-de-ser da verdade
que deve ser pressuposto na própria constituição existencial do ser-no-
mundo. As estruturas fundamentais do ser-aí implicam, em todos os seus
constitutivos existenciais, um plano transcendental no qual ele se move e
no qual a verdade já está desde o início pressuposta. Tal pressuposição se
justica, segundo Heidegger, pelo fato de a verdade depender do modo de
ser do ser-aí, pois em seu ser-descobridor o ente descoberto revela-se, não
como algo que pode ser apreendido desta ou daquela maneira, mas como
descoberto em si mesmo”. Como Heidegger (2012, p. 629) diz: “Não
somos nós que pressupomos a ‘verdade’, mas é ela que possibilita em geral
ontologicamente que possamos ser de modo que ‘pressuponhamos’ algo.
Só a verdade possibilita algo assim como a pressuposição.” Nesse sentido,
pressupor a verdade, para Heidegger, signica que a verdade, ela mesma, se
dá como fundamento ontológico de toda compreensão de ser. Heidegger
esclarece o signicado dessa proposição na seguinte passagem:
Que signica ‘pressupor’? Signica entender algo como o fundamento
do ser de um outro ente. Semelhante entendimento de ente só é
possível em suas conexões-de-ser sobre o fundamento da abertura,
isto é, do ser-descobridor do Dasein. Pressupor ‘verdade’ signica
então entendê-la como algo em-vista-de-que o Dasein é. Mas o
Dasein – isto reside na constituição-de-ser como preocupação – está
cada vez adiantado em relação a si. É um ente para o qual, em seu
ser, está em jogo seu poder-ser mais-próprio. Ao ser e ao poder-ser do
Dasein, como ser-no-mundo, pertencem essencialmente a abertura
do descobrir. Para o Dasein está em jogo o ocupar-se do ver-ao-redor
descobridor do ente no interior-do-mundo. Na constituição-de-ser
do Dasein como preocupação, no ser-adiantado-em-relação-a-si,
reside o ‘pressupor’ mais originário. Porque tal pressupor-se pertence
ao ser do Dasein, também ‘nós’ devemos pressupor como determinados
pela abertura. Esse ‘pressupor’ que reside no ser do Dasein não se
relaciona ao ente não-conforme-ao-Dasein, que além deste também
é, mas unicamente ao Dasein. A verdade pressuposta ou ‘o que se
’, com o qual seu ser deve ser determinado tem o modo-de-ser
Juliano Rabello
56 |
ou o sentido-de-ser do Dasein ele mesmo. A pressuposição-da-
verdade nós a devemos ‘fazer’, porque ela já é ‘feita’ com o ser do ‘nós’
(HEIDEGGER, 2012, p. 629-631, grifo do autor).
A derivação do “modo de ser” do ser-aí em seu ser-no-mundo,
na facticidade que o lança para as situações concretas do seu existir,
contém, fundamentalmente, uma dimensão originária que impõe, de
antemão, a condição de anterioridade ontológica que se insere na unidade
compreensiva que ser-aí mantém com o mundo, designado por Heidegger
como a constituição ontológica do cuidado (Sorge). Por isso, Heidegger
vai interpretar essa relação como uma relação estruturalmente circular da
compreensão. “Sendo, o Dasein compreende ser”, ou seja, na medida em
que existe, ele já se antecipou de alguma forma e pode assim se projetar no
mundo numa compreensão prévia de ser. Como vimos, esta compreensão
prévia reivindica a dimensão preocupada do ser-com em que o Dasein
sempre é originariamente. O cuidado (Sorge) congura-se então como o
próprio horizonte da transcendência do ser-aí, marcando assim a diferença
entre o plano ôntico e o ontológico. Com isso, a ligação entre compreensão
do ser-aí e sentido do ser presente na “Analítica Existencial” desdobra-se na
ligação entre ser-aí e verdade. Portanto,
[...] só ‘se dá’ ser – não ente – na medida em que verdade é. E esta
é na medida e enquanto o Dasein é. Ser e verdade ‘são’ de igual
originalidade. Que signica: ser ‘é’, se é preciso distingui-lo de todo
ente, só pode ser concretamente interrogado quando o sentido-
de-ser e o alcance do entendimento-de-ser tenham sido em geral
elucidados (HEIDEGGER, 2012, p. 635).
Como já explicitamos neste trabalho, Heidegger alude ao fato
de que, por ser oculta dentro da tradição, a experiência originária do
fenômeno da verdade sempre confundiu a diferença entre a compreensão
da verdade enquanto descobrimento originário da abertura do ser-aí com
a compreensão do ser em geral, caracterizado pela totalidade dos entes
subsistentes no mundo. O que o lósofo pretende é mostrar que, na
medida em que é existindo que o ser-aí tem como possibilidade a de se
relacionar com seu próprio ser, compreensão de ser e verdade se deslocam
das condições de universalidade, eternidade e xidez que a razão teórica
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 57
do sujeito impõe para se assentar na própria relação existencial que o ser-
estabelece com o mundo. Com isso, Heidegger tenta demonstrar pela
Analítica Existencial” que a via de acesso à compreensão do mundo não
é teórica, mas depende do próprio desvelar-se do mundo em sua estrutura
mais originária e fundamental. Dessa forma, toda tradição metafísica que
colocava a verdade no plano da universalidade e da eternidade absoluta
é transferida para o plano da facticidade da existência sedimentada e
temporal pertencente ao ser do ser-aí.
Que se dão ‘verdades eternas’ só será sucientemente demostrado
quando se conseguir provar que o Dasein foi e será por toda eternidade.
Enquanto essa prova faltar, a proposição não deixa de ser uma armação
fantástica, que não ganha legitimidade porque os lósofos comumente
nela ‘acreditam’ (HEIDEGGER, 2012, p. 627).
Nesse sentido, Heidegger dirige uma critica radical à tradição
losóca, pois a verdade (Alétheia) será interpretada em íntima conexão
com a problemática existencial. Tal crítica se evidencia na medida em
que, ao retomar o sentido do ser como cerne da problemática ontológica
fundamental, a interpretação tradicional da verdade mostra-se insuciente.
Portanto, o rompimento com o modelo tradicional se dá porque
Heidegger parte do fato do ser-aí. Renuncia, assim, em seu ponto
de partida, ao ‘sujeito ideal’, ao ‘eu puro’, à consciência em geral
– a alusão à losoa transcendental, principalmente à de Husserl,
está manifesta – renunciando ao ideal total transparência na
interrogação losóca. Seu ponto de partida renuncia, assim,
também ao modelo absoluto – a noesis noeseos da reexão losóca
da tradição ocidental. Tal ponto de partida representa também,
simultaneamente, uma renúncia ao que a tradição chama de teologia
natural. As ‘verdades’ eternas’ e o sujeito absoluto idealizador
são restos dessa teologia. Heidegger os elimina da problemática
losóca. Se essas questões entrarem na losoa de Heidegger,
sua discussão não será de nenhum modo levantada no horizonte
da tradição. As possibilidades losócas da teologia natural e das
verdades eternas’ jamais se armarão como ponto de partida do
losofar e como solução e modelo último (STEIN, 2001, p. 35).
Juliano Rabello
58 |
Nessa direção, tomando por base a contrapartida dada por
Heidegger à noção tradicional de verdade, arma MacDowell (1970, p. 131):
A nova noção de verdade permite a Heidegger superar a oposição
entre sujeito e objeto. Ser é o aparecer do que aparece. Compreendê-
lo é simplesmente deixa-lo aparecer. Não se trata de construir
intencionalmente o objeto através de prestações do sujeito. Destarte,
a substituição da noção de verdade, como conformidade entre o
pensamento e a coisa, pela manifestação do ente no compreender,
conduz ao abandono da noção de ser como objetividade e, por
conseguinte, à supressão do problema de uma verdade absoluta.
Nesse sentido, entendemos que a radicalidade do pensamento
heideggeriano acerca da questão da verdade reside no fato do lósofo
ter destituído sua problemática do plano das razões xas e imutáveis da
idealidade subjetiva, para inseri-la no plano da temporalidade. Dessa forma,
torna-se claro porque, para Heidegger, Ser e tempo é uma obra que tem a
pretensão de ser uma “destruição da ontologia tradicional” e, portanto,
uma Ontologia fundamental, pois, ao pensar a verdade no sentido grego
de Alétheia, a reexão de Heidegger caracteriza-se não só como retorno
às origens, mas também como a tarefa de recolocar o problema dentro
da perspectiva mesma de seu esquecimento. Essa perspectiva se esclarece
na medida em que em Ser e tempo, ao pensar a relação entre sentido do
ser e verdade, o pensamento de Heidegger já não se orienta dentro dos
modelos universalizantes da metafísica tradicional, mas propõe um novo
movimento de interrogação que parte da relação temporal e fática que
emerge da existência.
| 59
2
V  :  
     
No capítulo anterior deparamo-nos com a necessidade de tratar do
conceito de verdade (Alétheia) a partir da obra Ser e tempo. Essa necessidade,
entretanto, deveu-se ao fato de, além de essa obra caracterizar um marco
decisivo na trajetória intelectual de Heidegger, que vai destacá-lo no cenário
losóco ocidental, nela encontramos uma das principais referências para
adentrarmos no conceito de verdade em seu pensamento. Nesse capítulo,
porém, nosso objetivo será abordar a relação de tal conceito com o problema
da arte, principalmente como este aparece no ensaio A origem da obra de
arte. No entanto, nossa análise dependerá da contextualização da chamada
viragem (Kehre) como requisito necessário para compreendermos o lugar
que o tema da arte assume no pensamento heideggeriano.
2.1 da analítica existencial à história da verdade: a arte nO
cOntextO da viragem dO pensamentO heideggerianO
Como explicitamos no capítulo anterior, em Ser e tempo
Heidegger desenvolve a analítica existencial tendo em vista o horizonte
fenomenológico a partir do qual suas estruturas fundamentais desvelam o
sentido do ser e sua verdade. É a abertura originária do ser-aí que possibilita
todo o horizonte hermenêutico no qual se articulam noções como ser-no-
mundo, ser-com outros, projeto, angústia, cuidado, etc. No entanto, a
Juliano Rabello
60 |
partir da década de 1930, Heidegger começa a identicar no projeto de Ser
e tempo uma impossibilidade de levar adiante a interrogação inicialmente
pretendida a partir das categorias conceituais utilizadas nessa obra. Nesse
período, sua reexão passa por uma transformação em que o tratamento
dado ao problema do ser e da verdade sofre uma mudança em relação
ao que havia sido desenvolvido no tratado de 1927. Enquanto em Ser e
tempo Heidegger pensa o sentido do ser e da verdade a partir da Analítica
Existencial do ser-aí, após 1930 tal problemática passa pela chamada
viragem” ou “inversão” (Kehre).
Amplamente comentado pelos intérpretes de seu pensamento,
tal período caracteriza uma tentativa do lósofo de pensar a questão
do ser para além da metafísica tradicional. Embora o projeto de Ser e
tempo vislumbrasse uma destruição da história da ontologia, nessa obra
Heidegger ainda se movimenta por uma série de conceitos ainda ligados à
linguagem metafísica, o que teria levado muitos a falarem do “fracasso” de
Ser e tempo. Como arma Pöggeler (2001, p. 66): “a tentativa de Heidegger
de, por meio de uma ontologia fundamental, trazer de volta para o seu
fundamento a teoria do ser da metafísica falhou”.
Porém, como nota Casanova (2010, p. 145), o próprio Heidegger
arma em diversas passagens que o fracasso de Ser e tempo se deve à
impossibilidade de continuar pensando o que precisava ser colocado em
questão na obra a partir da linguagem da metafísica”.
Desse modo, para Heidegger, seria necessário um novo ponto
de partida em que a questão do ser não dependesse mais de nenhum
o condutor, como é o caso da “Analítica Existencial” em que o ser-aí
aparece como ente privilegiado na interrogação pelo sentido do ser e sua
verdade, mas que o próprio ser fosse pensado diretamente como âmbito
fundamental de desvelamento da verdade.
É nesse sentido que em Heidegger – through Phenomenology to
thought, Willian Richardson, ao comentar sobre a mudança característica
dos escritos que sucedem Ser e tempo, distingue duas fases na losoa
de Heidegger: a primeira (Heidegger I) correspondendo à Ontologia
fundamental desenvolvida em Ser e tempo, a segunda (Heidegger II)
marcada pelo abandono dos conceitos que perfazem a hermenêutica da
facticidade para a passagem à interrogação do problema da destinação
histórica do ser (Cf. RICHARDSON, 1974).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 61
A indicação desse movimento apontado por Richardson é constatada
por ele a partir da seguinte armação que Heidegger (1979, p. 145) faz na
conferência “Sobre a essência da verdade”:
1
A questão da essência da verdade
se origina da questão da verdade da essência”. Para além de um mero jogo de
palavras, o que Heidegger pretende com tal armação é mostrar que o ponto
de partida para a elaboração do sentido do ser e da verdade não seria mais
possível na perspectiva da facticidade existencial da ontologia fundamental
de Ser e tempo. Na verdade, tal procedimento seria insuciente para dar
conta da abrangência exigida por tal questionamento, pois as modulações
dos existenciais constitutivos do ser-aí caracterizariam uma diculdade de
conectar a temporalidade própria ao mundo fático e sedimentado no qual o
ser-aí sempre está, à temporalidade do próprio ser. Como arma Casanova
(2010, p. 144), “há algo de constitutivamente inviável na tentativa de
pensar a unidade entre a temporalidade extática do ser-aí e a temporalidade
do ser, algo que obriga Heidegger a rever fundamentalmente não posições
particulares de Ser e Tempo, mas o próprio projeto da obra como um todo”.
Porém, para Casanova (2010, p. 145), em oposição à tese de Richardson,
não haveria uma distinção entre Heidegger I e Heidegger II, pois o que se
altera no pensamento do lósofo não é seu “procedimento metodológico”,
mas as “condições de pensabilidade” dos mesmos problemas.
Contudo, na intenção de livrar a interpretação de possíveis
equívocos no que diz respeito à distinção entre essas duas fases, o próprio
Heidegger escreve, em resposta a Richardson no prefácio à obra citada
acima: “A distinção entre Heidegger I e II se justica somente sob a condição
de que constantemente se atente a que: somente a partir do que é pensado
sob o I se faz acessível o II. Mas o pensado sob o I somente é possível se
estiver contido no II” (HEIDEGGER, 2003, p. XXII, tradução nossa).
2
Tal
armação será reforçada em diversos textos escritos após 1930, nos quais
Heidegger faz menção a como a inversão deve ser vista em relação a Ser
e tempo. Em Sobre o humanismo, por exemplo, o lósofo procura mostrar
que a viragem de seu pensamento não seria uma ruptura radical do projeto
inicial do tratado de 1927; antes, ela caracterizaria o próprio movimento
de retorno à questão fundamental – o esquecimento do sentido do ser: “A
 Essa conferência foi proferida em 1930, mas publicada somente em 1943.
No original: “e distinction you make between Heidegger I and II is justied only on the condition that this is kept
constantly in mind: only by way of what [Heidegger] I has thought does one gain access to what is to-be-thought by
[Heidegger]II. But the thought of [Heidegger] I becomes possible only if it is contained in [Heidegger] II.
Juliano Rabello
62 |
viravolta não é uma mudança do ponto de vista de Ser e Tempo; mas, nesta
viravolta, o pensar ousado alcança o lugar do âmbito a partir do qual Ser e
Tempo foi compreendido e, na verdade, compreendido a partir da experiência
fundamental do esquecimento do ser (HEIDEGGER, 1973, p. 156).
Em Hermenêutica em retrospectiva, em consonância com tal
assertiva, Gadamer (2007, p. 114) arma que “a viragem heideggeriana
é em verdade um retorno”. Para Gadamer, Heidegger quer mostrar que
a viragem não teria mudado o núcleo central de sua interrogação, pois
mesmo com ela podemos perceber uma unidade em seu pensamento, de
modo que “possui algo certamente elucidativo dizer que o caminho de
pensamento de Martin Heidegger se apresenta como uno, mesmo que haja
aí tantas voltas e viradas” (GADAMER, 2007, p. 109). Nesse sentido,
para Gadamer a diferença fundamental que indicaria a viragem deve ser
compreendida, não na temática ou em seu “método”, mas no modo de
tratamento dado à questão do ser, no qual o que se deve levar em conta é,
sobretudo, a mudança de perspectiva do ser-aí para o acento privilegiado
da história da verdade do ser.
Embora em Ser e tempo Heidegger já houvesse acentuado o
caráter histórico do ser-aí, como podemos perceber em seu projeto de
destruição da tradição metafísica, é importante destacar que nessa obra
ainda está ausente a dimensão propriamente historial da verdade, no
sentido de esta congurar o movimento no qual a história surge como
traço decisivo que constitui o aparecimento do ser. Como Heidegger
(1979, p.261) dirá na conferência intitulada “Tempo e ser”: “História do
ser signica destino do ser”. Aqui o destino histórico da verdade caracteriza
o contexto no qual o ser se dá: “Ser não é. Ser dá-Se como o desocultar
do pre-sentar” (HEIDEGGER, 1979, p.260). Com efeito, esse “dar-se”
do ser é compreendido a partir do horizonte no qual ocorrem todas as
realizações possíveis inerentes ao modo do ser se manifestar ao homem nas
épocas históricas, pois “o homem está postado de tal modo, no interior
da abordagem da presença, que recebe como dom o presentar que dá-Se,
enquanto percebe aquilo que aparece no presenti-car” (HEIDEGGER,
1979, p. 263). Nesse sentido, para Heidegger, caberia pensar esse pre-sentar
como a própria essencialização do ser na qual o ser-aí é historicamente
constituído, ou seja, não se trata mais de pensar a temporalidade a partir
do projeto do ser-aí, e sim de pensar o ser-aí a partir da dimensão temporal
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 63
da história da verdade do ser. Com isso, podemos dizer que na perspectiva
de “Tempo e ser” a história é entendida como fundo temporal e originário
dos envios do próprio ser, ou seja, não tendo mais como horizonte uma
Analítica Existencial”, o sentido do ser deve ser compreendido a partir
daquilo mesmo que o determina, a saber, a destinação histórica da verdade,
que no contexto pós-viragem é caracterizada por Heidegger pela noção
acontecimento apropriador (Ereignis).
3
Como podemos constatar em algumas obras da década de
1930, em especial Contribuições à losoa (1936-38), acontecimento
apropriador é a expressão na qual Heidegger irá articular, para além de
Ser e tempo, sua compreensão de história e de tempo, estas vinculadas não
mais a partir do horizonte hermenêutico de mundo no qual o ser-aí projeta
sua decisões pela compreensão de ser que lhe é inerente, mas pelo modo
como o ser se desdobra ao ser-aí, requisitando-o como lugar em que ocorre
o envio histórico da verdade. Trata-se aqui, como ressalta Casanova (2013,
p. 117), de pensar a manifestação dos entes em geral não mais a partir
do ser-aí, mas antes a partir do próprio acontecimento do aí”. Ou seja, as
noções de tempo e história, desprendidas dos existenciais constitutivos do
ser-aí, passam a ser pensadas como um evento do do ser. Dessa forma,
o que está em questão agora é que o horizonte histórico-temporal do ser
não se articula mais a partir da dinâmica da facticidade na qual o ser-aí
se encontra. Antes, é o acontecimento do aí que se insere na dimensão
na qual o ser-aí conquista seu próprio (Eigen) que ele mesmo é. Como
explica Stein (1993, p. 238), o termo Ereignis expressa que “o Dasein, o ser
humano enquanto compreende ser, é apropriado por um acontecimento
do qual ele não dispõe. Este é a história da losoa, onde radica a condição
humana, que nunca se torna inteiramente transparente, é a história do ser”.
No entanto, para Heidegger, esta nova articulação não signica que o ser-aí
não tenha um papel fundamental nesse evento, pois é ao mesmo tempo
em que a história se realiza enquanto acontecimento apropriador que o
ser-aí é requisitado a se “apropriar” desse acontecimento. Como Heidegger
(2015, p. 250) arma em Contribuições à losoa: “A ligação do ser-aí com
o ser pertence à essencialização do próprio ser, o que também pode ser dito
assim: o ser precisa do ser-aí, não se essencia de maneira alguma sem esse
acontecimento da apropriação.
Para uma compreensão etimológica do termo Ereignis, conforme este apresenta-se no pensamento
heideggeriano, Cf. Inwood (2002, p. 202-204) e Zarader (1998, p. 357-367).
Juliano Rabello
64 |
Contudo, vale lembrar que a noção de acontecimento apropriador
não sugere apenas uma mudança de rota no pensamento heideggeriano. O
que Heidegger tem em vista com tal noção é a superação da metafísica
que Ser e tempo não pôde realizar. Para Dubois (2004, p.102), “a Ereignis
é precisamente, de certo modo, o domínio propriamente pós-metafísico
do pensamento de Heidegger”. Nesse sentido, o que percebemos dentro
do contexto da viragem é justamente uma necessidade de um abandono
do modo de proceder conceitual, próprio à linguagem metafísica. Porém,
compreendida como m da losoa,
4
tal linguagem, enquanto modo de
destinação histórica, reivindicaria a necessidade de um outro início.
Heidegger identica a história da metafísica com a história do
destino do ser. Como já explicitamos nesse trabalho, para Heidegger, toda
metafísica teria se cunhado a partir da perspectiva ôntica, ou seja, em vez
de considerar o ser enquanto ser, ela teria se voltado para o ente, deixando
o ser no esquecimento (diferença ontológica). Dessa forma, o destino do
ser consolidou-se, na realidade, como a busca incessante pelo ser do ente.
Nessa busca, toda a tradição ocidental teria fundamentado sua maneira de
compreender o mundo a partir da hegemonia do ente sobre o ser. Ora, o
outro início do qual nos fala Heidegger é justamente a tentativa de pôr
em marcha um pensamento em que a orientação esteja desvinculada dessa
compreensão metafísica hegemônica. Se a história da metafísica é a história
do esquecimento do ser, pensá-lo como acontecimento apropriador
(Ereignis) é reivindicar uma nova forma de conceber o destino do próprio
ser. Com isso, a viragem não congura apenas uma mudança de perspectiva
do pensamento heideggeriano, mas ela exige, sobretudo, uma mudança do
ponto de vista conceitual.
Nessa direção, alguns temas ganham cada vez mais força nas
reexões do lósofo a partir da década de 1930, sobretudo a questão da
arte e da poesia e, um pouco mais tardiamente, a questão da técnica.
5
Temos presente aqui a identicação entre losoa e metafísica que Heidegger desenvolve em O m da losoa
e a tarefa do pensamento (1966), onde o lósofo defende que a losoa enquanto história da metafísica ocidental
(de Platão a Nietzsche) teria chegado ao seu m no sentido de esgotamento, acabamento: “Que dizemos nós
quando falamos do m da Filosoa? Temos a tendência de compreender o m de algo em sentido negativo como
a pura cessação, como a cessação de um processo, quando não como ruína e impotência. Pelo contrário, quando
falamos do m da Filosoa queremos signicar o acabamento da Metafísica (HEIDEGGER, 1979, p. 71-72).
Embora o principal texto de Heidegger sobre a técnica seja A questão da técnica, encontramos o mesmo tema
contemplado em textos anteriores, como: A origem da obra de Arte e Nietzsche. Para um aprofundamento sobre
o percurso losóco de Heidegger a esse respeito, cf. Ferreira (2012).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 65
Tais questões podem ser encontradas em diversos cursos, conferências e
textos escritos por Heidegger nesse período, dos quais podemos destacar
A origem da obra de arte (1935-36), Hölderlin e a questão da poesia (1936),
A questão da técnica e também os diversos seminários sobre Nietzsche
em que Heidegger confronta com o pensador de Assim falou Zaratustra
temas como o niilismo e o m da metafísica. Por ora não adentraremos na
especicidade de todas essas obras; o que vale a pena destacar aqui é que,
na tentativa de traçar um outro início para o pensamento, Heidegger não
se movimenta mais num tipo de linguagem própria ao pensar conceitual
losóco, tal como até então ocorrera na história da losoa. Enquanto
superação da metafísica, o outro início exige que se instaure um vínculo
originário entre o pensar e a questão do ser.
6
Posto isso, podemos então considerar que a inserção da arte no
contexto da viragem só pode ser compreendida tendo em vista essa mudança
radical da linguagem utilizada por Heidegger. Em sua introdução de A origem
da obra de arte, Gadamer relata o caráter de “surpresa” que o ensaio causou
nos círculos intelectuais alemães que estavam acostumados com a linguagem
heideggeriana de Ser e tempo. Segundo ele, a “nova sensação losóca” trazida
pelo ensaio não está simplesmente no fato de que “agora a arte foi incluída no
princípio hermenêutico da autocompreensão humana em sua historialidade”,
mas principalmente porque “foi a surpreendente nova conceitualização que
se antecipou em meio a esse tema” (GADAMER, 2007, p. 69). Ou seja: para
pensar a relação entre arte e verdade, bem como a ligação entre ser e ser-aí
em meio ao destino histórico do ser, Heidegger introduz no ensaio novos
elementos que permaneciam impensados no interior de Ser e tempo. Nessa
direção, duas noções se destacam: terra e mundo.
Se em Ser e tempo tínhamos apenas o conceito de mundo como
horizonte de sentido no qual a verdade irrompe, agora, como um contra
conceito [Gegenbegri] complementar, tem-se a terra. A noção de terra
pode ser considerada uma inovação no pensamento de Heidegger, que
possibilita um rompimento com uma forma de pensar especíca que já
se anuncia pela viragem. Com isso, além de complemento ontológico ao
conceito de mundo, tal noção possibilita pensar o vínculo fundamental
entre verdade, arte e ser-aí, corroborando uma melhor compreensão do
sentido do velamento e des-velamento do ser expresso pela expressão grega
 Sobre a relação entre a superação da metafísica e o outro início, cf. Pöggeler (2001).
Juliano Rabello
66 |
Alétheia. Assim, a noção de terra permite uma ampliação do que o próprio
conceito de mundo já trazia desde Ser e tempo. Com efeito, é importante
ressaltar, como nota Gadamer (2007, p. 69), que dentro do contexto da
viragem tais conceitos aparecem no pensamento de Heidegger como uma
tentativa de conciliação entre pensamento e poesia (separados na tradição
losóca), na medida em que o lósofo assume, pela linguagem poética,
uma nova forma de pensar a relação originária entre ser-aí e ser.
Desse modo, no contexto de A origem da obra de arte, poesia é
a noção que articula, na esteira dos conceitos de terra e mundo, o modo
de dizer fundamental que promove o acontecimento da verdade. Para
Heidegger, a linguagem poética abrigaria uma forma mais autêntica de
pensar a originalidade do ser e da verdade, pois, diferentemente da losoa,
que busca uma nalidade causal para os entes, ela não depende de nada
além de sua pura gratuidade; ela visa pronunciar aquilo que é essencial,
trazer à luz o mistério do ser, sua intimidade com a nitude humana. Sua
linguagem é, portanto, a-conceitual, não se orienta pelo enquadramento
dos entes em categorias lógico-formais, mas sim por aquilo que o próprio
ente manifesta em sua essência fundamental. Nesse sentido, admitir a
linguagem da poesia é, para Heidegger, um retorno originário à dimensão
da Alétheia, tal como esta era concebida pelos gregos na época anterior
ao esquecimento do ser. Na medida em que, para o lósofo, a metafísica
enquanto história do esquecimento do ser teria chegado ao seu m (cf.
HEIDEGGER, 1979, p. 71-72), esse retorno é, na verdade, a rearticulação
entre pensar e ser, que se estabelece como tarefa de engendramento dum
outro início para o pensamento ocidental. Trata-se aqui, como arma
Dubois (2004, p. 111), “de passar do primeiro começo, o envio grego da
determinação do ser do ente como presença, a um outro começo”. Este,
com efeito, é perseguido por Heidegger por meio das interpretações que o
lósofo fará de alguns poetas, principalmente do poeta alemão Hölderlin.
7
Dessa forma, inserindo-se dentro da tentativa de ultrapassar os conceitos
da metafísica tradicional, a reexão heideggeriana sobre a arte dentro do
contexto da viragem apresenta-se não como uma interpretação estética ou
uma teoria da arte, mas como dimensão ontológica do vínculo originário
que se estabelece entre ser-aí e o destino histórico da verdade do ser.
A inuência de Hölderlin no pensamento de Heidegger é decisiva para compreendemos a concepção
heideggeriana de arte, tal como a relação entre esta e a noção de poesia no contexto da viragem. Podemos
perceber que tal relação já se anuncia ao nal do ensaio A origem da obra de arte, e que posteriormente é
desenvolvida por Heidegger em outros textos que o lósofo escrevera a partir da década de 1930.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 67
2.2 a ctica de heidegger às cOnceões tradiciOnais da estica
2.2.1 a cOisa, Os instrumentOs e as Obras
O fato de A origem da obra de arte ser um texto em que Heidegger
nos introduz numa perspectiva ontológica da obra de arte, distinta da de
outras concepções vinculadas à estética tradicional, anuncia-se logo em
seus primeiros parágrafos. Como seu próprio título indica, nesse ensaio o
problema da arte é, para Heidegger (2004, p. 7), o problema da origem:
Origem signica aqui aquilo a partir do qual e pelo qual algo é
aquilo que é e como é. Àquilo que algo é, como é, chamamos a sua
essência [Wesen]. A origem de algo é a proveniência da sua essência.
A pergunta pela origem da obra de arte pergunta pela proveniência
da sua essência.
O termo “origem”, aqui, não se refere à ideia de proveniência da
arte ou de uma “causa” da qual decorreria um efeito recíproco. Trata-se,
na realidade, de buscar qual a vigência da arte, o fundamento a partir
do qual a obra constitui-se como obra, sua verdade. Em outras palavras:
pensar a questão da origem da obra de arte implica saber o que a obra é
e como ela é. Ora, a arte é pelo modo como ela acontece como arte, ou
seja, pelas obras. Nessa direção, Heidegger (2004, p. 7-8) destaca os dois
elementos que estão em jogo quando interrogamos pela essência da obra, o
artista e a obra: “o artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista.
Nenhum é sem o outro”. Têm-se assim, diz Heidegger, uma circularidade
8
que nos obriga a penetrar no problema da origem. No entanto, como o
lósofo adverte, esses dois polos não podem ser pensados separadamente,
pois ambos reivindicam um terceiro elemento que os unem, a saber, a
própria arte. “Em cada caso, o artista e a obra são, em si [mesmos] e na sua
relação recíproca, mediante um terceiro [termo], que é o primeiro, sendo
por ele [e] a partir dele que o artista e a obra de arte adquirem o seu nome
– mediante a arte” (HEIDEGGER, 2004, p. 7-8). A arte é, assim, o plano
de consistência no qual artista e obra se denem
9
e sem o qual ambos não
Em vários textos de Heidegger podemos observar a questão da circularidade hermenêutica como recurso
textual que difere da lógica proposicional. Podemos constatar, por exemplo, em Ser e tempo, § 31, §32 e §33, na
Analítica Existencial”, o desenvolvimento da circularidade da compreensão, cf. Heidegger (2012, p. 407-453).
“Quando ele descreve a circularidade entre artista e obra para explicar a origem da arte, está registrando a
diferença entre a intensão subjetiva e a realização da obra em sua verdade, em suma, está diferindo a busca do
destino poético e não do destino do autor” (CAMPOS, 1992, p. 40).
Juliano Rabello
68 |
existiriam. Mas não deveríamos ter, de antemão, uma denição para arte?
Anal, o que é a arte?
Evidentemente, quando fazemos tal interrogação, de súbito surge
a pretensão de querer estipular os critérios que permitiriam denir o que, de
fato, fosse uma obra de arte. Segundo Heidegger, tais critérios nos colocam
diante de uma dupla diculdade: a primeira é a de saber se é possível,
a partir de uma avaliação comparativa do conjunto de características de
obras existentes, deduzir a essência da arte. Se não temos conhecimento
ainda do que seja a arte, como saber se o que analisamos são realmente
obras de arte? A segunda, por outro lado, é a de que seria forçoso partir de
conceitos superiores que já determinariam a priori o que fosse a arte, pois
tal postura corresponderia a um “salto” por cima do que fosse expresso
pela realidade das próprias obras. Dessa forma, o lósofo arma: “Todavia,
do mesmo modo que não se consegue alcançar a essência da arte pela
recolha de notas características a partir de obras de arte que se apresentam
à contemplação, também não pode sê-lo por uma dedução a partir de
conceitos mais elevados” (HEIDEGGER, 2004, p. 9). Nesse sentido, para
Heidegger, o que está em questão não é simplesmente uma conceitualização
ou denição da arte. Trata-se, na realidade, de pensar, a partir do campo
de essencialização da obra de arte, a questão do próprio ser e da verdade
que nela vigora, pois, como ressalta Gadamer (2007, p. 75): “O estudo de
Heidegger não se limita a dar uma descrição apropriada do ser da obra de
arte. É muito mais o seu desejo losóco central de conceber [begreifen] o
ser mesmo como um acontecer da verdade que se respalda nessa análise”.
Portanto, é necessário, segundo o lósofo, prescindir de todos os conceitos
estéticos previamente dados, que obstruem o acesso à arte, detendo-se lá
onde ela se manifesta, a saber, na realidade efetiva das próprias obras.
O procedimento inicial de Heidegger em A origem da obra de
arte será então buscar essa realidade efetiva no aspecto que de imediato
aparece quando estamos diante de uma obra de arte, a saber, o caráter
de coisa (Dinghafte). Eis o que nos é dado em primeira instância, pois
dele é que são retiradas suas propriedades, seja uma cor, um som, uma
pedra, uma madeira, etc.: “Há algo de pedra na obra arquitetônica. Há
algo de madeira na obra de talha. Há algo colorido na pintura. Há algo
de vocal na linguística. Há algo de sonoro na música” (HEIDEGGER,
2004, p. 11). Não há, portanto, como separar a obra de seu caráter de
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 69
coisa, pois, enquanto objeto de uma fabricação, está contida nela sua
materialidade. Dessa forma, sendo a coisa a infraestrutura material o que
de imediato se apresenta quando temos diante dos olhos uma obra de arte,
a primeira exigência colocada nesse contexto é caracterizar em que consiste
propriamente a coisidade da coisa. Tal exigência se impõe, pois, segundo
Heidegger, visto ser a obra de arte um ente que se apresenta materialmente
no mundo, é necessário investigar se é possível diferenciar o “ser-coisa” do
ser-obra” ou se podemos a partir da essência da coisa extrair a essência da
obra. Heidegger procura então mostrar em que medida as interpretações
sobre a coisa oferecidas pela tradição losóca são insucientes quando
pretendemos adentrar na compreensão da essência da obra de arte.
Nessa direção, o lósofo apresentará três interpretações de coisa
dadas pela tradição; são elas, respectivamente: suporte de suas características,
multiplicidades de sensações e matéria enformada.
10
Segundo ele, essas
interpretações inviabilizam pensar o que seja a própria coisa, pois se
movimentam dentro da compreensão metafísica de “todo ente em geral”,
que, além de tomar a coisa como algo pressuposto e evidente por si mesmo,
não permite distinguir os vários âmbitos em que a coisa se apresenta. Nessa
concepção, portanto, tudo pertence ao gênero das coisas, sejam elas meras
coisas do mundo cotidiano, os objetos mais simples como uma pedra, um
utensílio, como as mais distantes, a morte, o juízo nal, etc. Mesmo o que
não se mostra, a coisa oculta, que não está acessível, é designada coisa.
Dessa forma, Heidegger (2004, p. 11) arma: “vemo-nos reconduzidos
do âmbito mais vasto, no qual tudo é uma coisa (coisa = res = sem = um
ente) – também as coisas supremas e nais – ao domínio circunscrito das
meras coisas”.
Com isso, para Heidegger (2004, p. 36), apreender o caráter de
coisa pelos conceitos tradicionais é uma tentativa fracassada,
[...] não apenas porque estes conceitos de coisa não alcançam o
caráter de coisa, mas porque, com a pergunta pelo seu suporte ao
modo da coisa, forçamos a obra com uma antecipação pela qual
obstruímos para nós [mesmos] o acesso ao ser-obra da obra.
Na realidade, o objetivo do lósofo é mostrar que, ao ter
fundamentado toda compreensão do ser do ente no caráter de
10
Para um detalhamento destas três concepções de coisa, cf. SADZIK, Joseph. Esthétique de Martin Heidegger.
Paris: Éditions Universitaires,1963.
Juliano Rabello
70 |
coisa, tais interpretações teriam obstruído tanto o acesso às obras
como às próprias coisas. Ademais, para Heidegger, seria impossível
discernir os três modos em que se expressa o caráter de coisa, a
saber, as meras coisas, os utensílios e as obras de arte, pois, se, por
um lado, todo ente em sua materialidade é uma coisa, por outro há
de se diferenciar as meras coisas (a coisa bruta) dos entes fabricados,
entre os quais podemos incluir tanto utensílios de uso como as obras
de arte. Eis, portanto, a diculdade que a interpretação tradicional
da coisa nos apresenta:O utensílio apresenta uma anidade com a
obra de arte, na medida em que é algo produzido [Hervorgebrachte]
pela mão do homem. No entanto, a obra de arte, pelo seu estar-
presente auto-suciente, assemelha-se antes à mera coisa, que é
espontânea e a nada impelida. Todavia, não incluiremos as obras de
arte entre as meras coisas. Geralmente, as coisas de uso que estão à
nossa volta são as coisas mais imediatas e as que o são em sentido
próprio. Assim, o utensílio, sendo determinado pela modalidade da
coisa [Dinglichkeit], é em parte uma coisa, e é, porém, algo mais;
é em parte, ao mesmo tempo obra de arte, e é, porém, menos que
isso, porque não tem a auto-suciência da obra de arte. O utensílio
tem uma peculiar posição intermediária entre a coisa e a obra,
supondo que uma tal ordenação, que faz o ajuste de contas [entre
eles], seja lícita (HEIDEGGER, 2004, p. 22-23).
Heidegger explica que embora toda obra guarde em si o aspecto
de coisa como sua infraestrutura, tal constatação não caracteriza em que
consiste propriamente a essência da obra, pois à obra parece pertencer um
algo a mais”, uma superestrutura, que a coloca num plano mais elevado,
não sendo redutível nem a mera coisa, nem a qualquer outro instrumento
utilizável. “A obra de arte, ultrapassando o seu caráter de coisa é ainda
algo de outro. É este algo de outro que aí está que constitui o artístico
(HEIDEGGER, 2004, p. 11). Mais adiante no texto, Heidegger (2004,
p. 73) arma:
[...] os modos de pensar que desde há muito são correntes agridem
o caráter de coisa da coisa e fazem predominar uma concepção
do ente no seu todo que continua a ser tão incapaz de apreender
a essência do utensílio e da obra, quanto nos torna cegos para a
essência originária da verdade.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 71
Como vimos, em Ser e tempo já estava presente uma crítica ao modo
como a tradição teria compreendido o acesso aos entes, na qual estes não
se apresentariam como objetos para um sujeito, mas por um desvelamento
que se dá na abertura do ser-aí ao mundo, seu ser-no-mundo. No terceiro
capítulo de Ser e tempo, que tem por título “A mundidade do mundo” (§14-
24), Heidegger trata da análise da cotidianidade e nos mostra que o acesso
aos entes não se dá pela via contemplativa ou teórica, mas numa relação
de manuseio na qual os utensílios se apresentam como entes disponíveis ao
uso, evidenciando, assim, o aspecto prático ou utilitário dessa relação. Com
isso, Heidegger nos dá uma ampla explicitação do horizonte pelo qual as
coisas se mostram acessíveis à compreensão originária. Esse horizonte é, com
efeito, a própria descrição da condição fática na qual o ser-aí se constitui
enquanto ser-no-mundo. Porém, o tratamento dado por Heidegger à
questão da instrumentalidade em Ser e tempo ainda não é suciente para
abarcar a própria essência da coisa,
11
muito menos explicitar qual a diferença
entre essas, os utensílios e a obra de arte. Isso só será possível no contexto
de A origem da obra de arte, pela destruição dos conceitos tradicionais da
estética, na qual destacamos como ponto central a crítica que o lósofo fará
da clássica interpretação da obra de arte como união entre matéria (ύλη)
e forma (μορφή). Explicitaremos a seguir essa interpretação tradicional da
estética como requisito necessário para compreendermos apropriadamente a
concepção heideggeriana de obra de arte.
2.2.2 matéria e FOrma
Sempre que pensamos a respeito da atividade artística, reportamo-
nos ao fato de que para constituir determinada obra de arte o artista deve
ter em vista a seleção dos materiais que servirão para seu trabalho e que
seu intento levará em conta que o produto nal, o resultado, será uma
forma aplicada à matéria. Portanto, parece evidente que toda obra de arte se
apresenta, enquanto produto de uma fabricação, como sendo uma matéria
11
Como ca claro no decorrer do ensaio, o caráter de coisa não permite o acesso à essência da obra. Ao contrário,
como veremos a seguir, é a obra de arte que possibilita que a verdade dos entes venha à tona, ou seja, é a obra
de arte que permite que, por ela, se tenha uma compreensão do ser dos entes, na medida em que ela assume
a função de ser um acontecimento (Ereignis) da verdade. Isso se torna mais claro através da descrição feita por
Heidegger a partir do quadro Um par de sapatos, de Van Gogh, em que o par de sapatos da camponesa, ao invés
de estar referido a um mero objeto real do cotidiano, propiciaria o próprio desvelamento da verdade do ser do
ente que é posta em acontecimento na obra.
Juliano Rabello
72 |
enformada, ou seja, na medida em que é um ente que se apresenta no mundo,
a obra se constitui por uma aparência exterior, um είδος que provém do
trabalho do artista, semelhantemente ao jarro, ao machado ou ao martelo,
enquanto utensílios fabricados, aos quais também podem ser aplicados tais
conceitos, pois ambos possuem o traço da mão humana. Sendo assim, como
já mencionamos, o utensílio está a meio caminho entre a mera coisa e a obra;
ele ocupa uma “posição intermediária”, podendo ser considerado, por um
lado, uma coisa, e, por outro, uma obra. Porém Heidegger nos mostra que,
diferentemente das meras coisas, os utensílios, enquanto entes disponíveis
ao uso, possuem, além do material do qual são feitos, uma forma que
predetermina sua nalidade no mundo. Heidegger dirá, portanto, que
matéria e forma não seria a designação de todo e qualquer ente, mas esse
par de conceitos refere-se, especicamente, à essência do utensílio, ou seja,
matéria e forma caracterizam a essência do ente que se dene pelo seu
caráter de serventia, de utilidade. Como o lósofo arma: “Matéria e forma,
enquanto determinações do ente, estão radicadas na essência do utensílio.
Este nome indica o expressamente elaborado em vista de sua utilidade e
do seu uso. Matéria e forma não são, de modo nenhum, determinações
originárias da coisidade da mera coisa” (HEIDEGGER, 2004, p. 22).
Segundo Heidegger, na medida em que o utensílio ocupa uma
posição intermediária entre a coisa e a obra, matéria e forma constituem
um único esquema de visão que se projetou pelo pensamento ocidental.
Com isso, esse par conceitual inviabilizou a tentativa de saber a qual gênero
de coisas ele pode ser aplicado, pois a tradição o teria pensado como a
caracterização de todo ente em geral. Assim, como nota Casanova (2013,
p. 139), “absolutizando a postura teórica e assumindo essa postura como
se fosse a única possível [...] o pensamento tradicional se dirigiu aos entes
munido exclusivamente da pergunta acerca de sua quididade”. Sendo
assim, tendo início com a metafísica platônica e a teoria da substância de
Aristóteles, passando pela Idade Média e se estendendo pela modernidade,
essa interpretação, segundo Heidegger (2004, p. 20), sustentará a maneira
de compreender a essência da obra, servindo assim de “esquema conceptual
por excelência de toda teoria da arte e toda estética”. No entanto, como
o lósofo adverte, essa concepção não corresponde originariamente ao
domínio da arte, pois na tradição losóca vemos esses conceitos serem
relacionados a diversos âmbitos da losoa:
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 73
Este facto incontestável não prova, porém, nem que a distinção
entre matéria e forma esteja fundamentada de forma suciente,
nem que ele pertença originariamente ao âmbito da arte e da obra
de arte. Além disso, o âmbito de validade deste par de conceitos
já há muito que vai para além do terreno da estética. Forma e
conteúdo são conceitos universais, sob os quais se deixa subsumir
tudo e mais alguma coisa. Se à forma for até mesmo atribuído
o racional e à matéria o i-[r]racional, se se considerar o racional
como sendo o lógico e o i-[r]racional como o ilógico, e se, assim
a relação sujeito-objeto for ligada ao par de conceitos ‘matéria e
forma’, então o representar dispõe de uma mecânica de conceitos
irresistível (HEIDEGGER, 2004, p. 20).
O problema central de toda crítica de Heidegger a essa
interpretação está no fato de que, ao ter se fundamentado nesse par de
conceitos, a estética moderna teria se orientado por uma concepção
predominantemente metafísica, culminando assim em considerações
subjetivistas acerca da obra de arte. Desse modo, quando relacionada à
clássica oposição de sujeito-objeto, a estética passa a compreender a obra
como um conteúdo ôntico suscetível de avaliação, de um juízo, reduzindo
a obra a um mero objeto, uma coisa material destinada ao prazer estético:
A estética toma a obra de arte como objecto, nomeadamente como o
objecto da αίσθησις, do perceber sensível em sentido lato. A este perceber
chamamos hoje ‘vivenciar’ [Erleben] (HEIDEGGER, 2004, p. 85).
A expressão grega aísthesis (αἴσθησις), de onde provém o termo
estética tal como cunhado por Baumgarten no século XVIII, move-se
nessa concepção, em que a arte, enquanto conhecimento do sensível,
objeto da αἴσθησις, irá fundamentar a compreensão da obra de arte como
fruição do belo, e, portanto, um objeto de vivência, do gosto, das emoções
e sentimentos. Na modernidade, o conceito de belo legitimou-se como
especicidade da reexão sobre a arte e ocupou uma posição privilegiada,
passando a ser o conceito tematizado dentro da tradição estética. Nessa
perspectiva, tendo como seu objetivo produzir o belo, a essência da obra
de arte passa a residir na racionalidade do artista ou do contemplador
que lhe daria uma forma ideal construída subjetivamente, e, com isso, a
sensibilidade do sujeito torna-se o único critério que constituirá a verdade
sobre o objeto-obra. No entanto, para Heidegger, ao sobrepor o caráter
Juliano Rabello
74 |
ôntico ao ontológico, tal concepção afasta o homem da experiência
originária com a verdade. Assim, a estética tradicional, ao se fundamentar
na noção de vivência estética, bloqueia a possibilidade de a arte ser tomada
em seu próprio acontecer originário, como advento que funda sentido para
o ser-aí em meio à verdade do ser, reduzindo a obra à simples relação
sujeito-objeto, e, portanto, a uma relação de conhecimento.
Numa passagem do posfácio de A origem da obra de arte, ao
referir-se à sentença hegeliana do m da arte, Heidegger questiona o fato
de essa não ser mais o modo essencial do acontecimento da verdade para o
destino histórico do homem:
É o modo como o homem vivencia a arte que deve prestar-se
a esclarecer-nos acerca da sua essência. A vivência [Erlebnis] é a
fonte canónica, não só da fruição artística, mas mesmo da criação
artística. Tudo é vivência. Porém, talvez aconteça que a vivência
seja o elemento no qual a arte morre. A morte dá-se tão lentamente
que precisa de algumas centenas de anos (HEIDEGGER, 2004,
p. 85-86).
A partir dessa passagem, podemos constatar, por um lado,
uma crítica ao esvaziamento cultural que a modernidade promoveu
ao transformar a vivência das obras em comércio artístico (experiência
essa muito presente a Heidegger no início do século XX), e, por outro,
a denúncia do próprio destino do pensamento no ocidente. Embora os
objetivos de Heidegger para com a apreciação da tese do m da arte sejam
diferentes dos de Hegel, como nota Campos no livro Arte e verdade, com
tal passagem o lósofo anuncia o sentido histórico na relação entre arte e
verdade. Para Campos (1992, p. 36), “aí está implícito todo o pensamento
metafísico do ocidente, pensamento que corresponde a uma verdade do
ente já acontecida, cuja consequência é a ‘morte da arte’”. Para Heidegger,
é por meio dessa sentença hegeliana que se deve decidir a respeito de
saber se a arte ainda é um modo essencial da verdade para o “nosso ser-aí
histórico” ou se “já não o é”. Em todo caso, como o lósofo adverte, a
decisão acerca dessa sentença ainda não foi tomada, permanecendo em
vigor (HEIDEGGER, 2004, p. 87).
Torna-se claro, portanto, que a pretensão de Heidegger em
A origem da obra de arte não é meramente desenvolver uma “temática
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 75
estética”, mas, ao colocar em questão a falta de sentido da arte e o fato
dessa não congurar mais um modo essencial de ligação do homem com a
verdade do ser, Heidegger estaria inserindo a arte dentro da “problemática
ontológica fundamental”, e, ao mesmo tempo, colocando em evidência o
esquecimento dessa mesma verdade na forma como o homem vivencia as
obras nas épocas históricas.
Se recorrermos às considerações que Heidegger faz em Nietzsche,
no capítulo intitulado “A vontade de poder como arte”, a respeito da origem
da estética no ocidente, podemos ver como o lósofo entende seu processo
de desenvolvimento. Para ele, embora o termo “estética” seja uma criação
moderna, a partir de Platão e Aristóteles a concepção grega de arte já se
engendrava pelos mesmos pressupostos metafísicos que fundamentarão o
modo especíco sobre o qual o homem se relacionará com a arte nas épocas
posteriores. Segundo Heidegger, ao ser pensada pelas categorias da losoa,
a arte se projeta na história pelo mesmo princípio do esquecimento que teria
marcado o destino do pensamento ocidental desde suas origens:
Nos gregos, a grande arte e a grande losoa corriam, a princípio,
paralelamente. A estética só começou aí, por sua vez, no instante em
que a grande arte assim como a grande losoa chegaram ao seu m.
Por esse tempo, na época de Platão e Aristóteles, foram cunhados
no contexto da estruturação da losoa como um todo os conceitos
que futuramente passaram a delimitar o campo de visão de todo
questionamento sobre a arte (HEIDEGGER, 2005, p. 64).
Aqui temos a referência explícita de como Heidegger compreende
a arte frente aos desdobramentos históricos do ocidente. Há a “grande arte”
e a “grande losoa”. Essas, com efeito, mantinham todo seu esplendor
quando ambas estavam ligadas à essência primitiva da vida e cultura do
povo grego. Nesse contexto, anterior à metafísica de cunho platônico-
aristotélico, a arte era marcada por sua vinculação essencial com o ser. Este
era preservado como presença, totalidade, harmonia, permitindo ao homem
uma experiência com sua verdade originária. Porém, a transição para a
metafísica promove a ruptura da unidade essencial entre o homem e o ser.
Para Heidegger, é na passagem do pensamento pré-socrático para a losoa
metafísica que essa forma de experienciar o ser se perdeu. A separação entre
a phýsis originária e o homem marcará decisivamente o rompimento com
Juliano Rabello
76 |
o pensar essencial, determinando a época do esquecimento do ser que se
projetará no ocidente. Como nota Nunes (2008, p. 217), para Heidegger,
o ato de nascimento da Filosoa como metafísica, rmada nos diálogos
platônicos, e consolidada nos tratados aristotélicos, assinala o início de
uma descontinuidade em relação à phýsis, que permeará toda a História do
ser até nossos dias”.
Com efeito, no plano da arte, tal transformação é marcada pela
identicação dos conceitos de matéria e forma com algumas noções que
foram determinantes no processo de consolidação da concepção tradicional
da estética. Embora na tradição losóca o binômio matéria e forma seja
uma herança do pensamento aristotélico, Heidegger já identica em Platão
seu estado germinal pelas noções de είδος e ιδέα, constituindo assim
o modo de apreensão de todo ente em geral pelo seu “aspecto”. Como
podemos ler na seguinte passagem de Nietzsche:
Platão é o fundador de tal concepção: aspecto, είδος, ιδέα. Onde
quer que o ente seja apreendido como ente e diferenciado de um
outro em vista de seu aspecto, sua demarcação e sua composição
ôntica entram em cena como delimitação exterior e interior. O
delimitador é, contudo, a forma, e o delimitado é a matéria. O que
vêm à tona no campo de visão é trazido para essas determinações logo
que a obra de arte como aquilo que se apresenta é experimentada
segundo o seu είδος, φαίνεσται (HEIDEGGER, 2005, p. 64).
Com isso, a partir dessa concepção, tem início para Heidegger
um modo de compreender a arte que se agravará com seus sucessores,
atravessando o Renascimento, e que resultará na dominação técnica da
natureza na Idade Moderna. Esse processo percorre toda a história do
ocidente, desde a perda do sentido originário expresso pela noção de
téchne, noção essa pela qual os gregos compreendiam o fazer artístico, até a
mudança radical na forma como o ente será compreendido na modernidade.
Essa transformação caracteriza-se pelo advento da racionalidade na qual o
homem tomará a si mesmo como medida para toda e qualquer compreensão
do ente. Como Heidegger (2005, p. 66-67) arma: “O homem e seu livre
saber em torno de si mesmo e de sua posição no interior do ente torna-
se, agora, o lugar da decisão quanto ao modo como o ente precisa ser
experimentado, determinado, congurado.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 77
Nesse sentido, a compreensão do ente na qual o homem se
vinculava originariamente sofre uma ruptura e tem início o pensar como
representação do eu singular, ou seja, da certeza metafísica do cogito que
estabelecerá o acordo ou desacordo com a verdade. Dessa forma, o sentido
do ser cai no esquecimento e é substituído pela determinação lógica dos
conceitos. Nesse contexto, a arte receberá então uma caracterização ôntica
passando a ser entendida com um caráter inferior dentro dos graus de
adequação à verdade. Nas palavras de Heidegger:
Na metafísica, isso se mostra no fato de a certeza de todo ser e
de toda verdade estar fundada na autoconsciência do eu singular:
ego cogito me cogitare. O encontrar-previamente-a-si-mesmo no
próprio estado, o cogito me cogitare provê também o primeiro
objeto’ assegurado em seu ser. Eu mesmo e meus estados somos
o ente primeiro e propriamente dito; tudo o que de outro modo
possa ser interpelado como ente é medido a partir de e de acordo
com esse ente assim certo. Meu estado e minha condição, o modo
como me encontro junto a algo, são essencialmente conormativos
para o modo como eu descubro as coisas e tudo o que vem ao meu
encontro (HEIDEGGER, 2005, p. 67).
Têm-se a partir daí, segundo Heidegger, o declínio da arte, que o
lósofo identicará com a consumação da “grande arte”, na qual encontramos
em Hegel seu máximo expoente, e que, na sequência, se consolidará com o
projeto wagneriano da obra de arte integral e com o niilismo expresso pela
desvalorização dos valores supremos” presente na crítica de Nietzsche. Com
isso, o lósofo arma: “No instante histórico em que a estética conquista o
seu ápice, a sua maior amplitude e o seu maior rigor possíveis, a grande arte
chega ao m” (HEIDEGGER, 2005, p. 66-67).
Para Heidegger, ao constituir-se pela concepção metafísica de
matéria e forma, a estética moderna erige-se sob o mesmo processo de
esquecimento do ser que se manifestou historicamente pela noção de
verdade como adequação entre pensamento e coisa, e, com isso, na medida
em que a estética toma o ente pelo ser, perde de vista o sentido originário
da Alétheia pensada na origem do pensamento ocidental.
Portanto, segundo Heidegger, para elucidarmos a questão sobre a
verdade da obra de arte não podemos tomar a referência de cunho racional
Juliano Rabello
78 |
e iluminista da modernidade, ou seja, um ponto de partida teórico e
subjetivo, pois ainda que, por um lado, a obra possa ser entendida como
uma produção que tenha como objetivo o prazer sensível de um sujeito
(o prazer do belo, por exemplo), ela possui, por outro, uma autonomia
própria em relação aos outros entes do mundo, sejam instrumentos, sejam
meras coisas que possam ser subjetivamente apreendidas. Como o lósofo
argumenta, não é por ser uma coisa material produzida que a obra se dene
como obra, mas por promover a erupção do ser no ente, no qual o que
aparece é o desvelar da verdade na obra.
Nesse sentido, devemos considerar que a busca pela essência da
arte tal como Heidegger coloca em A origem da obra de arte não trata de
uma compreensão de um objeto especíco que identicamos como arte,
mas trata de pensar, através da obra, a verdade do ser que nela vigora. Com
isso, podemos dizer que, para Heidegger, a pergunta pela arte, pela origem
da arte, transforma-se na pergunta pelo ser. Nessa direção, sua interrogação
tem como escopo pensar a possibilidade de ela ainda ser uma forma de
expressão autêntica da verdade e seu vínculo originário com a existência
histórica do homem, vínculo este que fora esquecido desde a origem do
pensamento ocidental.
2.3 O acOntecimentO OrigináriO da verdade na Obra de arte
2.3.1 explicitaçãO das nOções de mundO e terra
O percurso do pensamento de Heidegger que apresentamos até aqui
teve como objetivo mostrar os limites das interpretações tradicionais sobre a
obra de arte. Como vimos, para o lósofo, os conceitos correntes da estética,
que buscam a compreensão da obra de arte a partir de sua coisidade ou de
seu caráter utensiliar caracterizam-se como tentativas insucientes. Tendo
isso em vista, é necessário, segundo Heidegger, buscar a essência da obra de
arte não do lado da coisa ou dos utensílios, mas através do que é a própria
obra no sentido de esta “abrir por si mesma” o campo de essencialização no
qual a arte se dá. O questionamento então se inverte: não é analisando as
categorias da obra, sua infraestrutura material, que chegamos à sua essência;
ao contrário, é a própria obra que desvela o horizonte de signicações em
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 79
que os entes se inserem.
12
Heidegger então reformula a interpretação de
matéria-forma dada pela tradição, inserindo o par de outros dois inéditos
conceitos: terra e mundo.
Para explicitar tais noções o lósofo vai se valer de alguns
exemplos de obras de arte especícas para mostrar como a essência da obra
de arte é um acontecimento da verdade. O primeiro exemplo utilizado por
Heidegger é o conhecido quadro Um par de sapatos, pintado por Van Gogh.
Não é por acaso que o lósofo vai utilizar justamente essa obra. O objetivo
de Heidegger é mostrar – sem recorrer a nenhum conceito prévio – como a
partir do ser-obra da obra é possível uma superação do ser-coisa da coisa ou
ser-utensílio do utensílio. Nessa direção, poderíamos levantar, a princípio,
o seguinte questionamento: ao utilizar uma obra de arte na qual o artista
faz uma representação pictórica de um utensílio (par de sapatos) como
exemplo, Heidegger não estaria caindo nas mesmas armadilhas conceituais
da tradição, ou seja, no binômio matéria-forma?
De fato, o par de sapatos é uma coisa de uso, um produto que
serve a um usuário (no caso, a camponesa). No entanto, Heidegger diz que,
para além dessa realidade óbvia, o par de sapatos apresenta uma dimensão
inteiramente nova, a qual não é possível ser esgotada simplesmente no
caráter de serventia própria desse ente. Para Heidegger, ao retratar o par de
sapatos, Van Gogh não está representando apenas um objeto do cotidiano
da camponesa, pois este transcende os limites do próprio campo utensiliar
no qual ele se encontra.
13
Se observarmos atentamente, o par de sapatos
expõe uma abertura (Erschlossenheit) em que se revela uma totalidade de
signicados que descortina o âmbito de sentido no qual as relações que
fazem parte da vida da camponesa se desvelam: seu cansaço, a fertilidade
do campo, a dureza de seu dia, o trato com a terra, seu labor sofrido, etc.
Essas relações, com efeito, só podem se dar dentro do mundo rural que a
camponesa habita, e no qual o par de sapatos se revela, não pelo caráter de
serventia, mas como um ente que repousa no que Heidegger (2004, p. 29)
chama de abilidade: “É certo que o ser-utensílio reside nesta serventia.
12
Temos presente aqui uma perspectiva fenomenológica de abordagem da obra de arte no pensamento de
Martin Heidegger.
13
Como Heidegger adverte, a princípio, o referido quadro de Van Gogh não deixa claro se o par de sapatos
ocupa uma dimensão espacial em que ele se encontra, pois na pintura não há uma referência a um lugar
especíco em que possamos situar-nos. Por outro lado, também não é possível dizer se tal objeto retratado é uma
representação de um ente real ou ctício.
Juliano Rabello
80 |
Porém, esta serventia ela mesma repousa na plenitude de um ser essencial
do utensílio. Chamamos de abilidade [Verläßlichkeit].”
A abilidade é o repousar-se em si do utensílio, no qual
encontramos o abrigar de sua essência. Ela é o que oferece a conança, ou
seja, o caráter de permanência que assegura a proximidade da camponesa
com os entes que fazem parte de sua vida. Essa proximidade, porém, não
se dá pela via teórica. Ao utilizar os sapatos em sua dura realidade do
campo e imersa no trabalho, a camponesa não pensa em sua utilidade; ela
simplesmente calça os sapatos e os esquece, porque neles cona. Quanto
menos a camponesa atentar para o par de sapatos, mais ele se apresenta,
em seu repousar-se em si mesmo, como ente que – para além da nalidade
utensiliar – cumpre sua abilidade. Como Heidegger (2004, p. 29) arma:
A serventia do utensílio é, todavia, apenas a consequência essencial da
abilidade.” Portanto, é em virtude dela – da abilidade – que “a camponesa
é inserida no chamamento silencioso da terra; em virtude da abilidade do
utensílio, ela está certa de seu mundo” (HEIDEGGER, 2004, p. 29).
A noção de abilidade é o primeiro indicativo que abre caminho para
penetrarmos no sentido ulterior da viragem do pensamento heideggeriano,
pois é por meio dela que Heidegger chega às noções de terra e mundo. Como
arma Duque-Estrada (1999, p. 73), a abilidade “é entendida como elo
indissolúvel, como ligação íntima [...] entre ‘terra’ e ‘mundo’”.
Como podemos constatar no decorrer do texto, estas noções
parecem anunciar uma tentativa de superação do modo de tratamento dado
ao ser do utensílio em relação ao que encontramos formulado nos textos
anteriores à década de 1930. Em Ser e tempo, Heidegger já havia tratado
exaustivamente do modo de ser do utensílio ao referir-se ao comportamento
do ser-aí na cotidianidade mediana, na qual os entes se desvelam como
utensílios de uso.
14
No entanto, em A origem da obra de arte, ao inserir as
noções de terra e mundo, o lósofo nos mostra que a mera caracterização
do campo utensiliar não dá conta da abrangência de signicados que a obra
de arte possibilita. Como podemos ver a partir da descrição da pintura de
Van Gogh, na obra de arte é a própria essência do utensílio que é desvelada:
A pintura de Van Gogh é o abrir-se [Erönung] daquilo que o utensílio,
o par de sapatos de camponês, em verdade é. Este ente sai [heraustritt]
para o não-estar-encoberto do seu ser” (HEIDEGGER, 2004, p. 31). Em
14
Cf. Ser e tempo, §12 ao §24.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 81
outras palavras, na medida em que aparece como ente clareado na dupla
vigência de mundo e terra, o par de sapatos retratado na pintura de Van
Gogh possibilita o próprio jogo de tensão do acontecimento da verdade.
Ao propiciar tal acontecimento, a obra de arte abre o “espaço” no qual os
entes se iluminam, mantendo-os na dupla vigência de descobrimento e
encobrimento, de verdade e não-verdade.
Na obra, é a verdade mesma que vem a ser, ou seja, na obra, a
verdade se essencializa como o não-encobrimento, a clareira que irrompe
no meio do ente. É pelo fato de algo já estar sempre encoberto que o ente
pode vir-a-ser clareado no interior de uma clareira. Contudo, Heidegger
designa o encoberto em um duplo caráter: como um recusar (Versagen) e
como um dissimular (Verstellen). Enquanto o primeiro remete à ausência,
a um não dizer, um não apresentar, o segundo conduz à aparência, à
falsidade e ao erro. Como ele arma: “a clareira acontece apenas ao modo
deste duplo encobrir” (HEIDEGGER, 2004, p.54). Temos aqui, assim
como no §44 de Ser e tempo, novamente a referência à não-verdade, ao
jogo claro-escuro de clareira e encobrimento. Enquanto combate entre o
mundo e a terra, a obra remete a esse mesmo jogo. Porém, de forma alguma
isso quer dizer que a clareira que a obra de arte possibilita seja um total
desvelamento da verdade, pois “a clareira em que o ente está inserido é,
ao mesmo tempo, dentro de si, encobrimento” (HEIDEGGER, 2004, p.
53). Ou seja: pertence à clareira, de modo essencial, uma ocultação (não-
verdade) que é a condição pela qual algo pode ser clareado no interior do
ente. Como já mencionado no capítulo I, para Heidegger, a compreensão
da não-verdade é fundamental para compreender a própria essência da
verdade, pois ambas se mantêm, igualmente, sob o fundamento oculto
da clareira do ser. Como Heidegger (2004, p. 62) arma: “A verdade é
não-verdade, na medida em que faz parte dela o âmbito da proveniência
do ainda-não desencoberto”.
Nesta perspectiva, é importante notar que, para Heidegger, no
contexto da obra de arte, a verdade em questão não surge apenas como um
constitutivo ontológico do ser-aí, mas como abertura originária em que as
coisas, por si mesmas, ganham seu sentido. Como ressalta Casanova (2013,
p. 155): “Não é o utensílio que fornece de antemão a medida pela qual a
atividade artística plasmada no quadro precisa se orientar, mas é antes o
Juliano Rabello
82 |
quadro que dá voz à verdade originária que torna possível encontrar o ser
do utensílio.
Nesta direção, o que Heidegger (2004, p. 38) procura mostrar é
que o horizonte de sentido sob o qual a essência da obra se funda “pertence
unicamente ao âmbito que é tornado originariamente patente por ela
mesma. Pois o ser-obra da obra está a ser, e só está a ser, em tal patenteação
originária”. Ou seja, a obra de arte é o lugar onde a verdade do ser se realiza,
pois, enquanto estabelece o conito entre terra e mundo, ela permite que
o ser do utensílio aconteça na obra, propiciando, assim, que as próprias
coisas se revelem naquilo que elas são em si mesmas:
A verdade acontece na pintura de Van Gogh. Isso não quer dizer
que algo perante seja aqui retratado correctamente, mas que, no
tornar-se manifesto do ser do utensílio do calçado, o ente no seu
todo, o mundo e a terra no seu contraste, chegam ao não-estar-
encoberto (HEIDEGGER, 2004, p. 56).
Com isso, a partir do exemplo do quadro de Van Gogh, chegamos
à primeira formulação explícita da tese central do ensaio, a saber, a essência
da arte é o colocar-se em obra da verdade do ente. A descrição que o lósofo
faz dessa obra levantou “a questão acerca do que é a verdade e de como é
que a verdade pode acontecer” (HEIDEGGER, 2004, p. 38). No entanto,
para que se aprofunde o sentido dessa tese, tal como a abrangência das
noções de terra e mundo que a mesma comporta, o exemplo do quadro
de Van Gogh ainda não é suciente, pois, na medida em que, com este
primeiro exemplo, encontramos a referência ao ser de um utensílio – um
ente da realidade –, tal obra ainda carrega consigo a marca da representação
(mímesis). Portanto, para Heidegger, é necessário que se recorra a uma obra
que não se inclua entre as obras de arte gurativas, pois, embora o exemplo
do quadro de Van Gogh nos ofereça uma primeira caracterização do
acontecimento da verdade originado a partir do entrelace entre as noções
de terra e mundo, é com suas considerações a respeito do templo grego
que, dando um passo adiante em sua abordagem, o lósofo encaminha sua
reexão para o sentido ontológico da obra de arte.
A questão fundamental que de início se apresenta a partir deste novo
exemplo é a de que, diferentemente da pintura do par de sapatos, o templo
grego, enquanto obra produzida, não reproduz nenhum objeto: “Uma obra
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 83
arquitetônica, um templo grego, não copia alguma coisa. Está simplesmente
aí de pé, no meio do vale rochoso e acidentado” (HEIDEGGER, 2004, p.
38). Segundo Casanova (2013, p. 155), “o que temos aqui não é mímesis de
coisa alguma, nem mesmo o campo de manifestação do ente, mas um evento
inaugural”. É o próprio templo que, sustentado no solo, abre o espaço que
congura toda signicação presente naquilo que ele é. Nesse sentido, a obra
templo não é uma representação de algo que tenha um signicado mimético
qualquer, mas uma apresentação que torna possível que as coisas venham a
ser aquilo mesmo que elas são. Como nota Gadamer (2007, p. 74): “Uma
obra de arte não signica algo, não se refere a uma signicação como um
sinal, mas se apresenta em seu próprio ser, de tal modo que o contemplador
é requisitado a demorar-se com ela.
Porém, é necessário ressaltar aqui que, para Heidegger, esta
apresentação do templo não deve ser entendida como uma simples
exposição da obra de arte, como um mero lugar geográco no qual se
encontra um objeto que chamamos de “obra”. Como arma Figurelli
(2007, p. 44), “[...] o exemplo do templo, como apresentação, não reduz
a obra ao ser-objeto, mas nos lança no próprio ser-obra da obra de arte”.
Para Heidegger, trata-se da apresentação de um mundo
em que o que está em jogo é a abertura de sentido que a obra de arte
possibilita. Enquanto obra que se levanta em um lugar e um contexto
estabelecido, o templo instaura um mundo a partir do que ele signica
para uma humanidade histórica: sua fé, seu conjunto de crenças, seus
anseios e devaneios, etc. Ao erigir-se no horizonte do vale, na medida
em que manifesta o sagrado, a obra-templo celebra a gura do deus que
é tornado presente através da obra. Assim, o templo se apresenta como
consagração e gloricação, pois é a partir da “presença” do deus que,
enquanto obra, se enleva como o lugar onde se projetam os destinos de um
povo histórico, o mundo no qual o homem grego habita. Dessa forma, a
obra que é o templo, ao constituir-se por seu caráter inaugural, “articula e
reúne pela primeira vez à sua volta, ao mesmo tempo, a unidade das vias
e das conexões em que nascimento e morte, desgraça e benção, triunfo e
opróbio, perseverança e decadência... conferem ao ser-humano a gura de
seu destino” (HEIDEGGER, 2004, p. 38).
Assim, com o exemplo do templo grego temos o que em sua
conferência A coisa Heidegger chamou de quadratura, a saber: a união
Juliano Rabello
84 |
entre terra e céu, mortais e imortais. “Dá-se o nome de mundo a este
jogo de espelho, onde se apropria a simplicidade de terra e céu, de
mortais e imortais. Mundo é mundo, no vigor que instaura mundo, que,
portanto, mundaniza” (HEIDEGGER, 1997, p. 157). Nesse sentido, para
Heidegger, a arte é, em sua essência, uma manifestação do sagrado que, em
sua intimidade mais própria, desvela ao homem o brilho das coisas em sua
totalidade, possibilitando assim que o ente, que antes se fazia encoberto,
seja conduzido à clareira. É nessa articulação que devemos compreender o
que o lósofo entende por mundo.
Diante disso, devemos levantar a seguinte questão: dentro do
contexto de A origem da obra de arte, qual a abrangência que a noção de
mundo assume no pensamento de Heidegger? Ou, ainda: qual é a diferença
dessa noção em relação ao ser-no-mundo tratado em Ser e tempo?
Como vimos, a noção de mundo é uma das tônicas fundamentais
que marca toda “Analítica Existencial” desenvolvida em Ser e tempo. Nessa
obra, ela designava a totalidade conjuntural das estruturas fundamentais
do ser-aí, na qual sentido de ser e verdade eram tematizados. Como nota
Pöggeler (2001, p. 202), “mundo é, em Ser e Tempo, a estrutura de construção
da verdade”, ou seja, em Ser e tempo, mundo é o horizonte no qual o ser-
aí se move e onde ele constitui-se essencialmente, pois nele se funda toda
signicância da compreensão de ser em que ele sempre está. Porém, em
A origem da obra de arte, o conceito de mundo adquire uma dimensão
inteiramente nova que não estava vislumbrada no tratado de 1927. Vejamos:
O mundo não é um agregado das coisas, contáveis ou incontáveis,
conhecidas ou desconhecidas, que estão perante. Mas o mundo não
é também um enquadramento apenas imaginado, representado
para além do somatório do que está perante. O mundo faz mundo
e é sendo mais que aquilo que é apreensível e perceptível no [meio
do] qual nos julgamos ‘em casa’. O mundo nunca é um objeto
que esteja ante nós e que possa ser intuído. O mundo é aquilo que
é sempre não objetivo, de que dependemos enquanto as vias do
nascimento e da morte, da benção e da maldição nos mantiverem
enlevados no ser (HEIDEGGER, 2004, p. 42, grifo do autor).
O que podemos perceber a partir do fragmento acima é que,
diferentemente de Ser e tempo, a noção de mundo apresentada não designa
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 85
simplesmente a rede referencial do campo utensiliar e prático em que os
entes se encontram, mas nos remete ao próprio horizonte de essencialização
do aí. Como comenta Michel Haar (2007, p. 86), mundo “não é nem uma
reunião de objetos nem uma espécie de recipiente que os contenha, e sim
um espaço livre de possibilidades, o espaço de sentido e de relações que
um povo abre com suas escolhas essenciais”. É no mundo que os entes
se tornam acessíveis, pois ele se constitui como a abertura do aberto – o
espaço – no qual estes se inserem. “O mundo faz mundo”, ou seja, o mundo
não possui a estaticidade dos objetos, das coisas, mas é a própria dimensão
ontológica de pertencimento e identidade da constituição histórica aberta
pela obra de arte. A obra é o que mantém aberto o aberto do mundo, ela
é a clareira que traz os entes ao brilho que possibilita seu reconhecimento.
A apresentação do mundo caracteriza-se, portanto, como um conjunto
de orientações em que o que está em jogo é o abandonar ou assumir
as possibilidades concretas que direcionam o existir. “Aí onde se jogam
as decisões essenciais da nossa história, onde por nós são assumidas ou
abandonadas, onde são reconhecidas e onde são de novo questionadas – aí
o mundo faz mundo” (HEIDEGGER, 2004, p. 42).
Compreende-se assim que, no contexto de A origem da obra de
arte, ocultamento e des-ocultamento deixam de ser apenas uma referência
à totalidade estrutural da compreensão do ser-no-mundo para reivindicar
a própria imbricação ontológica do ser-aí com a destinação histórica da
verdade do ser. Em outras palavras, podemos dizer que em A origem da obra
de arte a noção de mundo surge como um campo de sentido no qual a obra
de arte, na medida em que se constitui historicamente, propicia o próprio
movimento de abertura para a verdade do ser. Entretanto, não se trata aqui
de uma concepção de mundo que anule a concepção anterior desenvolvida
em Ser e tempo. Para Heidegger, a noção de mundo apresentada em A
origem da obra de arte deve ainda ser entendida existencialmente; porém,
o que devemos reter aqui é que esta não se reduz ao horizonte fático e
sedimentado da projeção do ser-aí. O que em Ser e tempo se armava como
sendo “o mundo” passa agora a ser chamado de “um mundo” no sentido
de que, agora, mundo não se limita ao âmbito das relações que o ser-aí
estabelece com os entes, mas, fundamentalmente, é o lugar onde ocorrem
as múltiplas possibilidades do acontecer histórico da verdade do ser. Como
nota Casanova (2013, p. 134), após a viragem o pensamento de Heidegger
passa por “uma tentativa de pensar a partir do próprio campo de gênese
Juliano Rabello
86 |
e de aparição das coisas em geral e sua articulação com o acontecimento
do nexo originário no qual todas as coisas se encontram imersas em uma
época”. Em outras palavras, mundo no contexto de A origem da obra de
arte é caracterizado como o próprio lugar do aberto, um espaço de doação
do ser. Neste sentido, a arte torna-se um elemento central de abertura
de mundo, pois ela passa a ser uma das formas pelas quais a verdade do
ser acontece, um acontecimento apropriador (Ereignis) originário que
estabelece a relação entre ser-aí e ser.
Percebe-se, portanto, que a noção de mundo neste ensaio
compreende-se como um aprofundamento do que já fora anteriormente
tratado em Ser e tempo, e, mais ainda, ela pode ser considerada uma noção
central para penetrarmos no movimento de articulação do pensamento de
Heidegger no contexto pós-viragem. Contudo, como já mencionamos, a
noção de mundo não é o único constitutivo da obra de arte. O lósofo vai
introduzir uma nova noção que traz uma revolução no próprio modo de
se pensar a obra de arte. Trata-se, como já indicamos ao falar do quadro
de Van Gogh, da noção de terra que, como destacou Gadamer em sua
Introdução à Origem da obra de arte, surge como um contraconceito a
mundo (cf. GADAMER, 2007, p. 69).
É importante lembrar que, para Heidegger, o termo “terra” não se
limita à natureza no sentido de matéria bruta como a massa sedimentada do
planeta. Tal expressão deve ser compreendida em seu sentido ontológico.
O lósofo a identica como tendo o mesmo signicado grego de Φύσις,
como origem, nascimento, surgimento dos entes. “Àquilo em que a obra se
retira e que lhe permite surgir diante neste retirar-se chamamos terra. A terra
é aquilo que, não sendo impelida para nada, é sem esforço e incansável
(HEIDEGGER, 2004, p. 44). Desse modo, enquanto Φύσις originária, a
terra corresponde à ocultação, recusa; ela é o elemento privilegiado a partir
do qual todas as coisas desabrocham; ela é o enraizamento, o fundamento
do que aparece, a essência primordial que permanece como o insondável
do ser. Na medida em que na obra ocorre a abertura do mundo, a essência
da terra é preservada: “A obra faz a própria terra entrar no aberto de um
mundo e mantém-na aí. A obra deixa a terra ser terra” (HEIDEGGER,
2004, p. 44, grifo do autor). Ao repousar em si, a obra faz a terra surgir.
Porém, como Heidegger ressalta, o elaborar da terra nunca é um “arrancar”
no sentido de uma exploração arbitrária da natureza, pois a terra é sempre
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 87
o inacessível, que não permite nenhuma intervenção, aquilo que se retira
no ato mesmo do desvelar. A terra só aparece constituída na obra de arte
como ocultamento, ou seja, enquanto elemento primordial, a terra é aquilo
que se constitui na obra de maneira velada. “A terra faz com que qualquer
tentativa de intromissão em si se despedace contra ela mesma [...] A terra
é aquilo que, por essência se fecha. Elaborar a terra quer dizer: trazê-la ao
aberto como aquilo que se encerra” (HEIDEGGER, 2004, p. 45).
Como obra arquitetônica, o templo erige-se sob o fundamento
oculto da terra. Ela é o solo fundamental sobre o qual o mundo se instaura.
Em seu repousar em si mesma, a obra que é o templo faz a terra emergir
de seu próprio ocultamento, não como matéria consumida, mas como o
irromper da Φύσις originária que é preservada, em seus traços constitutivos,
na obra de arte. Dessa forma, a terra, enquanto essência oculta, só pode
ser compreendida como elemento que se produz na eclosão da abertura do
mundo. “O mundo funda-se na terra e a terra irrompe pelo mundo [...]
O mundo aspira, no seu assentar sobre a terra, a fazê-la sobressair [...] a
terra inclina-se, como aquilo que põe a coberto, a reter-se em si o mundo
(HEIDEGGER, 2004, p. 47).
Neste sentido, mundo e terra possuem, por um lado, uma ligação
substancial, uma união, um equilíbrio de forças, e, por outro, uma tensão
originária fundamental, de forma que ambos se mantêm numa relação
intrínseca de abertura e fechamento, de clareira e ocultação. Como ressalta
Gadamer (2007, p. 74): “ambos estão manifestadamente aí na obra de arte,
o abrir-se e o encerrar-se”. Por isso, Heidegger designará essa tensão sob a
luz de um combate [Streit], que, por vez, evidencia o “elo indissolúvel” que
traz à tona a verdade do ser.
A essência da verdade é em si mesma o arqui-combate [Urstreit]
em que é conquistado o meio aberto no qual o ente é introduzido
e a partir do qual se retira em si mesmo [...] Mundo e terra, em si
mesmos, de acordo com o seu estar-a-ser, estão sempre em combate
e belicosos. Só enquanto tais comparecem ao combate da clareira e
do encobrimento (HEIDEGGER, 2004, p. 55-56).
Enquanto elabora a terra, a obra mantém aberto o aberto do
mundo. A instalação do mundo requer o elaborar da terra, pois é a partir
dela que tudo se manifesta, ou seja, é por meio dela que algo pode vir a
Juliano Rabello
88 |
ser não-encoberto. No entanto, é importante destacar que esse combate
descrito por Heidegger não é jamais uma postura antagônica de anulamento
ou inércia, mas o entregar-se à originalidade de um movimento a partir do
qual os combatentes elevam-se um ao outro. É na intimidade do combate,
em sua “instigação” que se dá a “autoarmação” dos combatentes – o
acontecimento – onde a verdade se põe em obra. “A terra só irrompe pelo
mundo, o mundo só se funda na terra na medida em que a verdade acontece
como combate originário” (HEIDEGGER, 2004, p. 56). Ou seja, em seu
repousar em si mesma, a obra se estabelece como combate entre mundo e
terra, e, dessa forma, mantém em vigência o movimento dessa contenda
como uma relação ontológica de abertura e fechamento que constitui o
ser-obra da obra. Ora, abertura e fechamento nada mais são do que o
modo originário de a verdade acontecer, isto é, em sua essência, a verdade
é o conito entre não-encobrimento e encobrimento que acontece na obra
de arte. No templo percebemos tal acontecimento, pois ao se projetar em
um mundo, a obra mantém em vigor um horizonte de signicados que
só se tornam presentes na medida em que representam a essência de uma
humanidade histórica. Dessa forma, de maneira mais explícita, podemos
dizer que o mundo é o horizonte sobre o qual se desvelam as possibilidades
concretas que orientam o existir, como aquilo que se institui como destino
essencial de um povo. A terra, por sua vez, é o seio onde o mundo se estabelece
e no qual o ser-aí histórico funda sua morada, seu habitar. Na medida em
que manifesta essa relação ontológica, a obra de arte abre pela primeira vez
a própria dimensão da clareira (Lichtung) – o não-encobrimento – em que
a verdade acontece. “A obra, levantando um mundo e elaborando a terra,
é a contenda deste combate no qual se conquista o não-estar-encoberto do
ente no seu todo – a verdade” (HEIDEGGER, 2004, p. 56).
2.3.2 arte e técnica
Tendo em vista o que dissemos acima a respeito das noções de
mundo e terra, podemos armar que a exposição de Heidegger apresenta-
se como superação do modo tradicional de tratamento da obra de arte. Isso
nos induz a repensarmos também o próprio processo de criação artística,
pois, como o próprio Heidegger nos apresenta no início de A origem da
obra de arte, toda obra se constitui por uma atividade do artista, e este,
concomitantemente, só é a partir da obra que produz. Essa vinculação,
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 89
enquanto ligação inseparável entre terra e mundo, deve ser apreendida
como um traço essencial da obra de arte.
A arte, em sua essência, é produção (poíesis). Só é possível
apreender a obra enquanto obra se atentarmos para o fato de que toda obra
de arte é, antes de mais nada, algo produzido. Porém, como já dissemos,
não são somente as obras de arte que possuem o caráter de produção.
Enquanto entes produzidos manualmente, os utensílios também o são. Há
que se distinguir então o processo de criação artística da mera fabricação de
utensílios. Segundo Heidegger (2004, p. 60), essa distinção deve levar em
consideração a própria essência da criação, pensada a partir da expressão
grega téchne.
O criar da obra requer por si mesmo o procedimento do trabalho
manual. Os grandes artistas têm o maior apreço pela capacidade do
trabalho manual. São os primeiros a exigir o seu cultivo cuidadoso
com base num domínio pleno. Mais que ninguém, esforçam-
se por que haja, no âmbito do trabalho manual, uma formação
continuamente renovada. Já se chamou sucientemente a atenção
para o facto de os gregos – que percebiam alguma coisa de obras
de arte – usarem a mesma palavra (τέχνη) para “trabalho manual’ e
para ‘arte’, e designarem com o mesmo nome (τεχνίτης) o artesão
[Handwerker] e o artista.
Reinterpretando o sentido contido na expressão, Heidegger nota
que, para o homem grego, τέχνη não designava nem o trabalho do artesão,
nem o trabalho do artista, mas um saber sobre o ser do ente: “τέχνη não
quer dizer nem ‘trabalho manual’ nem ‘arte’ [...] A palavra τέχνη indica
antes um modo do saber” (HEIDEGGER, 2004, p. 61). O que Heidegger
está tentando dizer é que, na Grécia antiga, a arte pensada como τέχνη
era marcada por sua vinculação essencial com o ser. O lósofo nota que
na origem do pensar, a ambivalência entre velamento e desvelamento
consistia num movimento inerente ao ser. Este era preservado como
presença, totalidade, harmonia, o que permitia ao homem uma experiência
com sua verdade originária. Na losoa, esse processo está presente nos
pensadores que Heidegger chama de “essenciais” – Parmênides e Heráclito.
Dessa forma, a τέχνη, para Heidegger, não se refere à “técnica” no sentido
habitual e moderno do termo, mas a uma compreensão do modo de ser do
Juliano Rabello
90 |
ente a partir de seu desvelamento: “[...] a essência do saber, para o pensar
grego, assenta sobre a αλήθεια, quer dizer, sobre o desencobrimento
[Entbelgung] do ente” (HEIDEGGER, 2004, p. 61).
Neste sentido, enquanto essência de um saber, a diferença que
se estabelece entre o artista e o artesão não se relaciona a um conjunto de
técnicas e habilidades, mas à maneira como cada um, em seu trabalho,
põe o ente a descoberto. Enquanto a atividade do artesão depende da
destruição da matéria-prima para produzir o utensílio, isso não ocorre com
artista, pois, na criação de uma obra de arte (do templo, por exemplo), a
matéria não é gasta, mas preservada na criação. Dessa forma, o que está
escondido, a terra enquanto a Φύσις originária, em vez de se perder na
atividade produtiva, é conduzida ao seu verdadeiro aparecimento. Tal é o
que Heidegger expressa na seguinte passagem:
Na criação da obra, o combate, enquanto fenda, tem de ser
reposto na terra, e a própria terra, enquanto o que se encerra,
tem de ser apresentada e usada. Mas este uso não gasta nem faz
mau uso da terra, como de um material se tratasse; acontece antes
que a liberta para si mesma. Este uso da terra é um trabalhar com
ela que, certamente, se parece com o utilizar de materiais que
acontece no trabalho manual. É daí que provém a aparência de
que o criar da obra é também uma atividade do tipo do trabalho
manual. Nunca o é. Mas continua a ser um usar a terra no xar da
verdade na gura. Pelo contrário, a confeição do utensílio não é
nunca, imediatamente, a efectivação do acontecer da verdade. O
estar-feito [Fertigsein] de um utensílio é o estar-enformado de um
material, nomeadamente enquanto pôr à disposição [Bereitstellung]
para o uso. O estar feito do utensílio signica que este, [passando]
por cima de si mesmo, é despedido para ser absorvido na serventia
(HEIDEGGER, 2004, p. 67-68).
Com isso, o lósofo quer mostrar que, diferentemente do artesão,
a criação do artista, na medida em que instaura a terra na abertura do
mundo, revela o estado de desvelamento que deixa o ser se produzir, ou
seja, manifestar-se como um desvelamento da verdade. Dessa forma, a arte
é, em essência, produção. Mas não uma produção qualquer. Ela é uma
produção em que – para além de todo trato ôntico e objetivo de um mero
ente que contém um caráter utensiliar e que se esgota na serventia – o que
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 91
advém é a própria essência originária da Φύσις que se produz através da
obra. Em outras palavras, a produção da obra é a instauração do ser que
eclode como presença por meio da arte (cf. BEAINI, 1986, p. 35).
É importante destacar que, ao reinterpretar o conceito de produção
da τέχνη grega, Heidegger acentua a diferença entre esta e a concepção de
técnica” que se estabelece na modernidade. Tal distinção não é arbitrária.
Trata-se de compreender a relação entre arte e técnica a partir da perspectiva
do destino da verdade do ser. Como nos diz Irene Borges-Duarte (2014, p.
50): “Sem compreender o fenômeno originário da arte não é, pois, segundo
Heidegger, possível entender a técnica na sua verdade essencial.
Como já dissemos, para Heidegger a história da metafísica é a
história do destino do ser, em que a metafísica, na tentativa de considerar
o ser enquanto ser, se volta sobre o ente, deixando o ser no esquecimento
(diferença ontológica). Na modernidade, o aprofundamento desse
esquecimento é marcado pela hegemonia do conhecimento cientíco que
se caracteriza fundamentalmente como uma busca incessante pelo ser do
ente. Enquanto exploração técnica dos entes, a ciência limita-se às suas
categorias e âmbitos setoriais de pesquisa – os vários campos de saber –,
condicionando suas leis ao plano que pode ser observado empiricamente.
Dessa forma, ao sobrepor o caráter ôntico ao ontológico, a ciência
moderna desemboca num longo processo de tecnicização do mundo, onde
o que impera é a lógica da razão e do cálculo como forma de domínio sobre
a natureza. Desse modo, o desencobrimento da técnica moderna se mostra
diferente da τέχνη grega, pois a ciência distancia e separa o produzir dos
entes da autêntica relação com a Φύσις originária.
Segundo Heidegger, ao contrário do sentido grego, o
desencobrimento da técnica moderna se refere ao processo pelo qual, por
meio de uma racionalidade predeterminada, os entes são disponíveis à
exploração, controle e armazenamento: “O desencobrimento, que rege
a técnica moderna, é uma exploração que impõe à natureza a pretensão
de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneciada e armazenada
(HEIDEGGER, 1997, p. 19).
Nesse sentido, o que caracteriza a técnica moderna é a certeza
de que o controle cientíco sobre a natureza possa ser empregado
indenidamente de modo a assegurar que os objetivos – de exploração e
Juliano Rabello
92 |
armazenamento – possam concretizar-se. Com isso, o domínio do sujeito
sobre a natureza torna-se, na modernidade, não uma racionalidade vazia,
mas a eciência de aplicabilidade do poder calculador de modo a garantir
a previsão de todos os fenômenos naturais.
O desencobrimento que domina a técnica moderna possui, como
característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e
acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza
é extraída, o extraído vê-se transformado, estocado, o estocado,
distribuído, o distribuído, reprocessado. Extrair, transformar,
estocar, distribuir, reprocessar são modos de desencobrimento
de desencobrimento. Todavia, este desencobrimento não se dá
simplesmente. Tampouco, perde-se no indeterminado. Pelo
contrário, o desencobrimento abre para si mesmo suas próprias
pistas, entrelaçadas numa trança múltipla e diversa. Por toda
parte, assegura-se o controle. Pois controle e segurança constitui
até as marcas fundamentais do desencobrimento explorador
(HEIDEGGER, 2006, p. 20).
Com efeito, o advento dessa racionalidade, que considera o ente
como suscetível à disponibilidade, no sentido de esta ser a única forma de
conhecimento possível – de uma razão técnica –, é, para Heidegger, o que
demarca e caracteriza o estado de esquecimento e abandono do sentido do
ser como o legado que nos deixou a tradição metafísica. Esse “legado” é, na
realidade, o último desenvolvimento de um projeto de racionalização do
mundo, no qual a ciência, com seus métodos rigorosos, seria a única forma
possível de esgotar a verdade sobre o ente.
15
Nessa perspectiva, o conceito de
verdade, que fundamentou toda tradição metafísica, tem na racionalidade
cientíca moderna seu modelo extremo e mais brutal, qual seja: a ideia de
conhecimento absoluto e inquestionável. Com isso, segundo Heidegger, a
técnica moderna seria um modo de imposição do homem sobre a natureza,
que tem como objetivo a exploração ilimitada dos entes. Esse processo,
além de planicar racionalmente a produção dos entes, impede seu
desvelamento, impondo assim uma forma violenta de controle sobre eles.
Dessa forma, “rompe-se o pacto originário homem-mundo, o homem-
sujeito torna-se o mestre da coisa-objeto [...] A Natureza se transforma em
15
Tal projeto traduz-se na perpetuação da concepção da verdade como adequação que, como já apontamos no
primeiro capítulo, é a concepção na qual Heidegger identica a origem do esquecimento do sentido do ser.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 93
máquina, em mecanismos que o homem comanda projetando o seu desejo
de dominação” (CAMPOS, 1992, p. 117).
É importante notar que o objetivo de Heidegger não é apenas
direcionar uma crítica ao conhecimento cientíco; o que está em jogo
para o lósofo é mostrar que a ciência, embora seja uma das formas de
conhecimento possíveis para o homem, não esgota as possibilidades da
verdade do ser. Ao criar uma oposição entre sujeito e objeto, a ciência cria
um estado de afastamento entre o homem e a natureza. Nesse sentido, o
acontecer da verdade em seu desvelamento é obstruído pelo ímpeto de
tornar todo ente disponível à exploração e armazenamento. Portanto,
Heidegger dene a essência da técnica moderna como uma com-posição
(Ges-stell) que, ao desenvolver-se sob a égide do esquecimento, põe em
perigo o destino do ser.
A com-posição de-põe a fulguração e a regência da verdade. O
destino enviado na dis-posição é, pois, o perigo extremo. A técnica
não é perigosa. Não há uma demonia da técnica. O que há é o
mistério de sua essência. Sendo um envio de desencobrimento, a
essência da técnica é o perigo (HEIDEGGER, 2006, p. 30).
Percebe-se, portanto, que, para Heidegger, o problema não está
propriamente nos procedimentos técnicos e nos métodos de manipulação
dos entes em geral, mas na maneira como a essência da técnica se constitui
na modernidade, ou seja, como saber cientíco que calcula e produz
articialmente os entes de modo a obstruir o produzir a partir da Φύσις.
Dessa forma, a técnica não é em si mesma perigosa. Ela torna-se uma
ameaça na medida em que, ao impedir o desencobrimento originário da
verdade, distancia o homem de sua própria essência.
A ameaça, que pesa sobre o homem não vem, em primeiro lugar, das
máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser mortífera.
A ameaça, propriamente dita, já atingiu a essência do homem.
O predomínio da com-posição arrasta consigo a possibilidade
ameaçadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um
desencobrimento mais originário e fazer assim a experiência de
uma verdade mais inaugural (HEIDEGGER, 2006, p. 30-31).
Juliano Rabello
94 |
É nesse contexto que podemos pensar a situação da arte. Se a
tomarmos como algo que se produz a partir do mesmo desvelamento
da técnica moderna – ou seja, como ente disponível à exploração e
armazenamento –, a relação entre arte e verdade do ser se perde, pois,
desabrigada da Φύσις originária, ela submete-se ao jogo da dominação
técnica da natureza, do controle do homem sobre os entes, da organização
e ordenação do mundo seguindo a lógica da racionalidade instrumental.
Compreendida nesse sentido, a arte deixa de ser concebida como uma
forma de habitação do mundo, pois a separação entre a Φύσις originária e
o homem conduz decisivamente ao “perigo” do rompimento com o pensar
essencial que, por sua vez, determina o destino do ser como abandono,
esquecimento. Como arma Beaini (1986, p. 23):
A época metafísica, afastada do Ser, é um processo de ruptura
no qual se dá a perda do mundo como referencial. Buscando
esgotar o real, conhece-lo exaustivamente, o Homem se des-
conhece: a-pátrida, xado em meio à terra que se furta, perde sua
especicidade, a habitação.
No entanto, ao tratar da arte como um modo de produção
da τέχνη – no sentido grego –, Heidegger apresenta a possibilidade de
pensarmos a obra de arte como uma nova perspectiva de relação entre o
homem e a Φύσις. Dessa forma, Heidegger opera uma transformação no
modo de se compreender a arte frente ao destino do ser na modernidade.
Na medida em que a ciência moderna teria conduzido o ser à consumação
de seu esquecimento, a arte (τέχνη) torna-se um modo de desvelamento
da verdade; portanto, uma possibilidade de resgatar o sentido originário do
ser na época de seu completo abandono. Como Heidegger (2006, p. 36)
nos diz em A questão da técnica,
No começo do destino ocidental na Grécia, as artes ascenderam às
alturas mais elevadas do desencobrimento concedido. Elas faziam
resplandecer a presença dos deuses e o encontro entre o destino de
deuses e homens. A arte chamava-se apenas τέχνη. Era um des-
encobrir-se único numa multiplicidade de desdobramentos.
Nessa perspectiva, a retomada da obra de arte no sentido da
τέχνη grega surge como uma nova possibilidade, mais originária e
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 95
autêntica, de apropriação da verdade. Porém, não se trata aqui de negar
o desenvolvimento da técnica moderna e mergulhar numa exaltação
romântica do passado. É justamente quando a composição da técnica se
mostra como potencialmente destrutiva que se manifesta a necessidade de
uma nova articulação entre o homem e a verdade do ser. Como Heidegger
(2006, p. 31) arma citando o verso de Hölderlin: “Onde mora o perigo
é lá que cresce também o que salva.” Ou seja, quando o comportamento
do homem frente ao ente apresenta-se dominado pelo controle, cálculo
e planicação racional, é que se torna possível a abertura para uma nova
forma de relação e apropriação da verdade. Como o lósofo arma: “A
questão da técnica é a questão da constelação em que acontece, em sua
propriedade, em desencobrimento e encobrimento, a vigência da verdade
(HEIDEGGER, 2006, p. 35).
Portanto, quando em A origem da obra de arte Heidegger
apresenta os exemplos do quadro de Van Gogh e do templo grego, ele
quer mostrar que a obra de arte possibilita ao homem uma ampliação de
sua própria visão do ser das coisas que não está condicionada a nenhuma
representação da verdade, mas a um acesso direto a esta. Seja na pintura ou
no templo, o que é trazido à tona não é um objeto utensiliar que se torna
acessível ao manuseio “técnico”, mas a própria abertura para o âmbito no
qual a verdade se desvela. Com isso, a partir da descrição das obras de
arte, Heidegger nos mostra que o desvelamento que ocorre na obra de
arte é totalmente diferente daquele que a ciência realiza. Isso porque a
obra de arte é a constante eclosão do combate entre o mundo e a terra
que, ao se apresentar como jogo da ambígua tensão entre encobrimento e
descobrimento, conduz o ser-aí ao interior da clareira do ser.
Podemos armar então que, enquanto objeto de uma atividade
produtiva – isto é, da τέχνη –, a obra de arte se destitui de toda forma
de classicação estética, pois as noções de belo e beleza deixam de ser
consideradas a partir de categorias subjetivas ou de critérios racionais
previamente estabelecidos. Ou seja, o quadro de Van Gogh e o templo grego
não são belos pelo prazer estético que causam no sujeito que os vivencia,
mas por trazer a descoberto a verdade do ser que se manifesta na obra: “O
brilhar proporcionado na obra é o belo. A beleza é o modo como a verdade
enquanto não-estar-encoberto está a ser” (HEIDEGGER, 2004, p. 57, grifo
do autor). Nesse sentido, o belo não se refere mais à forma de um objeto que
Juliano Rabello
96 |
foi produzido tecnicamente. A obra bela, enquanto produto da τέχνη, não
diz respeito ao estado interior de quem frui a obra nem à própria obra, mas
ao movimento de essencialização do ser que acontece na obra.
A verdade é o não-estar-encoberto do ente enquanto ente. A
verdade é a verdade do ser. A beleza não vem em acréscimo para
junto da verdade. Quando a verdade se põe em obra, aparece. O
aparecer – enquanto ser da verdade na obra e como obra – é a
beleza. Desta maneira, o belo faz parte do acontecer apropriador
[Sichereignen] da verdade. Não é algo que diga respeito unicamente
ao fruir e somente como seu objeto. O belo reside, no entanto, na
forma, mas apenas pelo fato de a forma se ter outrora clareado a
partir do ser enquanto entidade do ente (HEIDEGGER, 2004, p.
88, grifo do autor).
Portanto, o que se entende tradicionalmente por experiência
estética sofre uma transformação, pois o que se deve apreender da obra
de arte é menos o sentimento de gosto que ela provoca do que a abertura
para uma autêntica relação com a verdade do ser que por ela se revela.
Na medida em que na obra de arte os entes conquistam sua claridade no
interior do mundo, a forma deixa de ser um atributo universal e abstrato
de representação do objeto para se tornar o modo do acontecer da verdade
do ser. Com isso, Heidegger rompe não apenas com a concepção de arte
e de beleza oriunda da tradição aristotélica, mas com a própria estética de
cunho racional-iluminista que se rma na modernidade. A contemplação
desinteressada da arte que Kant propõe em sua Crítica da faculdade do juízo
ou mesmo a concepção hegeliana da arte como um modo particular de
manifestação do espírito ainda estão, para Heidegger, inscritas num modo
de tratamento da obra que partem de pressupostos conceituais típicos
da perspectiva do esquecimento do ser, e que, portanto, são incapazes de
atingir a essência da obra de arte. Mesmo a “estética da embriaguez” de
Nietzsche ainda estaria, segundo Heidegger, presa a um entendimento
metafísico de obra de arte. Embora encontremos certa ressonância do
pensamento nietzschiano na compreensão que Heidegger tem de obra de
arte,
16
para o lósofo, o autor de Assim falou Zaratustra ainda não é capaz
16
Como nota Campos (1992, p. 17), tanto em Nietzsche quanto em Heidegger “a crítica da ‘verdade’ metafísica
conduz à eleição da arte, não para substituir o conhecimento, a losoa, mas para testemunhar a postura
primeira que o homem adota diante do mundo, que é a postura estética”.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 97
de uma superação da estética, pois a concepção de arte que este propõe é
apenas uma descrição do “‘fenômeno artista’ e não da arte” (HEIDEGGER,
2014, p. 55). Segundo Heidegger, ao compreender a essência da obra de
arte a partir do artista, Nietzsche estaria interpretando o fenômeno da arte
a partir de “vivências”, caindo assim nas mesmas armadilhas conceituais da
metafísica tradicional.
17
Tendo isso em vista, um dos elementos fundamentais para
se compreender a posição de Heidegger frente à tradição estética é
adentrar no lugar que artista e seu processo de criação ocupam diante do
desvelamento da verdade. Como o lósofo argumenta em A origem da
obra de arte, a arte não está subordinada à genialidade do artista como se
este fosse um “sujeito” que a produz de acordo com o conhecimento das
técnicas que servem de meio para criação das obras. Embora toda obra de
arte seja produzida por um artista, enquanto acontecimento da verdade,
ela mantém um caráter de independência, de autonomia, de forma que
o artista permanece indiferente à criação da obra. Como nos diz Michel
Haar (2000, p. 92), a concepção heideggeriana de criação “rompe com
o primado romântico do artista demiurgo, que modelaria uma matéria
inerte ao sabor da própria inspiração. É a verdade colocando-se ela mesma
no lugar da obra que cria o artista e não o inverso”. Nesse sentido, para
Heidegger, o artista, enquanto produtor da τέχνη, deve ser compreendido
meramente como uma “passagem” para o surgimento da obra, anulando-se
a si mesmo no ato da criação, pois é a τέχνη como essência do saber-fazer
que determina o ser-obra da obra.
Percebe-se, portanto, que, diferentemente de Ser e tempo, em A
origem da obra de arte a verdade não pode ser mais pensada como horizonte
fático de abertura da compreensão do ser-aí, mas ela mesma – a obra – é que
se constitui como abertura originária da verdade do ser. Nesta perspectiva,
segundo Heidegger, o artista deve ser pensado como aquele que promove o
combate originário, isto é, como aquele que permite que, por meio da obra,
se abra um horizonte de ligação com a verdade do ser que, por sua vez, só
pode se dar na singularidade histórica pela qual tal verdade irrompe. Por isso,
para Heidegger, não faria sentido a contemplação da obra de arte fora do
contexto em que ela se engendra, pois sua verdade só pode ser projetada no
17
Vale lembrar que, para Heidegger, o pensamento de Nietzsche ainda se movimenta sob a perspectiva do
esquecimento do ser, sendo considerado, portanto, como o último dos pensadores metafísicos.
Juliano Rabello
98 |
interior das relações em que a obra se encontra. Como destaca Michel Haar
(2000, p. 85): “A verdade que a obra mostra não é uma verdade abstrata,
um horizonte em geral. É uma verdade situada no tempo e no espaço, que
é, a cada instante, a de um mundo e de uma terra determinados”. Ou seja,
enquanto produção da τέχνη em meio ao desencobrir da Φύσις na abertura
do mundo, a verdade que a obra de arte instaura não é uma verdade universal
e absoluta, mas uma verdade histórica.
2.3.3 a dimensãO ptica da verdade cOmO esncia da Obra de arte
Na seção que encerra A origem da obra de arte, a meditação de
Heidegger se encaminha no sentido de mostrar que o acontecimento da
verdade traçado pelo conito entre terra e mundo é uma forma poética de
esta se revelar. “A verdade, como clareira e encobrimento do ente, acontece
na medida em que é poetada. Enquanto deixar-acontecer da chegada
da verdade do ente, toda arte é, enquanto tal, na sua essência, poesia
(HEIDEGGER, 2004, p. 76). É pelo caráter poético da obra de arte que o
lósofo aprofunda a questão da verdade, ao mesmo tempo em que a inscreve,
decisivamente, no contexto da viragem. Tal inserção nos conduz a uma
radical claricação de tudo que o lósofo tentou apresentar anteriormente,
de forma que agora podemos compreender mais plenamente, por um lado,
a mudança de Heidegger em relação à forma tratadística e conceitual de
Ser e tempo e, por outro, a inversão de seu pensamento como abertura
para um novo caminho para se pensar a questão do ser que conui na
meditação a respeito da essência da linguagem.
A questão da linguagem é especialmente importante nas reexões
de Heidegger sobre a arte, pois é por meio dela que se conquista o horizonte
fundamental que permite pensar, a partir do caráter poético e histórico da
obra, o acontecimento originário da verdade. Contudo, para penetrarmos
nesses desenvolvimentos da interrogação heideggeriana, devemos
inicialmente compreender a dimensão que o termo poesia assume em A
origem da obra de arte. O lósofo distingue dois âmbitos da expressão:
Poesie e Dichtung. Enquanto a primeira refere-se à arte de escrever versos,
ou seja, à poesia no sentido usual e restrito do termo, a segunda refere-
se ao “ditado poético” ou “dizer projectante”,
18
isto é, à poesia como a
18
Esses termos serão mais bem explicitados adiante.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 99
experiência originária fundamental de desvelamento do ente que se dá
por meio da linguagem.
19
É nessa segunda compreensão do termo que
Heidegger se concentra.
Em seu sentido originário e amplo, enquanto Dichtung, a arte é
um elaborar, um produzir,
20
um criar que conduz os entes à abertura do
mundo. Por tal termo, entende-se o caráter nomeador da poesia, que revela
o signicado profundo das coisas. Na medida em que se articula por meio
de palavras, a poesia é o advir da obra de arte no interior da própria língua.
Contudo, quando Heidegger se refere à “língua”, tal expressão não diz
respeito somente à rede de referência simbólica de articulação das palavras,
mas à experiência originária fundamental pela qual um povo “entra na
história”. Seja nas formas mais rudimentares das narrativas míticas, ou na
apropriação compreensiva de um discurso elaborado, a língua perfaz o solo
primordial sob o qual se constitui tudo que pode ser dito ou não no seio de
uma humanidade histórica. Nesse sentido, a língua é o lugar essencial da
composição como “ditado poético”, a perspectiva ontológica fundamental
que abre o horizonte de sentido no qual emerge toda forma de criação
humana. Como explica Gadamer (2007, p. 79):
Em certo sentido, portanto, a “composição”, que deve simbolizar
o caráter projetivo de todo criar artístico para Heidegger, é menos
projeto que as formas secundárias de construir e gurar a partir de
pedra e de sons. Na verdade, o compor é aqui dividido em duas fases:
em um primeiro projeto que já é sempre acontecido, onde se cumpre
uma língua, e um outro, que deixa a nova criação poética ir à frente
a partir desse primeiro projeto. Essa precedência da língua parece
constituir não apenas a distinção especial da obra de arte poética,
19
Dichtung, de dichten, ‘inventar, escrever, compor versos’, que, não obstante parecer germânico, provém
do latim dictare, ‘dizer repetidamente, ditar, compor’. Esta palavra tem um sentido mais amplo o que Poesie
ou ‘poesia’. Aplica-se a qualquer escrita criativa, incluindo romances, não somente versos. O verbo tem um
tom de ‘dispor, ordenar, formar’. Heidegger usa Dichtung e dichten em um ‘sentido amplo’ e em um sentido
restrito. (ACL, 61/198s) No sentido amplo, dichtung signica ‘inventar, criar, projetar’, sendo porém distinto
de ‘invenção livre’ (UK, 60/197). ‘Da essência inventiva [dichtenden, criativa, projectiva] da arte decorre que,
em meio aos entes, a arte ilumina um pedaço aberto em cuja abertura tudo ca diferente do que era antes’ (ACL,
59/197). Por isso, toda arte é em essência Dichtung em sentido amplo, e não no sentido de Poesie (Cf. XXXIX,
25ss)” (INWOOD, 2002, p.145).
20
Note-se que há no vocabulário heideggeriano duas palavras que se articulam com o sentido de produção,
a saber, Gestell e poíesis. A primeira (a qual tratamos ao falar da técnica) refere-se ao processo de produção dos
entes a partir da lógica do controle e planicação da natureza, portanto, um modo de produção articial que
obstrui o ser em seu desvelamento. A segunda, é utilizada por Heidegger para designar a produção enquanto
desvelamento da verdade, esta ligada essencialmente a essência da linguagem, portanto, à poíesis no sentido
amplo de produção a partir da palavra.
Juliano Rabello
100 |
parece valer por cima de toda obra para cada ser-coisa das coisas
mesmas. A obra da língua é a composição mais originária do ser. O
pensamento que pensa toda arte como composição e inaugura o ser
linguístico da obra de arte está ele mesmo a caminho da linguagem.
Contudo, é preciso compreender que, para Heidegger, tal
composição” ou “ditado poético”, enquanto “obra da língua”, não se
restringe ao caráter linguístico, antropológico ou artístico da poesia. O
que devemos levar em consideração aqui é a própria imbricação ontológica
que se dá entre arte e linguagem. Assim como vemos se anunciar nas
teses desenvolvidas em Ser e tempo, para Heidegger, a linguagem não é a
consequência de uma apropriação discursiva, mas ela mesma – a linguagem
– é que constitui o modo de ser de quem fala. Nessa perspectiva, quando
anuncia o caráter poemático da arte, Heidegger não se refere ao mero poetar
como gênero literário ou artístico, pois, para ele, o termo “poesia” deve
ser pensado “num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa unidade
essencial tão íntima com a linguagem e a palavra, que a questão de saber
se a arte [...] esgota a essência da poesia tem de permanecer em aberto
(HEIDEGGER, 2004, p. 79). Na verdade, segundo o lósofo, as várias
linguagens artísticas já são essencialmente derivadas da linguagem em seu
sentido originário de poesia (Dichtung): “A linguagem é ela mesma poesia
em sentido essencial [...] a poesia acontece apropriando-se na linguagem
(HEIDEGGER, 2004, p. 79). Ou seja, é por meio da linguagem que os
entes são conduzidos ao interior de um lugar aberto, a uma clareira, no
qual todas as coisas ganham seu sentido. Desse modo, para Heidegger,
todas as artes são devedoras da poesia primordial, pois estas só acontecem
quando já se instaurou, pelo nomear da linguagem, um âmbito aberto
no meio do ente. Portanto, enquanto essência da linguagem, a poesia é a
forma suprema, não só do gênero poético, mas de toda e qualquer expressão
artística. Como o lósofo arma em Hölderlin e a essência da poesia:
A poesia não é um enfeite acessório do estar-aí humano, não é
apenas um entusiasmo passageiro e muito menos uma simples
exaltação e entretenimento. A poesia é o fundamento que sustenta
a história e, portanto, tampouco é apenas uma manifestação da
cultura e, sobretudo, jamais uma mera ‘expressão’ de uma ‘alma
civilizacional (HEIDEGGER, 2013, p. 53).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 101
Com isso, torna-se claro então que não se trata, para Heidegger,
de simplesmente exaltar a poesia como uma forma de manifestação
cultural. O que devemos ter em conta aqui é a ligação entre esta, a essência
da linguagem e o projeto histórico da verdade. Como arma Nunes (2008,
p. 266): “A historicidade da arte deriva da linguagem, em que a verdade
se produz originariamente, pela irrupção do ser na palavra e enquanto
palavra.
Portanto, quando arma que a essência da obra de arte é poética,
Heidegger quer dizer que “a poesia é o modo essencial de instauração da
verdade e do seu acontecimento historial na linguagem e com a matéria da
linguagem” (NUNES, 2008, p. 265-266). A linguagem torna-se então um
dizer projectante” da poesia, pela qual a obra de arte se engendra, e sob a
qual emerge a origem histórica da verdade do ser. Como o lósofo arma
na seguinte passagem:
O dizer projectante é poesia: a saga do mundo e da terra, a
saga da margem consentida pelo combate e, assim, do lugar de
toda a proximidade e lonjura dos deuses. A poesia é a saga do
não-estar-encoberto do ente. A língua de cada vez em causa é o
acontecimento do dizer no qual irrompe de forma histórica para
um povo e o seu mundo, e no qual a terra é conservada como o que
está encerrado. O dizer projectante é o que, no pôr à disposição
do dizível, traz simultaneamente ao mundo o indizível enquanto
tal. É em tal dizer que, para um povo histórico, são pré-cunhados
os conceitos do seu estar-a-ser, i.e. da sua pertença à história do
mundo (HEIDEGGER, 2004, p. 79).
Para Heidegger, toda época exige novas formas de compreensão
do mundo, das relações e das coisas que circundam o habitar de um povo
histórico. A poesia, enquanto conito originário entre mundo e terra, isto
é, como dizer projetante da verdade, é um modo de criar e recriar novas
possibilidades existenciais, novas visões de mundo, e com isso, também
um modo de atualizar e transformar a obviedade de tudo aquilo que se
apresenta habitual e cotidiano: “[...] não se pode nunca comprovar e
deduzir a verdade que se torna originariamente patente na obra a partir do
que tem valido até agora” (HEIDEGGER, 2004, p. 81). Ou seja, é pelo
caráter projetante da poesia que se inaugura a experiência fundamental da
Juliano Rabello
102 |
linguagem que permite uma ruptura com o preexistente, uma mobilização
das estruturas estáticas que orientam o existir.
Portanto, enquanto essência da linguagem, a poesia é o meio
possibilitador – uma abertura para o extraordinário – em que todas as
coisas se mostram diferentemente do que eram, subvertendo radicalmente
a estaticidade vigente das relações e do próprio mundo anteriormente
constituído. “Ao nomear ou renomear inicialmente as coisas, mas também
as atitudes, as pessoas, a poesia as devolve a sua integridade. Ela subtrai à
objetivação, à manipulação; ela as arranca da universalidade forçada, da
banalização” (HAAR, 2000, p. 95).
Temos, a partir daí, uma referência mais ampla do signicado
contido na expressão “origem”, signicado com que Heidegger inicia o
ensaio e que, de certa forma, conduz toda a sua reexão sobre a arte. A
obra de arte é uma “origem” no sentido de ela sempre erigir-se a partir de
um fundamento anterior a ser superado, como aquilo que pode inaugurar
novas perspectivas de mundo para o povo sobre o qual ela se funda. Dessa
forma, a arte tem a função de abrir o espaço que dá acesso à verdade do ser,
liberar sua mensagem, fazer emergir seu sentido originário. “A arte permite
que a verdade brote. A arte, enquanto resguardar instituinte, faz brotar, na
obra, a verdade do ente. Fazer brotar algo, trazê-lo ao ser no salto instituinte
a partir da proveniência da sua essência – é isso que quer dizer a palavra
origem’” (HEIDEGGER, 2004, p. 84). É nesse sentido que Heidegger
nos diz que a arte cumpre a tripla tarefa de doação, fundação e início que
salvaguarda o sentido originário da verdade do ser que é posta em obra.
A doação e a fundação têm em si o que há de não mediatizado
naquilo a que chamamos um início. Porém, esta imediatez
do início, aquilo que é peculiar ao salto a partir do que não é
mediatizável, não exclui, mas antes comporta que o início se
prepare o mais longamente possível e de forma despercebida. O
início autêntico é sempre, enquanto salto, um salto que antecipa
[avanço – Vorsprung], no qual tudo o que está para vir está
ultrapassado [übersprungen], se bem que como algo de velado.
O início já contém, encoberto o m. O início autêntico não tem
nunca, certamente, o caráter de principiante [Anfängerhafte] que
tem o que é primitivo. Porque é sem o salto e o avanço que doam
e fundam, o primitivo é sempre desprovido de futuro. De si não
consegue libertar nada, porque não contém senão aquilo que está
aprisionado (HEIDEGGER, 2004, p. 82).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 103
Partindo disso, podemos compreender a assertiva de Heidegger ao
nal do ensaio sobre A origem da obra de arte segundo a qual a arte assinala
um advento da história da verdade do ser. Entendida como acontecimento
da verdade, a arte – enquanto doação, fundação e início – não é apenas
uma entre tantas manifestações culturais que ocorrem nas épocas históricas.
Para Heidegger, ela é essencialmente histórica, pois tem a função primordial
de fundar a História.
21
“Sempre que a arte acontece, i.e., quando há um
início, um abalo atinge a história, a história tem início ou volta a iniciar-
se” (HEIDEGGER, 2004, p. 83). Como evento inaugural, a arte oferece
o fundamento a partir do qual um mundo se apresenta, e, dessa forma, ela
estabelece o horizonte de sentido pelo qual e no qual o ser-aí constrói sua
morada sobre a terra. Assim, a história é entendida por Heidegger como o modo
pelo qual a verdade do ser acontece em determinada época, uma destinação
que encontra na obra de arte uma forma especíca de instituição.
22
“Sempre
que o ente no seu todo, enquanto ente ele mesmo, requer a fundação na
abertura, a arte chega à sua essência enquanto instituição” (HEIDEGGER,
2004, p. 82). Seja na Antiguidade, na Idade Média ou na Modernidade, a
arte, em cada momento, é um modo pelo qual a verdade do ser se destina
a uma humanidade histórica. Sobre essa destinação histórica da verdade, o
lósofo arma:
Foi no mundo grego que ela aconteceu pela primeira vez no ocidente.
Aquilo a que daí para diante se veio a chamar ‘ser’ foi posto em obra de
forma paradigmática. O ente assim tornado originariamente patente
no seu todo foi depois transformado em ente no sentido do criado
por Deus. Isso aconteceu na Idade Média. Este ente foi de novo
transformado no começo e no curso da modernidade. O ente tornou-
se em objeto susceptível de ser dominado e decifrado por meio do
cálculo. De cada vez, a abertura do ente teve de ser estabelecida no
ente ele mesmo mediante a xação da verdade na gura. De cada vez,
aconteceu o não-estar-encoberto do ente. Este põe-se em obra, e é a
arte que consuma esse ‘pôr’ (HEIDEGGER, 2004, p. 83).
21
É a partir dessa dimensão histórica da verdade aberta pelo caráter poético da obra de arte que podemos
compreender o que Heidegger chamou de acontecimento apropriador (Ereignis) que se traduz na referência
ao que passou a ser designado após a viragem de seu pensamento de destinação histórica da verdade do ser.
22
Heidegger (2004, p. 64) destaca alguns poucos modos pelo qual a verdade acontece: “Um modo essencial
como a verdade estabelece no ente patenteando originariamente por meio dela é o pôr-se-em-obra da verdade.
Um outro modo como a verdade está a ser é o feito em que se funda um estado. A proximidade daquilo que não
é, de todo, um ente, mas que é o mais ente dos entes, é, por sua vez, um outro modo como a verdade vem à luz.
Ainda um outro modo de a verdade vir a ser é o perguntar do pensador, que, como pensar do ser, o nomeia no
seu ser-digno-de-questão”.
Juliano Rabello
104 |
Enquanto destinação, a verdade do ser se oferece livremente como
presença que se revela. Como pura gratuidade, a verdade do ser reivindica
sua guarda, e, assim, deixa-surgir o próprio sentido de doação, fundação
e início da história que caracteriza a obra de arte. No entanto, devemos
sempre pensar essa doação da destinação histórica da verdade como um
risco, pois mesmo a verdade sendo instituída pelo acontecer originário
da obra de arte, tal verdade está sempre suscetível ao encobrimento e
ao esquecimento. Tendo isso em vista, Heidegger arma que para que o
sentido originário da verdade vigore como um destino essencial para uma
humanidade histórica, não basta simplesmente que existam as obras de
arte como objetos criados, mas que também é necessário haver aqueles que
assumam a tarefa de “resguardar” essa verdade do ser que se institui pelas
obras: “Assim como não pode haver uma obra sem ser criada (necessitando
essencialmente daqueles que criam), também o criado ele mesmo não pode
tornar-se algo que é sem aqueles que resguardam” (HEIDEGGER, 2004,
p. 70). O que Heidegger quer dizer aqui é que a simples existência de obras
de arte não garante que seu sentido originário seja assimilado. A obra de
arte necessita, portanto, ser resguardada, ou seja, não basta uma obra ser
obra, é preciso que se instaure no âmbito da arte uma proteção que assegure
que através da obra sua verdade vigore como destino essencial a uma
humanidade histórica, isto é, a verdade da obra deve ser destinada àqueles
que estão por vir. “Na obra, a verdade é antes lançada para aqueles que,
estando para vir, serão quem resguarda, i.e. lançada para uma humanidade
histórica” (HEIDEGGER, 2004, p. 81). A verdade só pode ser instaurada
mediante esse resguardar, pois a cada processo histórico, a cada evento, a
obra mobiliza a essencialização do ser que, como origem, engendra um
novo projeto de humanidade.
É nesse contexto que podemos pensar na função do poeta. Na
medida em que toda obra de arte só acontece historicamente, o poeta,
enquanto porta-voz de seu tempo, é aquele que, sensível ao clamor do
ser, é capaz de articular os desígnios essenciais de uma época. Assumindo
como sua vocação projetar ao futuro a verdade que lhe é entregue como
destinação, o poeta possui o mérito de nomear pela primeira vez o ser dos
entes fazendo seu sentido brotar. Como Heidegger arma em Hölderlin e
a essência da poesia:
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 105
O poeta nomeia os deuses e nomeia todas as coisas naquilo que
elas são. Este nomear não consiste em prover de um nome algo
já previamente conhecido. Ao contrário, pela nomeação o ente é
nomeado no que ele é, pela primeira vez, conforme o poeta diz a
palavra essencial. Assim, o ente se dá a conhecer como ente. A poesia
é a fundação do ser pela palavra (HEIDEGGER, 2013, p. 51).
A palavra do poeta é o que funda, inaugura. Portanto, ela é a
condução do ente – o “obrar” da obra – ao aberto do ser. Através da palavra,
o poeta faz com que no ente o ser apareça, revelando sua essência. Os poetas
são aqueles destinados ao resguardo do destino do ser pela linguagem.
Penetrando na essência das coisas, a poesia ultrapassa o modo cotidiano
dos entes se expressarem para atingir sua realidade profunda. Sendo assim,
a proclamação do poeta é um ato livre que conduz o ser à sua abertura;
ela é a nomeação que revela a íntima ligação entre ser-aí e a verdade do ser
em meio ao destino histórico de um povo. Nessa perspectiva, os poetas são
aqueles que, sensíveis ao caráter revelador da linguagem, experimentam o
risco de exposição ao ser, ao perigoso jogo do existir, à fonte originária que
constitui a relação essencial entre pensamento e poesia.
Diferentemente de Platão, em diversos textos Heidegger (1979,
p. 23) insiste na ideia de que pensamento e poesia se co-pertencem: “Entre
ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a
serviço da linguagem, intervêm por ela e por ela se sacricam.” Embora
separados por um abismo porque “moram nas montanhas mais separadas’”
(HEIDEGGER, 1979, p. 23), para Heidegger, tanto ao pensador quanto
ao poeta cabe a tarefa do retorno silencioso ao dizer essencial, pois ambos
operam por meio da linguagem. Se é pela nomeação do ser que o ente vem à
tona, ou seja, se é pela palavra que uma coisa vem a ser coisa, tanto a palavra
do pensador quanto a do poeta são modos distintos de encaminhar à uma
humanidade histórica o fundo misterioso da verdade do ser. No entanto,
esse fundo misterioso do ser não é a entrega a um “não ente”. O caráter
nomeador da palavra, mesmo quando diz o sagrado, cumpre a função de
lançar o ser na ex-posição, isto é trazer o ser à liberdade do próprio espaço
de abertura em que se articulam todas as decisões de uma humanidade
histórica. É por isso que, para Heidegger, a poesia, mais do que qualquer
discurso losóco, é uma forma especíca de acessar diretamente, sem a
Juliano Rabello
106 |
representação do conceito, o sentido originário da verdade do ser. Como
arma Nunes (2008, p. 268): “Mais extremada no poeta, que responde ao
simples, ao imenso, como a medida da palavra que nomeia, essa ex-posição
é mediação, que resguarda o imediato, mantendo a diferença, na unidade
coligente do logos – o livre espaço da abertura.
No entanto, de forma alguma isso signica que o poeta se
diferencie dos outros homens. Para Heidegger, o trabalho do poeta não
tem nenhum caráter excepcional. Trata-se, na verdade, de um dizer que faz
transparecer, na própria simplicidade de sua arte, o ambíguo jogo de ser
ao mesmo tempo “a mais inocente das ocupações” e o “mais perigoso dos
bens” (cf. HEIDEGGER, 2013). Ou seja, na medida em que opera com o
material da língua, o poeta resguarda ao mesmo tempo o caráter simples e
singelo da linguagem corriqueira e comum do cotidiano e o absoluto risco
da ‘possibilidade suprema do ser-homem”, pois, “a tarefa da língua é tornar
manifesto o ente, como tal, na obra e conservá-lo. Na língua vêm à palavra
tanto o mais puro e o mais recôndito quanto o mais turvo e comum
(HEIDEGGER, 2013, p. 47).
Ora, segundo Heidegger, a linguagem é a casa do ser onde o
homem habita;
23
nesse sentido, a fundação do ser por meio da palavra do
poeta é a instauração da verdade em meio à morada histórica do homem
na terra. “Cheio de mérito, contudo, poeticamente o homem habita
esta Terra”, arma Heidegger (2013, p. 43) citando Hölderlin. Dessa
forma, enquanto essência primordial da linguagem, a poesia é o que dá
fundamento a própria existência histórica do homem, isto é, enquanto
essência primordial da linguagem, a poesia pertence ao próprio ser-aí, pois
é no habitar poético que este, portador de sua língua, transcende a esfera do
banal e se aproxima de sua própria essência. Como arma Nunes (2008, p.
268): “Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência humana
– a concreta nitude do homem como ser-no-mundo”. Portanto, mais do
que simplesmente escrever versos, ao poeta cabe a tarefa de reconduzir o
ser-aí ao seu verdadeiro habitar poético. “O dizer dos poetas não é uma
fundação apenas no sentido da livre doação, mas antes e ao mesmo tempo
no sentido de uma fundamentação rme do estar-aí humano sobre sua
base” (HEIDEGGER, 2013, p. 52).
23
A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser do ser mora o homem” (HEIDEGGER, 1979, p. 149).
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 107
Nessa perspectiva, podemos pensar a obra de arte, enquanto
residência poética da verdade, como o “lugar” de doação do ser, um
acontecimento que se oferece à apropriação. Na medida em que, em sua
historicidade, o ser-aí está exposto ao ente, cabe a ele se apropriar dessa
doação da verdade do ser que, pela palavra instauradora do poeta, é-lhe
entregue como destinação. Note-se aqui que a apropriação da verdade não
depende mais, como aparece formulado em Ser e tempo, de uma mera
relação compreensiva entre verdade e ser-aí, mas de uma abertura que se
dá a partir do próprio acontecimento da obra de arte. Ou seja: a verdade
aqui em questão não depende mais do ser-aí como seu fundamento; ao
contrário, é o próprio ser-aí que, na medida em que habita poeticamente
o mundo, é conduzido ao desvelamento da verdade a partir da obra.
Nesse sentido, enquanto acontecimento originário, a obra passa a ser
compreendida como acesso direto à verdade do ser, que não só independe
do ser-aí, mas também, em seu desencobrimento, constitui o próprio lugar
do aberto – o “aí” ou a clareira (Lichtung) – no qual o ser-aí está inserido.
Como nos diz Gadamer (2007, p. 77):
Esse vir à frente do ente no ‘aí’ pressupõe abertamente um domínio
da abertura no qual esse aí possa acontecer. E, todavia, é igualmente
nítido que esse domínio não é sem que ente se mostre nele, ou seja,
sem que se dê o aberto que ocupa a abertura. Isso é sem dúvidas,
uma relação notável. E ainda mais notável é que justamente no aí
desse ente que se mostra também primeiramente se apresenta o
encobrimento do ser.
Com isso, é possível visualizar, agora mais plenamente, a tese
heideggeriana sobre a verdade proposta no ensaio sobre a arte e, por
conseguinte, compreender o sentido primordial e fundante que a poesia
assume no interior da viragem de seu pensamento. Ao conquistar o
horizonte de encobrimento e não-encobrimento da verdade, a arte abre
o horizonte da própria experiência na qual se articulam as possibilidades
existenciais de uma humanidade histórica. Enquanto projetar poético, o
conito entre terra e mundo é a própria instauração da verdade no âmbito
do aberto do ser. Nesse contexto, a poesia surge como elemento norteador
que enraíza o ser-aí em tal processo, pois, se é pela palavra que se dá o acesso
que permite a meditação sobre o ser do ente, na medida em que se constitui
Juliano Rabello
108 |
pela linguagem, o ser-aí pode apropriar-se de tal verdade. Devemos então
admitir o caráter poético da arte como sendo a própria clareira do ser, que,
ao manifestar-se na obra, eclode como instauração da verdade, um evento,
ou, para usar a expressão aqui em questão, a poesia manifesta-se como o
acontecimento apropriador (Ereignis) da verdade do ser.
Dessa forma, entendemos que ao associar a arte com a destinação
histórica da verdade e com a essência da poesia e da linguagem, o lósofo
busca desvinculá-la de uma problemática estética para colocá-la dentro da
perspectiva ontológica fundamental. Portanto, podemos considerar que no
ensaio A origem da obra de arte Heidegger assume a tentativa de traçar um
outro início para o pensar, pois, desarticulada dos conceitos da metafísica
tradicional – que incluem em seu bojo a Estética Filosóca –, as reexões
de Heidegger sobre a arte conguram-se como um ponto fundamental da
tarefa de destruição dos preconceitos correntes da metafísica que, segundo
o lósofo, teriam encoberto a verdade do ser em seu desvelamento desde
as origens da Filosoa. Contudo, essas questões presentes em A origem
da obra de arte iniciam um percurso que desemboca, no contexto pós-
viragem, numa crítica ao destino histórico do ocidente, que Heidegger
vai aprofundar em suas reexões posteriores pelo diálogo e confronto com
pensadores fundamentais como Parmênides, Heráclito, Nietzsche e poetas
como Trakl, Stephan George e o já citado Hölderlin.
| 109
C F
A reexão de Heidegger sobre o tema da arte que abordamos
neste livro buscou evidenciar, especicamente, as teses ontológicas sobre a
arte. Procuramos mostrar que a concepção heideggeriana de obra de arte
se desvincula da Estética tradicional, e, mais ainda, que o problema da
arte em Heidegger situa-se como elemento peculiar da crítica que ele faz a
toda a tradição metafísica. O que desde Ser e tempo se mostrava como uma
destruição” da ontologia tradicional pela ontologia fundamental, em A
origem da obra de arte se caracteriza como uma “destruição da estética”.
Porém, o que ca cada vez mais claro ao acompanharmos esse percurso do
pensamento de Heidegger é que seu objetivo não está simplesmente em
atacar os conceitos da Estética tradicional como uma disciplina especíca
na qual o lósofo teria interesse, mas, sim, em constituir, pela questão da
arte, isto é, pela questão da origem da obra de arte, uma destruição dos
fundamentos metafísicos da modernidade nos quais a própria estética se
alicerça. Nesse sentido, para o lósofo, a questão da arte está inscrita dentro
da perspectiva pela qual emergem todos os temas de seu pensamento: o
sentido do ser.
A questão da verdade, cerne de todo seu projeto losóco,
principalmente a partir de Ser e tempo, sua obra capital, tornou-se a
intuição fundamental, cuja orientação em A origem da obra de arte se
expressa de maneira exemplar pela tese que arma que a obra de arte
é um “acontecimento da verdade do ser”. Como podemos observar no
Juliano Rabello
110 |
percurso de Heidegger que tentamos esboçar, tal intuição não surge em
seu ensaio sobre a arte, nem está subordinada aos problemas especícos
da teoria da arte, mas, enquanto o condutor de seu pensamento, já se
anunciava a partir da análise do §44 de Ser e tempo e que, posteriormente,
continua a fazer parte do rol de conceitos caros a Heidegger em toda sua
produção subsequente. Após caminharmos junto com Heidegger pelos
desdobramentos da “Analítica Existencial” desenvolvida em Ser e tempo,
podemos armar que a retomada da expressão grega “Alétheia”, já de saída
nos indica que, para o lósofo, a questão da verdade não é apenas um
elemento fortuito, mas exige uma volta às origens; isto é: um retorno ao
solo fecundo sob o qual se erigem todos os fundamentos pelos quais a
civilização ocidental se estrutura. Isso se torna evidente em Ser e tempo
quando Heidegger assume nessa obra a tarefa de “destruição da história
transmitida pela ontologia tradicional”. Daí a importância que tal obra
assume em nossa investigação, pois nela buscamos elucidar a centralidade
da noção de verdade, e, mais ainda, a questão de como, em sua interrogação,
tal noção assume a proposição de tentativa de reestruturação, não só de
uma época – a de Heidegger –, mas de toda História da Filosoa. Porém,
como também procuramos esclarecer, tal tentativa não seria possível em tal
tratado, pois Ser e tempo apresentava-se como uma obra que ainda carregava
um modo particular de conceitualização, a mesma que a obra procurava
superar. Disso decorre a necessidade de o lósofo – sem abandonar seu
ponto de partida – empreender uma viragem (Kehre) em seu modo de
pensar, que em nossa pesquisa teve uma importância fundamental, pois é
justamente a partir dessa viragem que encontramos o início da meditação
de Heidegger sobre o tema da arte.
Em A origem da obra de arte deparamos com uma série de
noções que, além de serem uma tentativa de superação dos conceitos
tradicionais da Estética, são uma tentativa de superação do próprio modo
de interrogação iniciado em Ser e tempo. O problema de fundo é sempre
o mesmo, a questão do esquecimento do ser, ou melhor, o esquecimento
da diferença ontológica entre ser e ente, que, segundo o lósofo, se projeta
e se aprofunda em toda história da metafísica. No caso especíco da obra
de arte, vemos esse esquecimento da diferença se expressar na crítica
que Heidegger faz aos conceitos tradicionais da Estética, conceitos esses
herdados da metafísica tradicional. Como explicitamos, para Heidegger,
tais conceitos – principalmente o clássico binômio matéria e forma – se
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 111
fundamentam a partir da estrutura da coisa, o que denota uma redução da
arte à esfera ôntica. Segundo ele, é esse modo de compreender a obra de
arte que impossibilitou a toda a tradição Estética diferenciar uma obra de
arte dos objetos e utensílios. Em outras palavras: ao reduzir a obra de arte
à infraestrutura da coisa, a Estética tradicional inviabilizou a possibilidade
de distinguirmos o ser-coisa do ser-instrumento e do ser-obra.
Neste contexto, encontramos em A origem da obra de arte dois
movimentos: o primeiro diz respeito a essa crítica que Heidegger apresenta
aos conceitos da Estética tradicional e sua insuciência para atingir a
essência da obra de arte; o segundo diz respeito ao reposicionamento da
arte na dimensão propriamente ontológica. Ao se interrogar sobre qual é a
essência da obra de arte, Heidegger tem em vista a obra de arte não como algo
que pode ser apreendido por este ou aquele conceito, ou seja, não se trata
de uma categorização ou classicação da obra de arte a partir de critérios
preestabelecidos. Como cou claro no decorrer de nossa investigação,
Heidegger apreende a obra de arte a partir do horizonte de sentido aberto
por ela mesma. Esse horizonte é, com efeito, o próprio acontecer histórico
da verdade sob o qual a obra de arte se engendra. Os exemplos do quadro
Um par de sapatos, de Van Gogh, e do templo grego, assim como as noções
de mundo e terra são apresentados pelo lósofo com a nalidade de mostrar
como que se dá esse processo do acontecer histórico da verdade na obra.
Para tanto, exigiu-se uma análise detalhada de tais noções, assim como a
diferenciação destas em relação à conceitualização losóca anteriormente
empreendida em Ser e tempo. Foi preciso elucidarmos, por exemplo, a
abrangência que o conceito de mundo assume em A origem da obra de
arte e especicarmos a novidade trazida pela noção de terra, que, pensada
juntamente com a noção de mundo – associação essa inexistente em Ser e
tempo –, torna-se uma chave fundamental para compreendermos o tema
da arte dentro do contexto da viragem do pensamento heideggeriano.
Como podemos constatar, Heidegger desenvolve essas noções
em íntima conexão com a noção de poesia (Dichtung), o que abre a
possibilidade de não mais compreendermos a questão do ser e da verdade
pelo viés conceitual, mas por aquilo que Heidegger chamou de destinação
histórica da verdade do ser. Neste percurso torna-se claro, além de
sua ruptura com a losoa tradicional, o rompimento com a “Analítica
Existencial”. A perspectiva aberta por essa mudança da interrogação
Juliano Rabello
112 |
heideggeriana permitiu constatarmos que a concepção de verdade presente
em A origem da obra de arte é desenvolvida de forma diferente do que
ocorre em Ser e tempo, abrindo, assim, uma nova forma de tratamento da
questão que o lósofo aprofunda em seus trabalhos posteriores.
É nesse novo contexto que os temas da poesia e da linguagem
surgem como solo fundamental em que tal questão se desvela em toda sua
radicalidade. Isso pode ser constatado, por exemplo, na apropriação que
Heidegger faz de alguns poetas, especialmente Hölderlin. Se em seu ensaio
sobre a arte já vemos presente os temas da poesia e da linguagem como
formas originárias de acesso ao ser, nos textos seguintes percebemos que os
mesmos temas continuam sendo a tônica fundamental de toda interrogação
posterior de Heidegger. Nosso objetivo, contudo, não foi abarcar todos os
desdobramentos do pensamento tardio de Heidegger, mas tão somente
mapear, a partir da meditação sobre a arte, alguns elementos fundamentais
que permitem visualizar essa mudança, tendo como o condutor a relação
entre verdade e arte em seu pensamento.
| 113
R
BEAINI, ais Curi. À escuta do silêncio: um estudo sobre a linguagem no pensamento
de Heidegger. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1981.
BEAINI, ais Curi. Heidegger: arte como cultivo do inaparente. São Paulo: Nova
Stella: Edusp, 1986.
BORGES-DUARTE, Irene. Arte e técnica em Heidegger. Lisboa: Documenta, 2014.
CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Edições Loyola,1992.
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. 2ª ed. Petrópolis: Vozes,
2010.
CASANOVA, Marco Antônio. Eternidade frágil: ensaio de temporalidade na arte. Rio
de Janeiro: Via Vérita, 2013.
DUARTE, André. Heidegger e o outro: a questão da alteridade em Ser e tempo.
Natureza Humana, Curitiba, v. 4, n. 1, p. 157-185, jan./jun. 2002.
DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução à uma leitura. Trad. Bernardo Barros
Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
DUQUE-ESTRADA, Paulo César. Sobre a obra de arte como acontecimento da
verdade. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, n. 13, p. 67-78, abril. 1999.
FERREIRA JUNIOR, Wanderley José. A era da técnica e o m da Metafísica.
Campinas: PHI, 2012.
FIGURELLI, Roberto. Estética e crítica. Curitiba: UFPR, 2007.
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. 2ª ed. Trad. Marco
Antônio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
Juliano Rabello
114 |
GADAMER, Hans-Georg. Para introdução. A origem da obra de arte. Tradução,
comentário e notas de Laura de Borba Moosburger. In: MOOSBURGER, Laura de
Borba. A Obra de Arte como Essencialização da Verdade: mundo, terra e o não-
encobrimento, 2007. Dissertação (Mestrado em Filosoa) – Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2007.
HAAR, Michel. A Obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Difel, 2007.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In: HEIDEGGER, Martin.
Caminhos de Floresta. Trad. Irene Borges Duarte. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004. p. 6-94.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos losócos. Trad. Ernildo Stein. São
Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores).
HEIDEGGER, Martin. Contribuições à losoa (Do acontecimento apropriador).
Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução Emmanuel Carneiro Leão,
Gilvan Fogel e Márcia Sá C. Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Hölderlin e a essência da poesia. In: HEIDEGGER, Martin.
Explicações da poesia de Hölderlin. Tradução Cláudia Pellegrini Drucker. Brasília: UnB, 2013.
HEIDEGGER, Martin. “Preface by Martin Heidegger”. In: HEIDEGGER, Martin.
rough Phenomenology to ought. New York: Fordham University Press, 2003.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas: Unicamp; Petrópolis: Vozes, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Trad. Marco A. Casanova. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. v. I e II.
INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Trad. Luiza Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
MACDOWELL, J.A. A gênese da ontologia fundamental de Martin Heidegger. São
Paulo: Herder, 1970.
NUNES, B. Passagem para o poético. São Paulo: Ática, 2008.
PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Piaget, 2001.
SADZIK, Joseph. Esthétique de Martin Heidegger. Paris: Éditions
Universitaires,1963.
STEIN, Ernildo. Compreensão e nitude: estrutura e movimento da interrogação
heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001.
STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre Ser e Tempo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
Verdade e arte: a concepção ontológica da obra de arte no pensamento de Martin Heidegger
| 115
STEIN, Ernildo. Seminário sobre a verdade: lições preliminares sobre o parágrafo 44
de Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes, 1993.
REIS, Robson Ramos. O ens realissimum e a existência: notas sobre o conceito de
impessoalidade em Ser e Tempo, de Martin Heidegger. Kriterion, Belo Horizonte, n.
104, p. 113-129, dez. 2001.
RICHARDSON, William J. S. J. Heidegger: through Phenomenology to thought. 3th
ed. e Hague: Martinus Nijho, 1974.
ZARADER, Marléne. Heidegger e as palavras de origem. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
| 117
S  
julianO rabellO
Possui graduação em Filosoa pela Universidade Sagrado Coração (2011) e
mestrado em Filosoa pela Unesp/Marília (2017). Atualmente, desenvolve
pesquisa de doutorado em Filosoa pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Suas principais áreas de interesse são Estética e Filosoa da arte,
Filosoa Contemporânea e Fenomenologia, com ênfase no pensamento de
Martin Heidegger, atuando nos seguintes temas: ontologia, arte, niilismo
e losoa da técnica.
catalOgaçãO
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
nOrmalizaçãO
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
capa e diagramaçãO
Gláucio Rogério de Morais
prOduçãO gráFica
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
assessOria técnica
Renato Geraldi
OFicina universitária
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
FOrmatO
16 x 23cm
tipOlOgia
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tiragem
100
impressãO e acabamentO
2021
sObre O livrO
Este livro foi publicado a partir de edital interno de publicação
de trabalhos de docentes e egressos do Programa de Pós-Gradu-
ação em Filosofia (PPGFIL) da Unesp. Como parte das comemo-
rações de seu jubileu de prata, o PPGFIL vem realizando e
promovendo uma série de atividades em diversos segmentos. As
obras aprovadas no edital foram publicadas em conjunto pelas
editoras Oficina Universitária e Cultura Acadêmica.
A Oficina Universitária é um selo editorial da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília, apoiada pelo
Laboratório Editorial da FFC. Foi instituída com o objetivo de
criar condições e oportunidades para a difusão de pesquisas e
tornar públicos os resultados dos trabalhos do corpo docente da
FFC. Já a Cultura Acadêmica, selo da Fundação Editora da
Unesp, visa auxiliar principalmente o atendimento às múltiplas
demandas editoriais da Unesp. Com a ampliação do número de
títulos editados pelo selo, são abertas novas oportunidades de
publicação num momento em que a pesquisa acadêmica e sua
divulgação são cada vez mais necessárias.
Verdade e arte:
a concepção ontológica da obra
de arte no pensamento de
Martin Heidegger
Juliano Rabello
Aprovado pelo EDITAL No. 01/2020 –
PPGFIL/UNESP - Publicações de livros
autorais e tradução de artigos científicos
aceitos para publicação
Esta obra foi publicada a partir de
edital interno de publicação de
trabalhos de docentes e egressos do
Programa de Pós-Graduação em
Filosofia (PPGFIL) da Unesp, como
parte das comemorações de seus 25
anos. Este e os demais livros
publicados por este edital podem ser
baixados gratuitamente no catálogo
da editora Oficina Universitária:
https://ebooks.marilia.unesp.br/index
.php/lab_editorial. São eles:
- Eichmann e a incapacidade de
pensar: alienação do mundo e do
pensamento em Hannah Arendt.
Renato de Oliveira Pereira
- Hábitos motores e identidade
pessoal. Ana Paula Talin Bissoli &
Mariana Claudia Broens
- O estatuto científico da ciência
cognitiva em sua fase inicial: uma
análise a partir da estrutura das
revoluções científicas de Thomas
Kuhn. Marcos Antonio Alves e
Alan Rafael Valente
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. I. Ivo Assad Ibri
- Semiótica e Pragmatismo. Inter-
faces teóricas. Vol. II. Ivo Assad
Ibri
- Verdade e arte: a concepção
ontológica da obra de arte no
pensamento de Martin Heidegger.
Juliano Rabello.
ISBN 978-65-5954-066-2
O objetivo central deste livro
consiste em abordar o tema da arte
em Martin Heidegger. Ligada à
questão da essência da verdade, a
reflexão heideggeriana sobre a obra
de arte é elaborada a partir de uma
retomada da expressão grega
Alétheia. A fim de apresentar tal
noção como uma intuição funda-
mental que orientará o percurso
filosófico de Heidegger, o autor
perpassa os desenvolvimentos da
“Ontologia Fundamental” de Ser e
Tempo (1927) ao contexto da
viragem (Kehre) de seu pensamento
(1930), onde se situa o tema da
arte. Nessa direção, procura abor-
dar nos textos analisados como
Heidegger desenvolve suas refle-
xões no tocante a esse tema, princi-
palmente no ensaio A origem da obra
de arte (1935-36), na qual o filósofo
apresenta, juntamente com a ques-
tão da essência da linguagem e da
poesia, as noções diretrizes de sua
concepção ontológica da obra de
arte, que, por sua vez, diverge das
teorias tradicionais da Estética
Filosófica.