DANIEL SALÉSIO VANDRESEN
Neste livro defendemos que a tarefa ético-política do ensino de loso-
a no ensino médio técnico seja o de proporcionar a aprendizagem do
exercício de si por meio de uma prática losóca que se realiza em uma
tensão agonística do coabitar problemas. Neste trabalho procuramos re-
etir sobre o ensino de losoa como uma prática existencial, isto por-
que, tradicionalmente, o ensino de losoa tem sido analisado sob o víeis
dos processos pedagógicos “do que ensinar?” (reexão sobre conteúdos) e
“como ensinar em losoa?” (reexão sobre metodologias), no entanto,
nossa proposta é de deslocamento das questões de ensino-aprendizagem
para pensar a losoa e seu ensino como uma atitude (êthos losóco),
ou seja, como um exercício de si que transforma a vida. E nesse exer-
cício sobre a vida como criação de experiências singulares e de atitudes
peculiares, a losoa tem um papel indispensável na formação de uma
educação para a diferença, confrontando o atual cenário de crescimen-
to de comportamentos preconceituosos e de espaços de intolerância.
A proposta deste livro é problema-
tizar o ensino de losoa no Ensino Médio
Técnico, pensando a atitude do exercício
de si como a tarefa losóca para a educa-
ção tecnológica. A pesquisa parte do refe-
rencial teórico de Michel Foucault, prin-
cipalmente nos conceitos da ontologia do
presente e da estética da existência, para
pensar uma prática losóca que se reali-
ze como atitude crítica e como modo de
vida. Estes conceitos nos conduziram a se-
guinte questão norteadora: como praticar,
no ensino médio técnico, a losoa como
exercício de si? Nossa hipótese interpreta-
tiva é de que a constituição da tecnicidade
biopolítica da subjetividade moderna con-
duziu ao esquecimento da capacidade de
exercitar-se a si mesmo como condição de
ultrapassagem do assujeitamento do indi-
víduo.
A problematização do ensino de -
losoa na educação técnica é o nosso lugar
de fala e de experiência para escrever esse
livro e, desse modo, contribuir tanto para
o fortalecimento da formação humana, da
atitude losóca e do conhecimento lo-
sóco diante da expansão da educação tec-
nológica nos últimos anos. Enm, enten-
demos a losoa como uma atenção para
consigo que se realiza em uma vida que se
arrisca nos exercícios de si.
Daniel Salésio Vandresen, professor do
Instituto Federal do Paraná - IFPR -
campus Avançado Coronel Vivida.
Doutor em Educação pela UNESP
de Marília/SP (2019). Mestre em Fi-
losoa pela UNIOESTE de Toledo/
PR (2008). Graduado em Filosoa
pela Fundação Educacional de Brus-
que/SC (2002). Vice-coordenador do
Grupo de Pesquisa Filosoa, Ciência
e Tecnologias (IFPR). Chefe-editor da
revista IF-Sophia (ISSN 2358-7482).
Membro do Grupo de Pesquisa EN-
FILO - Grupo de estudos e pesquisa
sobre o ensino de losoa (UNESP/
Marília). Atualmente coordena o pro-
jeto “O ensino de losoa e a escrita de
si como experiência existencial” (PIBI-
C-Jr IFPR/CNPq, aprovado em edital
em 2019 e 2020). Tem experiência na
área de educação, com ênfase em ensi-
no de losoa, atuando principalmente
nos seguintes temas: ensino de loso-
a, técnica, Michel Foucault.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio 0798/2018
Processo 23038.000985/2018-89
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
Daniel Vandresen
o exercício de si como modo
de vida losóca
O ENSINO DE FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
TÉCNICO
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO
MÉDIO TÉCNICO:
o exercício de si como modo de vida filosófica
DANIEL SALÉSIO VANDRESEN
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO TÉCNICO:
o exercício de si como modo de vida filosófica
DANIEL SALÉSIO VANDRESEN
Marília/Oficina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC
UNESP - campus de Marília
D
iretora
Dra. Claudia Regina Mosca Giroto
Vice-Diretora
Dra. Ana Claudia Vieira Cardoso
Conselho Editorial
Mariângela Spotti Lopes Fujita (Presidente)
Adrián Oscar Dongo Montoya
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina Mosca Giroto
Marcelo Fernandes de Oliveira
Marcos Antonio Alves
Neusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Conselho do Programa de Pós-Graduação em Educação -
UNESP/Marília
Graziela Zambão Abdian
Patrícia Unger Raphael Bataglia
Pedro Angelo Pagni
Rodrigo Pelloso Gelamo
Maria do Rosário Longo Mortatti
Jáima Pinheiro Oliveira
Eduardo José Manzini
Cláudia Regina Mosca Giroto
Au
xílio Nº 0798/2018, Processo Nº 23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES
F
icha catalográfica
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Vandresen, Daniel Salésio.
V246e O ensino de filosofia no ensino médio técnico: o exercício de si como modo de vida filosófica /
Daniel Salésio Vandresen. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
246 p.
Inclui bibliografia
I
SBN 978-65-5954-042-6 (Digital)
ISBN 978-65-5954-041-9 (Impresso)
1
. Educação - Filosofia. 2. Ensino técnico. 3. Filosofia Estudo e ensino. I. Título.
CDD 107
Co
pyright © 2020, Faculdade de Filosofia e Ciências
Ed
itora afiliada:
C
ultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Oficina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
DOI https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-042-6
Agradecimentos
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ___________ _______
Esse livro é fruto de um trabalho de pesquisa no doutorado que
é digno de ser divido com várias pessoas que me proporcionaram encontros
afetivos e intelectuais. Primeiramente agradeço as minhas famílias: Wilmar
e Ilda Vandresen (meus pais) e Pedro (in memoriam) e Libera Perusso (pais
de minha esposa) pelo incentivo em meus estudos e, também, pela
compreensão em algumas ausências. E especialmente a minha esposa
Eliane Perusso Vandresen que esteve sempre presente fisicamente e
afetivamente em vários momentos dessa trajetória. E ao meu filho
Bernardo que nasceu na reta final da conclusão dessa obra e me
proporcionou viver a experiência de outro uso de mim: ser pai.
Ao orientador prof. Dr. Rodrigo Pelloso Gelamo, primeiramente
por ter me recebido como pesquisador, em seguida, por cultivar um
acolhimento humano e uma relação de amizade; pelas orientações sempre
provocadoras que me proporcionaram a experiência de pensar
cuidadosamente os diferentes problemas e o difícil processo da pesquisa e
escrita; pela presença constante, acessível e atenta em tudo o que foi
possível pensar nesse texto.
Aos membros da banca examinadora: Prof
a
. Dra. Elisete
Medianeira Tomazetti (UFSM); Prof. Dr. Eladio Constantino Pablo Craia
(PUCPR); Prof. Dr. Rodrigo Barbosa Lopes (UNESP) e Prof. Dr. Pedro
Angelo Pagni (UNESP), os quais pelo rigor da leitura e de críticas me
provocaram diferentes problematizações e, assim, contribuíram
efetivamente para o bom êxito da defesa e conclusão dessa tese.
Ao Instituto Federal do Paraná por ter me oportunizado o
afastamento das atividades de docente durante a maior parte do período
de doutorado.
Aos membros do Grupo de Pesquisa Educação e Filosofia -
GEPEF, coord. pelo prof. Dr. Pedro A. Pagni, grupo em que pela
convivência e partilha do pensamento pudemos exercitar o trabalho crítico
de si mesmo.
A UNESP Campus Marília, professores e funcionários, pela
acolhida como aluno, presteza no atendimento, aos saberes e ensinamentos
que me proporcionaram.
Enfim, a todos os que não puderam ser nomeados, mas que
estiveram em algum momento presentes e compartilharam não só um
pensar filosófico como também um modo de vida.
A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou
- eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito
que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o
relógio,
que compra pão às 6 horas da
tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando
borboletas.
(Manoel de Barros, 2004).
“Você tem que mudar tua vida!”
(Peter Sloterdijk, 2012)
SUMÁRIO
Prefácio | Rodrigo Pelloso Gelamo..........................................................11
Introdução...........................................................................................19
1 Por uma problematização da Educação Tecnológica........................37
A Educação Profissional e Tecnológica: Legislação, Concepção e Críticas
Os “Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: um novo modelo de
educação tecnológica
A Educação Profissional Técnica de Nível Médio: diretrizes e concepção
A atitude crítica como diagnóstico do presente
Problematização
Uma ontologia do presente: a crítica e a constituição do sujeito pelo domínio da
tékhne
Um diagnóstico da concepção de educação tecnológica
2 Por uma problematização do uso da técnica.....................................81
O deslocamento da questão da técnica: um novo uso
Questionemos nossa relação com a técnica
A essência da técnica em Martin Heidegger
Peter Sloterdijk e a antropotécnica: a técnica como exercício
O cuidado de si e a questão da tékhne em Michel Foucault
3 Por uma problematização das técnicas de constituição de si...........123
A biopolítica e as técnicas de produção de si
A trajetória biopolítica e sua tecnicidade
A educação em Foucault: um saber-poder biotécnico que produz a normalização
da vida e o empobrecimento da experiência
A estética da existência: a vida como objeto da tékhne
4 Por uma problematização do ensino de filosofia no ensino médio
técnico: o exercício de si como modo de vida.....................................169
Deslocamento do ensino de filosofia como transmissão técnica para uma maneira
de formular problemas
Isto (ensino de filosofia) não é filosofia!
A filosofia como problematização das práticas de si
Um diagnóstico da filosofia na educação tecnológica: deslocamento do ensino
objetivo para o (des)aprender
É preciso coabitar outras práticas em filosofia!
A filosofia como tékhne do exercício de si
Considerações finais...........................................................................223
Referências.........................................................................................229
11
Prefácio
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _____________
Entre malditos, técnicos, professores: sobre o ensino de filosofia nos
Institutos Federais de Educação
Os Institutos Federais (IFs) têm sido objeto de pesquisa de várias
investigações desde sua fundação. Notamos que ganharam mais ênfase nas
últimas expansões feitas por Fernando Haddad, ministro da Educação
entre os anos 2005 e 2012. Desde 2008 os IFs têm se tornado referência
para a educação de nosso país. Ao proporem uma política formativa que
integra a educação básica, técnica e superior, criam condições de trabalho
e pesquisa comparáveis, e talvez mais privilegiadas, às grandes
universidades brasileiras, principalmente se levarmos em consideração a
distância abissal existente entre estas e a educação básica/técnica como um
todo no cenário nacional.
A valorização do docente, a existência de melhores salários e
condições de trabalho, as políticas de formação continuada aos professores,
a oportunidade de criar um enraizamento entre os integrantes dos IFs e a
comunidade, o convívio e o desenvolvimento de atividades educativas em
tempo integral são alguns dos fatores difíceis, e, por essa razão, exemplares
de serem encontrados nos mais diferentes câmpus espalhados pelo país.
Porém, a exemplaridade dos IFs para a educação brasileira não termina por
aí, pois, neles, os professores e estudantes podem romper com a velha e
insistente dicotomia entre produção, reservada aos professores/
pesquisadores universitários, e a transmissão/ensino e aprendizagem de
conhecimentos, restritas aos professores da educação básica e técnica. São
os professores e estudantes dos IFs que, a partir de suas experiências, tanto
no ensino médio/técnico quanto no superior, desenvolvam suas pesquisas
h
ttps://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-042-6.p11-18
12
e projetos de extensão ante a imanência da realidade da qual fazem parte.
Consequentemente, têm a oportunidade de tensionar esse lugar
hierárquico ainda cristalizado na educação e se tornarem atores de suas
próprias trajetórias formativas, desenvolvendo uma formação que não
dissocia a produção do conhecimento do ensinar e aprender, mesmo que
essa formação tenha ainda como foco o “mundo do trabalho” e um caráter,
por assim dizer, mais técnico.
Para que o conhecer, ensinar e aprender tornem-se indissociáveis
da própria atividade de produzir, de experimentar e de partilhar mediante
a própria contingencialidade dos que ensinam e aprendem, faz-se
necessário contínua ampliação de oportunidades, com o melhoramento
das condições e permanência de trabalho e pesquisa para professores,
estudantes e a comunidade dentro da qual os IFs se fazem presentes. Em
outras palavras, necessita-se de muito investimento público. E
investimento público não se restringe ao financiamento público, mas à
oferta de condições efetivas de que o trabalho possa ser desenvolvido.
Infelizmente, o atual governo federal e seus vários (des)ministros da
educação têm vilipendiado todas essas possibilidades que os IFs tinham
conseguido angariar para si em seu processo de consolidação. Em um curto
espaço de tempo, foi lhes tirada a autonomia de trabalho e dificultado o
processo de enraizamento necessário para que a expansão realizada
pudesse, de fato, ser bem sucedida. Uma das hipóteses desse processo é a
tentativa de desfazer tudo o que o governo “comunista”, segundo as
palavras do Messias, anterior tinha feito; outra hipótese, talvez mais cruel
para a população do que a primeira, é o intuito deliberado de
empobrecimento e barateamento de todo o processo educacional;
pensamos, ainda, que, talvez, guiado pelo seu pensamento bélico, o
objetivo seja tornar todos os institutos escolas militarizadas. Há de se
considerar, ainda, que possivelmente nosso olhar não tenha encontrado as
13
reais motivações para o que ocorreu, mas, de todo modo, notamos que
aquilo que poderia ser um modelo de formação para o brasileiro tem se
tornado mais do mesmo. O que notamos, de fato, é um processo de
intervenção em todas as instâncias, sejam elas político-administrativas
pela indicação de reitores e diretores que não foram eleitos pela
comunidade
1
sejam elas político-educacionais pela ingerência direta
nos processos educacionais duramente construídos no interior de cada
núcleo dos institutos, por meio de uma intensa construção feita na
capilaridade das relações com a comunidade. Mas este não foi um
privilégio dos institutos; a intervenção político-administrativa tornou-se
regra em quase todas as universidades federais com a indicação de reitores
que não foram eleitos pela comunidade para assumir esse cargo.
Depois dessa contextualização, e para começar a entrar no assunto
propriamente do livro aqui prefaciado, aquilo que mais nos chama a
atenção é a perseguição que o atual governo, guiado pelo Messias e pelo
seu exército de pastores, militares e conservadores, promove contra a
filosofia no ensino médio, sempre na tentativa de desprezar as
contribuições que essa disciplina traz para a formação do estudante. Nós,
professores de filosofia, tornamo-nos os malditos da educação. O projeto
de educação movido por essa gestão propõe, por assim dizer, uma
especialização”, ou seja, retira dos estudantes a possibilidade de ter um
acesso mais amplo e geral às áreas do conhecimento. Com a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), o estudante ficou obrigado a optar por uma
das grandes áreas do conhecimento já no primeiro ano do Ensino Médio.
Assim sendo, se escolher a área de exatas, perde a oportunidade de
conhecer mais sobre as humanidades e as ciências biológicas, e assim
sucessivamente. Essa especialização aprofunda mais uma relação de
1
Dos 29 reitores indicados pelo atual presidente, 16 não foram escolhidos pelo escrutínio da comunidade
acadêmica de suas instituições (Cf. Folha de São Paulo, 07/12/2020).
14
“formação para o mercado de trabalho” e perde o horizonte de formação
para a vida. Aliás, nunca é demais lembrar os danos causados à educação
brasileira quando esta se centrou em uma visão tecnicista de saber, que me
parece não ser o objetivo dos IFs, ainda nos idos anos 1970. Será que
repetiremos os mesmos erros?
Há ainda outros problemas produzidos pela BNCC e por essa visão
de formação. Um deles é de ordem organizacional. A promessa de criação
de opções para os estudantes se especializarem em uma área de interesse,
de fato, não se efetiva, uma vez que o Estado não tem condições financeiras
e operacionais de oferecer as três opções em cada uma das escolas e para
todos os estudantes. Assim, o aluno terá mesmo de optar por aquilo que
estará ao seu alcance e não por aquilo que é de fato seu interesse. Outro
problema é de ordem ideológica, uma vez que a retirada da obrigatoriedade
da filosofia e da sociologia, e a diminuição drástica de disciplinas de
ciências humanas da Educação Básica trarão prejuízos incalculáveis à
sociedade. Essas são as disciplinas que atuam de forma especialmente
crítica nessa etapa de formação. Em seu curto tempo de vida como
disciplinas obrigatórias, apenas 11 anos, ainda não houve tempo de sequer
se estabelecerem e criarem uma “cultura” de formação para que
pudéssemos de fato avaliar sua validade e qualidade. Sua morte precoce
traz um trauma àqueles que acreditaram poder se dedicar a essas, tanto
quanto as outras, nobres, áreas do saber.
Em nosso entendimento, o principal intuito dos Institutos
Federais, por mais que aparentemente possam estar a serviço dessa
biopolítica, era a formação para o “mundo do trabalho” (não confundir
com mercado de trabalho). Essa sutil, mas importante, diferença, trazia
certo alento para aqueles, que, como nós, estão de fato preocupados com
o processo de formação para algo que esteja além do mercado, da
15
subserviência ao capital e da acomodação ao status quo. O que notamos é
que inclusive os IFs estão tendo de se adequar ao mercado, e a noção de
tecnologia a eles atrelada está sendo o mote para apressar essa (quase)
inevitável guinada.
De todo modo, não é exatamente disso que trata o presente livro.
Dissemos anteriormente que os IFs têm sido objeto de pesquisa frequente,
mas uma ressalva precisa aqui ser feita. Nas investigações que temos feito
sobre a recepção do debate acerca do ensino da filosofia em dissertações,
teses, artigos e livros no Brasil, ainda não encontramos nenhuma pesquisa
que trate especificamente da filosofia nos Institutos Federais. Este já seria
um motivo para reconhecer o ineditismo da pesquisa de Vandresen.
Entretanto, ele traz outros elementos que tornam seu livro ainda mais
contundente. Os problemas enunciados no decorrer de sua escrita são da
ordem dos acontecimentos vivenciados como personagem e ator de seu
próprio pensamento e em sua tarefa de ser professor em um instituto que
tem na técnica e na tecnologia seu principal mote de existência. Por outro
lado, sua tematização como professor filósofo toca justamente no ponto de
tensão entre formação técnica, formação para o mercado de trabalho e
formação para a vida, que está na imanência de seu dia a dia. Como
professor de filosofia, e filósofo que é, não se furtou a problematizar aquilo
que dá sustentação a essa instituição e cravou seu problema de pesquisa na
alma mesma do instituto, menos para problematizar formalmente suas
propostas educacionais do que para se colocar como protagonista no
problema de formar pessoas que possam pensar sua vida em formação e
profissão. Nesse movimento de problematização, ele se vê na linha tênue
que o professor (deve) habita(r), especialmente o de filosofia, entre o
currículo e suas prescrições aquilo que vem de fora, portanto e o
intenso trato com as vidas pulsantes dos alunos em seu percurso formativo
um dentro que pulsa e insiste em romper os limites da institucionalidade.
16
É nesse lugar que Vandresen crava o seu problema, decorrente de sua
vivência, de sua vida, enfim, de seu diagnóstico como professor/filósofo do
instituto, e aqui prefiro citá-lo para ser mais preciso em sua proposta
investigativa:
[...] o deslocamento das questões de ensino-aprendizagem para a
problematização dos modos de subjetivação nos possibilita o
diagnóstico de qual modelo de subjetividade utilizamos quando
ensinamos. É preciso nos perguntar: qual modo ou processo de
subjetivação colocamos em prática quando assumimos determinadas
práticas de ensino? E, como determinadas escolhas e práticas educativas
produzem um sujeito? Refletir sobre o modo de produção da
subjetividade é um modo de colocar a tarefa filosófica como uma
questão sempre presente, da atualidade do que somos. Se o sujeito é
produzido pelas circunstâncias do cotidiano é problematizando-o em
suas práticas por meio da ontologia do presente e da estética da
existência, que Foucault faz do presente a possibilidade de novas
formas de existir.
2
Nesse modo de problematizar a própria vida é que, inspirado em
Foucault, Vandresen se posiciona para pensar-se e inventar-se como obra
de arte e artista em seu fazer professoral, e é nesse registro que a questão da
técnica e da tecnologia se lhe apresenta como problema a ser investigado.
Acompanhado por Foucault, ele faz uma rica análise da concepção
de técnica que permeia toda a legislação e das práticas institucionais de seu
instituto a fim de mapear as subjetividades que são produzidas nesse
contexto em que a técnica é operada. Em interface com o conceito
foucaultiano de capital humano, aprofunda o alcance de sua problemática,
identificando como esse modelo de educação está aliado às demandas
2
Essa passagem pode ser encontrada na página 22 desse livro.
17
econômicas e se concentra, principalmente, na formação de um indivíduo
eficiente, produtivo, flexível, enfim, uma competência-máquina.
Coloca-se, então, como desafio pensar o papel da filosofia e seu
ensino na formação humana na educação tecnológica. Entretanto, a
própria filosofia é colocada em questão, uma vez que o autor aponta que é
preciso se deslocar de um uso técnico-moral da filosofia, ou seja, daquilo
que ocorre quando ela é direcionada apenas para a formação de
competências críticas enquanto capacidade de julgamento, fruto de uma
tradição do pensamento que é da analítica da verdade. Antes, deve-se
pensar a filosofia e seu ensino como uma atitude no presente, que
potencializa uma liberação impaciente e multiplica os sinais de existência.
Nesse sentido, Vandresen faz uma rica análise filosófica acerca dos
usos e concepções de técnica na modernidade, apoiado em Foucault,
Sloterdijk, Heidegger, para, primeiramente, problematizar seu presente e
as questões da técnica que o permeiam e, consequentemente, pensar outras
possibilidades de com ela operar. Essa análise abrirá a possibilidade de ele
perspectivar com Foucault, especialmente em seus escritos sobre a
biopolítica, um uso da técnica que assujeita e outro que possibilita uma
invenção de si mesmo pela estética da existência.
Por fim, tensionando os usos da concepção de técnica, indica uma
possível saída aos processos de assujeitamento por determinada perspectiva
de técnica para, então, buscar nos gregos, com a ajuda de Foucault, a noção
de techne tou biou (técnica do cuidado de si) como uma prática de
liberação. Propõe-se a pensar a filosofia e seu ensino como um modo de
vida, isto é, um ensino que não seja apenas para adquirir conhecimentos e
competências, mas como um aprendizado do e no exercício de si.
Há de se notar que Vandresen escolheu Foucault como seu
companheiro de viagem. Sabemos que o intuito do filósofo francês era
18
pensar justamente essa ética do cuidado de si para que pudéssemos escapar
das governamentalidades assujeitantes. No entanto, o que notamos
comumente é a autossubjugação dos pesquisadores a ele. Muitas pesquisas
se propõem a fazer justamente aquilo que Foucault condenava: ser
subserviente a um autor aplicando suas teorias e técnicas para modelar a
realidade. Esse livro de Vandresen, nos parece, escapa desse registro. Ele
não permitiu que Foucault o submetesse; ele operou com o pensamento
desse autor para o que a sua análise se sobressaísse. Usou esse autor como
uma caixa de ferramentas para que pudesse se praticar no exercício de
tornar-se professor/filósofo. Nesse sentido, este livro não apenas diz sobre
a técnica, os institutos tecnológicos, o ensino de filosofia, mas nos coloca
a pensar com ele os problemas que essa conjunção, essas relações de
poder/saber, estabelecem sobre ele/nós. Para mim, este é um convite que
Daniel nos faz a adentrar com ele na experiência de pensar o fazer do
professor de filosofia no Instituto Federal.
Nessa difícil tarefa de prefaciar o livro de Vandresen, que deveria
ser o de apresentar os conteúdos que a obra trata, posso dizer que tentei
me furtar um pouco a ela, para enfatizar um convite ao leitor a adentrar as
páginas que aqui se seguem. Se o leitor chegou até aqui na leitura, já não
há mais tempo de dizer da não necessidade desse prefácio, ou melhor, a
desnecessária leitura dele em um texto que fala por si só. De todo modo,
convido-os a não perder mais tempo com devaneios e entrar naquilo que
realmente importa. Boa leitura...
Rodrigo Pelloso Gelamo
19
Introdução
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ___________ _________
O presente livro tem por objetivo problematizar o ensino de
filosofia no Ensino Médio Técnico nos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia (IFs), pensando a atitude do exercício de si como a
tarefa filosófica para a educação tecnológica. A pesquisa utilizou como
referencial teórico a filosofia de Michel Foucault, principalmente os
conceitos da ontologia do presente e da estética da existência, refletindo
sobre uma prática filosófica que se realize como atitude crítica e como
modo de vida. A filosofia entendida como problematização das práticas de
si é o fio condutor pelo qual pensamos a formação ético-política. Sendo
que esses conceitos nos conduziram a seguinte questão norteadora dessa
obra: como praticar, no ensino médio técnico, a filosofia como exercício
de si?
Essa questão nos ofereceu um percurso problemático que é o de
diagnosticar a produção da subjetividade correlacionada com a técnica. O
que nos conduziu, primeiramente, a investigar qual a concepção técnica na
educação tecnologia e como é pensada a subjetividade por um
determinado uso da técnica. E depois, problematizamos o ensino da
filosofia deslocando-o de um uso técnico para pensá-lo como problema
filosófico do exercício de si. A partir na noção de cuidado de si (epimeleia
heautou) na cultura grega clássica e no helenismo dos séculos I e II d.C.,
principalmente nos estoicos, entendemos o exercício de si como a
formação de certa relação de si para consigo que produz a transformação
de si como prática da liberdade e da constituição da felicidade que se tem
consigo mesmo, atividade que Foucault denomina de ascese (2004a, p.
386).
20
Desse modo, o ensino de filosofia na educação tecnológica
constitui nosso objeto de problematização, onde diagnosticamos a
produção de uma subjetividade relacionada à ordenação dos processos
técnicos da vida (biotécnica). Por isso, no decorrer desse texto analisamos
tanto a educação tecnológica e um determinado uso da técnica, como
também o ensino de filosofia, questionando seu uso técnico e pensando
outro uso a partir da tékhne de si. A problematização do ensino de filosofia
é o nosso lugar de fala e de experiência, com isso constitui o registro no
qual pensamos a questão da técnica.
Desse modo, a atuação como docente de filosofia no ensino médio
técnico dos Institutos Federais é o lugar onde inflexionamos nosso
pensamento para refletir sobre as questões que dizem respeito ao ensino da
filosofia em uma educação tecnológica. Por isso, esse livro é fruto de uma
experiência de ensino em filosofia na educação tecnológica, refletida
durante minha pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UNESP de Marília. Em maio de 2011 assumi o cargo de
professor efetivo de Filosofia no Instituto Federal do Paraná. Onde me
defrontei com a necessidade de pensar a pratica da filosofia em um
ambiente que tem como missão a formação profissional e tecnológica. E
em 2015 iniciei o doutorado com o objetivo inicial de contribuir para fazer
da filosofia um lugar de resistência ao direcionamento da formação como
qualificação profissional e construção de uma subjetividade assujeitada ao
modelo econômico neoliberal, ou seja, na normalização biopolítica a
educação funciona produzindo competências para que o indivíduo possa,
pelo aperfeiçoamento de seu capital humano, adequar-se as relações de
governo neoliberais. No entanto, naquele momento pretendíamos utilizar
de certa concepção de filosofia como ferramenta para problematizar a
educação tecnológica. Contudo, o próprio ensino da filosofia não era
colocado como problema. E aos poucos sentimos a necessidade de
21
promover o questionamento do nosso modo de praticar a filosofia como
forma de atenção ao presente e do que afeta nossa existência.
Com o desenvolver dessa pesquisa, aos poucos percebemos que o
próprio ensino de filosofia não era problematizado, sendo utilizado apenas
como ferramenta crítica da educação tecnológica. E o mesmo pode ser
notado em nossa prática filosófica, porque muitas vezes não agimos
problematizando o modo como praticamos o ensino de filosofia. E que
essa maneira de se conduzir sem problematizar nosso próprio modo de
praticá-lo é o que contribui, muitas vezes, para que ele se torne um mero
ensino abstrato. Com o desenvolvimento da pesquisa (orientações e
direcionamentos de leituras) logo sentimos a necessidade de problematizar
o próprio sentido de se fazer filosofia no ensino médio técnico, isto porque,
compreendemos que por meio dele é que se torna possível resistir e se
constituir de maneiras diferentes. Assim, o impulso que nos move nessa
investigação é a disposição para problematizar nosso fazer filosófico sempre
que nos colocamos no ofício de ensinar filosofia, deslocando-se das
questões pedagógicas que envolvem o ensino de filosofia para pensar seu
exercício como problematização das práticas de constituição do sujeito.
Desde 2008, com o retorno da obrigatoriedade da filosofia nos
currículos escolares do ensino médio brasileiro, garantido pela Lei Federal
nº 11.684/08, diversas reflexões vêm sendo desenvolvidas sobre o seu
ensino, as quais se propõem, em síntese, a refletir sobre duas questões: o
que ensinar? (questão do conteúdo) e como ensinar em filosofia?
(questão do método). Segundo Rodrigo P. Gelamo (2009, p. 48) ao
estudar o modo como o ensino de filosofia foi abordado no Brasil aponta
a concentração em três preocupações que nortearam as pesquisas: “(1) o
entendimento da importância do ensino da Filosofia para a sociedade, para
a cultura e para a formação crítica do homem; (2) a reflexão sobre os temas
22
e conteúdos a serem ensinados e sobre o currículo; e (3) a busca do
entendimento metodológico do ensino da Filosofia”.
Desse modo, predominam questões pedagógicas de ensino-
aprendizagem que não conduzem ao exercício de si como problematização
da subjetividade. Nossa proposta é de deslocamento das questões de
ensino-aprendizagem, porque entendemos que os processos de ensino-
aprendizagem se constituem em práticas objetivas que por meio de
modelos de ensinos pressupõem uma normatização da aprendizagem,
elidindo formas de aprender que não se encaixam no modelo de ensino
proposto. Os processos de ensino-aprendizagem produzem apenas o
reconhecimento de si no e pelo conteúdo, não proporcionando o exercício
de problematização de si. Assim, tornam-se processos técnicos que
empobrecem a experiência de si.
Nesse sentido, propomos o deslocamento das questões de ensino-
aprendizagem para a problematização dos modos de subjetivação, com o
objetivo de diagnosticar qual é o modelo de subjetividade que colocamos
em prática quando ensinamos. É preciso nos perguntar: qual modo ou
processo de subjetivação colocamos em prática quando assumimos
determinadas práticas de ensino? E, como determinadas escolhas e práticas
educativas produzem um sujeito? Refletir sobre o modo de produção da
subjetividade é um modo de colocar a tarefa filosófica como uma questão
sempre presente, da atualidade do que somos. Se o sujeito é produzido
pelas circunstâncias do cotidiano é problematizando-o em suas práticas por
meio da ontologia do presente e da estética da existência, que Foucault faz
do presente a possibilidade de novas formas de existir.
Segundo Revel (2005) abordar o tema da subjetividade na
perspectiva foucaultiana significa tratar dos modos de subjetivação, ou
seja, os modosas práticas, as técnicas, os exercícios – colocados em ação
23
em um determinado espaço institucionalizado, no qual o sujeito se
constrói nas relações de saber-poder e na produção de verdade de si. O
problema da subjetividade em Foucault pode ser caracterizado por dois
tipos de análise dos modos de subjetivação: como processo de sujeição do
indivíduo, seja por meio dos saberes que o objetivam, seja por meio dos
poderes que o submetem a um governo e, de outro modo, por meio de
técnicas de si, que fazem com que o sujeito constitua sua própria existência
(REVEL, 2005). Sobre isso, Foucault afirma que “[...] o sujeito se constitui
através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de
práticas de liberação [...]” (FOUCAULT, 2012a, p. 284).
A filosofia praticada como processo de ensino-aprendizagem faz
com que a escolha do que ensinar e de como ensinar em filosofia
tornam-se priorizadas como maneiras de realizar o ensino como
intervenção filosófica, ou seja, como o conteúdo e o método contribuem
para a formação de determinados objetivos do ensino de filosofia. Embora,
essas propostas se colocam como tentativa de manter uma relação menos
abstrata com a história da filosofia, o que elegem como conteúdo e/ou
método a ser praticado nas aulas de filosofia acaba por incorrer em uma
lógica determinista do ensino, isto porque ao não problematizarem o seu
próprio filosofar se conduzem por uma prática que não se desvincula da
tradicional epistemologia do pensamento, o qual é gerido por uma
objetividade que visa a conquista de resultados pré-determinados e pelo
reconhecimento de si no conteúdo dado.
Nesse registro, a transformação que a filosofia produz nos
indivíduos é uma mudança que tem por objetivo a produção de um
determinado tipo de subjetividade já definida de um modo abstrato e
arbitrário no processo de ensino, o que leva a fabricação de um produto: o
pensamento normalizado. Com isso, não se quer dizer que as questões
24
referentes aos conteúdos e as metodologias não sejam importantes, mas
que colocar o problema do diagnóstico da subjetividade como a tarefa
filosófica é uma maneira de pensar o ensino de filosofia como um problema
filosófico no presente.
Nesse sentido, realizar o diagnóstico da subjetividade como tarefa
filosófica significa a partir do registro foucaultiano compreender a
subjetivação como um procedimento que conduz a formação de sujeitos.
Para Foucault, a experiência racionalizada é apenas um dos modos de
constituição dos sujeitos, sendo possível pela resistência e a estética da
existência inventar modos alternativos e mais livres para viver. Os modos
de constituição da subjetividade aparecem como tema central na trajetória
do pensamento de Foucault (seja no saber, no poder ou nas técnicas de si),
sendo por meio da subjetivação ética que o autor irá pensar a resistência à
objetivação dos saberes e a individualização dos poderes.
Segundo Gelamo (2010b) o processo de subjetivação é um
importante instrumento conceitual para pensarmos a reconfiguração da
figura do sujeito no espaço da filosofia ocidental. Ainda, que é preciso
considerar a “[...] subjetivação como um processo que se realiza na tensão
entre o movimento de dominação e resistência que constitui as relações
estratégias de poder” [...] (GELAMO, 2010b, p. 177), ou seja, não existe
um indivíduo que seja totalmente sujeitado, nem que resista sem estar
envolvido por forças de dominação que se exerce nele.
Em nossa análise da produção da subjetividade, apontamos o
diagnóstico de Foucault (2005f) de que na modernidade o sujeito se
constitui pelas relações entre crescimento das capacidades técnicas e
crescimento da autonomia, ou seja, a partir do século XVIII cresceu a
convicção do crescimento proporcional da capacidade técnica e da
liberdade dos indivíduos. O que leva o autor a perguntar: como
25
desvincular o crescimento das capacidades e a intensificação das relações
de poder? Para Foucault a resposta deve ser buscada por uma ontologia
crítica de nós mesmos, a qual conduz a análise histórica dos limites e
ultrapassagens possíveis.
A partir desse registro, a problematização inicial deste texto parte
da hipótese interpretativa de que a constituição da tecnicidade biopolítica
da subjetividade moderna conduziu ao esquecimento da capacidade de
exercitar-se a si mesmo como condição de ultrapassagem do assujeitamento
do indivíduo. De modo que, em nossa análise da educação tecnológica
constatamos a ausência do exercício de si, pois sua formação es
direcionada para a construção de um capital humano em que a aquisição
de competências e técnicas visa a apenas o aperfeiçoamento de si.
E também no ensino de filosofia, quando predomina a transmissão
abstrata do conhecimento não se permite acontecer o exercício de si como
prática da liberdade, isto porque nesse tipo de ensino se produz uma
relação técnica em que a transmissão da verdade é apenas reproduzida sem
produzir uma tensão ética importante para a problematização de si e para
repensar as práticas existenciais. A transmissão do conhecimento não exige
nada do sujeito, apenas o reconhecimento de si no conteúdo reproduzido.
Por isso, cabe à filosofia por meio do exercício de si potencializar a
experiência singular dos modos de vida, ou seja, trata-se de compreender
o exercício de si como princípio de inquietação que faz da experiência a
atenção para a tensão que nos encaminha para uma meta. Desse modo,
por meio da questão “como praticar, no ensino médio técnico, a filosofia
como exercício de si?”, buscamos analisar como na educação tecnológica
ocorre esse assujeitamento do indivíduo, para, então, pensar a filosofia
como prática transformadora de si.
26
Ao perguntar “como praticar” não estamos direcionando a
pesquisa para o estudo operacional-metodológico do ensino de filosofia,
mas entendemos, a partir de Foucault, o estudo das práticas como o
conjunto das maneiras de se fazer e de pensar que são mais ou menos
regradas e que “constituía o real para aqueles que procuram pensá-lo e
dominá-lo”. E então afirma “são as práticas concebidas ao mesmo tempo
como modo de agir e de pensar que dão a chave de inteligibilidade para a
constituição correlativa do sujeito e do objeto.” (FOUCAULT, 2012a, p.
232). Assim, trata-se de pensar a produção da subjetividade e sua
correlação com a ordenação das práticas. Por isso, Foucault recusa o
procedimento filosófico do sujeito constituinte, para “[...] descer ao estudo
das práticas concretas pelas quais o sujeito é constituído na imanência de
um campo de conhecimento.” (FOUCAULT, 2012a, p. 231). Desse
modo, compreendemos a aprendizagem em filosofia como prática, ou seja,
como o conjunto das maneiras de se fazer e pensar que determinam os
modos como agimos e pensamos o mundo. Por isso, a problematização das
práticas é o modo como nessa obra buscamos pensar a filosofia como
exercício de si.
Com essa questão norteadora, pretendemos percorrer, ao longo
desse texto, a análise de três pontos: a problematização da filosofia, na qual
o que está em jogo não é seu ensino, mas de sua aprendizagem como
prática, em que o exercício de aprender a pensar coloca seus atores
(professor e alunos), ao mesmo tempo, como elementos e atores desse
processo; desenvolver uma experiência problematizadora do presente, em
que por meio da noção de ontologia do presente realizamos um
diagnóstico do ensino de filosofia e da educação tecnológica; e
potencializar uma experiência transformadora de si, em que a noção de
estética da existência nos conduz a pensar a filosofia como exercício de si.
27
E nesse desdobramento da análise, estruturamos esse livro em
quatro capítulos: no primeiro, o objetivo é descrever sobre o modelo de
educação tecnológica nos Institutos Federais, análise que realizamos pela
ontologia do presente por meio da problematização da produção de um
determinado tipo de subjetividade; no segundo, problematizando o uso da
técnica questionamos o modo objetivo de como a técnica é pensada na
modernidade e apontamos a necessidade da filosofia pensar outras
maneiras de se relacionar com a técnica; no terceiro, a partir dos conceitos
foucaultianos da biopolítica e da estética da existência problematizamos a
constituição de si pelo uso da técnica; no quarto, o ensino de filosofia é
posto como um problema filosófico, onde o objetivo é descrever a tensão
entre duas formas de se fazer filosofia: uma abstrata, em que predomina a
transmissão técnica da história da filosofia e, a outra, como experiência
problematizadora de nós mesmo. Com essa trajetória intencionamos, a
partir de Foucault (2004a), indicar que a filosofia deve se realizar como
exercício de si, no qual a noção de cuidado de si (epiméleia heaut)
compreendida como atitude, atenção e transformação de si/exercício de si
conduz a liberdade dos modos de vida.
No primeiro capítulo, Por uma problematização da educação
tecnológica, nosso objetivo foi diagnosticar a educação tecnológica dos
Institutos Federais, isto porque esse é o lugar no qual somos marcados por
um determinado modo de ensino tecnológico, no qual cabe à filosofia
tomá-lo como o seu presente problemático. Na primeira parte,
descrevemos e problematizamos a educação tecnológica dos Institutos
Federais em sua concepção e legislação, construindo um diagnóstico crítico
de seu projeto político educacional. Na segunda parte, a partir do conceito
de ontologia do presente conduzimos esse trabalho como problematização
do nosso presente por meio do diagnóstico da subjetividade produzida na
educação tecnológica. A partir da leitura de Foucault, entendemos a noção
28
de crítica como a virtude que realiza a problematização da constituição da
subjetividade ligada ao domínio da técnica.
Nesse primeiro capítulo, nos conduzimos pelas seguintes questões
norteadoras para problematizar a educação tecnológica: que subjetividade
está sendo formada no atual modelo de ensino proposto pela educação
tecnológica dos Institutos Federais? Sua concepção de “trabalho como
princípio educativo” como categoria orientadora da educação tecnológica
consegue romper com uma formação direcionada para o mercado de
trabalho? Estaria esse ensino também atrelado a uma formação técnico-
profissional que se limita apenas a integração ao sistema econômico,
direcionando e fixando a formação humana ao modelo neoliberal de
governar o indivíduo como sujeito produtivo? Nessa sociedade tecnológica
onde os indivíduos têm maiores espaços para exercerem suas competências
e expressarem suas subjetividades, também estamos formando
trabalhadores com maiores condições de emancipação social? E qual o
papel incorporado pelo ensino de filosofia nesse modelo de formação?
Essas questões nos conduzem a problematização política da
educação tecnológica, diagnosticando as implicações biopolíticas em sua
concepção de formação. Segundo Foucault (1995a), no texto O Sujeito e
o Poder”, a educação funciona como um bloco de relações de poder, a
partir do qual se estruturam toda a economia organizacional da instituição
escolar. Nesse registro, o aprendizado de capacidades e tipos de
comportamento se desenvolve por meio da regularização de diferentes
procedimentos de poder (organização espacial, conjunto de comunicações,
de práticas, hierarquia, etc.). Para Escobar (1984) na educação funcionam
diferentes técnicas de direção do corpo do outro, por meio do qual estamos
administrando os outros e ensinando-os a administrá-los. Em nossa análise
da educação tecnológica, optamos pela descrição teórica de sua concepção
29
político-pedagógica, isto porque, nosso objetivo é diagnosticar as
orientações políticas de formação para o ensino tecnológico, no qual a
filosofia tem um papel a desempenhar. Isso aponta para a função crítica da
filosofia que é apontar o uso biopolítico da tecnologia como constituição
do sujeito, denunciando a formação de uma subjetividade assujeitada.
No segundo capítulo, Por uma problematização do uso da
técnica”, nosso objetivo é questionar a técnica e diagnosticar se em
determinado uso dela se permite ou não a experiência de si. Acreditamos
que com a descrição das leituras de Heidegger, Sloterdijk e Foucault, seja
possível refletir outros usos da técnica e que o exercício de si possa ser
pensado como uma nova possibilidade estratégica, transformando a vida
pelos exercícios.
Na primeira parte desse capítulo mostramos a necessidade do
deslocamento da questão da técnica, onde nosso objetivo não é julgar a
técnica construindo um juízo moral de seu uso, mas, antes, trata-se de
descrever como através dela se permite ou não uma relação transformadora
de si mesmo. Assim, o papel da filosofia não deve ser apenas o de vigiar os
abusos do poder por meio de um juízo de valor sobre o uso das técnicas,
mas conduzir a um novo uso da técnica como forma de exercício de si.
Na segunda parte, problematizamos o uso da técnica moderna a
partir da descrição das leituras de Heidegger, Sloterdijk e Foucault. Para
Heidegger se faz necessário o deslocamento da técnica moderna para a
questão da essência da técnica como única forma de construção de uma
relação livre com ela. Já para Sloterdijk deve-se compreender a técnica
como exercício em que se permite um operar-se a si mesmo e como
oposição ao deixar-se operar, para então, praticar o imperativo “você tem
que mudar tua vida”. E a partir da leitura de Foucault descrevemos a noção
grega de tékhne e sua relação com o cuidado de si. O modo como
30
utilizamos a noção de tékhne passa pelo deslocamento do uso utilitarista da
técnica moderna para um novo uso da tékhne, em que seja possível o
exercício de si.
Ao descrever a filosofia de Foucault relacionando o cuidado de si e
ensino de filosofia não pretendemos transpor para nossa época os
diferentes elementos que envolvem esse conceito grego, nem fazer da
filosofia o dever de praticar o cuidado de si, mas, assim como também fez
Foucault, praticar a dessubjetivação, ou seja, analisar como as técnicas de
si tornam-se uma ferramenta importante para a problematização dos
processos de assujeitamento no presente.
No terceiro capítulo, Por uma problematização das técnicas de
constituição de si”, descrevemos a partir dos conceitos da biopolítica e da
estética da existência do filósofo Michel Foucault dois modos opostos de
relacionar a constituição dos modos de vida pelo uso da técnica. Nesse
momento nos conduzimos pelas seguintes questões: pela noção de
biopolítica, como as técnicas de produção de si constituem-se em uma
tecnicidade da vida que anula a potência criativa no agir da própria vida?
E pela estética da existência, como fazer da própria vida objeto de uma
tékhne enquanto arte de viver?
Na primeira parte, tendo como referência a noção de biopolítica,
descrevemos a produção da subjetividade pelo domínio de relações de
poder biotécnicos, os quais têm como consequência a normalização da vida
moderna e o empobrecimento da experiência na educação. Na segunda
parte, desenvolvemos o conceito de estética da existência, pela qual
pensamos a filosofia como criação dos modos de vida. Ideia que nos
conduz ao questionamento do uso biotécnico da vida para, então, pensar
por meio da noção de cuidado de si outro uso da técnica que é o da vida
como arte de viver (tékhne toû bíou).
31
No quarto capítulo, Por uma problematização do ensino de
filosofia no ensino médio técnico: o exercício de si como modo de vida,
problematizamos o ensino de filosofia descrevendo sobre dois modos de
praticá-la: um abstrato e o outro como problematizador das práticas de si.
A partir disso, pensamos a filosofia como um movimento de
(des)aprendizagem, que por meio da atitude problematizadora conduz a
transformação das práticas de sujeição. Também compreendemos a
filosofia como tékhne do exercício de si, em que a tarefa filosófica se
constitui em aprender a cuidar do cuidado de si.
Na primeira parte apontamos a necessidade do deslocamento de
um ensino por transmissão para a aprendizagem da experiência
problematizadora de nós mesmos. É preciso mencionar que assumimos
essa segunda atitude como o modo de pensar a filosofia, isto porque
consideramos que este modo constitui uma maneira de pensar a formação
ético-política na educação. Desse modo, a problematização das práticas de
si é o fio condutor pelo qual pensamos a filosofia e, também, pelo modo
como conduzimos esse trabalho como atitude de contraposição à ideia do
ensino como transmissão.
Predomina no ensino de filosofia a concepção de que se deve
transmitir a história da filosofia como condição para a busca da verdade.
Contudo, na filosofia como transmissão se faz uso da verdade como posse
do conhecimento, o que impede o uso da história da filosofia como
dessubjetivação no presente. Portanto, a filosofia como transmissão se
constitui em um uso técnico no ensino, porque produz um sujeito
autômato que apenas reproduz o conteúdo. A tradição filosófica, como
também o próprio modo de se fazer filosofia, tem privilegiado o “conhece-
te a ti mesmo” como uma maneira de praticar a filosofia, na qual prevalece
o conhecimento como modo de descoberta de si e ignorado o cuidado de
32
si como modo de transformação do sujeito. É necessário pensar a filosofia
como algo que se dá na própria vida, pois o exercício de transformação de
si faz com que a verdade seja vivida de um modo singular e como
resistência aos modos de governo da verdade.
A partir disso, descrevemos sobre o que significa pensar a prática
do ensino de filosofia no ensino médio técnico em nossa experiência de
docente no Instituto Federal do Paraná
3
. Em nossa análise, destacamos a
necessidade do deslocamento das questões pedagógicas sobre o ensino de
filosofia porque são discussões que se encerram nos processos objetivistas
do ensino (O que ensinar? E como ensinar em filosofia?) e, também,
porque conduzem apenas a um uso técnico-moral da filosofia ao buscarem
a formação de um sujeito crítico para exercer um comportamento cívico.
E objetivamos pensar a filosofia como aprendizagem problematizadora que
conduz a um movimento de dessubjetivação das relações de poder. E
assim, o papel da filosofia se constitui em um uso ético-político de
resistência aos modos de governo e como criação de novos modos de vida.
Com a inflexão ética e política dessa discussão pensamos a prática de um
êthos filosófico como campo de formação que extrapola a escola e, também,
como prática política que implica em uma escolha que atravessa o currículo
para além da formação disciplinar.
3
O Instituto Federal do Paraná (IFPR) iniciou suas atividades em 2009 e sua constituição se deu de
forma diferente do que ocorreu em outros Estados em que o CEFET (Centros Federais de Educação
Tecnológica) foi a estrutura utilizada para a criação dos Institutos Federais (no primeiro capítulo
descreveremos sobre alguns aspectos da criação dos Institutos Federais). No que diz respeito ao modo
como o ensino de filosofia é praticado no Instituto Federal do Paraná, espaço a partir do qual falo pela
experiência de docente desde maio de 2011, nota-se que não há uma articulação em torno de um debate
sobre o papel do ensino de filosofia na educação técnica e tecnológica, mas a prática do ensino de filosofia
se realiza de forma isolada a partir das concepções e formações específicas de cada docente. Com isso, não
se quer dizer que deve existir a necessidade de uma política institucional comum aos campi, mas que a
ausência de discussão sobre o ensino de filosofia não contribui para a disseminação de diferentes práticas,
bem como para a problematização e transformação de nossas próprias práticas.
33
Na segunda parte desse capítulo, nos conduzimos pela ideia de
pensar a relação entre filosofia e técnica a partir da ligação que Foucault
estabelece na noção de parresía entre os elementos da atitude moral (êthos)
e procedimentos técnicos (tékhne), ou seja, existe uma relação indissociável
entre exercitar-se por meio de determinadas técnicas e a constituição de
um modo de ser. Assim, diagnosticar a ligação entre êthos e khne constitui
o fio condutor pela qual pensamos esse capítulo, isto porque é por meio
dessa relação que pensamos a formação ética do sujeito. Por isso, nosso
objetivo é analisar o ensino de filosofia no ensino médio técnico como a
tarefa crítica que por meio do exercício de si torna possível constituir um
autogoverno como prática da liberdade. E nessa tarefa, acreditamos que a
problematização das práticas como repetição cotidiana do exercício de si
conduz a recriar cotidianamente uma maneira singular de ensaiar a vida.
É preciso destacar, que o modo como conduzimos nosso trabalho
pelos conceitos da ontologia do presente e da estética da existência não é
com o objetivo de reproduzir um determinado modo de diagnóstico e
criação de vida como é descrito por Foucault, mas o de pensar como por
meio deles torna-se possível o processo de dessubjetivação em nosso
presente e dos problemas que são nossos. Nessa perspectiva, não
pretendemos defender que o dever do ensino de filosofia seja o de
reproduzir-se como cuidado de si e, sim, pensar a prática da filosofia como
um cuidado para consigo pelo deslocamento da subjetividade que nos
governa.
A postura assumida durante a escrita desse texto não é o de
prescrever modelos, antes, ao desenvolver outros sentidos para se praticar
a filosofia buscamos destruir evidencias e produzir atitudes, pois como
afirma Foucault:
34
A função de um intelectual não é dizer aos outros o que eles devem
fazer. [...] é, através das análises que faz nos campos que são os seus, o
de interrogar novamente as evidências e os postulados, sacudir os
hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades
aceitas, [...] e, a partir dessa nova problematização [...] participar da
formação de uma vontade política [...] (FOUCAULT, 2012a, p. 243).
Desse modo, nosso papel como docente de filosofia não é o de
transmitir um conhecimento que por meio do qual se reproduzam modos
cristalizados de interpretação do mundo, ao contrário, por um modo de
fazer filosófico problematizador conduza a transformação dessas práticas e
contribua para a formação de uma atitude política.
Desse modo, as questões manifestadas nessa no decorrer desse texto
são fruto de minha experiência como docente da disciplina de filosofia, da
qual surgem duas inquietudes: uma como pensador, que influenciado pelas
ideias de Michel Foucault, me levam a problematizar a experiência
biopolítica da vida moderna; a outra, como professor de filosofia, que em
minha ainda curta experiência no ensino médio técnico vivo
desacomodado com a tarefa de ensinar filosofia no presente.
Enfim, nesse livro os capítulos foram estruturados em dois
sentidos: um aspecto político que é o deslocamento das questões
pedagógicas do ensino de filosofia na educação tecnológica a partir de um
diagnóstico das concepções e diretrizes dos Institutos Federais de Educação
e, o outro, um aspecto filosófico que objetiva pensar outro sentido para o
ensino de filosofia no ensino técnico em que a problematização das práticas
de si constitua-se em um exercício de vida. Em nossa análise, observamos
a necessária atenção cotidiana com as práticas, pois é pela problematização
das práticas que se pode construir uma atitude de dessubjetivação, ou seja,
é pensando a prática filosófica como desaprendizagem que fazemos do
cuidado de si a questão política da dessubjetivação. Assim, com o título “O
35
ensino de filosofia no Ensino Médio Técnico: o exercício de si como modo
de vida filosófica, nosso objetivo foi mostrar em sua primeira parte o
deslocamento das discussões sobre as questões pedagógicas do ensino de
filosofia para, na segunda parte, apontar a necessidade de pensar a filosofia
como um exercício de si que conduza a formação de diferentes modos de
vida.
36
37
1
Por uma problematização da Educação Tecnológica
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ___________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ____________ ___________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ _______
Sendo nosso objetivo pensar o ensino de filosofia na educação
tecnológica dos Institutos Federais torna-se indispensável caracterizar esse
lugar onde se ensina filosofia, no qual ela tem o papel de tomá-lo como o
seu presente problemático. Por isso, iniciamos esse capítulo descrevendo
sobre os Institutos Federais, caracterizando a educação tecnológica e sua
proposta político-pedagógica para o ensino técnico. Na segunda parte,
apresentamos a partir da ontologia do presente de Michel Foucault, o
modo como conduzimos nossa problematização do presente por meio do
diagnóstico da subjetividade produzida na educação tecnológica.
A Educação Profissional e Tecnológica:
Legislação, Concepção e Críticas
Os “Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: um novo modelo
de educação tecnológica”
4
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia têm sua
origem com a Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, a qual cria os
Institutos e institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
4
Retirado do próprio título do documento da SETEC/MEC intitulado: Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia: Um novo modelo de educação profissional e tecnológica - concepção e diretrizes
(BRASIL, 2010, grifo nosso). Chama a atenção de como aparece nos discursos governamentais à
caracterização de uma nova proposta política para a educação tecnológica.
38
Tecnológica
5
, vinculada ao Ministério da Educação no âmbito do sistema
federal de ensino. Os Institutos Federais de Educação (IFs) são uma
instituição especializada na oferta de educação profissional e tecnológica
nos diferentes níveis e modalidades de ensino (segundo o Art. 2
o
da Lei
11.892 os IFs devem ofertar a educação profissional técnica de nível médio
até a pós-graduação). Os IFs foram criados a partir de uma estrutura já
instalada e por um processo de “agregação voluntária de Centros Federais
de Educação Tecnológica CEFET, Escolas Técnicas Federais ETF, Escolas
Agrotécnicas Federais EAF e Escolas Técnicas vinculadas às Universidades
Federais, localizados em um mesmo Estado” (BRASIL, 2007a).
Com a criação dos Ifs, a Lei nº 11.892 define suas finalidades e
características:
Os Institutos Federais têm por finalidades e características: I - ofertar
educação profissional e tecnológica, em todos os seus níveis e
modalidades, formando e qualificando cidadãos com vistas na atuação
profissional nos diversos setores da economia, com ênfase no
desenvolvimento socioeconômico local, regional e nacional; II -
desenvolver a educação profissional e tecnológica como processo
educativo e investigativo de geração e adaptação de soluções técnicas e
tecnológicas às demandas sociais e peculiaridades regionais; III -
promover a integração e a verticalização da educação básica à educação
profissional e educação superior, otimizando a infraestrutura física, os
quadros de pessoal e os recursos de gestão; IV - orientar sua oferta
formativa em benefício da consolidação e fortalecimento dos arranjos
produtivos, sociais e culturais locais, identificados com base no
5
Segundo o Art. 1
o
a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculada ao
Ministério da Educação é constituída pelas seguintes instituições: “I - Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia - Institutos Federais; II - Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR;
III - Centros Federais de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - CEFET-RJ e de Minas Gerais
- CEFET-MG; IV - Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais; e V - Colégio Pedro II
(BRASIL, 2008b).
39
mapeamento das potencialidades de desenvolvimento socioeconômico
e cultural no âmbito de atuação do Instituto Federal; V - constituir-se
em centro de excelência na oferta do ensino de ciências, em geral, e de
ciências aplicadas, em particular, estimulando o desenvolvimento de
espírito crítico, voltado à investigação empírica; VI - qualificar-se
como centro de referência no apoio à oferta do ensino de ciências nas
instituições públicas de ensino, oferecendo capacitação técnica e
atualização pedagógica aos docentes das redes públicas de ensino; VII
- desenvolver programas de extensão e de divulgação científica e
tecnológica; VIII - realizar e estimular a pesquisa aplicada, a produção
cultural, o empreendedorismo, o cooperativismo e o desenvolvimento
científico e tecnológico; IX - promover a produção, o desenvolvimento
e a transferência de tecnologias sociais, notadamente as voltadas à
preservação do meio ambiente (BRASIL, 2008b, Art. 6
o
, grifos nossos).
Segundo Silva et al. (2009), ao publicarem a lei comentada,
afirmam que na maior parte das finalidades da lei observa-se a insistência
em estabelecer como parâmetro para a educação tecnológica uma relação
transformadora da sociedade, o que pode ser observado no direcionamento
das ações de extensão com o laço nas demandas sociais e, do ensino e da
pesquisa com as necessidades econômicas.
Em relação aos objetivos dos IFs a lei define no Art. 7
o
uma
diversidade de modalidades de ensino, podendo ministrar educação
profissional técnica de nível médio até a pós-graduação. Segundo Silva et
al. (2009) essa abrangência da oferta da educação tecnológica apontam
para uma formação que visa tanto a qualificação inicial quanto a formação
que se estende ao longo da vida.
Nessas diferentes modalidades, o que chama atenção é a prioridade
na expansão do ensino técnico de nível médio como uma nova aposta da
política federal de ensino, como está definido no Art. 8º:
40
No desenvolvimento da sua ação acadêmica, o Instituto Federal, em
cada exercício, deverá garantir o mínimo de 50% (cinquenta por cento)
de suas vagas para atender aos objetivos definidos no inciso I [ministrar
educação profissional técnica de nível médio] do caput do art. desta
lei, e o mínimo de 20% (vinte por cento) de suas vagas para atender ao
previsto na alínea b do inciso VI [cursos de licenciatura] do caput do
citado art. 7
o
(BRASIL, 2008b, nossa inserção).
Outra marca dessa nova instituição é sua expansão territorial.
Território entendido em um duplo sentido: como espaço geográfico e
enquanto espaço de redes de relações sociais que potencializam o
desenvolvimento local. Nesse segundo sentido, Silva et al. (2009, p. 36)
afirma que: “é no território que se materializa o desenvolvimento local e
regional na perspectiva da sustentabilidade um dos preceitos que
fundamenta o trabalho dos institutos federais”. Conforme documento da
Setec/MEC sobre a concepção e as diretrizes dos IFs “é evidente a atuação
do governo federal no sentido da expansão da oferta pública [...] da
educação profissional e tecnológica em todo o território nacional”
(BRASIL, 2010, p. 14).
Analisando mais especificamente as concepções teóricas dos IFs,
nosso principal foco de análise, em 2010 foi publicado um documento de
referência pela Setec/MEC com o título Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia: Um novo modelo de educação profissional e
tecnológica - concepção e diretrizes (BRASIL, 2010), o qual tem por
objetivo “[...] trazer à luz aspectos identitários dessa nova
institucionalidade que surge dentro da rede federal de educação
tecnológica: os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia.
(BRASIL, 2010, p. 39). Através dele se veicula mais que uma concepção
teórica para a educação tecnológica, também uma política de governo.
41
Enquanto política pública, o novo projeto de educação tecnológica
pensada para os IFs é concebido como:
[...] um projeto progressista que entende a educação como
compromisso de transformação e de enriquecimento de
conhecimentos objetivos capazes de modificar a vida social e de
atribuir-lhe maior sentido e alcance no conjunto da experiência
humana, proposta incompatível com uma visão conservadora de
sociedade. Trata-se, portanto, de uma estratégia de ação política e de
transformação social (BRASIL, 2010, p. 18).
O novo modelo de educação tecnológica pretende superar o
direcionamento, vigente até 2003, de uma educação historicamente
voltada para a educação profissional e para o desenvolvimento econômico,
onde estava presente “[...] uma concepção de caráter funcionalista, estreito
e restrito apenas a atender aos objetivos determinados pelo capital, no que
diz respeito ao seu interesse por mão de obra qualificada” (BRASIL, 2010,
p. 19-20). E passa a conceber uma base educacional humanístico-cnico-
científica, em que o foco desloca-se para a qualidade social e o
desenvolvimento do território, entendendo este como o lugar da vida. O
documento ainda destaca a prioridade na oferta da educação básica, tendo
uma proposta curricular que integra o ensino médio à formação técnica no
desafio de construir uma nova identidade para essa última etapa da
educação básica. Entendendo que essa integração deve se dar em novos
moldes para superar o conceito de escola dual, fragmentada e a
hierarquização dos saberes (BRASIL, 2010).
O princípio da integração que orienta a concepção de educação
tecnológica é pensado por meio da articulação dos conceitos de trabalho,
ciência, tecnologia e cultura, capaz de promover um diálogo entre os
conhecimentos científicos, tecnológicos, sociais e humanísticos com a
42
preparação das habilidades relacionadas ao trabalho. Também aponta o
trabalho como princípio educativo e como categoria orientadora das
políticas da educação profissional e tecnológica (BRASIL, 2010). A base
teórica que sustenta o documento é uma leitura conceitual marxista e de
uma educação sob a perspectiva histórico-crítica. O que pode ser percebido
na utilização como referência teórica de Álvaro Ribeiro Pinto
6
, o
documento de 2010 cita a seguinte passagem do autor:
O trabalho constitui, por definição, um fenômeno total da sociedade,
revelando-a em todos os aspectos. Pelo trabalho, visando à produção
em si, o conjunto social apresenta-se formando a verdadeira totalidade
humana, e logo se desenham as relações dialéticas de implicações
mútuas que ligam todas as fases. Se compreendermos que a tecnologia
é função do Estado de desenvolvimento de trabalho social e não efeito
do desenvolvimento imaginário do espírito ou da cultura, vemos logo
não poder estar naquele aspecto particular a explicação do conjunto; é
o conjunto da sociedade que explica as técnicas nela existentes
(PINTO, 2005 apud BRASIL, 2010, p. 33).
7
A utilização de Pinto como fundamentação em um documento
oficial se deve ao fato de que, tanto esse autor como também as diretrizes
do IFs revelam um projeto político de nação, no qual se pretende efetivar
6
Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) foi médico, matemático, físico, professor de Filosofia na Universidade
Nacional e diretor executivo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). O ISEB, criado em
1955 e fechado em 1964 por causa do regime militar, foi institucionalizado pelo Estado com a intenção
de fortalecer o nacionalismo como ideologia oficial, através da elaboração de uma ideologia nacional de
desenvolvimento para o país. A partir da tradição hegeliana e marxista, desenvolve o eixo epistemológico
de análise histórico-dialética. Durante os anos de 1955 a 1964, no qual juntamente com outros
intelectuais brasileiros, ele pensava um projeto de nação e de desenvolvimento em prol dos cidadãos
brasileiros, momento esse de estadia no ISEB. É chamado por Paulo Freire de “mestre brasileiro”. Uma
de suas principais obras é O Conceito de Tecnologia (em 2 volumes). Através de seu enfoque da filosofia
da técnica, em plena ditadura militar, relacionava a filosofia, a antropologia e a história em um projeto
emancipador para países em dependência tecnológica. Para mais, conferir Sandeski (2015).
7
Conforme a nota n. 24 (BRASIL, 2010, p. 41) a citação é da obra O conceito de tecnologia de Álvaro
Vieira Pinto.
43
a articulação entre educação e trabalho, fazendo com que o indivíduo não
apenas reproduza e, sim, domine o conhecimento científico e tecnológico.
E através disso, se visualiza a formação de um sujeito emancipado e capaz
de transformação social. “Entende-se que essa formação do trabalhador
seja capaz de tornar esse cidadão um agente político, para compreender a
realidade e ser capaz de ultrapassar os obstáculos que ela apresenta”
(BRASIL, 2010, p. 33). Segundo Sandeski (2015), com Álvaro Vieira
Pinto se preconiza uma educação voltada para a classe trabalhadora,
buscando a unidade entre educação e produção material.
Já para Eliezer Pacheco
8
(2011a) os Ifs constituem um modelo
institucional absolutamente inovador em termos de proposta político-
pedagógica e aponta para um novo tipo de instituição, identificada e
pactuada com o projeto de sociedade em curso no país (o desenvolvimento
econômico e tecnológico nacional). Ainda, afirma Pacheco que com os Ifs:
“Vislumbra-se que se constituam em marco nas políticas educacionais no
Brasil, pois desvelam um projeto de nação que se pretende social e
economicamente mais justa(PACHECO, 2011a, p. 32).
No aspecto formativo, fica evidente a concepção do trabalho como
dimensão potencializadora do ser humano. As diretrizes dos IFs deixam
claro que a referência é o homem, em uma educação para o trabalho que
promova sua emancipação, ideal que é base para a concepção de educação
profissional e tecnológica dos Institutos Federais, como se afirma:
A educação para o trabalho nessa perspectiva entende-se como
potencializadora do ser humano, enquanto integralidade, no
desenvolvimento de sua capacidade de gerar conhecimentos a partir de
8
Eliezer Pacheco, Secretário de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) no Ministério da Educação
(2006-2011).
44
uma prática interativa com a realidade, na perspectiva de sua
emancipação (BRASIL, 2010, p. 33-34).
Essa compreensão está presente na própria lei dos IFs, pois segundo
Pacheco e Rezende (2009), ao escreverem a apresentação da lei comentada,
os IFs deverão adotar como diretriz, entre outros pontos mencionados, o
reconhecimento do trabalho como experiência humana primeira,
organizadora do processo educativo. Em outro momento, Pacheco
(2011a) afirma que sendo o trabalho elemento constituinte do homem, a
referência fundamental para a educação profissional e tecnológica é o ser
humano. Já Silva et al. (2009), também na lei comentada, destaca a
dimensão criativa do trabalho em um fazer humano que está implicado
com a produção. Por ter como objetivo primeiro a profissionalização a
proposta pedagógica dos IFs “[...] tem sua organização fundada na
compreensão do trabalho como atividade criativa fundamental da vida
humana e em sua forma histórica, como forma de produção” (SILVA et
al., 2009, p. 23).
Nesse mesmo horizonte, compreendendo o trabalho como um
fazer humano e produção do social, a noção de tecnologia passa a ser
interpretada a partir desse registro. Os Ifs “[...] sem ignorar o cenário da
produção, tendo o trabalho como seu elemento constituinte, propõem
uma educação em que o domínio intelectual da tecnologia, a partir da
cultura, firma-se (BRASIL, 2010, p. 33). Isso significa, segundo as
diretrizes (BRASIL, 2010, p. 30-35), que é preciso superar a dicotomia
entre ciência e tecnologia, entre teoria e prática, passando a propor uma
educação tecnológica em que haja a apropriação da tecnologia através do
domínio dos fundamentos e princípios científicos, o que é denominado
como “um lidar reflexivo que realmente trabalhe a tecnociência”, sendo
que isso deve ser praticado através de um conhecimento que se realize pelo
45
ato de pesquisar em dois princípios: educativo (que diz respeito à atitude
de questionamento diante da realidade) e científico (que se consolida na
construção da ciência).
Essa noção de tecnologia já es presente em 2004 na construção
das Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica, na qual se
defende que a educação tecnológica deve “[...] registrar, sistematizar,
compreender e utilizar o conceito de tecnologia, historicamente e
socialmente construído [...]” (BRASIL, 2004, p. 15). E sobre a relação do
homem com a tecnologia afirma: “Dominar a tecnologia, pois, em vez de
ser dominado por ela, eis a grande questão. O controle não será exercido
pela força, mas pelos valores e pelo sentido maior concedido ao ser
humano” (BRASIL, 2004, p. 16). O foco deve ser o fazer humano e não o
fazer da tecnologia, daí a centralidade do conceito de trabalho no processo
pedagógico da educação tecnológica.
Em síntese, esses documentos que fundamentam a prática
pedagógica nos IFs têm como centralidade de seus discursos promoverem
uma educação que se realize por meio da concepção do trabalho como
princípio educativo e como estratégia de ação política a formação de um
sujeito que ao dominar o conhecimento científico e tecnológico seja capaz
de autonomia e transformação social.
A Educação Profissional Técnica de Nível Médio:
diretrizes e concepção
Nessa seção vamos desenvolver um diagnóstico da concepção de
educação tecnológica no ensino técnico de nível médio, pois este é o espaço
por excelência do ensino de filosofia no qual atuamos e problematizamos
nossa pesquisa.
46
Em relão à legislação para educação profissional de nível médio,
em 2008 a Lei nº. 11.741 altera os dispositivos da Lei nº. 9.394 (Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDBEN), institucionalizando
e integrando as ações da educação profissional técnica de nível médio. A
Lei nº. 11.741 revaloriza a possibilidade do ensino médio integrado com
a educação profissional técnica, a qual era tratada superficialmente pela
LDBEN. Uma de suas principais orientações teóricas é a integração entre
trabalho, ciência e tecnologia. Conforme expresso no Art. 39: “A educação
profissional e tecnológica, no cumprimento dos objetivos da educação
nacional, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às
dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia” (BRASIL, 2008a).
Discussão que já se realizava desde 2007 com o Documento Base
Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio
(BRASIL, 2007b), no qual se discute o projeto de integração do ensino
médio à educação profissional sob os princípios do trabalho, da ciência, da
tecnologia e da cultura. Afirmando que: “A ideia de formação integrada
sugere superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do
trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar”
(BRASIL, 2007b, p. 41). Assim, o documento tem por objetivo, primeiro,
descrever sobre a história da educação profissional no país mostrando o
predomínio da dualidade entre a educação básica e profissional e, em
seguida, defender a superação dessa dualidade através de um novo projeto
unitário para o ensino médio integrado a formação profissional, através da
interpretação do trabalho sob o viés ontológico-histórico.
Analisando mais especificamente os pressupostos teóricos das
diretrizes para a Educação Profissional e Tecnológica, em 2012 foram
elaboradas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Profissional Técnica de Nível Médio(Parecer CNE/CEB nº 11/2012,
47
aprovado em 09/05/2012 e a Resolução nº 6 de 20 de Setembro de 2012).
Esses documentos pretendem reger as novas diretrizes para o ensino médio
técnico em meio às novas relações de trabalho nesta sociedade tecnológica.
Desse modo, assumem o conceito de trabalho como um princípio
norteador das diretrizes como exposto no inciso III do Art. 6
o
da
Resolução: “trabalho assumido como princípio educativo, tendo sua
integração com a ciência, a tecnologia e a cultura como base da proposta
político-pedagógica e do desenvolvimento curricular (BRASIL, 2012b) e
no parecer “O trabalho, no sentido ontológico, é princípio e organiza a
base unitária do Ensino Médio” (BRASIL, 2012a, p. 16).
A Resolução nº 6/2012 acrescenta que os currículos dos cursos de
Educação Profissional Técnica de Nível Médio devem proporcionar aos
estudantes:
I - diálogo com diversos campos do trabalho, da ciência, da tecnologia
e da cultura como referências fundamentais de sua formação;
II - elementos para compreender e discutir as relações sociais de
produção e de trabalho, bem como as especificidades históricas nas
sociedades contemporâneas;
III - recursos para exercer sua profissão com competência, idoneidade
intelectual e tecnológica, autonomia e responsabilidade, orientados por
princípios éticos, estéticos e políticos, bem como compromissos com a
construção de uma sociedade democrática (BRASIL, 2012b, Art. 14).
Já no Parecer CNE/CEB nº 11/2012 se salienta que o mundo do
trabalho funciona como referência para a educação profissional, pois
orienta o direcionamento formativo, o qual precisa fornecer além do
domínio operacional de um determinado fazer, também precisa aliar “[...]
a compreensão global do processo produtivo, com a apreensão do saber
tecnológico, a valorização da cultura do trabalho e a mobilização dos
48
valores necessários à tomada de decisões no mundo do trabalho” (BRASIL,
2012a, p. 8). Ainda para o Parecer a educação profissional não é
identificada como simples instrumento de política assistencialista ou
apenas um ajustamento às demandas do mercado de trabalho, mas ela
permite ser uma estratégia para que os cidadãos tenham efetivo acesso às
conquistas científicas e tecnológicas da sociedade.
Em 2012 Eliezer Pacheco publica o livro Perspectivas da Educação
Profissional Técnica de Nível Médio - Proposta de Diretrizes Curriculares
Nacionais, o qual é o resultado das discussões de vários colaboradores e de
audiências públicas realizadas ainda em 2010 pelo Conselho Nacional de
Educação (CNE). Com essa publicação, o autor declara ter por objetivo
contribuir para as discussões na iminência da apreciação e aprovação das
diretrizes para a educação tecnológica. E tratando sobre os conceitos das
diretrizes, Pacheco (2012) afirma que o trabalho como princípio educativo
é a base para a organização e desenvolvimento curricular em seus objetivos,
conteúdos e métodos, como também é o que possibilita compreender a
relação indissociável entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura.
Ao tratar sobre o conceito de trabalho, Pacheco (2012) entente que
o sentido ontológico do trabalho é o que permite evidenciar a unicidade
entre as dimensões científica, tecnológica e cultural. Já o trabalho torna-se
princípio educativo tanto pelo sentido ontológico, como no sentido
histórico do trabalho: no primeiro, transforma-se em conhecimento
desenvolvido e apropriado socialmente para a transformação das condições
naturais da vida e a ampliação das capacidades das potencialidades e dos
sentidos humanos; no segundo, visa a participação direta dos membros da
sociedade no trabalho socialmente produtivo. Sendo que é por meio desses
dois sentidos que se organiza a base unitária do ensino médio. Ainda,
defende que é nesse segundo sentido que se “[...] fundamenta e justifica a
49
formação específica para o exercício de profissões, essas entendidas como
uma forma contratual, socialmente reconhecida, do processo de compra e
venda da força de trabalho” (PACHECO, 2012, p. 69).
Na descrição até aqui, observou-se que a concepção do trabalho
como dimensão ontológico-histórica constitutiva do ser humano atravessa
as políticas de formação no campo da educação e tornando-se referência
tanto para a legislação educacional.
A atitude crítica como diagnóstico do presente
Problematização
A problematização que realizamos nesta pesquisa está ligada ao
modo como Foucault compreende a tarefa filosófica, a qual o autor
desenvolve a partir de duas atitudes: como questão política, um
diagnóstico da atualidade e como questão ético-estética, a criação dos
modos de vida. Sobre o primeiro aspecto, ao descrever sobre a noção de
crítica Foucault afirma:
A reflexão filosófica sobre ‘a atualidade’ como diferença na história e
como motivo para uma tarefa filosófica particular me parece ser a
novidade desse texto. [...] uma escolha voluntária que é feita por
alguém; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira
também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca
pertinência e se apresenta como uma tarefa (FOUCAULT, 2005f, p.
341-342, grifo nosso).
Trabalho filosófico que Foucault expressa pela pergunta: “O que,
no presente, faz sentido para uma reflexão filosófica?” (FOUCAULT,
2011e, p. 260). Com isso, nosso objetivo com a problematização do ensino
de filosofia não é o de realizar uma descrição do modo como a filosofia é
50
estruturada metodologicamente, mas ao colocar a questão da tarefa
filosófica se quer contribuir para fazer com que ela seja um diagnóstico do
presente, em busca do que faz sentido para sua reflexão e pelo qual se deve
lutar. Trata-se de uma dimensão política, que se propõe a diagnosticar as
possibilidades de transformação de nós mesmos, do que estamos dispostos
“[...] a aceitar, a rejeitar e a mudar, tanto em nós mesmos quanto em nossas
circunstâncias” (FOUCAULT, 2011d, 154, nota n. 90).
Em Foucault, a questão política é inseparável da experiência ética
que o sujeito faz de si mesmo. Por isso, a questão ético-estética da tarefa
filosófica é apontada pelo autor como resposta a pergunta: “Como é
possível fazer do estilo de vida um grande problema filosófico?”
(FOUCAULT, 2012a, p. 247). Pergunta que tem por objetivo orientar
nossa investigação a compreender a prática filosófica como uma atitude
crítica do modo como conduzimos nossa vida. Ao praticar a filosofia,
professor e estudante, enquanto elementos e atores dessa prática ensaiam
por meio da tarefa filosófica do exercício de si a criação de novas formas
de vida. Desse modo, por meio das questões da política e da ética-estética
fomos impulsionados a problematizar a tarefa filosófica do exercício de si,
ou seja, pela ontologia do presente busca-se pensar a tarefa filosófica como
diagnóstico do que nós somos e, pela estética da existência pretende-se
pensar a filosofia como um modo de conduzir a vida como uma arte de si.
A partir desse direcionamento das dimensões política, ética e
estética, compreendemos que para que algo possa surgir como sentido em
uma reflexão filosófica e possa conduzir a vida como problema filosófico
se faz necessário a problematização dos modos de subjetivação presente no
processo educacional.
Desse modo, em nossa pesquisa a indagação sobre a tarefa filosófica
tem como especificidade a problematização da subjetividade formada no
51
ensino médio técnico do Instituto Federal. Com a delimitação desse espaço
de investigação, afirmamos que o lugar em que se pratica o ensino da
filosofia também se constitui em uma questão fundamental, pois nesse
ambiente as características próprias desse modelo de ensino não apenas
determinam o que ensinar e como ensinar, mas, sobretudo, a constituição
de um determinado tipo de subjetividade. Assim, realizar o diagnóstico da
subjetividade produzida na educação tecnológica é, em nossa maneira de
pensar, um modo de colocar a tarefa filosófica no ensino médio técnico.
Outro modo de colocar a questão e que contribui para manifestar a
especificidade dessa problemática diz respeito ao seguinte: há algo
característico ao modo de proceder na educação tecnológica que exige da
filosofia a tarefa de diagnóstico? Ou ainda: que tipo de subjetividade é
produzida no ensino de filosofia no ensino técnico?
A partir desta perspectiva de diagnóstico da relação entre ensino de
filosofia e educação tecnológica nosso propósito é problematizar o modo
como se concebe e vivencia o conhecimento científico e tecnológico na
educação, sendo nosso objetivo analisar a hipótese de que a produção da
subjetividade na educação tecnológica constitui uma exisncia biopolítica
que conduz ao empobrecimento da experiência de si. Assim, o foco
problemático não é a descrição do porquê da educação tecnológica, pois a
formação profissional e técnica tem seu sentido e importância para a
sociedade, devendo esta ser de uma formação sólida e que concilie o
conhecimento científico com outras formas de saberes. No entanto, o que
está em jogo é o direcionamento da subjetividade para um único fim: o
sujeito produtivo. A educação tecnológica fala de uma educação apenas em
questão de aceleração do tempo, ou seja, do desenvolvimento de
competências para a integração socioeconômica. Desse modo, a educação
tecnológica não tem pensado a vida para além da formação profissional ou,
melhor, tem se preocupado apenas com a parte da vida que é determinada
52
pela sua condição cotidiana da utilidade e do trabalho. A vida do aluno na
educação tecnológica é de uma vida envolvida pelos saberes e poderes do
conhecimento científico e tecnológico, por isso, se faz necessário que nessa
educação se problematiza a vida em sua relação agonística de sujeição e
liberdade.
Daí a importância dessa reflexão para a educação tecnológica, o
qual predominantemente se conduz por uma racionalidade governada por
princípios de uma racionalidade técnico-científica. O que interpela a
filosofia a problematizar tanto esse modo de proceder tecnológico
realizando um diagnóstico de sua tecnicidade biopolítica como também
seu próprio fazer filosófico, questionando seu uso técnico por meio do
ensino como transmissão. E então perguntamos: de que maneira a
produção da subjetividade e o uso da técnica constituem na educação
tecnológica em dispositivos biopolíticos? A formação crítica como função
tradicional da filosofia consegue romper com a produção de uma
subjetividade assujeitada? Como trabalhar o exercício de si no ensino de
filosofia, em uma disciplina que tradicionalmente se estrutura de uma
forma técnico-curricular? E como pode ser pensado o exercício da filosofia
por meio de um novo uso da técnica?
Uma ontologia do presente: a crítica e a constituição
do sujeito pelo domínio da tékhne
No início da década de 1980, o autor francês buscará em Kant um
fundamento para a filosofia como uma história crítica do pensamento em
sua atualidade. Foucault (2011e, p. 268) afirma, no texto O que são as
luzes?, que Kant inaugura duas grandes tradições críticas na filosofia
moderna: uma denominada de analítica da verdade, instaurada por uma
filosofia que investiga as “[...] condições sob as quais um conhecimento
53
verdadeiro é possível”; a outra, chamada de analítica do presente, na qual
Foucault se inscreve, marcando outro tipo de interrogação. Segundo
Foucault, inaugurada pela questão kantiana da Aufklärung, a segunda
tradição crítica busca um diagnóstico da atualidade e das possibilidades de
ultrapassagem nas condições da experiência efetiva.
Desse modo, a relação com a filosofia de Kant é, ao mesmo tempo,
de ruptura e de continuidade. Enquanto continuidade, Foucault sob o
pseudônimo de Maurice Florence, citando um trecho de François Ewald,
afirma: “Se Foucault está inscrito na tradição filosófica, é certamente na
tradição crítica de Kant [...]” (EWALD, s/d apud FOUCAULT, 2012a, p.
228). A partir de Kant, Foucault (2005f) compreende a crítica como saída,
como a diferença em relação ao hoje que se apresenta como uma tarefa e
obrigação. Enquanto ruptura, Foucault se desloca da filosofia kantiana da
analítica da verdade, a qual é conduzida pela busca de um “a priori
transcendental” como uma descrição das condições transcendentais de
possibilidade do conhecimento válidas para qualquer experiência. A
analítica da verdade procede por juízos determinantes, ou seja, faz uso de
categorias da razão para julgar com base na sua própria hierarquia. Trata-
se de juízos mecânicos e normativos, no qual a crítica funciona apenas
como reorganização das estruturas das categorias do entendimento quando
estas já não funcionam mais no esquematismo da razão. Por outro lado,
Foucault se situa no diagnóstico de um “a priori histórico”, o qual não
remete a nenhuma instancia transcendental, mas apenas as formas
históricas regulares e contingentes, ou seja, condições de possibilidade no
nível da existência, regras que são históricas e que conduzem as mudanças
efetuadas em uma época.
Desse modo, essas duas tradições filosóficas se desdobram em duas
maneiras de praticar a filosofia: na primeira, a filosofia é entendida como
54
reflexão sobre a própria razão e o conhecimento da verdade. Sobre isso
Gelamo (2007) afirma:
A busca incessante pela verdade das/nas coisas e, principalmente pelos
postulados feitos com base na obra de Kant, pela verdade analítica que
se pode encontrar por meio de um método, fez com que o pensamento
se dogmatizasse na tentativa de conhecer a verdade e descobrir a
enunciação verdadeira das coisas (GELAMO, 2007, p. 239).
Já a partir da outra tradição, por meio de “outro tipo de
interrogação, outro modo crítico de indagação” (FOUCAULT, 2011e, p.
268), se permite problematizar o próprio modo de se fazer filosofia.
Segundo Gelamo (2009), para escapar da analítica da verdade “[...] torna-
se necessário tensionar a própria atualidade do ensino da Filosofia para, a
partir daí, ser possível inventar um problema no interior do qual se
problematize a contingência mesma onde o problematizador está imerso”
(GELAMO, 2009, p. 105).
Já no texto O que são as luzes?”, Foucault descreve que quando
Kant em 1784 publica um texto como resposta à questão: “Was ist
Aufklärung?” (FOUCAULT, 2005f, p. 335), surge o primeiro passo para
fazer da filosofia uma constante problematização do presente, postura esta
que faz parte do mais íntimo que procurou praticar em sua filosofia. Como
afirma: ’O que acontece atualmente e o que somos nós, nós que talvez não
sejamos nada mais e nada além daquilo que acontece atualmente?’ A questão
da filosofia é a questão deste presente que é o que somos” (FOUCAULT,
2005e, p. 239).
55
Foucault compreende a Aufklärung
9
como um princípio
ontológico de nós mesmos, isto porque a crítica do presente deve se
constituir em um “[...] princípio de uma crítica e de uma criação
permanente de nós mesmos em nossa autonomia” (FOUCAULT, 2005f,
p. 346). Em outro texto sobre o assunto, afirma:
Afinal, parece-me que a Aufklärung, tanto como acontecimento
singular inaugurando a modernidade europeia quanto como processo
permanente que se manifesta na história da razão, no desenvolvimento
e na instauração das formas de racionalidade e de técnica, de
autonomia e de autoridade do saber, não é, para nós, simplesmente um
episódio na história das ideias. Ela é uma questão filosófica inscrita, a
partir do século XVIII, em nosso pensamento (FOUCAULT, 2011e,
p. 267, grifo nosso).
Para Foucault em nosso modo de pensar, inaugurado pela
Aufklärung, já está inscrito, marcado, como um processo permanente de
conquista da autonomia. Atitude de problematização do presente que deve
ser reativado constantemente em nós, como um acontecimento que é
apropriado pelo pensamento e por nosso modo de agir. Daí seu projeto ser
denominado de “ontologia do presente” ou “ontologia de nós mesmos
(FOUCAULT, 2010a), pois entende a atitude filosófica como uma crítica
constante do presente, como uma maneira de combater toda e qualquer
forma de assujeitamento de si. A questão do presente deve ser também a
questão de si mesmo.
A Aufklärung kantiana, como o questionamento da atualidade do
que somos, identifica o auto (autonomia da razão) como modo de ser do
9
Foucault desenvolve o tema da Aufklärung nos seguintes textos: O que é a crítica? [Crítica e Aufklärung]
(Cf. 2004c); O que são as luzes? [What is Enligthenment?] (Cf. 2005f); O que são as luzes? [Qu’est-que
les lumières?] (Cf. 2011e) e na aula de 5 de janeiro de 1983 na obra O governo de si e dos outros: curso no
Collège de France [1982-1983] (Cf. 2010a).
56
sujeito como uma atitude em relação ao presente. Para Foucault, essa
problematização de Kant, permite tanto diagnosticar o modo como
constituímos nossa autonomia, como também, o que assumido por
Foucault, deve promover uma atitude, uma maneira de ser e de se conduzir
= um êthos (FOUCAULT, 2012a). Ainda sobre isso, afirma essa atitude
como “[...] um êthos filosófico que seria possível caracterizar como crítica
permanente de nosso ser histórico” (FOUCAULT, 2005f, p. 345). Desse
modo, concebe a atitude crítica de si mesmo como um êthos que caracteriza
nosso modo de ser na modernidade. E, ao compreender a modernidade
como atitude, afirma:
Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne a
atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguém; enfim, uma
maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se
conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca pertinência e se apresenta
como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos
chamavam de êthos (FOUCAULT, 2005f, p. 341-342).
Ou ainda, quando diz:
Gostaria, por um lado, de enfatizar o enraizamento na Aufklärung de
um tipo de interrogação filosófica que problematiza simultaneamente
a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si
próprio como sujeito autônomo; gostaria de enfatizar, por outro lado,
que o fio que pode nos atar dessa maneira à Aufklärung não é a
fidelidade aos elementos de doutrina, mas, antes, a reativação
permanente de uma atitude; ou seja, um êthos filosófico que seria
possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico
(FOUCAULT, 2005f, p. 344-345).
Ao relacionar a questão sobre a atualidade com o êthos, Foucault
está pensando a ontologia do presente como uma demanda ética. Segundo
57
Castro (2009) o êthos é para os gregos o modo de ser do sujeito, a maneira
como conduz sua vida (seus costumes, como enfrenta os acontecimentos)
e, que Foucault passa a interpretar a modernidade também como um êthos,
como uma atitude. Já para Gelamo (2009, p. 110) a ontologia do presente
se configura em uma atitude ética, como afirma: “por esse motivo,
podemos dizer que esse modo de pensar faz parte de uma concepção da
filosofia que se constitui como atitude e como modo de existência,
respondendo, assim, ao anseio de um si mesmo ávido de vontade de resistir
ao instituído”. Também para François Ewald que afirma: “A atualidade da
filosofia na medida em que para Foucault, a questão passa para Kant em
Was ist Aufklarung?, descreve a forma moderna do cuidado de nós
mesmos” (EWALD, 1996b, p. 24, tradução nossa). E segundo Frédéric
Gros (2010) Foucault, influenciado pela herança crítica kantiana, retoma
o conceito grego do cuidado de si (técnicas de si) como uma questão
ontológica e o problema real da filosofia moderna.
Em rodapé da página 591 da obra A Hermenêutica do Sujeito, os
editores da obra citam uma frase que Foucault deixa de pronunciar, mas
que está registrado em seu manuscrito. A passagem também permite
relacionar a tarefa da Aufklärung, enquanto diagnóstico do presente ligado
ao exercício de si. Está escrito: “E se a tarefa deixada pela Aufklärung [...]
consiste em interrogar sobre aquilo em que se assenta nosso sistema de
saber objetivo, ela consiste também em interrogar aquilo em que se assenta
a modalidade da experiência de si” (FOUCAULT, 2004a, p. 591, grifos
nossos). A frase faz parte das discussões de Foucault sobre o desafio da
filosofia ocidental em compreender este momento no qual o mundo
tornou-se o correlato de uma tékhne e, no mesmo tempo e lugar, em que
se manifesta um sujeito do conhecimento. Embora deva ser também o
momento em que a filosofia se realiza como uma verdade do sujeito que
somos (ontologia do presente). Desse modo, a Aufklärung, enquanto
58
atitude crítica permite que o ensino de filosofia se realize como o lugar de
duas atitudes: por um lado, problematizar o saber objetivo, que se
manifesta principalmente no saber científico e tecnológico e, por outro,
questionar o modo como fazemos a experiência de nós mesmos.
Continuando sobre essa ligação entre ontologia do presente e a
ética, Foucault (2012a) afirma que a questão da Aufklärung “[...] surgida
no final do século XVIII define o quadro geral do que chamo de técnicas
de si”. E afirma ainda, que esse tipo de interrogação permite o
deslocamento das questões filosóficas tradicionais que perguntavam sobre:
“o que é o mundo? O que é o homem? O que foi feito da verdade? O que
foi feito do conhecimento? De que modo o saber é possível?”
(FOUCAULT, 2012a, p. 294). A Aufklärung permite outro tipo de
problematização: “o que somos nesse tempo que é o nosso? [...] a atividade
filosófica concebeu um novo polo, e que esse polo se caracteriza pela
questão, permanente e perpetuamente renovada: ‘O que somos hoje?’”
(FOUCAULT, 2012a, p. 294). Em sua filosofia do presente, Foucault
retoma o questionamento socrático do “conhecer a si mesmo” como uma
questão moderna da atualidade do que nós somos. Ao perguntar sobre
“Quem somos nós?”, Foucault faz um novo uso da questão socrática,
intensificando o modo de ser do sujeito em relação ao presente. A questão
da atualidade em Foucault torna-se um modo de potencializar o cuidado
de si por meio do diagnóstico do que somos.
Nessa mesma perspectiva, Foucault (1984c) pergunta sobre o que
no presente faz sentido para a reflexão filosófica. Em sua resposta afirma:
Trata-se de mostrar em que e como aquele que fala enquanto pensador,
sábio, filósofo, faz parte desse processo e (mais que isso) como ele tem certo
papel a desempenhar nesse processo no qual ele será a um só tempo
elemento e ator” (FOUCAULT, 2011e, p. 260, grifo nosso). Já no texto
59
“O sujeito e o Poder” afirma: “[...] o mais evidente dos problemas
filosóficos seja a questão do tempo presente e daquilo que somos neste
exato momento” (FOUCAULT, 1995a, p. 239). Desse modo, a filosofia
pensada a partir da ontologia do presente faz do processo do filosofar um
movimento de problematização da realidade em que o sujeito não pode se
distanciar de modo abstrato. Como elemento e ator, aquele que se coloca
na tarefa de filosofar deve fazer da sua própria realidade o seu problema.
Esse agora dentro do qual estamos todos é o acontecimento filosófico do
qual não podemos fugir, sobretudo, temos um papel a desempenhar.
Pensar o ensino de filosofia como diagnóstico do presente é fazer de sua
atitude um exercício sempre atual. Foucault ao fazer da filosofia um
diagnóstico do presente mantém uma relação viva no/do pensamento.
Analisando esse papel a desempenhar, importante para pensar a
prática da filosofia, Foucault (2010a) destaca que o texto de Kant mantém
uma relação própria entre escritor e leitor. Para Foucault, o importante é
lembrar que o texto de Kant é um artigo de jornal publicado em uma
revista e, isso revela o deslocamento de uma relação abstrata que a
universidade mantém com o público para uma relação concreta da “forma
livre e universal da circulação do discurso escrito”. A aufklärung mantém
uma relação própria com o público a que se dirige, sobre a necessidade de
problematizar “esse agora dentro do qual estamos todos” (FOUCAULT,
2010a, p. 12).
A partir dessa ligação entre crítica e público, em que o que está em
jogo é o modo de interrogar o presente enquanto diferença, podemos
pensar a relação com o outro com base no que constitui o comum que nos
atravessa e que nos une em uma comunidade de afeto. A partir disso
perguntamos: qual o uso público da filosofia? Ou ainda, qual o papel a
desempenhar pela filosofia? Pensar a filosofia a partir desse registro exige o
60
deslocamento de um ensino abstrato, para pensar a prática da filosofia
como uma problematização do presente em que o professor e aluno são,
ao mesmo tempo, elementos e atores. Para isso, se faz necessário sair do
lugar técnico que desempenha o ensino de filosofia no currículo escolar
para, então, fazer um novo uso da filosofia. Em outras palavras, deslocar-
se do uso técnico-pedagógico (questões metodológicas do ensino da
disciplina) e do uso técnico-moral (formação das competências do sujeito
crítico) para um uso ético-político em que a problematização do presente
conduz ao desassujeitamento das práticas e a criação de si como uma
estratégia de resistência. E nesse novo uso, na relação professor-aluno se
realiza pela filosofia um encontro em que a singularidade do outro
potencializa uma comunidade de afeto.
Outro elemento importante na ontologia do presente é o modo
como Foucault compreende a noção de crítica. No texto O que é a crítica?
(Crítica e Aufklärung)”
10
- Foucault inicia apontando que a questão que
gostaria de tratar é sobre o tema do próprio título: “o que é a crítica?”. E a
primeira ideia que aparece em sua resposta diz respeito a relação com a
filosofia, sobre um: “[...] projeto que não cessa de se formar, de se
prolongar, de renascer nos confins da filosofia, sempre próximo dela,
sempre contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia por vir, no
lugar talvez de toda filosofia possível” (FOUCAULT, 2004c, p. 144).
Desse modo, Foucault entende que a filosofia deve se realizar pela própria
prática da crítica e que esta permite o próprio devir da filosofia.
E então, Foucault irá apresentar a crítica como uma atitude, como
uma virtude, como afirma: “há alguma coisa na crítica que se aparenta à
10
Conferência proferida em 27 de maio de 1978 e publicada em 1990 (Qu'est-ce que la critique? Critique
et Aufklärung. Bulletin de la Société française de philosophie, Vol. 82, nº 2, pp. 35 - 63, avr/juin 1990).
Texto que utilizamos como base para aprofundarmos a descrição da crítica. Usamos a versão publicada
na obra Por uma vida não fascista (FOUCAULT, 2004c, p. 144-170).
61
virtude. E de uma certa maneira, o que eu gostaria de dizer a vocês era da
atitude crítica como virtude em geral” (FOUCAULT, 2004c, p. 145). Em
Foucault a virtude se caracteriza não como uma qualidade de obediência
objetiva, mas por um modo de se conduzir que é a da problematização do
modo como somos governados.
E nesse modo de compreender a crítica, Foucault introduz a
pergunta “como não ser governado?” (2004c, p. 146). Com isso, associa a
crítica com a arte de governar, pela qual o sujeito interroga as relações de
verdade e poder presente em todo “movimento da governamentalização”.
Não ser governado, não quer dizer em não ser governado absolutamente,
mas:
[...] uma sorte de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude moral
e política, maneira de pensar etc. e que eu chamaria simplesmente arte
de não ser governado ou ainda arte de não ser governado assim e a esse
preço. E eu proporia então, como uma primeira definição da crítica,
esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma governado
(FOUCAULT, 2004c, p. 146).
A atitude de não ser governado, não é no sentido de um desgoverno
em absoluto ou de sermos totalmente ingovernáveis, mas como uma
vontade de “não ser governado assim”, ou seja, não aceitar um tipo de
governo específico que exerce poderes em nós. Como afirma: “como não
ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais
objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso,
não por eles”. (FOUCAULT, 2004c, p. 146).
Outra característica da atitude crítica para Foucault (2004c, p.
148) é que ela se realiza como uma arte, como uma “arte da inservidão
voluntária, que é aquela da indocilidade refletida”, mas não no sentido de
62
uma insubmissão anárquica, antes deve ser compreendida como um
“desassujeitamento no jogo” da política da verdade. Nisso reside o “foco
da crítica”, interrogar as relações entre poder, verdade e sujeito, ou seja,
interrogar sobre o processo de governamentalização, o qual se realiza em
“[...] uma prática social de sujeitar os indivíduos por mecanismos de poder
que reclamam de uma verdade”. E como resistência a esse processo, a
crítica então será “[...] o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de
interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus
discursos de verdade” (FOUCAULT, 2004c, p. 148). Desse modo,
Foucault pensa a crítica como uma arte, em que o movimento de
desassujeitamento faz da crítica um ato criativo. Em outras palavras, a
prática da crítica conduz a um modo de subjetivação em que o ‘eu’ se
estiliza, ou seja, o indivíduo livre das amarras que o constitui deve buscar
outros modos para a constituição de si.
A crítica como “indocilidade refletida” requer que o exercício do
pensamento se coloque a si mesmo em um processo de crise, isto porque,
ao mesmo tempo, em que o sujeito assume a tarefa da reflexividade como
elemento de sua formação, também se exige que essa tarefa não seja apenas
algo interno, mas se constitua em um processo de desassujeitamento que
confronta a normalização.
De modo semelhante, Frédéric Gros (2018), na obra Desobedecer,
a partir dos conceitos de obediência e desobediência esboça um projeto
ético-político como forma de ruptura à servidão voluntária. Nessa obra,
Gros descreve sobre a genealogia da obediência com objetivo de construir
uma estilística da desobediência em prol de uma democracia crítica como
um trabalho ético. Já na introdução Gros (2018, p. 9) questiona “por que
obedecemos?” e “por que as pessoas não se revoltam?”, com isso o autor
deixa claro que o problema não é a desobediência, mas é a obediência. Sua
63
constatação é de que a obediência não se dá pela coerção, mas por uma
relação consigo em que o hábito é a primeira razão da servidão voluntária
(GROS, 2018, p. 53). O hábito é a impossibilidade de fazer de outro
modo, a razão de sua submissão está na “impossibilidade de desobedecer”,
ou seja, eu mesmo produzo minha obediência porque “não posso fazer de
outro modo” (GROS, 2018, p. 40).
Como forma de combater essa obediência cega, em que “obedecer
é dizer não a si mesmo dizendo sim ao outro” (GROS, 2018, p 168), Gros
pensa a democracia crítica como uma “tensão ética no íntimo de cada
pessoa”, que denomina de si político (2018, p. 16). Para o autor, o si
político designaria nossa intimidade ético-política, uma relação consigo
que por meio de uma tensão ética é capaz de gerar a desobediência. Essa
tensão é importante, porque as pessoas hoje percebem sua submissão, mas
que ao não vivenciarem uma relação de tensão ética consigo não são
capazes de insurreição. Assim, a estruturação ética do sujeito político é a
democracia crítica, dela nasce a desobediência, “[...] nasce a recusa das
evidencias consensuais, dos conformismos sociais, das ideias p-
fabricadas” (GROS, 2018, p. 17). E como atitude ético-política como
forma de saída dessa obediência/submissão, Gros propõe o que chama de
“submissão ascética”, que no sentido grego de exercício é o movimento
pelo qual o “indivíduo se esforça para calcular, no que lhe mandam fazer,
uma obediência a mínima”. Isto significa que “não se trata de desobedecer
ativamente”, mas de “eliminar tudo o que, na minha obediência, poderia
significar um princípio de adesão” (GROS, 2018, p. 56-57).
Em seguida, Gros (2018) afirma que essa crítica só é autêntica se
ela for uma desobediência prática. Com isso, Gros entente que a
desobediência precisa ser incorporada na vida do indivíduo, em seu
percurso singular, onde, citando Henry D. Thoreau, afirma que “ninguém
64
pode ser eu ‘em meu lugar’”, ninguém pode pensar, decidir e desobedecer
em meu lugar. E que essa vida singular se constitui de um trabalho ético
sobre si como princípio de uma conversão espiritual. Uma transformação,
uma ascese, em que “só desobedecemos autenticamente ao outro, aos
outros, ao mundo como ele está e finalmente a nós mesmos como hábito,
a partir dessa conversão. E é dentro e por meio desse movimento de volta
a si mesmo que nos descobrimos insubstituíveis” (GROS, 2018, p. 155-
156), um sujeito que o autor denomina como indelegável.
Dessa forma, nessa obra Gros tem por objetivo responder ao
seguinte questionamento: “quais são as formas éticas gerais da obediência
e da desobediência?”, para que se construa uma “ética do político” em que
“obedecer, desobedecer é dar forma à nossa liberdade” (GROS, 2018, p.
35-36), ou seja, é preciso formar a obediência e a desobediência como fruto
de um exercício de si, para se constituir em um “dever de desobedecer, para
permanecer fiel a si mesmo” (GROS, 2018, 153).
Ainda cabe perguntar: como a crítica potencializa a
problematização da tékhne que constitui o sujeito moderno? No curso A
Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2004a) afirma que a questão da khne
e a constituição da subjetividade é um dos principais problemas da filosofia
Ocidental. De modo que no final do curso questiona: “de que modo o
mundo, que se oferece como objeto do conhecimento pelo domínio da
tékhne pode ser ao mesmo tempo o lugar em que se manifesta e em que se
experimenta o “eu” como sujeito ético da verdade?” (FOUCAULT,
2004a, p. 591). Já no texto Verdade e Subjectividade, Foucault entende
que é pela atitude crítica que se busca à problematização das técnicas que
deram forma ao conceito de sujeito ocidental. E que essa crítica em sua
dimensão política é “[...] uma análise relativa àquilo que estamos dispostos
65
a aceitar no nosso mundo, a recusar e a mudar, tanto em nós próprios
como nas nossas circunstâncias” (FOUCAULT, 1993, p. 207).
Desse modo, a filosofia como atitude crítica trata das possibilidades
de transformação do sujeito e de nós mesmos. O projeto foucaultiano visa
a realizar uma história crítica do pensamento, na qual a crítica deve ser
entendida como um modo de relação com a atualidade em que o
indivíduo, por meio de uma escolha voluntária, assume como uma tarefa
de resistência às técnicas objetivas que produzem uma maneira de pensar,
sentir e agir. Desse modo, em cada espaço de manifestação da vida, seja no
pensamento, em nosso comportamento e modo de agir, deve-se promover
uma atitude crítica da atualidade do que somos e da possibilidade de
deslocamento. Assim, pela atitude crítica em relação ao presente, Foucault
mostra que a filosofia não é a procura da verdade, mas das formas históricas
de ultrapassagens possíveis. Sobre isso afirma: “é preciso concebê-la como
uma atitude, um êthos, uma vida filosófica, em que a crítica do que somos
é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e
prova de sua ultrapassagem possível” (FOUCAULT, 2005f, p. 351).
No texto O que é a crítica?”, quando Foucault começa a tratar
sobre as relações entre a Aufklärung e Crítica, vai situar o problema da
filosofia moderna na seguinte questão: “Eis a recíproca e o inverso do
problema da Aufklärung: o que faz com que a racionalização conduza ao
furor do poder?” (FOUCAULT, 2004c, p. 152). Esse problema da
filosofia moderna é uma maneira de “engajar-se numa certa prática que se
chamaria histórico-filosófica” (FOUCAULT, 2004c, p. 153). No entanto,
isso não diz respeito a uma experiência interior, nem sobre as estruturas
fundamentais do conhecimento cientifico, mas trata-se de “[...] fabricar
como por ficção a história que seria atravessada pela questão das relações
entre as estruturas de racionalidade que articulam o discurso verdadeiro e
66
os mecanismos de assujeitamento que a eles são ligados [...]”
(FOUCAULT, 2004c, p. 154). E mais adiante, quando trata do
pertencimento ao presente, nesse instante em que estou sujeitado às
técnicas de poder e de verdade, afirma que é preciso:
Dessubjetivar a questão filosófica pelo recurso ao conteúdo histórico,
libertar os conteúdos históricos pela interrogação sobre os efeitos de
poder cuja verdade - essa que eles pressupõem e marcam - os afeta, é,
se vocês querem, a primeira característica dessa prática histórico-
filosófica (FOUCAULT, 2004c, p. 154, grifo nosso).
Ao questionar nosso pertencimento ao presente não se trata do
pertencimento a uma doutrina ou tradição, mas a um “nós”, ou seja, ao
que nos torna comum enquanto afetados pelas relações de poder. Por isso,
o movimento de dessubjetivação constitui o modo como Foucault utiliza
a história da filosofia como ferramenta de liberdade. Ao retomar a filosofia
grega seu objetivo não é o de reaplicar os conceitos desenvolvidos naquela
época, mas para deslocar-se das relações de poder no presente e pensar a
criação de outra subjetividade. Assim, compreendemos que o exercício de
dessubjetivar indica o modo como o ensino de filosofia precisa se conduzir,
ou seja, por uma problematização de si como uma forma de resistência aos
modos de governo autoritários.
Já no curso Do Governo dos Vivos, Foucault (2011d) menciona que
a história da ciência é um campo fértil para o estudo da genealogia do
sujeito e que pretende realizar esse estudo pela análise que denomina de
tecnologias, pela “articulação entre certas técnicas e certos tipos de discurso
sobre o sujeito”. E acrescenta, trata-se de uma análise que em sua
“dimensão política” se relaciona com o que estamos dispostos
67
A aceitar, a rejeitar e a mudar, tanto em nós mesmos quanto em nossas
circunstancias. Em suma, é uma questão que procura outro tipo de
filosofia crítica.o a filosofia crítica que procura determinar as
condições e os limites de nosso possível conhecimento do sujeito, mas
uma filosofia crítica que procura as condições e as indefinidas
possibilidades de transformação do sujeito, de transformação de nós
mesmos (FOUCAULT, 2011d, p. 153-154, nota n. 90).
E assim, para Foucault (2004c, p. 152) a crítica desloca-se da
questão kantiana e da ciência moderna que relacionam o conhecimento às
condições de constituição e de legitimidade de todo conhecimento
possível, para o que chama de uma “experiência de acontecimentalização,
pela qual investiga as “conexões entre mecanismos de coerção e conteúdos
de conhecimento”. Com esse procedimento “o que se busca então não é
saber o que é verdadeiro ou falso, fundamentado ou não fundamentado,
real ou ilusório, científico ou ideológico, legítimo ou abusivo”. Antes,
procura-se saber:
[...] o que faz com que tal elemento de conhecimento possa tomar
efeitos de poder afetados num tal sistema a um elemento verdadeiro ou
provável ou incerto ou falso, e o que faz com que tal procedimento de
coerção adquira a forma e as justificações próprias a um elemento
racional, calculado, tecnicamente eficaz etc (FOUCAULT, 2004c, p.
156).
Eis o que no presente do ensino técnico faz sentido como tarefa
filosófica: problematizar os processos de racionalização que produzem a
subjetividade por meios de procedimentos de coerção nas práticas
formalizadas de um ensino “racional, calculado, tecnicamente eficaz”. E
assim, também se faz necessário deslocar-se de uma filosofia da
emancipação, a qual supõe a existência de um saber ideológico e que
68
produz um sujeito autônomo que deve descobrir e distinguir o verdadeiro
e o falso para superar o poder opressor. Esse tipo de concepção leva a crença
de que a liberdade nasceria automaticamente com a conquista do saber.
Supõe que a conquista da liberdade seja possível por meio de ações
autônomas do sujeito. Postura que transforma o ensino de filosofia em um
uso técnico, ou seja, um instrumento para a conquista de um determinado
fim. De outro modo, a filosofia crítica de Foucault nos permite
compreender a subjetividade como um processo de formação em que o
sujeito é elemento e ator de sua própria constituição. O sujeito se forma
por um movimento de dominação e resistência, no qual não se pode
afirmar que em algum momento está completamente sujeitado ou
integralmente livre.
Desse modo, entende-se a crítica como uma atitude que implica
no próprio deslocamento do indivíduo em um procedimento que tem por
objetivo não o homem realizado em sua consciência de si, mas na atitude
de “como não ser governado”, que permite o deslocamento do indivíduo
nas relações de forças. E nesse sentido, Foucault afirma que é preciso pensar
em uma crítica que não procuraria julgar, que[...] multiplicaria não os
julgamentos, mas os sinais de existência” (FOUCAULT, 2005a, p. 302).
Outra característica é que, para Foucault no texto “O que são as
luzes?”, o trabalho crítico implica[...] um trabalho paciente que dá forma
à impaciência da liberdade” (FOUCAULT, 2005f, p. 351). Pensar a
filosofia como um trabalho paciente de si, salienta a ideia de que o processo
de problematização exige dar-se tempo e, assim, combater um ensino que
alicerçado em produzir respostas busca apenas a economia de tempo.
Então, como exercer esse trabalho paciente da problematização de si, se
somos atropelados por um tempo multifacetado, fracionado e produtivo?
Um tempo que é controlado, como por exemplo, na concepção de que na
69
avaliação é preciso ter dia e hora marcada para se pensar e produzir
resultados. Trata-se de um tempo técnico que não permite vivenciar a
experiência de si. Faz-se necessário combater esse modo de proceder
caraterístico de nossa época em que a intensificação das técnicas para
economia do tempo induzem a se evitar qualquer tipo de problematização
de si.
É preciso ruminar, diz Nietzsche (1998), ou seja, é preciso um
trabalho paciente e cotidiano de si. Como também afirma na obra A Gaia
Ciência, onde o autor acrescenta que o trabalho de criação de si exige um
exercício paciente, como afirma: “uma única coisa é necessária. Dar estilo’
ao seu carácter... é uma arte deveras considerável que raramente se
encontra! [...] um paciente exercício e de um trabalho de todos os dias”
(NIETZSCHE, 2000, §290, p. 181-182).
Foucault (1994a) entende que a crítica é fundamental na
transformação de si e que esse deslocamento precisa acontecer no
pensamento e nos modos de ensaiar, como afirma no texto É importante
pensar?”:
A crítica consiste em dissipar o pensamento e em ensaiar a mudança;
mostrar que as coisas não são tão evidentes quanto cremos, fazer de
forma que isso que aceitamos como vigente em si não o seja mais em
si. Fazer a crítica é tornar difícil os gestos mais simples. Nessas
condições, a crítica (e a crítica radical) é absolutamente indispensável
para qualquer transformação (FOUCAULT, 1994a, p. 180, tradução
e grifos nossos).
11
11
Optou-se por realizar a tradução do francês, pois a frase “la critique consiste à débusquer cette pensée
et à essayer de la changer” não possui uma tradução adequada nas versões brasileiras consultadas, por
exemplo, a palavra débusquer é traduzida por expulsar (FOUCAULT, 2010b, p. 356) ou por caçar
(FOUCAULT, 2004d, p. 10). Assim, o uso da palavra “dissipar” significa a dispersão do pensamento,
ou seja, como um sentido de desregrar e deslocar dos modos de ser e pensar autoritários. Desse modo,
trata-se de sacudir o pensamento e “dissipar as familiaridades aceitas” (FOUCAULT, 2012b, p. 243).
70
Desse modo, Foucault entende que a mudança só é possível
quando há o deslocamento do pensamento e nas experiências que fazemos
quando ensaiamos novas maneiras de ser. Compreende que toda
transformação é “[...] sempre o resultado de um processo no qual há
conflito, afrontamento, luta, resistência...” (FOUCAULT, 1994a, p. 181,
tradução nossa). Por isso, dissipar o pensamento supõe um conflito, uma
espécie de crise que nos conduz a novas experiências. Por esse motivo, não
faz sentido pensar a crítica como julgamento, como avaliação das
condições do conhecimento, próprio de uma prática sustentada pela
tradição da analítica da verdade. Antes, se faz necessário pen-la como
transformação de nós mesmos, como uma ontologia do presente.
Portanto, a partir de Foucault entendemos que a tarefa crítica se
realiza por meio de duas tarefas complementares: por um lado, está ligada
ao modo como Kant relaciona com a questão da modernidade enquanto
uma filosofia como problematização constante de nós mesmos. Tarefa que
o autor francês denomina como uma ontologia histórica de nós mesmos.
No entanto, essa crítica deve ser entendida não somente como diagnóstico
do que somos, mas como multiplicação dos sinais de existência; assim, por
outro lado, a tarefa crítica também deve ser a criação de novos modos de
viver.
Um diagnóstico da concepção de educação tecnológica
Iniciamos o capítulo com a revisão documental sobre a concepção
político-pedagógico dos Institutos Federais de Educação, agora, como uma
atitude crítica do presente cabe diagnosticar: qual o sentido da ênfase nessa
concepção de trabalho como princípio educativo? A partir dos próprios
documentos é possível perceber discursos contraditórios tanto na
71
Resolução 6/2012 como também no Parecer do CNE nº 11/2012.
Embora estes apontem para uma formação integral articulando a formação
profissional e a cidadania, em nenhum momento da Resolução aparece a
ideia de um exercício do pensamento conceitual e crítico, requisitos
indispensáveis para o diagnóstico do presente e da formação para a
liberdade. Também se negligencia o conceito de técnica em detrimento do
conceito de tecnologia, ou seja, descreve-se apenas sobre o
desenvolvimento da tecnologia (sua noção moderna de relação com o
conhecimento científico) e, assim, elide toda uma tradição que sustenta o
conceito de técnica. Outra ausência é sobre a formação da subjetividade,
embora se mencione como princípio norteador o respeito aos valores
éticos, estéticos e políticos, não se pensa o desenvolvimento desses valores
articulados com a formação de uma subjetividade como superação da
sujeição moderna e como autogoverno ético por meio dos modos de
resistência e de transformação de si.
O Documento Base (BRASIL, 2007b, p. 45) ao tratar do trabalho
como princípio educativo em uma relação indissociável entre trabalho,
ciência, tecnologia e cultura, conclui o tópico mencionando a necessidade
pedagógica da relação entre éthos, logos e técnos:
Como nos diz Gramsci, essa identidade orgânica é construída a partir
de um princípio educativo que unifique, na pedagogia, éthos, logos e
técnos, tanto no plano metodológico quanto no epistemológico. Isso
porque esse projeto materializa, no processo de formação humana, o
entrelaçamento entre trabalho, ciência e cultura, revelando um
movimento permanente de inovação do mundo material e social
(BRASIL, 2007b, p. 48).
No entanto, esses conceitos (éthos, logos e técnos) não são pensados
no sentido existencial e nem sua relação é desenvolvida em outro
72
momento. Apenas, os conceitos de trabalho, ciência, tecnologia e cultura
aparecem especificados, o que leva a concluir que, aqueles conceitos são
pensados a partir desse entrelaçamento. O que pode ser verificado no
Parecer 11/2012 (BRASIL, 2012a, p. 14-15), que em síntese define: o
trabalho sob a perspectiva ontológica da produção da existência humana;
a ciência como conjunto de conhecimentos sistematizados para
compreensão e transformação da natureza e da sociedade; a tecnologia
como transformação da ciência em força produtiva ou mediação do
conhecimento científico (apreensão e desvelamento do real) e a produção
(intervenção no real); e a cultura como conjunto de representações e
comportamentos que correspondem aos valores éticos e estéticos que
conservam a vida humana e que consolida uma organização produtiva da
sociedade.
Analisando a educação tecnológica a partir do registro
foucaultiano, questionamos: a que propósitos satisfazem essa concepção de
trabalho em sua formação pedagógica? A concepção ontológico-histórica
do trabalho permite superar a subjetividade submetida ao modelo
econômico neoliberal? O trabalho enquanto constituição do homem e
como possibilidade de sua autonomia permite pensar a resistência e a
constituição de si mesmo em um movimento ético-político? A partir dessas
questões, defenderemos a tese de que é preciso pensar as práticas político-
pedagógicas da educação tecnológica como relações de um modo de
governo biopolítico.
A educação permanente e diversificada que se realiza durante toda
a vida é um dos traços do governo biopolítico e incorporadas pelos IFs no
conceito de itinerário formativo. A Resolução n
o
6 (BRASIL, 2012b)
define no Art. 3 (§2, §3 e §4) como itinerário formativo flexíveis e
diversificados o conjunto das etapas que compõem a organização da oferta
73
da Educação Profissional que possibilitam o contínuo e articulado
aproveitamento de estudos e de experiências profissionais em uma área
determinada de estudos. Segundo Pacheco o itinerário formativo é um
percurso formativo que “o estudante poderá cursar no interior de processos
regulares de ensino, possibilitando sua qualificação para fins de exercício
profissional e/ou prosseguimento de estudos” (PACHECO, 2012, p. 30).
Desse modo, os IFs ao oferecem um itinerário formativo produzem uma
subjetividade onde, ao mesmo tempo, em que finalizando um
determinado curso tem as competências para se inserir no mercado e
atender as demandas econômicas e pessoais, também concebe um sujeito
que nunca está pronto, mas em um processo contínuo de aperfeiçoamento
de suas competências.
Subjetividade produzida a partir do que Foucault (2008a) define
como empresário de si mesmo, em que o próprio indivíduo assume a
tarefa de gerir a sua vida por meio de suas competências. Tarefa que é
incorporada pelo ensino técnico como pode ser observado em:
A Educação Profissional e Tecnológica tem pelo menos duas
dimensões importantes, que são a dimensão da inclusão e também a
da emancipação, na medida em que não apenas inclui a pessoa numa
sociedade desigual, o que é insuficiente, mas lhe dá as ferramentas
necessárias para que ela construa o seu itinerário de vida e possa se
emancipar e se constituir como cidadã (PACHECO, 2011b, p.5, grifo
nosso).
Observa-se aí que, a educação profissional e tecnológica é pensada
como construção do empresário de si, pois ela fornece as “ferramentas
necessárias” para que o indivíduo possa se conduzir por si mesmo. Ele
mesmo é o responsável, a partir de suas competências adquiridas, por
programar sua vida e constituir-se como cidadão emancipado.
74
A emancipação do indivíduo aparece como uma das finalidades
formativas nos documentos dos Ifs, no entanto, essa emancipação é
pensada como conquista de direitos, no caso, a conquista de uma educação
profissional que o torna capaz de inserção no mercado. Segundo Moacir
Viegas (2010), ao questionar a possibilidade emancipatória da tecnologia,
afirma que ao mesmo tempo em que há uma liberação da subjetividade do
trabalhador, há também, uma submissão desta aos objetivos da
produtividade. “É certo que as novas habilidades são apropriadas pelo
capital, estando em função da produtividade, pois essa é sua lógica”
(VIEGAS, 2010, p. 175). Nesse mesmo horizonte, a leitura de Foucault
(2008a) aponta para a formação de uma subjetividade assujeitada, isto
porque, o indivíduo direciona sua formação de acordo com o que é
estabelecido pela governamentalidade neoliberal.
A vigente política de educação profissional e tecnológica dissemina
uma determinada concepção de trabalho que acaba se tornando uma
justificativa para a inclusão socioeconômica. A partir do registro de
Foucault, observa-se que tal política trata-se de uma estratégia biopolítica
que tem por objetivo incluir os que não fazem parte do governo da
população. Isto porque tal postura teórica não rompe com o dispositivo de
segurança neoliberal, a qual se fundamenta na inclusão como forma de
atender ao desejo de mudança nas condições de vida da parcela da
população que não dispõem de qualificação profissional.
Tanto os documentos institucionais quanto a literatura sobre os
IFs, partem de uma concepção histórico-crítica do trabalho e afirmam que
a liberdade do indivíduo está no domínio do conhecimento cientifico e
tecnológico. Contudo, se na lógica do capitalismo da sociedade industrial
a educação do indivíduo não poderia fornecer o saber que lhe desse as
condições para dominar os meios de produção, pois isso implicava nos
75
riscos da inversão social das classes; agora, na lógica neoliberal é
imprescindível que ele conheça e domina os processos de produção da
ciência e da tecnologia, isto porque, essa apropriação do indivíduo não
comporta mais riscos de uma modificação estrutural da realidade, pois, ao
mesmo tempo, que se produz essa subjetividade, também se anula seus
efeitos políticos na medida em que o indivíduo é enformado na construção
de seu homo oeconomicus que, como aponta Foucault (2008a), torna-se um
indivíduo que aceita a realidade, respondendo as suas modificações de
forma sistemática.
Outro aspecto dessa concepção de trabalho é que a ênfase em seu
princípio educativo não permite pensar o trabalho para além da
contradição entre o trabalho em um sentido negativo (alienado) e o
trabalho em um sentido positivo (ontológico do homem, presente na
concepção de princípio educativo). Essa visão não permite perceber que
nas relações econômicas neoliberais o trabalho não se dará necessariamente
como educativo, mas comportará sempre relações de poder em que apenas
a tomada de consciência da alienação não é suficiente para romper com as
malhas do biopoder. Como aponta Foucault (2008a) na análise do
conceito de capital humano como uma forma de sujeição do indivíduo ao
modelo biopolítico da economia neoliberal. Embora para o autor, não se
trate de apontar uma visão negativa do trabalho como se faz a partir da
leitura marxista, mas de descrever sobre a ótica de um modo de governo
neoliberal, a existência de um saber-poder presente na produção de uma
subjetividade assujeitada.
Nessa perspectiva, direcionar a concepção de trabalho como
princípio educativo é assumir uma atitude politicamente perigosa, pois
neutraliza as lutas e forças que atuam em si, não permitindo que o
indivíduo se transforme para além da visão de essencialidade do humano.
76
Outro aspecto dessa concepção é que ela funciona como produção de uma
subjetividade que tem por função uma educação cnico-moral, ou seja, o
indivíduo conduz seu comportamento produzindo as competências para
sua qualificação profissional.
Um último ponto a analisar nesse diagnóstico se refere ao alicerce
de toda essa concepção de educação nos IFs: uma tradição humanística que
produz uma concepção antropologizante. Para Foucault (2011a) é hora de
nos desembaraçarmos do humanismo, porque ele não propicia nada do
aprendizado das disciplinas fundamentais que nos permitem compreender
o que se passa conosco. E afirma (2011a) que associado ao humanismo está
o pensamento dialético, o qual recorre a uma filosofia da alienação e da
reconciliação (retorno a si mesmo) e, promete ao ser humano que ele se
tornará um homem autêntico e verdadeiro. O que faz do humanismo algo
abstrato, como afirma:
[...] é o humanismo o abstrato! Todos esses gritos do coração, todas
essas reivindicações da pessoa humana, da existência, são abstratos: ou
seja, cortados do mundo cientifico e técnico que constitui nosso
mundo real. [...] Ora, o esforço feito atualmente pelas pessoas de nossa
geração não é o de reivindicar o homem contra o saber e contra a
técnica, mas precisamente mostrar que nosso pensamento, nossa vida,
nossa maneira de ser, até mesmo nossa maneira de ser mais cotidiana,
fazem parte da mesma organização sistemática e, portanto, decorrem
das mesmas categorias que o mundo científico e técnico
(FOUCAULT, 2011a, p. 149-150).
Como se observa, para Foucault recorrer ao humanismo para
abordar a realidade é uma abstração, pois não possibilita um diagnóstico
de como nossa vida e modo de ser são determinados pelo mundo científico
e técnico. É preciso pensar o que chamamos de humanidade como produto
77
das técnicas pelas quais conduzimos nossa vida. Por isso, a tarefa de
diagnóstico das tecnologias deve ser realizada por meio da biopolítica,
porque por meio dessa análise torna-se possível problematizar a tecnicidade
inerente aos processos de subjetivação que nos governam na modernidade.
A proposta de educação profissional dos IFs pretende conciliar um
projeto humanístico com o conhecimento científico e tecnológico.
Objetivam através de concepção ontológico-histórico do trabalho, da
ciência e da tecnologia, que o homem possa se humanizar, superando a
condição de alienação produzida nas relações de trabalho e na produção
técnica. Esse tipo de pensamento está sustentado pelo que Rajchman
(1987) aponta de antropologismo, ou seja, a ideia de que somos livres
porque temos uma natureza que devemos realizar. Assim, a educação
tecnológica dos IFs não é capaz de analisar a produção da subjetividade
como constituição de uma vida técnica.
Para Foucault (1994b), na entrevista “Qui êtes-vous, professeur
Foucault?”, essa estrutura antropológico-humanística” que domina o
modo de pensar na modernidade põe o indivíduo, ao mesmo tempo, como
sujeito e objeto do conhecimento possível. Assim, o projeto de
humanização por meio do domínio do conhecimento científico e
tecnológica se constitui em um projeto técnico, isto porque, define como
parâmetro a formação de capacidades técnicas para conquista da
autonomia socioeconômica. De modo que, Foucault afirma: “os
tecnocratas são humanistas, a tecnocracia é uma forma de humanismo.
Eles consideram, na verdade, que eles são os únicos a segurar o jogo de
cartas que definiria o que é a felicidade dos homens e de realizá-la
(FOUCAULT, 1994b, p. 617, tradução nossa).
Em outro momento, por meio de sua crítica a “analítica da
verdade(FOUCAULT, 2011e, p. 268), a qual tem por objetivo buscar
78
as condições do conhecimento e da representação da verdade,
compreendemos que esses elementos se constituem como um poder
normalizador pelo qual o sujeito precisa buscar o reconhecimento de si.
Para Foucault (2011a) recorrer a esse humanismo-marxista para falar do
homem total, de uma natureza/essência determinada, de um homem
reconciliado consigo mesmo, normal e equilibrado é produzir um poder
normalizador. “Fazer uma crítica política em nome do humanismo
significa reintroduzir na arma do combate a coisa contra a qual
combatemos” (FOUCAULT, 2011a, p. 356).
Sobre isso, questionamos: por que o trabalho assume centralidade
nessa prática educacional? Como defender uma educação para o domínio
do conhecimento científico-tecnológico como garantia de autonomia e
inserção econômica, se na lógica da concorrência econômica nem todos se
quer têm a possibilidade de exercer um “trabalho produtivo”? Por que
ainda, na modernidade se insiste tanto nessa forma-homem, nesse
fundamento humanístico, mesmo depois de Foucault já ter decretado sua
morte? E qual o papel atribuído para o ensino de filosofia na perspectiva
de uma formação antropocêntrica?
Nas diretrizes, utiliza-se de uma concepção ideal de homem
emancipado como justificativa para conceber uma educação como
necessidade de domínio do conhecimento científico e tecnológico,
tornando-o capaz de integrar-se economicamente. Nisso, a liberdade
almejada passa a ser pensada em uma educação que potencialize sua
integração econômica. A crença humanística de que a consciência da
situação levaria a transformação não é mais satisfatória, isto porque a partir
da nossa de homo oeconomicus pode-se afirmar que o indivíduo aceita ser
governado para adequar-se ao sistema econômico. Assim, a liberdade
torna-se produzida pelos próprios mecanismos das relações de poder em
79
uma sociedade neoliberal, onde impera a desigualdade nas condições de
competição de trabalho.
Por isso, não se trata de fazer uma fundamentação sob a bandeira
de luta de classes, em que dominar o conhecimento científico-tecnológico
é garantia para autonomia individual ou de classe, mas de diagnosticar as
formas de subjetivação, ou seja, analisar um modo de proceder que utiliza
de técnicas de saber-poder para produção si mesmo. Ao adequar-se a esse
modelo de formação, o indivíduo usa das próprias armas que o inimigo
fornece, não só para conquistar autonomia socioeconômica, mas para
produzir sua própria sujeição. Antes de dominar, já estamos sujeitados.
Essa concepção “abstrata” de homem torna-se uma tecnologia de
saber, um tecno-saber porque transforma-se em um instrumento para
atingir determinados fins e, também, um saber-poder biotécnico, pois age
sobre a vida para conduzir a população para fins desejados. Utiliza-se dessa
concepção de educação não só por se considerar como fecunda para a
formação do homem, mas, também, porque permite alcançar o poder
desejado, no caso, o domínio do conhecimento científico e tecnológico
como forma de integração econômica. É porque permite a conquista de
determinado tipo de poder que ela funciona como uma formação ideal.
Para Foucault (2006b) o proletariado não luta contra a classe dominante
porque considera que se trata de uma guerra justa, mas faz a luta porque
quer o poder. É porque quer o poder é que considera a guerra justa. Desse
modo, tal política educacional funciona como forma de integração
biopolítica, isto porque, direciona para que o indivíduo escolha fazer parte
do jogo normalizador que constitui a população.
Enfim, se pelo pensamento marxista se concebe que o homem
produz o homem, entendendo essa produção como uma necessidade de se
liberar de um sistema repressivo que mantem o homem afastado de sua
80
essência fundamental. Para o pensador francês, não se trata de produção,
“é bem a destruição do que somos e a criação de uma coisa totalmente
outra, de total invenção” (FOUCAULT, 2010b, p. 325). Faz-se necessário
construir uma história crítica do pensamento, que deixa de ver o sujeito
como fundamento a ser libertado e, passa a ser um diagnóstico de si como
possibilidade de outros modos de existir. Desse modo, a concepção da
ontologia de nós mesmos, enquanto diagnóstico do que nos constitui, é
para Foucault uma maneira de resistência a essa “estrutura antropológico-
humanística do pensamento” (FOUCAULT, 1994b, p. 608).
81
2
Por uma problematização do uso da técnica
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Em nossa análise da educação tecnológica observamos a mera
concepção moderna das noções de técnica e tecnologia, por isso, nosso
objetivo nesse capítulo é problematizar a técnica e descrever como através
de determinado uso dela se permite ou não uma experiência de si. A tarefa
de questionamento de nossa relação com a técnica, convite de Heidegger
retomado por Foucault, nos permite o diagnóstico do uso moderno da
técnica como produção de uma subjetividade desverticalizada como
aponta Sloterdijk. Por isso, em um primeiro momento, descrevemos o
deslocamento de uma análise da técnica como juízo moral de seu uso para
pen-la em um novo uso que é o exercício de si como forma de criar uma
tensão que produz a dessubjetivação. Já na segunda parte, através das
leituras de Heidegger, Sloterdijk e Foucault, apresentamos, além das
diferenças e deslocamentos entre os autores, suas críticas à técnica moderna
e como cada um propõe outra maneira de pensar a técnica.
O deslocamento da questão da técnica: um novo uso
Iniciamos esta seção apresentando um resumo da obra O Alienista
de Machado de Assis, de 1882:
A obra narra a história do Dr. Simão Bacamarte, um médico que
depois de uma respeitosa carreira no Brasil e na Europa, retorna a sua
terra natal, Itaguaí, com o objetivo de se dedicar aos estudos médicos.
Casa-se com a já viúva D. Evarista, a qual escolheu por julgá-la capaz
82
de lhe dar bons filhos, o que não aconteceu. Bacamarte era “homem
de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da Ciência”. E
acreditava em uma ciência como “dom de curar todas as magoas”.
Dedicado aos estudos da psiquiatria, abre uma clínica para estudar os
casos de loucura e doença da mente. O local é batizado de Casa Verde.
No início as internações eram feitas com pessoas que realmente tinham
algum caso de demência. Mas aos poucos, o alienista começa a internar
pessoas consideradas pela comunidade como normais, causando
indignação e revoltas na cidade. Até mesmo sua mulher não escapa da
internação, o motivo foi sua indecisão diante da escolha de uma roupa
para uma festa. Quando percebeu cerca de 4/5 da população estavam
internados na casa. Questionando seu critério de internação resolveu
soltar todos e rever sua teoria, pois se a maioria possuía desvio de
personalidade, quem deveria ser internado era a minoria que gozava do
perfeito equilíbrio de suas faculdades mentais. E baseando-se nesta
nova teoria, começa a internar aquelas pessoas consideradas com
personalidade perfeita. Algum tempo depois, percebeu que sua nova
teoria também estava errada, pois ninguém possuía uma personalidade
perfeita. Resolve então libertar todos. E interrogando várias pessoas
conclui que o único considerado com perfeito equilíbrio mental era ele
mesmo. Por fim, internou-se então na Casa Verde para estudar e curar
a si mesmo. “Morreu ali após dezessete meses no mesmo estado em que
entrou, sem ter podido alcançar nada”. Boatos diziam que o único
louco que havia em Itaguaí foi o Dr. Simão Bacamarte (ASSIS, 1882,
nosso resumo).
Por meio desta obra, Machado de Assis propõe uma crítica social
a ciência e a razão moderna, colocando em questão a fronteira entre o
normal e o anormal, ou seja, problematiza a produção da normalidade,
onde a relação com o outro é dada pelo enquadramento ou não nos
parâmetros da universalidade. Simão Bacamarte (denominado por
Machado de Assis como o Alienista) incorpora a concepção racional e
positiva da ciência do século XIX que exerce um poder com um saber
83
objetivo e universal, mas que ao final percebe que o único caso que
precisava de cura, era ele mesmo.
Nosso objetivo com esse relato é o de mostrar que a ciência e a
técnica moderna constituem um modo de operar sobre os outros e a si
mesmo. E embora o Alienista realize o movimento sobre si mesmo, se
utiliza dos mesmos procedimentos que usou para operar sobre os outros e,
por isso, no final encontra-se do mesmo modo que entrou, pois suas
ferramentas científicas não permitiram a transformação de si. Com o
objetivo de “curar” e buscar a perfectividade humana, o Alienista se utiliza
da ciência e da técnica como forma de intervenção sobre si e, desse modo,
evita as forças que impulsionam o deslocamento de si. Daí que nosso
objetivo com este capítulo não é julgar a técnica construindo uma crítica
moral de seu uso, antes, trata-se de descrever como através dela se permite
ou não uma relação transformadora de si mesmo.
Embora não seja nosso objetivo desenvolver um diagnóstico da
ciência moderna, ao analisarmos a técnica moderna estaremos ocupando-
nos também com a ciência, isto porque, em um sentido comum se concebe
a ciência moderna como a operação de técnicas, ou seja, como
encadeamento de meios para conquistar fins determinados. Daí que a
modernidade pode então ser entendida, como o momento que se tem
intensificado os mecanismos para alcançar com maior rapidez um fim
determinado. Produção de desempenho que o prof. Eladio C. P. Craia
(2015, p. 78) denomina como “metamorfose da velocidade”, para
evidenciar a centralidade da noção de velocidade que comanda a produção
técnica. Um modo de proceder objetivo que se difunde em todos os
saberes, tanto no fazer empírico das ciências aplicadas, como na
objetividade do conhecimento representativo dos saberes moderno.
84
Também questionamos a restrita distinção moderna entre técnica
(modos de fazer, meios, procedimentos) e tecnologia (conhecimento
científico sobre o fazer). A partir de Foucault, compreendem-se ambas
como práticas, ou seja, como um modo de regular e racionalizar os modos
de agir e de pensar, o que nos permite conceituar a tecnologia como uma
rede de relações de saber-poder, como a tecnologia disciplinar ou a
tecnologia de governo e a técnica como os procedimentos que permitem
operacionalizar essas redes, como as técnicas de exame ou as técnicas de
regulação da população como a estatística. Foucault (2012d) mesmo
admite que o inconveniente da palavra tékhne é sua relação com a palavra
tecnologia, a qual se dá um sentido bem especifico, pois geralmente es
associado com as tecnologias duras (como as máquinas e equipamentos),
mas que o governo é também função de tecnologias, como o governo de si
e dos outros.
Por isso, não é nosso objetivo realizar a história do
desenvolvimento do conceito de técnica, nem realizar uma filosofia da
técnica no sentido de uma análise moral sobre seu uso, mas através das
leituras de Heidegger, Sloterdijk e Foucault realizar o diagnóstico da
técnica moderna, deslocando-se de sua restrita concepção instrumental
para pensar a técnica como um modo de exercício de si em que nós
próprios somos seus atores e elementos.
Com frequência, nota-se que certas discussões filosóficas,
principalmente no âmbito do ensino da filosofia, restringem-se ao
questionamento da técnica em sua dimensão de utilidade, como: avaliações
qualitativas sobre o avanço e a utilidade da técnica, como sobre as
consequências da concepção tecnicista sobre o mundo e o homem. Enfim,
são avaliações que têm como parâmetros as consequências positivas ou
negativas de seu uso. Assim, como na análise de Craia (2003) consideramos
85
que “[...] as questões filosóficas fundamentais sobre a técnica não se
referem somente à discussão sobre o papel, lugar, qualidade ou abrangência
dos dispositivos e fenômenos técnicos, bem como sobre o futuro
desenvolvimento destes (CRAIA, 2003, p. 16). Isto não quer dizer que
certas análises não sejam importantes. O que queremos apontar é a
necessidade, poucas vezes contemplada, de pensar a técnica como um
modo de operar-se a si mesmo.
Ora, o esforço feito atualmente pelas pessoas de nossa geração não é o
de reivindicar o homem contra o saber e contra a técnica, mas
precisamente mostrar que nosso pensamento, nossa vida, nossa
maneira de ser, até mesmo nossa maneira de ser mais cotidiana, fazem
parte da mesma organização sistemática e, portanto, decorrem das
mesmas categorias que o mundo científico e técnico (FOUCAULT,
2011a, p. 149-150).
Vivenciamos um contexto de expansão científico e tecnológico,
evidenciado em diversas conquistas materiais, médicas, estéticas, etc., mas
que também transpassa a vida, determinando modos de existência, de
subjetividades. A própria vida torna-se técnica, como por exemplo, no
plano biológico presenciamos a planificação do prolongamento da vida; já
no plano existencial desenvolve-se a profissionalização das subjetividades,
onde o indivíduo tem à disposição vários especialistas para conduzir seu
modo de vida; no âmbito formativo nota-se a propagação de discursos
sobre o desenvolvimento de competências e habilidades de um trabalhador
flexível, como requisitos subjetivos para adequar-se há um sistema
econômico alicerçado em pressupostos de uma sociedade tecnológica.
Com isso, não se quer negar a importância que as tecnologias têm
na promoção da qualidade de vida do homem moderno, mas apontar que
com a abertura biopolítica, a vida torna-se técnica anulando a potência
86
criativa no agir da própria vida. A ordenação dos processos técnicos da vida
tem como consequência o distanciamento do exercício de si, elemento
fundamental para a formação do pensamento e da ação livre.
Como não pretendemos realizar a crítica da técnica em seu uso e,
sim, pensá-la como exercício de si, então, nosso objetivo é construir um
novo modo de praticá-la ou nas palavras de Agamben (2007) fazer um
“novo uso”. Para entender essa noção, outro elemento importante para
Agamben é sua relação com o conceito de inoperosidade, como afirma: “a
criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho
uso, tornando-o inoperante” (AGAMBEN, 2007, p. 75). Também no
livro O uso dos corpos (2017) afirma que o conceito de uso só pode ser
compreendido se o situarmos no contexto da teoria da inoperosidade.
Com isso, o autor entende que fazer um novo uso de algo é um projeto
político que torna inoperosa as velhas formas e permite abrir para um novo
uso possível (AGAMBEN, 2017, p. 117-118).
12
12
O projeto político em Agamben pode ser melhor entendido quando relacionamos o uso com a noção
de profanação. Na obra Profanações (2007), Agamben afirma que profanar constitui uma tarefa política
que visa restituir ao livre uso dos homens o que a sacralização havia separado do homem e dessubjetivar
o que os dispositivos instituíram como forma de vida. Como afirma: “Profanar não significa simplesmente
abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um novo uso, a brincar com elas. [...] a fim de
tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros” (AGAMBEN, 2007, p. 75). E mais
adiante: “a atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou seja, uma prática que, embora
conserve tenazmente a sua natureza de meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, esqueceu
alegremente o seu objetivo, podendo agora exibir-se com tal, como meio sem fim” (AGAMBEN, 2007,
p. 74-75). Para Agamben (2007, p. 66-67) profanar é como um jogo que quebra a unidade com o sagrado
e cita o exemplo do jogo das crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhe cai nas mãos,
transformando em brinquedo o que pertence a esfera da economia, da guerra, do direito, etc. A
profanação como um novo uso constitui-se em puro meio, ou seja, abandona a ligação do meio com a
finalidade, mantendo apenas sua atividade de puro meio. É preciso libertar do “sentido e da relação
imposta com uma finalidade, abrindo-se e dispondo-as para um novo uso” (AGAMBEN, 2007, p. 74).
Daí que seu diagnóstico político é de que no capitalismo, o consumo tornou-se uma prática em que se é
impossível profanar, pois o consumo ao destruir a coisa tornando-a descartável acaba impedindo que se
faça um novo uso dela (2007, p. 71-72). E conclui: “Por isso é importante toda vez arrancar dos
dispositivos de todo dispositivo a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do
improfanável é a tarefa política da geração que vem” (2007, p. 79). Segundo Raphael G. Valerio (2018,
p. 124) os dispositivos nos produzem (produzem a humanização) e, portanto, nos governam. Assim, não
87
Segundo Agamben (2017), em Heidegger, “costumeiramente
entendemos o termo ‘usar no sentido de utilizar e ter necessidade no
interior de um servir-se de algo” (AGAMBEN, 2017, p. 68) e, por isso,
Heidegger percebendo que o homem é dominado pela instrumentalidade
dos utensílios propõe, na obra Ser e Tempo, substituir o uso pelo
cuidado com o objetivo de livrar o homem dos limites estreitos da esfera
do uso. Contudo, o projeto de Agamben é de fazer um novo uso do
próprio conceito de uso, relacionando ao uso de si. Como afirma:
[...] todo uso é, antes de tudo, uso de si: para entrar em relação de uso
com algo, eu devo ser por ele afetado, constituir a mim mesmo como
aquele que faz uso de si. No uso, homem e mundo estão em relação de
absoluta e recíproca imanência: ao usar algo, o que está em jogo é o ser
do próprio usante (AGAMBEN, 2017, p. 49).
Nessa relação imanente o essencial é a afeição que o usante recebe,
em suas palavras: “a afeição que se recebe enquanto se está em relação com um
ou mais corpos” (AGAMBEN, 2017, p. 48, grifos do autor). O uso de si
constitui em um modo de ser afetado em que não há um “eu” que se
constitui como um antes e um depois do uso, isto porque, não sou eu que
uso, mas uma relação que opera em mim. E com isso, entendemos que
fazer um novo uso colocando em jogo o próprio usante constitui um
processo de dessubjetivação em que as relações de afeição que me
atravessam conduzem minha transformação. Ideia pela qual conduzimos
nossa compreensão da técnica, buscando pensar outro modo de conceber
nossa relação com a técnica, na qual seja possível o exercício de si como
um novo uso da técnica.
podem ser simplesmente destruídos, nem tampouco podemos usá-los de modo correto como dizem os
entusiastas da tecnologia. Então, se faz necessário se arriscar na medialidade, como forma de profanar os
dispositivos.
88
Para isso, através da descrição das leituras de Heidegger, Sloterdijk
e Foucault buscamos refletir de que modo a filosofia pode proporcionar
outra maneira de se relacionar com a técnica, deslocando-se de seu uso
crítico como julgamento da técnica para pensar outro uso que é o exercício
de si como forma de criar uma tensão que produz a dessubjetivação. A
questão do uso da técnica nos conduz as seguintes problematizações: como
praticar no ensino de filosofia o exercício de si como novo uso da técnica?
Qual o uso da técnica é praticado na educação tecnológica? E esse uso no
ensino técnico está relacionado com a produção da subjetividade
biopolítica?
Questionemos nossa relação com a técnica
A essência da técnica em Martin Heidegger
A questão da técnica em Heidegger (2007) é abordada
problematicamente no texto A Questão da Técnica de 1953, no qual por
meio do questionamento da técnica desloca-se para a discussão da própria
essência da técnica e como uma maneira de realizar a própria história do
ser. Não pretende negar ou pensar contra a técnica, mas construir uma
relação de liberdade, sendo que esta liberdade da técnica só é possível com
o conhecimento da essência da técnica. Por isso, o autor irá resgatar a
concepção grega da técnica com o objetivo de mostrar o perigo da técnica
moderna e também como possibilidade de construir outra relação mais
livre com a técnica.
A primeira frase de Heidegger (2007, p. 375) é: “questionaremos
a técnica”. A palavra questionar revela sua compreensão da filosofia como
uma atitude que permite interrogar o presente, para mostrar o modo como
nosso ser se constitui neste momento em que a experiência é determinada
pelo modo de ser técnico. Afirma ainda, que esse questionar deve ser
89
construído em um movimento que chama o caminho do pensamento. Já
para Silva (2007, p. 369) a palavra questionar revela que o trabalho de
Heidegger não pretende ser uma investigação de um objeto (que tem como
resultado a representação) nem uma definição (como conhecimento
objetivo), ambas atitudes modernas. Sua tarefa se expressa negativamente,
afastando estas concepções para liberar a essência da técnica.
Essa tarefa negativa, que se realiza pelo questionamento do que a
“técnica é”, revela sua descrição do modo de proceder da técnica moderna.
Heidegger inicia o texto com a problematização do nexo entre técnica e
instrumentalidade, mostrando que a técnica moderna é o uso humano de
procedimentos voltados para determinado fim. Segundo Heidegger (2007,
p. 376) há dois enunciados para esta questão: a primeira, “técnica é um
meio para fins” (determinação instrumental) e, a segunda, “técnica é um
fazer do homem” (determinação antropológica). Ainda, para Heidegger:
As duas determinações da técnica estão correlacionadas. Pois
estabelecer fins e para isso arranjar e empregar os meios constitui um
fazer humano. [...] A concepção corrente de técnica, segundo a qual ela
é um meio e um fazer humano, pode, por isso, ser chamada de
determinação instrumental e antropológica da técnica (HEIDEGGER,
2007, p. 376).
Em outro texto A época da imagem do Mundo”, Heidegger
(2014) também desenvolve a constituição da objetividade da ciência
moderna ligada à formação do sujeito moderno.
Quanto mais completamente e amplamente o mundo é conquistado e
fica à disposição, mais objetivo fica sendo o objeto, mais
subjetivamente, isto é, insistentemente ergue-se o sujeito e mais
irresistivelmente a consideração do mundo e a doutrina do mundo se
90
transformam em doutrina do homem, em antropologia
(HEIDEGGER, 2014, p. 10).
Assim, as duas determinações manifestam a dimensão objetiva que
impera na teoria da causalidade moderna. A concepção moderna da
causalidade costuma “representar as causas como o que opera efeito”
(representação da técnica como meio que visa resultados), sendo a causa
eficiente o modo exemplar da causalidade (HEIDEGGER, 2007, p. 377).
Contudo, ao retomar os gregos, propõe que se pense a técnica para além
dessa teoria instrumental. “A essência da técnica não é nada técnico
(HEIDEGGER, 2007, p. 396), ou seja, a essência da técnica grega não
opera na mesma lógica da objetividade.
Segundo Heidegger (2007) a concepção moderna instrumental da
causalidade está alicerçada na ideia de operar efeitos, em que efetuar
significa visar resultados, produzir efeitos. Predomínio da causa eficiente,
uma das quatro causas que remonta a Aristóteles. Contudo, no âmbito do
pensar grego o que se procura pelo título de causalidade não tem nada a
ver com reagir e efetuar. Antes, as quatro causas remetem a ideia de
comprometimento e que faz com que algo apareça. Já na causalidade
moderna predomina um sentido operatório de agenciamento de meios
para a produção de fins determinados, pois “onde fins são perseguidos,
meios são empregados e onde domina o instrumental, ali impera a
causalidade” (HEIDEGGER, 2007, p. 377).
Heidegger então propõe retomar outro sentido grego de causa que
está ligado a um modo de ocasionar, ou seja, “[...] este ocasionar deve ser
entendido como um deixar surgir e vir à presença, em suma, como um
trazer à luz o que se apresenta” (DUARTE, 2009, p. 7). Esse trazer a
presença evidencia a essência da técnica como desvelamento. Ainda, para
Duarte (2009, p. 6) “[...] quando concebemos a técnica como meio para
91
o alcance de um fim somos levados a pensar que o problema da moderna
tecnologia se resumiria ao bom controle e domínio de seu uso e emprego,
concepção da qual Heidegger desconfia”. Ainda segundo o autor, o
problema de considerar o modo convencional de pensar a técnica como
um conjunto de meios para o alcance de fins é que tal concepção conduz
a pensar que[...] a técnica seria algo neutro em si mesmo, de modo que
o significado dos seus resultados dependeria única e exclusivamente do uso
humano que dela se fizesse, isto é, da adequada escolha dos fins”
(DUARTE, 2009, p. 6). Uma concepção que é instrumental ou
antropológica, porque considera que cabe ao homem “[...] articular os
meios necessários para o alcance de fins previamente definidos [...]
(DUARTE, 2009, p. 6). Por isso, Heidegger se desloca da questão do uso
da técnica para a questão de sua essência.
Já no início do texto Heidegger (2007, p. 375) aponta que “a
técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica”. Para Heidegger o
modo como os gregos entendem a causalidade está ligado ao que
denominavam por poiésis, um produzir que significa (utiliza o termo
alemão “Her-vor-bringen”) um trazer ou conduzir para frente. Assim
afirma: “Todo ocasionar para algo que, a partir de uma não-presença
sempre transborda e se antecipa numa presença, é ποίησις, produzir <Her-
vor-bringen>” (HEIDEGGER, 2007, p. 379). Deste modo, o produzir
(poiésis) enquanto ocasionar algo deve ser entendido como um deixar vir à
presença. Um modo de fazer algo aparecer que se manifesta tanto na
natureza (physis), quanto no que é produzido pelo artesão e pela arte.
Disto resulta sua interpretação da técnica como um modo de
produzir que possui duas características: primeiro, acnica grega deve ser
entendida como um fazer manual e poético, sobre isso diz: “[...] a τέχνη
não é somente o nome para o fazer e poder manual, mas também para as
92
artes superiores e belas artes. A τέχνη pertence ao produzir, à ποίησις; é
algo poético <Poietisches>” (HEIDEGGER, 2007, p. 380); segundo, que
Heidegger considera o mais importante, a τέχνη está relacionada com a
palavra έπιστήμη (episteme, ciência). Assim diz: “O conhecer dá
explicação e, enquanto tal, é um desabrigar. [...] A τέχνη é um modo da
άληθεύειν (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Com isso, afirma que a técnica
é um modo de desabrigar ou desvelar.
A partir desse segundo sentido, conforme Duarte (2009, p. 9) a
interpretação heideggeriana da poiésis mostra que a técnica não é um mero
fazer que produz fins, mas “um conduzir algo do oculto para o
desocultamento”. E mais adiante continua: “como a téchne, a técnica, é um
saber da poiésis, a produção, então ela teria de ser entendida como um saber
trazer o ente à luz da presença, em suma, como um modo de desocultar o
ente em seu ser”. Heidegger através da concepção da técnica como um
“saber trazer o ente à presença” indica o modo de ser da essência da técnica.
Para Heidegger a essência da técnica não está em sua objetividade,
mas em seu modo de desvelamento. “A técnica não é, portanto, meramente
um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á
para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-
se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade” (HEIDEGGER,
2007, p. 380). Nessa perspectiva, o autor concebe a essência da técnica
como o problema da verdade, questão que não é nada técnico. A verdade
(alétheia) é um modo de desabrigar que revela o acontecimento e que não
deve ser entendido como produto de uma atividade humana. Como
Heidegger afirma: mas ele não dispõe do descobrimento por onde a
realidade a cada vez se mostra ou se retrai” (HEIDEGGER, 2007, p. 383).
A questão do desvelamento (verdade) permite compreender como
algo aparece. O mundo se dá como desvelamento. Contudo, o modo como
93
algo aparece é diferente na concepção grega e na moderna. Os gregos
chamam de alétheia (desvelamento) a passagem do que não está presente
para o aparecer, já os modernos chamam de verdade. Contudo, para os
gregos a alétheia não é o que é passível de conhecimento enquanto
adequação entre ideia e objeto, pois isto implica a representação e
objetividade moderna. Heidegger aponta que a técnica na modernidade
não pode ser mais entendida como um produzir enquanto um desabrigar
no sentido de deixar aparecer, mas se trata de um desabrigar no que
denomina de “desafiar”.
O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no
sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia oculta na
natureza ser explorada, do explorado ser transformado, do
transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente
distribuído e do distribuído renovadamente ser comutado. Explorar,
transformar, armazenar e distribuir são modos de desabrigar
(HEIDEGGER, 2007, p. 380).
Segundo Heidegger (2007, p. 384) o sentido moderno da técnica
como “invocação desafiadora” revela a essência da técnica como armação,
como aquilo que está disponível a exploração. “Seu modo de representar
põe a natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo”
(HEIDEGGER, 2007, p. 386, grifo nosso). Para o autor, a palavra “por”
revela o sentido da armação: a natureza é aquilo que está à disposição para
o domínio da técnica. Isso tem como consequência, que a técnica moderna
enquanto armação condiciona o desabrigar como um estar à disposição
que impede que algo apareça como poiésis, pois tudo já está determinado
pela objetividade e nada escapa ao seu jogo calculista que conduz a uma
atitude de conquista e posse. Nisto reside o perigo da técnica moderna:
impedir outras formas de desvelamentos. Por isso, ao interrogar sobre o
94
perigo da técnica moderna busca construir uma relação mais livre com a
técnica.
O perigo no modo de proceder da técnica moderna, enquanto
modo de pensar que produz a tecnificação do ser, impede a verdadeira
essência da técnica enquanto desvelamento e, com isso, impede que o ser
se manifeste como desabrigamento. A técnica moderna, alicerçada no saber
objetivo, impede a manifestação de outras formas de pensamento. A
técnica moderna é um tipo de desencobrimento que impede outros
desencobrimentos.
No entanto, para Heidegger “onde há perigo, cresce também a
salvação” (2007, p. 391) e já menciona no primeiro parágrafo que é preciso
pensar a liberdade do ser- (Dasein) colocando a questão da essência da
técnica. “A relação é livre se abrir nossa existência <Dasein> à essência da
técnica” (HEIDEGGER, 2007, p. 383). Para o autor, o pensar livre é o
que compreende a técnica como deixar aparecer (sentido grego) e não no
desafiar moderno. A relação entre perigo e salvação revela a disposição
ontológica do ser que é a do cuidado.
Também na obra Ser e Tempo, a partir do §41, Heidegger concebe
o ser da presença (Dasein) como cuidado (cura), na qual afirma: “[...] em
sua essência, o ser-no-mundo é cura [...]” (HEIDEGGER, 2006, p. 260).
Sobre isso, Agamben (2017, p. 90-91) afirma que Heidegger estava preso
na esfera da utilidade e descreve um homem dominado pela relação de uso
das coisas e, então na obra Ser e Tempo, ele substitui o termo uso pelo
cuidado.
Desse modo, a leitura de Heidegger sobre a essência da técnica deve
ser compreendida em sua história ontológica do ser, pois entende que o
fundamento da técnica não pode residir nela mesma (enquanto
manifestação objectual/ôntico). Desta maneira, não pretende destruir a
95
técnica, porque não há como escapar a essa atividade que caracteriza o
humano. A técnica manifesta o próprio “vir a ser do homem”. Antes, quer
superar as visões antropológicas e instrumentais da técnica, que baseadas
na causalidade constroem uma visão neutra da técnica. Concepção de
neutralidade que determina nosso domínio sobre técnica e que conduz a
certos riscos.Quanto mais se quer dominar a técnica, tanto mais ela
escapa ao controle e reaviva a vontade humana de controlá-la numa espiral
de consequências imprevisíveis” (DUARTE, 2009, p. 6). Evitar estes
riscos, questionando a técnica, isso deve permitir construir uma relação
livre com ela, superando a determinação da técnica moderna que limita o
agir humano a um fazer instrumental.
Já Agamben (2017, p. 101-102), ao analisar a crítica heideggeriana
da técnica moderna, estabelece uma relação de proximidade entre a técnica
moderna e a escravidão grega, pois ambas se propõem a libertar o homem
da necessidade, para lhes assegurar o acesso a uma dimensão mais própria,
que para os gregos era a vida pública e para os modernos a possibilidade de
dominar as forças da natureza. E conclui que, na modernidade a relação
com a natureza passa a ser medido por um dispositivo, afastando o homem
do animal e do orgânico, para aproximá-lo do “instrumento e do
inorgânico até a quase identificar-se com ele (o homem-máquina)”. E que
por isso, “[...] não causa espanto que a hipertrofia dos dispositivos
tecnológicos tenha produzido uma nova e inaudita forma de escravidão”
(AGAMBEN, 2017, p. 102).
96
Peter Sloterdijk e a antropotécnica: a técnica como exercício
O pensador alemão Peter Sloterdijk
13
, ao interpretar a questão da
técnica em Heidegger, produz outra compreensão da técnica, a qual está
diretamente relacionada à produção do espaço vital, ou seja, a existência
humana é resultado da coexistência com um modo de ser técnico.
Pensamento que contribui para a superação da tradicional interpretação
moderna da tecnologia seja como produção de algo artificial ou como
domínio sobre o natural (dualidade entre natureza e cultura), bem como,
sua crítica ao humanismo permite superar a distinção entre homem e
máquina.
na obra Regras para o parque humano (2000b)
14
Sloterdijk
desenvolve a crítica ao humanismo literário e, também, pretende marcar a
diferença de sua leitura sobre a técnica em relação a Heidegger. O autor
denuncia o humanismo literário como a crença moderna de que a leitura
é a única forma de humanizar. Já no texto O Sol e a Morte, Sloterdijk
(2007) questiona sobre a relação entre outros gestos corporais e o pensar,
não apenas estes do humanismo literário (ler, estar sentado e acalmar),
então, aponta que a própria imagem do homem pensante (próprio da
13
Peter Sloterdijk nasceu em 1947 em Karlsruhe. Seu primeiro livro que o tornou conhecido foi “Crítica
da razão cínica”, editada em 1983. “É um dos filósofos mais polêmicos e conhecidos da actualidade. [...]
De tal modo que já foi apelidado de ‘ogre da filosofia’. O carácter polêmico do seu discurso filosófico,
assim como as questões de que trata (por exemplo: a tecnologia, a biologia moderna, a dimensão
planetária do capitalismo que cria o ‘sistema-mundo’, isto e, a globalização, a ira no tempo do terrorismo,
etc.), fizeram de Sloterdijk um filosofo com uma forte presença no espaço público” (GUERREIRO,
2007, p. 23-24).
14
O texto de Sloterdijk trata-se de uma resposta à “Carta sobre o Humanismo” escrito por Heidegger em
1946. Como ele mesmo admite no posfácio, seu texto provoca “um acirrado e controvertido debate
público na Alemanha durante os meses de setembro e outubro de 1999”. Debate que é instigado por três
pontos que trata seu discurso: por apontar “o perigoso fim do humanismo literário”, mostrando que este
não passa de uma utopia porque crê na formação humana por meio das práticas da escrita e da leitura,
pelas quais se constrói uma atitude paciente e se educa para a capacidade de julgar; segundo, por fazer “a
revisão histórica e antropológica do motivo heideggeriano da clareira” e, por fim, por questionar os
problemas decorrentes das “novas possibilidades de intervenção biotecnológica” (SLOTERDIJK, 2000b,
p. 59-62).
97
filosofia) é do homem encurvado que está pensando. E indica que
Nietzsche já nos alertou de que só devíamos levar em conta as ideias que
tenham sido pensadas quando caminhando ao ar livre e, também, de que
testes experimentais mostraram que a posição em estado de suspensão
produziu melhores resultados na aprendizagem do que posições distintas
como estar sentado ou caminhando (SLOTERDIJK, 2007, p. 272).
Portanto, esse humanismo fracassou porque não nos fez perceber que em
nossa educação e cultura há um profundo processo seletivo. O que
chamamos de humanidade é a seleção de certas habilidades e capacidades
por meio de certas técnicas que produzem o homem. “É a marca da era
técnica e antropotécnica que os homens mais e mais se encontrem no lado
ativo ou subjetivo da seleção, ainda que não precisem ter se dirigido
voluntariamente para o papel do selecionador” (SLOTERDIJK, 2000b, p.
44-45).
No texto de 2000, Sloterdijk afirma que no humanismo a “tese
latente é: as boas leituras conduzem à domesticação” e tendo como
objetivo a capacidade de promover o “desembrutecimento do ser humano”
(SLOTERDIJK, 2000b, p. 17). Aponta ainda, que o humanismo assume
o homem como um dado prévio e aplica seus métodos convencido das
“conexões necessárias entre ler, estar sentado e acalmar”. Contudo,
problematiza: “o que domestica o homem, se seus esforços de
autodomesticação até agora só conduziram, no fundo à sua tomada de
poder sobre todos os seres?” (SLOTERDIJK, 2000b, p. 32). Ao colocar
essa questão sobre “o que domestica o homem”, Sloterdijk aponta para a
deformação de tais processos de domesticação em dominação e, que a
domesticação do ser humano constitui a seus olhos o “grande impensado”
da filosofia. Sloterdijk desloca a compreensão da domesticação mostrando
que os homens também são “domesticados por suas habitações”, onde o
98
homem nada mais é do que o produto de um modo de domesticação dos
espaços vitais que se dá na coprodução com a técnica.
Sloterdijk parte da concepção de domesticação em Nietzsche,
descrevendo a passagem do livro Assim Falou Zaratustra em que Nietzsche
relata que Zaratustra ficou admirado com o tamanho das casas e que
entristecido afirma: “tudo ficou menor”. E então Nietzsche conclui: “A
virtude é para eles aquilo que torna modesto e domesticado: com ela fazem
do lobo um cão, e dos próprios homens os melhores animais domésticos
para os homens”. E para Nietzsche não se trata de apenas criar os homens
para serem pequenos, mas para serem grandes. Dessa maneira, Nietzsche
aponta para um “segundo horizonte, este mais sombrio” (o primeiro: a
domesticação escolar) e que diz respeito à “face velada da clareira”, trata-se
“com a ajuda de uma hábil combinação de ética e genética, criar-se a si
mesmos para serem menores” (SLOTERDIJK, 2000b, p. 38-41).
E desse modo, Sloterdijk (2000b) reinterpreta a questão
heideggeriana da clareira, como expressa: “minha convicção, a
humanização em geral e a abertura da clareira em particular têm algo a ver
com a domesticação e, portanto, com a intimidade doméstica do Homo
sapiens. A humanização foi, como tal, um acontecimento espontâneo de
autocriação” (SLOTERDIJK, 2007, p. 51). Segundo o autor, existe uma
história que foi ignorada por Heidegger que diz respeito à “saída dos seres
humanos para a clareira”, isto porque, este ao fazer a história do Ser acaba
por se afastar da antropologia e, então, “em sua ânsia de preservar o ponto
de partida ontologicamente puro no Estar-aí (Dasein) e no estar-no-
mundo dos seres humanos não toma nem de longe suficiente
conhecimento” (SLOTERDIJK, 2000b, p. 33). E para Sloterdijk (2000b,
p. 33-34ª) história real da clareira deve ser a da “explicação de como o
animal sapiens se tornou o homem sapiens”, trata-se de uma “revolução
99
antropogetica” em que a ruptura do nascimento biológico dá “lugar ao
ato do vir-ao-mundo”.
Desse modo, se em Heidegger o “estar-no-mundo” mostra que a
abertura para o mundo é um lançar-se ao mundo fazendo uso da
linguagem como a “casa do ser”, para Sloterdijk (2000b) essa concepção é
a do “ser como a dimensão extático da existência” e não permite que
Heidegger perceba que “a clareira é ao mesmo tempo um campo de batalha
e um lugar de decisão e seleção” (SLOTERDIJK, 2000b, p. 37). E passa a
usar a expressão “vir-ao-mundo” para descrever como ocorre o
adentramento no mundo, processo que ocorre em uma relação de
coexistência com as coisas. Assim, Sloterdijk pretende realizar uma história
antropológico-filosófico que marca a saída do homem da clareira em uma
história de produção do homem pela cultura e técnica, que o autor
denomina de antropotécnica. O que o leva a afirmar que: “mas a clareira,
nós a conhecemos agora, não é possível sem sua origem técnica. O homem
não fica na clareira com as mãos vazias, ele não permanece lá como
guardião vigilante, [...] conforme sugerido pelas metáforas pastorais de
Heidegger” (SLOTERDIJK, 2000a, p. 88).
Já na obra Has de cambiar tu vida: sobre antropotécnica
15
Sloterdijk (2012) amplia sua explicação da antropotécnica. Com essa
noção propõe pensar o ser humano como uma autoprodução por meio de
exercícios. Para o autor, a própria vida humana só foi possível por meio de
exercícios. E define exercício como:
[...] qualquer operação mediante a qual se obtém ou se melhora a
qualificação daquele que atua para a seguinte execução da mesma
operação, independentemente de que se declare ou não a esta como
15
As citações utilizadas são de nossa tradução a partir da versão em espanhol Has de cambiar tu vida:
sobre antropotécnica. Valencia: Pre-texto, 2012.
100
exercício. Quem falar da autoprodução do homem sem mencionar sua
configuração na vida que se exercita errou o tema desde o princípio
(SLOTERDIJK, 2012, p. 17).
Desse modo, a noção de exercício é entendida como uma técnica
que possibilita a constituição do humano. De modo que afirma: se o
homem produz o homem, não é pelo trabalho, pela interação ou pela
comunicação, mas que “isso faz o homem vivendo a vida em diferentes
formas de exercício” (SLOTERDIJK, 2012, p. 17). A dimensão que
chamamos de humano é produzido por meio da habitação de um espaço
16
que só foi possível pela técnica. Sloterdijk inverte o modo moderno de
pensar a técnica, na qual o homem produz a técnica e a si mesmos fazendo
o uso dela. O homem não faz uso da técnica, ao contrário, o seu modo de
ser é técnico, ou seja, não é algo agregativo à existência humana, mas
constitutivo de seu modo de ser, existe uma coexistência entre o modo de
ser humano e a técnica.
Influenciado pela leitura de Nietzsche, Sloterdijk (2012, p. 54s)
descreve que o autor da A Genealogia da Moral, ao estudar a ascese como
formas de vidas e de exercício guiados pela moral, mostra o surgimento de
“[...] uma nova atenção para a região comportamental da ascese, do
exercício e do tratamento administrado a si mesmo em seu conjunto.
Agora vamos tentar traduzir esta nova descrição em expressões
16
A noção de espaço assume importância fundamental na filosofia de Sloterdijk. Segundo Bernhard Sylla
(2015) o que diferencia o trabalho de Sloterdijk em relação a de Heidegger é que além de uma nova
interpretação da técnica, também enfatiza a antropologia como análise histórico-ontológica do homem e
por uma ontologia do espaço em detrimento do tempo. Sloterdijk desenvolve na trilogia denominada de
Esferas (em 1998 - Bolhas, em 1999 - Globos e 2004 - Espumas) uma análise topológica da vida humana
em micro-esferas, macro-esferas e nos espaços infinitos. Com a noção de sistemas imunológicos baseado
em uma ontologia da relação, defende a ideia de que a vida humana é produzida em espaços envolvidos
por uma membrana imunológica, ou seja, um espaço protetor que produz determinado modo de vida
em coexistência com as coisas.
101
correspondentes a uma teoria geral da antropotécnica” (SLOTERDIJK,
2012, p. 57).
O projeto antropotécnico de Sloterdijk (2007) pretende construir
uma nova leitura sobre a técnica, pois enquanto Heidegger vê a técnica
como uma ameaça a humanidade e propõe um retorno ao Ser, através da
questão da essência da técnica, como forma de combater a tecnificação do
ser na modernidade, para Sloterdijk na história há uma coprodução entre
técnica e humanidade. E como não há como evitar a técnica e nem voltar
a um estágio de natureza, o que temos de fazer é construir outra relação
com a técnica, que o autor denomina de homeotécnica, ou seja, uma
relação de cooperação com o modus operandi da natureza e não mais, o que
foi durante milênios, uma alotécnica, em que a técnica foi contranatura, a
qual aplicou princípios que não estão na natureza, uma mecânica fabricada
para efetuar funções contranaturais. A alotécnica determina uma visão da
técnica como construção artificial e não frutos da natureza
(SLOTERDIJK, 2007).
E Sloterdijk busca responder a seguinte questão: por que o homem
faz exercícios? Para o autor, fazemos exercício porque sentimos uma
“tensão vertical”, ou seja, existe uma tensão gerada por “diferenças-
orientadoras” que exigem do homem a prática de exercícios como forma
de definir a direção a ser tomada. Como afirma:
Traduzi essa indicação pela observação de que todas as “culturas”,
“subculturas” ou todos os “cenários” são construídos com diferenças-
orientadoras com cuja ajuda o campo das possibilidades do
comportamento humano é subdividido em classes polarizadas. Assim,
as “culturas” ascéticas [no sentido primitivo da palavra] conhecem a
diferença diretriz ou diferença-orientadora do perfeito versus o
imperfeito, nas “culturas” religiosas o sagrado versus o profano, [...] nas
102
políticas o poderoso versus o privado de poder, no administrativo o
superior versus o subordinado, no atlético a excelência versus a
mediania, nas economias a abundância versus a carestia, os cognitivos
do saber versus a ignorância, a sabedoria da iluminação versus cegueira.
O que essas diretrizes diferenciadoras sempre têm em comum é tomar
por escolha o primeiro valor dos dois indicados, que no campo
correspondente funciona como um atrativo, enquanto o outro polo da
alternativa é responsável pela função de um valor de repulsão ou de um
enorme desvio (SLOTERDIJK, 2012, p. 28-29).
O exercício nas culturas ascéticas constitui um modo de garantir a
aproximação do ideal orientador, pois para Sloterdijk (2012, p. 30) sem as
tensões verticais “não existe nenhum exercício intencionado”. Segundo
Franz J. Brüseke (2011, p. 163) através desses polos positivos e negativos
surge uma dinâmica que exerce, ao mesmo tempo, uma força tensa e
orientadora, como afirma: “orientadora, porque define claramente a
direção a ser tomada, tensa, porque exige do homem um esforço e
permanentes exercícios para superar um estado dado a favor de uma
superioridade ainda não alcançada”. Por isso, Sloterdijk declara que a
afirmação “você tem que mudar tua vida” significa que “deves por sua
atenção na verticalidade interna e examinar como opera sobre ti a atração
exercida pelo polo superior” (SLOTERDIJK, 2012, p. 85).
Sloterdijk descreve que nos últimos escritos de Foucault, ao
percorrer os autores antigos e realizar uma história da ascese, das técnicas
de si e do exercício filosófico, o autor mostra a transformação de si em sua
verticalidade. E cita uma passagem do próprio Foucault:
Essa é a ironia dos esforços que faz mudar seu ponto de vista... eles
realmente o levaram a pensar de qualquer outra forma? Talvez eles não
tenham conduzido, no máximo, mais do que pensar de outro modo
aquilo que já pensava, e perceber desde uma perspectiva diferente e
103
desde uma luz mais clara o que, de qualquer maneira, já fez. Acreditava
que se distanciava, e se encontra a si mesmo em sua verticalidade
(FOUCAULT, 1998 apud SLOTERDIJK, 2012, p. 201).
O autor também aponta que Foucault e Wittgenstein (por
considerar a proximidade em seus trabalhos) são dois autores que pensaram
a vida como exercício (SLOTERDIJK, 2012, p. 201). Ambos,
Wittgenstein através dos jogos de linguagem e Foucault por meio do
exercício filosófico, evidenciaram que o imperativo “você tem que mudar
sua vida!” exige que os exercitantes realizem conscientemente o exercício
como uma forma de vida que os compromete.
Sloterdijk faz também a distinção entre dois modos de exercício
que produzem a modificação do comportamento humano: operar-se a si
mesmo e deixar-se operar.
Essas duas expressões designariam modos de comportamento
antropotécnico que competem entre si. Na primeira delas, eu me
moldo a mim mesmo, por meus próprios meios, como objeto de uma
automodificação direta; no segundo, exponho-me à influência exercida
pelas operações de outros deixando-me moldar por eles. No jogo
comum entre esse operar sobre si mesmo e o deixar-se operar encontraria
realização todo o cuidado que tem o sujeito por si mesmo
(SLOTERDIJK, 2012, p. 477).
Para o autor, esses dois modos de comportamento antropotécnico
passam por uma profunda transformação na modernidade. Segundo
Sloterdijk (2012, p. 426-427) o “espírito de performance moderna” não
pode ser pensada sem a “desespiritualização da ascese”, a qual se realiza
pelo treinamento (training ou entraînement em francês) e que corresponde
com uma realidade que exige dos indivíduos a fitness (aptidão,
competência). Se antes da modernidade o exercício consistia em um “apelo
104
intensivo de elevação da vida” que levava há uma “diferenciação ética”,
agora na modernidade trata-se de um “exercício global de fitness” que
promove uma “mudança mental, moral e técnica” dirigida a todos e a qual
se dão múltiplas respostas.
Sloterdijk (2012) afirma que a modernidade nada mais é que um
novo tipo de regime antropotécnico. E admite que foi Foucault através da
história dos procedimentos disciplinares quem determinou seu olhar nesse
campo. Assim, como Foucault que trata das relações de poder sob o aspecto
individualizante e totalizante, Sloterdijk afirma que na modernidade se
seculariza e coletiviza a vida de exercício, retirando a ascese de seu contexto
espiritual, com o fim de dissolvê-las nas comunidades de trabalho
dedicadas ao treinamento e formação. O homem “tem que dirigir ele
mesmo sua própria vida” e que se traduz no final do século XX na seguinte
exigência “fazer de si mesmo um projeto e do projeto uma empresa”
(SLOTERDIJK, 2012, p. 418). “O indivíduo aparece como um treinador
que cuida da seleção de seus talentos e estimula o quadro de seus costumes”
(SLOTERDIJK, 2012, p. 420-421).
Para o autor, na modernidade o conceito chave para tratar sobre
esse desempenho externo se chama aprimoramento humano (human
enhancement), como afirma:
[...] human enhancement, expressão que define, como nenhuma outra,
a mudança de ênfase da anterior autointensificação do exercício
ascético (e da sua tradução burguesa em ‘formação’) à elevação dos
perfis de desempenho individual, químico, biotécnico e cirúrgico. [...]
Onde domina o pensamento de aprimoramento, se reivindica a
elevação do nível de desempenho como a prestação de um serviço no
qual o próprio esforço do indivíduo se limita ao ato de comprar mais
dos procedimentos mais atuais. Em vez do sujeito exercitante clássico,
que queria assimilar com um longo ascetismo à lei do cosmos ou que
105
criava, através do esvaziamento de si mesmo, um lugar para Deus em
seu interior, [...] agora aparece o sujeito do estilo de vida, que não quer
renunciar aos atributos atuais na representação de sua soberania
existencial (SLOTERDIJK, 2012, p. 429).
Esse deslocamento da antropotécnica conduz Sloterdijk a
caracterizar a modernidade como uma “desradicalização da diferenciação
ética” ou ainda, de uma “desverticalização da existência” (SLOTERDIJK,
2012, p. 473). Para o autor, com a ideia de progresso ou mesmo da
bondade da humanidade, se impõe “um modo de existência orientado pelo
aceleramento da vida” e pela redução da tensão vertical (SLOTERDIJK,
2012, p. 474). Na modernidade, a concepção de progresso técnico conduz
apenas a ideia de aprimoramento da vida em sua horizontalidade.
Nessa perspectiva, Franz Brüseke (2011) comenta que esse
enfraquecimento do imperativo “você tem que mudar tua vida!” faz com
que o indivíduo apenas “deixa-se operar” sofrendo as operações de fora
para dentro e não exercendo mais o exercício interno do “operar-se por si
mesmo”. Há uma perda da verticalidade, esta que era marca da prática da
ascese, o que faz com que na modernidade o homem se movimente apenas
para frente, em direção ao novo, próprio a uma ideia de progresso, que
“assegurado por leis econômicas, pelo espírito absoluto ou pelo simples
avanço da ciência e da técnica, dispensa, de certa forma, os esforços sobre-
humanos (BRÜSEKE, 2011, p. 174).
Para Sloterdijk a modernidade se caracteriza pelo predomínio do
“deixar-se operar”, no qual o indivíduo usa das competências operativas
dos outros para influenciar a si mesmo. “O sujeito competente deve prestar
atenção não apenas à ampliação do campo de suas próprias ações, mas
também é obrigado a desenvolver sua competência para ‘ser tratado’ por
outros” (SLOTERDIJK, 2012, p. 477). Esse tipo de competência exigida
106
do homem moderno se dá em uma forma de passividade que se manifesta
em sua “disposição para deixar-se operar pelo seu próprio interesse”, o que
pode ser percebido em diferentes atitudes, como: deixar-se informar,
deixar-se divertir, deixar-se excitar, deixar-se curar, deixar-se enganar e
muitas outras formas (SLOTERDIJK, 2012, p. 477-478). E assim, “a frase
‘eu me cuido de mim mesmo’ é substituída por outra, mais complexa: eu
não me preocupo comigo mesmo para que, uma vez realizado o tratamento
vindo de fora, volte a cuidar de mim mesmo” (SLOTERDIJK, 2012, p.
480).
Dessa forma, Sloterdijk (2012, p. 518) com o imperativo “você
tem que mudar tua vida!” busca repensar a “diferenciação ética” através de
uma vida dedicada ao exercício. E sendo que o “homem é um ser vivo que
não pode deixar de exercitar-se”, Sloterdijk descreve outro sentido para a
noção de repetição, pois “exercitar-se significa repetir de tal maneira um
paradigma de ação que a consequência de sua execução melhora a
disposição para a próxima repetição” (SLOTERDIJK, 2012, p. 518). Para
o autor o exercício que se repete traz algo a mais para a próxima repetição
e faz com que a repetição produza algo diferente. Repetir é produzir algo
que não se esperava. Repetir é tornar-se diferente.
17
Sloterdijk (2012, p. 515) descreve que na cultura ascética os
exercitantes da ética realizavam uma ruptura com as formas e atitudes
correntes da vida. Anulavam as repetições incorporadas, para substituí-las
17
Essa ideia também aparece em Deleuze na obra Diferença e Repetição (2006), onde o autor trabalha
com os elementos da diferença e da repetição como criação de singularidades em contraposição a sua
conceituação e representação que produzem generalidade e semelhança, portanto, uma “imagem
dogmática do pensamento”. O autor elabora uma filosofia da diferença em que o “pensamento sem
imagem” constitui-se em um devir onde não se pode repetir sem diferenciar-se. Na leitura deleuziana a
repetição não deve ser tomada como repetição do mesmo, mas que toda repetição se vivencia em
singularidades. Esse sentido, também é expresso por Manoel de Barros na poesia “Uma didática da
invenção”, quando afirma: “repetir repetir até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo” (BARROS,
2016, p. 16).
107
por outras atitudes. No entanto, não outra qualquer, mas outras “grávidas
de salvação”, fazendo uma diferença entre as formas de vidas salvífica e as
práticas carentes de conteúdo salvador. A cultura ascética “testemunha o
descobrimento antropológico essencial: o homem é um ser vivo condenado
a diferenciar-se nas repetições”. E aponta, o que na filosofia posterior será
conhecido como liberdade, trata-se de um ato de rebeldia contra o
domínio mecânico interior e exterior. É preciso distanciar-se dos costumes
e opiniões sedimentados, abrindo-se espaço para uma extensa
transformação. Nada pode permanecer o mesmo no homem, seus
sentimentos, seus hábitos, o mundo conceitual e a palavra falada são
reformulados. “A diferenciação ética tornou-se eficiente desde o momento
em que a repetição perdeu sua inocência. [...] Toda a vida aumentaria
como uma nova construção sobre os fundamentos de uma boa repetição”
(SLOTERDIJK, 2012, p. 515).
Em outro momento, Sloterdijk expressa como a questão da
verticalidade acontece pelo exercício que se repete diferentemente nas
futuras execuções.
Descrevo as diferenças desse tipo como expressão da tensão vertical
constitutiva da existência humana. Um primeiro acesso ao fenômeno
da verticalidade espontânea decorre da definição técnica do exercício
que tomo como base: em qualquer comportamento exercitante se
realiza uma ação de tal modo que sua execução atual co-condiciona
suas futuras execuções. Pode-se dizer, então, que toda a vida é
habilidade artística, mesmo que apenas uma fração de nossas
manifestações vitais seja entendida como o que são desde sempre:
resultados de exercícios e elementos de um modus vivendi que se
desenvolve na corda bamba da improbabilidade (SLOTERDIIJK,
2010, p. 10, tradução nossa).
108
Dessa forma, o autor possibilita pensar o exercício como repetição
de algo que se faz diferenciando-se, rompendo com hábitos cristalizados e
como possibilidade de produzir o inesperado. Sloterdijk (2012, p. 563)
afirma que é preciso fundar uma ética que por meio de exercícios faz o ser
humano se mover em direção ao impossível, onde a vida possa ser pensada
como “habilidade artística” que se desenvolve na improbabilidade dos
resultados e em seu modo de fazer. Para construir esse sentido, Sloterdijk
recorre a Nietzsche para potencializar o imperativo que convida a mudança
de vida. Nietzsche contrapõe a ideia de comportamento estático do
homem mostrando que a vida faz-se a si mesmo exercitando-se e que o
homem só avança enquanto busca sua orientação no impossível, ou seja,
em uma tensão vertical que conduz para além do que está dado. Então, o
imperativo “você tem que mudar tua vida!” é o reconhecimento “de que
assim não se pode continuar”.
O cuidado de si e a questão da tékhne em Michel Foucault
A partir de seus escritos da década de 80, Foucault irá desenvolver
outro conjunto de reflexão que diz respeito à relação entre as tecnologias e
a constituição do sujeito, que denomina de técnicas de si. No curso A
Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2004a) compreende o conceito grego
da khne
18
como um modo de exercício de si. Segundo Foucault (2004a)
18
O termo grego τέχνη (técnica, arte) reúne diferentes ações humanas que atualmente são pensadas de
modo isolado. Tradicionalmente, o uso do termo tem sido feito em dois sentidos: como invenção/criação
que está associado a dimensão da arte (poetas) e como produção/construção que está associado a uma
técnica (profissão). Segundo Heidegger (2007, p. 380) o termo grego “τέχνη não é somente o nome para
o fazer e o poder manual, mas também para as artes superiores e belas artes”. Para Foucault a khne grega
vai além apenas de uma atividade técnica interessada em resolver problemas práticos imediatos, como a
construção de instrumentos ou a cura de uma doença, mas deve ser relacionada a busca por fazer de seus
atos uma obra de arte. Assim, para os gregos a vida também é objeto de uma tékhne, pois através de
exercícios práticos a vida passa a ser governada por uma racionalidade em que cada ato de comportamento
deve se configurar em um estilo e servir como modelo a ser seguido. Nas obras traduzidas de Foucault, o
termo grego τέχνη aparece com diferentes formas de tradução (khne, technê, téchne), unicamente por
109
deve-se considerar que o pensamento Ocidental, desde os gregos, passou a
compreender o mundo como correlato a uma tékhne. Defende essa ideia
ao afirmar que em determinado momento as coisas deixaram de serem
pensadas para tornarem-se conhecidas, medidas, dominadas por alguns
instrumentos e objetivos que caracterizavam a tékhne. E assim, seu projeto
de resgate do pensamento grego propõe pensar outra maneira de relação
consigo, superando a sujeição da técnica moderna. E então, em seus
trabalhos dos anos 80, a noção de cuidado de si aparece como a nova
possibilidade estratégica, em um novo uso técnico, contudo, não objetivo
e, sim, que conduz a uma estética da existência.
Para Gros (2004, p. 595, nota 27) o objetivo de Foucault em
compreender a objetividade própria ao pensamento ocidental na forma de
que o mundo tornou-se o correlato de uma tékhne, ocorre pela influência
recebida de Heidegger, principalmente do texto A questão da Técnica.
E Gros cita uma passagem em que o filósofo francês reconhece tal
influência:
Para Heidegger, é a partir da téchne ocidental que o conhecimento do
objeto selou o esquecimento do Ser. Retornemos à questão e perguntemo-
nos a partir de quais téchnai se formou o sujeito ocidental e foram abertos
os jogos de verdade e erro, de liberdade e coerção que os caracterizam
(FOUCAULT, 1994 apud GROS, 2004, p. 634-635, grifo nosso).
Nesta passagem percebemos que o objetivo de Foucault é retomar
o “questionamento da técnica” proposto por Heidegger. No entanto,
Foucault irá desenvolver a questão da técnica em outro sentido,
enquanto Heidegger questiona a técnica ocidental mostrando que seu
questão de uniformidade optou-se por manter a expressão tékhne como única maneira de escrita, com
exceção das citações, onde se manteve a versão utilizada na tradução.
110
conhecimento objetivo determinou o esquecimento do ser e não permite
seu desvelamento, na leitura de Foucault a subjetividade se constitui a
partir de certas técnicas que determinam sua relação com a verdade e a
liberdade. Segundo Gros (2004, p. 634) enquanto Heidegger expõe que o
controle da tékhne fornece ao mundo sua forma de objetividade, Foucault
demonstra que o cuidado de si, particularmente nas práticas estoicas, faz
do mundo a emergência de uma subjetividade. Desse modo, para Foucault
o perigo ou a abertura não reside na própria técnica, em sua essência como
afirma Heidegger, mas que o perigo habita a existência, ou seja, no modo
como se produz uma subjetividade que por um determinado uso da técnica
não possibilita acontecer o exercício de si como prática da liberdade.
Já no resumo do curso Subjetividade e Verdade, Foucault (1997)
descreve o que pretende com o estudo do tema da subjetividade e a questão
da técnica de si, como afirma:
O fio condutor que parece ser o mais útil, nesse caso, é constituído por
aquilo que poderia ser chamar de “técnicas de si”, isto é, os
procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda civilização,
pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade,
mantê-la ou transfor-la em função de determinados fins, e isso
graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si
por si (FOUCAULT, 1997, p. 109).
Assim, um modo de compreender a diferença dos trabalhos desses
dois autores é que em Foucault a constituição da subjetividade se dá na
relação da técnica com o cuidado de si. Essa ideia também é defendida por
Marcos Nalli e José F. Weber, quando afirmam: “E à noção de ‘cuidado’,
Foucault relaciona com a da ‘técnica’. Especificamente com a noção grega
da technè tou biou [...], a arte, a técnica da vida, do viver” (NALLI;
WEBER, 2014, p. 321).
111
Já no texto intitulado As técnicas de si
19
(2004b), Foucault
apresenta os quatro tipos de técnicas/tecnologias que formam a matriz da
razão prática (técnicas de produção, de signo, de poder e de si) e, também,
pergunta sobre qual o princípio moral mais importante da filosofia grega,
a resposta imediata é “conhece-te a ti mesmo” (gnothi sauton). No entanto,
este princípio délfico “conhece-te a ti mesmo”, assumido pela filosofia de
Sócrates, está ligado a uma atitude prática, a observação de determinadas
regras para consultar o oráculo. “O princípio de Delfos não era uma
máxima abstrata em relação à vida; era um conselho técnico, uma regra a
observar para consultar o oráculo” (FOUCAULT, 2004b, p. 81). Com
isso, estava diretamente ligado ao modo de ser do indivíduo, aos
procedimentos que utilizava para conduzir sua vida. E então menciona que
comentaristas ofereceram a seguinte interpretação do oráculo: “saiba bem
qual é a natureza de tua pergunta quando vierdes consultar o oráculo”
(FOUCAULT, 2004b, p. 81). Com isso, só se tornava possível conhecer-
se a si mesmo por meio da prática de um comportamento moral guiado
pelo cuidado de si. Desse modo, para Foucault o conceito grego da khne
está ligado aos conceitos: tékhne toû bíou (técnica da vida), gnôthi seautón
(conhecimento de si) e epiméleia heautoû (cuidado de si).
Ao examinar a cultura antiga, Foucault (2004b) descreve que a
centralidade do cuidado de si está na maneira como nos exercitamos em
diferentes práticas. Por exemplo, quando Sócrates introduz a questão de
como “cuidar de si mesmo?” no texto Alcibíades(PLATÃO, 1975a, p.
235), para Foucault a expressão epimeleisthai (cuidado) exprime muito
mais que o simples fato de prestar atenção, mas se refere a uma atividade
19
Texto original “Les techniques de soi” de 1982, trata-se de um dos seminários que o autor ministrou
na Universidade de Vermont e publicado em 1988 na obra Dits et Ecrits - tome IV (1994a, p. 783-813).
Há uma versão traduzida do texto publicada na coletânea Para uma vida não-fascista (2004b), a qual
utilizamos como referência.
112
real, a qual em Platão é compreendida como um dever cuidar de si
examinando sua alma (FOUCAULT, 2004b, p. 85-86). Já em Sêneca, o
exame da consciência constitui uma prática que não visa a julgar o passado
como um juiz que tem a tarefa de punir, mas como meio de reforçar as
regras de conduta. Como afirma:
O olhar administrativo que a filosofia lança sobre sua vida é mais
importante do que o modelo jurídico. Sêneca não é um juiz que se dá
por tarefa punir, mas um administrador que estabelece um inventário.
Ele é o administrador permanente de si mesmo, e não julga o seu
passado. Ele vela para que tudo se efetue corretamente, de acordo com
a regra, e não com a lei. As críticas que emite não se dirigem a suas
faltas reais, mas antes a seus insucessos. Seus erros são os erros de
estratégia, e não as faltas morais (FOUCAULT, 2004b, p. 92).
Dessa forma, para Foucault (2004b) no estoicismo se inaugura
uma filosofia que tem por objetivo a preparação, pois examinar as regras
de conduta é uma maneira de medir a distância entre o que foi feito e
aquilo que deveria ter sido feito e não volte a cometer os mesmos erros
diante de outros acontecimentos. Como expressa pela pergunta: “O sujeito
assimilou suficientemente essa verdade a ponto de transformá-la em uma
ética e se comportar como deve na presença de um acontecimento?”
(FOUCAULT, 2004b, p. 93). E assim, o exame das regras de conduta
torna-se um exercício de si em que se assume uma verdade e, então, ela se
transforma em êthos. “A askêsis é um conjunto de práticas pelas quais o
indivíduo pode obter, assimilar a verdade, e transformá-la em um princípio
de ação permanente. A alêtheia se torna o êthos. É um processo de
intensificação da subjetividade” (FOUCAULT, 2004b, p. 93). O exercício
de si não significa um exame da vida como fim em si mesma, antes se
constituem de técnicas que tem por objetivo fazer com que a verdade seja
113
sentida na vida, ou seja, intensificar sua subjetividade para que esteja atento
aos acontecimentos que vivenciará.
Para Hadot (2014) na filosofia antiga um modo de viver a vida é
estar atento ao momento presente. Tanto os epicuristas, como os estoicos,
vivenciavam intensamente cada instante presente como único e como se
fosse o último. Essa relação com o presente possibilita a experiência de
ultrapassagem que o acontecimento provoca em nós. Como afirma: “Nós
experimentamos a nós mesmos como um momento, como um instante
desse movimento, desse acontecimento imenso, que nos ultrapassa, que já
está aqui sempre antes de nós, sempre além de nós” (HADOT, 2014, p.
325).
Essa ideia também aparece no curso A Hermenêutica do Sujeito, no
qual Foucault (2004a, p. 588) ao falar sobre os estoicos afirmará que
“filosofar é preparar-se”. Estar preparado para algo que possa acontecer eis
o objetivo das técnicas (procedimentos, saberes, meditação, exercícios,
etc.) como forma de cuidar de si. Para preparar-se é preciso fazer da vida
uma prova, uma preparação constante, um cuidado de si que tem por
objetivo “[...] equipar-se para uma série de acontecimentos imprevistos”
(FOUCAULT, 2004a, p. 588). Preparação que se realiza como exame do
presente, isto porque, segundo Foucault no pensamento grego há toda
uma desconfiança em relação ao porvir. Estar preocupado com o porvir é
algo negativo, pois me desloca do presente e me faz estar ocupado
antecipadamente com algo que pode nem acontecer. Por isso, “para os
gregos, o que temos diante dos olhos não é o porvir, mas o passado, de
sorte que é de costas que se entra no porvir” (FOUCAULT, 2004a, p.
563).
Desse modo, Foucault (2004a) compreende a noção de cuidado de
si (epiméleia heautoû) como atitude, atenção e práticas de transformação
114
de si por meio do exercício de si. Com estas três ideias, resumimos os três
elementos que Foucault propõe examinar durante o curso, a propósito da
noção de epiméleia heaut: primeiro, como atitude para consigo, com os
outros e com o mundo; segundo, uma forma de atenção/olhar que se
realiza por formas de atenção ao que se passa no pensamento; e terceiro,
um série de práticas como exercícios e meditações por meio dos quais se
produzem a transformação de si (FOUCAULT, 2004a).
Quando Foucault trata do cuidado de si como atenção vai
relacionar o parentesco entre epiméleia e meléte (meditação/exercício e
experiência). E ao desenvolver o sentido da ideia de meléte afirma sua
ligação com a noção de meditação (o para aprofundar um sentido, mas
como exercício em pensamento, como apropriação de um pensamento
tornando-o princípio de ação) e, também, consiste em fazer uma
experiência, como afirma: “não tanto pensar na própria coisa, mas de
exercitar-se na coisa em que pensa” (FOUCAULT, 2004a, p. 429). Desse
modo, ao relacionar atenção e experiência, Foucault compreende o
cuidado de si como um modo de estar atento a si e aos modos de exercitar
nas experiências inquietantes da existência.
Por isso, entende que o cuidado de si se “constitui um princípio de
agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente
inquietude no curso da existência” (FOUCAULT, 2004a, p. 11).
Inquietação que conduz o indivíduo ao permanente exercício de si como
forma de preparação. Contudo, cuidar de si não significa adquirir
capacidades ou competências para fazer coisas, como é característico de
nossa época, antes tem o sentido agonístico
20
de transformação de si.
20
Gros cita uma passagem de Foucault, no dossiê Cultura de Si: “a agonística estrita que caracteriza a
ética antiga não desaparece [...]. Ser mais forte do que si implica que se esteja e se permaneça à espreita,
que se desconfie sem cessar de si mesmo, e que não apenas no decurso da vida cotidiana, como também
no próprio fluxo das representações, se faça atuar o controle e o domínio” (FOUCAULT, 1984 apud
115
Por isso, para Foucault não se trata de desenvolver todas as
capacidades que nos são dadas, nem de ultrapassar os outros ou a si mesmo,
mas tão somente de “[...] aprendizagem de alguns movimentos
elementares, necessários e suficientes para qualquer circunstância
(FOUCAULT, 2004a, p. 388). E cita o exemplo do “treinamento do bom
atleta”, o atleta antigo é treinado como atleta do acontecimento, treinado
em alguns movimentos elementares, suficiente e eficaz para que possam ser
adaptados a todas as circunstâncias e dele sempre dispor quando necessário
(FOUCAULT, 2004a, p. 388-389). A partir dos estoicos entendemos o
acontecimento como uma intensidade que nos atravessa, ou seja, como
uma relação de força que se dobra e que nos desafia a ocupar-nos em uma
relação ética com nós mesmo.
Foucault cita que podemos encontrar em Sêneca, Epicteto e,
principalmente em Marco Aurélio, a ideia de que a arte de viver se
assemelha mais com a luta do que com a dança.
21
Isto porque, o trabalho
do dançarino é indefinido, pois ele faz o melhor possível para atingir certo
ideal que lhe permitirá superar os outros ou a si mesmo. Já a arte da luta,
significa “manter-se alerta e ereto contra os golpes imprevistos que caem
sobre vós”. Outra diferença importante é em relação ao atleta antigo e o
cristão: o primeiro é um atleta do acontecimento; já o segundo é um atleta
GROS, 2004, p. 648). Segundo Pagni (2013, p. 179): “o cuidado de si designaria, portanto, uma tensão
agonística, um princípio de inquietação capaz de perturbar, ou seja, de pôr o sujeito em movimento [...].
Já para Souza Filho (2008, p. 22) é agonístico porque se trata de uma arte de luta em que não há descanso
no exercício de sermos livres.
21
Optamos por conduzir nosso trabalho por certo uso que Foucault faz da concepção estoica do cuidado
de si e não apenas pela visão socrática como fazem a maioria dos interpretes no campo educacional. Isto
porque, a partir dos estoicos o exercício de si se constitui por uma arte de viver em que o exercício da
ascese oferece formas múltiplas de viver. A partir dos estoicos desenvolvemos o cuidado de si como: um
trabalho sobre si como preparação, ou seja, uma relação consigo que implica um labor (exercícios) e pela
necessidade de dar-se tempo (repetição cotidiana e durante toda a vida); como acontecimento (nas
intensidades das relações de forças que nos atravessam) e, também, como desaprendizagem (correção-
liberação, ou seja, desembaraçar-se dos maus hábitos e constituir um novo direcionamento nas regras de
conduta).
116
de si mesmo, deve lutar contra o que em si o impede de alcançar o
progresso em direção à santidade, deve superar-se a si mesmo a ponto de
renunciar a si mesmo (FOUCAULT, 2004a, p. 388-389). Salma T.
Muchail ao tratar sobre a relação entre arte e luta afirma: “por isto mesmo,
‘armaduras’ e ‘equipamentos’, assim como ‘treinamentos’, são
frequentemente comparados ao preparo do atleta e à situação de luta”
(MUCHAIL, 2011, p. 83).
Essa ideia do atleta do acontecimento permite construir um
sentido para a educação que é de oposição a noção biopolítica de formação
permanente, pois esta consiste na formação de um sujeito flexível que
precisa adquirir múltiplas habilidades que lhe permitem adequar-se as
diferentes situações e, assim, ser melhor utilizado conforme a ocasião
solicitar. Ao contrário disso, pensar uma formação a partir do atleta do
acontecimento é pensar no aprendizado de exercícios elementares que nos
possibilitam melhor agir diante das circunstancias do inesperado.
Enquanto na formação permanente trata-se de um processo contínuo de
aperfeiçoamento de suas competências que o levam a estar sempre
superando os outros e a si mesmo. O atleta do acontecimento é aquele que
realiza o exercício de si não para aprimorar suas competências tendo em
vista a eficiência da ação, mas como modo de intensificar a vida
produzindo sua transformação.
Por isso, Foucault defende a ideia de que o aprendizado como
treinamento é fundamental. “É esta aprendizagem de alguns movimentos
elementares [...] que constitui o bom treinamento, a boa ascese”
(FOUCAULT, 2004a, p. 388). De modo que no texto de 1983 afirma:
“nenhuma habilidade técnica ou profissional pode ser adquirida sem
exercício; nem se pode aprender a arte de viver, a technè tou biou, sem uma
ascese que deve ser tomada como um treinamento de si por si”
117
(FOUCAULT, 1995b, p. 272). E estudando a etimologia de epimélesthai,
afirma que não designa meramente uma atitude de espírito, mas que
remete a uma série de palavras (meletân, meléte, melétai) que estão
associadas ao verbo gymnázein, portanto, como exercício e treinamento,
remetendo a “uma forma de atividade, atividade vigilante, contínua,
aplicada, regrada, etc.” (FOUCAULT, 2004a, p. 104).
No entanto, a ideia de uma vida regrada tem um sentido bem
específico na ascética filosófica antiga e é diferente da concepção da
espiritualidade cristã. Nesta última, a vida deve ser vida regrada por
princípios que são externos e universais. No ascetismo filosófico, as
indicações de regularidade são apenas algumas indicações de regras de
prudência, portanto, trata-se da livre escolha desses exercícios pelo sujeito.
Como afirma:
Se existe esta liberdade [...] não se deve esquecer que tudo isto se passa
no quadro não de uma regra de vida, mas de uma tékhne toû bíou (uma
arte de viver). [...] Fazer da própria vida objeto de uma tékhne [...]
implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que utiliza sua
tékhne. Se a tékhne devesse ser um corpus de regra [...] não haveria
aperfeiçoamento da vida (FOUCAULT, 2004a, p. 513).
E acrescenta a vida filosófica não obedece a uma regra, mas a uma
forma. Em suas palavras: “É um estilo de vida, uma espécie de forma que
se deve conferir à própria vida” (FOUCAULT, 2004a, p. 513). E cita o
exemplo de como construir um belo templo: o bom arquiteto é aquele que
além de obedecer a regras técnicas indispensáveis, também é capaz de fazer
uso de sua liberdade para conferir ao templo uma forma bela
(FOUCAULT, 2004a). Por isso, no texto de 1983 afirma que para os
gregos o importante é escolher como devo viver, em suas palavras: “o
118
problema se constituía em qual técnica devo utilizar para viver da melhor
maneira possível” (FOUCAULT, 1995b, p. 259).
E então, Foucault descreve um segundo elemento perguntando:
“de que é feito este equipamento (paraskeué)?” e responde: “é constituído
pelos lógoi (discursos)” (FOUCAULT, 2004a, p. 389). Lógoi que deve ser
entendido como discursos verdadeiros, mas que são “enunciados
materialmente existentes”, ou seja, são proposições verdadeiras (fundadas
na razão) que constituem princípios aceitáveis de comportamentos. Isto é,
que ao mesmo tempo, diz o verdadeiro e prescreve o que é preciso fazer.
Assim, a apropriação dos discursos verdadeiros não se dá pelo objetivo de
nos conhecer, mas torna-se modo de ser para agirmos corretamente diante
das circunstâncias.
Acrescenta ainda que estes discursos verdadeiros precisam se tornar
um modo de ser, que sejam repetidos em sua memória por exercícios
cotidianos permitindo que a eles se recorra sempre que necessário.
Memória e repetição são elementos fundamentais na preparação, permite
que o “logos esteja ‘a mão’” no momento que o acontecimento se produzir.
Assim. A memória não deve ser entendida apenas como faculdade de reter
algo que se deu e que faz parte do passado. Associada ao presente, Foucault
(2004a) compreende a memória como a capacidade de lembrar-se de um
acontecimento como forma de estar atento ao que acontece consigo. Para
o autor é preciso que esses discursos sejam “repetidos em sua memória por
exercícios cotidianos como o bom atleta do acontecimento. E então,
afirma: “a paraskeué é o elemento de transformação do lógos em êthos”, ou
seja, o exercício que permite que os discursos verdadeiros se constituam
em princípios de comportamento moralmente aceitáveis (FOUCAULT,
2004a, p. 389-395). Desse modo, repetição e preparação são elementos
indissociáveis na formação da ascese.
119
Para Foucault, os gregos repetiam frases (discursos verdadeiros)
que os ajudavam a intensificar seu modo de viver. Para Gros (2018) a
filosofia como arte de viver não é um conjunto de conhecimentos, mas que
é preciso fazer como o sábio que “[...] presentifica a filosofia em sua vida,
[...] a resume em sentenças curtas que não são conclusões de
demonstrações, mas provocações que nos conduzem a viver de outra
forma” (GROS, 2018, p. 152).
A partir dessa leitura de Foucault (2005a) é possível atribuir outro
sentido para a repetição, que não é aquela ligada ao sentido moderno de
reprodução em que o sujeito torna-se autômato e respondendo de forma
automática ao governo dos outros, mas está relacionado com a formação
do êthos, ou seja, com um exercício cotidiano de si que conduz a novos
modos de ser. Assim, Foucault associa a prática da repetição como a atitude
de transformação de si, como afirma: “[...] repetição é sempre possível, a
repetição com aplicação, transformação” (FOUCAULT, 2005a, p. 333).
Também para Foucault não é possível pensar no modo como os
gregos conduzem suas vidas e sua liberdade sem fazer referência a tékhne
que nós mesmos praticamos, pois no pensamento grego não será mais a
estrutura política, nem a forma da lei, nem o imperativo religioso que deve
dizer o que fazer ao longo da vida, mas tão somente a liberdade e a escolha
daquele que utiliza sua tékhne. Assim, afirma: “os seres humanos, seu bíos,
sua vida, sua existência são tais que não podem eles viver sua vida sem
referir-se a certa articulação racional e prescritiva que é a da tékhne
(FOUCAULT, 2004a, p. 542). Por isso, Foucault descreve que no período
helenístico há uma “espécie de inversão” entre a técnica de vida e cuidado
de si. Para o autor, não é pelo cuidado de si que devemos começar, isto
porque, “para saber existir não basta saber cuidar de si -, mas é tékhne toû
bíou (a técnica de vida) que se inscreve por inteiro no quadro doravante
120
autonomizado em relação ao cuidado de si” (FOUCAULT, 2004a, p. 543,
grifos nossos). Nesse entendimento, o cuidado de si não se forma por um
saber, mas no modo como praticamos as técnicas de si.
E acrescenta que o que está em jogo é a formação do autogoverno
ético, ou seja, o que deve ser obtido por meio da tékhne é certa relação de
si para consigo. Em resumo afirma: “vive-se ‘para-si’”, contudo, este “para”
não é no sentido tradicional de um “viver para si”, mas que “deve-se viver
de modo que se tenha consigo a melhor relação possível. [...] Como projeto
fundamental da existência, vive-se com o suporte ontológico que deve
justificar, fundar e comandar todas as técnicas de existência: a relação
consigo” (FOUCAULT, 2004a, p. 344). Para Gros (2004) essa relação de
si é marcada pela imanência da relação e cita uma passagem do dossiê
“Cultura de si”: “o eu com o qual se tem relação não é outra coisa senão a
própria relação [...] é, em suma, a imanência, ou melhor, a adequação
ontológica do eu à relação” (FOUCAULT, 1984 apud GROS, 2004, p.
646).
Para Agamben (2017) essa imanência se dá pela relação do uso de
si (noção de chresis), pois o cuidado de si pressupõe a chresis. E que
Foucault, embora mencione a questão do uso (FOUCAULT, 2004a), o
conceito de cuidado de si continua no centro de sua análise. Resumimos a
crítica de Agamben em sua pergunta: “se ‘usar’ significa ‘entrar em relação
consigo enquanto se está em relação com outro’, de que maneira algo como
um cuidado de si poderá legitimamente ter em vista definir uma dimensão
diferente daquela do uso?”. Para Agamben, diante deste impasse que se vê
surgir no último Foucault, ao lado do tema do cuidado de si, a fórmula:
desprender-se de si mesmo. “O cuidado de si aqui dá lugar a um
desapossamento e a um abandono de si, fazendo que ele volte a confundir-
se com o uso” (AGAMBEN, 2017, p. 53-55).
121
Segundo Pagni (2011) a noção de cuidado de si possibilita
conceber a filosofia como uma atitude ética, política e estética.
[...] o cuidado de si não apenas reverte à forma preponderante de
interpretação sobre a Filosofia Antiga, como também coloca em xeque
a própria função da filosofia como um ato de pensar destituído de uma
atitude ética e política, ao recuperá-la como exercício de
espiritualidade, como modo de vida e como arte de viver (PAGNI,
2011, p. 31).
Para Pagni (2011) com a leitura da noção de cuidado de si realizado
pela filosofia foucaultiana, se permite retomar a filosofia em outro olhar.
Não mais apenas pelo viés do conhecimento que através da tradição do
“conhece-te a ti mesmo” desloca o indivíduo de seu presente, mas por meio
de um exercício de si que ao permitir cuidar de si torna possível um modo
de vida que se conduz por um agir livre.
Já para Alexandre S. Freitas em nota de rodapé:
Isso equivale a dizer que o cuidado de si não nos afasta do mundo. Ao
dirigir a atenção para si, o que se busca é avaliar o lugar que se ocupa
no mundo e o sistema de necessidades no qual o sujeito se encontra
vinculado. O cuidado de si configura-se como um princípio ordenador
de nossas ações. Longe de nos isolar da comunidade humana, ele
aparece precisamente como um modo de manter nossas ações nos
limites e formas consideradas convenientes, ou seja, uma maneira de
abordar a formação humana no registro ético (FREITAS, 2010, p. 179,
nota 8).
Em outro texto Freitas (2013, p. 326s) afirma que a filosofia
permite que na educação se tematize a formação de si mesmo, pois
tradicionalmente a educação tem incorporado os termos sujeito e
122
subjetividade, porém a noção de si mesmo permanece ausente das reflexões
pedagógicas. Por isso, cabe ao ensino de filosofia propiciar um espaço de
problematização de si, aonde se possa fazer do exercício de si uma forma
de cuidar de si.
Enfim, com a abordagem da relação entre filosofia e técnica
buscou-se, por meio das leituras de Heidegger, Sloterdijk e Foucault,
pensar o exercício de si como uma nova possibilidade estratégica,
deslocando-se do uso instrumental da técnica moderna que impede que se
façam outros usos dela. O que essas diferentes perspectivas tem em comum
é o deslocamento da técnica moderna para pensar a singular experiência de
si, seja pelo questionemos da essência da técnica como convida Heidegger,
seja como modo de operar-se a si mesmo e expresso pelo imperativo “você
tem que mudar a tua vida” segundo Sloterdijk, seja pelas práticas de si
como modo de cuidar de si mesmo como aponta Foucault. E apontamos,
sobretudo, que o ensino de filosofia ao dar um novo uso para a tékhne grega
do exercício de si constitui uma estratégia fundamental para a superação
da visão determinista da técnica.
123
3
Por uma problematização das técnicas de constituição de si
_______ ____________ ____________ _____________________ ____________ ____________ _______________ ____________ ____________ ___________ _______________ ____________ ____________ _______________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ___________ _______________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ________
Nesse capítulo descrevemos a oposição entre dois modos de
relacionar a constituição dos modos de vida e a questão do uso da técnica.
Na primeira parte, a partir da noção de biopolítica problematizamos a
constituição da subjetividade pelo domínio das técnicas biopolíticas de
produção de si, práticas que conduzem ao empobrecimento da experiência
de si. Na segunda parte, a partir do conceito de estética da existência
apresentamos a vida como objeto da tékhne, ou seja, compreender os
modos de vida como uma arte de viver em que a vida se constitui por
exercícios que criam singularidades.
A biopolítica e ascnicas de produção de si
A trajetória biopolítica e sua tecnicidade
As noções de biopolítica e biopoder expressam o deslocamento que
Foucault realiza para pensar as transformações que ocorrem no final do
século XVIII e início do século XIX, em que o poder não se destina a
regular apenas o indivíduo por meio de um poder disciplinar, mas age
como gestão da vida e da população, por meio de um poder bio-técnico-
político que tem por objetivo administrar as forças da vida. Sua
investigação sobre o biopoder pode ser situada tendo como primeira
incursão a conferência de 1974 sobre O Nascimento da Medicina Social
124
(2011a, p. 402-424) e se estende até o curso de 1978-1979 - Nascimento
da Biopolítica (2008a).
22
Em 1976 na conferência As malhas do poder(2012d, p. 168-
188)
23
, na qual tem por objetivo realizar uma análise da noção de poder,
aponta que houve duas grandes revoluções na tecnologia do poder: uma,
que é o poder disciplinar (como tecnologia individualizante do poder, uma
espécie de anatomopolítica) e, a outra, a biopolítica (como tecnologia de
regulação da população). Sobre essa última afirma:
Temos outra família de tecnologias de poder que surgiu um pouco
mais tarde, na segunda metade do século XVIII [...]. Tecnologias que
não visam aos indivíduos como indivíduos, mas, ao contrário, visam à
população. [...] E população quer dizer o quê? Quer dizer apenas um
grupo humano numeroso, mas de seres vivos atravessados,
comandados, regidos por processos, leis biológicas. Uma população
tem uma taxa de natalidade, de mortalidade. Uma população tem uma
curva de idade, uma pirâmide de idade, uma morbidez, um estado de
saúde, uma população pode perecer, ou, ao contrário, se desenvolver
(FOUCAULT, 2012d, p. 179).
Para Foucault (2012d) a partir do momento que se descobre um
poder que não age apenas sobre o indivíduo, mas também sobre a
população, é que se abre a possibilidade de se desenvolver outro tipo de
poder. Um poder que está encarregado da regulação da população através
de saberes e técnicas de observação como a estatística e, por meio de
22
Nesse percurso biopolítico aparecem ainda: os cursos de 1975-1976 Em defesa da Sociedade (2005d)
e de 1977-1978 - Segurança, Território, População (2008b); e a obra de 1976 História da Sexualidade I:
a vontade de saber (1988) e destacamos o texto “As malhas do poder” de 1976 (2012d). Abordaremos de
modo breve a trajetória da biopolítica, porque nosso objetivo é descrever a noção de capital humano a
partir do curso de 1979, principalmente a aula de 14 de março, pois constitui um elemento fundamental
para analisar a formação da subjetividade na educação tecnológica.
23
Conferência pronunciada na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia em 1976 (2012d, p.
168).
125
mecanismos econômicos e administrativos. E relacionando o problema da
população com a produção capitalista, afirma: “o poder deve se exercer
sobre indivíduos uma vez que eles constituem uma espécie de entidade
biológica, que deve ser levada em consideração, se quisermos utilizar essa
população como máquina para produzir, produzir riquezas, bens, produzir
outros indivíduos” (FOUCAULT, 2012d, p. 179).
Também em 1976, Foucault (1988) publica a obra História da
Sexualidade I: a vontade de saber, na qual finaliza com um capítulo
intitulado Direito de morte e poder sobre a vida”, tópico em que destaca
a temática do biopoder como poder sobre a vida. O autor inicia tratando
sobre o poder soberano fundamentado no direito de vida e morte, o qual
é resumido na fórmula “direito de causar a morte ou de deixar viver”.
Afirma ainda, que esse poder só exerce seu direito sobre a vida quando
exerce seu poder de matar, como expressa: “só marca seu poder sobre a
vida pela morte que tem condições de exigir”. Mas que a partir da época
clássica, o Ocidente conheceu uma transformação nos mecanismos de
poder, deslocando também o direito de morte para um poder que gere a
vida, que a mantem e a desenvolve. Não mais um poder que se apropria
da vida para suprimi-la, mas para geri-la. Esta mudança para um poder que
regula a vida é substituída pela seguinte fórmula “um poder de causar a
vida ou devolver à morte” (FOUCAULT, 1988, p. 130). Transformação
que o autor expressa em: “a velha potência da morte em que se simbolizava
o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração
dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 1988, p. 131).
E em outra passagem: “já não se trata de pôr a morte em ação no campo
da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e
utilidade” (FOUCAULT, 1988, p. 135).
126
E no mesmo registro da conferência de 1976, Foucault trata (1988,
p. 131) de duas formas de manifestação do poder que se desenvolveu a
partir do século XVII: um que é denominado de anátomo-política do corpo
humano”, um poder disciplinar que toma o “corpo como máquina” que se
caracteriza pelo adestramento, na ampliação de suas aptidões e forças,
produzindo sua utilidade e docilidade, o que permite a “integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos”; e a outra forma de poder se
desenvolve por volta da metade do século XVII e é chamada de “bio-
política da população”, um poder regulador que age sobre o “corpo-
espécie”, ou seja, age sobre o corpo em seus processos biológicos, tais como:
nascimento e mortalidade, saúde, duração da vida, longevidade.
E sobre a noção de biopolítica, Foucault afirma:
O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie
viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência,
probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se podem
modificar, e um espaço em que se pode reparti-las de modo ótimo. Pela
primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político;
[...] deveríamos falar de "bio-política" para designar o que faz com que
a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e
faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; [...]
o que se poderia chamar de "limiar de modernidade biológica" de uma
sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em
jogo em suas próprias estratégias políticas (FOUCAULT, 1988, p.
134).
E no mesmo parágrafo dessa descrição, o autor já aponta, embora
ainda não tenha a resposta de como fazer
24
, sobre a necessidade de
24
François Ewald (1996a) considera que nesse momento Foucault está envolvido em uma crise, mas que
para está “[...] já todo empenhado em sair de si mesmo e converter-se àquilo que constituirá a
problemática de O uso dos Prazeres e O cuidado de si(EWALD, 1996a, p. 13). Dessa forma, o segundo
127
resistência a biopolítica pela própria vida. Como afirma: “não é que a vida
tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem;
ela lhe escapa continuamente” (FOUCAULT, 1988, p. 134). Assim, “a
vida como objeto político” volta-se contra os poderes exercidos sobre ela e
ao escapar ao poder que a domina surgem novos tipos de lutas políticas
(FOUCAULT, 1988, p. 134-135).
E mais adiante, observa que já no século XIX desenvolvem-se
processos bem reais de lutas contra esse novo poder. Essas forças que
resistem se apoiam exatamente naquilo sobre o que o poder investe: a vida.
Lutas que têm por objetivo a vida em suas necessidades fundamentais e de
realização de suas virtualidades (FOUCAULT, 1988, p. 136). E também
quando afirma que a resistência se dá na própria vida, em suas palavras:
“O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia,
é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam
utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas”. (FOUCAULT, 2006a,
p. 208).
no curso Segurança, Território, População, Foucault (2008b)
afirma já na primeira aula que iniciará o curso tratando sobre o biopoder.
Definindo-o como: “[...] o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo
que, na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política,
numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT, 2008b, p. 3). Assim,
considera o biopoder como uma das formas fundamentais da arte de
governar que tem como alvo transformar a vida em objeto de controle.
e terceiro volume da “História da Sexualidade” marcam o movimento para pensar um modo de vida que
está em contínua transformação e criação de uma existência estilizada, como uma maneira de pensar a
saída dos regimes de sujeição.
128
Dentre as várias questões trabalhadas no curso de 1978 (para citar
alguns: normalização, conduta e contraconduta, poder pastoral, razão de
Estado, sociedade de segurança, população, economia política e
governamentalidade, etc.), o conceito de “governamentalidade”
25
aparece
pela primeira vez na aula de 1º de fevereiro de 1978 e assume importância
fundamental no curso. Admite que seu propósito é o de realizar uma
história da governamentalidade, na qual elabora um estudo que tem por
objetivo articular três movimentos: um poder que tem como alvo
população, um saber que é da economia política e uma técnica que é a dos
dispositivos de segurança. Assim, expressa:
Por essa palavra, “governamentalidade”, entendo o conjunto
constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os
cálculos e as táticas que permitem exercer uma forma bem específica,
embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança
(FOUCAULT, 2008b, p. 143).
Para traçar a história da governamentalidade, Foucault (2008b)
desenvolve a história da arte de governo. Afirma que a partir do séc. XVI
começa a nascer uma preocupação com a arte de governar que está ligado
ao desenvolvimento do estado administrativo. É o período do movimento
de concentração estatal que começa a instaurar os grandes Estados
25
Segundo Michel Senellart (2008) o conceito de governamentalidade marca o primeiro movimento de
deslocamento de uma analítica do poder dos anos 70, marcado por um discurso da batalha, para tratar
nos anos 80 do tema da ética do sujeito, problemática dos seus últimos dois cursos de 1983 e 1984 (O
governo de si e dos outros I e II). Sobre esse deslocamento Foucault (2016) deixa isso evidente no resumo
do curso Subjetividade e Verdade, no qual vai retomar o conceito de governamentalidade em outro
aspecto, trata-se do “governo de si por si na sua articulação com as relações com o outro” (FOUCAULT,
2016, p. 268). Assim, propõe um projeto que articule a questão da subjetividade com a
governamentalidade.
129
territoriais e, consequentemente, a superação do feudalismo. A
preocupação com a questão “Como governar?” está presente, por exemplo,
na obra O Príncipe de Maquiavel, com conselhos ao príncipe (soberano)
de como governar. Assim, a questão do governo emerge em diferentes
aspectos: o governo dos Estados pelo príncipe é um deles, há ainda, o
governo de si (retorno ao estoicismo), o governo das almas e das condutas
(religião) e o governo dos filhos (pedagogia). Diante dessas várias
manifestações, a questão do governo surge assim descrita pelo autor:
“Como se governar, como ser governado, como governar os outros, por
quem devemos aceitar ser governados, como fazer para ser o melhor
governador possível?” (FOUCAULT, 2008b, p. 118).
E é a partir do séc. XVIII que a questão do governo irá se
desenvolver sob um novo olhar. Ao analisar os meios e instrumentos que
o Estado utiliza para controlar as doenças epidêmicas (como a varíola),
fome (escassez alimentar), a morte, a distribuição demográfica, o controle
da natalidade, etc. Foucault vai denominar esses mecanismos da arte de
governar como biopoder, ou seja, de um poder sobre a vida. Neste
momento, a sociedade ocidental passa a levar em consideração o fator
biológico do ser humano, dimensão que passa a ser incorporado nas
análises das ciências humanas, por meio de procedimentos de saber que
visam tornar melhor conhecido o indivíduo para melhor conduzi-lo como
elemento de uma população. Para o autor, o problema político moderno
gira em torno da população. Assim, afirma:
[...] noção capital do século XVIII, é a população considerada do ponto
de vista das suas opiniões, das suas maneiras de fazer, comportamentos,
dos seus hábitos, dos seus temores, dos seus preconceitos, das suas
exigências, é aquilo sobre o que se age por meio da educação, das
campanhas, dos convencimentos (FOUCAULT, 2008b, p. 118).
130
É através do problema da população que Foucault (2008b)
descreve o deslocamento na arte de governar. Ela é que dá sentido ao seu
projeto da governamentalidade. É através dela que se dá o desbloqueio da
arte de governar. A população torna-se um objeto que importa conhecer
para poder controlar. Somente é possível agir sobre ela, quando se conhece
seus desejos, comportamentos, angústias, enfim, tudo que envolve a vida
de um indivíduo. Neste sentido, Foucault irá chamar o governo político
em torno da população como biopolítica, ou seja, trata-se de governar
populações, controlá-las, medicali-las, favorecer o seu crescimento e
bem-estar. Isto porque, desse controle biopolítico da população é que
consiste o funcionamento do Estado. O problema econômico e político
moderno é a população, em torna dela que no século XVIII nasce a
economia política, a qual funciona “[...] ao mesmo tempo como ciência e
como técnica de intervenção do governo” (FOUCAULT, 2008b, p. 143).
Assim, deixa de estar centrado na legitimidade do poder soberano e passa
a ser exercido através do desenvolvimento das forças do Estado.
Contudo, Foucault aborda (2008b) um elemento importante nessa
gestão do sujeito-objeto-coletivo que é a população. Trata-se da noção de
povo como um elemento que se recusa a ser população, como afirma:
Aqui também, nesse desenho que começa a esboçar a noção de
população, vemos estabelecer-se uma divisória na qual o povo aparece
como sendo, de uma maneira geral, aquele que resiste à população, que
tenta escapar desse dispositivo pelo qual a população existe, se mantém,
subsiste, e subsiste num nível ótimo. Essa oposição povo/população é
importantíssima (FOUCAULT, 2008b, p. 58).
Para Foucault enquanto a população é regida pelos dispositivos
biopolíticos que produzem uma subjetividade identitária, também,
compõe-se das relações de poder que objetivam incorporar em suas normas
131
os que estão excluídos dos processos do governo biopolítico. Já com a
noção de povo, Foucault quer caracterizar certa dimensão política que não
se pode traduzir em uma forma ou uma identidade concebida formalmente
como sujeito de direitos, mas trata-se da expressão de uma experiência
comum que resistem ao governo biopolítico.
Para entender melhor a noção de povo é preciso relacionar a outra
noção trabalhada no curso de 1978: a contraconduta. Para caracterizar a
dimensão de luta contra os procedimentos de governo das condutas,
Foucault não usa as palavras revolta ou dissidência, mas contraconduta.
Escolhe essa palavra porque expressa as relações de forças entre, de um lado
a relação de poder que se expressa no governo como arte de conduzir os
outros (governo das condutas) e, de outro, a contraconduta como relação
de poder na forma de resistência (FOUCAULT, 2008b, p. 266).
Dessa maneira, por meio das noções de povo e contraconduta,
Foucault projeta uma maneira de pensar a política da liberdade não por
um meio formal do reconhecimento jurídico, mas pelas lutas que se
estabelecem nas experiências que escapam ao governo da população. A
noção de contraconduta expressa o movimento de Foucault para pensar
uma maneira de escapar das técnicas de sujeição biopolítica para ocupar-
se, a partir de seus escritos de 1980, do exercício de si como uma prática
da liberdade.
Depois desse curso, como fechamento do ciclo da Biopolítica, em
1978-79 Foucault (2008a) realiza o curso Nascimento da Biopolítica, no
qual tem por objetivo desenvolver uma análise das formas de
governamentalidade liberal como condição de compreensão da biopolítica.
“Só depois que soubermos o que era esse regime governamental chamado
liberalismo é que poderemos, parece-me, apreender o que é a biopolítica
(FOUCAULT, 2008a, p. 30). E diagnosticando a relação entre economia
132
e governamentalidade descreve os mecanismos de uma racionalidade
política que age sobre e no comportamento dos indivíduos, produzindo-
os como sujeitos econômicos.
Foucault (2008a) desloca o liberalismo do problema econômico
para a questão da racionalidade política presente no modo de vida do
indivíduo, por isso, entende o liberalismo como uma maneira de ser e de
pensar. E descreve que o neoliberalismo passa a conceber a economia como
a ciência desse comportamento, sobre isso afirma, a economia como “a
ciência da sistematicidade das respostas as variáveis do ambiente”
(FOUCAULT, 2008a, p. 368). Assim, o termo biopolítica não se refere
apenas a um tipo de poder desenvolvido em um período da história, mas
também diz respeito ao comportamento, se desenvolve como atitude,
incorporado como “conduta racional” na vida dos indivíduos. Como
afirma: “[...] o objeto da análise econômica deva ser identificado a toda
conduta finalizada que implique, grosso modo, uma escolha estratégica de
meios, de caminhos e de instrumentos: em suma, identificação do objeto
da análise econômica a toda conduta racional(FOUCAULT, 2008a, p.
366-367).
Outro deslocamento está no modo como no liberalismo se dá a
concepção de liberdade. Para Foucault (2008a) o liberalismo não é a
aceitação da liberdade, mas é sua produção e organização. “A liberdade é
algo que se fabrica a cada instante” (FOUCAULT, 2008a, p. 88). Sua
produção ocorre pelo jogo entre liberdade e segurança que é calculada pela
noção de perigo. Como afirma:
O liberalismo se insere num mecanismo em que terá, a cada instante,
de arbitrar a liberdade e a segurança dos indivíduos em torno da noção
de perigo. [...] ele não pode manipular os interesses sem ser ao mesmo
tempo gestor dos perigos e dos mecanismos de segurança/liberdade, do
133
jogo segurança/liberdade que deve garantir que os indivíduos ou a
coletividade fiquem o menos possível expostos aos perigos
(FOUCAULT, 2008a, p. 90).
É preciso que os interesses individuais não constituam um perigo
para o interesse de todos e, inversamente a mesma coisa. A liberdade dos
trabalhadores não pode ser um perigo para a empresa e a produção. O que
pode acontecer na vida (acidentes, doenças, velhice) não pode se constituir
um perigo para o indivíduo, nem para a sociedade. Por isso, a produção da
liberdade é uma questão de segurança. E[...] o lema do liberalismo é viver
perigosamente” (FOUCAULT, 2008a, p. 90), ou seja, a condição dos
indivíduos é de uma situação de perigo o tempo todo, seja na vida, seja no
trabalho são levados a experimentar em seu presente e futuro como
portadores de um perigo que é preciso evitar.
Especificamente, na aula de 14 de março de 1979, Foucault
(2008a) introduziu o tema do neoliberalismo norte-americano e
desenvolve a teoria do capital humano como uma forma de atitude
econômica que age no comportamento dos indivíduos. Para o autor, o
neoliberalismo norte-americano, analisado pela Escola de Chicago na
década de 1960, desenvolveu-se muito além das decisões econômicas e
administrativas pela máquina estatal, mas, sobretudo, como um modo de
vida em que o comportamento humano responde de forma ativa e
sistemática aos estímulos econômicos da produção de si. E relacionando o
capital humano com a vida, expressa:
[...] um capital humano no curso da vida dos indivíduos, que se
colocam todos os problemas e que novos tipos de análise são
apresentados pelos neoliberais. Formar capital humano, formar
portanto essas espécies de competência-máquina que vão produzir
renda, ou melhor, que vão ser remuneradas por renda, quer dizer o
134
quê? Quer dizer, é claro, fazer o que se chama de investimentos
educacionais (FOUCAULT, 2008a, p. 315).
Foucault (2008a) entende por capital humano uma ação
econômica que age na vida do homem, portanto biopolítica, produzindo
um trabalhador como empresário de si mesmo, que por meio de
investimentos em sua educação adquire competências para gerar renda.
Quanto mais valor agregado ao seu capital humano, maior a possibilidade
de aumento de renda, mas também maior a possibilidade de
desenvolvimento econômico, crescimento de uma empresa e de
assujeitamento ao governo neoliberal. Produzir capital humano tornou-se
um dever vital. Em sua análise, Foucault descreve dois elementos presentes
na ideia de capital humano: um que se refere ao método de análise, que é
o modo como se utiliza do conceito para delimitar o problema; e o outro,
um tipo de programação, onde a construção do capital humano pelo
indivíduo funcionaria como uma forma de tornar o comportamento
normalizado.
E afirma que a análise econômica tem por objetivo analisar:
[...] qual cálculo fez que, dados certos recursos raros, um indivíduo ou
indivíduos tenham decidido atribuí-los a este fim e não àquele. [...] é a
análise da racionalidade interna, da programação estratégica da
atividade dos indivíduos. [...] Ou seja, será necessário, para introduzir
o trabalho no campo da análise econômica, situar-se do ponto de vista
de quem trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta
econômica, como conduta econômica praticada, aplicada,
racionalizada, calculada por quem trabalha (FOUCAULT, 2008a, p.
307, grifos nosso).
Segundo Foucault (2008a) a economia ao analisar o
comportamento busca compreender as escolhas estratégicas que fazem
135
com que um indivíduo escolha utilizar seus recursos em determinado fim,
“para fins que são fins alternativos”. Por isso, por meio da noção de
empresário de si mesmo se concebe o trabalhador como sujeito ativo, pois
ele mesmo conduz seu comportamento por meio de uma racionalidade
estratégica que visa a construção de seu capital humano e que lhe permite
produzir renda. É uma concepção do capital-competência, que faz do
trabalhador um empresário de si mesmo, onde cada trabalhador é uma
unidade-empresa em que ele próprio é seu produtor. Nesse processo, o
consumo assume uma configuração de produção de si, pois não é realizado
com o objetivo de atender as necessidades e utilidades, mas torna-se um
investimento em si, pois produz sua própria satisfação.
Nesse sentido, o trabalho passa a ser analisado a partir das
estratégias de conduta de quem trabalha. O trabalhador deixa de ser um
objeto no processo do capital e passa a ser sujeito, precisa estar em
constante aperfeiçoamento para ser mais bem aproveitado. Nesse
panorama neoliberal o trabalho aparece como retorno ao homo
oeconomicus, mas não mais como homem parceiro da troca na concepção
clássica e, sim, como um empresário, um empresário de si mesmo. Em suas
palavras: “[...] homo oeconomicus empresário de si mesmo, sendo ele
próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si
mesmo a fonte de [sua] renda” (FOUCAULT, 2008a, p. 311). Se na
economia clássica o indivíduo era explorado pela sua força de trabalho,
agora, na concepção neoliberal, o indivíduo vale enquanto seu capital
humano é útil para os interesses do mercado. A constituição de um capital
humano funciona na racionalidade neoliberal como exercício do biopoder
(poder sobre a vida). Portanto, a biopolítica age sobre a vida, limitando-a
a um modo de vida econômica.
136
Analisando o capital humano, Foucault (2008a) diz que ele é
constituído de elementos inatos e adquiridos, sendo que os elementos
inatos dizem respeito à utilização da genética para a melhoria do capital
humano. Já os elementos adquiridos fazem parte da constituição
voluntária de sua competência no curso de sua vida, sendo esse o alvo da
racionalidade neoliberal. Desse modo, o autor entende que são os
elementos que o indivíduo adquire ao longo da vida a principal
preocupação das análises neoliberais, já apontava o que se tornaria hoje
uma forte ambição biopolítica: a engenharia genética.
Se por um lado, a seleção genética torna possível agir sobre os
elementos inatos, evitando os riscos que um indivíduo possa sofrer e
selecionando os “bons equipamentos genéticos” (FOUCAULT, 2008a, p.
313), a engenharia genética atrelada à ambição biopolítica econômica
torna possível a prática da eugenia, tendo como consequência a eliminação
da deficiência. Por outro lado, os investimentos educacionais tornam-se
uma ferramenta indispensável para agregar valor aos elementos adquiridos.
Investimentos no tempo, no afeto, na aquisição de cultura e na saúde que
são realizados pelo indivíduo, pelas empresas e pelo Estado, com vistas a
superar suas limitações, evitar suas deficiências e melhorar suas
competências. Agir sobre a população por meio de uma educação que tem
por objetivo estimular e garantir que haja capital humano é uma das
estratégias da biopolítica neoliberal.
Para Foucault (2008a), os investimentos educacionais que
produzem o capital humano na economia neoliberal vão além da prática
do aprendizado escolar e profissional. Ele passa pelo tempo em que os pais
dedicam à formação dos filhos, que não depende apenas do nível cultural
dos pais, mas também de suas condições econômicas; famílias mais
abastadas dedicam mais qualidade no cuidado e vigilância para com seus
137
filhos. Passa também pelos problemas de higiene pública e proteção à
saúde. O cuidado médico com a saúde do indivíduo constitui um
investimento no capital humano, conservando e utilizando-o pelo maior
tempo possível. Sendo que essa busca por construir um capital humano
invade a vida do indivíduo desde a mais tenra idade até a velhice.
Nesse registro, a formação educacional aparece no governo
neoliberal como elemento estratégico para seu funcionamento, pois induz
os próprios indivíduos a assumirem essa tarefa. Assim, a análise neoliberal
vai ter como alvo um domínio que até então era considerado como não
econômico, pois reinterpreta os fenômenos (educação, saúde, trabalho,
etc.) não mais apenas como efeitos dos mecanismos econômicos, mas
como mecanismos de produção de si, em uma racionalidade interna e
estratégia que visa ao investimento e ao resultado.
Foucault pergunta: “que interesse têm todas essas análises?”
(2008a, p. 317), sua resposta trata sobre o problema do progresso técnico
que caracteriza o fim do século XIX, progresso que está associado a questão
da inovação para Joseph Schumpeter
26
e, tudo isso, ligado a questão do
capital humano. Para o autor francês, Schumpeter entende por inovação o
conjunto das descobertas técnicas, de novas fontes, novas formas de
produtividade, novos mercados e fontes de mão-de-obra e, é a partir desse
referencial que passa a explicar o funcionamento do capitalismo. Para o
filósofo francês, com essa visão se introduz uma nova concepção de
crescimento econômico, o problema da inovação socioeconômica ligada
ao problema do capital humano. E a partir disso, descreve a visão
neoliberal:
26
Joseph Schumpeter (1883-1950), economista de influência weberiana, introduz a ideia de empresa e
inovação como agente de desenvolvimento econômico. Seus trabalhos sobre o que é uma empresa, em
uma análise história-econômica-moral, sustentam o projeto neoliberal (FOUCAULT, 2008a).
138
Se inovação existe, isto é, se se encontram coisas novas, se se descobrem
novas formas de produtividade, se se fazem invenções de tipo
tecnológico, tudo isso não mais é que a renda de um certo capital, o
capital humano, isto é, o conjunto dos investimentos, que foram feitos
no nível do próprio homem (FOUCAULT, 2008a, p. 318).
Com isso, Foucault vê na concepção neoliberal do capital humano
a associação da questão do progresso técnico com a efetivação da
biopolítica. É o investimento no nível do próprio homem, de seu capital
humano, que se produzem todas essas transformações.
Theodor W. Schultz
27
é outro autor citado por Foucault, que
conecta a teoria do capital humano com as transformações técnicas.
Segundo Foucault (2008a, p. 325 n. 28), Schultz na obra Investiment in
Human Capital propõe integrar as aptidões inatas do homem em um
conceito mais abrangente de tecnologia. Segundo López-Ruiz (2008),
Schultz na obra de 1971 discute a necessidade de incluir a mutação técnica
dentro da análise econômica, passando a considerar a própria tecnologia
como uma forma de capital e, pensando em um conceito mais abrangente
de tecnologia, no qual o autor inclui também as capacidades inatas do
homem. Com isso, para Schultz o interesse da economia não são as
capacidades naturais em si mesmas, mas as mudanças que elas apresentam
principalmente relacionadas ao investimento (LÓPEZ-RUIZ, 2008, p.
135).
Com a descrição desses dois autores (Schultz e Schumpeter) a
partir da leitura de Foucault, procurou-se evidenciar que a questão do
desenvolvimento técnico e da tecnologia está na base dos problemas
econômicos dos neoliberais, portanto da biopolítica, visto que vinculam as
27
Theodor W. Schultz (1902-1998), professor de economia da Universidade de Chicago de 1946 a 1974
e, Prêmio Nobel de economia em 1979. Foi quem abriu nos anos de 1950-60 o campo de pesquisas sobre
o capital humano, direcionando a economia para a análise do comportamento (FOUCAULT, 2008a).
139
transformações técnicas ao investimento realizado no próprio homem
enquanto capital-biotécnico capaz de produzir resultado. Isto quer dizer
que, as próprias forças vitais do homem passam a serem concebidas como
recursos, “recursos raros” diz Foucault, que podem ser modificadas por
investimentos que melhoram sua eficiência. Nesse registro, podemos
caracterizar a biopolítica como um exercício de poder técnico ou, como
designa Marcos Nalli uma “tecnicidade própria da biopolítica”, ou ainda,
uma “biopolítica como biotécnica” (NALLI, 2016).
Nalli (2016), no texto A biopolítica como biotécnica, propõe
que a biopolítica seja compreendida teoricamente como biotécnica, ou
seja, ao mesmo tempo ela possui uma dimensão política e técnica, pois se
realiza por um conjunto de estratégias cujo fim último é a produção da
vida. Sobre isso, afirma:
Portanto, cabe reconhecer a natureza tecnológica, a tecnicidade da
biopolítica, [...] ela se projeta como techné, como Foucault (2001, p.
239) mesmo define: ‘uma arte, um sistema refletido de práticas referido
a princípios gerais, a noções e conceitos’, com a qual e pela qual se volta
para algo (como objetos de suas considerações e ações), assim como se
dirige para um fim (NALLI, 2016, p. 205).
Para Nalli (2016, p. 202-03) essa natureza tecnológica da
biopolítica é similar ao modo das novas formas de se fazer ciência desde o
fim do século XIX. E para compreender esse modo de proceder da ciência
cita o conceito de fenomenotécnicas de Bachelard, o qual concebe as
ciências nascentes não como descoberta de verdades profundas e perenes,
mas que a criação de novos fenômenos é condição para o aparecimento dos
objetos científicos. Assim, a hipótese de Nalli é que a similaridade do modo
de proceder da ciência e da biopolítica não é mera coincidência, mas “são
faces de um metafenômeno comum”. Segundo Nalli (2016) a descrição do
140
traço tecnológico do biopolítica é limitada em Foucault, porque teria
tratado isso apenas em uma linguagem metafórica. E sequer aparece nos
trabalhos de seus principais interlocutores (Brassot, Agamben e Esposito),
aparecendo apenas em uma perspectiva ontologizante nos trabalhos de
Sloterdijk. Na visão de Nalli, tanto nas ciências como na biopolítica agem
um modo de proceder comum que é a criação de instrumentos-cnicos
que produzem seu próprio resultado. Portanto, há uma tecnicidade em
seus exercícios.
E quando trata da questão biopolítica da vida, afirma:
Ou seja, a conformação biopolítica da vida é tecnológica: se os
fenômenos vitais, se a configuração dos indivíduos, dos seres humanos,
se dá modulada a partir do biológico, isto se deve a uma complexa rede
de estratagemas tecnopolíticos que conformam e constituem as
modalidades vitais, os modos de ser vivente de cada ser vivo, e não
porque a vida é um valor primeiro, indelével e inalienável (NALLI,
2016, p. 207).
Nesse mesmo registro, tendo como base a concepção de ciência em
Bachelard, Nikolas Rose (2013, p. 119) afirma que as ciências devem ser
tratadas como “fenômeno-tecnologia”, ou seja, a ciência não é uma simples
descrição com o objetivo de conhecer a realidade, mas a ação de
instrumentos que a produzem por meio da intervenção técnica. Como
afirma: “as ciências não são fenomenologias, mas fenômeno-tecnologias.
Elas tentam fazer aparecer na realidade, por meios tecnológicos, o que já
conceberam no pensamento”. Rose descreve também o modo como as
tecnologias são incorporadas como um fazer humano:
Mas será que já fomos alguma vez simplesmente “humanos”? Ou seja,
nossas capacidades já foram alguma vez tão naturais? Eu tenho dúvida
141
quanto a isso: os seres humanos jamais foram “naturais” e, pelo menos
desde a invenção da linguagem, temos aumentado nossas capacidades
através de tecnologias intelectuais, materiais e humanas. Sem dúvida,
as capacidades que assumimos como naturais não surgem da natureza
humana, mas das dispersas associações de seres humanos, de artefatos
e de objetos (ROSE, 2013, p. 120).
E sobre o conceito de tecnologia afirma: “é um conjunto de
relações sociais e humanas dentro do qual equipamentos e técnicas são
apenas um elemento: ‘tecnologia, aqui, refere-se a qualquer agenciamento
estruturado por uma racionalidade prática, dirigida por uma meta mais ou
menos consciente” e que por isso devem ser considerados como
“agenciamentos híbridos de conhecimentos, instrumentos, pessoas,
sistemas de avaliação, edifícios e espaços, sustentados, no nível pragmático,
por determinadas pressuposições e conjecturas acerca dos seres humanos’”
(ROSE, 2013, p. 32). Rose afirma ainda, que as tecnologias
contemporâneas agem sobre a vida não apenas para curar danos orgânicos
ou uma doença, mas são “tecnologias de otimização”, visam controlar os
processos vitais “[...] a fim de maximizar seu funcionamento e incrementar
seus resultados” (ROSE, 2013, p. 34).
Desse modo, Nalli (2016) e Rose (2013) observam que a
conformação biopolítica da vida nada mais é do que a ação estratégica de
saberes-poderes que funcionam por meio de uma tecnicidade inerente à
própria biopolítica. As ordenações dos processos técnicos da vida fazem
com que ela se torne capital biopolítico, onde a valorização da preservação
da vida não se dá por um fundamento ético, mas pela própria necessidade
de produção eficiente que é inerente ao agir técnico. Na vida técnica, como
no funcionamento de uma máquina, não há descanso, não se podem
vivenciar outras experiências, os erros precisam ser rapidamente
solucionados não se dando tempo para si e as modificações são sempre
142
realizadas em vista do aperfeiçoamento de sua produção. Quando pela
abertura biopolítica a própria vida tornou-se técnica também se encontra
vazia de sua potência criativa.
A educação em Foucault: um saber-poder biotécnico que produz a
normalização da vida e o empobrecimento da experiência
Mas pelo menos aprendi com o seu convívio que as experiências mais
admiráveis, mas instrutivas, as experiências decisivas, são exatamente
as experiências cotidianas, que estas constituem justamente o grande
enigma que cada um tem sob seus olhos, mas que poucos
compreendem como sendo um enigma, e que, para o pequeno número
de verdadeiros filósofos, são justamente estes os problemas que
permanecem ignorados, abandonados no meio do caminho e, por
assim dizer, pisoteados pela multidão, antes que eles os recolham
cuidadosamente e a partir desse momento resplandeçam como pedras
preciosas do conhecimento (NIETZSCHE, 2011a, p. 143, grifos
nosso).
No texto de 1872 “Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de
ensino
28
, Nietzsche (2011a) trata sobre o problema da relação entre
educação e cultura, como também sobre o papel dos estabelecimentos de
ensino em meio ao que chama de “pretensa cultura do momento”. Para o
autor, o ensino não tematiza as experiências cotidianas porque é regido por
um conhecimento de utilidade que quando fala da preparação da existência
designa com “palavras pomposas” como formação para o desenvolvimento
28
Nesse texto, Nietzsche compreende cultura “como discernimento que permite ao homem manter-se
‘no cume de sua época’” (NIETZSCHE, 2011a, p. 72), sendo que caracteriza a cultura do momento
atrelada a produção econômica, fazendo com que seu objetivo e fim sejam uma cultura da utilidade.
Como afirma: “[...] formar os indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele
possa extrair a maior quantidade possível de felicidade e lucro” (NIETZSCHE, 2011a, p. 73). E diante
da tendência científica que rege o modo de conhecer nas escolas técnicas, passa a defender a valorização
da arte e da filosofia como forma de combate contra a pretensa cultura do momento (NIETZSCHE,
2011a).
143
completo da personalidade, baseado na razão e na justiça e, humanamente
morais (NIETZSCHE, 2011a, p. 136).
“Ficamos pobres” é a constatação de Walter Benjamin (2012) no
texto de 1933 - intitulado Experiência e pobreza. Seu diagnóstico é de
que na modernidade se manifesta uma pobreza da experiência, ou seja,
vivenciamos apenas experiências passageiras que nunca se completam.
Benjamin (2012, p. 124) denuncia o surgimento de uma nova forma de
miséria: o empobrecimento da experiência, provocado pelo “monstruoso
desenvolvimento da técnica”, o qual leva a fazer apenas experiências
passageiras. A característica da modernidade é fazer experiências
descartáveis, fazendo com que uma experiência substitua a outra sem se
constituir em uma formação própria. Como também expressa em outro
texto: “[...] tempo infernal, em que transcorre a existência daqueles a quem
nunca é permitido concluir o que foi começado” (BENJAMIN, 1989, p.
129).
A partir dessas duas constatações iniciais, realizadas por Nietzsche
e Benjamin, desenvolvemos a partir desse tópico a problematização do
empobrecimento da experiência na educação. Seguindo no mesmo registro
desses autores de um diagnóstico de empobrecimento das experiências
cotidianas devido ao progresso técnico, a partir do trabalho de Foucault
sobre os poderes disciplinar e da biopolítica é possível constatar a produção
de uma sujeição que conduz ao empobrecimento na experiência da vida,
como também na educação ao esquecimento do cuidado de si.
Desse modo, entendemos por empobrecimento da experiência a
ordenação dos processos técnicos da vida que produzem uma subjetividade
desvinculada da singularidade da vida. Com isso, não nos utilizamos de
certa concepção de experiência como condição fenomenológica de
conhecer o mundo e a si mesmo, antes, trata-se de pen-la como
144
experimentação de si, ou seja, como relações de forças que produzem certa
relação consigo que pode ser de sujeição ou de liberdade.
Em sua análise da biopolítica, Foucault pretende realizar um
diagnóstico de um saber-poder que na modernidade constrói a
normalização da vida. O biopoder gere e ordena a vida, “seu papel mais
importante é o de garantir, sustentar, reforçar, multiplicar a vida e pô-la
em ordem” (FOUCAULT, 1988, p. 130). Em sua análise da noção de
capital humano, Foucault (2008a), constata a produção de uma
subjetividade eficiente, em que o comportamento de quem trabalha é
normalizado por uma racionalidade estratégica. Para o autor, na análise
econômica neoliberal o trabalho será relacionado ao próprio
comportamento humano, por isso é preciso se situar do ponto de vista de
quem trabalha, analisando-o a partir das estratégias de conduta de quem
trabalha. E questiona:
Será preciso estudar o trabalho como conduta econômica, como
conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por
quem trabalha. O que é o trabalhar, para quem trabalha, e a que
sistema de opção, a que sistema de racionalidade essa atividade de
trabalho obedece? (FOUCAULT, 2008a, p. 307).
O trabalhador deixa de ser um objeto no processo do capital e passa
a ser sujeito na construção de si. Para o autor, a conduta racional do homo
oeconomicus é toda conduta sensível a modificações nas variáveis do meio
e que responde a elas de forma não aleatória, de forma portanto
sistemática” (FOUCAULT, 2008a, p. 368). O homo oeconomicus não
questiona, mas aceita a realidade como é e, modifica-se a si mesmo para
adequar-se e responder de forma ordenada. Ocupa seu precioso tempo
consigo mesmo, com a formação de suas competências, por isso não pode
perder tempo com a tarefa agonística de pensar a transformação de si e de
145
seu presente. É o homem governável, que aceita ser governado para não
ficar fora do jogo. Ele mesmo deve assumir essa tarefa, sendo que com isso
deve apropriar-se das regras do jogo e, dessa forma, produz a si mesmo
como sujeito normalizado.
Foucault (2008a) questiona se todos estes investimentos no capital
humano poderiam produzir um sujeito capaz de átomos de liberdade; sua
resposta é negativa, pois o que acontece é a formação de um tipo de sujeito
que se regula de acordo com o que rege a economia. Com o homo
oeconomicus se produz um tipo de subjetividade requerida, em que o sujeito
mesmo permite a regulação. Como exposto anteriormente no conceito de
capital humano, a educação tem importante papel nessa formação, pois
além de constituir na sociedade de controle uma ferramenta capaz de
instigar o indivíduo a estar sempre investindo em seu capital humano,
também funciona como um poderoso elemento de sujeição, ou seja, um
instrumento político para direcionar as condutas individuais e coletivas sob
o modelo das competências e da criatividade.
Essa descrição da normalização do comportamento nos faz
perceber que a experiência moderna é comandada por um poder que tem
como característica tornar os indivíduos “produtores de uma eficiência, de
uma aptidão, produtores de um produto” (FOUCAULT, 2012d, p. 173).
Em outro momento, ao tratar sobre o adestramento do corpo e a
intensificação das performances no século XVII, o autor francês afirma
que: “É preciso fazer cada vez mais, sempre mais em um tempo cada vez
mais rápido” (FOUCAULT, 2011a, p. 239). Isso pode ser percebido
notoriamente no modo como nos conduzimos no trabalho, onde para se
produzir com eficiência o tempo todo se desenvolvem diferentes
ferramentas para tornar útil o corpo e a mente, como por exemplo, no
conceito de formação permanente que torna possível a reutilização de
146
nossas capacidades ou evitando nossa improdutividade através de
exercícios físicos ou atendimento psicológico. A vida torna-se alvo da
produtividade e da eficiência.
A tecnologia de regulação biopolítica da vida faz funcionar uma
moralidade que tem por objetivo tornar-nos eficientes e evitar nossas
possíveis incapacidades, deficiências, desvios e, também, a de uma vida
errante. Esse tipo de normalização da eficiência age por meio de práticas
incorporadas em uma moralidade que excluem toda forma de vida
desviante. Isso pode ser percebido, por exemplo, na obra A Metamorfose de
Franz Kafka, o qual narra a trajetória do caixeiro-viajante Gregor Samsa,
que ao acordar vê o próprio corpo metamorfoseado em um inseto; trata-se
de uma metáfora que explora a condição humana no trabalho moderno,
onde o personagem de Gregor Samsa ao não ser mais produtivo (pois era
quem sustentava sua família) passa a ser tido como monstro e excluído por
sua família.
Nessa mesma lógica, tudo que fazemos está determinado pelo que
nós esperamos ser ou o que a sociedade postula sermos no futuro: um
sujeito produtivo. Na modernidade, diferentemente do que se praticava na
filosofia grega, não se vive o presente e a prioridade está no futuro, no qual
somos conduzidos pela busca incansável por construir já o que precisamos
ser. Estou a todo o momento tendo que provar minha eficiência,
mostrando que sou útil e que produzo resultados. Nesse processo, vivemos
uma experiência do tempo marcada pela determinação técnica, em que a
realização dos procedimentos de agora (métodos, regras, instrumentos),
tem em vista chegarmos a determinado fim. O investimento no tempo
tornando-o produtivo a cada instante, nada mais é que sinal de eficiência.
Trata-se, segundo Foucault (2008a), de um modo de controle da vida, um
biopoder que, por meio da objetividade de seu saber técnico, tem por
147
finalidade gerir nosso tempo de vida pela lógica da formação do capital
humano. A isso tudo, Foucault denomina normalização da vida. Para
Foucault (1988) a biopolítica é isso: “[...] distribuir os vivos em um
domínio de valor e utilidade. [...] Uma sociedade normalizada é o efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (FOUCAULT,
1988, p.135).
Já no texto As técnicas de si, Foucault (2004b) apresenta quatro
tipos de técnicas/tecnologias que são base para a formação das
racionalidades práticas, que são:
1) as técnicas de produção as quais podemos produzir, transformar e
manipular objetos; 2) as técnicas de sistemas de signos, que permitem
a utilização de signos, de sentidos, de símbolos ou de significação; 3)
as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos,
submetendo-os a certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito; 4)
as técnicas do si, que permitem aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou
com a ajuda de outros, um certo número de operações sobre seus
corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de
ser; de transformarem-se a fim de atender um certo estado de
felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade
(FOUCAULT, 2004b, p. 79-80).
Foucault (2004b) também admite que em seus estudos privilegiou
as duas últimas técnicas (tecnologias de dominação e objetivação pelo
poder e as técnicas de si que conduzem a transformação do indivíduo) com
o objetivo de analisar a genealogia do sujeito na civilização ocidental. Para
o autor, embora tais técnicas não atuem de modo independente umas em
relação às outras, cada uma delas atua modificando a conduta do indivíduo
por meio de práticas educacionais que visam a adquirir um conjunto de
habilidades e também de comportamentos. Sendo que, “cada um desses
tipos implica em certos modos de educação e de transformação dos
148
indivíduos, na medida em que se trata não somente, evidentemente, de
adquirir certas aptidões, mas também adquirir certas atitudes”
(FOUCAULT, 2004b, p. 80).
no texto “Les rapports de pouvoir passent à l'intérieur des
corps”, Foucault (1994c, p. 228-236) afirma que os conceitos de técnica e
tecnologia devem ser entendidos como instrumentos de tática e estratégia,
o que permite compreender que a mesma lógica objetivante da técnica,
presente nas técnicas de produção, também estão atuantes nas técnicas de
dominação (poder disciplinar e biopoder) e, enfim, determinam os
propósitos pelos quais os sujeitos são objetivados e subjetivados.
Este foi, por exemplo, o objetivo das análises de Foucault (2008a)
sobre o conceito de capital humano na obra Nascimento da Biopolítica, em
que buscou descrever a formação de uma subjetividade competente capaz
de múltiplas habilidades, atendendo a necessidade de formação de uma
racionalidade objetivista que impera na economia. Uma “tecnicidade
própria da biopolítica” como apontou Nalli. Desse modo, a exigência de
formação de habilidades como ser flexível e criativo satisfaz a própria
dimensão de eficiência que rege a racionalidade do trabalho, ou seja, são
procedimentos que o permitem alcançar fins desejados e predeterminados.
Um saber técnico que procura atender a uma racionalidade calculista que
impera na economia, ou seja, uma lógica baseada em investimento e
resultado.
Esse diagnóstico do presente elaborado por Foucault nos permite
analisar a técnica moderna em sua determinação instrumental, ou seja,
como produção de uma subjetividade assujeitada. Seus estudos
genealógicos sobre as tecnologias de dominação (de poder e de biopoder)
permitem compreender que os conceitos de técnica e tecnologia -
entendidos pelo autor como tática e estratégia - funcionam na mesma
149
lógica objetivante da técnica que está presente nas técnicas de produção. E
assim, determinam os propósitos pelos quais os sujeitos são objetivados.
Compreende-se por lógica objetivante um modo de conduzir os indivíduos
que tem como resultado fins já determinados. Desse modo, as tecnologias
de dominação biopolíticas agem como técnicas de apropriação do
indivíduo, limitando seu modo de ser e de pensar.
Relacionando as tecnologias de poder com a educação, percebe-se
que o interesse de Foucault está em investigar como em uma sociedade
utilizamos determinadas tecnologias para colocar em ação os poderes que
nela agem. Desde modo, na tecnologia disciplinar, a educação e a escola
aparecem como um dispositivo estratégico para formar um indivíduo
disciplinado. A organização do tempo e a disposição do espaço, que nasce
na modernidade com o processo de industrialização, visam ao controle das
ações humanas com o objetivo de aperfeiçoar seus movimentos para
atender a demanda da produção burguesa. As tecnologias do poder
disciplinar agem sobre o corpo do indivíduo, anulando sua capacidade
intelectual, tornando-o frágil e dócil ao modelo capitalista. Já nas
tecnologias do biopoder, a educação funciona como um mecanismo que
intensifica seus poderes sobre o indivíduo, isto porque, além de agir sobre
o corpo, como por exemplo, os saberes das ciências médica que preservam
a vida e suas energias, também exerce um poder sobre a mente, pois o que
a sociedade espera formar é um capital humano, o qual hoje se configura
como sujeito flexível e criativo capaz de múltiplas habilidades. Nesta
incessante busca pela atualização do capital humano, que se expresso no
ideal de educação permanente, as tecnologias biopolíticas direcionam a
vida para um apego a si mesma, anulando sua dimensão ético-político.
No caso da educação moderna, limitada ao uso de técnicas para a
formação de competências do sujeito econômico, converteu-se em
150
tecnologia de dominação. Isso pode ser percebido nos processos de ensino,
que alicerçados em princípios da objetividade técnica, universalizam um
mesmo procedimento (método) para todos chegarem a um mesmo fim, o
que tem como consequência não possibilitar um espaço formativo
existencial, ético e político. Entende-se por ensino objetivo os processos de
ensino-aprendizagem em que se produz apenas o reconhecimento de si no
e pelo conteúdo, não proporcionando o questionamento de si. Tornam-se
processos técnicos e empobrecem a experiência de si. As práticas objetivas
como método de ensino pressupõem uma normatização da aprendizagem,
elidindo formas de aprender que não se encaixam no modelo de ensino
proposto. É preciso romper com a ideia de uma ligação indispensável na
fórmula ensino-aprendizagem, para garantir que outras formas de aprender
possam ser experienciadas.
Enquanto processo objetivo a educação moderna transforma-se em
tecno-saber, ou seja, um saber que é profundamente marcado pela
objetividade técnica. A educação passa a funcionar como um “poder
biotécnico” (RABINOW; DREYFUS, 1995), um poder que controla a
vida por procedimentos técnicos. Dito de outra maneira, a educação
transforma-se em um saber biotécnico, pois a objetividade de seu saber
técnico tem por finalidade gerir a vida pela lógica da formação do capital
humano, conceito que como aponta Foucault torna-se uma ferramenta
importante para analisar e desvelar os interesses econômicos que agem
sobre a educação para formar um determinado tipo de subjetividade.
É o que acontece, por exemplo, com a ideia de formação
permanente/continuada que conduz a concepção de um trabalhador
incompleto. Sobre isso, Gilles Deleuze (1992) no texto Post-Scriptum
sobre as Sociedades de Controle, tendo por base os estudos da biopolítica
de Foucault, relaciona a ideia de formação permanente com o que
151
denomina de “sociedade de controle”. Nesse tipo de sociedade a educação
aparece sob o modelo da empresa, ou seja, cria-se um ambiente de
competição, tendo como princípio o salário por mérito e a ênfase na
formação permanente. O autor aponta, que enquanto na sociedade
disciplinar era preciso sempre recomeçar, seja na escola, na fábrica, etc.;
agora, na sociedade de controle nunca se termina nada. E descreve o que
marca o regime das escolas tendo como modelo a empresa: “[...] as formas
de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação
permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer
pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis de
escolaridade” (DELEUZE, 1992, p. 225).
A partir de uma análise histórica, Aranha (1996) questiona o
conceito de educação permanente: seria ilusório pensar que por meio dela
haja transformação social? E que sua prática mantém os indivíduos
ocupados consigo e, por consequência, fechados aos problemas éticos e
políticos? Para ela, a educação permanente é, ao mesmo tempo, uma
exigência dos novos tempos e, também, uma condição de manter as pessoas
ocupadas (ARANHA, 1996). Desse modo, a formação permanente, além
de constituir na sociedade de controle uma ferramenta capaz de instigar o
indivíduo a estar sempre investindo em seu capital humano, também
funciona como um poderoso elemento de sujeição, ou seja, um
instrumento político para direcionar as condutas individuais e coletivas sob
o modelo das competências e da criatividade.
Se no modelo industrial o trabalho se situava fora do operário, pois
terminando a jornada de trabalho, este se encerrava na fábrica. Agora, sob
um modelo pós-fordista, o trabalho submete toda a vida do indivíduo,
invade todo o seu ser. Segundo Foucault (2005b, p. 119), na obra A
verdade e as formas jurídicas, a partir do século XIX desenvolvem-se forças
152
sobre o corpo e que conduzem o homem a “qualifica-se como corpo como
capaz de trabalhar”. Esse poder age, ao mesmo tempo, sobre o tempo e o
corpo, ou seja, ao agir sobre o corpo para transformá-lo em força de
trabalho corresponde a exigência de fazer com que o tempo da vida se
transforme em tempo de trabalho. “Que o tempo da vida se torne tempo
de trabalho, que o tempo de trabalho se torne força de trabalho, que a força
de trabalho se torne força produtiva” (FOUCAULT, 2005b, p. 122).
Disso decorre que o tempo de não trabalho se confunde com o tempo de
trabalho. O lazer tem que ser produtivo. O “tempo ocioso” precisa ser
ocupado com atividades que incorporem valor a produção de capital
humano. O ócio é condenado. Vive-se a construção de uma subjetividade
produzida e produtiva. O trabalho como capital humano invade o bios.
Nossa maneira de pensar é determinada pelo modo objetivo de um
fazer técnico biopolítico, o qual funciona pela lógica da eficiência, ou seja,
prioriza um jogo calculista de procedimentos ou meios para conquistar fins
determinados. Sendo a modernidade o momento em que se intensificou e
aperfeiçoou os mecanismos para alcançar com maior rapidez um fim
desejado. Estando essa mesma lógica funcionando na educação, pois o
determinismo tecnológico, expresso na objetividade dos métodos,
avaliações mensuráveis e na formação de espíritos flexíveis, vemos
impossibilitado o desenvolvimento do pensamento crítico enquanto
capacidade de diagnóstico e resistência.
Sobre a problematização da determinação técnica na educação,
Pedro A. Pagni (2010) destaca que a racionalidade instrumental ou técnica
tem limitado os saberes e práticas escolares a operações de “[...] ajuste de
meios aos fins dados, em vistas da eficiência da transmissão do que é
ensinado e da objetividade de sua apreensão cognitiva [...]” (PAGNI,
2010, p. 25), afastando a possibilidade de uma experiência com a dimensão
153
estética e suas implicações com a vida. Nessa perspectiva, “[...] somente
admitem a experiência, quando esta pode ser traduzida, nomeada e
significada pelo discurso de verdade a amparar essa racionalidade e a
normatizar as atuais técnicas de ensino” (PAGNI, 2010, p. 25). Por outro
lado, para Pagni se faz necessário o “aprendizado da e pela experiência” que
problematizaria o discurso de verdade alicerçado nessa arte-técnica e
possibilita aos indivíduos a transformação de si. Como afirma: “[...] a
experiência dá o que pensar aos sujeitos, ao pensamento e às relações com
o existente, irrompendo no discurso e o implodindo, revelando nesse
ponto o que difere do que representam sobre si mesmos e sobre o mundo,
pondo-os em transformação” (PAGNI, 2010, p. 26).
Nesse sentido, Gelamo (2009) tendo como referência o conceito
de empobrecimento da experiência diagnosticado por Benjamin sobre a
crise que afeta toda a sociedade do século XX, aponta que vivenciamos um
alargamento da pobreza tornando a experiência marcada por um:
[...] empobrecimento da experiência possível de ser feita em relação a nós
mesmos, a partir de uma não vinculação da experiência à vida, a nova
barbárie marca uma forma de empobrecimento da experienciação de
nosso pensamento e de nossa vida em sua singularidade. Em lugar de
fazer experiência e dar valor à experiência feita, valoriza-se e imita-se a
experiência de um outro (que, muitas vezes, já é, em si mesma,
imitação de outra experiência), assume-se essa experiência como sendo
a experiência válida e, assim, valoriza-se essa outra experiência em
detrimento daquela que é feita por si mesmo (GELAMO, 2009, p.
124).
Gelamo (2009) ao problematizar o ensino, principalmente o
ensino de filosofia, constata que há uma valorização da experiência como
imitação, o que não permite a experiência do pensar, esta que é uma
154
maneira de afetar a própria vida filosoficamente. E com isso, o
empobrecimento da experiência contribui para o enfraquecimento dos
modos de vida e do pensar filosófico sobre a vida. Ainda, segundo o autor,
o ensino que se dá como transmissão e não propicia a experiência do
pensar, torna-se um saber técnico, pois visa a apenas dar condições ao
estudante para a integração no quadro do progresso tecnológico e do
mercado de trabalho.
Desse modo, outro propósito foi mostrar a presença de uma
submissão da experiência, em que as forças da vida (os desejos, a
criatividade, as habilidades) estão dominadas pelo poder com o objetivo de
potencializar sua produtividade. No trabalho, persegue-e a formação
permanente de competências durante toda a vida e para além do trabalho,
fazendo do investimento realizado no próprio homem um capital-
biotécnico capaz de produzir resultado. Na educação, os processos
político-pedagógicos tradicionalmente vêm sendo estruturados em vista da
formação do homem emancipado, ao contrário, trata-se de anali-la como
produção de si. Na vida, busca-se o prolongamento da vida e evitando a
doença, a deficiência ou a morte, tudo o que pode perturbar a
produtividade. Pagni (2017, p. 179, nota 3) ao interpretar a biopolítica
em Foucault, afirma que os saberes científicos e tecnológicos agem
prolongando a existência, nos tornando mais produtivos, menos “prenhe
de vida” e a liberdade é reduzida a “esse jogo de perder a vivacidade e para
servir a algo que lhe assegure a sobrevivência” em uma racionalidade
econômica.
Vivemos uma experiência do tempo que é marcada pela eficiência,
temos de produzir resultados em tudo, inclusive o lazer precisa ser
produtivo. Se se produz a sensação de que o tempo passa depressa, isso não
é mais que o efeito de um jogo, onde a todo o momento precisamos estar
155
envolvido com a conquista de resultados, não tendo tempo para si, não
tendo tempo para uma vida errante. Vivenciamos uma biopolítica que age
sobre os afetos, ou melhor, que impede a experiência dos afetos, pois
anulamos a vivência da angústia, das crises, dos conflitos, pelo uso de
remédios, por exemplo. Com isso, se impede que a experiência de si se
realize pela própria incompletude da vida. O sujeito eficiente não pode
perder tempo com consigo mesmo. E a vida só pode ser sentida quando
você não tem pressa.
Em nossa descrição da educação tecnológica observamos que o uso
da técnica ocorre por uma compreensão restrita ao domínio dos
conhecimentos científicos e tecnológicos. E a partir de uma perspectiva
político-pedagógica objetiva-se por esse uso da técnica proporcionar ao
indivíduo as competências que lhe permitiram conquistar sua autonomia
socioeconômica. Trata-se de um uso meramente instrumental da técnica,
porque se constitui em um meio para conquistar fins determinados, fins
que atendem ao jogo da inclusão biopolítica. Seu uso instrumental não
possibilita que o indivíduo problematize a produção da subjetividade a que
está submetido, como também, nem se constituir por meio de outros usos
da técnica. Trata-se, também, de uma concepção antropológica da técnica,
isto porque idealiza pela noção de trabalho a constituição do homem
apenas por suas capacidades técnicas, não permitindo a constituição de si
em um movimento ético-político.
Em nosso diagnóstico, percebemos que na educação tecnológica se
produz um tipo de subjetividade que faz com que o indivíduo olhe o
mundo e a si mesmo pela ótica econômica da produção de capital humano.
Sendo que tal pressuposto impede que a educação se realize como exercício
de si, elemento fundamental para que a formação possa ser conduzida pela
ideia de que é possível ser outro. Transformando o mundo e a si mesmo
156
em um compromisso político de construção da liberdade comum e da
constituição de uma vida melhor coletivamente. Então perguntamos: qual
o papel do ensino de filosofia no currículo da educação tecnológica? A
tradicional função crítica da filosofia não acaba por auxiliar no
fortalecimento de um modo de vida técnico (biotécnico) na formação do
aluno na educação tecnológica?
A estética da existência: a vida como objeto da tékhne
No pensamento de Foucault, o tema da ética
29
nos anos 80
caracteriza-se por pensar a constituição do sujeito por meio das práticas de
si, as quais têm por objetivo libertar-se dos poderes de sujeição através da
criação de novas formas de viver. Trata-se de um deslocamento, ao mesmo
tempo, ético-estético-político, pois através da criação de novas formas de
vida busca-se constituir livremente, resistindo às formas de sujeição e
construindo maneiras singulares de viver coletivamente.
É importante destacar, que seu interesse de investigação provoca
um deslocamento da noção clássica de ética como “estudo das regras e
comportamentos morais” para a ética como “constituição de si mesmo
como ‘sujeito moral’” (FOUCAULT, 2012a, p. 208). Desse modo, nosso
objetivo nesse tópico é apresentar parte das reflexões foucaultiana do tema
da estética da existência, pois retomaremos o assunto no próximo capítulo
quando aprofundaremos a noção grega de cuidado de si para pensar a vida
como exercício de si e a filosofia como problematização das práticas. Em
Foucault, os termos “modos de vida” ou “formas de vida” devem ser
29
A fase ética, que corresponde a produção da década de 1980, se refere: a publicação em 1984 dos dois
volumes da História da Sexualidade: Uso dos Prazeres e O Cuidado de Si; já quando olhamos para os
cursos, abrange o curso Do Governo dos Vivos (1979-1980) e se estende até O Governo de Si e dos Outros
II: A Coragem da Verdade (1983-1984).
157
compreendidos como a maneira como a vida se constitui por certos
procedimentos, exercícios e técnicas que criam um determinado estilo de
existência. De modo que Foucault afirma (2004a) que a arte de viver
(khne toû bíou) é “fazer da própria vida objeto de uma tékhne” e que isso
“implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que utiliza sua
tékhne” (FOUCAULT, 2004a, p. 513).
O objetivo de Foucault ao retomar nos gregos a filosofia como
criação dos modos de vida é para pensar as formas de ultrapassagem do que
nós somos. Assim, como descrevemos, a relação entre a questão da
Aufklärung e o cuidado de si é de complementariedade, em que a tarefa
filosófica como diagnóstico de nós mesmos torna-se o modo como
podemos cuidar de nós mesmos. E, ao mesmo tempo, o cuidado de si é o
modo como Foucault vai pensar uma política de não ser governado, como
resistência aos poderes que governam a vida. Assim, na fase ética, também
chamada de “estética da existência” (FOUCAULT, 2014b, p. 107),
Foucault investiga como na antiguidade as formas de subjetivação
conduziram a formas de viver o presente enquanto exercício constante de
transformação de si. Assim, a arte de vida é o modo como o autor busca
pensar a resistência a objetividade do saber-poder na modernidade.
Em seu último curso, intitulado A Coragem da Verdade, ao realizar
a história da noção de parresía Foucault defende (2011c, p. 111, p. 140 e
p. 216) que houve duas práticas filosóficas no Ocidente que é oriunda da
filosofia platônica e que é representada pelos diálogos de Alcibíades e
Laques. “Uma vai à metafísica da alma (o Alcibíades), a outra a uma
estilística da existência (o Laques)” (FOUCAULT, 2011c, p. 140).
158
Segundo Foucault (2004a) Platão no diálogo Alcibíades”
30
afirma
que para ocuparmo-nos de nós mesmos é preciso saber o que significa este
“nós mesmos”. “Na fórmula epimeleîsthai heautoû, o que é o heaut? É
preciso gnônai heautoû, diz o texto” (FOUCAULT, 2004a, p. 66). E mais
adiante afirma para que Alcibíades pudesse bem cuidar e governar os
outros precisava primeiro governar a si mesmo, por isso, tornava-se
necessário superar a deficiência em sua formação, ocupando-se consigo
mesmo através do conhecimento de si e por meio de exercícios práticos.
Desde modo, nesse texto de Platão existe toda uma relação recíproca entre
o conhecimento de si e o cuidado de si
31
. Por isso, Platão defende, para
que Alcibíades pudesse governar os outros, precisava primeiro governar a
si mesmo. Segundo Carvalho (2014) Alcibíades não aprendeu a praticar o
trabalho paciente do exercício de si a fim de aprender a dominar a si
mesmo, ele tinha pressa em exercer o poder de governar e, por isso, era
incapaz de governar a si mesmo. E para Platão, se faz necessário primeiro
produzir “condutas pelas quais poderemos efetivamente cuidar dos outros.
30
O diálogo “Primeiro Alcibíades” ou “Alcibíades I” (PLATÃO, 1975), tratasse de uma conversa entre
Sócrates e Alcibíades, em que Platão aborda a questão da má educação e da ambição pelo poder do jovem
governante.
31
Para Foucault, na filosofia grega há uma ligação indispensável entre o cuidado de si e a
verdade/conhecimento de si. Ligação que para o autor é rompida na Idade Moderna com a filosofia de
René Descartes, pois nesse momento se produziu um esquecimento do cuidado de si em função do
predomínio do conhecimento de si, o qual se tornou princípio fundamental para a constituição do cogito.
Para situar a cisão, Foucault desenvolve no curso A Hermenêutica do Sujeito (2004a) um estudo sobre a
história do cuidado de si (Epimeleia heautou), também denominada de história das técnicas de si, no qual
aponta seu início com o modelo platônico do princípio socrático do “conhece-te a ti mesmo” e tendo seu
apogeu no período helenístico (séc. I e II d. C.), aonde o cuidado de si visava a autonomia do indivíduo
através de práticas que tinha como principal objetivo a transformação de si em busca de um estilo de
existência. Já durante a pastoral cristã as técnicas que compõem o cuidado de si (epimeleia heautou) foram
gradativamente sendo deslocadas para um cuidado pelos outros (epimeleia ton allon). Na pastoral cristã
houve um governo de si através de um conjunto de práticas que visavam a sujeição do indivíduo a padrões
de conduta externos (as técnicas de confissão, exame da consciência e dramatização das penitências
constituíram verdadeiros processos de sujeição e de renúncia de si). Optou-se por relatar rapidamente
este percurso, pois descrever os diferentes momentos deste percurso histórico não faz parte do objetivo
deste trabalho.
159
Comecemos porém por cuidar dos outros e tudo estará perdido”
(FOUCAULT, 2004a, p. 244). Por isso, se faz necessário ocupar-se
consigo mesmo através do conhecimento de si e de exercícios práticos.
Segundo Foucault (2004a) o conselho de prudência dado por
Sócrates a Alcibíades para que prestasse um pouco de atenção a si mesmo
é uma primeira referência passageira do conhecimento de si, porque para
Platão o importante é saber o que esse heautoû, sua resposta é: a alma. E
para Foucault isso é bem conhecido nos diálogos de Platão, onde o autor
grego defende que é preciso ocupar-se com a própria alma a fim de que ela
se torne a melhor possível. Desse modo, em Alcibíades a questão da alma
direciona o cuidado para um exercício puramente intelectual, como
afirma: “[...] um modo de conhecimento de si que tinha a forma da
contemplação da alma por si mesma e do reconhecimento por si mesma
de seu modo de ser” (FOUCAULT, 2011c, p. 139).
Já a partir do texto de Laques
32
, Foucault (2011c) procura
mostrar como no pensamento grego a existência (os) se constitui como
objeto fundamental do cuidado. A partir da ligação entre prestar conta de
si mesmo (parresía) e cuidar de si (epimeleia heautou) desenvolvido no
32
No diálogo Laques, Platão (1970) descreve sobre a questão da formação dos jovens que estão destinados
a ocupar cargos civis e militares na cidade. O diálogo se inicia com a preocupação de Lisímaco e Melesias
com o modelo de educação que desejam oferecer a seus filhos. Lisímaco e Melesias levam dois amigos,
Laques e Nícias, a exibição de um mestre de armas e perguntam se devem confiar seus filhos a esse mestre
de armas. Nícias acha que as lições são úteis e fornecem um bom exercício. Já Laques crítica os exercícios,
pois mostra a aptidão do mestre de armas apenas na cidade. Devido ao impasse, ocorre a intervenção de
Sócrates. Segundo Kohan (2008, p. 102-103) Sócrates não toma partido de nenhuma das posturas, isto
porque, a questão não é de quem está a favor de uma postura ou outra, não é o modelo político que deve
prevalecer, mas que se trata de uma questão própria de uma arte (téchne). E então pergunta: “como se
mede a atitude de alguém no âmbito de uma téchne?” e sua resposta afirma que Sócrates expõe dois
critérios: pelos bons mestres que se tem ou pelas obras que é capaz de realizar. Para Platão (1970) é
necessário um conhecimento técnico para cuidar da alma como convém. E mais adiante, Nícias explica
a Lisímaco que o modo como Sócrates envolve seu interlocutor no diálogo “[...] o obriga a prestar-lhe
contas de si próprio, de que modo vive e que vida levou no passado” (PLATÃO, 1970, p. 125-126). E
ainda, “quem não se furta a esse exame, passará necessariamente a tomar mais cuidado consigo mesmo
[...]” (PLATÃO, 1970, p. 126).
160
Laques, Foucault (2011c) procura mostrar como no pensamento grego a
existência (bíos) se constitui como objeto fundamental do cuidado, ou seja,
trata-se do tema da parresía ética. “Aqui, o objeto designado ao longo do
diálogo como aquilo de que se deve cuidar não é a alma, é a vida (o bíos),
isto é, a maneira de viver. É essa modalidade, essa prática da existência que
constitui o objeto fundamental da epiméleia” (FOUCAULT, 2011c, p.
111). Assim, não se trata nem de uma questão política, nem técnica, mas
do problema de constituição do éthos, isto é, “a maneira como se vive, a
maneira como se viveu, é disso que é preciso dar conta [...]
(FOUCAULT, 2011c, p. 139).
E é a partir deste princípio da parresía socrática que Foucault
(2011c) apresenta que o cuidado de si supõe um dizer verdadeiro como
prova de vida. “É preciso submeter a vida a uma pedra de toque para
separar exatamente o que é bom do que não é bom no que se faz, no que
se é, na maneira de viver” (FOUCAULT, 2011c, p. 127). Diferentemente
do que acontece na competência técnica, que uma vez adquirida pode ser
utilizada depois, na prova socrática o modo de vida não pode ser renovado
para toda a vida. O exame do modo de vida deve ser perseguido durante
toda a vida, pois não há modelo a ser seguido, ou seja, não há competência
técnica que uma vez adquirida possa ser reativada. Por isso, Sócrates recusa
o papel de mestre que domina uma tékhne capaz de ser transmitida.
Foucault afirma (2011c) que esta linha da filosofia (estética da
existência) foi encoberta e dominada pela história da metafísica da alma
(tarefa de encontrar e dizer o ser da alma). E que seu objetivo é realizar
uma “[...] uma história da estilística da existência, uma história da vida
como beleza possível” (FOUCAULT, 2011c, p. 141). Diante dessas duas
concepções - a de Alcibíades em que o conhecimento de si se desenvolve
como um modo de descoberta da alma (a psykhé) e a de Laques, onde a
161
questão de si aparece como um modo de condução da vida (bíos) -
conduzimos nossa reflexão da filosofia a partir da perspectiva do texto de
Laques, porque compreendemos a filosofia como uma maneira de pensar
e de fazer que é a prática da vida livre.
A partir dessa perspectiva, segundo Foucault (2012a) o cuidado de
si foi o modo como os gregos pensaram a liberdade como ética. Sobre isso
afirma: “[...] o que é a ética senão a prática da liberdade, a prática refletida
da liberdade” (FOUCAULT, 2012a, p. 261). Uma vida ética passa pela
prática da liberdade. Concebe como vida ética, aquela que não se deixa
escravizar e nem dominar pelos outros ou por si mesmo (seus desejos). “Ser
livre significa não ser escravo nem de outro homem nem de si mesmo, dos
próprios apetites, dos próprios desejos” (CASTRO, 2009, p. 157). Para
isso, torna-se necessário que nossas escolhas e comportamentos sejam
guiados pela prática racional da liberdade, o que significa segundo
Foucault (2012a, p. 262) que a reflexão ética e livre deve girar em torno
do “[...] imperativo fundamental: ‘cuida-te de ti mesmo’”.
Embora a primeira vista nesta sociedade individualista o termo
cuidado de si possa aparecer como sinônimo de egoísmo, pelo contrário,
apropriando-se do sentido grego, o cuidado de si como inquietação conduz
a formação de uma relação consigo que potencializa o acolhimento do
outro. Para Foucault (2012a) foi a partir do cristianismo que o cuidado de
si tornou-se algo suspeito e denunciado como uma forma de amor a si
próprio, como egoísmo, uma contradição com o interesse de se ter em
relação aos outros, ou ainda, com o sacrifício que é preciso ter de si mesmo.
No entanto, apropriando-se do sentido grego, o cuidado de si torna
possível outro modo de se relacionar consigo, pois, ao mesmo tempo, em
que se constitui uma ferramenta de formação de si indispensável para
resistir e libertar-se do empobrecimento da experiência de si, também
162
torna-se um fundamento para o acolhimento do outro, pois o cuidado de
si é o primeiro passo para cuidar e conviver com as diferentes formas de
vida.
Desse modo, no cuidado de si o exercício do conhecimento de si
mesmo (gnônai heautoû) torna-se parte integrante da prática da ascese, a
qual é entendida como um conjunto de exercícios físicos e intelectuais que
tem por finalidade a constituição do sujeito por meio da relação consigo
mesmo. Foucault define ascese como: “[...] um exercício de si sobre si
mesmo, através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um
certo modo de ser” (FOUCAULT, 2012a, p. 259). Isso permite pensar a
ética não apenas como atividade intelectual, mas ligada aos procedimentos
práticos que estão relacionados a modos de vida. A prática da ascese nos
conduz a olhar para a filosofia como um novo modo de praticá-la, em que
a aprendizagem se constitui como prática de um êthos.
A partir desse registro ético-estético diferentes inquietações nos
conduzem: o que significa fazer da tarefa filosófica uma criação de modos
de vida? A partir de que práticas filosóficas potencializamos essas criações?
Qual a diferença entre o cuidado de si como exercício filosófico e com
qualquer outra forma comum e cotidiana de preocupação com a vida?
Segundo Nietzsche (2011b), no texto de 1974 III Consideração
Intempestiva: Schopenhauer Educador, o homem contemporâneo não
está preocupado com a questão sobre “por que vivo?”, ou se responde, o
fazem de modo rápido e orgulhoso para se tornar um bom cidadão, um
erudito, homem de Estado. E refletindo sobre a singularidade da existência
e da vida afirma: “o homem contemporâneo compreende sua vida senão
como um ponto do desenvolvimento de uma espécie ou de um Estado ou
de um ciência, e que portanto integra-se plenamente a história do devir”
(NIETZSCHE, 2011b, p. 203). E assim, participa de um jogo em que
163
“este eterno devir é um jogo de marionetes mentiroso, onde o homem se
esquece de si mesmo” (NIETZSCHE, 2011b, p. 203). E acrescenta
perguntando: “Não são todas as disposições do homem ordenadas para
que, numa dispersão constante de pensamentos, a vida não seja sentida?
Por que quer ele tão firmemente o contrário, quer dizer, justamente sentir
a vida, quer dizer, sofrer a vida?” (NIETZSCHE, 2011b, p. 203). A partir
disso, o autor apresenta a ideia de que a educação, principalmente a
filosofia, precisa se desenvolver como problematização da vida em sua
dimensão trágica. E defende que é preciso viver de acordo com a filosofia,
através de um exercício em que “a única crítica em filosofia possível é de
uma experiência que possibilite viver de acordo com ela” (NIETZSCHE,
2011b, p. 248).
33
A partir do referencial nietzschiano, Gelamo (2010a) defende que
o ensino de filosofia precisa acontecer como problematização da vida,
como uma crítica do tempo presente e dos modos como a vida se efetiva
nessas relações. Aponta também que a perguntaO que estamos fazendo de
nós mesmos? agencia e potencializa esse modo de pensamento
problematizador. E acrescenta: “A resposta à questão poderia, então, ser:
estamos colocando a vida viva (bíos) como motivadora e potencializadora
do pensamento, da filosofia e, consequentemente, de qualquer política
cultural” (GELAMO, 2010a, p. 397). Desse modo, pensar um filosofar
que se dá como vida conduz a viver o pensamento ao criá-lo na
33
Nesse texto de 1974, Nietzsche crítica certo modo de praticar a história da filosofia que é muito
próximo do que ainda se prática hoje, como afirma: “E afinal de contas, o que importa a nossos jovens a
história da filosofia? Devem eles ser desencorajados a ter opiniões, diante do montão confuso de todas as
que existem? Devem eles também ser ensinados a entoar contos jubilosos pelo muito que já tão
magnificamente construídos? Devem eles por ventura aprender a odiar e desprezar a filosofia? E se ficaria
quase tentado a pensar nesta última alternativa, quando se sabe como, por ocasião dos seus exames de
filosofia, os estudantes têm de se martirizar, para imprimir nos seus pobres cérebros as ideias mais loucas
e mais impertinentes do espírito humano junto com as mais grandiosas e as mais difíceis de captar”
(NIETZSCHE, 2011a, p. 248).
164
singularidade de sua própria vida, em que viver significa sentir a tensão
agonística que conduz a transformação de si.
No texto A vida: a experiência e a ciência, considerado o último
texto que publicou, Foucault (2005c) descreve um modo de pensar a
singularidade da vida que é compreendê-la como uma existência errante.
Influenciado pela leitura das ciências da vida (principalmente da biologia
e da medicina) de George Canguilhem, Foucault (2005c, p. 364; 2011a,
p. 438 e 2011c, p. 146-148) sustenta que a errância é uma dimensão
peculiar da vida, por isso, o erro não deve ser considerado como um atraso.
A partir de sua leitura de Canguilhem, entende “[...] o erro é a contingência
permanente em torno do qual se desenrola a história da vida e o futuro dos
homens” (FOUCAULT, 2005c, p. 365).
Desse modo, Foucault (2005c) expressa em sua filosofia uma
compreensão da vida como mobilidade, em que o ato de errar faz parte de
um vivente que nunca se encontra completamente adaptado. Foucault
resgata a partir das ciências da vida de Canguilhem a tentativa de repensar
o sujeito tendo como base uma filosofia que aborda a noção de vida. Para
o filósofo francês, a vida deve ser objeto de arte, como afirma: “[...] criar
alguma coisa [...]. Essa é a arte de viver. [...] Se não pudermos chegar a
fazer isso na vida, ela não merece ser vivida. Não faço distinção entre as
pessoas que fazem de sua existência uma obra e aquelas que fazem uma
obra em sua existência” (FOUCAULT, 2011a, p. 107).
Tradicionalmente se considerou o erro como o negativo da
verdade, sendo a verdade pautada como fundamento essencial da vida.
Principalmente na modernidade em que as diferentes ciências e as formas
de governo biopolíticas objetivam construir uma verdade eficiente do agir
humano. Em outra perspectiva, a partir de Canguilhem e Foucault, se
concebe o erro como imanente a historicidade da vida, em uma vida que
165
se manifesta em seus desvios de uma vida errante e, que se expressam o
apenas em desejos e decisões diferentes dos considerados normais, mas
também em situações limites como a loucura, as doenças, as deficiências
ou outros modos de vida que resistem à regularização, ou seja, são essas
experiências que problematizam a pobreza das relações normalizadas.
No processo de ensino, quando se concebe o erro sob o primeiro
aspecto, sempre é considerado como um desvio negativo, um erro técnico
que impede o aluno de atingir os objetivos de aperfeiçoamento e de
produção de resultados; sob o segundo aspecto, o erro passa a ser
compreendido como um modo de aprender que nos desloca do atual modo
de ser e nos impulsiona a se constituir diferentemente.
Diante dessa perspectiva, não queremos dizer que no processo de
ensino, bem como na atuação profissional, não se tenha que ter como
princípio um determinado modo de proceder em que se evite o erro
técnico, isto porque, sua ocorrência pode produzir consequências nocivas
ao convívio social. Nossa análise não é sobre o uso da técnica e do juízo
moral dos erros que de sua utilização podem ocorrer, mas, antes, o que se
quer enfatizar é que a predominância de uma educação eficiente tem
negligenciado certa dimensão da formação humana que é a contingência
ao qual ninguém pode contornar. Hubert Vincent (2014, p. 44-45)
descrevendo sobre o modelo de autoformação, cita que Richard Sennet
analisou a importância das ferramentas imperfeitas para a prática
profissional e demonstrou que elas oferecem a oportunidade de refletir e
criar. Assim, sua pesquisa exige um distanciamento em querer apenas
contar com ferramentas tidas como perfeitas e um convite a certa
circunspecção na escolha das ferramentas. Vincent conclui que a questão
nem sempre é melhorar a própria prática, mas estar atento ao que os
instrumentos fazem e os retornos que eles suscitam.
166
Desse modo, Foucault rompe com certa tradição filosófica que ao
privilegiar o descobrimento da verdade elidiu o erro como constituinte da
vida. Assim, fazer da vida um modo de existência singular é estar atento à
imprevisibilidade da vida presentes nas formas de vidas errantes e
desviantes. Fazer da vida uma errância é concebê-la como um caminho, no
qual cada desvio passa a ser tomado como mais um modo de produção de
sentidos singulares. Errar não é algo que me desvia do verdadeiro, ao
contrário, faz parte da verdade da minha vida e de minha singularidade.
Foucault denominou esta forma de compreender a vida como estilística da
existência, a qual define como “[...] um estudo das formas pelas quais o
homem se manifesta, se inventa, se esquece ou se nega em sua fatalidade
de ser vivo e mortal” (FOUCAULT, 2011a, p. 474).
Em A Hermenêutica do Sujeito Foucault (2004a) aponta que os
filósofos helenistas, por meio do exame da consciência, refletiam sobre seus
comportamentos diários não como forma de não mais cometer atitudes
errôneas, e sim, como preparação para o acontecimento, isto porque, não
há como evitar a errância, mas se ela acontecer deve-se estar preparado. É
preciso conceber a errância como integrante da imprevisibilidade da vida
e como indispensável para a criação de novos modos de vida, pois assumir
o risco de errar como uma contingência incontornável do agir em si
mesmo é fundamental para mudar as condições da sua própria vida.
Segundo Gros (2004, p. 643) deve-se pensar em uma “ética da
imanência” o modo como Foucault concebe a vida como obra de arte, ou
seja, uma ordem imanente à vida e não sustentada por valores
transcendentais ou condicionada por normas sociais. Acrescenta ainda que,
o sentido da palavra obra deve se referir mais a dimensão artesanal do que
artística, pois essa ética exige exercícios, regularidades, trabalho. Nesse
mesmo registro, Nalli e Weber, em nota de rodapé, destacam que:
167
É importante não esquecermos que a noção de “arte” tem mais o
sentido de artesanato, ofício artesanal, quase uma bricolagem, que
qualquer parentesco com as belas artes. Por isso Foucault trabalha
indistintamente com as noções dearte” e “técnica”, a despeito mesmo
de sua expressão um tanto vaga de “estética da existência”, que muitas
vezes fica subordinada à noção de “hermenêutica do sujeito” (NALLI;
WEBER, 2014, p. 321).
Já segundo Agamben (2017, p. 121-122) Foucault no curso A
Hermenêutica do Sujeito já alertou para o perigo da estetização do cuidado
de si, porque para Foucault em torno da noção do cuidado de si é preciso
estudar o modo como no Ocidente se constituiu as mais austeras, rigorosas
e restritivas morais. Assim, esse modo de pensar a arte nos permite romper
com certo modo de estetização da educação que governa nossas práticas de
ensino, seja pela busca pela criação de interesse no aluno por meio de
práticas que visão criar uma sensibilização para o conteúdo a ser
transmitido, seja pela generalização do conceito de criação que em muitas
vezes não proporciona o exercício de si, portanto, desligado da ética. É
preciso pensar a arte de si como um trabalho de si, exercícios que
possibilitam a relação agonística de si e sua construção ética.
Enfim, o trabalho de si exige a aprendizagem de uma nova maneira
de filosofar, que não é conceitual nem apenas discursiva, mas uma
transformação ética de si que ocorre pelo pensamento e modo de agir. A
transformação dos modos de vida implica um trabalho, ao mesmo tempo,
paciente e impaciente de si na tarefa de ensaiar a possibilidade de viver de
outra forma.
168
169
4
Por uma problematização do ensino de filosofia
no ensino médio técnico:
o exercício de si como modo de vida
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ___________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ____________ ___________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ______________
Nesse capítulo descrevemos sobre o que significa pensar a prática
da filosofia por meio do deslocamento do ensino como transmissão da
verdade e como representação do conhecimento para aquilo que, segundo
Heidegger (2012, p. 112) é o que “dá a pensar” e “cabe pensar
cuidadosamente”
34
, nos conduz a perspectivar um modo de praticar a
filosofia como exercício de si e que se constitui como a tarefa filosófica no
ensino médio técnico, possibilitando que a formação educacional se
constitua no livre governo de si mesmo.
Em nossa análise apontamos que, o modo como atualmente
praticamos o ensino de filosofia é de um uso técnico-pedagógico, em que
predominam as questões metodológicas de transmissão do conteúdo e
representatividade do conhecimento. Portanto, fazem com que os
elementos da transmissão e da representação se tornem ferramentas para
um uso técnico no ensino-aprendizado. Por isso, nossa opção é pelo
deslocamento de um uso técnico do ensino de filosofia para pensar
34
Heidegger (2012), no ensaio “O que quer dizer pensar?”, aproxima o que nos é dado a pensar e o que
cabe pensar mais cuidadosamente como aquilo que ainda não pensamos. E cita uma passagem de
Hölderlin sobre Sócrates e Alcibíades: “quem o mais profundo pensou, ama o mais vivo”. Ao aproximar
os verbos pensar e viver indica o “elemento em que se move o pensamento”, isto porque quando
“pensando, estamos em via de nos encaminharmos para o que cabe pensar. Esta via pode ser um extravio.
Ela permaneceria porém marcada pela disposição de corresponder àquilo que cabe pensar mais
cuidadosamente” (HEIDEGGER, 2012, p. 120-121).
170
cuidadosamente a aprendizagem em filosofia como exercício de si que se
realiza pela problematização das práticas de si.
Deslocamento do ensino de filosofia como transmissão técnica para
uma maneira de formular problemas
Isto (ensino de filosofia) não é filosofia!
Com essa afirmação, “Isto (ensino de filosofia) não é filosofia!”, se
quer fazer uma analogia à atitude desenvolvida por Foucault (2001a, p.
247-263) no texto de 1968, Isto não é um cachimbo
35
, onde o autor
descreve sobre a questão da representação da linguagem. Utilizando-se de
um quadro de René Magritte, Foucault afirma “isto” (a imagem do
cachimbo e a sua descrição) “não é” (não representam) o objeto cachimbo.
Ao analisar o enunciado, adota uma postura de negação em relação à
representação e ao que ela se refere. Tendo esta mesma atitude, pretende-
se nessa parte, construir, como atitude, oposição, uma descrição das
práticas conservadoras no ensino de filosofia, condutas que constroem uma
determinada representação da filosofia e que na maioria das vezes não são
problematizadas. Com essa tarefa, trata-se de apontar o que se tem
praticado no ensino de filosofia e o que se tem descrito como sendo seu
dever, mas que, no entanto, são práticas que raramente abordam o ensino
de filosofia como um problema filosófico.
Nesse movimento contestatório não se trata de um julgamento de
valor sobre o que se tem realizado no ensino de filosofia como algo
negativo, ao contrário, a partir da concepção foucaultiano do saber como
35
O texto de Foucault é de 1968 e faz uma homenagem a René Magritte falecido em 1967, com o qual
trocou correspondência. Nesse texto, o tema de Foucault é a problematização da linguagem e sua
capacidade de representação. No quadro de Magritte estão justapostos o texto e a figura, sendo que na
leitura de Foucault nem o desenho do cachimbo, nem as palavras escritas “Isto não é um cachimbo”,
representam o objeto cachimbo.
171
positividade, entendemos que o modo como se tem praticado o ensino de
filosofia produzem uma verdade, ou seja, através de determinados
métodos, técnicas, exames, delimitações de conteúdos, etc., constroem
uma visão de filosofia pela qual se movem e interpretam um modo de ser
no mundo, ou ainda, não se permite que a filosofia se realize como êthos.
Desse modo, com a descrição a seguir nosso objetivo é nos afastarmos do
que se tem praticado no ensino de filosofia, abrindo caminho para
evidenciar a proposta assumida na escrita desse texto, que é fazer da tarefa
filosófica um exercício de transformação de si.
Analisando o modo de se praticar a filosofia, Foucault (2010a)
descreve que é preciso evitar dois esquemas que em sua época prevaleciam
com frequência ao se fazer a história da filosofia: um, que pretende resgatar
uma origem radical em que a verdade consistiria em descobrir algo como
um esquecimento; e o outro, uma história da filosofia como progresso ou
desenvolvimento de uma racionalidade. E propõe pensar a história da
filosofia como um jogo diverso do dizer-a-verdade que, por meio de sua
força alocutória, transforma o modo de ser dos sujeitos. Assim, para
Foucault (2012a) trata-se de fazer uma história da subjetividade, na qual
investiga “[...] a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo
num jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo”
(FOUCAULT, 2012a, p. 230).
A perspectiva proposta por Foucault nos leva a refletir em outro
modo de pensar e fazer filosofia, em que a história da filosofia é uma
ferramenta indispensável no diagnóstico de “quem nós somos?”, isto
porque, a problematização do presente depende de uma análise histórica
de nós mesmos e, também, condição para que se produza a transformação
de si. Assim, a partir de Foucault, a filosofia tem a tarefa de dar outro
sentido para a história da filosofia, não o de descobrir uma verdade
172
escondida, abstrata e eterna, prática que conduz ao ensino como
transmissão, mas o de potencializar o diagnóstico dos processos de
subjetivação em que estamos inseridos e das possibilidades de
ultrapassagem deles.
Abordando a questão da transmissão no ensino, Foucault (2010a)
na obra O governo de si e dos outros (curso de 1982-1983) retoma a Carta
VIIde Platão e analisa o tema da rejeição da escrita por meio da pergunta
“como se transmite?”. Sua resposta será que não se transmite por
mathémata (fórmulas), mas por synousía (coabitar). Como afirma:
Esse percurso das mathémata, essa enformação do conhecimento em
fórmulas ensinadas, aprendidas e conhecidas, isso não é, diz o texto de
Platão, o caminho pelo qual passa efetivamente a filosofia. As coisas
não acontecem assim, não é ao fio das mathémata que a filosofia se
transmite. [...] Synousía é o ser com, é a reunião, é a conjunção. [...]
Mas quem deve se submeter à prova da filosofia deve "viver com",
deve, empreguemos a palavra, "coabitar" com ela - aqui também, vocês
sabem, com os possíveis sentidos da palavra coabitar. Que aquele que
filosofa tenha de coabitar com ela, é o que vai constituir a própria
prática da filosofia e sua realidade. Synousía: coabitação. Syzên: viver
com. E, diz Platão, é à força dessa synousía, à força desse syzên que vai
se produzir o quê? Pois bem, a luz vai se acender na alma, mais ou
menos como uma luz ("phôs") se acende (a tradução diz "um lampejo"),
isto é, como uma lamparina se acende quando é aproximada do fogo.
[...] É dessa maneira, sob essa forma de coabitação, da luz que se
transmite e se acende, da luz que se alimenta da própria alma, é assim
que a filosofia vai viver. Vocês estão vendo que é exatamente o
contrário do que acontece nas mathémata. Nas mathémata não há
synousía, não é preciso syzên. É preciso haver enformação de matemas,
é preciso haver conteúdos de conhecimento. Esses matemas têm de ser
transmitidos e têm de ser guardados no espírito até que,
eventualmente, o esquecimento os apague. Aqui, ao contrário, não
173
fórmula, mas uma coexistência (FOUCAULT, 2010a, p. 225-226,
grifos nossos).
Foucault (2010a), durante a aula de 16 de fevereiro de 1983,
descreve que Platão na “Carta VII relata sobre o fracasso de Dionísio na
prova da filosofia, recusando a filosofia como exercício de práticas e
escolhendo escrever um tratado de filosofia. E mais adiante: “[...] o
discurso filosófico não pode encontrar seu real, seu érgon, se assumir a
forma de quê? Das mathémata(FOUCAULT, 2010a, p. 225). Dionísio
acreditava que era filósofo por ser capaz de dominar e reproduzir algumas
“fórmulas de conhecimento” (mathémata), a qual define como:
E aqui deve-se entender a palavra mathémata em seu duplo significado.
As mathémata o, claro, conhecimentos, mas também são as próprias
fórmulas do conhecimento. São ao mesmo tempo o conhecimento em
seu conteúdo e a maneira como esse conhecimento é dado em
matemas, isto é, em fórmulas que podem provir da máthesis, isto é, do
aprendizado de uma fórmula dada pelo mestre, escutada pelo
discípulo, aprendida de cor pelo discípulo, e que se toma assim seu
conhecimento (FOUCAULT, 2010a, p. 225).
A partir disso, pensamos que no ensino de filosofia o essencial não
é a transmissão de um conteúdo em que o é suficiente a sua apreensão. Ao
contrário, a filosofia precisa ser praticada em uma coexistência, em um
coabitar problemas, onde não há respostas imediatas e definitivas, mas que
se realiza como um “longo caminho da filosofia, isto é, tomar a via rude
dos exercícios e práticas” (FOUCAULT, 2010a, p. 224), o qual Dionísio
não quis seguir. Sobre isso, Foucault (2010a) cita em nota o texto de
Platão, em que este afirma que é necessário frequentar por muito tempo
os problemas, somente convivendo com eles que é possível a verdade brotar
na alma. Nas palavras de Platão:
174
Não é possível encontrar a expressão [mathémata] adequada para
problemas dessa natureza, como acontece com outros conhecimentos.
Como consequência de um comércio prolongado e de uma existência
dedicada à meditação de tais problemas é que a verdade brota na alma
como a luz nascida de uma faísca instantânea, para depois crescer
sozinha (PLATÃO, 1975b, p. 155, nossa inclusão e grifos).
Também aponta, que a filosofia como mathémata conduz a ideia
de que “dava-se ares de saber muitas coisas e de domi-las [...]
(PLATÃO, 1975b, p. 155), e isso para Foucault (2010a, p. 224) acarreta
na ideia de que “[...] agora que já sabia o bastante, não precisava se formar
mais”. Nesse modo de filosofia como transmissão, a posse da verdade
conduz a um modo de ser em que as relações de poder são autoritárias,
como por exemplo, em práticas de ensino em que o professor se coloca
como detentor da verdade a ser transmitida e o aluno sendo apenas
receptor e reprodutor desse saber. E isso para Foucault tem consequências
éticas, isto porque, torna-se perigoso o modo de proceder daqueles que
praticam a mathémata, como afirma:
Mas na verdade seria ou inútil, ou perigoso. Seria perigoso para os que
efetivamente, não sabendo que a filosofia não tem outro real senão suas
próprias práticas, imaginariam conhecer a filosofia, tirando disso
vaidade, arrogância e desprezo pelos outros, e portanto seria perigoso.
Quanto aos outros, aos que sabem perfeitamente que o real da filosofia
está nesta, na sua e nas suas práticas, pois bem, para esses o ensino pela
escrita, a transmissão pela escrita seria totalmente inútil (FOUCAULT,
2010a, p. 226, grifos nossos).
Nessa perspectiva, o ensino de filosofia como transmissão e através
do reconhecimento de si pela verdade produz a dogmatização de
posicionamentos e, como consequência, dificultando as relações com o
175
outro. Por isso, pensamos que a filosofia precisa se realizar como um
aprendizado do coabitar problemas, no qual a filosofia é um caminho de
práticas que jamais se completam. Aprender a coabitar problemas
pressupõe que o sujeito esteja em uma relação viva com seu presente, ou
seja, constitui um modo de estar atento ao que se passa consigo e em seu
modo de agir ético em relação ao mundo e aos outros.
E nesse real da filosofia como coabitação problematizadora nas
práticas demanda que a atenção ao presente produza a desaprendizagem
das práticas arbitrárias para que, então, novas práticas possam ser
construídas. O coabitar problemas como um exercício de si, uma relação
inquietante consigo, com seu modo de ser, pensar e agir. Por isso,
afirmamos o exercício de si como modo de vida filosófico, pois
entendemos que ter uma atitude inquietante nas práticas é um modo de
exercer a filosofia como um coabitar problemas.
Já no ensino como transmissão do conhecimento a ênfase está na
reprodução da representação da verdade, o que tem consequência para a
relação professor-aluno, pois enquanto o primeiro detém o conhecimento
a ser transmitido, o segundo está em uma situação de ignorância passiva.
Trata-se de um processo de transformação apenas do aluno, da passagem
do não-saber para um estado de sabedoria. Nesse registro, se está mais
preocupado com a questão técnica de ensinar do que com a experiência
como aprendizagem, ou seja, mais com a reprodução conceitual da história
da filosofia do que com a aprendizagem como processo de coabitar
problemas que coloca tanto professor e aluno como a própria filosofia em
devir.
176
De modo semelhante, Pierre Hadot
36
(2014, p. 336-337)
questiona a construção de um discurso filosófico separado da vida.
Descreve que os filósofos antigos não consideravam como fazer filosófico
o discurso tomado apenas em sua estrutura formal, abstrata e inteligível.
Os gregos distinguiam dois sentidos da palavra discurso (logos): um, que é
o discurso formal e abstrato, objeto de grande parte dos estudos modernos
da história da filosofia; e o outro, o discurso que se dirige ao discípulo ou
a si mesmo em um contexto existencial, por meio dos exercícios espirituais.
O autor alerta para o perigo da filosofia ser abordada apenas sob o primeiro
aspecto. “Pode-se dizer que reside aí o perigo da filosofia: isolar-se no
universo seguro dos conceitos e do discurso em vez de ultrapassar o
discurso para se engajar no risco da transformação radical de si” (HADOT,
2014, p. 337).
Hadot (2014) ainda destaca que esse perigo tem estado presente na
história da filosofia quando se tem privilegiado a filosofia apenas como
discurso abstrato e não como modo de vida. Em outro momento, Hadot
(1999) aponta que todas as escolas da filosofia antiga já denunciavam o
perigo de um discurso filosófico que se satisfaz por si mesmo, sem estar de
acordo com um modo de vida filosófico. O discurso deve ser inspirado e
animado pela vida. “Não há discurso que mereça ser denominado
filosófico se está separado da vida filosófica; não há vida filosófica se não
está estreitamente vinculada ao discurso filosófico. Aí, contudo, reside o
36
Pierre Hadot (1922-2010) foi um filósofo francês que teve uma influência significativa na concepção
da filosofia antiga de Foucault. Segundo Castro (2009, p. 198), Foucault se interessa principalmente pela
obra Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga de Hadot, sendo que ambos consideram as técnicas si como
noção essencial para a leitura da filosofia antiga. No entanto, Hadot (2014, p. 275s) admite várias
divergências com Foucault e lamenta que o diálogo tenha sido interrompido com a morte de Foucault.
Contudo, por não ser o foco desse trabalho, não se abordará as divergências, mas apenas destacar que
ambas as leituras resgatam na filosofia antiga, uma característica negligenciada pela história da filosofia:
a filosofia como um modo de vida.
177
perigo inerente à vida filosófica: a ambiguidade do discurso filosófico”
(HADOT, 1999, p. 251).
Em um sentido menos histórico e mais problematizador, Sébastien
Charbonnier (2009) em Deleuze Pédagogue reflete sobre a aprendizagem
em filosofia e sobre o lugar do pensamento na aprendizagem, aponta
algumas práticas que se deve evitar no ensino de filosofia, entre elas:
primeiro preconceito a evitar é a imagem abstrata da filosofia. Segundo o
autor o ensino permanece abstrato quando não situa o pensamento nas
condições concretas dos problemas em que estão situados, tornando-se
apenas meras opiniões e fazendo da aula de filosofia uma das principais
matrizes do relativismo, no qual os alunos são encorajados à ideia de que
cada um pode pensar o que quiser; segundo preconceito a evitar é de que
a filosofia seria uma reflexão sobre determinada área, como filosofia da
ciência, filosofia da arte, etc. Para o autor, este tipo de pensamento já
presente entre professores e estudantes transmite uma imagem de
superioridade da filosofia e, ao contrário, “ninguém precisa do filósofo para
lhe dizer o que pensar e sobre o que fazer” (CHARBONNIER, 2009, p.
48, tradução nossa).
Segundo Charbonnier (2009) outra atitude se a evitar é a de que
muitas vezes o ensino se limita à questão de como transmitir ao aluno o
desejo pelo saber. Questão mal formulada, diz o autor, antes é preciso se
questionar: como fazer acontecer o pensamento? Passar do interesse criado
por uma força externa (arbitrária e autoritária) da primeira pergunta, para
o interesse que surge pela força do pensamento. “O pensamento não é nada
sem algo que o força a pensar, que faz violência ao pensamento”
(CHARBONNIER, 2009, p. 29, tradução nossa), isso porque, o que nos
força a pensar é o caráter fortuito do encontro.
178
Para Charbonnier (2009) Deleuze a partir da questão “O que
significa pensar?” desenvolve a noção de encontro como um elemento
importante para que o pensamento aconteça. Em Deleuze, o encontro se
dá na relação que estabelecemos com as coisas, por exemplo, uma pintura
nos afeta produzindo um signo. E esse signo passa a ser o sentido singular
da nossa relação com as coisas. “O encontro é o que garante o desequilíbrio
permanente do pensamento através das novas dificuldades que suscita”
(CHARBONNIER, 2009, p. 50, tradução nossa). Desse modo, o caráter
fortuito do encontro é o que nos força a pensar e ao provocar a violência
no pensamento o coloca em um permanente movimento de diferenciação.
Para Charbonnier (2009) não se trata de questão de desejo, pois o
pensamento só pode acontecer se ele é interessante. Esse interesse não é
uma escolha pessoal, mas algo que surge e me força a pensar, um encontro
fortuito com o problema. O interesse nasce do problema e deve ser
considerado como o início comum da filosofia. Para o autor,
tradicionalmente o conhecimento foi entendido como desinteressado,
sendo necessário um interesse externo e arbitrário para criar o desejo do
aluno para o saber. Por isso, é preciso se questionar: como fazer acontecer
o pensamento? O encontro com o problema é que cria as condições para
forçar a pensar e gera o interesse para se fazer tal experiência, isso é o
“coração do problema da aprendizagem(CHARBONNIER, 2009, p. 26,
tradução nossa).
Deste modo, a perspectiva do ensino de filosofia descrita por
Charbonnier deve ser a da problematização do pensamento, no qual na
aprendizagem não se busca um resultado objetivo e que possa ser medido
pelo professor, mas um saber que se produz como signo, onde cada aluno,
na singularidade da relação com os problemas, possa criar diferentes
sentidos. Enfim, para o autor deve-se apropriar da filosofia como um tipo
de pensamento que por meio da problematização do concreto permite ao
179
pensamento permanecer vivo. “O concreto é necessário para todo
pensamento vivo, na medida em que ele impede o pensamento de parar e
não cessar de se realimentar nas situações-problemas” (CHARBONNIER,
2009, p. 50-51, tradução nossa).
Nessa abordagem do ensino de filosofia, observamos que do
mesmo modo como ocorre no quadro de Magritte, as concepções de
filosofia, em que predominam a história da filosofia como uma transmissão
técnica do conteúdo, conduzem a construção de uma determinada imagem
da filosofia que além de normatizar a interpretação do mundo e de si
mesmo por um parâmetro de verdade, não permitem que a filosofia se
realize como uma problematização de si. Nessa tradição da filosofia como
analítica da verdade, o ensino de filosofia tem sido construído como
capacidade crítica de julgar o verdadeiro, tornando-se a regra e a
representação criada a partir de condições universais e necessárias, aos
moldes do conhecimento científico. Para Charbonnier (2009) esse modo
de proceder coloca “falsos problemas”, isto porque, os problemas tornam-
se apenas especulações de uma resposta que trará uma representação da
verdade e, que também será usada como parâmetro para outros problemas.
Para Foucault na modernidade a relação estrutural entre sujeito e
verdade se estabelece por condições internas ao conhecimento para se ter
acesso à verdade, como: “condições formais, condições objetivas, regras
formais do método, estrutura do objeto a conhecer” (FOUCAULT,
2004a, p. 22). Segundo Carvalho (2014) nesse procedimento o “[...]
sujeito apenas reconhece a verdade tal como vai aces-la por seus atos de
conhecimento” e que “essa relação intrínseca do conhecimento não exige
nada dele, a não ser conhecer e acessar a verdade” (CARVALHO, 2014,
p. 7). Nesse processo, há uma legitimação do saber pela eficiência de
produzir respostas, o que faz com que o ensino da filosofia torna-se um
180
saber técnico quando se limita a transmitir um tipo de conhecimento em
que o objetivo é (re)conhecer a forma e o conteúdo de determinado
pensamento.
A filosofia como problematização das práticas de si
A partir dessa demarcação crítica, desenvolvemos outro
movimento, o qual é conduzido pela seguinte questão: como pensar o
ensino de filosofia como problema filosófico? A pergunta conduz a pensar
o ensino de filosofia de dentro da própria filosofia, por uma maneira de
problematização que tem por objetivo afastar-se do modo de pensar da
analítica da verdade. Em outra perspectiva, o ensino de filosofia passa a ser
um problema filosófico quando faz da problematização do pensamento o
seu fazer filosófico. Nessa perspectiva, Silvio Gallo (2002) a partir da
concepção de filosofia de Deleuze e Guattari aponta dentre três desafios
para o exercício da filosofia no ensino médio, sendo um deles (os outros
dois são: a luta contra a opinião e o diálogo com os outros saberes) que o
ensino da filosofia deve ser tratado filosoficamente e conclui: “o ensino de
filosofia será filosófico, ou não será de forma alguma” (GALLO, 2002, p.
208).
Desse modo, fazer do ensino de filosofia um problema filosófico é
praticar um exercício do pensamento em que o resultado não é um
produto, um pensamento pronto e acabado, mas deve tornar-se uma
atividade de interrogação crítica em que o fundamental é próprio
movimento de dessubjetivação na filosofia. Assim, desloca-se a
interrogação abstrata do ensino de filosofia, atualmente restrito às questões
de conteúdo e método que são próprias das preocupações de ensino-
aprendizagem, para a problematização da filosofia em que se produz uma
181
experiência do pensamento como um modo de desprender-se de si
mesmo (FOUCAULT, 2012b, p. 241).
Sobre isso, Foucault afirma:
Mas o que é filosofia hoje em dia quero dizer, a atividade filosófica
senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento?
Senão consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível
pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? [...] é seu
direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento,
através do exercício de um saber que lhe é estranho. O “ensaio” que
é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da
verdade [...] é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda
hoje o que era outrora, ou seja, uma “ascese”, um exercício de si, no
pensamento (FOUCAULT, 2014b, p. 14).
Compreender a filosofia como um ensaio significa que não se trata
de produzir um resultado absoluto em que o pensamento se apresenta
como uma síntese unificadora, mas enquanto exercício de si e de seu
pensamento em relação ao que lhe é estranho. Em outras palavras, é
movimentando-se em direção ao que dá a pensar, no encontro com o
acontecimento que é possível fazer do pensamento uma experiência-
ensaio, algo sempre provisório e inacabado. Ensaiar é desprender-se de si e
modificar as relações de poder-verdade que nos constituem. Assim, a
crítica ao próprio saber que se quer praticar é um modo de estar em
movimento, como afirma:
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a
aquisição dos conhecimentos, e não, de certa maneira, e tanto quanto
possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na
vida em que a questão de saber se se pode pensar diferentemente do
182
que se pensa, e perceber diferentemente da que se vê, é indispensável
para continuar a olhar ou a refletir (FOUCAULT, 2014b, p. 13).
De modo semelhante, podemos perguntar: de que valeria o ensino
de filosofia nas escolas, se tivesse apenas por função a aquisição,
transmissão e reprodução do conhecimento? Nessa perspectiva, o autor
atribui outro sentido para se fazer a história da filosofia, a qual deve se
realizar como um exercício problematizador que tem por objetivo definir
as condições nas quais o ser humano ‘problematiza’ o que ele é, o que faz
e o mundo em que vive” (FOUCAULT, 2012a, p. 193). Assim, esse modo
problematizador define a concepção de uma filosofia como “história do
pensamento” e não uma história dos comportamentos ou das
representações, isto porque o objetivo é realizar uma história da verdade
que analisa “[...] não os comportamentos, nem as ideias, não as sociedades,
nem suas ideologias, mas as problematizações através das quais o ser se dá
como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas
problematizações se formam”. (FOUCAULT, 2014b, p. 17). E mais
adiante, em relação ao seu projeto ético, afirma realizar “[...] uma história
das problematizações éticas, feitas a partir das práticas de si”.
(FOUCAULT, 2014b, p. 19). Dessa forma, o modo como Foucault vai
pensar esse exercício de diferenciação ética será definindo a
problematização das práticas de si como o modo próprio de se praticar
filosofia.
Ao relacionar o movimento da problematização com as práticas de
si, Foucault indica que as práticas não são um fim em si mesmas, isto
porque, no jogo de sujeição e resistência, ou são práticas que produzem ao
assujeitamento ou são práticas da liberdade por meio do exercício crítico
de si. Nesse sentido, o modo como Foucault compreendia a atitude crítica
estava ligada a constituição de um êthos como forma de não ser governado
183
por práticas precisas. E segundo Foucault (2012a) o modo como os gregos
problematizavam sua liberdade por meio de um trabalho de si é a maneira
como pensaram a formação ética, ou seja, através da problematização das
práticas de si é que se constitui o êthos. Por isso, para o autor a tarefa
essencial é o de analisar como uma experiência torna-se problemática,
como afirma:
A história do pensamento é a análise do modo como um campo de
experiência não problemático, ou um conjunto de práticas, que foram
aceites sem questionar, que eram familiares e "silenciosos", fora da
discussão, se torna um problema, suscita discussão e debate, incita
novas reações, e induz uma crise no comportamento, hábitos, práticas
e instituições, anteriormente silencioso (FOUCAULT, 2001b, p. 74,
tradução nossa).
Desse modo, a tarefa do pensamento é questionar: como as práticas
se tornam um problema? Desse modo, a problematização das experiências
e das práticas não questionadas conduz a uma nova problematização em
que seja possível a formação de uma vontade política de agir
diferentemente por meio de outras práticas (FOUCAULT, 2012b, p.
243). no texto Une histoire de la manière dont les choses font problème”,
Foucault (2014c) afirma que o seu interesse é realizar uma história das
problematizações, “a história da maneira como as coisas se tornam
problemas” (FOUCAULT, 2014c, p. 107, tradução nossa).
Já no texto O cuidado com a verdade”, define:
Problematização não quer dizer representação de um objeto
preexistente, nem tampouco a criação pelo discurso de um objeto que
não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que
faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui
como objeto para o pensamento (seja sob a forma dar reflexão moral,
184
do conhecimento científico, da análise política etc.). (FOUCAULT,
2012b, p. 236).
Desse modo, a problematização não deve ser associada a um
processo de conhecimento em que se tem como resultado a representação
de um objeto, mas trata-se de um modo de fazer e pensar que interroga
sobre as familiaridades aceitas em nossas práticas. Enquanto a
problematização de um saber do objeto é da ordem das coisas, a
problematização das práticas é da ordem das atitudes, da crítica às relações
de poder no jogo da verdade, ou seja, do questionamento do conjunto
regrado dos modos de agir e pensar. Com a problematização das práticas a
constituição ética se dá no horizonte de uma história da subjetividade, em
que a subjetividade enquanto relação consigo se constrói por meio das
práticas e não simplesmente em um “si” como sujeito soberano.
Em outro texto, “Polêmica, política e problematizações”, Foucault
(2012c) afirma que o que chama de problematizações em uma história do
pensamento é a análise crítica que procura ver como as diferentes soluções
construídas decorrem de uma forma específica de problematização. O
trabalho de uma história do pensamento é diagnosticar a forma geral de
problematização que tornou possível as diferentes soluções. E ainda, para
que haja uma efetiva problematização pelo pensamento é preciso que certo
número de fatores tenham se tornado incerto, que tenham perdido sua
familiaridade e suscitado dificuldades, sendo que estes elementos decorrem
de processos sociais, econômicos e políticos. Isto quer dizer que é a partir
da interrogação crítica das práticas que um campo problemático surge para
o pensamento.
A partir desse registro, assumimos a problematização como modo
de praticar a filosofia e como fio condutor desse trabalho. Isso exige uma
atitude de contraposição à ideia da transmissão da verdade, a qual implica
185
em uma busca metódica para resolver problemas. Ao contrário, na
problematização, coabitar os problemas não implica necessariamente em
dar respostas, mas em um movimento de desprender-se de si mesmo.
Colocar-se em um exercício de problematização das práticas lança o
indivíduo em um jogo agonístico de constituição do êthos, em que não é
possível distanciar-se de modo abstrato.
A filosofia como experiência problematizadora é fundamental em
Foucault. Em 1970, no texto A Armadilha de Vincennes
37
Foucault
(2011b) descreve sua experiência com o ensino de filosofia. Afirma que na
França a tarefa do professor de filosofia estava ligada a instrução pública,
ensinar uma filosofia da consciência, do juízo e da liberdade, uma liberdade
do pensamento e, como crítica dos limites e fundamentos do saber. No
entanto, novos problemas aparecem para a filosofia e, então, se deve
perguntar pela “apropriação e distribuição do saber”, ou seja, trata-se de
problematizar o modo como se produz o saber na sociedade. Com isso,
Foucault desenvolve um modo de fazer filosofia que se contrapõe a função
tradicional da filosofia. Sobre o seu modo de trabalhar em Vincennes,
Foucault descreve sobre dois modos de “hipocrisia possíveis” que
recusaram como prática da filosofia: uma, que consiste em modificar as
formas pedagógicas do ensino, sem nada mudar no conteúdo; e a outra,
seria modificar o conteúdo, mantendo a forma tradicional do ensino. Em
37
Nesse texto de 1970, Foucault enquanto responsável pelo Departamento de Filosofia, responde ao
ministro da Educação Nacional (Olivier Guichard), o qual tinha como intenção não conceder
licenciatura aos estudantes de filosofia de Vincennes, justificando que o conteúdo do ensino de filosofia
era demasiado particular e especializado e não prepara o estudante para o ensino da filosofia. Para
Foucault, o Sr. Guichard finge defender a filosofia, contudo, “na verdade, ele protege o velho
funcionamento da cadeira de filosofia contra uma maneira de formular problemas que a torna
impossível” (FOUCAULT, 2011b, p. 189, grifo nosso). Já em outro texto, “Resposta a Derrida” de 1972,
Foucault (2002) aponta que na França três postulados formam a “armadura do ensino de filosofia”: como
crítica universal a todo saber; como injunção moral que só se desperta com sua própria luz e como
perpétua reduplicação dela própria e sem relação a nenhuma exterioridade. E que se esforçou para analisar
os acontecimentos que se produzem na ordem do saber (FOUCAULT, 2002, p. 271).
186
vez disso, praticaram uma filosofia como uma maneira de formular
problemas em que a “experiência de uma liberdade” possa se dar através
da problematização de dois grandes domínios do ensino: um dedicado à
análise política da sociedade e, o outro, a análise de certo número de
domínios científicos.
Em sua experiência de Vincennes pode-se observar que Foucault
desloca o tradicional modo de pensar o ensino da filosofia pelas
preocupações cnico-pedagógicas do conteúdo e do método, para pensar
outro modo de ensinar filosofia, a qual se realiza como uma maneira de
problematizar diferentes domínios. Atitude que leva a problematizar o
próprio sentido do ensino de filosofia que se quer praticar. A breve
descrição da experiência de Foucault, sobre o ensino de filosofia em
Vincennes, pode ser melhor compreendida quando observamos outras
passagens em que o autor desenvolve seu modo de conceber a filosofia.
Já no texto A cena da filosofia, influenciado por Nietzsche,
Foucault (2011a) propõe relacionar filosofia ao teatro e ao
acontecimento
38
. Para Foucault trata-se de retomar pelo viés da filosofia
aquilo que o teatro se ocupa: o acontecimento. “O teatro apreende o
acontecimento e o põe em cena”. O teatro em seu modo de proceder repete
o acontecimento e, Foucault procura “apreender qual é o acontecimento
38
Segundo Castro (2009, p. 24-27) Foucault se serve do conceito de acontecimento tanto para
caracterizar sua análise da arqueologia, como para sua concepção geral da atividade filosófica. É sob esse
segundo registro que nos situamos, a partir de Foucault, para desenvolver essa noção, a qual deve ser
pensada a partir de duas perspectivas: enquanto influenciado por Nietzsche, o acontecimento deve ser
compreendido “[...] como uma relação de forças que se inverte [...]” (FOUCAULT, 2005a, p. 272), ou
ainda, quando afirma que “[...] Nietzsche foi o primeiro a definir a filosofia como sendo a atividade que
serve para sabermos o que acontece e o que acontece agora. Em outras palavras, somos atravessados por
processos, movimentos, forças. Não conhecemos esses processos e essas forças e o papel do filosofo é, sem
dúvida, diagnosticar essas forças, diagnosticar a atualidade” (FOUCAULT, 2011a, p. 225). Para
Foucault, a influência de Nietzsche também está na ideia de fazer da filosofia uma “[...] espécie de filosofia
sempre em suspenso [...]” (FOUCAULT, 2005a, p. 46); já influenciado por Kant, o acontecimento se
entrelaça com o conceito de atualidade, em que a função da filosofia é diagnosticar o que nós acontece.
187
sob cujo signo nascemos e qual o que continua a nos atravessar”. Assim, é
preciso estar atento aos acontecimentos não como uma novidade externa
que pode ocorrer, mas como movimento que se dobra em si é capaz de
diagnosticar uma relação de força que nos atravessa. Por isso, a filosofia
não deve mais perguntar sobre “o que é?”, mas, sim, “quem somos e o que
está acontecendo?”. Trata-se de uma “filosofia do presente, filosofia do
acontecimento, filosofia do que acontece” (FOUCAULT, 2011a, p. 225).
No acontecimento há o encontro com o inusitado que nos
desassossega e nos provoca a mudança. A concepção de “filosofia do
acontecimento” nos interpela a pensar o ensino de filosofia como um
diagnóstico da relação de forças que nos atravessa e isso deve levar a
problematização do próprio sentido da filosofia que se quer praticar.
Atividade que para Foucault se deve dar pela problematização de nossa
relação com a verdade. Por isso afirma:
É filosofia o movimento pelo qual, não sem esforços, hesitações, sonhos
e ilusões, nos separamos daquilo que é adquirido como verdadeiro, e
buscamos outras regras do jogo. É filosofia o deslocamento e a
transformação dos parâmetros de pensamento, a modificação dos
valores recebidos e todo o trabalho que se faz para pensar de outra
maneira, para fazer outra coisa, para tornar-se diferente do que se é
(FOUCAULT, 2005a, p. 305, grifos nosso).
Nessa citação, Foucault compreende a filosofia como o movimento
de problematização do presente, mas sempre em uma análise histórica dos
saberes e poderes que nos constituem por uma verdade. O diagnóstico do
presente se faz pela abordagem crítica das relações históricas que nos
constituem e instigam a liberdade em novas maneiras de pensar. A filosofia
é uma maneira permanente de modificar o pensamento e a si mesmo.
Pensar diferente do que se pensa, eis o que faz do ensino da filosofia um
188
problema filosófico sempre atual. E Foucault questiona como devemos nos
conduzir nessa relação com a verdade e afirma que se deve encontrar “[...]
um tom novo, uma nova maneira de olhar, uma outra maneira de fazer
[...]”, nisso consiste “a própria vida da filosofia” (FOUCAULT, 2005a, p.
306).
Em sua relação com a filosofia, Foucault declara em alguns
momentos que o que faz não é filosofia, mas isso para diferenciar o seu
trabalho do modo como tradicionalmente se faz história da filosofia. Nessa
postura, Foucault assume, a partir de Nietzsche, outra maneira de praticar
a filosofia, como afirma:
O que estou fazendo tem nada a ver com a filosofia é muito possível,
especialmente desde que, pelo menos desde Nietzsche, a filosofia tem
a tarefa de diagnosticar e não tenta dizer uma verdade que pode ser
mantida para todos e por todo o tempo. Olhando para diagnosticar,
fazer um diagnóstico desta: para dizer o que somos hoje e o que
significa hoje para dizer o que dizemos. Este trabalho de escavação
debaixo dos nossos pés desde Nietzsche caracteriza o pensamento
contemporâneo, e, nesse sentido, posso me declarar um filósofo
(FOUCAULT, 1994b, p. 606, tradução nossa).
E se compreendermos a filosofia como um modo de deslocar o
pensamento, então vemos que Foucault pratica em sua própria filosofia
um deslocamento que potencializa um modo de filosofar ético-político
como transformação do presente.
Em outro momento, no texto intitulado Jean Hyppolite. 1907-
1968”
39
, chega a afirmar: “a filosofia o existe” (FOUCAULT, 2005a, p.
39
Foucault escreve este texto em homenagem a Jean Hyppolite, destacando sua influência no modo de
se conceber a filosofia. Para Hyppolite não se trata de fazer a história da filosofia, mas a “história do
pensamento filosófico”, entendendo pensamento filosófico como: aquilo que ultrapassa o próprio sistema
189
154). Esta afirmação deve ser entendida no sentido de que a filosofia não
é algo pronto e acabado, não é aquilo que se pode apropriar objetivamente
de um texto ou discurso e, então, transmiti-la. Ora se a filosofia não existe,
não há nada a ser ensinado em filosofia. Em outras palavras, não é
suficiente apenas a tarefa de ensiná-la, antes, a filosofia é o exercício do
pensamento em sua “torção”, “desdobramento”, “saída” e “nova apreensão
de si”, enfim, em um movimento de “incompletude” (FOUCAULT,
2005a, p. 154). Isto quer dizer que é preciso vivenciá-la em sua dispersão.
E conclui o texto:
Ele [Jean Hyppolite] nos ensinou finalmente que o pensamento
filosófico é uma prática incessante; que ele é uma certa maneira de
colocar em ação a não-filosofia, mas permanecendo sempre bem
próximo dela, lá onde ele se liga a existência. Com ele, é preciso lembrar
sem cessar que, “se a teoria é cinzenta, é verde a árvore de ouro da vida”
(FOUCAULT, 2005a, p. 154, nossa inclusão).
Para Foucault uma maneira de intensificar esse movimento de
incompletude é fazer da filosofia uma atividade permanente de
problematização da existência. Isso quer dizer que, não se trata de ensinar
um conteúdo, mas uma maneira de formular problemasque faz com que
a filosofia coloque em prática sua relação com a não-filosofia. A filosofia
por si mesma é um discurso vazio, somente em sua relação com a não-
filosofia que ela encontra o seu real. Em outras palavras, a filosofia como
prática problematizadora é uma tarefa atenta ao que se passa na vida, onde
o não-filosófico se dá como acontecimento, ou seja, na maneira como
ensaiamos a criação de novos modos de vida praticamos aquilo que ainda
e mantém uma relação de incompletude (“relação ao mesmo de troca e de falta”) com a própria filosofia,
também uma relação próxima com a não-filosofia e como saída (desdobramento) e uma nova apreensão
de si.
190
não foi sistematizado por um saber filosófico. É em sua relação com a não-
filosofia, com o acontecimento-diferença, que a filosofia potencializa seu
êthos.
Por isso, não faz sentido questões sobre o ensino de filosofia que se
restringem a uma maneira de transmiti-la, processo esse restrito a uma
abordagem de ensino-aprendizagem, ao invés disso, como um modo de
colocar problemas à filosofia se realiza como um movimento de
dessubjetivação. A experiência do pensamento enquanto processo de
deslocamento de si mesmo contribui para o exercício de coabitar em
filosofia, em que o que está em jogo é o modo de vida a ser inventado.
Diante de tudo isso, ainda se faz necessário perguntar: de que
maneira se pode praticar a tarefa filosófica do exercício de si? Foucault
(2005a) no texto “O filósofo Mascarado”, apresenta uma ideia do que é
preciso fazer: “sonho com uma nova era da curiosidade”. E acrescenta, a
curiosidade foi associada a “futilidade”, “estigmatizada” pelo cristianismo,
pela filosofia e a ciência. No entanto, essa palavra lhe agrada, porque:
sugere algo diferente; evoca inquietação; sentido do algo que jamais se
imobiliza; disposição para o estranho e singular; uma obstinação em nos
desfazermos de nossas familiaridadese de olhar de maneira diferente as
mesmas coisas; uma paixão de aprender o que se passa (FOUCAULT,
2005a, p. 304). Em outra passagem, Foucault afirma que: “[...] a espécie
de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação:
não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que
permite separar-se de si mesmo” (FOUCAULT, 2014b, p. 13). Desse
modo, compreendemos que a tarefa filosófica do exercício de si precisa se
realizar como uma prática da curiosidade que cria a paixão de aprender o
que se passa e possibilita pensar o aprender em filosofia como uma
191
permanente inquietação na problematização das práticas e que nos move
na incompletude do desprender-se de si mesmo”.
Em um texto intitulado “Conversa com Werner Schroeter”,
Foucault (2011a) ao analisar uma obra de Schroeter diferencia paixão e
amor. Afirma que o amor é menos ativo que a paixão, porque supõe
alguém que seja titular desse amor, enquanto a paixão é algo que circula
entre seus parceiros. E define paixão como:
Um estado, alguma coisa que lhe cai em cima, se apodera de você, o
agarro nos ombros, não conhece pausa, não tem origem. [...] Na paixão
não se é cego. Simplesmente, nas situações de paixão, não somos nós
mesmos. Não tem mais sentido ser si mesmo. Vemos as coisas
completamente diferente (FOUCAULT, 2011a, p. 102-103, grifo
nosso).
Desse modo, a noção de paixão contribui para pensar uma
educação que se realize como “uma paixão de aprender o que se passa”,
onde se produz certo encantamento que não está relacionado com a
transmissão, mas com a transformação de si. Paixão é um modo de ser
afetado pelo acontecimento.
Um diagnóstico da filosofia na educação tecnológica:
deslocamento do ensino objetivo para o (des)aprender
Nosso objetivo no capítulo anterior, através da descrição da noção
biopolítica de capital humano, foi o de diagnosticar a produção de uma
subjetividade assujeitada na educação tecnológica, em que seus
pressupostos formativos funcionam como construção de um sujeito
produtivo economicamente. Agora, desdobramos outra forma de
produção da subjetividade analisando o modo como são estruturados os
192
procedimentos políticos-pedagógicos da educação tecnológica. Com isso,
busca-se diagnosticar como o ensino-aprendizagem é conduzido por um
processo objetivo que determina a formação de uma subjetividade para
adequar-se ao modelo tecnológico vigente na sociedade. Procedimento
técnico que vigora no ensino em geral, mas que se intensifica na educação
tecnológica em razão da formação de competências técnicas em detrimento
da formação de um autogoverno como prática da liberdade.
O exercício da filosofia no contexto da educação tecnológica de
nível médio é o lugar em que inflexionamos para pensá-la. Nosso
entendimento é de que o ensino de filosofia no ensino médio técnico ao
não conduzir a uma experiência problematizadora de si mesmo não
permite que o indivíduo se construa de forma livre. Eno, potencializando
nossa questão norteadora, perguntamos: como praticar a filosofia como
exercício de si no ensino médio técnico, se nesse ambiente funciona a
produção de uma subjetividade eficiente que impede que seus atores se
coloquem na tarefa filosófica da transformação de si?
Com a proposta de pensar o ensino de filosofia no ensino médio
técnico nos Institutos Federais de Educação, como um primeiro
deslocamento, queremos contestar certo modo de colocar a filosofia que é
aquela que se ocupa com determinado fim, ou seja, como um produto a
ser alcançado, como por exemplo, a ideia muito presente nos planos de
ensino de filosofia que se deve formar um sujeito crítico. Com isso, não se
quer negar que a filosofia deva proporcionar um pensamento crítico.
Antes, deve-se questionar: o que entendemos por crítica? E qual crítica
devemos praticar? Desse modo, buscamos problematizar certo modo de se
conceber a filosofia crítica, em que o modo como se entende a crítica
geralmente está associada à formação de um pensamento racional que tem
193
como capacidade o juízo sobre as coisas e como decorrência a representação
do verdadeiro e do falso.
A crítica como julgamento da verdade é fruto de uma determinada
tradição crítica do pensamento que é analítica da verdade, em que se
concebe a avaliação das condições do conhecimento como requisito para
obter o conhecimento verdadeiro e como conquista da autonomia do
sujeito. Trata-se de uma concepção da crítica apenas em seu uso técnico,
ou seja, com a formação de um sujeito crítico deseja-se a produção das
competências de um indivíduo emancipado. E nisso, por meio de uma
representação da verdade se produz um determinado tipo de sujeito
governado. No entanto, a partir da leitura de Foucault, entende-se a crítica
como uma atitude que implica no próprio deslocamento do indivíduo em
um procedimento que tem por objetivo não o homem realizado em sua
consciência de si, mas como atitude de “como não ser governado” e que
permite o deslocamento do indivíduo nas relações de força. Ainda,
Foucault (2005a, p. 302) afirma, no texto de 1980, que é preciso
pensarmos em uma crítica que não procuraria julgar, que “multiplicaria
não os julgamentos, mas os sinais de existência”.
A partir desse exemplo do uso da crítica, pensamos que a
experiência fundamental a ser problematizada no ensino de filosofia,
principalmente em um ensino médio técnico, deve ser o da
problematização do modo como a filosofia é praticada em um determinado
uso técnica ligado a formas de racionalidade que produzem subjetividades.
Postura que nos leva a pensar o ensino da filosofia não mais como
preparação para uma objetividade, seja da verdade ou da racionalidade,
mas como uma experiência em que o que está em jogo é a própria
constituição de si.
194
Segundo Gelamo (2009) a filosofia torna-se um “saber técnico”
quando transmite um tipo de conhecimento em que o objetivo é
(re)conhecer a forma e o conteúdo de determinado pensamento. E isso tem
levado ao empobrecimento da experiência da vida no ensino da filosofia.
Em outro texto, Gelamo (2010a) ao tratar da filosofia como experiência
ligada à vida e não à objetividade, afirma: “[...] o ensino da filosofia
precisaria se dar como uma experiência de pensar e não como um vínculo
às regras e às objetividades capazes de produzir um pensamento verdadeiro
(GELAMO, 2010a, p. 397).
O ensino objetivo, alicerçado em técnicas de produção de
resultado, tem como implicação moral a normatização do comportamento,
fazendo com que o indivíduo se construa tendo como parâmetro a verdade
a ser conquistada no final do processo. Isso significa dizer, que nesse
processo de ensino prevalece o reconhecimento de si no conteúdo, sem
espaço para a problematização de si. Isso implica na criação de uma
subjetividade em que seu comportamento moral não se constrói pela
problematização do caminho percorrido, mas por modelos de verdade que
tornam o indivíduo fechado aos problemas do seu presente e de si mesmo.
A partir dessa perspectiva, o ensino de filosofia assume um papel
bem definido como elemento técnico e moral, ou seja, a filosofia é
direcionada para o desenvolvimento de determinadas competências críticas
que visam atender a uma demanda político-econômica que invoca a
formação de um indivíduo emancipado. Contudo, é preciso pensar a
filosofia como um modo de se desvincular da formação de determinadas
capacidades e de suas relações de poder.
Em contraposição a esse modelo técnico-moral de praticar a
filosofia, a partir da ideia apresentada por Foucault (2012b, p. 241)
entendemos ser necessário pensar o ensino de filosofia como um modo de
195
“desprender-se de si”, o que contribui para a formação de um êthos
envolvido pelo devir do seu modo de pensar e agir. Nisso, o mais
importante na formação não é a conquista de resultados, mas as
experiências realizadas durante o caminho percorrido, ou seja, isso significa
estar atento não aos “ganhos” de um processo, mas, sim, aos desvios e
tropeços, imprecisões e erros que fazem parte de qualquer movimento do
pensamento e da vida. E, mais adiante, o autor francês acrescenta que essa
transformação de si deve ser um caminho intenso na relação consigo, como
expressa: “gostaria que fosse uma elaboração de si por si mesmo, uma
transformação estudiosa, uma modificação lenta e árdua através da
preocupação com a verdade” (FOUCAULT, 2012b, p. 242). A verdade
em Foucault deve ser entendida como um processo de subjetivação, então
essa preocupação com a verdade não é no sentido da busca por uma
verdade, mas como atenção as relações de poder-saber que nos constituem.
Desse modo, consideramos que o desprender-se de si proposto por
Foucault pode ser pensado por meio de um processo de ensino em que a
filosofia se realiza como um (des)aprender
40
. Compreendemos o
(des)aprender em filosofia como o processo do pensamento que Foucault
e Deleuze chamam de dobra. Segundo Deleuze (2005) a dobra, embora
40
Nós situamos no mesmo registro de Gallo (2008), fomentando o deslocamento do ensino de filosofia
para o aprender em filosofia. “Mas, se queremos, ao contrário, investir no exercício da filosofia como
experiência do pensamento, com o trato com os conceitos, precisamos mudar o foco do ensino para o
aprendizado. Isto é, deslocar o processo educativo da filosofia do “ensinar a pensar”, foco serializante e
generalizante que parte do professor e de seu método para atingir coletivos de estudantes, para um
“aprender a pensar”, em que o foco esteja no processo singular de pensamento de cada um. E, para isto,
não há método” (GALLO, 2008, p. 73). Isto porque, o ensino enquanto reprodução do saber produz o
que Deleuze chama de “imagem dogmática do pensamento”; já o aprender, enquanto verbo coloca o
pensamento em movimento e conduz a singularidade da criação de problemas. Outro elemento
importante nesse processo é que a experiência de pensamento não é algo apenas intelectualizado, mas que
se dá também pelo modo como experimentamos e sentimos o pensamento. Segundo Deleuze (2005)
pensar é experimentar, é problematizar e uma maneira de afetar a si mesmo. Ou de maneira mais poética,
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) expressa: “Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer
um fruto é saber-lhe o sentido” (CAEIRO, s/d).
196
presente nos outros momentos do pensamento de Foucault, só encontra
seu lugar quando, retomando os gregos, pensará a dimensão da ética. Para
Foucault, os gregos inventaram a subjetividade quando dobraram a relação
de força do poder (lado de fora), como uma relação de força em si mesmo.
Sobre isso, Deleuze afirma que o que os gregos fizeram: “foi vergar o lado
de fora, em exercícios práticos. [...] uma relação de força consigo, um poder
de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si. [...] Eis o que fizeram os
gregos: dobraram a força, sem que ela deixasse de ser força” (DELEUZE,
2005, p. 108). Nesse sentido, o pensamento como dobra deve ser
entendido como uma atividade de subjetivação, isto significa, que não é
apenas uma relação com o dentro, mas que enquanto dobra do lado de
fora, a constituição de si se dá em uma relação de força com os poderes.
Dobrar o pensamento significa afetar-se pelas relações de força que
produzem o deslocamento de si.
Essa relação para consigo é também o modo como Foucault
(2004a) compreende a noção de epiméleia heaut no curso A
Hermenêutica do Sujeito. Ao entender essa noção como “uma atitude para
consigo, para com os outros, para com o mundo” afirma que nessa atitude
é preciso “converter o olhar” para si mesmo, estando atento ao que se passa
consigo. “O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao
que se pensa e o que se passa no pensamento” (FOUCAULT, 2004a, p.
14).
Foucault afirma que o sujeito ético é aquele que põe em jogo a si
mesmo e isso “[...] de modo algum é um exercício sobre o pensamento e
seu conteúdo. É um exercício pelo qual o sujeito se põe, pelo pensamento,
em uma determinada situação” (FOUCAULT, 2004a, p. 430). Assim, a
dobra constitui uma noção importante para pensar a relação consigo
mesmo em que o próprio pensamento é colocado como problema, pois o
197
que está em jogo é a transformação do pensamento e da experiência de vida
do indivíduo e não um saber abstrato sobre determinado assunto.
Nessa perspectiva, entendemos que o (des)aprender em filosofia é
um modo de relação consigo, é um modo de dobra-se, isto porque esse
modo de afetar-se pelas relações de força não acarretam apenas
aprendizado, mas também constante mudança em nossa forma de ser e
pensar. Se faz necessário pensar um (des)aprender em filosofia para
desformatar as formas de aprendizagem e se conduzir por um exercício da
experiência do pensamento em que o resultado é o próprio filosofar, como
permanente transformação de si. O desprender-se de si como
desaprendizagem constitui uma importante ferramenta para deslocar-se de
modos de pensar abstratos e dogmáticos, possibilitando abrir-se para novas
maneiras de se conceber a vida e o mundo.
Assim, a partir da leitura de Foucault compreendemos o aprender
em filosofia como uma experiência de pensamento que se dá pelo
deslocamento de si. Portanto, um (des)aprender. O autor francês tematiza
isso na filosofia dos estoicos e cínicos, na qual a prática da desaprendizagem
era algo essencial, pois “aprender as virtudes é desaprender os vícios”
(FOUCAULT, 2004a, p. 117). “Permita que teus olhos desaprendam”
(SÊNECA, s/d apud FOUCAULT, 2004a, p. 129). Em Sêneca trata-se de
correção-liberação (desaprendizagem) muito mais do que formação-saber
(ensino), onde a prática de si é o trabalho para nos libertar e desembaraçar
dos maus hábitos impostos do exterior. Assim, por correção-liberação
entendemos a (des)aprendizagem como a arte de corrigir os erros de
estratégia e intensificando-se em novos modos de conduta.
Praticar o (des)aprender em filosofia requer ir além do ensino como
transmissão, pois implica uma relação inquietante consigo no pensamento
e nas práticas. Foucault também entende que a atitude crítica que se
198
desenvolve na relação consigo se realiza pelas práticas de si, como afirma:
“[...] a prática de si tornar-se-á cada vez mais uma atividade crítica em
relação a si mesmo, ao seu mundo cultural, à vida dos outros”
(FOUCAULT, 2004a, p. 114). Para Foucault, essa crítica não está ligada
a formação-instrução, como no caso de Alcibíades que não dominava o
conhecimento para governar a si e aos outros, antes entende a crítica como
correção, em suas palavras: “tratava-se de corrigir mais que de instruir”
(FOUCAULT, 2004a, p. 155). A correção é entendida como uma crítica
que conduz a um novo direcionamento das regras de conduta como forma
de preparação do indivíduo diante dos acidentes e acontecimentos que
possam produzir-se. De modo que, no resumo do curso, relaciona a função
crítica da prática de si com o (des)aprender, como afirma: “desaprender
(de-discere) é uma das importantes tarefas da cultura de si”, o que permite
“desfazer-nos de todos os maus hábitos” (FOUCAULT, 2004a, p. 602).
Atitude também expressa por Alberto Caeiro em parte dos poemas:
Deste Modo ou Daquele Modo e O que Nós Vemos(s/d):
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me e ser
eu...
[...]
O essencial é saber ver.
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida),
Isso exige um estado profundo,
Uma aprendizagem de desaprender...
199
Alberto Caeiro expressa à necessidade do desaprender em várias
práticas consigo. No modo como o ensino é conduzido pela prática
reprodutora da memória. No modo como os sentidos estão anulados pelas
tintas. No modo de ver que não é apenas pela codificação representacional
do pensamento. Enfim, no modo como a relação consigo está elidido (alma
vestida).
Por isso, é preciso pensar o ensino de filosofia como o lugar de
conflito entre a prática de transmissão de saber objetivo e como modo de
desprender-se de si que conduz a liberdade no exercício da arte de viver.
No primeiro modo, a filosofia torna-se um procedimento técnico quando
busca o reconhecimento de si na produção da verdade e transmissão do
conteúdo abstrato, prática conduz ao empobrecimento da experiência de
si. A técnica é um modo de proceder que visa a economia de tempo, em
produzir com eficiência. O imediatismo da busca por resultados,
caraterístico de nossa modernidade tecnológica, leva o indivíduo a fuga de
si e a elisão dos problemas existências. E a filosofia torna-se um
procedimento técnico quando evita a problematização para priorizar a
conquista de resultados. Quando no ensino de filosofia se evita a
problematização de si, muitas vezes se acaba dando respostas prontas para
perguntas mal feitas. Por isso, é importante também estar atento ao modo
como se ensina filosofia, pois não é porque a filosofia carrega, pelo menos
na visão de senso comum, o status de formação de pensamento crítico, que
necessariamente conduzirá a isso.
Desse modo, o exercício de si como a tarefa filosófica no ensino
médio técnico desloca-se do modo tradicional de proceder no ensino de
filosofia, restrito muitas vezes a questões metodológicas e epistemológicas,
para pensar a prática filosófica como dimensão ética e política. Isto porque,
os conceitos da ontologia do presente e da estética da existência são
200
ferramentas que potencializam o fazer filosófico como um modo de
diagnóstico e transformação do presente. Enquanto dimensão ético-
política, a filosofia não é apenas uma questão de conhecimento, mas um
campo de intervenção permanente, ou seja, a filosofia é uma maneira de
intervenção em si mesmo e sobre o que nos constitui no presente. Esses
instrumentos possibilitam pensar a subjetividade como um exercício
crítico e constante de si mesmo, em que a liberdade seja buscada em uma
aprendizagem em filosofia que se realiza como experiência singular de
resistência e transformação de si.
Desse modo, a aprendizagem em filosofia pelas práticas constitui
um trabalho paciente de si em uma experiência como ensaio. Enquanto
exercício de si a filosofia é aprendizagem, pois ensaiar a vida por meio de
diferentes práticas implica em aprender e desaprender entendido como
acontecimento ético. A aprendizagem como um jogo ético em que
experimentamos nossa própria existência como prática da liberdade. Uma
aprendizagem do desprender-se de si, que por meio de um exercício de
estranhamento torna capaz de colocar a própria vida em jogo, para romper
com qualquer governo de assujeitamento de si.
Enfim, ao se conceber a filosofia como problematização das
práticas de si não se trata de colocar questões técnico-pedagógicos seja de
conteúdo e/ou de método que distanciam o indivíduo em um modo de
proceder abstrato, mas um problema filosófico que afeta a própria
existência.
201
É preciso coabitar outras práticas em filosofia!
No decorrer da escrita até o momento, conduzimos nossa análise
da tarefa filosófica no ensino médio técnico a partir dos conceitos da
ontologia do presente e da estética da existência. Isto porque, enquanto
tarefa de diagnóstico, o ensino de filosofia deve problematizar seu próprio
lugar, questionando seu discurso abstrato e sua prática de ensino marcado
por um fazer técnico-científico. A filosofia a partir do legado da Aufklärung
faz com que seu exercício seja uma maneira de combater um ensino
abstrato, o que deve se realizar por meio de uma prática filosófica como
uma intervenção permanente de si mesmo e uma atenção permanente com
o que se passa na vida. Já enquanto trabalho ético-estético de si mesmo, o
exercício do pensamento filosófico precisa se realizar no cuidado de si por
meio da permanente criação de diferentes modos de vida.
E a partir da questão da Aufklärung, pode-se perguntar: qual a
concepção de crítica está presente na educação? Como a filosofia constrói
o pensamento crítico? O que se nota nas práticas pedagógicas e nos
documentos institucionais (planos de aula e projetos políticos
pedagógicos) é que a ideia de formar o pensamento crítico aparece como
um clichê, um lugar comum na grande maioria dos projetos pedagógicos
e como um dos objetivos a ser conquistado. Contudo, essa crítica
geralmente é pensada apenas como autoconsciência e sem vinculação com
a transformação de si. A partir da leitura de Foucault, a crítica como
problematização do presente deve ser a questão do exercício de si mesmo.
E a filosofia enquanto busca pela liberdade do pensamento deve se deslocar
para a prática do cuidado de si e a crítica constante sobre nós mesmos.
Desse modo, acreditamos que a tarefa filosófica no presente é o de
combater essa relação mecânica que caracteriza tanto os processos de
ensino como também nossa experiência de nós mesmos e do mundo. E
202
que isso deve se realizar por meio de uma prática filosófica que se
caracteriza por uma atitude crítica em um trabalho paciente de coabitar
problemas e que potencializa uma liberdade impaciente. Diante disso,
como interromper essa relação mecânica com o tempo da vida? E como
coabitar o ensino de filosofia por meio de outras práticas, de diferentes
práticas, para am da obrigação discursiva que caracteriza nossa tradição
filosófica, de um discurso retórico e uma escrita reprodutora sem
vinculação com a vida que se exercita a si mesma? E com isso, fazer uma
experiência de tempo em que o tempo não conta, ou seja, um tempo que
não deve ser medido.
Penso que uma maneira de se fazer isso é pela prática do silêncio
41
.
O silêncio é uma maneira de colocar o pensamento em outro movimento.
Praticar o silêncio não deve ser concebido como contemplação, mas como
uma maneira de coabitar o que o está ou não pode ser dito. Em
Foucault, há várias passagens refletindo o silêncio, em alguns momentos
tratando-o como um acontecimento discursivo e as relações de poder que
o constituem; em outro, tratando sobre o êthos do silêncio desenvolve a
ideia de uma relação consigo e com os outros; e ainda, como constituição
de uma subjetividade na relação com a verdade (parresía).
41
Optamos pela descrição do silêncio como uma prática de resistência ao discurso retórico que predomina
no ensino de filosofia. Contudo, a partir de Foucault, a escrita de si é outra prática que permite confrontar
o uso da escrita como reprodução do mesmo. No texto “A escrita de si” Foucault ao tratar sobre as
correspondências espirituais entre os filósofos antigos, afirma que “a carta que se envia age, por meio do
próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, ela age sobre aquele
que a recebe” (FOUCAULT, 2012, p. 150), com isso descreve que a escrita tem a função etopoiéitica de
transformar a verdade em êthos. Já no curso A Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2004a) afirma que há
dois usos da escrita: um uso para nós, como um elemento de exercício que ajuda a implantar uma espécie
de hábito e um uso para os outros, em que as correspondências espirituais tinham por finalidade dar um
ao outro notícias de si mesmo. Desse modo, a escrita de si constitui um novo uso de si, pois se trata de
um modo de expressar-se pela problematização de sua experiência em que não é possível distanciar-se de
modo abstrato.
203
Foucault (1988), na obra História da Sexualidade: vontade de
saber, ao investigar os discursos sobre o sexo afirma que essa produção
discursiva também se organiza por silêncios e, que “não existe só um, mas
muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e
atravessam os discursos” (FOUCAULT, 1988, p. 30). Para o autor, se há
uma proliferação de discursos sobre o sexo, há também mutismos, que são
maneiras de recusa ou proibição de dizer que atravessam os discursos. E
mais adiante, afirma que tanto o discurso como também o silêncio não
estão submetidos totalmente ao poder e, que podem ser “ao mesmo tempo,
instrumento e efeito do poder, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (FOUCAULT,
1988, p. 96).
Por isso, o autor francês entende o exercício filosófico como uma
maneira liberar o pensamento desses silêncios e, assim, pensar de outro
modo. Como afirma: “Um exercício filosófico: sua articulação foi a de
saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar
o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar
diferentemente”. (FOUCAULT, 2014b, p. 14-15).
Já no curso Aulas sobre a vontade de saber, Foucault (2014a) trata
desses “muitos silêncios” que habitam um discurso com a noção de
acontecimento discursivo, o qual entende como uma multiplicidade que
está presente no lugar e papel do discurso em uma instituição, na
qualificação daquele que o pronuncia, no âmbito do objeto/conteúdo que
se dirige e no tipo de enunciados que ocasiona. E afirma: “um
acontecimento é sempre uma dispersão; uma multiplicidade. É o que passa
aqui e ali; é policéfalo” (FOUCAULT, 2014a, p. 175). Assim, compreende
que o acontecimento no discurso não diz respeito apenas ao que ocorre em
uma fala ou um texto, mas se trata de um modo de apropriação do discurso
204
pelo seu funcionamento, as suas formas e os conteúdos de saber como um
papel a desempenhar. Ao se considerar o discurso como acontecimento
torna-se possível confrontar o uso técnico do discurso transmissão que
distancia o sujeito das relações de saber-poder presente nos “muitos
silêncios” que apoiam e atravessam um discursivo.
Já no texto Uma entrevista com Michel Foucault por Stephen
Riggins, Foucault (1994a, p. 525-538, tradução nossa) afirma que não
temos uma cultura do silêncio, porque a obrigação de falar característico
de nossa sociedade impede que cultivemos um “êthos do silêncio. E assim
como os gregos ensinavam diversas formas de silêncio em função das
pessoas que se relacionavam, defende que é preciso cultivar o silêncio como
forma particular de relação com os outros, pois se o silêncio pode implicar
certa “hostilidade virulenta” também pode se configurar como uma forma
de amizade profunda. Desse modo, Foucault concebe o silêncio como uma
forma de cultivar certa sensibilidade com as pessoas e o mundo.
No curso A Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2004a) descreve
que enquanto do lado do mestre há o dever da parresía, do lado do
discípulo há a obrigação do silêncio. E para que ocorra um “silêncio
fecundo”, ou seja, para que o indivíduo aproprie-se do discurso do mestre
como aquele que é o próprio sujeito de veridicção”, é preciso que esse
discurso não seja um discurso de sedução como o que caracteriza o discurso
retórico, antes: “é preciso que seja um discurso tal que a subjetividade do
discípulo possa dele apropriar-se e que, apropriando-se dele, o discípulo
possa alcançar o objetivo que é o seu, a saber, ele próprio” (FOUCAULT,
2004a, p. 442). Temos aqui, a vinculação do silêncio a própria
constituição da subjetividade do indivíduo.
Também Kafka (2017) em “O silêncio das sereias”, um pequeno
texto de 1917 (são apenas duas páginas), tematiza o silêncio como uma
205
forma de habitar e como instrumento de resistência ao empobrecimento
no uso das técnicas e da razão objetiva. Ao interpretar o relato mitológico
que trata sobre as estratégias de Ulisses para não se deixar seduzir pelas
sereias, afirma: “As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível
que o canto: o seu silêncio” (KAFKA, 2017, p. 2). Para Kafka (2017, p.
3), Ulisses não escutou o silêncio e acreditava que elas cantavam. E logo,
as sereias desaparecem, para em seguida surgirem nas rochas “mais belas
que nunca”, contudo, “já não queriam seduzir senão que apenas o quanto
possível prender o fulgor dos grandes olhos de Ulisses”. Kafka ao afirmar
que as sereias não queriam mais seduzir e, sim, apenas prender os olhos de
Ulisses, mostra que as sereias não procuram mais pelo canto se comunicar
com o homem e pela sua linguagem seduzi-los pelo seu próprio modo de
expressão, mas através do silêncio prender o olhar humano por um modo
de existir que lhe é próprio. O canto seduz por um modo de relação que,
embora em uma linguagem estranha, conduz ao aniquilamento; já o
silêncio captura por um modo de existir que permite um modo de habitar
próprio. Por isso, se faz necessário interromper o canto/fala/discurso e fazer
do silêncio uma arma que permite existir de outro modo.
Kafka começa o texto afirmando: “prova de que também meios
insuficientes e mesmo infantis podem servir para a salvação” (KAFKA,
2017, p. 2). Kafka altera a interpretação de Homero, afirmando que as
sereias silenciam e usam esta arma contra Ulisses. E que ao habitarem o
silêncio as sereias de Kafka não foram aniquiladas, mas permaneceram em
seu modo de ser próprio, como afirma: “elas, mais belas que nunca, porém,
se erguiam e contorciam, deixavam a horrenda cabeleira ondular ao vento,
cravavam as garras nas rochas” (KAFKA, 2017, p. 3). Se pela interpretação
de Homero a razão é concebida como capacidade de não se deixar dominar
pelos desejos humanos ao serem capturados pelas forças do
incompreensível, na releitura de Kafka a razão produz sua própria
206
arrogância e incompreensão, pois segundo Kafka, Ulisses crê que o canto
é belo mesmo quando o canto não existe.
Para Blanchot (2005) o canto das sereias produzia um
encantamento que conduzia ao desaparecimento, um canto estranho,
inumano, “[...] um canto tão insólito que faziam nascer, naquele que o
ouvia, a suspeita da inumanidade de todo canto humano” (BLANCHOT,
2005, p. 4). E que Ulisses, pela sua prudência e covardia, vence as sereias
pelo “poder da técnica”. E mais adiante afirma que a “teimosia pensada”
de Ulisses “conduz ao império universal” que permite manter um limite e
o intervalo entre o real e o imaginário. “Depois da prova, Ulisses se
reencontra tal como era, e o mundo se reencontra talvez mais pobre, mas
mais firme e seguro” (BLANCHOT, 2005, p. 10-11).
Desse modo, Ulisses representa pelas suas estratégias o poder da
razão em não se deixar invadir e aniquilar-se pelas forças mitológicas,
continuando seu caminhar reto e objetivo. Tanto Ulisses como o médico
Simão Bacamarte em “O Alienista” de Machado de Assis, se utilizam de
técnicas que não permitem o deslocamento de si, pois assim como Ulisses
pelo uso da técnica não se deixa seduzir pelas forças mitológicas, também
o médico alienista se utiliza da técnica e da ciência objetiva para evitar o
confronto com a experiência do estranhamento. Por isso, para Kafka se faz
necessário habitar o silêncio como forma de resistência a uma razão
objetivada em si mesma.
Atualmente, diferentemente da maneira de se fazer filosofia na
ascese grega, a atividade filosófica tem se restringido ao modo discursivo,
ou seja, a partir de determinado modo de uso da fala, da leitura e da escrita
o ensino de filosofia tem transmitido o conhecimento filosófico como
representação do pensamento e produção de significado. Entendemos que
nesse modo se busca apenas a produção da generalidade do pensamento e
207
que conduz a uma atitude de abstração do conhecimento e uma ação de
distanciamento do presente.
Pensamos que seja necessário que a filosofia deixe de priorizar
apenas o modo discursivo e passe a coabitar diferentes práticas, como o
silêncio que possibilita a experiência do incompreensível, do inexplicável,
do estranho. Se apenas pelo discurso não se produz o deslocamento, talvez
seja preciso coabitar outras práticas, sendo o silêncio uma das formas de
potencializar a transformação de si. O silêncio como uma forma de
coabitar problemas se constitui em uma inquietação que modifica a
existência. Praticar o silêncio em filosofia significa um exercício filosófico
que coloca o pensamento em outro movimento, o de estar aberto as
sensações e as singularidades dos sentimentos. Nesse outro movimento, o
silêncio constitui um modo de deixar-se afetar, onde a relação com o outro
pode ser construído por um afeto que não precisa ser necessariamente
codificado e, desse modo, se constitua em uma ferramenta estratégica de
resistência ao modelo representacional do pensamento.
A filosofia como tékhne do exercício de si
Este tópico tem por objetivo descrever, a partir da perspectiva
foucaultiana, a filosofia como tékhne do exercício de si e elemento
fundamental para a problematização de nossa experiência com a técnica.
Assim, a tarefa filosófica de problematização das práticas de si no ensino
médio técnico passa a ter um papel indispensável na educação técnica, pois
deve proporcionar ao educando outra experiência com a técnica,
superando a determinação instrumental moderna. Para isso, buscamos
questionar: como praticar uma filosofia como técnica do exercício de si?
Penso que a resposta deva ser encaminhada em dois sentidos: pela noção
208
de cuidado de si (dimensão ético-estético) e pela noção de parresía
(dimensão política).
No primeiro sentido, a partir do curso A Hermenêutica do Sujeito,
situamos o cuidado de si na compreensão foucaultiana do período
helenístico, onde a noção é compreendida como tékhne toû bíou (arte de
viver) e torna-se a “[...] definição fundamental da filosofia. O cuidado de
si torna-se coextensivo à vida” (FOUCAULT, 2004a, p. 107). No
helenismo, todo o saber deveria ser ordenado para a tékhne toû bíou, pois
para saber existir é preciso fazer da própria vida objeto de uma tékhne. E
como já foi exposto anteriormente, o objetivo dessa articulação racional e
prescritiva da vida por meio da técnica grega tem por meta fazer da filosofia
uma preparação, em que cuidar de si supõe equipar-se para os
acontecimentos imprevistos (FOUCAULT, 2004a, p. 588).
Desse modo, enquanto exercício cotidiano de si mesmo, o ensino
de filosofia não pode ser uma aula conduzida pelo improviso como
justificativa para a liberdade das ideias, pois isso acaba, por muitas vezes,
apenas a promover o debate de meras opiniões. Ao contrário, nas aulas de
filosofia é preciso a prática cotidiana da preparação por meio de exercícios,
ou seja, para que algo possa aparecer como acontecimento, seja a
manifestação de um pensamento que lhe é estranho ou de uma experiência
de vida errante, se faz necessário um aprendizado do treinamento de si.
Como expressa Foucault: “não se pode mais aprender a arte de viver, a
technê tou biou, sem uma askêsis que deve ser compreendida como um
treino de si por si mesmo [...]” (FOUCAULT, 2012a, p. 143). Embora,
não deve ser uma preparação como sinal de controle, em que o
acontecimento se dá quando e como planejei metodologicamente. O
acontecimento não é cronológico, não pode ser medido e controlado;
portanto, não pode ser pedagogizado por algum tipo de controle cnico.
209
Antes, deve ser uma preparação como forma de estar atento as
manifestações das experiências, nos desvios da vida e do próprio
pensamento. A preparação constitui uma forma de estar atento ao que nos
acontece e para que o encontro com o inusitado possa ser vivido de forma
ética.
Entendida como preparação a filosofia torna-se cuidado, uma
maneira de cuidar do modo como cuidamos de nós mesmos. Foucault
(2004a) interpreta a filosofia de Sócrates como o mestre do cuidado, pois
ele “[...] cuida da maneira como Alcibíades vai cuidar de si mesmo”. Na
filosofia socrática, a noção de epiméleia heaut “[...] tem sempre
necessidade de passar pela relação com um outro que é o mestre, [...] não
há cuidado de si sem a presença do mestre(FOUCAULT, 2004a, p. 73).
Contudo, o autor diferencia que o mestre não é o professor que “ensina
aptidões e capacidades” ou as técnicas da retórica, mas “o mestre é aquele
que cuida do cuidado que o sujeito tem de si mesmo (FOUCAULT,
2004a, p. 73). Diante dessa singular relação entre mestre e discípulo,
entendemos que o ensino de filosofia, que se dá pela relação entre professor
e aluno enquanto elementos e atores desse processo, deve se dar como
aprendizagem do modo como cuidamos de nós mesmos.
Pagni (2013) ao interpretar a relação mestre-discípulo
desenvolvido por Foucault no curso A Hermenêutica do Sujeito, afirma que
no estoicismo há outro modo de examinar-se a si mesmo, diferentemente
dos diálogos platónicos em que a figura de Sócrates funciona como uma
espécie de espelho, produzindo uma relação em que o discípulo busca
identificar a si mesmo por um ato de conhecimento em que confere ao
mestre o privilegio da verdade. No estoicismo se desenvolvem diferentes
práticas, desaparece o diálogo como modelo e aparecem outros exercícios,
como a escuta e o silêncio. Nesses exercícios espirituais não se trata de
210
passividade do discípulo, mas “[...] de uma confiança ativa em alguém que
se respeita e ama e, por isso, ouve atentamente, já que a prática dos
exercícios que ele propõe lhe tornará digno de acolher os acontecimentos
que a vida lhe reserva”. E assim, tanto nos estoicos como no cuidado
socrático, mestre e discípulo estão sujeitos aos acontecimentos da vida e
assim, podem “[...] sair dessa relação não sendo mais os mesmos” (PAGNI,
2013, p. 674-676).
Na filosofia helenística, o cuidado de si se dá pela prática de
exercícios, a qual conduz a concepção de filosofia como “exercícios
espirituais”. Para Salma T. Muchail (2017, p. 91) tanto Foucault, como
também Hadot, descrevem traços que fazem da espiritualidade exercícios,
e dos exercícios espirituais, filosofia. Com isso, a autora busca responder as
seguintes perguntas: “por que exercícios?” e “por que espirituais?”.
Exercícios, porque se trata de práticas que “formam mais que informam”
e espirituais, porque implica a transformação de si. Muchail também usa
o conceito de “insurreições espirituais” para caracterizar os exercícios
espirituais como uma questão política da transformação de si.
No curso A Hermenêutica do Sujeito, Foucault (2004a, p. 19)
aborda duas formas de se fazer filosofia, uma que “[...] é forma de
pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à
verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condições e os
limites do acesso do sujeito à verdade” e, a outra, que chama de
espiritualidade, a qual entende como:
[...] o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as
purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as
modificações de existência, etc., que constituem, não para o
conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço
a pagar para ter acesso à verdade (FOUCAULT, 2004a, p. 19).
211
Assim, sua proposta de pensar a filosofia como espiritualidade abre
caminho para refletir outro modo de se fazer filosofia, não uma analítica
da verdade sobre as condições da assimilação do saber, mas da
espiritualidade em que o que está em jogo é a transformação que o sujeito
deve operar em si mesmo. Foucault (2004a) denomina de prática ascética
o conjunto de exercícios que promovem a transformação de si a fim de
atingir um objetivo espiritual definido e, então pergunta: “quais são estes
exercícios?”, e descreve que na filosofia do helenismo o conjunto das
asceses-exercícios é essencialmente uma questão técnica” e que se
compõem de diferentes praticas (abstinência, meditação, cartas, exame da
consciência, etc.) e que seu esforço foi para “fazer aparecer este lado
técnico” de um “quadro de uma certa tecnicidade destes exercícios de
ascese” (FOUCAULT, 2004a, p. 505). E embora Foucault mencione
poucas vezes a noção de espiritualidade, ela se relaciona com seu projeto
de uma história da subjetividade, pois o preço a pagar na transformação de
si está articulado com a questão da verdade, mas não da verdade enquanto
acesso as condições e limites do conhecimento e, sim, como modificação
da existência e melhor agir diante dos acontecimentos.
Uma leitura interessante do cuidado de si é realizada por Frédéric
Gros na obra Desobedecer (2018), na qual o autor faz um novo uso da
noção grega utilizada por Foucault. Gros entende que cuidar de si implica
uma dimensão ética que é “permanecer vigilante nesse núcleo ético que
habita cada um”. E que também marca uma dimensão política na relação
consigo, como afirma: “o si de que se trata [...] é esse ‘fundo’ a partir do
qual eu me autorizo a aceitar ou recusar tal ordem, tal decisão, tal ação. É
a alavanca da desobediência” (GROS, 2018, p. 181). E continua, o que
nos faz desobedecer não é um eu soberano, mas certa inquietação ética.
Como afirma: “o que nos faz desobedecer é a bricolagem tenaz de nossas
inquietações éticas” (GROS, 2018, p. 182).
212
Para Gros essa inquietação é vivenciada no pensamento, pois é
preciso “pensar em ato, na vertical da questão, não agitando as cinzas dos
saberes aprendidos, dos dogmas repetidos, das certezas adquiridas
(GROS, 2018, p. 210). Nisso, o cuidado de si funciona como uma
provocação de si no pensamento que conduz ao desobedecer de si mesmo.
Como afirma: “pensar é se desobedecer, desobedecer nossas certezas, nosso
conforto, nossos hábitos” (GROS, 2018, p. 215).
Outro elemento importante segundo Gros (2008) é que a relação
de si para consigo não caracteriza uma moral individualista, pois o que
interessa a Foucault é como o cuidado de si se integra no tecido social e
constitui um motor da ação política. Como expressa: “não se trata de
renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular de outro modo esta
relação com os outros pelo cuidado de si” (GROS, 2008, p. 132). O
cuidado de si deve introduzir entre o sujeito e o mundo certa distância que
não me permite deixar-se fascinar por um objeto imediato, mas o de
possibilitar um retorno a si para agir de modo aceitável diante das
circunstâncias. Gros cita o exemplo de Epiteto, daquele pai que
encontrando sua filha doente abandona seu lar; se ele tivesse cuidado de si
a ponto de manter certa distância com o mundo não tinha se
impressionado com a doença e não fugiria de sua responsabilidade e de seu
papel a desempenhar. Assim, a distância que o cuidado de si mantém do
mundo não é para “escapar do mundo, mas para agir como se deve
(GROS, 2008, p. 132).
Gros (2008) ao tratar do cuidado de si como uma questão de
desobediência política está pensando em um modo de ocupar-se da relação
consigo mesmo que implica no questionamento das modalidades de
obediência pela qual conduzimos nossas vidas. Por isso, pensar na criação
213
de novas vidas constitui um modo de resistência ética e de desobediência
crítica.
Intensificando a dimensão política do exercício de si, com a
descrição da noção de parresía
42
compreendemos a filosofia como a técnica
do dizer verdadeiro que coloca em jogo o próprio enunciador, um jogo
que implica na transformação de si e no risco que seu modo de vida implica
ao confrontar a normalização. Para Foucault (2004a, p. 451) a parresía
significa a liberdade do dizer verdadeiro e está ligada a um êthos e uma
tékhne, ambas indispensáveis para a constituição de si mesmo como sujeito
de veridicção. Isto porque, para o autor, a filosofia implica uma léxis (uma
maneira de dizer as coisas), a qual não deve ser a khne da retórica, mas o
da parresía enquanto modo de proceder, que ao mesmo tempo, coloca em
ação um procedimento técnico e ético como forma necessária do discurso
filosófico (2004a, p. 442).
Segundo Foucault (2004a, p. 451) aos elementos da ética e da
técnica corresponde dois adversários que estão profundamente ligados um
ao outro: um adversário moral, que é a lisonja e, um adversário técnico,
que é a retórica. A lisonja deve ser combatida, porque constitui um
discurso mentiroso que se dirigido a alguém para enganar sobre suas
qualidades e o impede que se conheça a si mesmo como se é. Já na retórica
deve ser lutar para libertar-se de suas regras, pois elas são organizadas em
42
A noção de parresía é introduzida no curso A Hermenêutica do Sujeito. O termo tem o sentido de
franqueza e da liberdade de quem fala, o que faz os latinos traduzirem por libertas. Entre diferentes
significações, Foucault (2004a) opta por utilizar a tradução francesa de franco-falar, ou seja, dizer a
verdade. A parresía também é objeto de estudo nos dois últimos cursos: 1982-1983 O governo de si e
dos outros (2010a) e 1983-1984 A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II (2011c). A parresía
constitui na antiguidade uma das técnicas fundamentais na prática de si e que coloca em jogo a vida em
sua dimensão política, como é o caso da vida cínica em seus estudos do curso de 1984. Para Gros (2004)
o curso A Hermenêutica do Sujeito exprime um novo pensamento da verdade, pois a prática de apropriação
do discurso verdadeiro não se dá como apreensão, nem para cultivar-se, mas como preparação para os
acontecimentos. “O saber requerido não é o que nos permite conhecer-nos bem, mas o que nos ajuda a
agir corretamente em face das circunstancias” (GROS, 2004, p. 639).
214
relação aquilo que é pertinente para dizer, ou seja, seu discurso se organiza
em torno do assunto tratado e somente age sobre os outros para maior
proveito daquele que fala. Na parresía também se trata de agir sobre os
outros, no entanto, “agindo sobre eles, trata-se fundamentalmente de
conseguir que cheguem a constituir por si mesmos e consigo mesmos uma
relação de soberania [...]” (FOUCAULT, 2004a, p. 465). Em outro texto,
Foucault (2011c) entende que a retórica não estabelece o nculo entre
aquele que fala e o comprometimento com o que ele diz, mas estabelece
um vínculo obrigatório entre a coisa dita e aquele(s) a quem se endereça.
Ao contrário, a parresía busca o equilíbrio entre o que se fala e o que se
vive, tornando-se um elemento indispensável para o cuidado de si em sua
relação com o mundo. Assim, a lisonja e a retórica são atitudes de ausência
ética, técnicas que não conduzem ao exercício de si, por isso, se
transformam em práticas políticas autoritárias.
Nessa perspectiva de distinção de um fazer filosófico retórico e
outro parresiasta, nota-se que o modo de proceder retórico ainda permeia
nosso fazer filosófico contemporâneo, pois muitas de nossas práticas
filosóficas tratam-se de procedimentos técnicos que vinculam o indivíduo
ao reconhecimento de si no conteúdo e com determinado objetivo
predefinido, como por exemplo, na ideia de formação de um indivíduo
emancipado. Isso também nos permite questionar certo modo de praticar
o diálogo na filosofia, este que dentro de uma tradição socrática e de
cultura democrática é tido como método ideal de conhecimento e
cidadania. Contudo, nem sempre fazemos da técnica do diálogo uma
oportunidade para o exercício agonístico de transformação de si, antes se
torna, em muitas vezes, uma ferramenta de governo que direciona o
indivíduo para a averiguação de determinado conteúdo ou para atingir a
competência de um cidadão crítico. Disso resultam implicações práticas
no modo de se relacionar com o outro, pois tanto a retórica, como esse
215
modo de conceber o diálogo, precisam deslocar ou incluir
biopoliticamente o diferente para conquistar seus objetivos.
Para Pagni (2013, p. 671) na parresía o modo de ser verdadeiro
não se enuncia discursivamente por um conhecimento verdadeiro, nem
pode se dar pela retórica no uso de argumentos lógicos e dialéticos capaz
de convencer outros. De modo contrário, na parresía, a verdade é expressão
de um falar verdadeiro que implica, por um lado, autotransformação
experiencial do sujeito que presenciou o acontecimento e, por outro lado,
essa verdade põe o sujeito em risco quando a singularidade de sua vida não
se enquadra nos parâmetros da normalização.
Já no curso O governo de si e dos outros, Foucault (2010a) relaciona
a noção de parresía com o fazer filosófico, afirmando: “[...] a tékhne
filosófica do logos é uma tékhne que possibilita ao mesmo tempo o
conhecimento da verdade e a prática ou a ascese da alma sobre si mesma”
(FOUCAULT, 2010a, p. 304). E continua: “[...] o filósofo será
verdadeiramente o parresiasta [...]. A filosofia, por sua vez, é étymos téchne
(a técnica autêntica) do discurso verdadeiro” (FOUCAULT, 2010a, p.
305). O que leva a concluir, que para o autor, a técnica autêntica do
discurso verdadeiro se realiza pelo “modo de ser filosófico”, um modo de
ser “autoascético do discurso filosófico” que conduz a transformação da
alma. Desse modo, concebe a filosofia como a khne que por meio da
experiência do discurso verdadeiro (parresía) possibilita a condução de si
mesmo em uma experiência singular de si.
Foucault (2010a, p. 295s) aborda o termo étymos (autêntica) na
aula de 02 de março de 1983, quando ao tratar da parresía, afirma que esse
discurso se caracteriza por ser étymos porque é uma maneira de estar “tão
próximo quanto possível do real a que se refere”. Não se trata de um
discurso que pretende saber, mas um discurso que “não cessa de se
216
experimentar a cada instante”. Em oposição à retórica, a tékhne filosófica
se torna étymos ao fazer da verdade uma função permanente do discurso.
Dessa forma, não se deve entender autêntico como sinal de reconciliação,
em que se busca o retorno a si mesmo como promessa de reencontrar a
legitimidade do homem no verdadeiro. Por isso, se faz necessário
questionar como conduzimos nosso fazer filosófico para não deixar-se
conduzir por um modo de fazer retórico e então, guiado pela noção de
parresía tornar a verdade um “princípio de ação” (FOUCAULT, 2004a,
p. 429).
Já a aula de 16 de fevereiro de 1983 (2010a) é outra passagem
importante do curso, na qual expressa a compreensão da filosofia como
exercício de si que se realiza por práticas. Ao interpretar a Sétima Carta
(ou Carta VII) de Platão (2010a, p. 203-222), que trata sobre o relato de
Platão sobre sua missão de conselheiro político na ocasião de sua segunda
viagem a Sicília, Foucault percebe que o que está em jogo na missão de
Platão é o próprio sentido da filosofia: não ser puro e simples discurso
(logos), mas érgon (tarefa, obra). Assim, a Carta VIIé para Foucault uma
reflexão que trata sobre o real da filosofia, contudo, não o real enquanto
parâmetro para medir se a filosofia é verdadeira ou não, mas enquanto
espaço parresiástico que faz da verdade um modo de vida. E cita o exemplo
do homem doente relatado por Platão, demonstrando que, para que a
filosofia não seja apenas discurso mas realidade, precisa ter a mesma atitude
do médico que busca convencer o doente a mudar seu regime de vida, ou
seja, o que está em jogo é seu modo de vida cuja transformação evitará
outras doenças.
Disso se conclui que o real da filosofia não é somente a prática do
logos, seja como discurso ou como diálogo, mas deve ser a filosofia como
“práticas” no plural, em sua coabitação com as práticas e em seus
217
exercícios. “Aquilo que a filosofia encontra seu real é a prática da filosofia,
entendida como conjunto das práticas pelas quais o sujeito tem relação
consigo mesmo, se elabora a si mesmo, trabalha sobre si. O trabalho de si
sobre si é o real da filosofia” (FOUCAULT, 2010a, p. 221). A prática do
trabalho sobre si é a tarefa da filosofia que Platão descreve em sua missão
na Sicília, evidencia isso ao examinar se o governante Dionísio é capaz de
fazer em sua vida um exercício cotidiano dos ensinamentos filosóficos.
Platão descreve: “[...] meu primeiro cuidado foi certificar-me se Dionísio
era mesmo unha e carne com a filosofia [...]” (PLATÃO, 1975b, p. 154) e
explica que ele apesar de pretender-se filósofo não a praticava como
atividade existencial.
Segundo Alexandre S. Freitas (2010, p. 176) Foucault descreve a
filosofia antiga não como uma prática, mas uma “filosofia que se exerce
mediante práticas” e “que se faz com práticas precisas”. Diante disso, cabe
perguntar: quais exercícios permitem que a filosofia potencialize o trabalho
agonístico de si? É possível praticar um treinamento de si, em que a
repetição dos exercícios não conduza a um comportamento autômato ou
a inércia do pensamento? De que modo a problematização nas práticas
pode se constituir em um novo uso das coisas? Perguntas que
potencializam nossa questão central: como fazer do ensino de filosofia uma
técnica autêntica do exercício de si?
Acreditamos que não haja um exercício que possa ser colocado
como ideal de método a ser praticado em filosofia, mas exercícios que
sejam conduzidos pelos seguintes elementos: pela noção de cuidado de si
(dimensão ético-estético), em que se produz uma experiência modificadora
de si e pela noção de parresía (dimensão política), em que o dizer
verdadeiro tornado princípio de ação é capaz de promover a experiência
problematizadora de si e do mundo. Ambas as atitudes ético-política
218
produzem a desaprendizagem como modo de filosofar em que o que es
em jogo é a intensidade de pensar de outro modo a si mesmo.
Quando observamos a leitura de Foucault dos exercícios espirituais
da cultura grega do período clássico e do helenismo, percebemos a
compreensão de que os exercícios conduzem a um treinamento de si e
preparação para os acontecimentos. Sendo que a repetição cotidiana de
exercícios enquanto preparação para o acontecimento não visa a produção
de resultados como se dá nas práticas de ensino modernas, antes constitui
uma forma de estar atento as transformações que acontecem conosco.
Diferentemente da repetição disciplinar presente nas formas de ensino em
que se busca a reprodução do mesmo e a formação do sujeito autômato,
no exercício de si que se repete cotidianamente se produz algo que não se
esperava devido ao encontro com o acontecimento. E essa experiência
própria do acontecimento inesperado é o que há de mais próprio na vida.
Então, repetimos com Foucault o “[...] pensar se repete diligentemente em
um teatro; [...] e vale a pena pensar” (FOUCAULT, 2005a, p. 251). Nesse
sentido, se faz necessário pensar que a repetição do exercício de si permite
reviver certa tensão agonística e que em muitas vezes não se é possível
nomear, mas que a relação de afeto que nos atravessa nesse exercício
também contribui para a formação do homem.
Por isso, a repetição não deve ser associada com a imitação, pois
esta acontece quando no processo de transmissão do conhecimento o
indivíduo deixa-se operar pelos outros e sua resposta nada mais é que a
reprodução da informação recebida. Segundo Gelamo (2009, p. 124) nesse
tipo de imitação apenas se reproduz a experiência do outro em detrimento
daquela que é feita por si mesmo. Já para Muchail (2011, p. 82) os
exercícios não têm como “quadro de referência” a ignorância (formação-
saber), mas se insere no quadro permanente que corrige e libera (correção-
219
liberação). A importância da prática do exercício de si é que eles formam
mais que informam.
Então perguntamos: como fazer novo uso da repetição em meio a
uma prática de reprodução? E como evitar que essa repetição/treinamento
de si não se transforme em normalização? Entendemos que a repetição
como reprodução constitui-se de repetições da representação do
conhecimento verdadeiro e isso implica na dualidade entre sujeito-objeto
que mantém o sujeito distante de seu presente. E diferentemente da
repetição como reprodução em que o indivíduo se deixa operar pelo
comando do outro se tornando um sujeito autômato, no exercício de si
que se repete na problematização cotidiana das práticas possibilita
construir uma relação consigo capaz de transformar-se em um modo de
vida outro. A atenção cotidiana com as práticas possibilita vivenciar
experiências singulares, pois englobam atividades consideradas “triviais
para o pensamento abstrato. Dessa forma, a filosofia como
problematização das práticas possibilita a repetição cotidiana do exercício
de si e torna-se uma ferramenta importante porque rompe com a produção
da normalização e permite recriar cotidianamente uma maneira singular
de ensaiar a vida.
Desse modo, para que a repetição não seja praticada como
reprodução ela precisa ser usada de outro modo e esse novo uso deve se dar
pela problematização e a desaprendizagem, isto porque, a repetição das
práticas é uma forma de estar atento ao que acontece consigo, um modo
de problematização de si que conduz a desprender-se dos modos ser
autoritários para constituir-se diferentemente. A problematização das
práticas cotidianas constitui importante ferramenta para a resistência aos
poderes que permeiam práticas não questionadas. Desse modo, a
problematização que se produz nas práticas constitui-se em um novo uso
220
das coisas, isto porque não se faz a problematização para depois realizar
uma prática, mas faz da própria prática um acontecer problematizador. A
vida que se exercita na repetição cotidiana de práticas produz a
problematização de si como forma de resistência ao viver depressa e do
distanciamento do presente que caracteriza nossa época.
Nessa perspectiva, Divino José da Silva (2012), problematizando a
experiência a partir das constatações de Benjamin, descreve sobre um
modo de comportamento repetitivo em que nossa experiência do tempo
tem sido submetida ao tempo da produção e ao seu braço tecnológico,
como afirma: “[...] estamos submetidos a uma parafernália tecnológica que
nos impõe uma nova relação com o tempo, com o trabalho e conosco
mesmos” (SILVA, 2012, p. 159). O uso das tecnologias produz a sensação
ilusória de que temos mais tempo, mas na realidade o que acontece é que
o “viver depressa” constitui um vício que move a vida e, assim, nos
perdemos na “sucessão de atividades e obrigações repetitivas que tornam
os nossos dias iguais” (SILVA, 2012, p. 159-160). Para Silva (2012)
Benjamin ao descrever sobre o fim da arte de narrar também evidencia o
fim da possibilidade da comunicação da experiência, que é base para
modos seguros de viver coletivamente. Sobre isso afirma:
Esse tempo governado pela pressa e pela velocidade não permite o
demorar-se nas coisas como momento necessário para compreendê-las.
Disso teriam decorrido formas novas de regular desejos e necessidades,
que culminaram com o empobrecimento da nossa experiência, na
atualidade. Estamos cada vez mais submetidos a um excesso de
estímulos, de informações e de opiniões, mas, paradoxalmente, nos
encontramos impossibilitados de conferir a tudo isso um sentido, pois
nada nos passa, nada nos acontece. [...] Esse novo tempo regrado pelo
mercado e pela técnica eliminou o tempo da experiência ‘tempo em
que o tempo não contava’ , e com ele perdem força as narrativas
221
tradicionais, as quais estruturavam uma arte de viver resultante dos
conselhos, sugestões e orientações morais dados pelo narrador (SILVA,
2012, p. 177).
Para Silva (2012) ao se problematizar a experiência é possível
encontrar uma maneira para “interrupção do nosso presente”, ou seja,
constitui um modo de combater um modo de vida que é dominado pela
pressa e o não cultivo de si.O homem de hoje não cultiva mais aquilo
que não pode ser abreviado” (SILVA, 2012, p. 223). Por isso, continua
Silva, Benjamin através da influência de Baudelaire desenvolve a atitude
da modernidade como possibilidade de uma arte de viver que resiste ao
“viver depressa”, pois essa arte “passa por um treino e por um preparo que
demandam um reaprender a viver dos restos, das migalhas, do contingente
e do transitório” (SILVA, 2012, p. 178).
Dessa forma, não é possível criar a singularidade nos modos de vida
sem a prática de certos procedimentos e técnicas do exercício de si. Os
exercícios espirituais proporcionam uma relação própria com o mundo,
pois são sempre práticas precisas e em relação a minha experiência do
presente. E dessa forma torna-se uma maneira do indivíduo problematizar
a constituição de sua subjetividade sob o registro ético-político, lutando e
resistindo aos poderes específicos que se exercem sobre a vida, as quais se
produzem tanto na fixação de identidades biopolíticas quanto no
reconhecimento de si como objeto do conhecimento pelo domínio da
técnica.
222
223
Considerações finais
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________ ___________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _____________
Por meio desse trabalho procurou-se perspectivar o ensino de
filosofia como o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo, nossas
experiências e modos de vida, como exercício de si que se constitui na
tarefa filosófica a ser praticada hoje. Nesse percurso, descrevemos a leitura
foucaultiana do conceito grego da tékhne ligado à vida (tékhne toû bíou) o
que nos possibilitou pensar o ensino da filosofia como exercício de
problematização das práticas. Isso nos conduziu ao questionamento de
certa tradição filosófica que privilegia o conhecimento de si, a qual tem
como resultado a elaboração de um saber sobre si, bem como um ensino
que se realiza como produção de verdade e a transmissão técnica do
conteúdo. Sob outra perspectiva, precisamos pensar o modo como
conduzimos nossa vida, praticando uma maneira de ser e de fazer que possa
criar a vida (arte de viver), o que dever ser potencializado por uma
aprendizagem do cuidado, em que se realize a experiência problema-
tizadora de si.
O ensino de filosofia na educação tecnológica constituiu nosso
objeto de problematização, onde pudemos diagnosticar a produção de uma
subjetividade relacionada à ordenação dos processos técnicos da vida
(biotécnica). Em nossa análise da educação tecnológica não buscamos
avaliar a questão do uso moral das tecnologias, mas como certo modo de
conceber a técnica impede o exercício agonístico de si. Através da análise
da educação tecnológica não queremos negar a importância da formação
profissional como garantia de conquistas econômico-sociais pelo
indivíduo, mas afirmar que a ênfase na concepção de trabalho como
224
princípio norteador das diretrizes, em detrimento da capacidade crítica do
pensamento de si mesmo que é potencializado pela educação para o
cuidado de si, impossibilita diagnosticar e superar a visão determinista da
tecnologia. Desse modo, quando dominada por um saber objetivo e pela
ausência da problematização da subjetividade, o ensino técnico não é capaz
de promover o questionamento da visão instrumental da técnica e, nem
garantir a formação para uma vida livre. Faz-se necessário que o ensino de
filosofia potencialize outro sentido para a educação tecnológica,
diagnosticando o uso da tecnologia como constituição do sujeito,
denunciando seu assujeitamento e suscitando por meio do exercício de si
a realização do modo de ser êthos. É preciso pensar a educação técnica para
além do seu modelo objetivo e de sua finalidade como formação de
competências e, isso exige uma atitude de resistência enquanto atitude
crítica de si mesmo e do presente.
Desse modo, praticar no ensino de filosofia um novo uso da técnica
tem uma implicação política que é deslocar-se do uso biopolítico que visa
incluir o povo na categoria população, atitude presente no projeto
educacional dos Institutos Federais por meio domínio do conhecimento
científico e tecnológico como forma de inserção econômica. A filosofia ao
praticar um novo uso da técnica ou diferentes usos dela, proporciona
espaço para que nesses novos usos as experiências singulares possam se
expressar. Por isso, desenvolvemos a ideia da problematização das práticas
como um novo uso das coisas, tornando possível a experiência do que
Foucault denominou de povo e escapando da sujeão na população. Isso
porque, não se trata de um aprendizado normalizador, mas de vivenciar o
afeto que o encontro com o outro nos provoca, ou seja, em cultivar um
cuidado como atenção ao acontecimento que torna comum nossas
experiências e, na qual, podemos construir uma ética comum. Deixar-se
225
afetar como forma de sentir a si mesmo, o outro e o mundo ao mesmo
tempo.
Pensar o ensino de filosofia, mas também todo o processo
educacional, a partir da noção de cuidado de si implica pensar uma prática
pedagógica que constantemente problematize: você está exercitando sua
vida para viver melhor? Isso pressupõe que a formação seja conduzida por
uma prática educacional que problematize quem nós somos, por meio de
um cuidado de si como forma de atenção ao que se passa conosco e que
conduza a dessubjetivação das formas impróprias de viver. Pensar a
formação enquanto construção de um modo de viver implica que nossas
escolhas sejam conduzidas pelo cuidado de si. E cuidar de si enquanto
atenção a si exige deslocar-se de um ensino abstrato para aprender a pensar
cuidadosamente enquanto atenção ao que se passa conosco em nossas
práticas. Para isso, se faz necessário deslocar-se de uma educação em que a
prioridade esem educar para apreender capacidades e técnicas, onde o
indivíduo deixa-se operar por meio das ferramentas que lhe permitem
conquistar o mundo, para promover práticas que lhe possibilitem um
operar a si mesmo, ou seja, uma relação consigo que realiza todo o
cuidado que o sujeito tem por si mesmo.
A discussão fundamental no ensino de filosofia, mas também de
modo geral na filosofia da educação, é: como pensar uma formação de um
autogoverno como prática da liberdade? Em nossa análise, observamos a
necessária atenção cotidiana com as práticas, pois é pela problematização
das práticas que se pode construir uma atitude de dessubjetivação segundo
Foucault, de desobediência prática conforme Gros e de desaprendizagem
como defendemos. É pela problematização das práticas que se constrói
uma atitude crítica de não ser governado pelos poderes que permeiam as
práticas autoritárias, as familiaridades aceitas, as evidências e os hábitos.
226
Por isso, compreendemos que a desaprendizagem como um novo uso das
práticas constitui um modo de pensar a filosofia como a questão política
da dessubjetivação. É preciso problematizar as práticas porque nelas se
encontram as relações de poder mais tênues, mas também é por meio de
outras práticas que se torna possível resistir e criar nova vida. A partir desse
horizonte problemático apontamos para a necessidade de continuar
questionando: por meio de quais práticas cotidianas estamos nos
subjetivando no ensino de filosofia e na educação tecnológica?
Por fim, perguntamos: o que no ensino de filosofia como modo de
vida se diferencia de outras formas de fazer filosofia? A filosofia como
modo de vida, não significa que basta apenas viver a vida conscientemente,
mas implica um trabalho agonístico de si. E nesse exercício permanente
sobre si mesmo se faz necessário um trabalho paciente e certo treinamento
de si. Um trabalho paciente de problematização de si que se afasta de um
modo de proceder que tende a produzir respostas para economia de tempo,
ao contrário, nesse caminho não há respostas rápidas e definitivas, mas a
filosofia se realiza, conforme Platão expressou na Carta VII, em um
coabitar em um “longo caminho” pela “via rude dos exercícios e práticas”
(FOUCAULT, 2010a, p. 224). E enquanto treinamento, se faz necessário
certa disciplina cotidiana que permita com que a repetição do exercício de
si leve a recriar cotidianamente uma maneira singular de ensaiar a vida. E
esse exercício não deve ser ensinado, transmitido, reproduzido e imitado,
antes precisa ser aprendido, exercitado, ruminado, vivido e tornado êthos.
Para Platão (FOUCAULT, 2010a, p. 225) na filosofia não se trata de
transmissão, antes é preciso coabitar com ela em seus problemas.
Nesse sentido, a filosofia enquanto coabitar problemas não é algo
que se realiza sozinho, mas é um caminho que se exerce por práticas que
são atravessadas pelas experiências cotidianas com o outro. Coabitar a
227
filosofia pela inquietação do estranho, da paixão pelo que se passa, de se
desfazer das familiaridades aceitas e aprender em filosofia como uma
permanente inquietação que nos move na incompletude do desprender-
se de si mesmo. Assim, a filosofia como exercício de si torna-se o modo
de vida a ser praticado em seu ensino.
É preciso que na educação se produza a experiência do tempo como
criação e não reprodução. Desse modo, como maneira de deslocamento
dessa economia do tempo produtivo é preciso cultivar uma economia do
cotidiano, onde por meio de diferentes práticas o ensino de filosofia realize
o trabalho paciente de ensaiar a transformação de si. Para além das
convencionais práticas de falar, ler e escrever, se faz necessário desenvolver
outras práticas como: o silêncio, a paciência, a atenção, a meditação, a
memória e a repetição, a conversão de si, a escrita de si, o exame da
consciência e das regras de conduta, o uso dos afetos, enfim, diferentes
exercícios espirituais, que não são apenas exercícios de pensamento, mas
exercícios ascéticos que produzem a transformação de si. Embora os
exercícios de pensamento (como o discurso, a leitura e a escrita) também
são práticas, elas geralmente estão vinculadas com o domínio técnico do
conhecimento e não como exercício de si. Por isso, a importância da
repetição de diferentes práticas em filosofia que proporcionem a formação
de certa disciplina cotidiana necessária para que o exercício de si se
constitua em modo de vida.
Ensinar e aprender em filosofia devem ser compreendidos como
um exercício de desaprendizagem; como um exercício agonístico que se
constrói por um trabalho paciente de criar novas vidas; como um exercício
que se desloca da crítica moral sobre o uso das tecnologias para pensar um
novo uso da técnica, um uso problematizador que interroga sobre as
familiaridades aceitas em nossas práticas e faz do (des)aprender em filosofia
228
a experiência do pensamento como ensaio. É preciso estar disposto a
realizar a filosofia em diferentes práticas para que a tarefa de aprender em
filosofia possa se constituir em uma formação para a liberdade. Nesse
sentido, a aprendizagem do desprender-se de si constitui em um novo uso
de si, em que a experiência do acontecimento torna possível uma
desaprendizagem que potencializa um coabitar as singularidades e um em
deixar-se afetar no acolhimento das diferenças.
Enfim, a tarefa ético-política do ensino de filosofia no ensino
médio técnico é o de proporcionar a aprendizagem do cuidado de si, um
cuidado que se realiza em exercícios cotidianos de problematização de si.
O exercício de si se constitui no imperativo: tu tens que exercitar tua vida
como forma de atenção ao viver como acontecimento. Afirmação que
aponta para a ligação entre exercício e vida, entre procedimentos técnicos
e a constituição de um êthos. O questionamento sobre o modo de exercitar
a vida constitui um projeto ético-político de dessubjetivação dos poderes
que permeiam práticas autoritárias. Uma vida que se exercita significa a
problematização de si por meio de diferentes práticas que fazem da vida
um ensaio, em construir novos usos, em um arriscar-se nos exercícios.
229
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Pareceristas
_______ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ ____________ _______________ ____________
Este livro foi submetido ao Edital 01/2020 do Programa de Pós-
graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, câmpus
de Marília e financiado pelo auxílio nº 0798/2018, Processo Nº
23038.000985/2018-89, Programa PROEX/CAPES. Contamos com o apoio
dos seguintes pareceristas que avaliaram as propostas recomendando a publicação.
Agradecemos a cada um pelo trabalho realizado:
Adriana Pastorello Buim Arena
Alessandra Arce Hai
Alexandre Filordi de Carvalho
Amanda Valiengo
Ana Crelia Dias
Ana Maria Esteves Bortolanza
Ana Maria Klein
Angélica Pall Oriani
Eliana Marques Zanata
Eliane Maria Vani Ortega
Fabiana de Cássia Rodrigues
Fernando Rodrigues de Oliveira
Francisco José Brabo Bezerra
Genivaldo de Souza Santos
Igor de Moraes Paim
Irineu Aliprando Tuim Viotto Filho
José Deribaldo Gomes dos Santos
Jussara Cristina Barboza Tortella
Lenir Maristela Silva
Livia Maria Turra Bassetto
Luciana Aparecida Nogueira da Cruz
Márcia Lopes Reis
Maria Rosa Rodrigues Martins de
Camargo
Marilene Proença Rebello de Souza
Mauro Castilho Gonçalves
Monica Abrantes Galindo
Nadja Hermann
Pedro Laudinor Goergen
Tânia Barbosa Martins
Tony Honorato
Comissão de Publicação de Livros do Edital 001/2020 do
Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília
Graziela Zambão Abdian, Patricia Unger Raphael Bataglia,
Eduardo José Manzini e Rodrigo Pelloso Gelamo
S
OBRE O LIVRO
C
atalogação
André Sávio Craveiro Bueno CRB 8/8211
N
ormalização
Nathanael da Cruz e Silva Neto
Diagramação e Capa
Mariana da Rocha Corrêa Silva
A
ssessoria Técnica
Renato Geraldi
O
ficina Universitária Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
Formato
16x23cm
Tipologia
Adobe Garamond Pro
DANIEL SALÉSIO VANDRESEN
Neste livro defendemos que a tarefa ético-política do ensino de loso-
a no ensino médio técnico seja o de proporcionar a aprendizagem do
exercício de si por meio de uma prática losóca que se realiza em uma
tensão agonística do coabitar problemas. Neste trabalho procuramos re-
etir sobre o ensino de losoa como uma prática existencial, isto por-
que, tradicionalmente, o ensino de losoa tem sido analisado sob o víeis
dos processos pedagógicos “do que ensinar?” (reexão sobre conteúdos) e
“como ensinar em losoa?” (reexão sobre metodologias), no entanto,
nossa proposta é de deslocamento das questões de ensino-aprendizagem
para pensar a losoa e seu ensino como uma atitude (êthos losóco),
ou seja, como um exercício de si que transforma a vida. E nesse exer-
cício sobre a vida como criação de experiências singulares e de atitudes
peculiares, a losoa tem um papel indispensável na formação de uma
educação para a diferença, confrontando o atual cenário de crescimen-
to de comportamentos preconceituosos e de espaços de intolerância.
A proposta deste livro é problema-
tizar o ensino de losoa no Ensino Médio
Técnico, pensando a atitude do exercício
de si como a tarefa losóca para a educa-
ção tecnológica. A pesquisa parte do refe-
rencial teórico de Michel Foucault, prin-
cipalmente nos conceitos da ontologia do
presente e da estética da existência, para
pensar uma prática losóca que se reali-
ze como atitude crítica e como modo de
vida. Estes conceitos nos conduziram a se-
guinte questão norteadora: como praticar,
no ensino médio técnico, a losoa como
exercício de si? Nossa hipótese interpreta-
tiva é de que a constituição da tecnicidade
biopolítica da subjetividade moderna con-
duziu ao esquecimento da capacidade de
exercitar-se a si mesmo como condição de
ultrapassagem do assujeitamento do indi-
víduo.
A problematização do ensino de -
losoa na educação técnica é o nosso lugar
de fala e de experiência para escrever esse
livro e, desse modo, contribuir tanto para
o fortalecimento da formação humana, da
atitude losóca e do conhecimento lo-
sóco diante da expansão da educação tec-
nológica nos últimos anos. Enm, enten-
demos a losoa como uma atenção para
consigo que se realiza em uma vida que se
arrisca nos exercícios de si.
Daniel Salésio Vandresen, professor do
Instituto Federal do Paraná - IFPR -
campus Avançado Coronel Vivida.
Doutor em Educação pela UNESP
de Marília/SP (2019). Mestre em Fi-
losoa pela UNIOESTE de Toledo/
PR (2008). Graduado em Filosoa
pela Fundação Educacional de Brus-
que/SC (2002). Vice-coordenador do
Grupo de Pesquisa Filosoa, Ciência
e Tecnologias (IFPR). Chefe-editor da
revista IF-Sophia (ISSN 2358-7482).
Membro do Grupo de Pesquisa EN-
FILO - Grupo de estudos e pesquisa
sobre o ensino de losoa (UNESP/
Marília). Atualmente coordena o pro-
jeto “O ensino de losoa e a escrita de
si como experiência existencial” (PIBI-
C-Jr IFPR/CNPq, aprovado em edital
em 2019 e 2020). Tem experiência na
área de educação, com ênfase em ensi-
no de losoa, atuando principalmente
nos seguintes temas: ensino de loso-
a, técnica, Michel Foucault.
Programa PROEX/CAPES:
Auxílio Nº 0798/2018
Processo Nº 23038.000985/2018-89
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
Daniel Vandresen
o exercício de si como modo
de vida losóca
O ENSINO DE FILOSOFIA
NO ENSINO MÉDIO
TÉCNICO