Intelectuais,
cultura e
pensamento social
no Brasil
Marcelo Augusto Totti
Rodrigo Czajka
(Orgs.)
CULTURA
ACADÊMICA
E d i t o r a
Intelectuais, cultura e
pensamento social no Brasil
I,  
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Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2021
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(O)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
Prof. Dr. Marcelo Tavella Navega
Vice-Diretor
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Conselho Editorial
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Renato Geraldi (Assessor Técnico)
Rosane Michelli de Castro
Parecerista
Prof.ª Dr.ª Meire Mathias
Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, ambos da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Ilustração capa: Alice Curti Czajka
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2021, Faculdade de Filosoa e Ciências
I61 Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil / Marcelo Augusto Totti, Rodrigo Czajka
[organizadores]. – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2021.
241 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-5954-055-6 (Impresso)
ISBN 978-65-5954-056-3 (Digital)
DOI https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3
1. Ciências sociais – Filosoa. 2. Intelectuais – Atividades políticas. 3. Ativistas políticos -
Brasil. 4. Partidos de esquerda. 5. Movimentos sociais. 6. Sociologia. I. Totti, Marcelo Augusto.
II. Czajka, Rodrigo.
CDD 305.5520981
S
Apresentação ------------------------------------------------------------------------- 7
Parte I
"SocIologIa e PenSamento SocIal na concePção
doS IntelectuaIS de eSquerda"
Sociologia e socialismo nos marcos dos Parceiros do Rio Bonito
Marcelo Augusto Totti ------------------------------------------------------------- 15
Leandro Konder, um senhor dialético
Marco Antonio Rossi --------------------------------------------------------------- 29
Um ornitorrinco no pensamento social brasileiro: a trajetória do sociólogo
Francisco de Oliveira
Flávio Mendes ---------------------------------------------------------------------- 47
Teoria crítica à brasileira: Roberto Schwarz entre passado e presente
Fabio Mascaro Querido ----------------------------------------------------------- 65
O Sentido da Colonização e a contribuição de Caio Prado Júnior à
Revolução Brasileira
Anderson Deo ----------------------------------------------------------------------- 87
6 |
Parte II
"teorIa SocIal e mIlItâncIa PolítIca na formação daS eSquerdaS culturaIS"
Intelectuais pela liberdade: cultura, política e o delito de opinião na ditadura
militar Brasileira
Rodrigo Czajka --------------------------------------------------------------------- 117
Hannah Arendt em detrimento da questão social: algumas considerações
sobre a repercussão de sua obra na esquerda brasileira
Maria Ribeiro do Valle ------------------------------------------------------------ 137
Brasilidade e modernidade em foco: visões sociais do Brasil no Cinema
Novo e no cinema paulista dos anos 1960 e 1970
Caroline Gomes Leme ------------------------------------------------------------- 163
Impasses ideológicos e memória estudantil no cinquentenário da obra
O Poder Jovem de Arthur José Poerner
iago B. Castro ------------------------------------------------------------------- 193
Os efeitos da modernização agrícola implantada pelos militares pós-64:
a proletarização do trabalhador rural e o acirramento dos conitos
no campo
Vitor Machado --------------------------------------------------------------------- 213
Sobre Autores ---------------------------------------------------------------------- 237
| 7
A
As pesquisas no campo do pensamento social brasileiro, como
linha de pesquisa que integra a área de sociologia, há muito tem um
espaço importante e necessário nos Programas de Pós-Graduação, nos
eventos cientícos e na ampliação do escopo dos trabalhos de pesquisa.
São consolidados os Grupos de Trabalho sobre Pensamento Social
Brasileiro junto à Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e à Associação
Nacional em Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS),
que contam tanto com os chamados “estudos clássicos”, que possibilitam
desnudar diferentes aspectos da realidade brasileira, mas também com a
ampliação temática e recomposição metodológica, abrindo novas frentes
de pesquisa para a sociologia. Nesse sentido, pesquisas no campo do
pensamento social abarcam não apenas a história intelectual das ciências
sociais, mas constituem uma tradição e uma “linhagem” capaz de reetir
sobre a estrutura social do país e suas contradições formativas.
Por isso, o fortalecimento da linha de pesquisa contribuiu com
a autonomia de produção e diversicação dos temas e objetos abordados
por cientistas sociais que, como podemos observar na leitura dos capítulos
que compõem esse livro, não se restringem aos métodos tradicionais já
consagrados pelos estudos dos “clássicos”, mas propõem um redesenho
do campo de pesquisa, estabelecem novos vínculos com outras áreas de
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p7-12
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
8 |
conhecimento e possibilitam uma relação metodológica profícua com as
investigações nas áreas da história, losoa, educação, literatura e as artes.
Entretanto, vale frisar que esse abordagem não resulta de um
consenso. O processo de renovação e ampliação temática – que inclui
também a proposição de novos objetos e construção de problemas
originalmente estranhos ao pensamento social – tem sido um movimento
gradual que coincidiu (e ainda coincide) com a consolidação da sociologia
no Brasil, a partir da segunda metade do século XX; e os recortes
metodológicos de cunho nacional, bem como as contribuições de outras
áreas foram e continuam a ser objeto de inúmeros debates. A exemplo da
conhecida polêmica surgida no I Congresso Brasileiro de Sociologia, em
1954, entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, que deu mostras dessa
relação entre uma sociologia com métodos adequados à realidade nacional
comparada a outra que concebe os métodos como instrumentos universais
e passíveis de serem aplicados em conjunturas especícas, guardadas as
devidas particularidades de cada região. Aliás, polêmica longe de chegar a
um ponto pacíco e que levou Renato Ortiz a chamar conceitualmente a
sociologia com seus diversos sotaques”.
Nesse sentido, falar em Pensamento Social no Brasil hoje tem
impelido pesquisadores a expandir os limites teóricos e metodológicos da
sociologia na busca de uma abordagem mais pormenorizada do trabalho
intelectual, artístico, da militância cultural e da chamada arte engajada.
Isto é, além de empreender análises em torno das “teorias do Brasil”, as
pesquisas sobre pensamento social têm voltado a atenção sobre as condições
diversas nas quais essas “teorias” foram lidas, interpretadas e colocadas em
debate, seja por intelectuais ou pelos movimentos sociais aos quais eles
estavam atrelados.
E corroborando com o propósito ensejado pelas históricas Jornadas
de Ciências Sociais, realizadas pelo Curso de Ciências Sociais da Unesp de
Marília há alguns anos, marcou época aquilo que cou conhecido como
teorias do Brasil”, com debates intensos sobre intérpretes do pensamento
social e da realidade brasileira. Em vista desse legado das Jornadas, faltava
ao Laboratório Editorial da Faculdade de Filosoa e Ciências da Unesp de
Marília a edição de um trabalho que abordasse essa temática. Foi quando o
Grupo de Pesquisa “Intelectuais, Esquerdas e Movimentos Sociais” (CNPq)
reuniu um conjunto de colaborações e reexões de vários pesquisadores.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 9
Inseridos com suas pesquisas no campo do pensamento social e sua relação
com a cultura, as artes nesta coletânea contribuem para uma análise crítica
da intelectualidade e de sua atuação política no espectro político da esquerda.
O leitor constatará que o livro está organizado em duas seções.
A primeira, intitulada “Sociologia e pensamento social na concepção dos
intelectuais de esquerda” e fundamentalmente versa sobre as bases teóricas
do pensamento social no Brasil e sua relação com uma sociologia engajada,
transformadora e sintonizada com pensamento político de esquerda.
O capítulo de Marcelo Augusto Totti, “Sociologia e socialismo
nos marcos dos Parceiros do Rio Bonito” trata da contribuição de Antonio
Candido à formação da sociologia brasileira e sua relação com as ideias
socialistas. O autor retoma a trajetória de Candido, sua amizade com
Florestan Fernandes, sua participação em grupos de oposição ao Estado
Novo até adesão ao Partido dos Trabalhos e destaca a importância do livro
Parceiros dos Rio Bonito e a inuência de Marx na obra.
Marco Antonio Rossi em capítulo intitulado “Leandro Konder,
um senhor dialético” tematiza sobre a importância da dialética no interior
do pensamento marxista. Ao enfatizar a dialética no Konder como
revigoramento do marxismo, o autor destaca a trajetória de Konder, suas
inuências e debates com as correntes dogmáticas do marxismo e como a
dialética abre a possibilidade de compreender a realidade e possibilitar a
construção de uma teoria revolucionária.
O capítulo seguinte, de autoria de Flávio Mendes, “Um
ornitorrinco no pensamento social brasileiro: a trajetória do sociólogo
Francisco de Oliveira” discute o percurso intelectual de Chico de Oliveira,
as diculdades de sua formação acadêmica marcada pelo provincianismo
não foram impeditivas para alicerçar sua interpretação do Brasil. A curta
e rica experiência na Sudene ceifada pelo golpe civil/militar, a passagem
pela Cepal até ser convidado a trabalhar no Cebrap e publicar a Crítica
da razão dualista, em 1972, quando conquista reconhecimento dentro do
Centro, o engajamento pela redemocratização nos anos 1980, da esperança
à crítica aos movimentos sociais e ao partido dos trabalhadores, o combate
ao neoliberalismo, fazem parte do itinerário traçado por Flávio Mendes,
destacando algo sempre permeou o pensamento de Chico de Oliveira: o
desenvolvimento como centro do debate nacional.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
10 |
Em “Teoria crítica à brasileira: Roberto Schwarz entre passado e
presente”, de autoria de Fabio Mascaro Querido propõe uma análise sobre
a trajetória de Roberto Schwarz desde sua origem familiar de posição de
esquerdas até ser convidado a participar do seminário Marx e sua mudança
para o campo da crítica literária. Ao contrário do que convencionalmente
é denominado de uma sociologia dos intelectuais que privilegia a biograa
dos autores, aqui o leitor debruçará sobre as relações entre a conjuntura
histórico-social e as lutas culturais, políticas, intelectuais e as mudanças de
visão de mundo sofridas por Roberto Schwarz.
Fechando essa primeiro parte, Anderson Deo, com o capítulo “O
Sentido da Colonização e a contribuição de Caio Prado Júnior à Revolução
Brasileira”, analisa a conceito de sentido da colonização descrito em
Formação do Brasil Contemporâneo-Colônia como forma ideocategorial da
particularidade do capitalismo brasileiro. Esse ponto é fundamental para
entender a forma como o capitalismo brasileiro está engendrado dentro das
tramas do capitalismo mundial, baseado nas teses lukacsianas das relações
entre universal e particular, o autor nos mostra como as teses caiopradianas
oferecem uma importante visão sobre o caráter periférico e subordinado de
nossa formação econômica.
Já a segunda parte da obra, denominada “Teoria social e militância
política na formação das esquerdas culturais” visa ampliar os temas e
objetos no campo do pensamento social. Textos que demonstram uma
preocupação com a abrangência do escopo de pesquisa, possibilitando uma
interseccionalidade entre sociologia dos intelectuais, sociologia da cultura
e história das ideias. O capítulo que abre essa seção de autoria de Rodrigo
Czajka, intitula-se “Intelectuais pela liberdade: cultura, política e o delito
de opinião na ditadura militar brasileira”. Neste capítulo o autor aborda
a atividade intelectual do editor Ênio Silveira (proprietário da Editora
Civilização Brasileira) e analisa como sua atuação política, na condição
de militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), produziu condições
para a formação de uma rede de intelectuais de esquerda em torno da sua
casa editorial.
Maria Ribeiro do Valle em “Hannah Arendt em detrimento da
questão social: algumas considerações sobre a repercussão de sua obra
na esquerda brasileira” analisa a obra da lósofa contextualizando o
ponto de partida de suas argumentações a partir da crítica da Revolução
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 11
Francesa e enaltecimento da Revolução Americana. A sua recusa à
tradição hegeliana-marxista, a crítica ao contexto de protesto nos anos
1960 e a repercussão de sua obra no âmbito acadêmica brasileiro são a
tônica do ensaio de Maria Ribeiro.
Em “Brasilidade e modernidade em foco: visões sociais do Brasil
no Cinema Novo e no cinema paulista dos anos 1960 e 1970”, Caroline
Gomes Leme investiga as diferentes fases do Cinema Novo paulista e o
cerne do debates ao qual estava inserido em torno da chamada questão
nacional, com a abordagem de determinada fração do cinema dos “paulistas
do entre-lugar” que, menos centrada no “povo” e na “nação”, apresenta
perspectiva crítica em relação à modernidade urbana capitalista
No capítulo intitulado “Impasses ideológicos e memória estudantil
no cinquentenário da obra O Poder Jovem de Arthur José Poerner”, iago
Bicudo Castro toma como objeto a obra O Poder Jovem de Poerner. Essa
obra analisada por iago Bicudo traz elementos importantes para reetir
sobre a memória do movimento estudantil, de grande importância na
década de 1960 a obra em tela teve enorme ressonância e amparo dentre
membros da UNE.
Encerrando a segunda parte da obra, o capítulo “Os efeitos da
modernização agrícola implantada pelos militares pós-64: a proletarização
do trabalhador rural e o acirramento dos conitos no campo”, de autoria
de Vitor Machado, discute o que denomina de modernização agrícola
implementada pelos militares impulsionada pela nanceirização do
processo tecnológico no campo em detrimento de uma agricultura
camponesa de pequeno porte. Tal fato ampliou os laços com o capital
externo criando complexo agroindústrias e impulsionando a proletarização
do homem do campo como o êxodo rural amplicando os conitos de
terras, a desigualdade e a condição de miserabilidade do homem do campo.
Marcelo Augusto Totti
Rodrigo Czajka
(Organizadores)
Parte I
"Sociologia e pensamento
social na concepção
dos intelectuais de
esquerda"
| 15
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1
Marcelo Augusto Totti
Percebi que havia no Brasil um
veio radical que seria interessante explorar,
para poder tentar aquilo que
sempre foi a aspiração da minha geração:
pensamento socialista que não fosse
tributário das normas impostas pela URSS
Antônio Candido
Quando pesquisamos sobre a construção de uma sociologia no
Brasil inúmeros autores se sobrelevam através de estudos e pesquisas,
Fernando de Azevedo e Florestan Fernandes são dois exemplos de como
Parte das reexões desse texto foram apresentadas na mesa redonda Antônio Candido: sociologia e crítica
literária, realizada no ano de 2017 na Faculdade de Filosoa e Ciências da Unesp de Marília.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p15-28
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
16 |
suas pesquisas redimensionaram a perspectiva sociológica brasileira.
Fernando de Azevedo com estudos mais teóricos nos anos 1930 e 1940,
Princípios de Sociologia, Sociologia Educacional e A Cultura Brasileira são
livros marcantes de um ponta pé inicial. Florestan Fernandes discípulo de
Fernando de Azevedo segue esse caminho adaptando a pesquisa empírica
com as formulações teóricas, denominado pelo próprio autor de estudos
empíricos-indutivos, ambos sociólogos representativos de períodos de
desenvolvimento dos estudos sociológicos no Brasil.
Fernando de Azevedo seria o representante de um período
intermediário que corresponde dos anos 1930 a 1940, uma fase de
consolidação e generalização da sociologia como disciplina universitária
e atividade socialmente reconhecida, assinalada por uma produção
regular no campo da teoria, da pesquisa e da aplicação” (CANDIDO,
2006, p. 271). Florestan Fernandes consolidaria a institucionalização e os
padrões cientícos dessa disciplina nos anos 1950 como representante da
denominada escola de sociologia paulista.
Outros textos e autores
2
também contribuíram de modo
decisivo para esse desenvolvimento e fazem parte de um rol de estudos
que poderíamos situar em um amplo campo denominado de pensamento
social brasileiro, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Casa
Grande e Senzala de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo
de Caio Prado Jr. fazem parte desse rol de uma geração, constituindo em
subsídios fundamentais para análises da sociedade brasileira.
Um texto pouco lembrando e até digamos esquecido pelos
intérpretes da história das Ciências Sociais e que o próprio Antônio
Candido (2006) em seu artigo sobre a sociologia no Brasil não faz referência
é Os Parceiros do Rio Bonito. Esse livro tem uma poesia e estética própria
ao recuperar o homem do campo, seus modos de vida e sociabilidade, a
trajetória é exemplar do início das pesquisas de campo na sociologia e está
imerso dentro de outros tantos estudos, como um dos principais livros de
formulação de uma sociologia. Segundo Santos (2002, p. 34) a seção que
discorre sobre o método é ímpar na sociologia e pede uma leitura crítica
do seu próprio texto, o ato crítico inaugurado por Candido é sugestivo
de “um movimento interpretativo aberto e pautado por alguma uidez,
 A referência aqui será feita para os autores pós anos 1930.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 17
em contraposição à adesão irrestrita a este ou aquele aparato teórico-
conceitual. ”.
Procuraremos retomar a importância dos Os Parceiros do Rio
Bonito como instrumental analítico de construção da sociologia tendo
caráter crítico e radical e com uma inuência marxista, uma leitura “que
prevaleceu em nosso pensamento social até meados dos anos quarenta,
especialmente em autores e obras marcados pelo ‘radicalismo’ de esquerda”.
(JACKSON, 2002, p. 81) ou como deniu Cardoso (2013, p.170) ao
comentar a obra de Candido, “o essencial da contribuição de Os parceiros
do Rio Bonito se mantém: o sentido de problema na relação entre natureza
e cultura e na relação entre diferentes modos de produção (o caipira e
o capitalista)”, ou seja, o sentido da contradição dialética que move o
pensamento radical de Antônio Candido.
amIzade com floreStan fernandeS e a trajetórIa SocIalISta
3
.
Antonio Candido nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho 1918
e posteriormente mudou-se com sua família para a cidade de Santa Rita
de Cássia, sua família tinha forte formação humanística e com alto grau
de capital cultural, algo pouco usual no período, as mulheres liam muito
(JACKSON, 2002) isso lhe rendeu uma condição bastante favorável,
contando ainda o tempo que morou em Paris tendo contato com as artes,
a literatura e a história. O contexto ao desenvolvimento de um amplo
aspecto cultural e intelectual foi muito fértil e “amparada por uma excelente
biblioteca doméstica em Poços de Caldas (MG), onde residiu durante a
infância e a primeira juventude” (AGUIAR, 2014, p.279).
Os anos 1930 foram de grande efervescência política e cultural,
a própria Revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas colocava m
na política oligárquica dos coronéis e ao domínio paulista, que tentaram
dar o golpe com a malfadada “Revolução” Constitucionalista em 1932.
Logo após a derrota em 1932, os paulistas procurariam fazer oposição ao
governo varguista sem o tom belicista, mais por outras vias, a criação das
elites e quadros dirigentes com alta capacidade técnica e intelectual seria
Löwy (2018, p.122) destaca a diculdade de Antonio Candido falar de si, fazer uma autobiograa: “só com
diculdade, em entrevistas diversas, conseguiam seus interlocutores obter alguns fragmentos sobre sua vida”.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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a saída para enfrentar Vargas e regenerar a nação. Em 1934 é fundada a
Universidade de São Paulo com as seguintes expectativas,
As expectativas dos mentores da Faculdade de Filosoa quanto a
seus resultados sobre a vida cultural e política do país, ainda que não
zesse menção especíca à recuperação da posição política perdida
pelos paulistas, nem por isto deixavam de ser grandes. Tratava-se,
a seus olhos, de obra imensa e de signicação sem igual na história
das iniciativas culturais no Brasil. (LIMONGI, 1989, p. 158).
Em 1935, Antonio Candido conclui a escola secundária e em
1937 já militava num grupo de oposição ao Estado Novo
4
. No ano de
1939 “ingressou no curso de direito, que não concluiu, e na recém-criada
Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras da também recém-criada USP,
no curso de Ciências Sociais, que concluiria e seria sua entrada na vida
acadêmica” (AGUIAR, 2014, p. 279). Em 1941 funda em conjunto com
outros intelectuais a revista Clima e no ano seguinte começa a atuar como
professor assistente na disciplina de Sociologia II, do catedrático Fernando
de Azevedo cargo que cou até o ano de 1958.
Justamente nesse período nasce uma intensa e fraternal amizade
que perdurou até os anos nais da vida de Florestan Fernandes, conforme
relata o sociólogo
Falar ou escrever sobre Antonio Candido é para mim extremamente
difícil. A geração à qual pertenço não seria a mesma sem a sua
presença e inuência. Eu próprio não seria o mesmo se a vida não
me pusesse em contato com Antonio Candido, o seu carinho, a sua
severidade íntegra, a sua modéstia e orgulho intelectual – enm,
a sua personalidade de educador, que se erradia irresistível, como
uma exigência de perfeição e de compromisso crítico.
Uma existência fecunda, devotada ao estudo, ao cultivo do talento
dos jovens, ao ensino, ao orescimento da antiga Faculdade de
Filosoa, Ciências e Letras e da Universidade de São Paulo, à
Como lembra Roberto Schwarz (2018, p.11) a militância de Antonio Candido não era meramente política, era
de uma estética avançada e de princípios: “a militância antifascista e o antistalinismo compunham uma atitude
minoritária e esclarecida, que a passagem do tempo não fez envelhecer. Em seu momento, quando a ditadura
Vargas perseguia a esquerda e quando os comunistas, embora perseguidos, perseguiam por sua vez, a posição de
Antonio Candido exigia coragem. Assim, por exemplo, ao saudar a autobiograa de Trotsky em 1943, com um
ensaio chamado ‘Uma vida exemplar’, o jovem crítico corria risco de represália pelos dois lados”.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 19
contestação socialista constante e à esperança de que o Brasil
venceria, através dos mais humildes e dos trabalhadores, as tragédias
de sua dependência e subdesenvolvimento. (FERNANDES, 1995,
p. 94-95).
A relação com Candido era para Florestan Fernandes mais que
uma amizade, “sinto orgulho por sermos colegas fraternos. Eu nunca tive
irmãos, elegi em Antonio Candido a gura do irmão” (FERNANDES, 1995,
p.184). Dessa amizade ocorre um fato inusitado e de grande importância
para o desenvolvimento da Sociologia brasileira. Como se sabe, Florestan
Fernandes teve uma origem humilde e inúmeras diculdades para nalizar
e concluir os estudos conciliando a carreira acadêmica com o trabalho que
não era das tarefas mais fáceis
5
.
Fernando de Azevedo então catedrático da cadeira de sociologia
II tomou conhecimento por intermédio de Roger Bastide, tanto do talento
como das diculdades de Florestan, ali iniciou-se um contato entre eles.
Fernando de Azevedo ofereceu-lhe sua biblioteca, orientação e as condições
nanceiras necessárias para enfrentar as diculdades, Florestan agradece a
oferta e diz que se fosse preciso procurá-lo-ia. O contato acadêmico ocorria
mais frequentemente com reuniões constantes, em certo momento, em
uma dessas reuniões Fernando de Azevedo pergunta se Florestan Fernandes
gostaria de ser professor da Faculdade de Filosoa, Florestan responde que
sim, mas nunca mais tocaram nesse assunto.
Quando se aproximava da nalização do curso de Ciências
Sociais, Florestan havia terminado o curso do professor Paul Hugon
realizando um trabalho sobre comércio exterior no Brasil entre 1822 a
1940. Impressionado com o trabalho e vislumbrando que ali poderia
render um ótimo de trabalho de doutoramento, Paul Hugon deixa o
convite em aberto para Florestan Fernandes trabalhar como seu assistente.
No segundo semestre de 1941, Florestan Fernandes entrega um trabalho de nalização de curso para a
disciplina de Sociologia I do catedrático Roger Bastide, a disciplina ministrada pela assistente Lavínia Costa
Villela pois o Bastide se encontra ausente. Florestan faz um trabalho empírico de recomposição do folclore
paulista e da cultura popular e entrega a professora, que não considerou que levou o enfoque sociológico do
folclore longe demais e atribuiu nota nove. Inconformado com os comentários da assistente, Florestan Fernandes
procura o catedrático da disciplina Roger Bastide que dissera não abandonar tal abordagem e sim aprofundá-la,
na ocasião, Bastide tomou conhecimento das diculdades econômicas do estudante e encaminhou-o a Sérgio
Millet, contato que teve por resultado uma colaboração regular no jornal O Estado de São Paulo, iniciada em
1943.” (GARCIA, 2002, p. 83).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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Nesse ínterim, para sua surpresa, recebe um telefonema de Fernando de
Azevedo convidando-o para uma reunião, o tema era a possibilidade de
ser segundo assistente na cadeira de sociologia II. Nessa reunião é que a
perspicácia e a sutileza de Antonio Candido aoraram de modo preciso,
conforme relato de Florestan Fernandes:
Dr. Fernando, o senhor tem toda a responsabilidade neste
convite. O senhor está convidando um aluno... eu não sou um
professor. O senhor deveria chamar um professor, essa é a sua
responsabilidade. Se eu falhar, aí o senhor não pode transferir
a culpa para mim. Ele levou um susto. Acho que, pela primeira
vez na vida, se deu conta que não se convida um assistente
aleatoriamente. E quem me salvou foi Antonio Candido. Não
sei se Antonio Candido lembra, mas ele naquela perplexidade,
estava mais ou menos inclinado a dizer: ‘Acho que você tem
razão, é melhor procurar outro assistente’. Aí Antonio Candido
disse: ‘Olha, Dr. Fernando, nós todos sabemos muito bem que o
Florestan é burro, que não sabe nada, que incompetente não pode
ser assistente’. Dr. Fernando deu uma gargalhada e o convite cou
acertado. (FERNANDES, 1995, p. 189).
Esse episódio é de fundamental importância para o
desenvolvimento da Sociologia brasileira, visto que a partir da condição de
segundo assistente Florestan Fernandes passa a liderar inúmeras pesquisas
que remodelaram a sociologia no Brasil. Por sua vez, não apenas no plano
subjetivo é ressaltada a importância de ambos, mas de uma perspectiva
contestadora e radical como expoentes do pensamento progressista. Para
Mota (1980, p. 174) nos anos 1950 toda a intelectualidade progressista
ingressou em projetos de cunho reformista e nacionalista, “exceções – e
elas não foram poucas – podem ser encontradas em posições teóricas (e
práticas) assumidas por representantes do pensamento progressista, como
Antonio Candido e Florestan Fernandes”.
Ainda nos anos 1940, Antonio Candido participa do primeiro
Congresso Brasileiro de Escritores de caráter nitidamente de oposição ao
governo varguista, mais precisamente no ano de 1947, em conjunto com
Sérgio Buarque de Holanda adere à Esquerda Democrática, que daria
origem ao Partido Socialista Brasileiro pelo qual foi candidato a deputado
estadual em 1950, mas não teve sucesso no pleito. Em 1966, depois de uma
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 21
temporada em Paris, retorna acenando apoio ao MDB contra o regime
civil/militar e no nal dos anos 1970 assina o manifesto dos intelectuais
pedindo o m da censura.
Nos anos 1980, juntamente com Sérgio Buarque participa da
fundação do Partido dos Trabalhadores. Florestan Fernandes irá aderir
mais à frente em 1986
6
e se candidataria a deputado constituinte, apesar
de trabalhar arduamente nas duas investidas vitoriosas de Florestan tanto
para deputado constituinte como para o mandato parlamentar, “Antonio
Candido conta que, então, comentou com Gilda de Melo e Souza a
coragem do amigo. Com a saúde fragilizada pelos dez anos de hepatite e
por outras complicações, Florestan decidira ‘morrer lutando’” (SEREZA,
2005, p.175).
A entrada de Antonio Candido ao Partidos dos Trabalhadores
que representava naquele momento a expressão de um partido de massas,
formado por trabalhadores e intelectuais, resgatava simbolicamente os
ideais de um projeto socialista, democrático e de ruptura com o status quo
vigente, algo que fora vislumbrado por ele na esquerda democrático dos
anos 1940. Löwy (2018, p. 127) salienta que Antonio Candido permaneceu
el ao Partido dos Trabalhadores, para ele os governos do “PT, de 2012
a 2015, não corresponderam a essa expectativa, mas Antonio Candido,
apesar de suas críticas não deixava de reconhecer as importantes conquistas
sociais obtidas nesse período pelas camadas mais pobres da população
Em visita a Antonio Candido, Michel Löwy relata como cou
impressionado com a síntese lúcida da história do Brasil feito por
Antonio Candido
Nosso país, dizia Antonio Candido, concebeu três grandes Homens
de Estado: Dom Pedro II, que conseguir manter a unidade
lusófona e aboliu a escravidão; Getúlio Vargas, que inaugurou a
industrialização do país e introduziu as primeiras leis trabalhistas;
e Lula, que permitiu à maioria do povo conquistar importantes
direitos sociais. (LÖWY, 2018, p. 127).
Segundo Sereza (2005) Florestan apesar da simpatia tinha resistência ao que denominava ser um caráter um
tanto “light” do Partido dos Trabalhadores e irá aderir após uma reunião com Lula, José Dirceu e Eduardo
Suplicy.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
22 |
Antonio Candido faleceu em 2017 aos 98 anos de idade, sua
lucidez e delidade às ideias do socialismo democrático que incorpore os
debaixo permaneceu até os últimos dias de sua vida. Esses ideais estavam
nas críticas ao Partido dos Trabalhadores, que ao longo de seus anos no
governo distanciou-se desse ideário. A avalição de Antonio Candido
colocando o ex-presidente Lula no rol de grande estadista está mais próxima
de uma delidade ao Partido dos Trabalhadores superestimando a gura
de Lula, na avaliação de Löwy (idem) “é um grande elogio ao presidente
Lula, mas... bastante ambíguo, considerando que a bandeira do PT em
seus primeiros tempos era a autoemancipação dos trabalhadores”, ambíguo
e até contraditório com as origens petistas, mas consonante e coerente com
a personalidade de Antonio Candido.
o SocIalISmo PreSente em oS ParceIroS do rIo BonIto
Antes de adentrarmos propriamente na obra Os Parceiros do Rio
Bonito, cabe para ns de análise retomar um estudo feito por Candido em
1943 coordenado por Roger Bastide, com os assistentes das cadeiras de
Sociologia I e II da Faculdade de Filosoa da Universidade de São Paulo. O
trabalho de campo tinha como intenção levantar material folclórico sobre
os batuques na cidade de Tietê, Antonio Candido “se ofereceu para car
alguns dias a mais, o grupo voltou a São Paulo na manhã seguinte à festa,
e fez uma série de entrevista para a vericar a repercussão do batuque.
(JACKSON, 2002, p. 33).
Essa pesquisa foi salutar ao perceber a distribuição praticamente
estraticada entre as classes em Tietê;
[...] a importância da situação social para denir a classe a que
pertence o indivíduo, e a dependência em que o sentimento deste
se encontra relativamente ao consenso coletivo. Daí, portanto, o
valor dado, pelos indivíduos em ascensão, às maneiras, hábitos e
atitudes da classe mais elevada. E daí a tenacidade com que se,
opõem a qualquer vislumbre de confusão com o povo. ‘A ideologia
de um dado período é a ideologia das suas classes dominantes
ensina Marx. (CANDIDO, 1947, p. 103).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 23
A pesquisa em Tietê evidenciava que nas sociedades de baixa
mobilidade vertical ocorre um sistema rígido de classes, Antonio Candido
identicou três classes sociais: classe social I – do vértice da pirâmide,
formada por setores aristocratas e família tradicionais, a Classe II, uma
espécie de “classe média baixa” que conseguiu alguma ascensão econômica,
mas mantinham valores e práticas plebeias e Classe III – o setor subalterno
formado principalmente por negros e mulatos.
As formas de distinção criadas pela classe I davam o tom do
que Antonio Candido chamou de “situação de classe”, o pertencimento
a uma determinada classe não requer apenas posses, mas prestígio, estética
e comportamentos que evidenciam a distinção de uma classe a outra.
Nesse sentido, o preconceito e o racismo foi algo constatado na pesquisa
delimitada pela expressão cultural dos negros; o batuque.
A repulsa assumia, igualmente, motivos variados: humilhação (‘será
que não há em Tietê outra coisa para mostrar, além dessa negrada’),
revolta (‘é o cúmulo explorar esses pobres negros, fazendo-os de
palhaços’), sentimento de insegurança (‘daqui a pouco os rapazes
de família vão cair no batuque’), preconceito moral (‘onde já se viu
arranjar oportunidade para negra dar umbigada’; ‘daqui a pouco
vamos ter negrinha deorada’) preconceito religioso. (CANDIDO,
1947, p. 99).
Tal evento, a batucada, fora patrocinado pela prefeitura e esse
fator causava revolta e aorava o preconceito de raça, inclusive e mais
perniciosamente dos membros da classe II e os membros do grupo
eclesiástico. Os intelectuais da cidade independente do pertencimento a
classe II ou III revelaram determinada autonomia de opinião, descolando
da posição majoritária da classe de origem. Esse foi o primeiro artigo de
Antonio Candido na Sociologia e revela os prenúncios de sua abordagem
com ênfase às classes subalternas, buscando analisar as contradições da
sociedade e partindo “do fato concreto em direção à teoria – foram os dados
obtidos nas entrevistas que conduziram à interpretação” (JACKSON,
2002, p.33).
Essas condições também estão presentes em Os parceiros do Rio
Bonito, obra que nasce sobre uma poesia manifesta no Cururu – expressão
artística e cultural dos caipiras paulistas. A pesquisa demonstrou uma
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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complexidade e o senso de realidade em que se inscrevia o cururu suscitaria
um trabalho especial. A partir desse contexto, que começa a pesquisa sobre
os caipiras, segundo Fernandes (1995, p.97)
A pesquisa foi feita com enorme sacrifício pessoal e a elaboração do
livro foi lenta e exigente. Por seu intermédio, um tipo de homem
pobre ‘livre
7
ganhou espaço na estante dos clássicos, iluminou-se
uma parcela do Brasil dos de baixo, o que eles são, como gente
e portadores de uma civilização excluída e de uma sociedade
subalternizada. Ampliou-se a área dos nossos contemporâneos
que não são coetâneos da história ocial, mas que apresentam um
desao: eles não podem ser apenas ‘objeto’ da reforma agrária ou
dos movimentos libertários e humanitários da sociedade civil.
Além de revelar um outro sujeito social na sociedade brasileira,
branco, pobre e com um tipo cultura subalternatizada, Candido lança
aspectos de remodelação do fazer sociológico porque alia a escrita ensaísta,
avançando nos aspectos descritivos, sem deixar de lado a inuência da
análise sociológica ao qual alerta o “leitor verá que aqui se combinam,
mais ou menos livremente, certas orientações do antropólogo a outras mais
próprias do sociólogo” e mais adiante ratica “a Antropologia tende, no
limite, à descrição dos casos individuais, enquanto a sociologia tende à
estatística” (CANDIDO, 2010, p.21).
Essa característica não era predominante na sociologia, com a
vinda dos professores franceses na Universidade de São Paulo, o ensaísmo
vinha sendo superado pela ênfase aos estudos empíricos e os trabalhos de
campo. A importância do rigor metodológico era uma forma de orientar
e garantir a cienticidade da pesquisa, sem cair em achismo e suposições
equivocadas. Na realidade, Antonio Candido alia a escrita ensaística com o
rigor sociológico fazendo uma mescla e possibilitando um olhar mais sutil
sobre o objeto pesquisado.
Essa relação do homem pobre e livre também foi explorada por Maria Sylvia de Carvalho Franco em seu
livro Homens livres na ordem escravocrata (FRANCO, 1997), fruto de sua tese de doutorado, ao qual um
dos membros da banca foi Antonio Candido. Em seu livro, inclui a violência como forma de sociabilidade do
caipira, que poderia soar com uma crítica aos Parceiros do Rio Bonito. Em entrevista concedida a Luiz Carlos
Jackson (2002, p.137-138) ao ser questionado sobre essa crítica, Antonio Candido é categórico: “Não creio que
haja crítica. Maria Sylvia sempre foi simpática ao livro. Pode-se dizer que ela aborda aspectos que não abordei,
como a violência. Aliás o seu livro não é exatamente sobre o caipira pobre, dependente, como o meu, mas
engloba a classe dominante rural, fonte principal de violência”.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 25
A sutileza é perceptível quando analisa a rusticidade do caipira, ao
relatar uma inuência marcante do indígena e do bandeirante, que pode
ser demonstrada na rudeza de tratamento como sendo muito valentes e
resistentes. Essa inuência bandeirante pode ser notada no caráter nômade
do caipira, na transmissão de sua cultura que passava de geração à geração.
Outro aspecto analisado foi a economia fechada, de um trabalho
isolado resultante de uma agricultura extensiva e itinerante, “foi um recurso
para estabelecer o equilíbrio ecológico: recursos para ajustar as necessidades
de sobrevivência à falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento
maior da terra” (CANDIDO, 2010, p.55). Apesar dessa diculdade
técnica, o caipira tinha o seu domínio, mesmo rudimentares e sem grande
produtividade, esse domínio técnico refere-se à sua ligação com a terra e
a natureza, que incluía uma relação de respeito e cuidado mais ligada ao
trabalho concreto nos termos de Marx, conforme descreve no prefácio:
[...] devo a obra de Marx a consciência da importância dos meios
de vida como fator de dinâmico, tanto de sociabilidade, quanto
da solidariedade que, em decorrência das necessidades humanas,
se estabelece entre o homem e a natureza, unicados pelo
trabalho consciente. Homem e natureza surgem como aspectos
indissoluvelmente ligados de um mesmo processo, que se desenrola
como História da sociedade. (CANDIDO, 2010, p. 15).
Ao observarmos de maneira descontextualizada o caipira, pode
nos levar ao entendimento da utilização de uma técnica retrograda em
relação a natureza: a queimada. Porém, sua relação umbilical com a terra e
com a natureza era bem distinta, a relação com o tempo não era marcada
pelo cronômetro, a colheita e a plantação eram regidas pelas festas religiosas,
essa relação com o tempo e com a natureza não tem como fundamento
o processo de acumulação e passa ao largo das relações capitalista. Esse
contraponto as relações capitalistas são expressas por uma dieta rudimentar,
pobre e uma agriculturade pouco acúmulo, de subsistência e uma vida de
precariedade.
Antonio Candido faz uma análise de uma sociologia da
subsistência, esse camponês pobre que vivia em casas de palha, cheia
de animais peçonhentos, não paravam em local especíco devido sua
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
26 |
mobilidade contínua, inerente ao seu modus de vida e sociabilidade, que é
oposto da noção de propriedade privada.
A mudança na vida do caipira começa a ocorrer com o avanço da
economia capitalista, que muda sua relação com a terra e o trabalho, da
cooperação de uma economia doméstica, visto que o caipira não tinha como
horizonte a poupança, basicamente o que ele tinha trocava com outros
produtos. Isso ca mais evidente quando o caipira se vê na necessidade de
trabalhar com a noção de compra e venda e desponta a ideia de regularidade
e irregularidade. A perspectiva doméstica da compra dos insumos para o
plantio e a irregularidade da venda gerava um desbalanceamento da relação
entre receita e despesa afetando diretamente seu trabalho no mundo rural.
Esse processo força o trabalho individualizado, que multiplica o esforço
físico do caipira e atroa qualquer forma coletiva de trabalho, agregasse o
avanço da empresa capitalista no campo levando esse caipira ao processo
de proletarização.
Outro fator que marca profundamente esse modus de vida
é a densidade demográca, o espaço urbano começa invadir o meio
rural e diminuir a quantidade de terras disponíveis, mesmo as pequenas
propriedades passam a enfrentar a concorrência da grande empresa
capitalista do campo extinguindo a cultura do nomadismo e contribuindo
para a própria extinção da cultura do caipira,
Em momentos como o nosso, quando vemos as possibilidades de
ação sobre a Natureza e a sociedade aumentarem em número e
eciência, podemos realmente compreender, segundo as expressões
centenárias de Marx, que a ‘cidade resulta da concentração de
população, dos instrumentos de produção, do capital, dos gozos,
das necessidades, enquanto o campo mostra justamente o contrário,
o isolamento e a separação. A oposição entre campo e cidade só
pode existir no quadro da propriedade privada. É a expressão mais
grosseira da subordinação do indivíduo à divisão do trabalho e a
uma determinada atividade que lhe é imposta. Subordinação que
faz de um, um animal limitado da cidade, de outro, um animal
limitado do campo, reproduzindo cada dia o conito dos seus
interesses. (CANDIDO, 2010, p. 259).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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A implementação da lógica capitalista aniquila a cultura do
caipira restando-lhe algumas alternativas: um processo de resistência ou
assimilação e incorporação da cultura capitalista ou tentar uma assimilação
mista. Evidente que o caipira acaba aderindo e assimilando esse novo modus
de vida, que foi difundida e implementada por políticas governamentais
nos anos 1950, tais políticas demonstravam nenhum apreço e respeito
pela cultura caipira e de sua relação com natureza. A política de levar o
homem do campo para a cidade culminou em processo de urbanização
do campo e de barateamento dessa força de trabalho na cidade. Assim,
Antonio Candido (2010, p. 257) defende a tese de reforma agrária, “a
situação estudada nesse livro leva a cogitar o problema da reforma agrária”.
Antonio Candido recupera um marco civilizatório e alerta para
um problema estrutural da sociedade brasileira, a urbanização do campo
levou ao um traumatismo econômico e social. Essa grande empresa
capitalista gestada no campo não produz alimentos para saciar a fome do
povo, o intuito é uma produção em larga escala, com alta produtividade
e lucratividade com ns de exportação. Certamente crítico dessa vertente,
Antonio Candido aponta uma saída civilizatória para a sociedade brasileira
e para a sobrevivência de culturas tradicionais.
O livro Os Parceiros do Rio Bonito pode ser inserido no rol dos
clássicos do pensamento social, a tese de Antonio Candido é inovadora em
vários sentidos, mas em um período em que a sociologia e o pensamento
social brasileiro pouco abordavam as classes subalternas, Antonio Candido
faz aparecer na literatura o caipira, sua cultura, seu modus de vida.
Homem pobre de cultura rústica que pouco interessava à sociologia,
mas era elemento fundamental da referência de Antonio Candido para
a construção do socialismo; o sentido da relação entre homem e natureza
não passa apenas pelo lucro e os anseios do capital e sim pelos processos de
sociabilidade construído por esse homem simples.
referêncIaS
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| 29
L K,  

Marco Antonio Rossi
1
Ninguém vai me tirar
o coração
O mundo vai mudar
com as nossas mãos
Wander Tao
2
Em aula magna
3
na PUC-Rio, em 2003, para referendar sua
elevação à titularidade acadêmica, Leandro Konder aborda as tensas
 Sociólogo e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).
Trata-se de refrão de uma canção, muito tocada nos shows de Wander Tao, mas nunca gravada. Leandro
Konder costumava abrir os capítulos de seus livros com trechos de canções da MPB.
Proferida em 28 de março de 2003, na Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro, sob título “A dialética
e o marxismo” e publicada na Revista Chronos n. 02, da UNIRIO, dedicada, na íntegra, a Leandro Konder.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p29-46
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
30 |
relações entre o marxismo “ocial” e a dialética. Apostando no que
chama de “inesgotabilidade do real” ou “irredutibilidade da realidade
ao conhecimento”, o autor de A questão da ideologia traça um panorama
fecundo e ao mesmo tempo preocupante da história da dialética, dando
ênfase aos desaos que lhe estão à frente.
Para superar o determinismo a que foi condenada pelo movimento
operário e comunista, entre ns do século 19 e início do século 20, a
dialética precisaria dedicar-se à própria reconstrução, esforçando-se por
ampliar a desconança em relação às ideologias deformadoras da consciência
humana e alimentar a autoconança que se encontra no conceito de práxis
e se qualica nas subjetividades autocríticas.
Arma Konder (2006, p.96):
A construção do conhecimento necessita de desconança em
relação a si mesma e também de autoconança. Em que a dialética,
na concepção de Marx, pode contribuir para a satisfação de cada
uma dessas necessidades? [...] A contribuição para a desconança
vem pela ligação com o conceito de ideologia: a distorção
ideológica pode ser tão sutil que eu não a perceba inltrar-se em
meu ponto de vista, em minhas razões, em minha ciência, em
minhas intuições. [...] A contribuição para a autoconança vem
pela ligação com o conceito de práxis, a atividade do sujeito que
de algum modo aproveita algum conhecimento ao interferir no
mundo, transformando-o e se transformando a si mesmo. [...] Se
a práxis não se ligar a uma constante crítica das ideologias, ela irá
degenerar em pragmatismo.
A dialética, então, requer uma contumaz crítica às ideologias,
cujo eixo deve orientar-se pela práxis. Pensar e agir deixam de ser verbos
divorciados e passam a existir em conjunto, num movimento que
articula ideias, emoções e condutas revolucionárias. É nesse sentido que a
subjetividade surge na dialética, para combater o determinismo das “causas
objetivas” e, na mesma intensidade, encarar a necessidade de acolher a
diferença, o surpreendente, o novo.
Hegel, explica Konder, embora reconhecesse as contradições do
mundo que se manifestam diante do espírito, acreditava numa dialética
que orbitava uma razão constituída, na qual os sujeitos não têm condições
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 31
de interferir. Para Marx, a dialética é exatamente o que resulta do
conhecimento humano e sua interface com aquilo que os sujeitos fazem na
realidade. Por isso, Marx vê a história como um produto possível da razão
humana, obstruída em Hegel pela irrazão obsessiva dos fatos absolutos. A
dialética em Marx, portanto, preconiza uma razão constituinte, em nome da
qual os seres humanos se posicionam diante de seus limites, enfrentam as
circunstâncias e abrem o campo da mudança à ação previamente pensada
e elaborada, ou seja, à práxis.
No desenvolvimento de sua exposição, Leandro Konder atesta
que, na história do marxismo, essa compreensão da dialética como razão
constituinte foi denegada. Se o ímpeto de Marx era estabelecer “uma crítica
implacável contra tudo que existe”, as urgências da luta política impuseram
outra questão: em nome de alguns avanços na vida partidária e de uma
suposta inuência nos movimentos de massa, que os socialistas julgavam
necessário preservar e ampliar, os partidos, sindicatos e associações de
inclinação “marxista” (as aspas simbolizam o excesso de contravenções
cometidas por essa expressão) enrijeceram as ideias e se entregaram
a variações da teoria evolucionista, do mecanicismo sociológico e do
determinismo econômico. Alheia à abertura inerente a um mundo real
dinâmico e contraditório, a dialética se fechou e se empobreceu. Perdeu,
destaca o autor de A derrota da dialética, sua conexão com a dialógica.
Não há dialética quando se torna impossível estabelecer uma
relação franca entre interlocutores de diferentes pontos de vista. Fechada
em si mesma, a dialética perde elasticidade, capacidade de produzir a velha
síntese dos contrários, superando as aparências e caminhando rumo às
essências dos fenômenos sociais. Sob os cuidados do “marxismo ocial”, a
dialética não estimulava reexões, não induzia a dúvidas, não valorizava o
pensamento do oponente nos então obstruídos debates. Assim, convertia-
se naquilo que Karel Kosik
4
, em A dialética da moral e a moral da dialética,
advertiu ser a perigosa escolha entre uma “Bela Alma” – defensora de
uma falsa pureza que a desvia dos riscos da ação, imobilizando-a – e um
“Comissário” – que crê possuir uma “Verdade” inquestionável e capaz de
orientar tudo e todos.
As referências a Karel Kosik por Leandro Konder são constantes. O marxista brasileiro se aproveitava das
ideias do lósofo tcheco para reetir, sobretudo, acerca das possibilidades de construção de uma ética marxista.
As orelhas da edição brasileira de A dialética do concreto (Editora Paz & Terra), principal obra de Kosik, foram
escritas por Konder.
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Para superar a crise que a mergulhou em dogmatismo e
irracionalidade, a dialética requer, como postula Konder (2006, p. 98),
assumir um recomeço:
Cabe-lhe resgatar a força da dialógica, que chegou a desempenhar
um papel tão importante nos escritos de Platão, abrindo espaço
no movimento do pensamento para a incorporação necessária do
discurso do outro como pré-requisito para a elevação da losoa em
direção ao mundo das ideias. [...] Cabe-lhe associar a radicalização
de sua vocação crítica [...] a uma modéstia metodológica e a uma
vigilância autocrítica que lhe permitam enxergar suas próprias
limitações e a estimulem a buscar naquilo que surge de novo no
campo de seus interlocutores/contraditores elementos que podem
– surpreendentemente – ensejar a ampliação de seus horizontes.
Leandro Konder enfatiza ainda as possíveis relações que a dialética
tem com a mística. Por estar aberta ao novo, a dialética não prescinde
da admissão de que o real é maior do que suas habilidades de apreendê-
lo, signicá-lo no conjunto dos conhecimentos existentes. Na busca por
mediações para abordar certa transcendência da realidade, a dialética deve
ter modéstia e muita serenidade. No escopo do “marxismo ocial” – um
eufemismo para marxismo vulgar e a-histórico –, esse tipo de reexão seria
considerado heresia.
A natureza, em si, não dene a vida em sociedade. Do modo
como foi interpretada pelos não dialéticos, a história era portadora de uma
condição inquebrantável, cujos contornos eram de total domínio de seus
representantes legitimados pelos partidos e órgãos instituídos. Até meados
do século 20, quando a obra de marxistas de nova cepa ganha espaço
público (textos de Antonio Gramsci, Georg Lukács e Walter Benjamin,
por exemplo), a dialética era vista e utilizada como método puro ou
doutrina superior, um receituário de explicações irreplicáveis da realidade.
Esse engessamento produziu inúmeros equívocos à esquerda, os quais, de
diferentes maneiras, impulsionaram dolorosas derrotas ao pensamento
progressista. Recomeçar, para a dialética, seria também reivindicar uma
revanche
5
na batalha das ideias.
Leandro Konder, a revanche da dialética é título de uma compilação de textos apresentados durante a VI Jornada
de Estudos da UNESP/Marília-SP (1998), dedicada ao autor de Marx: vida e obra e publicada em parceria com a
Boitempo Editorial em 2002. O nome do evento não poderia ser mais indicativo e oportuno.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 33
**
O nascimento de Leandro Augusto Marques Coelho Konder
foi registrado em 03 de janeiro de 1936
6
, na cidade de Petrópolis-RJ.
Em 12 de novembro de 2014, após duas décadas de pugna contra o
Mal de Parkinson, faleceu na capital uminense. Em suas Memórias de
um intelectual comunista, obra lançada em 2008, Konder revela que se
tornou comunista aos 15 anos, em grande medida por inuência direta
do pai Valério Konder, médico sanitarista, militante histórico do PCB. Ao
longo de mais de 60 anos, renovou sua aposta losóca no marxismo e na
capacidade de os seres humanos superarem o capitalismo e organizarem uma
sociedade justa, livre e fraterna. É importante endossar: renovou sua aposta
losóca. O autor de Bartolomeu
7
assegura em seus escritos autobiográcos
que ser comunista não é repetir no século 21 propostas programáticas e
juízos políticos formulados por Marx no século 19. Para não se tornar uma
monstruosidade, todo programa político deve ser revisitado periodicamente,
atendendo às exigências de seu tempo, aos desaos do momento histórico.
É oportuna, aqui, a lembrança de Gramsci e de seu historicismo absoluto:
é preciso um esforço a mais na tarefa de pensar a realidade historicamente.
A geração de intelectuais
8
da qual Konder fez parte fortaleceu-
se na luta teórico-política após a famosa Declaração de Março de 1958, do
PCB (uma sinalização de novos rumos após as estremecedoras denúncias
do secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita
Kruschev, em 1956, contra Joseph Stalin). O autor de A democracia
e os comunistas no Brasil foi desde sempre crítico contumaz da opção
marxista-leninista” do Partido Comunista do Brasil, de sua enorme
É curiosa e bem-humorada a história que Leandro Konder conta sobre a divergência entre a sua data de
nascimento e a de seu registro: “Durante muito tempo, achei que tinha nascido no dia 3 de janeiro de 1936. Um
dia, meu lho Caíto, que devia ter uns 8 anos, estava fazendo um horóscopo chinês e perguntou à minha mãe em que
ano eu nascera, e ouvi quando ela respondeu: 1935. Estranhei a informação. Foi então que ela me contou a verdade:
eu nasci, de fato, no dia 31 de dezembro de 1935, às 23h30. Perplexo, indaguei por que ela nunca me havia dito isso.
E minha mãe, candidamente, alegou: ‘Você nunca perguntou...’” (KONDER, 2008, p.13).
É digna de nota a incursão de Leandro Konder pela literatura como escritor de romances. Ele publicou dois
livros: Bartolomeu (Relume-Dumará, 1995) e A morte de Rimbaud (Companhia das Letras, 2000).
A geração de 1958 saiu fortalecida do 5.º Congresso do PCB. Orientada pela perspectiva democrática do
chamado “marxismo ocidental” e também pela reivindicação de um eurocomunismo pelo Partido Comunista
Italiano, menos centralista e mais aberto aos movimentos políticos da sociedade civil, a geração de 58’ teve, no
Brasil, a participação/produção de intelectuais como Carlos Nelson Coutinho, Michael Löwy, Marco Aurélio
Nogueira, Armênio Guedes, entre muitos outros.
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resistência aos horizontes da democracia. Em busca de explicações
e ilustrações para o raquitismo democrático na cultura brasileira,
Leandro Konder encontrou em seus estudos um país de sociedade civil
gelatinosa, além de uma estrutura de poder que assumiu inteiramente os
processos de mudança social, dirigindo-os por cima, sem participação
popular e apoiada em sucessivos golpes de violência institucionalizada
contra os trabalhadores.
A partir de 1958, Konder entendeu que havia espaço no PCB para
sua leitura de Marx e do Brasil. Nos debates internos do partido, de modo
singular, apostou na democracia radical para enfrentar e superar o legado
quase nada dialético dos comunistas brasileiros. Konder reverenciava a
coragem e o desprendimento da maioria dos lutadores do PCB no país,
ainda que se sentisse no dever de indicar seu voluntarismo e sua carência
da compreensão do marxismo e das ricas dinâmicas da história.
Sobre a postura de Leandro Konder nas disputas internas do
PCB, escreve Marcos Del Roio (2002, p. 135):
Leandro Konder exercia a crítica da tradição comunista no Brasil,
crítica do ‘marxismo-leninismo’, mas ao mesmo tempo vasculhava
o passado em busca de vestígios e brotos do tema da democracia.
Explicava a débil cultura democrática dos comunistas pela forte
inuência do meio histórico: uma sociedade civil fraca e um
desenvolvimento capitalista pela ‘via prussiana’, entrecruzaram-se
com a ideologia “marxista-leninista” (melhor seria dizer “stalinista”)
que veio a predominar no PCB. O resultado foi um discurso e
uma cultura carregados de doutrinarismo e uma prática política
que resvalava para o’golpismo’.
No livro A democracia e os comunistas no Brasil, publicado em
1980, Konder (1980, p.16) sublinha o profundo desacerto que produzia
na cultura brasileira a debilidade da sociedade civil. Acostumado a criar
pontes entre a realidade e a literatura, entre a ciência e a arte, ele cita o
personagem Fabiano, de Vidas Secas, do mestre Graciliano Ramos, para
ilustrar o modo como se inseria na experiência cotidiana a tragédia da
onipresença estatal, coercitiva e violenta:
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 35
A fraqueza da sociedade civil marca a própria psiquê dos brasileiros,
em geral. Uma poderosa imagem disso se encontra no romance
Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Fabiano, o personagem principal,
encontra por acaso, no interior do Nordeste, o ‘soldado amarelo’ que
o tinha humilhado e espancado um ano antes, quando o camponês
fora à cidade; o soldado está perdido, Fabiano está armado, é uma
excelente ocasião para vingar-se. O camponês hesita, mas acaba
dando ao soldado a informação que este pede para poder sair do
local. Fabiano poupa o ‘soldado amarelo’ porque – explica para si
mesmo – ‘governo é governo’. Se o seu universo conceitual fosse
mais rico, Fabiano poderia ter dito: ‘o Estado é sempre o Estado’.
Logo à frente, no capítulo subsequente, Konder (1980, p. 17)
expõe as vísceras do controle estatal brasileiro, cujo centralismo nos
processos sociais de mudança produz no país uma das mais agressivas
expressões da “via prussiana”:
O Estado é sempre o Estado: é da sua própria natureza que ele se
faça envolver por uma névoa destinada a produzir na maioria da
população a impressão de que ele é um poder misterioso, inacessível,
inexpugnável. No Brasil, essa névoa, mesmo sem conseguir ser densa,
tem sido historicamente muito ecaz, desarmando no espírito de
homens simples como Fabiano qualquer esperança (e minando
na base o ânimo crítico-revolucionário). Quando a máscara de
intocabilidade não basta e algum Fabiano se subleva, o braço da
repressão o esmaga. Foi o que aconteceu com os quilombolas no
nal do século 17; com o Tiradentes na impropriamente chamada
“incondência mineira”; com João de Deus do Nascimento, Luís
Dantas de Amorim Torres, Manoel Faustino dos Santos Lira e Luís
Gonzaga das Virgens, na Bahia, em 1799; e com Joaquim Nunes
Machado, na revolta “praieira”, em 1849.
A “modernização conservadora” foi a regra da condução política
no Brasil. Essa estratégia – que Lenin denominava “via prussiana” e Gramsci
encarava como “revolução passiva” – visava conter impulsos populares
e retóricas revolucionárias, promovendo pelo alto transformações que
distribuíssem migalhas aos mais pobres, dando-lhes a entender que o
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Estado é o Estado, ou seja, realiza aquilo que é necessário sem interferências
nem cobranças.
Konder notou que essa ideologia pouco afeita à práxis não era
privilégio exclusivo das classes dominantes. No decurso do tempo, essa
aversão ao diálogo – e, no limite, à dialética – contaminava também os
estratos sociais mais progressistas e a mentalidade daqueles que se julgavam
representantes históricos das classes subalternas. O esforço do autor de
Marxismo e alienação por compreender as dinâmicas internas da luta
política dos comunistas lhe permitiu constatar que a dialética havia sido,
parafraseando Sérgio Buarque de Holanda
9
, um enorme mal-entendido no
Brasil. Como “renovador”, nos quadros do PCB, Konder sofreu sucessivas
derrotas no embate contra espíritos refratários aos ideais democráticos. Nas
conferências e congressos do PCB, a opção democrática era descartada em
nome de perspectivas centralistas e autoritárias, quando não apoiadas em
sombras do inoportuno culto à personalidade. Após décadas de militância
e defesa da democracia como opção para os comunistas do Brasil, Leandro
Konder deixa o PCB, ocialmente, em 1982. Percorreria outros partidos,
como o Partido dos Trabalhadores (PT), e terminaria como um dos
fundadores do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A decisão por se
dedicar à educação, à escrita de livros e à história das ideias socialistas,
no entanto, sobressaiu. A dialética, ao lado da democracia como valor
universal
10
, seria então a protagonista de sua inserção no debate público,
como, verdade seja dada à luz, jamais deixara de ser.
***
A dialética, na visão de muitos marxistas, tinha um caráter épico,
como lembra Konder em um dos capítulos de suas memórias. Exatamente
por acharem que ela não poderia ser nunca derrotada, a dialética deixou de
Em Raízes do Brasil, livro publicado em 1936, o historiador paulista arma que, capturada por uma elite
semifeudal, a democracia havia sido desde sempre um lamentável mal-entendido.
10
Lançado em 1979, um pouco antes de A democracia e os comunistas no Brasil (1980), o ensaio A democracia
como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho – amigo fraterno e parceiro de ideias e lutas de Konder por
mais de 40 anos – provocava um controvertido e pioneiro debate sobre as relações nem sempre amistosas entre o
socialismo e a democracia, no Brasil e no mundo. Sua premissa, a de que democracia e socialismo são siameses,
permanece muito atual.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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travar as batalhas nas quais sua presença era tão necessária. Em seu lugar,
comparecia uma mistura mal-ajambrada de positivismo e evolucionismo,
algo bem próximo a um método invencível de avaliação da realidade,
repleto de superpoderes.
Na verdade, esse apego cego às vicissitudes indestrutíveis da
dialética acabava, na prática, se convertendo em profundo desprezo
por suas efetivas possibilidades. Como já apontado, a dialética requer o
desnudamento das ideologias à sua volta e a conança nos postulados da
práxis, ou seja, de um conhecimento que tencione a realidade (objeto) e
a consciência (sujeito) ao mesmo tempo. Assim, a dialética deve se valer
de si mesma para compreender suas condições de entendimento da vida
sob o capitalismo. É nesse momento que entram em cena duas destemidas
palavras-chave: mediações e uidicação dos conceitos.
O conhecimento possui dimensões prontas e ainda por se
realizarem. Nesses termos, pode-se falar em contatos imediatos e mediatos
entre sujeito e objeto. O imediato é aquilo que se dá no encontro entre o
que vive e o já vivido: trata-se de um saber já experimentado, rapidamente
percebido. O mediato, de outra maneira, depende de circunstâncias e
condições que variam no tempo e no espaço. A melhor utilização de um
objeto depende da relação que se tem com ele. Assim, quanto mais questões
são formuladas pelo sujeito da ação, melhores são suas disposições diante
daquilo que almeja conhecer. Um instrumento musical, por exemplo, se
apreciado de modo meramente prático (imediato, para tocar uma música)
deixa de se revelar em sua historicidade. Anal de contas, quem o inventou?
A quais estilos serve de forma mais efetiva? Quais musicistas o dominam de
forma mais virtuosa? Em que álbuns musicais aparece executado de exímia
maneira? Que arranjos outras culturas musicais fazem de sua sonoridade?
Para cada uma dessas questões, uma série de mediações se torna necessária
para a construção de respostas. Viajar no tempo, percorrer inúmeros
espaços, buscar variadas fontes e compará-las, tudo isso requer apoio em
conhecimentos já elaborados, a m de esboçar novos saberes sobre as
práticas cotidianas. O uso dialético das mediações, portanto, impede que
se atribuam fundamentos eternos ao conhecido, ao uso imediato de tudo
que existe. O que há pode vir a ser diferente – e o que virá será alterado
outras vezes, de acordo com as mediações eleitas subjetivamente.
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Em O que é dialética, livro que Konder publica em 1981, em
seus derradeiros momentos como militante do PCB, “derrotado” pelos
adversários do conhecimento mediatizado, há novo recurso às relações entre
Hegel e Marx na tentativa de elucidar as diferenças entre o que cogitavam
os dois lósofos a respeito das possibilidades da dialética. Analisa Konder
(2003, p. 51):
É compreensível [...] que até hoje existam muitas discussões sobre
a dialética de Marx. Quais são, precisamente, suas características
essenciais? Quais são, precisamente, suas relações com a dialética
de Hegel? (...) Hegel descrevia o processo global da realidade
da seguinte maneira: a Ideia Absoluta assumiu a imperfeição
(a instabilidade) da matéria, desdobrou-se em uma série de
movimentos que a explicitavam e realizavam, para anal, com a
trajetória ascensional do ser humano, iniciar – enriquecida – seu
retorno a si mesma. Essa descrição – que é claramente idealista
supõe o conhecimento do ponto de partida e do ponto de chegada
do movimento da realidade. Quer dizer: é a descrição do processo
da realidade como uma totalidade fechada, “redonda”. Marx, como
materialista, não podia aceitar essa descrição: para ele, o processo
da realidade só podia ser encarado como uma totalidade aberta,
quer dizer, através de esquemas que não pretendessem “reduzir” a
innita riqueza da realidade ao conhecimento.
Algum tempo mais tarde, recuperando as investigações que havia
iniciado durante o exílio na Europa, entre 1972 e 1978, e que resultariam
em sua tese de doutoramento, A derrota da dialética, defendida em 1987,
na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Leandro Konder
entende que, embora se declarassem materialistas, os comunistas do início
do século 20 defendiam uma visão romântica e idealista da dialética,
redonda”, “imediata”, avessa ao caráter inexoravelmente surpreendente da
realidade. Na abertura de sua tese, na seção intitulada Nota preliminar sobre
a dialética, Konder (1988, p.09) assevera:
O modo de pensar dialético [...] implica um esforço constante
da consciência no sentido de ela se abrir para o reconhecimento
do novo, do inédito, das contradições que irrompem no campo
visual do sujeito e lhe revelam a existência de problemas que
ele não estava enxergando. A exigência do reconhecimento
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 39
de todas as contradições pode entrar em choque (e, de fato,
com frequência entra) com exigências de outro tipo, que são as
exigências ligadas às tarefas práticas urgentes que a luta política
apresenta aos revolucionários. Em determinadas circunstâncias,
o reconhecimento da complexidade e da contraditoriedade do
quadro da ação pode paralisar – ou ao menos entorpecer – a
intervenção ecaz do sujeito no combate; em tais circunstâncias,
os dirigentes políticos das forças pragmaticamente comprometidas
com a mudança tendem a mobilizá-las através de fórmulas não
dialéticas, cujo efeito lhes parece ser mais direto e imediato.
Certo “irrealismo político”, portanto, aprisionava os marxistas às
suas próprias circunstâncias, forçando-os a desviar os sentidos do uxo do
tempo. A questão passava a ser mais a defesa de uma determinada visão
de mundo, com suas particularidades e intransigências, e (bem) menos a
aceitação de que nada há fora dos eventos históricos. “Marx não reconhece
a existência de nenhum aspecto da realidade humana situado acima da
história ou fora dela” (KONDER, 2003, p.53). O que, então – para além
do exagerado apego ideológico às suas causas e vantagens políticas –,
induzia os marxistas a essa postura não dialética?
Konder (1988, p.09) suspeita ter encontrado o o de Ariadne
11
:
[...] não podemos esquecer o fato de que os revolucionários são
seres formados pela própria sociedade que estão negando, de modo
que estão sempre marcados pelo mundo que desejam modicar.
Com a divisão social do trabalho, com a hipercompetitividade
estimulada pelo mercado capitalista, a insegurança se generaliza
e atinge todas as pessoas: não só aquelas que temem mudanças
históricas como aquelas que, em princípio, estão empenhadas em
promovê-las. A insegurança penetra na “alma” do combatente e o
leva a se apoiar em certezas, a procurar fundamentar suas opções
em valores inquestionáveis.
É pelo juízo de que a dialética necessita de si mesma para
enfrentar o congelamento da realidade e libertar os revolucionários das teses
11
O o de Ariadne, expressão pertencente ao vasto universo mitológico dos gregos, representa, metaforicamente,
o cordão que conduz os sujeitos pelos labirintos da alma humana e os traz de volta à realidade, com as respostas
necessárias aos desaos da existência.
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redondas” e “imediatas” de explicação do mundo e das relações sociais,
conduzindo-se, portanto, pela humildade humana diante da grandeza da
história, que a uidicação dos conceitos se apresenta com pertinência.
Comparando Hegel a Marx, no uso de categorias conceituais
para capturar as mudanças qualitativas das ideias e dos fenômenos da vida,
Konder (2003, p.51-53) relata:
Para dar conta do movimento innitamente rico pelo qual a
realidade está sempre assumindo formas novas, os conceitos com
os quais o nosso conhecimento trabalha precisam aprender a ser
“uidos”. Hegel [...] lançou as bases para a “uidicação” dos
conceitos; em Hegel, no entanto, a “uidicação” cava limitada
pelo caráter excessivamente abstrato do quadro global (totalidade)
da história humana. Isso se vê, por exemplo, no uso do conceito
de natureza humana: em Hegel, o ser humano que promovia o
movimento da história era uma abstrata “autoconsciência”, ligada
à tal da Ideia Absoluta, praticamente desvinculada dos problemas
que afetam o corpo dos homens, de modo que a “natureza humana”,
tal como Hegel a entendia, era idealizada, tinha muito pouco
de “natureza” e por isso lhe faltava uma dimensão histórica mais
concreta. Marx, por sua vez, conseguiu “uidicar” muito mais
radicalmente o conceito de natureza humana. Para Marx, o homem
tinha um corpo, uma dimensão concretamente “natural”, e por isso
a natureza humana se modicava materialmente, na sua atividade
física sobre o mundo: “ao atuar sobre a natureza exterior, o homem
modica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”. O movimento
autotransformador da natureza humana, para Marx, não é um
movimento espiritual (como em Hegel) e sim um movimento
material, que abrange a modicação não só das normas de trabalho
e organização prática de vida, mas também dos próprios órgãos dos
sentidos: o olho humano passou a ver coisas que não enxergava
antes, o ouvido humano foi educado pela música para ouvir coisas
que não escutava antes, etc. “A formação dos cinco sentidos” –
escreveu Marx – “é trabalho de toda a história passada.
Leandro Konder insiste que é na história que o conceito de dialética
proposto por Marx tem suas melhores chances de desenvolvimento. Nesse
sentido, a natureza humana se faz e refaz em face das mediações escolhidas
pelos sujeitos do pensamento e da ação. Ao se relacionar com o mundo, o
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| 41
ser humano cria uma realidade à sua imagem e semelhança, reinventando
a si mesmo, aprimorando os sentidos, abrindo oportunidades para que sua
natureza” se altere profundamente. Essa síntese entre dialética objetiva
– a força arbitrária das circunstâncias – e dialética subjetiva – o poder
das escolhas articuladas com o desejo de mudança – acusa a realidade de
ser vertiginosamente instável, imprevisível. Os processos revolucionários
que se pretendam mais avançados e abrangentes não podem prescindir
da constatação de que as mediações corretas, unidas ao desprendimento
de deixar que os conceitos “uam” no tempo e no espaço, denem os
atributos do conhecimento e, em alguma medida (provisória e imperfeita,
é claro), o curso dos fenômenos. Anal, os homens fazem a sua própria
história (abertura dada pela práxis), mas não exatamente como querem (por
conta de impedimentos ideológicos).
****
O otimismo ativo é uma caraterística da conduta pessoal de
Leandro Konder. Seus estudos sobre os sucessivos mal-entendidos que
a dialética despertou na mentalidade dos revolucionários no Brasil e no
mundo poderiam levá-lo ao desespero ou à condenação do marxismo
como opção teórica e prática. A ausência da dialética nas contribuições
dos bravos combatentes da história, contudo, não signica que ela não
existe. Ao contrário: simboliza sua força, ao passo que alerta sobre sua
complexidade. Por ser exigente, a dialética não se afeiçoa aos espíritos
acomodados, dispostos a converter em verdade palavras feitas e lugares-
comuns. E por se revelar excessivamente caprichosa, ela não se permite
acompanhar de doutrinarismo e mesquinharia teórica – a dialética, numa
palavra, como enfatiza Konder (2003, p.87), lembrando o argentino Carlos
Astrada, é semente para alimentar dragões
12
.
A dialética insiste em dotar as consciências do senso de que
as mudanças são o epicentro da realidade. Sem parecer óbvia, ela quer
12
A imagem da dialética como semente lançada aos dragões, que Leandro Konder reproduz em O que é dialética,
é uma resposta à acusação de José Guilherme Merquior contra o método de Marx. Segundo o ensaísta liberal,
em As ideias e as formas, a dialética não passa de uma dama de prazeres fáceis, com a qual se obtém resposta para
tudo. Pensada dialeticamente, contudo, a própria dialética é exigente e não se presta a delírios gratuitos, fora do
tempo histórico e das limitações impostas pelas ideologias hegemônicas.
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ser insubmissa. Para tanto, exige que a crítica que os sujeitos em seu
nome dirigem ao mundo seja também direcionada à sua própria atuação.
Para estarem efetivamente habilitados a contestar, os indivíduos e grupos
dialéticos têm o dever de se autocriticarem, direta e impiedosamente.
A máxima de Terêncio continua profícua: “Nada que é humano deve
parecer estranho”.
Konder (2003, p.85, 87) assegura:
A dialética não dá “boa consciência” a ninguém. Sua função não
é tornar determinadas pessoas satisfeitas consigo mesmas. O
método dialético nos incita a rever o passado à luz do que está
acontecendo no presente; ele questiona o presente em nome do
futuro, o que está sendo em nome do que “ainda não é” [...]. Um
espírito agudamente dialético como o poeta Bertolt Brecht disse
uma vez: “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai car
tal como está”. Essa consciência da inevitabilidade da mudança
e da impossibilidade de escamotear as contradições incomoda os
beneciários de interesses constituídos e os dependentes de hábitos
mentais de valores cristalizados.
E recorrendo a razão constituinte com a qual deve ser preenchida
a dialética como modo de ver o mundo, Konder (2003, p.87) interpõe o
caráter incômodo do método de dar sementes aos dragões:
A dialética intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos,
perturba desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários. Para
os que assumem, consciente ou inconscientemente, uma posição
de compromisso com o modo de produção capitalista, a dialética
é “subversiva”, porque demonstra que o capitalismo está sendo
superado e incita a superá-lo. Para os revolucionários românticos
de ultraesquerda, a dialética é um elemento complicador utilizado
por intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as fantasias
irracionalistas, desmarcara o voluntarismo e exige que as mediações
do real sejam respeitadas pela ação revolucionária. Para os
tecnocratas, que manipulam o comportamento humano (mesmo
em nome do socialismo), a dialética é a teimosa rebelião daquilo
que eles chamam de “fatores imponderáveis”: o resultado da
insistência do ser humano em não ser tratado como uma máquina.
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| 43
A dialética, ensina Konder, desagrada a gregos e troianos. Seu
espírito rebelde põe em xeque todas as tentativas de congelamento da
história – negação da práxis – e todas as crenças que se julgam imunes às
deformações ideológicas presentes em seu âmago. Negar, conservar, superar:
o movimento dialético é ousado, não oferece concessões e reivindica o
direito de transformar o mundo, para muito além de apenas interpretá-lo,
como vaticina Marx na famosa 11.ª tese sobre Feuerbach.
*****
Dialética tem duplo signicado em sua origem etimológica
no grego: em dia, tem-se a ideia de reciprocidade, diálogo; para logos
(substantivo) ou logein (verbo), atribuem-se tanto o signicado de
palavra, discurso, quanto o de razão. Desdobramento de diálogo,
a expressão dialética pressupõe que a vida em sociedade seja
intercambiável, transada, repartida entre suas distintas partes. Isso é da
palavra (do enunciado da existência) e da razão (da capacidade humana
de criar e recriar a si e o mundo).
Konder em sua obra dá centralidade à dialética não apenas em
termos teórico-conceituais, como em O que é dialética e A derrota da
dialética, publicações inteiramente dedicadas à compreensão de suas
desventuras na história, mas, essencialmente, no modo como aborda os
objetos vivos de sua investigação losóca. Em seus escritos sobre a arte,
a alienação, o fascismo, a educação, a ideologia, entre inúmeros outros, o
autor de Sobre o amor inebria-se da dialética como instrumento de análise
e, também, visão de mundo, historicizando tudo à volta, contextualizando
personagens, cenários e enredos. Os livros dedicados a protagonistas da
história do socialismo – como Charles Fourier, Flora Tristan, Walter
Benjamin, Georg Lukács e o poeta Bertolt Brecht, para citar alguns –
ilustram bem o caso: muito mais do que inventariar vida e obra, Konder
posiciona seus biografados nas lutas de seu tempo, nas diculdades de
enfrentamento das questões ligadas ao poder e às mentalidades e culturas
hegemônicas. A dialética, portanto, aparece nas linhas e entrelinhas de
suas narrativas.
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Para o historiador Lincoln Secco (2002, p. 120-121), a inuência
de Antonio Gramsci e Walter Benjamin sobre o pensamento de Konder,
sintetizada na consolidada opção luckacsiana de juventude, é fundamental
para entender sua adesão à dialética e à superação de eventuais visões
etapistas da história. Gramsci convenceu-o a colocar tudo na história e a
destacar o papel da cultura nas formações sociais de tipo “ocidental”, com
fortes sociedades civis e complexas “guerras de posição”, em detrimento à
perspectiva “oriental” de “guerras de movimento
13
. O espírito democrático
em sua visão de mundo advém, certamente, dessas convicções, que se
somam ao desejo, tal qual em Benjamim, de fugir à linearidade da ideia de
progresso e, assim, “escovar a história a contrapelo”.
A tarefa de negar o que está dado, conservando seus aspectos
positivos e, por isso, mais duradouros e relevantes, superando as experiências
sociais alicerçadas na exploração humana, está na dialética de Marx e
se enriquece no chamado “marxismo ocidental”
14
, do qual fazem parte
autores e obras que moldaram a consciência de Leandro Konder. A opção
do autor de O futuro da losoa da práxis pela arredia dialética só se tornou
possível porque uma geração de marxistas, dentro e fora do país, encarou
o desao de oferecer veias democráticas ao sangue socialista, contagiado
pelos malogros dogmáticos que assaltaram a cena mundial no curso do
século 20. A aposta dialética de Konder, portanto, fez-se lufada de ar fresco
na luta pela renovação do marxismo e na reivindicação da democracia
como valor inegociável entre os comunistas. Como ele mesmo insistia em
13
Para o comunista sardo Antonio Gramsci há dois tipos de processos revolucionários, que ele analisa no 7.º de
seus Cadernos do Cárcere: aquele que se desloca por irrupções e tomadas do poder (“guerra de movimento”) e
aquele que depende do fortalecimento da sociedade civil, num caminho aberto e democrático para a oposição
de ideias e visões de mundo (“guerra de posições”). O primeiro tipo ocorre onde a sociedade civil é fraca e
desarticulada, carente de maturidade política (“oriente”, em alusão a Revolução de Outubro, 1917). A segunda
é típica das sociedades europeias, nas quais as lutas políticas se efetivaram no curso do tempo e propiciaram a
maturidade da luta de classes e a busca por consenso e hegemonia (“ocidente”). Vale ressaltar que Gramsci não
faz referências a parâmetros geográcos para denir sociedades de um tipo ou de outro: a questão é, portanto,
política e cultural.
14
A defesa de um “marxismo ocidental” em oposição às correntes orientadas pela inuência soviética aparece,
de modo precursor, em Perry Anderson (Considerações sobre o marxismo ocidental, 1976) e, antes, em Merleau-
Ponty (As aventuras da dialética, 1955). O termo e o tema são controversos. Domenico Losurdo, por exemplo
(em Marxismo Ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer, 2017), aponta que a separação do
marxismo em “duas partes” renega as contribuições valiosas que cada lado poderia aproveitar do outro. Ainda
assim, os representantes do “marxismo ocidental”, como Gramsci, Benjamin e os frankfurtianos, foram lidos de
modo ligeiro, buscando-se neles mais do que se podia ler em suas obras, o que os desvirtuava funcionalmente
em benefício de interesses especícos e, como tais, limitados. Isso, de acordo com Losurdo, levou a vertente
ocidental” do marxismo ao colapso. Apesar dessas polêmicas, a ideia de “marxismo ocidental” é aqui empregada
para fortalecer a perspectiva dialética contra os engessamentos dogmáticos do nominado “marxismo ocial”.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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armar, sempre de bom-humor, tratava-se mesmo e uma aposta, de um
ato de fé.
Numa época em que a esperança
15
anda tão combalida, é bom
saber que passaram pelo mundo sujeitos como Leandro Konder, que não
perderam a fé.
referêncIaS
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de
Janeiro: Salamandra, 1984.
DEL ROIO, Marcos. Leandro Konder, um capítulo da história dos intelectuais. In:
PINASSI, Maria Orlando (org.). A revanche da dialética. São Paulo: UNESP, Boitempo,
2002. p.127-142.
KONDER, Leandro. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
KONDER, Leandro. A derrota da dialética. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
KONDER, Leandro. A dialética e o marxismo. Revista Chronos: publicação cultural da
UNIRIO/Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, 2006.
KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KONDER, Leandro. Hegel, a razão quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
KONDER, Leandro. Memórias de um intelectual comunista. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.
KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 2003.
KONDER, Leandro. Walter Benjamin, o marxismo da melancolia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
KOSIK, Karel. A dialética da moral e a moral da dialética. In: VOLPE, Galvano Dellaet
al. Moral e Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 99-117.
LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como
pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018.
SECCO, Lincoln. Leandro Konder, leitor de Gramsci. In: PINASSI, Maria Orlando
(org.). A revanche da dialética. São Paulo: UNESP; Boitempo, 2002. p. 102-114.
15
É sintomática a frase de Walter Benjamin que Leandro Konder escolhe para concluir a apresentação do livro em
que biografa o autor das Passagens: A esperança só nos é dada por consideração àqueles que não têm mais esperança”.
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Flávio Mendes
Num famoso prefácio que escreveu a Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda, Antonio Candido cunhou uma clássica denição da
importância da chamada “Geração de 1930” na história do pensamento
social brasileiro. Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. teriam
estabelecido as bases a partir das quais o país passou a ser interpretado, num
contexto em que Getúlio Vargas ampliava os esforços pela construção do
Estado nacional. Em suas obras, aqueles três autores “parecem exprimir a
mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que
eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado
Este trabalho apresenta alguns resultados de pesquisa de doutorado em sociologia realizada na UNICAMP
com o apoio da FAPESP (MENDES, 2015).
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p47-64
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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pelo Estado Novo” (CANDIDO, 2011, p. 9). A geração que se formou
naquele período – que tem a chegada de Getúlio Vargas à presidência, em
1930, e o golpe militar, em 1964, como marcos – espelhou-se na obra e na
conduta intelectual dos clássicos.
Sob essa inuência e em meio ao auge do ciclo desenvolvimentista,
período em que a construção da nação parecia cobrar o engajamento de
todos, nomes importantes do pensamento social brasileiro apareceram. Na
sociologia o destaque em geral recai sobre o eixo Rio-São Paulo: a Escola
Paulista, liderada por Florestan Fernandes na Universidade de São Paulo
(USP), que revelou nomes como Fernando Henrique Cardoso e Octavio
Ianni; e os intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB), do Rio de Janeiro, como Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe.
Havia diferenças entre ambas as escolas: na USP prevalecia a busca por um
elevado padrão cientíco, algo que inuenciava até mesmo os marxistas
do famoso Seminário Marx, criado em 1958 por alunos da Faculdade de
Filosoa; já o ISEB era marcado por um engajamento mais nítido de seus
pesquisadores no debate político nacional, sobretudo em torno de questões
relacionadas ao desenvolvimento. Independente do lado, o clima do
período chamava à ação política. Tanto que em 1961 os paulistas criaram o
Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), também liderado
por Florestan Fernandes. Revelava-se, assim, uma transição do sociólogo e
de seus alunos: as pesquisas sobre temas culturais, que predominavam na
década anterior, abriam espaço para um envolvimento maior com o clima
político do período.
Essa breve introdução serve para começar a traçar uma diferença.
A trajetória do sociólogo Francisco de Oliveira, tema deste trabalho, destoa
um pouco desse padrão mais conhecido. Sua formação se deu em outro
espaço – no Recife, sobretudo – e a partir de outros referenciais teóricos.
Apenas mais tarde, já no nal dos anos 1960, ele passou a fazer parte de um
círculo intelectual formado majoritariamente por representantes da Escola
Paulista. Esse caminho, reconstruído a seguir, fornece valiosas pistas para
compreender algumas das especicidades de seu pensamento.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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recIfe, oolho do furacão
Nascido no Recife, em 1933, Francisco de Oliveira se formou
em Ciências Sociais na mesma cidade durante os anos 1950. Ao longo do
curso, recém-criado, ele não teve muito contato com textos dos três autores
clássicos do pensamento social brasileiro. Nem mesmo Gilberto Freyre,
seu conterrâneo, frequentava as bibliograas das disciplinas, reexo de seu
baixo prestígio no meio universitário recifense.
2
Também estavam ausentes
do curso três pilares da formação sociológica: Émile Durkheim, Karl Marx
e Max Weber. Àquela altura a grade curricular dos cursos de sociologia do
país ainda variava muito. Só mais tarde um padrão de trabalho acadêmico
e determinadas linhas de pensamento se tornariam referências em nível
nacional, em grande medida a partir do exemplo da Escola Paulista. Há,
portanto, uma diferença fundamental entre a formação de Francisco de
Oliveira e aquela de seus futuros colegas intelectuais, quase todos formados
na Faculdade de Filosoa da USP. Ao reetir sobre esse fato décadas depois,
o sociólogo armou:
Se pudesse escolher o que gostaria de saber aos 21 anos, escolheria
saber mais sobre minha área acadêmica. Meu curso era fraco, de
província. Os professores eram improvisados. Queria ter tido
acesso a uma bibliograa mais rica. Queria ter estudado mais Marx
naquela época. Para ler Marx ou se falava alemão ou se comprava
as edições panetárias publicadas pelo Partido Comunista. Depois
de formado, aos poucos fui lendo e supri minhas carências.
(OLIVEIRA, 2009).
À parte certa injustiça que há em se cobrar uma igualdade entre
os currículos àquela altura, ainda antes da imposição de um padrão,
é interessante notar que Oliveira não compartilhou a mesma formação
básica de Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, por exemplo,
autores com os quais manteria um diálogo constante a partir dos anos
1970. Ambos também se envolviam em leituras aprofundadas dO Capital,
de Marx, no nal dos anos 1950. Se as Ciências Sociais ainda não os
aproximavam era o clima político e ideológico do país que cumpria essa
2
Freyre estava ligado ao Instituto Joaquim Nabuco, mais dedicado à valorização da cultura regional, enquanto
a Universidade do Recife, atual Federal de Pernambuco, alinhava-se ao projeto de modernização e centralização
executado por Getúlio Vargas. Francisco de Oliveira falou sobre o tema em uma entrevista (MONTERO;
MOURA, 2009, p. 149-150).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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tarefa: o nacional-desenvolvimentismo e as esperanças de modernização
da sociedade brasileira estavam presentes em São Paulo, no Rio de Janeiro
e em Pernambuco, embora de formas diferentes. Por outros caminhos,
portanto, Francisco de Oliveira se encontraria igualmente inspirado por
aquele sentimento progressista, que tinha o centro-sul do país como polo
irradiador. Desde a periferia ele pode identicar e viver as contradições
desse programa.
Distante das obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda
ou Caio Prado Jr., Oliveira encontraria em Celso Furtado as bases para
construir sua visão sobre o Brasil. Foi também pelas mãos do economista
que ele entrou no debate e na luta política por transformações estimuladas
pelo ciclo desenvolvimentista no Brasil. Sobre a importância de Formação
econômica do Brasil, maior obra de Furtado, Oliveira armou:
Furtado converte-se – é forte o termo – em demiurgo do Brasil.
Ninguém, nestes anos, pensou o Brasil a não ser nos termos
furtadianos. Essa obra tem uma imensa signicação na história
brasileira. Coloca-se, seguramente, ao lado de Casa-grande & senzala
de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda
e Formação do Brasil contemporâneo de Caio Prado Jr. – obras que
explicaram o Brasil aos brasileiros. A obra de Furtado, no entanto,
vai além: não porque seja teoricamente superior, senão porque foi
escrita in actione. Enquanto as anteriores explicaram e ‘construíram
o país do passado, a de Furtado explicava e ‘construía’ o Brasil dos
seus dias: era contemporânea de sua própria ‘construção’. Nenhuma
obra teve a importância ideológica de Formação econômica do Brasil
em nossa recente história social. (OLIVEIRA, 2003b, p. 19, grifos
do autor).
O primeiro contato entre o jovem sociólogo pernambucano e
o já consagrado economista paraibano ocorreu em 1959. Oliveira, que
trabalhava na área econômica em órgãos de desenvolvimento regional, teve
a oportunidade de participar de um curso de formação organizado pela
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), no Rio de Janeiro,
liderado por Furtado. Em seguida somou-se ao restrito grupo que atendeu
ao chamado do economista para participar da criação da Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste. Lançada com o apoio entusiasta do
então presidente Juscelino Kubitschek, a SUDENE foi concebida como
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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um órgão de planejamento que tinha a tarefa de levar o desenvolvimento
ao Nordeste através da industrialização. O programa do órgão se inspirava
nos trabalhos de Celso Furtado sobre a economia mundial e as disparidades
entre as nações chamadas subdesenvolvidas e as desenvolvidas. Esse modelo
dualista foi transposto para o contexto nacional, marcado por uma grande
desigualdade na divisão inter-regional do trabalho. Na SUDENE, sediada
no Recife, Francisco de Oliveira foi o braço direito de Celso Furtado e
viveu o “olho do furacão” da política nordestina:
Foi a melhor experiência pessoal que tive. Trabalhar no olho do
furacão. Porque estava no Nordeste, eram as Ligas Camponesas de
um lado, o “diabo-a-quatro” de outro, a pressão sobre a SUDENE
era violentíssima. A gente estava no meio de quatro ou cinco
fogos, não era apenas um lado. Tinha a Liga Camponesa de um
lado e a Igreja Católica, que era muito ativa, do outro. E um
movimento estudantil muito forte. A burguesia açucareira – que
estava querendo retomar o tempo perdido – foi importante, os
latifundiários. O Partido Comunista era forte, com um pé atrás:
desconava do Celso [Furtado], mas apoiava. Então era um pau só.
(JINKINGS et al., 2007, p. 18-19).
Apesar de Furtado ser uma referência intelectual incontornável,
os jovens servidores da SUDENE também viviam sob a inuência
da agitada política pernambucana, onde as contradições do nacional-
desenvolvimentismo eram sentidas de modo intenso. A força da esquerda
naquele estado era considerável: com o apoio do PCB, Miguel Arraes, do
Partido Social Trabalhista, fora eleito governador em 1962. Antes ele já
ocupava a prefeitura do Recife. Ele era amigo de Francisco de Oliveira,
que o visitava para discutir a política nacional após as viagens que fazia
pela SUDENE ao Rio de Janeiro e à Brasília. Sem dúvida o programa
de Celso Furtado para a região também animava suas conversas. Outros
servidores de destaque da Superintendência também eram próximos
de Arraes ou do PCB. Era o caso de Jader Andrade, membro do grupo
inicial do órgão e responsável por sua diretoria de política agrária.
Andrade deixou a SUDENE para assumir a Secretaria de Agricultura de
Pernambuco na gestão de Arraes. Ele era amigo de Francisco de Oliveira
desde o período em que trabalharam juntos no Banco do Nordeste, ainda
antes da criação da SUDENE. Outro funcionário próximo dos comunistas
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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era Nailton Santos, irmão do geógrafo Milton Santos, responsável pelo
setor de recursos humanos.
3
As relações políticas, sobretudo com setores
da esquerda, ajudavam a moldar Francisco de Oliveira. Formado a partir
de militância católica na juventude, o sociólogo se sentia mais próximo do
Partido Socialista. Porém, apesar de nunca ter se liado ao PCB, era através
das publicações deste partido que ele tinha acesso a obras de Marx.
A rica experiência na SUDENE durou pouco: em 1964, o golpe
civil-militar cassou os direitos políticos de Celso Furtado, que deixou o
Brasil. A Superintendência passou a sofrer a intervenção dos militares e
Francisco de Oliveira acabou preso. Quando deixou a prisão, após dois
meses, o sociólogo tentou regressar ao trabalho, mas percebeu que não havia
mais espaço ali para ele, um “subversivo”. As atividades dos servidores se
desenvolviam sob rigorosa vigilância e a permanência no Recife se tornou
arriscada. O sociólogo deixou então sua cidade natal e passou pelo Rio de
Janeiro e por Santiago do Chile, onde já estavam Furtado, Cardoso e outros
intelectuais brasileiros. Sem espaço na capital chilena ele seguiu para a
Guatemala, convidado pela CEPAL para atuar numa missão de assistência
técnica, na qual trabalhou por um ano. Depois foi para o México, onde
atuou no Centro de Estudos Monetários Latino-Americanos por mais dois
anos. Regressou ao país apenas no nal daquela década e, em seguida,
recebeu o convite de Octavio Ianni para participar do recém-criado Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento, o CEBRAP.
o ceBraP: da crítIca marxISta à luta Pela democratIzação
Fundado em São Paulo sob a liderança de Fernando Henrique
Cardoso, o CEBRAP foi criado com o objetivo de abrigar pesquisadores
atingidos pela repressão. A maioria compartilhava uma formação comum
na Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras da USP. Muitos perderam seus
cargos nessa instituição após o AI-5. Francisco de Oliveira era um estranho
3
Essas informações foram coletadas em entrevistas com antigos funcionários da SUDENE. Também me baseio
em páginas de Inquérito Policial Militar nas quais são citadas as relações de Oliveira com os servidores comunistas
do órgão. Este documento é repleto de exageros. Para os militares, o sociólogo era um dos responsáveis pela
cubanização da SUDENE” e por acolher as “reivindicações ‘subversivas’ dos funcionários esquerdistas e das
Associações dos Servidores”. O documento ainda fala de um conito entre Oliveira e Furtado a respeito dos
mecanismos de isenção scal concedido ao capital do centro-sul do país, nos quais se baseava boa parte da receita
do órgão. Este Inquérito pode ser acessado no arquivo digitalizado pelo projeto Brasil Nunca Mais.(BRASIL:
NUNCA MAIS, processo 266, p. 5154).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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no grupo, sem trajetória acadêmica e com poucos trabalhos publicados.
4
Ele entrava para a equipe do CEBRAP graças ao seu amplo conhecimento
técnico, sobretudo na área de economia, e por sua experiência vinculada
ao desenvolvimento regional. Duas aptidões valorizadas por um
Centro que pretendia realizar uma revisão crítica do modelo nacional-
desenvolvimentista e de seu colapso a partir de uma perspectiva mais
ampla, que não se restringisse a São Paulo.
Assim como Paul Singer, Francisco de Oliveira era considerado
um economista no CEBRAP, onde a maioria dos pesquisadores tinha
formação em sociologia.
5
Porém, a partir da publicação do ensaio Crítica
à razão dualista, em 1972, Oliveira rompeu qualquer tipo de barreira que
a princípio pudesse existir entre ele e os mais destacados pesquisadores do
Centro. Tanto que em 1974 ele passou a integrar o conselho deliberativo do
CEBRAP. Seu ensaio foi muito bem recebido nos “mesões”, reuniões onde
os textos dos pesquisadores do Centro eram debatidos com a participação de
convidados ilustres. A discussão sobre Crítica à razão dualista, por exemplo,
contou com a participação de Caio Prado Jr. O ensaio consolidava a ruptura
de Francisco de Oliveira em relação ao nacional-desenvolvimentismo, alvo
maior de sua crítica. Conceitos marxistas – como mais-valia, acumulação
primitiva, luta de classes e imperialismo – apareciam como suportes para
aprofundar análises que, em boa medida, os autores desenvolvimentistas
já tinham esboçado sem, contudo, levá-las às últimas consequências. Era o
caso da desigual divisão internacional do trabalho, tão bem percebida por
Celso Furtado e Raúl Prebisch, mas incompreendida, segundo Oliveira,
graças à ausência do conceito de imperialismo. Do diálogo entre seu
passado desenvolvimentista e o marxismo, com o qual tinha maior contato
no CEBRAP, surgiu um trabalho que parece ao mesmo tempo próximo
e distante de cada um dos polos.
6
O ensaio não se enquadra na escola
da CEPAL, com a qual a ruptura é bem explícita, mas mantém um pé
nela. Quanto ao marxismo, apesar do uso de muitas de suas categorias,
Seus textos de maior importância até aquele momento eram dois artigos publicados na Revista Civilização
Brasileira (OLIVEIRA, 1965, 1966). No primeiro o autor critica o plano econômico dos militares ainda a partir
de um referencial nacional-desenvolvimentista. No segundo, publicado um ano depois, já é notável uma ruptura
em relação à Escola da CEPAL através de uma análise dos limites do planejamento econômico em sociedades
capitalistas. Neste caso ele escrevia sob a inuência de teses pecebistas.
 “Chico era tido como economista, era um dos economistas do CEBRAP” (SINGER, 2006, p. 16).
6
Sobre o ensaio, Oliveira armou: “A Crítica à razão dualista tenta apanhar esses caminhos cruzados: como crítica,
ela pertence ao campo marxista, e, como especicidade, ao campo cepalino.” (OLIVEIRA, 2003a, p. 128).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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o autor não chega a atingir a rigidez metodológica perseguida por alguns
de seus colegas de CEBRAP, entre os quais havia muitos ex-membros do
Seminário Marx. Isto se deve, em parte, ao apelo à forma ensaística.
Crítica à razão dualista se tornou um clássico por agrupar
num só documento o esforço de revisão crítica do passado populista-
desenvolvimentista que inspirava os intelectuais de esquerda do Brasil nos
anos 1970 e, também, o clima de desesperança que se sentia sob o auge
da ditadura no país. No ensaio, o autor apresenta o capitalismo brasileiro
como um sistema rígido, cuja dinâmica de acumulação parece determinar
todos os aspectos da sociedade. A luta política, abafada pelo regime
autoritário, mostrava-se incapaz de fazer frente ao avanço de um modelo
de desenvolvimento que combinava crescimento econômico com aumento
da desigualdade social e da concentração da renda. Para o autor, o futuro
da sociedade brasileira naquele instante apontava para os extremos opostos
do apartheid ou da revolução social (OLIVEIRA, 2003a, p. 119).
O mesmo diagnóstico é encontrado no livro Elegia para uma
re(li)gião. Publicado em 1977, o trabalho é dedicado a avaliar a experiência
da SUDENE e os seus resultados. Para Oliveira, a Superintendência
desempenhou um papel fundamental para a entrada do capital do centro-
sul do Brasil na região Nordeste, o que ocorreu graças a mecanismos de
isenção scal criados ainda no pré-1964 e ampliados durante a ditadura.
O processo de industrialização imaginado por Celso Furtado avançou,
portanto, porém subordinado ao capital dos estados do Sul e do Sudeste, o
que redeniu a divisão inter-regional do trabalho do país sem eliminar as
desigualdades regionais.
Ao longo dos anos 1970, a mudança no cenário político do país
inuenciaria os trabalhos de Francisco de Oliveira. O m do milagre
econômico e o anúncio da “distensão lenta, gradual e segura” revelavam
fragilidades do regime autoritário e exigiam uma atuação mais rme e
organizada da oposição. Foi nessa conjuntura que um dos líderes do MDB,
Ulysses Guimarães, procurou intelectuais ligados ao CEBRAP e pediu o
apoio para a elaboração do programa de sua anti-candidatura à presidência
da república, em 1974. Entre os que aceitaram o convite estavam Francisco
de Oliveira, Francisco Weort, Luiz Werneck Vianna, Maria Hermínia
Tavares e Fernando Henrique Cardoso. Apesar da cautela em relação à
repressão, durante aquela década muitos pesquisadores do Centro se
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 55
abriram à vida pública e à militância. Mais uma vez a atividade intelectual
era atravessada pela esfera política, sobretudo dentro da esquerda. Entre os
veículos que faziam a ponte entre esses dois espaços estavam os jornais da
chamada imprensa alternativa, com destaque para o Opinião e o Movimento,
em cujas redações se encontravam militantes comunistas ou ex-comunistas,
envolvidos na luta armada, emedebista e intelectuais de diferentes lugares.
Francisco de Oliveira teve intensa participação em ambos e fez parte do
grupo que rompeu com Opinião para fundar Movimento (AZEVEDO,
2011, p. 145-157). Os artigos que publicava nesses jornais revelavam uma
aposta cada vez maior na luta política pela democratização.
oS anoS 1980 e a BuSca Pelo novo
No nal daquela década, a Lei da Anistia e a permissão para o
registro de novos partidos políticos agitariam ainda mais a conjuntura do
país. A volta de antigas lideranças, como Miguel Arraes, animava parte
da oposição. Mas a grande novidade seria mesmo a criação do Partido
dos Trabalhadores, impulsionado pelos movimentos sociais que ganhavam
espaço em meio à crise do regime autoritário. O novo partido reunia boa
parte das forças políticas de esquerda organizadas no país: alas progressistas
da Igreja; ex-militantes da luta armada, distantes do tradicional PCB; e o
novo sindicalismo paulista, liderado por Luiz Inácio Lula da Silva. A essas
forças se somaram políticos já estabelecidos do MDB e muitos intelectuais
que, àquela altura, apostavam na criação de uma organização mais alinhada
à esquerda.
7
Francisco de Oliveira seguiu este caminho, à revelia de alguns
de seus colegas de CEBRAP, como Fernando Henrique Cardoso, que
defendiam a unidade da oposição no MDB. Naquele momento, porém,
a divergência ainda não era um empecilho ao convívio intelectual. Ao
contrário: havia respeito e apoio mútuos.
8
O engajamento de Francisco de Oliveira e muitos outros
intelectuais na luta pela democratização provocou mudanças importantes
nas Ciências Sociais brasileiras. A aposta na política tirou um pouco o foco
Para uma discussão sobre as forças políticas e sociais que contribuíram para a criação do PT, ver Secco (2012,
p. 26-31).
8
Poucos anos depois, Francisco de Oliveira publicaria um artigo em que defendia a criação de um partido
capaz de representar os interesses da classe média brasileira e de disputá-la mais à esquerda. Entre as lideranças
sugeridas para fundar a nova organização estava o nome de seu colega, Fernando Henrique Cardoso. O texto
exaltava o projeto do PSDB, fundado logo em seguida (OLIVEIRA, 1987b).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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da estrutura econômica, privilegiada nas análises dos anos 1970, e deu
maior destaque às discussões sobre o Estado e suas instituições, os novos
movimentos sociais e partidos. Muitas referências foram revistas: uma
vertente do marxismo, considerada mais dura, cedeu espaço para autores
conhecidos por privilegiarem a análise da superestrutura em detrimento
da infraestrutura.
9
Francisco de Oliveira viveu a seu modo essa transição.
Sua mudança de referencial se consolidou durante um estágio de pesquisa
realizado na França, entre 1982 e 1984. Naquele biênio o autor se dedicou à
leitura de trabalhos da Teoria da Regulação, de nomes como Michel Aglieta e
Robert Boye. Também teve contato com textos de Jürgen Habermas e Claus
Oe, estudiosos das mudanças no mundo do trabalho e na sociabilidade
durante o século XX; e Adam Przerworski, pesquisador dedicado à história
da social-democracia. A mudança teórica era inspirada pela nova conjuntura
política do Brasil, mas não só: no breve período em que esteve na França,
Oliveira conheceu e se surpreendeu com as virtudes da social-democracia,
no exato momento em que o socialista François Mitterrand chegava à
presidência do país. Sobre aquela experiência, ele resumiu:
Não foi, portanto, um intercâmbio intelectual com a universidade
francesa, mas foi esse impacto do Estado de bem-estar. A questão
dos direitos dos trabalhadores e desse Estado de bem-estar, que é,
na maioria das interpretações, visto como uma concessão. Eu tentei
revirar a página, quer dizer: isso tudo é produto de uma luta de
classes histórica, acumulação. Foi um impacto, e você precisa estar
aberto para entender as novas experiências. Eu via alguns amigos
meus lá, brasileiros, que tiravam o que podiam do Estado francês.
Eu não tirava porque eu era acanhado. Até férias eles tiravam.
Aquilo realmente me impactou. Foi uma visão completamente
nova, e eu comecei a prestar atenção. (RIDENTI; MENDES,
2012, p. 611).
Aquela realidade inspirou uma ousada transformação nos textos
de Oliveira. Antes mais preocupado com o peso das determinações
econômicas sobre a estrutura social, o autor passou a destacar o peso das
lutas políticas sobre o avanço do capitalismo. No caso europeu, a pressão
dos trabalhadores permitira o surgimento do Estado de bem-estar social,
enquanto, no Brasil, o autoritarismo e uma estrutura de classes particular
9
Entre eles, os de maior destaque talvez sejam Edward P. ompson e Cornelius Castoriadis.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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travaram a possibilidade de um processo semelhante. Esse é o tema do livro
O elo perdido: classe e identidade de classe (1987a), dedicado à formação da
estrutura de classes e de sua representação política na Bahia. Escrito durante
o estágio de pesquisa na França, o texto tenta decifrar quais elementos
históricos, comuns a todo o Brasil, impediram um desenvolvimento da luta
de classes nos moldes dos países em que a social-democracia deu certo. Para
o autor, as marcas da escravidão e da precoce nanceirização da economia
baiana tornaram obscuros o conito e a identidade de classes. A criação
da Petrobrás nos anos 1950 transformou a estrutura social do estado, mas
impediu novamente o reconhecimento do conito de classes, obscurecido
pelo consenso nacionalista e estatista. O avanço do mercado informal de
trabalho a partir de 1964 aprofundou o abismo entre a estrutura de classes
e sua representação política. O mesmo assunto foi retomado em “Medusa
ou as classes médias e a consolidação democrática” (1988b), artigo no
qual Oliveira apresenta a hipótese de que a complexa estraticação social
brasileira favorece uma super-representação política dos setores médios.
Além de debater a estrutura de classes, Oliveira deu destaque
a aspectos econômicos, mas com um novo olhar: ele lançou o polêmico
conceito de antivalor, usado para denir o modo como o fundo público
controlado pelo Estado entrava na equação da acumulação capitalista
(OLIVEIRA, 1988a). Mais tarde o autor sugeriu, também de modo
controverso, que existiria um modo de produção social-democrata (1993a).
Em ambos os casos seu objetivo era provocar um debate no interior
da esquerda, segundo ele ainda muito atrelada à teoria do capitalismo
monopolista de Estado, que não enxergava neste nada além de um agente
inteiramente subordinado à lógica da acumulação capitalista. O que o
sociólogo propunha, numa ruptura com a abordagem que ele mesmo
adotara na década anterior, era que a ação do Estado como regulador
de processos sociais e econômicos que não poderiam ser administrados
privadamente abria uma importante brecha política. E esta deveria ser
explorada pela esquerda: “A dialética do processo resulta em que ele [o
Estado] é urdido para assegurar os interesses privados, mas só o pode
fazer, somente se torna ecaz se eles se transformarem em interesses gerais,
públicos” (OLIVEIRA, 1993a, p. 138). Daí a possibilidade de que sua
ação fosse disputada pelos trabalhadores a favor da ampliação de direitos
sociais, tal qual ocorrera em parte dos países europeus ao longo do século
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
58 |
XX. Por trás de sua reexão estava o conceito de fundo público, tomado de
empréstimo da Teoria da Regulação:
O conceito de fundo público tenta trabalhar essa nova relação na
sua contraditoriedade. Ele não é, portanto, a expressão apenas de
recursos estatais destinados a sustentar ou nanciar a acumulação
de capital; ele é um “mix” que se forma dialeticamente e representa
na mesma unidade, contém na mesma unidade, no mesmo
movimento, a razão do Estado, que é sociopolítica, ou pública, se
quisermos, e a razão dos capitais, que é privada. O fundo público,
portanto, busca explicar a constituição, a formação de uma nova
sustentação da produção e da reprodução do valor, introduzindo,
mixando, na mesma unidade, a forma valor e o antivalor, isto é,
um valor que busca a mais-valia e o lucro, e uma outra fração, que
chamo antivalor, que por não buscar valorizar-se per se, pois não é
capital, ao juntar-se ao capital, sustenta o processo de valorização
do valor. Mas só pode fazer isso com a condição de que ele mesmo
não seja capital, para escapar, por sua vez, às determinações da
forma mercadoria e às insuciências do lucro enquanto sustentação
da reprodução (OLIVEIRA, 1993a, p. 139).
As posições que Francisco de Oliveira defendia em seus textos
guardavam relação com sua militância política no PT. Para o sociólogo,
o partido deveria ter um papel fundamental na organização da luta pela
disputa do Estado e do fundo público, por reformas sociais e pela criação
de um modelo mais próximo da social-democracia, distante, portanto, do
“Estado de mal-estar social” que prevalecia na história do país. Para ele a
redemocratização abria uma chance inédita neste sentido.
A aposta de Francisco de Oliveira neste caminho era ainda
grande em 1993, quando o autor expressou seu otimismo em relação à
experiência da câmara setorial da indústria automobilística da região do
ABC paulista. Em meio à crise econômica que prejudicava as empresas
montadoras e seus trabalhadores, ameaçados de demissão, empresários
e sindicatos se reuniram com representantes do Estado para pensar
um plano de resgate do setor, o que levou ao chamado Acordo das
Montadoras. Dele faziam parte o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC de
São Paulo, vinculado à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e ao PT,
os empresários do ramo automobilístico e os governos estadual e federal.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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As primeiras medidas propostas pelo acordo revelavam uma postura
defensiva de ambos os lados. Prevaleciam as isenções scais oferecidas
pelo Estado para impulsionar o reaquecimento do setor. Diante do
sucesso quase imediato dessa primeira iniciativa, o acordo avançou no
sentido do que Oliveira batizou de “antagonismo convergente”, ou seja, o
reconhecimento da parte de trabalhadores e empresários de que o diálogo
e o conito poderiam ser mutuamente benécos. As novas negociações
passaram a incluir metas pactuadas de expansão da produção, criação
de novos empregos, modernização do parque produtivo, popularização
dos produtos e abertura comercial do setor” (1993b, p. 5). Para além dos
ganhos econômicos, o que o autor destacava de positivo nessa experiência
era o reconhecimento do conito como constituinte das relações capital-
trabalho. Como tudo ocorria no setor mais dinâmico da indústria
nacional e com bons resultados, esperava-se que pudesse inuenciar
iniciativas similares em todo o país. Porém aquela experiência, que
parecia transformar em realidade as esperanças de Francisco de Oliveira,
não durou muito.
o “deSmanche neolIBeral
Em 1994, a eleição de seu ex-colega Fernando Henrique Cardoso
para a presidência deniu um rumo diverso para a política econômica
do país. A disputa entre os que defendiam a manutenção do modelo
nacional-desenvolvimentista, em crise desde os anos 1970, e aqueles que
preconizavam uma linha mais liberal na área econômica parecia nalmente
vencida por este segundo grupo. O controle da inação, grande vilã do
período, era a maior prioridade da política econômica de Cardoso. Sua
execução exigiu uma onda de privatizações e cortes no orçamento do
Estado, além de arrocho salarial e estagnação. Aquelas medidas seguiam
na contramão da aposta de Francisco de Oliveira na ampliação do espaço
público, do conito legítimo entre trabalhadores e empresários e na
garantia do papel do Estado como nanciador não apenas da acumulação
capitalista, mas também de um conjunto de direitos sociais.
A decepção diante do governo de Fernando Henrique Cardoso
transformou Francisco de Oliveira num dos mais destacados críticos
de seu mandato e do avanço do neoliberalismo no país. As diferenças
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
60 |
entre PT e PSDB faziam eco no interior do CEBRAP, dividido entre
pesquisadores que apoiavam cada um dos partidos. Oliveira, que
ingressara como docente no Departamento de Sociologia da USP
em 1989, deixou o CEBRAP em 1995.
10
No mesmo ano, ao lado de
Maria Célia Paoli, Vera Telles e outros pesquisadores, ele participou da
fundação do Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania (NEDIC).
11
A produção desse grupo privilegiava o debate sobre o espaço público,
a cidadania, a participação política e a democracia. O lósofo francês
Jacques Rancière era uma grande inuência, sobretudo a partir de seu
livro publicado no Brasil com o título O desentendimento (1996), do
qual era retirada a noção de anulação da política que sustentava boa
parte da crítica ao neoliberalismo no Brasil. Para Francisco de Oliveira,
o avanço dessa agenda teria provocado um desmanche do espaço público
e reduzido o debate político a questões que não tocavam no modelo
econômico. Ao contrário do que ele esperava no nal dos anos 1980,
não foi a política que dominou a economia, mas o contrário: ao nal dos
anos 1990, era a economia que parecia ter colonizado todos os aspectos
da vida social e política do país. Algo que ele batizou de “totalitarismo
neoliberal” (OLIVEIRA, 2000).
Ao término dos dois mandatos presidenciais de Fernando
Henrique Cardoso, a decepção de Francisco de Oliveira em relação
às promessas da Nova República era enorme. Nem mesmo a eleição de
Lula para a presidência, no nal de 2002, foi capaz de lhe inspirar algum
otimismo. Ao longo da campanha eleitoral o sociólogo já enxergava muitos
sinais de que o PT estava disposto a fazer muitas concessões para conquistar
o Palácio do Planalto. No nal de 2003, seu distanciamento em relação às
ideias do partido culminou no seu desligamento da organização.
12
A resignação política veio acompanhada pelo estranhamento
sociológico. Para Oliveira, o Brasil chegara aos anos 2000 marcado por
10
Sobre a divisão política e intelectual no interior do CEBRAP, Oliveira armou: “Eles não admitiam – o
Giannotti, a Elza Berquó – que alguém do CEBRAP, que tinha convivido com o Fernando Henrique, não
votasse nele. E aí se abriu um conito, cou aberto. E foi uma fase péssima do Giannotti, porque ele assumiu
um antimarxismo militante, que não é o caso dele. Ele conhece bem Marx, muito melhor do que eu. O
Fernando Henrique já estava fora, em 1995, então a luta, que era surda e bastante encoberta, cou descarada. E
o Giannotti tomou a si a tarefa de expulsar o grupo marxista do CEBRAP. Era um grupo que eu coordenava não
como grupo, coordenava intelectualmente. Fazia discussões” (RIDENTI; MENDES, 2012, p. 612).
11
Em 1999 o “núcleo” passou a ser chamado de “centro” (CENEDIC).
12
O ato foi anunciado em carta publicada pelo jornal Folha de S. Paulo em 14/12/2003.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 61
profundas contradições, sublinhadas num ensaio em que recorreu à
metáfora do ornitorrinco (2003a). O país, já moderno, apresenta alto
índice de urbanização combinado a um dinâmico agrobusiness; um setor
industrial completo, nos moldes da Segunda Revolução Industrial, apoiado
num mercado de trabalho majoritariamente informal; estrutura de serviços
variada para os setores de alta renda e primitiva para os de baixa renda; um
sistema nanceiro atroado, mas responsável por uma parcela signicativa
do PIB. Tudo isso combinado com uma dívida externa e interna elevada. A
democracia se consolidou, mas manteve distante da política a maior parte
da população, presa a um mundo do trabalho reestruturado que trava o
reconhecimento da identidade e a passagem ao conito. Assim, ao contrário
dos tempos da teoria do subdesenvolvimento, quando ele enxergava uma
porta para a transformação, a realidade do Brasil moderno aparece ao autor
como um tempo de incertezas e pouca ou nenhuma capacidade de escolha.
Um impasse evolutivo.
13
Os últimos trabalhos de Francisco de Oliveira expressam um
difícil equilíbrio entre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade.
Eles apontam para a busca de novos referenciais teóricos em meio a uma
era de indeterminação” (OLIVEIRA, 2007), na qual um governo de
esquerda parecia defender os interesses da classe dominante, numa espécie
de “hegemonia às avessas” (2010). Seus ensaios, repletos de novos conceitos
e provocações, não escondiam o desejo de identicar quais atores e formas
de participação política poderiam se manifestar na sociedade brasileira
do século XXI. Neste contexto, partidos e sindicatos em crise abririam
espaço para outros modos de organização, os quais teriam a difícil tarefa
de incluir e representar setores que vivem à parte da política tradicional,
como a grande massa de trabalhadores informais. O diagnóstico da crise
da esquerda e a busca por caminhos para superá-la eram objetivos que
moldavam seus últimos ensaios. Esse horizonte é compartilhado por outros
pesquisadores do CENEDIC, espaço onde o sociólogo, falecido em 2019,
permanece como uma referência intelectual importante.
13
O texto também traz uma sugestão polêmica: a de que as capas mais altas dos trabalhadores sindicalizados
assumiram a forma de uma nova classe, responsável pela administração de volumosos e lucrativos fundos
de previdência (2003a, p. 146-150). Essa hipótese provocou um importante debate no interior da esquerda
brasileira, não obstante as inúmeras ressalvas levantadas a respeito da ideia de uma “nova classe”.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
62 |
concluSão
A trajetória de Francisco de Oliveira resume bem vários momentos
da atuação dos intelectuais de esquerda no Brasil durante o século XX.
O engajamento nos esforços nacional-desenvolvimentistas, no pré-1964,
e a crítica posterior ao seu colapso; a luta contra a ditadura civil-militar
e o envolvimento na campanha pela redemocratização da sociedade; a
esperança em torno dos novos movimentos sociais e do PT; o combate
ao avanço do neoliberalismo; e, por m, a tentativa de compreender as
transformações que a própria esquerda sofreu ao longo de sua trajetória
até a chegada à presidência com Lula, em 2003, e a crise de suas formas
tradicionais de organização. No caso de Oliveira, cada um desses momentos
parece ter conduzido a decepções, inevitáveis para alguém que neles se
engajou com tanta paixão. Essa sucessão de projetos políticos e intelectuais
interrompidos à sua revelia, pela força da história, imprime sua marca na
produção sociológica do autor, que para ele mesmo é “assistemática”, com
pistas exploradas e outras abandonadas (JINKINGS et al., 2007, p. 37).
Cada momento de frustração colocou em xeque projetos de nação que
Oliveira nunca abandonou por completo, algo natural para um intelectual
formado no calor do ciclo nacional-desenvolvimentista. Para Roberto
Schwarz, seu amigo e crítico, o tema do desenvolvimento talvez nunca
tenha desaparecido por completo do horizonte de Francisco de Oliveira,
mesmo depois de deixar a pauta dos debates nacionais:
Nada mais distante do Autor que os sonhos de Brasil-
potência e que o desejo de passar a perna nos países vizinhos.
Contudo é possível que, em versão sublimada, o seu recorte
permaneça tributário do aspecto competitivo dos esforços
desenvolvimentistas. Por outro lado, como não seria assim?
Num sistema mundial de reprodução das desigualdades, como
não disputar uma posição melhor, mais próxima dos vencedores
e menos truncada? (SCHWARZ, 2003, p. 20).
Sua obra espelha uma série de evoluções truncadas da sociedade
brasileira. Como tal, talvez ela também se assemelhe a um ornitorrinco.
Suas imperfeições não impedem, porém, que ela seja um exemplar valioso
dos desaos e acidentes que marcam a trajetória do pensamento social de
esquerda no Brasil. Se este comumente se desenvolve a partir da tensão entre
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 63
a razão e a paixão, entre um lado cognitivo e outro normativo (BASTOS;
RÊGO, 1999), o exemplo de Francisco de Oliveira não foge à regra.
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| 65
T   :
R S  
 
Fabio Mascaro Querido
2
“O passado leva consigo um índice secreto pelo qual é remetido à
redenção... Se assim é, um encontro [...] está então marcado entre
gerações passadas e a nossa. Walter Benjamin.
exPerIêncIa e trajetórIa Intelectual na PerIferIa do caPItalISmo
Nacional e internacionalmente reconhecido, Roberto Schwarz é,
sem dúvida, uma das guras mais importantes da vida intelectual brasileira
1
Em outro contexto argumentativo, alguns tópicos esboçados nesse texto foram desenvolvidos em “Pensamento ao
quadrado: Roberto Schwarz e o Brasil”, publicado na revista Lua Nova (n.107, p.235-261, 2019). Agradeço a Michael
Löwy e a Isabel Loureiro pela leitura e pelos comentários ao texto - pelo qual, é claro, sou o único responsável.
2
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na UNICAMP. Autor do livro
Crise civilizatória e utopia anticapitalista em Michael Löwy (Boitempo/Fapesp, 2016).
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p65-86
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
66 |
da segunda metade do século XX. Sua obra e sua trajetória resumem, de um
ângulo singular, as experiências da esquerda intelectual e política brasileira,
desde a aposta algo otimista (sobretudo quando vista em retrospectiva) nas
possibilidades implícitas na radicalização do processo de modernização do
nal dos anos de 1950 e começo dos 1960, até o estágio contemporâneo do
desenvolvimento capitalista, quando as esperanças no progresso moderno –
na periferia e no centro do capitalismo – passam, na melhor das hipóteses,
por uma ilusão dogmática, e, na pior, pela legitimação de uma história que
caminha na direção da catástrofe.
Nascido em Viena, em 1938, quando os seus pais – judeus e
com posições políticas à esquerda - já estavam com passagens compradas
para deixar o país em direção à Argentina, Roberto Schwarz fará parte
da primeira geração de jovens imigrantes judeus oriundos da Europa
Central que entrarão para o ensino superior brasileiro. Após passar por
Budapeste, pela Iugoslávia, pela Itália e pela França, em seguida à anexação
da Áustria pela Alemanha nazista, a família Schwarz chega ao Brasil –
através de atestados falsos - em 1940, instalando-se em São Paulo, cidade
que receberia, entre 1926 e 1942, o auxo de mais de 50 mil judeus
oriundos sobretudo da Europa Central. Nas duas décadas seguintes,
o jovem Roberto – beneciando-se da ancoragem intelectual e do alto
grau de capital cultural de sua família, a julgar pelos padrões brasileiros da
época – daria início à sua integração intelectual à sociedade brasileira, que
se desdobraria na opção, na segunda metade da década de 1950 (através
da mediação de Anatol Rosenfeld, amigo do seu pai e muito importante
no seu processo de formação), pelo curso de Ciências Sociais na então
Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras (FFCL), da USP da Rua Maria
Antônia. Ao lado de outros jovens lhos de imigrantes judeus – dentre os
quais, por exemplo, seu “velho amigo” Michael Löwy – o jovem Roberto
fará parte de uma geração para a qual, sobretudo no plano intelectual, ser
judeu era em certa medida um trunfo.
Na FFCL-USP, em 1958, Roberto Schwarz fora convidado a
participar do assim chamado “Seminário Marx”, ao lado de alguns outros
poucos alunos, como o já citado Michael Löwy, estudante de ciências
sociais como ele, o estudante de losoa Bento Prado Jr. e o estudante de
economia – este um pouco mais velho que os outros - Paul Singer. Sem
dúvida, a participação nos seminários quinzenais de leitura d’OCapital,
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 67
organizados por professores como José Arthur Gianotti (lósofo),
Fernando Novais (historiador) e os dois assistentes de Florestan Fernandes
na cadeira de Sociologia, Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni,
constituiu um momento decisivo da formação do então jovem estudante
Roberto Schwarz, situando-o desde cedo na órbita de uma certa tradição
marxista-acadêmica brasileira que, dali em diante, seria a matriz teórica de
um conjunto de reexões intelectuais críticas sobre o país.
Mais tarde, nas décadas subsequentes, já de mudança para o
campo da crítica literária
3
, domínio no qual seria professor da Unicamp
entre 1978 e 1992, Roberto Schwarz foi responsável por uma das mais
importantes reexões intelectuais sobre o processo de “má-formação
nacional”, opondo-se tanto ao nacionalismo estreito dos defensores da
originalidade” irredutível do país, quanto ao universalismo abstrato, que
transplanta mecanicamente para a periferia modelos de desenvolvimento
histórico ltrados de outras realidades nacionais. Na contramão dos
esquemas simplistas que almejavam “encaixar” a sociedade brasileira em
algum modelo universal e supra-histórico do desenvolvimento (ou do
progresso”) histórico, Schwarz exploraria, sob a inuência de alguns dos
seus professores também membros do seminário, as tensões (e o sentimento
de desajuste daí decorrente) entre a vida ideológica local e os modelos
europeus (inclusive o marxismo) que nos serviram como parâmetro
analítico, transformando-as, essas tensões, em problemas fecundos para a
reexão nacional, cuja experiência periférica permitiria retomar sob outra
perspectiva – mais problematizada - algumas das questões desenvolvidas
pela teoria crítica oriunda do centro do sistema.
Nessa perspectiva, o objetivo desse texto é apresentar, à luz das
transformações do contexto histórico-social da época, alguns aspectos
centrais da trajetória e da obra intelectual de Roberto Schwarz. Toma-se
como ponto de partida (e de chegada) a hipótese de que foi essa desconança
crítica em relação às ideologias modernizadoras e desenvolvimentistas, a
partir do nal da década de 1960, que possibilitou (se não estimulou) a
Roberto Schwarz “antecipar”, por assim dizer, situando-se na periferia do
Já a partir do segundo ano da graduação em Ciências Sociais, Roberto Schwarz diz que começou “a car
abatido com o lado empírico da pesquisa sociológica” (Florestan Fernandes!); em suas palavras: “o levantamento
e as tabulações não eram comigo” (2012, p. 284). Nessa mesma época, a literatura já passara ao centro dos
interesses do jovem Schwarz, que escrevia pequenos artigos de crítica literária nos suplementos literários de
jornais como a Última Hora e, depois, O Estado de São Paulo.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
68 |
capitalismo, a exaustão histórica dos processos de modernização, exaustão
mais tarde apontada por Robert Kurz no livro – não por acaso muito
apreciado por Schwarz – O Colapso da Modernização. A inescapável “má-
formação nacional” do Brasil – de onde a emergência do “ornitorrinco” de
que fala Francisco de Oliveira -, estimulou, assim, uma crítica não apenas
das deformações intrínsecas a uma formação histórica “retardatária”, senão
também uma crítica da própria da própria “normalidade” burguesa em
seus centros especicamente “modernos” – já que, na periferia do sistema,
a exceção já era regra há muito tempo. Através de um ensaísmo centrado
na crítica literária e cultural, Roberto Schwarz logrou, então, na melhor
tradição do marxismo ocidental à qual se vincula (Adorno, Benjamin,
Lukács, Brecht), elaborar uma das mais originais análises sociais do processo
de modernização e de formação nacional à brasileira, elaborando aspectos
decisivos do que se poderia designar uma “teoria social crítica à brasileira”.
***
À diferença das modalidades de sociologias dos intelectuais que
privilegiam a análise das trajetórias biográcas dos autores – como se estas,
articuladas aos dispositivos internos da vida intelectual, determinassem
o conteúdo de suas produções e de suas obras, assim como, por
consequência, suas posições materiais e simbólicas no interior da estrutura
social -, pretende-se aqui restabelecer a importância das ideias como força
social reexiva, investigando-as em sua relação com as transformações do
contexto histórico-social, das lutas culturais, intelectuais, políticas e, tão
importante quanto, das mudanças sofridas pela “visão de mundo” à qual
se lia o intelectual em questão
4
. Tratar-se-á, portanto, no caso aqui em
No Brasil, tal sociologia dos intelectuais focada na análise biográca encontra nas formulações de Sérgio
Miceli sua expressão mais completa. Em “Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-45)”, de 1979, Miceli
atribui um privilégio metodológico central à análise da biograa dos intelectuais em questão, enfatizando a
compreensão do “perl de seus investimentos na atividade intelectual, em detrimento do conteúdo de suas
obras, tal como aparece reicado na história das ideias” (MICELI, 2001, p.210). Em texto sobre Roberto
Schwarz, Miceli defende essa mesma perspectiva, armando que “a sua [de Schwarz] inserção na sociedade
brasileira – como a experiência de sentir-se prensado entre o alemão e o português, entre dois universos culturais
de expressão e pensamento – me parecem bem mais esclarecedoras do feitio assumido por seu projeto intelectual
do que a toada de liação teóricas e sintonias militantes” (MICELI, 2007, p.61). Para uma excelente crítica
àperspectiva de Miceli em relação à sociologia dos intelectuais, e ao pouco espaço que ela reserva à produção
intelectual propriamente dita, ver Bastos e Botelho (2010).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 69
análise, de investigar a relação entre a produção intelectual de Roberto
Schwarz, as lutas políticas, as mudanças na visão de mundo marxista, e
as transformações da sociedade brasileira das últimas décadas, com ênfase
nas modicações (políticas e culturais) do processo de modernização à
brasileira e dos debates intelectuais sobre a “formação” de uma “nação
moderna” no país.
Parte-se do pressuposto de que entre ideias, trajetórias intelectuais
e contexto histórico-social e político congura-se uma relação complexa
e não-determinista, no âmbito da qual a produção teórica resguarda sua
importância na denição das conexões de sentido que percorrem a realidade
social em seus antagonismos e tensões. A sociedade não constitui, assim,
elemento “externo” condicionante à reexão teórica, mas sim um aspecto
“internalizado” pela produção intelectual do autor. Analisar a trajetória
e a obra de Roberto Schwarz signica, portanto, analisar a forma através
da qual ele “internalizou” os debates intelectuais e políticos em torno da
formação nacional nos diferentes momentos do processo de modernização.
Os dados “biográcos” são importantes apenas na medida em que inseridos
nesse conjunto mais amplo de determinantes, que se condensam no texto e
cuja apreensão é tarefa da “crítica imanente”.
entre crítIca lIterárIa e análISe SocIal: uma exPerIêncIa
Intelectual à BraSIleIra
Em seus estudos de crítica literária, além da inuência fundadora
do marxismo acadêmico paulista, bem como de um conjunto de referências
do “marxismo ocidental” europeu (Lukács, Benjamin, Brecht e, sobretudo,
Adorno), Roberto Schwarz inspira-se nos trabalhos de Antônio Candido
sobre a literatura brasileira, mais precisamente, na sua forma particular de
articular dialeticamente análise estético-literária e reexão histórico-social.
Em seu memorial para concurso, apresentado em 1990 na Unicamp,
Roberto Schwarz destacou que seus estudos sobre os ajustes e desajustes
entre a forma do romance brasileira e a estrutura social de um país de
extração colonial repousava sobre um amálgama de quatro vertentes:
1) a visão do romance brasileiro de Antônio Candido; 2) o marxismo
desenvolvido pelos integrantes do seminário d’O Capital; 3) as análises
de Lukács, Adorno e Benjamin sobre o conceito de forma artística, com
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
70 |
sua ênfase na dimensão histórica e social; 4) o procedimento expositivo de
Erich Auerbach, através da articulação entre análise de texto e explanação
histórica
5
.
Cândido lhe serve como parâmetro para a incorporação da
obra dos clássicos da análise cultural marxista a partir das implicações
histórico-concretas especícas da realidade social brasileira. Os autores
europeus – especialmente Lukács e seu modelo do “realismo crítico” –
são, portanto, visualizados antes de tudo como termos diferenciais, cujos
procedimentos analíticos devem ser necessariamente transgurados à luz
do desenvolvimento muito mais complexo do romance em uma formação
social bastante distinta: a brasileira (RICUPERO, 2013, p. 526). Nos
ensaios de Antônio Candido sobre o processo de “formação” da literatura
brasileira – que serão o ponto de apoio “nacional” de sua tese de doutorado
Ao vencedor e as batatas, e, mais tarde, de suas análises sobre o segundo
Machado de Assis contidas em Um mestre na periferia do capitalismo -,
Roberto Schwarz visualiza em ato a existência de um tratamento renado
da “reversibilidade” entre análise literária e análise social, em oposição
tanto ao “conteúdismo” simplista do marxismo vulgar – que começa
sempre pela contextualização do panorama da época para em seguida
inserir, se não “encaixar”, a obra que se pretende explicar -, quanto do
formalismo abstrato, cuja armação da autonomia absoluta do estético
liquida qualquer possibilidade de análise histórica do objeto em questão.
Tal como ele demonstra no ensaio “Adequação nacional e originalidade
crítica” (de 1992), que toma como ponto de partida o ensaio de Candido
(1991) sobre O Cortiço, de Aloísio Azevedo, a chave para a compreensão
dialética simultânea das dimensões literárias e extraliterárias (quer dizer,
histórico-sociais) encontra-se na própria noção de “forma”, entendida
como uma “forma objetiva”.
No campo dos estudos literários, a noção de “forma objetiva” –
desenvolvida, no plano teórico, na Teoria Estética de Adorno – procura dar
conta da articulação heterogênea de relações histórico-sociais, “que faz da
historicidade, a ser decifrada pela crítica, a substância mesma das obras
(SCHWARZ, 1999, p.30); as consistências ou inconsistências formais
destas últimas são portadoras da “historiograa inconsciente” do tempo
Sobre a presença de Auerbach nas reexões de Schwarz, tema que aqui não será tratado, remetemos ao texto
de Leopoldo Waizbort (2007).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 71
(SCHWARZ, 2012, p.46). A realidade social “extraliterária” não constitui
um elemento “externo”, cujas grandes linhas as obras ilustrariam, mas
sim um aspecto “internalizado” pela própria operação de “formalização
estética”, de modo que o vínculo entre forma artística e história social deve
ser analisado caso a caso pela crítica, a m de revelar a experiência social
modelada pelo escritor. À diferença das tentativas de xar um modelo
apriorístico de análise, Candido – que também formulara, praticamente
em paralelo a Adorno, uma noção materialista da forma literária - destaca
a pluralidade de relações possíveis entre o romance e a realidade, ou seja, a
multiplicidade de momentos miméticos que tão-somente a crítica imanente
é capaz de captar.
Partindo dessa perspectiva, Schwarz descortina, pelo prisma
da literatura, um aspecto importante do processo de formação de
uma “consciência nacional”, revelando, ao mesmo tempo, as tensões
inevitavelmente presentes nos esforços de adaptação às singularidades
do país dos esquemas romanescos oriundos de outro contexto histórico
e geográco – o contexto europeu. Em sua tese de doutorado, defendida
em 1976, na França, e depois publicada sob o título Ao vencedor as batatas,
analisando “a importação do romance” em José de Alencar, assim como nos
primeiros romances de Machado de Assis, Roberto Schwarz demonstra os
impasses da apropriação dos modelos europeus e das tentativas de adaptá-
lo diretamente à realidade social brasileira.
Não por acaso, o primeiro capítulo da tese é constituído pelo texto
clássico – que acabou ganhando vida própria – “As ideias fora do lugar”,
no qual essas tensões entre a “norma” europeia-moderna e a realidade
nacional são analisadas sob a ótica do sentimento intelectual de desajuste
que demarcava as condições de possibilidade da vida cultural do país no
século XIX e, sob outras condições, também no XX. A partir da aparente
contradição entre o raciocínio econômico e os princípios do liberalismo e a
realidade nacional determinada pelo trabalho escravo e pela lógica do favor,
Schwarz destacava o funcionamento especíco desses princípios no Brasil,
país no qual “adotávamos sofregamente os [argumentos] que a burguesia
europeia tinha elaborado contra [o] arbítrio e [a] escravidão” (SCHWARZ,
2000, p.17). De modo que, por aqui, as ideias e razões europeias “podiam
servir e muitas vezes serviram de justicação, nominalmente ‘objetiva’,
para o momento de arbítrio que é da natureza do favor” (2000, p.18).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
72 |
Criava-se, assim, uma situação paradoxal em que “as ideias liberais não se
podiam praticar” inteiramente, “sendo ao mesmo tempo indescartáveis”,
na medida em que diziam respeito aos princípios de funcionamento
moderno” do capitalismo europeu ao qual o país, queira-se ou não, estava
indissociavelmente atrelado. Esse desajuste é o ponto de partida, como
matéria e como problema, para a literatura e a vida cultural como um todo.
Engendra, na verdade, uma experiência intelectual especíca.
A constatação dessa tensão e/ou desajuste entre realidade local e
modelo europeu resultava de uma reexão intelectual na qual a sociedade
brasileira era compreendida em sua relação com o desenvolvimento global
do capitalismo, e cujo caráter periférico era “necessário” ao movimento e à
reprodução do centro “moderno” do sistema. Por isso mesmo, no fundo,
ao contrário das leituras que se recusaram a enxergar a ironia do título
do texto, para Schwarz as ideias burguesas-liberais estavam e não estavam
no lugar” na sociedade brasileira do século XIX, tal como ele enfatizou
mais recentemente, em uma conferência proferida em Buenos Aires, em
2009, na qual sustenta – em contraposição às críticas de Maria Sylvia de
Carvalho Franco e de Alfredo Bosi - que o título aludia, à época, mais a uma
sensação comum de desajuste e de dissonância do que a uma opinião ou
prognóstico, uma vez que, no limite, as “ideias têm sempre alguma função,
e nesse sentido sempre estão no seu lugar” (2012, p.170)
6
. Assim como
o capitalismo pode muito bem conviver com a escravidão, o liberalismo
sempre “se adaptou” sem grandes problemas à convivência subordinada
de relações sociais e mesmo institucionais “não-modernas”. É no processo
dessa “adaptação” que se encontra o sentimento de desajuste: num país
Dentre as críticas à tese de Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, as mais conhecidas provêm de Carlos
Nelson Coutinho, de Alfredo Bosi e, sobretudo, de Maria Sylvia de Carvalho Franco, curiosamente – como
se verá - a principal inspiração da atenção dada pelo crítico ao papel do favor na sociedade brasileira do século
XIX. Para Maria Sylvia, “as ideias estão no lugar” porque centro e periferia formam parte de um mesmo modo
de produção, cuja “conteúdo essencial” é o “lucro” (1976, p.621), malgrado o fato de constituírem momentos
distintos do processo de produção e reprodução do capitalismo; não haveria, portanto, um choque frontal
entre capitalismo e escravidão, e tampouco uma relação de “exterioridade” entre ideias (deslocadas) e ambiente
social. Na conferência de 2009, intitulada, não por acaso, “Por que ‘ideias fora do lugar’?”, Roberto Schwarz
(2012, p.165-167) insistiu que, para ele, “nunca [...] ocorreu que as ideias estivessem no lugar errado, nem aliás
que estivessem no lugar certo”. Em sua opinião, o fato das ideias terem funcionalidade para a opressão local,
como indica Bosi (1992), não exclui o sentimento de desajuste que, numa realidade periférica, elas possam
ter, e tampouco a sensação, partilhada mesmo por seus adeptos, de deslocamento e de aparente inadequação.
Foi a partir desse “estranhamento brecthiano” que o autor concebeu ironicamente o título do ensaio. Para
uma confrontação entre os argumentos de Schwarz e o de seus críticos, ver os dois ótimos textos de Bernardo
Ricupero (2008, 2013).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 73
como o Brasil do século XIX, as ideias “têm função e dão a impressão de
estarem fora do lugar – ao mesmo tempo” (2012, p.154).
As inspirações centrais no campo da reexão histórico-social,
como reconhece o próprio Schwarz, eram as teses do seu antigo professor
e prócer do seminário d’O Capital, Fernando Henrique Cardoso e, em
menor medida, o trabalho da própria Maria Sylvia de Carvalho Franco
sobre os Homens livres na ordem escravocrata (1983). Da primeira tese de
Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1997), Schwarz
retomava a ideia, fundamental no seu texto, de que a escravidão não
era exatamente contraditória com a “norma” internacional capitalista,
funcionando, ao contrário, como face oculta de muita utilidade à sua
reprodução. As “taras” da sociedade brasileira, escreve ele, “objetivadas
em sua estrutura sociológica ou de classes, não devem ser concebidas
como resquícios do passado colonial”, e tampouco como meros “desvios
do padrão moderno (coisa que entretanto elas também o são)”, e sim
como “partes integrantes da atualidade em movimento, como resultados
funcionais ou disfuncionais da economia contemporânea, a qual excede
os limites do país” (SCHWARZ, 1999, p. 95). É isso o que explica que,
atrás da fachada liberal havia [no século XIX] um mundo mental quase
clandestino, sobretudo do ângulo europeu ocial” (SCHWARZ, 2008,
p. 149), um mundo assentado sob a vigência da escravidão, mas que era
complementar e historicamente necessário ao desenvolvimento “burguês-
liberal” de alguns países do centro capitalista.
No trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco, cuja
documentação de base eram os processos-crime da comarca de
Guaratinguetá, no interior de São Paulo, Schwarz visualizara, do mesmo
modo, como até mesmo o caipira - o homem livre e pobre brasileiro -, talvez
o mais localista de nossos tipos sociais, era estruturalmente complementar
a uma certa forma de desenvolvimento do capitalismo, no âmbito de
um modo particular de propriedade com objetivos econômicos. Em seu
livro, “Maria Sylvia salientava o vínculo de estrutura entre a categoria
mais relegada e connada do país – os homens pobres do interior – e a
conguração da riqueza e do poder mais avançados, tal como se haviam
desenvolvido na civilização do café” (SCHWARZ, 1999, p. 97). Na
interpretação de Schwarz, no país da ordem escravocrata, os donos da terra
(e do poder) relacionavam-se com moradores e dependentes “ora como
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
74 |
apadrinhados, com os quais têm obrigações morais, ora como estranhos,
sem direito a morada ou proteção”, a depender dos interesses econômicos
do momento (SCHWARZ, 1999, p.97). Longe de inrmar a possibilidade
do progresso, essa situação de aparente paradoxo traduzia um leque de
opções e de liberdade às classes dominantes muito bem explorado pela
lógica do desenvolvimento capitalista da época, inclusive e sobretudo pelos
países pretensamente “liberais” do centro do sistema, que se beneciavam
da superexploração do trabalho na periferia.
A grandeza do segundo Machado de Assis, posterior ao clássico
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881),estaria, nesse contexto - como
Roberto Schwarz buscaria demonstrar em Um mestre na periferia do
capitalismo
7
-, na sua capacidade de “internalizar”, via construção de uma
forma literária especíca, as condições histórico-sociais do país no século
XIX. Machado de Assis, em um momento em que havia se completado a
formação da literatura brasileira” (no dizer de Antônio Candido), soube
tirar proveito da complexidade da vida social do país, reiterando em nível
formal o deslocamento próprio da vida ideológica e cultural brasileira
em relação à Europa. Nas Memórias..., por exemplo, as satisfações do
narrador decorrem exatamente – a partir da mimetização da “volubilidade”
das classes dominantes brasileiras - do “desacato ao sistema das virtudes
burguesa, invocado para isso mesmo, o que entretanto não impede que
ele tenha vigência” (1987, p. 124). Com isso, conforme a interpretação do
crítico, em Machado de Assis, é como se as ideias (no caso, a literatura),
enm, deixassem de estar fora do lugar, adaptando-se - sem renegar os
ganhos da “importação” alguns dos procedimentos formais do romance
europeu - às complexidades do país periférico. Na composição de sua
forma literária, Machado foi capaz de desvendar a forma social constitutiva
do país, forma esta que veio a servir de alicerce fundamental para que o
próprio crítico (Roberto Schwarz) pudesse sistematizar o método dialético
de uma crítica literária que era ao mesmo tempo uma interpretação do
Brasil (QUERIDO, 2010, p. 81).
O título Um mestre na periferia do capitalismo remete à fórmula de Walter Benjamin sobre Charles Baudelaire,
Um lírico no auge do capitalismo.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 75
aS IdeIaS em Seu lugar: “autoconScIêncIa dIalétIcae nova
InterPretação do BraSIl
Nessa empreitada, Roberto Schwarz valeu-se do alto valor
histórico-cognitivo da análise literária para a compreensão da experiência
(e da “má-formação”) nacional de um país periférico como o Brasil. Por
aqui, a literatura signicou, durante muito tempo, o principal instrumento
de revelação da experiência nacional. À diferença da situação europeia, na
qual o ensaísmo de esquerda ancorava-se na presença de uma teoria social
avançada, “no contexto brasileiro [da época], pobre em reexão crítica
sobre a sociedade, o rendimento extraliterário dessa potência de revelação
[literatura] das formas oferece campo e tem oportunidade excepcional
(SCHWARZ, 1999, p.44), como se vê nos ensaios de Antônio Candido,
que lançou à visão histórico-sociológica do país “um olhar atravessado
pela experiência e pela análise literárias, em cujo alto valor de revelação
ele acredita e a que deve as suas descobertas” (SCHWARZ, 2012, p.287).
À luz e a partir da literatura, Candido formulou uma reexão
original sobre a experiência histórica do Brasil. A crítica assume, aqui, em
sintonia com “jovem” Walter Benjamin de O conceito de crítica de arte
no romantismo alemão, um papel ativo, construtivo, “complementar”,
almejando visualizar as múltiplas conexões de sentido (que não são óbvias e
muitas vezes independem da intenção explícita do escritor) entre literatura
e sociedade, e isso no interior da obra mesma. Uma vez que a guração
literária é um modo substantivo de pensamento, cabe à crítica dialética
reconstruir” o modo pelo qual a experiência histórico-social do país é
engendrada “objetivamente” na conguração estética da obra, de forma
que a análise literária seja ela mesma, embora mediatizada pela autonomia
relativa da arte, uma interpretação intelectual da realidade brasileira.
É sob essa ótica – legada por Candido, de quem ele assistiu ao
último curso de sociologia, em 1958 – que Roberto Schwarz logrará, a
partir de meados da década de 1970, elaborar umas das mais sosticadas
análises do processo de “má-formação” nacional, em oposição tanto ao
universalismo abstrato implícito na transplantação mecânica, inclusive
e sobretudo à esquerda do espetro político e intelectual, dos modelos
europeus de desenvolvimento (modernizador), quanto aos defensores
da originalidade irredutível da nação periférica. Em um contexto no
qual as ilusões associadas à aposta no papel integrador que resultaria da
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
76 |
modernização nacional-desenvolvimentista se mostravam cada vez mais
anacrônicas, Schwarz foi capaz de dar umas das mais valiosas contribuições
para a compreensão dos dilemas do progresso à brasileira, o qual, longe
de signicar um avanço linear que deixaria pra trás o atraso nacional, na
linha dos próceres da “razão dualista”, revelava, na verdade, uma reposição
permanente dos aspectos do passado profícuos à reprodução “moderna” do
capitalismo no país.
Para isso, foi de fundamental importância a constatação – que
contrariava “a previsão dos progressistas” – de que ao golpe conservador de
1964 seguiu-se um intenso surto industrial, sem que, porém, se cumprissem
minimamente as promessas integradoras e civilizatórias a que se acostumava
associar o progresso econômico. Com a implementação da ditadura, e seu
relativo sucesso no plano do desenvolvimento econômico do país, é como
se o progresso outrora almejado pela esquerda já estivesse em marcha, de
modo que a condição do subdesenvolvimento signicava já o “futuro” no
presente, que não cessava de repor em novas bases aspectos aparentemente
insuperáveis do “atraso” vinculado ao passado. Assim, na contramão das
formulações – até então bem respaldadas na esquerda política – de que só
poderia haver efetivo desenvolvimento econômico se este estivesse atrelado
ao progresso social integrador do país, a ditadura brasileira mostrava que
era, sim, possível o desenvolvimento de um país subdesenvolvido como o
Brasil, sem que para isso fosse absolutamente necessária a superação efetiva
do seu travejamento social “arcaico”.
Apreendendo esse conjunto de complexidades “dialéticas”, por
assim dizer, Roberto Schwarz logrou constituir, já em meados da década de
1970, uma visão crítica em relação à aposta da esquerda política e intelectual
na radicalização desenvolvimentista da modernização a m de superar o
atraso” do subdesenvolvimento. Embora de forma muito mais renada do
que nas versões “tradicionais” do nacional-desenvolvimentismo “dualista
(do PCB, do ISEB ou da CEPAL, por exemplo), esse “progressismo” estava
igualmente presente nas perspectivas dos autores que participaram do
seminário d’O Capital”, uma vez que, ali também, em correspondência
àqueles anos de desenvolvimentismo, “o foco estava nos impasses da
industrialização brasileira, que podiam até empurrar na direção de uma
ruptura socialista, mas não levavam à crítica aprofundada da sociedade que
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 77
o capitalismo criou e de que aqueles impasses faziam parte” (SCHWARZ,
1999, p.104).
À luz de uma ótica de análise centrada na percepção do
desenvolvimento desigual e combinado (para retomar a célebre fórmula
de origem trotskista) - na qual, sob o capitalismo, nenhum país pode ser
compreendido isoladamente, abstraindo-se suas relações com a reprodução
global” do sistema -, Roberto Schwarz atinou com a necessidade de uma
crítica mais radical e profunda da própria lógica da modernização em que
a esquerda almejava pegar carona, como se, aproveitando as suas brechas,
fosse possível desviá-la num sentido progressista, de verdadeira integração
nacional. A emergência da mundialização, associada ao congestionamento
histórico da modernização em sua feição “clássica”, coincide com o m do
ciclo da busca pela “construção nacional”, cujas travas (ou “obstáculos”,
na linguagem sociológico-weberiana de Florestan Fernandes) seriam uma
decorrência dos limites do desenvolvimento e do progresso no país. A
congênita e persistente “má-formação nacional” não seria senão, portanto,
um momento “necessário” da lógica de reprodução mundializada do
capitalismo, de tal forma que, de agora em diante, “o mito da convergência
providencial entre progresso e sociedade brasileira em formação (ou latino-
americana) já não convence” (1999, p.161).
Nesse contexto, em que a mercantilização - sob a forma de
progresso” - da vida social e natural avançava (e continua a avançar)
a passos largos, seria preciso enfrentar, mesmo e sobretudo em país da
periferia do capitalismo, “na plenitude complicada e contraditória de suas
dimensões presentes, que são transnacionais”, as relações de “denição e
implicação recíproca entre atraso, progresso e produção de mercadorias,
termos e realidades que se tem de entender como a precariedade e a crítica
uns dos outros, sem o que a ratoeira não se desarma” - tarefa inconcebível
até mesmo para os participantes do “seminário de Marx”, que restavam
pautados pela “estreiteza da problemática nacional, ou seja, pela tarefa de
superar o nosso atraso relativo, sempre anteposta à realidade” (1999, p.104-
105). Em outras palavras, trata-se da necessidade de retomada da crítica
de Marx ao fetichismo da mercadoria, cuja negatividade – na contramão
da positivação modernizadora – Roberto Schwarz encontrará em termos
renovados na obra de Robert Kurz sobre “o colapso da modernização”, o
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
78 |
que lhe permitiria reatar em forma atualizada com a crítica adorniana da
modernidade.
No livro de Kurz, do qual ele foi responsável pelo prefácio da
edição brasileira (de 1991), Roberto Schwarz reteve uma crítica atualizada
do capitalismo contemporâneo, em um momento em que, após a
emergência da chamada “terceira revolução industrial”, os processos de
modernização (seja no “terceiro mundo” ou nos países ditos “socialistas”)
entram em colapso. Para Kurz (1991), o “socialismo de caserna” da ex-
URSS e do leste europeu teria servido, acima de tudo, como cobertura
ideológica a um esforço retardatário e monumental de industrialização
nacional, de modo que a sua derrocada explicita tendências e impasses do
próprio capitalismo global contemporâneo. Assim, como diz Schwarz, a
débâcle do “socialismo”, assim como dos empenhos de modernização dos
países retardatários de uma maneira geral, representariam “o início da crise
do próprio sistema capitalista, bem como a conrmação do argumento
básico de O Capital” (1999, p.182), uma crise, aliás, sobre a qual o
chamado terceiro mundo têm muito a dizer e a mostrar. O “colapso da
modernização”, ou melhor, daquela modernização vinculada aos impulsos
da segunda revolução industrial, procede da periferia para o centro, “ou
seja, começou pelo terceiro mundo, foi aos países socialistas e já chegou
a regiões e bairros inteiros nos países ricos” (SCHWARZ, 1999, p.183).
Em nível proporcional às esperanças nas consequências (sociais,
políticas e culturais, mais além de meramente econômicas) aí depositadas,
o colapso da modernidade fez-se sentir, na periferia do sistema, como
um duro golpe nas expectativas de que o país, anal, tinha de dar certo.
No Brasil, de uns tempos pra cá, malgrado a persistência aqui e ali de
perspectivas “neo-desenvolvimentistas” retocadas, pode-se notar que os
subsídios, endividamentos e decênios de sacrifício humano brutal não
trouxeram a prometida modernização da sociedade, quer dizer, a sua
reprodução coerente no âmbito do mercado global, agora mais remotas do
que nunca” (SCHWARZ, 1999, p.185). A partir dos anos 1980, esgotado o
milagre econômico” do decênio anterior, “cava claro que o nacionalismo
desenvolvimentista”, mesmo aquele reapropriado pela direita a partir de
64, “se havia tornado uma ideia vazia, ou melhor, uma ideia para a qual não
havia mais dinheiro”, uma vez que, nas novas condições de tecnologia, “as
inversões necessárias para completar a industrialização e a integração social
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 79
do país se haviam tornado tão astronômicas quanto inalcançáveis”. Assim,
o nacional-desenvolvimentismo entrava em desagregação – e começava
o período contemporâneo, que [...] poderíamos chamar de ‘nosso m de
século’” (SCHWARZ, 1999, p.158).
É este o dilema “trágico” ao qual o país entrou nas últimas
décadas, dilema bem representando pela metáfora – alcunhada por
Francisco de Oliveira, sob a inspiração de algumas das ideias de Schwarz
8
– do “ornitorrinco”, “bicho que não é isso nem aquilo” e que exprime
uma situação na qual não há mais possibilidade de permanecer como
subdesenvolvido e aproveitar as brechas propiciadas pela segunda revolução
industrial, e tampouco de avançar sob o imperativo do conhecimento
técnico-cientíco associado à chamada “terceira revolução industrial”. Nesse
contexto, restariam apenas as novas formas de “acumulação primitiva”,
tais como as privatizações que, por outro lado, sob o domínio do capital
nanceiro, “são apenas transferência de patrimônio” não constituindo, a
bem dizer, processos de acumulação.
a fratura BraSIleIra do mundo: a atualIdade doPonto de vISta
da PerIferIa
Em seus textos mais recentes, muitos dos quais inseridos no
volume Martinha versus Lucrécia (2012), Roberto Schwarz buscará
repensar, à luz das novas condições de possibilidades, a relação entre centro
e periferia, chegando a desdobramentos cuja originalidade talvez ainda
não tenha sido totalmente apreendida. Se, el à negatividade adorniana,
e forjando sua experiência político-intelectual em meio ao início desse
processo de desagregação – sobretudo a partir da década de 1970 -,
Roberto Schwarz jamais alimentou muitas ilusões quanto às virtudes
(para a esquerda) emancipatórias vinculadas à radicalização do ciclo
nacional-desenvolvimentista - sem, ao mesmo tempo, desmerecer suas
potencialidades -, desde o início dos anos 1990, com a descoberta do livro
de Robert Kurz e com a emergência brasileira do neoliberalismo, essa visão
crítica da modernização desdobra-se em uma análise cujo escopo vai muito
Nas palavras de Oliveira (2007, p. 149), “o Ornitorrinco muito deve a ele (Schwarz). Em ‘Fim de século’, ensaio
que está em Sequencias Brasileiras, o animal está lá”.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
80 |
além da periferia do sistema, transformando-se em uma crítica da própria
modernidade capitalista realmente existente como um todo.
Nas últimas décadas, as “patologias” (como diria Habermas)
da modernidade periférica revelam alguns dos aspectos inesperados da
própria “normalidade” moderna dos países centrais que, até então, nos
servia de referência e de horizonte regulador. Assim, se por muito tempo
tendemos a ver a inorganicidade, e a hipótese de sua superação, como um
destino particular do Brasil”, de agora em diante, cada vez mais, “ela e o
naufrágio da hipótese superadora aparecem como o destino da maior parte
da humanidade contemporânea, não sendo, nesse sentido, uma experiência
secundária”, nas palavras de Schwarz (1999, p.58) em uma conferência
de 1998 sobre Formação da literatura brasileira, de Antônio Candido
(1993). Assiste-se, assim, ao que se denomina uma “brasilianização” (ou
periferização”, na linguagem de Paulo Arantes) do mundo, mas não no
sentido de uma assimilação entre centro e periferia, e sim no de uma certa
universalização (desigual, é claro) dos problemas normalmente exclusivos
a esta última.
Não se trata, portanto, de um afrouxamento das relações de
subordinação entre os países. O “alívio” provocado pela “desconstrução
meramente conceitual do primado da origem e das hierarquias entre
centro e periferia – tão presente em Derrida e seus discípulos – não anula
o processo de subordinação concreta entre os países. A periferia continua
periferia, “Martinha [continua estando] para Lucrécia como o Brasil para
os países adiantados” (SCHWARZ, 2012, p.40). Ocorre que, em ritmo
crescente, sem amenizar as desigualdades de praxe, os países do centro do
sistema testemunham a proliferação de dilemas e dramas sociais que, até
então, pareciam connados ao lado desvirtuado – e subdesenvolvido –
da reprodução capitalista. Em tempos de acumulação exível, a uidez
ordem-desordem, típica da formação social brasileira, transforma-se em
algo como o “estado de exceção permanente” de uma periferização do
mundo, de tal forma que o Brasil pode ser visto hoje como um “laboratório
do desenvolvimento desigual e combinado de um capitalismo que parece
continuar o mesmo” (ARANTES, 2004, p.77).
Essa situação “universaliza”, carregando-as de atualidade, as
teorias críticas produzidas na periferia do sistema. Dos elos mais débeis
da reprodução capitalista, com os problemas que lhes correspondem,
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 81
aparecem de forma mais aguda as mazelas e os limites do “progresso
até outrora modelo. Isso explica porque, a partir do que poderíamos
denominar “ponto de vista da periferia”, surgiram respostas intelectuais e
artísticas profundamente originais, difíceis de visualizar quando situadas
sob o ângulo da linha evolutiva do progresso de alguns países centrais.
O sentimento de descompasso aqui presente abre novas possibilidades
cognitivas, permitindo um olhar para além das categorias normativas do
centro” do sistema. Ele estimula, assim, um esclarecimento dos seus alcances
e limites, quer dizer, o caráter risível da sua pretensão de universalidade.
“Fora do seu lugar” de origem, é como se as ideias adquirissem potência de
revelação (CEVASCO, 2007, p.20).
Em ensaio de 2006, “Leituras em competição”, no qual analisa
os impactos da “canonização” internacional de Machado de Assis, Roberto
Schwarz rearma a marca eminentemente nacional do escritor brasileiro,
não para restringi-lo aos limites do país, mas sim para destacar a sua
capacidade de, a partir da liação a uma experiência local, constituir uma
obra de grandeza “universal”. “Foi no ambiente de injustiças nacionais [...]
que o achado universalista adquiriu a densidade e o impulso emancipatório
indispensáveis a uma ideia forte de crítica” (SCHWARZ, 2012, p. 29).
Ao contrário das leituras internacionais contemporâneas, para as quais
Machado seria um “escritor plantado na tradição do Ocidente, e não em
seu país” (2012, p.21), como se no Brasil ele próprio fosse alguém “fora
do lugar”, Schwarz sustenta que um escritor como Machado só poderia
existir, com a grandeza que lhe é peculiar, em um país da periferia do
capitalismo como o Brasil (o mesmo se poderia dizer, mutatis mutandis, do
próprio Roberto Schwarz)
9
. Trata-se, então, de uma pequena “vantagem
do atraso”, intelectual e simbólica, que Machado soube bem aproveitar,
e que serviu mais tarde – e a obra de Roberto Schwarz o testemunha –
de propedêutica para antecipar algumas das tendências pelo capitalismo
contemporâneo, quando a fratura social não é mais privilégio da periferia
(QUERIDO, 2013). Agora, é como se o “presente [zesse] ver no passado
Para Antônio Candido, em consonância ao sentimento de dualidade da vida intelectual de um país como
o Brasil, Roberto Schwarz elaborou uma forma de análise crítica a partir de um “olhar duplo”, de “dentro e
de fora”, que se vinculava à sua história pessoal de brasileiro de origem austríaca (de cultura alemã). Segundo
Candido (2007, p.16), essa condição permitiu-lhe “ver o Brasil como quem é de dentro e de fora por natureza,
o que produz uma combinação sui generis de estranhamento e familiaridade, a qual deve ter contribuído para
o cunho singular da sua lucidez analítica”, inclinando-o para os temas e as ideias de oposição e contraste, tão
decisivas para entender um país como o Brasil.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
82 |
sobretudo o prenúncio do impasse atual, impugnando as evidências
externas do progresso” (SCHWARZ, 2012, p.136)
10
.
ruPtura de éPoca e atualIzação da teorIa crítIca à BraSIleIra
Desde o m da década de 1960, à luz de uma relação aberta
e inventiva com uma visão de mundo especíca, situada à esquerda do
espectro político e intelectual (o marxismo), Roberto Schwarz fez de suas
reexões um testemunho ativo das transformações históricas pelas quais
passava o Brasil. Mesmo tendo “abandonado” a sociologia prossional, para
se dedicar à análise literária, seus ensaios constituem, no limite, uma das
mais fecundas interpretações sociais do Brasil das últimas décadas, até os
dias contemporâneos. Et pour cause. Através do prisma da crítica literária,
o ensaísmo de Schwarz concentrou-se quase sempre na análise concreta
de temas e situações, demonstrando um respeito pela singularidade e, em
certa medida, pela irredutibilidade do objeto, na contramão do apego a
um método previamente denido, abstrato e apriorístico, o qual tratar-se-
ia de “aplicar” à análise de um assunto particular.
Assumindo plenamente os desaos associados à uma
experiência intelectual na periferia da modernidade capitalista, Roberto
Schwarz esquivou-se, assim, da “prisão conceitual” à qual se detinham
muitas interpretações “sociológicas” do país, cujas tentativas de “encaixar”
o objeto em algum modelo de análise abstratamente denido acabavam
por tergiversar a concretude do país e suas contradições especícas.
Através de um ensaísmo que, na linha adorniana (2003), pretendia-se
uma “dialética em ato”, na qual os conceitos se tornam mais precisos à
medida que se relacionam entre si, Schwarz mobiliza os autores que lhes
servem de referência (Marx, Adorno, Lukács, Benjamin, Brecht, Candido,
Kurz, dentre outros) a partir dos contornos concretos da experiência social
brasileira – a qual impõe sempre o ritmo do andamento da apreensão
10
No dia 25/06/2012, por ocasião de um debate realizado no âmbito
do Projeto Temático Fapesp “Formação do campo intelectual e indústria cultural
no Brasil contemporâneo”, coordenado por Sergio Miceli e subcoordenado por
Marcelo Ridenti, Heloísa Pontes e Maria Arminda do Nascimento Arruda, tivemos
oportunidade de debater com o próprio Roberto Schwarz algumas dessas hipóteses
vinculadas à “atualidade do ponto de vista da periferia”.
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conceitual, respeitando, então, o princípio materialista do “primado do
objeto”.
A reexão ensaística sobre a literatura, ou sobre a cultura em
geral, impôs-lhe – no que diz respeito à análise social – uma espécie de
autoconsciência dialética”, como diria Fredric Jameson, profícua à
apreensão de uma sociedade complexa como a nossa, uma vez que, além
da compreensão do objeto, interroga-se permanentemente sobre o lugar da
atividade e da experiência intelectual aí possível, assim como sobre a forma
de exposição mais adequada à elaboração de um conteúdo determinado.
Roberto Schwarz logrou, desse modo, constituir alguns elementos que,
pensados em conjunto, formam o que poderíamos chamar uma “teoria
social crítica à brasileira”, fundada em uma atualização permanente
que, se parece perder em consistência “cientíca”, ao menos escapa das
tentações do sociologismo reducionista (“marxista”, weberiano ou outro).
Ele próprio conseguiu, assim, elaborar parcialmente aquilo que, a seu
ver, faltava às reexões dos membros do seminário d’O Capital, a saber, o
alcance histórico-mundial” do subdesenvolvimento e de suas articulações,
capaz de sustentar, suponhamos, algo como as Minima moralia referentes
ao que é sem dúvida uma das feições-chave do destino contemporâneo
(1999, p.104). Se, nas décadas de 1950 e 1960, até meados dos anos de
1970, a esquerda intelectual estava engajada em encontrar uma solução
positiva para o país, nas últimas três décadas não restaria à teoria crítica
do país senão a reconstrução da negatividade indispensável para uma
crítica da modernidade à brasileira contemporânea e, por conseguinte, da
modernidade capitalista em sua totalidade, da qual somos parte.
Empenhando-se nessa tarefa, Roberto Schwarz assumiu um papel
de passeur, quer dizer, de elo entre duas gerações políticas e intelectuais,
entre aquela marcada pelas esperanças positivadoras da modernização dos
anos 1950, 60 e meados dos 70, e aquela que, crescendo sob as desilusões
da transição democrática incompleta (e, por outro lado, sob as esperanças
de uma retomada das lutas sociais das classes subalternas, com a criação
do PT), já não podia mais visualizar uma saída para o país nos limites
do progresso modernizador. Em entrevista realizada há pouco mais de
uma década (2004), quando questionado sobre os seus atuais interesses
de trabalho, Roberto Schwarz respondeu: “Gostaria de tirar algumas
consequências do que já z, especialmente à luz do que aconteceu
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depois” (SCHWARZ, 2012, p. 302). Para ele, “a reexão hoje tem que se
redimensionar através do mundo que está se formando à revelia do discurso
ocial sobre a modernização e o progresso” (SCHWARZ, 2012, p. 300).
O crítico brasileiro, ainda ativamente presente nos debates
intelectuais, nos lega, portanto, para as novas gerações, um inventário
crítico decisivo para uma reconstrução de uma teoria crítica no país, embora
mais como indicação de um impasse do que como resposta pronta para os
dilemas do “novo tempo do mundo”, como diria Paulo Arantes (2014)
em livro recente – dilemas que ainda estão por serem decifrados, à luz de
uma ruptura de época cujos contornos concretos resistem à mera aplicação
das categorias e conceitos herdados. É bem verdade que, no âmbito desse
impasse, o próprio crítico chega a conclusões passíveis de questionamento,
tal como, por exemplo, seu pendor pela tese “kurziana” (e, no fundo,
previamente adorniana) da inatualidade do “marxismo da luta de classes”.
Seja como for, para enfrentar os novos desaos que emergiram e ainda
continuam a emergir em meio ao “amontoado de ruínas” do capitalismo
contemporâneo, Roberto Schwarz compartilha sua obra e sua trajetória
intelectual singular, sabendo que, como disse certa vez Walter Benjamin,
um “encontro secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa”.
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O Sentido da Colonização  
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Anderson Deo
I.
Há um grande risco de reproduzirmos uma série de “lugares
comuns” quando tratamos de autores que, de alguma forma, guram entre
aqueles que são identicados como “clássicos” em suas produções teóricas.
Isso se deve, talvez, ao fato de que tais autores, ao serem tratados como
referenciais, deram origem a um longo debate, e suas obras passaram a ser
objeto constante de investigações, de interpretações e polêmicas, contando,
portanto, com farto e denso material produzido, reetindo a riqueza de
possibilidades a serem exploradas.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p87-114
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O risco que apontamos acima pode ser ainda realçado quando
a força do argumento, ou mesmo o estilo da escrita, leva-nos a repetição
de informações e dados biográcos que são de conhecimento quase
notório, principalmente do público afeito a tais discussões, denominado
academicamente como “especializado”.
Tais observações preliminares – por mais que possam soar como
mea culpa – são importantes para esclarecer ao leitor o que pretendemos
com o presente texto. O núcleo da discussão que propomos se concentrará
na análise do conceito de Sentido da Colonização, a partir de sua elaboração
em Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia (PRADO JR, 2000,
p. 13-26), assim como a importância e originalidade que o mesmo
representa, como esforço de captura ideocategorial da particularidade do
desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Da forma como entendemos,
a categoria elaborada por Prado Jr. reproduz o ser-precisamente-assim
(LUKÁCS, 2011, p. 84), uma forma de universalidade e, portanto, deve
ser pensada e reetida a partir da relação expressa com/nas singularidades
históricas, produzindo uma particularidade própria. Dessa forma, não se
trata de um modelo previamente estabelecido como “construto mental” que
comprime a realidade histórica – o real concreto – às suas regras internas,
mas sim um esforço de leitura que procura identicar a validade histórica,
ou seja, a reprodução de relações sociais que possam ser identicadas e
caracterizadas a partir dos elementos que a categorização propõe. Por isso,
buscaremos identicar a forma como o Sentido da Colonização se reproduz
no processo atual de reprodução social brasileira.
Para tanto, sempre que necessário recorreremos ao expediente da
exposição de elementos biográcos do autor nos apoiando em referenciais
teóricos especializados, mesmo que isso possa signicar mera repetição.
*****************************
Caio Prado Jr. pertenceu a uma primeira geração de grandes
intelectuais que se propuseram a compreender o Brasil. Esse esforço, em
suas diferentes proposições e fundamentações teóricas e metodológicas,
envolveu uma profunda investigação da formação social brasileira, dando
origem a interpretações originais que se tornaram leitura obrigatória àqueles
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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que, de alguma forma ou por algum motivo, pretendem compreender o
que é” o Brasil. Ao lado de nomes como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda, o autor de Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em
1942, gura como uma das mais importantes leituras marxistas sobre a
formação social do Brasil na primeira metade do século XX
1
.
Intelectual militante, sua intensa atividade política se vinculou
ao movimento comunista brasileiro a partir de 1933, quando passa
a compor as leiras do então Partido Comunista do Brasil, o PCB
2
. Se
na juventude participou inicialmente dos núcleos que deram origem ao
Partido Democrático (PD), como forma de reação política ao Partido
Republicano Paulista (PRP), foi na militância comunista que teve relevante
destaque. Participou ativamente da Ação Nacional Libertadora, ocupando
o cargo de vice-presidente da seção paulista, o que lhe custou um primeiro
encarceramento, em 1935, decorrente da repressão ao levante comunista
daquele ano. Com o m do Estado Novo e o retorno do PCB à legalidade,
foi eleito Deputado Estadual pelo partido em 1945, participando da
elaboração da Constituição do Estado de São Paulo. Perderia o mandato
depois de nova cassação do registro eleitoral do PCB, em 1947. Em 1969
foi aposentado compulsoriamente como docente da USP (cargo que
nunca ocupou) pela ditadura militar, sendo levado ao cárcere novamente
em 1970, sob acusação de incitação à violência e subversão.
Ao longo desse período, produz uma ampla e profunda discussão
sobre o Brasil, sobre o mundo socialista, sobre o método marxista e
sobre os caminhos da revolução brasileira. Como analisado por Bernardo
Ricupero (2000, p. 106 - 107), a obra caiopradiana se insere como um
primeiro esforço de originalidade marxista que buscou compreender a
Não nos é estranho todo o debate que envolve o campo teórico-político marxista sobre a formação social
brasileira. O próprio Caio Prado Jr. se envolveu diretamente nesse debate, seja em nível teórico, ou mesmo
em seus desdobramentos políticos. Suas formulações resultam em certa medida diretamente de tais discussões.
A polêmica que sua obra estabelece com os defensores da tese do feudalismo no Brasil, por exemplo, deriva
desse processo. Outros importantes intelectuais marxistas, como Nelson Werneck Sodré, desenvolveram uma
vastíssima obra analítica sobre temáticas similares, com leituras bem distintas às de Prado Jr.
Sempre importante lembrar que o PCB havia sido fundado em 1922 como a seção brasileira da Internacional
Comunista. Daí deriva a denominação inicial “do Brasil”. Em 1961 o nome do partido é alterado, como
forma de facilitar a legalização e registro do partido, passando a ser denominado Partido Comunista Brasileiro,
mantendo a mesma sigla PCB. Em 1962, o PCdoB é criado a partir de um grupo dissidente, que discordava da
linha política adotada pelo PCB em seu V Congresso. O documento intitulado Carta dos Cem se opunha, em
linhas gerais, ao posicionamento do PCB pró-reformas iniciadas por Nikita Khrushchov durante o chamado
processo de desestalinização – desencadeado no contexto do XX Congresso do PCUS, em 1956 – e criava uma
nova organização retomando o nome de Partido Comunista do Brasil.
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particularidade brasileira, mesmo que tenha sido negligenciado no interior
do PCB, no interior da academia, pois nunca pertenceu aos quadros da
universidade, ou mesmo pela sua pouca inserção social. A imbricação
entre sua trajetória política e sua produção intelectual é minuciosamente
analisada no importante livro de Luiz Bernardo Pericás, Caio Prado Júnior:
uma biograa política, quando o autor esclarece que a ênfase do trabalho
[...] tem como objetivo principal realizar uma discussão
eminentemente política da trajetória do autor de Dialética do
conhecimento, mostrando sua militância, sua leitura de clássicos
marxistas, suas viagens, sua atitude em relação ao golpe militar,
os debates sobre a revolução brasileira, seus tempos na prisão, sua
relação com intelectuais contemporâneos, assim como apresentar
elementos teóricos de seu ideário e o desenvolvimento do pensamento
caiopradiano ao longo das décadas. (PERICÁS, 2016, p. 27).
O núcleo constitutivo do argumento de Pericás pode ser ilustrado
com alguns exemplos da atividade intelectual de Caio Prado Jr. Quando,
em 1943, funda a Editora Brasiliense e em 1955, a Revista Brasiliense, o
autor passa atuar diretamente na divulgação do marxismo, como forma de
contribuir no campo da “batalha das ideias”, na construção de espaços de
cultura que possibilitariam o debate e o aprofundamento dos caminhos da
revolução brasileira”. Esse é o título, inclusive, de uma das mais importantes
obras de Caio Prado Jr, com a qual o autor recebeu o Prêmio Juca Pato de
Intelectual do Ano, em 1966. Esforço de leitura do Brasil pós-Golpe de
Estado de 1964, o autor propõe uma espécie de “autocrítica” à esquerda,
apontando os equívocos e limites da tática democrático-burguesa adota pelo
PCB. Reforça a crítica às análises que propunham a “transposição mecânica
de modelos de revolução ao caso brasileiro, apontando os equívocos de se
comparar o Brasil à China e, mais uma vez, insiste na particular forma de
desenvolvimento do capitalismo no país, como elemento fundamental à
elaboração de qualquer programa político. Tais análises foram produzidas
como forma de contribuição ao debate interno do PCB. Mesmo que
suas teses não tenham sido vitoriosas, os impactos produzidos, tanto na
luta interna do partido, como nas leituras marxistas sobre os caminhos
da revolução brasileira, foram amplos e, de alguma forma, ainda hoje
podem ser percebidos. Sobretudo quando se trata de compreender, ao
modo leniniano, a realidade concreta dos processos históricos em curso,
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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como condição fundamental à sua transformação radical. Esse é o esforço
intelectual de Caio Prado Jr que buscaremos salientar, o da compreensão
da particularidade histórica brasileira, do sentido da colonização que se faz
presente, se atualiza e se transforma em sentido da modernização brasileira.
Antes, porém, uma última nota biográca. Todo escrito que
mencione as origens familiares de Caio Prado Jr aponta, com razão,
sua ascendência vinculada aos grandes proprietários de terra paulistas,
que enriqueceram e se aburguesaram ao longo do período colonial, mas
principalmente durante a expansão do café no Estado. Assim como, a longa
relação de nomes da família ligados à política institucional, defensores,
sobretudo, daquela ordem social que nosso autor tanto se esforçou para
compreender e, além de tudo, criticar. Crítica essa pautada numa leitura de
mundo que propunha transformá-lo, de forma radical, de tal maneira que
a riqueza socialmente produzida possa ser apropriada por quem de fato a
produz. Nesse sentido, Caio Prado Jr foi, antes de tudo, um traidor de sua
classe social, para aderir conscientemente ao projeto da revolução socialista
e da emancipação humana.
II.
A discussão sobre a formação social do Brasil é rica em proposições.
A tradição historiográca brasileira nos oferece várias análises sobre o tema.
O debate sobre o desenvolvimento da processualidade histórica brasileira
percorreu todo o século XX, sendo que muitas divergências originadas de
tal debate estão, até hoje, na ordem do dia. Não temos a pretensão, de
forma alguma, de introduzir novas questões a este debate. No entanto,
entendemos ser necessário a devida apreensão dos processos particulares
do desenvolvimento histórico brasileiro, pois este origina uma forma
sociometabólica
3
especíca, sendo que essa especicidade se coloca como
o condicionante do complexo de complexos particular dessa processualidade.
Sobre a relação entre universalidade, particularidade e
singularidade acima mencionada, Györg Lukács nos alerta para o fato
destas categorias serem, em certa medida, distintas e por isso mesmo, a
Entendido como uma forma especíca de organização material e espiritual da objetividade histórica,
cujo caráter dinâmico cria e recria, simultaneamente, tal realidade, obedecendo a características próprias e
imanentes, que devem ser – necessariamente – levadas em conta na análise do sistema social do capital. Ver
fundamentalmente (MÉSZÁROS, 2002).
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captura da relação de reciprocidade – congruências/disjunções – de tais
manifestações da totalidade se faz imperativa (LUKÁCS, 1970, p. 5). Dito
de outro modo, a devida apreensão, em nível lógico-abstrato, dessas três
dimensões do real, pode nos proporcionar uma melhor compreensão dos
processos históricos concretos, pressuposto esse essencial para uma atuação
política (individual/coletiva) revolucionária.
Compreender a real dimensão da totalidade brasileira, bem como
a particularidade e as singularidades que as formas capitalistas assumem em
sua constituição, pode nos isentar de equívocos teóricos que outras análises
cometeram ao tentarem compreender a realidade econômico-política de
nosso país.
Segundo Caio Prado Júnior, em A Revolução Brasileira (1966,
p. 33-34), a teoria da revolução brasileira desenvolvida pelos marxistas
estaria fadada ao fracasso desde sua criação, justamente pela incapacidade
e insuciência da análise sobre o real desenvolvimento histórico em nosso
país. A partir dessa formulação, podemos constatar que as propostas da
esquerda brasileira que resultam de tais análises, basearam-se em abstrações,
em modelos e conceitos formulados a priori, como verdadeiras construções
mentais, desconexas da realidade, sendo que essa – a realidade concreta – é
inserida posteriormente ao processo, de forma comparativa, muito mais
próxima das análises weberianas do que do arcabouço teórico do próprio
Marx. O autor ainda arma que as práticas políticas que resultaram
dessa orientação teórica equivocada, bem como o peso negativo de tais
formulações, podem ser observadas até o momento em que tal texto fora
publicado
4
.
José Chasin, seguindo o mesmo diapasão de Caio Prado, aponta
para dois tipos de erro; de um lado aqueles que, por não compreenderem
o que vem a ser o caráter universal do capitalismo, criam um “aglomerado
de leis gerais” facilmente aplicáveis a qualquer processualidade histórica;
de outro, aqueles que privilegiam as singularidades, sem conectá-las com
a totalidade, criando assim uma análise empírica e simplicadora de
tais processos. Essas categorias, em ambas as análises, não se relacionam
reciprocamente, ou simplesmente não existem. O “vácuo” criado entre
(PRADO JR., 1966, p. 34): “Mas até hoje pesa ainda consideravelmente na maneira como se interpreta
a realidade econômica, social e política brasileira. Pesam negativamente, embaraçando qualquer tentativa de
verdadeiro e fecundo trabalho de elaboração cientíca. (...) A teoria da revolução brasileira (...) se transmitiu
assim com todas suas grandes falhas e sem nenhuma revisão radical que se fazia tão necessária.
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universal e singular nunca poderá ser preenchido por tais análises, pois lhes
falta a real dimensão da particularidade ontogeneticamente constituída
do caso brasileiro, “(...) o problema fundamental de colher, à maneira
dialética, a enticação do capitalismo no Brasil diz respeito à questão dos
particulares (...)” (CHASIN, 1977, p. 151-152)
5
.
A análise caiopradiana parte do pressuposto que a economia
colonial nasce como um prolongamento, uma extensão da economia
metropolitana. Nesse sentido, o Brasil “surge” economicamente como um
apêndice produtor de mercadorias, no contexto da criação do mercado
mundial e da expansão do comércio. Ou em outras palavras, o território
colonial estava totalmente integrado à lógica do capitalismo comercial
(fase da acumulação originária) que se estende do século XV ao XVIII,
cumprindo a função de apêndice econômico, fornecedor de gêneros
tropicais e produtos agrícolas às economias metropolitanas (PRADO JR,
1957, p. 17-21).
Essa lógica passaria por algumas mudanças no período da
emancipação política. A partir da chegada da Família Real, em 1808,
as estruturas político-administrativas são modicadas, dando feições
de autonomia à colônia brasileira, autonomia esta que se consolidaria
politicamente em 1822 (PRADO JR, 1957, p. 44-45).
As mudanças implementadas não afetaram a estrutura do país,
ou seja, foram mudanças na forma, na aparência, e não no conteúdo, na
essência. A partir dessa constatação, Caio Prado conclui que o Sentido da
Colonização permanece o mesmo. A economia permanece vinculada aos
O autor esclarece que: “De uma parte, o insatisfatório entendimento do que venha a ser o caráter universal do
fenômeno capitalista, conduziu a reetir simplesmente com atributos e leis genéricas, e a ‘constatar’ a ocorrência
necessária destes a qualquer custo, no interior das fronteiras nacionais. Assim, preservaram-se universais, mas
não na condição de universais concretos, e, muitas vezes, singularidades reais foram perdidas. De outra parte,
uma forma de incorreção mais recente tem hiper-acentuado as singularidades, mas, tomando-as simplesmente
como dados empíricos, isto é, despojadas por inteiro de qualquer espessura ontológica (espessura que, sob
feição avariada e debilitada, não importa, restava, ainda assim, no caso anterior), faz com que a universalidade
concreta seja completamente diluída. E a relação entre universal e singular, aí, se mostra como uma relação
entre categorias exteriores uma a outra, como a subsunção de um amontoado de notas empíricas a um princípio
geral”. Sendo assim, conclui que, “(...) enquanto a primeira forma de incorreção acentua o universal e tende
a perder o singular, a segunda acentua o que tema pela singularidade e perde completamente o universal.
Observa-se, pois, que a lógica destes dois casos manobra na polaridade entre universal e singular, entre os
quais habita puramente o vácuo. Numa linguagem lukacsiana, dir-se-ia estar face a teorias fetichizadas, na
medida que lidam exclusivamente com as categorias de universalidade e singularidade, eliminando ou não
reconhecendo exatamente a categoria da particularidade (CHASIN, 1978, p. 152)”. Ainda sobre a relação
Universal/Particular/Singular ver (MAZZEO, 1999, p. 108 -109).
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mercados externos, como um apêndice produtor, subordinado às variações
e uxos das economias centrais (PRADO JR, 2000, p. 20).
No que diz respeito a formação da burguesia, aponta que
os proprietários rurais que aqui se estabelecem, já na fase colonial,
desempenham a função econômica de uma burguesia ligada à fase
mercantil do capitalismo. Arma que, no Brasil, não houve distinções
sócio-econômicas entre burguesia e grandes proprietários de terras. Pelo
contrário, em muitas das vezes são, inclusive, as mesmas pessoas. Ou seja,
se constituem como indivíduos sociais pertencentes a uma mesma classe
econômica, fracionada em setores produtivos especícos: a burguesia.
Como nos aponta Caio Prado (1994, p. 168):
Nada há, em conclusão, nos grandes proprietários brasileiros, e
isso tanto mais acentuadamente quanto seu nível nanceiro é mais
elevado, que os distinga e caracterize como categoria econômica
e social à parte. E assim nada autoriza separar, e muito menos
extremar e isolar na estrutura sócio-econômica brasileira, uma classe
característica e bem diferenciada de “latifundiários” contrastantes
com a burguesia e ligada a relações de produção de natureza distinta
e especíca. Trata-se num e noutro caso de igual categoria social, e
no mais das vezes até nos mesmos indivíduos, homens de negócio
que aplicam seus recursos e iniciativas tanto em empreendimentos
agropecuários como em outros setores, ao sabor unicamente das
oportunidades ensejadas e da lucratividade esperada.
Sendo assim, podemos armar que Caio Prado nega enfaticamente
a existência de um modo de produção escravista, assim como possíveis
formas feudais, na organização histórico-social do Brasil.
Passemos à análise do argumento de nosso autor de forma
sistematizada. O Brasil “surge” para o mundo ocidental no último ano
do século XV, quando os portugueses anunciam a ocupação e a posse
do território. Durante as três primeiras décadas do século seguinte, a
colonização se restringiu ao reconhecimento da costa e ao estabelecimento
de algumas feitorias ao longo do litoral brasileiro; estas foram criadas para
armazenar o Pau-brasil e os produtos nativos - os chamados produtos
tropicais - que eram extraídos pelos índios em troca das mais variadas
quinquilharias.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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A partir do terceiro decênio do século XVI surge a real necessidade
de ocupar as terras brasileiras, decorrente da ameaça de “invasão” do
território por outros povos, tais como franceses e ingleses, e da crise
econômica que a coroa portuguesa passa a enfrentar devido à progressiva
perda do monopólio comercial com o oriente – Índias Orientais. A questão
que se colocava naquele momento é a da forma da ocupação. Como ocupar
de maneira economicamente rentável um litoral tão extenso? Para todos os
efeitos o interior do território ainda não era conhecido.
A saída encontrada para tal problema se encontrava no modelo
de ocupação implantado em outras colônias portuguesas (Madeira e
Cabo Verde). Dividiu-se a costa brasileira em “doze setores lineares com
extensões que variavam entre 30 e 60 léguas”. Esses setores - chamados
capitanias - foram doados a titulares que “gozarão de grandes regalias e
poderes soberanos”, os donatários.
A produção agrícola se pautou na exploração monocultora da
cana-de-açúcar, cultivada em grandes plantações, os latifúndios. Além do
clima e do solo favorecerem esse tipo de gênero agrícola, outro fator era
preponderante: a grande rentabilidade que se exigia da produção colonial.
Como nos aponta Caio Prado Junior,
A grande propriedade será acompanhada no Brasil pela monocultura;
os dois elementos são correlatos e derivam das mesmas causas. A
agricultura tropical tem por objetivo único a produção de certos
gêneros de grande valor comercial, e por isso altamente lucrativos.
[...] É fatal portanto que todos os esforços sejam canalizados para
aquela produção; mesmo porque o sistema da grande propriedade
trabalhada por mão-de-obra inferior [escrava], como é a regra nos
trópicos, e será o caso no Brasil, não pode ser empregada numa
exploração diversicada e de alto nível técnico (PRADO JR., 1994,
p. 31-37, grifo nosso).
Para completar tal quadro de colonização, a mão-de-obra
indígena foi, gradativamente, sendo substituída pela mão-de-obra do
negro africano. Os índios passam a se tornar arredios à divisão do trabalho
sistematizado, imposto pelo colonizador branco. Mesmo com sua “natureza
nômade”, os silvícolas se adaptaram a extração esporádica do pau-brasil;
no entanto, não suportaram a “disciplina, o método e os rigores de uma
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
96 |
atividade organizada e sedentária como a agricultura” (PRADO JR., 1994,
p. 35). A postura do colonizador diante da resistência foi a escravização do
indígena, que de fato aconteceu em algumas regiões até o nal do período
colonial, porém, não sem uma forte resistência dos nativos. Diante dessa
diculdade de obtenção da mão-de-obra internamente, buscou-se a saída
na escravização de populações de estrangeiros, no caso, o negro africano
(PRADO JR., 1994, p. 37).
Estavam criados então, os pilares da ocupação e da colonização
do território brasileiro: uma ocupação baseada na exploração monocultora
dos latifúndios, que utilizou a mão-de-obra escrava (seja ela indígena,
seja ela negra) na produção de gêneros agrícolas de alta rentabilidade -
inicialmente a cana-de-açúcar - que, invariavelmente, eram destinados aos
grandes centros econômicos do período, o mercado europeu (PRADO
JR., 1994, p. 32)
6
.
No que diz respeito à organização política do território, esta cou
sob a responsabilidade dos donatários. Estes recebiam a posse das capitanias
através de documentos (Cartas de Doação) que lhes davam o direito de
distribuir e legislar sobre os respectivos territórios (Foral). Importante
salientar que essa classe de proprietários que se estrutura na colônia
assume, desde a origem, feições capitalistas, haja vista que toda a produção
colonial estava inserida no contexto de exploração comercial, cujo centro
propulsor era a economia europeia. Desde sua gênese, portanto, teria se
constituído como uma burguesia agrária ligada diretamente à atividade
mercantil mundial.
Essa breve descrição do período inicial da colonização do território
brasileiro já nos dá algumas indicações da forma pela qual o Brasil se insere
no contexto da divisão internacional do trabalho do século XVI, qual
seja, a de apêndice produtor, integrado de forma subordinada aos grandes
centros da economia mundial em constituição, com a função exclusiva
de fornecedor de gêneros tropicais e agrícolas de alto valor comercial aos
centros econômicos europeus.
É importante observar que, nessa fase do desenvolvimento
do Capital, a forma universal capitalista ainda não se manifesta
hegemonicamente, porém já começa a subordinar as antigas formas de
Vale acrescentar que os recursos nanceiros para tais investimentos agrícolas nessa primeira fase, eram
vultuosos, e foram levantados principalmente em Portugal e na Holanda (principalmente banqueiros judeus).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 97
produção – agricultura, manufatura, mão de obra e comércio – lhes
imprimindo, progressivamente, um novo caráter. Mas o que isso signica
propriamente?
Esse é o momento de desagregação de uma forma sociometabólica
especíca, o modo de produção feudal. É da crise desse sistema, e das
contradições que essa engendrou, que irão ser criadas as bases econômicas
e sociais de uma nova totalidade – o capitalismo industrial. Essa fase
corresponde ao momento da acumulação originária de capitais, que serviu,
posteriormente, como arrimo econômico da burguesia para suas investidas
revolucionárias, e correspondente tomada do poder político, em países
como a Inglaterra e França, por exemplo.
Todas as formas produtivas nesse período não se constituem
como formas capitalistas, por assim dizer “puras”. Porém, o processo de
valorização das mercadorias (inclusive da mercadoria força-de-trabalho)
converte-se em instrumento do próprio processo de valorização e auto-
valorização do capital, ou como nos aponta Karl Marx: “O processo
de trabalho converte-se em instrumento do processo de valorização,
do processo de autovalorização do capital – da fabricação da mais-valia
[...]”. Ou seja, o trabalho escravo passa a valorizar o capital investido na
produção agrícola, sendo que “[...] O processo de trabalho é subsumido
ao capital (é seu próprio processo), e o capitalista se enquadra nele como
dirigente, condutor; para este, é ao mesmo tempo, de imediato, um
processo de exploração de trabalho alheio” (MARX, 1978, p. 51). Essa é
uma característica essencial dessa fase de desenvolvimento do Capital, a
qual Marx denominou subsunção formal do trabalho ao capital.
Nessa processualidade todas as formas produtivas pré-existentes
e não especícas ao capitalismo, são subsumidas (ou subordinadas) ao
Capital. A partir de então a força de trabalho é separada, progressivamente,
de seus meios de trabalho; o antigo camponês passa a ser desvinculado da
terra e de suas ferramentas, o artesão passa a possuir apenas sua mão-de-
obra para, “livremente”, vende-la à burguesia, agora proprietária privada
dos meios de produção e circulação – terras, ocinas artesanais, comércio,
etc – numa clara oposição entre aqueles que produzem e aqueles que se
apropriam – de forma privada – do produto do trabalho alheio.
Quando o camponês, antes independente e que produzia para si
mesmo, se torna diarista e trabalha para um agricultor; quando
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
98 |
a estrutura hierárquica característica do modo de produção
corporativo desaparece ante a simples oposição de um capitalista
que faz trabalhar para si os artesãos convertidos em assalariados;
quando o escravista de outrora emprega seus ex-escravos
como assalariados etc, temos então que processos de produção
determinados socialmente de outro modo se transformaram no
processo de produção do capital. (MARX, 1978, p. 51).
É nesse contexto que se insere o processo de colonização do
Brasil. Toda a estruturação da empresa colonial aqui instalada só pode ser
entendida se levarmos em conta os “mecanismos” dessa fase de subsunção
formal do trabalho ao capital. Só assim podemos entender o porquê da
divisão do território em grandes propriedades de terras; o porquê da
utilização da mão-de-obra escrava (reativando uma antiga forma de força-
de-trabalho). O trabalho escravo, nesse contexto, é força de trabalho que
valoriza e auto valoriza” o processo de produção do próprio capital.
Isso ocorre devido à necessidade que o próprio processo
de produção do capital possui de se assentar em formas de trabalho
preexistentes – sejam elas quais forem. Ou seja, o Capital como uma nova
forma sociometabólica, inserida num determinado processo particular de
constituição histórica, se assenta e se sustenta em formas econômicas e
sociais já existentes, ou até mesmo “reinventa” formas extintas, que não
são as formas particulares do capitalismo. O novo elemento que se coloca
agora, é o fato de essas formas antigas estarem a “serviço” e subsumidas ao
processo de valorização do capital. Nos dizeres do próprio Marx:
[...] Pelo contrário, faz parte da natureza da questão o fato de que a
subsunção do processo de trabalho ao capital se opere à base de um
processo de trabalho preexistente, anterior a essa subsunção ao capital,
e que se congurou à base de diferentes processos de produção
anteriores e de outras condições de produção; o capital se subsume
a determinado processo de trabalho existente, como, por exemplo,
o trabalho artesanal ou o tipo de agricultura correspondente à
pequena economia camponesa autônoma. Se nesses processos
de trabalho tradicionais, que caram sob a direção do capital, se
operam modicações, estas só podem ser conseqüências paulatinas
da subsunção de determinados processos de trabalho tradicionais
ao capital. (MARX, 1978, p. 54).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 99
Compreendemos, portanto, como o Capital, no seu processo de
constituição, engendra-se a partir de formas preexistentes de produção e,
no seu ciclo de auto valorização, subordina essas formas anteriores ao seu
próprio processo.
7
.
A economia brasileira se estrutura, portanto, inserida nesse
processo de subsunção formal do trabalho ao capital
8
. Nunca é demais
lembrar que, a posição que o país ocupa no interior da divisão internacional
do trabalho (em processo de universalização) no período da acumulação
originária de capitais, é a de economia subordinada e atuando como
apêndice complementar às economias centrais europeias.
Pois bem, essa forma particular de constituição econômico-
social engendrou uma forma também particular de organização política.
O processo de constituição do Estado nacional brasileiro só pode ser
entendido se levado em conta tais particularidades. Os movimentos
nacionais pela emancipação política do Brasil, conguram-se no interior e
inseridos no processo especíco de enticação do capitalismo no país, qual
seja, uma forma particular cuja característica principal é o seu caráter de
extração colonial.
A transferência da Corte Portuguesa em 1808 para o Brasil
inaugura um novo momento na vida política no país. As contingências
históricas europeias – Invasões Napoleônicas (1803-1815) – vão fazer com
A esse respeito Mazzeo (1989, p. 72) arma que: “O caráter universal da produção de amoldar-se as diversas
situações concretas é ressaltado por Marx, quando arma que a produção não é somente particular. Ao contrário,
é sempre um organismo social determinado, um sujeito social que atua em um conjunto mais ou menos grande,
mais ou menos pobre de ramos de produção, quer dizer, a produção socialmente dada articula-se com formas
particulares socialmente dadas de produção. A produção capitalista, ao reproduzir sua própria existência de
forma contínua, desintegra, reintegra ou cria novas realidades (particularidades) para se auto-repor”.
Toda a contextualização histórica da constituição da economia colonial brasileira se faz necessária justamente
para não incorrermos em equívocos analíticos já apontados por outros autores, entre eles Caio Prado. Ao criticar
a teoria da revolução brasileira, o autor chega a armar que não há nada mais estranho à teoria de Marx, do
que a ideia evolucionista na qual se baseava a esquerda brasileira. Essa análise – equivocada – do caso brasileiro
seria o pressuposto para teorias que defendiam – e ainda defendem - a ideia de estruturas feudais no Brasil,
que precisariam ser superadas por uma revolução de caráter burguês, para somente então, se iniciar uma luta
proletária pelo poder (PRADO JR., 1994, p. 42-44). A tese da “revolução por etapas” foi defendida pelo PCB
até 1992. Além de Caio Prado, o debate sobre o “modo de produção escravista colonial” no Brasil, conta com a
importante análise de Mazzeo que, a partir do diálogo intelectual com Décio Saes, Jacob Gorender e Flamarion
Cardoso, analisa a particularidade histórica brasileira, demonstrando os equívocos de se inserir o Brasil num
modo de produção especíco – o escravista colonial. (MAZZEO, 1989, p. 55-85) todo o capítulo II: A formação
social colonial como particularidade histórica.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
100 |
que a família real portuguesa passe a governar todos os seus territórios do
interior de uma de suas colônias. Importante notar que o fato de o Brasil
ter sido transformado na sede da Monarquia Portuguesa não foi ocasional.
Desde o século XVIII a economia brasileira havia se transformado no
principal arrimo do Império Português, que se encontrava em plena crise,
sendo esta, reexo não só das arcaicas estruturas políticas portuguesas, mas
também determinada pela respectiva crise do sistema colonial e consecutiva
subordinação e dependência em relação aos ingleses.
É nesse século (XVIII), entretanto, que a mineração provocará
algumas mudanças no interior da colônia. Não só o centro econômico de
nossa economia migra do nordeste para a região sudeste. Internamente a
administração política também é deslocada, acompanhando o mesmo eixo
territorial. É importante observar que, com o advento da mineração, o
país passa por um pequeno, mas sensível crescimento urbano. As cidades
vão nascendo e crescendo de acordo com o ritmo exigido pela nova
atividade econômica. No seu interior uma “camada média”, cujo caráter
urbano é agrante, também passa a existir no país. Entretanto, quem
continuará a dominar a cena político-econômica é a mesma burguesia
agrário-exportadora, estruturada a partir do latifúndio e do escravismo.
Voltemos aos fatos. Várias medidas de caráter econômico-político
foram implantadas pelo então regente de Portugal Dom João VI logo na
sua chegada ao Brasil. No que diz respeito à administração pública era
necessário criar uma estrutura político-administrativa para que se pudesse
governar todo o Império a partir de uma colônia. A Corte se estabelece na
cidade do Rio de Janeiro; D. João criou ministérios, o Banco do Brasil, um
Tribunal Superior (Casa da Suplicação), a Imprensa Régia, entre outras
repartições. Vale lembrar que em 1815 o Brasil, até então uma colônia (vice-
reino), foi elevado à condição de Reino, através de um decreto do príncipe
regente. Já na economia a principal medida foi a imediata “Abertura dos
Portos do Brasil”, pois agora todo o comércio exterior de Portugal deveria
ser controlado do interior de nosso território
9
. A esse respeito, Caio Prado
arma que:
Cabe lembrar que os grandes beneciados com tal medida foram os ingleses, pois os tratados assinados entre
os dois países, concediam vários privilégios à essa nação. Como exemplo podemos citar os Tratados de 1810, ou
Acordos de Strangford, que, entre outras medidas, estabeleceu que os produtos ingleses seriam taxados em 15%
sobre seu valor nominal, enquanto os demais países pagavam 24%.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 101
[...] Estabelecendo no Brasil a sede da monarquia, o Regente
aboliu ipso facto o regime de colônia em que o país até então
vivera. Todos os caracteres de tal regime desaparecem, restando
apenas a circunstância de continuar à sua frente um governo
estranho. São abolidas, uma atrás da outra, as velhas engrenagens
da administração colonial, e substituídas por outras já de uma
nação soberana. Caem as restrições econômicas e passam para um
primeiro plano das cogitações políticas do governo os interesses do
país. São estes os efeitos diretos e imediatos da chegada da Corte
(PRADO JR, 1957, p. 44-45).
Em 1818, com a morte de D. Maria – então rainha de Portugal que
não governava por problemas de sanidade mental –, D. João VI é aclamado
rei. Na Europa, Napoleão havia sido derrotado em 1815, e as ideias liberais
avançavam sobre todo o continente. Nesse contexto irrompe em 1820, a
Revolução Liberal e Constitucional do Porto (Portugal). Após a derrota de
Napoleão, o país havia cado sob o controle dos ingleses, que governavam
o país através de uma ditadura militar (marechal Beresford). Além disso,
o m da exclusividade do comércio brasileiro, levou a burguesia mercantil
portuguesa a uma grande crise econômica e consequente bancarrota. O
movimento de 1820 conseguiu “expulsar” os ingleses e passou a exigir o
retorno do rei a Portugal, o que ocorreu no ano seguinte.
A partir de então o governo português passa a tomar várias medidas
com o claro intuito de reconduzir o Brasil à antiga condição colonial. As
províncias brasileiras foram declaradas independentes do Rio de Janeiro e
passaram a ser subordinadas diretamente à coroa portuguesa; outra medida
foi a invalidação das decisões dos tribunais brasileiros, anulando assim
a autonomia jurídica do Reino. O passo seguinte seria levar de volta a
Portugal o Príncipe Regente D. Pedro.
É nesse contexto que a burguesia agroexportadora brasileira passa
a se articular com vistas à emancipação política do país. Na verdade, estes já
não queriam abrir mão da riqueza produzida internamente, pois no regime
de exclusividade comercial a maior parte da renda real aqui produzida
reuía à metrópole. São estes interesses que determinarão a dinâmica
do processo de independência política do Brasil; o que de fato ocorre é
que os grandes proprietários de terras, que viviam da exportação de suas
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
102 |
mercadorias, percebem a ameaça que o retorno ao “Exclusivo Colonial”
representava às possibilidades de aumento de seus lucros. Segundo Mazzeo:
A perspectiva de liberdade comercial, proporcionada pela decadência
portuguesa – que materializava o surgimento da maturidade
capitalista -, reforçada a partir de 1808, levará essa burguesia a não
mais querer que a maior parte da renda aqui produzida reua à
metrópole. Tais interesses especícos determinarão o rompimento
dos terratenetes brasileiros com Portugal, isto é, com as correntes do
“Exclusivo Colonial” português que amordaçavam as possibilidades
de maiores lucros dos poderosos do Brasil. Esse é o “móvel” da
emancipação política brasileira, conduzida por competentes
membros dessa burguesia “anômala”, determinada muito mais
pela crise do sistema colonial mundial e por suas conseqüências
imediatas, do que por uma proposta de mudança econômico-
social que visasse um desenvolvimento das forças produtivas e
das relações de produção em moldes plenamente burgueses. A
condução política do “Partido Brasileiro”, capitaneado pelos donos
de terras e de escravos, não terá assim, em seu conteúdo, nenhuma
perspectiva de real ruptura com a estrutura colonial da economia
brasileira. (MAZZEO, 1989, p. 90).
Percebemos, portanto, que um dos aspectos que marcou a
formação do Estado nacional brasileiro é justamente a inexistência de
um projeto político-econômico revolucionário, que rompesse com as
determinações estruturais de nossa economia colonial. Dito de outra
forma, o que a burguesia agroexportadora brasileira defendia, enquanto
projeto econômico, era a continuidade da forma colonial de exploração
do território - o que de fato ocorreu -, forma esta pautada na mão-de-obra
escrava, no latifúndio e na produção de gêneros agrícolas de grande valor
comercial destinados ao mercado externo.
Com relação ao processo de emancipação política, este se dá na
forma de uma transição pelo alto, lenta e segura – característica que viria
a ser uma das marcas de todos os processos de transformações de nossa
estrutura política -, sem qualquer participação das “classes médias” urbanas,
e muito menos das camadas populares. Da parte dos grandes proprietários
de terras, a habilidade se caracteriza por vislumbrarem na gura de D.
Pedro o instrumento político que possibilitaria a emancipação do território
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 103
brasileiro em relação a Portugal. Outro fator muito importante é que essa
estratégia descartaria denitivamente qualquer interesse de cunho liberal
democrático, afastando de vez a possibilidade da participação popular
e conrmando a não existência de grandes divergências entre as frações
burguesas que compunham o processo, quando se trata de excluir – de
maneira segura – todo e qualquer seguimento que pudesse vir a ameaçar
de alguma forma sua hegemonia econômico-política.
Nesse sentido é importante salientar que os elementos político-
ideológicos, bem como a estrutura econômica que constituíram os contornos
e conteúdos do Estado nacional brasileiro, são próprios de formações sociais
capitalistas de extração colonial, que trazem consigo, desde seu momento
de gênese, elementos que fazem parte de sua forma de ser, e se reproduzem
historicamente, sem romper com seus vínculos originários. No caso do
Estado nacional brasileiro, a argumentação de Mazzeo (1989, p. 91-92)
sinaliza para dois aspectos que comporão a sua “[...] superestrutura: de um
lado, elementos ideológicos comuns às formações sociais que vivenciaram
situações tardias de desenvolvimento capitalista (onde insere-se Portugal); de
outro, aspectos especícos inerentes à situação de particularidade escravista e
latifundiária” (MAZZEO, 1989, p. 91 - 92). Mazzeo chama a atenção para
o fato de que algumas análises, ao entenderem os latifundiários como meros
manipuladores das ideias liberais, reduzem e simplicam a questão. Assim
como todo o complexo de complexos societal brasileiro, a forma pela qual o
liberalismo se manifestou no país traz em sua gênese a particularidade da via
colonial, ou seja, a “absorção colonial” do liberalismo é “[...] concretamente,
engendrada pela organização produtiva agroexportadora e escravista [...]”
(MAZZEO, 1989, p. 92).
A problemática levantada por Mazzeo é de extrema relevância,
pois essa revela que a particularidade histórica de Portugal será o elemento
norteador da forma como o liberalismo se manifestará em suas colônias, e
particularmente no Brasil.
Durante o século XVIII, enquanto a Europa passava por um
processo de expansão do capitalismo industrial e do ideário liberal, Portugal
ainda sustenta sua economia no então decadente modelo mercantilista. Para
completar o quadro de desenvolvimento de um capitalismo tardio no caso
português, o país se encontrava num enraizado processo de subordinação
de sua economia em relação à Inglaterra, processo esse que se iniciou com
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
104 |
os Navigation Act de 1651 e seria reforçado com o Tratado de Methuem,
em 1703.
A postura da metrópole portuguesa em relação às suas colônias
é a de reforçar os mecanismos da política econômica do mercantilismo,
principalmente através das sobretaxas de impostos para os produtos de
exportação e importação e da proibição do livre comércio no interior da
colônia, bem como, da instalação de manufaturas, posições estas rearmadas
a partir das Reformas Pombalinas
10
. Portugal produz assim, uma espécie
de “mercantilismo ilustrado”, que é estendido à burguesia agroexportadora
brasileira. Este seria uma adequação do pensamento revolucionário burguês
ao atraso estrutural da metrópole portuguesa e, consequentemente,
de suas colônias. Essas “ideias adequadoras” são na verdade, propostas
de transformações que não rompem com o historicamente velho, pois
mantém os mesmos mecanismos de produção da riqueza. Na verdade, na
maioria das vezes, tais proposituras de modernização assumem contornos
conservadores e até reacionários. Isso explica, por exemplo, a manutenção
da mão-de-obra escrava mesmo depois do processo de independência
do país. Apesar de longa a citação a seguir, sedimenta de forma segura o
anteriormente armado:
As adequações do pensamento revolucionário burguês ao atraso
do reino português originaram, então, um tipo de “mercantilismo
ilustrado”. Essas “ideias adequadoras” estenderam-se também
à “elite” brasileira. Apareciam então como duas faces de uma
mesma moeda, quer dizer, o Império Português. Diferenciavam-se
no entanto, no que se refere aos aspectos ligados a interesses das
atividades econômicas especícas, atividades essas, umbilicalmente
interligadas. Alterações de caráter revolucionário que pudessem,
de alguma forma, pôr em risco a base das relações de produção
existentes, eram temidas tanto pela burguesia metropolitana como
pela colonial. Para a primeira, seria o rompimento com a estrutura
metropolitana do mercantilismo, com uma desastrosa consequência
de perda do controle colonial, levando a economia do Império à
bancarrota absoluta; para a burguesia colonial brasileira, seria o m
da estrutura latifundiária e escravista e o m do seu poderio político
e econômico no Brasil. [...] Vemos, assim, que tanto em Portugal
10
Um bom exemplo desse enrijecimento administrativo-scal que a metrópole portuguesa exerceu sobre o
Brasil, pode ser tomado se analisarmos a estruturação da exploração mineral em nosso país. (PRADO JR, 1994,
p. 56-65).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 105
como no Brasil, as ideias reformistas surgem como determinação
de um processo de modernização refreadora de mudanças
fundamentais na estrutura social e produtiva. Portugueses e luso-
brasileiros valem-se das “novas” teorias adequadoras da ilustração
à “reação conservadora”, que já se delineava na Europa, indicando
a transformação do liberalismo revolucionário em liberalismo
conservador e prenunciando a decomposição do pensamento
revolucionário burguês (MAZZEO, 1989, p. 99).
Vericamos, portanto, que o complexo de complexos que compõe
a processualidade histórica, na constituição do Estado nacional brasileiro,
expressa especicidades determinadas e determinantes – num verdadeiro
movimento reexo – da via particular de enticação/objetivação capitalista
no Brasil. Vimos que o movimento pela emancipação do país não rompe
com a forma de organização produtiva, mantendo praticamente intacta
a estrutura econômica agroexportadora escravista do período colonial. A
classe que estará à frente de tal processo – a burguesia agrária que vive
da exportação de seus produtos aos núcleos centrais do capitalismo –
assumirá uma formulação extremamente conservadora e, em muitas vezes
reacionária. Preocupada apenas em se apropriar de uma maior parte da
renda produzida internamente, essa se articulou de maneira engenhosa
para garantir seus interesses, promovendo a independência política do
país, sem, no entanto, sofrer qualquer tipo de ameaça popular, excluindo
de seu projeto a grande massa de miseráveis, historicamente característica
de nossa composição social.
A grande propriedade rural, bem como a classe social que nessa
se sustenta, são decisivas e possuem um papel de grande relevância no
país; serão os principais elementos sociais na estratégia de “reformismo
pelo alto” implementado no plano político imediato, onde os processos
revolucionários serão ecazmente abortados/excluídos. Outra aproximação
possível diz respeito ao processo de desenvolvimento das forças produtivas,
pois aqui, diferentemente das formas clássicas, a industrialização se dará de
forma lenta, retardatária, tardia, e, no caso brasileiro, hiper-tardia.
Outro elemento a ser levado em conta diz respeito à conciliação
entre o historicamente velho e o historicamente novo. No caso brasileiro é
preciso atentar para o fato de a burguesia que aqui se forma ser geneticamente
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
106 |
vinculada à estrutura fundiária do país. No Brasil a burguesia tem como
origem a estrutura agrário mercantil escravista, estrutura essa associada aos
núcleos centrais do capitalismo. Esse fator determinará inclusive a natureza
não apenas tardia, mas hiper-tardia de nossa industrialização
11
.
O processo de acumulação e concentração de capitais necessários
ao desenvolvimento industrial dar-se-á no Brasil através do campo. Ou
seja, os recursos derivados da exportação agrícola foram os responsáveis pela
acumulação originária de capitais” que, posteriormente, foram revertidos
no processo industrial. Importante salientar que esse processo se deu de
forma lenta, a partir de meados do século XVIII, permeado por grandes
variações, próprias de nossa condição de colônia subordinada a uma
metrópole em franca decadência econômica. Nesse momento, presenciamos
uma verdadeira retomada da produção agrícola no país – pressionada pela
crise da mineração –, proporcionando uma “certa diversicação” de nossa
produção, pois além da cana-de-açúcar, o algodão, o arroz e a pecuária
ganharam espaço em diversos Estados brasileiros (PRADO JR., 1994,
p.31-40). Entre 1796 e 1807 a balança comercial brasileira apresentou
saldos bastante favoráveis à economia do país (MAZZEO, 1989, p. 117).
Também é nesse momento que o café passa a ser introduzido na região
Sudeste. A futura produção de tal gênero agrícola e respectiva acumulação/
concentração de capitais oriundas dessa atividade, constituir-se-iam na
mola propulsora de nossa industrialização.
Segundo João Manuel Cardoso de Mello, a estrutura econômica
sustentada na produção cafeeira engendrou as condições básicas e
necessárias ao nascimento do capital industrial e da grande indústria. Isso
só foi possível devido ao fato de essa estrutura já se basear em relações
capitalistas de produção, tais como: o trabalho assalariado estruturado
nas fazendas de café – a partir da introdução da mão-de-obra imigrante;
promover o desenvolvimento de um mercado interno de proporções
consideráveis; e gerar uma “acumulação primitiva” de capitais, concentrada
nas mãos de uma determinada classe social, passível de se transformar em
capital produtivo industrial (MELLO, 1991, p 55-59).
11
“Desse modo, se aos dois casos convém o predicado abstrato de que neles a grande propriedade rural é presença
decisiva, somente principiamos verdadeiramente a concreção ao atentar como ela se objetiva em cada uma das
entidades sociais, isto é, no momento em que se determina que, no caso alemão, se está indicando uma grande
propriedade rural proveniente da característica propriedade feudal posta no quadro europeu, enquanto no Brasil
se aponta para um latifúndio procedente de outra gênese histórica, posto, desde suas formas originárias, no
universo da economia mercantil pela empresa colonial” (CHASIN, 1978, p. 628-629).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 107
Como dissemos, os capitais provenientes da atividade agrícola
mercantil se constituirão no elemento-chave do inicial processo de
industrialização no Brasil. Porém, um fator nos parece preponderante para
entendermos a gênese de nossa indústria, bem como da fração de classe que
dela se origina. Esse diz respeito ao fato de, no Brasil, não haver distinções
sócio-econômicas entre burguesia e grandes proprietários de terras. Pelo
contrário, em muitas das vezes são, inclusive, as mesmas pessoas. Ou seja,
se constituem como indivíduos sociais pertencentes a uma mesma classe
econômica, fracionada em setores produtivos especícos: a burguesia.
Como nos bem adverte Caio Prado:
Nada há, em conclusão, nos grandes proprietários brasileiros,
e isso tanto mais acentuadamente quanto seu nível nanceiro
é mais elevado, que os distinga e caracterize como categoria
econômica e social à parte. E assim nada autoriza separar, e muito
menos extremar e isolar na estrutura sócio-econômica brasileira,
uma classe característica e bem diferenciada de “latifundiários
contrastantes com a burguesia e ligada a relações de produção de
natureza distinta e especíca. Trata-se num e noutro caso de igual
categoria social, e no mais das vezes até nos mesmos indivíduos,
homens de negócio que aplicam seus recursos e iniciativas tanto
em empreendimentos agropecuários como em outros setores, ao
sabor unicamente das oportunidades ensejadas e da lucratividade
esperada (PRADO JR., 1966, p. 168).
Esse fato, além de rearmar o caráter capital-mercantilista de
nossa produção colonial, aponta para outras características que a burguesia
industrial que se formou no Brasil vai herdar de (e no) seu processo de
constituição, qual seja, sua condição de subordinação estrutural aos
polos centrais do capitalismo mundial, decorrência de sua incompletude
e incapacidade históricas – caráter anômalo – de se constituir como
classe essencialmente revolucionária, impulsionadora de processos de
transformações sociais.
Nesse sentido dois aspectos assumem contornos de extrema
relevância. O primeiro – já discutido anteriormente – é a forma como o
ideário liberal será absorvido e colocado em prática no Brasil. O segundo
diz respeito à forma como nossa economia, a medida em que passa por
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
108 |
um progressivo processo de industrialização, se insere no contexto do
capitalismo mundial.
Para não repetirmos o que já foi dito anteriormente, basta
apontar que o processo de formação do Estado nacional brasileiro se insere
no contexto de transformações pelas quais a então metrópole portuguesa
passava. Todas as determinantes históricas que engendraram a Revolução
do Porto não permitem a constituição de uma burguesia revolucionária
em Portugal, sendo que no Brasil essa característica se agrava, pois a
escravidão se constituiu como o maior entrave para o desenvolvimento
das proposituras liberais. Nesse sentido, esse arcabouço teórico-prático,
que havia se constituído como o arrimo ideológico dos movimentos
revolucionários do século XVIII, revela seus limites históricos ao apresentar
seu caráter conservador e reacionário em países de formação “não clássicas”.
No caso do Brasil, durante os processos de emancipação política
e respectiva consolidação do Estado nacional, o liberalismo atingiu
parcialmente a economia, pois seu itinerário era percorrido apenas no
que diz respeito ao direito do livre comércio e produção, se restringindo
à produção agrícola – não podemos nos esquecer que quem está à frente
do processo de independência política é a burguesia agrário-mercantil. Em
nível político, o liberalismo será factível somente àquelas classes – ou classe
– que possuem terras, escravos e algumas quantias em riquezas acumuladas
na forma monetária, haja vista o regime eleitoral predominante durante
todo o período Imperial, cujo critério tanto para elegibilidade quanto para
disputa de cargos eletivos, era a equivalência em terras que o indivíduo
possuía em dinheiro e ou bens – voto censitário.
Portanto, a base real/material da formação social brasileira se
caracteriza pela sua incompatibilidade com o ideário liberal em seu momento
de ascensão revolucionária, bem como com os processos revolucionários
que este engendra, tal como os ocorridos nas formas “clássicas”.
O segundo aspecto a ser tratado diz respeito às transformações
pelas quais a economia brasileira passará durante todo o século XIX e
início do século XX.
Como já armamos, a economia brasileira colonial é estruturada
a partir do século XVI como um apêndice dos grandes centros produtores
do período. Sua “função” era fornecer gêneros agrícolas e produtos
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 109
tropicais à Europa para que fossem manufaturados e comercializados
mundialmente. Observadas as devidas especicidades históricas, esse
aspecto não muda durante todo o período colonial, diversicando-se
apenas no que diz respeito à mercadoria a ser fornecida. Rearmamos assim
o caráter exportador da economia brasileira como elemento essencial de
sua dinâmica, pois este setor se caracterizou como o alicerce da produção
da riqueza social brasileira, durante a maior parte de nossa história.
A partir do século XIX essa estrutura passa por algumas alterações.
Gradativamente, o complexo econômico brasileiro começou a se diversicar;
a economia passou por alterações internas com a abolição da escravatura
e com a migração de grandes contingentes de mão de obra oriundas da
Europa; consequentemente, as demandas internas no que se refere ao
consumo também aumentaram. Além disso, nossa economia foi atingida
diretamente pela grande crise do sistema capitalista mundial, na última
metade do mesmo século. Não podemos nos esquecer que a economia
brasileira era (como ainda o é) extremamente vulnerável as oscilações
do mercado internacional, posto que nossa base econômica se assentava
no setor agrário-exportador. A crise mencionada acima se manifestou
no Brasil através de um grande desequilíbrio de nossas contas públicas,
de uma constante instabilidade cambial e a consequente depreciação da
moeda brasileira. A diversicação da produção interna se faz mister, e a
industrialização se apresentou como uma necessidade primordial. Porém,
as medidas tomadas pelo governo visavam restabelecer a produtividade
da atividade cafeicultora, em detrimento do setor industrial – ainda em
fase embrionária. O projeto de industrialização, portanto, não era uma
prioridade da fração burguesa dominante no país, e mais uma vez seria
adiado, sendo que poucas foram as fábricas que conseguiram se estruturar.
No entanto, é preciso chamar a atenção para o contexto
histórico que essa incipiente diversicação produtiva está inserida. O
desenvolvimento do capitalismo mundial explicita de maneira vertiginosa
o caráter essencialmente monopolista dessa forma de organização
sociometabólica. A forma Imperialista de desenvolvimento do Capital é
imposta ao mundo como a solução para a crise, sendo que, mais uma
vez, o Brasil não passará incólume aos efeitos de tal processualidade. Ao
contrário, a diversicação produtiva – e consequente industrialização – da
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
110 |
economia de nosso país, seguiu o ritmo ditado, novamente, pelos interesses
do capital transnacional, transgurado agora em grandes trustes e cartéis.
Nessa etapa de internacionalização do capital, os centros
industrializados passaram a “exportar” suas fábricas para os antigos núcleos
coloniais, de economia predominantemente agrária. Os novos contornos
que a Divisão Internacional do Trabalho adquire foram marcados pela
expansão das empresas transnacionais em direção a América Latina, África
e Ásia, onde desfrutaram de grandes benefícios, tais como baixo valor da
matéria-prima, facilidades concedidas pelos governos nacionais para que as
empresas instalem suas plantas fabris, potenciais mercados consumidores a
serem explorados e, o fator preponderante, o baixo preço da mão-de-obra.
Todos esses fatores conjugados foram decisivos para a extração de mais-
valia e, consequentemente, para um aumento considerável na taxa de lucros
médios das empresas, o que possibilitou um novo ciclo de crescimento da
economia capitalista mundial.
O que podemos observar com relação ao Brasil é que os
antigos fornecedores não perderam seus clientes, pois passam a produzir
internamente, com grandes vantagens – diga-se de passagem –, o que antes
exportavam para o país
12
. Além disso, o agente dinamizador do processo
de industrialização no país foi o Estado, ou seja, toda a substituição de
importações que passamos a observar será iniciada a partir de medidas
político-econômicas (reajustes cambial e scal) que possibilitaram a entrada
no país dos bens de capital necessários para o início do processo industrial,
além de a própria União passar a investir diretamente no setor. Esta se
constitui em mais uma característica da nossa forma particular de inserção
na fase industrial do capitalismo, fato que reforça o caráter incompleto e
débil da burguesia brasileira.
Contraditoriamente, o que deveria ser o pressuposto e condição
fundamental para o desenvolvimento autônomo do capitalismo no Brasil,
rompendo com o antigo sistema de produção colonial, se constituiu como
um elemento de rearmação e renovação do mesmo, assentado agora
12
“Particularmente a industrialização será nesses últimos tempos, em proporção considerável que se pode avaliar
grosseiramente em pelo menos 40%, fruto da implantação no país de subsidiárias e associadas de grandes
trustes internacionais interessados em nosso mercado” (PRADO JR, 1966, p. 135). Alguns autores armam
que Caio Prado comete um equívoco em sua análise desse momento especíco do desenvolvimento econômico
do país, pois o autor teria atribuído um excessivo valor no papel das demandas de mercado, no processo de
industrialização. Para um melhor esclarecimento ver Coutinho, 1989.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 111
sobre novas bases históricas. O sentido original de nossa economia não
é rompido. Pelo contrário, os novos elementos da dinâmica econômica
interna – principalmente a industrialização – vão estar inseridos numa
processualidade histórica que produziu um novo tipo de contradição,
porém, o caráter de subordinação da economia brasileira aos centros
hegemônicos do capitalismo mundial permanecerá praticamente intacto.
O que mudou é a forma como essa subordinação se consubstancia
historicamente, bem como as novas contradições engendradas por
esse processo. Os interesses imperialistas serão o norteador do nosso
desenvolvimento industrial. As normas, o ritmo e os limites desse
desenvolvimento serão estabelecidos pelos trustes e cartéis internamente
instalados no país. Mas como isso se reproduziu?
A resposta a esta questão está na capacidade que a economia
brasileira possui de remuneração do capital transnacional aqui instalado.
Somente através dos saldos oriundos de nossa balança comercial e, mais
recentenemente, da composição do superávit primário, é que podemos
liquidar os lucros auferidos pelos investimentos imperialistas no país.
Portanto, temos a rearmação do caráter exportador de nossa economia
como elemento essencial e determinante da dinâmica do desenvolvimento
interno. É bem verdade que esse setor – de exportação – vai gradativamente
se diversicando; no entanto a exportação de produtos primários continua
a ser o principal elemento na constituição de nossa balança comercia (as
chamadas commodities). A esse respeito, Caio Prado nos oferece a seguinte
contribuição:
De fato, o lucro auferido pelos empreendimentos imperialistas no
Brasil somente se podem liquidar (e somente então constituirão
para eles verdadeiros lucros) com os saldos de nosso comércio
exterior, uma vez que é da exportação que provêm nossos recursos
normais em moeda internacional. Descontada a parte desses
recursos que se destina a pagar as importações, é do saldo restante,
e somente dele que poderá sair o lucro dos empreendimentos aqui
instalados pelos trustes. Na base do previsível para esse saldo,
portanto, xarão os trustes o limite de suas atividades; e portanto,
em consequência, o do desenvolvimento brasileiro que no sistema
vigente é por eles enquadrado. Observamos aqui muito bem a
ligação do imperialismo com nosso sistema colonial, fundado na
exportação de produtos primários, pois é dessa exportação que
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
112 |
provêm os recursos com que o imperialismo conta para realizar
os lucros que são a razão de ser de sua existência (PRADO JR.,
1966, p. 136)
13
.
Sendo assim, os empreendimentos imperialistas trazem consigo
um novo e poderoso fator de desequilíbrio”, pois a tendência que
se apresenta é a de as transações nanceiras com o mercado externo se
saudarem com décit. Esse nos parece ser um outro elemento de extrema
atualidade, presente em nossa dinâmica econômica interna. Como essa
tendência tende a se agravar, a saída encontrada é a exportação, pois, à
medida que a balança comercial se apresenta decitária, os empréstimos
internacionais se apresentam como a única saída possível; como estes não
podem ser permanentes, a necessidade de vender ao mercado externo é cada
vez maior. É através dos recursos provenientes desse “esforço exportador”
que os governos tentam dar cobertura cambial às remessas de capitais cada
vez maiores que os empreendimentos imperialistas enviam ao exterior.
Quando esse necessário superávit não se conrma, abrem-se períodos de
crise econômica e os governos novamente recorrem aos empréstimos junto
às instituições nanceiras internacionais
14
.
Conclusivamente, podemos perceber os elementos que
impossibilitam o desenvolvimento de uma política econômica autônoma
para o país. Toda processualidade histórica do sistema colonial, qual seja a
estrutura agrário-exportadora, bem como as contradições que a movem, se
conguram como o elemento de gênese no desequilíbrio de nossas nanças
13
Guardadas as devidas características dos diferentes períodos históricos, este nos parece ser, ainda nos dias
atuais, um dos elementos essenciais de nossa estruturação econômica. Haja vista todo o esforço do governo de
Fernando Henrique Cardoso, principalmente no segundo mandato (1999-2002) de alavancar as exportações
brasileiras. Para tanto este governo lançou mão de incentivos e isenções scais para o setor. Os resultados de tal
esforço puderam ser auferidos somente no atual governo Lula que, dando continuidade de forma “exemplar
às propostas do antigo presidente, pôde contabilizar durante o ano de 2004 a soma de, aproximadamente, 95
bilhões de dólares em exportações. Para maiores detalhes do processo de expansão das exportações em 2004 cf.:
AGRONEGÓCIO..., 2004.
14
Aliás, atualmente os empréstimos angariados junto às instituições como o Fundo Monetário Internacional e
o Banco Mundial, só são liberados mediante a garantia que o governo possa oferecer de cumprir vários pacotes
de “ajustes”. Para tanto, um conjunto de reformas passam a ser implementadas. Só assim podemos entender
a “necessidade” de o governo – no caso brasileiro – elaborar as reformas scal e tributária, da previdência,
bem como o “enxugamento” e a “diminuição” do tamanho do Estado, tendo como elemento primordial desse
processo a privatização das empresas estatais. As consequências de tais medidas são sentidas principalmente pela
classe trabalhadora, que padece, a cada dia que passa, diante do desemprego, do arrocho salarial e da “carestia”,
elementos estes agravados em nossos dias.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 113
externas, gerando como consequências vários momentos de instabiliadade
nanceira, bem como o processo inacionário que os acompanha, abrindo
longos e devastadores processos de crise interna.
O aspecto periférico e subordinado da economia brasileira se
mantêm mesmo com o “progresso” e as transformações introduzidas com o
advento da indústria, pois toda a diversicação da produção, necessária ao
consumo interno, bem como sua consequente diversicação, que pôs m
ao“[...] exclusivismo de atividades econômicas voltadas para exportação, se
realizam paradoxalmente por um processo em que a função exportadora
conserva de fato sua primazia [...]”, mantendo dessa forma “[...] a
economia brasileira dentro de seu velho e aparentemente ultrapassado
enquadramento colonial [...]”; some-se a isso o fato de “[...] a liderança
naquelas transformações que deveriam signicar a libertação da economia
brasileira de suas contingências coloniais, se vem concentrando cada vez
mais [...] nas mão de empreendimentos imperialistas e suas iniciativas [...]”
(PRADO JR., 1966, p. 141).
São mantidos, portanto, os elementos essenciais do processo
histórico colonial. Aquilo que Caio Prado denominou como Sentido da
Colonização permanece intacto.
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Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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| 117
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Rodrigo Czajka
1. eSquerdaS em BuSca de hegemonIa na Produção cultural?
Na medida em que diversas entidades ligadas à esquerda política
eram desarticuladas com o golpe de Estado em 1964, tendo muitos de seus
integrantes presos ou cassados por seguidos atos repressivos do governo,
outras inúmeras formas de articulação zeram-se tangíveis no horizonte
das oposições ao regime militar no Brasil. Como já apontado em inúmeras
análises (FICO, 2004; MOTTA, 2014; NAPOLITANO, 2013; RIDENTI,
2000; STEPHANOU, 2001) a onda repressiva abateu-se, num primeiro
momento, diretamente sobre setores que possuíam vínculos orgânicos
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p117-136
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
118 |
e diretos com movimentos sociais, estes, sobretudo contemplados pelas
propostas reformistas do governo de João Goulart (1961-1964)
1
.
Entretanto, toda uma recomposição das esquerdas se fez noutra
esfera de atuação. Se o golpe havida tolhido as possibilidade de articulação
no espaço das representações políticas ou mesmo dos movimentos sociais, o
mesmo não se aplicou a certos espaços de intelectuais, artistas e produtores
culturais no eixo Rio-São Paulo. Responsáveis por inúmeras campanhas
em defesa das liberdades de expressão e de criação, investiram num amplo
debate sobre seus papéis no processo de construção do projeto nacional
e seu desenvolvimento. Tendência que se iniciou mesmo antes de 1964 e
proporcionou o surgimento de vários atos em defesa cultura, bem como
de fortalecimento de sua dimensão nacional e popular (NAPOLITANO,
2017, p. 59-98). Vale ressaltar, contudo, que essa reconguração da cultura
por intelectuais e artistas não se deu de forma programática ou organizada
no interior de “movimentos culturais”. Houve, por certo, considerável
expansão de um mercado de bens culturais na passagem da década de 1950
para 1960 (ORTIZ, 1988), assim como uma diversicação maior dos
debates entre as esquerdas que formaram uma oposição e uma resistência
à ditadura após 1964.
Evidente que essa fragmentação deve ser compreendida nos termos
dos debates que se desdobraram na década de 1960. Que a formação de
grupos” de intelectuais e artistas na construção das oposições ao governo
militar também precisa ser problematizada. Quando da disseminação
de diferentes propostas e projetos de resistência, intelectuais, artistas e
produtores culturais de esquerda operaram a partir daquilo que Raymond
Williams denominou de formações culturais
2
. Ou seja, mais que pressupor
Entre os cassados pelo Ato Institucional nº 01, outorgado em 09 de abril de 1964 estavam os nomes de
João Goulart, Jânio Quadros, Luis Carlos Prestes, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Rubens Paiva, Plinio Arruda
Sampaio, Celso Furtado, Josué de Castro, Almino Afonso, Darcy Ribeiro, Samuel Wainer, Nelson Werneck
Sodré entre outros nomes da área política e sindical. Bem como 122 ociais expulsos das Forças Armadas.
Segundo Raymond Williams, “nenhum relato completo sobre determinada formação ou tipo de formação
pode ser feito sem estender a descrição e análise para a história geral, onde a ordem social como um todo e todas
classes e formações podem ser adequadamente tomadas em consideração. [...] Do mesmo modo, nenhum relato
completo sobre uma formação pode ser feito sem atentar para as diferenças individuais no seu interior. Pode-se
observar que formações dos tipos mais modernos ocorrem, tipicamente, em pontos de transição e intersecção
no interior de uma história social complexa, mas os indivíduos que ao mesmo tempo constroem as formações e
por elas são construídos têm uma série bastante complexa de posições, interesses e inuências diferentes, alguns
dos quais resolvidos pelas formações [...] e outros que permanecem como diferenças internas, como tensões
e, muitas vezes, como os fundamentos para divergências e rupturas subsequentes, e para ulteriores tentativas
de novas formações. [...] É, pois, aprendendo a estudar a natureza e a diversidade das formações culturais
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 119
uma unidade e homogeneização das lutas da oposição, congurou-se
um diversicado quadro de oposições que, de certa maneira, também
representava as revisões e dissidências no quadro político das esquerdas, em
especial no interior do partido de esquerda então proeminente: o Partido
Comunista Brasileiro (PCB).
Talvez uma das análises mais consagradas, produzida no calor
dos eventos daqueles anos exacerbantes da repressão, tenha sido a de
Roberto Schwarz. Seu ensaio, intitulado Cultura e política: 1964-1969,
foi publicado originalmente na revista Les Temps Modernes e trazido ao
público brasileiro somente em 1978 (SCHWARZ, 1978, p. 61-92)
3
.Entre
as hipóteses desenvolvidas, talvez a mais signicativa que permaneceu no
núcleo de sua análise, seja o processo de formação daquilo que o autor
denominou de “hegemonia cultural de esquerda”. Para Schwarz, o dado
mais interessante observado entre as esquerdas, em especial no modo como
suas produções artístico-culturais foram concebidas a partir do golpe de
1964, é “que a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela
data, e mais, de lá para cá não parou de crescer” (SCHWARZ, 1978,
p. 62). Ou seja, ainda que a repressão exercida pelos governos militares
fosse crescente, que fossem extintas diversas entidades e organizações
de esquerda, que houvesse a pulverização do PCB e a fragmentação dos
partidos políticos em pequenos grupos de militantes que alimentavam as
guerrilhas urbanas, e que, nalmente, ocorresse o fechamento dos espaços
de discussão e debate das esquerdas, havia ainda assim uma vasta produção
cultural e artística voltada para um público afeito, interessado nas pautas
e demandas da esquerda e do seu engajamento cultural. Como escreveu
Schwarz (1978, p. 62):
que podemos caminhar na direção de uma compreensão mais adequada dos processos culturais imediatos da
produção cultural. (WILLIAMS, 1992, p. 85).
A propósito, essa recepção tardia justica-se basicamente em um aspecto fundamental: com a abertura
democrática, a partir da segunda metade da década de 1970, houve também uma abertura ao debate que
possibilitou a muitos intelectuais, interpretações e revisões dos postulados políticos e ideológicos sustentados na
década anterior. O fortalecimento de novos espaços políticos e a emergência de novos agentes de transformação
social, por sua vez, permitiram uma “leitura distanciada” e mais “crítica” sobre os eventos vividos pelas esquerdas
durante nos primeiros anos da ditadura militar. Nesse sentido, a estruturação das universidades como polos
de pesquisa e o fortalecimento e a autonomia do ambiente acadêmico propiciaram a produção de inúmeras
análises acerca da realidade brasileira, da política nacional, da cultura, criando condições para um debate muito
rico e importante do ponto de vista cientíco. O ensaio de Schwarz foi publicado no Brasil nesse contexto de
renovação dos debates, na segunda metade da década de 1970.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
120 |
Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural de
esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio,
cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas e
febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação
estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma,
nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. Esta
anomalia – que agora periclita, quando a ditadura decretou penas
pesadíssimas para a propaganda do socialismo – é o traço mais
visível do panorama cultural brasileiro entre 1964 e 1969.
Schwarz não foi o primeiro a notar esse entusiasmo das esquerdas
em concomitância repressiva dos primeiros governos militares. No jornal
carioca Correio da Manhã, no ano de 1965, o jornalista Hermano Alves já
havido tecido alguns comentários sobre a produção cultural de esquerda,
num artigo intitulado “A esquerda festiva”. Em tom confessional, Hermano
Alves (1965, p. 6) escrevia:
Faço, agora, por lembrar-me da emoção que causou, outro dia,
o espetáculo Liberdade Liberdade, encenado aqui no Rio, pelo
Teatro de Arena de São Paulo. A liberdade parece renascer no
Centro Comercial de Copacabana (não deixa de haver um certo
simbolismo em tudo isso), entre quatro paredes de um concreto
despido e bruto [...]. Do outro lado da rua, no intervalo, via-se um
cartaz [...], recomendam desesperadamente, ao povo, que compre
o que puder, enquanto puder [...]. Mas eu não era autor, nem
crítico quando entrei no Teatro de Arena [...]. Era um espectador
como todos os outros. Talvez mais sosticado do que muitos
deles. Ou politizado, se quiserem. E o que vi e ouvi me causou
uma profunda satisfação, animando-me a prosseguir no trabalho
que tenho procurado realizar, na imprensa e fora dela. E por isso
considero que a esquerda festiva está cumprindo uma tarefa da
maior importância. Não sou eu, apenas, que reconhece isso.
A diferença entre as análises de Alves e Schwarz é bastante tênue
e auxilia a compreender melhor o fenômeno da produção e circulação
culturais entre as esquerdas no contexto repressivo. Embora o ensaio
de Schwarz tenha sido consagrado pela acuidade teórica ao abordar tais
problemas através de um prisma sociológico, vinculando sua análise a
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 121
questões mais amplas da produção cultural na sociedade brasileira na década
de 1960, sua escrita, ainda assim, está imersa nos debates polissêmicos
sobre o papel da cultura, dos artistas, intelectuais e produtores culturais na
oposição ao regime militar. A popularização desse ensaio apenas no nal
da década de 1970, conferiu à análise um estatuto crítico e revisionista
que, de certa forma, imunizou-o no ambiente acadêmico ao considerar
a produção e a circulação de bens culturais das esquerdas através do
conceito de hegemonia. Isso ocorreu devido ao próprio modo como se deu
a recepção do ensaio de Schwarz. Ou seja, sua leitura dos fenômenos das
esquerdas culturais na década de 1960 coincidiu com a forma pela qual se
empreendiam revisões sobre a vida nacional, sobre o papel das esquerdas e
dos intelectuais na emergência dos novos movimentos sociais, a abertura
democrática, patrocinada pelo governo de Ernesto Geisel (1974-1979).
Esse foi o principal uso conferido ao ensaio de Schwarz por sua geração ao
analisar o fenômeno do populismo da esquerda na década anterior
4
.
Entretanto, seu texto também possui o estatuto de fonte ou
documento, assim como o de Hermano Alves – e daí a similitude entre
ambos no que concerne à análise da resistência e hegemonia culturais.
A diferença entre as duas perspectivas está no fato que Schwarz deniu
seu objeto a partir da formação de uma hegemonia cultural das esquerdas,
em vez de constituição da resistência cultural ao regime militar, como fez
Alves. A questão analisada do ponto de vista da “resistência”, apenas estaria
centrada na constatação da contraposição de forças mobilizadas por dois
grupos distintos, entre os quais, a disputa em si mesma formaria o núcleo
das tensões e da própria resistência. O embate entre tais forças, a saber, o
governo militar e as oposições, estaria determinado por disputas localizadas
e esgotadas no interior dos grupos onde estas resistências foram gestadas.
A resistência exercida dessa maneira, apenas por grupos ou agremiações
políticas especícas, não resultaria, na maioria das vezes, num projeto
efetivo de enfrentamento que mobilizasse diferentes grupos sociais contra
a repressão; a resistência, dessa forma, representaria apenas uma ação (ou
intenção?) localizada e situar-se-ia num contexto especíco em que a
repressão atuaria de forma também especíca.
Sobre o aspecto preciso do populismo como categoria de análise dos movimentos na década de 1960, consultar
(SZWAKO; ARAÚJO, 2019).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
122 |
Quanto ao conceito de “hegemonia”, nele está contido não só
a noção de resistência, bem como outros elementos que permitem, por
exemplo, entender como foi possível a resistência ser reproduzida social
e culturalmente. Noutras palavras, procurou problematizar como grupos
sociais não atingidos, num primeiro momento, diretamente pela repressão
conceberam a resistência e o engajamento na forma de símbolos de
organização política, formulando um aspecto aparentemente homogêneo e
unitário de resistência por meio das produções culturais. Assim, a diferença
entre hegemonia cultural e resistência cultural parece estar no fato da
primeira trazer consigo um conjunto de valores compartilhados (como de
engajamento, protesto, resistência etc.), a partir de uma linguagem comum
e pressupondo uma universalidade da cultura e de seus produtos, acessíveis
sobretudo num mercado de bens simbólicos e culturais (BOURDIEU,
2004, p. 99-182). Ou seja, considerar a organização das esquerdas culturais
na década de 1960 a partir da noção de relativa hegemonia cultural é
conceber que as resistências culturais desorganizadas faziam-se uniformes
e unicadas à medida que essa mesma hegemonia das esquerdas na cultura
construía-se pelo viés do mercado ou da indústria cultural incipiente. Este
mesmo mercado que transformava a resistência política desorganizada em
símbolos culturais de toda uma geração de intelectuais e artistas, através
de produtos especícos como a música, o teatro, o cinema, a literatura etc.
(NAPOLITANO, 2017, p. 99-150). Por isso o domínio da hegemonia,
segundo Schwarz (1978, p. 73),
[...] concentra-se nos grupos diretamente ligados à produção
ideológica, tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos
sociólogos e economistas, a parte raciocinante do clero, arquitetos,
etc., – mas não sai daí, nem pode sair, por razões policiais. Os
intelectuais são de esquerda, e as matérias que preparam de um
lado para as comissões do governo ou do grande capital, e de outro
para as rádios, televisões e os jornais do país, não são. É de esquerda
somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um
bom mercado – produz para consumo próprio.
Dessa forma, a relativa hegemonia cultural de esquerda seria
denida a partir de um amplo imaginário, compartilhado por intelectuais e
artistas de esquerda no questionamento do imperialismo, no enfrentamento
do autoritarismo dos governos militares e em favor do desenvolvimento
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 123
da cultura nacional. Ao passo que as resistências estariam submetidas a
disputas especícas de setores, também especícos da produção cultural
de esquerda
5
.
No entanto, o dado interessante e, muitas vezes não observado
pelas pesquisas sobre os movimentos sociais e o processo de organização
das esquerdas a partir da década de 1960, é sua associação a um mercado
de bens culturais, bem como a estruturação de uma indústria cultural,
constituindo a partir dela uma cadeia de comunicação e informação
composta por emissoras de rádios e TVs, revistas, jornais, livros, etc.
Schwarz não apontava a indústria cultural como elemento aglutinador das
atividades de esquerda, mas sugeria a formação de um mercado enquanto
solução formal”, que estruturava a comunicação e reforçava o debate em
torno dos temas, como o engajamento cultural. Segundo ele,
[...] o processo cultural, que vinha extravasando as fronteiras de
classe e o critério mercantil, foi represado em 64. As soluções
formais, frustrado o contato com os explorados, para o qual se
orientavam, foram usadas em situação e para um público a que não
se destinavam, mudando o sentido. De revolucionárias passaram
a símbolo vendável da revolução. Foram triunfalmente acolhidas
pelos estudantes e pelo público artístico em geral. [...] Formava-se
assim um comércio ambíguo que de um lado vendia indulgência
afetivo-políticas à classe média, mas de outro consolidava a
atmosfera ideológica. (SCHWARZ, 1978, p. 79-80).
Na grande maioria das análises subsequentes que apreciaram o
contexto a que se refere Roberto Schwarz, o problema do mercado de bens
culturais ou mesmo da indústria cultural não é considerado no mesmo
compasso da formação do movimento político das esquerdas, base desse
mercado incipiente. Durante a década de 1970 as investigações que
analisaram esse aspecto estiveram, na maioria das vezes, difusas no campo
da comunicação de massa e dos meios de comunicação, em geral. Por
outro lado, essa associação entre setores da esquerda e o mercado, bem
como as ideologias das esquerdas culturais resultantes dessa combinação,
Essa especicidade pode ser detalhada, por exemplo, na consideração que José Joaquin Brunner faz
dos chamados “circuitos culturais”. Segundo ele, “chamamos a combinação típica de agentes e instâncias
institucionais de organização um circuito cultural que contempla, por sua vez, as fases de produção, transmissão
e consumo dos respectivos bens culturais”. (BRUNNER, 1992, p. 252).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
124 |
foram denidas pari passu por uma proposição muito usual nas ciências
sociais, empregada para explicar as atipicidades geradas na tensão entre
engajamento político e indústria cultural: o populismo (SZAWKO;
ARAÚJO, 2019).
Mas se antes, a relativa “hegemonia cultural de esquerda” era
apenas uma intenção na composição do amplo e diversicado leque
ideológico da Frente Ampla das oposições, a partir de então, o cenário
político e cultural sofreu transformações importantes. Ocorrera, pois, uma
intensicação da produção cultural em todos os níveis, que favorecia a
relação entre produtores culturais de esquerda e as organizações comerciais
e de difusão cultural – estas, em expansão comercial nunca antes vista.
O teatro, o cinema, as artes plásticas, a música, a literatura foram não
somente alimentados por novas ideias e novos projetos políticos, frente
à aparente distensão do governo instaurado em 1964, mas também
favorecidos pela formação de novos públicos consumidores de cultura,
devotados à questão do nacional-popular através do ltro da indústria
cultural (NAPOLITANO, 2017, p. 99-150).
2. a edItora cIvIlIzação BraSIleIra, ênIo SIlveIra e aS ePíStolaS
ao marechal
A editora Civilização Brasileira (ECB), reconhecidamente uma
editora que sob direção de Ênio Silveira consolidou-se comercialmente a
partir de um projeto editorial de esquerda (HALLEWELL, 1985, p. 431-
461), esteve imersa nessa conjuntura política e participou ativamente na
constituição de redes intelectuais por toda década de 1960. Sua atuação
no mercado editorial, como detalhada anteriormente (CZAJKA, 2010),
foi decisiva no sentido da ampliação e fortalecimento de um espaço
de debates sobre os rumos da vida nacional e as subsequentes revisões
políticas e ideológicas pelas quais passaram as esquerdas naquele mesmo
período. Mais que um militante comunista, Ênio foi a personicação do
prossional que conseguiu não somente criar uma linha editorial que
contemplasse os debates abertos pelos intelectuais de esquerda na década
de 1960, mas também organizar no setor editorial seu próprio mercado
e público para suas edições. Esse era, aliás, um dos fatores que chamava
atenção dos militares para a Civilização Brasileira que, desde 1958, estava
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 125
em compasso com inúmeras iniciativas que levaram a cabo a chamada
subversão comunista” (HALLEWELL, 1985, p. 488-497).
Essa importância da editora já aparece, por exemplo, nas
investigações que os militares realizaram sobre a empresa de Silveira. Sua
intimação para depor num Inquérito Policial-Militar (IPM, 1964-1965) já
consta no primeiro volume do IPM do ISEB, um dos primeiros inquéritos
instaurados após o golpe militar (CZAJKA, 2012). Sua vida pessoal e
prossional é investigada e todo seu trabalho exercido na direção da ECB
é colocado sob suspeição. Tamanha era a importância de Ênio no cenário
editorial na década de 1960 que ele chegou a ser convocado pelo general
Golbery do Couto e Silva para uma reunião no Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD). A respeito desse encontro, o editor relatava:
Eu fui supondo que ia ser uma conversa formal que ia durar quinze
minutos ou meia hora no máximo, e o que aconteceu foi que
houve três encontros com Golbery. O primeiro durou quatro horas
seguidas, o segundo também e no terceiro encontro ele apresentou
seu substituto, que era um coronel que iria car em contato
comigo. Para dar um resumo da história, ele me disse seguinte:
eu sei que o senhor é um adversário coerente e intransigente da
Revolução, mas eu lhe chamei aqui para lhe dizer que a Revolução
vê no senhor um patriota, que embora com nenhuma sintonia com
nossos métodos, tem sintonia com nossos ideais. [...] Queremos
que você e seu grupo venham fazer parte do nosso movimento, pois
é preciso que compreendam que nós queremos salvar o Brasil, tirar
o país do atraso, etc’. (VIEIRA, 1996, p. 55-56).
Um dado interessante desse campo de tensões em torno da
defesa de projetos nacionalistas (das esquerdas e dos militares), é que
nem o governo determinou o fechamento da editora por suas atitudes
subversivas”, nem o partido conseguiu dirigir sua linha editorial – ainda
que Ênio fosse liado ao PCB desde meados da década de 1950. Aliás,
essa condição foi desde cedo colocada por Ênio como forma de evitar as
intervenções do partido em sua editora. Ainda que a ECB apresentasse em
suas edições uma orientação marxista ou materialista, o objetivo de Ênio,
com essa postura, era conduzir os debates para além das estruturas rígidas
do partido e além dos limites do nacionalismo conservador e militar. Desse
modo, suas publicações estavam balizadas por uma abertura não sectária,
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
126 |
nas quais a propaganda institucional (dos comunistas e dos militares) não
seria veiculada pela editora, nem em suas publicações.
Este posicionamento de Ênio em relação as suas edições foi
um passo importante na consolidação de um mercado e de um público
interessado nas temáticas de esquerda. Mas por questões que envolviam
sua segurança e mesmo não ser reconhecido comercialmente como um
editor do “partidão”, escolheu não vincular – ao menos explicitamente –
seus negócios ao PCB ou a qualquer outro programa institucional. Essa
postura distanciada e não sectária determinou praticamente toda linha
editorial da ECB, enquanto ele esteve na direção da empresa.
Quanto ao problema da repressão militar e da censura às obras
editadas pela Civilização Brasileira, é importante ressaltar o modo pelo
qual se procedeu a intervenção militar no campo da produção cultural. A
exemplo do que arma Renato Ortiz, eram, nesse momento, censuradas
peças teatrais, os lmes, os livros, mas não o teatro, o cinema ou a indústria
editorial. Segundo Ortiz, “[...] o ato censor atingia a especicidade da obra,
mas não a generalidade de sua produção.” (ORTIZ, 1988, p. 114). Assim
ocorreu com a editora: nunca foi colocada sob suspeição (ao menos até
1968), mas muitos de seus editados foram indiciados em IPM’s ou mesmo
presos. O próprio Ênio Silveira foi detido quatro vezes entre 1964 e 1969,
em virtude da publicação e tradução de obras e classicadas subversivas pelo
governo militar
6
e um total de 13 títulos foram apreendidos e destruídos.
Além de Ênio Silveira, muitos professores, cientistas e servidores
públicos foram investigados e perseguidos desde de 1964; também o meio
artístico, em especial os prossionais do teatro e a da produção periódica
(jornais e revistas) foram alvos de inquéritos e investigações de órgãos
militares. Inúmeros manifestos foram publicados na grande imprensa, tais
A última dessas prisões rendeu-lhe, inclusive um diário escrito nos dias de cárcere. As anotações desse diário
foram organizados e publicados por Moacyr Félix em (SILVEIRA, 1998). Foi ainda inquirido em quatro
Inquéritos Policiais-Militares: o IPM do ISEB, o IPM da Imprensa Comunista, o IPM da Civilização Brasileira
e o IPM do Partido Comunista Brasileiro.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 127
como o Manifesto Nacional pela Democracia e o Desenvolvimento
7
e o
Manifesto dos 1500: intelectuais e artistas pela liberdade
8
.
A prisão de Ênio Silveira motivou a publicação de um manifesto
organizado por intelectuais contra a repressão, em maio de 1965. Numa
das ocasiões em que depunha para um IPM, foi preso com alegação de
que ele havia promovido em sua residência uma reunião com “agentes da
subversão comunista”, entre eles o ex-governador de Pernambuco, Miguel
Arraes, então prisão decretada pelos militares. Ênio foi detido no dia 26 de
maio de 1965 e sua prisão mobilizou um grande número de intelectuais,
prossionais da área cultural, cientistas, professores e amigos em torno
de um manifesto publicado como matéria paga nos principais jornais de
circulação nacional, no dia 30 de maio: Correio da Manhã, Jornal do Brasil
e Folha de São Paulo. Na época o caso foi ironicamente alcunhado pela
imprensa como o “IPM da Feijoada”, por conta da iguaria servida durante
a reunião que justicou a prisão do editor.
Esse manifesto, intitulado Intelectuais e artistas pela liberdade
(1965) apresentou assinatura de 600 nomes do meio artístico e cultural,
e trazia uma pequena descrição seguida da imensa lista de nomes que se
solidarizaram com o pedido de liberdade do editor:
Os intelectuais e artistas brasileiros abaixo-assinados pedem a
imediata libertação do editor Ênio Silveira, preso por delito de
opinião. Não entramos no mérito das opiniões políticas de Ênio
MANIFESTO à nação defende liberdade. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 de março de 1965. Segundo
Caderno, p. 32. Entre seus signatários estavam nomes de 107 pessoas como os de Paulo Francis, Carlos Heitor
Cony, Alceu Amoroso Lima, Antonio Callado, Anísio Teixeira, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Diegues, Cícero
Sandroni, Dias Gomes, Domar Campos, Edmundo Moniz, Edu Lobo, Fernando de Azevedo, Flávio Rangel,
Flávio Tavares, Florestan Fernandes, Fortuna, Hermano Alves, João do Valle, Joaquim Pedro de Andrade, José
Honório Rodrigues, M. Cavalcanti Proença, Márcio Moreira Alves, Mário Martins, Mário Pedrosa, Millôr
Fernandes, Moacyr Werneck de Castro, Nelson Pereira dos Santos, Oduvaldo Viana Filho, Oscar Niemeyer,
Oswaldo Gusmão, Otto Maria Carpeaux, Roberto Faria, Rui Guerra, Sérgio Buarque de Holanda, Sérgio
Cabral, eresa Cesário Alvim, entre outros. Neste manifesto, curiosamente, não guravam os nomes de Ênio
Silveira, Roland Corbisier, Nelson Werneck Sodré ou quaisquer outros envolvidos diretamente em inquéritos
policiais-militares.
UM DIÁLOGO incrível. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2 caderno especial, p.254. Foi
uma espécie de carta aberta ao presidente de república. Esse manifesto foi preparado por alguns prossionais do
teatro e reuniu um número grande de assinaturas que se solidarizava não somente com o teatro contra a censura
a peças, mas com todos os produtores de cultura prejudicados pelo governo por conta do policiamento sobre
suas respectivas produções. Autores e atores de teatro foram sistematicamente inquiridos e, por m, muitos
acabavam com suas montagens censuradas ou proibidas. Dentre estes inquéritos, o mais curioso foi o da atriz
Glauce Rocha, interrogada acerca da montagem de Electra, de Sófocles, sob direção de Antonio Abujamra: o
responsável pelo interrogatório perguntara a ela se conhecia Sófocles, ao que ela respondeu que sim. E para
reforçar a informação foi lhe perguntado ainda se Sófocles era soviético e subversivo.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
128 |
Silveira, mas defendemos o seu direito de expressá-lo livremente,
direito garantido pelo artigo n. 141, § 8º da Constituição do
País: ‘por motivo de convicção religiosa, losóca ou política,
ninguém será privado de nenhum de seus direitos [...]’....
(INTELECTUAIS..., 1965).
Inúmeras manifestações tornaram-se públicas devido a prisão de
Ênio e nelas reivindicava-se a liberdade do editor como uma forma de
solicitar, da mesma maneira, a liberdade de expressão de classe cultural e
artística. Inclusive, entre setores militares houve manifestações contrárias e
discordantes sobre o modo como se procedia nas investigações sobre editor
– como demonstrou Elio Gaspari ao apresentar um bilhete enviado pelo
presidente Marechal Castello Branco ao então ministro Ernesto Geisel:
Por que a prisão de Ênio? Só para depor? A repercussão é contrária
a nós, em grande escala. O resultado está sendo absolutamente
negativo. [...] Há como que uma preocupação de mostrar ‘que se
pode prender’. Isso nos rebaixa [...] Apreensão de livros. Nunca
se fez isso no Brasil. Só de alguns (alguns!) livros imorais. Os
resultados são os piores possíveis contra nós. É mesmo um terror
cultural. (GASPARI, 2002, p. 231).
Desse episódio, aliás, surgiu a oportunidade do próprio Ênio
discorrer sobre o controle militar face às produções culturais no regime de
1964. Sua estratégia de protesto foi a publicação de epístolas dirigidas ao
então presidente da república, numa tentativa de estabelecer um diálogo,
assim como marcar posição frente aos procedimentos adotados por aquele
governo durante as investigações policiais sobre os produtores culturais.
O fato é que as epístolas dirigidas ao marechal Castello Branco
contribuíram para a intervenção de Ênio também como um intelectual
crítico e não somente o editor, proprietário de sua casa editorial. Seu
envolvimento com as questões relativas à censura e à repressão através
das epístolas o colocou como um intelectual visado e perseguido pelo
regime militar, chegando à situação extrema de sua empresa sofrer
inúmeras restrições políticas e orçamentárias – como a não aprovação de
nanciamento destinado ao custeios de suas edições.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 129
As epístolas – publicadas na Revista Civilização Brasileira no ano
de 1965 – reforçaram a gura do intelectual como um agente capaz de
condensar em si o engajamento e a expressão da liberdade individual pela
opinião. Um sujeito que se apresentava não à sombra de uma instituição
política ou partidária, mas a partir da noção e da necessidade de colocar
em relevo a liberdade por meio do debate e da reexão. Numa análise do
perl intelectual de Ênio, Luiz Renato Vieira atenta para essa perspectiva
individual do editor e a importância de seus pronunciamentos naquele
contexto de organização das esquerdas e a projeção da gura do intelectual
de esquerda naquela conjuntura de militarização. Segundo Vieira (1996,
p. 105-109),
[...] as célebres Epístolas ao Marechal são textos de grande
importância por dois motivos fundamentais. Por um lado, por
sintetizar, numa linguagem direta, o espírito de denúncia que
presidiu os primeiros volumes da RCB, servindo como uma medida
do impacto do golpe de Estado sobre uma sociedade que, malgrado
as características populistas do período que antecedeu a ditadura, se
encontrava num nível elevado de mobilização popular por questões
sociais e econômicas.
Por outro lado, no que se refere às peculiaridades do campo
intelectual e particularmente à inserção de Ênio Silveira – que
escreve as Epístolas em primeira pessoa. [...] Mais do que nos
informar quanto às formas de participação do editor no campo
intelectual, as epístolas permitem compreender a inserção
pretendida pelo responsável pela RCB no debate político da época
e, também, o interesse em estabelecer uma discussão com o poder
instituído.
Tais questões, entretanto, eram de natureza subjetiva e reetiam
o processo de organização das forças, fragmentadas e dispersas no terreno
da política. Ou seja, mais que expressão de um programa de resistência
ou de um movimento consolidado por diretrizes políticas, a manifestação
da Ênio Silveira sintetizava a expressão das formações culturais de esquerda
que se desenhavam no horizonte daquela geração de intelectuais, artistas e
demais produtores culturais. Apesar de suas cartas adensarem o discurso de
oposição e transparecerem uma certa unidade das esquerdas no exercício
da reexão e da crítica ao militarismo e à repressão, nota-se que o ato
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
130 |
deliberado de Ênio restringiu-se ao circuito de seus próprios leitores – daí
a pertinência de Roberto Schwarz em asseverar a “relativa hegemonia
cultural de esquerda”. A relatividade dessa posição hegemônica conrma-
se na medida em que entendemos que as formações culturais (WILLIAMS,
1992, p. 85) são capazes de exprimir a heterogeneidade que constituiu
aqueles “grupos” de intelectuais e artistas.
Heterogeneidade que encontrou lastro profícuo com uma
determinada estrutura de sentimento (WLLIAMS, 2011, p. 43-68) própria
daquela geração que construiu diferentes formas de oposição ao militarismo,
ao mesmo tempo em que construía e organizava seus espaços especícos de
representação (SAID, 2005, p. 19-36). Dimensões perceptíveis em vários
artigos, ensaios e cartas, assim como as próprias epístolas ao marechal
Castello Branco. Ênio Silveira, ao se referir a Castelo Branco, por exemplo,
demonstrava suas intenções como “cidadão-intelectual” e justicava o
modo pelo qual o fazia:
Acredito que seus muitos afazeres [os de Castelo Branco], antes
e depois do movimento insurrecional que o conduziu à chea da
Nação Brasileira, não lhe tenham permitido tomar conhecimento
de um livro curioso, cuja leitura me parece recomendável a todo
chefe de governo [...]. Trata-se de e Presidencial Papers, de
Norman Mailer [...]. É um volume de trezentas e tantas páginas,
reunindo várias cartas-relatório (papers, como as classica Mailer,
por entendê-las documentos de uma assessoria voluntária,
não solicitada, mas nem por isso menos válida ou oportuna)
endereçadas publicamente ao presidente John Fiztgerald Kennedy
por intermédio de várias revistas em que o autor colaborava [...].
Nesses documentos, em forma de epístola, os mais variados temas
são livremente desenvolvidos e investigados: delinquência juvenil,
preconceito racial, direitos civis, política externa, [...] liberdade de
opinião, a esquerda nos Estados Unidos, o campeonato mundial de
boxe, etc., sempre com o intuito de oferecer ao presidente Kennedy
uma visão informal, antipalaciana, quase audaciosa dos problemas
nacionais e internacionais. (SILVEIRA, 1998, p. 18).
A questão central nesse relato de Ênio era, além de demonstrar
o posicionamento de suas intenções e de sua tarefa como interlocutor
junto ao presidente, considerar o aspecto – novamente rearmado – da
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 131
formação de um “grupo” de intelectuais que ainda não havia formulado
um projeto unicado, a partir do qual todos os seus agentes pudessem
igualmente se pronunciar. Assim, a primeira epístola, intitulada Sobre o
delito de opinião, revelava essa representação individual do intelectual que,
na forma de um extenso depoimento, atestava a formação heterogênea,
múltipla e não sectária destas formações culturais das quais participavam
intelectuais e artistas. Ênio, continuando o relato, descrevia sua atuação,
suas experiências e em alguns momento ressaltava sua formação política e
ideológica. A epístola prosseguia com certa pessoalidade e considerando os
fatos e as informações sempre na primeira pessoa. No que se referia a sua
formação político-ideológica, é interessante o modo como ele se reportava
ao Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI)
9
:
Liguei-me a escritores e artistas que se entendiam afastados, como
eu, de especulações meramente acadêmicas e idealistas, cidadãos
que também estavam dispostos a fazer alguma coisa, abandonando
de uma vez por todas posições ora conformistas, ora pessimistas,
ora indiferentes. De nossos debates e esforços conjuntos surgiu
a ideia de organizar um movimento sistemático, que trouxesse
o concurso dos homens de pensamento e cultura aos centros
de decisão da vida nacional, tradicionalmente manipulados
por guras de visão imediatista e estreita. Essa iniciativa, sob o
Comando dos Trabalhadores Intelectuais, mereceu logo o apoio
de centenas de escritores, artistas, professores, estudantes e estava
a caminho de sua estruturação jurídica quando foi interrompida
pelo movimento insurrecional de que o senhor fez parte.
(INQUÉRITO..., 1964-1965).
Essa fase de indenições quanto ao sentido político e ideológico
das organizações de esquerda, do choque com as novas formas de produção e
reprodução culturais, marcaria o início da chamada resistência ao “terrorismo
cultural”
10
. Fase em que a constituição de símbolos da resistência zeram-
se politicamente através das produções artísticas e culturais, colocando
em debate a construção de um conceito democracia que considerasse a
complexa conjuntura de organização das esquerdas no campo da cultura.
Daí a importância, nas epístolas de Ênio, do debate sobre a liberdade de
 Sobre o Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), consultar: Czajka (2011).
10
Discussão sobre o “terrorismo cultural”, consultar Czajka (2014).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
132 |
opinião, mesmo num regime autoritário. Liberdade essa, fundada na livre
expressão e criação artística e cultural. Isso cou acentuadamente marcado
quando Ênio dirigia-se a Castelo Branco dizendo:
Pois bem, Sr. Marechal: chegamos aqui ao motivo principal desta
epístola, que é precisamente o da liberdade de opinião. [...] De
fato, admitamos que muitas das violências e injustiças clamorosas
dos primeiros meses foram fruto da euforia punitiva que dominou
os vencedores. Esqueçamo-nos por instantes, apenas para
encaminhamento de raciocínio, das centenas de vítimas do Ato
Institucional, da demissão em massa de professores universitários,
da aposentadoria ou demissão sumária de funcionários públicos,
da reforma de tantos ociais de nossas Forças Armadas, todos
perseguidos e punidos pelo crime de terem pensado. [...] Pensemos
nos três rapazes, coautores da série de livros intitulada História
Nova, que caram presos durante semanas e semanas, por
capricho de misteriosas autoridades, acusados de crime de opinião.
Pensemos nos livros que estão sendo apreendidos em vários pontos
do território nacional pelos agentes da Polícia de Segurança ou pelo
próprio Exército Brasileiro. (SILVEIRA, 1998, p. 25).
A questão da liberdade de opinião centrou tanto a primeira
epístola (“Sobre o delito de opinião”) quanto a segunda (“Sobre a vara de
marmelo”), ainda que esta se detivesse na análise das eleições estaduais,
no ano de 1965. Nas duas epístolas cavam evidente a necessidade do
editor em tecer suas considerações a partir de um enfoque pessoal e das
experiências vividas por ele em sua condição de intelectual e empresário
do ramo editorial. Interessante que essa condição não era oculta no texto,
pelo contrário, estava ressaltada como a única forma de fazer oposição
ao regime ou pelo menos incitar o debate sobre a repressão à produção
cultural. Continuava:
Sou obrigado a voltar, Sr. Marechal, ao trato do caso pessoal,
para exemplicar melhor. Desde o movimento insurrecional,
várias coisas me aconteceram: a) meus direitos políticos foram
suspensos por dez anos, pelo Ato Institucional, sem que eu
tenha tido oportunidade de me defender; b) já fui submetido a
cinco IPMs, sendo reinquirido em dois deles; c) fui alvo de um
processo criminal, no Estado da Guanabara, acusado de “crime
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 133
de subversão”; d) fui preso durante nove dias, como suspeito de
crime de subversão”; e) livros editados por minha empresa têm
sido apreendidos em vários pontos do território nacional, sob a
alegação de que são ou podem ser “subversivos”. E por que tudo
isso? Porque autoridades maiores ou menores, subordinados a seu
governo, Sr. Marechal, não podem admitir que um homem como
eu, cujas origens sejam burguesas, pertença – estatisticamente –
àquele percentual mínimo de nossa população que constitui as
chamada classes dominantes, tenha as ideias que defendo e aja
em função delas. Não podem entender, igualmente, que a editora
Civilização Brasileira esteja trabalhando no intenso ritmo atual
movimentada apenas por seus próprios recursos nanceiros,
proporcionados e a cada instante ampliados pela aceitação
popular dos livros que edita. (SILVEIRA, 1965, p. 3-4).
Note-se que a liberdade de opinião, seja em relação ao PCB ou ao
governo militar, permeou o projeto editorial da ECB. Apesar dela resultar
da articulação de pequenos núcleos intelectuais e de artistas sem vínculos
institucionais ou partidários, a produção da ECB apontava para uma
institucionalização legitimada no seu potencial de aglomeração das mais
variadas tendências políticas e ideológicas – daí a heterogeneidade expressa
pela ideia de formações culturais.
A dinâmica política do regime, o salto de modernização
capitalista ocorrido no período e, por último, porém não menos decisivo,
as percepções, ideias e utopias presentes na heterogênea e briguenta família
oposicionista, deniram o modo pelo qual tais experiências foram vividas
nas fronteiras imprecisas entre o público e o privado.
No caso de Ênio e sua ativa intervenção através dos textos que
assinava, talvez desse prosseguimento à publicação das cartas dirigidas
ao presidente de República, pois não foi sua prisão que o privou disso.
Outro fator mais complexo privou não somente Ênio, mas uma série de
intelectuais de manifestarem suas opiniões no segundo semestre daquele
ano: a edição do Ato Institucional nº 02, em 27 de outubro de 1965. A
editora, como foi visto anteriormente, sofreu uma onda de choque com
a promulgação do AI-2. Aliás, segundo depoimentos de alguns amigos,
foi em virtude do AI-2 que Ênio, que não era liado ao PCB, decidiu-se
denitivamente pela liação. Conforme relato de Carlos Heitor Cony,
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
134 |
Depois que demoliram o prédio da Sete de Setembro, Ênio foi para
uma sala na Avenida Central junto com Paulo Francis e o Joaquim
Inácio Cardoso. Esse grupo começou a tocar a Civilização. Então
Ênio fez um jornal chamado Reunião, saíram dois números, com
o mesmo grupo. [...] Aí veio o AI-2 e o grupo da Civilização se
dispersou ideologicamente. O Ênio fez a escolha dele, entrou para
o Partidão, e muita gente se afastou dele. (VIEIRA, 1996, p. 11).
Entre os anos de 1965 e 1967 foram inúmeras as manifestações
de intelectuais em defesa do resguardo individual de expressão e criação
artísticas. Como se constata em muitos dos artigos, matérias, comentários
e até mesmo manifestos, havia projetos para uma ação conjunta na
forma de uma “frente ampla” pela cultura. Ênio esteve mergulhado nessa
proposta, absorvido pelas tensões e os conitos vivenciados por aqueles
que partilhavam dos mesmo anseios e projetos na esfera da produção
cultural. Sua importância esteve, justamente, no modo como conseguiu
coadunar, numa só campanha intelectual, a estrutura empresarial de seus
negócios e os princípios político-ideológicos que nortearam sua militância.
Sua presença foi fundamental para um conjunto de outros intelectuais que
viam nele a representação intelectual da liberdade e da realização plena do
mundo da cultura, contundente e sem amarras.
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Maria Ribeiro do Valle
a leItura daS revoluçõeS modernaS Por arendt
Em seus mais importantes livros, A democracia na América e O
Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville, nostálgico do mundo vencido
pela Revolução Francesa, critica tenazmente a inevitável marcha para a
igualdade provocada por paixões e ambições desenfreadas, que trazem um
grande perigo às democracias. Sua argumentação é herdada por Arendt
(1990), principalmente quando extrapola para o campo da liberdade,
até então totalmente vinculado à esfera política. Com efeito, a abdicação
da liberdade em face dos ditames da necessidade só pode evoluir com o
concurso de crimes e criminosos.
Podemos notar nessas argumentações críticas à Revolução
Francesa, desencadeada pela questão social, um enaltecimento da Revolução
Americana, calcada na implantação da liberdade e no estabelecimento de
instituições políticas duradouras. Pois, a primeira, segundo Arendt, por
Este texto é parte das reexões desenvolvidas por Maria Ribeiro do Valle no livro de sua autoria intitulado A
Violência Revolucionária em Hannah Arendt e Herbert Marcuse – raízes e polarizações (São Paulo: Editora da
UNESP, 2003).
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p137-162
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
138 |
abrir as portas da política às camadas inferiores da população, solapa
os fundamentos da liberdade, enquanto, ao contrário, na América,
os fundadores da República, por sua superior sabedoria, representam e
constituem politicamente uma coletividade onde “o tenebroso espetáculo
da miséria humana e as vozes fantasmagóricas da pobreza abjeta
(ARENDT, 1990, p.75) jamais penetram no campo político, onde os
homens de ação estão à frente do processo que tem início na declaração da
independência e culmina com a elaboração da constituição. Podemos notar
como ela se aproxima dos pressupostos de Tocqueville, particularmente no
que diz respeito à questão social. Para os dois autores em questão o reino
da necessidade deve estar totalmente desvinculada da esfera política, esfera
da excelência; e quando esta separação deixa de ser respeitada, como no
exemplo da entrada das massas na Revolução Francesa, momento em que
é posta em xeque a natural existência da pobreza, apenas haverá como
saldo a violência e a destruição. A questão de fundo segundo Arendt é que
neste caso a revolução deixa de voltar-se para a fundação da liberdade para
buscar a libertação do homem de seu sofrimento e da miséria, trazendo a
compaixão para o interior da política:
A vida humana tem sido assoberbada pela pobreza desde tempos
imemoriais, e a humanidade continua a trabalhar sob essa maldição
em todos os países fora do hemisfério ocidental. Nenhuma
revolução jamais resolveu a ‘questão social’, libertando os
homens do estado de necessidade, mas todas as revoluções, à
exceção da Revolução Húngara de 1956, seguiram o exemplo da
Revolução Francesa, e usaram e malbarataram as poderosas forças
da miséria e da penúria, em sua luta contra a tirania e a opressão.
E embora todos os registros das revoluções passadas demonstrem,
sem sombra de dúvida, que todas as tentativas para resolver a
questão social com meios políticos levaram ao terror, e que é o
terror que condena as revoluções à perdição, dicilmente pode- se
negar que é quase impossível evitar esse equívoco fatal, quando uma
revolução irrompe sob as circunstâncias de pobreza do povo. [...]
Quando a derrocada da autoridade tradicional colocou em marcha
os pobres da terra, e eles deixaram a obscuridade do seu infortúnio
e irromperam em praça pública, seu furor parecia tão irresistível
como o movimento das estrelas, uma torrente precipitando-se com
força primordial e engolfando o mundo inteiro (ARENDT, 1990,
p. 88-89, grifos nossos).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 139
Nota-se um dogmatismo nas expressões grifadas na citação
anterior, demonstrando a desconsideração de Arendt pelos acontecimentos
históricos, sendo que, se, por um lado, ela atribui à participação da massa
na Revolução Francesa o terror político, por outro ela enaltece a Revolução
Americana sem fazer alusão ao fato de que, nela também, os problemas
sociais são resolvidos por meios institucionais repressivos, uma vez que,
por exemplo, a Constituição proibia o Congresso de interferir no tráco
de escravos, atribuindo-lhe, no entanto, o poder de acabar com as rebeliões
daqueles, devendo capturar os fugitivos e processá-los na corte federal
(KRAMNICK, 1993). Neste sentido cai por terra o seu argumento de que,
se a revolução for conduzida por motivações superiores, como na América,
não são necessárias medidas violentas, pois, mesmo quando a escravidão,
anteriormente inscrita na Constituição, é abolida no nal da guerra civil
através da 13ª emenda, de 1965, os sulistas negros são forçados a entrar
num sistema de servidão em alguns aspectos muito pior. Eles continuam
sendo cidadãos de segunda classe, deixando de servir aos interesses dos
senhores de escravos para serem submetidos aos dos barões do norte
(LAZARE, 1998).
Para Tocqueville a liberdade aristocrática prospera nos Estados do
norte, colonizados pelas classes mais nobres, por indivíduos que tinham
apenas a necessidade intelectual, ao contrário do que ocorre no sul, onde
as classes mais inferiores da população, “gente sem recursos e sem modos”,
introduzem a escravidão que “[...] desonra o trabalho; ela introduz o ócio
na sociedade e, com este, a ignorância e o orgulho, a pobreza e o luxo.
Ela debilita as forças da inteligência e entorpece a atividade humana.
(TOCQUEVILLE, 1998, p. 39). No norte, além da lei servir de garantia
para prevenir e satisfazer as necessidades sociais, há a igualdade entre
as fortunas e entre as inteligências, condição imprescindível para o
estabelecimento da liberdade.
Encontramos mais uma vez semelhanças com a interpretação de
Arendt, segundo a qual os americanos estavam preparados para assumir
o poder por sua inabalável fé na elaboração de uma Constituição livre
e pela prévia abolição da pobreza absoluta que permitiu a mudança na
estrutura de domínio político sem qualquer interferência da questão social,
das condições alarmantes de miséria das massas.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
140 |
O mito da inspiração divina da Constituição americana de 1787
parece ser retomado como verdade absoluta por Arendt, camuando uma
controvérsia que envolve todos os Estados da confederação, representando
a difícil vitória de uma interpretação da Revolução Americana sobre outra.
Se para grande parte dos americanos o seu signicado gira em torno da
independência, para vários outros ela é a expressão do repúdio das formas
tradicionais de governo, especialmente das elites que estão à frente da vida
política e social da América colonial.
Um ideal mais democrático dominava o cenário durante o período
conhecido por “política da liberdade”, de 1776-1788, quando entraram em
vigor os Artigos da Confederação onde homens novos, bastante humildes
chegavam ao poder desenvolvendo programas igualitários, falando em
nome dos pequenos agricultores e pelas camadas endividadas, tendo
como seu principal ponto de apoio os legislativos estaduais populares.
Neste momento o povo resistia em ceder ao governo central o poder de
regular o comércio e cobrar impostos, uma vez que a revolução tinha sido
feita exatamente contra este domínio exercido pela Grã-Bretanha. Além
da ausência de um braço executivo, não existia nenhum poder judiciário
central. Merece destaque também, neste período, que todos os senados,
apenas de caráter secundário e consultivo, eram eleitos pelo povo em geral,
capaz de selecionar os melhores em seu próprio meio. Muitos democratas
radicais defendiam que só o povo podia realmente legislar quer através
de comitês distritais ou convenções, quer em multidões, reservando para
si o direito de fazer e julgar todas as suas leis. Desta forma, o sufrágio foi
ampliado na maioria dos Estados sendo que cerca de 70% a 90% dos
adultos do sexo masculino tornaram-se elegíveis, causando um acréscimo
de 40% no seu comparecimento às eleições. Na maioria dos Estados as
exigências de propriedade e recursos para ocupar cargos foram reduzidas.
Estes fatos causaram uma grande oposição à entrada do povo
na política, liderada pelos Federalistas, expoentes tradicionais da vida
americana, contrários à ambição social e à politização do homem comum
propiciadas pela revolução. Eles recusavam terminantemente a natureza
redistributiva das legislações estaduais que ameaçavam diretamente os
interesses econômicos adquiridos e os direitos privados, especialmente
pela grande quantidade de violações públicas do direito da propriedade
privada. Para eles a “política da liberdade”, devido aos excessos do povo
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 141
em seu exercício, leva à iniquidade, à injustiça e à anarquia, em suma, à
degeneração da autoridade legal em tirania. É contra ela e em nome da
estabilidade na organização do governo que os Federalistas travaram uma
grande batalha conhecida como a “Grande Discussão Nacional” contra os
antifederalistas até conseguirem aprovar a Constituição federal de 1787
(KRAMNICK, 1993, p. 1-20).
A omissão deste período da Confederação americana na
argumentação de Arendt, centrada no enaltecimento da Constituição
Federalista, republicana e não democrática, revela claramente a proximidade
de sua argumentação à dos federalistas, empenhados na exclusão do
povo, ou seja, na retirada da questão social da esfera política. Torna-se
explícito que o mascaramento das profundas divergências características
da origem da República americana permite a autora contrapor ao ideal dos
revolucionários franceses de mudar a tessitura da sociedade, os da reforma
restrita à esfera política – ao seu ver, único fundamento da verdadeira
revolução. A sua interpretação da Revolução Americana visa a defesa da
adorável igualdade” do Novo Mundo, em contraposição às revoluções
sociais europeias:
[...] podemos ainda ver e ouvir a multidão em marcha, o seu avanço
avassalador pelas ruas de Paris, que ainda era, nessa época, não
apenas a capital da França, mas a de todo o mundo civilizado –
a sublevação da população das grandes cidades, inextricavelmente
mesclada ao levante do povo pela liberdade, ambos irresistíveis
pela pura força do seu número. E essa multidão, aparecendo pela
primeira vez à luz do dia, era na verdade a multidão dos pobres e
oprimidos, que em todos os séculos passados tinham estado ocultos
na obscuridade e na degradação. O que a partir de então tornou-
se irrevogável, e que os protagonistas e espectadores da revolução
imediatamente reconheceram como tal, foi que o domínio público
– reservado, até onde a memória podia alcançar, àqueles que eram
livres, ou seja, livres de todas as preocupações relacionadas com as
necessidades da vida, com as necessidades físicas – fora forçado a
abrir seu espaço e sua luz a essa imensa maioria dos que não eram
livres, por estarem presos às necessidades do dia-a-dia. (ARENDT,
1990, p. 39-40).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
142 |
Para Arendt, a condição de miséria nunca pode produzir gente de
espírito livre, pelo fato de expressar a condição de sujeição à necessidade.
Ela não é feita para gerar revoluções, mas apenas acaba por levá-las à
ruína. Deparamos com a concepção arendtiana de separação do domínio
econômico do político, uma vez que a tentativa de traduzir condições
materiais em fatores políticos, ou melhor, da ênfase da mudança das formas
de governo para a entrada do povo no domínio público, só pode levar a
revolução à falência.
Arendt reitera que a meta da revolução deve estar restrita ao
campo político, à determinação da forma de governo, e não vinculada à
esfera do social, que tem por objetivo a libertação da pobreza e a felicidade
do povo. A questão de fundo que emerge aqui é o fato dela diferenciar
o agir violento – como o campo da força – da ação política (ARENDT,
1999). Para ela a política ui nos espaços livres do pensamento e do diálogo
que, ocupados por aqueles que vivem da mão para a boca, transformam-se
no lugar da barbárie (ARENDT, 1990).
O que está em pauta é a defesa da reforma das instituições
políticas associadas à liberdade em contraposição ao ódio violento à
desigualdade e à paixão pela libertação que, segundo Arendt, acabaram por
levar os franceses a não se contentar com que seus negócios fossem melhor
dirigidos e a acreditar que eles próprios podiam tomar a sua frente. Arendt
está defendendo aqui a igualdade, identicando-a com diversidade, ou
seja, a sobreposição de algumas classes a outras, seguindo a ordem natural
das coisas, na esteira dos liberais conservadores dos séculos XVIII e XIX.
O elogio da diversidade, da tolerância, em todos os planos, no cultural,
no político, como também no dos costumes e no das ideias, aparece
relacionado com a necessidade da manutenção da desigualdade social.
Arendt, em linha de continuidade com Tocqueville, acaba por dissociar
a pobreza, a necessidade e a escassez, da exploração e da desigualdade,
raciocínio que leva à leitura destas relações sociais como se fossem
fenômenos pré-políticos e naturais. Neste sentido, Tocqueville tece uma
contundente crítica à revolução: não é mais feita com o apoio do povo,
mas pelas suas próprias mãos, destruindo a ordem natural da sociedade que
podia ser melhor conservada por um déspota (TOCQUEVILLE, 1997).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 143
Nas seguintes palavras de Arendt podemos encontrar a mesma
concepção negativa dos ideais nascidos da pobreza, totalmente distintos
daqueles que inspiram a fundação da liberdade, pois, para ela
[...] a abundância e o consumo sem limites são os ideais dos pobres:
são a miragem no deserto da miséria. [...] O anseio oculto dos
pobres não é ‘a cada um segundo suas necessidades’, mas sim ‘a cada
um segundo seus desejos’. E embora seja verdade que a liberdade
só pode alcançar aqueles cujas necessidades foram satisfeitas, não é
menos verdade que ela fugirá daqueles que são inclinados a viver
em função de seus desejos. (ARENDT, 1990, p. 111).
Arendt desconsidera totalmente os ideais nascidos da pobreza,
vinculando-os à corrupção política, uma vez que só os homens livres da
necessidade não são traídos pelo desejo de enriquecimento, sendo este
mais um argumento, sem sustentação histórica, para que as massas sejam
mantidas fora da esfera política.
Tocqueville, ao comparar a democracia com a aristocracia, defende
explicitamente essa segunda forma de governo pelo fato dos ricos – libertos
do reino da necessidade – estarem à frente dos negócios públicos. Sendo
assim, eles desejam apenas o poder, não havendo perigo para a emergência
da corrupção. Em contrapartida, no mundo democrático os governantes,
por serem pobres e terem ainda sua “fortuna por fazer”, são mais suscetíveis
de se corromper:
O povo nunca penetrará no labirinto obscuro do espírito cortesão;
sempre descobrirá com dor a baixeza que se oculta sob a elegância
das maneiras, o requinte dos gostos e as graças da linguagem. Mas
roubar o tesouro público, ou vender a preço de dinheiro os favores
do Estado, é coisa que o primeiro miserável compreende e pode
gabar-se de fazer igual, chegando a sua vez. (TOCQUEVILLE,
1998, p. 257).
Arendt, por sua vez, embora defenda o governo dos melhores
como a característica marcante de uma república, uma forma aristocrática
portanto, admite que dele podem fazer parte representantes de todas as
esferas sociais, desde que se distingam pelo amor e dedicação à liberdade
pública. Há aqui uma grande contradição, pois, como sustentar o fato
de que os homens públicos poderiam advir de todas as classes, se aquelas
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
144 |
presas ao reino da necessidade não têm tempo nem a superior sabedoria
para tanto? Seus pressupostos estão em consonância com as implicações
aristocráticas e sacralizadas da Constituição americana de 1787 que
autoriza os Estados a determinar quem pode e quem não pode votar para
a Casa dos Representantes, privilegiando a vitória dos primeiros homens
quer seja do ponto de vista da fortuna quer de sua inuência, restringindo
a possibilidade de que a grande massa do povo, das classes médias e baixas
possam concorrer aos cargos públicos devido aos processos eleitorais
indiretos estabelecidos (KRAMNICK, 1993).
Ao advogar em defesa de um mundo comum, Arendt não deixa
de apontar para a necessidade da exclusão dos homens ligados ao labor e
ao trabalho, fato que legitima uma relação de dominação. Mesmo levando
em consideração a possibilidade, por ela admitida, de que alguns homens
pobres possam ascender ao corpo dos eleitos, isto só é admitido desde que
não signique, de forma alguma, a emergência do perigo da tirania da
maioria ou da soberania popular.
Assim, a crítica à Revolução Francesa através da retomada
recorrente da Revolução Americana, mostra que a preocupação central
de Arendt é a de como estabelecer e fundar organismos políticos e não a
soberania popular. Ela enaltece a elaboração da Constituição americana e
os seus fundadores por legitimarem o governo da maioria reexiva, liderado
por aqueles políticos que resistem aos sentimentos irreetidos, insensatos
e injustos do povo.
Arendt legitima um mundo dividido e hierarquizado, opondo-
se à transformação social, em defesa da reforma das instituições políticas,
da necessidade de um governo civilizado. Sua herança teórica vincula-se
estreitamente à temática conservadora e aristocrática de Tocqueville que
acentua o perigo permanente do despotismo dos governos revolucionários,
defendendo uma concepção de democracia pautada na estabilidade das
instituições e dissociada da ideia de abolição das desigualdades sociais. A
total recusa à entrada das massas na política por Tocqueville, que vivencia a
Revolução Francesa, é corroborada por Arendt nos anos 60, inclusive com
a mesma justicativa, a de que a intromissão dos deserdados no espaço
público só pode redundar em terror. Com efeito, apenas os libertos do
reino da necessidade devem fazer parte da esfera da excelência, a política. A
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 145
liberdade e a igualdade conuem na concepção liberal conservadora, onde
o governo dos melhores deve ser defendido da onipotência da maioria.
a recuSa da tradIção hegelIano-marxISta Por arendt
Arendt tematiza a história das revoluções em contraposição à
losoa da história de Hegel, a qual, ao seu ver, encontra desdobramentos
em Marx, acusado de circunscrever denitivamente as revoluções à
inuência da Revolução Francesa e ao predomínio da questão social. Os
seus textos Da Revolução, Entre o Passado e o Futuro e A Condição Humana
(1993) trazem para o centro do debate a argumentação teórica que permite
o exame da sua crítica à tradição hegeliano-marxista, a partir da leitura
sobre a história das grandes revoluções. Discutimos aqui as raízes teóricas
da reexão de Arendt em torno das revoluções modernas, em cujo bojo
geraram-se os projetos e experiências de democracia em debate no mundo
contemporâneo. Esta concepção segundo a qual a Revolução Francesa
signica a invasão do domínio público pela necessidade, fornece o lastro
histórico para o contraponto com as interpretações hegeliano-marxistas.
A leitura que Arendt faz dos pressupostos marxistas está atrelada
aos seus argumentos teóricos e ao seu posicionamento político frente à
história das revoluções. Apesar da Revolução Francesa ter redundado em
desastre a partir da entrada do povo em cena, é ela que faz história no
mundo, papel que deveria caber à Revolução Americana – triunfantemente
vitoriosa. Assim suas análises contrapõem a história destas duas revoluções,
criticando com veemência a francesa, particularmente em sua fase jacobina,
quando as massas entram na política.
O processo revolucionário americano, ao seu ver, caracteriza-
se desde o início pela experiência de participação política direta, por ter
articulado um sistema de associações, já existente nas treze colônias, como
fonte da legitimidade das autoridades constituídas. Ele não signica um
começo radicalmente novo, mas apenas assegura legalmente o modo de
comunidade política inventado no Novo Mundo. Já a Revolução Francesa
é emblemática dos movimentos libertários que têm seu desfecho na
restauração, na tirania e na petricação, pela tentativa frustrada de criar
instituições que permitam a participação política das massas incultas,
introduzindo um signicado inteiramente novo à ideia de igualdade que
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
146 |
passa a expressar um direito inato, pois as pessoas, pelo simples fato de
terem nascido, são consideradas iguais. Esta nova concepção signica,
para Arendt, uma mudança radical, pois a concepção de que todos nascem
livres e iguais implica em que o exercício da política não é mais reservado
apenas aos homens livres do reino da necessidade.
Segundo Arendt, a rebelião legítima, na teoria medieval e pós
medieval, é entendida, apenas como uma contestação da autoridade
constituída e não da ordem estabelecida e mesmo que
[...] às pessoas fosse reconhecido o direito de decidir quem não
deveria governá-las, certamente não o tinham para escolher quem
deveria, e muito menos jamais houve registro de que as pessoas
tivessem o direito de se governar a si próprias, ou de indicar
aquelas de suas próprias leiras para os negócios do governo. [...]
e não obstante houvesse bastante palavras na linguagem política
pré-moderna para descrever a rebelião de súditos contra um
governante, não havia nenhuma que descrevesse uma mudança
tão radical que os próprios súditos se tornassem governantes.
(ARENDT, 1990, p. 32-33).
Arendt condena veementemente, portanto, a guinada na
concepção da política provocada pela entrada em cena das massas durante
a Revolução Francesa, quando ocorre a abdicação da liberdade em face dos
ditames da necessidade:
A realidade que corresponde a essa imaginária moderna é aquilo
que, desde o século XVIII, veio a ser chamado de questão social,
e que poderíamos, melhor e mais simplesmente, denominar de a
existência da pobreza. Pobreza é mais do que privação, é um estado
de constante carência e aguda miséria, cuja ignomínia consiste em
sua força desumanizadora; a pobreza é abjeta, porque submete os
homens ao império absoluto da necessidade, como todos os homens
a conhecem a partir de sua experiência mais íntima independente
de todas as especulações. Foi sob o ditame dessa necessidade que
a multidão acudiu ao apelo da Revolução Francesa, inspirou-a,
impulsionou-a para a frente e, nalmente, levou-a à destruição, pois
essa era a multidão dos pobres. Quando eles surgiram no cenário da
política, com eles surgiu a necessidade e o resultado foi que o poder
do Antigo Regime tornou-se impotente e a nova república nasceu
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 147
morta; a liberdade teve de render-se à necessidade, à urgência do
próprio processo vital. [...] Foi a necessidade, as urgentes carências
do povo, que desencadeou o terror e levou a revolução à sua ruína.
(ARENDT, 1990, p. 48).
Arendt, ao armar aqui que a pobreza é inerente ao mundo
administrativo, condena o fato deste problema, por ser de origem
doméstica, ser atirado ao espaço público durante a revolução. Assim,
para ela, a consequência de maior alcance da Revolução Francesa foi o
nascimento do moderno conceito de História na losoa de Hegel
14
, pois
a crença deste teórico na irresistibilidade da necessidade “[...] - estando a
violência e a necessidade em movimento, e arrastando a tudo e a todos em
suas correntezas – era a visão familiar das ruas de Paris durante a revolução,
a visão dos pobres que auíam em torrentes às ruas.” (ARENDT, 1990, p.
90). Para Arendt, a ideia de que a pobreza deve ajudar os homens a romper
as algemas da opressão, embora sendo inconcebível antes do transcurso da
Revolução Francesa, torna-se familiar através dos pressupostos de Marx,
fato que faz com que a partir de então as revoluções passem denitivamente
à inuência da Revolução Francesa e ao predomínio da questão social,
relegando ao esquecimento “[...] a qualidade [...] do pensamento resultante
do curso da Revolução Americana.” (ARENDT, 1990, p. 48):
[...] não há dúvida de que o jovem Marx convenceu-se de que a
razão pela qual a Revolução Francesa falhara em instituir a liberdade
foi porque fracassou em resolver a questão social. Daí ele concluir
que liberdade e pobreza eram incompatíveis. Sua contribuição
mais explosiva e sem dúvida mais original à causa da revolução
foi ter interpretado as constrangedoras carências da pobreza do
povo em termos políticos, como uma rebelião não apenas por pão
ou riqueza, mas também pela liberdade. O que ele aprendeu da
Revolução Francesa foi que a pobreza pode ser uma força política
de primeira ordem. (ARENDT, 1990, p. 48- 49).
Arendt defende a separação da economia da política, opondo o
pobre - movido pela necessidade - aos homens que desejam a liberdade
pública - a cidadania efetiva, a participação na coisa pública. Se, por
um lado, a pobreza força o homem a agir como escravo, por um outro e
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
148 |
mesmo lado, a riqueza privada torna-se a condição para a admissão na vida
política pelo fato dos proprietários não terem de prover por si mesmos as
necessidades mais urgentes da existência e por não estarem empenhados
na acumulação de riquezas. Condena, portanto, os revolucionários que
buscam associar o reino da liberdade à soberania popular, criando canais
de decisão política, voltados para realizar a vontade do povo, manifesta na
revolta vinda da necessidade. Segundo Arendt a necessidade não é criadora
de novas instituições, estas sim fundamentais - como mostra a Revolução
Americana – pois a lei deve ter como fonte não o povo, mas a constituição,
algo objetivo, durável e que não pode ser mudado segundo os ventos
da vontade popular. Contrariamente, na Revolução Francesa, a vontade
absoluta do povo prevalece pois abrange, pela primeira vez, aqueles que não
participavam do governo, as classes inferiores da população. A deicação
do povo, na França, resulta na tentativa de derivação da lei e do poder
desta única fonte:
Os homens da revolução Francesa, não sabendo distinguir entre
violência e poder, e convencidos de que todo poder emana do
povo, abriram a esfera política para essa força pré-política natural da
multidão, e foram arrastados por ela, assim como o rei e os antigos
poderes haviam sido anteriormente. (ARENDT, 1990, p. 48).
Em contrapartida, os homens da Revolução Americana
[...] entendiam o poder como o próprio oposto de uma violência
pré-política natural. Para eles, o poder surgiu quando e onde o
povo passou a se unir e a se vincular através de promessas, pactos e
compromissos mútuos; apenas o poder alicerçado na reciprocidade e
na mutualidade era poder real e legítimo. (ARENDT, 1990, p. 48).
Há aqui a defesa da versão horizontal do contrato em Locke
que, segundo Arendt é edicado sobre a ideia de consentimento, onde
todos os contratos e acordos se apoiam na reciprocidade entre aqueles
considerados cidadãos, dispensando a noção de governantes e governados.
Esta concepção arendtiana está enraizada também na interpretação de
Tocqueville sobre o governo republicano existente nos Estados Unidos
que, sem disputa ou oposição, por um acordo tácito, chega a uma espécie
de consensus universalis.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 149
Podemos notar um importante contraponto a esta noção da
política, enaltecida por Arendt, na análise de Hegel sobre o Estado
burguês, quando ele arma ser ele uma potência antes de ser poder, não
podendo existir qualquer direito que não redunde, mais cedo ou mais
tarde, no uso da violência. Se a força não cria o direito, este, contudo,
para Hegel, não pode existir sem ela, uma vez que a lei é fundamental para
manter os indivíduos dentro dos limites do direito e do reconhecimento
da dignidade de homem a todo o ser humano. Desta forma, para Hegel, na
Revolução Francesa, é a violência que mantém o Estado, concebido como
um todo, sendo ela necessária e justa no sentido de garantir a efetivação da
universalidade. O caráter violento assumido pela revolução explica-se pelo
fato de que a corte, o clero, a nobreza e o parlamento se opõem a ceder seus
privilégios quer pela força quer pelo direito.
Arendt, diversamente, defende a retomada da experiência da
Revolução Americana como fruto de um consentimento dos iguais,
mesmo sabendo que ele exclui os negros e índios na América por não
apresentarem os traços gerais de humanidade. Tocqueville, embora critique
este aspecto da democracia na América, acaba defendendo também a
não extensão da igualdade do homem aos povos semicivilizados, como
é o caso dos árabes, que não podem ser tratados pelos franceses como
iguais ou cidadãos (LOSURDO, 1996). Este poder de denir o que é ou
não humanidade, ou seja, de armar que os americanos são os melhores
porque são livres das necessidades, por se identicarem apenas com o bem
público, implica no fato de que uma República bem organizada deve ter
instituições repressivas que selecione as elites conforme estes critérios,
excluindo explicitamente os pobres, não proprietários, de serem dirigentes
e eleitores. Arendt evita sempre chegar a esta conclusão normativa, embora
se posicione contrariamente à concepção da Revolução Francesa de que
todos os homens, pelo simples fato de terem nascido, tornam-se detentores
de certos direitos, condenando enfaticamente a equiparação dos direitos
do “homem qua homem” aos direitos dos cidadãos defendida pela tradição
hegeliano- marxista.
Subtraindo a esfera econômica da política e enaltecendo esta
última, insiste que o fundamento das revoluções modernas reside no
delineamento de uma constituição, tendo como marco a Declaração da
Independência, “[...] dando início à elaboração de constituições para cada
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
150 |
um dos Estados americanos.” (ARENDT, 1990, p. 100). Ela está aqui se
referindo ao desfecho do processo da aprovação da Constituição de 1787,
que se estende por duas décadas e meia, opondo os federalistas, defensores
do governo republicano, e os antifederalistas, que demonstram uma
preferência bem mais acentuada pelas noções de democracia representativa.
Arendt toma partido explicitamente dos federalistas, sendo que em seus
textos privilegia as argumentações de James Madison (ARENDT, 1999,
p. 120-121), considerado o pai da Constituição dos Estados Unidos e
responsável pela apropriação da palavra “república”, que carrega diversas
conotações políticas, para nomear uma estrutura de governo baseada
numa drástica redução da participação do povo nos assuntos do Estado,
em contraposição à democracia direta praticada sob os Artigos de 1776 a
1778, período conhecido por “política da liberdade”. No Federalista nº63,
Madison escreve que o Senado deve ser ocupado por homens sóbrios e
respeitáveis que representam a razão, justiça e verdade diante dos erros e
enganos do povo (HAMILTON et al., 1993, p. 404-411).
Engels, opondo-se à república americana, na introdução do texto
de Marx “A Guerra Civil na França”, mostra a necessidade de superação da
velha máquina do Estado pela Comuna de Paris devido ao fato dele ter se
convertido na defesa dos interesses especícos daqueles que de servidores
da sociedade passam a ser seus senhores. Desta perspectiva não apenas
as monarquias hereditárias, mas também as repúblicas democráticas,
especialmente a dos Estados Unidos, são consideradas emblemáticas:
Não há nenhum país em que os ‘políticos’ formem um setor mais
poderoso e mais desligado da nação do que a América do Norte. Aí,
cada um dos grandes partidos que se alternam no governo é, por
sua vez, governado por pessoas que fazem da política um negócio,
que especulam com as cadeiras de deputados nas assembléias
legislativas da União e dos diferentes Estados federados, ou que
vivem da agitação em favor de seu partido e são retribuídos com
cargos quando eles triunfam. É sabido que os norte-americanos se
esforçam, há trinta anos, para libertar-se desse jugo, que chegou a
ser insuportável, e que, apesar de tudo, se afundam cada vez mais
nesse pântano de corrupção. E é precisamente na América do Norte
onde melhor podemos ver como avança essa independização (sic)
do Estado em face da socieda, da qual originariamente devia ser um
simples instrumento. (ENGELS, 1981, p. 50).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 151
Isto explica o ceticismo dos pais fundadores do federalismo
americano quanto à democracia, ao mesmo tempo em que é louvada a
sociedade liberal moderna principalmente no que diz respeito à defesa dos
direitos pessoais e dos de propriedade, como interpreta Isaac Kramnick
(1993, p. 52):
Fazendo lembrar muito o Locke do capítulo 5 (‘Sobre a
propriedade’) do Segundo Tratado, Madison atribui, no nº 10,
a posse diferencial de bens às ‘diversidades nas faculdades dos
homens’, a suas ‘faculdades diferentes e desiguais de adquirir
propriedade’. A ‘proteção dessas faculdades’ constituía ‘a primeira
nalidade do governo’. Como para Locke – que escreveu que
a justiça dá a todo homem o direito sobre o produto de sua
indústria honesta’ -, assim também para Madison e os federalistas
a justiça signicava efetivamente o respeito aos direitos privados,
especialmente os de propriedade.
O perigo do demos apontado em várias passagens de Arendt, está
diretamente relacionado com o repúdio à igualdade e a ameaça à liberdade
e à propriedade privada. Tanto assim, que a dúvida dos antifederalistas
quanto à possibilidade dos proprietários governarem a si próprios e
preferir o bem comum aos seus interesses privados é legítima, uma vez
que o planejamento da Constituição de 1787 se dá exatamente com o
intuito de aumentar a inuência, o poder e a fortuna daqueles que já o
possuíam, sendo sua raticação uma grande vitória da aristocracia. O povo
pode ter sido a inspiração do novo governo, mas a ideia de que o papel
histórico do demos é criar uma nova ordem que possa ser mais racional
que a precedente permanece totalmente alheia. O demos, portanto, tem
de ser contido através da lei, pois todas as tendências do espectro liberal-
conservador dos EUA têm em comum a crença dos Fundadores de que a
ilimitada soberania popular é inerentemente tirânica (LAZARE, 1998).
Nesta linha insere-se a crítica feita por Arendt à participação dos
pobres na vida pública, deixando a sua direção para os melhores homens
do estado. Para ela, este fenômeno teve por consequência a invasão do
domínio político, o único domínio em que os homens podem ser
verdadeiramente livres, pela necessidade que está inexoravelmente ligada à
violência. Portanto, ela condena o fato de os novos militantes da esquerda,
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
152 |
durante os protestos dos anos 60, particularmente aos dos movimentos
de libertação colonial, em pleno século XX, evocarem as experiências da
Revolução Francesa, uma vez que, ao seu ver, os revolucionários do século
XVIII e XIX,
perpetuamente acossados pela permanência desesperada da questão
social, isto é, pelo espectro das vastas multidões de desvalidos
que as revoluções tinham o dever de libertar, [...] se apegaram
invariavelmente, e como que inevitavelmente, aos eventos
mais violentos da Revolução Francesa, esperando, contra toda
esperança, que a violência viesse a triunfar sobre a pobreza. Isso era,
sem dúvida, a voz do desespero; tivessem eles admitido que a lição
mais óbvia que poderiam ter aprendido com a Revolução Francesa
era que la terreur, como um meio de atingir le bonheur, provocara
a derrocada das revoluções, teriam tido também de admitir que
nenhuma revolução, nenhuma fundação de um novo corpo
político seria viável onde as massas populares vivessem oprimidas
pela miséria. (ARENDT, 1990, p. 177).
a crítIca contumaz de arendt aoS ProteStoS doS anoS 60
No ensaio Sobre a Violência de Hannah Arendt e de seu livro Da
Revolução, as teses por ela desenvolvidas na conjuntura política dos anos
60, argumentam contra as ideias do marxismo clássico sobre a violência e,
sobretudo, contra os teóricos seus contemporâneos, particularmente Sartre
e Marcuse, que se colocam em linha de continuidade com elas. Tanto assim
que Arendt posiciona-se contrariamente ao movimento estudantil e aos
movimentos de libertação colonial, negando-lhes qualquer potencialidade
transformadora.
Na conjuntura por Arendt analisada e vivida, destacam-se a
rebelião estudantil em diversos países do mundo e, especicamente nos
EUA onde ela só pode ser entendida relacionada aos confrontos raciais,
à escalada da guerra do Vietnã e à opção dos militantes de esquerda
por meios violentos. Em seu exame, enfatiza o avanço tecnológico
na produção dos meios da violência, que traz à tona o temor de uma
guerra nuclear, para refutar a via revolucionária e defender a reforma das
instituições frente à impotência e ao desgaste das democracias. As suas
reexões têm como contraponto o posicionamento da Nova Esquerda
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 153
sobre o papel dos meios violentos de resistência à opressão, como a
emblemática guerra de guerrilhas no processo de descolonização. Arendt
condenando totalmente a incitação à violência destes autores, rechaça os
movimentos de libertação colonial por colocarem em risco até mesmo
o governo constitucional da França, tendo este boas razões para as suas
repressões na Argélia. Como ao seu ver o enfraquecimento do poder
imperialista francês se manifesta na alternativa entre a descolonização
e o massacre, ela justica a violência da ordem instituída e condena os
movimentos de protesto que estão sendo defendidos por Sartre e Fanon.
Para a lósofa alemã elas eclodem pela sua fúria demente, tendo como
único resultado a destruição.
Arendt posiciona-se também contrariamente à ala esquerda
dentre os críticos da guerra do Vietnã que a concebe como fascista ou
nazista e iguala os massacres e os crimes de guerra ao genocídio. Ao seu ver,
nos Estados Unidos “[...] nunca existiu em nenhum nível do governo [o]
desejo de destruição em larga escala, a despeito do atemorizante número
de crimes de guerra cometidos durante a guerra do Vietnã.” (ARENDT,
1999, p. 130).
Arendt, com esta justicativa, visa diferenciar a política de guerra
dos Estados Unidos dos totalitarismos de Stálin e Hitler que utilizam
o medo, isto é, o terror, como princípio de ação, como um cinturão de
ferro que destrói a pluralidade, pautado por uma promessa na mão e um
chicote às costas. Ao mesmo tempo em que busca livrar a política dos
EUA de seus adjetivos totalitários, também diz ter encontrado provas que
permitem desvinculá-la de objetivos imperialistas, sendo esse o seu grande
aprendizado com as ofensivas norte-americanas no sudeste asiático:
Por m, há uma lição a ser aprendida para os que, como eu,
acreditavam que este país tinha se envolvido numa política
imperialista; tinha esquecido completamente seus antigos
sentimentos anticolonialistas e talvez estivesse conseguido
estabelecer a Pax Americana que o presidente Kennnedy tinha
denunciado. Quaisquer que sejam os méritos destas suspeitas,
poderiam ser justicadas pela nossa política latino-americana;
se pequenas guerras não- declaradas – operações relâmpagos de
agressão em terras estrangeiras – estão entre os meios necessários
para se alcançar ns imperialistas, os Estados Unidos estão menos
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
154 |
aptos a empregá-las com sucesso do que qualquer outra grande
potência. (ARENDT, 1999, p. 47).
Arendt ao defender o não imperialismo dos EUA, desconsidera
todo o signicado político e econômico da guerra do Vietnã. Ela
nega que um de seus objetivos é criar um campo de provas para as
táticas antiguerrilha, contribuindo para a continuidade de práticas
neocolonialistas incidentes sobre os povos da África, Ásia e América
Latina. E omite o fato de que vários de seus países continuam sendo fonte
de matérias primas para o desenvolvimento da grande indústria, como,
por exemplo, o petróleo na Venezuela e no Oriente Médio e os metais
não-ferrosos na América Latina. A importância econômica da guerra,
totalmente minimizada por ela, se faz sentir não apenas externamente,
mas também no âmbito interno, onde os prósperos negócios do complexo
industrial-militar provam que os bilhões de dólares gastos não estão
perdidos para todos, mas pelo contrário, são responsáveis pela orientação
dos investimentos norte-americanos. Do ponto de vista das vítimas, ela
recusa a existência da organização e da solidariedade da luta contra o
colonialismo dos países terceiro-mundistas:
Os únicos que têm um interesse obviamente político em dizer que
existe um terceiro mundo, são, é claro, os que estão nos níveis mais
baixos – isto é, os negros da África.
A nova esquerda pegou o lema do terceiro mundo do arsenal
da velha esquerda. [...] O nivelamento imperialista de todas as
diferenças é copiado pela nova esquerda, porém com rótulos
trocados. É sempre a mesma velha história: deixar- se levar por
qualquer lema; a incapacidade de perceber, ou então a má vontade
de ver os fenômenos como realmente são, sem aplicar categorias
a eles, na crença de que possam ser dessa forma classicados. É
exatamente isto que constitui o desamparo teórico.
O novo slogan – Povos de todas as colônias, ou de todos os países
subdesenvolvidos, uni-vos! – é mais louco ainda que o antigo de
onde foi copiado: Trabalhadores de todo o mundo uni-vos! – que
no m das contas tem sido inteiramente desacreditado. (ARENDT,
1999, p. 180-181).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 155
A seleção dos fatos históricos feita por Arendt, desconsiderando
totalmente a existência real do terceiro mundo e a intervenção política
americana em seu destino, está estreitamente ligada à sua recusa em admitir
quaisquer traços de imperialismo nos EUA. Neste sentido, ela pode ser
criticada pelo seu próprio argumento, utilizado para refutar as declarações
dos encarregados das relações públicas do governo americano durante a
guerra do Vietnã, por sua capacidade de reescrever “[...] a história uma e
outra vez para adaptar o passado à ‘linha política’ do momento presente,
ou de eliminarem dados que não se ajustam à sua teoria.” (ARENDT,
1999, p. 17).
Seu viés interpretativo do movimento estudantil nos anos sessenta
e dos movimentos de libertação colonial, centra-se na esterilidade teórica
fundamentalmente pelo fato dele perder seu tempo com categorias do século
XIX, mas, é bom frisar, com determinadas categorias deste século, ou seja,
com o marxismo clássico. Pois, no que diz respeito a Tocqueville, também
do século XIX, notamos não apenas uma substantiva inuência de sua
interpretação sobre as grandes revoluções na de Arendt, sendo ele também
uma referência constante e enaltecida na defesa do mito da liberdade na
América. Enquanto a volta à origem proposta por ela resida na retomada
dos artigos constitucionais escritos no século XVIII, a recuperação do
espaço político deve ser buscada na tradição da Grécia antiga, ao seu ver
isenta de violência e nutrida pelo consenso e pela persuasão. Está presente
aqui a valorização do passado, da tradição, em detrimento de um futuro
incerto e a recusa da solução hegeliano-marxista que coloca no horizonte a
construção do novo, a transformação da sociedade.
a rePercuSSão da oBra de arendt no BraSIl
A obra de Hannah Arendt, no início da década de 60, quando
escreve Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal tem
pouca repercussão no Brasil. No nal dos anos 60 e início dos 70, continua
pouco conhecida e citada no Brasil a não ser por um grupo de intelectuais,
diplomatas e homens públicos como Celso Lafer, Marcílio Marques
Moreira, José Guilherme Merquior, Hélio Jaguaribe (LAFER, 1994).
No meio acadêmico, como mostra Celso Lafer, particularmente na USP,
Antonio Candido, um anti-stalinista histórico, apresenta divergências com
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
156 |
relação ao pensamento de Arendt, ao recusar a identicação estabelecida
por ela entre nazismo e stalinismo uma vez que para ele o primeiro só
comporta a destruição total como alternativa para a sua vitória, enquanto o
segundo pode ser modicado por dentro por ser “um projeto de passagem
a uma ordem humana” (CANDIDO apud BIGNOTTO, 2001). Em
contrapartida, Francisco C. Weort interessa-se pelos escritos da lósofa
alemã, apontando para o
[...] signicado de resistência intelectual da obra arendtiana para os
que estavam no Brasil enfrentando os ‘tempos sombrios’ do período
autoritário. Salientava a importância do resgate arendtiano da vita
activa; rejeitava a sua qualicação como conservadora; insistia na
força de um pensamento aberto e indicava a relevância de sua
contribuição para uma teoria da revolução – que era um de seus
temas naquela época [1980]. (WEFFORT apud BIGNOTTO,
2001, p. 37).
Na virada do século, os pressupostos reformistas arendtianos
atingem grande repercussão no Brasil, o que talvez contribua para a
retirada do debate sobre a revolução da agenda acadêmica. A ideologia
hegemônica neoliberal é inclusive sustentada por pressupostos deste tipo,
que abrem mão da tradição e pregam o conformismo e o derrotismo. Em
2000, 25 anos após a morte de Hannah Arendt, várias comunicações
apresentadas no colóquio “Hannah Arendt – 25 anos depois”, ocorrido
em junho, na PUC- RJ, organizado pelos Departamentos de Filosoa e de
História desta instituição e da UFMG, são publicados em uma coletânea
chamada Hannah Arendt – Diálogos, reexões, memórias. Neste mesmo ano
são publicados dois livros, O Pensamento à Sombra da Ruptura Política e
Filosoa em Hannah Arent de André Duarte e Hannah Arendt & Karl Marx
– o mundo do Trabalho de Eugênia Sales Wagner. Em linhas bastante gerais
podemos dizer que este segundo defende a atualidade da argumentação
arendtiana sobre a questão do trabalho, em nossa contemporaneidade,
voltados a mostrar os limites das teses de Marx em torno de seu caráter
emancipatório e civilizador.
Em 2013, a divulgação da obra de Arendt no Brasil toma
proporções inusitadas, sendo emblemáticos a “IV Jornadas Internacionais
Hannah Arendt – Sobre a Revolução
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 157
– 50 anos” no IFCH Unicamp e o “I Colóquio internacional
Hannah Arendt – a crise na educação revisitada”, na faculdade de
Educação da USP. A repercussão positiva de Hannah Arendt acontece,
também, com o lançamento do lme “Hannah Arendt”, sobre a lósofa
alemã, que, segundo pesquisa, logo depois da estreia, conquista um
público de 94 mil espectadores. Se há uma novidade com relação ao
aumento signicativo da inserção do pensamento de Arendt quer no
âmbito acadêmico, quer nos artigos que analisam o lme, por outro
lado, a meu ver, o consenso acrítico (aproximando esquerda e direita)
de enaltecimento à obra e à lósofa alemã permanece. Eles são escritos
por monges, psicanalistas, professores universitários, homens públicos
e enaltecem as reexões de Arendt. Dos sete artigos que pesquisei,
escritos em sua maior parte por professores, de renomadas universidades
públicas, apenas um apresenta avaliação desfavorável. As críticas que
são feitas ao lme só contribuem para superdimensionar a obra de
Arendt ao armar que devido à sua complexidade, ela não pode ser
abarcada por um longa-metragem.
As legendas do lme Hannah Arendt repercutem na fala dos
articulistas que ressaltam uma feliz conjunção entre a arte, por um lado,
e a grandiosidade da vida e a obra da lósofa alemã, por outro. O slogan
diz: “No julgamento do século, uma das maiores pensadoras do mundo,
confronta o signicado do mal – baseado em uma extraordinária história
real. As frases em destaque nos periódicos reverberam-no: “Uma vida de
resistência”. “Filme ‘Hannah Arend’ reconstitui episódio crucial não só da
vida da lósofa alemã, mas da história das ideias”. “Hannah Arendt sempre
defendeu a dignidade da política”. “O extraordinário lme de Margareth
von Trotta, ‘Hannah Arendt’ relata um momento crucial na vida da notável
lósofa”. “Filme ‘Hannah Arendt’ convida a reexões que ultrapassam a
biograa e os fatos históricos”.
A meu ver, no lme, Arendt seleciona, aspectos da história ao
acusar as lideranças judaicas de não organizar seu povo para a insurgência,
desconsiderando o registro histórico da resistência de judeus na França,
Itália, Bélgica, Holanda e Dinamarca. Por outro lado, morando nos
Estados Unidos, ela não faz qualquer menção em 1961 ao fato de que
assim como o nazismo institui a eliminação possibilitada pela ciência
e a tecnologia, o Governo Truman (1945/1952), ao fabricar bombas
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
158 |
atômicas e lançá-las sobre Hiroshima e Nagasaki, mata cerca de 220
mil japoneses. Ambos trazem a guerra para o “horror do extermínio”.
Se ela condena os sistemas totalitários, identicando o stalinismo com
o nazismo, como vimos, parece totalmente descabido o seu silêncio
com relação aos EUA, sendo que nesse momento estamos em plena
Guerra do Vietnã. Enquanto no lme ela diz não amar o seu povo, mas
amar seus amigos, ela enaltece os EUA como o lugar que ela ama, que
a acolhe e, que portanto, ela não pode perder. Além de estar a milhares
de quilômetros dos fatos, em segurança, nos Estados Unidos e de ser
seguidora de Kant, Tocqueville e Heidegger, ela escolhe ser professora
na Universidade de Chicago, centro do conservadorismo estadunidense.
Acredito que tais informações podem conrmar o posicionamento
político liberal conservador de Arendt não apenas frente ao julgamento
de Eichmann, como em toda a sua obra.
O mito da liberdade na América incorporado por Arendt é
colocado em xeque a todo momento pela política não apenas interna
dos EUA através da reinvenção das formas de segregação racial e do
protecionismo econômico, mas também fora de suas fronteiras por sua
política imperialista e de extermínio. Contudo, Lazare mostra que as
liberdades civis derivadas da Declaração dos Direitos são, portanto,
as únicas consideradas válidas pelos americanos, e acredito poder
acrescentar que também por Arendt, quando comparadas à história dos
países industriais avançados europeus, são crescentemente negativas
devido à brutalidade dos EUA na guerra contra as drogas, por ser
recordista em números de prisões, pela arbitrariedade da pena de morte,
por ser um dos poucos países onde vigora o bipartidarismo, por ser o
país mais corrupto do mundo desenvolvido, por ter o Senado menos
representativo do Primeiro Mundo e pelo fato de sua lei trabalhista ser
extremamente decitária. Como agravante, há a quase impossibilidade
de alterar a Constituição - que permanece praticamente intacta por
duzentos anos. A maioria destes fatos, por pertencerem à esfera social,
são praticamente inexistentes na argumentação de Arendt que, ao
contrário, mostra que a solução dever ser restrita à questão política,
ou seja, está na recuperação das origens da Constituição e da sua
legitimidade.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 159
Periódicos tais como Veja, Folha de S. Paulo, O Estado de S.
Paulo. Zero Hora, Outras Palavras, de diversos matizes e leitores, publicam
comentários uníssonos sobre o lme Hannah Arendt ressaltando a
importância e originalidade do seu conceito sobre a “banalidade do mal”,
bem como a sua atualidade e pertinência para a análise de determinadas
conjunturas e realidades sociais brasileiras. Sendo assim, questiono: Como
entender o fato de que em 2013, no Brasil, haja esse acolhimento tão favorável
dos argumentos arendtianos comprovadamente liberal-conservadores, até
mesmo por autores e editoras que há muito se autodenominam de esquerda
e marxistas? Essa unanimidade não seria a expressão de uma banalização da
crítica em um momento em que o universo acadêmico é marcado cada vez
mais pela pasteurização da pesquisa universitária.
conSIderaçõeS fInaIS
Ao contrário do que pensam muitos daqueles que retomam o
pensamento de Arendt pela importância teórica dada à ação no espaço
público, a leitura que fazemos a partir desses seus pressupostos é a
participação política nesta esfera é restringida por ela aos livres e iguais
que devem ser protegidos da tirania da maioria e não aos excluídos e às
minorias do sistema capitalista. O fato dela diferenciar a esfera pública
da esfera privada, ou seja, de desvincular totalmente a economia da
política, corresponde à prática liberal relegando a questão social aos
sentimentos caritativos da sociedade, enquanto a política é exercida
pelos talentosos, inteligentes e afortunados em prol da manutenção
da propriedade privada, da lei e da ordem que a legitimam. De seu
ponto de vista, é a procura do lucro que leva ao aperfeiçoamento
dos indivíduos, sendo, portanto, o interesse individual o motor que
desencadeia o progresso econômico e social. Estes mandamentos do
liberalismo clássico subjazem a toda a argumentação anti-welfare-
state, anti- keynesiana, anti-planicadora, pela qual ela não recusa
apenas o marxismo ou a economia planicada, mas, também, faz uma
crítica dura a todo o Estado capitalista regulado, aproximando-se das
tendências neoliberais mais extremadas.
Em que medida, então, o pensamento de Hannah Arendt pode
lançar luz sobre as questões de políticas sociais, se o seu pressuposto é
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
160 |
de que a solução da questão social não passa pela esfera política? Como
recuperá-lo com o intuito de preencher as lacunas “evidenciadas pelo
esgotamento da tradição losóca que vai de Platão a Hegel”, sendo que
ela está pautada tanto em uma tradição da antiguidade clássica como na
tradição liberal conservadora do século XIX, principalmente no que diz
respeito à leitura das grandes revoluções? Se a revolução não se encontra
mais na ordem do dia, como não é difícil observarmos, em que sentido um
pensamento enraizado na Constituição americana, berço do liberalismo,
de um Estado historicamente genocida e imperialista pode ser evocado
justamente para dar conta dos desastres sociais provocados pelo neo-
liberalismo? Como acreditar em seu viés democrático diante de sua defesa
de um aparato jurídico-legal que exclui os canais sociais para a efetiva
concretização da liberdade e da igualdade de todos? Uma das principais
críticas de Arendt à tradição marxista reside na proposição de que, com
a revolução socialista, o Estado iria desaparecer, destruindo também a
política eleita por ela a esfera superior do diálogo isento de conito e
de violência. Como pensar concretamente uma esfera pública onde os
diversos interesses podem ser confrontados e conquistados pelo discurso
e pela persuasão num momento em que os conitos imperialistas, étnicos
e raciais continuam responsáveis por guerras insanas que permanecem,
inaugurando o século XXI?
Não nos cabe aqui registrar todas as interpretações da produção
teórica de Arendt no Brasil, mostrando como ele parecia repercutir
positivamente apenas entre aqueles que tomam à frente das decisões
políticas neoliberais, relegando a questão social ao esquecimento. Hoje,
contudo, essa versão é incorporada a passos largos por parte da esquerda
intelectual brasileira que adere acriticamente a este pensamento, deixando
de propor alternativas às formas de pensar e agir dominantes.
Nos movimentos de protesto de 68 os debates teóricos da
intelectualidade dividem-se com relação ao seu espírito de ruptura e
combatividade: se por um lado, parte dela busca nas teorias anticapitalistas
do século XIX, a reelaboração de alternativas para explicar e transformar
a realidade, outros, em contrapartida, dentre os quais Hannah Arendt,
condenam a “[...] lealdade à doutrina típica daquele século já refutada
pelo desenvolvimento dos fatos.” (ARENDT, 1999, p. 111). Contudo as
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 161
reexões da lósofa alemã nesse momento têm muito pouca repercussão
no Brasil.
Em 2013, como vimos, há um boom de eventos e publicações
que divulgam o pensamento de Arendt no Brasil. E, é nesse ano também
que eclodem aqui os protestos de junho que, no entanto, não evoluíram
para o discurso claramente anticapitalista que alimentou os de vários
países da Europa e o “Occupy Wall Street” em Nova York recentemente.
O fato da incorporação dos pressupostos arendtianos, claramente
opostos à contestação da ordem existente e construídos a partir da crítica
contumaz aos ensinamentos de Marx, pela esquerda brasileira, não
poderia explicar a sua diculdade de estar contribuindo para canalizar
tais movimentos à incorporação da questão social¿ Tal fato poderia, ao
meu ver, inclusive elucidar a iminência desses protestos serem cooptados
pelos (neo)conservadores da direita organizada que demoniza a entrada
das massas na política.
referêncIaS
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Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
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| 163
B   
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   1960  1970
Caroline Gomes Leme
2
Grande movimento estético-cultural do cinema brasileiro, o
Cinema Novo foi também um grupo coeso e relativamente restrito,
sediado no Rio de Janeiro, com ascendência sobre instituições estatais e
As considerações aqui apresentadas fazem parte do desenvolvimento da tese de doutorado Enquanto isso,
emSão Paulo... : à l’époque do CinemaNovo, umcinema paulistano «entre-lugar, realizada com apoio da CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), de 01 de junho de 2011 a 31 de maio de 2012
e da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), processos n.2012/05268-9, de 01 de
junho de 2012 a 31 de março de 2016, e n.2013/10883-7, de 01 de fevereiro de 2014 a 31 de janeiro de 2015,
bolsa de estágio de pesquisa no exterior. A tese deu origem ao livro Um certo cinema paulista: entre o Cinema
Novo e a indústria cultural (1958-1981). São Paulo: Alameda, 2019.
Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade Regional do Cariri (URCA). Crato-
CE, e-mail: carolinegomesleme@gmail.com. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP), mestre e doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Autora dos
livros Ditadura em imagem e som: trinta anos de produções cinematográcas sobre o regime militar brasileiro.
São Paulo: Editora Unesp, 2013 e Um certo cinema paulista: entre o Cinema Novo e a indústria cultural (1958-
1981). São Paulo: Alameda, 2019.
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p163-192
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
164 |
prestígio intelectual para além do âmbito cinematográco. Embora sua
força enquanto movimento estético tenha se esvaziado no início dos
anos 1970, os integrantes de seu núcleo (Glauber Rocha, Nelson Pereira
dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman,
Gustavo Dahl e Paulo Cesar Saraceni) mantiveram em larga medida coesão
de grupo ao longo daquela década, o que contribuiu para a continuidade
de suas carreiras, mobilizando e ampliando redes de relações anteriormente
tecidas. Com a compreensão das mudanças de signicado, é possível,
então, estender o epíteto Cinema Novo para os anos 1970.
3
Em paralelo à ascensão do Cinema Novo, um conjunto de cineastas
estabelecidos em São Paulo produziam seus lmes de maneira relativamente
esparsa, sem constituírem grupo coeso e sem integrarem organicamente
outros núcleos de cineastas, seja o do próprio Cinema Novo, seja o de outros
cineastas estabelecidos em São Paulo, como os “universalistas
4
(Rubem
Biáfora, Flávio Tambellini, Walter Hugo Khouri, Alfredo Sternheim, entre
outros) ou os jovens do Cinema Marginal, movimento emergente no pós-68,
anado com a contracultura. Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Maurice
Capovilla, Sérgio Muniz, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr. e
Renato Tapajós, a quem designamos “paulistas do entre-lugar”, pertenciam
à “geração Cinema Novo” – ingressaram na vida adulta antes do golpe de
1964, eram oriundos dos meios universitários e com tendências políticas
de esquerda –, mas, não fazendo parte do núcleo do movimento sediado
no Rio de Janeiro, produziam conforme as condições disponíveis em São
Paulo, o que envolvia recorrer à estrutura da Boca do Lixo paulistana, lócus
de produção eminentemente comercial; realizar lmes sob encomenda ou
trabalhar para a televisão e a publicidade. Transitando entre o “cinema de
autor” e o “cinema comercial”, construíram trajetórias irregulares que os
colocaram em posição relativamente secundária na História do Cinema
Brasileiro. Sua lmograa, entretanto, abriga algumas obras fortes que por
vezes são associadas aos principais movimentos da época, o Cinema Novo
Nos anos 1980 a conguração do meio cinematográco e as condições de produção já são totalmente outras,
particularmente após o encerramento da gestão de Celso Amorim (1979-1982) na Embralme. Ademais, 1981
é o ano da morte de Glauber Rocha, marco simbólico do m do Cinema Novo.
 A vertente “universalista” ou “cosmopolita” é entendida por José Mário Ortiz Ramos como aquela que não vê
problemas em o cinema brasileiro “absorver, sem críticas, formas de produção e moldes artísticos estrangeiros”
(RAMOS, 1983, p. 23). Além de questões estéticas, a temática existencial dos “universalistas” marca o
contraponto com a problemática social levantada pela vertente “nacionalista” que está na base do Cinema Novo.
Essa dicotomia na prática se apresenta mais matizada, mas o esquema é importante para compreender os polos
do conito que permeava o meio cinematográco da época.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 165
e o Cinema Marginal, a despeito de nenhum deles ter, efetivamente, feito
parte do núcleo de um ou outro desses movimentos.
Pretendo aqui cotejar a abordagem prevalente do Cinema Novo,
que ao longo de suas diferentes fases esteve inserido nos debates em torno
da “questão nacional”, com a abordagem de determinada fração do cinema
dos “paulistas do entre-lugar” que, menos centrada no “povo” e na “nação”,
apresenta perspectiva crítica em relação à modernidade urbana capitalista.
Ainda que a análise dos lmes constitua importante lastro para o texto,
a exposição apresenta caráter mais horizontal de modo a possibilitar o
desenvolvimento do argumento, considerando inclusive a ampla fortuna
crítica existente sobre o Cinema Novo, com a qual dialogo.
1. o cInema novo e a queStão da nação
“O Brasil é um país que não existe (ainda). Por isso mesmo, é
necessário lhe inventar um cinema” (DIEGUES, 1968, p.2, tradução
nossa). Fragmento de um texto signicativamente publicado na revista
de cinema francesa Positif (de tendência abertamente à esquerda), a frase
de Carlos Diegues dá mostra das pretensões do Cinema Novo. Nascido
na virada dos anos 1950 para os 1960, o movimento buscou, e de certa
maneira conseguiu, alçar o cinema brasileiro a um estatuto de intérprete
artístico-cultural da nação, assim como fora a literatura modernista,
notadamente aquela do romance social dos anos 1930.Glauber Rocha fala
de uma “tomada do cinema pelos intelectuais” (ROCHA apud GERBER,
1982, p. 21)e Nelson Pereira dos Santos considera que “o Cinema Novo
representou a descolonização do cinema, como a que tinha acontecido antes
com a literatura”. (SANTOS apud RIDENTI, 2000, p. 90). Tratava-se de
redescobrir o Brasil”
5
por meio do cinema que adquiria legitimidade de
obra intelectual capaz de pensar os dilemas do país.A renovação temática,
reivindicada desde os anos 1950 por críticos e cineastas de esquerda reunidos
em torno da revista Fundamentos (entre os quais o veterano Nelson Pereira
dos Santos), vai se coadunar com a renovação formal, no bojo do chamado
cinema moderno
6
, buscando-se a elaboração de uma estética expressiva e
Eis outra frase signicativa de Diegues: “minha geração foi a última safra de uma série de redescobridores do
Brasil […]” (DIEGUES apud RIDENTI, 2000, p. 50).
 Cf. Xavier (2001).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
166 |
original, em ruptura com a linguagem “clássica” hollywoodiana. Em texto
de 1962, Glauber Rocha arma:
Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade. [...] Nosso
cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática
do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isto nossos lmes nascem
diferentes dos cinemas da Europa. [...] Para nós a câmera é um olho
sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento,
a montagem não é demagogia mas pontuação do nosso ambicioso
discurso sobre a realidade humana e social do Brasil! Isto é quase
um manifesto. (ROCHA, 2004b [1962], p. 52).
A luz “nova”, despojada, sem os artifícios de estúdio; a câmera
na mão; a lmagem em exteriores; o som direto (quando possível); a
montagem discursiva expressando uma interpretação crítica da realidade
são todos elementos estéticos que convergem para os objetivos de reexão
político-social dos cinemanovistas. E é interessante observar nos textos
de críticos e cineastas entusiastas do movimento,no Brasil e no exterior,
palavras-chave intensamente recorrentes: “homem brasileiro”, “realidade
social”, “autenticidade nacional”, “povo”, “Terceiro Mundo”, “revolução
(esta num amálgama do estético e do político), um vocabulário sintomático
de um período histórico em que a armação da identidade nacional se
ligava a um sentido político de esquerda no âmbito da luta anti-imperialista
e anticolonial.
No Brasil, a problemática do subdesenvolvimento estava na ordem
do dia e era informada de diferentes maneiras por discursos como os da
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), do ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros) e do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
7
Inserido nesse contexto, o Cinema Novo viu no sertão a imagem síntese
dos dilemas do país, aquela que melhor expressava nossa miséria, atraso
e subdesenvolvimento. Criava-se a “estética da fome”, como formulou
a posteriori Glauber Rocha (2004a [1965]), uma estética que buscava
expressar de maneira violenta e não melodramática a condição brasileira.
Assim, do precursor documentário Aruanda (Linduarte Noronha, 1960)
à célebre “trilogia” do sertão com Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos,
Para uma discussão mais ampla e aprofundada sobre cultura e política no Brasil nos anos 1960 e 1970 ver
Ridenti (2000, 2010).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 167
1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os Fuzis
(Ruy Guerra, 1964), foram colocadas nas telas imagens do sol escaldante,
da terra seca e craquelada do nordeste brasileiro, da população à margem
da modernidade urbana capitalista.
Paralelamente ao sertão, a favela destaca-se como ambiente
privilegiado para o cinema interessado em problematizar a realidade social
do país, gurando, por exemplo, nos lmes pioneiros de Nelson Pereira
dos Santos, Rio, 40 graus (1955) e Rio Zona Norte (1957); na obra coletiva
em cinco episódios, Cinco vezes favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá
Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962), realizada
pelos jovens cinemanovistas então ligados ao CPC (Centro Popular
de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes); e em A grande
cidade (1965), de Cacá Diegues. Espaços onde a miséria se apresentava de
modo mais manifesto, sertão e favela constituíam também a base de um
repertório de cultura popular a partir do qual se poderia construir uma
identidade nacional forjada para a luta, para a transformação do país e a
superação da herança colonial.
Embora em território urbano, a favela por vezes aparece nesses
lmes como um lugar ainda não contaminado pela degradação da
cidade, um reduto dos valores tradicionais, das relações comunitárias,
da solidariedade.Trata-se de uma perspectiva integrada à “estrutura de
sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária” identicada por
Marcelo Ridenti (2000, 2010), para a qual interessava “resgatar um
encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja
essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar
nas cidades” (RIDENTI, 2000, p. 25, grifo do autor). Assim, mesmo que
tais lmes se situem na cidade, a problematização da modernidade urbana
capitalista não é o seu eixo fundamental. O que se privilegia é um retrato
do “povo”, aquele que compõe “um universo uno e mítico integrado por
sertão, favela, subúrbios, vilarejos do interior ou da praia, gaeira e estádios
de futebol”, conforme assinala Paulo Emilio Salles Gomes (1996, p. 103).
Quando focalizam o urbano, os cinemanovistas em geral deslocam
o foco do outro, o “homem do povo”, para retratar seu próprio meio social,
o da burguesia, classe média e intelectualidade. Esse deslocamento é, em
larga medida, decorrência do golpe civil-militar de 1964 que abortou o
projeto nacional que embalava o Cinema Novo e pôs abaixo as perspectivas
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
168 |
de transformação político-social que estavam no horizonte no início dos
anos 1960. Ante a frustração, o Cinema Novo dedica-se a analisar de
maneira (auto)crítica a postura do intelectual e da classe média em relação
ao “povo” e ao poder, legando obras como O desao (Paulo César Saraceni,
1965); Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) e O bravo guerreiro (Gustavo
Dahl, 1968).
8
Na virada dos anos 1960 para os 1970, após a instauração do
Ato Institucional n.5 que marcou o endurecimento do regime militar no
Brasil, o Cinema Novo vive um outro momento, denominado por alguns
teóricos como fase “tropicalista”, com largo uso da alegoria em lmes
como Brasil ano 2000 (Walter Lima Jr., 1968), O dragão da maldade
contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969) e Macunaíma (Joaquim
Pedro de Andrade, 1969).
9
O rural se imbrica ao urbano numa perspectiva
desiludida ante a modernização conservadora levada a cabo pelo regime
ditatorial. Nesses lmes, conforme Ismail Xavier (2012, p. 434):
[...] o Brasil era uma totalidade em crise, um organismo que dava
sinais de estar perdendo de vez a possibilidade de autodeterminação,
quando parecia a ponto de ganhá-la. […] O que está em pauta
nesse drama é o que se assume como a vivência de um descaminho
na passagem do arcaico ao moderno, embora em tese tal passagem
fosse bem-vinda. Convicto desse descaminho, o nacionalismo do
cinema novo foi um dilema renovado.
A maioria dos teóricos não considera mais o Cinema Novo
como movimento a partir de 1973, mas seus remanescentes continuam
lmando, em larga medida apoiados pela Embralme, empresa de capital
majoritariamente estatal criada no âmbito das iniciativas do regime
militar em relação à cultura. O “ciclo histórico do Cinema Novo ainda
não havia terminado”, para usarmos as palavras de Randal Johnson
(1984, p.3, tradução nossa). O Estado encampava à sua maneira o debate
acerca do nacional-popular, formulando a Política Nacional de Cultura
(PNC), e os cineastas egressos do Cinema Novo encontravam no auxílio
estatal uma via para a industrialização do cinema brasileiro e o alcance da
Para uma visão geral sobre o Cinema Novo no pós-1964 ver, entre outros, Xavier (2001, 2012); Bernardet e
Galvão (1983) e Johnson e Stam (org.) (1995).
 Cf.Johnson e Stam, (1995, p. 37). Ver também Schwarz (1978).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 169
audiência popular.
10
Nem todos os (ex) cinemanovistas integraram-se a
esse movimento “conciliatório” – Ruy Guerra, por exemplo, é marcante
exceção
11
– sendo diferentes os caminhos adotados por cada um deles;
contudo, uma tendência que ganhou destaque nesse período foi a
elegia da cultura popular brasileira com o abandono das interpretações
sociologizantes”, passando ao largo das contradições sociais e conitos
de classe. Destacam-se nessa linha os longas O amuleto de Ogum (Nelson
Pereira dos Santos, 1974); Xica da Silva (Cacá Diegues, 1976) e Tenda dos
Milagres (Nelson Pereira dos Santos, 1977).
Em 1980, fechando esse ciclo, temos o lançamento de Bye bye
Brasil, de Cacá Diegues, lme emblemático da trajetória do Cinema Novo.
Por meio do percurso de uma caravana de artistas itinerantes pelo Brasil,
o lme lida com o imbricamento entre o rural e o urbano, o sertão e a
cidade, a cultura popular e os meios de comunicação de massa, o arcaico e
o moderno, o nacional e o internacional e sintetiza de maneira sui generis os
dilemas de um cinema que se propôs crítico, vislumbrou a transformação e
se debateu com a realidade para ao m, de algum modo, se resignar diante
dela. A despedida que se anuncia no título, é a um Brasil que se esvai e
também a um projeto de emancipação nacional que movera um segmento
considerável da intelectualidade vinte anos antes. Aceita-se a condição
nacional, como destino, de maneira resignada ou até mesmo apologética.
A avaliação de Cacá Diegues é signicativa:
Uma coisa que acho curiosa é a visão que os críticos europeus
tiveram do lme em relação aos críticos americanos. Na Europa é
visto como um lme muito triste, melancólico, sobre um paraíso
que está sendo destruído, que se acabou. Enquanto que nos
Estados Unidos é visto como um lme muito feliz, eufórico, cheio
de esperança, sobre uma civilização que está começando. Prero a
visão dos americanos. (DIEGUES apud OROZ, 1984, p. 160).
Ainda que seja necessário considerar as diferenças importantes
entre os cineastas do Cinema Novo – Ruy Guerra e Leon Hirszman, por
exemplo, realizam no mesmo período A queda (1978) e Eles não usam black-
tie (1981), respectivamente, em caminhos bastante diferentes daquele de
10
Cf.Ramos (1983) e Jorge (2002).
11
Cf.Johnson (1984).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
170 |
Bye bye Brasil – o quadro esboçado anteriormente ajuda a compreender
as principais linhas de força do movimento e suas características
predominantes em cada época. Quando se acompanha, por exemplo, a
recepção do Cinema Novo no exterior, percebe-se que Glauber Rocha e
Cacá Diegues assumiram posições condutoras do debate, com discursos
pautados fortemente nas questões da brasilidade, do anticolonialismo, do
anti-imperialismo e do terceiro-mundismo.
12
Ademais, o ensaio Estética
da fome de Rocha (2004 [1965]) assumiu o papel de manifesto, servindo
como guia para a apreensão do Cinema Novo, em contexto nacional e
internacional, até os dias atuais. Com um vocabulário de teor político
bastante marcado, o texto frisa os embates anticoloniais, a centralidade
da fome como emblema do subdesenvolvimento – “nossa originalidade é
nossa fome” – e reivindica a violência como força de transformação.
A busca de uma matriz revolucionária original é um traço forte do
projeto do Cinema Novo, no qual o estético se imbui de sentido político
e se ana ao contexto das lutas de libertação nacional. As características
constitutivas do Brasil – e, mais largamente, do Terceiro Mundo, sobretudo
para Rocha em sua obra mais tardia – carregariam em si um potencial
revolucionário singular, como defendeu Diegues que, num panorama
sobre a produção cinemanovista para a Positif, fala da formação de uma
nova “consciência popular” que estaria na base de uma:
[...] civilização tropicalista ou antropofágica ou orgiástica, qualquer
nome que se dê; uma civilização que não aceita a escolha entre o
subdesenvolvimento e a sociedade de consumo mas que se prepara
para participar da fundação de uma nova História popular cuja
ação sobre o regime social-político-econômico (necessária) é apenas
um passo em direção a uma nova humanidade. (DIEGUES, 1970,
p. 46, tradução nossa).
É um exemplo claro do que Ridenti (2010) caracterizou como
aposta numa “brasilidade revolucionária”.
12
Trabalhamos diretamente com textos e entrevistas sobre o Cinema Novo publicados em revistas como as
francesas Positif, Cahiers du Cinéma e Image et son. Cf. Leme (2015). Para uma visão geral sobre a recepção do
Cinema Novo pela crítica francesa ver o trabalho de Alexandre Figueirôa (2004).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 171
2. rIo x São Paulo: “caPItalIdadex coSmoPolItISmo e a
ProBlemátIca da modernIdade
Carlos Pinto (2013), em sua tese sobre a representação da
cidade do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo, defende que, ao lado da
representação do sertão, uma das faces mais marcantes do movimento é
sua vinculação com a vivência urbana carioca. O Rio de Janeiro, conforme
diferentes pesquisas já analisaram, foi o berço e a principal sede do Cinema
Novo, o lugar onde se constituiu como grupo e também o lugar a partir
do qual o grupo estabelecido exerceu inuência sobre o Estado por meio
de suas redes de relações.
13
Na perspectiva de Pinto (2013), o fato de vários
dos cinemanovistas serem oriundos de outros estados do país atesta o
poder de atração que o Rio exercia. Para além das condições de produção
cinematográca da época, de que trataremos mais adiante, o argumento
do autor vai no sentido de que a escolha por lmar no Rio, e, sobretudo,
lmar o Rio, se explica por motivações intelectuais e estéticas. Mesmo após
deixar de ser, em 1960, a capital federal, a cidade continuou abrigando
instituições nacionais importantes e permaneceu por longo tempo a exercer
sua “capitalidade”. No imaginário social, o Rio de Janeiro era sinédoque do
Brasil, sintetizando as características contraditórias do país e contendo em
si os principais elementos do que se entendia como identidade nacional:
“Por um lado, a favela surgia como índice de uma nacionalidade positiva
e desejada, por outro, os ícones urbanos eram transmudados em indícios
de uma brasilidade difusa, ao mesmo tempo selvagem e moderna […]”.
(PINTO, 2013, p.237).
Características geográcas e condições históricas diferenciam
largamente a cidade de São Paulo da cidade do Rio de Janeiro. Principal lócus
da industrialização brasileira, polo de atração de imigrantes estrangeiros
ou de outras regiões do Brasil, São Paulo se estabeleceu desde cedo como
nosso ícone da modernidade
14
, signo da metrópole cosmopolita, imagem
intensicada após o surto da indústria automobilística e a entrada de
empresas multinacionais promovidos pelo governo Juscelino Kubitschek.
Enquanto o Rio gura no imaginário social como a “cidade maravilhosa”,
vitrine do Brasil, paraíso tropical emoldurado pelas paisagens deslumbrantes
13
Cf. Yuta (2004), Simonard (2006) e Fernandes (2008).
14
Ver, por exemplo, o lme São Paulo, sinfonia da metrópole(Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, 1929),
congênere deBerlim, sinfonia da metrópole (Walter Ruttmann, 1927);
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
172 |
e embalado pela cadência alegre do samba, São Paulo é a cidade cinza,
de concreto e fumaça, capital do trabalho, do dinheiro e do progresso,
não raro comparada a Nova York em suas características cosmopolitas.
15
Abastecidas inclusive pelo cinema, essas visões perduram historicamente.
Para Glauber Rocha: “São Paulo, no Brasil, é um país estranho
como cultura. Está além de nossa estrutura geral no que se refere a progresso
e muito diferente do resto do Brasil na formação de sua gente. Sua cultura
é mais importada e mais desligada de nossa realidade” (ROCHA, 1959
apud YUTA, 2004, p.102). A partir desse “diagnóstico”, a gura maior do
Cinema Novo condenou o cinema paulista ao fracasso:
Ocinema paulista foi um cinema sem possibilidades:erro
de raízes, origens culturais, conhecimento do Brasil e seus
problemas. Os cineastas paulistas erram, e errarão sempre, pelo
sentido de grandiosidade que marca esta própria civilização. [...]
Neste meio difuso, metropolitano e descaracterizado – aberto a
todas as correntes culturais do mundo que são importadas mas
pessimamente digeridas – é possível a deformação de talentos.
Gimba, presidente dos valentes, de Flávio Rangel, é um lamentável
exemplo disso. (ROCHA, 2003 [1963], p. 116-117).
Para além das características históricas e culturais de São
Paulo, a malograda experiência paulista da Companhia Cinematográca
Vera Cruz na década de 1950 era referência a ser superada: cinema
de estúdio, empreendido pela burguesia paulistana com pretensões
industriais, técnicos estrangeiros, moldes artísticos importados,
temáticas “universalistas” ou retratos “inautênticos”, caricaturais e
folclorescos do povo brasileiro. O Cinema Novo pretendia caminhar em
via diametralmente oposta. E a cidade de São Paulo, onde ainda tinham
força críticos e cineastas identicados com as propostas veracruzianas
(B.J. Duarte, Rubem Biáfora, José Júlio Spiewak, Alfredo Sternheim,
Walter Hugo Khouri), foi considerada “túmulo do cinema”, como a
15
É interessante, por exemplo, acompanhar a descrição do crítico francês Louis Marcorelles em seu texto de
introdução à entrevista conjunta com o carioca Cacá Diegues e o paulista Sérgio Muniz. Enquanto o Rio é “o
Brasil para turistas, o Brasil do carnaval, da bossa nova, das mais belas garotas do mundo, uma loucura aceita
como o pão de cada dia numa aparente despreocupação”, São Paulo é a “metrópole das metrópoles”, “cidade
à americana onde a miséria mais gritante está ao lado dos signos extravagantes da modernidade”; que “imita
em pequena medida Nova York com sua gama de comunidades italiana, portuguesa, japonesa, libanesa etc”.
(MARCORELLES, 1968, p. 50, tradução nossa).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 173
designou Nelson Pereira dos Santos, paulistano de geração anterior à dos
jovens cinemanovistas, que se radicou no Rio de Janeiro e foi incorporado
ao movimento do Cinema Novo:
Fui cando no Rio e também não podia voltar para São Paulo,
que não só era o túmulo do samba, como também o túmulo do
cinema. Com o fracasso da Vera Cruz e aquelas outras empresas de
produção – Maristela, Multilmes e tal –, a idéia de fazer cinema
em São Paulo era coisa ultrapassada. (SANTOS apud D’ÁVILA,
2002, p. 28).
No Rio de Janeiro, Nelson Pereira dos Santos encontrou condições
de produção cinematográca mais favoráveis – especialmente após a
criação da CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográca) em
1963, vinculada ao Estado da Guanabara – e ao mesmo tempo encontrou
o cenário que lhe parecia ideal para tratar das questões nacionais. Sobre
a escolha da cidade para realizar seus primeiros lmes, Rio, 40 graus
(1955) e Rio Zona Norte (1957) – além do não realizado Rio Zona Sul,
que completaria a trilogia –, arma: “Eu sabia, e isso continua hoje, que
no Rio encontra-se uma imagem do Brasil inteiro”. (SANTOS apud DE
CÁRDENAS; TESSIER, 1972, p. 63, tradução nossa).
Em análise dos já referidos lmes Rio, 40 graus; Rio Zona Norte;
Cinco vezes favela e A grande cidade, Pinto (2013) nota a mobilização da
capitalidade” do Rio pelo Cinema Novo, em construções fílmicas que
salientam os contrastes entre “morro” e “asfalto”, numa dualidade entre a
autenticidade” da favela e a modernidade da cidade. Já no outro conjunto
de lmes analisados – Os cafajestes (Ruy Guerra, 1959), O desao (Paulo
César Saraceni, 1964), Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967) e Todas as
mulheres do mundo
16
(Domingos de Oliveira, 1967) – o autor observa enfoque
maior do meio urbano que é captado numa abordagem mais intimista que
parte das vivências privadas dos personagens, próximos ao universo dos
cineastas, isto é, da classe média que habita ou circula pela Zona Sul. Roberto
Noritomi (1997), ao analisar o corpus de quatro lmes – Os cafajestes (Ruy
16
Conforme reconhece Pinto (2013), o lme de Domingos de Oliveira não pertence ao Cinema Novo mas pode
ser considerado como “orbitando à volta do movimento” (PINTO, 2013, p. 17).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
174 |
Guerra, 1959), São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1964)
17
,
Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1963) e A falecida (Leon Hirszman,
1965) – que considera constituir “uma alternativa urbana dentro do Cinema
Novo”, igualmente observa uma abordagem construída a partir da esfera
privada, distanciada do “calor político-ideológico do populismo” (que, nas
palavras dele, marcaria os demais lmes da primeira fase do Cinema Novo),
dando espaço a questões como a liberação sexual feminina, as relações de
gênero e as crises existenciais.
Com esse panorama somado ao exposto no tópico anterior,
verica-se que nas principais linhas de força do Cinema Novo ao longo
dos anos 1960 e 1970 não há preocupação central em problematizar as
contradições da modernidade urbana capitalista. Embora toda generalização
seja questionável por negligenciar singularidades fundamentais
18
, meu
argumento vai no sentido de que o Cinema Novo guarda uma relação
ambígua com a modernidade, oscilando entre uma crítica romântica (a
cidade como lugar da dissolução dos valores em contraste com a “pureza” e
autenticidade” das favelas e do campo, etc) e uma visão positiva em que o
moderno é o ideal a alcançar, num horizonte de superação do “atraso” e do
subdesenvolvimento. No pós-67, sob inuxo do tropicalismo, conforme
assinala Ismail Xavier (1984, 2001, 2012), o dualismo entre arcaico e
moderno se dilui numa imbricação mútua e por vezes ambivalente. E,
nessa linha, há críticas e sátiras em relação à modernização conservadora
promovida pelo regime militar em lmes como os já mencionados Brasil
ano 2000; O dragão da maldade contra o santo guerreiroe Macunaíma. A
questão nacional, entretanto, continua sendo o cerne da discussão nas
produções dos principais egressos do Cinema Novo ao longo dos anos
1970 e as contradições próprias da modernidade permanecem em segundo
plano. A meu ver, o movimento, em suas faces prevalentes, bem representa
uma corrente de pensamento à esquerda, para a qual, conforme observou
argutamente Roberto Schwarz, “[...] oproblema não estava na marcha do
17
Tratarei de São Paulo, Sociedade Anônima no tópico 4. Não o considero lme do Cinema Novo pois seu
realizador, Luiz Sérgio Person, nunca fez parte do grupo sediado no Rio, tendo realizado este e seus outros lmes
por caminhos bastante diferenciados, além de ter rejeitado explicitamente em entrevistas aproximações com o
movimento. O pertencimento de Ruy Guerra, por exemplo, ao grupo é conturbado, com rejeições recíprocas,
porém, houve uma proximidade efetiva no início dos anos 1960.
18
Penso que notadamente Os cafajestes (Ruy Guerra, 1959) e A falecida (Leon Hirszman, 1965) – de novo
Guerra e Hirszman como exceções – merecem um olhar cuidadoso sob este aspecto.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 175
mundo, mas apenas em nossa posição relativa dentro dela.” (SCHWARZ,
1999, p. 161).
Renato Ortiz em A moderna tradição brasileira (1988),
desenvolve o argumento de que no Brasil, assim como em outros países
subdesenvolvidos, o moderno assumiu em si uma conotação positiva
para uma extensa corrente de pensamento que tendeu a associar o projeto
nacional a uma “vontade de modernidade” que surge numa estrutura social
que ainda não completara o processo de modernização. O autor defende
que essa concepção, presente em tendências ideologicamente diversas, teve
um papel historicamente progressista quando se contrapôs às forças sociais
oligárquicas e conservadoras, assim como ao imperialismo internacional,
mas, teve também um resultado negativo: “o de termos mergulhado
numa visão acrítica do mundo moderno”. (ORTIZ, 1988, p. 36). Assim,
as críticas à modernidade tenderam a vir de intelectuais conservadores,
como Gilberto Freyre, que valorizavam o polo tradicional, ao passo que o
pensamento progressista se preocupava eminentemente com a superação do
atraso”. Essa tendência geral do pensamento social brasileiro à acriticidade
em relação ao mundo moderno seria um dos fatores explicativos para o
relativo silêncio” sobre a “cultura de massa” no Brasil, sendo os primeiros
artigos sobre o tema publicados somente no nal dos anos 1960 e, mesmo
assim sem que a discussão sobre ele adquirisse centralidade, uma vez que
o “[...] eixo do debate permanece ainda a questão nacional.” (ORTIZ,
1988, p. 15). Conforme sugere o autor, é possível que a vigência do regime
autoritário tenha sido um fator motivador desse silêncio, ao canalizar
os debates para as problemáticas políticas nacionais, sendo sintomático
que nos anos 1970 o referencial gramsciano tenha ganhado destaque nas
análises de cultura no Brasil em detrimento do referencial frankfurtiano.
As considerações de Ortiz (1988) se coadunam com a
argumentação aqui esboçada em relação à ênfase predominante na
questão nacional” que atravessa as diferentes fases do Cinema Novo.
Essa característica do movimento ca ainda mais realçada quando
a contrastamos com a abordagem de determinada fração do cinema
paulista na qual está menos em questão a problemática do “povo”, da
nação” e do subdesenvolvimento do que as contradições da própria
modernidade, incluindo um olhar agudo sobre o universo da indústria
cultural. Antes de passarmos a esses lmes, cabem alguns esclarecimentos
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
176 |
quanto às condições de produção cinematográca da época e o “lugar
dos cineastas paulistas naquele quadro.
3. condIçõeS de Produção cInematográfIca e oSPaulIStaS do
entre-lugar
O malogro da experiência da Vera Cruz e de outras produtoras
paulistas que surgiram na esteira dela deixou para São Paulo não só um
estigma “cultural”, por assim dizer, mas acarretou também consequências
econômicas, como a diculdade de se obter nanciamentos junto aos
bancos. Relata o cineasta João Batista de Andrade:
[...] aqui em São Paulo a gente lutou muitas vezes para tentar que
o Banco do Estado nanciasse. Nós tentamos inclusive o Banco
Nacional aqui também, mas era muito fechado, e o Banco do
Estado não queria nem saber porque ainda tinha dívidas da Vera
Cruz. Então havia esse lado econômico negativo. (ANDRADE
apud SOUZA; SAVIETO, 1980, p. 37).
Reclamação semelhante faz Maurice Capovilla à reportagem de
José de Moura (1966): “só está faltando uma coisa para o cinema paulista:
nanciamento”. (CAPOVILLA apud MOURA, 1966). A comparação com
a conjuntura carioca é inevitável. Ambos os cineastas fazem referência ao
apoio da CAIC, vinculada ao Banco do Estado da Guanabara, ao Cinema
Novo, que teve ainda o Banco Nacional de Minas Gerais como relevante
apoiador. De acordo com Luciano Fernandes (2008) e Júlia Carvalho
(2008), as redes de relações dos cinemanovistas abriram caminhos para
o acesso a esses nanciamentos, contribuindo substancialmente para a
viabilidade do movimento
.19
Arelação de lmes citados por Carvalho (2008) mostra que o
apoio da CAIC beneciou os principais nomes do Cinema Novo por toda
19
Segundo Fernandes (2008), no trânsito junto à CAIC teria contribuído o relacionamento do produtor Luiz
Carlos Barreto com o vice-governador Rafael de Almeida Magalhães, a amizade de Glauber Rocha com Luís
Carlos Mendes, lho do deputado baiano João Mendes que era amigo do governador Carlos Lacerda, bem
como o parentesco de Joaquim Pedro de Andrade com Almeida Braga, presidente do Banco do Estado da
Guanabara. E o Banco Nacional de Minas Gerais era presidido por Magalhães Lins, casado com uma prima de
Joaquim Pedro. Carvalho (2008) assinala a inuência direta de Glauber Rocha na escolha de um dos secretários
executivos da CAIC, Fernando Ferreira, que atuou de 1966 a 1969.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 177
a década de 1960, sendo que a atuação da comissão se dava não apenas no
nanciamento aos projetos, mas também na concessão de premiações em
dinheiro aos lmes considerados de qualidade, além de colaborar para a
realização de eventos como o Festival Internacional do Filme. Desse modo,
avalia o cineasta Walter Lima Jr.:
Mais do que nanciar, a CAIC fomentou a criação de um pólo
de produção cinematográca no Rio. E eu acho que boa parte
do Cinema Novo de então foi produzido pela CAIC. Se não
produzido, recebeu de alguma forma os efeitos de sua existência”.
(LIMA JÚNIOR, 2005 apud CARVALHO, 2008, p. 9).
Paulo César Saraceni vai na mesma direção ao armar: “Com
a CAIC e o Banco Nacional estávamos feitos. Foi, de longe, a melhor
ajuda governamental que o cinema brasileiro teve em toda a sua trajetória.
(SARACENI, 1993, p. 162).
Em 1966, ainda sob vigência da CAIC, é criado o INC (Instituto
Nacional de Cinema) sob hegemonia do grupo “universalista” que até
então se organizava em torno do GEICINE (Grupo Executivo da Indústria
Cinematográca), criado em 1961. Capitaneado por Flávio Tambellini,
que se tornou o primeiro presidente do INC, este grupo foi alvo de forte
oposição de cinemanovistas, como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos
Santos que protestaram publicamente contra a criação do Instituto que,
de fato, nos primeiros anos de seu funcionamento, privilegiou o grupo
universalista”, embora tenha destinado recursos a alguns lmes ligados ao
Cinema Novo.
20
Em 1969 é criada a Embralme, Empresa Brasileira de Filmes
S.A., de capital majoritariamente estatal. Atuando a princípio em
complementaridade com o INC, a empresa foi ganhando força e em 1975
absorveu ocialmente as funções daquele instituto, que foi extinto. A
nova fase, na qual a Embralme teve o orçamento aumentado e assumiu
as atividades de coprodução, coincide com a gestão do cineasta Roberto
Farias, cuja nomeação para diretoria da empresa, em 1974, passou por
inuência direta do grupo do Cinema Novo
21
. O setor de distribuição da
20
Cf. Ramos (1983) e Johnson (1987, appendix B, p. 202-204).
21
Segundo Fernandes (2008), o pai de Cacá Diegues, Manuel Diegues Jr., dirigente do Departamento de
Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura, teria indicado, diretamente ao amigo ministro Ney
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
178 |
empresa foi impulsionado e a direção desta área cou a cargo do egresso
do Cinema Novo, Gustavo Dahl. Diversos autores, como José Mário
Ortiz Ramos (1983), Randal Johnson (1987), Tunico Amâncio (2000) e
Marina Soler Jorge (2002) indicam que particularmente durante o período
1974-1979, a Embralme favoreceu em seus aportes produções cariocas,
notadamente ligadas a cineastas oriundos do Cinema Novo.
Percebe-se, assim, que o período em que o grupo do Cinema Novo
esteve relativamente “desamparado” do apoio de órgãos estatais foi entre
1969 e 1974, período que coincide com o recrudescimento da repressão
ditatorial. Em 1969, o então secretário-executivo da CAIC, Fernando
Ferreira, apoiador dos cinemanovistas, foi substituído por um militar
22
e o INC estava sob hegemonia do grupo “universalista”. Não obstante,
mesmo nessa época, verica-se que a produção dos cinemanovistas não
foi interrompida. Alguns lmes receberam recursos do INC e a primeira
carteira de nanciamentos da Embralme, antes da gestão Roberto
Farias, também destinou recursos a lmes do grupo
23
. Além disso, os
cinemanovistas acionaram suas redes de contato no exterior no momento
de maior repressão política no Brasil, o que lhes permitiu realizar vários
lmes em produção ou coprodução estrangeira
24
.
Diante do exposto, ainda que não se possa creditar o êxito artístico
e o prestígio do Cinema Novo às redes de relações ou à inuência de seus
integrantes, deve-se considerar a importância signicativa ou mesmo
decisiva desses fatores na continuidade da sua produção, permitindo aos seus
principais membros realizarem em média um longa-metragem a cada dois
anos, mesmo nos períodos mais difíceis. Isso esteve longe de ocorrer com
outros cineastas brasileiros, sejam aqueles expoentes do chamado “cinema
independente” dos anos 1950 que em grande parte deixaram de lmar
ao longo dos anos 1960 e 1970, como César Mêmolo Jr., Galileu Garcia,
Braga, o nome de Roberto Farias para a direção da Embralme.
22
Cf. Carvalho (2008, p. 8).
23
Cf. Jorge (2002, p.177).
24
Glauber lma O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) com apoio das televisões francesa e alemãe
realiza na sequência quatro lmes no exterior: O Leão de Sete Cabeças (Congo, Itália, França, 1970); Cabeças
Cortadas (Espanha, 1970); História do Brasil (Cuba, Itália, 1972-1974, codireção de Marcos Medeiros) e Claro
(Itália, 1975), além de montar em Cuba Câncer (1968-1974), que fora lmado no Brasil.Como era gostoso o meu
francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971) conta com coprodução francesa, além de recursos do INC; Quem é
beta (Nelson Pereira dos Santos, 1972) é também uma coprodução francesa e Os Incondentes (Joaquim Pedro
de Andrade, 1972) e Uirá – um índio em busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973) são realizados em coprodução
com a TV italiana.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 179
Rodolfo Nanni e Alex Viany; sejam os “universalistas” que gozaram de um
breve período de hegemonia, mas perderam força e tiveram diculdades
para continuar produzindo; sejam os jovens do Cinema Marginal que
por vezes lmaram um único longa-metragem ou seguiram carreira
aproximando-se do cinema erótico; sejam ainda os “paulistas do entre-
lugar” que se dedicaram a atividades alheias à direção cinematográca, tal
como a publicidade e a televisão, construindo trajetórias signicativamente
irregulares, com afastamento do cinema notadamente no período entre
1971 e 1976.
Nesse sentido, é possível argumentar que, embora a consolidação
da indústria cultural no Brasil
25
fosse um fator que estava colocado para os
artistas e intelectuais brasileiros em geral, os cineastas egressos do Cinema
Novo e os “paulistas do entre-lugar” tiveram que lidar com a questão
de maneira diferenciada. Enquanto os cinemanovistas se inseriram no
mercado” a partir da relação com a estatal Embralme que lhes facultou
em larga medida a preservação da dimensão autoral e a continuidade de
suas lmograas, mesmo dentro de certos limites tácitos envolvidos, por
exemplo, no objetivo comum de alcançar o grande público, os “paulistas
do entre-lugar”, com severas diculdades em levantar recursos para seus
projetos autorais, lidaram muito mais de perto com os constrangimentos
da indústria cultural, tendo que realizar seus projetos dentro de limites
mais estreitos e sendo eles mesmos mão de obra dessa indústria.
Pode-se supor que a visão de dentro, tanto do meio publicitário
como televisivo, trouxe a esses “paulistas do entre-lugar” elementos mais
concretos para a crítica da indústria cultural, numa perspectiva que não
meramente condena a televisão como instrumento de alienação, como
num discurso raso de esquerda, mas aponta os mecanismos de reicação
que perpassam essas instâncias-chave do capitalismo avançado, como se
vê, por exemplo, no episódio de Roberto Santos para As cariocas (1966),
em Bebel, a garota-propaganda (Maurice Capovilla, 1967) e Os amantes da
chuva (Roberto Santos, 1979).
No ensaio Operário,personagem emergente, Jean-Claude Bernardet
(1980) esboça a hipótese de que o desenvolvimento do capitalismo no
25
Segundo Ortiz (1988), ainda que nas décadas de 1940 e 1950 se observe uma expansão de empreendimentos
relacionados à chamada “cultura de massa”, é somente nas décadas de 1960 e 1970, no contexto de modernização
promovida pelo regime militar, que se consolida no Brasil um “mercado de bens culturais” integrado a uma
sociedade de consumo” e pautado por uma racionalidade empresarial.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
180 |
Brasil e seu avanço sobre a área cultural, incluindo o cinema, foram fatores
determinantes para que o personagem operário surgisse com centralidade
nos lmes brasileiros dos anos 1970.
26
Os cineastas proletarizados – “cada
dia mais despossuídos de sua aura de prestígio cultural e cada vez mais
assalariados” (BERNARDET, 1980, p. 33) – tornar-se-iam mais aptos a
considerar a sociedade brasileira sob o ângulo da evolução do capitalismo
(BERNARDET, 1980, p. 34), o que os levaria a colocar em tela o operário.
Ainda que seja necessário considerar outras mediações, essa
hipótese nos parece sugestiva como ponto de partida para pensar o caso
de nossos “paulistas”. No contexto de consolidação da indústria cultural
no Brasil, nos anos 1960 e 1970, esses cineastas estiveram no meio do
processo. E não só como cineastas – aqui se insere a dicotomia cinema
comercial/cinema de autor e é possível supor que os cinemanovistas, mesmo
em sua relação com a Embralme, se viam como artistas-autores e não
como trabalhadores da indústria cultural – mas sobretudo por trabalharem
nos âmbitos de menor prestígio cultural dessa indústria: a publicidade e a
televisão. Estas eram constituídas não somente por garotas-propaganda e
vedetes (guras recorrentes no cinema paulista, como veremos adiante) mas
também por intelectuais, como o jornalista que se converte em publicitário
em Anuska, manequim e mulher (Francisco Ramalho Júnior, 1968) para
aumentar seus ganhos e atender aos desejos de consumo da amada
manequim; ou o dramaturgo que complementa seu salário de professor
escrevendo, em ritmo industrial, trabalhos medíocres para a televisão em À
or da pele (Francisco Ramalho Jr., 1976). Ademais, a cidade de São Paulo
parece ser lugar privilegiado para apreender as questões que circundam a
modernidade urbana capitalista. Sede do capitalismo industrial brasileiro,
São Paulo foi também berço das primeiras grandes produtoras de lmes
publicitários que surgiram em 1957, absorvendo mão de obra da falida
Companhia Cinematográca Vera Cruz, e se proliferaram nas décadas
seguintes, atingindo, segundo Ramos (2004, p. 64), cerca de 70 a 80% das
150 empresas do ramo nos anos 1980.
26
Remanescentes do Cinema Novo também retrataram o operário no nal dos anos 1970, como Ruy Guerra,
em A queda (1978); Leon Hirszman em ABC da greve (1979/1991) e Eles não usam black-tie (1981) e Arnaldo
Jabor em Tudo bem (1978).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 181
4. a modernIdade urBana caPItalISta PelaS lenteS doSPaulIStaS
do entre-lugar
Há duas vertentes paralelas na produção dos “paulistas do entre-
lugar”, perceptíveis quando suas obras são tomadas em conjunto ou mesmo
na trajetória individual de cada cineasta. De um lado, há lmes, não só do
início dos anos 1960 mas também dos anos 1970, que colocam em tela
o Brasil “profundo”, rural e tradicional, como, por exemplo, A hora e a
vez de Augusto Matraga (1966) e Um anjo mau (1971) de Roberto Santos;
Terra dos Brasis (1971), O último dia de Lampião (1975) e O boi misterioso
e o vaqueiro menino (1979) de Maurice Capovilla; Vila da barca (1964)
de Renato Tapajós e a grande maioria dos lmes de Sérgio Muniz, entre
os quais, Roda & outras histórias (1965); O povo do Velho Pedro, anotações
(1967)e De raízes e rezas, entre outros (1972). De outro lado, há um
conjunto de obrasque apresentam distanciamento da tônica da “questão
nacional” e da problemática do subdesenvolvimento em benefício de
um deslindamento das contradições da modernidade urbana capitalista,
abordando temáticas como o trabalho alienado, a indústria cultural e a
reicação das relações sociais. De maneira consideravelmente distinta das
linhas de força do Cinema Novo, essa segunda vertente constitui uma
linha singular a perpassar com certa continuidade e coerência a lmograa
dos diferentes “paulistas do entre lugar” ao longo dos anos e é ela que
nos interessa investigar mais de perto, considerando estar aí a contribuição
diferencial desse cinema paulista.
Abre essa vertente O grande momento (1958), de Roberto Santos,
veterano que está para os “paulistas” assim como Nelson Pereira dos Santos
esteve para os cinemanovistas. Assinalado por Bernardet (1967) como
um “marco na lmograa brasileira” por focalizar o ambiente urbano e
ter o dinheiro como “motor do enredo” numa época em que o nascente
cinema de preocupação social voltava-se para a favela ou para o sertão,
o lme, de nítida inuência neorrealista, gira em torno das diculdades
de um jovem trabalhador para custear as despesas de seu casamento, o
grande momento”. Embora o dinheiro seja o mediador das relações entre
os personagens, que se comportam de maneira bastante individualista, são
notáveis no lme resquícios de um ethos comunitário e de pessoalidade nas
relações, ainda não pautadas exclusivamente pelo cálculo racional, o que já
não se perceberá em São Paulo, Sociedade Anônima, no qual os personagens,
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
182 |
atomizados, não fazem parte de um universo compartilhado e estabelecem
relações motivadas pelo interesse em detrimento do sentimento.
Esteticamente, o lme de Person também se diferencia daquele
de Santos. Enquanto O grande momento apresenta uma singela narrativa
linear, com montagem clássica e tomadas externas entremeadas a cenas
lmadas em cenários reconstruídos em estúdio, São Paulo S.A. adota
características do cinema moderno com narrativa não-linear, fragmentada,
marcada por movimentos e enquadramentos de câmera arrojados e pelo
corpo-a-corpo com as ruas, inserindo câmera e personagens no uxo
real” da cidade. Diferentemente de O desao, lançado na mesma época
e por vezes objeto de análises aproximativas, o lme de Person, embora
inclua uma crítica ao capital estrangeiro e à industrialização dependente,
centra-se menos na “questão nacional” e mais numa problemática geral
concernente à modernidade capitalista. A vida do protagonista Carlos,
homem de classe média que trabalha para a indústria automobilística, é
uma vida administrada, de relações reicadas e na qual o trabalho não
traz realização humana. Ele é mais um na São Paulo caracterizada como
cidade-máquina”, nos termos de Ismail Xavier (2006).
É interessante notar que embora o drama de São Paulo S.A. esteja
longe de ser privado – desde o título já se remete à moderna conguração
econômica em correspondência com a moderna conguração social sob
o capitalismo – a recepção europeia do lme o apreendeu como um
lme “intimista”, de moldes antonionianos, expressando reservas que
contrastam com a recepção entusiasmada ao Cinema Novo, notadamente
do ciclo sertanejo.
27
O caráter social do lme de Person – a meu ver muito
mais marcado do que os da “trilogia da incomunicabilidade” de Antonioni
com os quais é comparado – é em larga medida negligenciado pela crítica
estrangeira, ávida por uma “brasilidade” original e revolucionária.
Outro aspecto relevante de São Paulo S.A. e que marca o cinema
paulista é a abordagem do universo da indústria cultural e de seu “elixir
da vida
28
, a publicidade. O lme de Person é talvez o primeiro lme
brasileiro a trazer como personagem a modelo publicitária, deslindando
por meio da personagem Ana um universo de objeticação do corpo e
27
Cf, por exemplo, as observações do crítico Jean Delmas (1967) e do crítico anônimo (assinado “R.P”) em
“NOVO...” (1967), assim como as avaliações italianas recolhidas por Moraes (2010, p. 88-91).
28
A expressão é de Adorno e Horkheimer (1985, p. 151).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 183
de relações instrumentais, problemática que será objeto central do longa
Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967, baseado no romance
Bebel que a cidade comeu, de Ignácio de Loyola Brandão). Nesse lme de
Capovilla – cineasta que já abordara de maneira crítica os bastidores do
espetáculo em Subterrâneos do futebol (1964)
29
– é bastante evidenciado o
processo de reicação por que passa a personagem título. Como garota-
propaganda, Bebel vende não apenas a força de trabalho, mas os próprios
atributos físicos que conferem valor à mercadoria anunciada e separam-
se da sua constituição enquanto sujeito, tornando-a mero objeto a se
confundir com a mercadoria: exibida, desejada e consumida. Processo
análogo ocorre quando para se tornar “estrelinha” da televisão ela é coagida
a manter relações sexuais com o produtor do programa. Ao nal do lme,
após efêmero sucesso, a personagem volta para o subúrbio da cidade e, sem
vislumbrar alternativas, aceita a proposta de ser “rifada” a frequentadores
de uma casa noturna, explicitando-se, assim, de maneira exacerbada sua
condição objeticada.
É signicativa no cinema paulista a recorrência da personagem da
modelo publicitária e/ou manequim em papéis relativamente secundários,
como Ana de São Paulo S.A ou centrais, como a referida Bebel, ou Marlene
do episódio de Roberto Santos para o longa As cariocas (1966) e Anuska
de Anuska, manequim e mulher, de Francisco Ramalho Jr. (1968). O lho
da televisão, de João Batista de Andrade (1969) traz um garoto-propaganda
e Vozes do medo (1970), longa coletivo coordenado por Roberto Santos,
contém um episódio denominado Produto, igualmente problematizador
da coisicação da mulher pela indústria cultural. Em Joãozinho, episódio
de Ramalho Jr. para o longa Sabendo usar não vai faltar (1976), a garota-
propaganda é objeto de fetiche erótico para o personagem-título, oce-boy
numa agência de publicidade, e em Os amantes da chuva (1979), de Roberto
Santos, a exploração midiática e publicitária traz consequências deletérias
para um casal de trabalhadores a cujos encontros são atribuídas as chuvas
29
O enfoque do documentário notabiliza a exploração do trabalho de jovens atletas, “operários de vida curta”,
como arma a narração, cujos corpos, convertidos em mercadorias, rendem lucros aos empresários dessa
indústria e oferecem espetáculos que funcionam como “válvula de escape” para outros tantos trabalhadores – o
que poderíamos facilmente “traduzir”, em palavras frankfurtianas, como diversão “procurada por quem quer
escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p.128).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
184 |
na cidade.
30
Você também pode dar um presunto legal (1971), de Sérgio
Muniz, é também um caso interessante, pois embora tenha como questão
central a problematização política da tortura, coaduna essa discussão com
uma crítica da cultura de consumo: “Compre, olhe/Vire e mexa/Não
custa nada/ só lhe custa a vida”, canta Gal Costa na canção Mini-mistério
(Gilberto Gil, 1970) que acompanha imagens de vitrines e outdoors na
metrópole paulistana. Capovilla ainda volta a essa problemática em dois
especiais para a TV Globo, A indústria da moda e Revolução do consumo,
de 1971/1972, que segundo ele “[...] traziam insights dos bastidores do
capitalismo orescente”, porém, “não eram lmes críticos do ponto de vista
político, mas apenas crônicas atentas à realidade.” (CAPOVILLA apud
MATTOS, 2006, p. 169) – ao contrário de seu Bebel, cuja perspectiva
crítica é bastante clara.
Outro exemplo signicativo é o projeto Os sete pecados capitalistas.
Articulado em 1971 sob coordenação de Person, o projeto previa sete
episódios lmados individualmente por Person, Capovilla, Roberto Santos,
Anselmo Duarte, John Herbert, Guga (Carlos Augusto de Oliveira, irmão
do diretor da TV Globo, Boni) e Olivier Perroy. Em tom de sátira crítica,
evidenciado nos roteiros dos episódios “A livre iniciativa”, de Person, e
A publicidade”, de Lauro César Muniz
31
, o projeto, não concretizado,
seria realizado no âmbito da Blimp Filmes, empresa de Guga que produzia
comerciais e audiovisuais para televisão, fato que em si revela um pouco
a posição desses cineastas que, embora críticos à indústria cultural, nela
30
As amorosas (1968),do também paulista Walter Hugo Khouri, traz igualmente uma personagem desse universo
da indústria cultural, a vedete de televisão Marta. A abordagem do “universalista” Khouri, porém, nos parece
diferente daquela dos “paulistas do entre lugar”, pois é antes moral do que social. Ao comparar as personagens
Marta e Bebel, por exemplo, percebe-se que a personagem do lme de Capovilla tenta a todo momento se
preservar – incomoda-se com a presença de homens alheios à equipe na gravação do comercial de sabonete,
reluta em tirar fotos nua etc – mas as condições a tornam cada vez mais concretamente objeto dos homens. Já
Marta é caracterizada como uma mulher exibicionista e promíscua, traída pela própria vaidade. Seu problema
é ser “burra, vulgar e vaidosa”, conforme a adjetivação que lhe faz o protagonista Marcelo. Essa caracterização
atinge o ápice na cena em que a moça está prestes a sofrer um estupro coletivo e se mostra lisonjeada quando
solicitada a falar de sua performance na televisão.
31
Encontra-se na Cinemateca Brasileira o argumento/roteiro, de três episódios: “A publicidade”, de Lauro
César Muniz; “A herança”, de Sérgio Porto e “A livre iniciativa” de Person. “A publicidade” focaliza uma agência
publicitária ironicamente denominada P.C.B. – Publicidade Comercial Brasileira –, que recebe encomenda
para realizar de última hora uma campanha que retrate operários otimistas. Os diretores da agência são todos
estrangeiros e só falam em inglês, sendo que o processo criativo na verdade vêm de um simples assistente. Já
A livre iniciativa” previa uma espécie de continuação de São Paulo S.A, com o empresário Arturo, arauto do
nacional-desenvolvimentismo, em crise e incitado a vender sua fábrica a uma multinacional. Depois de muito
relutar, coagido pelas despesas de sua amante Ana, vende a fábrica e o lme se encerra com os dois dançando
alegremente ao som do “iê iê iê”.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 185
estavam fortemente inseridos. A heterogeneidade do grupo de sete diretores
é outro elemento que caracteriza a ambiguidade do projeto – entre a crítica
e a adesão – sendo signicativo que o episódio de John Herbert, que foi
concluído, tenha posteriormente integrado a pornochanchada de três
episódios, Cada um dá o que tem (Adriano Stuart, John Herbert, Sílvio de
Abreu, 1975)
32
.
Todos os nossos “paulistas do entre-lugar” tiveram passagens
longas ou breves pela publicidade (Roberto Santos, Luiz Sérgio Person,
Sérgio Muniz, Francisco Ramalho Jr. e Renato Tapajós) e/ou pela televisão
(Roberto Santos, Luiz Sérgio Person, Sérgio Muniz, Renato Tapajós, João
Batista de Andrade e Maurice Capovilla) e valeram-se de seus contatos no
show business para a realização de lmes críticos a esse universo (O episódio
de Roberto Santos para As cariocas foi lmado num estúdio da então
nascente TV Globo; Bebel é inserida nas lmagens reais de uma campanha
publicitária da Lynx Film etc). Trata-se, portanto, de uma crítica feita
de dentro, por aqueles que a um só tempo condenavam e colaboravam
para edicar a indústria cultural no Brasil, lançando luz à lógica perversa
de um sistema do qual dependiam para trabalhar. Permeados por essas
contradições, os lmes dos “paulistas do entre lugar” nem sempre são
esteticamente vigorosos ou “revolucionários” como são os mais notáveis
do Cinema Novo, mas, é interessante observar que, ainda que seja em
nível apenas temático, eles estão em sintonia com alguns lmes europeus
da época, notadamente da produção de Godard dos anos 1960, no que
tange à abordagem do universo da indústria cultural, da publicidade, da
sociedade de consumo e da reicação das relações sociais
33
.
Elemento também signicativo que aparece nessa lmograa
paulista é a gura do operário e/ou a problemática do trabalho. É fato
que a presença dos trabalhadores urbanos é bastante escassa nas telas
brasileiras ao menos até os anos 1970, como bem notou Bernardet (1980)
que assinala, por exemplo, a ausência de tematização cinematográca das
grandes greves e mobilizações operárias dos anos 1950 e início dos 1960.
Entretanto, é curioso encontrar na lmograa paulista, por exemplo, o
registro da realização de União (Capovilla, 1962 – inconcluso), único
32
O episódio de Herbert chamou a atenção do produtor da Boca do Lixo Aníbal Massaini por seu conteúdo erótico.
Trata-se da história de um engenheiro da Transamazônica que, em seu retorno à “civilização”, encontra-se com uma
prostituta que recebe por cartão de crédito. Sobre Os sete pecados capitalistas, ver Herbert ([197-]) e Moraes (2010).
33
Sobre a produção de Godard nos anos 1960, ver Annie Goldmann (1974) e Esquenazi (2004).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
186 |
lme do núcleo paulista do CPC. Assim como o lme inacabado do
CPC carioca, Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1962-
1964/1981-1984), União foi lmado com os trabalhadores encenando
os próprios papéis. Com concepções semelhantes acerca da função
político-pedagógica do cinema, esses lmes se diferenciam por o primeiro
se voltar às lutas camponesas no nordeste e o segundo aos operários
ligados ao sindicato da construção civil em São Paulo.
34
Outro lme
importante é o documentário Viramundo (Geraldo Sarno, 1964)
35
que,
em moldes “sociológicos
36
trata das condições de vida dos migrantes
nordestinos que chegam à São Paulo em busca de trabalho. No referido
São Paulo S.A o operário não é gura central – apenas uma cena focaliza
operários quando estes estão humilhadamente escondidos no banheiro
sob ordens do gerente Carlos, que buscava evitar que scais trabalhistas
descobrissem os funcionários sem registro – porém o lme aborda com
centralidade o trabalho, que desempenha papel fundamental nos dilemas
do protagonista.
37
O também mencionado Vozes do medo tem entre seus
díspares episódios alguns que tangenciam a temática do trabalho, como
Caminhos, documentário sobre jovens retratados nas las por emprego,
no juizado de menores, em programas de auditório, trabalhando no
comércio, vendendo jornais, limpando para-brisas nos faróis, etc; e
Aquele dia 10, narrativa ccional sobre operários da construção civil em
dia de pagamento. E, de fato, é nos anos 1970 que proliferam lmes
34
Sobre União ver depoimento de Capovilla em Mattos (2006, p.46-48).
35
Viramundo integra ao lado do já citado Subterrâneos do futebol de Capovilla, Memória do cangaço (Paulo Gil
Soares) e Nossaescola de samba (Manuel Horácio Gimenez) o primeiro ciclo de lmes produzidos pelo produtor
paulista omas Farkas. Os quatro médias-metragens formam o longa Brasil Verdade lançado em 1968. Embora
Geraldo Sarno não componha o nosso conjunto de “paulistas do entre lugar” – o cineasta baiano xou-se
posteriormente no Rio – citamos aqui Viramundo como um exemplo da lmograa paulista pelo fato do lme
ter sido realizado em São Paulo com participação direta dos “paulistas do entre-lugar” (Sérgio Muniz fez a
produção, Capovilla participou do som direto e Batista e Ramalho Jr. foram assistentes nesses primeiros lmes
produzidos por Farkas).
36
Cf. “Omodelo sociológico ou a voz do dono(Viramundo)”, Bernardet (2003, p. 14-39).
37
É emblemática a cena do monólogo interior de Carlos, transitando a pé e apressadamente pelo Viaduto do
Chá: “Recomeçar, trabalhar, mil vezes tentar ser um homem. Trabalhar com Arturo, esquecer Ana, apagar
Luciana. Não lembrar-se senão do trabalho, das cinquenta obrigações diárias. Lembrar-se somente das mil
chateações diárias do trabalho. Lembrar-se de uma engrenagem, e mais outra, e mais outra, e mais outra! De uma
engrenagem e depois de um eixo que devem ser entregues dentro do prazo estabelecido. Mil vezes recomeçar.
Recomeçar de novo. Recomeçar sempre. Esquecer Ana, apagar Luciana. Lembrar-se das cinquenta obrigações
diárias do trabalho. Recomeçar. Recomeçar. Aceitar. Aceitar. Aceitar! Recomeçar, recomeçar... Aceitar!Aceitar!!”
– sua voz ecoa pela cena num encadeamento maquínico, em ritmo duro e entrecortado, enquanto a montagem
do lme alterna as imagens do personagem caminhando rapidamente entre outros passantes apressados com
as imagens das engrenagens fabris em funcionamento, associando-se a situação de Carlos à lógica estrutural do
capitalismo industrial.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 187
com essa temática – o que não é exclusividade do cinema paulista, como
mencionamos, mas nele se destaca. No documentário Fim de semana
(Renato Tapajós, 1976) há uma problematização de embasamento
marxista na abordagem da condição dos trabalhadores que, em seus dias
de folga, não descansam para trabalhar na (auto)construção de suas casas.
Pedreira (1973); Bóias Frias (1975) e Vidreiros (1975), documentários
curtos de João Batista de Andrade para a televisão, abordam as categorias
de trabalhadores explicitadas nos títulos e o longa de cção Doramundo
(João Batista de Andrade, 1977) coloca em tela trabalhadores ferroviários.
No nal da década, os dois cineastas aproximam-se das mobilizações
operárias, dando origem a uma série de lmes, como os documentários
de média-metragem Greve! (1979) e Trabalhadores, presente! (1979) de
Batista e os curtas e médias-metragens de Tapajós em parceria com o
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema:
Acidente de Trabalho (1977); Trabalhadoras metalúrgicas (codirigido com
Olga Futemma, 1978); Teatro Operário (1979); Greve de março (1979)
que se somam ao longa documentário Linha de montagem (Tapajós,
1981), com reexões a posteriori sobre as greves metalúrgicas da virada
da década de 1970 para 1980. Tapajós pretendia realizar ainda o longa
de cção O silêncio das máquinas que trataria do movimento operário do
nal dos anos 1970, relacionando-o com a greve de Osasco de 1968, mas
não obteve viabilização nanceira para seu roteiro, ao contrário de Batista
que conseguiu apoio da estatal Embralme para o nanciamento de O
homem que virou suco, lme que também se relaciona com o contexto das
mobilizações operárias
38
.
Pode-se considerar que O homem que virou suco encerra um
ciclo dessa fração do cinema paulista, assim como seu contemporâneo
Bye bye Brasil de certa forma fechou o ciclo do Cinema Novo
39
. No
lme de João Batista também estão em questão o encontro do sertão
38
No nal dos anos 1970, vários paulistas conseguiram obter recursos da Embralme após se organizarem em
torno da APACI (Associação Paulista de Cineastas), fundada em 1975, e pressionarem publicamente a estatal.
Alguns lmes, como O homem que virou suco, contaram com recursos do Polo Cinematográco Paulista que
previa a conjunção de aportes da Embralme e do governo de São Paulo.
39
Embora autores como Ramos (1983, p.147-158) e Johnson (1984, p.83-90) apontem Bye bye Brasil como
uma espécie de ponto de chegada do Cinema Novo, como um lme que assinala o percurso do próprio
movimento, sabemos que essa armação é um tanto arriscada se pensarmos que caminhos diferentes foram
apresentados, por exemplo por Glauber Rocha e Leon Hirszman que chegam ao m da década com dois lmes
bastante signicativos: A idade da terra e Eles não usam black-tie, respectivamente, que merecem uma análise
mais detida para a qual não há espaço aqui.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
188 |
e da cidade, da cultura popular e dos meios de comunicação de massa,
do arcaico e do moderno, do nacional e do internacional, porém essa
abordagem é realizada por vias bastante distintas. Tal como no lme de
Cacá, o protagonista é o artista popular, no caso um poeta nordestino
igualmente em confronto com a cidade moderna que rejeita sua cultura.
No entanto, neste lme, mais do que a dinâmica da cultura popular
desaada pela cultura importada e pelos meios de comunicação de massa,
ganha centralidade a questão do trabalho e da reicação na metrópole
capitalista, assinalando uma linha de continuidade com a lmograa que
viemos analisando.
No lme de Batista, Deraldo, poeta popular que vive da venda
de seus folhetos de cordel e é criticado por ‘não trabalhar”, é confundido
com Severino, “operário-símbolo” que assassinara o patrão. Obrigado
a fugir e vender sua força de trabalho, como carregador de sacas de
batata, operário da construção civil, empregado doméstico e operário
na construção do metrô, rebela-se em cada um desses empregos.
No mote central da confusão de identidades está a reicação dos
migrantes, cuja mão de obra é indistintamente explorada, negando-
lhes a individualidade e as características culturais, num processo que
visa torná-los uma massa trabalhadora indiferenciada. No contraponto
entre Deraldo e Severino estão duas concepções de trabalho: para o
primeiro, o sentido de realização humana que ele alcança produzindo
seus livrinhos de cordel; para o segundo, uma tentativa de se integrar
à sociedade capitalista industrial, esforçando-se para aprender um
novo ofício, produzindo o quanto pode, sendo subserviente à chea
e agindo contra as reivindicações dos colegas, o que não impede que
ele seja despedido, motivando-o a assassinar o patrão. Investigando a
trajetória de Severino e ouvindo os relatos dos colegas do metalúrgico,
Deraldo amplia sua consciência sobre as formas de organização coletiva
e, quando volta a vender os livrinhos de cordel em praça pública, não
é apenas a história de Severino que ele conta em verso, mas a de todos
os trabalhadores espremidos até virar suco nas engrenagens da mesma
cidade-máquina” outrora retratada por Person.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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I   
  
  o Poder Jovem
A J P
iago B. Castro
1
Introdução
Arthur José Poerner
2
publicou seu livro de maior impacto sobre
o movimento estudantil – O Poder Jovem – em 1968, momento de grande
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Unicamp. Mestre em Ciências Sociais
(UNESP FFC-Marília). E-mail: thiagobc.castro@gmail.com.
Arthur José Poerner, nascido em 1939, escritor e jornalista carioca. Bacharel em Direito, com pós-graduação
em Comunicação e autor de diversos livros, entre os quais Argélia: o caminho da independência (Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1966) e O Poder Jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros
(Civilização Brasileira, 1968), livro que foi proibido pela ditadura após o AI-5, relançado clandestinamente
pelo movimento estudantil, em 1977, e reeditado em 1979 pela editora Civilização Brasileira. No jornalismo,
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p193-212
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
194 |
tensão política e de expressivas agitações culturais de caráter oposicionista
ao regime ditatorial. O crítico literário e colega de Poerner no Correio da
Manhã e Folha da Semana, Otto Maria Carpeaux, ao escrever uma resenha
do livro O Poder Jovem, publicada na Revista Civilização Brasileira, edição
19/20 de 1968, localizou a obra no interior de uma onda de manifestações
estudantis que ocorreram em várias partes do mundo. Conforme Carpeaux:
E essa obra sai no momento em que o movimento estudantil
explode e adquire força inesperada no Brasil e no Japão, na
Argentina e no México, no Uruguai e nos Estados Unidos, na
França e na Espanha, na Polônia e na Itália, na Alemanha e na
Holanda e assim em diante. A atualidade do assunto – e do livro – é
um fato. (1968, p. 303).
Esta obra pode ser apresentada a partir de uma tripartição,
que articula: 1) movimento estudantil – mais precisamente por meio da
inuência da União Nacional dos Estudantes (UNE) sobre a organização
dos estudantes no Brasil – 2) ditadura militar – pela via da censura e
repressão ao movimento estudantil e ao próprio livro em questão –, e 3)
cultura – tomando por base a emergente indústria cultural, sobretudo o
crescente e presente mercado editorial.
O livro em questão conseguiu preencher uma lacuna na
bibliograa sobre movimento estudantil ou história dos estudantes no
Brasil. Nas palavras de Antônio Houaiss que escreve uma apresentação
da obra: “Constitui uma tentativa de balanço do movimento estudantil
brasileiro, da colônia aos nossos terríveis dias.” Ora, O Poder Jovem se situou
num momento de crescente importância dos movimentos estudantis no
contexto global, contudo buscando tornar factível uma potencial tomada
de consciência do movimento estudantil brasileiro em consonância com
os demais em outros países, mas inserido nos limites da realidade social,
política, econômica e cultural do Brasil nos anos 1960.
começou em 1962, no jornal do Commercio; foi diretor do semanário Folha da Semana (1065/66) e redator
do Correio da Manhã (1963/70), no Rio de Janeiro. Exilado, após sua prisão em 1970, foi redator e locutor
da Voz da Alemanha, de Colônia, e correspondente do Pasquim (Rio de Janeiro) e revista Istoé (São Paulo), na
Alemanha. De volta ao Brasil, em 1984, foi editor de cultura da TV Globo e colaborador da revista Cadernos do
Terceiro Mundo, d’O Estado de São Paulo, d’O Pasquim e do Jornal do Brasil. Resumo da trajetória prossional
de Arthur José Poerner retirado de seu blog. Disponível em: http://arthurpoerner.blogspot.com.br/. Acesso em:
20 out. 2014.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 195
Poerner conduziu sua narrativa de forma linear, com apoio de
documentos e depoimentos de ex-integrantes da UNE e se apropriou
da história do movimento estudantil, podendo observar de que modo
se deu a participação política dos estudantes no decorrer da história do
Brasil. O livro está dividido em duas partes, “antes da UNE” e “a partir
da UNE”, sendo que esta é a que nos interessa para ns de análise.
Muitos dos acontecimentos descritos pelo autor ao longo desta segunda
parte são do conhecimento de Poerner pela própria proximidade que ele
possuía com os estudantes, uma vez que, era ainda muito jovem quando
redigia O Poder Jovem. Tal proximidade esteve também expressa no
esforço desempenhado por esses mesmos estudantes ao se organizarem
para relançarem clandestinamente a referida obra em 1977, se expondo a
uma situação de risco que era vivida por militantes de oposição ao regime
militar. Portanto, torna-se signicativo compreender a forma pela qual
as memórias do movimento estudantil deslindadas por Poerner zeram
constituir um instrumento de luta e resistência dos estudantes em diferentes
fases da composição e recomposição do movimento estudantil no Brasil.
E, da mesma forma, colocar em realce a maneira pela qual a própria UNE
aderiu à narrativa elaborada por Poerner, tornando-o um dos principais
intelectuais porta-vozes do movimento estudantil nacional.
rePreSentõeS IntelectuaIS: tIPoS e mItoS
De acordo com Ianni (2002, p. 185) os caminhos de uma reexão
que visa uma “‘compreensão’ ou [...] ‘explicação’, pode levar consigo algo,
ou muito, de cção. A realidade transgura-se em conceito e categoria ou
metáfora e alegoria. Estas metáforas são frequentes, às vezes inevitáveis.”.
As representações são desdobramentos das metáforas que
intelectuais estabelecem sobre seus objetos de análise, e elas incorrem
em linhas de pensamento ou “famílias” de explicações do Brasil. São nas
palavras de Octávio Ianni (2002, p. 179)
[...] várias inquietações, interrogações ou mesmo interpretações
que se elaboram nesses e em outros estudos e narrativas, destinados
a esclarecer a história, descrever as épocas, explicar as raízes ou
descobrir as perspectivas do país, sociedade nacional, povo ou
Estado-Nação.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
196 |
Ainda de acordo com Ianni (2002) no imaginário desses
intérpretes, de onde emergiram essas “linhas de pensamento”, há pelo
menos cinco grandes narrativas que visam compreender e explicar o Brasil.
Resumidamente elas compreendem as respectivas noções: 1) Estado como
constituidor da sociedade civil, sendo esta pouco organizada e dispersa.
Dessa forma, o Estado promove as mudanças e as direções, ou seja, tutela
a sociedade em conformidade com as elites; 2) o Brasil como amplamente
determinado pelos movimentos dos mercados externos, do colonialismo
ao globalismo; 3) país marcado pelo patriarcalismo que se desenvolve no
curso dos séculos de escravismo, possuindo diversos desdobramentos. Isso
numa contínua associação, mescla ou confusão entre o público e o privado;
4) a singularidade de ser uma “democracia racial”, a despeito dos séculos
de escravismo e na forma como são tratados prática e ideologicamente o
índio, o negro, o estrangeiro etc., um verdadeiro “laboratório racial”, e 5)
um “lusotropicalismo” que fez o Brasil se destacar através de uma “história
incruenta”, de “revoluções brancas”, na qual desenvolve-se a “democracia
racial” (p. 179).
Inúmeros escritores, historiadores, sociólogos e ans, dos séculos
XIX e XX com maior ênfase, tornaram-se representativos das mencionadas
interpretações. São alguns poucos exemplos: Silvio Romero, História
da Literatura Brasileira; Joaquim Nabuco, O Abolicionismo; Euclides da
Cunha, Os Sertões; Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma;
Mário de Andrade, Macunaíma; Caio Prado Jr., Evolução Política do Brasil;
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil; Florestan Fernandes, A
Revolução Burguesa, e outros tantos citados no artigo de Ianni.
Entretanto, o ponto fulcral da análise realizada por Ianni no artigo
em questão é o aoramento, a partir das interpretações fornecidas, de outra
linha interpretativa: “Trata-se da visão do Brasil, de sua história, como uma
constelação de tipos, com alguns dos quais se constroem tipologias, sendo
que, em alguns casos, desdobram-se em mitos e mitologias.” (IANNI,
2002, p. 180).
Em tese, a perspectiva tipológica não está desvinculada de alguma
grande família de interpretação, pelo contrário, surge em consonância a
elas. Ianni (2002, p. 180) esclarece esse processo ao armar que:
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 197
A perspectiva ‘tipológica’ focaliza a realidade social ou a história do
país em termos principalmente culturais, com nítidos ingredientes
psicossociais. E focaliza a sociedade, a política e a cultura, seja
em termos de estudos de ciências sociais, seja em termos de
narrativas literárias, como setores ou círculos que podem ser
tratados separadamente, nos quais haveria dinâmicas próprias,
certa autonomia. É como se a história do país se desenvolvesse
em termos de signos, símbolos e emblemas, guras e gurações,
valores e ideais, um tanto ou muito alheios às relações, processos e
estruturas de dominação e apropriação com os quais se poderiam
revelar mais abertamente os nexos e os movimentos da sociedade,
em suas distintas congurações e em seus desenvolvimentos
históricos.
Os “tipos” povoam o pensamento brasileiro por meio da literatura,
das artes plásticas e se multiplicam nos estudos de Ciências Sociais, por
vezes “conferindo a alguns tipos e mitos outras e novas modulações.
(IANNI, 2002, p. 181). A m de decifrar as novas modulações faz-se
necessário traçar uma “cartograa” dos tipos e mitos no decorrer da nossa
história e observar o clima intelectual, no qual um determinado tipo ou
mito reaparece ou é inventado. Para Ianni (2002, p. 182), “são frequentes
e às vezes, notáveis os tipos que se criam e recriam, taquigrafando a difícil
e complexa realidade.”.
Tomando por base as denições expostas por Ianni acerca dos
tipos e mitos, torna-se plausível a hipótese, na qual Arthur Poerner, ao
redigir e publicar O poder jovem no “calor” dos acontecimentos pós-golpe
de 1964, tenha recorrido a uma análise sobre a história do movimento
estudantil marcada por sua identicação/aproximação com os próprios
estudantes, bem como com as diretrizes político-ideológicas que
orientaram o movimento, criando um “tipo” explicativo para descrever os
estudantes brasileiros e o seu processo de luta contra a repressão militar.
A representação de um “despertar espontâneo” presente na tipicação que
Poerner elabora em seu texto constata-se quando descreve, por exemplo, a
atuação voluntarista dos estudantes na resistência que estes protagonizaram
logo após o golpe que depôs João Goulart da Presidência da República.
Flávia Santana (2007, p. 61) reforça essa ideia esclarecendo que, de fato,
o movimento estudantil representou uma força não desprezível: “Após
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
198 |
o golpe, o movimento estudantil passou a ser considerado pelo regime
uma das maiores forças oposicionistas, pela sua capacidade de mobilização
popular e suas manifestações reivindicatórias anteriores.” (SANTANA,
2007, p. 61).
Por outro lado, há que se considerar que não se tratou apenas de
uma politização espontânea do ME, haja vista o crescimento do número
de matrículas no ensino superior entre os anos 1960 e 1980, oferecendo,
portanto, uma base numérica signicativa para o movimento
3
, aspecto
importante ignorado por Poerner. Seguindo a mesma lógica, se houve
numa parcela do movimento estudantil e até mesmo de outros setores
sociais, a expectativa de que outros setores como o Partido Comunista
Brasileiro (PCB), se posicionassem de imediato quanto ao golpe de 1º de
abril, ela certamente caiu por terra juntamente com o projeto aliancista
do Partido. O PCB, que nos campos político e cultural representava uma
força signicativa, além de estar presente nas instâncias de representação
da UNE, não chegava a um caminho comum entre seus membros e não
era apenas na cúpula do Partido que havia divergências sobre os rumos a
seguir. Para Daniel A. Reis Filho (1990, p. 48):
As bases estudantis, envolvidas nos primeiros movimentos sociais,
ganhavam autonomia. Fugiam ao controle das instâncias formais,
estabeleciam relações entre si, inclusive no plano interestadual,
mantinham contatos e recebiam inuências da POLOP e do PC
do B.
Na prática isso representou o rompimento com as tradições
partidárias, cujos membros sempre dependiam de ordens da cúpula.
As bases estudantis, portanto, “formavam um veio próprio desde 1965:
a dissidência.
4
(REIS FILHO, 1990, p. 49). Em suma: “O PCB [...]
atropelado pelos acontecimentos de março de 1964 e preocupado em
garantir a integridade mínima dos seus quadros mais importantes,
Em estudo apresentado em 2003, o Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino Superior, mostrou que: “O ensino
superior universitário e não universitário se ampliou de maneira extraordinária, desde o início do regime, em
1965 até o nal da década de 1970. Em cerca de quinze anos, o número de matrículas no ensino superior passou
de 95.691 (1960) para 1.345.000 (1980), sendo os anos de 1968, 1970 e 1971 os que apresentaram as maiores
taxas de crescimento” (2003, p. 17). Ao analisar especicamente o ensino público a pesquisa constata: matrícula
no setor público aumentou, nesse período, de 182.700 a 492.000, ou seja, teve um incremento de cerca de
260,0%. (DURHAM, 2003, p. 18).
 Daniel Aarão Reis Filho se refere à DG (Dissidência da Guanabara) que culminou na formação do MR-8.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 199
só conseguiu ter uma posição ocial diante do golpe em 1965, com a
‘resolução de maio’ do Comitê Central.” (NAPOLITANO, 2011, p. 29).
A maneira como Poerner destacou a gura do jovem juntamente
com a sugestão da existência de um “poder jovem” vem ao encontro das
concepções que inserem a juventude em representações socioculturais e na
sua interação com as instituições.
A juventude é caracterizada a partir de um registro tríplice: o
reconhecimento de que se trata de uma fase da vida, a constatação
de sua existência como força social renovadora e a percepção de
que vai muito além de uma etapa cronológica, para constituir
um estilo próprio de existência e de realização do destino pessoal.
(AUGUSTO, 2005, p. 6).
A maneira como Poerner destacou a gura do jovem, juntamente
com a sugestão da existência daquilo que ele denomina de “poder jovem”,
vem ao encontro das concepções que interpretam a juventude a partir
de representações de caráter sociocultural para denir, unilateralmente,
sua interação com as instituições. Disso se depreende que o trabalho de
Poerner se situou na constatação de que a juventude possui uma força
social renovadora, pois lhe foi atribuído algum tipo de poder. Como
mencionado anteriormente, o modo como se construiu a tomada de
consciência dos estudantes do Brasil em consonância com os de outros
países, tal como descreve Poerner, supõe de antemão a inata capacidade de
organização das massas estudantis no exercício da consciência democrática.
Noutras palavras, O poder jovem serviu-se de uma narrativa laudatória e
endossou uma memória construída sobre a resistência estudantil repleta de
saudosismo, e que se desdobrou em simplicações sobre as reais atividades
desenvolvidas pelo movimento estudantil. Segundo Poerner:
A história da UNE e do movimento estudantil brasileiro se
confunde, inteiramente, a partir de abril de 1964, com a história da
repressão às liberdades e da intervenção estrangeira no Brasil. De um
lado a Lei Suplicy de Lacerda. De outro, o Acordo MEC-USAID.
Os estudantes, que vinham de conquistas como a duplicação de
vagas na Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio
de Janeiro) – para isso, o Presidente Goulart liberara, em 10 de
março de 1964, uma verba de dois bilhões de cruzeiros (velhos)
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
200 |
–, passaram, automaticamente, à condição de elementos de alta
periculosidade para a segurança nacional, aos olhares ‘eternamente
vigilantes’ das novas autoridades. Ser estudante equivalia a ser
subversivo’. (POERNER, 1979, p. 218).
Com esta passagem, Poerner nos passa a ideia de que os
estudantes sofreram intervenções muito rígidas em suas organizações,
o que consequentemente teria levado sua entidade máxima – União
Nacional dos Estudantes (UNE) – à clandestinidade. Mais do que isso, na
concepção de Poerner, que analisou os eventos não por uma ótica crítica,
de distanciamento de seu objeto, mas imbuído de sua memória e vivência,
o trecho transcrito remete à tentativa de desarticulação dos estudantes
universitários, no interior de seu próprio espaço de representação intelectual
e prossional, a universidade. Isso porque estes estudantes, dentre os quais
emergiram muitos e importantes intelectuais nas décadas de 1960 e 1970,
eram o elo entre as classes populares e as classes médias e até elite no Rio de
Janeiro e em São Paulo. A memória social colocou os anos 1964 até 1968,
como sendo de relativa liberdade de expressão. Para Marcos Napolitano
(2011, p. 45) a explicação para isso é que o regime possuía de imediato, duas
questões a serem sanadas. A primeira era perseguir os quadros do regime
deposto; e a segunda era quebrar os elos existentes entre ativistas políticos
culturais de esquerda e os movimentos sociais – movimento estudantil, por
exemplo. Inclusive quando a contestação se amplia, principalmente entre
a classe média, a começar pelo movimento estudantil que se rearticulou
em 1966, passando a realizar vastas passeatas nas ruas (NAPOLITANO,
2011, p. 39).
O regime buscou conter o suposto avanço da ideologia comunista
entre os universitários e assegurar o controle administrativo das universidades
públicas. Para tal objetivo, no governo do primeiro presidente militar após
o golpe, general Castello Branco, foi promulgada a Lei Suplicy de Lacerda
5
tendo enorme repercussão entre os estudantes. “No primeiro ano de
mandato de Castello, circulavam pelo país notícias que informavam sobre
o envio de uma mensagem do ministro da Educação, Suplicy de Lacerda,
“Suplicy, o mais catastróco ministro da Educação na história da pedagogia nacional, fora até o início de 1964
um modesto reitor da Universidade Federal do Paraná. Viu-se catapultado ao gabinete pelo general Ernesto Geisel,
que conhecera anos antes, quando servia em Curitiba. Chamava de ‘escorpiões’ e agitadores e pequenos ladrões
transformados em líderes os estudantes que faziam passeatas contra o governo.” (GASPARI, 2002, p. 225).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 201
ao Congresso sugerindo a extinção da UNE
6
[...]” (SANTANA, 2007,
p. 62). Para Arthur Poerner o ponto positivo da iniciativa do ministro
Lacerda foi que ela provocou a rearticulação dos estudantes após o golpe e
que a lei em questão teria sido o fator determinante para isso. Conforme
Poerner: “A Lei Suplicy de Lacerda apresentou, contudo um grande mérito:
o de aglutinar, na luta pela sua revogação, o movimento estudantil, que
atravessava, naturalmente, uma fase de reorganização, como consequência
da perseguição aos seus líderes.” (POERNER, 1979, p. 231).
João Roberto Martins Filho atesta a reorganização do movimento
estudantil no imediato pós-golpe de 1º de abril. Segundo ele: “É possível
dizer, assim, que, logo nos primeiros meses, o regime deparou-se com uma
oposição difusa e não-articulada no meio estudantil, que se aprofundaria
depois com a luta contra a ‘Lei Suplicy.’” (1986, p. 97). Martins Filho
explicou sobre as diculdades que a UNE enfrentava para se articular
enquanto unidade de representação dos estudantes, a razão para isso
viria das disputas entre a esquerda e os liberais pelo controle da entidade.
Com isso, “[...] as primeiras manifestações de descontentamento do
meio universitário diante das medidas anunciadas pelo governo militar
originaram-se das entidades que haviam escapado ao fechamento e à
repressão, porque haviam se colocado tacitamente a favor da intervenção
militar.” (MARTINS FILHO, 1986, p. 108).
Martins Filho, portanto, conseguiu acrescentar esta informação
que não é esclarecida no livro de Poerner, a de que uma parcela de
estudantes liberais apoiou o golpe. Para Saldanha de Oliveira, Arthur
Poerner ignorou essa questão, porque “esse comportamento não condiz
com a ‘tradição estudantil.’” (OLIVEIRA, 2005, p. 51). Mais do que isso,
Alberto Saldanha de Oliveira (2005, p. 51), conclui sua tese seguindo ao
encontro das hipóteses aqui lançadas acerca dos “tipos e mitos”. Escreve
este autor:
A armação da UNE e o relato sobre sua trajetória ao longo das
várias gerações, em particular o construído por Arthur Poerner, foi
se construindo em um mito político. O relato de ‘O Poder Jovem
Em 1964 a UNE foi extinta (lei nº 4464). Dessa forma, a entidade deveria ser substituída pelo Diretório
Nacional dos Estudantes e as Uniões Estaduais pelos Diretórios Estaduais (DEES), extinguindo as entidades
estudantis autônomas por outras vinculadas ao regime. A Lei Suplicy de Lacerda concedia a ao Ministério da
Educação a convocação dos Diretórios Nacionais e Estaduais, ferindo o princípio da autonomia estudantil (cf.
GASPARI, 2002, p. 226; POERNER, 1979, p. 231).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
202 |
muniu várias gerações de lideranças estudantis de argumentos
materiais e simbólicos, capazes de reforçar o sentimento de
identidade e ‘pertencimento’ a uma ‘idade de ouro”. A ‘reconstrução
feita por Poerner demonstra que o projeto histórico da UNE guarda
um modelo exemplar’, a defesa dos interesses ‘nacionais, populares
e democráticos’.
Essa ideia de uma “idade de ouro” é reforçada por Poerner ao
encerrar o capítulo em que trata dos efeitos do AI-5 sobre o movimento
estudantil. De acordo com Poerner, o “Poder Jovem” foi reduzido ao
silêncio pela ditadura ou em alguns casos desencadeado o processo de luta
armada entre os estudantes. E concluí:
[...] fenômeno grave para todos os brasileiros, quaisquer que sejam
suas posições políticas, por haver representado o trágico sacrifício de
uma geração heroica e idealista – talvez a melhor e a mais completa
das gerações com que o País contou em toda a sua História de
quase meio milênio. (POERNER, 1979, p. 307).
Outro ponto acrescentado por Martins Filho se refere aos dados
estatísticos que serviram como uma das bases de sustentação do argumento
anteriormente transcrito de Poerner. Ele inicia seu questionamento da
seguinte forma:
Para ns de análise, interessa sobretudo destacar que o repúdio
à política autoritária para a universidade se constitui num ponto
comum ao conjunto da categoria estudantil, logo depois do golpe.
Desse modo, embora não atingisse as proporções que a historiograa
do movimento tem lhe atribuído, o plebiscito realizado pela UNE
em março de 1965 expressaria uma signicativa condenação da
‘Lei Suplicy’ no seio do estudantado. Por outro lado, a luta contra
a legislação autoritária se conguraria na motivação inicial para
a reaglutinação política e organizativa do movimento, durante o
ano de 1965 e, nesse quadro, criam-se as condições iniciais para
a gradativa retomada de inuência da esquerda. (MARTINS
FILHO, 1986, p. 116, grifo nosso).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 203
E o mesmo autor, em nota de rodapé, termina seu raciocínio
conrmando:
Num total de 24.513 estudantes universitários da Guanabara,
foram consultados 7.584 e os votos contrários à lei atingiram 80%.
Estes dados estão em BRITO, Sulamita. ‘A juventude universitária
e a política’ em Cadernos Brasileiros, Rio, julho-agosto de 1968, nº
48, pp. 5-19. Aí, Sulamita arma que a diculdade de conseguir
dados [...] poderia ser atribuída ‘ao receio dos estudantes em
fornecer dados exatos da amplitude ou debilidade do movimento
estudantil’. Há notícias sobre os resultados de São Paulo em O
Estado de S.Paulo, edições de 26 a 31 de março de 1965. O repúdio
à lei coincidiria assim com o primeiro aniversário do golpe. Por
outro lado, os dados divulgados pela UNE e citados por Poerner,
segundo os quais 92,5% dos universitários de todo o país votaram
contra a lei parecem bastante improváveis. (MARTINS FILHO,
1986, p. 116, grifo nosso).
A questão que se coloca a partir dessas assertivas de Poerner e
da precedente análise é a mesma postulada por Claudia Gusson, na
qual a autora questiona: “A militância do movimento estudantil estaria
relacionada à condição de ser jovem ou de ser estudante?” (2008, p. 53).
De que maneira isso poderia ser respondido à luz da compreensão que
Poerner possui sobre a militância estudantil no período após o surgimento
da UNE, especialmente nos anos que se sucederam ao golpe de 1964?
O debate proposto lança mão de duas ideias que irão defender a
primazia da condição de estudante para a militância estudantil, relegando
a um segundo plano a condição juvenil, caracterizada na noção de
poder jovem”. “A primeira apresenta o estudante sempre na condição de
disponibilidade de engajamento político para a defesa das causas sociais. A
segunda encara a atuação reivindicatória do estudante como um trampolim
social de suas aspirações de classe de origem.” (RESENDE apud GUSSON,
2008, p. 57).
A primeira tendência é bastante criticada por alguns historiadores
e sociólogos que estudam ou estudaram a atuação do movimento estudantil
brasileiro em diferentes contextos, uma vez que relaciona a participação
política dos estudantes com a defesa das classes desfavorecidas. Gusson,
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
204 |
resgatou de Martins Filho e Daniel A. Reis Filho as posições críticas frente
à esta tendência. Segundo a autora, Martins Filho explica que a visão de
um estudante como agente defensor das camadas menos favorecidas não
passou de uma “mitologia” estudantil, e que é preciso superar a ideia de que
o estudante no Brasil sempre esteve ao lado do povo brasileiro em todas as
suas lutas. Reis Filho, segundo Gusson segue o mesmo raciocínio e lembra
que a militância estudantil não está predestinada a ser questionadora,
tampouco revolucionária. Logo, ambos os autores colocam a origem de
classe como inuência fundamental na atuação estudantil entre os jovens
(GUSSON, 2008, p. 57).
A segunda tendência considera os estudantes não como
defensores das camadas pobres da sociedade, mas sim como representantes
de uma atuação política que resulte na sua ascensão social, independente
da classe social da qual originam. Gusson atenta às possíveis confusões
que tal interpretação pode ocasionar. Isso posto, novamente nos conduz
a Martins Filho, além de Marialice Foracchi, para os quais a ênfase da
análise concentra-se na origem de classe, mas considerando que “existe o
risco de entender o engajamento dos estudantes em manifestações políticas
como atitudes oportunistas e individuais.” (GUSSON, 2008, p. 58). No
entanto, inseridos numa coletividade, os anseios particulares são superados
no intuito de concretizarem um projeto maior. “A militância estudantil é
uma luta de caráter coletivo, esboça uma ruptura da ordem vigente e não
se trata mais da tentativa isolada de ascensão social, através da educação,
de indivíduos menos ou mais pobres.” (RIDENTI apud GUSSON, 2008,
p. 59).
Algumas passagens d’O Poder Jovem asseguram o posicionamento
de Poerner na defesa dos estudantes como combativos, defensores de ideais
nobres em defesa do povo, fazendo reforçar a posição de Martins Filho de
que houve uma mitologia estudantil. Algumas das passagens transcritas
de Poerner, nas quais ele defendeu a ideia do “poder jovem” em face dos
acontecimentos da época serão analisadas.
A interpretação que Poerner ofereceu em sua obra deve ser
problematizada no contexto de referência da origem de classe dos estudantes
universitários, a “pequena burguesia ascendente” ou simplesmente “nova
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 205
classe média
7
(FORACCHI, 1965, p. 221). Ridenti acena na mesma
direção, pois se deve compreender a especicidade da situação de estudante,
esta que se compõe como “transitória entre as classes de origem dos
universitários e as classes que ajudarão a constituir depois de formados.
(RIDENTI, 1993, p. 141). O movimento da sociedade de classes é o
limiar das lutas estudantis, isso faz do movimento estudantil um indicador
dos problemas da sociedade como um todo.
A “nova classe média” está, para Foracchi (1965), numa relação
de dependência, com as demais classes, e isto sugere que sua ação seja
ambivalente. Por um lado, ao ser assalariada a classe em questão se vincula
às camadas populares, compartilhando reivindicações, mas de modo
tímido; por outro lado, também se vincula às camadas dominantes, em
termos de dependência e subordinação. Desse modo incapacitando-a para
uma tomada de posição que exija ruptura. No seio do ME – movimento
estudantil – o projeto dos agentes nele envolvidos se norteava com vistas
à carreira. Poerner não busca ampliar a ideia de que o ME se empenhou
intensamente na luta dos setores médios pela abertura da universidade, o
que ele manifesta no trecho a seguir corrobora com tal concepção e serve
de parâmetro para uma análise mais abrangente:
É claro que o universitário poderia dizer: ‘Bem, pelo menos
o meu diploma está garantido [referindo-se aos dados ociais
apresentados a respeito do número de crianças e adolescentes que
conseguem se formar no ensino básico e dos que ingressam nas
universidades, além dos investimentos nestas instituições] Quanto
menos formados haja, menor a concorrência. Em terra de cego,
quem tem olho é rei’. A atitude da maioria deles, no entanto, tem
sido diversa. Eles recusam o título de príncipes de uma sociedade
subdesenvolvida, lutando para que todos tenham acesso ao ensino,
e enfrentam, por conseguinte, a força poderosa dos que precisam
de um Brasil atrasado. (POERNER, 1979, p. 302-303).
Marcelo Ridenti procura ir além e vincula a luta dos estudantes
ao caráter classista da sociedade brasileira, a passagem que se lê acima
considera que “[...] o acesso à universidade seria parte do projeto de ascensão
Foracchi (1965, p. 221) esclarece em nota a origem da expressão por ela utilizada: Lewis Corey. “e Middle
Class”, in. Bendix and Lippsett, Class, Status and Power, p. 373; C. Wright Mills, e White Collar, e American
Middle Classes; David Riesmann, e Lonely Crowd – A Study of the American Changing Charater.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
206 |
social dentro da ordem capitalista, projeto da classe média, ou pequeno-
burguesa.” (RIDENTI, 1993, p. 144). Não obstante, por melhores que
sejam as intenções de Poerner ao descrever a preocupação dos estudantes
– que possuem o mérito de terem lutado em prol da educação – não se
esclarece os movimentos que a luta em questão fomentou na sociedade
brasileira. De forma não acintosa o que as camadas médias estavam
fazendo era estimular a ascensão social por meio do acesso à universidade,
alimentando a ilusão de elevar-se socialmente, entre os setores menos
favorecidos, fazendo assim oposição à ideologia proletária. Ridenti
esclarece que a ilusão da ascensão social via estudos é compartilhada por
todos os segmentos sociais despossuídos. Alimentar essa ilusão é requisito
para a manutenção da ideologia burguesia na sociedade, uma vez que: “A
ordem social capitalista é a única que os despossuídos conhecem – nada
mais legítimo que procurem ascender dentro dela.” (RIDENTI, 1993, p.
144). A luta pela ascensão social com caráter coletivo assumido pelo ME
nos anos 1950/60, apesar de esboçar uma ruptura, ainda se mantem com
objetivos visados dentro da ordem capitalista
8
. O que esta luta expressa,
de fato, é uma busca conjunta por direitos de cidadãos integrais, que fazia
parte das aspirações dos despossuídos (RIDENTI, 1993, p. 144). Ora,
a própria luta especíca da classe média pela reforma e defesa do ensino
não era alheia aos interesses imediatos dos trabalhadores. Grande parte
disso que se chamou de “classe média ascendente” era formada pela classe
trabalhadora, ainda que não sejam proletários propriamente ditos. Ridenti
(1993, p. 144) ressalta que “lutas populares por mudanças econômicas,
políticas, educacionais e sociais em geral dentro da ordem capitalista,
não são necessariamente revolucionárias, mas fazem parte do processo
de constituição da classe trabalhadora.”. Na ótica de Foracchi ao reagir
contra a inuência conservadora sobre as universidades “osestudantes
estão tentando desatar os vínculos que prendem sua camada de origem
a este tipo de ingerência conservantista e indicando, de certo modo,
as potencialidades ‘revolucionárias’ da situação de classe em que se
encontram.” (FORACCHI, 1965, p. 224).
Sendo assim, compreendendo que Arthur Poerner não explorou
a história do movimento estudantil à luz das teorias sociais e históricas,
É possível dizer, portanto, que a ruptura é ideológica, mas não estrutural. Anal, os estudantes coincidem
discursos com os despossuídos, mas estruturalmente eles continuam no processo de ascensão socioeconômica,
onde as classes desfavorecidas não têm lugar, a exceção dos discursos dos próprios estudantes.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 207
visando esclarecer os vínculos que não saltam aos olhos, presentes nas
relações sociais que ele buscou nos expor, é que se identica seus próprios
aspectos de tipicação sobre os estudantes. Por não colocar em evidência
a perspectiva de uma sociedade de classes, Poerner não traz ao leitor as
aspirações de uma classe média que ascendera há pouco. De acordo com
Ridenti (1993, p. 145):
Assim, pode haver muito de misticação ao se falar em aspiração
de acesso ao ensino superior da parte das camadas médias. Tal
aspiração é do conjunto dos trabalhadores na busca de direitos
integrais do cidadão. (Naturalmente, a identicação de cada um
como cidadão e sujeito de direitos tem um caráter ocultador da
divisão da sociedade de classes).
Outro aspecto de considerável relevância que pode ser
identicado no livro O Poder Jovem de Arthur Poerner, e que se ana
com o debate colocado anteriormente sobre condição juvenil e condição
estudantil, além das questões políticas e ideológicas que a obra apresenta, é
a correspondência entre a própria juventude – tema central da obra – e os
intelectuais, remetendo ao autor do livro analisado.
Poerner descreveu, por exemplo, a participação dos estudantes
secundaristas em contraste com a dos universitários. Este autor se referiu
aos secundaristas como sendo a “linha dura” do movimento estudantil,
possuidores de tamanha disposição que chegava a assustar os universitários.
Arthur Poerner elencou – a partir de sua própria concepção – que estes
secundaristas não tinham os medos que tinham os universitários:
Além disso, eles não padeciam do medo de se ‘queimar’, que
acometia muitos universitários quando, às vésperas da formatura,
começam a se preocupar com a conquista de um lugar ao sol na
sociedade que tanto combateram [...] demonstrava também, no
mais alto grau, o caráter de generosidade e sadia inquietação da
juventude brasileira. (POERNER, 1979, p. 286).
Apesar de saudá-los, Poerner pouco explorou a participação dos
secundaristas na luta estudantil dos anos de vigência do regime militar.
Com isso, faz-se realmente difícil determinar o grau de envolvimento deste
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
208 |
grupo e suas “armas” para lutar contra um regime repressor. Sem uma
direção política estabelecida ou um arcabouço teórico que inspirasse as
formas de resistir, estes estudantes poderiam receber a pecha de “rebeldes”,
com base em suas ações.
Leandro Konder em artigo publicado na Revista Civilização
Brasileira em 1967 trata do tema da rebeldia em sua relação com os jovens
e de que maneira os intelectuais estariam envolvidos na questão. No artigo
intitulado A rebeldia, os intelectuais e a juventude, Konder (1967, p. 136)
alerta que “a rebeldia, por si só, não basta para que a conduta humana se
torne libertária: é preciso que o inconformismo se exerça na direção certa.”.
O que chama atenção no artigo de Konder é o modo como ele
procurou dar conta das dimensões políticas da rebeldia e da
ação revolucionária. Leva em conta o fenômeno da inserção dos
estudantes no debate político e o papel do intelectual em fornecer
os instrumentais necessários para essa luta; isso, para que o
jovem pudesse exercer a resistência consciente de sua ação e não
simplesmente estagnar permanentemente no estágio da rebeldia,
que segundo Konder, não possuía legitimidade política alguma.
(CZAJKA, 2015, não paginado).
É neste ponto que Poerner se localiza, juntamente com seu livro,
pois resgatou todos os fatos e os ordenou temporalmente. O jornalista
Arthur Poerner para alcançar o público pretendido por ele necessitava
colocar sua obra em evidência, colocá-la no mercado. A representação
social de intelectuais, como Poerner, no âmbito da cultura – através de suas
publicações, fosse na forma de livros ou no seu ofício de jornalista – viu-se
atrelada à estrutura de mercado. O crescimento do número de publicações
durante a primeira metade da década de 1960 deveu-se, sobretudo, a esse
aspecto sócio-político importante: o fortalecimento de espaços de debates
– aqui expresso pela editora Civilização Brasileira que publicou a obra em
questão – a m de dar continuidade aos projetos outrora propostos no
interior de instituições desmanteladas pelo golpe. Por outro lado, havia
o aspecto sociocultural que permitiu fazer daqueles espaços o “lugar” das
discussões e debates antes em curso, como caracteriza Czajka (2010).
Portanto, o livro de Poerner trouxe consigo a característica de fomentador
de um debate até aquele momento pouco explorado. Contudo, o valor de
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 209
uma instituição estava garantido na sua existência concreta e na sua atuação
efetiva na sociedade; um livro, uma revista ou um jornal representa esse
valor no processo de recepção dos seus leitores, não à toa o livro recebeu
censura já na sua publicação.
É nesse ponto que Konder entra no mérito da função social dos
intelectuais – uma preocupação que aigia não somente o autor,
mas todo conjunto da intelectualidade de esquerda que se via
num processo complexo de organização das formações culturais
de oposição e a sua inserção no espaço público ou no mercado.
Konder, nesse caso, não se preocupava com essa inserção, mas
com a maneira pela qual os intelectuais deveriam contribuir para
a orientação (como agentes de uma vanguarda revolucionária)
daqueles que, na segunda metade da década de 1960 promoviam
mudanças signicativas nas estruturas políticas e culturais da
sociedade brasileira, a saber, os estudantes. (CZAJKA, 2015, não
paginado, grifo do autor).
Esta preocupação de Konder a qual Czajka se refere em seu artigo
ainda pode ser observada nos parágrafos nais do texto publicado pela
Revista Civilização Brasileira (RCB).
conSIderaçõeS fInaIS
Poerner não se atenta para as mesmas preocupações de Konder,
ao menos isso não acontece em seu livro. O Poder Jovem exibe um caráter
panetário por parte de um jovem jornalista, opositor ao regime instituído
em 1º de abril de 1964 e entusiasta do ME. Este autor, tanto pelo livro
quanto pela sua participação em projetos editoriais jornalísticos nos anos
de 1960, inseriu-se numa rede de intelectuais oposicionistas que naquele
contexto contribuíam sistematicamente nos debates de assuntos pertinentes
ao Brasil.
É inquestionável que o referido autor não se preocupou em pôr em
perspectiva as ações de resistência dos estudantes, contribuindo, assim, para
que estas ações, bem como seu livro fossem reicados, manipulados ainda
hoje para a criação de um personagem com poderes intrínsecos, capazes
de transformações dentro e fora das universidades. Portanto, O Poder
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
210 |
Jovem, sendo o primeiro estudo sistematizado e aprofundado da história
dos estudantes brasileiro, consagra um novo personagem “tipologizado
e miticado do pensamento brasileiro, o jovem estudante. Personagem,
que não havia recebido um tratamento acadêmico, pormenorizado de sua
inserção na vida política e cultural do Brasil
Ainda hoje o livro escrito por Arthur Poerner na década de 1960
encontra ressonância e amparo dentre membros da UNE, haja vista a
utilização de uma memória de combatividade e o uso político do passado
com a nalidade de dar coesão à entidade. No intento de reconstruir a
identidade da UNE entre 1978 e 1979, Angélica Müller (2010, p. 206)
assevera que: “O resgate da ‘memória’ da entidade, nesse momento,
serviu de respaldo para revalorização da UNE. Serviu também como
uma estratégia de denição da nova identidade do movimento através
da memória
9
. Isso aponta para a decisiva inuência que Arthur Poerner
e O Poder Jovem tiveram nos folhetins e revistas surgidos de DCEs e CAs
remontando a história da UNE. Considerado a “Bíblia” do movimento
estudantil – inclusive em pronunciamentos de militantes atuais da UNE
em eventos que relembraram os 50 anos do golpe civil-militar de 1964 –
Poerner (1979) descreve “de forma a enaltecer os agentes do movimento
e exalta o ME, “rearmando que a UNE e os estudantes são ‘possuidores
de um projeto nacional e progressista que, ao longo da história do país,
sempre se fez presente.’” (p. 207).
A obra em questão nos ofereceu, portanto, elementos importantes
para se reetir sobre a memória construída em torno do ME. A primazia
da condição de ser jovem e estudante é a tônica da narrativa presente nO
Poder Jovem. Foi a partir disso, que o autor determinou as manifestações
de repúdio e resistência dos estudantes contra o regime militar. Também a
condição estudantil desses jovens envolveu a condição social dos mesmos,
portanto, além de serem jovens, eles também eram estudantes e estavam
vinculados a um ambiente que lhes proporcionavam as práticas de
resistência, no caso em questão, a universidade.
Entretanto, foi possível desmisticar a gura do estudante como
o agente responsável por sempre lutar em prol das causas populares. A
origem de classe do estudantado inuenciou de forma substancial na sua
 Müller faz referência a RICOEUR, Paul. La mémorie, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 211
representação frente à universidade, ao ME e aos caminhos a seguir após a
conclusão da graduação.
Esses indícios que possibilitam uma interpretação da obra O
Poder Jovem e de seu autor sob a perspectiva formulada por Ianni a despeito
da manifestação dos tipos e mitos no pensamento brasileiro, merecem uma
análise aprofundada, sobretudo quando a utilização desses tipos ou dos
mitos se direcionam ao “esvaziamento político” de fatos que se julga pouco
relevantes.
Por m, a forma pela qual Poerner conduz a premissa do “poder
jovem” no interior da sua obra, atesta a necessidade que o autor tem de
construir uma determinada imagem do movimento estudantil na década
de 1960. O texto traz imprecisões conforme demonstra Martins Filho, mas
isso não invalida a obra e aquilo que ela representa enquanto instrumento
intelectual de uma resistência à ditadura de 1964. Imprecisões que revelam
as escolhas que seu autor fez no momento da composição de uma identidade
social e política do estudante e do movimento a que pertencia. E ainda:
como o próprio Poerner ver-se-á representado no uxo dos acontecimentos
e dos fenômenos de resistência estudantil, não apenas como observador,
mas sobretudo como um ator que fala dos e para os estudantes.
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| 213
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Vitor Machado
1 Introdução
Como 2019 é o ano em que se completam 55 anos de um dos
episódios mais tristes, marcantes e nebulosos da sociedade brasileira, devido
ao golpe civil-militar, o qual culminou com a implantação de uma ditadura,
que perdurou por 21 anos (1964-1985), é que pretendemos discutir neste
texto, tomando como referência o pensamento sociológico de esquerda no
Brasil, as consequências do processo de transformação pelo qual passou a
https://doi.org/10.36311/2021.978-65-5954-056-3.p213-236
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
214 |
agricultura brasileira, com a implementação da política agrícola, desenvolvida
pelo regime militar a partir do início da década de 60.
A proposta em elaborar esse recorte histórico dá-se pelo fato de
observarmos que a proposta militar, em acelerar o desenvolvimento do
capitalismo no campo, com base na modernização da agricultura, também
denominada por alguns estudiosos como Revolução Verde, provocou um
movimento muito intenso de expulsão e expropriação da terra de pequenos
e médios agricultores e de trabalhadores rurais e cujas consequências desse
processo, permanecem latentes em nossa sociedade até os dias de hoje.
Neste sentido, cumpre recordar aqui que, a proposta em
utilizarmos como referência o pensamento sociológico de esquerda no
Brasil, para explicarmos as teias de relações que envolvem a questão agrária
brasileira, deve-se a nossa intencionalidade em demonstrar, dialeticamente,
o desenrolar dos processos sociais, ocorridos durante a ditadura militar
instaurada. Tal pensamento nos ajudará a compreender também a biograa
e a história e as ligações das duas numa variedade de estruturas sociais,
pois “[...] todo estudo social bem considerado - exige uma amplitude de
concepção histórica e um uso pleno de materiais históricos.” (MILLS, 1965,
p. 71). Assim, acreditamos não correr risco algum de nos aproximarmos,
conforme Mills (1965), daqueles sociólogos que abandonaram a história
como forma de compreender a realidade e, por isso, a veem como algo
estático e já não compreendem mais seus processos de mudança, pois estão
fora da realidade histórica.
Isso signica que a história é o movimento de criação e superação
das contradições em processos de síntese, que nascem já se fragmentando
em novas contradições.
Os indivíduos históricos vivem uma vida que é a própria expressão
do desenvolvimento das forças produtivas nesta sociedade. “A forma como
os indivíduos manifestam a sua vida reete muito exatamente aquilo
que são. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições
materiais da sua produção.” (MARX, 1980, p. 19).
Assim, ocorre uma diferenciação dos agentes no processo
produtivo, pois a propriedade privada, responsável direta pelo processo
de dominação social de uns homens sobre outros, dene a divisão social
do trabalho e determina a divisão entre proprietários e não-proprietários.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 215
Temos que nesse processo, a ideologia dominante é constituída pelas ideias
dos dominadores. Estes têm a necessidade, para legitimar sua dominação,
de apresentar seus interesses não como interesses particulares, mas como
interesses gerais, de toda a coletividade.
Fundamentalmente, para muitos sociólogos, a divisão da sociedade
e a sua estruturação, são para as Ciências Sociais, um problema ainda não
bem resolvido e talvez por isso essas discussões estejam desaparecendo
nas dissertações e teses mais recentes da área. Incapazes de compreender
exatamente como se dá a relação entre as estruturas e a luta de classes, tais
sociólogos chegam a negar esse motor da história. O fato de ser essa luta
muito evidente no campo hoje, nos animou a continuar utilizando esse
referencial teórico para compreender a questão agrária no Brasil.
Segundo Marx, só existe uma ciência, ou seja, a ciência da história
e dentro desta, uma divisão entre a história da natureza e a do homem.
Tal história deve ser vista como uma sucessão de fatos no tempo, como
um movimento dotado de força interna, criador de acontecimentos. Isso
quer dizer que a história deve ser vista “[...] como um processo dotado de
uma força e de motor interno que produz os acontecimentos. Esse motor
interno é a contradição.” (CHAUÍ, 1984, p. 36).
Desta forma, pretendemos demonstrar a partir de uma totalidade
histórica, como José de Souza Martins, Caio Prado Júnior, Otavio Ianni,
Bernardo Sorg e outros explicam quais as consequências da política agrária
desenvolvida pelos militares e os efeitos do modelo econômico implantado
por eles, para o desenvolvimento do campo.
2 o BraSIl agrárIo e a PolítIca de modernIzação da agrIcultura
como Projeto mIlItar de deSenvolvImento do caPItalISmo no
camPo
Quando tratamos de questões que envolvem a política agrária
no Brasil e os efeitos dela decorrentes, precisamos reportarmo-nos a um
período histórico relevante, que é o pós-1964. Nesta época, como já
dissemos anteriormente, os militares, por meio de um golpe e apoiados por
uma parcela signicativa da sociedade civil, assumiram a administração do
governo federal, instituíram uma ditadura que perdurou por vinte e um
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
216 |
anos na história política do Brasil, promovendo, diversas transformações
na agricultura brasileira.
Foram justamente essas mudanças no campo, impostas pelo
regime militar, que contribuíram de forma signicativa para, dentre
diversos motivos, favorecer de um lado os grandes grupos empresariais,
que passaram a investir na agropecuária e, do outro, para a proletarização
e maior empobrecimento das camadas sociais menos favorecidas da
zona rural.
Conforme Fernandes (1996), o regime militar, na incumbência
de desenvolver o capitalismo no campo, não mediu esforços para isolar
parcialmente o poder dos coronéis, históricos representantes do latifúndio
no Brasil, e ainda procuraram conter o avanço dos movimentos sociais
no campo.
O fato é que o coronelismo
1
, por várias décadas, inuenciou
de forma signicativa o processo político brasileiro, o qual se consagrou,
ainda nos primeiros anos da República do Brasil, como um sistema de
troca de favores e clientelismos. Porém, os coronéis representavam uma
ameaça à política agropecuária que os militares pretendiam desenvolver
pois, enquanto detentores das relações de poder estabelecidas no meio
rural, não tinham o interesse em dividi-las com outros grupos capitalistas
interessados em investir na agricultura brasileira. Não foram permissivos
a essa política de desenvolvimento capitalista no campo proposta pelos
militares e, por isso, foram por eles isolados.
A efetiva implementação da política econômica de
desenvolvimento agrária realizada pelos militares entre 1965 e 1985,
conseguiu de um lado enfraquecer o poder dos coronéis, mas do outro
possibilitou um fortalecimento dos movimentos de resistência surgidos no
campo (MARTINS, 1984).
Todavia, conforme argumentam Martine e Garcia (1987), as
modicações promovidas na estrutura agrária brasileira datam dos anos
30, com o processo de substituição de importações de bens de consumo
e, dos anos 50, com a implantação de um extenso parque industrial,
O coronelismo se caracterizou pelo rígido controle dos chefes políticos sobre os votos do eleitorado,
constituindo os “currais eleitorais” e produzindo o chamado “voto de cabresto”. Isto é, o eleitor e o seu voto
cavam sob tutela dos coronéis, que deles dispunham como coisa sua (MARTINS,1981, p. 46).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 217
que pretendia acelerar as substituições das importações de bens de
capital no Brasil.
Porém, só a partir de 1964, devido a implantação de uma nova
visão de desenvolvimento adotada pelos militares, que a transformação das
estruturas agrícolas foi realmente efetivada. Tendo uma visão ideológica
de modernização conservadora, os militares passaram a promover a
industrialização do país, que passava em 1968, por uma grande ascensão
econômica, provocada pelo “milagre brasileiro”, período em que a economia
brasileira entrou num ciclo de desenvolvimento acelerado (SINGER,
1977). Tal fenômeno permitiu aos militares formar alianças, ou privilegiar
as formas modernas de produção agrícola. Para isso, implementaram
uma política de desenvolvimento agropecuário que produziu uma grande
modernização do campo, o que resultou em alguns efeitos relevantes para
a sociedade campesina.
Segundo Silva (1996), a constituição do processo de modernização
da agricultura deve ser analisada a partir de três momentos signicativos,
para nos ajudar a compreender os rumos do desenvolvimento agrícola da
sociedade brasileira.
O primeiro momento deu-se com a constituição dos Complexos
Agroindustriais
2
na década de 70, quando passa a existir uma intensa
relação entre a agricultura e os diversos setores industriais que produzem
para ela. Os Complexos Agroindustriais só vão se consolidar de fato,
através do capital nanceiro, com a implementação, pelo governo federal,
de uma política de crédito e nanciamento direcionada à agroindústria.
Essa política inicia-se em 1965, com a criação do FUNAGRI (Fundo
Geral para a Indústria e Agricultura) e de outros incentivos scais criados
no decorrer da década de 70. As relações intersetoriais entre agricultura e
indústria só se tornaram intensas e estáveis quando o setor de máquinas e
insumos se instalou no país. Nas palavras de Silva (1996), isso signica que
a integração entre a agricultura e a indústria, com sua imposição tecnológica
sobre a produção agrícola, só foi possível na medida que se pôde assegurar a
O ponto fundamental que qualica a existência de um complexo é o elevado grau de relações interindustriais
dos ramos ou setores que o compõem. É verdade que desde o nal do século XIX já havia segmentos agrícolas
com fortes relações com indústrias processadoras (óleos, açúcar, por exemplo); mas quando se fala em complexo
agroindustrial, a qualidade dos vínculos intersetoriais também importa, tratando-se agora de relações de
dominação (técnica econômica e nanceira) do segmento industrial sobre a parte agrícola do complexo (SILVA,
1996, p. 31).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
218 |
oferta de equipamentos, insumos e variedades agronômicas compatíveis ao
desenvolvimento técnico imposto à agricultura brasileira. Como resultado
dessa política de desenvolvimento dos Complexos Agroindustriais, observa-
se que a agricultura passa a estar subordinada à dinâmica da indústria,
tornando-se mais forte as relações intersetoriais e intensicando-se a união
entre a base técnica e o uxo de capitais entre a indústria e a agricultura.
O segundo momento da modernização do campo surge ao
passo em que a indústria vai conquistando o seu espaço na dinâmica da
atividade agrícola, marcando assim, a industrialização da agricultura.
Esse momento pode ser entendido como o período em que a indústria
torna-se essencial para o processo de modernização agrícola, pois é ela que
passa a comandar e controlar todo o processo de mudança na base técnica
necessária à produção rural, o que só foi possível com a instauração da
indústria pesada no Brasil. Para Martine e Beskow (1987), devido a esse
processo, a agricultura passou a ter papel muito signicativo poi, além
de produzir matérias-primas e alimentos, também se constituiu como um
importante mercado para o parque industrial produtor de máquinas e
insumos agrícolas. Esse processo de mudança na agricultura brasileira, em
relação a períodos anteriores, demonstra que ela passou a crescer em função
das demandas da industrialização agrícola. Isso quer dizer que este setor da
economia nacional sofreu uma intensa transformação, na proporção que
toda a produção agrária no Brasil vai ser determinada pelas necessidades
de matérias-primas para a agroindústria. Essa situação vai inuenciar
diretamente o desenvolvimento e a expansão do mercado da indústria
de bens de capital, pois o setor industrial passa a produzir máquinas e
insumos agrícolas para atender as demandas proporcionadas pelo mercado
da agroindústria. De acordo com Silva (1996), a partir desse momento, o
desenvolvimento da agricultura passa a depender da dinâmica da indústria,
pelo fato de grande parte de seus setores integram-se a ela, promovendo
um funcionamento conjunto.
Evidentemente que esses dois momentos pelos quais passou a
agricultura brasileira, possibilita armarmos que ela sofrera uma grande
transformação em toda a sua dinâmica a partir dos anos 60, mais
precisamente, a partir de 1965, quando se desenvolveu um novo padrão
agrícola decorrente das mudanças na estrutura produtiva em função
das novas articulações com a economia global. A efetivação desse novo
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 219
modelo agrícola, implementado durante o regime militar, que integrava,
consideravelmente, a produtividade agrícola ao parque industrial nacional,
só concretizou-se, no entanto, devido à internacionalização de um pacote
tecnológico conhecido como “Revolução Verde
3
, introduzido no Brasil
em meados dos anos 60. Esse pacote chegou num momento importante,
pois ele havia se aperfeiçoado, no que diz respeito às pesquisas voltadas
para a melhoria das sementes e combinações de fertilizantes. Sua adoção
só foi possível porque o parque industrial brasileiro foi sucientemente
capaz de atender às exigências técnicas que o pacote determinava. Ainda
conforme os autores referendados, além desse fator interno, externamente
a agricultura brasileira foi beneciada pela alta dos preços de alguns
produtos comercializados no mercado internacional, o que favoreceu o
cultivo de determinadas culturas, fazendo com que passassem a ter maiores
demandas de mercado ao sentirem-se atraídas pelos preços praticados no
mercado exterior (MARTINE; GARCIA, 1987).
Em outros termos, a Revolução Verde, através do seu discurso
ideológico de modernização agrícola, favoreceu apenas o interesse do
grande produtor agrícola, detentor de capital, em detrimento do pequeno
produtor que, sem o capital necessário para investir no seu processo
de produção agrário não possuía as mínimas condições de competir.
Submetiam-se às condições do mercado capitalista, permitindo prevalecer
as leis do capitalismo selvagem que promovem a exclusão social. Além
disso, realmente o que se viu a partir daí, foi uma dependência ao mercado
externo, provocada por esse modelo de desenvolvimento, o qual exigia dos
produtores agrícolas um aumento na produção e na produtividade. Tal
situação provocou o m de algumas culturas e a substituição por outras que
possuíam melhor preço no mercado externo, exigindo uma reestruturação
da produção agrícola interna (MARTINE; BESKOW, 1987).
Assim, o resultado desse avanço da industrialização no campo
foi a transformação do processo de trabalho agrícola, que vai atingir
diretamente o trabalhador rural. As mudanças na base técnica, a
necessidade de se reorganizar o processo produtivo, a falta de trabalhador
especializado e a substituição do trabalho humano pela máquina vão
Revolução Verde foi um pacote tecnológico composto de sementes melhoradas, mecanização, insumos
químicos e biológicos que prometia viabilizar a modernização de qualquer país, acelerando a produção agrícola
através de sua padronização em bases industriais. Implantado na agricultura norte-americana desde a década de
30. Esse modelo foi parcialmente aplicado no mundo inteiro. (MARTINE; BESKOW, 1987, p. 20).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
220 |
fazer surgir no campo a mão-de-obra assalariada. Nesse contexto, surge o
proletariado rural que, estando vinculado às fases especícas do processo
produtivo, manejando máquinas ou exercendo trabalho manual, acabam
tendo seu trabalho subordinado diretamente ao capital, os quais,
dicilmente conseguirão, pelo fruto do seu trabalho, livrarem-se dessa
submissão ao capital e não criarão formas autônomas de controle do
processo produtivo (SILVA, 1996).
Já o terceiro momento de modernização da agricultura, surgiu num
contexto marcado pela integração do capital nanceiro ao setor agrícola.
Através de uma política especíca de nanciamento agrário, o Estado
pretendia promover, sustentar e dinamizar a modernização da agricultura.
O problema é que a partir dos anos 80, a política de créditos que
o Estado até então adotava, é substituída por um sistema de nanciamento
geral, atraindo a atenção de setores do mercado nanceiro que passam a
nanciar o setor de produção agrícola. Porém, essa política só contribuiu
para promover ainda mais a desigualdade no campo, possibilitando
a concentração de riqueza – terras e capitais – nas mãos dos grandes
proprietários rurais.
Conforme Ianni (1984) à medida que se desenvolvia e se
intensicava a industrialização e a urbanização, a agricultura acabava por
se submeter, cada vez mais, às exigências do capitalismo industrial, levando
o trabalhador rural a estar diretamente vinculado a essa nova dinâmica,
expropriando-o da terra e tornando-o um proletário. Além disso, Martine
e Garcia (1987), demonstram ainda que a oferta de empregos estáveis foi
reduzida drasticamente, fazendo surgir trabalhadores rurais temporários,
categoria dentre os trabalhadores agrícolas que mais cresceu durante a
década de 70.
Podemos dizer que o trabalhado temporário é um grande
indicativo do processo de expropriação que demonstra o desenvolvimento
do capitalismo no meio rural na medida em que o trabalhador temporário é
representado não só pelos despossuídos de terras, mas também por pequenos
proprietários, posseiros, parceiros que se assalariam temporariamente em
algumas épocas do ano, devido à impossibilidade de reproduzirem suas
necessidades satisfatoriamente (SILVA, 1981).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 221
Na verdade, o que ocorre, é a subordinação da agricultura à
indústria e a do campo à cidade pois, ao mesmo tempo em que ocorre o
desenvolvimento das classes sociais do campo, multiplicam-se e consolidam-
se os laços entre as classes sociais rurais e urbanas. Esse acontecimento
faz com que as classes de origem urbano-industrial, preferencialmente
burguesia industrial, bancária e comercial acabem por expropriar as classes
dos trabalhadores rurais, as quais são levadas a servir de estoque de mão-
de-obra para as atividades centradas na cidade (IANNI,1984).
Devemos entender, então, que a necessidade de se desenvolver
uma intensa relação da agricultura com o setor industrial e comercial,
provoca uma grande relação de dependência da economia agrícola ao capital
nanceiro e monopolista. Na medida em que esse fenômeno consolida-se,
a proletarização avança, submetendo o trabalho ao capital e promovendo
o desenvolvimento e a redenição do campesinato, do latifundiário,
da burguesia urbano-industrial capitalista e da burguesia nacional e
estrangeira. Nota-se, deste modo, que a dinâmica do desenvolvimento do
capitalismo no campo, provocou um crescente desenvolvimento das classes
sociais rurais, altamente articuladas às classes sociais urbanas.
Por outro lado, Singer apud Ianni (1984), vai chamar a atenção
para o avanço do capitalismo no campo e o grande crescimento da força
de trabalho familiar
4
. Ele considera que esses fatos zeram aumentar os
arrendatários e ocupantes de terras, sendo que o aumento elevado desses
últimos proporcionou o intenso crescimento da agricultura de subsistência.
Ao analisarmos os fatos de maior destaque do processo de
modernização da agricultura no Brasil, vericamos que o Estado teve
uma ação especíca para desenvolver seu projeto modernizante, porém,
nenhuma medida compensatória foi tomada em relação aos efeitos sociais,
econômicos e naturais que tal processo provocou.
Apesar das mudanças na agricultura, o que não se viu, de fato,
foi, por exemplo, a alteração da secular estrutura fundiária, pois o governo
militar continuou garantindo totais e irrestritos benefícios econômicos aos
grandes produtores e proprietários de terras rurais, os quais, apoiavam,
incondicionalmente, sua política agrícola.
Paul Singer observou um aumento no número dos responsáveis pela exploração agrícola, que saltou de 3 337
769 em 1969 para 4 924 019 em 1970. A proporção de arrendatários cresceu de 17,4% para 20,17% e a de
ocupantes de 10,7% para 16,1% (IANNI, 1984).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
222 |
O processo de modernização implantado pelos militares priorizou
a grande propriedade, revelando uma sólida aliança entre essa última e o
capital, o que anulou qualquer proposta para democratizar a propriedade da
terra. Assim, promoveu-se uma política de subsídios scais e nanciamento
da modernização tecnológica a grupos econômicos interessados em se
ocupar da atividade agropecuária no Brasil, iniciando um processo de
modernização tecnológica da agricultura brasileira. O propósito era o de
atender aos interesses produtivos do grande latifúndio e do setor empresarial
que representava o capital internacional, os quais passaram a comercializar a
sua produção com o mercado externo (SILVA, 1982).
A implantação desse modelo procurou estabelecer políticas
de favorecimento somente aos grandes grupos econômicos e grandes
produtores agrícolas, a m de que eles pudessem produzir em larga escala,
a um custo bastante baixo. A intenção era possibilitar a venda dessa
produção ao mercado externo. Nesse caso, o pequeno e médio produtor,
órfãos de uma política agrícola e econômica que não era favorável aos seus
interesses e suas necessidades, continuavam a produzir de forma arcaica e
tradicional, a um custo muito elevado, não tendo as mínimas condições
de competir com o grande produtor. Esse, por sua vez, com o auxílio
da tecnologia no campo, produzia em grande quantidade e a um custo
bem inferior, tornando a concorrência desleal e desigual, eliminando do
mercado o pequeno e o médio produtor.
Assim, muitos trabalhadores são expropriados do trabalho e do
seu meio de produção e, em pouco tempo, acabam contribuindo para
o crescimento e sedimentarização das relações de trabalho assalariado
no campo.
3 a luta Pela terra e a crIação do eStatuto da terra e do
eStatuto do traBalhador rural
Quando falamos da política de desenvolvimento agrário
implementada pelos militares durante os anos em que governaram o
Brasil, as reexões e os estudos elaborados por diversos estudiosos a
respeito do assunto procuram demonstrar, como vimos anteriormente, o
grande esforço desses governantes em desenvolver um capitalismo forte no
campo, que resultou no processo de modernização da agricultura que, se
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 223
por um lado criou uma nova dinâmica na estrutura agrária brasileira, por
outro resultou em sérias consequências sociais para os trabalhadores rurais.
Excluídos da terra, da qual dependiam exclusivamente para sobreviver,
foram transformados em verdadeiros assalariados rurais.
À medida que a exclusão social acaba se estabelecendo no campo
e ali se sedimenta, dá-se início a um processo de tensão na sociedade rural,
que começa a ser visto com preocupação pelas autoridades militares. Essas
tensões, que marcam distintamente os movimentos sociais no campo,
passam a ser combatidas pelo regime militar que tinha como alvo, impedir
a todo custo, o crescimento das lutas camponesas e o fortalecimento
político dos trabalhadores rurais.
Conforme anuncia Martins (1984), a partir de 1964, aqueles
que juntamente com os militares articularam o golpe militar, não estavam
também dispostos a pagar o preço de uma mudança na estrutura fundiária
nacional, a qual se daria pela intensa modicação do regime de propriedade
da terra, exigida incondicionalmente pelos trabalhadores rurais por meio
da reforma agrária.
Desta forma, o Estado militar passa a utilizar-se de diversas
estratégias de combate, desmobilizando os grupos que surgem nos conitos,
desmoralizando-os, condenando-os, prendendo e até mesmo torturando
suas lideranças e os líderes de entidades e instituições que os apoiavam.
Passam também a disseminar uma ideologia capaz de intervir diretamente
na vida da população rural, por meio da criação de instituições e programas
que estavam submetidos diretamente ao controle do Estado.
No início dos anos 60, anteriormente ao golpe militar, o Estado já
se preocupava com o crescimento das lutas sociais no campo, em favor da
reforma agrária. Exemplo disso foi a criação, em 1962, do GETSOP (Grupo
Executivo de Terras do Sudoeste do Paraná), organismo que pertencia à
Casa Militar da Presidência da República e atuava para combater os graves
problemas da luta no campo no Paraná (MARTINS, 1984).
Nesse momento, não podemos deixar também de fazer
referência à criação, em 1963, do Estatuto do Trabalhador Rural. Apesar
de ser considerado uma conquista do trabalhador agrícola, na verdade,
o Estatuto serviu como instrumento de contenção dos conitos sociais
no campo que se estendiam pelo Brasil. Ele passou a tratar as questões
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
224 |
relativas aos vínculos e posses da terra como questões trabalhistas, visto que
os tribunais, na maioria das vezes, ao invés de conceber indenizações pela
terra perdida, concebiam indenizações pelo trabalho nela realizado. Além
disso, o movimento da luta pela terra envolvia diretamente a clientela
eleitoral dos grandes proprietários, que começaram a perder prestígio e a
se enfraquecerem politicamente, ao mesmo tempo que passaram a ver o
próprio direito de propriedade ameaçado pelo avanço da luta pela reforma
agrária. Foi necessário, então, conceber direitos aos trabalhadores rurais
para que tivessem os seus direitos à propriedade mantidos e invioláveis.
Conceber esses direitos era uma garantia de combater a crescente luta pela
reforma agrária (MARTINS, 1986).
Para Gnaccarini (1980) o Estatuto do Trabalhador Rural foi
aprovado por segmentos que desejavam uma mudança nas relações sociais
do campo e tratou de denir as especicidades do trabalho rural, cindindo
o discurso daqueles que lutavam pela reforma agrária. Regionalizou,
também, a luta pela terra, pelo fato de contemplar alguns elementos
substanciais que determinavam as relações no campo e que eram tidos
como bandeiras de luta do movimento reformista.
No entanto, apesar da aprovação do Estatuto do Trabalhador
Rural estender para o campo a proteção legal ao trabalhador rural, visto que
a legislação trabalhista estava direcionada especicamente ao trabalhador
urbano, o documento apresentou diversas falhas na sua elaboração.
Conforme explica Prado Júnior (1979, p. 148), “[...] o Estatuto, na
forma como ele se apresenta, revela claramente a displicência com que foi
elaborado, o que resultou na insuciente informação e preparação de seus
redatores acerca da realidade brasileira.
De acordo com o autor supra citado, por falta de um debate
mais aprofundado das questões centrais de que trata o Estatuto, como por
exemplo, o fato de não se levar em conta as diferentes e aviltantes relações
de trabalho existentes no setor agrário brasileiro, impediu-se, efetivamente,
de se realizar um grande avanço econômico e social da questão fundiária
no Brasil. Porém, o autor avalia que, pelo fato do Estatuto do Trabalhador
Rural ter sido redigido de forma inadequada, no que se refere às relações de
trabalho e exploração no campo, ele revela a falsa ideia de reforma agrária
proposta pelo governo militar, o qual, por meio desse documento, adotou
medidas para a manutenção do latifúndio. Ainda, de acordo com o autor
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 225
em referência, a reforma agrária só se daria na sua plenitude pelo efeito
das lutas reivindicatórias dos trabalhadores empregados e explorados pelo
grande capital rural, que compõem as estruturas do processo de produção
agrícola e determinam as verdadeiras condições sociais e econômicas do
trabalhador rural brasileiro.
Como já foi dito, podemos vericar um grande envolvimento do
Estado, da burguesia nacional e internacional e dos militares com a questão
da luta pela terra no Brasil, antes mesmo do golpe que conduziu esses
últimos ao poder em 1964. Nesse mesmo ano, tal envolvimento torna-se
ainda maior, quando após o golpe, no Governo do General Castelo Branco,
o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Terra. Essa legislação, que
havia sido elaborada meses antes do golpe de estado efetivado por militares
e empresários, representou o interesse desses setores da sociedade, que não
pretendiam realizar uma reforma agrária que viesse a ferir seus objetivos.
Na opinião de Martins (1984), o Estatuto privilegiava o desenvolvimento
e a expansão da empresa rural e se destinava ao empresário, o qual provido
de espírito capitalista, organizava sua atividade econômica com base em
critérios da racionalidade capitalista.
O Estatuto da Terra não propunha a divisão do latifúndio,
mas procurava manter os interesses dos setores capitalistas da sociedade
protegendo e preservando a propriedade capitalista e a empresa rural.
Fernandes (1996) descreve que o Estatuto da Terra originou-se de um
projeto de reforma agrária denido por um grupo de militares e intelectuais
ligados ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e do Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), cujo objetivo era o de impor
uma doutrina ideológica através dos mais diversos meios de persuasão,
necessários para combater os movimentos populares que lutavam em torno
da realização da reforma agrária.
Desta forma, o Estado, através do Estatuto da Terra, manteve
sempre centralizadas as ações referentes às questões agrícolas do país, não
permitindo aos camponeses o acesso a terra. Para Martins (1986), isso se
conrma pelo fato de que o envolvimento dos militares com a questão
agrária foi no sentido de administrar o conito no campo sem impor aos
grandes proprietários o consco de suas terras, pois isso poderia liquidar a
base econômica das oligarquias.
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
226 |
Da mesma maneira, Fernandes (1996) avalia que a reforma
agrária proposta pelo Estatuto da Terra favorecia somente aqueles que
pretendiam criar a propriedade capitalista, excluindo do trabalhador rural
o acesso a terra e a pequena propriedade familiar. Ainda segundo o autor, o
Estatuto da Terra foi utilizado também como estratégia para desmobilizar
os movimentos de luta pela terra. Ao mesmo tempo, porém, tornou-se
contraditório na medida em que propunha a reforma agrária como a
solução mais viável e decente para se resolver os problemas dos conitos
sociais no campo, sem que ela se realizasse.
Durante os anos em que os militares mantiveram-se no poder,
pouco realizaram, em termos de uma reforma agrária que atendesse aos
menos favorecidos. Ao contrário, procuraram dicultá-la o máximo
possível, em nome da aliança com os grandes produtores e detentores do
capitalismo industrial e rural. Tal aliança tornou-se ainda mais forte, a partir
de 1971, com a criação do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária) em substituição ao IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma
Agrária), órgão que havia sido criado pelo Estatuto da Terra e que estava
diretamente ligado a Presidência da República. Por apresentar problemas
de corrupção interna envolvendo funcionários públicos, o IBRA sofreu
intervenção militar e precisou ser substituído. Assim, a nova instituição
(INCRA) passou a vincular-se ao Ministério da Agricultura. Como o
novo órgão sofria enorme inuência dos grandes proprietários de terras
e fazendeiros, mais tarde ele passou para a administração do Ministério
do Interior e, depois, para a Secretaria do Planejamento. Essa trajetória
percorrida pelo INCRA foi muito importante para os empresários rurais e
não signicou somente uma mudança na estrutura burocrática governista.
Ela enfraqueceu a inuência dos grandes fazendeiros sobre a política de
terras que o governo executava, bem como tratou, cuidadosamente, de não
permitir que os pequenos e médios proprietários tivessem acesso a terra.
Assim, Martins (1984, p. 23), diz que “[...] toda a política de
terras vinculou-se aos interesses da política econômica e de estabelecimento
das grandes fazendas nas áreas pioneiras, aos interesses dos grandes grupos
econômicos e não mais dos velhos fazendeiros.
Neste contexto, é importante observarmos que o Estatuto da
Terra propunha a ocupação de terras pioneiras como forma de se resolver
as tensões sociais em algumas regiões do Brasil, iniciando-se, a partir daí, o
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 227
processo de ocupação da Amazônia, uma região considerada pioneira pelo
governo federal e que necessitava ser desbravada.
4 a PolítIca de exPanSão da amazônIa e a vIolêncIa no camPo: a
exPulSão de índIoS e PoSSeIroS
Foi durante o governo militar, precisamente na gestão do General
Costa e Silva (1967- 1969), que se procurou resolver o problema da
questão agrária através de uma política de integração da Amazônia, que
passa a ser incorporada no processo social e nas estruturas das relações
sociais, econômicas e de poder que demandavam a luta pela terra no Brasil.
Nesse momento, principalmente na região norte do Brasil, vários
conitos entre proprietários de terras e trabalhadores rurais se sucederam e
se generalizaram por diversas regiões do país, provocando muitas mortes e
uma violência descabida no campo.
É por isso que, na visão de Martins (1984), a questão da
ocupação da Amazônia, além de ser compreendida como resultado do
desenvolvimento do capitalismo no campo deve ser também entendida e
analisada no contexto da luta pela terra ocorrida em várias regiões do país.
Como os conitos passam a chamar a atenção dos militares,
é através de uma política de ocupação de terras da Amazônia que eles
acreditavam poder resolvê-los. A estratégia por eles utilizada, em propor
naquela região, uma rigorosa distribuição de terras para acabar com os
conitos gerados no nordeste, motivado pela disputa da terra, signicaria
a ocupação dos chamados “espaços vazios”, que se tornariam grandes polos
de desenvolvimento econômico, com o envolvimento das forças armadas.
Com a nalidade de executar essa política, o governo militar
sancionou duas leis que, juntamente com o Estatuto da Terra, tornaram-
se os pilares da questão fundiária naquele momento. Uma dessas leis foi
a Emenda Constitucional número 18, criada em 1965, que concebia
créditos à Amazônia, além de nanciamentos e incentivos scais
5
, a m
de desenvolver essa região do país. Para administrar todos esses recursos
5
A política de incentivos scais para a ocupação da Amazônia consistiu basicamente em conceder isenção de
50% no imposto de renda das grandes empresas estabelecidas em outras regiões, particularmente no sul-sudeste,
desde que tais recursos fossem investidos na região amazônica, na proporção de 75% de capital subsidiado das
novas empresas e 25% de capital próprio (MARTINS, 1986, p. 19).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
228 |
destinados a Amazônia, um ano depois, em 1966, o governo criou a
SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), que se
tornou o principal órgão nanciador da política governista, servindo para
auxiliar os grandes proprietários, empresários nacionais e internacionais
interessados no desenvolvimento da Amazônia.
A outra lei, que como já disse, tornou-se novo pilar da política
de desenvolvimento agrário da Amazônia na década de 60, sancionada no
mesmo ano de criação da SUDAM, tratou de destinar incentivos scais a
todo aquele interessado em empreendimentos orestais no país, resultando
num progressivo aumento dos conitos fundiários. Além dos que já
existiam em diversos estados brasileiros, com a nova lei, outros conitos
passaram a existir também nas áreas de orestamento, reorestamento
e na região amazônica. Tudo isso ocorreu pelo fato do governo militar
estimular a ocupação de terra pelo grande capital. As terras que o governo
destinou aos grandes grupos econômicos para o desenvolvimento do
capital fundiário foram as mesmas que ele havia denido como terras para
o reassentamento dos trabalhadores rurais, expropriados da terra pelas
transformações econômicas e sociais que sofreu a agricultura brasileira. Por
esse motivo, os conitos na Amazônia tornaram-se eminentes.
Para os militares, a política de ocupação da Amazônia pressupunha
que, na medida em que as grandes empresas detentoras do capital nacional
e internacional fossem se estabelecendo no campo, aprofundar-se-ia o
processo de concentração fundiária e aumentar-se-ia a ecácia da produção
agrícola desejada pelo governo. Consequentemente, essa situação forçava
o trabalhador a retirar-se da terra, expulsando-o para a cidade, onde lutava
para sobreviver, através da venda da sua força de trabalho.
Se por um lado os militares não viam alternativas sucientemente
capazes de resolver uma questão social tão grave como a exposta acima, que
envolvia diretamente os trabalhadores rurais pobres, por outro não se pode
dizer o mesmo em relação aos colonos que viviam do trabalho agrícola,
e participavam ativamente dos conitos pela disputa de terras em várias
regiões do país. Isso porque a política militarista previa reassentá-los, o
que signicava, em certa medida, uma intenção em deslocá-los das regiões
dos conitos e torná-los pequenos empresários rurais, pressupondo que
possuíam, enquanto pequenos produtores, um espírito capitalista capaz de
transformá-los.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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Essa dualidade na política fundiária desenvolvida pelos militares,
provocará uma conduta ambígua dos mesmos em relação ao problema da
disputa da terra, não só na Amazônia, mas em diversas regiões do Brasil.
Podemos dizer que os militares, ao promoverem a reforma agrária, criaram
um instrumento de controle das tensões e dos conitos sociais, gerados
pelo processo de desenvolvimento do capitalismo no campo, provocando
a expropriação do trabalhador e a concentração da propriedade da terra e
do capital privado nas mãos dos grandes grupos econômicos. Ao mesmo
tempo, esse mesmo instrumento garantiu o desenvolvimento crescente
da economia agrícola e agropecuária, através dos incentivos scais
proporcionados (MARTINS, 1984).
O problema é que o resultado dessa ambiguidade da política
agrícola multiplicou os conitos fundiários ao invés de atenuá-los,
resultando numa violência sem limites e levando a morte centenas de
pessoas. Contribuiu, ainda, de forma substancial, para a expropriação dos
trabalhadores rurais.
Conforme já discutido, o governo militar acreditava que,
expandindo as fronteiras de regiões inabitadas, poder-se-ia resolver
os conitos de terras provenientes de quase todas as regiões do Brasil.
Para isso, tratou de anunciar a Amazônia como uma região próspera ao
desenvolvimento e à realização da reforma agrária, criando subsídios e
incentivos scais que, controlados pela SUDAM, seriam destinados aos
empresários do grande capital que lá deveriam se estabelecer. Assim,
trabalhadores estimulados pela propaganda ocial, vindos de diversas
regiões do país, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito
Santo e Minas Gerais expulsos pelo latifúndio e os do Nordeste expulsos
também pela seca, iniciaram uma corrente migratória para a Amazônia
em direção à terra prometida e não concedida. Na Amazônia grandes
proprietários apropriavam-se de grandes poções de terras, criando ali o
latifúndio, através da apropriação de terras que foram destinadas a receber
os excedentes populacionais de outras regiões do país.
No entanto, conforme arma Ianni (1978), os conitos na
Amazônia legal, cresceram e multiplicaram-se na mesma proporção do uxo
de empresas e empresários que para lá se dirigiam em busca de novas terras.
Sorj (1980) explica que, no processo de ocupação da Amazônia,
podemos encontrar grupos sociais com interesses bastante distintos. De
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
230 |
um lado estavam os camponeses pobres, principalmente os do nordeste,
que deixavam seu local de origem pensando encontrar na
[...] colonização a possibilidade de armar suas formas especícas
de produção, através da ocupação da terra que permite a reprodução
do trabalho familiar [...]. Por outro, estavam os representantes do
capital que [...] tratava de canalizar em seu favor a mais-valia que
o Estado colocava a sua disposição através de incentivos scais e
da renda fundiária fundadora e institucional que a implantação de
projetos agropecuários possibilitava [...]. (SORJ, 1980, p. 107).
Isso quer dizer que, durante a colonização estabeleceu-se a
formação de uma estrutura estatal que prometia garantir títulos de
propriedade aos pequenos e grandes proprietários. Porém, só os grandes
proprietários conseguiam legalizar suas terras, devido as pressões que
exerciam frente ao governo federal, ou até mesmo por meios ilícitos,
transformando terras devolutas em propriedades privadas.
Para Ianni (1978), além das várias razões até aqui mencionadas,
o rearranjo jurídico da estrutura fundiária na Amazônia, no sentido em
que as terras devolutas transformaram-se em propriedade privada, foram
responsáveis pelo grande aumento da violência no campo.
Ao estar concentrada nas mãos dos proprietários do capital
nacional e internacional, a terra foi transformada em mercadoria, adquiriu
valor de troca e foi colocada no mercado para reproduzir o capital da grande
empresa e dos grandes grupos econômicos. E tudo isso, foi estimulado e
protegido pelo poder do Estado.
Esse processo de violência no campo envolve tanto a violência
privada, que é aquela praticada por jagunços e pistoleiros, como a violência
estatal, legitimada e praticada por policiais. Na maioria das vezes, essas
duas formas de violência são postas em prática para acelerar o processo de
apropriação privado da terra, sua transformação em mercadoria, conforme
a exigências do grande capital (IANNI, 1978).
Nas regiões mais interioranas da Amazônia, A ordem pública
esteve frequentemente subordinada ao poder privado. Esse é um fator que
muito contribuiu para a multiplicação dos conitos pela terra, não sendo
raro encontrar o nome de juízes, delegados e policiais constantemente
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 231
envolvidos com jagunços, grileiros, grandes proprietários e empresários
que, vindos do Sul, promoveram com enorme uso da força e violência,
despejos ilegais, aterrorizando lavradores antigos e recém-chegados
(MARTINS, 1984).
Cabe-nos aqui um breve comentário acerca das ações dos
grileiros na Amazônia, visto que eles encontravam-se em grande número e
expulsavam da terra o posseiro. Normalmente, estando bastante articulado
com os interesses do empresariado que habitualmente é protegido e apoiado
pelo poder dos governantes, o grileiro, conforme arma Martins (1981),
tornou-se um personagem muito comum na história rural brasileira,
marcada pela violência no campo. Esse homem apropria-se de uma terra
que não é sua e, através de subornos e falsicações de documentos obtém
papéis ociais que o permitem vendê-la para fazendeiros e empresários.
Para Ianni (1978), o grileiro é um negociante de terras, que através de
operações violentas e fraudulentas, recebe apoio policial ostensivo para
expulsar ou até mesmo assassinar os posseiros.
Apesar de haver até um Decreto
6
que impedia qualquer ação
de jagunços para a remoção de posseiros de suas casas ou terras, de nada
ele adiantou. Os advogados que solicitavam a aplicação do decreto eram
considerados comunistas e chados pelo Conselho de Segurança Nacional.
Mesmo assim, suas ações não impediam que a violência persistisse.
O posseiro, segundo Martins (1981, p. 104),
[...] é lavrador pobre, que vende no mercado os excedentes agrícolas
do trabalho familiar, depois de ter reservado uma parte da sua
produção para o sustento da sua família. [...] Como não possui
o título de propriedade da terra em que trabalha, raramente tem
acesso ao crédito bancário, à assistência agronômica ou a qualquer
outro tipo de apoio que lhe permita aumentar a produtividade do
seu trabalho. [...] É importante saber que, a rigor, o posseiro não
é um invasor da propriedade de outrem. Invasores são os grileiros,
fazendeiros e empresários que o expulsam da sua posse.
É importante saber que na região da Amazônia a maior parte
dos estabelecimentos agrícolas pertenciam a posseiros. Infelizmente, eles
6
O Decreto nº. 70.430 foi assinado pelo general Costa e Silva em 1972 e estabeleceu que posseiros não podiam
ser removidos de suas casas ou terras sem prévia audiência do Ministério da Agricultura (MARTINS, 1984, p. 39).
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
232 |
tinham situação jurídica indenida e, por isso, não recebiam apoio do
Estado ou de qualquer autoridade local. Esse é o motivo que levava os
posseiros a serem expulsos de suas terras com muita violência pelos grandes
proprietários, grileiros, fazendeiros e pelos detentores do capital nacional
ou multinacional. Baseado em decisões judiciais, muitos posseiros foram
despejados violentamente por jagunços ou militares e muitos morrem
durante as execuções dessas ações. Outros foram presos arbitrariamente e
quase sempre submetidos à tortura. Também morreram adultos e crianças
que, vitimados por terem sido expulsos da terra, acabaram não tendo
recursos para tratamento. Há também aqueles que, por consequência desse
processo de luta pela terra, após serem expulsos, acabaram por morrer de
malária ao se lançarem ao interior da mata em busca de terras ainda não
disputadas por fazendeiros e empresas (SORJ, 1980).
Porém, a violência mostrou-se cada vez mais necessária com o
desenvolvimento da Amazônia, pois “[...] a grande empresa passou a expulsar
ao mesmo tempo camponeses e índios ou a jogar camponeses contra índios,
como forma de se livrar dos dois.” (MARTINS, 1986, p. 19).
Percebe-se, assim, que o conito de terras na Amazônia não se
restringiu unicamente aos posseiros. O índio também foi exposto a esse
processo de tensão violenta do campo através da crescente invasão de suas
terras o que provocou um grande número de mortes no campo
7
.
Enm, podemos vericar que o processo de disputa pela terra
provocou violentos conitos no Brasil, resultando num número considerável
de mortos e feridos e revelando o verdadeiro fracasso da política militar em
conter os conitos no campo através da reforma agrária. A violência, que
foi desencadeada no campo, provocou a expulsão de índios e posseiros e
resultou no surgimento de milhões de famílias sem-terras, que sem ter para
onde ir acabavam por migrar para as cidades.
conSIderaçõeS fInaIS
Os militares promoveram uma intensa transformação na
agricultura brasileira entre os anos de 1965 e 1985, privilegiando a
 Sobre esse assunto ver: Martins (1986).
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
| 233
agricultura capitalista em detrimento da agricultura camponesa, o que
serviu para manter a secular estrutura fundiária do Brasil.
Evidentemente que o modelo de desenvolvimento agrícola
proposto pelos militares foi impulsionado por uma política de nanciamento
de tecnologia, a qual permitiu a modernização do campo e uma intensa
transformação no processo produtivo agrícola, bem como a expansão do
mercado interno e externo.
Além disso, o avanço da industrialização no campo promoveu,
como consequência, o crescimento das relações de trabalho assalariado no
campo e o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas. Ao destruir
a agricultura camponesa, a modernização do campo acabou expropriando
e expulsando uma grande quantidade de famílias de trabalhadores rurais
por meio da violência, provocando o surgimento de milhões de famílias
sem-terras, que sem ter para onde ir, acabavam migrando para os centros
urbanos ou, como última alternativa de sobrevivência, acabavam se
tornando trabalhadores assalariados das grandes empresas capitalistas do
campo.
O processo de modernização da agricultura e a consequente
expropriação da terra, de pequenos proprietários rurais, agravaram ainda
mais os conitos no campo. Como forma de resolver tais conitos, o governo
desenvolveu estratégias e dentre elas a criação do Estatuto do Trabalhador
Rural (1963) e do Estatuto da Terra (1964). Apesar de ambas as legislações
terem sido entendidas como avanços para a melhoria das classes menos
favorecidas da zona rural, na verdade, continuaram a favorecer os interesses
da elite agrária, tendo como pano de fundo, a manutenção secular da
estrutura agrária brasileira.
À medida que os anos passaram, o campo se modernizou ainda
mais, intensicando a mecanização agrícola a partir de uma política de
desenvolvimento voltada ao grande capital e a manutenção do latifúndio,
que promoveu a substituição da mão-de-obra humana pela máquina e
provocou, entre meados dos anos de 1970 até meados dos anos de 1980,
a expulsão de uma grande quantidade de trabalhadores que exerciam seu
trabalho nas grandes propriedades. Expropriou pequenos proprietários
que, por não terem as mínimas condições de adquirir tecnologia, não
conseguiam competir com o grande produtor agrícola. Engrossaram,
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
234 |
assim, a leira dos trabalhadores rurais em busca de melhores condições de
sobrevivência.
O destino destes trabalhadores foi migrarem para as cidades à
procura de emprego. Por sua vez, esses centros urbanos não conseguiu
absorver o grande contingente de desempregados, que passaram a viver,
normalmente, nas periferias, em plena situação de miséria.
Na cidade, a reunião desse grande número de trabalhadores
rurais desempregados favoreceu a sua organização para a luta pela reforma
agrária, por verem nela a única solução para os seus problemas de condição
de vida e sobrevivência.
referêncIaS
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KOTSCHO, Ricardo. O massacre dos posseiros. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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MILLS, Charles Wrigth. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa. Rio de janeiro: Zahar, 1982.
SILVA, José Graziano da. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas:
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SILVA, José Graziano da. Progresso técnico e relação de trabalho na agricultura. São Paulo:
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SINGER, Paul. A crise do “Milagre”. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SORJ, Bernardo. Estado e classes sociais na agricultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar,
1980.
Sobre os Autores
| 239
anderSon deo
Doutor em Ciências Sociais. Docente do Departamento de Ciências
Políticas e Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UNESP/Marília. Pós-Doutorado na Università Degli Studi di
Urbino “Carlos Bo”. Líder do Grupo de Pesquisa – Núcleo de Estudos
de Ontologia Marxiana-Trabalho, Sociabilidade e Emancipação Humana
(NEOM/CNPq). E-mail: deoanderson@hotmail.com
carolIne gomeS leme
Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade
Regional do Cariri (URCA), Crato-CE. Graduada em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP), mestre e doutora em Sociologia
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Autora dos livros
Ditadura em imagem e som: trinta anos de produções cinematográcas
sobre o regime militar brasileiro. São Paulo: Editora Unesp, 2013 e Grito
dentro d’ água: um certo cinema paulista (1958-1981), São Paulo: Editora
Alameda (no prelo). E-mail: carolinegomesleme@gmail.com
faBIo maScaro querIdo
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
na UNICAMP. Autor do livro Crise civilizatória e utopia anticapitalista em
Michael Löwy (Boitempo/Fapesp, 2015). E-mail: fabiomascaro@yahoo.
com.br
Marcelo Augusto Totti & Rodrigo Czajka
240 |
fvIo da SIlva mendeS
Doutor em Sociologia pela UNICAMP (2015), dedica-se a pesquisas sobre
o Pensamento Social na América Latina. É autor do livroHugo Chávez em
seu labirinto: o Movimento Bolivariano e a política na Venezuela(Editora
Alameda, 2012). E-mail: avio85@gmail.com
marcelo auguSto tottI
É sociólogo e docente do Departamento de Sociologia e Antropologia
da Unesp de Marília, líder do grupo de pesquisa: “Intelectuais, esquerdas
e movimentos sociais” e pesquisa temáticas relacionadas ao pensamento
social brasileiro. E-mail: marcelo.totti@unesp.br
marco antonIo roSSI
Sociólogo e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL-PR).
E-mail: travessia21@gmail.com
marIa rIBeIro do valle
É professora livre-docente da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP
- campus de Araraquara. Tem experiência na área de Sociologia, atuando
principalmente nos seguintes temas: movimento estudantil, ditadura
militar no brasil, 1968: aspectos políticos, violência revolucionária e
ditadura militar no brasil. E-mail: maria.valle@unesp.br
rodrIgo czajka
É doutor em Sociologia (Unicamp) e docente do Departamento de
Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFPR).
Pesquisador nas áreas de sociologia da cultura, intelectuais, ditadura e
redemocratização no Brasil. E-mail: rodrigoczajka@ufpr.br
Intelectuais, cultura e pensamento social no Brasil
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thIago BIcudo caStro
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Unicamp.
Mestre em Ciências Sociais (UNESP FFC-Marília). E-mail: thiagobc.
castro@gmail.com
vItor machado
É Doutor em Educação pela Unicamp, docente Assistente Doutor
do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Docência para a Educação Básica, da Faculdade de Ciências, da UNESP/
Campus de Bauru. Também é docente do Programa de Pós-Graduação em
Educação Escolar, da Faculdade de Ciências e Letras, da UNESP/Campus
Araraquara. E-mail: v.machado@unesp.br
catalogação
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
normalIzação
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
Janaína Celoto Guerrero Mendonça
caPa e dIagramação
Gláucio Rogério de Morais
Produção gráfIca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
aSSeSSorIa técnIca
Renato Geraldi
ofIcIna unIverSItárIa
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
formato
16 x 23cm
tIPologIa
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tIragem
100
ImPreSSão e acaBamento
2021
SoBre o lIvro
CULTURA
ACADÊMICA
E d i t o r a
Falar em Pensamento Social no Brasil hoje tem impelido
pesquisadores a expandir os limites teóricos e metodológicos da
sociologia na busca de uma abordagem mais pormenorizada do
trabalho intelectual, arstico, da militância cultural e da
chamada arte engajada. Isto é, além de empreender análises em
torno das “teorias do Brasil”, as pesquisas sobre pensamento
social têm voltado à atenção sobre as condições diversas nas
quais essas “teorias” foram lidas, interpretadas e colocadas em
debate, seja por intelectuais ou pelos movimentos sociais aos
quais eles estavam atrelados.
ISBN 978-65-5954-055-6