| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
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algum outro registro – este sim o registro em que tudo vai ser incorporado,
quase uma espécie de língua franca.
Percebe-se, ao longo do texto, a adoção de certa sobreposição, até
um pouco descuidada, entre ocidental, universalista, europeu e agora, por
m, moderno. De fato, trata-se de uma forma especíca de se relacionar
com o mundo e se pensar a História, amplamente caracterizada em
obras como as de Born e Hesmondhalgh (2000) e Latour (2009), entre
muitos outros. A partir dessa visão, tem-se que, a partir da separação entre
técnica e Cultura, deixando a primeira no polo da natureza, com base
em “princípios” como os estabelecidos pela Harmonia Acústica, Guerra-
Peixe automaticamente a considera válida para todas as culturas e todas as
épocas
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, o que, de certo modo, é uma das manifestações mais acabadas
desse “espírito ocidental” que se quer demonstrar.
Os princípios gerais que Guerra-Peixe estabeleceu para apoiar sua
prática deram uma espécie de rmeza, de solidez ao seu fazer musical, que
passou a atravessar o domínio da cultura (ou das culturas), nas quais foram
colocadas a música europeia de concerto, a música “folclórica” brasileira,
a música popular urbana etc. No plano da cultura, cou, então, a arte, a
aplicação da técnica, que o artista realiza segundo seu maior ou menor
talento. Em suma, a técnica seria, portanto, neutra, quase que apenas um
meio para se chegar a um resultado artístico mais perfeito, não possuindo,
entretanto, o poder de levar per si, um indivíduo qualquer a produzir uma
grande obra de arte. É essa consideração que está na base da crítica, tantas
vezes repetida (por Guerra-Peixe inclusive), de que um dos problemas do
dodecafonismo é que qualquer um poderia fazer música, bastando aprender
as “regras” e a escrever as notas no papel (GUERRA-PEIXE, 1984).
É interessante observar que o polo da natureza onde Guerra-
Peixe coloca a técnica é o mesmo polo onde tradicionalmente as narrativas
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A bem da verdade, o próprio Guerra-Peixe não parece ter levado a imutabilidade das supostas leis naturais às
últimas consequências, como se vê em um artigo de Estudos de Folclore e Música Popular Urbana (GUERRA-
PEIXE, 2007, p. 157-158) em que ele atesta que os “baques” no maracatu são feitos por instrumentos graves,
o que contraria o que ele enxerga como princípios de ordem acústica, que seriam a razão porque quase sempre
se reserva aos instrumentos mais graves dos conjuntos esquemas rítmicos simples. Diante disso, em nenhum
momento Guerra-Peixe parte para qualquer forma de desqualicação do fenômeno, embora isso talvez pudesse
estar subentendido no argumento. Muito pelo contrário, ele comenta com interesse, até quase elogiando o fato.
Ainda assim, nota-se o quanto podem ser profundas as implicações de uma teoria harmônica que se pretende
ancorada em fenômenos tidos como puramente naturais: sabe-se que o próprio Hindemith reviu diversas de
suas peças anteriores após formular sua teoria, adequando-as aos novos princípios, embora posteriormente sua
prática composicional fosse dar provas de uma exibilização daquelas noções (NEUMEYER, 1986).