Diálogos
sobre a Música Brasileira
Interdisciplinares
Érica Magi
Leonardo De Marchi
(Organizadores)
CULTURA
ACADÊMICA
E d i t o r a
Diálogos Interdisciplinares
sobre a Música Brasileira
D I
  M B
Marília/Ocina Universitária
São Paulo/Cultura Acadêmica
2020
É M
L D M
(O)
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP - campus de Marília
Diretor
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Vice-Diretor
Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Conselho Editorial
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Renato Geraldi (Assessor Técnico)
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Parecerista
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Docente do Departamento de Filosoa da Faculdade de Filosoa e Ciências - UNESP/campus de
Marília.
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura Acadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina Universitária é selo editorial da UNESP - campus de Marília
Copyright © 2020, Faculdade de Filosoa e Ciências
D536 Diálogos interdisciplinares sobre a música brasileira / Érica Magi, Leonardo De Marchi
(organizadores). – Marília : Ocina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica,
2020.
276 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-86546-39-2 (Impresso)
ISBN 978-65-86546-38-5 (Digital)
DOI: https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5
1. Música – Brasil. 2. Concertos – Brasil. 3. Música popular – Brasil. 4. Indústria musical
– Brasil. I. Magi, Érica. II. De Marchi, Leonardo.
CDD 780.981
S
Agradecimentos .................................................................................................... 7
Apresentação ........................................................................................................ 9
Seção I - MúSIca de concerto no BraSIl
A trajetória de Camargo Guarnieri e a institucionalização da música de concerto em
São Paulo: as condições de formação de um compositor na década de 1920
F B ........................................................................................... 17
Princípios gerais, fenômenos particulares - cultura e natureza na prática harmônica
de César Guerra-Peixe
F B ............................................................................................. 41
Seção II - MúSIca popular, SocIedade e polítIca
Bezerra da Silva e a "dialética da marginalidade"
R G S ................................................................................. 69
Lobão entre idas e vindas na política e na música popular brasileira
É M ........................................................................................................ 93
Rimas Conectadas: um olhar para as batalhas de MCs e para as performances do rap
brasileiro na cultura digital
R V  S .................................................................................... 111
Seção III - MúSIca popular, juventude e cIdade
Propostas e protestos: os ritmos, lugares e disputas da música de rua no Rio de Janeiro
J R ..................................................................................................... 137
Juventude periférica contemporânea: entre violência, segregação, política e cultura
juvenil
L A F  S .................................................................. 163
Seção Iv - o Mercado fonográfIco eM tranSforMação
Do vinil ao CD: a indústria fonográca no Brasil nas décadas de 1980 e 1990
E V ............................................................................................. 185
Notas e inquietações sobre certas transformações nas práticas de produção e consumo
musical
G G. S. C ......................................................................................... 205
Pós-streaming: um panorama da indústria fonográca na Quarta Revolução Industrial
L D M ...................................................................................... 223
Música sertaneja, mercado e pirataria
C R  S ...................................................................... 249
SoBre oS autoreS ............................................................................................... 273
| 7
agradecIMentoS
Os organizadores agradecem imensamente ao Centro de Pesquisa
e Formação (CPF) do SESC-SP, pela realização e nanciamento
do evento Pesquisas sobre Música Brasileira: debates e perspectivas
interdisciplinares, que deu origem a esta coletânea. Agradecem
também aos pesquisadores e pesquisadoras que lá estiveram
apresentando e debatendo os seus trabalhos: Frederico Barros,
Flávia Brancalion, Brian Requena, Acauam Oliveira, Vanessa Gatti,
Eduardo Vicente, Gisela Castro, Ricardo Teperman, Rainer Sousa
e Gabriel Lima Rezende. Às pesquisadoras Daniela Ribas Guezi e
Emily Fonseca de Souza, por terem acolhido a proposta do evento
e garantido a sua viabilização no Centro de Pesquisa e Formação.
Dedicamos um agradecimento especial aos bibliotecários da
UNESP, campus de Marília – SP, pela normalização acadêmica
dos textos e à parceria dos autores e autoras que, gentilmente,
escreveram os capítulos desta coletânea.
| 9
A
O presente livro é um dos resultados do evento Pesquisas sobre
Música Brasileira: debates e perspectivas interdisciplinares, promovido e
nanciado pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do SESC-SP, nos
dias 22 e 23 de maio de 2018
1
. A organização cientíca do encontro foi
realizada por Érica Magi e contou com o apoio das pesquisadoras do CPF-
SESC, Daniela Ribas Guezzi e Emily Fonseca de Souza. O objetivo principal
do evento foi reunir pesquisadores de diferentes áreas das Humanidades
(Sociologia, Antropologia, História, Musicologia, Comunicação Social
e Letras) para debater sobre a música brasileira, seja no que concerne às
suas formas de produção fonográca, de difusão comercial e de consumo
ao longo dos anos no Brasil, quanto aos impactos desses processos
na construção de carreiras artísticas. Os debates também permearam
abordagens analíticas da música a partir da trajetória social dos artistas
e suas possíveis relações com instâncias de poder institucionais, círculos
das elites econômicas e culturais e espaços educacionais; e da formação de
A programação completa está no link ocial do evento: https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/
atividade/pesquisas-sobre-musicabrasileira-debates-e-perspectivas-interdisciplinares. Acesso em: 30 mar. 2020.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p9-14
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
10 |
cenas musicais e seu impacto na criação de novos espaços de sociabilidade,
de elaboração de práticas culturais e de produção musical nas grandes
cidades, estabelecendo relações e tensões com a própria música brasileira
e os estilos internacionais. Considerando a amplitude dessas discussões,
decidiu-se dividir o evento em quatro mesas, que tratavam dos seguintes
temas: Indústria Fonográca, Mercado Digital e Consumo de Música no
Brasil; Música de Concerto Nacional; Música Popular, Sociedade e Política;
e Cosmopolitismo e Tradição na Música Popular Brasileira (1980-2016).
A interação dos pesquisadores entre si e com o público acabou
criando uma sensação muito positiva entre os presentes. As ideias que
emergiram dos debates foram tão instigantes que a vontade de produzir uma
coletânea com algumas daquelas falas, transformadas em texto, apresentou-
se como que naturalmente. Com a ajuda de Leonardo De Marchi, tentou-
se reunir os textos dos palestrantes, porém, infelizmente, nem todos os
palestrantes do evento puderam dar sua contribuição, sobretudo por
questões de agenda. Isso deu a nós, organizadores, a oportuna chance de
produzir um livro, garantindo-lhe um espírito próprio, uma identidade
especíca, animando-nos a estender o convite a outros colegas que não
integraram o evento e aos que palestraram, a oportunidade de trabalhar em
textos que pudessem sobressair ao mero registro de suas falas, assumindo
uma nova roupagem.
Para tanto, assim como ocorreu no evento, o livro foi dividido em
eixos temáticos que acreditamos serem importantes nas atuais pesquisas
em música brasileira, estruturando-se, portanto, em quatro seções.
A primeira Seção é Música de Concerto no Brasil, e traz consigo
as contribuições de Flávia Brancalion e Frederico Barros. Brancalion
analisa o cenário musical erudito do início do século XX na cidade de São
Paulo, abordando sociologicamente o processo de constituição da geração
modernista de compositores, partindo da trajetória do paulista Camargo
Guarnieri (1907-1993). Nesse mesmo contexto se apresenta o artigo de
Barros, que empreende uma análise histórico-musicológica da obra do
carioca César Guerra-Peixe (1914-1993), discutindo como o compositor
elaborou as suas peças a partir dos métodos de composição tradicionais da
música de concerto europeia em diálogo com o “folclore” brasileiro.
A segunda seção intitula-se Música Popular, Sociedade e Política e
conta com os artigos produzidos por Rainer Gonçalves Sousa, Érica Magi
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 11
e Rômulo Vieira da Silva. Rainer G. Sousa analisa a gura do malandro na
obra do sambista Bezerra da Silva (1927-2005), partindo da categoria de
dialética da marginalidade”, elaborada por João César de Castro Rocha,
por meio da qual pontua que o malandro de Bezerra não se concilia com as
esferas da ordem social, pois o artista se preocupa em revelar a ação criativa
de sujeitos historicamente marginalizados política e economicamente.
Érica Magi, por sua vez, pensa a trajetória do músico e compositor
carioca Lobão (1957-), buscando analisar as relações de proximidade e
distanciamento que o roqueiro estabeleceu com a política e a tradição da
música popular brasileira desde os anos 1980 até o presente. Tais relações,
calcadas em “idas e vindas” entre polos extremos, são o pano de fundo para
tentar entender as tensões e demandas que perpassam as relações entre
música popular e política no Brasil e como isso afeta a apreciação crítica
dos artistas populares.
O artigo de Rômulo Vieira da Silva apresenta uma instigante
reexão acerca da crescente inuência da comunicação digital sobre a
prática do rap no Brasil, tomando como estudo de caso as performances
realizadas por dois MCs na 189ª Batalha do Tanque e a repercussão delas
a partir dos comentários realizados no Youtube. Dessa forma, analisa
as batalhas de rimas entre MCs e suas reproduções nas redes digitais,
sublinhando os atravessamentos produzidos pelas mídias sociais nas
práticas contemporâneas do rap no país.
A terceira seção trata sobre Música Popular, Juventude e Cidade
à luz dos artigos de Jhessica Reia e Luís Antônio Francisco de Souza.
Jhessica Reia se debruça sobre o caso dos músicos de rua, descrevendo e
analisando a música de rua na cidade do Rio de Janeiro, a sua regulação
na forma de leis municipais, as suas práticas artísticas especícas, bem
como as tensões com os passantes e a ordem policial nos dias atuais. Luís
Antônio, pensando historicamente a condição subalterna e de segregação
da juventude negra e moradora das periferias no Brasil, analisa as letras do
grupo de rap Racionais MC’s, demonstrando que, para além da violência
vivida na pele no dia-a-dia, há resistência, crítica e consciência política
nessa narrativa, apontando um novo habitus social de ruptura com os
fundamentos cordiais da sociedade brasileira, que permeiam as expressões
artísticas periféricas como um todo.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
12 |
Ao m, a coletânea se encerra com uma seção dedicada às
transformações do mercado fonográco, intitulada O Mercado Fonográco
em Transformação, que conta com as produções de Eduardo Vicente, Gisela
G. S. Castro, Leonardo De Marchi e Christiano Rangel dos Santos.
Em seu artigo, Eduardo Vicente constrói uma perspectiva
histórica da indústria fonográca brasileira ao longo das décadas de 1980
e 1990. Ele analisa o desenvolvimento do mercado de discos nesse período
tão importante de transformações estruturais da indústria de discos (como
a adoção do CD como único produto da indústria ou a exibilização das
relações de produção de discos a partir das mudanças empreendidas pelas
grandes gravadoras e o fortalecimento do setor independente) e termina
sua análise apontando os primeiros sinais da crise que abalaria a indústria
no início do século XXI, provocando dramáticas mudanças no modus
operandi da própria indústria fonográca.
Gisela G. S. Castro discute, por seu turno, a imposição de uma
série de transformações nos modos de produção e consumo de cultura,
sintetizadas como sendo a passagem do consumo de posse ao de acesso. Para
tanto, enfatiza o papel das redes digitais nesse processo, sublinhando as
disputas de poder e controle travadas entre uma ética hacker e os interesses
das empresas de mídia. Ao m, pontua que o consumo de música na
era digital não se dá tão somente pelas características da tecnologia, mas
por meio de disputas entre, por exemplo, o compartilhamento gratuito
de obras entre pares e as acusações de pirataria digital sustentadas pelos
conglomerados da mídia, que culminam no surgimento dos serviços
de streaming, que impõem um modelo “obrigatório” de assinatura de
mensalidades para acesso aos conteúdos digitais.
O ensaio de Leonardo De Marchi dá um primeiro passo para se
pensar a reconguração da indústria fonográca na era da automação do
trabalho criativo, o que se tem chamado de quarta revolução industrial
em certa literatura. A partir de uma leitura do que o autor classica como
destruição criadora da indústria fonográca (período que abrange as décadas
de 2000 e 2010), mapeia as principais linhas de inovação na indústria
(como a recomendação de conteúdos digitais de música por algoritmos
proprietários, a produção de música por Inteligência Articial e a criação
de tecnologias para a desintermediação das relações comerciais de criações
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 13
musicais), apontando para o possível futuro da indústria fonográca no
que chama de período pós-streaming.
Por m, Christiano Rangel dos Santos analisa o papel da pirataria
de discos na difusão da música sertaneja pelo interior dos estados do
Centro-Oeste, Sudeste e Sul, a partir de 2005, como prática que cumpriu
uma função auxiliar às TV e rádios regionais na divulgação das novas
duplas. Ademais, ao invés de constatar que o enorme sucesso comercial
conquistado pelas duplas tenha sido fruto somente do barateamento dos
meios de gravação de discos, o autor aponta para o poder nanceiro de
empresários e escritórios de agenciamento na organização das carreiras e no
marketing das duplas, incluindo aí o pagamento de jabás para veiculação
de músicas nos meios de comunicação.
Estabelecidos os termos da coletânea, seu objetivo se traduz em
levar para um público mais amplo algumas das reexões mais instigantes
realizadas por alguns dos pesquisadores e pesquisadoras que estiveram
presentes ao evento. Mesmo que não seja possível dar conta de todo o
universo de pesquisas sobre música nas Ciências Humanas, a diversidade
de indivíduos, de temas de pesquisa e de instituições foi um critério
determinante para a organização do livro. Justamente por esse motivo,
queremos reforçar nossa esperança sincera de que esse material possa
informar outros pesquisadores e ensejar novas discussões sobre a música
brasileira nas Humanidades.
Érica Magi (UNESP - Marília)
Leonardo De Marchi (FCS-UERJ).
Agosto de 2019.
Seção I
MúSIca de concerto
no BraSIl
| 17
A  
C G  
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    1920
Flávia Brancalion
Introdução
Este artigo busca entender o processo de constituição da geração
paulista de compositores modernistas a partir do enfoque do caso de
Camargo Guarnieri. Para tanto, parte-se do exame do período inicial
de sua trajetória, da contribuição familiar à sua orientação musical,
tanto na musicalização na infância, quanto na denição de disposições
acerca de sua prossionalização futura. Antes, no entanto, elabora-se
um quadro maior de pers morfológicos para dar relevo sociológico aos
condicionantes familiares, inserindo-os no contexto histórico do processo
de urbanização da cidade. Passa-se, depois, às comparações entre os
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p17-40
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
18 |
percursos traçados pelos músicos que se consagraram pianistas e os que se
tornaram compositores, abrangendo a maneira como as oportunidades
do meio se apresentaram para eles, de acordo com sua origem social.
A partir dessa dinâmica, lança o olhar sobre o movimento modernista
paulista, buscando agrar parte das condições sociais que determinam o
surgimento de carreiras na composição.
o cenárIo MuSIcal erudIto eM São paulo naS prIMeIraS décadaS
do Século XX
Antes de mais nada, é preciso esboçar, em linhas gerais, o cenário
musical erudito mais especializado da cidade de São Paulo no início do
século XX
1
. Nas duas primeiras décadas, esteve ligado aos espaços de
sociabilidade da alta sociedade, erigidos pelas oligarquias ligadas ao café,
tal como o Teatro Municipal (de 1911), entre outros, inscritos em um
projeto de urbanização de feições europeizantes, ora levado pelo poder
público, ora por associações privadas, ora por um indistinto vínculo entre
ambos – O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (1906), o
Pensionato Artístico do Governo do Estado de São Paulo (1912), o Centro
Musical São Paulo (1913) e a Orquestra de Concertos de São Paulo (1920)
são parte do mesmo intento.
Nesses espaços, as elites se reuniam em torno das óperas
organizadas pelas companhias estrangeiras da Temporada Lírica e dos
concertos promovidos pela Sociedade de Cultura Artística – SCA (1912)
em iniciativas esparsas do mecenato oligarca. O conjunto de atividades
promovidas fazia as vezes de um mercado da música erudita local, que
melhor se caracterizava como extensão do mercado europeu em países
da periferia da “música ocidental”, geralmente durante os intervalos das
principais temporadas de lá.
Contudo, os instrumentistas e regentes paulistas mordiscavam
um ou outro concerto da SCA, conquistando postos temporários nas
companhias estrangeiras, vez que o mercado da música erudita no Brasil
era largamente ocupado por artistas de fora, quer realizavam turnês
Uma visão mais completa acerca do cenário musical paulista na virada e início do século XX pode ser vista
nos trabalhos de José Geraldo Vinci de Moraes (1995, 2000) Denise Sella Fonseca (2014), Virgínia de Almeida
Bessa (2012), Alberto Ikeda (1989b) e Nicolau Sevcenko (1992).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 19
comissionadas por empresários italianos, como Walter Mocchi. Em paralelo,
os músicos locais encontravam acolhida na pulsante cena de divertimentos
da cidade de São Paulo, tanto nos locais de convívio dos setores médios,
quanto nos estabelecimentos de entretenimento e sociabilidade das elites,
tais como bordéis, festas, bares, cinemas, cafés, lojas de música, hotéis,
clubes e residências.
Esse movimento de constante circulação entre os ambientes
de extração social variada somou-se à incipiente prossionalização dos
músicos, estimulando certa indiferenciação das funções. Desse modo,
foram requisitados a desenvolver diversas habilidades musicais, atuando
como intérpretes, regentes ou compositores, a depender do tipo de
oportunidades surgida, o que lhes conferiu uma certa versatilidade.
aS orIgenS SocIaIS doS MúSIcoS: doIS poloS poSSíveIS
Nos anos 20, a extração social dos músicos era pouco diversicada
entre aqueles que circulavam nos meios da elite paulistana e detinham as
habilidades especícas para tratar do repertório erudito. Havia dois grupos
principais, cujas origens se remetem ao processo de urbanização de São
Paulo ao nal do XIX e à conguração cultural da cidade, determinada
pela riqueza das famílias produtoras e pelo auxo de imigrantes, sobretudo
italianos. A esse respeito, importante destacar que
de fato, havia grande concentração de italianos na cidade que, em
1897, ‘superavam numericamente os brasileiros na proporção de
dois para um’, segundo o pesquisador Richard Morse (1970:240).
Entre estes, existiam os mais variados níveis socioeconômicos,
desde o operário sem qualquer qualicação prossional ao
grande comerciante e o industrial. A provinciana cidade, que em
1886 contava com aproximadamente 45.000 habitantes, já em
1920 tinha praticamente 600.000 habitantes, isto, em grande
parte, devido à vinda de grandes levas desses imigrantes. Assim,
a contribuição destes se fez nos vários setores da sociedade, e de
maneira signicativamente importante no campo da música, como
se vê desde 1885 com as atividades do célebre professor e promotor
musical Luigi Chiaarelli (1856-1923) e com as presenças, na
cidade, da Banda de Música Bersaglieri […] em concerto no Circolo
Italiano Recreativo – e da Banda Ettore Fieramosca, de atuação
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
20 |
destacada na primeira década do século. […] Os italianos foram
responsáveis por boa parte dos empreendimentos musicais na cidade,
não só nas atividades propriamente artísticas, mas, ainda no setor
de fabricação, importação e comércio de instrumentos musicais,
no setor de impressão e comércio de partituras de música e nas
atividades empresarial-teatrais. Isto, evidentemente, acrescentado
das presenças de inúmeras companhias italianas itinerantes de
ópera e operetas que, anualmente aqui vinham completar suas
temporadas. […] No setor comercial de instrumentos, e partituras
musicais, grande parte das iniciativas no início do século atual
deveu-se aos italianos, como se percebe em qualquer consulta aos
jornais e revistas da época. (IKEDA, 1989a).
A partir do panorama apresentado, depreende-se que o primeiro
grupo de músicos eruditos advém do polo da imigração italiana de classe
média ou baixa, formado tanto pelos imigrantes de origem estrangeira
imediata quanto pelos descendentes de primeira geração (grande parte
dos lhos da imigração são primogênitos ou únicos), sequiosos por lograr
integração social através da educação especializada obtida nas instituições
europeias ou pela iniciação musical orientada pelos familiares detentores
dessa especialização prévia.
Com efeito, este polo encontrou abrigo junto aos interesses de
distinção simbólica das oligarquias rurais, dispostas a contratar professores
particulares de piano para formação musical de suas lhas, na melhor
emulação possível das tradições projetadas no “requinte” europeu,
convertidas em trunfo social. Neste polo, amplamente dominado por
homens, há pouquíssimos exemplos femininos, com destaque para
a violinista Paulina D’Ambrosio e a compositora Lina Pesce, ambas de
família italiana, com percursos diferentes dos seus colegas
2
O segundo polo é constituído por membros vinculados às
famílias de alto prestígio das elites, oriundos tanto das velhas oligarquias
rurais, quanto da emergente elite industrial de origem imigrante. Grande
2
Há alguns estudos que mapearam trajetórias de mulheres no meio musical. Entre eles, o cuidadoso trabalho
de Dalila Vasconcellos de Carvalho (2012) sobre a construção social das carreiras musicais a partir do recorte
de gênero nos casos de Joanídia Sodré e Helza Camêu. A discussão em si é complexa, devendo ser tratada neste
artigo de acordo com seu objetivo de traçar as diferenças de oportunidades e acesso a caminhos, apontadas por
Dalila, mas sem aprofundamento neste marcador.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 21
parte são mulheres, mas há homens também. Entre estes, é notável que a
maioria seja de rebentos caçulas de famílias em declínio social, lhos dos
chamados “primos pobres” (MICELI, 2001, p. 105), que mobilizaram seu
capital social de proximidade das camadas dominantes da política e da
intelectualidade para viabilizar carreiras, lançando mão da rede de contatos
familiares.
Acerca da ligação desses grupos às frações dirigentes, nota-se a
existência do mesmo caráter de dependência mútua observado nas relações
entre o poder político e o controle de recursos, por meio dos quais as
elites sociais garantiam o conhecimento técnico da linguagem musical
e a reprodução dos padrões de gosto estético dos imigrantes. Exemplos
claros dessa relação de interdependência perpassam pela fundação da
Sociedade de Cultura Artística por Freitas Valle, Nestor Pestana, Ramos
de Azevedo e Vicente de Carvalho, junto a alguns artistas, entre eles os
músicos Agostino Cantù, Furio Franceschini, Zacarias Autuori, Felix de
Otero, José Wancolle, Luiz e Maurício Levy, o irmão mais velho de Souza
Lima, e Luigi Chiaarelli.
Este último, trazido para o Brasil em 1883 por iniciativa de um
grupo de fazendeiros para ensinar piano às moças, foi responsável pela
maior escola de pianistas da época, cuja lista de discípulos totaliza 509
alunos, sendo 469 mulheres e 40 homens (92% mulheres, 8% homens), e
contém inúmeros sobrenomes poderosos (BINDER, 2013). Chiaarelli foi
professor das mais importantes guras do piano da época, como Guiomar
Novaes, Magda Tagliaerro, Antonietta Rudge e Souza Lima, bem como
participou da fundação das principais instituições musicais (além da SCA,
CMSP e CDMSP).
Há alguns elementos em comum nas trajetórias, independente da
origem social associada a cada polo, porém, eles se apresentam de formas
diferentes. A circulação entre os ambientes das classes altas, no caso dos
músicos que se especializaram no repertório erudito, foi imprescindível
em todos os casos examinados aqui. Cada qual, com sua história e
especicidade, deu relevo a ideias e projetos, condicionou tensões, alianças
e rupturas que marcaram o percurso de seus grupos e respectivos agentes.
De maneira geral, as trajetórias examinadas perpassam por espaços
xos de circulação das altas rodas da elite social e política paulistana, com
destaque para os salões das famílias abastadas , como a Vila Kyrial, do
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
22 |
Senador Freitas Valle, frequentada por importantes músicos como Carlos
Gomes e, depois dele, por quase todos os nomes mais ou menos importantes
da época, certamente abrangendo todos os músicos ligados ao movimento
modernista paulistano; a residência dos Amaral (importante para Souza
Lima), a de Olívia Penteado, entre outras, que serviram de palco para a
sociabilidade de caráter cosmopolita, passível de incorporar os artistas que
correspondessem aos anseios de distinção simbólica dos mecenas.
Outro elemento em comum é o envolvimento de pais ou irmãos
com a música, haja vista a importância desses graus de parentesco tanto
para a orientação artística e a construção do tipo de “vocação”, que em
parte é “herdada” – e, portanto, diferente entre os dois polos –, quanto
para a determinante inserção no meio musical. É o caso, por exemplo,
de Mário de Andrade (formado em piano no CDMSP) e Souza Lima,
cujos irmãos forneceram modelos prossionais “masculinos” de pianistas
em meio à “regra” de destino feminino. Por esse viés, a trajetória artística
torna-se facilitada,
pois quando os pais são músicos prossionais (instrumentistas,
compositores ou professores de música) […] transmitem aos lhos
o ofício musical, isto é, oferecem um modelo de atuação no meio
que signica muito mais do que ensinar um instrumento; trata-se
de aparelhar os herdeiros para entrarem no jogo social em vigor
no universo em questão. Em alguns casos, são os(as) irmãos(ãs) a
desempenharem este papel. (CARVALHO, 2012, p. 79).
o MovIMento ModernISta e oS MúSIcoS paulIStaS
Cada um dos polos genericamente apresentados, pelas condições
institucionais da época, engendrou diferentes potencialidades de
itinerários, voltagens de ambição artística e experiências estéticas. Em meio
a tantas personagens, o movimento modernista de 1922 obteve diversos
níveis de adesão e envolvimento, sobretudo entre os lhos da imigração
e os intérpretes oriundos das famílias tradicionais, responsáveis por levar
adiante a programação musical da Semana de Arte Moderna, geralmente
executando peças modernas, combinadas com peças do repertório mais
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 23
tradicional. Como é sabido, o único compositor brasileiro prestigiado foi
o carioca Villa-Lobos
3
.
Os músicos paulistas mais jovens, contudo, começaram a ingressar
no movimento apenas nas iniciativas da década de 1930, haja vista que no
período mencionado ainda estavam cavando caminhos para suas formações
musicais, tanto em São Paulo quanto no exterior, sobrevivendo de música
no mercado de divertimento, dando aulas particulares ou tentando compor
operetas e o que mais agradasse a seus protetores.
Nesse contexto, as possibilidades institucionais em relação
à formação e à colocação prossional são pontos por meio dos quais
pode-se elaborar um retrato coletivo acerca dos itinerários percorridos
por alguns dos protagonistas do modernismo. Destarte, utiliza-se a
trajetória emblemática de “sucesso” de Camargo Guarnieri como um “o
guia”, tendo em vista que ele conseguiu não só se tornar compositor de
música de concerto, como se consagrou como um dos mais importantes
compositores “modernistas” pela crítica ligada aos pares do movimento.
No entanto, o quadro de caracterização geracional não estaria completo
se, em paralelo, outras trajetórias “menos louvadas” pela crítica não fossem
cotejadas, especialmente o caso de Souza Lima, músico que não logrou
reconhecimento pelos pares modernistas para seu projeto de composição,
tendo sido xado pela historiograa como grande concertista e, por
vezes, regente.
o caSo de caMargo guarnIerI: conStrução da vocação de
coMpoSItor
Mozart Camargo Guarnieri nasceu em 1907 e permaneceu até os
15 anos em sua cidade natal, Tietê, interior de São Paulo. O pai, Miguel
Guarnieri, imigrante italiano pobre, autista, trabalhou como barbeiro
a m de garantir a subsistência da extensa prole de nove lhos. A mãe,
Géssia de Arruda Camargo, advinda de uma tradicional família paulista
de abastados fazendeiros, casou-se contra a vontade dos pais e sofreu com
o declínio social e material de sua escolha. Instrumentistas amadores com
boa educação musical, ambos ensinaram rudimentos de teoria da música
3
Ver WISNIK, 1977.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
24 |
e piano ao primogênito, que interrompeu os estudos regulares para ajudar
o pai na barbearia.
Este tipo de iniciação musical precoce no ambiente familiar,
orientada por parentes ativos, é uma das maneiras mais típicas de formação
e materialização das vocações artísticas, pois instila-se desde cedo o
modelo vocacional do dom individual e da predestinação por meio de
estímulos. No caso de Guarnieri, esse reconhecimento pode ser visto, por
exemplo, no conhecido episódio no qual, ainda em Tietê, em seu primeiro
esforço criador, compôs a valsa Sonho de Artista, fruto de suas constantes
improvisações, mas foi desencorajado por seu professor de piano, Virgínio
Dias. Contudo, a despeito dessa reprovação, o pai, entusiasmado, custeou
a impressão da partitura em São Paulo, com ajuda nanceira de amigos,
pela “O. Musical Mignon”.
Segundo consta em biograas do compositor, a peça foi elogiada
por alguns jornais e logo comemorada como um pequeno êxito. Embora
não haja como comprovar documentalmente a repercussão da crítica, a
valsinha – de nome sugestivo – criada pareceu ter reiterado a projeção
dos pais acerca do talento do lho. Pouco depois do episódio, o bom
desempenho ao piano, limitado pelo despreparo dos professores do
interior, fez com que a família se mudasse para São Paulo em 1923, a m de
possibilitar à Mozart as melhores condições para prosseguir com os estudos
musicais. Nesse movimento, a família passou a se engajar completamente
na construção da carreira do talentoso primogênito, investindo-o de
expectativas de alçar melhores posições na sociedade da qual haviam se
distanciado pelo rompimento de laços com o prestigioso lado materno,
membro da elite quatrocentona paulista.
Neste caso, assim como em tantos outros, a projeção do pai
para que o lho promissor realizasse um sonho que era seu – viver de
música –, combina-se com um projeto de ascensão social familiar, não
raro entre os extratos da imigração italiana de formação especializada,
ou semiespecializada, dos quais boa parte dos músicos advinha. Acerca
de sua trajetória artística, Mignone, em entrevista, relata o mesmo tipo
de esperança do pai, autista italiano e professor do CDMSP, em relação
à sua trajetória: “[...] meu pai acalentava a ideia de fazer do seu lhote
um compositor à estampa da trinca Puccini-Mascagni-Leoncavallo
(MIGNONE apud MARIZ, 1997, p. 45).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 25
A aposta da família pela mudança para a capital como investimento
na formação artística de Guarnieri, instigou ainda mais a ambição de alta
voltagem pela qual o artista seria reconhecido. O compromisso pessoal de
entrega total de si à atividade musical presente na concepção vocacional da
arte era tão forte diante da incorporação do pacto familiar das aspirações
sociais referidas, que ele se utilizou das condições institucionais do meio
para se realizar em uma carreira musical. Todavia, é preciso examinar a
construção dessa vocação antes de tratar dessas condições.
Apesar de fornecerem pistas importantes à essa análise, as
biograas
4
do compositor aderem ao receituário de apagamento dos
rastros da construção social do dom, instilando a ideia de uma qualidade
excepcional que se revelou paulatinamente por meio do reconhecimento
dos pares – de forma que o sucesso veio como comprovação do carisma,
isto é, de que Guarnieri estava predestinado a ser um artista. Tratam do
início do trajeto artístico, servindo-se de depoimentos tardios do artista,
sem que se possa lastreá-los em documentação sobre sua juventude. Guérios
(2009) registra o mesmo problema de construção biográca da juventude
de Villa-Lobos, que se ampara mais na memória do compositor que em
fontes documentais, o que acaba por reforçar o adágio do talento precoce,
do rigor do pai ao dar as primeiras lições de música ao lho e da vocação
para a criação musical.
Essa compatibilização das trajetórias de Villa-Lobos e Guarnieri
parece justicar o risco assumido pela família deste músico ao se mudarem
para São Paulo, tendo em vista que a reputação daquele, vinte anos mais
velho, a partir de estadas em Paris já na década de 1920, revela-se “como um
modelo evidente para seu colega mais novo, cujas semelhanças nas biograas
não podem ser consideradas mera coincidência” (EGG, 2010, p. 20). A
referência da experiência bem-sucedida de Villa-Lobos, que embora tenha
advindo do meio musical carioca, encontrou oportunidades de viabilização
4
Publicadas em 2001, as duas biograas sobre Camargo Guarnieri, de Marion Verhaalen, pela Imprensa
Ocial, e Maria Abreu, pela Funarte, valem-se de testemunho próprio da amizade (no caso de Abreu, amigo
de longa data), documentos do acervo pessoal e declarações tardias do biografado, colaborando com a visão de
consagração do “artista nacional” atento à construção de seu legado à época. Na correspondência entre Abreu e
Guarnieri, catalogada e mantida pelo acervo do IEB na USP, ca patente o grau de participação e controle do
amigo na elaboração de sua própria biograa, encomendada pela Funarte através de Vasco Mariz, em 1986. Já a
musicóloga e pianista norte-americana Marion Verhaalen, que fazia tese sobre a obra pianística do compositor,
hospedou-se por anos na residência dos Guarnieri por ocasião da pesquisa (segundo informações do prefácio da
edição de 2001), o que gerou laços de amizade. O itinerário contado pelas duas é praticamente igual do ponto
de vista das fontes e eventos fundamentais considerados.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
26 |
do início da carreira de compositor junto aos círculos modernistas e seus
mecenas perrepistas, pode ter instigado Guarnieri a cogitar as veredas
da composição enquanto alternativa emergente à competição acirrada
entre a horda de pianistas de origem abastada, formados ou nas salas do
Conservatório Dramático e Musical, por dois ou três professores de piano
que faziam escola, ou em viagens à Europa, geralmente para completarem
os estudos no Conservatório de Paris, diretamente na fonte da tradição
francesa que atendia ao padrão de gosto cultivado pelas elites.
Em São Paulo, tal como em Tiête, a família Guarnieri abriu uma
pequena barbearia, anexa à residência, da qual mal conseguiam tirar o
sustento mínimo, apesar do trabalho árduo. Mais tarde, o pai, Miguel,
arranjou emprego como regente da orquestra do Cine Bijou, integrando
o lho pianista ao conjunto. Pouco tempo depois, Guarnieri empregou-se
na Casa Di Franco, onde tocava ao piano as partituras solicitadas pelos
clientes da loja de música, o que lhe possibilitou desenvolver a capacidade
de leitura e conhecimento de repertório bastante variado (“popular urbano
e erudito), dando-lhe uma boa noção do gosto e do padrão de consumo
prestigiado pela clientela de elite.
Impressionado por ocasião de uma visita à Casa Di Franco,
Marcelo Tupinambá recomendou ao jovem pianista desconhecido que
fosse estudar com Ernani Braga, professor de piano no Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo, compositor e frequentador dos círculos
modernistas. Braga, por sua vez, apreciou tanto as potencialidades do
jovem, que se propôs a ensiná-lo de graça.
Nesta época, a despeito do grande acúmulo de atividades
musicais associadas ao sustento familiar – porquanto trabalhava dia e noite,
acumulando o emprego da citada loja de música com o realizado em um
cinema na Avenida Rio Branco e outro em um bordel no centro da cidade
–, o jovem músico ainda conseguia tomar as lições de piano e realizar
composições por conta própria, que às vezes mostrava ao entusiasmado
professor de piano. Esse momento atribulado é retratado nas biograas
como de extrema dedicação metódica às atividades. Sob o interessante
subtítulo “um operário da boemia”, a biógrafa Maria Abreu (2001, p. 37)
assim a descreve:
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 27
Não havia tempo para descanso, nem para diversão. Mozart
chegava em casa às 6 horas da manhã. Dormia até as nove. Depois,
levantava-se para estudar as lições que Ernani Braga lhe passava.
Assim, tinha três horas de sono, separando a música dos bailes das
sonatas de Beethoven e das baladas de Chopin. E ainda compunha
[…] [tinha] de atender aos cinco empregos [...].
No caso de Mozart, o modelo vocacional observado vincula-se ao
ethos ascético, distintivo do prossional em relação ao amador, conforme
discute Sapiro (2007, p. 7)
5
. Entretanto, diferentemente do caso francês,
em que as horas de dedicação à obra são tidas como trunfo da contraposição
de Flaubert à elite, a extenuante jornada de atividades do jovem músico
paulista, cumprida com abnegação e superação do desgaste físico, parece
reforçar menos o caráter da imprevisibilidade associada à criação
6
que a
regularidade prevista em afazeres de um “operário”. Assim, compreender
o tipo de armação ascética encontrada na vocação musical de Camargo
Guarnieri, na medida em que ele tende a xar pontos de contato com o
universo previsível da prossionalização, passa pela volta à restituição do
processo de institucionalização do meio musical paulista, especialmente no
que diz respeito à abertura de caminhos da composição erudita.
A situação de Guarnieri é emblemática, considerando-se o estudo
de Vinci de Moraes sobre o meio musical, no qual evidencia a incipiente
prossionalização dos músicos paulistas nos anos 1930 em relação à
situação carioca. Em São Paulo, como era constante a movimentação entre
a música erudita e a música popular, os intérpretes cumpriam múltiplos
trabalhos, tocando em bailes, acompanhando cantores, e em orquestras
de rádio ou cinema – como também ocorria no Rio de Janeiro, apesar
da cena “erudita” ser mais movimentada. Não raro, combinavam as
A concepção vocacional da arte não opõe, todavia, o dom ao trabalho, nem à aprendizagem, como atesta
o número incalculável de horas e o esforço investido por Flaubert em sua obra, o qual não esconde em sua
correspondência. Ao contrário, está estreitamente ligada a um ethos ascético que a diferencia do amadorismo,
a um só tempo esclarecido e distanciado das elites contra as quais se arma.” (SAPIRO, 2007, p. 7, tradução
nossa).
A concepção vocacional da arte supõe, com efeito, um investimento total, frequentemente manifestado
através do sofrimento corporal ou moral que engendra e que busca se distinguir da execução rotineira de
tarefas pré-denidas, associadas ao artesanato, ao academicismo ou à burocracia. A imprevisibilidade e a
originalidade se tornam, então, os princípios pelos quais os campos de produção cultural manifestam sua
distância em relação a esses universos e sobre os quais repousa o modo de valorização das obras.” (SAPIRO,
2007, p. 7, tradução nossa).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
28 |
atividades artísticas com outros ofícios e cargos modestos em empresas
públicas ou privadas (VINCI DE MORAES, 2000). Francisco Mignone,
outro compositor do meio paulista, dez anos mais velho que Guarnieri,
contou em depoimento que seu pai não conseguia se empregar em teatros
e orquestras, somente em pequenos conjuntos de casas de espetáculos, até
que mais tarde ocupou o cargo de professor de auta no Conservatório
Dramático, onde matriculou o lho:
Meu pai era músico e tocava muitos instrumentos; ele perdeu o
pai muito cedo e entrou numa instituição onde ensinavam vários
instrumentos. Ele tocava trompa, violoncelo, violino, um pouco
de piano. A auta era o instrumento principal, e a mim também
ensinou a tocar auta, colocou-me no piano, ensinou teclado e
pequenas coisas, e mesmo de trompa ele me deu algumas aulas. Era
quase obrigatório conhecer todos os instrumentos naquele tempo
(MIS-RJ, 1968 apud EGG, 2010, p. 24).
Souza Lima, outra gura do cenário paulista, cuja educação
musical também começou em casa, relata a mesma experiência prática, no
início de carreira, quando teve de se sustentar tocando em vários cinemas e
no Hotel de La Plage, no Guarujá. Assim, quase todos tiveram de enfrentar
as adversidades das precárias condições de prossionalização do músico em
São Paulo, especialmente na área de criação musical – muitos eram os casos
de enriquecimento de editoras especializadas em música; as leis de direitos
autorais datam de 1928, mas nem sempre eram observadas.
No entanto, os músicos citados tinham algumas vantagens em
relação aos seus concorrentes: o tipo de formação musical advinda de
familiares músicos (em geral imigrantes italianos), que costumava não se
limitar ao estudo de piano típico das moças da elite, proporcionou-lhes,
em realidade, contato com diversos instrumentos e repertórios. A isso,
soma-se a falta de recursos materiais, por não serem de famílias da elite
econômica, que os levou a ajudarem no orçamento doméstico, tocando para
divertimento popular, obrigando-lhes a aprender na prática a improvisar,
arranjar, dirigir conjuntos, adquirir rapidez de leitura de partituras e tocar
de “ouvido” um amplo repertório – que abrangia tanto os maxixes, tangos
e valsinhas apreciados pelas classes médias ou baixas, quanto as operetas do
gosto dos abonados – o que, ao m, converteu-se em mais uma vantagem.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 29
Esta educação musical prática e informal, embora riquíssima e
relevante para a compreensão da escolha da principal atividade musical,
assim como dos percursos estéticos e técnicos dos compositores em suas
primeiras peças, foi apagada por eles e por seus biógrafos, que preferiram
atribuir a opção pelos trilhos da composição ao “dom” inato para a
criação musical. Ao elegerem como marco da determinação “formal” da
carreira a educação musical “séria” realizada pelas instituições de ensino
de música
7
, pecam ao creditar a elas um protagonismo que não tiveram,
porquanto desempenharam papéis coadjuvantes na escolha do métier de
criação, servindo muito mais à aprendizagem da técnica dos instrumentos
(nem isso, no caso de Guarnieri) e/ou ao estabelecimento de uma rede de
contatos para auferir colocações prossionais; ou ao autodidatismo, nem
sempre tão solitário, pois orientado por professores particulares (formais
ou “informais”).
No caso de Guarnieri, tais narrativas miticadoras atribuem
sua formação única e exclusivamente a mestres, responsáveis pelo ensino
sistemático de regras e procedimentos para a criação de “música séria
e pelo norte estético, descartando tudo que teria sido retido através das
movimentações no meio da música popular urbana de divertimento – que
só viriam a ser ressignicadas a partir das décadas de 1950 e 1960, ante a
aceitação de materiais provenientes da música popular urbana pela crítica,
fazendo com que os compositores não mais se envergonhassem do contato
realizado com a música de divertimento dos salões e ainda se regozijassem
pela oportunidade de encontrarem esse “material bruto” na juventude,
processando-os com a destreza do burilamento formal de criação.
A ressignicação, no entanto, não alterou a exclusão das primeiras
pecinhas” do catálogo de obras legítimas de nenhum dos compositores
do nacionalismo folclorista, que usavam pseudônimos para assiná-las.
Mignone talvez seja mais aberto ao trato de seu legado ilegítimo, à medida
em que enxerga carinhosamente, com ares nostálgicos, suas incursões como
“Chico Bororó” pela música popular, em comparação a Guarnieri, cujas
obras sinfônicas conferiram-lhe maior prestígio, levando-o a se diferenciar
mais enfaticamente do polo popular na década de 1950. Como Guarnieri
começou a carreira de compositor erudito na década de 1930, observando
o descrédito dos mais velhos em relação à obra popular, escolheu manter
7
Em São Paulo, o Conservatório Dramático e Musical; no Rio de Janeiro o Instituto Nacional de Música.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
30 |
suas peças de juventude, a “obra de difusão interdita”, fora de circulação.
Essa parte de sua produção, inclusive, foi proibida em testamento de ser
executada, publicada ou divulgada, e está guardada em seu acervo no
IEB-USP, sob condições difíceis de ser sistematicamente estudada por
pesquisadores.
De qualquer modo, a versatilidade que foram obrigados a cultivar
no primeiro momento de suas formações acabou sendo de grande proveito
ao domínio das características esperadas de um compositor. O catálogo
de Guarnieri, grande e variado, apresenta um perl compatível com suas
preferências musicais e com as múltiplas atividades exercidas, pois escreveu
canções para várias formações: tem obras a capella, que se remetem ao
início de sua carreira, quando foi regente de coro; sinfonias e concertos
para instrumentos solistas, dignos de um bom pianista; produção para
grupo de cordas, haja vista seu cargo de direção nessa área.
Tanto para Mignone quanto para Guarnieri, além da prática em
regência e composição de arranjos, é digno de nota o favorecimento à criação
musical pela familiaridade com o piano, instrumento típico de estudos de
harmonia e contraponto, também facilitador da “visualização” de peças
orquestrais pela possibilidade de sintetizá-las em reduções (EGG, 2010).
Aliás, não é de se estranhar, ao examinar o catálogo de obras de Guarnieri,
que suas primeiras peças para orquestra foram, na verdade, transcrições de
peças originalmente compostas para piano. Quando jovem, ele se sentia
desconfortável em compor diretamente para grandes conjuntos, o que foi
progressivamente sanado ao longo dos anos, quando pôde reger peças de
sua própria obra.
Até esse ponto se pode dizer, em resumo, que dentre os elementos
fundamentais do período inicial das trajetórias de Guarnieri e Mignone,
chamado aqui de formação, destaca-se a luta para contornar um sistema
parcamente institucionalizado de educação musical, muito voltado ao
aprendizado dos instrumentos e pouco à composição. Sendo assim, é de
se questionar os motivos que os teriam levado a se tornarem compositores,
quando a maior demanda da época era por intérpretes.
Em parte, a escolha pelo investimento na carreira de compositor
foi facilitada pela “versatilidade”, mas só se pode compreendê-la de fato a
partir do ingresso de Guarnieri e Mignone nos círculos da alta sociedade,
onde desempenharam papéis subalternos, se comparados aos ocupados
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 31
pelos pianistas advindos das famílias abastadas, que lhes fraqueavam acesso
aos espaços e oportunidades que elas mesmas controlavam. Isto porque a
desvantagem “de origem” frente à competição com os lhos da elite para
a carreira de intérprete de música erudita nesses espaços concorreu para
que os dois jovens músicos lhos de imigrantes se disponibilizassem a
buscar outros caminhos possíveis e outros projetos estéticos a partir dos
quais pudessem realizar suas pretensões de prestígio – que, como visto
na relação de Guarnieri com os pais, entrelaçava consagração artística,
prossionalização do ofício e aspirações de ascensão social.
o caSo de Souza lIMa: o Intérprete reconhecIdo
De outro lado, os musicistas do polo aristocrático, como Souza
Lima, puderam constituir suas carreiras através de atalhos ativados pela
rede de contatos na qual já estavam inseridos. A caracterização de “primo
pobre” que Miceli (2001, p. 104-106) cria para classicar as origens sociais
de parte dos escritores modernistas também pode ser empregada para
descrever as condições percebidas na carreira de pianista de Souza Lima.
Embora não fosse oriundo de família abastada – morava em
uma modesta casa na Rua Tabatinguera, próxima à Sé – acabou sendo
favorecido por um casamento arranjado por seu pai, que lhe permitiu
utilizar as conexões do sogro em seu percurso prossional. Ainda moço
perdeu o pai, o que trouxe, a um só tempo, diculdades nanceiras e a
centralização da gura do irmão mais velho em sua vida, que fora um
dos primeiros homens a seguir carreira de pianista na cidade, e, segundo
Souza Lima, exerceu papel essencial para o núcleo de suas referências e
horizontes de possibilidades artísticas. No entanto, como qualquer outro
do jovem músico do período, precisou buscar sustento nos já mencionados
espaços de divertimento da cidade, mas com a vantagem dos contatos para
ingressar, logo de saída, nos mais “nobres” deles.
As limitações impostas pelos rendimentos modestos e pelo
anonimato melhoravam consideravelmente quando os músicos eram
convidados a tocar em salões de mecenas da oligarquia paulista. Nesse
contexto, Freitas Valle talvez tenha sido um dos mais signicativos
mecenas da música, junto com Olívia Guedes Penteado, por conta de
seu posicionamento à frente da Comissão Fiscal do Pensionato Artístico
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
32 |
do Estado de São Paulo, o qual cumpriu importante papel de alternativa
real de formação musical, agraciando os compositores do local com
grande prestígio. Em troca, Freitas Valle podia contar com a garantia de
ter entretenimento sosticado e compassado com o que havia de mais
requintado na Europa, angariando para sua gura os louros dos préstimos
às artes, modernas ou não – quando não conseguia baixar os custos de
transações de investimentos privados com isto.
Da interdependência estabelecida entre Freitas Valle e alguns
compositores, entre meados de 1910 até os anos 30, destaca-se a experiência
do pianista Souza Lima, registrada em um dos capítulos de seu livro de
memórias. Souza Lima conta que foi introduzido ao convívio da Villa
Kyrial – residência do senador estadual Freitas Valle – por um dos amigos
das reuniões da Casa Sotero, o mesmo local onde também foi habitué o
jovem Francisco Mignone. A partir desta convivência, surgiu a iniciativa de
enviar Souza Lima à capital francesa, em 1919, para aperfeiçoar os estudos
de piano com Isidor Philipp (por recomendação de Chiaarelli e Guiomar
Novaes) e Marguerite Long, no Conservatório de Paris.
A bolsa do Pensionato Artístico de São Paulo era uma decisão
praticamente pessoal de Freitas Valle, que presidia a comissão em uma
época em que não havia qualquer procedimento público de seleção dos
bolsistas. Muitos foram os músicos agraciados, proporcionalmente mais
pianistas e cantores e alguns poucos da composição (caso de Mignone e
Villa-Lobos), todos frequentadores da Vila e um tanto hesitantes sobre os
rumos modernos que as artes tomavam – novamente, à exceção de Villa-
Lobos, que destoava do perl social de origem tradicional dos outros.
Neste ponto, os musicistas agraciados se distanciam dos artistas
modernistas das Belas-Artes, pois apesar de terem participado da Semana de
22 e frequentarem espaços comuns aos intelectuais e artistas modernistas,
não se entusiasmaram tanto com o repertório que lá interpretaram por
indicação dos organizadores. Suas preferências estéticas e repertórios
estavam muito mais identicados aos padrões de gosto, de um lado, das
frações mais tradicionais da elite, de onde provinham, e de outro, das
instituições estrangeiras de formação que frequentaram.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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eleMentoS eXpreSSIvoS daS trajetórIaS feMInInaS
No caso das mulheres, a questão de gênero parece se sobressair à
da origem social como condicionante de escolhas e opções de percurso e há
muitos elementos em comum aos itinerários que evidenciam essa relação
8
.
Independente da origem, sem distinção entre cariocas, mineiras e paulistas,
ou em relação à descendência estrangeira – como Novaes, Rudge, Magdalena
Tagliaerro, Paulina D’Ambrosio, Vera Janacópulos e Bidu Sayão –, nota-
se que praticamente as mesmas oportunidades de carreira foram oferecidas
ou negadas às artistas. Muito embora algumas delas realizassem atividades
de composição e regência, só conseguiram enveredar com reconhecimento
dos pares pelas vias da interpretação – o que não era de pouco prestígio;
pelo contrário, na época, essas instrumentistas eram famosas e seus nomes
conferiam legitimidade a eventos, como o caso de Novaes. Praticamente
todas foram cedo à Europa para completar a formação iniciada.
Nesse contexto, existem dois pontos característicos nas trajetórias
femininas: a circunscrição a carreiras na área de interpretação de repertório
e o peso do fator casamento na determinação das possibilidades de seus
projetos artísticos, que poderia signicar estabilidade de carreira, como
no caso de Novaes, ou de instabilidade, como ocorreu com Rudge. Em
contraposição à “especialização” feminina, a “multiplicidade” masculina,
cultivada na “versatilidade”, facultava aos homens o ingresso em outras
áreas da música, como a composição e a regência. O casamento, embora
também pudesse denotar o mesmo signo de estabilidade para os homens,
não era tão determinante na viabilização de seus projetos. Para ele, os
casamentos passavam por outros sentidos, como o de formar alianças
com famílias tradicionais para auxílio de ingresso nas instituições (caso
de Souza Lima, que se casou por meio de um arranjo realizado com a
família Amaral), ou de suporte à carreira, quando se juntavam a mulheres
musicistas, ou entusiastas, que participavam ativamente das vidas artísticas
dos maridos. Esse arranjo, para as mulheres (como as de Guarnieri,
Mignone e Villa-Lobos), implicava estabilidade, uma vez que as liberava
das obrigações domésticas para que pudessem se empenhar nos planos dos
8
Os dados de cada itinerário foram extraídos do estudo de Dalila Vasconcellos Carvalho, anteriormente citado, e
cotejados com os poucos materiais a que tive acesso sobre essas artistas. Como tais são escassos, reproduzo quase
que integralmente as informações dessa fonte, mais concentradas no capítulo Vocação musical: conexões de
gênero e classe social em três gerações de músicos (CARVALHO, 2012, p. 23-84). Para outras fontes biográcas
ver Eurico Nogueira França (1959) e Maria Stella Orsini (1992).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
34 |
maridos, interpretando peças, organizando a obra, acertando detalhes das
viagens a trabalho, juntando materiais úteis à construção do legado deles,
entre outras tarefas.
a paSSageM neceSSárIa pela europa naS trajetórIaS de
coMpoSItoreS e IntérpreteS
Assim como nos itinerários femininos, aos homens também era
requisitada a passagem pela Europa para ns de formação, principalmente
para aqueles que seguiram os caminhos da especialização em um
instrumento. Para os compositores, no entanto, este elemento adquiriu
outros sentidos, entre eles, o de abrir vias para a divulgação de obras e a
manutenção de contato com o que havia de mais recente na linguagem
musical erudita.
Como, em São Paulo, estavam limitados aos salões e festas da
elite, bem como aos horizontes do gosto convencional, pautado pelos
professores italianos alocados nos quadros do CDMSP, trazidos ao país
pelo mecenato oligarca, os primeiros musicistas paulistas que foram para
Europa – antes da derrocada do Movimento Constitucionalista, de 1932,
que acabou por esmorecer a força dos patronos – aproveitaram suas estadias
para servir aos padrões estéticos aos quais viriam a se opor, posteriormente,
ao se juntarem às hostes modernistas.
Camargo Guarnieri, mais novo que os colegas, somente viajou à Paris
em 1938, selecionado por meio da concessão do Prêmio de Aperfeiçoamento
Artístico, controlado por um outro aparato público, o Conselho de Orientação
Artística, que foi instalado no lugar do Pensionato Artístico. Sob maior
controle dos modernistas, sua viagem foi estratégica menos pela formação
do compositor, apesar da relevância das aulas com Koechlin, e mais pela
construção da legitimidade como “compositor sinfônico”.
o SentIdo da adeSão ao MovIMento ModernISta para oS
coMpoSItoreS
Em 1924 e 1927, Guarnieri estudou com dois outros professores
que lhe deram aulas de graça: Antônio de Sá Pereira, professor de piano
do Conservatório Dramático, formado na Europa (Alemanha e Suíça) e,
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| 35
Lamberto Baldi, maestro italiano contratado pela Sociedade Filarmônica
de São Paulo – naquela época era típica a contratação de regentes italianos
de razoável ou médio prestígio na Europa, ao gosto “cosmopolita” dos
frequentadores de ópera. Ao contrário do que se poderia esperar, Baldi
era simpatizante de correntes do modernismo europeu e incorporou parte
deste tipo de repertório na elaboração de programas dos concertos que
dirigia, ao que foi elogiado por Mário de Andrade nos jornais. Sabe-se
por artigos de jornais uruguaios que Lamberto Baldi é considerado um
dos principais operadores da modernização do meio musical do país
vizinho e responsável pelo compasso ao que se fazia de novo na Europa
(GROSSI, 2002). O vínculo decisivo com Baldi foi representado nas
biograas de Guarnieri a partir do chancelamento modernista ao maestro
italiano, diferenciando-o dos “outros” italianos que vinham ao Brasil com
as companhias de ópera. A biógrafa Maria Abreu, por exemplo, se refere a
Baldi despindo-o das eventuais contaminações “europeizantes”, vestindo-o
de “estrangeiro moderno” pronto para contribuir com a parte “técnica
da formação de um jovem compositor nacionalista – a Mário de Andrade
caria conada a “orientação estética”.
No entanto, não só os almejados estudos formais de piano e
composição denem a importância dos três professores de Guarnieri
em São Paulo, somando-se Ernani Braga. Todos se engajaram de alguma
forma no projeto modernista e proporcionaram o decisivo acesso do jovem
aluno ao movimento cultivado em círculos de sociabilidade estratégicos à
viabilização de posições auferidas nas décadas seguintes em órgãos públicos.
Muito do direcionamento à composição e as orientações acerca
dos melhores caminhos para conquista de espaço em um campo musical
desaador à carreira veio do convívio com Braga e Sá Pereira – para não
mencionar a introdução à estética do nacionalismo folclorista, no que
devem ter antecipado o papel cumprido por Mário de Andrade na vida do
artista. Respectivamente, pedagogo e pianista, ambos estiveram no auge
durante o varguismo e promoveram o aluno promissor nas rodas cariocas,
inclusive a Luiz Heitor, quando se mudaram para o Rio de Janeiro na
década de 1930. Não menos importante no estabelecimento das redes de
contato, Lamberto Baldi despertou em Curt Lange o interesse em conhecer
o aluno. Mais tarde, por inuência dessas alianças, Guarnieri chamaria a
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36 |
atenção de agentes ligados às políticas de cultura para a América Latina dos
Estados Unidos, em meados dos anos 1940.
Contudo, para as biógrafas aqui contempladas, que se amparam
nas memórias do compositor, o maior responsável pelo acesso do jovem
ao círculo modernista, e posteriormente, por sua posição de destaque,
foi Mário de Andrade. Não à toa, evidenciam Abreu e Verhaalen, que
Guarnieri se refere constantemente a Baldi e Mário como seus dois grandes
mestres; o primeiro, pela educação clássica e sólida de composição, e o
segundo, pela educação cultural e orientações estéticas, seguidas elmente.
No entanto, talvez, em um primeiro momento, a importância
de Mário tenha se dado em função da divulgação do recém-estabelecido
amigo nas colunas de crítica cultural dos jornais para os quais colaborava,
haja vista que escrevia regularmente sobre as qualidades “nacionais” das
peças de Guarnieri. De qualquer maneira, a visão de que Mário de Andrade
era uma espécie de mentor que determinou vários dos aspectos presentes
na obra de Guarnieri, foi amplamente aceita entre os agentes da crítica
musical próximos ou simpáticos a Mário.
Em contrapartida, observa Egg (2010), na trajetória de Villa-
Lobos, a presença de Mário de Andrade é vista como aliada, pois o ilustre
musicista é sempre representado a partir de sua autossuciência e seu
autodidatismo, e dicilmente seria “inuenciado” esteticamente. Assim,
Villa-Lobos seria um “modernista por si só” aos olhos da crítica, enquanto
os dois compositores mais novos aqui retratados, Mignone e Guarnieri,
teriam recebido “inuências diretas”, “mentores”, “mestres”.
Mignone, inclusive, foi considerado por parte da crítica
modernista como “italianizado” demais, precisando ser “convertido” por
Mário de Andrade à cultura brasileira. Guarnieri, por sua vez, nascido em
meio ao ambiente rural do interior paulista, onde o folclore não tinha
sido contaminado pelo “cosmopolitismo” urbano, foi identicado com
maior potencial. Com efeito, tomando um fantasioso instante de “eleição
do pupilo pelo mestre”, como referência à sua “nova fase” de “compositor
erudito prossional”, egresso da fase “1923-1928” de pianista de salão,
o incremento biográco e a crítica da época, a um só tempo, forjam
Guarnieri como herdeiro “mais legítimo” do modernismo e encobrem um
longo processo de determinação social, isto é, o período de formação em
que Guarnieri progressivamente se encaminhou para a composição, área
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 37
que lhe pareceu mais rentável para cavar um lugar próprio no difícil meio
musical erudito.
Dessa forma, ignora a difícil adaptação ao meio musical paulista,
repleto de problemas que deveriam despertar inseguranças em um jovem
artista, portador de tantos investimentos simbólicos e materiais por parte
da família em relação ao seu projeto de ganhar destaque e se prossionalizar
em um meio incipiente.
conSIderaçõeS fInaIS
Como visto, existem muitos elementos comuns às trajetórias dos
jovens compositores que ingressaram nos meios modernistas, encampando
suas atividades e dando corpo de obra às ideias dos intelectuais que os
iniciaram. As origens sociais são muito semelhantes, bem como a ética do
trabalho imiscuída na construção da vocação de compositor – ética que não
se agura nas trajetórias dos músicos de origem aristocrática, que auferiram
um reconhecimento maior como intérpretes e para os quais a vocação e a
questão do dom passam pela pureza daquilo que lhes é nato. Para eles,
de origem imigrante, a necessidade de cavar seus espaços junto às elites
oligárquicas perpassa pelo estabelecimento de relações de interdependência
com os intelectuais modernistas.
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P , 
 -  
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 C G-P
Frederico Barros
[…] depois já de um quarto de século, maior e menor não existem
mais, e somente poucas pessoas sabem disso. Era tão excitante voar
em direção às mais longínquas regiões tonais, para depois retornar
ao ninho aconchegante da tonalidade original! E, de repente, não
se voltou mais – esses acordes astutos tornaram-se tão equívocos!
Era muito agradável tudo isso, mas nalmente não se considerou
imprescindível retornar à tônica. […] Para resumir, eu diria: da
mesma maneira que os modos eclesiásticos desapareceram e deram
lugar aos modos maior e menor, esses dois por sua vez também
desapareceram e deram lugar a uma escala única: a gama cromática.
A relação com a tônica – a tonalidade – foi perdida. (WEBERN,
1984, p. 86).
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p41-60
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O trecho acima foi tirado de uma das palestras ministradas entre
1932 e 1933 por Anton Webern, posteriormente compiladas e publicadas
sob o título O Caminho para a Música Nova. Webern, Alban Berg e
Arnold Schönberg (professor deles), formaram a Segunda Escola de Viena,
considerada pelos livros de história como responsável por parte considerável
do que é associado à música moderna, tendo em vista a grande inuência,
no século XX, de seus procedimentos técnicos, suas opções estéticas e visão
da história da música de concerto ocidental.
Esse último aspecto inclusive, pode ser observado, mesmo que
rapidamente, no trecho destacado, pois, ao explicar o desenvolvimento
do atonalismo, isto é, da criação de uma música que, de certo modo,
evita ter uma tonalidade denida, Webern enfatiza a continuidade entre
o que realizavam e a tradição musical europeia, armando que sua música
nada mais seria que o resultado da aplicação e do desenvolvimento de
consequências lógicas tiradas da prática comum daquela tradição.
A questão é que, para seguir princípios já contidos na música
do passado e ainda assim produzir algo que guarde diferenças estilísticas e
estéticas com ela, vê-se forçado a – conscientemente ou não – selecionar
quais princípios serão seguidos, deixando outros de lado por considerá-los
de menor importância, desinteressantes para os objetivos que se tem em
mente, ou por encará-los como resquícios daquilo ao qual não interessa
mais estar ligado.
Em poucas palavras, trata-se do m do chamado período da
prática comum (PISTON, 1987, p. 5-6), quando, a despeito de todas as
questões que possam ser levantadas quanto ao nível de generalidade dessa
noção, havia uma homogeneidade considerável em termos de materiais e
procedimentos adotados por quem produzia música ligada à tradição de
concerto europeia e ocidental, em torno da qual se estabeleceu o conjunto
de práticas conhecida como tonalismo. Por volta do m do século XIX,
por razões que não poderão ser exploradas a fundo aqui, compositores
que integravam essa tradição começaram a produzir obras indiferentes ou
mesmo deliberadamente contrárias aos princípios que eram amplamente
empregados antes.
Os suspeitos de sempre – Varèse, Debussy, Scriabin, Stravinsky,
Schönberg, Webern, entre outros – experimentavam com aquilo que
tinham à mão, dentre o que foi deixado pela tradição e o que era trazido
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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de terras longínquas para os centros cosmopolitas da Europa, e tentavam
criar uma música desembaraçada da sensibilidade e da estética românticas.
Neste sentido, a cultura produzida por grupos humanos menos diretamente
afetados pela civilização ocidental (como os habitantes da Polinésia, da
África setentrional ou do interior do próprio país do compositor) era vista
com especial interesse, pois, basear-se nas manifestações sonoras, pictóricas
e coreográcas que estes grupos produziam, a princípio alheias àquilo que
formou o gosto europeu urbano, seria uma forma de fertilizar com novas
sugestões a cansada arte europeia vinda do século XIX.
Em termos musicais, isso signicou, por exemplo, a montagem
de estruturas rítmicas que contrariavam a lógica regular dos compassos
europeus ou, ainda, o que interessa mais aqui, a elaboração de fragmentos
melódicos contendo relações intervalares insuspeitas, de sabor exótico ou
arcaico, que sugeriam ou ao menos continham harmonias muitas vezes
indiferentes àquilo que havia sido praticado desde que o tonalismo tomou
forma. Neste sentido, há de se notar um elemento importante na narrativa
dos compositores da Segunda Escola de Viena a respeito de si próprios: eles
estão entre os poucos cuja produção se baseia quase que exclusivamente
(é preciso dizer “quase” porque gêneros ligeiros como a música de cabaré,
por exemplo, ecoam por vezes em suas obras) na exploração do próprio
repertório de concerto europeu. Neste sentido, ao menos, Schönberg e
seus alunos são os mais radicalmente vinculados à tradição, basicamente
explorando aquilo que ela tinha a oferecer, ainda que tirando daí
consequências muitas vezes extremas.
Após um período em geral chamado de “atonal” ou “atonal livre”,
associado ao Expressionismo, que teve lugar aproximadamente entre os
anos de 1908 e 1923, aqueles compositores começaram a trabalhar a partir
de um método de composição que recebeu o nome de dodecafonismo.
Na verdade, Schönberg acreditava tê-lo descoberto e tentava demonstrar
seu vínculo com a tradição alemã, armando que ele não passava de um
resultado da exploração consistente de alguns procedimentos já presentes
na prática de seus predecessores. Para ele, a nova técnica de composição
seria uma forma necessária de sistematizar o atonalismo de modo a lhe dar
consistência e coerência.
Da maneira como Schönberg o compreendia, o dodecafonismo,
ou “método de composição com doze sons relacionados somente entre
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si”, como ele preferia chamá-lo, baseava-se no seguinte: desde a segunda
metade do século XIX, Wagner, Brahms, Mahler e outros compositores da
tradição austro-alemã vinham expandindo o universo das relações tonais,
que, como se sabe, serviam em grande parte para estruturar o discurso.
Na virada do século XIX para o XX, a exploração das possibilidades da
tonalidade mencionadas por Webern na epígrafe, alcançando regiões cada
vez mais distantes em espaços de tempo progressivamente mais curtos
e, conjuntamente, certa sensação de esgotamento das possibilidades
combinatórias do tonalismo – o que Charles Rosen propõe compreender
como uma espécie de “intolerância” ao uso de material visto como
convencional –, levaram a um progressivo enfraquecimento da sensação de
tonalidade em detrimento de fenômenos de menor alcance.
Para garantir alguma coerência ao discurso, a solução adotada
naquela tradição tendeu a ser o encadeamento dos diferentes fenômenos
com base em suas características “locais”. Neste sentido, deu-se particular
importância ao elemento melódico, desde que possuísse algum caráter
distintivo, o que se coadunava bem com a preocupação, herdada do século
XIX, em evitar a convencionalidade do material usado na composição.
Assim, o motivo, ou seja, uma célula melódica, que servia como material
básico do processo composicional, foi erigida como peça fundamental
na organização do discurso, sendo em boa medida o que possibilitava o
trânsito pelas diversas tonalidades, mantendo a coerência do discurso. Foi
justamente a isso que Schönberg se ateve ao romper com a tonalidade
e, mais ainda, ao desenvolver o dodecafonismo (BARRAUD, 2005;
DAHLHAUS, 1989, 1997; PISTON, 1987, p. 457; ROSEN, 1996, p.
14; WEBERN, 1984).
O húngaro Béla Bartók acabou por ocupar um lugar interessante
nesse contexto, visto que, pelo que consta, sua música era bastante
admirada pelo círculo de Schönberg (ADORNO, 2010). No entanto, ele
e o vienense guardavam divergências profundas a respeito de ao menos
dois temas: quanto à utilização de material “folclórico” (SCHOENBERG,
1984) – algo que será discutido mais abaixo – e em relação ao problema
da centricidade na música (ANTOKOLETZ, 1989; LENDVAI, 1991;
FRIGYESI, 1998). Em suas próprias palavras:
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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Our peasant music, naturally, is invariably tonal, if not always in
the sense that the inexible major and minor system is tonal. (An
atonal’ folk-music, in my opinion, is unthinkable.) Since we depend
upon a tonal basis of this kind in our creative work, it is quite
self-evident that our works are quite pronouncedly tonal in type. I
must admit, however, that there was a time when I thought I was
approaching a species of twelve-tone music. Yet even in works of that
period the absolute tonal foundation is unmistakable (BARTÓK
apud PERLE, 1996, p. 46-47).
A observação sobre um tonalismo que não fosse necessariamente
baseado nos modos maior e menor ocidentais é fundamental para que se
compreenda boa parte da música de concerto do século XX. De fato, desde
a metade do século XIX, diversas formas de raciocínio tonal, até certo
ponto, foram aplicadas a outras estruturas que não os modos maior e menor
do período da prática comum, com resultados que vão do exotismo ou da
evocação do passado até graus variados de sistematização e generalidade.
1
A explicação clássica de Arnold Schönberg, que sustenta sua
teoria do desenvolvimento da atonalidade, é a de que a prática musical
ocidental teria caminhado em direção à progressiva conquista de todo o
domínio sonoro. Essa ideia se baseia na série harmônica para atribuir certas
características fundacionais à chamada coleção diatônica (que é como se
chama o conjunto das sete notas que formam as conhecidas “escalas” maiores
e menores – o , , mi, , sol, , si e suas transposições e rotações), cujas
sete notas seriam originadas de relações acústicas mais básicas e as cinco
notas que completam o total cromático não passariam de harmônicos mais
distantes, que cedo ou tarde também seriam incorporados com “direitos
iguais” à prática musical. Conseguido isso, os dois modos diatônicos
seriam, também eles, substituídos pela escala cromática (SCHOENBERG,
2001; WEBERN, 1984).
Acontece que, na mesma época em que os vienenses cediam
às forças históricas que diziam sentir atuar sobre sua música, outros
compositores reagiam a isso de modo próprio: procuravam novas
possibilidades nos antigos modos que haviam sido abandonados, criavam
1
Ver o capítulo sobre os modos em Persichetti (1961), no qual o autor teoriza sobre acordes secundários e
acordes principais em cada modo. Ver também Gonnard (2000); Antokoletz (1989, 1992); Salles (2009).
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modos articialmente ou buscavam-nos junto a outras tradições. Por um
lado, os modos ofereciam uma sonoridade que era identicada como
arcaica, remetendo à música da Renascença e mesmo medieval; por outro,
vários dos modos eram encontrados na música de outros grupos que não
partilhavam da prática comum e por isso começaram a despertar cada
vez mais interesse em tempos de folclorismo e nacionalismo musical. De
uma maneira ou de outra, os modos signicavam um afastamento da
prática comum, sendo que, em muitos casos, procedimentos especícos da
prática comum tonal conviviam em uma mesma peça com procedimentos
tipicamente modais. Além disso – ou talvez por isso mesmo –, muitas
vezes o tratamento dado aos próprios modos tinha pontos fundamentais
em comum com o raciocínio que guiava o tonalismo.
O principal deles era a própria noção de centricidade (STRAUS,
2000), categoria mais neutra que desembaraça possíveis confusões
decorrentes do termo tonalidade, que acaba por remeter ao tonalismo
tradicional. Centricidade é o fenômeno pelo qual uma nota (uma “altura”,
para usar o termo tecnicamente mais rigoroso) passa a exercer uma espécie
de efeito polarizador sobre as outras em um trecho de música, acabando
por funcionar também, em alguma medida, como uma espécie de ponto
de referência hierárquica, como acontecia no tonalismo. Os mecanismos
para produzir essa polarização são vários e, na prática comum, incluem o
tratamento cuidadoso das notas que não pertencem à coleção que se está
empregando e das demais dissonâncias e o estabelecimento de funções para
os acordes, sendo esses dois os principais procedimentos a serem adaptados
a determinadas práticas modais (PERSICHETTI, 1961).
Na música do século XX, porém, além dessas, outras formas
de produzir centricidade foram desenvolvidas, dentre as quais a simples
repetição da altura em torno da qual se está querendo polarizar, ou mesmo
sua polarização por ausência (STRAUS, 2000; SALLES, 2009.
uM métier para a MúSIca BraSIleIra
Após esse início, que pode ser considerado como técnico-
histórico, além de bastante eurocentrado, desloca-se o olhar para o Brasil
dos anos 1940 e 50, onde se tem oportunidade de observar outra solução
para os problemas gerais discutidos acima, que une nacionalismo, estudos
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 47
de folclore, modalismo, acústica e teorias sobre a tonalidade sob uma lógica
até certo ponto própria.
Esquematicamente, duas ideias de progressismo coexistiam na
reexão da época sobre música no Brasil: para alguns, uma obra avançada
era aquela de linguagem composicional arrojada (segundo os referenciais
estéticos que vigoravam então); para outros, como nos círculos comunistas,
o chamado realismo socialista propunha um progressismo artístico ancorado
na realização de uma música “para as massas”, positiva e portadora de
valores associados à sociedade que, segundo a escatologia soviética, estaria
por vir.
Neste quadro, colocar-se em perspectiva mais distante do realismo
socialista ou raciocinar a partir de um ponto de vista puramente técnico,
poderia signicar uma capitulação pelo abandono do dodecafonismo. No
caso do compositor, arranjador e estudioso da música, César Guerra-Peixe,
essa situação lhe trazia um dilema: ao compor música dodecafônica, como
vinha fazendo ao longo dos anos 40, ele se ligava a toda uma percepção
mais ampla sobre o que era uma música avançada; por outro lado, afastar-
se dessa música causava um problema acerca do enquadramento de sua
produção. Se, como armou, ele tinha uma preocupação clara em não ser
atraído para a órbita de Villa-Lobos ao se tornar nacionalista, era preciso
encontrar uma forma de trabalhar o material folclórico que garantisse uma
fatura musical anada com os referenciais da música de concerto do século
XX tanto no plano técnico-estético como no plano do elemento nacional.
Sobre este último, contenta-se, nesse momento, em apenas
referenciar a discussão feita em BARROS (2017), lembrando que, advindo
de outra tradição, o elemento folclórico tende a operar, em certa medida,
por outras bases, cujas diferenças devem ser decodicadas na chave de
uma discrepância de complexidade entre o tratamento e os materiais.
Nesse ponto, o nacionalismo se encontra com o estético e o técnico, pois,
dependendo do grau de adesão do compositor em relação aos referenciais
estéticos mais gerais da tradição ocidental de concerto, cria-se quase que
uma espécie de trabalho extra na composição para fazer os elementos
díspares se encontrarem. Sobre isso, Guerra-Peixe chegou a armar que
julgava a “transposição dos elementos populares para a música erudita
um problema “maior que o dodecafônico”, e trabalhou ativamente para
desenvolver esse métier.
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Mário de Andrade, cuja inuência no nacionalismo musical
brasileiro foi enorme, foi explícito ao armar, no Ensaio sobre a música
brasileira, que “os processos de harmonização sempre ultrapassam as
nacionalidades” e que, ainda que haja uma possível “ambiência harmônica
decorrente do emprego de modos e escalas característicos, “a música
artística não pode se restringir aos processos harmônicos populares, pobres
por demais”. Por isso, segundo ele, tudo acabaria coincidindo “fatalmente
com a harmonia europeia”, ou então dever-se-ia criar um novo sistema
de harmonizar que terminaria por ser falso ou individualista, mas não
nacional (ANDRADE, 2006, p. 38-39).
É difícil saber até que ponto Guerra-Peixe compartilhava dessas
ideias, mas o que se sabe é que ele via, mesmo em um contexto tonal,
diferenças entre a harmonia encontrada na música que pesquisava e a tradição
europeia, e a importância disso para ele parecia ir além de um simples sabor
característico. Por exemplo, comentando, em 1949, a recém-composta Suíte
para quarteto ou orquestra de cordas, ele escreveu que “[...] não é composição
dodecafônica, pelo contrário empreguei certas constâncias da harmonia
popular brasileira.” (GUERRA-PEIXE, 1950, 1951).
O ponto é que, ao trabalhar com materiais provenientes de
diferentes tradições, Guerra-Peixe apoiou-se em princípios harmônicos
mais gerais para organizar suas composições, que supostamente seriam
capazes de abarcar as diferenças e ao mesmo tempo permitir a manifestação
das especicidades presentes nos elementos que eram postos em contato
em sua nova música. Uma das características fundamentais desse conjunto
de princípios é que, ao menos teoricamente, eles permitiriam a criação
de centros, de polos de atração, como a tônica na música tonal, mesmo
na construção de linhas melódicas tão tortuosas ou aglomerados sonoros
tão complexos quanto aqueles praticados pelos atonalistas. Assim, Guerra-
Peixe teria uma forma de manter a centricidade que enxergava na música
encontrada em suas pesquisas, porém sem prender-se completamente ao
tonalismo ou à simples aplicação de sua lógica a outros modos.
Dizer que há um tom implica em estabelecer um condicionamento
a um polo tonal, que é um ponto de referência que se apresenta de forma
diferente para cada tipo de música, a exemplo da música folclórica nordestina
ou carioca. Atonal, por consequência, quer dizer sem tom, isto é, sem polo
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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tonal, e sem outras relações, embora possam ser criadas formalmente, mas aí
não há nenhum compromisso com nada (GUERRA-PEIXE, 1984).
Pelo exposto, nota-se que era possível, então, juntar elementos
do “folclore” com procedimentos da música de concerto do século XX,
produzindo uma estruturação lógica da dimensão harmônica da peça, o
que era importante para um compositor cuja obra aspirava fazer parte da
tradição ocidental de concerto. A sobreposição de modos e tonalidades
diferentes, por exemplo, muito presente nas obras de Guerra-Peixe
do período imediatamente posterior ao abandono do dodecafonismo,
tinha frequentemente o efeito de “nublar” – ou “diluir”, para usar
termo empregado por ele (GUERRA-PEIXE, 1950) – o excessivamente
característico, ao que se somava o procedimento de transposição direta
(no sentido musical de tomar um trecho de música e transpô-lo para
outra altura), de maneira abrupta até o material apresentado. Por meio
desses recursos, foi possível produzir texturas com um grau elevado de
cromatismo, usando material folclórico, que tendia a ser diatônico.
2
Assim
Guerra-Peixe não descaracterizava o material, mas conseguia retirar dele
uma complexidade maior.
Se em relação a uma possível realização harmônica brasileira as
opiniões de Guerra-Peixe e Mário de Andrade talvez não convirjam tanto, a
proximidade entre eles se estabelece em relação à avaliação das características
melódicas de uma dada tradição musical pela presença de intervalos
especícos. Trata-se de algo curioso, uma vez que os dois fatos estão até
certo ponto ligados. Anal, ao entender-se o modo não simplesmente como
uma estrutura escalar, mas como portador de algumas fórmulas melódicas,
especialmente nas cadências, a presença de certos intervalos tenderia a
implicar modos especícos e, por consequência, campos harmônicos e
estruturas acordais correspondentes, o que poderia levar à percepção de
constâncias” não só na melodia como também na harmonia.
Não se trata de negar que o pesquisador Guerra-Peixe pudesse
pensar em modos como coleções de alturas com um centro denido ao
analisar determinada manifestação folclórica, mas ele não necessariamente
precisaria olhar para a música folclórica e retirar dali um raciocínio modal.
2 Cromático e diatônico se opõem na medida em que aquilo que é diatônico se restringe às sete notas da coleção
diatônica, ao passo que o que é cromático utiliza também as cinco outras notas que completam os doze sons da
gama cromática que serve de base ao sistema.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
50 |
Enquanto compositor, ele poderia partir da presença e, principalmente
do que ele considerava característico em determinados intervalos, sem
enquadrá-los em modos; ou olhar para aquelas estruturas simplesmente do
ponto de vista da inclinação a outras regiões; ou ainda como cromatismo
propriamente, submetendo tudo aquilo ao sistema tonal. As possibilidades
são muitas.
Seja como for, mesmo sem renunciar a várias das complexidades
encontradas na música da primeira metade do século XX, Guerra-
Peixe parecia buscar a sonoridade que percebia como característica de
cada modo nas diversas manifestações folclóricas que pesquisou, o que
signicava muitas vezes deixar de lado várias das estruturas melódicas
que se encontravam na música europeia, mesmo nos casos em que as
escalas subjacentes coincidissem. Assim, quando insere cromatizações
ou mudanças de centro, Guerra-Peixe parece tentar manter a sonoridade
característica do modo no plano melódico, o que é interessante diante do
fato de que, como já observado, o acompanhamento muitas vezes tem por
objetivo “nublar” o som “puro” do modo, no que parece uma busca pela
produção de complexidade e ambiguidade.
3
Se, por um lado, o afastamento de uma sonoridade mais próxima
do veio principal da tradição de concerto não causa surpresa em um
compositor brasileiro preocupado com a criação de uma música que
pudesse ser identicada com sua nacionalidade, o impulso de complexicar
o material colhido no folclore no momento de “transportá-lo” para aquela
outra realidade (bem como os mecanismos encontrados por Guerra-Peixe
para fazê-lo) merece alguma atenção.
Apesar do discurso de que o que importava era a música brasileira,
que ser moderno nos moldes que o dodecafonismo oferecia não tinha valor
(GUERRA-PEIXE, 1948, 1949), a ligação mais forte com a brasilidade que
com a modernidade parecia ter seus limites. Ao que tudo indica, embora a
preocupação em estar na linha de frente da arte de sua época tenha de fato
cado em segundo plano, a música para sala de concertos de Guerra-Peixe
parece nunca ter se afastado completamente de referenciais da tradição.
Isso pode ser comprovado, por exemplo, quando Béla Bartók aponta no
Pribaoutki de Stravinsky procedimentos muito similares aos que Guerra-
3
Para alguns exemplos, ver o Maracatu da Suíte para Quarteto ou Orquestra de Cordas, o Pedinte da Suíte n
o
2
Nordestina ou o primeiro movimento do Trio para violino, violoncelo e piano.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 51
Peixe emprega fartamente ao juntar melodias de inspiração folclórica – de
perl mais diatônico – e texturas de caráter fortemente cromático:
e vocal part consists of motives which […] throughout are imitations
of Russian folk music motives. e characteristic brevity of these
motives, all of them taken into consideration separately, is absolutely
tonal, a circumstance that makes possible a kind of instrumental
accompaniment composed of a sequence of underlying, more or less
atonal tone-patches very characteristic of the temper of the motives
(BARTÓK apud ANTOKOLETZ, 1992, p. 94).
Sendo assim, a ida de Guerra-Peixe para o Recife e para o interior
de São Paulo em prol da pesquisa folclórica não signicou, portanto,
a troca completa da música de concerto de sua época por uma suposta
música brasileira” ainda por ser criada. Ao contrário, como percebe-se,
ele parecia se preocupar em ligar sua música à contemporaneidade pela
via da tradição de concerto ocidental – anal, era para a sala de concertos
que ele continuava direcionando a maior parte de seus esforços artísticos.
Nesse movimento de continuar produzindo dentro dos marcos de uma
tradição especíca, nota-se uma preocupação de viés existencial, de se
permanecer ligado àquilo para que se foi formado, para que se direcionou
a própria trajetória. Mas, certamente, aí subjaz também uma boa dose
de autoarmação diante dos pares, pois procurava mostrar que possuía
técnica e recursos para a criação de uma música moderna, brasileira e bem
acabada.
Nada disso, porém, basta para compreender concretamente sua
arte, não porque seja inefável, mas porque muitas são as possibilidades
de responder em termos musicais aos desaos propostos. Assim, há
que se considerar que técnicas como polimodalismo e politonalismo,
que pressupõem a sobreposição de estruturas provenientes de modos e/
ou tonalidades diferentes, fazendo-as muitas vezes se chocarem ou ao
menos conviverem em algum grau de tensão, talvez tivessem maior
alcance na maneira de pensar a música na época, pois tendiam a ser vistas
como especialmente adequadas ao diatonismo implícito no modalismo
(MILHAUD, 1982, p. 201), este, por sua vez, um elemento importante
na denição identitária da sempre nascente música de concerto.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
52 |
harMonIa acúStIca
Visto que Guerra-Peixe reconhecia centricidade na música
folclórica, questiona-se: como ele poderia produzir efeito similar nas
estruturas complexas com as quais trabalhava em sua música, quando
elas, ao menos teoricamente, tendiam a enfraquecer qualquer sensação de
polarização? Isto é, como poderia criar uma música que fosse, ao mesmo
tempo, modal, cromática e cêntrica, e ainda de maneira consistente?
Não há, até onde se sabe, referências signicativas sobre o problema
especíco do trabalho harmônico e modal nos escritos de Guerra-Peixe da
época, mas pode-se imaginar que esse tipo de questionamento tenha sido
realizado no período de gestação de sua nova fase composicional, a que ele
chamou de “crise de orientação” e que durou do m dos anos 1940 até
mais ou menos a metade da década seguinte. Diante disso, faz sentido a
busca em sua bagagem técnica e teórica por instrumentos que pudessem
lidar com os problemas trazidos por suas novas exigências estéticas.
Em 1944, Guerra-Peixe foi estudar com o autista alemão Hans-
Joachim Koellreutter, conhecido pela introdução do dodecafonismo no
Brasil, e criador da Harmonia Acústica, cuja expressão não diz muita coisa
para a maioria dos músicos de hoje, mas que se refere a uma teoria de
Hindemith, compilada em uma tabela que era ensinada por Koellreutter.
Sabe-se que harmonia é a combinação de dois ou mais sons, pela relação
dos intervalos, e que existem intervalos consonantes, outros, meio termo,
outros maiores, depois, uma dissonância mais suave, outra mais agressiva,
chamadas gradações do dinamismo harmônico. Segundo Guerra-Peixe
(1984), “Koellreutter chamava isso de harmonia acústica, e eu achei um
bom nome. Mas ninguém desenvolveu isso; inclusive há um americano
que usa isso, dá exemplos, mas não dá o ensino da coisa. Então, eu criei
uma didática que funciona, mesmo”.
Ao que parece, Guerra-Peixe mais tarde se desencantou em
relação a Hindemith, o que talvez explique o fato de ter abandonado os
princípios aprendidos, mas sua admiração pelo músico alemão era de tal
monta que, segundo relatou Sérgio Nepomuceno (2007, p. 151), ele lhe
teria presenteado a partitura de Mathis der Maler com as seguintes palavras:
“Nepomuceno, aqui está a bíblia harmônica dos tempos modernos, sem
precisarmos de Schönberg”. Posteriormente, já nos anos 1980, Guerra-
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 53
Peixe publicou uma apostila didática chamada Melos e Harmonia Acústica
(GUERRA-PEIXE, 1988), que traz o subtítulo “Princípios de Composição
Musical”. O trabalho é muito posterior ao período enfocado aqui, mas
serve ao menos de conrmação e mesmo de explicitação para os termos
nos quais, acredita-se, ele já pensava antes, tendo em vista a época em que
travou contato com tais técnicas, nos anos 1940.
Ainda no prefácio (denominado Prelúdio), Guerra-Peixe arma
que “foi o professor H. J. Koellreutter quem trouxe para o Brasil o
estudo da Melodia e daquilo que ele denominava ‘Harmonia Acústica’,
ambos os estudos com apoio nas obras de ensino de Paul Hindemith e
outros” (GUERRA-PEIXE, 1988). Na apostila, após exercícios iniciais de
construção melódica (agrupados dentro de uma primeira parte denominada
“Melos”), há a uma seção na qual é discutida a estruturação de pequenas
peças a duas vozes para, em seguida, levar à parte denominada “Harmonia
Acústica”. Ali encontram-se princípios praticamente idênticos aos que
Hindemith descreve em seu Unterweisung im Tonsatz (HINDEMITH,
1970), publicado pela primeira vez em 1937. Especialmente no que tange
à “tensão proporcional dos intervalos”, quando se discute o “emprego
racionalizado das consonâncias e dissonâncias” (GUERRA-PEIXE, 1988,
p. 30) e se estabelece uma forma de organizar os aglomerados sonoros a
partir da noção de intervalo, os conceitos parecem claramente originados
na teoria do compositor alemão.
Basicamente, trata-se de um sistema de tonalidade expandida que
permite classicar virtualmente qualquer aglomerado sonoro e, a partir dessa
classicação, integrá-lo a um discurso musical estruturalmente organizado.
De fato, tais ideias parecem ter tido alguma circulação na época, embora
não tão sistematizadas como nos trabalhos de Hindemith e Guerra-Peixe.
Por exemplo, em Twentieth-Century Harmonym, de Vincent Persichetti,
que foi provavelmente a primeira obra a tentar elaborar uma síntese sobre
a prática harmônica
4
dos compositores da tradição de concerto da primeira
metade do século XX, encontram-se descrições muito similares às que são
oferecidas por Hindemith e Guerra-Peixe em seus respectivos trabalhos,
inclusive trazendo discussões sobre o grau de dissonância dos intervalos
4 O termo é do próprio Persichetti, e é interessante perceber que já na época se falava em uma prática comum
entre os compositores, assunto que só se tornaria mais consensual na literatura musicológica a partir do m do
século XX (PERSICHETTI, 1961, p. 9).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
54 |
e o controle da tensão proporcional entre eles (PERSICHETTI, 1961, p.
14-21), porém, sem o ponto principal da teoria, que era a possibilidade
de estabelecer a base fundamental de qualquer aglomerado sonoro, e
também sem qualquer teorização sobre o aspecto melódico. O problema
da “utuação harmônica” (a observação do grau de tensão relativa entre as
simultaneidades de um trecho) aparece não somente em Persichetti, como
é mencionado por Allen Forte em seu artigo sobre Hindemith (FORTE,
1998), que, salvo engano, foi quem criou uma teoria para o controle e a
organização consciente do discurso, considerando-o também como recurso
e preocupação estética.
Da maneira como Guerra-Peixe propõe, o sistema se organiza
a partir de uma “série” – sem nenhuma relação com as séries dos
dodecafonistas e serialistas, como se verá em seguida – em que os intervalos
são classicados de acordo com seu grau de tensão:
Série de Tensões de Intervalos
Apesar de Guerra-Peixe falar também em consonâncias perfeitas
e imperfeitas, dissonâncias brandas e agudas e intervalos vagos, como o
trítono, na prática, há um contínuo que vai da consonância à dissonância
(na gura, da esquerda para a direita em um crescente de tensão). Até aí,
nada de novo. Contudo, além disso, o autor propõe que entre os intervalos
presentes em dada simultaneidade, o menos tenso seria mais “forte”, e por
isso predominaria sobre os outros, o que, por consequência, permitiria
encontrar a fundamental do aglomerado de notas – à exceção de certas
estruturas simétricas e do trítono, que não teriam fundamental.
De resto, nota-se também a fundamental de cada um desses
intervalos (a gura usa sempre o como referência, que é apresentado
com a cabeça de nota preta), sendo que entre sétimas menores e maiores
não seria possível estabelecer qual a mais tensa, nem entre segundas
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 55
menores e maiores. Logicamente, como já foi mencionado, segundo
essa teoria, não seria possível encontrar a fundamental de estruturas
simétricas, o que de certo modo vai ao encontro do pensamento tonal,
que durante o século XIX explorou esse tipo de formação como meio
para alcançar regiões tonais mais distantes a partir da reinterpretação
enarmônica de acordes diminutos ou aumentados (BAILEY, 1985;
COHN, 1996; SICILIANO, 2005).
Além disso, há uma convergência considerável entre a teoria
tonal clássica e a Harmonia Acústica no que diz respeito à classicação dos
acordes, a maioria deles entendidos da mesma maneira nos dois sistemas.
5
Isso reforça a leitura da proposta de Guerra-Peixe e Hindemith como
uma espécie de teoria para uma tonalidade expandida, que Guerra-Peixe
explicou, em entrevista posterior, não se tratar nem de tonal, nem atonal e
nem modal. Para ele,
é a harmonia independente de ser tonal, atonal, modal; vale pelo
intervalo. É um negócio matemático, mas a gente pode saber que
o intervalo de oitava tem uma classicação, as terças têm outra, as
sétimas e segundas têm outra. Não é preciso saber matemática para
compreender isso, mesmo porque eu já tive alunos matemáticos,
engenheiros, arquitetos. Houve uma ocasião que eu estava em
dúvida, achando que estava errado. Pedi a um desses alunos para
vericar, ele pegou uma tabela, e constatou que está tudo correto.
(GUERRA-PEIXE, 1986).
Todavia, existem algumas diferenças de ênfase e de substância
na comparação das explicações de Guerra-Peixe e o sistema elaborado por
Hindemith. Embora não tenha sido possível encontrar comentários de
Guerra-Peixe sobre politonalismo e polimodalismo, parece bastante clara
a presença dessas técnicas em suas obras dos anos 1950. Hindemith, por
sua vez, é explícito ao armar que seria impossível produzir a sensação
de duas tonalidades simultâneas, visto que um dos acordes sempre iria
se impor como mais forte, fazendo com que o aglomerado inteiro fosse
ouvido como submetido a sua fundamental (HINDEMITH, 1970).
5
Uma exceção curiosa é o acorde maior com sexta adicionada, cuja ambiguidade tonal foi explorada grandemente
na música da virada do século (AUSTIN, 1970; BAILEY, 1985), sendo em geral interpretado como tríade maior
com sexta e que segundo a harmonia acústica seria uma tríllade menor com sétima em primeira inversão.
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56 |
Essa armação se coaduna com a teoria harmônica tratada aqui, e
pode oferecer uma explicação bastante convincente sobre a maneira como
técnicas que podem ser associadas ao politonalismo aparecem nas obras
analisadas de Guerra-Peixe, em que é possível perceber como o recurso das
estruturas politonais é utilizado prioritariamente com o objetivo de gerar
texturas harmonicamente complexas, sem preocupar-se especicamente
com a criação de um efeito de tonalidades simultâneas. Trata-se de
estruturas que escapam a uma explicação pela teoria tonal tradicional,
embora guardem algumas características em comum com os acordes
gerados nela. A Harmonia Acústica, nesses termos, funciona, entre outras
coisas, como um conjunto de princípios para a regulação daquilo que é
obtido pela utilização de técnicas politonais, para os quais o politonalismo
designa muito mais um meio de obter essas estruturas complexas do que
um m em si mesmo.
Por meio da série mostrada na gura acima, Guerra-Peixe dispôs
de uma teoria da tensão harmônica que lhe ofereceu instrumentos para
a construção de uma compreensão e de um método de tratamento das
mais variadas estruturas, encontrando suas fundamentais e organizando
o discurso a partir da sucessão destas. Ao mesmo tempo, a diferença de
graus de tensão entre os acordes se revelou como uma forma adicional de
regulação das relações entre eles, criando verdadeiros crescendi e decrescendi
harmônicos, que não têm qualquer relação com dinâmica ou intensidade.
6
Foi precisamente isso que Hindemith designou como utuação harmônica,
e que aparentemente ocupou também os estudos de Guerra-Peixe, haja
vista que armou, na apostila mencionada, que se deve cuidar do clímax
harmônico como mais um elemento de importância na estruturação formal
de uma obra (GUERRA-PEIXE, 1988, p. 30).
prIncípIoS geraIS, fenôMenoS partIculareS
Ao falar dos princípios gerais de sua teoria, Guerra-Peixe (1988,
p. 30) armou que estes seriam “válidos para qualquer estilo de música,
antigo ou contemporâneo”, independentemente “de ser tonal, atonal
ou modal”, como visto. Nota-se que essa determinação tem um alcance
 Neste ponto, como de resto, Hindemith é bem mais claro e explicativo que Guerra-Peixe. Portanto, visto que
os mesmos princípios relativos a isto estão presentes nos dois trabalhos, estou usando aqui uma formulação mais
próxima da que foi dada pelo primeiro HINDEMITH (1970, p. 115).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 57
considerável, especialmente levando-se em consideração que Guerra-Peixe
buscava se legitimar e capitalizar em cima do peso de sua trajetória como
músico de rádio e de suas pesquisas folclóricas, pois era um compositor
que não só voltava a maior parte de seus esforços para a sala de concertos,
mas pensava sua música prioritariamente para este espaço, praticamente
nunca recorrendo a instrumentos de fora da tradição, por exemplo.
Desse modo, é preciso encarar sua música a partir da demanda
da sala de concertos, vez que ela foi construída a partir desse espaço,
respondendo às exigências dessa tradição.
7
Assim, o pensamento em relação
à posse de menos ou mais técnica composicional, a discussão sobre as
formas que podem ou não ser aproveitadas em sua música, o pensamento
acerca das questões relacionadas à missão do compositor brasileiro, ou o
envolvimento em polêmicas em torno da oposição entre música brasileira e
dodecafonismo, por exemplo, são atos que se colocam dentro da tradição de
concerto e mostram a preocupação com os problemas que guravam nessa
área. Se ainda for necessário mais um argumento, pode-se olhar para o fato
de que era em relação a outros compositores de concerto que ele se media.
Quando implícita ou explicitamente se comparava a alguém, os nomes
invocados eram os de Villa-Lobos, Mignone, Carlos Gomes, Guarnieri,
Katunda, Santoro, Radamés, Lopes-Graça, Koellreutter, Krieger, Bartók,
Hindemith, Khachaturian, Shostakovich, Berg, Schönberg. Eram estes os
seus pares, como ele próprio se via.
8
Talvez possa parecer excessiva essa justicação, porém o que está
em questão aqui não é uma taxonomia da música brasileira, mas o que se
encara como a base sobre a qual a música de Guerra-Peixe foi construída.
Isso signica dizer que sua música se guiou por linhas gerais que, na
maior parte do tempo, passaram despercebidas, de tão naturalizadas.
Por mais “folclore” que houvesse nas obras de Guerra-Peixe, elas ainda
eram consideradas músicas de concerto; e, por mais que se perceba a sua
produção a partir de uma encruzilhada de tradições, os vínculos por meio
dos quais se trafegou eram os mesmos: o do instrumental e das lógicas
de funcionamento e o da legitimação da música de concerto de tradição
ocidental em sua versão brasileira.
7
Para uma discussão mais aprofundada do problema, ver BARROS (2017).
8
Sobre Guerra-Peixe e sua relação com os pares, ver BARROS (2013).
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58 |
Está-se, portanto, diante de uma resposta histórica e
geogracamente situada (como não poderia deixar de ser, é claro) para os
problemas apontados, surgidos dessa mesma inserção em um local, um
tempo e uma tradição. Isso signica que, por mais “horizontalidade” que
Guerra-Peixe dispensasse aos diversos elementos presentes em sua música,
havia uma hierarquia inescapável entre eles, que vem à tona quando se
olha para os problemas que ele se coloca como compositor. Não se está
armando, contudo, que essa hierarquia é sempre insuperável, mas, no caso
de Guerra-Peixe, ela parece existir e não foi revertida – e provavelmente
nem foi uma preocupação realizá-la, pelo menos por algum tempo
(BARROS, 2017, p. 232). Muitos dos problemas com os quais ele teve
que lidar e também muitas de suas vitórias estão relacionados diretamente
à incorporação de elementos de outras tradições à música de concerto de
tradição europeia, e não o contrário.
uMa tradIção ModernISta
Ao criticar a obra teórica de Hindemith, a partir de um ponto
de vista considerado até relativista, William omson, em 1965 (não
confundir com um conhecido texto de Virgil omson sobre o compositor
alemão), escreveu um artigo, cujo início retratava bem, nos termos da
época, o pensamento musical baseado em leis naturais:
e population of speculative theorists is split like that of other
ontological realms into those who are ‘believers’ and those who are
not. e faithful, in this case, hold that music operates within a
closed system, its basis unchanging through the ages and potentially
demonstrable. ose who entertain such immutable ‘truths’ are
known as natural theorists, for a usual concomitant of their
speculations has been the derivation of all manner of ‘laws’ from
the known, the assumed, or merely the fancied ‘facts’ of the natural
world. (THOMSON, 1965, p. 52).
Dada a relação entre o texto de Hindemith e o pensamento de
Guerra-Peixe quanto ao tema, no que tange a uma questão geral como
essa, as críticas feitas a um acabam valendo para o outro. Quando Guerra-
Peixe armou que os princípios que regem aquilo que chama de Harmonia
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 59
Acústica valem para qualquer música de qualquer época, armou, por
óbvio, que se tratava de algo que estava além de qualquer cultura ou tradição
especíca. Isso já está posto no próprio nome escolhido para a teoria, uma
vez que “acústica” se remete à física, ou seja, a princípios encontrados no
âmbito da natureza e não na cultura ou no social.
Assim, foi em completa consonância com o pensamento ocidental
– e o de sua época em especial – que ele traçou precisamente a linha que
separava cultura de natureza,
9
e, falando nesses termos, tornou também
indiretamente manifesta a distância que o separava dos “nativos” junto aos
quais colhia material folclórico – distância que aparece também, é claro,
na própria ideia, tipicamente ocidental e até certo ponto colonialista, de
ir a determinado grupo, retirar dali uma dada coisa e depois conservá-la,
seja em estado bruto, decantada ou transformada. Fosse ele babalorixá, sua
música talvez fosse pensada com base nas preferências dos santos para quem
era tocada; integrasse ele uma nação de maracatu, suas preocupações seriam
bastante diferentes do aproveitamento do ritmo, de sua exequibilidade por
músicos de orquestra ou da transposição de suas batidas para instrumentos
de altura denida.
De certo modo, Guerra-Peixe justicou a validade e o interesse
de sua teoria harmônica colocando-a no plano dos fenômenos naturais, o
que signica estabelecer que ela seria independente de todo fator cultural,
livre de toda contingência histórica: se é do âmbito da física, é natural; se é
natural, não pode ser mudada, visto que as leis da natureza seriam eternas e
imutáveis; e, se são eternas e imutáveis, são uma base sólida a partir da qual
se pode tratar absolutamente quaisquer fenômenos culturais, pois estariam
todos submetidos às mesmas leis naturais; e se é assim, tanto a música
escrita para a sala de concertos como os cabocolinhos ou o cateretê paulista
poderiam funcionar segundo esses princípios.
O que não é dito é o quanto é essa lógica de um raciocínio
harmônico geral e encompassador é ocidental e perfeitamente congruente
com a tradição de concerto europeia, preocupando-se com maneiras de
transpor e tratar materiais díspares ou com a ideia de que certos elementos
musicais podem ser encarados como materiais a serem transpostos para
9
Ver, entre outros, Vilhena (1997) e Botelho, Bastos e Villas Bôas (2008), especialmente a Apresentação. Além
disso, o conhecido livro de Latour (2009) tem importância considerável no desenvolvimento do argumento
aqui apresentado.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
60 |
algum outro registro – este sim o registro em que tudo vai ser incorporado,
quase uma espécie de língua franca.
Percebe-se, ao longo do texto, a adoção de certa sobreposição, até
um pouco descuidada, entre ocidental, universalista, europeu e agora, por
m, moderno. De fato, trata-se de uma forma especíca de se relacionar
com o mundo e se pensar a História, amplamente caracterizada em
obras como as de Born e Hesmondhalgh (2000) e Latour (2009), entre
muitos outros. A partir dessa visão, tem-se que, a partir da separação entre
técnica e Cultura, deixando a primeira no polo da natureza, com base
em “princípios” como os estabelecidos pela Harmonia Acústica, Guerra-
Peixe automaticamente a considera válida para todas as culturas e todas as
épocas
10
, o que, de certo modo, é uma das manifestações mais acabadas
desse “espírito ocidental” que se quer demonstrar.
Os princípios gerais que Guerra-Peixe estabeleceu para apoiar sua
prática deram uma espécie de rmeza, de solidez ao seu fazer musical, que
passou a atravessar o domínio da cultura (ou das culturas), nas quais foram
colocadas a música europeia de concerto, a música “folclórica” brasileira,
a música popular urbana etc. No plano da cultura, cou, então, a arte, a
aplicação da técnica, que o artista realiza segundo seu maior ou menor
talento. Em suma, a técnica seria, portanto, neutra, quase que apenas um
meio para se chegar a um resultado artístico mais perfeito, não possuindo,
entretanto, o poder de levar per si, um indivíduo qualquer a produzir uma
grande obra de arte. É essa consideração que está na base da crítica, tantas
vezes repetida (por Guerra-Peixe inclusive), de que um dos problemas do
dodecafonismo é que qualquer um poderia fazer música, bastando aprender
as “regras” e a escrever as notas no papel (GUERRA-PEIXE, 1984).
É interessante observar que o polo da natureza onde Guerra-
Peixe coloca a técnica é o mesmo polo onde tradicionalmente as narrativas
10
A bem da verdade, o próprio Guerra-Peixe não parece ter levado a imutabilidade das supostas leis naturais às
últimas consequências, como se vê em um artigo de Estudos de Folclore e Música Popular Urbana (GUERRA-
PEIXE, 2007, p. 157-158) em que ele atesta que os “baques” no maracatu são feitos por instrumentos graves,
o que contraria o que ele enxerga como princípios de ordem acústica, que seriam a razão porque quase sempre
se reserva aos instrumentos mais graves dos conjuntos esquemas rítmicos simples. Diante disso, em nenhum
momento Guerra-Peixe parte para qualquer forma de desqualicação do fenômeno, embora isso talvez pudesse
estar subentendido no argumento. Muito pelo contrário, ele comenta com interesse, até quase elogiando o fato.
Ainda assim, nota-se o quanto podem ser profundas as implicações de uma teoria harmônica que se pretende
ancorada em fenômenos tidos como puramente naturais: sabe-se que o próprio Hindemith reviu diversas de
suas peças anteriores após formular sua teoria, adequando-as aos novos princípios, embora posteriormente sua
prática composicional fosse dar provas de uma exibilização daquelas noções (NEUMEYER, 1986).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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do século XIX e da primeira metade do XX puseram o “folclore” e o
nativo”, em um argumento que teve inclusive força muito grande para o
Modernismo brasileiro (TRAVASSOS, 1997, p. 29). Guerra-Peixe estava,
de fato, tateando em busca de formas de realizar sua música e, uma vez
que a solução encontrada para o problema já estava em conhecimentos
prévios de que dispunha, nada senão as diversas formas de pesquisa que
empreendeu para realizar sua música justicariam o longo período de crise
composicional vivido no início dos anos 1950.
A pesquisa mencionada refere-se tanto à busca etnográca, por
assim dizer, de formas culturais de interesse para sua criação musical, como
também o estudo composicional em busca de formas de tratar os materiais
encontrados. Não é difícil imaginar que esse tipo de processo tenha sido
vivido em meio a bastante hesitação e experimentação, em um vai e vem
contínuo entre princípios mais gerais, resultados especícos, sons que se
remetem àquilo de que se quer distância ou ao que se está buscando, além
de ressignicações em contato com outros elementos que aparecem a cada
nova obra, em uma teia de associações bastante complexa e sempre móvel.
Um dos extremos da perspectiva “universalista” que permanece
de fundo no método de Guerra-Peixe é ao mesmo tempo um dos focos
em que mais claramente se revela o enraizamento de sua teoria harmônica
na tradição de concerto. Ao nal do Melos e Harmonia Acústica, há uma
Adenda do Melos” na qual é apresentada a chamada “relação de segundas”,
sobre a qual Guerra-Peixe arma que “[...] talvez seja o que há de mais
importante no que tange à expressão melódica.” (GUERRA-PEIXE, 1988,
p. 38). A explicação é um pouco lacônica, mas estabelece que toda melodia
bem realizada seria guiada por um movimento de graus conjuntos, que
funcionariam como seus pilares.
A partir da formulação de Hindemith, que Guerra-Peixe
armava seguir,
11
nota-se que as segundas seriam as unidades mínimas de
construção da melodia, desempenhando tanto o papel de preencher os
trechos melódicos mais curtos (e por isso são a unidade de medida deles),
quanto de reguladoras das seções melódicas maiores. Hindemith armava
que toda melodia é formada de sons proeminentes e outros subordinados.
11
“Quando começo [a ensinar], ataco primeiro a composição de melodia do ponto de vista intervalar. Não é
fazer qualquer melodia: é ter uma forma determinada. Hindemith descobriu um negócio muito importante, que
se chama relação de segundas. Ele dá alguns exemplos de músicas ruins que não têm [essa relação], mas eu dou
os exemplos de músicas boas que têm” (GUERRA-PEIXE, 1986).
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62 |
Dentre aqueles que predominam, estariam as fundamentais dos acordes
contidos na melodia – cuja principal função seria estabelecer a progressão
harmônica da mesma – e, mais importante, os sons localizados em pontos
signicativos em termos da estrutura bidimensional da melodia, que seriam
as notas mais altas e mais baixas de cada grupo, bem como aquelas que se
destacam devido a sua posição métrica ou por outras razões que o autor
armava existir, mas não enumerava.
Desse modo, a construção melódica ideal seria, para Hindemith,
aquela capaz de criar um “perl melódico uniforme e convincente”, o
que só é obtido quando os sons importantes da melodia formam uma
progressão em segundas (ou step-progression na tradução inglesa do
livro). Assim, essa progressão seria detectável nas linhas que conectam
um ponto alto ao outro, ou os pontos baixos entre si, ou ainda aqueles
ritmicamente proeminentes. As partes menos importantes da melodia
cam entre esses pontos:
12
Relação de segundas extraído de Hindemith (1970, p. 194).
Não somente a formulação de Hindemith converge com a de
Guerra-Peixe, como ambos recorrem a supostas leis inscritas no material
para dar suporte aos argumentos. Juntando-se os princípios já mostrados,
conclui-se ainda que é com base na progressão de segundas que se regula
o caminho até a nota mais aguda da melodia – o “clímax melódico” é
atingido no processo de “tensão melódica”, nos termos de Guerra-Peixe
–, para em seguida haver o “afrouxamento melódico” por meio da descida,
que idealmente deveria seguir o mesmo princípio, porém em um espaço de
tempo mais curto (GUERRA-PEIXE, 1988, p. 11-12).
No caso do Melos, essa ideia aparece para a organização da
melodia como uma regra mais geral, e é válida, nas palavras de Guerra-
Peixe, “[...] para a melodia de todas as épocas e estilos, desde a folclórica
12
A smooth and convincing melodic outline is achieved only when these important points form a progression in
seconds” (HINDEMITH, 1970, p. 193-194).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 63
à mais elaborada [...]” (GUERRA-PEIXE, 1988, p. 11),
13
mas os mesmos
princípios foram aplicados para a realização harmônica (conforme a seção
“Harmonia Acústica” em GUERRA-PEIXE, 1988). Isso evidentemente
visa a educar o senso de forma do aluno e, por isso, direciona sua percepção
para que forme um referencial de equilíbrio com base nessas proporções. A
questão é que Guerra-Peixe, ao expor as relações entre intervalos discutidas,
foi explícito em armar que, sendo essa relação tão importante, “interessa,
portanto, apresentar os exemplos mais diversos, a começar pelo hino ‘São
João’, no qual Guido d’Arezzo, provavelmente sem o imaginar, encontrara
intuitivamente a referida relação”, e chegando até o Clair de Lune, de
Debussy, passando por Bach, Chopin, Mozart e Beethoven (GUERRA-
PEIXE, 1988, p. 38-39).
Da maneira como Guerra-Peixe falou da relação de segundas –
não só na apostila, mas também em seu depoimento ao Museu da Imagem
e do Som de São Paulo (GUERRA-PEIXE, 1992) –, ca bastante claro
que, como dito há pouco, ela seria válida para toda e qualquer música
como princípio construtivo e organizador. Contudo, Hindemith foi
ainda mais explícito neste sentido, armando diversas vezes ao longo de
seu Unterweisung im Tonsatz que estava seguindo simplesmente as leis da
Natureza (HINDEMITH, 1970, p. 152), o que era inclusive reconhecido
com “naturalidade” por seus contemporâneos (MUSER, 1944).
No entanto, é difícil ignorar que todos os exemplos apresentados
no Melos e Harmonia Acústica por Guerra-Peixe – ironicamente aquele que
se dizia o único compositor brasileiro a realmente conhecer o “folclore
brasileiro – foram tirados da tradição de concerto. Nada da “música
popular urbana” ou do “folclore” emerge para demonstrar essa lei universal
que, segundo ele próprio, regeria a construção de toda e qualquer melodia
bem realizada.
Tanto nesse lapso de Guerra-Peixe, que apresenta tão somente
exemplos da tradição de concerto ao tentar demonstrar melodias bem
acabadas que se encaixam em seu parâmetro técnico de construção, como
no recurso a um aparato técnico pretende ser culturalmente neutro, mas
que de fato segue bastante de perto o pensamento da tradição de concerto,
13
É necessário chamar a atenção para o fato de que Guerra-Peixe se trai aqui, estabelecendo um gradiente que
vai do mais simples ao mais complexo e igualando o folclórico com o mais simples. É verdade que ele não diz
qual seria a música mais elaborada, mas parece signicativo que, apesar de todos os elogios que faz ao folclore,
justo na redação de um manual de composição, Guerra-Peixe seja surpreendido enunciando esse tipo de juízo.
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64 |
vê-se o quanto era forte sua ligação com essa tradição. Percebe-se assim, uma
naturalização desta em seu pensamento, constituindo tão profundamente
sua maneira de ser que sequer se percebe sua presença ou seus efeitos.
Como visto, Guerra-Peixe considera que sua teoria de uma
harmonia “acústica” é indiferente quanto a tonalismo, atonalismo ou
modalismo, que é algo “matemático”. É difícil exagerar o peso da evocação da
matemática para armar que os princípios enunciados são completamente
agnósticos em relação a estilo, época e materiais. Antes de sequer precisar-
se demonstrar as anidades subjacentes entre a música construída segundo
esses princípios e o resto da música da primeira metade do século XX,
é preciso reconhecer as bases profundamente europeias, ocidentais, em
seu pretenso cienticismo e em sua aspiração universalista que sustentam
o pensamento de Guerra-Peixe. Sem levar isso em consideração, não é
possível aquilatar a própria posição do compositor, especicamente, nem
avaliar em perspectiva mais ampla os desdobramentos do modernismo
brasileiro tanto quanto às suas insuciências e lacunas, como em relação às
suas maiores realizações.
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B  S   “ 

Rainer Gonçalves Sousa
MalandrageM, uM teMa de longa data
A malandragem há muito é recorrente na história do Brasil, pois
inúmeras são as canções, poemas, textos acadêmicos, quadros e romances
em que esse tema aparece com destaque, de forma que, mesmo que
extensamente debatido, o malandro e a malandragem ainda são relevantes
no imaginário nacional. Talvez, em 2018, a maior prova desse fato se deu
em uma entrevista do técnico de futebol Tite, que no dia vinte e sete de
fevereiro, fez a seguinte armação para a ESPN Brasil
1
: “Eu não quero
1
TITE é o Bola da Vez desta terça-feira na ESPN Brasil. ESPN Press Room, São Paulo, 26 fev. 2018. Disponível
em: https://espnpressroom.com/brazil/press-releases/2018/02/tite-e-o-bola-da-vez-desta-terca-feira-na-espn-
brasil-2/. Acesso em: 06 mar. 2018.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p69-92
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
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ter malandragem. Eu não quero ganhar pelo escuro. Eu quero ganhar
sendo competente. Malandro é quem é incompetente. Quem quer
ganhar pelo escuro é sinônimo de incompetência”. Percebe-se, por essa
fala, que o malandro e a malandragem ainda fazem parte de um debate
muito vivo, inclusive no meio acadêmico, onde o assunto foi tratado
com bastante relevância em dois célebres textos concebidos no alvorecer
e no fechamento da década de 1970. O primeiro deles, “A dialética da
malandragem”, de Antônio Cândido, pensa o malandro por meio de uma
perspectiva notoriamente dinâmica. Tendo como fonte o livro “Memórias
de um sargento de milícias”, ele arma que tal obra é constituída
[...] pela dialética da ordem e da desordem, que manifesta
concretamente as relações humanas no plano do livro, do qual
forma o sistema de referência. O seu caráter de princípio estrutural,
que gera o esqueleto de sustentação, é devido à formalização estética
de circunstâncias de caráter social profundamente signicativas
como modos de existência; e que por isso contribuem para atingir
essencialmente os leitores (CÂNDIDO, 1970, p. 77).
O autor supracitado percebe ainda a malandragem não como
um simples artifício capaz de enriquecer e chamar a atenção do leitor
de “Memórias de um sargento de milícias”. A obra de Manuel Antônio
de Almeida estaria profundamente ancorada nas peculiaridades de uma
sociedade jovem e que se distinguia, já no século XIX, dos modelos
exemplares que poderiam ser observados nos Estados Unidos ou na
Europa. Na condição de jogo, observa-se na malandragem e no malandro
uma alternância entre os polos da ordem e da desordem, tecendo uma
dinâmica sobre a qual seria muito difícil de se aplicar uma saída fácil ou a
possibilidade de vitória de um desses opostos na existência do malandro ou
quiçá, da própria sociedade brasileira.
Já em 1979, Roberto Schwarz elabora uma série de considerações
ao raciocínio proposto por Antônio Cândido em “Pressupostos, salvo
engano, de ‘Dialética da malandragem’”, buscando aprofundar a
relevância daquilo que é dito por seu interlocutor ao tratar do romance
de Manuel Antônio de Almeida (SCHWARZ, 2002). Nesse sentido, a
malandragem, para o autor, não é tão somente uma questão ligada ao
passado, mas permeada por uma forte atualidade que não se restringe
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 71
somente a determinados nichos do tecido social, mas também abarca
instituições responsáveis pela própria identidade brasileira, constituídas
a partir do jogo entre ordem e desordem.
Schwarz (2002, p. 150) ressalta, adotando um tom mais claramente
crítico ao fenômeno da malandragem, que “[...] a dialética de ordem e
desordem é construída inicialmente enquanto experiência e perspectiva de
um setor social, em um quadro de antagonismo de classes historicamente
determinado”. Sendo assim, o autor não defende a malandragem como
um traço exótico, que positivaria a imagem do brasileiro enquanto sujeito
capaz de elaborar soluções criativas, explicando a razão de tal uidez entre
a ordem e a desordem.
Ainda que Schwarz (2002) acredite que Cândido (1970) não seja
enfático nessa perspectiva violenta e injusta que envolve a malandragem,
ele contemporiza a sua própria diferença de compreensão ao lembrar que
o texto fundante da dialética da malandragem é produzido durante a
segunda metade da década de 1960, em meio ao processo de instalação
e fortalecimento da ditadura militar no Brasil. Destacando o contexto
de produção do ensaio, Schwarz (2002, p. 154) faz com que o texto de
Cândido tenha também uma importância de natureza política, sendo
assim entendido como uma manifestação intelectual preocupada em se
opor “[...] à brutal modernização que estava em curso”.
No que diz respeito ao campo da música popular, essa discussão
ganha seus primeiros contornos na passagem do século XIX para o século
XX, quando o m da escravidão abre portas para um conjunto de impasses
e problemas de difícil resolução. No Rio de Janeiro, cidade então portadora
da condição de capital federal, os projetos de modernização do espaço
urbano esbarravam em “[...] todos os habitantes de cortiços, malocas, os
frequentadores de botequins e freges (bares populares), além das barracas,
carroções e carrinhos de rua” (FENERICK, 2005, p. 31).
Ainda que os projetos de modernização pareçam estar somente
ligados aos conitos sociais presentes em uma sociedade pós-escravocrata,
é importante considerar que ela teve e tem seus pontos de contato com
o campo da música popular, cujo caminho de prossionalização andava
vagarosamente. De fato, no começo do século XX, a posse e o uso de
certos instrumentos musicais representavam um contraponto aos anseios
civilizatórios, já que a canção popular era cotidianamente vista como
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
72 |
atividade ligada à boemia, aos desajustados, aos frequentadores das casas de
prostituição, aos vagabundos e, inevitavelmente, aos chamados malandros.
Apesar dessa marginalização, é importante destacar que os primeiros
avanços na comunicação de massa se deram nesse mesmo contexto, sendo o
rádio o seu primeiro grande representante. Sem esquecer do grande interesse
estatal pela expansão desse meio de comunicação, principalmente na Era
Vargas (1930-1945), há de se observar que o campo da música popular
encontrou espaço de armação nos sulcos dos discos e nas ondas dos rádios.
Contudo, para que isso fosse possível, a canção popular, e de inconteste
ascendência negra, teve que romper com duas importantes barreiras
ideológicas. Segundo Martín-Barbero (2015, p. 244-245) ,
uma é a levantada, por um lado, pela concepção populista da
cultura, remetendo a verdade do popular, sua “essência”, às raízes,
à origem, isto é, não à história de sua formação, e sim a esse lugar
idealizado da autenticidade que seria o campo, o mundo rural [...].
A outra barreira é levantada por uma intelectualidade ilustrada, para
a qual a cultura se identica com a Arte, uma arte que é distância
e distinção, demarcação e disciplina, diante das indisciplinadas e
inclassicáveis manifestações musicais da cidade.
É no reconhecimento dessas barreiras que se delineia, por exemplo,
o descompasso entre a ideologia do trabalho e a canção de sambistas que
o negavam como meio de ascensão econômica e social. Já na década de
1930, o Departamento de Imprensa e Propaganda, investido de poderes
para censurar e propagandear, não mediu esforços para que a canção popular
e, principalmente, o samba fossem sistematicamente higienizados em
seus conteúdos. Ainda que não fosse efetivamente limado do universo do
samba, o tema da malandragem foi enfrentado nas situações em que pudesse
representar algum tipo de ameaça à ordem e às autoridades de seu tempo.
Em suma, o que se percebe é que a formação de um mercado
consumidor das manifestações artísticas de origem popular, ainda que
congurasse um espaço de divulgação e armação de seu conteúdo, era
ao mesmo tempo um lugar de apagamento e desprestígio de produtos
culturais em que pudessem ser identicados seus marcadores étnicos,
sociais e políticos. Ainda que houvesse entusiasmo e interesse pela cultura
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 73
popular, sua divulgação era organizada a partir de uma ideia mais geral
e conciliatória.
Verica-se, nesse sentido, que o processo de controle e
apaziguamento da malandragem avança no tempo e nas manifestações
culturais de massa. Para dar exemplo disso, é possível se valer das
considerações que Lilia Moritz Schwarcz realiza ao debater a concepção da
personagem Zé Carioca, no texto “Complexo de Zé Carioca: notas sobre
uma identidade mestiça e malandra”. A certa altura do texto, quando a
autora debate as disputas envolvendo a malandragem, arma que foi a
visão romântica e amistosa que acabou transformando o malandro em
[...] um sujeito bem-humorado, bom de bola e de samba,
carnavalesco zeloso. Por meio da versão “Zé Carioca” da
malandragem, reintroduzia-se, nos anos 50, o modelo do “jeitinho
brasileiro, a concepção freyriana de que no Brasil tudo tende a
amolecer e se adaptar. Enm, o malandro parece personicar com
perfeição a velha fábula das três raças, numa versão mais recente e
exaltadora. Diferentemente dos prognósticos negativos de certos
teóricos do século passado, a mistura teria gerado um tipo singular
de civilização (SCHWARCZ, 1995, p. 57).
Na música popular dessa mesma época, especialmente na década
de 1950, entende-se que a perspectiva docilizada e pitoresca ganhou
contornos na voz de uma série de sambistas, como Adoniran Barbosa, que
se notabilizou pela gravação da canção “Saudosa maloca
2
, em 1951; e
Moreira da Silva, que ao longo desta década gravou vários discos em torno
do tema da malandragem, chegando inclusive a gravar uma canção sobre o
mesmo personagem debatido por Schwarcz (1995), o Zé Carioca
3
.
Com a chegada da conturbada década de 1960, marcada pelo
processo de instalação de uma ditadura militar em terras brasileiras, seria
difícil que o perl autoritário do regime se valesse da imagem do malandro
para rearmar seu projeto de nação. De fato, observando o desenvolvimento
das relações entre arte e política, a malandragem passou a ser uma gura
2
SAUDOSA maloca. Intérprete e compositor: Adoniran Barbosa. In: SAUDOSA maloca. Intérprete: Adoniran
Barbosa. [S.l.]: EMI, c2010. 1 CD, 4,8 pol., faixa 1. (Grandes Sucessos).
ZÉ carioca. Intérprete: Moreira da Silva. In: A VOLTA do Malando. Intérprete: Moreira da Silva. [S.l.]:
Imperial, 1970. 1 disco vinil, lado B, faixa 6.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
74 |
oposta aos valores positivados pelo regime militar. Saudar os malandros
ou outros tantos marginais (como fez o artista plástico Hélio Oiticica)
passou a ser uma forma de se rejeitar um outro projeto modernizador, que
em seu bojo, também abarcava a perseguição aos chamados “subversivos”,
que poderiam ser reconhecidos tanto nos militantes políticos, quanto nas
populações historicamente marginalizadas.
de pernaMBuco ao rIo de janeIro, do coco ao partIdo alto: o
SurgIMento de Bezerra da SIlva no cenárIo MuSIcal BraSIleIro
É justamente neste período que se torna então possível falar
mais sobre a gura do sambista Bezerra da Silva. Retirante, nascido em
Pernambuco, Bezerra da Silva tentou a sorte na cidade do Rio de Janeiro
ainda bastante jovem. Mesmo tendo certa anidade com o universo
musical, passou os primeiros anos de sua estadia no Rio se ocupando de
trabalhos braçais e habitando as favelas cariocas. De forma tímida, reforçou
seus laços com o universo da canção popular e do samba quando assumiu
o tamborim no “Unidos do Cantagalo”, um bloco carnavalesco que levava
o nome do morro em que ele passou uma parte considerável de sua vida
(MATOS, 2011, p. 99).
Com um início de carreira bastante instável, a primeira
oportunidade surgiu em 1965, quando venceu um concurso de rádio com
a canção “Nunca mais sambo”, sendo esta posteriormente gravada pela
já conhecida cantora Marlene
4
. De acordo com Bezerra, a conquista não
rendeu os frutos desejados, já que a gravação feita por Marlene teria sido
intermediada por um diretor da gravadora, que também acabou entrando
como um dos autores do samba feito por Bezerra (VIANNA, 1999, p. 29).
De modo prático, a vitória não possibilitou que ele conhecesse a afamada
estrela do rádio e, a partir disso, iniciar uma possível rede de contatos no
meio artístico daquela época.
A perspectiva que Bezerra da Silva nos fornece é a de que o “polo
ordenador” do mercado fonográco carioca tinha pouco interesse em abrir
portas para um retirante pobre, negro e favelado. Aparentemente, essa
percepção vem de uma fase anterior, de extrema pobreza, quando entre
4
Nome histórico na fase de maior importância do rádio brasileiro, Marlene foi eleita “Rainha do Rádio” e
durante um bom tempo disputou público e fama com a cantora Emilinha Borba.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 75
1954 e 1961, Bezerra viveu como indigente. Segundo ele, a superação
dessa situação teve a ver com a sua entrada na umbanda, que futuramente
ocuparia uma posição especial em canções que falavam sobre a intervenção
justa de entidades espirituais, a importância dos “pais” e “vovós” que
comandam os terreiros e até de falsos líderes que mereciam ser prontamente
denunciados (SOUSA, 2009, p. 75-76).
Além da revelação espiritual, a recuperação do compositor
também contou com a expressa ajuda de Jackson do Pandeiro, que, tal qual
Bezerra, era um retirante nordestino que ingressou no mundo da música
popular. Durante algum tempo, ele participou como músico de estúdio do
já conhecido artista paraibano e voltou a assinar algumas composições em
parceria com Jackson e outros músicos com os quais passou então a fazer
contato. Sem ainda ter uma vinculação denitiva com o samba, Bezerra
da Silva retomou a possibilidade de atuar como artista solo privilegiando
um repertório claramente regionalista, compondo e interpretando xotes,
baiões e cocos.
No ano de 1969, Bezerra gravou um compacto que trazia as
músicas “Viola testemunha
5
e “Mana, cadê meu boi
6
. No ano seguinte,
registrou as canções que integrariam o seu primeiro álbum, intitulado
“Bezerra da Silva, o rei do coco – Volume I”
7
. Contudo, por conta da eclosão
de uma grave escassez de petróleo no mercado brasileiro, a prensagem do
disco cou engavetada por cinco anos. Já em 1976, Bezerra se manteve
vinculado ao universo musical nordestino ao gravar o disco “Bezerra da
Silva, o rei do coco – Volume II”
8
.
Ainda que o sucesso fonográco parecesse distante e complicado,
a carreira de instrumentista seria de grande importância para que suas
pretensões artísticas não fossem perdidas de vista. Em 1977, Bezerra
da Silva participou de uma série de shows no Canecão, realizando o
acompanhamento musical para a cantora Elizeth Cardoso. Notado por
VIOLA testemunha. Intérprete: Bezerra da Silva. Compositor: A. Delno, B. da Silva e J. Garcia. In: MANÁ,
cadê meu boi. Intérprete: Bezerra da Silva. [S.l.]: Copacabana Discos, 1969. 1 disco vinil, lado A, faixa 2.
MANÁ, cadê meu boi. Intérprete: Bezerra da Silva. Compositor: Jorginho e B. Silva. In: MANÁ, cadê meu
boi. Intérprete: Bezerra da Silva. [S.l.]: Copacabana Discos, 1969. 1 disco vinil, lado A, faixa 1.
O REI do côco. Intérprete: Bezerra da Silva. Produção: Jorge Garcia e Bezerra da Silva. Direção musical:
Jackson do Pandeiro. Rio de Janeiro: Tapecar Gravações, 1975. 1 disco de vinil. v. 1. Vários compositores.
O REI do côco. Intérprete: Bezerra da Silva. Rio de Janeiro: Tapecar Gravações, 1976. 1 disco de vinil. v. 2.
Vários compositores.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
76 |
João Luzes, diretor do espetáculo, foi então convidado para integrar a
orquestra de músicos da Rede Globo de Televisão, conquistando o seu
primeiro emprego com carteira assinada (VIANNA, 1999, p. 31).
Naquele mesmo ano, a vida artística de Bezerra da Silva ganhou
uma outra signicativa guinada, com a gravação do álbum “Partido Alto
Nota 10 – Bezerra da Silva e Genaro”. Diferente dos discos anteriores,
o autoproclamado “rei do coco” desapareceu para então dar lugar ao
chamado samba de partido alto. Mais do que uma guinada estética, a obra
gravada de Bezerra da Silva deixou de lado o universo temático da canção
regionalista e nordestina, para então avançar sobre questões que marcaram
o samba desde os seus primórdios. Nesse novo caminho, notabiliza-se
um extenso conjunto de canções que remontam cenas ligadas às favelas
cariocas, incluindo aí, logicamente, a questão da malandragem.
Para que essa mudança fosse possível, Bezerra recuperou
uma das mais antigas práticas da cena musical carioca do século XX: a
chamada “parceria”. Aquela mesma que ele criticou quando, em 1969,
foi impedido de conhecer a cantora Marlene. Em seu sentido original, as
parcerias” consistiam na compra total ou parcial de sambas elaborados por
compositores geralmente negros, pobres e iletrados. Como já destacado,
apesar de crescente, a indústria cultural brasileira estava longe de superar
questões estruturais, como o racismo e o preconceito de classe.
É o que se percebe na pesquisa João Baptista Borges Pereira, que
ao investigar a presença do negro nas empresas radiofônicas de São Paulo,
na passagem das décadas de 1950 e 1960, conclui que, no âmbito artístico
desse importante braço do entretenimento brasileiro,
[...] os casos de discriminação são tão frequentes que funcionam
como advertência (que são observadas) para que os artistas negros
não alimentem grandes esperanças de inltração em determinadas
esferas sociais. Talvez sejam tais advertências que respondem pelo
fato de não ter sido encontrado, nesta pesquisa, nem um artista
negro, mesmo famoso, como associado de clubes recreativos ou de
associações não-prossionais de brancos (PEREIRA, 2001, p. 245).
No caso de Bezerra, ainda que estivesse em um momento de
relativa ascensão prossional, as parcerias foram reinventadas. Dali em
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 77
diante, ele foi responsável por organizar uma extensa rede de contatos no
interior de várias favelas cariocas, buscando as composições de sujeitos que
tinham pouca ou nenhuma penetração no mercado fonográco daquele
período. Contudo, ao contrário de seu funcionamento usual, a parceria
instituída nos discos de Bezerra da Silva tinha como nalidade rearmar
a autoria dos sambas gravados e, em alguma medida, projetar o nome dos
compositores no universo ao qual se integravam artistas e gravadoras.
Não limitada a um mero discurso ou uma prática relegada aos
bastidores, a questão da composição e da autoria dos sambas acabou
sendo tema da faixa-título do álbum “Esse aí que é o homem
9
, de 1984,
composta com Décio de Carvalho, que trazia a seguinte letra:
Me convidaram prum samba
Ninguém sabia o meu nome
Eu só ouvia falar:
“É esse aí que é o homem
É esse aí que é o homem (4x)
A malandragem da área
Se acercava de mim
Me olhando de cima pra baixo
Balançando a cabeça que sim.
É esse aí que é o homem (4x)
Eu nada estava entendendo
E eles diziam:
Agora nós vamos!
O mundo dá muita volta!
Até que enm nós encontramos!”
É ESSE aí que é o homem. Intérprete: Bezerra da Silva. Compositores: Felipão e B. Silva. In: É ESSE aí que é
o homem. Intérprete: Bezerra da Silva. São Paulo: RCA Vik, 1984. 1 disco vinil, lado A, faixa 6.
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78 |
É esse aí que é o homem (4x)
Eles falaram pra mim
Com toda convicção:
“Você é o Bezerra da Silva.
Está aqui o seu disco em nossas mãos.
É esse aí que é o homem (4x)
É que nós somos compositores
E queremos gravar com você também
Porque já conhecemos a sua fama,
Você não dá volta em ninguém
É esse aí que é o homem (4x)
Na letra, percebe-se que a estratégia adotada por Bezerra da Silva,
anos mais tarde, acabaria sendo um marco que explicaria não só o seu
sucesso, mas também as questões que frequentemente apareceriam nas
canções que ele gravou. Buscando subverter os entraves que ele mesmo
percebeu no desenvolvimento de sua carreira, o sambista estabeleceu um
subterfúgio que retoma e, ao mesmo tempo, rompe com práticas que se
colocavam como usuais no mercado fonográco. Além disso, nota-se que
é essa mesma estratégia de formação de seu repertório que fará com que a
malandragem acabe se transformando em um tema relevante e recorrente
no conjunto de canções e na própria imagem pública que ele fomentou ao
longo do tempo.
Como já dito, o tema da malandragem não é nenhuma novidade
no universo da música popular. No entanto, cabe aqui destacar que Bezerra
da Silva e seu extenso “time” de compositores foram responsáveis pela
continuação e ressignicação desse personagem histórico. Não por acaso,
a certa altura da década de 1980, Bezerra foi ocasionalmente questionado
e comparado a outros sambistas que também já cantavam sobre a vida
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 79
e os percalços dos malandros. Entre todas essas ocasiões, destaca-se uma
entrevista
10
feita junto à Moreira da Silva, também já citado nas páginas
iniciais do texto. Em determinado momento da sessão de perguntas,
Bezerra foi então questionado sobre a possibilidade de ser entendido como
uma espécie de herdeiro de Moreira. Como resposta, foi categórico ao
defender que
[...]o meu gênero de música não tem nada a ver com o do Moreira
da Silva. O samba de breque que o Moreira canta, até hoje no
Brasil é somente ele que canta. Já tentaram fazer um Moreira por aí,
mas não conseguiram. Eu canto a realidade cotidiana que acontece
no morro e na favela, e o Moreira fez o personagem de um bom
malandro. Você vê que na música do Moreira o malandro só ganha.
Ele não vai dar mole, que ele não é otário. (Moreira ri). Já no meu é
diferente. Tem hora que o malandro quebra a cara também. Então,
muitas pessoas confundem e dizem: “você é o sucessor do Moreira
da Silva”. Mas quem sou eu prá ser sucessor de Moreira da Silva?
Não que eu não tenha valor, mas se eu não sei fazer o que ele faz,
como é que eu vou ser sucessor dele? (O ENCONTRO…, 1986,
p. 09, grifo nosso).
No entendimento de Bezerra da Silva, não havia somente uma
profunda distinção estética, mas também uma diferença narrativa entre
os sambas e malandros cantados por ele e por seu antecessor. Enquanto
Moreira estaria mais vinculado a um determinado subgênero do samba
(samba de breque), Bezerra propôs uma evidente relação com os elementos
musicais que marcaram o chamado samba de partido alto. Por outro lado,
ao cantar sobre os malandros, enquanto Moreira recuperou um exotismo
que permitiu com que o personagem, ainda que próximo ao polo da
desordem, acabasse tendo um nal feliz, Bezerra, pautou-se por um jogo
cambiante, sem destino predeterminado, em que foi possível dar um nal
trágico ao malandro.
Com o intuído de se atestar a veracidade daquilo que Bezerra
da Silva dizia sobre a sua própria obra gravada, cabe aqui fazer uma breve
10
O ENCONTRO dos reis da malandragem. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 jun. 1986, p. 109.
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80 |
análise da canção “Malandro Rife”, gravada no ano de 1985, em disco
homônimo
11
.
Malandro é malandro mesmo
Malandro é malandro mesmo
Malandro é malandro mesmo
E o otário é otário mesmo
O malandro de primeira
Sempre foi considerado
Em qualquer bocada que ele chega
Ele é muito bem chegado
E quando tá caído não reclama
Sofre calado e não chora
Não bota culpa em ninguém
E nem joga conversa fora
Quem fala mal do malandro
Só pode ser por ciúme ou despeito
Malandro é um cara bacana
Homem de moral e de respeito
O defeito do malandro
É gostar de dinheiro, amizade e mulher
Malandro tem cabeça feita
Malandro sabe o que quer
Quando o bom malandro é rife
Comanda bonito a sua transação
Não faz covardia com os trabalhadores
11
MALANDRO rife. Intérprete: Bezerra da Silva. Compositor: A. Cavaco e Otacílio. In: MALANDRO rife.
Intérprete: Bezerra da Silva. São Paulo, RCA Vik, 1985. 1 disco vinil, lado A, faixa 6.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 81
E àqueles mais pobres ele dá leite e pão
Quando pinta um safado no seu morro
Assaltando operário botando pra frente
Ele mesmo arrepia o tremendo canalha
E depois enterra como indigente.
Com uma estruturação própria dos sambas de partido alto, essa
canção possui um refrão que orienta o tema fundamental da letra. Em
princípio, esse refrão convida o ouvinte a compreender não somente a
existência do malandro, mas a do seu opositor, aqui chamado de “otário”.
De certa forma incompleta, a letra nada versa sobre os predicados que
desabonariam esse antagonista, se prestando somente a elencar as qualidades
que permitem lançar um olhar positivo sobre o malandro.
Entre os pontos fundamentais dessa expressa defesa do malandro,
a letra valoriza a capacidade afetiva deste personagem, assegurando que
ele rma boas relações com seus próximos. Para tanto, destaca que “[...]
o malandro de primeira/ sempre foi considerado/ Em qualquer bocada
que ele chega/ ele é muito bem chegado” (MALANDRO, 1985). Dada
a referência ao ambiente das favelas cariocas, a canção reconhece que o
malandro é posto como uma gura ilustre e incapaz de romper com os
valores e práticas que organizam sua comunidade de origem.
Por outro lado, retomando a própria análise de Bezerra da Silva
sobre sua obra, o malandro é ao mesmo tempo colocado como uma gura que
nem sempre alcança seus objetivos. Entre os polos da ordem e da desordem,
ele acaba sendo alvo das ações prescritivas da lei e do Estado, estando assim
à mercê do confronto com as autoridades policiais e do encarceramento. No
entanto, ainda que posto nesse tipo de situação desfavorável, ele sustenta
princípios que provariam a sua condição existencial, pois “[...] quando tá
caído não reclama/ Sofre calado e não chora/ Não bota culpa em ninguém/
e nem joga conversa fora” (MALANDRO, 1985).
Ainda que esses elementos permitam dizer que o malandro em
Bezerra da Silva, de fato, ganhou uma outra conguração, é importante
destacar como essa mesma letra também carrega em si determinados
sentidos sobre a malandragem que perduraram ao longo do tempo.
Ao falar que o malandro é um sujeito que protege os membros de sua
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
82 |
comunidade da ação dos assaltantes, o ato de “arrepiar o canalha” e depois
enterrar como indigente” remonta à violência como meio de resolução
dos conitos, rompendo com uma imagem suave e conciliatória sobre a
malandragem.
Além disso, a menção de que o bom malandro “[...] comanda
bonito sua transação” indica a negação do trabalho como uma outra
permanência do malandro de Bezerra (MALANDRO, 1985). O uso da
palavra “transação” abre caminho para uma denição bastante abstrata
dos itinerários que explicam a sobrevivência material do malandro. Vez
que canção foi elaborada nos ns do século XX, essa falta de clareza pode
se remeter ao mais amplo leque de expedientes, passando pelo trabalho
informal, pelo estelionato ou até mesmo pelo envolvimento com o
crescente tráco de drogas.
Por m, cabe destacar que a dimensão hedonista da malandragem
também se apresenta em “Malandro Rife”. Por meio de uma clara sugestão
irônica, o samba interpretado por Bezerra da Silva arma que o maior
defeito de um malandro seria sua devoção pelo dinheiro, pelos amigos e
pelas mulheres (MALANDRO, 1985). Ainda que essas possam ser vistas
como expressões do poder conquistado e buscado pelo malandro, a canção
deixa claro que ele não é um sujeito individualista, pois teria compromisso
em ajudar os trabalhadores de sua comunidade e aqueles que vivem em
uma condição de maior penúria.
A retomada do aspecto violento da malandragem, na passagem
da década de 1970 e 1980, acabou sendo um elemento de grande destaque
nas várias reportagens e críticas feitas ao trabalho de Bezerra da Silva. Entre
outras designações produzidas nesse período, alguns dos intérpretes de
sua obra chegaram a inventar uma classicação própria ao tipo de samba
cantado por ele, chamando-o de “sambandido
12
. Acostumado a adotar
uma postura irônica e desdenhosa sobre tais apropriações, Bezerra chegou
a declarar que esse tipo de classicação era “uma grande vantagem”, pois
os bandidos, que nunca têm direito a nada, ganharam um cantor. Hoje,
todos eles gostam de mim
13
.
12
O termo ganhou maior repercussão quando uma matéria publicada no dia 30 de abril de 1988, para o Jornal
do Brasil, trouxe o seguinte título: Protesto e humor no “sambandido”.
13
NÃO tenho nada de polêmico, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 ago. 1997.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 83
Em certa medida, essa resposta de Bezerra pode se apresentar
como sintoma da simplicação inerente ao termo. Ainda que retome
a violência em diversas canções, ela não se coloca como um simples
subterfúgio acionado de forma indiscriminada. Conhecido como um dos
maiores hits de sua carreira, o samba “Bicho Feroz” provavelmente seja o
documento-canção que melhor sintetize o sentido que a violência muitas
vezes assume em sua obra
14
.
(Aí, rapaziada!Esse pagode não é pra “malandro rife
É pra m de comédia que pede seguro quando tá no sufoco
Aí, malandragem, se liga!)
Você com revólver na mão é um bicho feroz (feroz)
Sem ele anda rebolando e até muda de voz
Isso aqui, cá pra nós!
É que a rapaziada não sabe
Quando você entrou em cana
Lavava a roupa da malandragem
E dormia no canto da cama
Hoje está em liberdade
E anda trepado com marra de cão
Eu conheço seu passado na cadeia
Seu negócio é somente pagar sugestão
Olha aí vacilão...
Você com revólver na mão é um bicho feroz (feroz)
Sem ele anda rebolando e até muda de voz
Isso aqui, cá pra nós!
14
BICHO feroz. Intérprete: Bezerra da Silva. Compositor: C. Inspiração e Tonho. In: MALANDRO Rife.
Intérprete: Bezerra da Silva. São Paulo, RCA Vik, 1985. 1 disco vinil, lado A, faixa 1.
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Simplesmente eu tô dando esse alô
Porque sei que você não é de nada
Quando leva um arroxo dos homens
De bandeja entrega toda rapaziada
Acha bonito ser bicho solto
Mas não tem disposição
Quando entra em cana novamente
Vai passar lua de mel outra vez na prisão
Olha aí safadão...
Você com revólver na mão é um bicho feroz (feroz)
Sem ele anda rebolando e até muda de voz
Isso aqui, cá pra nós!
(Aí, malandragem!
Eu sou cadeado!
Não vou falar pra ninguém
Só pra torcida do Flamengo e do Corinthians!)
Entre deboche e seriedade, Bezerra da Silva estabelece, nessa
canção, que “o bicho solto” jamais poderia ser considerado um “malandro
rife” (BICHO, 1985), o que não tem nada a ver com a simples decisão
de utilizar ou não a violência como forma resolutiva dos conitos. Em
nenhum momento, o malandro é posto como sujeito pacíco ou que
se recusa a andar com um “revólver na mão”. Ter ou não a arma como
subterfúgio nunca serviria como critério capaz de fazer a precisa distinção
entre as duas guras evocadas na letra deste samba.
Nessa canção, assim como no caso de “Malandro Rife”, a
credibilidade do malandro é reconhecida a partir do momento em que ele
não “entrega toda a rapaziada” nas possíveis situações de confronto com
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 85
as autoridades
15
(BICHO, 1985). Sendo assim, o malandro na canção de
Bezerra jamais é visto a partir das situações em que consegue driblar o
universo da legalidade e, com isso, obter algum tipo de vantagem que lhe
conra prestígio e poder. Pelo contrário, só atesta sua posição no mundo
quando não se mostra disposto a colaborar com os sujeitos e instituições
que representam o polo da ordem.
Bezerra da SIlva e adIalétIca da MalandrageM
Feito esse mapeamento de comportamentos do malandro cantado
na obra de Bezerra da Silva, retorna-se para o modo pelo qual Tite, Cândido
(1970) e Schwarz (2002) pensaram a questão da malandragem. Percebe-se
que, em parcela signicativa das canções gravadas por Bezerra, o malandro
é retratado por um viés que não cabe no discurso prontamente depreciativo
do técnico da seleção, nem na interpretação dos autores mencionados, pois
não parece ser um sujeito interessado em colaborar ou, em alguma medida,
ser cooptado por aqueles que representam o universo da lei e da ordem.
É nesse ponto que as considerações do professor e ensaísta João
Cezar de Castro Rocha parecem se apresentar como uma forma de melhor
entender a malandragem no samba de Bezerra da Silva. Responsável
por cunhar, originalmente, o conceito de “dialética da marginalidade”,
o referido pesquisador entende primordialmente que a chave de leitura
proposta pela dialética da malandragem não seria mais capaz de dar conta
de uma série de fenômenos culturais que marcam o Brasil dos ns do
século XX e do início do século XXI (ROCHA, 2006).
Conforme o autor, é indispensável perceber que, no período
em questão, testemunha-se a ampliação e digitalização dos meios de
produção cultural, com a possibilidade da constituição de narrativas, nas
mais diferentes linguagens artísticas, de sujeitos que são historicamente
marginalizados. Nesse sentido, inspirado por considerações do escritor
15
Outro samba que também merece destaque é “Na hora da dura”, do disco “Justiça Social” (1987). Já em seus
versos iniciais, a letra arma: “Na hora da dura/ Você abre o cadeado/ E dá de bandeja/ Os irmãozinhos pro
delegado/ Na hora da dura/ Você abre o bico e sai caguetando/ Eis a diferença, mané, do otário pro malandro/
Eis a diferença do otário pro malandro”. NA HORA da dura. Intérprete: Bezerra da Silva. Compositor: B.
Pernada e Simões. In: JUSTIÇA social. Intérprete: Bezerra da Silva. São Paulo: RCA Vik; BMG, 1987. 1 disco
vinil, lado B, faixa 1.
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Euclides da Cunha e pelo triunfo mercadológico “Cidade de Deus”, ele
destaca que
a organização das favelas e comunidades através de formas de
expressão cultural pode despertar a potência vislumbrada por
Euclides da Cunha. Por isso, uma transformação signicativa
ocorreu no exato momento em que o lme “Cidade de Deus
disputava o Oscar: nas periferias e nas favelas, grupos se
multiplicavam, produzindo um fenômeno novo na história cultural
brasileira – a denição da própria imagem (ROCHA, 2006, p. 60).
Para Rocha, o desenvolvimento desse tipo de organização e
produção cultural veio para desestabilizar uma antiga prática que marcou
uma extensa gama de produções artísticas do Brasil Contemporâneo. No
caso, ele se refere ao fato de que, no campo das mais variadas expressões
artísticas, havia uma recorrente exploração das populações marginalizadas
enquanto “tema” de exposições fotográcas, romances, produções
cinematográcas, quadros e canções.
Ressalta-se que essas expressões se organizavam por meio de atores
estranhos às comunidades retratadas, trazendo à tona um outro dilema
ético: por mais que viessem a oferecer uma leitura crítica sobre a realidade
socioeconômica do país, o sucesso mercadológico e o prestígio alcançado
com as produções cavam usualmente retidos nas mãos daqueles que falam
dos e pelos os sujeitos marginalizados.
Como resultado prático, esse dilema teria fomentado “[...] um
crescente sentimento de insatisfação” (ROCHA, 2006, p. 31) que, tomado
como verdadeiro e vericável em diversas produções dos ns do século XX,
pode alinhar-se à insatisfação sentida por Bezerra da Silva, que o levou a
buscar justamente a produção artística dos sujeitos marginalizados. Nota-
se, na obra do sambista, uma preocupação em se rearmar que uma parcela
signicativa de seu legado artístico só foi possível graças à capacidade criativa
de outros artistas que, assim como ele, não tinham meios para adentrar as
instâncias que organizavam o mercado fonográco de sua época
16
.
16
Além de entrevistas e canções, essa valorização dos compositores da favela na obra de Bezerra da Silva acabou
sendo tema central do documentário “Onde a coruja dorme”, produzido por Márcia Derrail e Simplício Neto.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 87
Por não ter vivenciado de forma plena os processos de digitalização
e barateamento da produção musical, Bezerra da Silva não conseguiu fazer
com que outros artistas de origem subalterna pudessem alcançar uma
projeção artística semelhante a dele
17
. Não por acaso, costumava dizer que
os repasses pela venda de seus discos e a política de direitos autorais eram
claramente injustos ou organizados por meio de algum tipo de fraude.
Ao m, mesmo almejando dar espaço a “ilustres desconhecidos”, Bezerra
ainda foi um artista limitado a uma época de maior controle e monopólio
sobre a produção artística.
Concomitante a esse interesse em dar espaço para compositores
sem prestígio no mercado fonográco, a estratégia adotada por Bezerra
da Silva acabou dando um certo sentido coletivo à sua obra. Não raro,
como é comum a muitos intérpretes de música popular, a responsabilidade
de performar o conteúdo das canções transmite uma noção de
comprometimento com as narrativas que são apresentadas nos discos e nos
palcos. Por isso, o espectador menos informado pode vir a acreditar que
o intérprete seja o autor da música ou que, mesmo sabendo que o cantor
se limita à condição de intérprete, questionar-se até que ponto a narrativa
apresentada não se conecta com algum aspecto particular da vida daquele
que canta.
No caso de Bezerra, esse tipo de confusão autoral ou hipótese
biográca ganhou força pelo timbre de voz do sambista. Rouca e anasalada,
sua voz surgia nas canções como um elemento de grande ecácia, somado
às gírias e aos momentos em que – dentro da própria gravação – o canto é
substituído pela fala, fazendo com que o vínculo entre intérprete e canção
ganhasse outra camada de aparência confessional naquilo que era cantado.
Além disso, cabe dizer que em várias entrevistas ele mesmo fez questão de
falar que as situações descritas em alguns dos sambas que gravou foram
pessoalmente vivenciadas no tempo em que ele foi morador de favela.
Não bastasse a estratégia, o discurso e o canto, a imagem de Bezerra
também pode ser evocada como um dispositivo nal para a consolidação do
comprometimento entre o artista e a obra. Seja nas capas de disco, nos shows
ou em matérias de jornal, o sambista era usualmente notado utilizando um
visual que o aproximava dos marginalizados que apareciam como autores ou
como assunto de suas canções. Possivelmente, um dos registros que melhor
17
Bezerra da Silva faleceu no ano de 2005.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
88 |
representa esse vínculo é a contracapa do disco “Alô malandragem, maloca
o agrante!”
18
, em que ele aparece na escadaria de uma favela cercado por
vários dos compositores que participaram do disco
19
.
Figura 1 - Contracapa do disco “Alô malandragem, maloca o agrante!”
Fonte: Arquivo pessoal, 1986.
18
ALÔ malandragem, maloca o agrante. Intérprete: Bezerra da Silva. São Paulo: RCA Vick, 1986. 1 disco
vinil. Vários compositores.
19
A centralidade dos autores que atuam com Bezerra também aparece em “Compositores de Verdade”, faixa que
encerra o disco em questão. Na parte inicial da canção, composta por Naval, Romildo e Édson Show, a letra,
escrita em primeira pessoa, parece encenar uma autoanálise da carreira de Bezerra da Silva com os seguintes
dizeres: “A razão do meu sucesso/ Não sou eu, nem da minha versatilidade/ É que eu gravo pra uma pá de
pagodeiros/ Que são compositores de verdade”. COMPOSITORES da verdade. Intérprete: Bezerra da Silva.
Compositores: Romildo, E. Show e Naval. In: ALÔ malandragem, maloca o agrante. Intérprete: Bezerra da
Silva. São Paulo: RCA Vick, 1986. 1 disco vinil. Vários compositores.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 89
Nesse ponto, apresenta-se uma nova conexão entre a obra de
Bezerra da Silva e a “dialética da marginalidade”. Isso porque, segundo
o próprio João Cézar, a evocação da obra enquanto elaboração coletiva
é “[...] uma das mais importantes inovações” que deniriam a existência
dessa dialética (ROCHA, 2006, p. 40). Mesmo que os processos de
prossionalização da arte levassem a uma grande valorização do autor
enquanto realizador individual, os partícipes da nova experiência na cultura
nacional assumiam a ideia de que seus relatos atravessavam e representavam
a vida de vários “parceiros” de alguma forma identicáveis nas obras.
Se por um lado, a “dialética da marginalidade” surge como
fruto da junção de uma questão interna (a insatisfação) e outra externa
(a maior acessibilidade aos meios de produção), ela inevitavelmente traz
implicações para o conteúdo das produções artísticas que surgem em um
novo contexto. Assim sendo, a “dialética da marginalidade” também se
dene a partir das novas perspectivas trazidas pelos sujeitos que, após tanto
tempo e tantas gerações, passam a não ter que subjugar seus discursos aos
olhares de intermediários historicamente distantes deles.
Nesse ínterim, Rocha (2006) realiza um mapeamento de
produções artísticas do século XX que exprimiram a nova dialética ou,
de alguma forma, contribuíram para o seu aparecimento. Para ele, a obra
“Quarto de despejo
20
, da escritora negra Carolina Maria de Jesus, teve um
sentido inaugural para que uma nova percepção viesse a se estabelecer entre
as narrativas que de algum modo exporiam os dilemas da nação e seus
variados constituintes sociais. Contudo, o desenvolvimento dessa nova
dialética sofre um salto temporal que só vai ter sua continuidade marcada
pelas produções surgidas entre o m da década de 1990 e o começo dos
anos 2000.
Nesse contexto, entre as obras que fazem elo com a de Carolina
de Jesus, destacam-se o romance “Cidade de Deus
21
, de Paulo Lins;
“Sobrevivente André du Rap: do massacre do Carandiru
22
, de André du
Rap; e o “Manual Prático do Ódio” (2003)
23
, de Ferréz. Já na seara musical,
essa representação se dá com o desenrolar da discograa dos Racionais
20
JESUS, C. M. Quarto de despejo. [São Paulo: Liv. F. Alves, 1960].
21
LINS, P. Cidade de deus. São Paulo: Companhia das Letas, 1997.
22
ZENI, B. (coord.). Sobrevivente André du Rap: do massacre do Carandiru. São Paulo: Labortexto, 2002.
23
FERRÉZ. Manual prático do ódio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
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90 |
MC’s, que também surgem no novo mercado de bens simbólicos no mesmo
período. No entanto, sob o ponto de vista do conteúdo, quais seriam as
características que viabilizariam a percepção de um elo de perspectivas
entre todos esses artistas?
Mais uma vez, dialogando com as considerações de João Cezar,
a “dialética da malandragem” se deniria por um esforço de superação
das narrativas que tentam constituir a conciliação de diferenças, buscando
então “evidenciá-las, recusando-se a improvável promessa de meio-termo
entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente universo
dos excluídos”. Na medida em que essa exposição dos dilemas se dá
principalmente pela exploração do tema da violência, tal dialética teria
o interesse de converter a situação de conito em uma espécie de “força
simbólica” capaz de alcançar a “interpretação dos mecanismos de exclusão
social, pela primeira vez realizado pelos excluídos” e, ao mesmo tempo,
gerar “uma análise alternativa da desigualdade social e sobretudo de suas
consequências, a m de criar condições subjetivas de superação do modelo
de formação da sociedade brasileira” (ROCHA, 2006, p. 56-58).
Seria nesse ponto que então se encontraria o derradeiro e
mais importante ponto de contato entre a nova dialética e a questão da
malandragem nos sambas gravados por Bezerra da Silva. Tal qual posto
nas denições acima, os partidos altos cantados pelo artista em destaque
alocaram a questão da malandragem em uma outra perspectiva que não
da gura meramente folclórica que se consolidou em certo momento no
tecido cultural brasileiro. Essa percepção se mostra importante, vez que
proporciona outro sentido para uma curiosa interpretação, que ainda na
década de 1980, dizia que o samba de Bezerra da Silva ocupava “[…] um
espaço que já foi dos compositores do CPC e dos festivais” e fazia “[…]
política popular sem intermediação intelectual, nem ideologia de limites
denidos
24
.
Ainda que haja uma dimensão crítica a ser reconhecida em
sua obra, Bezerra da Silva não ocupou o espaço que um dia teria sido
fundado e dominado pelos compositores ligados ao CPC ou aos festivais
da canção. Ao contrário dos artistas que se notabilizaram nesse contexto,
Bezerra superou o dilema de falar pelos marginalizados ao também ser
reconhecido como tal. Seria até por essa necessidade de referenciar o
24
Protesto e humor no “sambandido”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 abr. 1988, p. 04.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 91
samba de Bezerra em outras tradições musicais já consolidadas, que as
armações acima apresentadas se mostram reticentes em elaborar algum
tipo de instrumental que ideologicamente (de)limitaria os novos sentidos
apresentados por Bezerra.
É nesse ponto que a “dialética da marginalidade”, já devidamente
denida e aproximada das canções e práticas apresentadas, surgiria como
hipótese capaz de expor que a malandragem em Bezerra da Silva seria
uma novidade na medida em que não renegava a dimensão conituosa
do malandro. A partir do momento em que denia o malandro como
um sujeito distinto do “trabalhador”, do “otário” ou do “bicho solto”,
Bezerra apresentava também uma rede de sociabilidades que, ao seu
modo, fazia um duplo escape da romantização heroica desse sujeito
marginalizado ou de sua completa rejeição enquanto elemento que
ameaçava os ordenamentos vigentes.
Ainda que se possa perceber um dissenso sobre como a obra do
Bezerra da Silva trata do malandro e como, por exemplo, Paulo Lins aborda
essa mesma problemática
25
, é importante reconhecer o sambista como mais
um dos partícipes na estruturação da nova “dialética da marginalidade”.
Mesmo que limitado por condicionantes que distinguem sua carreira da
de escritores que surgem ao m do século XX, Bezerra e sua turma de
compositores aparecem, principalmente entre as décadas de 1970 e 1980,
como vozes não mais interessadas em atribuir ao malandro o seu velho
destino: o da cooptação pelo polo da ordem.
Ao dizer, já ao m de sua carreira, que “[...] a palavra malandro
signica inteligência
26
, o sambista buscou constituir uma síntese que não
foi capaz de ser absorvida pelas interpretações fabricadas pela “dialética da
malandragem”. Por outro lado, na medida em que falava do malandro a
partir da ação criativa de indivíduos historicamente marginalizados, ele
passou a assumir a condição de participante no desenvolvimento dessa
mesma dialética, preenchendo uma lacuna que se apresentava entre o
“Quarto de despejo”, de 1960, e toda a literatura e raps que se notabilizaram
somente trinta anos mais tarde.
25
Em seu texto, João Cézar de Castro Rocha, expõe como Paulo Lins propõe uma inquietante equivalência entre
malandros, bichos-soltos e vagabundos, isto é, entre malandros e criminosos (ROCHA, 2004, p. 42).
26
ONDE a coruja dorme. Produção: omas Schwierskott. Roteiro: Márcia Derraik e Simplício Neto. Rio de
Janeiro: Antenna; TV Zero, 2007. 1 DVD (52 min).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
92 |
referêncIaS
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2009. 155 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História, Universidade
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VIANNA, L. C. R. Bezerra da Silva, produto do morro: trajetória e obra de um sambista
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| 93
L     
    

Érica Magi
A euforia da experiência não chegou a resultar em algo que
realmente preenchesse nossas grandes expectativas de fazer uma
revolução na MPB. A certeza da certeza faz o louco pensar que
é um gênio… camos apenas na vontade… Faltou humildade,
sobrou soberba…
O disco viria a ter o petulante título de Cuidado!: justamente o
que mais faltou em toda a sua produção. (LOBÃO; TOGNOLLI,
2010, p. 377).
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p93-110
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
94 |
Introdução
Para quem acompanha as entrevistas, os posts e vídeos de Lobão
1
realizados nos últimos anos, talvez soe estranha a sua conssão sobre soberba
na epígrafe – trecho retirado de sua autobiograa, lançada em 2010 – em
que reconhece o fracasso na produção do álbum Cuidado!, de 1989, em seu
intento de “revolucionar” a MPB, como se essa fosse uma tarefa simples e
aberta a todos os músicos. Ao admitir a falha da empreitada, que resultou
em um disco ruim, deixou a sincera constatação: O ‘louco’ pensa que é
gênio’ quando ele se sente absolutamente certo.
Em sua trajetória artística de mais de 40 anos, percebe-se, em
diferentes momentos, que Lobão se aproxima da tradição da música
popular brasileira
2
. Politicamente, é possível notar a sua aproximação e
afastamento da esquerda, e, a partir de 2011
3
, a adesão à direita. Aliás,
nos últimos anos, foi o seu envolvimento com a política e com a escrita de
livros – a autobiograa é apenas um deles –, que alavancou o seu nome na
imprensa e nas redes sociais.
Dentre os artistas da música nacional, engajados em discussões
sobre a política brasileira contemporaneamente, Lobão tem se destacado
regularmente. Em princípio, pelas declarações negacionistas proferidas
acerca da ditadura militar brasileira (1964-1985) e do desrespeito
aos direitos humanos
4
ocorrido no período, bem como pelo apoio ao
impeachment da Presidenta Dilma Rousse, em 2014, e pelo aval a guras
intelectuais e políticas da extrema-direita, como Jair Bolsonaro, Olavo de
Carvalho e Rodrigo Constantino; e, posteriormente, por ter manifestado
arrependimento sobre algumas decisões tomadas, a exemplo do apoio à
1
Parte considerável dos argumentos deste artigo foi previamente desenvolvida em minha Tese de Doutorado
(MAGI, 2017).
2
De acordo com Marcos Napolitano, a “tradição da música brasileira” compreende a bossa nova, o samba e a
MPB - “As convenções, os debates, as estéticas e as ideologias em torno desses três gêneros acabaram por legar
uma tradição que, obviamente, não faz jus à riqueza e à diversidade de todas as manifestações musicais do Brasil.
(NAPOLITANO, 2007, p. 6).
3
Para uma análise detalhada da trajetória e das posições políticas de Lobão, ver SERPA (2016).
4
Lobão discursa no “Festival da Mantiqueira”, em 2011, e diz que os “militares arrancaram umas unhazinhas” a
m de defenderem a “soberania nacional” contra a instauração de uma “ditadura do proletariado” pela esquerda
no Brasil. Para conferir esse raciocínio, atualmente bastante alastrado por parte da sociedade brasileira, assista
ao vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=14&v=FjQ-CcuVk. Acesso em: 24
jun. 2019.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 95
eleição de Bolsonaro
5
e determinadas considerações sobre a ditadura
militar
6
.
No dia da votação da eleição presidencial de 1989, em que Luís
Inácio Lula da Silva (PT) e Fernando Collor de Mello (PRN) disputavam
o segundo turno, Lobão estava ao vivo no programa “Domingão do
Faustão”, veiculado pela Rede Globo, e cantou o jingle da campanha do
petista – É Lula lá/ É Lula lá/ É Lula lá –, contudo, sem o conhecimento
prévio do programa.
Da esquerda de Lula para a extrema-direita de Bolsonaro: esse foi
o movimento ideológico radical operado por Lobão em seu posicionamento
político. É verdade que não foi o único músico de rock consagrado nos
anos 1980 a se declarar de direita ou antiesquerdista nos últimos anos –
há também o vocalista Roger, da banda Ultraje a Rigor, o baterista João
Barone, dos Paralamas do Sucesso, e o cantor e ator Léo Jaime.
Esse movimento se insere no contexto no qual, a partir de 2013,
sobretudo, inicia-se um forte questionamento da sociedade civil em relação
à política de esquerda e aos governos do PT (Partido dos Trabalhadores),
e surgem matérias, tanto em veículos posicionados à direita quanto à
esquerda, atentando para existência de roqueiros brasileiros que estavam
alinhados à direita. O “fenômeno rock de direita” no Brasil ganhou matérias
em sites jornalísticos tamanha a surpresa pela descoberta de roqueiros que
se denem de direita no espectro político
7
.
Isso porque existe uma ideia de que os artistas do rock, no país
ou no exterior, são essencialmente progressistas, de esquerda, e críticos
à sociedade capitalista e suas mazelas. E, nesse sentido, continua-se a se
esperar tal posicionamento político dos músicos do gênero, uma vez que,
5
Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, no dia 23 de maio de 2019, o músico anunciou o seu rompimento
com Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho. Conra no link disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
ilustrada/2019/05/chamar-estudante-de-massa-de-manobra-e-coisa-de-imbecil-diz-lobao-sobre-bolsonaro.
shtml ml. Acesso em: 23 maio 2019.
6
No dia 26 de março de 2019, Lobão publicou um vídeo em seu canal no Youtube, chamado “64 não foi
golpe, mas foi uma cagada”, onde ele diz que a ditadura militar foi autoritária, apesar de não ter sido um golpe;
e que é uma “estupidez” ter saudade desse período “sombrio” da história nacional. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=87i2qVTEko4. Acesso em: 30 mar. 2019
7
Algumas das referidas matérias: NOGUEIRA, Kiko. Lobão, Roger e o rock de direita. Disponível em:
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/lobao-roger-e-o-rock-de-direita/. Acesso em: 30 mar. 2019. De
Elvis Presley à Lobão: Conheça seis roqueiros de direita. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/
caderno-g/musica/de-elvis-presley-a-lobao-conheca-seis-roqueiros-de-direita-c4kstnjfbouls578d2hib3e9y/.
Acesso em: 30 mar. 2019.
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por exemplo, durante os anos 1960 e 1970, estiveram ao lado das lutas por
direitos civis nos Estados Unidos, consolidando uma imagem progressista
do rock. Contudo, é uma expectativa que acaba por contaminar a apreciação
crítica das obras e das trajetórias, especialmente se não for atendida, como
se a “essência” rebelde e progressista do rock fosse maculada, traída por
artistas que não sabem o que é o rock de fato.
De forma semelhante, no Brasil, nas décadas de 1960 e 70,
houve um importante envolvimento de artistas da nascente MPB no
combate à ditadura, colando uma imagem à sigla que se construiu sobre
bases concretas progressistas, de luta social e de esquerda. Assim, embora
o rock brasileiro dos anos 1980 tenha recebido claras inuências do rock
internacional, também dialogou de forma mais ou menos tensa com a
tradição da música popular brasileira, de forma que a implementação de
uma crítica política no trabalho de várias bandas não foi uma novidade no
período, mas a continuidade de uma herança.
A partir desse contexto, pretende-se mostrar que a análise
sociológica de parte da trajetória artística de Lobão pode contribuir
para uma compreensão mais ampla das tensões e demandas artísticas e
políticas que perpassam qualquer carreira musical, sem cair na armadilha
essencialista de esperar que um determinado gênero e seus artistas devam
coadunar com um conteúdo político especíco. A complexidade das
relações sociais, em qualquer campo de produção simbólica, não permite
endossar narrativas construídas por seus agentes ou por interpretações
essencialistas do fenômeno social.
uM roqueIro lutando pelo reconhecIMento da tradIção
Lobão é o apelido de João Luiz Woerdenbagh Filho (1957-),
recebido quando estudava no tradicional colégio de padres, São Vicente
de Paulo, nos anos 1970, no bairro de Ipanema. Filho de uma família
de classe média-alta, cujo pai era empresário do ramo automobilístico,
representante da marca Rolls Royce no Brasil, e a mãe, professora de
literatura, abandonou a escola no antigo Ensino Médio, acreditando que
poderia ser um músico prossional quando foi aprovado em uma audição
para tocar bateria na peça “A Feiticeira”, do casal Nelson Motta e Marília
Pêra, e por ela protagonizada. Nesse ambiente, conheceu Lulu Santos, Luís
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 97
Paulo Simas, Fernando Gama e Ritchie, com os quais formou sua primeira
banda, o Vímana, na qual tocava bateria.
O Vímana foi uma banda brasileira de rock progressivo que teve
uma carreira curta, com o lançamento de um único compacto simples, sem
grande repercussão na cena musical brasileira. Contudo, foi o trampolim
por meio do qual Lobão conheceu o ator e cantor Evandro Mesquita, com
quem fundou a banda Blitz, esta sim laureada com grande sucesso comercial
desde o compacto de estreia, que trazia a canção “Você não soube me
amar”. Além de Lobão, na bateria, e Evandro, nos vocais, a banda também
era integrada pelas backing vocals, Fernanda Abreu e Márcia Bulcão, além
de Ricardo Barreto (guitarra), Antônio Pedro Fortuna (contrabaixo) e Billy
Forghieri (teclados).
Descontente com o estilo da Blitz, envolto em um projeto paralelo
seu, e em meio a dúvidas sobre sua permanência na banda, o baterista
arquitetou um plano para deixar o grupo e tentar a carreira solo: sabendo
que a Blitz seria capa da Isto É, de 27 de outubro de 1982, disse aos colegas
que também assinaria o contrato com a gravadora EMI-Odeon após a
entrevista, motivo pelo qual estampou a capa da revista ao lado dos demais
membros da Blitz, aos quais só avisou de sua saída em momento posterior,
quando conseguiu um contrato com a RCA-Victor (onde apareceu munido
com a mencionada revista Isto É e o LP solo e inédito em mãos). Em razão
desse “golpe”, embora tenha gravado a bateria em todas as músicas de “As
Aventuras da Blitz”, Lobão não apareceu na capa do álbum.
A RCA-Victor, conhecida como a “casa do samba”, aceitou a
empreitada de prensar e distribuir o disco pronto de Lobão, que já estava
tocando na rádio Fluminense FM
8
. Em dezembro de 1982, o “Cena
de Cinema” foi lançado com um show no Rock Voador. Ele trouxe a
participação dos amigos Marina Lima e Ritchie nos vocais de apoio, Lulu
Santos na guitarra, William Forghieri, da Blitz, nos teclados, e Marcelo
Sussekind no contrabaixo. As canções, todas inéditas, foram compostas
em parceria com o poeta e letrista Bernardo Vilhena (1949-), gura ligada
tanto à música quanto à cena do teatro alternativo carioca dos anos 1970,
que seria seu grande parceiro durante os anos 1980.
8
Conforme relatado por Luís Antônio Mello, o ex-coordenador da rádio Fluminense-FM em entrevista,
realizada no dia 15 de junho de 2015 na cidade de Niterói-RJ: Lobão teria levado à rádio a ta cassete de «Cena
de Cinema».
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
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Toda a habilidade de Lobão para se lançar em carreira solo,
contudo, não se traduziu em vendas e, a priori, no comprometimento
da gravadora com o disco. Pelo menos, é o que o músico conta em sua
autobiograa (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010): “‘Cena de Cinema’ foi um
fracasso comercial porque a gravadora não fez a distribuição devida, o tratou
como um produto menor em seu catálogo”. Sentindo-se rebaixado enquanto
artista, Lobão destruiu a sala do diretor da companhia.
Todavia, “Cena de Cinema” foi bem recebido pela imprensa local.
Inclusive, o jornalista Jamari França, incentivador do rock no Jornal do
Brasil, rasgou elogios ao trabalho e ao músico, que já conhecia dos shows
no palco do Circo Voador, dando-lhe espaço para se manifestar, ao que
Lobão expressou o quanto queria construir o seu nome artístico enquanto
um “roqueiro” e que gostaria de ser respeitado por isso. Em suas palavras:
Eu seria hipócrita se estivesse tocando partido-alto ou música rural,
eu não vivenciei nada disso. Acho deplorável exigir brasilidade, sou
brasileiro antes de tudo porque nasci aqui e sou honesto porque
estou destilando a cultura que eu digeri. E as pessoas do rock estão
cando mais inteligentes. Um dos integrantes do Kid Creole & e
Coconuts é especialista em Shakespeare, o Sting (baixo – vocal – e
Police) é uma pessoa muito sosticada, o Clash, Elvis Costello, uma
geração mais esperta que faz coisas muito boas, sosticadas e cruas.
Então por que não acompanhar essas coisas? (FRANÇA, 1982).
O músico refere-se aos gêneros “brasileiros por excelência” e
relacionados às camadas baixas da população: o samba e a música caipira
– sendo que a “música rural” foi um dos elementos alçados à condição de
matrizes da MPB durante o seu processo de consolidação nos anos 1960
(NAPOLITANO, 2007). Nota-se, por sua fala, que no início da carreira
solo, Lobão parecia não se sentir constrangido por não se devotar à tradição
da música popular brasileira, tendo em vista que não se reconhecia na
“brasilidade” cultuada e à qual se esperava que todos cultuassem, quebrando
com as expectativas de que ele tivesse algum envolvimento com a cultura
musical da cidade, em especial, o samba.
Aliás, no universo da produção do rock, percebe-se um
constrangimento em abraçar certa “brasilidade”. O jovem músico, por
exemplo, estava informado sobre as bandas contemporâneas, citando e
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 99
Clash, e Police e Kid Creole & e Coconuts, questionando: “Por que
não acompanhar essas coisas?”. “Por que não acompanhar o que está sendo
produzido na música pop
9
na Inglaterra e Estados Unidos?”. Difícil não
notar alguma inocência no baterista, recém-chegado ao campo da música
popular
10
, ao fazer essas perguntas na esperança de que tal repertório pudesse
ser ouvido para além dos músicos de rock no Brasil. Essas “coisas” de rock
no Brasil do início dos anos 1980 ainda careciam de espaços consolidados
na indústria cultural e de legitimidade no campo da música popular.
Quanto ao disco, “Cena de Cinema” tem uma sonoridade
próxima à new wave americana, é dançante, traz letras sobre namoros e
canções de nomes engraçados e estranhos (Squizotérica, Love pras Dez,
Scaramuça, Amor de Retrovisor). Composições que poderiam estar no
repertório da Blitz. A capa do disco é expressiva dos “novos tempos” na
trajetória de um Lobão que agora usava cabelos curtos – vez que a longa
cabeleira cou no Vímana e no rock dos anos 1970 –, segurando uma
guitarra e vestindo um gurino discreto e “jovem” (camiseta e calça). E, tal
qual um personagem em uma história em quadrinhos, a sua imagem foi
colorida de branco e preto e colada a um fundo negro. O nome do artista
está escrito com letras em movimento, desalinhadas, e com direito a um
sombreado em cor-de-rosa vibrante.
Figura 1: “Cena de Cinema”, de Lobão. RCA-Victor. 1982
Fonte: https://portrasdavitrola.blogspot.com.br/2012/08/lobao-cena-de-cinema-1982.
htm, acesso em: 25 mar. 2020.
9
Considera-se “música pop”, nesse contexto, tudo aquilo que abrange as manifestações musicais de repercussão
mundial, na qual está incluído o rock.
10
Usa-se o conceito de campo, desenvolvido por BOURDIEU (1996), porque ele ajuda a evidenciar de que
forma os diferentes agentes se relacionam e se posicionam no tempo.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
100 |
Embora o disco tenha sido um fracasso de vendas, mesmo
assim o contrato de Lobão na RCA-Victor foi mantido. Ele juntou-se aos
amigos Guto Barros, ex-Blitz, na guitarra, Baster Barros, na bateria, Odeid
Pomeranblum, no contrabaixo, e à sua namorada à época, Alice Pink Pank,
ex-vocalista da Gang 90 & As Absurdetes, nos teclados e voz, e constituiu a
banda Os Ronaldos. Em meados de 1984, lançaram no mercado o álbum
“Ronaldo Foi Pra Guerra”, assinado por “Lobão e Os Ronaldos”.
Ao contrário de seu primeiro disco solo, o sucesso de “Ronaldo
Foi Pra Guerra” fez com que Lobão sentisse o sabor de ter músicas tocando
repetidamente nas rádios e a experiência de fazer shows fora do Rio de
Janeiro. “Corações Psicodélicos” e “Me Chama” foram sucessos naquele ano,
esta última tanto na voz de Lobão quanto na de sua amiga, Marina Lima,
que a gravou no disco “Fullgás”, de 1984, e, por ser artista já conhecida
nesse período, trouxe importante apoio público para a carreira de Lobão.
O lançamento do LP no Rio de Janeiro foi realizado na danceteria Mamute
no bairro da Tijuca, zona norte da cidade, que integrava o circuito de
danceterias das bandas e artistas da cena do rock carioca. Em São Paulo, a
danceteria Radar Tantã, localizada no Bom Retiro, abrigou dois shows de
Lobão e os Ronaldos
11
, nos dias 27 e 28 de julho de 1984.
Outra diferença expressiva no disco e no posicionamento de
Lobão foi sua tentativa de se aproximar da tradição da música popular
brasileira, modicando, neste trabalho, a posição tomada na mencionada
entrevista concedida à Jamari França, na qual recusava-se a buscar pela
“brasilidade”. A jornalista Ana Maria Bahiana entrevistou Lobão à época
do lançamento deste disco
12
:
“Cena de Cinema” se destacava no emergente rock carioca pela
qualidade atualizada e agressiva de seu conteúdo. [...] Embora,
Lobão tenha surgido no cenário rock, ele diz que hoje ‘não tem
qualquer compromisso’ com o estilo. ‘Temos compromisso é com
o caos cultural que nos foi imposto. No disco tem de tudo, porque
nós somos um pouco de tudo. Tem bossa nova, Rio do Delírio, que
eu z pensando em Tom Jobim e Michel Legrand. Tem balada, tem
punk-psicopata. A gente também não tem nenhuma culpa com o
11
Anúncios. Folha de São Paulo, São Paulo, 27 jul. 1984. Caderno Ilustrada, p. 34.
12
E no jornal Folha de São Paulo, o disco foi capa do caderno de cultura e bem avaliado. Sobre isso, veja em:
ALMEIDA, Miguel. O Rock Radical de Lobão e os Ronaldos. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 jul. 1984.
Caderno Ilustrada.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 101
lance do colonialismo cultural. Isto rolou durante muito tempo,
e acho que agora está sendo posto pra fora de uma forma bem
denida’ (BAHIANA,1984, p.25).
A mensagem parece clara: Lobão continuava no rock, mas estava
também entrando em outras searas musicais. Nota-se, nesse período,
que a recusa da inuência do rock na música brasileira não tinha mais
ressonância entre os jovens oriundos da classe média urbana dos anos
1980, de maneira que a luta dos artistas e críticos musicais era para que ele
fosse visto como culturalmente legítimo, uma luta que ainda não estava
ganha à época (MAGI, 2013).
A canção citada pelo artista na entrevista acima, “Rio do Delírio”,
é uma homenagem ao Rio de Janeiro e possui uma letra que promove a
convivência harmoniosa de distintos gêneros musicais: o samba, o carnaval
e o rock, que teriam espaços garantidos e em conjunto na alma da cidade.
Ela diz:
Rio do Delírio e sol
Acontece tudo por aqui
O desejo e o pavor são tão normais
Desvario e prazer
Se fantasiam em todos os carnavais
Fantasia
Todo mundo fantasia
Sempre por aqui
Delírio de Janeiro ou ou...
A malemolência faz sentir
Esse é o meu Rio de Janeiro
Desatino kodachrome e ilusão
E a mistura tão naive
De samba, manha, cama e Rock’n’Roll
Fantasia
Todo mundo fantasia
Sempre por aqui.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
102 |
Nota-se que “De samba, manha, cama e rock’nroll” porta-se
como uma mistura oferecida pela cidade, que ainda proporciona “delírio”,
desejo”, “pavor”, sexo, fantasias das mais diversas e “malemolência”. Ao
sujeito é permitido vestir uma fantasia no cotidiano da cidade, lidando
com ela através da arte, da brincadeira e do prazer de lá viver. Assim, o Rio
de Janeiro seria, usando a expressão de Richard Morse (1995, p. 210), um
mundo em si mesmo”, onde o narrador se sente bem em suas fronteiras,
por haver nesse lugar tudo que lhe interessa.
Na mesma linha, “Corações Psicodélicos” – canção que integra
o repertório de sucessos de Lobão – também é uma celebração da festa,
do descontrole e do sexo. Contudo, é uma música que mostra que o rock
carioca poderia produzir mais do que canções alegres e inofensivas no
ritmo dançante da Blitz e do Kid Abelha & As Abóboras Selvagens, por
exemplo. Nela, há uma sexualidade sem freios, amor ao rock, guitarras altas,
interpretação vocal um tanto agressiva e a felicidade em ser jovem fazendo
um rock and roll “meio nonsense” e tirando sarro dos mais “decentes”.
Talvez seja umas das canções mais bem acabadas do rock brasileiro dentro
do que se chama de “espírito do rock”: sexo, drogas e rock and roll. Ainda
que o seu compositor estivesse objetivando a aproximação com a tradição
da música, existe o “espírito do rock” incorporado por ele e sua geração.
Ao m, a canção pode ser denida como um suspiro de
insubmissão ao cânone da música brasileira. Eis a letra de “Corações
Psicodélicos”, de Bernardo Vilhena e Lobão:
Ainda me lembro
Daquele beijo
Spank punk violento
Iluminando o céu cinzento,
Eu quero você inteira
Gosto muito do seu jeito,
Qualquer nota bossa nova
Bossa nova qualquer nota
Eu quero você na veia
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 103
E a vida passa na tv
E o meu caso é com você
Fico louco sem saber
Sim pro sol. Sim prá lua
Eu quero você toda nua
Sim pra tudo que você quiser
Gosto muito do seu jeito,
Rock’nroll meio nonsense
Rock’nroll meio nonsense
Pra acabar com essa inocência
E o complexo de decência no meio do salão
E a vida passa na tv
E o meu caso é com você
Fico louco sem saber
Sim pro sol. Sim pra lua
Eu quero você toda nua
Sim pra tudo que você quiser
Hoje é festa na oresta
Toda tribo ateia som
Toda taba ateia sol só tomando água de coco
Infeliz de quem tá triste
No meio dessa confusão
Mais adiante, o terceiro disco da carreira de Lobão, agora sem
a banda Os Ronaldos, estreitou a aproximação com a tradição da música
popular brasileira, começando já pelo irônico nome: “O Rock Errou
– um trocadilho com a pronúncia em inglês de “rock and roll”. O LP
foi lançado em 1986 pela RCA-Victor, e contou com a participação de
Mariano Martinez, na guitarra e teclados, Jurim Moreira, na bateria, e
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
104 |
João Batista, no baixo. Lobão assumiu a guitarra e os vocais. Na canção
homônima, que gura a segunda faixa do álbum, tem-se o questionamento
do narrador enquanto um artista de rock, vivendo em um lugar onde o
gênero recebeu a alcunha de “alienado” há não muito tempo. Eis a letra de
“O Rock Errou”, também composta por Lobão e Bernardo Vilhena:
Dizem que o Rock andou errando
Não valia nada, alienado
E eu aqui na maior das inocências
O que fazer da minha santa inteligência
Será que esse é o meu pecado, porque
Errou, errou, errou, errou
Eu sei que o rock errou
Acho que é melhor passar a borracha
Ninguém é perfeito você não acha?
Nem mesmo o bruxo da vassoura
Música do Planeta Terra
Cantiga de guerra
Canto, espanto e co rouco
E ainda acham pouco porque
Errou, errou, errou, errou
Eu sei que o rock errou
Vivemos num país bem revistado
Uma nova volta ao passado
Muito louco anda solto
De colarinho, é claro
Se eu respiro inspiro mais cuidado
Desse pobre coitado, porque
Errou, errou, errou, errou
Eu sei que o rock errou
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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Percebe-se que o pano de fundo da canção nada mais é que uma
história do rock no Brasil. Nos anos 1960, com o sucesso do programa
de televisão Jovem Guarda (1965-68), estrelado por Roberto Carlos,
Wanderléa e Erasmo Carlos, ocorreu uma cisão séria entre os roqueiros
e os artistas da MPB. Essa disputa que só veio a ser tensionada para o
lado do rock com a emergência do movimento Tropicalista, que propôs a
incorporação dos elementos do gênero na música brasileira. Mesmo assim,
bandas e artistas-solo, assumidamente roqueiros, não dispunham de espaço
de trabalho no mainstream nos anos 1970, com as honrosas exceções: Rita
Lee, Raul Seixas e Secos e Molhados.
O narrador de “O Rock Errou” pensa-se especial e inteligente, ao
mesmo tempo em que questiona o seu desprestígio no campo da música
popular: “Canto, espanto e co rouco/ E ainda acham pouco porque”; bem
como o fato de sua performance artística não ser suciente para determinados
artistas: “Vivemos num país bem revistado/ Uma nova volta ao passado/
Muito louco anda solto/ De colarinho, é claro/ Se eu respiro inspiro mais
cuidado/ Desse pobre coitado, porque”. Ele parece reetir acerca do fato de
que o acham inofensivo por fazer rock, por isso tomam cuidado com ele, e
continuam a olhar para o “passado”, e não para as novidades. O prestígio
não está ao seu lado, e sim junto aos que usam “colarinho
13
, aos que se
pensam sérios e livres de qualquer julgamento. Verica-se que o narrador
nge humildade para falar sobre o lugar do rock e dos roqueiros no país, uma
vez que a sua “santa inteligência” não compreende bem o que o gênero teria
feito para ser alcunhado de “alienado”, isto é, despolitizado e artisticamente
rebaixado na hierarquia do campo musical.
A faixa “A Voz da Razão”, por sua vez, contou com a parceria
especialíssima de Elza Soares, com quem Lobão dividiu os vocais,
interpretando, na forma de diálogos agressivos, mais falados do que cantados,
uma canção sobre o término de uma relação amorosa. Interessante notar
que o músico poderia ter convidado uma cantora ligada ao rock brasileiro,
como a Rita Lee, Baby do Brasil ou Wanderléa, mas escolheu a voz ímpar
e consagrada do samba: Elza Soares. Tal “mistura” congura a tomada de
posição que será cada vez mais evidenciada na trajetória de Lobão nos
seus discos seguintes e em entrevistas à imprensa. Ao caderno de cultura
de O GLOBO, por exemplo, sem grandes diculdades no malabarismo
13
“Colarinho” refere-se a uso de camisas, uma peça que passa a ideia de formalidade e seriedade em quem a veste.
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106 |
verbal para justicar a sua aproximação da tradição da música popular
brasileira, ele defendeu “o rock que não tem medo da diferença
14
. Isso
porque as bandas e artistas da cena do rock carioca estavam indo pelo
mesmo caminho discursivo e artístico.
Logo depois, ele foi preso em agrante e condenado por porte
de drogas. Ficou encarcerado por três meses no Rio de Janeiro e, da estada
na cadeia, nasceu o disco “Vida Bandida” (RCA-Victor, 1987), terceiro
álbum solo do músico. O disco começa com Lobão gritando: “Aêê, galera
da 11”, em homenagem aos seus ex-companheiros da cela número onze.
O marketing e a piada com a experiência na prisão apareceram também
em uma entrevista de capa, no Caderno Ilustrada, quando disse que usaria
o falatório em torno de sua prisão para vender discos, como uma forma de
revide à Justiça
15
. A referida entrevista foi publicada às vésperas do show que
Lobão faria no ginásio do Ibirapuera – dado que evidencia uma mudança
importante no tamanho do público do músico e do rock, tendo em vista
que as danceterias não eram mais os espaços de shows, porque o público
no Rio de Janeiro e em São Paulo estava crescendo. Nessa entrevista, Lobão
estabeleceu relações entre o samba e a sua música, sendo escancaradamente
reconhecido enquanto um intelectual da área, a quem é perguntado acerca
do estado atual da música e de seu futuro:
Folha – Você acha que ainda há coisas a serem discutidas no campo
da música ou estamos entregues apenas ao imperativo do mercado?
Lobão – Acho que há muita coisa a se mesclar e a se desenvolver.
Li críticas ao meu disco aqui em São Paulo falando em mesmice.
Há uma urgência de modernidade que ataca certas pessoas que
não entendem... Não percebem coisas, como o fato de “Vida
Bandida”, por exemplo, ser um “heavy – samba”, acham que é
um rock heavy. É uma coisa que eu considero nova. Quem corre
atrás não passa adiante.
Quando perguntado, no “campo da música”, sobre quais seriam as
possibilidades estéticas para a música brasileira, Lobão aproveitou o ensejo
para se posicionar contra a ambição pelo cosmopolitismo desenfreado e a
14
Fonte: VIVA o Rock que não tem medo da diferença. Jornal O GLOBO, Segundo Caderno, 16 jul. 1986, p. 01.
15
Fonte: LOBÃO - a revanche do prisioneiro. [Entrevista concedida a] Marcos Augusto Gonçalves. Folha de
São Paulo, Capa do Caderno Ilustrada, 21 ago. 1987.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 107
dependência em relação ao rock internacional dos roqueiros e determinados
críticos de São Paulo. Para ele, o rock brasileiro não poderia prescindir da
mescla”, ao que citou o “heavy-samba”, mais um nome criado pelo artista
para se posicionar junto à tradição da música popular brasileira.
Inclusive, essa relação com o samba continuaria sendo
estabelecida até o nal dos anos 1980. No disco “Cuidado!”, lançado em
1988, ainda pela RCA-Victor, compôs canções em parceria com o músico
de samba Ivo Meirelles (1962-) e contou com a participação da percussão
da Mangueira na gravação. Nesse mesmo ano, ele integrou a bateria dessa
escola de samba, tocando tamborim. No entanto, a estratégia de Lobão
não lhe proporcionou “signicativos ganhos simbólicos nem econômicos”.
(FERNANDES; SERPA, 2018, p. 100-101).
Apesar da busca pela aproximação da tradição da música
popular brasileira via declarações à grande imprensa, parcerias de trabalho
e pelas sonoridades de canções nesse período, Lobão não conquistou o
reconhecimento pretendido entre os “grandes nomes” da MPB e do samba.
Nem mesmo o seu último polêmico ato na década de 1980 lhe possibilitou
tal proeza, quando o músico cometeu crime eleitoral ao cantar, ao vivo, no
programa de auditório “Domingão do Faustão”, exibido na rede Globo,
o jingle da campanha do candidato do PT (Partido dos Trabalhadores)
à presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva. Nesse momento,
Lobão reverencia, na composição e no debate político, a MPB – constituída
entre os anos de 1965 e 1968 a partir de “vários paradigmas da canção
nacionalista” em concorrência com a Jovem Guarda (NAPOLITANO,
2007, p. 109-110) – , em mais uma tentativa de integrar-se (e ao seu estilo)
a ela por meio de sua diferença, e por ela ser reconhecido.
Na década de 1990, é possível notar uma continuidade de sua
empreitada de reconhecimento para além de um “simples” roqueiro no
campo da música popular. O disco Noltalgia da Modernidade (Virgin, 1995)
é exemplar nesse sentido, pois nele há samba, choro, xote e não misturados
ao rock, este apenas presente em poucas faixas (FERNANDES; SERPA,
2018, p. 101). Contudo, o disco não foi bem em termos econômicos,
tampouco conquistou um espaço legítimo no campo da música.
Apenas em 2007 é que ocorre uma virada importante na
trajetória artística de Lobão, quando retorna ao mainstream por meio da
participação no projeto Acústico MTV, formato de gravação de disco que
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
108 |
contava com amplo investimento nanceiro e distribuição nacional do
canal MTV. Na medida em que o repertório – uma demanda expressa do
formato – deveria ser uma compilação dos sucessos da carreira, o artista
se viu obrigado a reunir as suas canções de rock, gravando-as em uma
produção não eletricada. O disco ganhou o prestigiado Grammy Latino
16
de melhor álbum de rock naquele ano, o que representou a volta de Lobão
à cena musical como um compositor e cantor de rock e, agora, premiado
internacionalmente.
Cinco anos depois, Lobão gravou outro disco totalmente
dedicado ao rock, ao vivo na cidade de São Paulo, onde reside desde os
anos 1990. Lobão Elétrico, lino, sexy e brutal (Deckdisc, 2012) anuncia o
peso das guitarras elétricas na produção, acionando o imaginário simbólico
do gênero rock (“brutal”, “sexy”). O repertório é também uma reunião
de seus sucessos, somados à gravação de outras canções clássicas do rock
brasileiro, como “Ovelha Negra”, composta por Rita Lee, e “Balada do
Louco”, composta por Arnaldo Baptista e Rita Lee.
Os álbuns Lobão - Acústico MTV e Lobão Elétrico, lino, sexy e
brutal não signicam, de antemão, que o artista tenha se conformado
à sua posição de roqueiro no campo da música popular. Contudo,
representam um movimento de volta, de reverência à sua trajetória no rock
e, provavelmente, expressam onde reside a sua força criativa e artística.
conSIderaçõeS fInaIS
O capítulo tentou demonstrar que conferir uma essência a um
gênero musical não é apropriado em uma análise sociológica. Continua-se
a esperar do rock brasileiro e internacional que seus integrantes tenham um
posicionamento político à esquerda, como se essa característica fosse natural
ao gênero. A graça da análise sociológica está em descobrir a complexidade
dos caminhos políticos e artísticos que podem ser tomados por um artista
dentro de um campo especíco de produção cultural e em relação a outras
tomadas de posição e gêneros. No caso de Lobão, que vem gurando nas
manchetes de várias reportagens como o “roqueiro de direita”, é evidente
16
Fonte: Grammy Latino premia Lobão, Lenine e Zeca Pagodinho, O GLOBO, 08 nov. 2007. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/cultura/grammy-latino-premia-lobao-lenine-zeca-pagodinho-4141912. Acesso em:
25 mar. 2020.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 109
que ele expressa mais do que o seu posicionamento político: a sua luta
pelo reconhecimento da tradição da música popular brasileira, inclusive
em críticas ao próprio rock, mostra as tensões, as posições dominantes e
dominadas presentes no campo musical que vêm se mantendo no tempo.
A estratégia de legitimação no campo da música popular,
consciente ou não, adotada por Lobão ao tentar aproximar-se da tradição
da música popular, também foi operada por outros artistas e bandas
cariocas, como Cazuza, Lulu Santos, Paralamas do Sucesso e Picassos
Falsos – preocupados em conhecerem intimamente a história do rock
internacional, ao mesmo tempo em que lidavam de perto com a tradição da
música popular brasileira e com suas memórias e patrimônios espalhados
pela cidade, sobretudo, pela presença simbólica dessa tradição na rotina de
trabalho no interior das grandes gravadoras. O caminho “escolhido” foi
a aproximação e a tentativa de se incorporarem a essa tradição, expressiva
nas mudanças de sonoridades dos álbuns e nas parcerias de trabalho com
artistas da MPB e do samba.
A força acachapante da tradição da música popular brasileira,
enraizada de modo especial na cidade do Rio de Janeiro, como um “mundo
em si mesmo” (MORSE, 1995) e à parte do restante do Brasil, logrou
imprimir aos roqueiros a sua marca, o seu poder, ou, como os críticos e
produtores musicais gostam de salientar, as suas “inuências”.
referêncIaS
BAHIANA, Ana Maria. Lobão e seus Ronaldos no Mamute: rock, bossa e punk. O
GLOBO, Rio de Janeiro, 22 jun. 1984.
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FERNANDES, Dimitri Cerboncini; SERPA, Ana Carolina. “Lobão e Caetano
Veloso: desdobramentos da dialética nacional-estrangeiro”. Música Popular em Revista,
Campinas, ano 5, v. 2, p. 88-115, jan./jul. 2018.
FRANÇA, Jamari. Cru por opção e sosticado por natureza. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 11 dez. 1982. Caderno B.
LOBÃO; TOGNOLLI, Claudio. Lobão: 50 anos a mil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2010.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
110 |
MAGI, Érica Ribeiro. Metrópoles em Cenas: o Rock em São Paulo e no Rio de Janeiro
nos anos 1980. 2017. 187 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosoa,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
MAGI, Érica Ribeiro. Rock and Roll é o nosso trabalho: a Legião Urbana do underground
ao mainstream. São Paulo: Alameda/Fapesp, 2013.
MORSE, Richard. As cidades ‘periféricas’ como arenas culturais: Rússia, Áustria,
América Latina. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, p. 205-225, 1995.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias: a questão da tradição na música popular
brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.
SERPA, Ana Carolina. Lobão: do Vímana à Veja. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2016. 151 f.
Entrevista à autora
Luis Antonio Mello. 15 de junho de 2015. Niterói (RJ)
| 111
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  
Rômulo Vieira da Silva
Introdução
As batalhas de rimas
1
são algumas das atrações frequentes
das metrópoles brasileiras nos anos 2000 e 2010. Trata-se de eventos
majoritariamente gratuitos e semanais, que articulam, em várias das
esquinas, praças, estações de metrô e centros culturais do país, uma nova
forma de ocupar os espaços públicos por meio da arte (ALVES, 2013).
Uma das características deste fenômeno é sua articulação por meio
das plataformas digitais, vez que os sites de rede social se conguram como
1
Também chamadas de batalhas de RAP, batalhas de MCs ou duelos de MCs.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p111-134
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
112 |
meios fundamentais para a organização, interlocução e divulgação das
batalhas de rimas. Este texto se interessa por esses atravessamentos e busca
reetir sobre o papel da cultura digital na circulação e nas performances do
RAP brasileiro contemporâneo.
Já não é novidade que a expansão da internet produziu notáveis
transformações na indústria fonográca. Se, nos anos 1960 e 1970, o sucesso
dos LPs e tas magnéticas e o surgimento da mídia televisiva expandiram
o setor e, nos anos 1980 e 1990, as gravadoras foram obrigadas a investir
em novos nichos e a apostar no CD como novo formato, nos anos 2000 e
2010, o avanço da microinformática, das tecnologias digitais e da cultura
digital ajudou a descentralizar a produção fonográca, a evocar sistemas
alternativos de distribuição e a consolidar o mercado de fonogramas
digitais (VICENTE, 2014; VICENTE; DE MARCHI, 2014).
É a partir desse cenário que a virtualização das informações
sonoras foi intensicada, estimulando a emergência de novas maneiras de
consumir música: sejam elas relacionadas ao compartilhamento e fruição,
por vezes gratuita, de arquivos digitais mais leves, como os formatos
MP3
2
e WAV
3
, seja por meio da escuta mediada por diferentes serviços de
streaming que começam a surgir (DE MARCHI, 2005; VICENTE; DE
MARCHI, 2014). Este é o panorama que cria as bases para a ampliação do
consumo musical por meio da internet, incluindo a ascensão do YouTube.
O YouTube é uma plataforma gratuita
4
e intuitiva, que estimula
o compartilhamento audiovisual e incentiva o debate sobre os produtos
publicados em sua rede, atuando como um dos principais termômetros
da música (BURGESS; GREEN, 2009). Se alguns dos artistas de
maior popularidade dos anos 2000 (Justin Bieber, Luan Santana) foram
descobertos no YouTube, a relevância que MCs da nova geração do RAP
alcançaram por meio da plataforma parece rearmar seu lugar de destaque
na circulação e no consumo dos produtos musicais.
2
Abreviação de MPEG Layer 3, formato de compressão de áudio digital.
3
Abreviação de Waveform Audio File Format, formato padrão de arquivo de áudio dos computadores da
Microsoft e da IBM.
4
Ainda que essa gratuidade possa ser relativizada pela utilização de anúncios publicitários na plataforma, pagos
a partir de sua visualização por parte da audiência. O lançamento do serviço de assinatura do YouTube em 2018
(a R$ 20,90/mês em 2019 no Brasil), sem anúncios e com acesso a conteúdos exclusivos, é uma nova face dessa
articulação.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 113
Considerando que a cultura digital media a cena musical
(PEREIRA DE SÁ, 2013), o estudo apresentado aqui busca pensar quais
são e como são os efeitos estabelecidos pela cultura digital na cena do RAP
brasileiro dos anos 2010. Parte da premissa que as batalhas de rimas são os
principais eventos e espaços físicos de sociabilidade do RAP brasileiro neste
período e que o YouTube, com a perda do status de exclusividade televisiva
do videoclipe e o maior envolvimento do público na criação de conteúdos
(BURGESS; GREEN, 2009), é a principal plataforma digital pelo qual
esses eventos circulam e são consumidos.
aS BatalhaS de rIMaS e o YoutuBe
Se a gênese do RAP brasileiro tem como baliza formativa a
cidade de São Paulo (HERSCHMANN, 2000), as batalhas de rimas têm
o Rio de Janeiro como base territorial. O bairro da Lapa, na zona central,
reconhecido por sua diversidade de bares e espaços culturais que abrigam
múltiplas manifestações, foi onde o RAP Freestyle
5
deu seus primeiros
passos e articulou parte de suas especicidades (ALVES, 2013).
A Lapa foi um local importante para a formação do RAP carioca
(HERSCHMANN, 2007), visto que nos anos 1990 já servia como
agregador
6
para a cena que crescia. A festa Zoeira
7
, promovida inicialmente
em 1998, foi um evento que colaborou com o desenvolvimento do RAP
a partir do bairro, tornando-se um conhecido ponto de encontro (LEAL,
2007) a partir do qual o RAP Freestyle começou a ganhar corpo no Rio: o
evento revelou MCs e serviu como elo para parcerias como o Melô da Zoeira
(1999) – de Marcelo D2, Marechal e Aori, que caram mais próximos a
partir do evento.
5
RAP free of style, escrito em estilo livre, sem comprometimento com um modo de expressão, uma forma ou um
tema especíco. Nos anos recentes, acabou se tornando sinônimo de RAP improvisado.
6
O RAP carioca já estava sendo desenvolvido em diferentes comunidades. Como bairro central, boêmio e
turístico, a Lapa se apresenta como um espaço de conexão. MV Bill é cria da Cidade de Deus, na Zona Oeste;
Marcelo D2, nascido em São Cristóvão, é cria de Madureira, na Zona Norte; Gabriel O Pensador, nascido em
Vila Isabel, cresceu na Zona Sul; e Black Alien, De Leve e Marechal são de Niterói, região metropolitana.
7
Sediada na extinta Sinuca Palácio dos Arcos, na Riachuelo 19.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
114 |
Após o encerramento deste evento
8
, foi dado o estímulo para a
organização de um novo encontro. Nesse contexto, surgiu
9
, em 2003, a
Batalha do Real, que deu vida à primeira batalha de rimas brasileira, servindo
como inspiração para as batalhas que seriam criadas nos anos subsequentes
– inclusive quanto ao compartilhamento de vídeo dos combates na internet.
Ainda hoje é possível acessar embates
10
históricos, postados e repostados no
YouTube, das primeiras edições da Batalha do Real.
A Batalha do Real também deu origem à Liga dos MCs,
institucionalizando e expandindo a prática do RAP improvisado para além
do Rio. A Liga dos MCs (2003-2012), conhecida hoje como Duelo de
MCs Nacional (2012-2018), é o evento mais disputado da modalidade no
Brasil. Uma competição que reúne, anualmente, os melhores MCs de cada
estado para decidir quem é o melhor improvisador do RAP brasileiro. A
Batalha do Tanque
11
, examinada aqui, assim como vários outros eventos
espalhados pelo país, funciona como etapa estadual classicatória para a
disputa do Nacional, que além do prestígio pela vitória, premia o MC
vencedor com cinco mil reais.
Algumas das revelações da nova geração do RAP brasileiro já
participaram e foram campeões do Duelo de MCs Nacional, que acontece
anualmente desde 2003. Venceram o torneio até então: Big Papo Reto
(2003), Max B.O. e Gil
12
(2004), Beleza (2005), Emicida (2006), Simpson
(2007), Maomé (2008), Coé (2009), TK (2010), Douglas Din (2012
e 2013)
13
, Laurício (2014), Orochi (2015), Sid (2016), César (2017) e
Miliano (2018).
É interessante notar que, pela importância do Duelo de MCs
Nacional, que coroa o vencedor com o título de melhor rimador do país,
muitos dos MCs da nova geração passaram a rimar justamente assistindo
as edições passadas do evento pela internet. Este é o caso de rimadores
8
Ao menos temporariamente, já que a festa voltaria a ser realizada mais tarde, na década de 2010.
9
Aori explica o surgimento do evento: https://goo.gl/g9mbvv. Em matéria para a Noise, o fotojornalista Matias
Maxx adiciona detalhes: https://goo.gl/U1Xc72. Acesso em: 03 jan. 2019.
10
Batalha entre Dro-p e Gimar22 pela Batalha do Real (2007): https://goo.gl/LBjH; batalha entre Kelson e Gil
pela Batalha do Real (2007): https://goo.gl/V7pn1C. Acesso em: 03 jan. 2019.
11
Roda cultural realizada às quartas-feiras à noite na Praça dos Ex-combatentes, no Patronato, em São Gonçalo
- RJ. O evento apresenta um conjunto de atividades, tendo o duelo de MCs como atração principal.
12
Em 2004, a Liga contou com duas edições: Gil venceu no Rio; Max B.O., em São Paulo.
13
Até 2018, Douglas Din, representante de Minas Gerais, era o único bicampeão do torneio.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 115
como MC Orochi, vencedor do Duelo de MCs Nacional de 2015. Em
entrevista
14
para o canal da Batalha do Tanque no YouTube, Orochi arma
que o primeiro combate que assistiu na vida foi a batalha entre Emicida e
Gil
15
pela Liga dos MCs de 2006, em que Emicida desbancou o campeão
de 2004 e conquistou o título.
O fato de os MCs da nova geração estabelecerem um primeiro
contato com os versos improvisados por meio das plataformas digitais é
uma indicação de como a difusão das batalhas acabou por estar associada
a esses sites, assim como sugere um dos porquês pelos quais muitos dos
eventos subsequentes utilizaram a internet como meio fundamental:
o sucesso alcançado na rede pelas primeiras batalhas, além de estimular
novos artistas a improvisarem, também parece ter servido como base para
a criação de novos eventos. Em pouco tempo, o Brasil passou a contar com
centenas
16
de batalhas de rimas.
A multiplicação e o reconhecimento público das batalhas de rimas
permitiram que o RAP passasse a circular em lugares que não estavam em
seus circuitos originários. A realização da Batalha do Conhecimento
17
, a
partir de 2014, no Museu de Arte do Rio
18
é uma demonstração desse
processo de valorização do RAP como manifestação artística, que sugere
novas congurações socioespaciais ao gênero.
Outra aparição que invoca essas articulações é a que acontece a
partir do Jornal do Almoço da TV RBS, liada da Rede Globo em Porto
Alegre. Em 2017, a emissora promoveu um evento baseado na Batalha
do Conhecimento durante diferentes edições do seu programa jornalístico
televisivo. A grande nal da batalha, veiculada ao vivo em 05 de agosto
de 2017 durante o telejornal, teve seu campeão escolhido por meio de
14
Entrevista de Orochi para o canal da Batalha do Tanque. Disponível em: https://goo.gl/6QstFM. Acesso em:
03 jan. 2019.
15
Batalha entre Emicida e Gil pela nal da Liga dos MCs de 2016. Disponível em: https://goo.gl/Rsrjy3. Acesso
em: 03 jan. 2019.
16
Nos anos 2010, existem mais de 50 rodas de rimas conduzidas no Rio de Janeiro (ALVES, 2013), bem como
outras dezenas em São Paulo (Batalha da Santa Cruz, Batalha da Roosevelt, Batalha da Estação, Batalha da
Matrix, Batalha da Aldeia), assim como em outros estados brasileiros.
17
Batalha de rimas criada por MC Marechal, a m de apresentar uma alternativa às batalhas de sangue (baseadas
na Batalha do Real). Na Batalha do Conhecimento, as ofensas e os palavrões devem ser evitados: o que vale é a
articulação dos saberes, das experiências culturais, das vivências por meio das rimas. A dinâmica do combate é
pautada por palavras sugeridas pelo público, escritas em um quadro negro.
18
O evento da Batalha do Conhecimento ganhou, inclusive, uma página no site ocial do MAR: https://goo.
gl/ETWbi9. Acesso em: 03 jan. 2019.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
116 |
uma enquete no portal G1
19
que contabilizou 94 mil votos. As batalhas de
rimas, veiculadas inicialmente por meio do YouTube a partir de iniciativas
independentes, acabaram, portanto, chegando à mídia mainstream.
Ao falar sobre as batalhas de rimas, dentre as diferentes
formulações testadas no decorrer dos últimos anos, dois modelos (e suas
variações) apresentam-se como os mais recorrentes: as batalhas de sangue
(baseadas na Batalha do Real) e as batalhas de conhecimento (baseadas
na Batalha do Conhecimento). Enquanto aquelas centram-se na ofensa
direta ao oponente, essas buscam aferir como o MC articula suas rimas
sem necessariamente atacar o adversário. As batalhas de sangue são
focadas no ataque direto e pessoal ao oponente, enquanto as batalhas de
conhecimento são focadas na articulação minimamente sosticada dos
saberes. Na primeira, ofender moralmente e falar palavrões são práticas
permitidas e desejáveis; na segunda, são proibidas
20
.
O desenvolvimento e o êxito das batalhas de conhecimento,
inclusive em sua articulação com o mainstream, são relevantes para
pensar o RAP como gênero musical, porque as características evocadas
por essa modalidade apresentam considerável consonância com as raízes
do RAP brasileiro, com o RAP consciente ou o RAP de Mensagem
21
.
Neste sentido, por exibir uma conotação moral e política e um cuidado
em fugir de colocações que poderiam ser consideradas fúteis, as batalhas
de conhecimento funcionariam como uma atualização do RAP clássico
brasileiro, fortalecendo suas balizas formativas.
Em contraposição, e oferecendo um insumo adicional para uma
melhor compreensão de alguns dos traços da nova geração do RAP brasileiro,
as batalhas de rimas mais populares, inclusive nas plataformas digitais, não
são as batalhas de conhecimento. Os eventos de alta popularidade são as
batalhas de sangue, em que o confronto quase sem ltro, pelo qual quase
19
Matéria do G1, com a grande nal do evento: TAIKIRO é o vencedor da Batalha do Conhecimento, do Jornal
do Almoço. G1, 5 ago. 2017. Disponível em: https://goo.gl/kfAPkr. Acesso em: 03 jan. 2019.
20
Esta proibição está relacionada a uma convenção instituída pela própria cena, o que não quer dizer que cada
evento não tenha autonomia para instaurar suas próprias regras.
21
RAP de mensagem é um termo utilizado por parte considerável da cena do RAP brasileiro, a partir dos anos
2000, período em que o gênero intensicou o tensionamento de suas fronteiras, para designar uma canção
de RAP com viés político ou de protesto. Também pode signicar uma música que apresente mensagem
introspectiva ou losóca, que, segundo a cena, não reverbere pensamentos fúteis. Ainda que seja utilizado com
frequência, não é um termo consolidado.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 117
todos os tipos de ofensas são supostamente aceitáveis, é o que comanda a
disputa.
o Modo de Batalha
A análise apresentada neste capítulo se vale do contexto cultural
e situacional que atravessa e determina as batalhas de rimas. Estes eventos
reúnem elementos e características especícas, que constituem suas bases.
Assim, observar uma batalha de rimas pode demandar um entendimento
prévio do seu funcionamento, já que o conteúdo apresentado ali está
atravessado por certas formatações.
Embora este texto não discuta as especicidades estruturais de uma
batalha de rimas – incursão que pode ser encontrada mais detalhadamente
em minha dissertação
22
– é possível apontar 1) o arranjo circular das
batalhas, com desaantes cercados pelo público como se estivessem em um
octógono de MMA
23
; 2) a formatação do combate a partir de um confronto,
no geral, homem a homem e dividido em até três rounds; 3) a infraestrutura
pouco sosticada dos eventos, com espaços apertados e às vezes até mesmo
sem microfone; 4) a premiação mais centrada na notoriedade alcançada pela
vitória que pelo prêmio material recebido; 5) a importância do público na
denição do vencedor e das dinâmicas do combate; 6) e a essencialidade
das plataformas digitais na organização e promoção dos eventos. Esses são,
resumidamente, componentes fundamentais às batalhas de rimas, que
inuenciam no desenvolvimento dos combates, servindo como base para
o modo de batalha.
O modo de batalha, em uma batalha de rimas, é o espírito ou o
estado atualizado por um MC para agir como age durante um confronto
de RAP improvisado. O modo de batalha é sempre transposto por esses
componentes fundamentais às batalhas de rimas, já que são eles que
conformam, em primeiro lugar, a performance do rimador.
A concepção de um modo de batalha está relacionada à noção de
performance de Paul Zumthor (2014), que, ao pensar sobre o conjunto de
leis que impactam um desempenho artístico, arma:
22
FLOWS E VIEWS: batalhas de rimas, batalhas de YouTube, cyphers e o RAP brasileiro na cultura digital
(VIEIRA DA SILVA, 2019).
23
Mixed Martial Arts. Do inglês, Artes Marciais Mistas.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
118 |
As regras da performance – com o efeito, regendo simultaneamente
o tempo, o lugar, a nalidade da transmissão, a ação do locutor,
e, em ampla medida, a resposta do público – importam para a
comunicação tanto ou ainda mais do que as regras textuais postas na
obra na sequência das frases: destas elas engendram o contexto real
e determinam nalmente o alcance” (ZUMTHOR, 2014, p. 34).
Em outras palavras, não são apenas os conteúdos dos versos que
falam nas batalhas de rimas. Os períodos históricos, os locais, os espaços,
as regras, as cerimônias particulares aos eventos, as entonações, os ows,
as expressões, os movimentos corporais dos rimadores, os gritos, as vaias,
os silêncios da audiência, os locais em que a gravação daquele material
será ou poderá ser postada, esses e outros fatores acabam por inuenciar
nos combates.
Se para Zumthor (2014), performance subentende competência,
e competência na performance exige sempre um saber-ser, uma
compreensão do que pode e deve ser feito a partir de um contexto especíco,
ser competente em uma batalha de rimas é se valer de suas formatações
(sejam elas estruturais ou comportamentais) para estabelecer uma
performance satisfatória. Assim, se as batalhas de rimas introduzem uma
conguração que permite, e frequentemente exige, o comportamento
rude como forma desejável de ação, ter competência naquele ambiente
é justamente ser rude (e claro, apresentar boas rimas). Esta é a fundação
elementar do modo de batalha.
Exatamente por serem transpostas por múltiplos estímulos,
que inuenciam em como os combates são travados, esta análise não
trata apenas do conteúdo textual, mas dos signos extralinguísticos que
também produzem sentido e realçam ou até mesmo modicam o que o
texto das rimas parece dizer. De todo modo, a incursão deste texto, ainda
que apresente uma descrição integral de um combate de rimas, centra-se
nos atravessamentos produzidos pelas plataformas digitais às dinâmicas
deste embate.
O estudo apresenta a descrição integral de 01 (um) vídeo da
Batalha do Tanque, realizada sicamente em São Gonçalo, no Rio de
Janeiro. A escolha se dá em razão de sua alta popularidade no YouTube (e
na cena do RAP brasileiro), como um dos vídeos de batalhas de rimas não
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 119
ctícias
24
mais visualizados da plataforma no período observado. O episódio
selecionado é um exemplar produtivo para a discussão aqui proposta posto
que sua popularidade não parece ser articial
25
.
O exame introduzido a seguir se vale do seguinte procedimento
metodológico: 1) visualização do vídeo; 2) descrição dos eventos do vídeo;
e 3) discussão dos eventos do vídeo. A opção pela descrição integral dos
eventos do vídeo se dá a partir de uma tentativa de registrar e compreender,
dentro do possível, todas as partes da batalha desenhadas pela obra
audiovisual postada no YouTube, a m de espelhar o mesmo agrupamento
de estímulos que o público que entra em contato com esses eventos,
geralmente apenas por meio de sua versão digital, absorve.
tenSõeS de uM protagonISMo coMpartIlhado
O vídeo
26
examinado neste capítulo é proveniente da 189ª Batalha
do Tanque, entre Jhony e Orochi, postado em 26 de fevereiro de 2016, no
canal da Batalha do Tanque no YouTube. A obra audiovisual é a segunda
mais visualizada do canal, com mais de 4 milhões e 330 mil visualizações
em 20 de dezembro de 2018.
O vídeo é iniciado com uma vinheta, que apresenta imagens
sequenciais: começa com um ash de uma entrevista do criador do canal
27
em que o vídeo foi publicado e segue destacando diferentes edições do
evento. Como música de fundo da vinheta, ouve-se o áudio do cypher
eFakeCypher
28
, lançado pela banca A Firma. Neste ponto, é interessante
24
As batalhas de rimas ctícias (as batalhas de YouTube) também são sucesso no YouTube. Nelas, geralmente
um youtuber produz uma batalha simulada, sem público, gravada em estúdio, primariamente como produto
audiovisual para o YouTube, muitas vezes entre personagens ctícios. Um exemplo é a batalha entre a personagem
Peppa Pig e o youtuber Mussoumano (VIEIRA DA SILVA, 2019).
25
O vídeo apresenta elevado número de interações (comentários, likes e respostas aos comentários), incluindo
de atores reconhecidos na cena. O canal do evento possui elevado número de inscritos (mais de 800 mil até o
período da análise), inscrições essas reconhecidas pelo YouTube por meio do YouTube Creator Awards. E os MCs
participantes têm adquirido relevância na cena do RAP brasileiro, reunindo fãs, fazendo shows e desenvolvendo
parcerias com outros artistas.
26
Batalha entre Jhony e Orochi pela 189ª edição da Batalha do Tanque. Disponível em: https://goo.gl/n2Wvbc.
Acesso em: 20 dez. 2018.
27
Felipe Gaspary. Considerando que Gaspary não é um MC ou DJ, mas um prossional técnico do evento, é
interessante notar como sua apresentação no vídeo reforça sua importância e posição de poder. Por possibilitar
que o acontecimento físico do combate de rimas chegue ao universo digital, dando lastro ao evento e
potencializando seu alcance, Gaspary também acabou tornando-se um dos personagens do Tanque.
28
eFakeCypher – A Firma no YouTube. Disponível em: https://goo.gl/cX4JaC. Acesso em: 20 dez. 2018.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
120 |
observar a relação entre as batalhas de rimas e os cyphers
29
. Após o m da
vinheta, o espectador é apresentado, pela primeira vez, aos personagens
principais do vídeo: Jhony e Orochi, crias da Batalha do Tanque.
Já nos primeiros segundos, os MCs encaram a câmera, cada qual
sorrindo ao seu modo e deixando transparecer certa tensão pelo embate.
Enquanto ao fundo é possível ouvir um instrumental de RAP, o apresentador
do evento diz ao microfone: “Gaspary, tá lmando? Vem, geral! Vem,
geral! Aí! Roda Cultural, Batalha do Tanque, o que vocês querem ver?”. O
público responde em uníssono: “sangue!”. O apresentador, então, repete o
lema da batalha, sendo novamente completado pela audiência.
Com a introdução ao combate, Orochi pode apresentar sua
primeira sequência de rimas. O MC dispara: “Aí, Jhony: eu vou perguntar
seu truque/ desaando seus crias no Facebook/ Que papo é esse? Deixa eu
te falar/ Tá igual mulher de bandido, cuzão? Pedindo pra apanhar/”. A
plateia presente grita e Orochi continua:
Que bagulho louco, vem comigo sem neurose
Tu sabe que seu terror se chama MC Orochi
Tá ligado, mano, tua mente ainda tá na jaula
Chegou agora, quer reinar, então agora tu vai ter aula
Tu vai sentar, tu vai aprender certinho
Oi, tá ligado que tu tá rimando no sapatinho
Tu bota bronca de rei, tá ligado, é o seguinte
Mas você se acha foda, menor, tu é desumilde
(Orochi, 189ª Batalha do Tanque, Jhony x Orochi, primeiro
round, 2016).
Com a armação do adversário sobre sua suposta falta de
humildade, MC Jhony se expressa, durante os versos, discordando da
armação, ao acenar negativamente com a cabeça e dizendo: “eu?”. Orochi
segue a improvisação dizendo: “Na moral, vamo além/ Acha que é brabo,
29
Modalidade contemporânea, gravada e não improvisada de RAP, em que um grupo de MCs se apresenta
sequencialmente como se estivesse em uma roda de rimas. Esta modalidade parece ter sido criada, no Brasil,
como um produto audiovisual para o YouTube (VIEIRA DA SILVA, 2019).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 121
mas pra mim tu não é ninguém/ Te vejo como porra nenhuma, e sem tirar
teu mérito/ Se tu é rei do Tanque, Orochi é general do exército”. A plateia
se manifesta positivamente em relação às rimas de Orochi, esperando,
agora, a resposta de Jhony. O apresentador convoca a resposta do MC e
o público, em demonstração de apoio às próximas rimas de Jhony, grita
melodiosamente: “vai morrer, vai morrer!”.
Jhony, antes de começar, diz: “Aí, com todo respeito, volta pro
exército, mano! Volta pro exército que o Tanque é meu”. E então o MC dá
início a sua resposta:
Você diz que não me conhece como porra nenhuma
Veja como eu pego no bang tu se acostuma
Porque, se liga, mano, no corte que nem navalha
Bota seu ego pra batalhar, que assim você ganha a batalha
Porque você que é o mais desumilde
Você quer falar de humildade, mano? Eu sou simples!
Na moral, vamos fazer no Zap
Levanta mão a pessoa que eu não respondi no WhatsApp
(Jhony, 189ª Batalha do Tanque, Jhony x Orochi, primeiro
round, 2016).
O público se mantém em silêncio, sem grandes manifestações,
em aparente anuência ao argumento colocado pela pergunta retórica
de Jhony, até que um dos competidores da Batalha do Tanque que
não participava daquele combate, MC Choice, levanta a mão, dando a
entender que Jhony não o respondia no WhatsApp e desestabilizando a
rima. O fato de Choice não ser um espectador qualquer, mas um rimador
conhecido naquela roda, concede um tom de humor à rima articulada por
Jhony, fazendo parte do público rir da situação. Jhony continua seus versos
olhando para Orochi e dizendo: “Agora, quem tem humildade? Isso que é
ser humilde de verdade!”. Orochi ri da frase apresentada pelo adversário,
expressando surpresa e discordância em relação ao argumento, e diz em
tom de zombaria: “porra!”.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
122 |
Jhony continua:
Você virou as costas e quer falar que você é quem?
Você, babaca, não fala com ninguém
Ah, trocou de número, não fala comigo
Você, MC Orochi, pra mim não é ninguém, você tá fodido
Porque, se liga, eu te mando pra lona
é TremO?
30
Eu sou TremON, porque trem desligado não
funciona
(Jhony, 189ª Batalha do Tanque, Jhony x Orochi, primeiro
round, 2016).
O público grita com entusiasmo com o ataque de Jhony à Orochi
e seus aliados, enquanto Jhony continua rimando: “É isso que você tem
que entender/ Você é babacão, eu vim pra te matar, no proceder”. O tempo
do primeiro round se esgota e Jhony, para começar o segundo round na
sequência, solicita um novo instrumental dizendo: “vira a base pra car
legal, com todo o respeito”.
Antes de seu adversário iniciar o segundo round, Orochi fala
sobre o verso apresentando por Jhony com o próprio MC, armando em
tom de elogio e deboche: “Essa foi sinistra! Essa saiu sangue, parceiro!”. A
plateia evoca novamente o grito “vai morrer, vai morrer” e Jhony dá início
ao segundo round:
Menor, aí, você é do exército, vou te falar
Veja como o Jhony chega aqui pra te matar
Aí, calafrio, tu é do exército
Hoje, meu tanque vai afundar o seu navio
O bagulho é muito louco, pega a visão
Você tá achando que você é o bom
Mas na moral, mano, deixa eu te explicar
Pra mim você não é porra nenhuma e chega aqui pra criticar
30
TremOFF é o nome da banca pelo qual MC Orochi estava associado até o momento da batalha.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 123
Porque o bagulho é louco, deixa eu te falar
Você tá crente, mano, que você vai me ganhar
Começou a fazer música, se submeteu
Abandou o Tanque, abandou o lugar que você cresceu
Pra mim, você não é porra nenhuma
Veja como eu pego no bang, neguinho, se acostuma
Porque, se liga, eu mando o free
Eu falei que te aposento foi pra sua máscara cair
(Jhony, 189ª Batalha do Tanque, Jhony x Orochi, segundo round,
2016).
O tempo se encerra para Jhony e o apresentador do evento
assume o microfone: “direito de resposta para MC Orochi, o que vocês
querem ver!?”. O público responde à chamada com o tradicional “sangue!”
e Orochi inicia seus versos do segundo round: “Quantas pessoas que você
respondeu? Pra mim você é um boçal/ Minha humildade é em pessoa, tua
humildade é virtual?/”. O público solta o clássico “iou!”, enquanto Jhony
diminui o verso de Orochi dizendo: “ah, valeu, valeu, já é! Nem em pessoa
você é”. E Orochi retruca, rimando:
Não dá nem pra te entender
Por isso, eu tenho que mandar tu se foder
Então, menor, eu chego tranquilão
Você quer levar pro coração, dá papo de visão
Mas pega a visão, meu mano, eu vou te gaxtar
Tu falou do Modéstia Parte
31
? E o dente no céu da sua boca igual
remo de caiaque?
Tá ligado, menor, tô tranquilão
Você só falou merda, quer resposta, dicção
Não dá nem pra te entender: falou de máscara, sagaz?
Máscara é o seu dente: ‘ele tá demais!’
32
31
Grupo musical de MC Orochi.
32
Referência ao lema do personagem principal do lme O Máscara, interpretado por Jim Carey. Neste caso, o
ataque brinca com outro alvo recorrente da Batalha do Tanque: uma imperfeição ortodôntica de Jhony.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
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(Orochi, 189ª Batalha do Tanque, Jhony x Orochi, primeiro
round, 2016).
A plateia reage, gritando com intensidade, e Orochi continua:
Mais uma vez, mané, tô tranquilão
Vamo aqui te dar aula de improvisação
Foda-se seu YouTube, seu Facebook, seu WhatsApp, TremOFF
gangue manda nude
O bagulho tá doido, mano, tu tá ligado, não nja
Aquela ali foi mais decorada que meu pau de toca ninja
Na moral, Jhony, sujeito homem
Você fala de ego na porra do microfone
Falou que meu ego é alto, mas pra mim tu é um veado
Teu ego tá mais cheio que a barriga de Fajardo
33
(Orochi, 189ª Batalha do Tanque, Jhony x Orochi, segundo
round, 2016).
Neste momento, dois membros do público, que aparecem
durante todo o vídeo interagindo com as rimas e esboçando reações,
assumem por alguns segundos o protagonismo da batalha, apontando para
a câmera e armando em tom de brincadeira: “Fajardo, eu não deixava
não, hein! Eu não deixava!”. Essa dinamicidade do evento, em que o
público é ativo e também faz parte do espetáculo, utilizando inclusive a
câmera para produzir sentido e também aparecer, demonstra parte das (re)
congurações das batalhas estabelecidas por meio da sua relação com o
YouTube, em que artistas e fãs se embaralham, ganhando destaque juntos,
como discutido a seguir.
Na sequência à interação dos dois personagens oriundos da
plateia, o apresentador do evento retoma o comando do microfone e arma:
última batalha da noite, barulho para a batalha!”, sendo acompanhado pelo
público que atende sua solicitação. Logo que os gritos cam mais amenos,
o apresentador reintroduz os MCs participantes do duelo, repetindo seus
33
MC participante da Batalha do Tanque, frequentemente alvo de rimas que falam sobre seu peso.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 125
nomes e invocando que o público grite para que o melhor improvisador
daquele embate seja escolhido. Como os gritos parecem apresentar uma
intensidade similar, impossibilitando vericar a preferência entre um MC
ou outro, o apresentador, com a anuência da plateia, sugere a realização de
um terceiro round.
Orochi começa o terceiro round. O MC apoia sua mão no ombro
do adversário e dispara: “Eu tô fodido: tu é brabo, hein, rapaz! / O mal
desses menô de hoje em dia é achar que tão sendo foda demais/ O bagulho
tá muito doido, meu mano, tu tá fodido/ Faz metade do que eu z, depois
tu mete bronca comigo/”. O público grita e Jhony responde: “Aí, deixa eu
te falar como é que é/ Mano, agora, você vai voltar de ré/ Porque se liga,
mano, agora é minha vez/ Eu sou sujeito homem, eu vou fazer o dobro
que um dia tu fez”.Orochi responde: “Aí, parceiro MC/ Quando você zer,
eu vou tá lá pra te aplaudir/ Vou te aplaudir de pé e tomar um Red Bull/
Mas, hoje em dia, eu te falo: tu é pau no cu”. A plateia reage gritando e
Jhony responde: “Aí, na moral, deixa eu te falar/ Você vai me aplaudir,
mano, deixa eu te explicar/ Falou que Jhony é rei do Tanque
34
, esse é meu
proceder/ Então aposto, sou rei do Tanque, ganhei em cima de você”.
O público grita novamente e Orochi emenda: “Tá ligado, irmão!/
Na moral, agora, papo de visão/ Eu vou perguntar, porque aqui tem vários
parceiros/ Rei do Tanque é quem ganha uma batalha só ou quem se destaca
o ano inteiro?”. Os gritos da plateia após a rima são mais intensos que os
anteriores, sendo realçados pela reação de um dos integrantes do público,
que bota a mão na cabeça, arregala os olhos e abre a boca, enfatizando a
potência dos versos.
A expressão exagerada do espectador, apesar de parecer, ao
primeiro olhar, uma manifestação corriqueira, é na verdade uma marca
reconhecida em diferentes vídeos dos eventos. Um comportamento que
passou a ser identicado pela sua teatralidade como um dos símbolos da
Batalha do Tanque. Desde então, aquele que era mais uma testemunha do
combate passou a também ser um dos protagonistas: o Negão da Reação.
Um reconhecimento improvável sem o registro audiovisual das batalhas.
34
Rei do Tanque é um evento anual da Batalha do Tanque que busca aferir quem foi o melhor MC do ano. O
evento é uma edição especial da batalha que estabelece uma disputa entre os artistas que mais vezes venceram
durante o período.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
126 |
Figura 1 - 189ª Batalha do Tanque, Negão da Reação, 2015.
Fonte: YouTube (https://goo.gl/5TmspN).
Dando continuidade ao embate, em meio aos gritos do público,
Jhony rebate: “Aí, deixa eu te falar/ Aí, na moral, deixa o Jhony te falar/
Se destacou o ano inteiro? Deixa eu te falar/ Chegou a primeira edição
do ano, o Jhony foi pra te aposentar”. Orochi rebate: “Tá ligado, meu
parceiro: tranquilão, mano/ Eu não levo isso a frente não, sem neurose/
Porque o bagulho é doido, o bagulho é tudo improvisado/ Cê sabe que
mesmo perdendo, não vai passar de aprendizado”.
Jhony ataca: “Não vai passar de aprendizado, escuta o que eu
tô te falando/ Então começa a aprender que o Jhony tá te ensinando”. O
próprio Orochi reage positivamente à rima do Jhony, levantando a mão
e fazendo a mão chifrada
35
como aprovação ao impacto do verso. Jhony
completa: “Bagulho é muito sério, não tem pra ninguém/ Tu pode ter o
que quer, mas humildade você não tem/”. Orochi responde: “Tá ligado,
mano, tu tá de marola/ Quando eu quiser um professor de merda, eu vou
pra dentro da tua escola/ O bagulho é doido, menor, se acostuma/ Prova
pros menó, pra mim tu não é porra nenhuma”. Jhony encerra a batalha:
Aí, na moral, cê deve tá de brincadeira/ Porque, cê sabe, que eu rimo em
35
Sinal popularizado a partir do Rock, bastante associado ao Metal, em que se estende o indicador e o mínimo
enquanto os dedos médio e anelar são segurados para baixo com o polegar. Via de regra, tem o signicado de
aprovação e comunhão nesta subcultura. Tornou-se comum às batalhas para denotar rimas impactantes. Em
uma dinâmica de cultura digital, pela qual as cenas e referências musicais se misturam, é interessante notar como
essa interlocução entre diferentes vertentes musicais acontece.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 127
plena quarta-feira/ Não adianta você gastar, você se fodeu/ Seu nariz foi a
árvore que Luã Gordo
36
se escondeu”.
Com o último verso, Jhony encerra o terceiro round, entrega o
microfone exatamente para um dos dois membros da plateia que estavam
expressando reações durante toda a gravação da batalha, muitas delas em
direção à câmera. Os dois personagens da plateia destacam a rima nal do
MC, dizendo no microfone “gaxtou, gaxtou
37
!” e o apresentador assume
novamente o comando do embate, solicitando ao público: “barulho pra
quem gostou do terceiro round!”.
A plateia grita empolgada, enquanto o apresentador reintroduz
o nome de cada MC e leva a decisão para o público: “barulho para quem
gostou da rima do MC Orochi!”. E em sequência: “barulho para quem
gostou da rima do MC Jhony!”. Os MCs se encaram e trocam algumas
palavras, enquanto o apresentador repete seus nomes algumas vezes e
verica para quem a plateia grita mais alto. Após a vericação por meio dos
gritos, é realizada ainda uma contagem de votos pelo qual o apresentador
fala o nome de cada rimador e o público levanta a mão para escolher seu
favorito. O próprio MC Orochi vota em MC Jhony, mas a escolha do
público é outra: vence Orochi.
dIScutIndo a Batalha
Após a descrição dos eventos presentes no vídeo da batalha, é
possível aprofundar alguns pontos que saltam aos olhos e parecem evocar
discussões produtivas. Os parágrafos seguintes buscam dar conta dessas
questões. Ainda que o episódio retratado possa evocar debates sobre a
performatização das masculinidades, sobre as agressões verbais ou sobre o
lugar do improviso no RAP brasileiro contemporâneo, este texto centra-se
nos atravessamentos das plataformas digitais nas batalhas de rimas a partir
de sua capacidade de moldar, inclusive, as performances desses eventos.
36
Um dos fundadores da Batalha do Tanque. A referência se conecta ao um episódio em que, após certa
desavença, Luã Gordo passou a não frequentar mais o evento.
37
Variação da gíria gaxtação. Neste caso, sinônimo de mandou bem, acertou.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
128 |
protagonISMo perIférIco e eSpetáculo dIgItal
Se somente eram gravadas algumas das primeiras batalhas de
rimas brasileiras, emergentes no começo dos anos 2000, hoje, até mesmo
pequenos eventos
38
da modalidade contam com registros audiovisuais.
Com a expansão da cultura digital, os artefatos técnicos tornaram-se
artigos fundamentais à realização desses eventos, potencializando seu
acontecimento público e constituindo parte do seu espetáculo. Não à toa
os aparelhos de amplicação, gravação e reprodução audiovisual (caixas
de som, câmeras, celulares, microfones) e as próprias plataformas digitais
passaram a integrar as rimas dos MCs, sendo, inclusive, mencionadas nos
combates, como se observa em vários episódios. No duelo entre Jhony e
Orochi, por exemplo, é possível conferir menções ao YouTube, Facebook
e WhatsApp. A relevância dos sites de redes sociais na vida desses jovens
periféricos é visível tanto em suas rimas quanto no modo pelo qual
promovem os eventos que sediam seus versos.
No caso das batalhas de rimas, que são eventos físicos, com
local, dia e horário especícos, existem variáveis fundamentais para o
acontecimento do espetáculo, como a presença corpórea dos MCs, as
boas condições climáticas, a interação do público, além de outros fatores
materiais. É interessante notar como, nesse contexto, a existência dos
objetos técnicos também passa a ser um vetor que inui na realização e
nas dinâmicas dos combates. Isso acontece especialmente por um motivo:
as batalhas de rimas de maior prestígio (como a Batalha do Tanque) são
eventos pensados para as plataformas digitais, principalmente o YouTube,
desde seu processo de produção.
Não que tenha sido sempre assim. Mas, uma vez que a cultura
digital passa a atravessar as múltiplas esferas da vida contemporânea, media
a cena musical e torna-se fundamental para a organização e promoção desses
eventos, os organizadores das batalhas veem aí uma oportunidade para
ampliar seu alcance. Com a consolidação das plataformas digitais como
espaços de compartilhamento das batalhas, passam a ser elas, também,
espaços que abrigam sua circulação e consumo, funcionando ainda como
espaços de sociabilidade. O fato de os MCs mencionarem frequentemente
esses sites parece ser uma demonstração pontual de como as plataformas
38
A Roda Cultural de Maria de Paula, em Niterói/RJ, é um exemplo: possui canal no YouTube (https://goo.gl/
uuvCFY), postando vídeos com alguma regularidade.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 129
são presentes em suas vidas, possivelmente, sobretudo, por suas vinculações
ao contexto das batalhas.
O YouTube participa desse encadeamento. Como mídia espalhável
(JENKINS, 2012), introduz uma facilidade de compartilhamento que
possibilita que os duelos de MCs – antes restritos a um pequeno grupo de
jovens adolescentes e adultos, do sexo masculino, em um reduto periférico
da região metropolitana do Rio de Janeiro, como é o caso da Batalha
do Tanque – possam alcançar audiências e espaços inimagináveis. Esse
deslocamento, que não altera somente a lógica de uma ou outra batalha,
institui uma mudança no processo de concepção e produção dos eventos
– incluindo acordos e regras, dinâmicas e possibilidades performáticas,
formas de documentação dos combates, dentre outras particularidades.
O espetáculo, impactado pelas exigências do digital, ganha novas
formas (microfonação, produção audiovisual, pers em sites de redes
sociais, vinhetas, marcas), novos problemas (problematização das rimas,
sonorização ineciente que compromete a compreensão dos combates,
exigência de publicações regulares nos pers) e novas potencialidades
(alcance de novos públicos, alta popularidade, possibilidade de monetização
dos vídeos). Os efeitos desse conjunto de alterações são notáveis inclusive nas
rimas dos MCs, que se valem vez ou outra desses elementos (popularidade;
caixa de som; iluminação; e o próprio YouTube, como aparecem nas rimas
de Orochi) durante o combate, como se fossem elementos naturais que
sempre tivessem feito parte daquele ambiente.
luz, câMera, MedIação
Nos segundos que antecedem o combate, os MCs encaram
a câmera como se fossem protagonistas de uma luta. O olhar opositivo
denota não somente o espírito sugerido para aquela batalha, que reforça
a postura de enfrentamento particular ao RAP brasileiro, mas também
evidencia o papel desempenhado pela câmera e pelos sites de redes sociais
no seio da batalha. Ao estabelecerem contato, antes de tudo, com o
objeto responsável pela captação de sons e imagens, os artistas asseguram
a importância daquele artefato para o combate. Demonstram ciência da
lmagem, reforçando o lugar da gravação para a promoção do espetáculo.
E esse quadro se conrma quando o mediador do evento, para autorizar
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
130 |
seu início, confere com o responsável pelo vídeo: “Gaspary, tá lmando?”.
A pergunta que valida a operacionalidade da câmera indica que a batalha só
poderia começar com o pleno funcionamento do equipamento. Demonstra
que aquele acontecimento não é somente um evento físico: está integrado,
sobretudo, à sua reprodução posterior.
Outra face notável do combate são as menções às plataformas
digitais: os MCs citam o Facebook, o YouTube e o WhatsApp durante
seus versos, colocando os sites como ponto focal da controvérsia. As
plataformas aparecem como representantes da popularidade conseguida
pelos artistas, que discutem, por meio das rimas, sobre ego e humildade.
Esta materialização dos sites, apresentados aqui como elementos basilares
do combate, estabelece diálogo com a discussão articulada por Simone
Pereira de Sá (2013), ao destacar aspectos da Teoria das Materialidades
(GUMBRECHT, 2010) e da Teoria Ator-Rede (LATOUR, 2012) como
parâmetros relevantes para os estudos de Comunicação e Música. A autora
aponta que o espaço das plataformas digitais é um elemento central para a
edicação da cena musical, vez que, além de serem suportes que participam
da produção de sentido e interferem na mensagem, também atuam como
coatores nas redes estabelecidas com humanos. Assim, observar a menção
evocada pelos rimadores às plataformas durante seus improvisos é conferir
que os objetos técnicos, neste caso, produzem sentido e ressignicam o
evento até mesmo em seu produto fundamental: os versos improvisados.
oS efeItoS da alta vISIBIlIdade
A polêmica que guia a trama entre Jhony e Orochi no combate
examinado se congura a partir de um elo em comum: o êxito de ambos
os MCs na Batalha do Tanque. Não à toa, além da mútua tentativa de
desqualicação, seus versos giram em torno de uma divergência sobre
quem seria, dentre os dois, o soberano do evento. A controvérsia não é
apenas alegórica: Jhony e Orochi, naquele momento, eram dois dos
MCs que mais haviam vencido diferentes edições da Batalha do Tanque,
estabelecendo certa hegemonia no evento.
Mas as rimas do MCs esboçadas ali também parecem expor
outras tensões. Uma palavra frequente (repetida por quatro vezes)
durante os versos improvisados é o vocábulo ego, que naquele contexto
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 131
parece estar relacionado a uma ideia de apreço excessivo sobre si mesmo,
uma autoestima exagerada. O que se agura como indagação razoável a
partir dessa observação é: anal, por que os personagens daquela batalha
desenvolvem seus versos questionando a autoavaliação e a humildade um
do outro?
Ainda que vetores pessoais possam exercer inuência sobre
esse tensionamento, o que parece ser fator determinante para o debate
é o próprio reconhecimento público que aqueles artistas conquistaram a
partir das batalhas. O que surge ali é a discussão de qual deles, diante do
sucesso alcançado por meio do evento, seria o maior e o mais humilde. É
um conjunto de pequenas disputas próprias ao confronto improvisado,
conduzidas pelo crescimento do evento a partir da sua vinculação ao digital.
A alta visibilidade possibilitada pela conuência dos sites de rede social
como elementos da rede sociotécnica do RAP brasileiro contemporâneo
agencia questões comportamentais e discursivas que afetam e ganham vida
por meio das performances.
o eSpectador protagonISta
Nas batalhas de rimas, a audiência também ajuda a conduzir a
trajetória do evento. A dinâmica exigida pelas batalhas é a da participação
de quem as assiste: os rituais e os processos inscritos nos combates
estimulam a ações orais e gestuais, assim como o vencedor é escolhido pelo
público. Em outras palavras, se a performance, em seu uso mais imediato
e geral, está relacionada a um acontecimento oral e gestual (ZUMTHOR,
2014), nas batalhas de rimas, o público também performatiza. Portanto,
existe, por parte da audiência, um reconhecimento do seu papel naquele
espaço, que articula a teatralidade de um espetáculo por meio de elementos
do cotidiano. E é neste entremeio que vê-se emergir certas performances
a partir do próprio público, que também despertam atenção e ganham
destaque por excederem o que seria esperado como reação habitual
e, ao mesmo tempo, por também ocuparem um lugar que deveria ser
mesmo ocupado pelo público: o lugar de encantamento e deleite com as
performances dos MCs.
Um exemplo que se encaixa bem nesse panorama (e vale ser
reiterado) é o que surge a partir do “Negão da Reação”, personagem
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
132 |
que se tornou um dos símbolos da Batalha do Tanque, e que aparece em
destaque na batalha analisada, reagindo às rimas do combate. O fato de
expressar reações intensas aos versos dos rimadores durante as batalhas,
esboçando feições engraçadas e dialogando diretamente com a câmera,
acabou por elevar o personagem ao reconhecimento público. Assim
como em dezenas de batalhas em que é mencionado pelo sistema de
comentários do YouTube como uma gura notável e benquista, o “Negão
da Reação” também passou a adquirir outras formas de destaque no canal
da Batalha do Tanque, ganhando espaço em dois vídeos exclusivos: um
em que concede entrevista
39
sobre como conheceu o evento e começou
a fazer as caretas pelo qual é reconhecido, e outro com algumas das suas
reações
40
. O protagonismo alcançado pelo personagem demonstra o jogo
de reordenamentos evocados pela cultura digital, que sacode os arranjos
dispostos. Sem a gravação do evento, sem a edição e publicação dos vídeos
no YouTube, e sem a possibilidade de interação do público com aquele
conteúdo, é provável que o papel de destaque deste espectador nunca
fosse alcançado. É interessante notar também como a gura do “Negão
da Reação” surge exatamente em um momento de proliferação de reaction
videos, em que youtubers gravam suas reações emocionais enquanto assistem,
geralmente pela primeira vez, novas séries, trailers e videoclipes – prática
essa também comum às batalhas de rimas.
conSIderaçõeS fInaIS
Com a mediação da cultura digital na cena musical do RAP
brasileiro, os sites de redes sociais passam a ser altamente relevantes para a
organização e promoção dos eventos e acabam por moldar as performances
dos MCs. Este texto olha para esse cenário a partir da análise de um combate
de um dos maiores eventos do gênero no Brasil, a Batalha do Tanque, pois,
nesta incursão, é possível observar que as plataformas digitais produzem
tanto sentido nas batalhas de rimas que passam a fazer parte dos próprios
versos, mencionadas a partir de algumas controvérsias sobre a popularidade
39
Entrevista com o Negão da Reação no canal Batalha do Tanque. Disponível em: https://goo.gl/CU9Dkk.
Acesso em: 03 jan. 2019.
40
Vídeo com expressões do Negão da Reação durante a 183ª edição da Batalha Tanque. Disponível em: https://
goo.gl/83nec5. Acesso em: 03 jan. 2019.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 133
dos rimadores, interações online e número de visualizações dos vídeos, que
acabam conformando as rimas.
O estudo demonstra ainda como o YouTube passa a ser utilizado,
já nos primeiros anos da Batalha do Real, evento inaugural do RAP
improvisado no Brasil, de forma que a associação das batalhas de rimas
ao site de rede social faz da plataforma um novo espaço de circulação e
consumo do gênero musical. É assim que o desenvolvimento da cena
virtual do RAP por meio do site evoca novas cenas locais. O protagonismo
nacional de eventos como a Batalha do Tanque (de São Gonçalo/RJ),
baseada sicamente em uma região metropolitana distante das zonas
centrais, delimita os contornos desse cenário e aponta para o destaque
da cidade no novo circuito do RAP Nacional. A cultura digital produz
deslocamentos socioespaciais no RAP brasileiro.
Com os rearranjos produzidos por esse novo cenário, o
protagonismo não é mais exclusivo dos MCs, e outros atores passam a
adquirir status de personagem principal, alcançando reconhecimento
público, como os apresentadores das batalhas, produtores culturais,
videomakers, youtubers e até mesmo membros da audiência. É assim que a
alta visibilidade atinge os atores associados às batalhas em todos os níveis,
projetando jovens oriundos da periferia a posições que não costumavam
ocupar. Este cenário permite a elevação de novos personagens à cena e
conduz o RAP a novos espaços, estremecendo posições anteriormente
estabelecidas.
Esses são alguns dos aspectos que se sobressaem nesta investigação,
jogando luz sobre uma rede heterogênea que envolve o RAP brasileiro a
partir da cultura digital. Longe de esgotar o tema, o panorama apresentado
aqui serve como um dos primeiros passos para os múltiplos entrelaçamentos
da manifestação com as plataformas digitais.
referêncIaS
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ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
Seção III
MúSIca popular,
juventude e cIdade
| 137
P  :  ,
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  R  J
Jhessica Reia
Introdução
Nos últimos anos, olhares diversos sobre a arte de rua vêm se
consolidando de maneira transversal em várias disciplinas do conhecimento.
1
Essas diferentes abordagens reetem a relevância do tema para se pensar as
cidades contemporâneas. Mas é preciso reconhecer que a arte de rua tem
suas raízes em séculos passados, como muitos artistas gostam de salientar,
remetendo-se aos menestréis medievais, às feiras de rua e seus espetáculos
variados, aos músicos de rua e tocadores de realejo. Pode-se identicar
Ver, por exemplo: BYWATER, 2007; CAMPBELL, 1981; GENEST, 2001; HIRSCH, 2010; MOREAUX,
2013; PRATO, 1984; REIA, 2017a.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p137-162
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
138 |
diversas atividades que aconteciam nos espaços públicos urbanos como arte
de rua, muitas vezes ligadas à música, ao teatro, ao circo e às feiras populares
(ATTALI, 2009; ESCUDIER, 1875; FOURNEL, 1863). Há registros de
artistas de rua desde a Grécia antiga, (HARRISON-PEPPER, 1990, p.
21-22), passando pela idade média, até chegar nas práticas artísticas vistas
atualmente pelas ruas e praças. Por ser uma atividade que ocupa as ruas da
cidade há tantos séculos, sempre enfrentou contextos adversos, regulações
e resistências, tendo se transformado profundamente ao longo do tempo.
Segundo Sally Harrison-Pepper (1990), boa parte das referências
que tratam especicamente da música de rua podem ser encontradas em
leis, registros de julgamentos, documentos policiais e outras fontes jurídicas
– sendo que muito da história da arte de rua é contada, principalmente,
por meio de leis que a proíbem (HARRISON-PEPPER, 1990, p. 22).
Das disputas pelo espaço público (e pelo silêncio) da Londres vitoriana
(BASS, 1864; PICKER, 2003) às ocupações do metrô de Nova Iorque
(TANENBAUM, 1995) e das ruas do Rio de Janeiro (MOREAUX, 2018;
REIA, 2017; REIA, HERSCHMANN; FERNANDES, 2018), múltiplas
vozes apontam para o importante papel da música de rua, na superfície da
cidade ou em seus espaços subterrâneos.
Os artistas que se apresentam nos espaços públicos acumulam
uma longa história de informalidade, marginalização e perseguição por
parte do poder público, enfrentando também estigmatização por diversos
grupos da sociedade. Para eles, lidar com a polícia e a burocracia municipal
faz parte do cotidiano de artistas de rua em várias cidades, enquanto
buscam o reconhecimento e a legitimação de suas atividades como uma
forma de sobrevivência. Por possuírem uma estreita relação com os espaços
públicos ao promoverem intervenções artísticas que dialogam com a gestão
diferenciada de ilegalismos (TELLES, 2011; TELLES; HIRATA, 2010),
acabam evidenciando dinâmicas de poder e controle (DELEUZE, 1992;
FOUCAULT, 1986), de políticas de ordem (e desordem) pública e de lutas
pelo direito à cidade (JACOBS, 2011; MITCHEL, 2003).
2
Vale ressaltar que a música de rua esbarra em arranjos institucionais
e normativos ainda mais restritivos, uma vez que o som se espalha pelas
O direito à cidade, apesar de ser um movimento estabelecido há décadas, é institucionalizado em âmbito global
na Nova Agenda Urbana, assinada em Quito durante a HABITAT III (outubro de 2016). É um movimento
considerado essencial para entender a música de rua no Brasil e no mundo a partir de uma perspectiva de
interesse público.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 139
ruas e penetra edifícios, salas e atividades cotidianas. É difícil contê-lo,
tornando sua existência passível de camadas variadas de regulação. O
design e planejamento urbano também inuenciam a propagação do som,
por meio da acústica, da disponibilização de tomadas (para amplicadores,
por exemplo), do abrigo contra o mau tempo ou, ainda, do mobiliário
urbano para a disposição da audiência dos músicos enquanto participa
das apresentações musicais. A repetição das canções ao longo do dia pode
passar despercebida para os transeuntes, mas incomoda quem trabalha
ou vive perto dos locais em que os músicos tocam; questões como (des)
anação, talento, melodias, gêneros musicais e engajamento com o público
também inuenciam no modo como a música se propaga nas ruas e,
consequentemente, como ela é regulada e controlada.
Os esforços constantes para regular e controlar a música de rua,
das leis e normas à truculência na observância da lei (“law enforcement”),
aliados a um intenso debate público em torno da questão, indicam
caminhos para analisar as cidades contemporâneas. Assim, estudar a
música de rua consiste em entender de forma crítica as relações entre
tempo, espaço e sonoridade. Nesse contexto, destaca-se a centralidade dos
ritmos da cidade para o estudo da música de rua, partindo da discussão de
ritmanálise (“rhythmanalysis”) de Henri Lefebvre (2004) e dos trabalhos de
Janice Caiafa (2013) e Fraya Frehse (2016).
Para que o artista possa “formar roda” e “passar o chapéu”, precisa
levar em conta o espaço no qual ela acontece, os horários e as condições
de circulação e permanência dos indivíduos. Para que todo esse processo
funcione, tanto os músicos quantos os pesquisadores, devem considerar os
ritmos urbanos que exigem “uma certa atitude do corpo” (CAIAFA, 2013,
p. 48) ao circular nos espaços cotidianos, fazendo “do próprio corpo um
metrônomo nos espaços públicos” (FREHSE, 2016, p.108). Os ritmos
variam e devem levar em conta tanto a circulação, quanto a permanência,
que Frehse (2016) coloca, de maneira muito adequada, como as relações
entre transeuntes e não-transeuntes (2016a), sendo que ao primeiro:
[...] corresponde um modo bem especíco de servir-se de seu
corpo em gesto e postura: ele passa sicamente por ruas e praças.
Mas decisiva para a caracterização do transeunte como tipo de
pedestre é também que essa “técnica corporal”, no sentido de
Marcel Mauss ([1936] 1997), transcorre em um ritmo denido,
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
140 |
regular – linear –, em conformidade com os ritmos de trabalho e
de lazer do transeunte. Em termos ritmanalíticos, o transeunte se
particulariza, pois, pela passagem física regular das ruas e praças
urbanas. (FREHSE, 2016, p.109).
A circulação ou permanência se dá, em grande parte, pela
associação com a conjuntura “comercial e útil” dos ritmos, em locais
especícos e “temporalizados” (FREHSE, 2016, p.116). Diante de todo
esse arranjo, a música de rua precisar dialogar constantemente com seu
entorno e as dinâmicas de poder que a moldam.
Ao trazer esse tema para a Comunicação Urbana,
3
com uma
abordagem multidisciplinar, mostra-se que a música de rua pode ser
entendida como uma prática comunicacional entre artistas e audiência, assim
como entre estes e o espaço urbano. Para Ferrara (2008, p. 43), “enquanto
construção, a cidade é meio, enquanto imagem e plano, a cidade é mídia,
enquanto mediação, a cidade é urbanidade”, sendo que aqui a perspectiva
adotada é de que a música de rua é uma prática comunicacional que pode
ajudar a conectar as pessoas umas às outras e ao próprio ambiente urbano.
O espaço urbano construído também é comunicativo (DICKINSON;
AIELLO, 2016, p. 1295) e se exacerba ao ser ocupado pela música de rua,
mediando as relações que nele ocorrem durante e após as apresentações. Os
palcos efêmeros (BOETZKES, 2010, p. 153; REIA, 2017a) que se formam
entre a circulação de pessoas na cidade fomentam encontros muitas vezes
inesperados, assim como possibilidades de sociabilidade e comunicação
muito interessantes, que podem ser analisadas a partir da regulação da
música de rua e dos espaços públicos nas cidades contemporâneas.
Não existe uma denição única e simples de espaço público (ver:
JACOBS, 2011; LEFEBVRE, 1991; MADANIPOUR, 2003; SANTOS,
1996; SENNETT, 2002 entre outros) entendido aqui enquanto espectro
de espaços urbanos que não se opõe ao espaço privado, mas engloba
diferentes graus de acesso, disponibilidade e promoção de encontros.
Baseia-se, a princípio, na ideia da espacialidade que pode ser acessada
de maneira livre e gratuita – ou através do pagamento de uma taxa,
3
Ver, por exemplo, Dossiê “Comunicação Urbana”, organizado por Janice Caiafa na Revista ECO-PÓS (2017,
v. 20, n.3) e a edição especial “Urban Communication” do International Journal of Communication, organizado
por Giorgia Aiello e Simone Tosoni (v. 10, 2016).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 141
como no transporte público – e se transforma de acordo com os usos e
as apropriações que se fazem deles, levando em conta espaços pessoais e
coletivos, dimensões físicas e simbólicas e barreiras explícitas e implícitas
de acesso (REIA, 2017a). Contudo, é importante enfatizar que mesmo
quando esses espaços podem ser publicamente acessados, não signica que
as pessoas terão acesso equitativo a eles.
O objetivo central do capítulo aqui proposto é, portanto, discutir
brevemente os ritmos, lugares e disputas da música de rua no Rio de Janeiro,
levando em consideração sua regulação e desdobramentos recentes. Trata-
se de uma reexão esboçada a partir de pesquisa de campo realizada com
artistas de rua em duas cidades, Rio de Janeiro e Montreal (Canadá), entre
2013 e 2017. Os resultados apresentados são fruto de extenso levantamento
bibliográco-documental e anos de pesquisa de campo que envolveu a
condução de entrevistas qualitativas semiestruturadas em profundidade
(com artistas de rua, funcionários do metrô, representantes do poder
público e de associações de músicos, produtores culturais, membros do
poder legislativo, etc.); a realização de observação participante em festivais,
festas e performances; e o registro da visualidade da arte de rua por meio
de fotograas.
A seguir se apresenta uma discussão sobre as multiplicidades
de ser músico e estar nas ruas, com uma primeira tentativa de se criar
uma tipologia que contemple, minimamente, a heterogênea experiência
da música de rua. Logo após, serão apresentadas as disputas relativas à
regulação e ao exercício da música em espaços públicos, na superfície das
ruas e abaixo delas, de acordo com os ritmos e temporalidades da cidade.
tocar naS ruaS: conjugando MotIvaçõeS e vIvêncIaS
Ser músico e estar nas ruas vai muito além de um enquadramento
como “músico de rua”, conforme foi possível apreender ao longo da
pesquisa de campo. A música de rua não é uma atividade homogênea:
contempla práticas uidas, fragmentadas e complexas, de modo que uma
sistematização ou tipologia se mostra difícil, embora uma primeira tentativa
seja feita na gura 1, abaixo. Além disso, é preciso levar em consideração
a diferença entre o que comumente se identica como música de rua
(aquela que é pensada especicamente para o espaço público e tem nele
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
142 |
seu principal suporte) e a musicalidade que acontece nas ruas (por diversos
motivos, como ocupação histórica de um determinado espaço, festivais,
espetáculos inicialmente criados para salas fechadas, etc.). Muitos dos
artistas que se apresentam nas ruas e se consideram artistas de rua também
trabalham em eventos privados, salas de show, bares e restaurantes. Na
cidade, estas práticas e espaços se entrelaçam, criando uma complexa rede
cultural que congrega experiências variadas (REIA; HERSCHMANN;
FERNANDES, 2018).
Há de se destacar também as diferenciações internas, entre artistas
que se autodenem como artistas de rua, que são enquadrados em leis e
programas e aqueles que enxergam a prática como condição transitória,
por exemplo. É preciso notar que ser artista e se apresentar na rua também
invoca uma constante negociação, não apenas com o poder público e com
as instituições, mas com o espaço construído, com a cidade, com outros
artistas, com os transeuntes e não-transeuntes e com as próprias limitações
físicas e emocionais dos artistas.
Figura 1 – Sistematização das práticas de músicos de rua no Brasil
Fonte: Elaboração própria.
A importância de se estar nas ruas varia muito entre os artistas,
sendo que a maioria acredita que estar na cidade se apresentando pode
criar um cotidiano mais festivo, alegre, afetuoso, transformando a rotina
monótona das pessoas, pelo menos por alguns instantes. Porém, nem todos
os artistas têm essa visão otimista e veem o uso da rua de forma pragmática,
com nalidades materiais (ganhar dinheiro e pagar as contas) ou técnica
(ensaiar e testar composições).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 143
O engajamento dos artistas nas táticas de resistência, legitimação
e legalização de suas atividades também não é homogêneo. Apenas alguns
grupos e artistas participam mais e estão interessados em frequentar
fóruns, trabalhar voluntariamente em associações, participar de audiências
e propor projetos e leis. Essas táticas e práticas têm garantido, em medidas
diferentes, a existência da arte de rua – regulada e dentro da conformidade
esperada, ou através da desobediência civil e disputas, que se exacerbam
nos exemplos dos músicos do metrô (que será visto a seguir).
É importante entender que a arte de rua não pode simplesmente
ser enquadrada como atividade legal ou ilegal, já que o artista pode estar
se apresentando legalmente em um dia e ilegalmente no outro, ou de
forma legal em uma rua e ilegal na outra, dentro do volume e do uso do
espaço adequados em um momento, e fora desses padrões no outro – e
muitas vezes as decisões sobre a legalidade (ou não) das performances são
decididas no cotidiano, sujeitas a opiniões e arbitrariedades dos agentes
de controle e organização urbana. A formalidade ou informalidade do
artista que se apresenta nas ruas também pode ser questionada, já que
muitos deles têm empregos xos em outras áreas, que muitas vezes garante
o pagamento das contas (com um emprego formal) e a vida como artista
nas ruas (de modo informal).
Um dos pontos principais nessa negociação de binários e
ilegalismos diz respeito à prossionalização dos artistas de rua. Em
diversos momentos, há uma tentativa dos artistas de se colocarem como
prossionais, delineando as fronteiras entre o trabalho do artista prossional
que escolhe a rua como suporte, daqueles que tocam para pedir dinheiro,
sem talento”, “amadores”, “mendigos”, “pedintes”, etc. Também entra
nessa diferenciação as razões de se ocupar aquele espaço liminar, sendo que
alguns artistas acreditam estar ali de forma permanente, porque escolheram
os espaços públicos para manifestar sua arte; enquanto outros estão ali
de forma transitória, esperando serem descobertos, ensaiando, tentando
ganhar algum dinheiro extra.
Esse cenário é complexicado tanto pela regulação e
institucionalização das práticas, quanto pelas disputas pelo direito de estar
nas ruas, tocando e se apresentando. A seguir, serão melhor delineados
esses conitos e soluções encontradas pelos músicos, nas ruas, praças e
vagões do Rio de Janeiro.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
144 |
MúSIca na SuperfícIe: regulaçõeS, propoStaS e proteStoS
Em termos espaciais, as atividades dos músicos de rua concentram-
se, normalmente, em pontos especícos da cidade, estreitamente ligados à
circulação (BOUTROS; STRAW, 2010) de objetos, pessoas, veículos e
dinheiro. Viver de passar o chapéu nas ruas não é simples e os músicos
que se apresentam em espaços públicos tem de lidar com diversos fatores e
arranjos a m de persistirem e pagarem as contas.
As condições climáticas assumem um papel central no cotidiano
dos músicos de rua, já que frio intenso e neve, sol escaldante e clima
quente, chuvas, temporais e ventos cortantes vão permitem (ou não) que
os artistas quem do lado de fora, muitas vezes a céu aberto, realizando
suas performances. Há de se levar em conta, também as limitações
temporais, com horários que autorizam início e m do uso de aparelhos
sonoros e instrumentos no espaço público, assim como a regulação da
duração das performances.
Para além de delimitar o recorte temporal no qual os músicos
podem usufruir do espaço público, os ritmos da cidade, associados
aos movimentos de ir e vir cotidianos (trabalho, casa, escola), também
inuenciam no modo de ocupar as ruas e praças com música. A circulação
de pessoas é essencial para que os músicos consigam passar o chapéu
(e receber doações), colocando-os na posição de não-transeuntes, mas
estreitamente ligados e dependentes em relação aos transeuntes. A correta
disposição espacial dos instrumentos, dos corpos e do chapéu é estratégica
para conseguir bons resultados e deve levar em conta um lugar para formar
a roda, sem que atrapalhe o uxo de pedestres e veículos.
Em um espaço aberto, no qual circulam diversas pessoas e objetos,
fazer-se ouvir é um desao constante. Nem todas as cidades permitem o
uso de amplicação ou de instrumentos de percussão em todos os locais,
levando os músicos a privilegiarem alguns instrumentos e gêneros musicais
em detrimento de outros. Por outro lado, transeuntes navegam na cidade
e em seus espaços públicos tentando ltrar todos esses estímulos sonoros e
visuais música de rua. Não é incomum ver pessoas passando pelos músicos
usando fones de ouvido ou tampando as orelhas enquanto fazem caretas
para o som que vem dos instrumentos e amplicadores. Ao realizar a
observação participante com os músicos, é fácil notar que um número
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 145
grande de pessoas anda pela rede de transporte público com seus fones
de ouvidos, muitas vezes acoplados ao aparelho celular. Como mostra
Simone Pereira de Sá (2011), a especicidade das mídias móveis possui
três aspectos que se destacam:
[…] primeiramente, elas potencializam as estratégias de
autorreexividade e produção do self no percurso cotidiano de
seus usuários pela cidade. Ao permitirem que o usuário carregue
sua enciclopédia musical na palma da mão – seja a partir do
armazenamento prévio de música, seja a partir do acesso a sites e
rádios on-line – o usuário regula seus humores, afetos e sensibilidades
de maneira bastante detalhista e sosticada. Em segundo lugar,
porque o aspecto sensorial, de experiência corpórea permitida pela
mobilidade do player é fundamental e denidor da experiência. […]
Neste caso, é a articulação entre o corpo se movendo num certo espaço
urbano ao som de uma certa trilha que faz a diferença. Finalmente,
e como consequência das premissas anteriores, cabe ainda enfatizar
a ressignicação afetiva do espaço urbano e dos transeuntes, que
ganham novos sentidos para o usuário a partir daquela trilha sonora
particular. (PEREIRA DE SÁ, 2011, p. 6-7).
Raphaël Nowak e Andy Bennett (2014, p. 11), ao analisarem
ambientes sonoros, mostram como o espaço geralmente implica em
música sendo imposta aos ouvintes (como em lojas ou shopping centers)
ou sendo usada para bloquear sons que não se quer ouvir (através de mídias
móveis). A música de rua pode ser vista como uma forma imposta e deste
status emergem conitos, uma vez que é difícil conter o som, ainda mais
em determinados ambientes, como metrô e praças. Isso pode causar uma
percepção bastante negativa da população em relação à música de rua,
demandando uma regulação mais incisiva para conter o “incômodo
sonoro causado. Ao mesmo tempo, existem estratégias de design urbano
para conter a presença de músicos de rua, como a presença de alto-falantes
que tocam música ao longo do dia, fazendo com que o músico desista de
concorrer com o som vindo do sistema sonoro “ocial”.
Os músicos se concentram em áreas centrais, turísticas e comerciais,
com uma audiência constante e transitória. Contudo, o engajamento com
as canções tocadas é diferente entre os que param por alguns minutos para
presenciar a música de rua, e os que trabalham ou moram na região –
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
146 |
durante o campo, em ambas as cidades, as reclamações centraram-se sobre
a repetição de hits que apelam para a memória e a nostalgia, e que, por
gerarem dinheiro, são tocados de forma intermitente ao longo de horas
ou muitas vezes em um breve intervalo de tempo. Aqueles que circulam
eventualmente não atestam o incômodo da repetição, mas quem presencia
a performance de forma mais perene pode achar a mesma canção sendo
tocada em loop uma experiência “insuportável”.
Diante da problemática do equilíbrio de interesse na construção
dos espaços urbanos, a regulação traz normas, leis, policiamento,
burocracia e gastos que os músicos tem que estar sempre a par. Para eles,
existe a possibilidade de se adequar à regulação vigente, desobedecê-la, ou
encontrar encaixes no meio-termo, entre as duas possibilidades (estando,
às vezes, regular em um local/horário e irregular em outros, por exemplo).
Destacam-se também as muitas táticas de resistência e persistência que
burlam as normas e contradizem o sistema.
Comparado a outras cidades, o Rio de Janeiro não possui uma
estrutura de regulação que possa ser considerada muito restritiva
4
, mas,
ainda sim, há um recente processo de engajamento dos artistas de rua pela
regulação de sua atividade. Diante da crescente insegurança e repressão
sofridas pelos artistas que usam a cidade carioca como palco, a existência
de normas protetoras, e, ao mesmo tempo, reguladoras da ocupação do
espaço público de maneira ordenada, foi vista como uma necessidade.
O Rio foi a primeira cidade brasileira a regular a arte de rua através de
uma norma especíca, exemplo seguido por outros municípios, como
São Paulo e Curitiba.
Importante ressaltar que a atividade de artistas de rua enfrenta os
impactos de normas jurídicas que não dizem respeito apenas às performances
no espaço público, mas a outros temas que acabam enquadrando os
artistas: normas sobre silêncio, comércio ambulante, monitoramento e
segurança pública, ordem pública, entre outras (como pode ser visto no
quadro 1). Há também a questão do design e mobiliário urbano, de áreas
de zoneamento, espaços privados de acesso público e outras dinâmicas que
interferem no cotidiano dos artistas de rua da cidade.
Ver, por exemplo, a pesquisa realizada pelo e Busking Project (2017) sobre o licenciamento de músicos
de rua em 34 cidades. Disponível em: https://busk.co/blog/busking-tips-tricks/busking-licenses-worldwide/.
Acesso em: 31 maio 2019.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 147
Quadro 1 - Algumas das leis e projetos de lei que afetam e regulam as
atividades de artistas de rua no Rio de Janeiro
Fonte: Elaboração própria.
Normalmente, a apresentação em espaços públicos, embora não
fosse considerada ilegal, também não se encaixava completamente na
legalidade. Todavia, os artistas de rua foram perseguidos e tiveram suas
atividades impactadas pelas políticas municipais e estaduais nos últimos
anos, especialmente porque a partir da primeira década do século XXI, as
fronteiras dos ilegalismos da ocupação do espaço público para ganhar a
vida com arte de rua começaram a se concretizar. Justamente por ocupar
esses espaços liminares (BYWATER, 2007), os artistas acabaram sofrendo
com as arbitrariedades dos responsáveis pela observância da lei e pela
manutenção da ordem. Em 2009, foi criada a Secretaria Especial de Ordem
Pública (SEOP), pelo então prefeito Eduardo Paes, com o intuito de atuar
em conjunto com outros órgãos municipais de transporte e limpeza e com
a Guarda Municipal para manter a ordem da cidade através da “Operação
Choque de Ordem”. O choque de ordem, como cou conhecido, reacendeu
debates sobre o direito à cidade e à ocupação de espaços públicos cariocas,
principalmente pelos indivíduos que fazem usos das ruas para ganhar a
vida, como artistas e vendedores ambulantes.
Por enfrentarem todas essas diculdades diárias para se manterem
nas ruas, fazendo sua arte, é compreensível que os artistas tenham visto na
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
148 |
regulação uma forma de prevenir abusos da polícia e garantir o direito a
ocupar os espaços públicos urbanos. Diante da repressão policial, da falta
de apoio da prefeitura e da ausência de respaldo para as atividades dos
artistas de rua, a proteção e legalização das atividades foi buscada por meio
de uma norma jurídica municipal, discutida junto a uma possível política
cultural que proporcionasse sustentabilidade nanceira e legitimação das
atividades desenvolvidas por diversos grupos de arte de rua no Rio de
Janeiro, centralizados na gura de Amir Haddad, do grupo Tá na Rua e na
proposta da “arte pública” (REIA, 2017).
O Grupo Tá na Rua é um dos principais articuladores da arte de
rua no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, concentrando-se na gura
de Amir Haddad, respeitado dramaturgo, diretor de teatro e ator, que
ajudou a criar o grupo nos anos 1980 e desde então tem trabalhado com
o teatro para os espaços públicos – ou espaços abertos, como costumavam
chamar –, entrelaçando redes de arte de rua na cidade e no país (TURLE;
TRINDADE, 2008).
Os artistas criaram um “Fórum de Arte Pública”, que acontecia
semanalmente na sede do Tá na Rua, para discutirem o papel da arte
pública no Rio e estratégias de resistência e sobrevivência de suas práticas.
Nas palavras de Amir,
5
eles são uma proposta para a cidade:
O espaço público cou hostil. Nós não somos um protesto,
nós somos uma proposta, entende? E a rua trazia as condições
democráticas ideais para você trabalhar, mas com a turbulência ela
perde essa característica, passa a ser um lugar inóspito, um lugar
difícil. [...] Agora, o Rio de Janeiro é [ênfase] a cidade pra isso e
vai melhorar e vai ser a cidade pra isso que ela tem essa vocação,
mas não se fala em arte pública, ninguém sabe direito o que é arte
pública [...]. Quando eu falei «arte pública» as pessoas pensaram
que eu estivesse falando de monumentos, estátuas, essas coisas, que
isso era chamado “arte pública”. Eu falei: não, eu estou falando de
outra coisa, estou falando de uma arte que não se vende, não se
compra, pode acontecer em qualquer lugar, com qualquer tipo de
público sem distinção de nenhuma espécie. (HADDAD, 2014).
Entrevista concedida à autora e ao Micael Herschmann por Amir Haddad, em 25 jun. 2014, no Rio de
Janeiro, pessoalmente.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 149
A constante oposição entre “protesto” e “proposta” está enraizada
nas atividades do Fórum de Arte Pública, colocando a arte pública como
uma alternativa para a cidade ao armar que eles não são um protesto,
são uma proposta. Contudo, dizer que apenas a arte pública se identica
como uma proposta para a cidade, levanta o questionamento acerca do
que é essa arte pública e o que ela engloba. Amir e os artistas do Fórum
estão sempre advogando em favor de uma ressignicação do conceito de
arte pública, que embora se remeta aos monumentos e obras de arte em
espaços públicos urbanos, vai além disso. Essa mudança é carregada de um
posicionamento muito bem delimitado, que se se coloca como um serviço
público prestado pelos artistas para a população. Representa também uma
atuação política que vem acontecendo há anos, ressaltando parceiros e
opositores, enquanto participa da complexicação do cenário da arte de
rua carioca.
Uma das frases mais emblemáticas do movimento de arte pública
carioca encontra-se abaixo, na gura 2, presente junto ao portal do Festival
Carioca de Arte Pública, ocorrido em 2016, em que se pode ver a força
que a ideia do “público” adquire enquanto um bem para a cidade e para a
população, ao mesmo tempo em que se coloca como parte da construção
de uma cidade “para quem vive nela”.
Figura 2 - Tá na Rua, 3
o
Festival Carioca de Arte Pública, 07 de
novembro de 2016
Fonte: Arquivo da autora
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
150 |
No geral, o movimento de arte pública se coloca como uma
proposta que tenta criar uma realidade na qual os cidadãos coexistem com
a arte de forma perene no cotidiano urbano. Os artistas públicos tentam
se distanciar dos protestos que tomam os lugares de assalto, perturbando
a “ordem”, pois para eles é importante que o movimento seja entendido
como uma proposta para a cidade, não um protesto, a m de construir
uma narrativa de reciprocidade com os espaços públicos e com aqueles que
os ocupam diariamente. Contudo, esse ponto de vista pode ser entendido
como limitador, uma vez que diminui a importância de protestos como
uma maneira de dar voz aos descontentamentos e às denúncias de
injustiças sociais, especialmente no atual contexto político do país, em
que protestos levaram as pessoas “de volta” às ruas, retomando o espaço
público como lugar de exercício de cidadania (MARICATO et al., 2013).
Em alguns momentos, o discurso de Amir Haddad e do Fórum de Arte
Pública parece focar muito na “Lei do Artista de Rua” e tudo que orbita em
torno dos interesses dos artistas públicos enquanto categoria, deixando de
lado, ou diminuindo a importância de várias outras formas de ocupações,
narrativas, performances e atividades que ocorrem nos espaços públicos do
Rio de Janeiro diariamente.
A análise da arte de rua enquanto arte pública (e vice-versa)
é importante para evidenciar as diferentes práticas e abordagens que
constituem o movimento de arte pública. Para eles, o artista que deseja
mostrar seu trabalho nas ruas precisa ter “espírito público”, uma certa
ética que guia a conguração dos usos possíveis dos espaços públicos. Aqui
reside a diferenciação feita entre esta manifestação de arte pública e a arte
nas ruas: a arte que é “feita nas ruas” não é necessariamente pública sob essa
ótica, já que pode ter surgido fora das ruas, uma arte “privada” que vai para
as ruas. A arte “feita para as ruas” – arte pública – nasce nas ruas baseada
no espírito público mencionado pelos artistas, e respeita o espaço na qual
ocorre, bem como os transeuntes e os demais com quem divide aquele
lugar para também ganhar a vida.
Assim como tratado anteriormente (REIA, 2017), acredita-se que
o envolvimento dos artistas no processo de policymaking, e a participação
ativa na proposição de políticas públicas que contemplem seus interesses
é muito relevante. A inserção de parte dos artistas na disputa política da
cidade está atrelada à sua institucionalização – que pode ser comprovada
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 151
pela ligação com a Secretaria Municipal de Cultura e pela demanda de se
criar um “departamento” dentro do órgão ou uma “fundação” dedicado à
arte pública (Amir Haddad, informação verbal). Além do poder público,
os cidadãos teriam um papel importante para fomentar e ajudar a sustentar
a arte pública e os artistas na cidade.
A “Lei do Artista de Rua”, como cou conhecida a lei 5.429,
de 05 de junho de 2012, é também chamada pelos artistas de “a lei que
pegou”. Dispõe sobre a apresentação de artistas de rua nos logradouros
públicos do município, e possui apenas três artigos que, entre outras
coisas, regulam as manifestações culturais sem autorização prévia, desde
que sigam alguns requisitos. Os incisos do primeiro artigo da lei denem
as limitações de horário (como o inciso VI, que dene que as apresentações
tenham duração máxima de até quatro horas e estejam concluídas até
às vinte e duas horas”), ocupação do espaço, ruídos e sustentabilidade
nanceira. Também rearma o caráter efêmero dos palcos dos artistas de
rua na cidade, dizendo que as apresentações devem prescindir de palco ou
estrutura prévia de instalação (ver guras 3 e 4 abaixo).
Figura 3 – Apresentação da Grande Cia Brasileira de Mysterios e
Novidades - Praça Seca, 18.04.2015
Fonte: Arquivo da autora.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
152 |
Figura 4 – Kosmo Coletivo Urbano, 3
o
Festival Carioca de Arte Pública,
Rio de Janeiro, 2016
Fonte: Arquivo da autora.
Mesmo sendo celebrada como a “lei que pegou”, muitos músicos
armaram que ainda precisam andar com ela impressa no bolso ou na
tela do celular, para ser exibida caso os policiais queiram interromper
apresentações. Segundo Wagner José, um dos músicos entrevistados: “todo
mundo tem que andar com a lei no celular, tem que tê-la sempre na bolsa
do instrumento” (Wagner José, informação verbal).
6
Reclamam da falta de
preparo da Guarda Municipal para lidar com os artistas e pessoas ocupando
os espaços públicos, levando os músicos a criarem táticas de persistir no
uso das ruas e praças como forma de sobrevivência nanceira e de sua arte.
Mesmo que a regulação possa proteger os músicos de rua em uma
cidade como o Rio, ao mesmo tempo ela determina ritmos da cidade e
exclui outras práticas dissidentes, estando todas sujeitas à arbitrariedade da
observância da lei por todo o sistema que se encontra entre a lei e a rua –
uma vez que a norma jurídica, em si, não garante a legalidade e normalidade
da atividade dos artistas aos olhos de todos os agentes públicos.
6
Entrevista concedida a mim por Wagner José em 07 abr. 2017, Rio de Janeiro.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 153
MúSIca SuBterrânea e eM MovIMento: dISputar oS eSpoS do
deSlocaMento dIárIo
Janice Caiafa, ao estudar o sistema metroviário, arma que
o espaço de um metrô é marcado por regulações”, tratando-se de um
espaço exigente”, repleto de “requisitos” (CAIAFA, 2013, p.50-51).
Muitas das dinâmicas exercidas pelos músicos e observadas em espaços
públicos na superfície se repetem na música subterrânea – que acontece,
principalmente no sistema metroviário das cidades – com algumas
camadas extras de normas e controle espaço-temporal, além de ritmos
mais intensos de circulação.
Apesar das condições climáticas afetarem de maneira menos
direta quem circula abaixo da superfície, também impacta as apresentações
dos músicos, que reclamam da falta de ventilação e calor intenso dentro
das estações. O metrô não funciona de maneira ininterrupta no Rio de
Janeiro, então segue também o ritmo do início e m, com horários de
uxo intenso de passageiros, mais trens passando, idas e vindas apressadas.
Nesse contexto, os músicos têm de saber aproveitar as oportunidades e
superar os desaos impostos pelo ritmo “maquínico” do metrô e de seus
passageiros (CAIAFA, 2013).
A acústica também tem suas particularidades, por se tratar de um
espaço quase fechado e limitado, com reverberações e sons concorrentes:
trens, apitos, alto-falantes que dão recados constantes, conversas, músicas
tocadas em aparelhos sonoros sem fones de ouvido. Nessa paisagem sonora,
os passageiros em trânsito têm de decidir rapidamente se param para ouvir
os músicos ou seguem seu caminho. Quando a música é tocada dentro dos
vagões, não há muitas formas de escapar do som que invade os ouvidos –
ponto visto como positivo e lucrativo por músicos no Rio.
Além dos músicos, a organização do espaço e do tempo no metrô
e nos trens dá oportunidades para o exercício de outras atividades que
se valem da voz e de sons para interagir com os passageiros: comércio
ambulante, pedintes ou pregação religiosa. Por mais que muitas dessas
atividades sejam proibidas em qualquer espaço do metrô (e especialmente
dentro dos vagões), elas acontecem e se entrelaçam o cotidiano do
transporte público subterrâneo.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
154 |
Amanda Boetzkes (2010), analisou as performances musicais
na estação Lionel Groulx em Montreal, antes da criação e consolidação
de programas especícos para fomentar o talento dos músicos do metrô,
tratando do palco efêmero que se criava na plataforma durante as
apresentações – e entre a espera pelos trens. Naquele momento, o espaço
de performance na estação não era pré-estabelecido ou evidente à primeira
vista, de forma que o próprio uxo de passageiros entre as linhas verde e
laranja, que paravam para ver as apresentações, é que acabava delimitando
o palco. Para ela, “confrontados com multidões descontentes e apressadas,
os músicos buscam produzir eventos que vão ancorar a experiência dos
passageiros, atravessando as barreiras da etnia e da cultura que, de outra
forma, os dividem” (BOETZKES, 2010, p. 138, tradução nossa).
As apresentações no metrô podem pagar bem e cada músico tem
uma relação diferente com o chapéu, assim como as contribuições variam
de acordo com o local, o horário, o uxo de usuários, a atenção do público,
o repertório, entre outros. Contudo, como observado anteriormente, nem
todos os passageiros querem ouvir música; alguns se balançam no ritmo,
logo cedo. Alguns cantam juntos. Outros cobrem as orelhas. Muitas
pessoas são indiferentes, viajando na companhia de seus aparelhos com
fones de ouvido.
No momento de realização da pesquisa de campo deste trabalho,
o caso do metrô do Rio era bastante complicado, tendo em vista que a
ocupação desse espaço – inaugurado em 1979 e operado pela empresa
concessionária MetrôRio (Concessão Metroviária do Rio de Janeiro
S.A.) desde 1997 – por artistas de rua, vendedores ambulantes, pedintes
e evangelizadores já ocorria há vários anos. Recentemente, a discussão
sobre a ocupação irregular de espaços do metrô foi reacendida com foco
nos músicos, que vinham se apresentando nos vagões e sendo retirados a
força pelos seguranças. Em 2015, vídeos compartilhados em redes sociais
mostravam seguranças retirando dois músicos do trem pelo pescoço, de
forma violenta, apesar das reclamações de diversos passageiros. O incidente
acabou sendo veiculado pela mídia tradicional, gerando debate público
sobre a atuação de músicos dentro dos vagões. Alguns usuários defendiam
os músicos, enquanto vários emitiam opiniões contrárias à presença deles
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 155
naquele espaço, comparando as performances às atividades de pedintes e
vagabundos”.
7
O MetrôRio, até 2018, proibia que artistas se apresentassem
em vagões (e até recentemente, em qualquer área do sistema), sendo
que esse tipo de atividade era reprimida sempre que identicada pelos
funcionários do metrô. O aumento do número de artistas e da atenção
que a questão começou a receber já preocupava os artistas em 2013.
8
Em
setembro de 2014, o MetrôRio divulgou uma solução para estes impasses,
porém não chegou perto dos desejos dos artistas: na verdade, a proposta
do metrô, um edital para o projeto “Estação da Música”, causou raiva e
indignação, com diversas pessoas comparando a regulação da atividade
no metrô com trabalho escravo: ao mesmo tempo que não receberiam
nenhum apoio nanceiro ou de infraestrutura, os artistas não poderiam
passar o chapéu, mostrando que o equilíbrio de interesses estava longe
do ideal e que a valorização ou mesmo a legitimação do trabalho desses
artistas não aconteceu.
Os músicos teriam de passar por uma espécie de audição, serem
selecionados de acordo com seus talentos, mas não teriam nenhuma
contrapartida além da “visibilidade” de seus trabalhos. Também estava
proibida a comercialização de CDs e outras mídias, e não seria permitida
a execução de covers de músicas famosas – apenas trabalhos autorais. Para
piorar ainda mais a proposta, os artistas deveriam ceder seus direitos de
imagem, voz e nome para a divulgação do projeto, enquanto nem mesmo
a garantia de continuidade de suas apresentações era mantida.
A falta de conhecimento e diálogo com artistas que conhecem
a realidade das ruas e vagões pela cidade leva a este tipo de regulação
míope, que vem de cima pra baixo e esmaga nuances e demandas de quem
precisa dela para continuar trabalhando sem sofrer violência dos agentes
de segurança. O debate público e a mobilização dos artistas em torno da
questão levaram o MetrôRio a suspender o edital poucos dias depois do seu
lançamento, para reformulá-lo e torná-lo atrativo aos músicos.
Ver: GOMES, Paulo. Músicos são agredidos por seguranças do metrô. O dia, 21 dez. 2015. Disponível em:
http://bit.ly/2w0uUAy. Acesso em: 31 maio 2019.
8
BESSA, Priscila. Músicos driblam proibição e quebram a monotonia dos vagões de metrô no Rio. Último
Segundo – IG Rio de Janeiro, 16 jan. 2013. Disponível em: http://bit.ly/2i4vUhf. Acesso em: 31 maio 2019.
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Durante todos esses anos, a música nos vagões do metrô não
deixou de existir. Em maio de 2015, a imprensa ainda cobria a presença de
músicos no vagão, apesar da proibição. Na época já existia um projeto de
lei sobre o tema (PL 2.958/2014) que tramitava na Assembleia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), sem nenhuma movimentação desde
agosto de 2015. Esse projeto de lei, de autoria do Deputado André
Ceciliano, estipulava em sete artigos a regulação das apresentações culturais
no interior dos vagões do Rio e Janeiro. O PL regulamentava apresentações
musicais e de poesia, a partir de um cadastro prévio de artistas; também
limitava os horários de apresentação – fora dos horários de maior circulação
de passageiros – e impedia a cobrança de cachê, permitindo apenas a doação
espontânea (passar o chapéu), desde que a apresentação não incomodasse
os passageiros, que podiam pedir a sua interrupção. As concessionárias
de transporte argumentavam que a proibição de apresentações culturais
nos vagões seguia modelos adotados em outras cidades pelo mundo e
se baseavam, principalmente, em questões de segurança dos usuários
(circulação, impossibilidade de ouvir avisos sonoros ou mesmo queda
dentro dos trens).
Após a proposição do projeto de lei 2.958/2014, os músicos
perceberam que era preciso se organizar para se oporem às agressões
recorrentes, garantirem seus interesses, demandarem legalidade e buscarem
a legitimação de suas atividades – e foi a partir daí que surgiu o Coletivo
AME - Artistas Metroviários. Os artistas ressaltam a necessidade do “m
do autoritarismo das concessionárias” e de sua impunidade, já que agem
de forma violenta contra os artistas e não são punidas, além da garantia
do “direito à livre manifestação cultural nos transportes públicos por meio
da arte itinerante dentro dos vagões”. A justicativa para a legalização
dos artistas nos vagões do metrô se baseia na importância da arte para a
transformação do cotidiano dos envolvidos e para a promoção de encontros
e experiências.
No início de 2016, o MetrôRio lançou um novo projeto, dessa
vez chamado Palco Carioca, no qual disponibilizava palcos em três
estações: Carioca, Siqueira Campos e Maria da Graça (Fig. 5). No site do
metrô, o Palco Carioca foi apresentado como um projeto com o objetivo
de “incentivar talentos, realizar o intercâmbio cultural e dar oportunidade
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 157
para os músicos apresentarem seu trabalho ao público que transita pelas
estações do metrô”.
9
O site fornece um espaço para que os músicos agendem suas
apresentações, além de fotos dos palcos, da agenda dos shows nas estações
participantes, do regulamento para que o artista participe do projeto e
de uma seção com perguntas frequentes. Algumas das regras são bastante
estritas e não combinam muito com o trabalho de artistas de rua,
como evitar a interação e participação do público nas apresentações e a
comercialização de CDs.
Figura 5 – Pôster do projeto Palco Carioca, estação de metrô Botafogo,
Rio de Janeiro, 2016
Fonte: Arquivo da autora.
Mesmo com a implantação do projeto Palco Carioca, os artistas
continuaram se apresentando nos vagões e demandando o direito de
estar ali, comparando a atividade de se apresentar ilegalmente e driblar
os seguranças com uma “caçada de gato e rato”.
10
Durante todo o estudo
Ver: Palco Carioca. Disponível em: https://www.metrorio.com.br/Novidades/PalcoCarioca. Acesso em: 31
maio 2019.
10
Ver, por exemplo: ARTISTAS do Rio ‘driblam’ vigias no Metrô. Disponível em: http://bit.ly/2fKh1zT. Acesso
em: 31 maio 2019.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
158 |
de campo, foi possível acompanhar músicos entrando e saindo dos vagões
para se apresentarem – e em alguns dias, pôde-se, inclusive, presenciar
músicos se apresentando dentro dos ônibus na Zona Sul, apesar de ser uma
atividade com menor incidência e organização do que no caso do metrô.
De tempos em tempos, denúncias de agressão de artistas vinham à tona e
colocavam lenha na fogueira do debate público em torno do tema.
Em 25 de setembro de 2018, a lei estadual 8.120, que “regulamenta
a manifestação cultural nas estações de barcas, trens e metrô no âmbito do
estado do Rio de Janeiro” nalmente foi sancionada. Com sete artigos,
deniu os primeiros passos para que os artistas se apresentassem nas estações
– e de certa forma também no interior – de barcas, trens e metrôs: horários,
condições e enquadramento das práticas. Apesar de que, poucos dias após
a aprovação, a imprensa ainda noticiava que músicos eram retirados do
metrô,
11
as apresentações estavam se tornando mais frequentes. Ao longo de
2019, era comum encontrar artistas dentro das composições do metrô e dos
trens, mostrando uma maior aceitação do trabalho e o resultado de anos de
disputa pelo direito de tocar e se apresentar nos espaços públicos da cidade.
Contudo, menos de um ano após sua aprovação, o Tribunal de Justiça do
Rio (TJ-RJ) considerou inconstitucional a lei estadual 8.120/2018, voltando
a proibição de performances artísticas em estações de barcas, trem e metrô
no Rio de Janeiro. A decisão foi tomada a partir de uma ação de Flávio
Bolsonaro (anteriormente deputado e hoje senador) e divulgada em junho
de 2019.
12
Esse tipo de ação evidencia a complexidade do tema, os conitos
de interesse e a fragilidade da proteção legal da arte de rua—que continuará
existindo às margens, apesar da regulação e eventuais proibições.
conSIderaçõeS fInaIS
Espera-se, com essa breve reexão, expandir a discussão sobre
a música de rua e seu entrelaçamento nas cidades, a partir de uma
perspectiva da comunicação urbana e dos estudos do som e da música. Ao
ocupar lugar(es) que são muitas vezes marginais, liminares e contestados,
os músicos de rua e sua busca pela legitimação expõem dinâmicas de
11
GRINBERG, Felipe. Apesar de lei que permite apresentações artísticas, músico é expulso de composição do
metrô. Extra, 28 set. 2018. Disponível em: https://glo.bo/2KmtkQ3. Acesso em: 31 maio 2019.
12
JUSTIÇA proíbe artistas de rua no metrô, após ação de Flávio Bolsonaro. O Globo, 25 jun. 2019.
Disponível em: https://glo.bo/2KmtkQ3. Acesso em: 21 jul. 2019.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 159
poder, políticas culturais problemáticas, diculdades de acesso aos
espaços públicos, contestação do direito à cidade e truculência policial.
As tentativas de regular e controlar essas práticas podem apontar para as
lógicas de determinados momentos históricos, para as disputas da/na/
pela cidade e, ainda, para como as pessoas vivem juntas em ambientes
urbanos populosos e complexos. Propõe-se discutir a regulação da música
de rua a partir dos ritmos da cidade, tanto na superfície quanto nas vias
subterrâneas, de acordo com as temporalidades da vida pública, do dia
produtivo e repleto de ruídos e do desejo de habitar a noite (silenciosa,
para uns, e vibrante, para outros). Estudar a música de rua consiste em
entender de forma crítica as relações entre tempo, espaço e sonoridade
nas cidades. A centralidade dos ritmos, como mostrada por vários autores,
pode sugerir um caminho interessante da ocupação do espaço por corpos
e ruídos em constante atrito.
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J 
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
Luís Antônio Francisco de Souza
Eu tenho uma bíblia velha, uma pistola automática
Um sentimento de revolta
E tô tentando sobreviver no inferno
1
.
Mano Brown
Introdução
O tema da juventude ganhou expressão política e importância
nas políticas públicas nas duas últimas décadas. O ápice da visibilidade da
As letras citadas neste texto foram extraídas do livro/álbum Sobrevivendo no inferno dos Racionais MC’S.
O enquadramento ético/político do álbum remete à relação dos músicos com uma releitura da bíblia e a um
reencontro com o divino não na forma de uma transcendência, mas de práticas carregadas de sentido que
explicam a tomada de posição dos músicos diante do cotidiano perverso da periferia.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p163-182
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
164 |
juventude como sujeito social e político ocorreu em 2006, com a aprovação
do Estatuto da Juventude e da criação de políticas públicas especicamente
voltadas para este grupo social. Depois disso, as manifestações do ano de
2013 em torno do Passe Livre e a ocupação de salas de aula de escolas da
rede pública de São Paulo, em 2015, demonstraram uma nova consciência
da juventude diante dos desaos de sua geração ao lado do esgotamento
das formas tradicionais de participação política. Antes desses grandes
momentos, a juventude era vista em geral como problema social que
deveria ser gerido pelos adultos; os jovens, nos discursos e nas políticas
públicas, eram tidos como um grupo social problemático que deveria ser
enquadrado por instituições punitivas e tutelares até que se tornassem
adultos, por meio da inserção no mercado de trabalho e da constituição de
família. Depois de 2016, as políticas públicas e os espaços de participação
dos jovens começaram a retroceder e está-se diante do risco de a juventude
voltar à condição de invisibilidade e de distanciamento em relação ao
poder de décadas atrás (D’ANDREA, 2013).
O presente texto pretende discutir brevemente como houve
uma mudança na percepção social sobre a juventude e como o ativismo
social, sobretudo por meio da voz periférica presente nos grupos de hip
hop permitiu uma nova consciência crítica dos jovens em relação à sua
própria situação de subordinação social e de violência policial. Mais do
que mera denúncia, a cultura periférica constituiu um habitus social do
jovem em termos da sua consciência em relação ao discurso da ordem e
da segregação social, econômica, racial e de gênero
2
. Mas os desaos são
muitos e não basta a expansão da consciência da juventude em relação
à sua situação de subordinação. O resultado das eleições presidenciais,
que colocou no poder um representante da extrema-direita, portando um
discurso de limitação de direitos sociais e de perseguição às minorias, traz
questionamentos acerca de como os jovens e a cultura periférica, marcada
por ambivalências, enfrentarão o desao que se apresenta diante de si.
O conceito de habitus social foi cunhado por Norbert Elias para dar conta dos comportamentos que se
estruturam a partir da relação do indivíduo com a sociedade. O habitus forma assim padrões previsíveis que têm
implicações culturais, sociais e políticas, como na comparação que o autor faz entre o chamado ethos guerreiro
medieval (imoderação e espontaneidade) e a moderna sociedade dos costumes (moderação e controle psíquico)
(ELIAS, 1993).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 165
juventude e culturaS juvenIS na ModernIdade
A juventude é ao mesmo tempo uma experiência social e
uma forma de representação desta experiência. Contudo, nem sempre
coincidentes, motivo pelo qual Bourdieu (1983) fez uma famosa
provocação, dizendo que juventude é só uma palavra. Ariès (1978) foi um
dos primeiros a questionar o fundamento biológico das faixas etárias e
mostrar as transformações históricas que levaram à invenção da infância,
destacada do mundo adulto a partir, sobretudo, da constituição da escola e
dos cuidados com a puericultura. A criança foi isolada do mundo adulto,
sendo submetida a uma quarentena, uma clausura, tal qual prisioneiros,
monges, loucos e leprosos descritos tão bem por Michel Foucault em
Vigiar e Punir (1987) e na História da Loucura (1978).
Esta ideia de quarentena ou de moratória para entrar na fase
adulta é constitutiva da modernidade ocidental e vai se estender para os
jovens, ou seja, para os grupos humanos situados entre a fase da infância
e a fase adulta. É a chamada invenção da juventude, que, evidentemente,
trouxe consequências para a atual concepção da vida humana dividida
em fases e com ênfase na faixa etária como um componente naturalizado.
Hoje, a questão da vida dividida em fases tornou-se mais complexa e
reexiva na medida em que se pode fazer uma distinção entre moratória
social (construída) e moratória vital (biológica). Claro que mesmo a ênfase
no caráter biológico do desenvolvimento humano pode sofrer variações em
termos dos padrões culturais, cientícos e médicos. Desta forma, a idade
(ou faixa etária) como condição natural (ou demográca) nem sempre
coincide com a idade como condição social (DAYRELL, 2003). Este é um
dos pontos centrais para a discussão contemporânea sobre juventude.
Pelo exposto, nota-se que a juventude é vista como um estado de
transição entre o mundo doméstico e familiar, portanto protegido, e entre
o mundo público e o do trabalho, portanto desprotegido. Como período
transitório, a normalidade da condição juvenil é ser superada no tempo
cronológico-social adequado, de forma que o jovem apenas se realiza
quando passa à fase adulta. A não coincidência entre faixa biológica e social
foi tratada na história como desvio, anormalidade, e como problema social:
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
166 |
A maior parte dos estudos que se debruçam sobre o problema
da delinquência juvenil ressalta o caráter de resultado de um
defeito” no processo de socialização, provocado por disfunções
no sistema social, e é marcada por uma perspectiva corretiva, que
aponta para a necessidade de ‘saneamento’ das patologias e para a
busca da reintegração desses jovens nos padrões de normalidade.
(ABRAMO, 1994, p. 56).
Então, a juventude, sobretudo a das classes subalternas, é vista
como uma categoria negativa, construída historicamente como um
problema. As denições de infância, adolescência e juventude mudam na
história e são relativamente arbitrárias, não correspondendo ao conjunto
das pessoas e dos grupos denidos por meros conceitos. Para além de
uma fase, a juventude é vista a partir de experiências compartilhadas por
determinados grupos, em lugares e tempos especícos, sendo assim, uma
forma de experiência coletiva compartilhada e signicativa (SALLAS;
BEGA, 2006).
A adoção, pelos pesquisadores, da noção de culturas juvenis
ultrapassa os modelos anteriores na medida em que permite ver os jovens
como sujeitos históricos e plurais. Além disto, o conceito de cultura
juvenil agrega à juventude um sentido político de resistência. Com este
conceito, a juventude pode ser, nalmente, analisada e compreendida a
partir dos marcadores sociais de classe, região, religião, raça, etnia, gênero
e sexualidade. As inexões socioculturais e políticas são determinantes para
a experiência dos jovens. Sendo assim, é preciso levar em consideração
a condição juvenil, ou seja, as características concretas que denem as
experiências compartilhadas daqueles grupos sociais que se autoidenticam
como jovens. A juventude é, portanto, um conjunto relacional denido
pelos limites e possibilidades dos jovens em interação com adultos e com
outros grupos jovens (AZEVEDO, 2019; GROPPO, 2017; SALLAS;
BEGA, 2006).
Esta mudança de sentido é importante porque mostra que as
denições e os lugares atribuídos à juventude sempre foram, e em grande
parte ainda são, determinados pelos adultos. A juventude carrega um
sentido político, pois remete à distribuição desigual de poder em nossas
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 167
sociedades. A luta dos jovens gira em torno do seu reconhecimento como
sujeitos sociais e políticos, em suma, como sujeito de direitos.
A literatura sociológica europeia e latino-americana tem presente
uma forte constatação: os marcadores tradicionais da entrada
na idade adulta implodiram. Rompe-se com aquela expectativa
criada na primeira modernidade, na qual a juventude ndava
com a saída da escola, a entrada no mercado de trabalho,
a união conjugal, a saída da casa dos pais ou responsáveis e a
experiência de paternidade ou maternidade. Experiências mais
ou menos simultâneas que marcavam a entrada na maturidade.
As transições à suposta maturidade se tornam labirínticas e
reversíveis (GROPPO, 2017, p. 11).
Desta forma, a juventude deixa de ser vista como uma experiência
universal e normativa segundo a qual a passagem para a fase adulta obedece
a determinados ritos de passagem. Na verdade, trata-se agora de um
rito de impasse, já que o casamento, os lhos, o emprego e a educação
formal não garantem mais a entrada na fase adulta. E, para muitos
grupos sociais subalternos, a entrada na fase adulta se dá antes mesmo
da maturidade, pois os jovens ingressam cedo no mercado de trabalho,
assumindo responsabilidades no sustento da casa, e as jovens muito cedo
experimentam a maternidade, o cuidado com seus irmãos pequenos e os
afazeres domésticos em suas residências ou fora delas. Sem contar que a
experiência com a sexualidade e até mesmo com a prostituição se inicia
muito cedo na vida de um grande número de jovens mulheres.
Em razão das transformações recentes ligadas tanto ao mercado
de trabalho quanto às condições concretas em que a juventude é
experimentada, surgem as chamadas gerações de fronteira: jovens, jovens
adultos ou os jovens que não trabalham e não estudam (PAIS, 2009).
Ainda há que se debruçar também sobre o ingresso ‘precoce’ dos jovens no
mundo do crime e sua internação em instituições que forçam a passagem
para a vida adulta (também no crime) para o cumprimento de medidas
socioeducativas ou prisões (TEIXEIRA, 2015).
Nas sociedades contemporâneas, ocorre mesmo uma obsolescência
daquele modelo de socialização no qual as gerações mais velhas transmitiam
experiências passadas às mais novas para ordenar e domesticar o futuro. As
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
168 |
gerações mais jovens passam a questionar os valores, as hierarquias e o
poder dos adultos, de maneira que não é mais possível, portanto, ter uma
visão ingênua sobre as relações entre as faixas etárias. Ao mesmo tempo, é
importante considerar o novo quadro social e analítico da juventude.
Tomar os jovens como sujeitos não se reduz a uma opção teórica.
Diz respeito a uma postura metodológica e ética. [...] ver e lidar
com o jovem como sujeito, capaz de reetir, de ter suas próprias
posições e ações, é uma aprendizagem que exige um esforço de
autorreexão, distanciamento e autocrítica. (DAYRELL, 2003,
p. 44).
As imagens da juventude como perigo e da juventude como
transição, combinadas, reforçam o poder das instituições sociais e dos
adultos sobre os jovens, tratados como seres vulneráveis ou incapazes, porque
ainda incompletos, em formação. Tendem a desconsiderar as perspectivas
distintas dos jovens acerca do mundo e do tempo, desvalorizadas diante da
suposta superioridade da “experiência” dos adultos. Dicultam o diálogo
entre as gerações, porque levam a pensar que os adultos nada têm a aprender
com os mais jovens. (GROPPO, 2017).
juventude e vIolêncIa no BraSIl
Os dados nacionais para o ano de 2009 não deixam dúvida: os
jovens são as maiores vítimas da violência, sendo que a morte de jovens
negros se destaca. Os jovens brancos do sexo masculino apresentam taxa
média de 138,2 mortos por causas externas para cada grupo de 100
mil habitantes. Os jovens pretos apresentam taxa de 206,9 e os pardos,
190,6. Quando analisadas apenas as mortes por homicídio, a taxa para
os jovens brancos foi de 63,9 por 100 mil habitantes, os jovens pretos
de 135,3 e os pardos, 122,8. Na faixa etária de 18 a 24 anos, os jovens
brancos apresentam taxa de 74,3, enquanto entre os jovens pretos a taxa
era de 163,1 e entre os jovens pardos, de 145,5 (CASTRO et al., 2009,
p. 32-33). Ou seja, as vítimas da violência letal, incluindo a violência
policial, em geral, são jovens do sexo masculino, pobres e não brancos,
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 169
com poucos anos de escolaridade, que vivem nas áreas periféricas das
grandes cidades brasileiras
3
.
Todo um caminho foi percorrido pela pesquisa acadêmica sobre
juventude, desde Gregori (2000) e Diógenes (1998). Nas pesquisas, os
jovens foram associados à violência, mas aos poucos o sentido da violência
passou a mudar e os jovens começaram a ser reconhecidos como produtores
de saberes, de culturas, de vivências que ultrapassam os marcos de uma
concepção meramente negativa da juventude. Castro (2009) mostra como
as políticas públicas naturalizaram a relação entre juventude e violência,
embora esse desao ainda seja grande em relação às pesquisas sobre
medidas socioeducativas e sobre a participação dos jovens no mundo do
crime e do tráco de drogas, mas as mudanças começam a surgir também
neste campo de estudos (SOARES, 2004). Neste sentido, tem razão
Adorno (2010) quando diz que as primeiras abordagens sobre o jovem
estão relacionadas às agendas públicas em torno do “problema do jovem”.
A mudança de abordagem das pesquisas caminhou na direção de pensar
menos em políticas públicas para os jovens e mais em políticas públicas dos
jovens, assumindo que eles devem ser ouvidos, pois são agora considerados
sujeitos sociais e políticos.
A juventude passou a ser analisada a partir de diversos campos
do saber e da atuação das políticas públicas. Os temas mais importantes
emergiram no contexto dos anos 1990 em razão das pesquisas realizadas
pela Unesco no Brasil (SALLAS; BEGA, 2006). Desde então, órgãos
públicos e pesquisadores ajudaram a criar um campo de pesquisas sobre
juventude que permitiu isolar a condição juvenil no Brasil. Em outros
contextos, as pesquisas da área da antropologia zeram sondagens que
permitiram compreender as diferentes culturas entre os jovens, sobretudo
no contexto das periferias das principais capitais do país.
O debate sobre juventude e violência não pode se furtar a analisar, entre outros, a questão do recrutamento
de jovens para atividades criminosas e as facilidades ainda vigentes para se obter arma de fogo no país, bem
como o processo de educação e formação dos jovens em meio a um contexto de banalização da violência
ou a uma dinâmica férrea da reprodução das desigualdades e da exclusão social. Como em todo o processo
de reconhecimento, a armação da identidade e sua signicação para o próprio jovem só se fazem perante
o outro e o grupo mais amplo, e necessita, portanto, ser defendida, ainda que por meio da violência. Não
se quer com isto reduzir a violência à sua dimensão simbólica apenas. Anal, se o fenômeno se alimenta da
sobrevalorização social do ethos guerreiro, da frustração em relação à possibilidade de realização dos padrões
sociais ou da simples necessidade de se fazer reconhecer pelo outro, este também está relacionado, como já se
discutiu, à disponibilidade de armas de fogo, à impunidade, à precariedade do controle social sobre o jovem e à
própria banalização social da violência (FERREIRA et al., 2009. p. 201-202).
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170 |
Segundo Maria Rita Khel (2004), a juventude é uma idade crítica.
Para a psicanalista, isso quer dizer que, em uma sociedade que redene
as identidades coletivas em termos de subjetividades isoladas de qualquer
contexto, os jovens são tornados categoria a ser apropriada pelo mercado
de consumo. Ocorre então, sobretudo para a juventude periférica, um
esvaziamento da experiência coletiva: de um lado, está a ostentação pelo
consumo, de outro, a violência pelos marcadores sociais da masculinidade,
como é o caso do machismo e da cultura do corpo violento. Mas, “a violência
entre as gangues da periferia, diferentemente de outros modos de expressão
da violência juvenil, representa uma tentativa de demarcação e expressão
da existência de todos aqueles que se sentem banidos e exilados, seja das
vantagens econômicas, seja dos valores de uma ordem social segmentada e
excludente” (DIÓGENES, 1998, p. 164).
Em pesquisa realizada por Abramovay e outros (2010), com
grupos juvenis do Distrito Federal, aborda-se a questão da busca por
reconhecimento, a exaltação do sentimento de pertença aos grupos e a busca
por prestígio social. A relação entre gangues é pautada pela valorização da
coragem, da fama e da lealdade ao grupo, de forma que a estigmatização
das gangues urbanas contribui para a reprodução de estereótipos, riscos,
marginalização e violências. É preciso compreender a cultura juvenil no
que diz respeito à participação dos jovens em gangues, que se dá em razão
das relações de amizade, objetivando respeito, fama, proteção, poder e
algum ganho de ordem material. No interior das gangues, os jovens usam
sua arte (música, dança e grate) como crítica e experimentam. Os jovens
atuam, constituem corporalidades e se territorializam; o espaço urbano
é marcado assim como os corpos são signicados. Nesta mesma direção,
a experiência das gangues torna-se assim um modo de ‘inclusão’ social
às avessas cujo passaporte é a violência e a marca cultural é o território
(DIÓGENES, 1998, p. 32).
A cena da cultura juvenil periférica é essencialmente masculina,
mas as jovens começam a aparecer mais neste espaço de poder masculino.
A mulher é colocada em seu lugar e enfrenta preconceitos. Elas, então,
adotam estratégias para serem aceitas: realizam as mesmas tarefas que
os homens ou aproveitam o “ser mulher” como estratégia também de
reconhecimento, como a valorização da corporalidade e da sexualidade.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 171
Na gangue, as mulheres existem numa proporção de dez homens
para uma mulher. Elas são quase sempre utilizadas entre os
membros masculinos como ‘cheiro do queijo’, qual seja, atraem
um desconhecido e o levam para um local ermo, quando, então,
a gangue entra em ação. Observa-se entre as gangues a produção
de um discurso marcado pelo preconceito e estigma em relação à
condição feminina em que o termo mais recorrente, que se referem
às mesmas, é as vadias. (DIÓGENES,1998, p. 112-113).
Embora as jovens estejam mais presentes nos cenários das
gangues urbanas, em grande parte sua presença oscila entre a manutenção
dos estereótipos (no interior das masculinidades) ou no desao ao poder
dos jovens, procurando fazer o mesmo que eles. Elas ainda são minoria nos
movimentos culturais das culturas juvenis, como é o caso das bandas de hip-
hop, mas estão mais presentes, e de forma mais signicativa, no entorno da
cena das bandas: em shows, eventos e campanhas (ABRAMOVAY, 2010;
WELLER, 2005)
4
.
E é interessante o contexto dos bailes funks cariocas, nos anos
1980 e 1990. Em meio à violência naturalizada dos morros do Rio de
Janeiro, os bailes, animados pelos DJ’s mais conhecidos na área, são formas
ritualizadas da violência, conformando toda uma cultura da festa e do lazer
para aqueles que ressignicam o sentido da periferia. Anal,
em todos os ns de semana, no Grande Rio, são realizados, em
média, setecentos bailes onde se ouve música funk. Segundo
seus próprios organizadores, um baile com quinhentas pessoas é
considerado um fracasso. Cada uma dessas festas atrai, também em
média, mil dançarinos. Pelo menos uma centena de bailes reúne
um público superior a 2 mil pessoas. Alguns deles costumam ter de
6 mil a 10 mil dançarinos. Fazendo as contas, por baixo, é possível
armar que 1 milhão de jovens cariocas frequentam esses bailes
todos os sábados e domingos. Um número por si só impressionante:
O hip-hop se disseminou de uma forma espantosa desde meados dos anos 1990. Embora a maioria dos
grupos seja composta por homens, desde os anos 2000, mulheres, grupos de mulheres e grupos mistos estão se
tornando mais comuns na cena musical e cultural periférica. O hip-hop vem sendo, desde então, incorporado a
outros estilos musicais e tem saído do seu lugar de origem que são as periferias urbanas. Há hoje mais músicos
brancos e até mesmo grupos indígenas. Mas a característica marcante continua sendo a linguagem dos jovens das
quebradas. Cf. ARTISTAS de Rap nacional. Last.fm. Disponível em: https://www.last.fm/pt/tag/rap+nacional/
artists. Acesso em: 24 jul. 2019.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
172 |
nenhuma outra atividade de lazer reúne tantas pessoas, com tanta
frequência. (VIANNA, 1988, p. 11)
5
.
É impressionante como a imprensa tende a dar ênfase apenas à
violência ou ao efeito aparente de incitação à violência por parte das culturas
juvenis periféricas. Todo um contexto cultural e social está implicado na
cultura dos bailes e da música. Neste sentido,
o baile funk, ao espetacularizar a violência, publiciza todas
as tensões sociais que se acirraram na condição juvenil dos
moradores da periferia no nal do século XX. A violência passa a
funcionar como um modo de dar visibilidade a conitos e tensões
que permaneceriam virtuais, ignorados se não houvesse o baile
como local de encenação de uma violência que pulsa no cotidiano
dos bairros mas que não encontra, na sua territorialidade, formas
de manifestação de todo o seu potencial, de toda a sua energia.
A violência atua como um mapa cultural. (DIÓGENES, 1998,
p. 32).
Sendo assim, a cultura juvenil periférica encontra elementos para
curar as feridas da violência econômica, social e policial mais ampla com a
incorporação da linguagem expressiva da música e das atividades artísticas
em um cenário de segregação e de estigmatização.
culturaS juvenIS e o hIp hop
Favela no Brasil, poblacione no Chile, villa miseria na Argentina,
cantegril no Uruguay, rancho na Venezuela, banlieu na França,
gueto nos Estados Unidos; as sociedades da América Latina,
da Europa e dos Estados Unidos dispõem todas de um termo
especíco para denominar essas comunidades estigmatizadas,
situadas na base do sistema hierárquico de regiões que compõem
uma metrópole, nas quais os parias urbanos residem e onde os
problemas sociais se congregam e infeccionam, atraindo a atenção
desigual e desmedidamente negativa da mídia, dos políticos e dos
dirigentes do Estado. São locais conhecidos, tanto para forasteiros
 Esta discussão é ampliada e está muito mais aprofundada em Vianna (1997).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 173
como para os mais íntimos, como “regiões problema”, “áreas
proibidas”, circuito “selvagem” da cidade, territórios de privação
e abandono e serem evitados e temidos, porque têm ou se crê
amplamente que tenham excesso de crime, de violência, de vício e
de desintegração social. Devido à aura de perigo e pavor que envolve
seus habitantes e ao descaso que sofrem, essa mistura variada de
minorias insultadas, de famílias de trabalhadores de baixa renda e
de imigrantes não-legalizados é tipicamente retratada à distância
em tons monocromáticos, e sua vida social parece a mesma em
todos os lugares: exótica, improdutiva e brutal. (WACQUANT,
2005, p. 07).
Apesar do cenário exposto, os relatos dos pesquisadores e as letras
das músicas de rap e de hip hop revelam uma realidade mais matizada,
cheia de signicações, de experiências que ultrapassam os limites estreitos
dos preconceitos e estigmas produzidos pelo olhar de fora. No mundo
das experiências dos jovens de periferia, a segregação e a violência são
produzidas pelas instituições estatais e pelas elites que não enxergam o
mundo rico de experiências a não ser pela grande imprensa e de suas
janelas blindadas. Todo um universo de uma cultura juvenil se descortina
para quem é de dentro ou para quem pretende olhar a partir de dentro.
A distinção feita por Elias e Scotson (2000) entre estabelecidos
e outsiders parece ser frutífera nessa comparação, posto que os jovens
periféricos, sendo os eternos outsiders, começam a ver o centro a partir da
periferia e o efeito é surpreendente, como o produzido pela literatura de
Lima Barreto
6
.
Não é preciso repetir aqui que o hip-hop e o rap têm uma origem
comum ligada à armação identitária da cultura negra dos guetos urbanos
americanos. Tanto o rap, mais ligado à musicalidade e à originalidade
das letras das músicas, quanto o hip hop, mais ligado às performances
musicais presentes nas festas funks americanas, expressam uma interessante
O que espanta na atividade literária de Lima Barreto é sua coerência em todas as modalidades de escritos e o
estilo de texto enxuto, preciso, direto, jornalístico e confessional. Ele escreve como se transpusesse as conversas
que ouve em suas andanças pela cidade, sobretudo a conversa dos moradores do subúrbio. Ele também tem um
estilo sardônico, desabusado, satírico, desbocado. E tem ironia e crítica visceral à desfaçatez dos poderosos da
Primeira República. Característica marcante da sua obra: ela é testemunhal. É um tipo particular de testemunho,
de um estrangeiro em sua própria sociedade, de um morador de subúrbio, de um aneur negro engajado. Ou
seja, um negro escritor que olha a cidade a partir da periferia, que olha a república a partir dos mocambos.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
174 |
continuidade da musicalidade afro-americana cujas origens estão no Blues,
no Jazz, no Rhythm & Blues e na Soul Music.
Embora sejam manifestações culturais essencialmente urbanas,
expressam este sentimento de pertença, caracterizam-se pela alternativa
à música de mercado e apresentam forte componente de autoarmação
do black power. Essas tendências, quando chegaram ao Brasil, parece que
não constituíram uma continuidade com a música popular brasileira,
sobretudo o samba e a bossa nova. Na verdade, pode-se até armar que o
rap e o hip hop parecem ter encontrado nos repentistas do nordeste sua
anidade eletiva mais imediata. Em todo o caso, estas músicas e formas de
expressão culturais foram reforçadas nas performances periféricas, em que
os DJ’s e os MC’s tinham papel importante, no contexto da disseminação
dos bailes funks e dos encontros musicais alternativos das favelas, morros
e periferias.
O hip-hop está ligado etimologicamente ao movimento dos
quadris, ou seja, à dança, à festa. Se hoje a expressão remete a um
movimento cultural no geral bastante politizado, isso foi uma
construção posterior. Rap costuma designar apenas a música,
enquanto hip-hop se tornou o termo mais geral, que engloba
também dança, moda, grate, estilo de vida e atuação política -
muitas vezes se fala em “movimento hip-hop”. Em todo caso, o
ponto que interessa destacar é que as dimensões festivas e críticas do
rap e do hip-hop não são tão facilmente separáveis. (TEPERMAN,
2015, p. 20).
Mais que uma cultura ou uma apologia à violência, o que se
observa nas gangues periféricas, e nos grupos de hip-hop, é uma prática
de ressignicação em que a violência ganha uma conotação identitária
que reforça a legitimação da resistência na forma de uma poética/estética
de conversão e de luta. “As gangues (e o movimento hip hop) parecem
congregar todos os ‘desenraizados’, os ‘sem lugar’, os ‘sem referência
no código de ‘valores dominantes’ e ensejar uma forma coletiva de
territorialidade e reconhecimento” (DIÓGENES, 1998, p. 170).
As armas da periferia são sua poesia, como diz Mano Brown. A
música, neste sentido, tem o papel de instrumento educativo e também de
consciência social em que se articulam a juventude, a quebrada, a negritude
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 175
e as masculinidades, fazendo com que, talvez, o símbolo mais duradouro
destas novas culturas juvenis seja a ideia de irmandade ou fraternidade
– sendo esta constituída como um critério de identidade periférica: a
fraternidade dos manos (e das manas).
Mas é claro que, no contexto da violência legitimada pelas
estruturas organizadas do mundo do crime, a noção de irmão ou de
irmandade tem um conteúdo também problemático, pois não se coloca
apenas como confronto com a polícia, mas também como estratégia
de gestão hegemônica do crime (DIAS, 2012; DIÓGENES, 1998).
Neste universo, crime e lei, ordem e desordem, não são polarizações
irreconciliáveis, e esta característica está presente nas músicas do hip-hop.
Sobre a relação entre juventude e violência, muito já foi dito e muito ainda
há de ser pesquisado. No entanto, a cultura da violência (e o ethos guerreiro)
é parte integrante da condição juvenil negra e periférica. Esta potência de
vida que se coloca como crítica à violência genocida do estado está presente
na obra dos Racionais MC’S, por exemplo (OLIVEIRA, 2018)
7
.
Desde o princípio o rap nacional vai se reconhecer enquanto gênero
cantado por negros que reivindicam uma tradição cultural negra por
meio de um discurso de demarcação de fronteiras étnicas e de classe
que denuncia o aspecto de violência e dominação contido no modelo
cordial de valorização da mestiçagem. (OLIVEIRA, 2018, p. 25).
Sendo assim, o rap e o hip-hop não são apenas expressões musicais anadas
aos gostos da periferia e que acabaram ganhando a atenção da indústria
cultural. São músicas, danças e performances culturais que expressam um saber
compartilhado, uma vontade de superação da segregação e da humilhação.
Denem-se a partir de um lugar de fala subalterna e negra (fala tensa e densa,
recortada, cheia de gírias, repleta de aliterações) que reete as incertezas da vida
periférica. Ao mesmo tempo, elas disseminam críticas à violência do estado e
aliciam os jovens periféricos para sobreviverem no campo de batalha
8
. É uma
música guerreira, mas que almeja a paz, o cessar fogo, sem ser ingênua.
 O que dá unidade ao movimento hip-hop, além da origem e do lugar periférico de seus artistas, é a crítica e a
denúncia severas às injustiças sociais e à violência policial. Mas é evidente que há uma diversidade de grupos e
de músicas e não é o propósito deste ensaio fazer um balanço de todas as características do movimento. Toma-se
aqui o exemplo do álbum “Sobrevivendo no inferno”, dos Racionais, para fazer a reexão.
As canções de grupos de artistas como Racionais MC’S, Sabotage, RZO, Facção Central, Pavilhão 9, Dexter,
entre outros, não são apenas uma representação das condições de vida da periferia e um diagnóstico da falência
do projeto nacional, mas um modelo de compromisso com a vida e valores dos marginalizados, cujo destino
condiciona a qualidade da obra, quando esta é bem sucedida. (OLIVEIRA, 2015, p. 07).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
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A música pretende, assim, transpor a guerra para o plano do
discurso e desarmar, pela lírica e pela sonoridade, o mundo militarizado
que cerca as periferias. “O texto (das letras dos Racionais MC’S)
almeja partilhar uma sabedoria construída coletivamente pela periferia,
integrando-a à vivência dos sujeitos” (OLIVEIRA, 2018, p. 32). Por esta
razão, a disseminação da cultura hip-hop tem esta potência transformadora
junto aos jovens, porque não é apenas denúncia ou revanche, é expressão
de um novo habitus social em ruptura com o modelo da cordialidade da
casa-grande e da senzala; é a fala candente e cadenciada de centenas de
novas repúblicas de palmares.
Logo, o hip-hop não é apenas uma forma de expressão musical,
mas um chamado que expressa uma cultura juvenil que emerge das
experiências limites da violência nas comunidades periféricas e que atinge,
sobretudo, os jovens negros
9
. “Observa-se que o movimento hip-hop se
utiliza dos mesmos referenciais das gangues e galeras, porém, invertendo
o lema da violência para a dimensão da consciência” (DIÓGENES,
1998, p. 121).
Trata-se mesmo da consciência e da resistência às estratégias da
necropolítica periférica (MBEMBE, 2019), que produzem dezenas de
milhares de mortes de jovens negros, que, para além dos grandes massacres
produzidos (e impunes) dos anos 1990 e 2000, agora são rotinizados e
naturalizados. As letras das músicas expressam esta constatação:
Um dia um PM negro veio embaçar
E disse para eu me pôr no meu lugar
Eu vejo um mano nessas condições, não dá
Será assim que eu deveria estar?
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda, sozinho
Transforma um preto tipo A num neguinho
Minha palavra alivia sua dor, ilumina minha alma
 Esta discussão é aprofundada em seus mais diferentes aspectos por Oliveira (2015).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 177
Louvado seja o meu Senhor
Que não deixa o mano aqui desandar
E nem sentar o dedo em nenhum pilantra
Mas que nenhum lha da puta ignore a minha lei
Mano Brown
A denúncia ainda é parte do eixo das canções e reete a consciência
de que algo errado está ocorrendo no interior desta naturalização da
violência contra os jovens negros periféricos. Denúncia e consciência,
nunca aceitação e resignação. É uma expressão da periferia, mas projeta a
universalidade de uma postura pós-colonial: “Na esperança da periferia eu
sou mais um / Uma bala vale por uma vida do meu povo / Quantos manos
iguais a mim se foram? / Não quero admitir que sou mais um / Um corpo a
mais no necrotério, é sério / Um preto a mais no cemitério, é sério”, no texto
de Edi Rock.
Esta linguagem musical tem acordes que propõem uma tomada,
portanto, de consciência e que se coloca na contramão da violência
naturalizada. “É como se o hip-hop tivesse sido forjado como alternativa mais
próxima às práticas ensejadas pelas gangues e projetasse, através da inversão
dos referentes, uma mudança radical.” (DIÓGENES, 1998, p. 123).
O hip-hop eleva o tom da crítica às injustiças sociais mais amplas
na medida em que para cada morte, cada cova, há uma família e uma mãe
que perderam um lho.
Dois de novembro, era Finados
Eu parei em frente ao São Luiz do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um
E o que todas as senhoras tinham em comum?
A roupa humilde, a pele escura
O rosto abatido pela vida dura
Colocando ores sobre a sepultura
Podia ser minha mãe.
Mano Brown
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
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A violência juvenil no Brasil está naturalizada nos discursos
ociais e nas práticas institucionais. Igualmente, há a associação tácita da
cultura juvenil (e do lazer) como pertencente ao universo das atividades de
tempo livre. Nesse sentido, cultura e lazer não estariam relacionadas nem
ao tempo da produção, nem ao tempo da participação política. É como
se os jovens, ao estarem fora do mercado de trabalho e, portanto, fora do
mundo adulto, tivessem no tempo livre a possibilidade de realizarem as
atividades pertencentes ao mundo do crime e da violência.
Nesta perspectiva, os jovens seriam objeto de políticas públicas no
momento e nos espaços da cultura e do lazer. Não por menos, as políticas
públicas voltadas para a juventude, no que diz respeito ao rompimento
do ciclo da violência, concebem estratégias de ocupação do tempo livre
dos jovens com atividades legitimadas socialmente. Esta é uma perspectiva
que não considera as diferentes formas das culturas juvenis ao reduzirem
cultura às atividades culturais também legitimadas pelo mundo dos adultos
(BRENNER; DAYRELL; CARRANO, 2005).
É o que demonstra a etnograa realizada por Azevedo (2019)
em um bairro periférico de uma cidade da grande Curitiba. Embora os
projetos sociais tenham como foco ocupar o tempo livre dos jovens em
horário alternativo à escola e em complementação às atividades escolares,
o tempo vivencial e as atividades dos jovens ultrapassam estas demarcações.
Os espaços e os tempos são plurais e os jovens circulam, conversam e se
articulam para além do que está previsto nas políticas públicas. Há, na
verdade, todo um entrecruzamento de sociabilidades, afetos, moralidades,
drogas, códigos de honra que, junto com a música e com os esportes,
promovem um continuum entre escola, lazer e cultura juvenil.
Por isso, a importância de que os estudos privilegiem a visão dos
jovens sobre o bairro periférico e sobre suas experiências, pois eles têm
consciência da discriminação territorial, social e racial de que são vítimas,
da mesma forma como expressam as músicas do hip-hop. Mais ainda, os
jovens demonstram consciência da existência da violência, da violência
policial e das drogas. Ou seja, no universo da periferia, os jovens sabem
fazer distinção entre o crime, os criminosos e como conviver no cotidiano,
revendo estigmas e negociando os espaços e territórios.
As mesmas descobertas desta identidade, que envolvem o
reconhecimento de sua não pertença à cidade e ao mundo dos brancos de
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 179
classe média, foram observadas em outras pesquisas (DIÓGENES, 1998).
Anal, a “dimensão da violência não pode ser pensada de forma dissociada
do contexto juvenil dos bairros de periferia” (DIÓGENES, 1998, p. 26).
conSIderaçõeS fInaIS
Para terminar, sem necessariamente concluir, uma série de livros,
documentários e lmes esboçam a realidade da vida das populações
subalternas nas grandes periferias brasileiras e em sua relação com as
instituições da ordem, sempre marcadas pela violência e pela discriminação.
Começando pelo clássico Pixote, a lei do mais fraco (1981), de Hector
Babenco, passando por Notícias de uma guerra particular (1999), de
João Moreira Salles, chegando nos blockbusters, Cidade de Deus (2002),
de Fernando Meirelles, Carandiru (2002), de Hector Babenco, e Elite da
Tropa (2007), de José Padilha, a juventude é retratada de forma lateral e
imersa em um jogo de violência que delimita os espaços urbanos entre o
crime, sobretudo o tráco, as gangues e a polícia.
O jovem se tornou foco de atenções mais recentemente no
documentário Falcão, meninos no tráco (2006), de MV Bill e Celso
Athayde. No lme , embora o jovem ainda apareça de forma individualizada,
percebe-se uma cultura juvenil que marca o sentido de pertença dos
jovens ao território periférico a partir de uma performatividade violenta
expressa na posse da arma, nas tatuagens, no estilo de vida, na linguagem,
na corporalidade e na música
10
. A cultura juvenil periférica, exemplicada
pelo hip-hop, opera, então, uma inversão da ordem urbana burguesa, pois,
ao invés de ocupar os espaços privados e fechados em si mesmos, a cultura
juvenil periférica atua nos espaços da cidade, ocupando as favelas e bairros,
em uma nova ordem pública.
A polícia, evidentemente, não respeita esses espaços e o tempo
todo para, revista, checa, prende, pune e agride, obrigando os jovens a
permanecerem em seus lugares, a assumirem os espaços a eles destinados,
nestes guetos não murados. Os jovens cam presos nestes espaços
semipúblicos e semiprivados, como no documentário A Ponte (2006),
de Roberto Oliveira e João Wainer, em que a segregação socioespacial da
10
Falcão, meninos no tráco, de MV Bill e Celso Athayde. 2006. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=B-s2SDi3rkY. Acesso em: 23 jul. 2019.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
180 |
cidade de São Paulo é mostrada a partir do rio Pinheiros, que é recortado
por pontes que ao invés de ligarem as regiões da cidade, separam e segregam
a zona sul de São Paulo, produzindo enclaves e separando os espaços, as
sociabilidades e os corpos
11
.
Por m, o que vale para as gangues urbanas também vale para a
linguagem do hip-hop: “percebe-se que ao mesmo tempo em que o território
de atuação das gangues se projeta como lugar ‘subterrâneo’, ele pretende
ganhar visibilidade e expressar, para o ‘mundo ocial’, sua condição de
invisibilidade, ritualizando sua existência” (DIÓGENES, 1998, pg. 166).
Para além do estigma, da violência e da segregação, as culturas juvenis estão
aí para reinventar, desde seu fundamento, a sociedade brasileira.
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Seção Iv
o Mercado fonográfIco
eM tranSforMação
| 185
D   CD:  
  B 
  1980  1990
Eduardo Vicente
Introdução
Fui convidado por Érica Magi e Leonardo de Marchi,
organizadores desse livro, a escrever esse capítulo sobre a indústria
fonográca brasileira nos anos 1980 e 1990, mesmo tema de minha
apresentação no evento do Centro de Pesquisa e Formação do SESC de
São Paulo. Esse também foi o tema da tese de doutorado que defendi,
em 2002, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo
1
. Minha motivação principal, naquele momento, era entender as
mudanças pelas quais a indústria estava passando e o papel dos realizadores
VICENTE, 2002.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p185-204
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
186 |
independentes – que surgiam como a grande força de renovação da
música brasileira – nesse processo.
Logo cou claro que, para discutir essas duas décadas, seria
necessário também debruçar-se sobre um período anterior, no caso, as
décadas de 1960 e 1970, quando padrões fundamentais da atuação da
indústria – como a associação com a televisão, o domínio do mercado
pelas grandes gravadoras internacionais, a estraticação do consumo e a
consolidação do eixo Rio/São Paulo – haviam sido estabelecidos.
Também é importante relacionar as mudanças então ocorridas
no cenário de crise. No caso dos anos 1980, no declínio internacional
da indústria musical, vinculado tanto ao cenário mais geral de recessão
da economia mundial quanto à repentina queda da música disco, que se
tornara a grande aposta das gravadoras no nal dos anos 1970 (FRITH,
1992, p. 67). Em termos nacionais, foi uma década de constantes percalços
econômicos e, musicalmente, marcada pela valorização de um público
jovem, por meio do rock e da música infantil, e do consumo mais massivo
representado pela música romântica e regional.
Os anos 1990 também foram iniciados sob o signo da crise, que
se reetiu na maior concentração econômica do setor e em um acelerado
processo de terceirização das atividades de produção. Por outro lado,
também foi um momento de grande sucesso para a indústria – garantido
pela substituição do LP pelo CD e pela estabilidade econômica trazida
pelo Plano Real. No período, houve a efetiva quebra do eixo Rio/São Paulo
de produção e consumo e, também por isso, a chegada de uma música
mais diversicada e regional ao meio fonográco.
Tenta-se trazer, nesse texto, não apenas uma retomada da tese,
que foi publicada como livro em 2014
2
, mas uma visão mais atualizada
sobre aquele período, depois de quase duas décadas de mudanças radicais
na indústria. Agradeço aos organizadores dessa publicação e, em especial,
à Érica Magi, organizadora do evento, por mais essa oportunidade de
debater ideias e publicar textos. Espero que o SESC possa continuar em
sua missão de manter vivo e atuante esse importante espaço de debate e
reexão representado pelo Centro de Pesquisa e Formação.
Mais que nunca, é preciso pensar.
VICENTE, 2014.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 187
a crISe da vIrada 70/80
Para entender a indústria da música nos anos 1980 – momento
em que ela era, predominantemente, uma indústria do disco – é preciso
retomar o quadro das décadas anteriores, em que ela experimentou um
longo momento de crescimento ininterrupto. No período entre 1966 e
1979, por exemplo, segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores
de Discos, ABPD, a produção em unidades de suportes (discos e tas)
foi praticamente multiplicada por dez, saltando de 5,5 para 52,6 milhões
de unidades (VICENTE, 2006, p. 115). Além disso, a indústria foi
beneciada por uma generosa lei de incentivos scais, criada em 1967, que
permitiu “abater do montante do Imposto de Circulação de Mercadorias
os direitos comprovadamente pagos a autores e artistas domiciliados no
país” (IDART, 1980, p. 118)
3
.
Diante de tais números, percebe-se como foram expressivas as
quedas de produção de -10,6% e -20,8%, registradas, respectivamente,
em 1980 e 1981
4
. A década, na verdade, representou uma autêntica
montanha russa para a indústria. Além de 1981, foram negativos os índices
de produção de 1983 (-9,5%), 1984 (-16,3%), 1988 (-23,1%) e 1990
(-41,3%) e positivos os de 1982 (41,9%), 1985 (5,7%), 1986 (72,3%) e
1989 (37,1%). Esses contrastes reetem a instabilidade política e econômica
de um período em que houve duas maxidesvalorizações cambiais (1979 e
1982), a breve estabilização econômica trazida pelo Plano Cruzado (1986)
e o consco das contas bancárias e de poupança de 1990, no início do
Governo Collor.
Com utuações
5
tão dramáticas, não surpreende que a década
tenha sido marcada pela maior concentração econômica das empresas,
por seu comportamento mais conservador e pela busca de novos públicos
consumidores, e por uma relação mais pragmática com o mercado musical
Em relação à concentração econômica, houve efetivamente uma
redução drástica do número de gravadoras atuantes no mercado. Se, em
 Os discos beneciados pela lei recebiam o selo “Disco é Cultura”.
Todos os dados aqui apresentados, referentes aos anos 1980, têm como fonte a ABPD, Associação Brasileira
dos Produtores de Discos e referem-se a unidades produzidas em lugar do valor de faturamento. Tais dados
foram cedidos diretamente ao autor pela Associação.
Segundo os dados da ABPD, foram 37,2 milhões de unidades vendidas em 1981, o pior ano da década, e 72,9
milhões em 1986, o melhor.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
188 |
1979, as principais empresas eram Som Livre, CBS, PolyGram, RCA,
WEA, Copacabana, Continental, RGE-Fermata, EMI-Odeon, K-Tel, Top
Tape e Tapecar (DIAS, 2000, p. 74)
6
, em 1983, o cenário de crise já atingia
duramente várias delas: a K-Tel, empresa de capital norte-americano,
encerrava suas atividades no Brasil; a Top Tape era absorvida pela RCA,
a RGE pela Som Livre; a Tapecar vendia sua fábrica à Continental e seu
catálogo à RCA; e a Copacabana pedia concordata
7
.
Os efeitos da crise também foram sentidos pelas grandes gravadoras
internacionais, as chamadas majors. A Ariola, ligada ao grupo alemão
Bertelsman, que se instalara no país em 1979 com planos de se tornar
um dos grandes players do mercado, contratando nomes como Milton
Nascimento, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Toquinho & Vinícius,
Marina, MPB-4 e Alceu Valença, entre outros, acabou tragada pela crise
apenas dois anos depois, sendo absorvida pela PolyGram
8
. Também a
WEA (Warner/Electra/Atlantic), que se instalara em 1976 sob o comando
de Andre Midani, viu-se, em 1981, à beira da falência, sendo obrigada a
demitir 400 funcionários e terceirizar diversas de suas atividades
9
.
A queda nas vendas de música internacional também foi um
fator bastante citado para a crise. João Carlos Muller Chaves, então diretor
da PolyGram, armava, em 1980, que o mercado vivia “a ressaca da
euforia de 78. A música discoteca estourou, mas não deixou raízes. É árvore
que você encosta e cai. [...] A música internacional despencou. De janeiro a
julho, enquanto a nacional crescia um ponto, a internacional caiu 29” (O
GRANDE…, 1980).
Diante do cenário desfavorável, a indústria se tornava muito
mais pragmática em suas decisões e seletiva nas contratações. Ana Maria
Bahiana, escrevendo em 1982, refere-se ao m da
A CBS é hoje parte da Sony Music, assim como a RCA que, antes disso, foi parte da BMG. A PolyGram
integra atualmente a Universal Music e a sigla WEA (Warner/Elektra/Atlantic) era a denominação utilizada
naquele momento pela Warner.
MERCADO do disco no fundo do poço. O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 nov. 1981; COPACABANA
não aguenta juros e pede concordata preventiva. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 abr. 1983.
ARIOLA e seus contratos milionários. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 jan. 1980; A ALEMANHA investe
com toda força no mercado brasileiro do disco. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 jan. 1980; NOVO capítulo
da crise do disco, a Ariola agora é da Polygram. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 nov. 1981.
 MIDANI, por trás das portas à prova de som. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27 dez. 1988.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 189
[...] pré-história lírica e ingênua da indústria fonográca [...] em que
as gravadoras se davam ao luxo de seguir temperamentos e ideias às
vezes de um único homem, abrigando e impulsionando movimentos
musicais, projetos experimentais, explorações sonoras (...agora)
a palavra risco foi abolida [...]. Ao departamento comercial, e não
ao artístico, foi dada primazia sobre as decisões. [...] Repertório,
músico, arranjos, que antes eram privilégio exclusivo do artista ou
do produtor ligado a ele diretamente, passaram a ser discutidos em
conjunto por toda a empresa, com importância vital dada às opiniões
do departamento comercial (OS TEMPOS..., 1982).
Nessa nova realidade, as empresas reduziram drasticamente seus
elencos e quadros prossionais, com os investimentos sendo concentrados
em artistas que conseguissem superar a “fatídica marca das 100 mil cópias
(OS TEMPOS…, 1982). E ainda que a tônica dos anos 1980 tenha
sido a da exploração do mercado musical doméstico, isso não implicou
em investimentos na MPB, mas sim no atendimento a novas faixas de
consumidores. Nesse processo, nota-se tanto o surgimento de uma cena
independente mais organizada – gerada, em parte, pela resistência da
indústria em investir em artistas com uma produção mais sosticada e
autoral – quanto a valorização de uma música mais orientada em termos
mercadológicos e destinada ao atendimento a um mercado de consumo
mais jovem por meio, principalmente, da música infantil e do rock. Além
disso, ocorre um importante momento de armação de uma música
romântica e regional que, condenada até então a uma quase invisibilidade
pelas mídias impressa e televisiva, começava a encontrar seu lugar no
cenário musical urbano.
Esses quatro espaços de produção serão a seguir apresentados,
tentando-se apontar para algumas de suas características mais destacadas.
a cena Independente
Ainda que se possa apontar para várias gravadoras e discos, em
momentos anteriores, que poderiam ser denidos como independentes, o
surgimento de um grupo organizado de realizadores que se apresenta sob
essa denominação ocorre no Brasil apenas no nal da década de 1970. E
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
190 |
o lançamento, em 1977, do disco “Feito em Casa”, de Antônio Adolfo,
produzido por seu selo Artezanal, pode ser tomado como seu marco inicial.
Cesare Benvenuti, que respondeu pela distribuição de discos
da gravadora Eldorado e de diversos artistas independentes, atribuiu o
crescimento da cena “à redução do cast das gravadoras provocada pela crise
do mercado fonográco e também pela adoção da política de pequenos
elencos” (DISCO…, 1981). Nesse sentido, a opção pela produção
independente não correspondeu, em relação aos artistas, necessariamente a
uma escolha política e à busca por um distanciamento da grande indústria,
tornando-se, em muitos casos, a única alternativa para o seu ingresso
ou permanência no mercado fonográco. Assim, como observou Helio
Ziskind, em 1982,
[...] o fato da produção independente permitir uma maior liberdade
não signica necessariamente que a música por ela veiculada
seja mais livre, mais avançada ou incompatível com as grandes
gravadoras. Ser independente não é qualidade musical, pode ser
apenas uma contingência.
Por isso, é importante reconhecer o surgimento de uma cena
independente também como uma forma de adequação do mercado
fonográco às novas condições econômicas que se colocavam e, em certo
sentido, de acerto de passo com o cenário internacional, onde a divisão
entre majors e indies – grandes gravadoras transnacionais e gravadoras
independentes locais – já era um padrão bem estabelecido. Ao mesmo
tempo, correspondia à necessidade de atendimento a uma demanda musical
cada vez mais segmentada, à qual as grandes gravadoras, concentradas em
poucos gêneros musicais, nem sempre estavam atentas.
Por outro lado, uma herança fundamental da produção musical
independente nos anos 1970/1980 foi a de artistas que demonstraram
uma maior proximidade com a efervescência cultural e política do período,
marcado pelo início da abertura política e pela permanente contestação
ao regime ditatorial. Nesse sentido, vale observar que a alternativa
independente aproximou áreas artísticas tão distintas como o teatro, o
cinema, a literatura, os cartuns e, claro, a música popular.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 191
No caso de São Paulo, o Teatro Lira Paulistana, criado em 1979
na Vila Madalena (Zona Oeste de São Paulo), não só polarizou o debate
em torno da produção cultural independente, como foi representativo de
suas duas principais vertentes musicais. Sua presença mais signicativa
foi junto à chamada Vanguarda Paulista, mais vinculada à tradição da
MPB
10
, representada principalmente por Itamar Assumpção, Arrigo
Barnabé e pelas bandas Premeditando o Breque (Premê), Rumo e Língua
de Trapo. Ao mesmo tempo, passaram pelo seu palco alguns dos principais
representantes do movimento punk de São Paulo, como Inocentes, Cólera
e Ratos de Porão, além de bandas que iriam alcançar considerável projeção
dentro do rock dos anos 80, como Ira!, Ultraje a Rigor, Magazine e Titãs
11
.
Iná Camargo Costa (1984) atribui o surgimento do Lira ao
diagnóstico de Wilson Souto Jr., um de seus criadores, acerca da “existência de
um público insatisfeito com a produção cultural”, formado principalmente por
[...] estudantes universitários ou já graduados, mais ou menos
atentos às transformações sociais (e políticas) porque vinha
passando o país; um tanto quanto na vanguarda das assim chamadas
mudanças de comportamento [...] mas com um detalhe bastante
signicativo: de baixo poder aquisitivo. (COSTA, 1984, p. 34).
O Lira iria se tornar o ponto de encontro entre esse público
e “uma produção cultural emergente, marginalizada pelos espaços
institucionais e que vinha sobrevivendo em porões particulares, garagens
e consumida apenas pelos amigos mais próximos” (COSTA, 1984, p. 35).
E ainda que o projeto independente dos anos 1980 não tenha sobrevivido
às incertezas da década, com o próprio Lira encerrando suas atividades
e tendo parte de seus artistas absorvida pela Continental, em 1985,
nota-se que a grande retomada da cena independente que ocorreria na
década seguinte demonstraria sua importância como primeira referência
– política, social e artística – para a constituição de um polo autônomo
de produção musical no país.
10
Vinculados, mas a partir de uma perspectiva crítica, que valorizava a ironia, a experimentação e mantinha um
certo distanciamento das preocupações estéticas e do lirismo da MPB tradicional.
11
CISCATI, Rafael. Lira Paulistana, um delírio de porão: livro reúne fotos dos Titãs e outros artistas em início
de carreira. Revista Época, Rio de Janeiro, 16 dez. 2014.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
192 |
a MúSIca InfantIl e o Brock doS anoS 80
O mercado musical infantil tinha sido, até a década de 1980, uma
preocupação bastante marginal da indústria, com as primeiras produções
de sucesso sendo dedicadas mais à narração de histórias do que à música.
Foi nessa linha de trabalho que a gravadora Continental criou, ainda em
1942, a coleção Disquinho, dirigida por João de Barro (Braguinha), que
contava com mais de 70 títulos e foi relançada por décadas, registrando
contos de autores clássicos (e já de domínio público) que uniam narração,
interpretação dos personagens e canções especialmente compostas.
Chapeuzinho Vermelho foi o maior sucesso da série
12
. A editora Abril, desde
pelo menos os anos 1970, também explorava esse mercado através da
venda, em bancas de jornal, de fascículos que traziam discos com versões
em português de produções da Disney.
Já no campo musical, ações de maior destaque parecem só ter
ocorrido a partir também nos 1970, com o lançamento das trilhas de
produções televisivas e teatrais infantis vinculadas, de um modo geral, à
MPB. Esses são os casos de Vila Sésamo (Som Livre, 1973), Sítio do Pica-
Pau Amarelo (Som Livre, 1975), Os Saltimbancos (Philips, 1977), e dos
especiais televisivos, A Arca de Noé I e II (Ariola, 1979 e 1980), e Pluct
Plact Zuuum (Som Livre, 1983), todos produzidos pela Rede Globo.
Mas essas ações isoladas logo foram sucedidas por estratégias
mais agressivas de exploração desse mercado. Tomás Muñoz, presidente
da CBS, explicou, em 1984, a atuação da gravadora nessa área: “há tempos
vem baixando a faixa que mais consome. Era dos 18, passou a ser dos 14, hoje
as crianças de 6 anos já consomem, e muito. Ele entretanto observa que “a
fórmula tem vida curta como toda ideia puramente de marketing
13
.
Muñoz, referia-se em particular ao sucesso da Turma do Balão
Mágico, contratada da gravadora, que apresentava o programa infantil
Balão Mágico, da TV Globo, desde 1982. A Turma também exemplica
o padrão de divisão do trabalho então desenvolvido, com um grupo de
crianças sendo selecionado e treinado para interpretar músicas previamente
compostas e arranjadas
14
. Já ao programa Clube da Criança, criado pela
12
AINDA mais mãe-preta do que professor. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 fev. 1975.
13
AS CRIANÇAS ignoram a crise e os discos infantis ‘salvam’ as fábricas. O Globo, Rio de Janeiro, 24 abr. 1984.
14
Esse modelo seria bastante explorado também pelas boy bands, especialmente depois da chegada ao Brasil, em
1984, dos Menudos, banda criada em Porto Rico, em 1977, por Edgardo Diaz.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 193
Rede Manchete, em 1983, vinculavam-se diversos destaques da música
infantil do período, como o grupo Trem da Alegria (RCA), criado por
Michael Sullivan, e as apresentadoras Xuxa Meneghel e Angélica. Xuxa,
que iria se transferir para a Rede Globo em 1986, apresentar o programa
Xou da Xuxa e gravar pela Som Livre, seria considerada, em 1989, “a maior
vendedora de discos da América Latina, batendo Roberto Carlos e Júlio Iglesias.
E seus dois primeiros discos continuavam ganhando novas edições (sendo que)
os 4 discos que já gravou garantiram uma venda de mais de dez milhões de
LPs” (CRIANÇAS..., 1989).
Já o rock dos anos 80 ou o BRock, para assumir a expressão
criada por Nelson Motta, surge como fenômeno fonográco de maneira
um tanto distinta, representando o ingresso no mundo discográco de
artistas que participavam de uma cena vigorosa mas, até aquele momento,
ignorada pela indústria.
Apesar do curto período em que predominou enquanto segmento
da indústria – de 1982 a 1987, aproximadamente – o rock dos
anos 80 pode ser visto como o mais importante movimento de
renovação da geração que havia caracterizado a MPB dos anos
60 e 70, já que permitiu a formação de um grupo de artistas
de carreira duradoura e vendas mais ou menos constantes.
Trouxe, também, todas as sinalizações da adequação do mercado
fonográco brasileiro ao padrão predominante nos países centrais:
direcionamento da indústria a um público jovem, LP como
formato dominante e vendas baseadas em repertório nacional.
(VICENTE, 2014, p. 118).
Apesar de terem surgido e/ou se apresentado em espaços muitas
vezes partilhados com a cena independente do período
15
, as principais
bandas de rock dos anos 80 estiveram, sem exceções, associadas a
gravadoras: Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Ira!, Ultraje a Rigor,
Titãs, Magazine e Lulu Santos, com a WEA; Paralamas do Sucesso, Plebe
Rude, Blitz e Legião Urbana, com a EMI; RPM, Rádio Táxi, Leo Jaime e
Ritchie, com a CBS; Barão Vermelho, com a Som Livre; Cazuza, com a
PolyGram; Engenheiros do Havaii, com a BMG; entre outros. Além disso,
15
No caso de São Paulo, o Teatro Lira Paulistana e danceterias como “Madame Satã, Carbono 14, Rose Bom-
Bom, Napalm e Rádio Clube. No Rio, fora os bares, o point do rock era o lendário Circo Voador” (DAPIEVE,
1995, p. 31).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
194 |
as bandas eram oriundas de centros bastante especícos. Nos casos aqui
listados, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Esses artistas
não apenas representaram um importante momento de renovação do
elenco das gravadoras, como garantiram a manutenção de sua presença
hegemônica junto a um público jovem, urbano e de classe média que, nas
décadas anteriores, fora o grande consumidor da MPB.
MaSSIva, roMântIca, regIonal...
Uma música impulsionada pelo que José Miguel Wisnik dene
como uma “poderosa corrente de romantismo de massa” (WISNIK, 1979, p.
23) tem sido uma tendência praticamente onipresente no mercado musical
brasileiro. No nal dos anos 1950, no entanto, ela se viu repentinamente
envelhecida, juntamente com o samba-canção, os amores desfeitos e a voz
empostada dos cantores do rádio, a partir do surgimento da Bossa Nova.
O referencial da música romântica seria, em alguma medida, atualizado e
urbanizado, ainda nos anos 1960, pela Jovem Guarda e, mais especialmente,
por Roberto Carlos, que se tornaria por isso o grande vendedor de discos
do país da segunda metade do século XX. Porém, a música romântica de
características mais regionais, denida pejorativamente como “brega”, seria
relegada, no processo de estraticação do mercado musical, às emissoras de
AM e ao consumo das populações periféricas e interioranas, despertando
reduzido interesse das majors
16
. A crise dos anos 1980, no entanto, marca o
início de um radical processo de mudança nessa situação: Benito de Paula é
contratado junto à Copacabana, ainda em 1981, por uma WEA em grande
ofensiva rumo ao mercado popular; e Amado Batista, campeão de vendas
da Continental, transfere-se para a RCA em 1984.
17
Ao mesmo tempo, novos nomes surgem ou alcançam projeção já
sob o controle de majors, como Fábio Jr, Wando e Gilliard, pela Som Livre;
Kátia, Rosana, Márcio Greick e Wanderléia, pela CBS; e José Augusto,
pela EMI. Diante desse quadro, Max Pierre, produtor musical da Som
Livre, armava em 1988 que a meta prioritária das gravadoras passara a ser
a de investir em “música popular romântica
18
.
16
Mas havia exceções: Odair José, por exemplo, integrava o elenco da CBS desde os anos 1970 e a Philips
gravava artistas mais ligados ao “brega” por meio de seu selo Polydor.
17
DISCO, a bolsa ou a vida? Revista SomTrês, jul. 1985.
18
A CONSPIRAÇÃO brega. O Globo, Rio de Janeiro, 18 mar. 1988.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 195
Um aspecto importante da relação entre majors e gravadoras
nacionais
19
tinha sido, até os anos 1980, o de uma certa divisão
do mercado, na qual as primeiras controlavam o consumo urbano,
especialmente o eixo Rio/São Paulo, enquanto as últimas atendiam o
mercado regional e as periferias, que, além de bem mais sensíveis às
crises, consumiam discos econômicos, de menor lucratividade
20
. Essa
divisão era bastante evidente, por exemplo, no caso da música sertaneja,
que se encontrava, até os anos 1970, quase que exclusivamente sob o
controle de gravadoras nacionais, especialmente Continental (pioneira
com a gravação da Turma de Cornélio Pires, ainda como Colúmbia do
Brasil, em 1927), Copacabana e Chantecler.
Em 1981, no entanto, o quadro começava a se modicar,
com representantes da PolyGram reconhecendo que o grande mercado
consumidor de discos estava agora “no interior do país, onde a movimentação
de recursos para a agricultura e a pecuária acaba inuenciando na circulação
do dinheiro” (CRISE, 1980). E esse fenômeno também se expressava nos
meios audiovisuais. Em 1979, por exemplo, há o lançamento de Estrada da
Vida, de Nelson Pereira dos Santos, estrelado pela dupla Milionário e José
Rico, e da série televisiva Carga Pesada, da Rede Globo, protagonizada por
Stênio Garcia e Antônio Fagundes, com trilha sonora que reunia nomes da
música sertaneja e nordestina
21
. Simultaneamente, ocorre também uma
renovação estética do gênero, pela incorporação de instrumentos elétricos
e pela adoção de referenciais da música internacional em substituição aos
ritmos tradicionais (CALDAS, 1977). Além disso, em lugar dos temas
ligados ao cotidiano rural, passa a predominar o que Wilson Souto Jr, então
diretor artístico da Continental, dene como uma “temática romântica
exacerbada” (A EXPLOSÃO…, 1987).
E essa música massiva, regional e romântica será, como apontado
a seguir, a grande aposta da indústria e a chave do extraordinário sucesso
que irá alcançar na década seguinte.
19
Dene-se aqui como gravadoras nacionais as empresas tradicionais, como RGE, Copacabana, Continental,
Rozemblit e Chantecler. A Som Livre, criada em 1971 como braço fonográco das Organizações Globo,
dedicava-se principalmente às trilhas de telenovelas e não estava sujeita à divisão de mercado aqui descrita.
20
Processo discutido de forma mais detalhada em Vicente (2014).
21
OS CAIPIRAS no poder. Folha de São Paulo, São Paulo, 02 set. 1979.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
196 |
oS anoS 1990: aScenSão e queda de uM Modelo aBerto de
produção
Assim como a década anterior, também os anos 1990 iniciam-
se sob a sombra de uma crise. Essa, no entanto, com características bem
mais locais: após o consco promovido pelo Plano Collor, a produção de
unidades caiu, segundo dados da ABPD, dos 76,8 milhões de unidades,
alcançados em 1989, para 45,1 milhões em 1990. Manteve-se estável no
ano seguinte e, em 1992, caiu para apenas 32,1 milhões de unidades
(IFPI, 2001, p. 118).
Esse contexto acabou por intensicar processos já iniciados na
década anterior, como a redução de elencos e quadro de funcionários, a
limitação de novos lançamentos e, principalmente, a concentração do foco
de atuação nos segmentos de mercado e artistas de maior sucesso
22
. Ao
lado dessas medidas, também foi iniciado um processo de terceirização
de atividades e redução de custos de produção, com grande parte da
prensagem de discos sendo concentrada em “apenas três grandes fábricas
e distribuidoras, surgidas de joint ventures entre as poderosas multinacionais
(TEMPOS, 1991). As grandes gravadoras retiraram-se, inclusive, das
atividades de produção musical, dispensando seus produtores – que,
em muitos casos, passaram a atuar de forma independente – e mesmo
vendendo seus estúdios de gravação
23
.
Nesse sentido, a indústria passou a assumir, cada vez mais,
um sistema aberto de produção, no qual as majors concentraram-se nas
atividades de distribuição e divulgação, enquanto as indies dedicaram-se
à prospecção de novos mercados e à formação e desenvolvimento local de
novos artistas que, posteriormente, poderiam ser repassados a gravadoras
de maior porte para a sua promoção nacional e internacional.
Paralelamente, acelerou-se o processo, iniciado na década
anterior, de substituição do vinil pelo CD. A instalação de novas fábricas
no país reduziu signicativamente o custo do novo suporte e, em 1997,
os LPs desapareceram completamente das estatísticas de vendas da ABPD
(VICENTE, 2014, p. 143).
22
INDÚSTRIA fonográca vende menos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 set. 1992.
23
MERCADO fora de rotação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 06 jun. 1992.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 197
Tais ações foram determinantes na denição de algumas das
características do momento de grande crescimento que a indústria
passaria a desfrutar a partir de 1993, com a estabilização econômica do
país propiciada pelo Plano Real. Esse ano, inclusive, marca o início de
uma espetacular retomada, que levará, em 1997, ao recorde histórico de
produção de 107.9 milhões de unidades (IFPI, 2001, p. 118).
A mais importante dessas características será a já mencionada
busca por um mercado mais popular e massivo. Favorecida pela redução
de custos dos suportes musicais trazida pelo CD, a grande indústria segue
no seu processo de “descoberta” da música sertaneja e de valorização do
consumidor de fora dos grandes centros, iniciada na década anterior.
Por conta disso, essa música proverá a trilha sonora dos anos iniciais da
década, levando inclusive à absorção das gravadoras nacionais Copacabana
e Continental, especializadas nessa área, pelas majors EMI e Warner,
respectivamente. São oriundos dessas gravadoras alguns dos principais
nomes da música sertaneja do período, como Chitãozinho e Xororó,
artistas da Copacabana contratados em 1989 pela PolyGram; Zezé di
Camargo & Luciano, também da Copacabana e contratados em 1993 pela
Sony Music; além de Leandro e Leonardo, João Paulo e Daniel e Roberta
Miranda, nomes da Continental/Chantecler que passam a integrar o
elenco da Warner com a aquisição da gravadora
24
.
Mas o sertanejo não será o único e talvez nem o mais importante
lão das gravadoras na exploração de um mercado massivo. A década
é marcada pela eclosão de um pagode que, também próximo ao
referencial romântico e assumindo uma instrumentação mais associada
à música pop – teclados, contrabaixo, guitarra – alcança enorme
sucesso por meio, principalmente, de grupos paulistas
25
. Há ainda a
explosão nacional do funk carioca, especialmente do funk melódico
(Claudinho e Buchecha, Pepê e Neném), da Axé Music (Banda Eva,
Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Chiclete com Banana), da música
24
O triunfo do sertanejo também é atestado pela sua chegada às trilhas de novelas como Pantanal (Rede
Manchete, 1990, Benedito Ruy Barbosa), A História de Ana Raio & Zé Trovão (Rede Manchete, Marcos Caruso
e Rita Buzzar, 1991) e Rei do Gado (Rede Globo, Benedito Ruy Barbosa, 1996).
25
Como Molejo, Negritude Jr., Art Popular, Karametade e ExaltaSamba, entre outros grupos. Mas também
Belo Horizonte (Só Pra Contrariar), Salvador (Gera Samba/É o Tchan do Brasil, Companhia do Pagode e Terra
Samba) e o próprio Rio de Janeiro (Raça, Razão Brasileira, Kiloucura e Os Morenos) contribuíram para essa
nova onda do pagode
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
198 |
da Festa do Boi de Parintins (Carrapicho), da música religiosa (Padre
Marcelo, Aline Barros), entre outras.
Com esse crescimento do mercado, nota-se também um processo
de atualização e ampliação da indústria, com o ingresso de novas empresas
e o fortalecimento de diferentes ramos da área musical. Um exemplo é a
criação, ainda em 1990, da MTV Brasil, por meio de uma concessão do
Grupo Abril. Em 1999, o Jornal do Brasil apontava que, se no início de
suas operações “a MTV atingia somente 53 municípios e cerca de 5 milhões
de domicílios, hoje ela chega a 200 municípios e a mais de 16 milhões de casas
em todo o país” (MTV..., 1999). Em 1995, a emissora criava o Video Music
Awards Brasil (VMB) que, seguindo os mesmos moldes de seu equivalente
norte-americano, tornou-se o principal evento a premiar videoclipes no
país. Além disso, surgia, em 1996, a CD Expo, primeira feira do país
destinada à promoção de artistas e gravadoras e à venda direta de CDs
26
; e
em 1999 instalava-se no país a Crowley Broadcast Analysis, empresa norte-
americana especializada em aferição de execução radiofônica de músicas
27
.
Com o crescimento do mercado latino-americano em geral (e da
importância de sua música nos grandes mercados mundiais) houve ainda
a criação do Midem Americas, em 1997
28
e, a partir de 2000, do Grammy
Latino
29
.
MajorS e IndIeS
Quase todos artistas de sucesso citados acima, assim como
uma ampla parcela da diversidade musical que marcou os anos 1990,
ingressaram no mundo do disco também como consequência do grande
processo de pulverização e barateamento da produção musical que se
vericou naquele momento, a partir do desenvolvimento das tecnologias
digitais, especialmente dos equipamentos associados ao protocolo MIDI
– Musical Instrument Digital Interface (VICENTE, 1996). Com isso,
26
O evento era o maior do gênero na América Latina e contava com edições no Rio e em São Paulo; COMEÇA
no Rio primeira feira de CD. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 jul. 1996.
27
QUAL o som dos anos 90? O Globo, Rio de Janeiro, 08 mai. 1995.
28
MIDEM fará feira da música em Miami. O Globo, Rio de Janeiro, 19 dez. 1996.
29
GRAMMY LATINO, festa apresenta o Brasil para o mundo. Revista Áudio, Música e Tecnologia, n. 104, maio
2000.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 199
milhares de estúdios de gravação surgiram em todo o país, assim como
centenas de gravadoras independentes.
Por essa via, percebeu-se o vigoroso retorno da cena independente
e o amplo processo de organização desse setor. Criaram suas próprias
empresas, por exemplo, produtores e diretores desligados das grandes
gravadoras no processo de terceirização, como Pena Schmidt (Tinitus),
Conie Lopes (Natasha Records) e Nelson Motta (Lux), egressos da Warner;
Mayrton Bahia (Radical Records), ex-EMI e PolyGram; Marcos Mazzola
(MZA), ex-PolyGram; e Peter Klam (Caju Music), ex-Warner e PolyGram.
Além deles, também artistas que eram ou haviam sido vinculados a majors,
como Ivan Lins e Vitor Martins (Velas), Dado Villa-Lobos (RockIt!),
Marina Lima (Fullgás), Ronaldo Bastos (Dubas) e Egberto Gismonti
(Carmo), entre outros, tornaram-se donos de seus próprios negócios
30
.
Esse novo cenário leva a um relacionamento mais intenso entre
majors e indies, com essas últimas admitindo que a “tendência natural
dos selos independentes é servir de fonte para as grandes gravadoras
(SELOS pequenos crescem à margem da mídia. Folha de São Paulo, São
Paulo, 15 jul. 1994). Ao mesmo tempo, majors assumem a distribuição e/
ou impressão de discos de diversas delas, como Caju e Excelente Discos
(PolyGram); Rock It, Radical, MP,B e Natasha (EMI); Zimbabwe e Dubas
(Warner), entre outras
31
. Assim,
ao longo dos anos 90, foi se constituindo uma nova ecologia no
mercado, com as gravadoras independentes passando a preencher
um espaço antes ocupado pelas majors, cuidando tanto da formação
de novos artistas quanto da prospecção e atendimento a segmentos
musicais emergentes ou de mercado muito restrito. (VICENTE,
2014, p. 156).
São vários os exemplos de gravadoras surgidas no período que
se especializaram na exploração desses mercados de nicho. Azul Records,
Alquimusic e MCD, voltaram-se para a World Music e a New Age; Visom,
Pau Brasil e Núcleo Contemporâneo, para a música instrumental; Dabliú,
30
INDEPENDENTES, porém pragmáticos. O Globo, 26 fev. 1997. O SOM da liberdade. Jornal do Brasil, 20
fev. 1992.
31
CAJU e Kuarup resistem com lançamentos no exterior. O Estado de São Paulo, São Paulo, 13 fev. 1992.
SELOS alternativos dinamizam o mercado. Folha de São Paulo, São Paulo, 06 jan. 1993.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
200 |
Velas, CPC-Umes, Kuarup e Dubas Music, para a nova MPB; Palavra
Cantada, CID e Angels Records, para a música infantil; Cogumelo,
Banguela e Baratos Ans, para o rock underground; JWS, Zimbabwe,
RDS, Kaskatas e Discovery, para o rap. Além disso, o mercado religioso
católico contava com empresas como Codimuc, Canção Nova e Paulinas
Comep, enquanto o evangélico, com Bom Pastor, Gospel Records, AB
Records, MK Publicitá e Line Records, entre outras.
Ao longo da década, gravadoras independentes de maior porte
puderam inclusive desaar os limites desse nicho de público restrito.
Esses foram os casos de Trama e Atração Fonográca, que mantinham
distribuição própria ao mesmo tempo em que atuavam simultaneamente
em diferentes segmentos, e da Biscoito Fino, que passou a abrigar nomes
de maior destaque da MPB oriundos de grandes gravadoras. Com o
crescimento do número e porte das indies, assim como do peso de seu
papel dentro do mercado fonográco nacional, houve inclusive a criação,
em 2001, da Associação Brasileira dos Músicos Independentes, ABMI, que
além de posicionar politicamente os independentes em relação à ABPD,
buscava oferecer às indies condições mais favoráveis para a negociação de
acordos de divulgação e distribuição, contratos de impressão dos discos,
entre outros.
32
Toda essa força e organização da cena independente levou
a produção fonográca do período a expressar de maneira inédita a
diversidade musical do país, quebrando, na prática, o eixo de produção
e consumo formado por Rio de Janeiro e São Paulo. Com isso, nota-se o
surgimento ou fortalecimento dos “circuitos autônomos de produção e
consumo musical”
33
, que
[...] sem a presença de grandes gravadoras ou redes de mídia de
alcance nacional, fornecem condições para as apresentações
musicais, produção, divulgação e venda de discos dos artistas que os
integram. Esses circuitos normalmente se relacionam a identidades
étnicas, religiosas, urbanas e locais, e se constituem nos espaços
de surgimento e consolidação de muitos dos artistas e segmentos
que acabarão posteriormente incorporados pela grande indústria.
(VICENTE, 2014, p. 165).
32
COMEÇA articulação da cena alternativa nacional. Folha de São Paulo, São Paulo 28 mar. 2001.
33
Termo denominado por mim em pesquisas anteriores.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 201
Entre os exemplos citados na pesquisa, estão os circuitos dos CTGs
(Centros de Tradições Gaúchas), do rap, do funk, do forró eletricado de
Fortaleza, da música católica e evangélica, entre outros. Mas um exemplo
bastante signicativo do deslocamento do eixo e das novas possibilidades
identitárias que passam a se expressar fonogracamente, nos anos 1990,
pode ser dado pela comparação entre o rock que marca aquele período
e o da década anterior. Assim, se nos anos 1980 o rock foi, como vimos,
impulsionado por bandas ligadas à Brasília e a capitais de estados do Sul e
Sudeste, bem como a um público universitário, próximo da MPB, agora
surgiam bandas mais ligadas às periferias dessas e de outras cidades, com
Recife tornando-se a capital nacional do rock, berço do Mangue Beat
e sede do Abril Pro Rock, o principal festival de novos valores do rock
nacional, criado em 1993.
Apesar do grunge ser claramente a grande referência a inspirar as
novas bandas, como fora o punk na década anterior, existiu uma riqueza
muito maior de inuências, em particular da black music – rap, funk,
ska, reggae –, além da emergência de um amplo leque de debates sociais e
identitários que estiveram pouco presentes no rock dos anos 1980 e que se
expressaram, entre outras, através do trabalho de bandas como O Rappa,
Cidade Negra, Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A, Planet
Hemp e muitas outras.
Assim, por meio desses circuitos e bandas, os anos 1990
representaram o momento de emergência da produção musical oriunda
das periferias urbanas, que teve um de seus grandes momentos com
a conquista do prêmio de escolha da audiência do VMB de 1998 para
“Diário de um Detento”, videoclipe e canção dos Racionais MCs sobre
o massacre no presídio do Carandirú. A produção musical da periferia,
mobilizada inicialmente pelo movimento hip hop e pelo funk, mas depois
ampliada por meio de diversas tendências, representará, como se sabe, a
principal fonte de inovação na música popular brasileira das primeiras
décadas do século XXI.
crISeS e concluSõeS
O cenário dos anos 1980/1990 também se fecha com uma crise,
essa mais persistente e radical nas mudanças que traz à indústria. Se os anos
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
202 |
de 1993 a 1996 foram de vigoroso crescimento no número de unidades
produzidas – 37,9%, 42,7%, 18,8% e 33,1%, respectivamente –, entre
1997 e 2000 houve um quadro bem menos positivo: crescimento de apenas
8,1% em 1997, 7.6% em 2000, e quedas de 2.4% em 1998 e 7.9% em
1999 (IFPI, 2001, p. 118), que perdurará pelas duas décadas seguintes, de
forma mais dramática, representando o m da venda de suportes musicais
como atividade central do negócio da música.
Embora a pirataria tenha sido apontada como o principal vilão
para a crise ao longo da década de 1990
34
, sabe-se que a circulação de
arquivos digitais de música pela internet, iniciada em seus anos nais, iria
se tornar o principal motor da mudança e da crise (DE MARCHI, 2016).
Mas essa história está sendo contada em outro momento desse livro.
Não foi uma tarefa fácil concentrar duas décadas de história do
disco e da música do Brasil nessas poucas páginas. Por isso, é inevitável que
artistas, gravadoras, tendências e gêneros musicais signicativos tenham
sido omitidos ao longo do texto. Espera-se, no entanto, ter registrado aqui
os principais processos que mobilizaram e deniram os rumos da indústria
musical do Brasil no período analisado, fundamental para a compreensão
do quadro atual da produção e consumo de música popular no país.
A partir dessa armação, quer-se destacar, fechando esse texto,
um ponto que parece subjacente a toda a análise aqui apresentada, que
é a questão da indústria. Ainda que a crise tenha afetado profundamente
o funcionamento e o controle das chamadas majors – que eram cinco no
nal dos anos 1990: Universal, Sony, BMG, EMI e Warner – sobre o
mercado musical, seria um erro enxergar nesse quadro o m da indústria
ou do controle de grandes agentes sobre o mercado. Embora essas empresas
tenham perdido, ao longo das duas décadas seguintes, parte do seu poder,
elas se mantiveram como proprietárias de grande parte do acervo musical
consagrado mundialmente desde o início do século XX e preservaram
o controle sobre mecanismos fundamentais de circulação e promoção
musical, ainda que de forma compartilhada com grandes empresas do
mundo digital, como Apple, Google, Deezer e Spotify, entre outras.
Dessa forma, mesmo a circulação de música pela internet se
desenvolve dentro da lógica estabelecida por esses agentes e, nesse sentido,
34
MERCADO de discos despenca no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo 28 dez. 1999. ABRIL MUSIC
encerra atividades em meio à onda de pirataria. Folha de São Paulo, São Paulo, 05 fev. 2003.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 203
como pesquisadores, é preciso compreender criticamente esse cenário,
inclusive considerando a questão da concentração econômica dentro
de cada um dos seus diferentes segmentos, a exemplo dos escritórios de
divulgação e de empresários e empresas promotoras de shows.
Ainda assim, entende-se que esse texto demonstra que, mesmo ao
longo das duas décadas analisadas, a lógica da indústria musical permitiu
o surgimento e consolidação de artistas independentes e produções
esteticamente arrojadas, além de social e politicamente engajadas. Nesse
sentido, acredita-se ser possível armar que a dinâmica do mercado
musical não é necessariamente incompatível com a inovação, de modo
que o desenvolvimento de estratégias de atuação engajadas de artistas
independentes, que levem em consideração as condições do mercado são
não apenas possíveis, como talvez a única alternativa nesse momento de
ataque às políticas públicas de apoio à cultura e à própria possibilidade de
expressão artística de minorias e de setores mais críticos da sociedade.
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| 205
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
Gisela G. S. Castro
para coMeçar
Transformações ocorridas na virada do século XX e XXI
implicaram em mudanças nas formas de sociabilidade e hábitos de consumo
de produtos culturais. Atenta ouvinte do panorama musical desde muito
jovem, intrigou-me na ocasião a emergência da onipresença dos fones de
ouvido em diversos ambientes públicos e privados, indício da intensicação
do consumo de música como trilha sonora do cotidiano. Que tipo de escuta
se enseja quando se convive com um jorro contínuo de música como plano
de fundo para as diversas atividades do dia a dia? O que signica encapsular-
se em uma ambiência sonora privada em meio à balbúrdia da vida urbana?
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p205-222
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
206 |
Essas eram algumas das inquietações que me instigaram a tomar a escuta – e
mais tarde o consumo – de música como campo de pesquisa ainda nos anos
1990. Foram estimulantes e proveitosos os encontros e aprendizados nos
estudos da música, da cultura e da comunicação.
Na primeira década dos anos 2000, a produção cultural e,
notadamente, a indústria fonográca, viviam uma encruzilhada, pois
crescia o compartilhamento gratuito de conteúdo entre pares liderados
pelos adeptos das redes de compartilhamento peer to peer (p2p). Pioneiro
no compartilhamento de música entre pares, o Napster foi um caso
emblemático que ajudou a consolidar o então novo modo de consumir
música em formato de arquivo digital. Por meio dele, arquivos em
formato mp3 podiam ser copiados diretamente para o hd do interessado.
Paralelamente, cópias físicas digitais de discos e lmes se espalharam
mundo afora, com ou sem ns comerciais, deagrando uma série de
medidas restritivas em relação a então chamada pirataria.
Como pretende-se argumentar mais adiante, a discussão sobre
pirataria vai muito além da proteção de direitos de propriedade intelectual
sobre obras culturais e diz respeito à dominação comercial de uma arena,
a internet, apresentada nos seus primórdios com base no sonho libertário
de se ensejar uma comunicação horizontal envolvendo a participação
democrática de todos por meio das ferramentas digitais no que era
denominado como ágora virtual.
Concebida sob a égide da utopia da colaboração desinteressada
entre pares, a world wide web que Tim Berners-Lee legou à humanidade
décadas atrás era bem diferente da que se tem agora. De uma rede não-
mercantil, transformou-se com a extraordinária capacidade de processar,
coletar, armazenar e analisar dados das megacorporações que hoje atuam
online e cujos algoritmos alimentam o capitalismo de plataformas
(SRNICEK, 2017).
A discussão aqui apresentada diz respeito a uma série de
transformações nos modos de produção e consumo de cultura, sintetizadas
como sendo a passagem do consumo de posse ao de acesso. De outro lado,
essa discussão está articulada com a crescente e implacável mercantilização
das mais diversas práticas cotidianas enfeixadas em modos de ser e estilos de
vida articulados às lógicas do consumo e às artimanhas da mercadologia, a
qual passa a constituir aquilo que Lazzaratto e Negri argumentaram como
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 207
sendo “um dispositivo de constituição das relações sociais, de informações,
de valores para o mercado” (LAZZARATTO; NEGRI, 2001, p. 64).
Evidentemente, toda essa transformação não se dá sem muita
luta, avanços e retrocessos e reviravoltas das mais inesperadas, que buscou-
se mapear e discutir naqueles anos. Um exemplo hoje já meio esquecido
foi a longa batalha judicial travada durante décadas pela Apple Corps, de
propriedade dos Beatles, contra a Apple Inc., liderada por Steve Jobs. A
disputa se acirrou após a criação do iTunes Music Store – cuja principal
função era comercializar conteúdo para os muitos modelos de iPods,
dispositivos portáteis que armazenavam grandes quantidades de arquivos
de música em formato digital. Na visão da Apple Corps, ao expandir
sua atuação para a área da música, a Apple Inc teria violado um acordo
celebrado entre as partes décadas antes, por meio do qual convencionou-se
que a empresa de Jobs restringiria seus negócios à computação.
Em função da contenda jurídica que se desenrolava entre as
empresas da maçã desde 1978, o catálogo dos Beatles permaneceu fora do
iTunes até que o imbróglio tivesse sido resolvido, longe dos tribunais, com
a surpreendente aquisição pela Apple Inc, em 2007, de todas as marcas
registradas com o nome Apple. Mesmo assim, os fãs dos Fab Four de
Liverpool tiveram que esperar mais alguns anos até que pudessem adquirir
suas músicas favoritas no iTunes, o que só ocorreu após 2010.
Esse enredo e outros são esmiuçados no e-book em que reuni
mais de dez anos de pesquisa que articulou música, escuta, comunicação
e consumo, antes de me voltar para outros temas de estudo. Disponível
para download gratuito mediante licença Creative Commons (CC)
1
que interdita o uso comercial e determina a citação de fonte, meu livro
(CASTRO, 2015) me trouxe ao elenco de debatedores do curso “Pesquisas
brasileiras em música: debates e perspectivas interdisciplinares”, organizado
por Érica Magi no SESC-SP em maio de 2018. Ter participado da mesa
intitulada “Indústria Fonográca, Mercado Digital e Consumo de Música
no Brasil” ao lado dos queridos e respeitados colegas Eduardo Vicente e
Leonardo De Marchi foi uma grande alegria e excelente oportunidade para
retornar à música, tema que sempre me foi tão caro.
Trata-se de um conjunto de licenças públicas que permitem a distribuição gratuita de uma obra protegida por
direitos autorais.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
208 |
O texto que preparei para a presente coletânea dialoga com a
discussão travada no evento ao recuperar alguns dos principais pontos do
debate sobre as transformações nos modos de consumo de música naquele
início dos anos 2000. Aproveito a oportunidade do convite para apresentar
aqui algumas considerações sobre a pirataria com base na intensa e lucrativa
atividade desenvolvida pela profusão de guras lendárias que singravam
mares nos séculos XVI e XVII, bem como sobre o caráter experimental
e libertário que animou as raves nos seus primórdios em comparação aos
atuais festivais comerciais de música.
Minha argumentação sobre piratas, corsários, raves e fãs diz
respeito a uma série de inquietações sobre determinados aspectos da
indústria do entretenimento em que se verica a apropriação mercadológica
da experimentação e dos novos modos de convivência e trocas entre pares,
notadamente nas redes telemáticas digitais, as quais denomino como redes
de comunicação, sociabilidade e negócios para destacar a incisiva presença
de interesses de ordem econômica em jogo de modo nem sempre explícito
em suas tramas.
Nessa trajetória pessoal de pesquisa, destaca-se o meu interesse
permanente pela articulação entre mídia e consumo na produção de
modelos de subjetividade e de modos de sociabilidade compatíveis com as
demandas de mercado, bem como a emergência de formas de resistência aos
padrões e ordenamentos vigentes. Entendo que tais formas de resistência
são muitas vezes apropriadas, desbastadas de suas arestas e pontos de
conito até serem transformadas em novos modelos à disposição de um
circuito mercadológico sempre ávido por novidades. Ainda assim, acredito
na inventividade e na capacidade crítica como elementos indispensáveis
para constituir alternativas aos ditames vigentes, oxigenando e renovando
os modos de ser e de viver, de fazer e de ouvir música em nos dias atuais.
Discuto, a seguir, a rearticulação dos modelos e estratégias de
negócio da indústria fonográca a partir de alguns pontos chaves neste
processo de reorganização em direção à formação de uma indústria que
não mais se limitaria à música
2
. Trata-se de um processo que, a rigor, se
desenrola ainda atualmente.
Em seu relatório Global Music Report 2018, a Federação Internacional da Indústria Fonográca (IFPI na
sigla em inglês) considera que “Alongside the technological revolution there is an ongoing evolution of record
companies into more than music companies” (IFPI, 2018, p. 21). Em tradução livre: “ao lado da revolução
tecnológica, está em curso a evolução das gravadoras ao se constituírem como algo além de empresas de música”.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 209
da poSSe ao aceSSo
Conforme observou García Canclini (2009, p. 115), “relacionarnos
con la cultura signica cada vez más participar en redes inmateriales, tener
experiencias, acceder a servicios”. Na música, viu-se os diferentes suportes e
formatos fonográcos como o vinil, CD, mp3 e outros, progressivamente
perdendo espaço na preferência do público para plataformas de streaming,
que permitem o acesso e a fruição sem que se precise adquirir ou fazer
download do conteúdo desejado.
Assim sendo, para se ouvir música gravada onde e quando se
queira, pouco a pouco a aquisição de discos, CDs, arquivos em mp3, etc.,
passou a conviver – e eventualmente a ser suplantada
3
– pelo acesso aos
múltiplos serviços de assinatura de música online que se estabeleceram.
Importante frisar que, no streaming, o acesso ao conteúdo não é garantido,
podendo determinado conteúdo ser retirado sem aviso prévio pela
plataforma, segundo seus interesses. Vale notar que o Brasil gura entre
os dez maiores mercados de música em todo o mundo, conforme se vê na
tabela abaixo:
Tabela 1 - Os dez principais mercados de música em 2018
1.EUA 6.Coréia do Sul
2.Japão 7.China
3.Reino Unido 8.Austrália
4.Alemanha 9.Canadá
5.França 10.Brasil
Fonte: IFPI, 2019
Agindo em bloco em diversas frentes ao redor do globo naqueles
anos iniciais do século XXI, a indústria fonográca internacional tratou
de reprimir outras formas de acesso à música que fossem diferentes do
modelo comercial consagrado até então, que era a venda de álbuns em
formato CD. De modo implacável, agiu para tornar ilegais e processar
Segundo o Global Music Report 2019, o streaming foi responsável por 46,9% da renda no mercado global
de música em 2018, tendo apresentado um crescimento da ordem de 32,9% em termos de streaming pagos
(IFPI, 2019, p. 8).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
210 |
judicialmente plataformas de compartilhamento e usuários que trocavam
arquivos de música de modo gratuito via internet.
Paralelamente à crescente disponibilização dos acervos das
principais gravadoras para comercialização em sites e plataformas legalizados,
milionárias campanhas antipirataria ressaltaram o caráter danoso do
compartilhamento gratuito para a remuneração do trabalho autoral do
artista e para a rentabilidade em toda a cadeia produtiva da música.
A m de contribuir para o adensamento da reexão acerca da
espinhosa questão da distribuição ilegal de conteúdo protegido por lei,
parece produtivo direcionar a discussão para o comércio marítimo entre
a Europa e os novos territórios explorados pelos europeus ao longo dos
conturbados séculos XVI e XVII, a m de discernir entre dois tipos de
saqueadores que, embora bastante distintos, são frequentemente tomados
como semelhantes ou mesmo idênticos.
SoBre pIrataS e corSárIoS
O transporte marítimo das riquezas levadas à Europa a partir
de suas colônias ultramarinas ensejou uma profusão de ataques por parte
de saqueadores às frotas mercantis a serviço de Suas Majestades. Dentre
eles, havia os piratas: guras que se lançavam ao mar, considerado por eles
como um território livre, em busca de constituir para si um modo de vida
alternativo às agruras da condição em que viviam antes, em suas terras de
origem. Os piratas eram conhecidos por atuarem em bando e investirem
contra qualquer tipo de autoridade real. Cada bando autônomo era
comandado por um chefe com liderança inconteste, que prescrevia severas
punições a quem descumprisse o código de ética ao qual todos no bando
haviam jurado delidade. Contrapondo-se às estruturas de poder vigentes,
eram anárquicos e agiam de acordo com as próprias regras e princípios.
Em contrapartida, os corsários eram mercenários operando a
serviço de um(a) monarca, sendo recompensados com riquezas, títulos
nobiliárquicos e por vezes, fama. Enquanto ser pirata pode ser entendido
como um modo de vida anárquico e até certo ponto libertário, ser corsário
seria um modo de agir e de ganhar a vida colocando-se sob as ordens da
nobreza. Os piratas escolhiam seus próprios alvos de pilhagem ou saque;
os corsários atacavam os inimigos do rei ou rainha a quem serviam, apenas.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 211
Esquematizando os principais pontos relacionados com cada
saqueador, elaboramos o seguinte quadro comparativo:
Piratas Corsários
- modus vivendi - modus operandi
- mare innitum - mare nostrum
- anárquicos - ligados ao status quo
- agiam por regras próprias - obedeciam às ordens do rei ou rainha
- saqueavam navios e pilhavam - atacavam navios e povoados
povoados selecionados por eles inimigos do rei
Essa distinção entre piratas e corsários se torna relevante em
nossa discussão quando se analisa, por exemplo, a tensão entre o interesse
público e as leis de proteção aos direitos de propriedade intelectual como,
por exemplo, no caso Wikileaks. Outro ponto controverso é o uso para ns
comerciais ou políticos de dados pessoais coletados de modo automático
e nem sempre claro nas mais diversas movimentações pela rede. Pode-se
aproximar essa prática ao conceito de mare nostrum mencionado acima.
Nessa linha de argumentação, plataformas e sites de rede social tratam as
informações sobre sua base de usuários como sendo de sua propriedade,
sem que seja respeitado o direito à privacidade dos usuários e congurando
o que Couldry e Mejias (2018) denominam como ‘colonialismo de dados’.
Ainda como parte desse tipo de inquietações, existe a proliferação
de pers falsos e o uso de bots para simular o crescimento exponencial na
base de fãs ou de seguidores de determinados agentes nas redes sociais on-
line. Pensando no recurso do boca-a-boca, que caracteriza a colaboração
tantas vezes espontânea e desinteressada entre pares em sites de rede
social, devem ser problematizados os vazamentos parciais ou totais de
obras regidas por leis de direitos autorais, bem como a disseminação
de conteúdo impróprio tais como vírus, boatos, paródias difamatórias,
arquivos corrompidos, informações e notícias falsas online. A quem ou a
que interessariam essas práticas?
Falando sobre o cenário da América Latina frente aos gigantes
internacionais que hoje dominam a internet, García Canclini (2017)
argumenta, com propriedade, que:
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
212 |
Internet trajo las promesas de una comunicación horizontal, pero
los gobiernos latinoamericanos siguen ausentes en los debates
de organismos internacionales [...] y otras escenas de gestión y
decisión sobre propiedad intelectual y derechos de las audiencias.
Al retirarse los Estados de la regulación de las comunicaciones, se
pierde el sentido de lo público y el acceso y uso de los contenidos
queda en manos de corporaciones transnacionales como las grandes
televisoras y empresas de Internet (Microsoft, Google, Yahoo) que
los comercializan junto con la información privada de los usuários
(GARCÍA CANCLINI, 2017, p. 27).
Em contraste com a utopia libertária dos primórdios da
cibercultura, sites como e Pirate Bay – baluarte da luta contra o
cerceamento aos direitos de livre circulação de conteúdo restringidos por
leis de copyright – têm sido exterminados ou assimilados na luta pela
colonização mercantil do ciberespaço, restando a amarga constatação de
que não são infrequentes os casos em que a participação nas redes e a
colaboração espontânea entre pares são moduladas em sigilo por ardilosas
estratégias comerciais ou políticas. Pense nas manipulações de bastidores
por parte de empresas como Cambridge Analytica, a serviço de interesses
cujas motivações e desdobramentos apenas começam a ser descortinados.
Considerado na ocasião como uma das maiores vítimas dos
saqueadores cibernéticos, o lme Tropa de Elite já tinha milhares de cópias
ilegais nas mãos dos camelôs bem antes de sua estreia nos cinemas, em
2007. Pode-se especular com maior ou menor grau de adesão aos discursos
que circularam na mídia, mas nunca se saberá ao certo como tudo ocorreu
nesse caso especíco. Entretanto, convém avaliar que a todo o tempo a
indústria do entretenimento diversica, expande e agrega novas estratégias
de negócios de modo a se adaptar às transformações nas práticas de
produção e consumo, visando garantir sua lucratividade.
Deve-se ter em mente que um lme é hoje muito mais do que a
película exibida no cinema. Atualmente, uma obra cinematográca pode
ser melhor entendida como um produto cultural complexo que se desdobra
em diversos produtos correlatos, tais como o DVD comercial do lme,
o CD com a trilha sonora completa (e não raro, com faixas adicionais),
ringtones derivados de trilha musical, além de incontáveis outros tipos de
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 213
memorabilia. Em muitos casos, há a participação do lme em festivais
consagrados e sua eventual distribuição no circuito internacional e/
ou em plataformas globais de streaming para potencializar ainda mais a
rentabilidade do produto.
Mesmo depois da chamada retomada do cinema nacional, atingir
um índice de audiência superior a dois milhões de espectadores é um feito
sensacional. A tese de que a carreira comercial do lme de Padilha teria
sido irremediavelmente prejudicada perde certa densidade diante dos
números relativos à audiência desta produção nos cinemas, considerando
que grande parte do público brasileiro não tem condições de custear o
ingresso do lme e só vê o que passa de graça na TV aberta ou o que
compra a preços módicos nos camelôs espalhados pelas ruas do centro
das cidades. Mesmo os que podem pagar o ingresso muitas vezes também
adquirem DVDs no mercado informal para “levar vantagem”. Além do
mais, em inúmeros municípios no Brasil não há salas de cinema! De todo
modo, aquele que assistiu ao lme fora do cinema (no circuito alternativo,
mesmo que seja no DVD comercial emprestado por um amigo ou parente)
e gostou podia adquirir o CD com a trilha musical, comprar camiseta,
boné, caderno escolar com foto na capa, bloquinho, lápis, caneta etc. Ainda
que se considerem os enormes custos de uma produção cinematográca de
qualidade, a existência de muitos consumidores para produtos correlatos
gera escala e rende lucro. Essa lógica de produção precisa ser melhor
compreendida. Na música, não é muito diferente.
Constituir-se como um estudioso da comunicação e do consumo
implica em colocar o discurso midiático em questão. É preciso saber
desconar do uso indiscriminado do rótulo “pirataria” e atentar para a
complexa trama de interesses em jogo em cada contexto no qual tal alegação
é invocada para combater o que ameaça o status quo. Contra a impostura
dos que minimizam as declarações sobre os próprios lucros com a alegação
de que a suposta pirataria de produtos culturais os prejudica, pode-se
argumentar que nem sempre e nem tanto, haja vista a quantidade de
artistas que se contrapõem ao cerceamento do compartilhamento gratuito
e outras práticas consideradas ofensivas pela indústria do entretenimento,
que movimenta cifras que correspondem ao PIB de muitos países.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
214 |
uMa IndúStrIa eM tranSforMação
Entende-se que a complexidade da questão da pirataria admite
múltiplas visões, sendo o conceito generalista apregoado pelas majors
4
da
música, alvo de intensa discussão na base de fãs e mesmo na classe artística.
Com o m do monopólio da grande indústria fonográca sobre a produção
e circulação de música gravada, nomes da cena musical passaram a se servir
de esquemas alternativos de distribuição de sua produção, ou parte dela.
Na época em que foi ministro da cultura no governo Lula, o cantor
e compositor Gilberto Gil estimulou amplo debate sobre a necessidade de
se adequar aos novos tempos as leis de direitos autorais vigentes. Para ele, foi
criada especialmente uma das licenças CC, que permitia especicamente o
remix. Em 2008, ao decidir lançar na web o CD “Banda Larga”, a imediata
reação da União Brasileira de Compositores teria sido de repúdio ao
ato considerado uma traição ao ofício dos criadores. Esta tem sido uma
discussão candente em âmbito mundial
Conforme observou Dias (2010, p. 170),
até recentemente, as companhias fonográcas sustentaram
taxativamente que a causa principal da crise que enfrentavam era
a pirataria, entendida como a venda ilegal de CDs e DVDs no
mercado informal (pirataria física) e nas trocas peer to peer, ou
P2P (realizada entre computadores pessoais), operada na internet
(pirataria online).
Embora hoje em dia a Federação Internacional da Indústria
Fonográca elenque como sua principal tarefa “evitar que a música seja
distribuída de modo ilegal, sem que artistas e produtores recebam sua
justa remuneração
5
(IFPI, 2018, p. 42, tradução nossa), este mesmo
organismo reconhece que a tecnologia não opera mais contra e nem em
paralelo com a indústria da música, mas “enseja o crescimento e estimula
as transformações, o que a leva a ser cultivada como parte integrante da
indústria” (IFPI, 2018, p. 19, tradução nossa)
6
.
 Neste caso, chama-se de majors as grandes gravadoras.
No original: “preventing music from being distributed illegally, with no revenue owing back to artists or
producers, remains a key priority for the record industry” (IFPI, 2018, p.42).
No original: “whilst technology undoubtedly drives change (and growth), it no longer operates against or even
adjacent to the music industry, it is part of the industry and, indeed, is being enhanced as well as harnessed by
record companies” (IFPI, 2018, p. 19).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 215
Ao comentar sobre as ações punitivas na época desencadeadas
pelas grandes gravadoras contra o que estas consideravam como pirataria,
Dias (2010, p. 172) oferece uma pertinente observação quanto ao desfecho
deste tipo de batalhas:
as redes vão sofrendo processos judiciais por lesarem os direitos
do autor e os direitos conexos (que incluem os das gravadoras) até
sua atividade ser interrompida. Além de paralisar o exercício da
atividade ilícita, a indústria surpreendentemente assimila, incorpora
um conjunto de saberes sosticados que foram gerados e que,
independentemente do seu estatuto legal, constituem iniciativas
fortes, dinâmicas inovadoras de distribuição de música via internet
[...]. Esse é provavelmente o motivo pelo qual os prossionais
que desenvolvem os programas, os criadores da suposta pirataria
virtual, não são o objeto maior da preocupação dos empresários:
eles desenvolvem hoje a tecnologia que lhes servirá amanhã.
Atropelada pela nova realidade do mercado, o fato é que a
indústria fonográca precisou se reinventar para continuar a gerar receita e
lucratividade. Nesse cenário de convergência entre linguagens, plataformas
e interesses, a indústria da música se reorganiza como provedora de serviços
e negócios no grande campo do entretenimento.
Dando prosseguimento à discussão e dialogando com os trechos
citados acima, o próximo segmento trata do que se poderia classicar como
a cooptação mercadológica da experimentação e da inovação em termos
de fruição musical. Nesse cenário, os shows ao vivo, as raves e os festivais
conguram campos privilegiados na reinvenção de uma indústria que passou
a se denir menos pela venda de discos que por meio de sua capacidade de
gestão dos muitos negócios que se articulam à centralidade do consumo de
música como elemento distintivo da experiência contemporânea.
daS raves aoS grandeS eSpetáculoS coMercIaIS de MúSIca
Entende-se que, há tempos, parece estar em curso uma
reconguração mercadológica da experimentação de vida alternativa
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
216 |
levada às últimas consequências por Ken Kesey
7
e seus Merry Pranksters
8
,
no nal dos anos 1960. Tão bem descritas pelo Novo Jornalismo de Tom
Wolfe
9
(1968), como relacionar estas experimentações existenciais em
termos de novos modus vivendi, com o mercantilismo cultural dos eventos
de massa que fazem parte do calendário cultural das grandes cidades e que
são voltados para a promoção de marcas e para a venda de todo o tipo de
produtos e serviços, tudo isso embalado pelo som do techno, pop, rock´n
roll e outros? Como se poderia estabelecer uma conexão ou que tipo de
relação há entre o consumo de música atual e o que acontecia naqueles
encontros organizados por Kesey e congêneres?
Esses happenings, as raves, de certa forma estabeleceram toda uma
atitude de imersão em ambiências sonoro-musicais aliadas a eletrizantes
estímulos visuais tais como efeitos de luz, cores, sombra e movimento,
além do irresistível apelo de se congregar uma multidão de pessoas. O
estabelecimento de fortes conexões sensório-cognitivo-espirituais entre
artistas visuais, músicos e escritores do naipe de Jack Kerouac
10
e Hunter
S. ompson
11
, além de Ken Kesey e do próprio Wolfe foi um ingrediente
a mais no experimento de alegres traquinagens lisérgicas em grupo,
banhadas pelo som ao vivo da banda Grateful Dead
12
. Vale ressaltar que
os Merry Pranksters utilizavam um vasto equipamento de ponta de áudio,
vídeo, cinema, iluminação e maquiagem. Os integrantes que operavam
esta poderosa e altamente tecnológica parafernália eram, por sua vez,
7
Escritor, ensaísta, gura de ligação entre a geração beat dos anos 1950 e a geração hippie dos anos 1960. Autor
de One ew over the cocoo’s nest, transformado em lme (O estranho no ninho, Milos Forman, 1975).
8
A expressão pode ser traduzida livremente como “alegres traquinas”. Entretanto, o grupo era orientado por
uma radical proposta ético-estética de constituir coletivamente a própria vida como obra de arte, trabalhando
ainda na expansão da consciência e sua transcendência rumo a uma eventual unidade com os elementos do
universo.
9
Escritor de cção e não cção, criador do New Journalism, premiado autor de e Bonre of the Vanities, que
deu origem ao lme de mesmo nome (A fogueira das vaidades, Brian De Palma, 1990).
10
Célebre nome da chamada geração beat, autor de On the road (On the road – o manuscrito original, LP&M,
2008).
11
Escritor e jornalista, criador do chamado jornalismo gonzo, autor do livro Fear and Loathing in Las Vegas
(Medo e Delírio em Las Vegas, LP&M, 2010), transformado em lme de mesmo nome dirigido por Terry
Gilliam, um dos componentes do eclético grupo de humor inglês, Monty Python.
12
Liderada pelo guitarrista Jerry Garcia e tendo dentre seus integrantes John Perry Barlow, que mais tarde
fundou a ONG Electronic Frontier Foundation e se destacou como um inuente ciber-libertário, esta banda
formada na Califórnia, em 1965, cou conhecida pelo ecletismo musical que misturava elementos de música
experimental à psicodelia, aliada a diferentes gêneros e estilos, como o rock, o blues, o folk, o jazz, etc. O grupo
elaborou sua marcante abordagem musical durante a experimentação realizada ao tocar ao vivo nos Kool-Aid
Acid Tests.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 217
renomados especialistas em suas respectivas áreas, com grande visibilidade
prossional e exímios na criação dos light, scenic, sonic e visual designs que
caracterizavam as festas.
Revendo o trajeto das raves por uma perspectiva histórica, nota-se
que o código ético com o acrônimo PLUR (Peace, Love, Unity, Respect),
cunhado na Inglaterra no nal dos anos 1980, teria entrado em franco
desuso até praticamente desaparecer, sendo que a sigla RAVE (Radical
Audio Visual Experience), também criada na mesma época, teria passado a
indicar mais um empreendimento da indústria cultural.
O projeto ou proposta que o escritor Ken Kesey denominou
como kool-aid acid test – um ritual de celebração multissensorial regado a
LSD com o objetivo de autoconhecimento, sintonia e sincronia espiritual
– foi eventualmente abandonado quando Kesey teria chegado à conclusão
que tal ritual revelara-se pouco conducente para o nível pretendido de
transcendência e comunhão com o universo.
Tomadas pelo empreendedorismo – e talvez por certa nostalgia do
ideário hippie que informou grande parte das experimentações psicossociais
alternativas que vigoraram na emblemática década de 1960 – outras pessoas
(prossionais, público e empresários) prosseguiram com o formato, porém
visando sobretudo o entretenimento pela imersão coletiva no som ultra
amplicado, pela percepção alterada por meio de drogas psicoativas, e pelo
lucro que este tipo de espetáculo poderia propiciar. Nesta vertente, nota-se
como o icônico Festival de Woodstock foi prolongado, algumas décadas
mais tarde, no fenômeno das grandes raves que marcaram as décadas nais
do século passado.
Eventos de longa duração, palcos de celebração dionisíaca,
marcados pelas sensorialidades exacerbadas por drogas, sexo, sonho e
música techno, perfaziam uma experiência sensorial múltipla nas quais os
DJs guravam como magos soberanos, responsáveis por dar o tom e manter
o ritmo de “ferveção” nas pistas de dança. Destaca-se o arrebatamento
da experiência de imersão coletiva no som. É relevante também citar o
momento do chill out como elemento indispensável para a recomposição
de corpos e mentes.
Por m, levando ao paroxismo o aspecto comercial desse tipo de
hiperespetáculo musical, pode-se citar o Rock in Rio, auto denominado
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
218 |
como o maior festival musical do planeta. Uma história que começa em
1985, a marca se congura como uma gigantesca e multifacetada arena
de negócios. Com ênfase no chamado consumo de experiência, a fruição
coletiva da música e os incessantes apelos publicitários do evento atuam
para atrair e cativar o consumidor-fã de música (CASTRO, 2012).
A Cidade do Rock, a inusitada sede da primeira edição do mega
festival na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, não apenas
abrigava os shows em uma área total de 250 mil metros quadrados que
pertencia ao estado, como também conferia ao espetáculo elementos
promocionais inusitados tais como um palco de 5 mil metros quadrados,
ostensivamente alardeado como o maior já construído até então. Desde
sua primeira edição em 1985, o festival foi marcante por ter logrado trazer
ao Brasil astros internacionais que jamais haviam pisado em nossos palcos.
A memorável performance de Freddie Mercury, da banda Queen, é citada
como um dos pontos altos do evento.
Por ordem do então governador, Leonel Brizola, a Cidade do
Rock foi demolida após o término da versão inaugural do festival. Depois
de ter recorrido ao estádio do Maracanã como sede da edição seguinte, a
Cidade do Rock foi reconstruída em 2001, quando uma transformação
na concepção do evento fez multiplicarem-se os palcos – ou tendas –
em que artistas liados a gêneros musicais distintos se apresentavam
simultaneamente. Em 2019, houve duas edições: no Rio e nos EUA. A
rigor, trata-se de um empreendimento diversicado em várias frentes de
negócio, que se aproveita da enorme auência de público para todo o
tipo de ações promocionais e campanhas de marketing, a começar pela
publicidade do próprio evento, encabeçada pela hashtag #eufui.
conSIderaçõeS fInaIS
Na apresentação da coletânea que marcou a comemoração dos
dez anos do laboratório de estudos sobre a cultura da música, coordenado
por Simone Pereira de Sá no Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Universidade Federal Fluminense, as organizadoras ensinam que
falar da dimensão comunicacional da música signica compreendê-la
como um produto de circulação midiática, atravessado pela lógica da
reprodutibilidade técnica, da cultura de massas e do espetáculo”. Lembram
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 219
ainda que o campo musical é “atravessado pelas tensões e negociações com
as mídias, o público e o mercado” (SÁ; POLIVANOV; CUNHA, 2016,
p. 9).
Sendo assim, esta discussão focalizou o consumo de música como
articulador privilegiado de certas dinâmicas socioculturais que merecem
atenção. Ao enfeixar algumas importantes tensões e contradições nos
processos de negociação de sentido do que seja propriamente cultural
nas sociedades, a associação entre mídia e consumo parece efetivar-se,
por excelência, nas lógicas do entretenimento, por meio das quais lazer e
negócios se tornam indissociáveis e passam a modular de forma exemplar
a experiência cotidiana.
Dentre as articulações discutidas acima, problematizou-se a
complexa noção de pirataria com base em uma reexão acerca do consumo
como posse, em contraponto ao consumo como acesso, bem como a
distinção entre piratas e corsários para colocar em questão a recorrente
condenação pela indústria da música das práticas de consumo que fogem
ao seu controle e aos mecanismos de monetização vigentes. Enfatizou-
se, ainda, a entrada em cena das plataformas de streaming, que, a rigor,
controlam o conteúdo que pode ou não ser acessado enquanto as fonotecas
se reconguram em playlists.
Para um exemplo do conito de interesses que com frequência
tornam penosas essas negociações, recorre-se à notícia de que depois de
lutar judicialmente durante décadas contra a gigante Universal Music para
reaver os direitos autorais sobre os seus primeiros discos, o genial João
Gilberto recebeu sentença favorável que “obriga a empresa a devolver a
João os royalties que deixaram de ser pagos nada menos que desde 1964,
além de danos morais” (GORTÁZAR, 2019). Embora a decisão nal caiba
ao Supremo, caso a gravadora decida abrir recurso na mais alta corte do
país, a unanimidade com que o pleito foi acolhido em tribunal no Rio de
Janeiro parece indicar que a ação pode nalmente chegar a bom termo
para os herdeiros do músico, hoje já falecido.
No que tange às divergências de interesses entre empresas e
públicos, vale mencionar que enquanto estudiosos como o publicitário Sam
Ford (2013) elencam como principal desao para o mundo corporativo a
canalização de forma disciplinada das erráticas interações entre pares nas
redes sociais digitais, Primo (2013) chama a atenção para a apropriação
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
220 |
de interações em rede na profusão de estratégias mercadológicas que não
cessam de ser (re)inventadas, vez que muitas delas se servem do fascínio da
fruição estética da música, da atração dos fãs por seus ídolos e do caráter
identitário das práticas de consumo musical como bases do desenvolvimento
de segmentos de mercado e clusters anitários de consumidores.
No atual circuito de concertos itinerantes de música ao vivo,
novas empresas de informática se especializam em “moldar e monetizar
uma nova modalidade híbrida de entretenimento: parte concerto,
parte espetáculo tecnológico [...] centrado na sobrevida holográca de
astros e estrelas musicais já falecidos
13
(BINELLI, 2020). Este tipo de
produção cultural que se serve de tecnologia de ponta para manter em
cena o lucrativo legado de artistas da música conjuga “de modo paradoxal
elementos do ineditismo com o saudosismo” (DUARTE; MINÉ, 2014).
No afã de “perpetuar a memória dos ídolos ao máximo” lançam mão de
estratégias de divulgação evidenciadas, por exemplo, nos pers póstumos
que aproximam emocionalmente os fãs de seus ídolos nas redes sociais
digitais” (DUARTE; MINÉ, 2014).
Ao denunciar as travas impostas pelas corporações políticas
e econômicas à comunicação e à participação social inovadora, García
Canclini (2017, p. 28) constata que “necesitamos otra política, otros medios
y otras redes” para tornar possível um cenário mais auspicioso e alvissareiro.
Cabe a cada um fazer frente ao desao de conceber alternativas e se
contrapor ao que constrange e oprime na atual conjuntura em que se vive.
Em vista do que foi exposto, resta pontuar que se conclamam
todos a exercerem, simultaneamente, os papéis de produtores, críticos,
mediadores, consumidores e gestores das transformações culturais que
nos perpassam e, por sua vez, nos constituem. Defende-se, portanto, o
desenvolvimento da imprescindível capacidade crítica que nos torna
potentes para reetir sobre nossas práticas e agir no mundo de modo ético
e sensato.
No âmbito desta oportuna coletânea, este breve texto teve
o intuito de contribuir com o esforço de pensar algumas das tensões e
contradições relacionadas à produção, circulação e consumo de música no
13
No original: « a handful of companies looking to mold and ultimately monetize a new, hybrid category of
entertainment — part concert, part technology-driven spectacle — centered (...) on the holographic afterlives
of deceased musical stars”.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 221
mundo contemporâneo. Terei sido bem-sucedida se a leitura puder ensejar
novas, necessárias e, oxalá, frutíferas reexões.
referêncIaS
BINELLI, Mark. Old musicians never die. ey just become holograms. e New York
Times Magazine, 7 jan. 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/01/07/
magazine/hologram-musicians.html. Acesso em: 23 mar. 2020.
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   
Q R I
Leonardo De Marchi
Introdução
Ao longo das últimas duas décadas, a indústria fonográca tem
experimentado uma verdadeira destruição de sua economia. Desde o
aparecimento de programas de compartilhamento de arquivos digitais entre
pares (do inglês, peer-to-peer, ou P2P, daqui em diante), o negócio de discos
físicos passou de uma economia industrial, planejada burocraticamente,
a uma economia de serviços, caracterizada por efeitos de redes. De
súbito, atores oriundos da indústria de Tecnologias da Informação (TI)
atravessaram os negócios de gravadoras e editoras de música, permitindo
o surgimento de novas práticas de consumo que colocaram em questão
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p223-248
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
224 |
a compra de discos físicos. O resultado foi um decréscimo signicativo
e constante do mercado de discos e da arrecadação dessa indústria nos
anos 2000 e a exigência de uma entrada, a solavancos, na era digital
(BURKART; MCCOURT, 2006; CASTRO, 2014; DE MARCHI, 2016;
HERSCHMANN, 2010, 2011; WITT, 2015).
Em um primeiro momento, alguns observadores acreditaram
que a abundância de arquivos digitais de música havia transformado o
fonograma em um bem comum, zerando seu custo ao consumidor, o
que determinaria o m da indústria fonográca hierarquizada em favor
de um modelo aberto de distribuição de conteúdos digitais (ATTALI,
2007; KUSEK; LEONHARD, 2005). No entanto, após anos de
vultosos processos por violação de direitos autorais (ou “pirataria”,
como é popularmente conhecida tal acusação) contra os programas P2P,
gravadoras e editoras de música lograram retomar certo poder de barganha
para negociar com empresas de TI para o desenvolvimento de sistemas de
distribuição de conteúdos digitais autorizados pelos titulares dos direitos
autorais das obras. Surgiu, assim, a iTunes Store, da Apple Inc., como
um simulacro das lojas de discos, cobrando pelo download dos arquivos
digitais. Foi uma experiência relativamente bem sucedida, na medida em
que revelou a possibilidade de monetizar o acesso à música digital. Não
obstante, seu modelo de negócio apresentava limites: comprar arquivos
digitais acarretava, no médio prazo, uma série de problemas que foram se
mostrando determinantes para o esgotamento do modelo de compra de
arquivos digitais.
Na década de 2010, os serviços de streaming se apresentaram
como a solução ideal para a indústria fonográca. Anal, seu modelo
de negócio se baseia na disponibilização remota de milhões arquivos
digitais, por preços relativamente baixos ou até mesmo sem custos para
o consumidor nal. Assim, empresas digitais do ramo garantiram às
gravadoras e editoras que seu conteúdo digital não caria livre nas mãos
dos usuários (o que, a priori, inibiria o compartilhamento entre pares),
ao mesmo tempo em que a economia do acesso superaria as limitações da
compra dos arquivos digitais.
Ao obterem o apoio dos principais agentes da indústria fonográca,
alguns serviços de streaming foram capazes de se expandir rapidamente
para diversos mercados ao redor do globo e, em questão de poucos
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 225
anos, conseguiram produzir certa retomada na arrecadação da indústria
fonográca. De acordo com a IFPI (2019), em 2018, as receitas digitais
agora representam mais da metade (58,9%) do mercado global de música
gravada. Apenas o streaming foi responsável por 47% da arrecadação da
indústria fonográca internacional. Em muitos países, a arrecadação com
o streaming superou não apenas a venda de discos físicos como também
o download pago. Até o nal de 2018, havia 255 milhões de usuários de
contas de assinatura paga globalmente. Apesar dos limites e desaos que os
serviços de streaming apresentam, é ponto pacíco que eles consolidaram
uma trilha de desenvolvimento a ser seguida pela indústria fonográca na
era digital.
No entanto, o cenário econômico contemporâneo é marcado por
uma dinâmica de constante inovação tecnológica e surgimento de novos
modelos de negócio. Em particular, o rápido avanço da Inteligência Articial
(IA) tem produzido a automação de diversas atividades, prometendo
romper profundamente com práticas estabelecidas de produção e consumo
de bens e serviços. Alguns autores rotulam esse novo momento de quarta
revolução industrial (SCHWAB, 2018; SCHWAB; DAVIS, 2018).
Também a indústria fonográca se vê obrigada a lidar com essas novas
tecnologias de produção e distribuição de música: há algoritmos que
recomendam música, há os que produzem música, além de tecnologias de
segurança que permitem a total descentralização das relações econômicas,
entre outras novidades que começam a estar disponíveis no mercado. A
promessa de disjunção desse pacote de inovações é concreta, afetando
o mercado de trabalho assim como os níveis de diversidade cultural no
mercado de música. Talvez seja o caso de rotular esse momento que se
inicia de pós-streaming.
Neste artigo, o objetivo é mapear e discutir alguns dos principais
desaos da indústria fonográca diante da chamada quarta revolução
industrial. Não se quer produzir uma lista de “oportunidades de negócio
(algo típico de uma literatura administrativa destinada aos prossionais de
mercado), mas entender quais são os desaos para o mercado de trabalho
para humanos e para a manutenção da diversidade cultural no mercado de
música gravada. Entende-se que o processo de automação da indústria da
música contém um enorme potencial de transformação estrutural desse
mercado, colocando em xeque determinadas prossões, aumentando
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
226 |
a desigualdade econômica entre os agentes dessa indústria e colocando
limites no acesso público à pluralidade de bens culturais. Daí que seja
fundamental entender esse contexto para poder propor soluções por meio
de políticas culturais à altura desses desaos.
O artigo está dividido em duas partes. Na primeira, busca-se
construir uma breve história da digitalização da indústria fonográca,
observando o desenvolvimento de tecnologias e modelos de negócio, desde
o surgimento dos programas P2P até os serviços de streaming. O objetivo
é apontar quais mudanças cada uma dessas inovações apresentou para o
negócio fonográco. Em seguida, abordam-se três categorias de inovações
já disponíveis no mercado de música que, em que pese a incerteza sobre
sua consolidação, apontam inequivocamente para uma total automação
do processo produtivo de música gravada, movimento que se rotula
aqui de cenário pós-streaming. Por m, apresentam-se reexões sobre as
diculdades de se pensar políticas públicas que possam lidar com esse
cenário de profundas transformações tecnológicas e culturais.
do p2p aoS ServIçoS de StreaMIng: a IndúStrIa fonográfIca da
econoMIa de redeS à econoMIa de plataforMaS
Desde o nal da década de 1990, a indústria fonográca tem
experimentado profundas transformações na razão de ser de seu negócio.
Com a introdução de inovações que romperam paradigmas, gradualmente
o negócio de música gravada passou da produção e venda de discos físicos
para uma economia do acesso à música digital. Esse foi um processo longo,
complexo e muito difícil para todos os envolvidos. Houve duras disputas
sobre os rumos que essa digitalização da indústria deveria seguir. Todavia,
essa discussão não será estendida, uma vez que ela já foi devidamente
abordada por diferentes autores (BURKART; MCCOURT, 2006;
CASTRO, 2014; DE MARCHI, 2016; HERSCHMANN, 2010, 2011;
WITT, 2015).
O que importa aqui é entender se as plataformas de streaming
representam um avanço para a indústria fonográca e de que natureza.
Nesse sentido, sustenta-se a hipótese de que as plataformas de streaming
têm transformado o mercado digital de música de uma economia de redes
para o que se tem chamado de economia de plataformas (SRNICEK,
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 227
2017). Isso tem implicações importantes, na medida em que o streaming
abre a indústria fonográca para a IA e para o processo de automação de
sua economia.
A indústria fonográca foi um dos primeiros setores das
indústrias culturais a passar pela transição para a era digital e aquele que
a experimentou de forma mais intensa. De acordo com os dados da IFPI
, entre 2000 e 2010, o mercado internacional de discos físicos encolheu
61,48%. Para se ter a dimensão da disjunção produzida na economia
dos discos pelas tecnologias digitais em rede, é preciso compreender que
os anos 1990 foram um período de ouro para a indústria fonográca.
A introdução do Compact Disc (CD), a partir de 1983, permitiu um
crescimento ininterrupto ao longo de 15 anos e um aumento considerável
na arrecadação das gravadoras (LEYSHON et al., 2005). Tratava-se de uma
mídia com maior capacidade de armazenamento de dados, de tamanho
menor do que os discos compactos de vinil, cujo preço era equivalente
ao mais caro formato fonográco da época, o prestigiado Long Play (LP).
Para as gravadoras, era um produto mais barato de se produzir, estocar
e distribuir, mas cuja alta tecnologia empregada garantia a manutenção
de um elevado valor no mercado (cerca de US$15). Para se ter uma
ideia do êxito dessa estratégia, vale observar o desempenho do CD no
principal mercado global, os Estados Unidos. De acordo com os dados
da Associação da Indústria Fonográca da América (Recording Industry
Association of America, acrônimo em inglês RIAA), entre 1990 e 2000,
houve um crescimento da arrecadação das gravadoras da ordem de 90,6%.
Se em 1990 o CD representava 45,8% do total arrecadado ($7,5 bilhões
de dólares), em 2000, o percentual foi de 92,3% ($14,3 bilhões de dólares)
(RIAA, c2020).
Entre 2000 e 2001, o registro de uma diminuição de 8,67%
na venda de unidades físicas no mercado estadunidense indicava um
contratempo imprevisto. A continuidade do decréscimo da venda de discos
criou a percepção entre os agentes dessa indústria de que havia uma “crise”.
Prontamente, apontou-se um culpado: os programas de compartilhamento
de arquivos P2P através dos quais usuários da Internet trocavam entre
si, de forma gratuita, os arquivos digitais retirados de seus CD, sem a
prévia autorização dos titulares dos direitos autorais das obras protegidas.
Nessa chave de leitura, a nova tecnologia era a versão atualizada do velho
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
228 |
monstro” de violação de direitos autorais ou, como é popularmente
chamado, da “pirataria” (LEYSHON, 2003; WITT, 2015). Pensou-se,
então, que bastaria condenar os desenvolvedores de tais programas para
cessar a troca de arquivos. Em retrospectiva, é cabível armar que os
agentes da indústria fonográca foram incapazes de perceber as nuances de
um cenário bem mais complexo.
Em primeiro lugar, é necessário considerar que os P2P faziam
parte de um combinado de novas tecnologias dedicadas à distribuição de
conteúdos digitais, entre os quais estavam o arquivo digital compactado
MPEG Audio Layer III (MP3) e os reprodutores digitais para desktops,
como o Winamp (Nullsoft). Sem algum desses itens, não haveria as
consequências que os novos sistemas de distribuição de conteúdos digitais
produziram. Anal, o compartilhamento em larga escala somente fazia
sentido por existir um arquivo digital bastante compacto, como o MP3, e
softwares reprodutores desses arquivos, capazes de organizar uma enorme
quantidade de arquivos digitais para os reproduzir de maneira ótima em
computadores pessoais.
Em segundo, chamava a atenção o fato daquelas inovações terem
sido introduzidas por startups do setor de TI. Isso marcava a transferência
do monopólio de condução das mudanças tecnológicas do mercado de
música gravada, controlado por empresas burocratizadas (as grandes
gravadoras), para uma rede descentralizada de desenvolvedores, fazendo
com que o ritmo da inovação se acelerasse de forma incontrolável pelos
tradicionais agentes da indústria fonográca. Em terceiro, essa combinação
de tecnologias apresentou uma radical nova possibilidade de acesso de
fonogramas aos consumidores: ao invés de gastarem uma considerável
soma de dinheiro em um produto contendo uma quantidade limitada de
conteúdo, passou-se a acessar todo tipo e quantidade de música que se
quisesse disponível em uma rede global de informação gratuitamente. Isso
levou ao questionamento radical da legitimidade de todas instituições da
indústria do disco físico: dos discos em si, das lojas de discos como ponto
de revenda, do uso dos direitos autorais. Como bem demonstrou Castro
(2008), a gratuidade do acesso era apenas um fator (nem sempre o fator
determinante) em um contexto de crítica geral às tradicionais práticas da
indústria fonográca.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 229
Finalmente, os P2P revolucionaram a economia fonográca. Um
dos fatores que causou estranheza aos atores da indústria fonográca foi
que a razão de ser dos programas P2P não residia em vender os conteúdos
digitais, tampouco os próprios softwares, mas atrair usuários em larga escala
para suas plataformas. A intenção era cobrar ou por serviços especiais ou
pela publicidade a partir do momento em que detivessem uma massa crítica
de usuários. A lógica desse modelo de negócio dependeria da vontade dos
usuários de engajarem-se na rede. Isso era algo absolutamente sem sentido
para os agentes da indústria fonográca, formada por pessoas e instituições
moldadas para um negócio de venda de unidades físicas, produzidas em
fábricas.
Tal incompreensão se devia ao fato de que o negócio das empresas
digitais funcionava de acordo com uma economia de redes (VARIAN;
SHAPIRO, 1999). A denição dada pelos economistas é negativa, ou
seja, somente faz sentido ao ser comparada à economia industrial, denida
como um modo de desenvolvimento cujas tecnologias empregadas e a
dimensão geográca de distribuição dos produtos acaba por exigir um
planejamento rigoroso da produção, desde a obtenção dos insumos até
a decisão de compra dos consumidores (CHANDLER JUNIOR, 1977;
GALBRAITH, 1982). Devido ao custo de operação da produção, era
preciso saber com antecedência o quanto poderia ser consumido para se
colocar em marcha a produção. Isso é o que os economistas chamam de
economia de escala gerada pela oferta: são as empresas que calculam o
que vai estar disponível no mercado e sua quantidade. Ao longo do século
XX, portanto, as tecnologias industriais favoreceram o desenvolvimento
de estruturas burocráticas de organização da produção industrial,
verticalmente integradas. As grandes corporações foram o produto mais
bem acabado desse tipo de economia.
Ao contrário, a economia de redes funciona através de
ondas espontâneas de engajamento (o que os economistas rotulam de
retroalimentação positiva – positive feedback) ou desengajamento (o que
rotulam de retroalimentação negativa – negative feedback) a um produto
ou serviço. Uma vez que uma pessoa se engaja à rede, tende a trazer outras
pessoas de sua esfera de relacionamento. Na medida em que uma pessoa
de segundo grau se engaja, também ela tende a atrair outras pessoas de seu
círculo pessoal para utilizar o serviço, e assim sucessivamente. Isso faz a rede
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
230 |
de usuários crescer exponencialmente e, quanto mais pessoas estiverem
conectadas a uma rede, mais e mais pessoas quererão estar conectados
nela. Note-se que isso ocorre de forma aleatória, sem ser calculada pelos
administradores da rede, pois depende do desejo dos usuários em aderir à
(ou sair da) rede. Por isso os economistas denem tal fenômeno como uma
economia de escala gerada pela demanda.
Tome-se como exemplo o Napster. O Napster Inc. foi fundado,
em junho de 1999, por um universitário norte-americano, Shawn Fanning,
e um investidor, Sean Parker. Ele era uma startup cuja razão de ser residia
em facilitar aos usuários a procura e o intercâmbio de arquivos digitais
entre seus computadores pessoais. Para tanto, a empresa armazenava em
seu servidor central uma lista com os arquivos em formato MP3 que
seus usuários possuíam em seus computadores pessoais. De acordo com
a ComScore Media Metrix, durante o ano de 2000, o Napster passou de
3.135 milhões de usuários, no mês de abril, para 10.782, em dezembro
(um exemplo de retroalimentação positiva). Em determinado momento,
o programa chegou a distribuir 46,6 milhões de arquivos por mês, uma
média de 1,56 milhões por dia, tendo 25 milhões de usuários distribuídos
em diversos países. Sabe-se que a intenção dos empresários era cobrar
pelo serviço de busca por arquivos e conexão entre usuários da rede ou,
também, cobrar pelo espaço publicitário na interface do programa, mas
essa estratégia não teve tempo de ser implementada, uma vez que a empresa
foi considerada culpada por pirataria e se viu forçada a falir. Não obstante,
estava claro que o negócio do Napster era a produção de sua própria rede
de usuários, não a distribuição de arquivos de música.
De toda forma, os tradicionais agentes da indústria de discos
físicos acusaram os programas P2P apenas como um novo meio para a
pirataria. Em dezembro de 1999, iniciaram-se os processos contra a empresa
e o Napster foi julgado culpado (LADEIRA, 2008). O que se seguiu à sua
condenação foi uma cruzada contra outros programas P2P. Essa campanha
foi econômica e simbolicamente vultosa, não conseguindo apresentar uma
solução positiva para o declínio da venda de discos físicos. De toda forma,
esse esforço policialesco aumentou os riscos para startups interessadas em
desenvolver sistemas de distribuição de música gravada. Criava-se, assim,
uma barreira de entrada no mercado de conteúdos digitais que favorecia
as grandes empresas de TI. Não por acaso, a primeira empresa a oferecer
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 231
uma solução conciliadora entre o setor de TI e a indústria fonográca
foi a Apple, com sua combinação iPod e iTunes. Devido à capacidade de
pagar antecipadamente os royalties por direitos autorais e fonomecânicos, a
Apple celebrou acordos de distribuição digital com as principais gravadoras
e editoras musicais, tornando-se, desde logo, o principal ator no mercado
digital de música. Em seu primeiro ano de atividade, a iTunes Store vendeu
100 milhões de arquivos. Sem concorrentes à altura, a loja virtual chegou a
concentrar 70% das vendas de fonogramas digitais no mundo (IFPI, 2010).
No entanto, seu modelo de negócio apresentava limites. Em
primeiro lugar, os preços dos arquivos digitais simplesmente reproduziam
os dos discos físicos, o que não coadunava com uma das características do
consumo de conteúdos digitais: demanda por acesso a grandes quantidades
de conteúdos a baixo preço. Em segundo, a compra de um arquivo digital
não signicava que o comprador se tornava o proprietário do arquivo,
anal, no ambiente digital, tudo é cópia; não há um suporte físico a ser
possuído” por um proprietário (no máximo, torna-se proprietário de
memória de computador). Em poucas palavras, a “compra” signicava
um acesso a determinado arquivo por tempo limitado e sob condições
restritas. Daí que muitos arquivos tenham sido eliminados da memória de
iPods e iPhones sem a anuência ou mesmo o conhecimento dos donos dos
dispositivos, resultando em grande desapontamento com a experiência de
comprar na iTunes Store. Finalmente, fora dos Estados Unidos, a Apple
exigia que os usuários possuíssem cartões de crédito internacionais, o que
dicultava a formação de uma economia de escala gerada pela demanda
em âmbito global. Ao nal da década de 2000, portanto, estava claro que
o modelo de negócio do download pago estava prestes a alcançar seu limite.
É nesse momento que os serviços de streaming começam a
se apresentar como uma alternativa válida. Tais plataformas hospedam
conteúdos digitais em seus bancos de dados, dispensando o download para
dispositivos individuais. Assim, de um só golpe, tais serviços (1) impediriam
que os usuários intercambiassem os arquivos entre si, (2) criando uma opção
similar aos programas P2P pela quantidade de arquivos disponibilizados e
pelo baixo preço cobrado dos usuários nais pelo serviço e (3) eliminariam
a discussão sobre a “posse” dos conteúdos em favor de uma verdadeira
economia do acesso, para utilizar o conceito de Rifkin (2001).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
232 |
O modelo de negócio dos serviços de streaming depende
fundamentalmente de dois fatores. O primeiro é a escala de conteúdos
disponíveis, vez que as plataformas se singularizam por oferecer
quantidades de conteúdos digitais sempre contabilizadas em “milhões” de
arquivos. A magnitude dessa oferta é um aspecto fundamental para (a)
transmitir aos usuários a ideia de acesso a todo tipo de música que se possa
desejar, (b) criar uma economia de cauda longa e (c) fazer com que o
preço cobrado pelo serviço seja considerado baixo pela dimensão da oferta
(KISCHINHEVSKY; VICENTE; DE MARCHI, 2015).
O segundo é o uso intensivo de algoritmos de recomendação
automática de música: a quantidade de arquivos exige uma IA que otimize
o acesso aos conteúdos. Isso se deve nem tanto à alguma incapacidade do
usuário para buscar o que quer ouvir, mas por se entender que deixar que
a busca de conteúdos se restrinja ao que já se gosta é um impeditivo para
gerar uma economia de escala pela demanda em longo prazo. Levando-se
em conta que a maioria das pessoas escuta, em média, um número muito
limitado de músicas diferentes ao longo de seu dia, acessar uma plataforma
de streaming com “milhões” de arquivos para escutar as mesmas, digamos,
20 músicas de sempre, não faria qualquer sentido.
Se não há um engajamento espontâneo do/a usuário, a rede não
se expande, não se valoriza (ou seja, não atrai novos usuários), os usuários
não pagarão mensalidades, a plataforma não obterá uma quantidade de
dados privados para venda no mercado de publicidade, e logo a tendência é
que a empresa entre rapidamente em falência. Daí que se faz necessário um
sistema de algoritmos que recomende sempre mais e novos conteúdos que
cada usuário talvez venha a gostar. Isso enseja um engajamento contínuo
à plataforma, o que afeta a disposição de pagar por serviços e gera dados
privados que podem ser vendidos no mercado de publicidade. Por isso,
cada empresa investe no desenvolvimento de métodos avançados de
recomendação automática de conteúdos.
O uso intensivo de algoritmos de recomendação de conteúdos
representa um passo a mais em relação à economia de redes dos programas
P2P. Ainda que estes também utilizassem, claro, algoritmos para funcionar,
a tecnologia utilizada pelos serviços de streaming é bem mais sosticada
1
.
Fundamentalmente, em ciência da computação, algoritmo signica meramente uma sequência nita de
ações executáveis, escritas sem ambiguidades, como tarefa para a realização de um computador. Logo, todo
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 233
As empresas aplicam um conjunto de algoritmos para a mineração e o
processamento de big data a m de gerar mais dados sobre cada um de
seus usuários. Anal, como bem observa Srnircek (2017, p. 42), a coleta
e o processamento de dados educam e dão vantagem competitiva aos
algoritmos, permitem a coordenação e terceirização de trabalhadores,
permitem a otimização e exibilidade dos processos produtivos,
transformam produtos de baixo valor agregado em serviços de elevado
valor agregado, além do que a análise de dados é ela mesma geradora de
dados, resultando em um ciclo virtuoso que funciona em loop. Em suma,
o negócio das plataformas de streaming não é a curadoria dos conteúdos,
mas o desenvolvimento de sistemas de obtenção de dados privados. Vale
observar, nalmente, que o uso intensivo de IA abre a indústria fonográca
ao fenômeno da automação da economia (um fator cuja importância cará
explícita na próxima seção).
Os números da IFPI indicam que, em questão de poucos anos,
os serviços de streaming assumiram protagonismo na indústria fonográca
como um todo. Se em 2009, a venda de discos físicos equivalia a 70%
da arrecadação da indústria internacional, sendo o segmento digital
responsável por 25%, em 2014 essa relação chegou a 46% a 46% e, em
2018, o digital já representava 59% do total. Observando todas as categorias
do segmento digital, a gura apresenta pela IFPI (2019, p. 13) é: download
pago corresponde a 12%, streaming pago por publicidade a 10%, e as
mensalidades pagas aos serviços de streaming, 37%. Ainda que não se possa
falar em substituição da venda de discos físicos pelas atividades digitais,
pelo menos é possível armar que os serviços de streaming apontam para
um caminho de retomada do crescimento para a indústria fonográca
2
. Isso
não signica, porém, que essa indústria permanecerá restrita a tal modelo
de negócio. Pelo contrário, já se encontram no horizonte inovações que
permitem falar de um cenário pós-streaming.
computador moderno possui seus algoritmos que lhe dá operacionalidade. O que as plataformas digitais
estão desenvolvendo é, contudo, sistemas de algoritmos que funcionam conjuntamente para a realização de
tarefas complexas a partir do aprendizado de padrões (machine learning). Nesse caso, trata-se de uma forma de
Inteligência Articial fraca (Narrow Articial Intelligence).
2
Mesmo que ele não esteja isento de problemas e desaos, um dos principais obstáculos é o pagamento de
royalties por direitos autorais. A quantia paga supera, em geral, a própria arrecadação das empresas. O problema
se tornou notório quando o Spotify revelou que cerca de 70% de sua arrecadação bruta seguia diretamente pagar
os titulares de direitos autorais e ainda luta para obter lucro (ERIKSSON et al., 2019; KISCHINHEVSKY;
VICENTE; DE MARCHI, 2015).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
234 |
o cenárIo póS-StreaMIng: conSIderaçõeS SoBre a IndúStrIa
fonográfIca e a quarta revolução InduStrIal
Ao propor o termo pós-streaming, não se quer dizer que as
plataformas de streaming estejam plenamente consolidadas a ponto de
poder prever sua superação, tampouco que fracassaram, sendo urgente
encontrar alternativas. Como armado antes, é em torno das plataformas de
streaming que se desenvolverá o mercado fonográco digital nos próximos
anos, ainda que seu modelo de negócio esteja em disputa. O rótulo de
pós-streaming quer indicar um grupo variado de inovações que possuem
capacidade de conduzir a produção e o consumo de música gravada para
novos rumos. Assim, abrem-se diversas potencialidades e desaos para
produtores e consumidores de música, assim como para reguladores dos
mercados de comunicação e cultura.
Esse conjunto de inovações tem seu próprio rótulo no mercado
de ideias: quarta revolução industrial, conceito cunhado pelo economista
e fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab (SCHWAB,
2018; SCHWAB; DAVIS, 2018), e busca tornar inteligível uma série
de inovações em diversos campos do saber, com distintos efeitos sobre
a economia e a sociedade. Trata-se de reunir sob uma bandeira avanços
cientícos diversos, como a Inteligência Articial (IA), a Internet das Coisas
(IoT), a computação quântica, a neurotecnologia, a biotecnologia, as novas
tecnologias energéticas, entre outras. À primeira vista, o conceito parece
ser equivalente ao seu principal concorrente, a Indústria 4.0, expressão que
se refere à aplicação de IA na produção industrial. No entanto, como o
próprio Schwab (2018) faz questão de enfatizar:
A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a
sistemas e máquinas inteligentes e conectadas. Seu escopo é muito
mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente
em áreas que vão desde o sequenciamento genético até a
nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica.
O que torna a quarta revolução fundamentalmente diferente
das anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os
domínios físicos, digitais e biológicos.
É verdade que essa expressão não consegue disfarçar certo
oportunismo, não deixando de estar em sintonia com toda uma literatura
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 235
que se pode chamar de futurologia econômica, que tem destacado espaço
nas prateleiras de grandes livrarias na seção de economia-e-administração.
Não obstante, entende-se que há algo de valor nela: o reconhecimento de
que o avanço tecnológico contemporâneo torna inescapável a discussão
sobre a interpenetração entre agenciamentos humanos e não humanos.
Mais que alguma nova tecnologia apresentada ao mercado, que dará
progressão a uma nova fase da sociedade industrial, o centro das atenções
de Schwab está na transformação qualitativa das denições de trabalho e,
no limite, de ser humano. Ainda que o autor não denomine dessa forma,
sua ideia dá conta, de fato, de uma nova ontologia, na qual agenciamentos
entre humanos e não humanos criam mudanças profundas nas esferas
econômica, social e cultural, se é que esses termos ainda fazem algum
sentido teórico e prático quando os termos modernos de natureza e cultura
não mais cumprem uma função de oposição.
Ao aplicar tal concepção pós-humanista à indústria fonográca,
interessa saber não como as máquinas inteligentes substituem a força de
trabalho humana, mas, sim, como se mesclam com ela e a transformam
qualitativamente. O que se segue é um breve panorama de algumas das
inovações que estão à disposição no mercado de música e comentários
sobre seus possíveis efeitos.
O gOstO algOrítmicO: individualizaçãO dO gOstO e maras de ecO
Conforme observado antes, uma importante característica
dos serviços de streaming é o uso intensivo de IA para a recomendação
automática de música aos seus usuários. Ao longo dos últimos 20 anos,
a recomendação automática passou de métodos individuais e manuais
(como a prática da folksonomia, a atribuição de metadados feita pelos
próprios usuários, utilizada por plataformas como a Songsa e a ltragem
colaborativa da Last.FM) para a combinação de métodos complexos
a m de que os algoritmos possam identicar músicas por metadados,
características formais da música (batidas por minuto, andamentos,
usos de efeitos sonoros etc.) e/ou letras (AMARAL; AQUINO, 2009;
BONNIN; JANNACH, 2014; CIOCCA, 2017; SCHEDL et al., 2015).
Cada plataforma de streaming utiliza uma combinação própria. É difícil
armar com precisão quais são eles, uma vez que os algoritmos são segredo
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
236 |
industrial
3
. Não obstante, algumas indicações permitem entrever o que
tem sido utilizado pelas plataformas de streaming.
Uma referência importante é dada pela programadora Ciocca
(2017), em artigo no qual tenta descobrir quais são os métodos utilizados
pelo Spotify, sugerindo que a empresa deve conjugar, basicamente, três
métodos:
Modelos de ltragem colaborativa, que funcionam analisando
seu comportamento e o comportamento dos outros.
Modelos de Processamento de Linguagem Natural (Natural
Language Processing, PNL), que funcionam a partir da
análise de textos (metadados, artigos de notícias, blogs e
outros textos pela Internet).
Modelos de áudio que, por meio de redes neurais
convolucionais, analisam os áudios das faixas inseridas na
plataforma, em busca de similaridades formais (batidas por
minuto, tonalidades, entre outras variáveis).
A ideia que anima o desenvolvimento desses sistemas inteligentes
é o objetivo da recomendação personalizada. O que tais sistemas fazem
é (1) coletar traços digitais de um/a usuário/a, (2) cruzá-los com traços
digitais de outros usuários/as e (3) com outros metadados para (4) formar
um perl virtual composto (isso é, uma identicação digital que não
simétrica à pessoa atual), para realizar recomendações personalizadas. A
construção dos pers virtuais compostos é importante porque permite
à IA ampliar as possibilidades de oferta para cada indivíduo. Anal, as
possibilidades de ampliação de ofertas se abrem consideravelmente se o
gosto” de um usuário for fragmentado e combinado com fragmento de
milhões de outros.
Há nisso uma decisiva mudança qualitativa da noção de gosto.
Para a engenharia da computação, o gosto deixa de ser concebido como
De acordo com a Lei de Propriedade Industrial, o segredo industrial é aplicável a todo conhecimento capaz
de conferir a um determinado produto uma característica que o diferencia de concorrentes no mercado. Esse
direito garante ao seu criador a exclusividade sobre um produto por quanto tempo desejar ou na medida de
sua capacidade e habilidade de guardar um segredo, protegê-lo e fazê-lo perene através de mecanismos não
convencionais ou dos meios legais de que se dispõe para garantir uma patente ou direito autoral.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 237
uma questão de critérios absolutos (como a losoa dos séculos XVIII e
XIX pensou) ou por fatores social e historicamente determinados (como
as diversas tendências da sociologia do século XX armaram), passando a
ser entendido como o resultado da análise de um indivíduo fractal por IA,
a qual está disposta a descobrir probabilidades futuras de gosto baseadas
em escolhas passadas de cada usuário
4
. Ao contrário de se basear em fatores
sociais ou culturais (classe social, religião, cultura local), a IA está atrelada a
uma concepção biológica do indivíduo derivada da neurociência: o que lhe
interessa é saber manipular os sentimentos e afetos de cada indivíduo através
de mineração de dados pessoais e até pela análise de dados biológicos dos
indivíduos. Como bem lembra Harari (2018), os algoritmos de dispositivos
individuais (o celular, por exemplo) podem acessar sensores atrelados aos
corpos dos indivíduos para lerem suas emoções via variações hormonais ou
cardíacas (para quem acha que isso é pura especulação, basta lembrar que
alguns aplicativos já selecionam músicas para atividades físicas, baseando-
se na leitura que GPS e/ou monitores cardíacos).
O crescente protagonismo dos sistemas de recomendação de
música tende a gerar uma externalidade negativa, contudo: as chamadas
câmaras de eco de gosto ou ltros-bolhas. Esse fenômeno se dá quando
algoritmos criados para recomendação de conteúdos digitais medem
seletivamente as informações que um usuário deseja ver com base nas
informações sobre o usuário, suas conexões, histórico de navegação,
compras e postagens e pesquisas. Isso faz com que os usuários se separem
da exposição a informações mais amplas que não concordam com seus
pontos de vista (PARISER, 2012). Isso é, como as indicações automáticas
são feitas aos indivíduos tendem a escutar apenas variações dos mesmos
produtos, em detrimento de diversas alternativas disponíveis.
Tal tendência se torna ainda mais relevante ao se considerar que
tais sistemas de recomendação alcançarão seu potencial pleno ao serem
inseridos em sistemas inteligentes de administração de ambientes (como
o sistema operacional Alexa, da Amazon, ou o Siri, da Apple, pensados
para ambientes inteligentes). Não é exagero entrever a construção de
ambientes inteligentes (automóveis e casas, por exemplo) em que a
recomendação de produtos e serviços (entre eles, a recomendação de
4
Sou particularmente grato a Rafael Machado pela discussão sobre a transformação do conceito de gosto na
atualidade para os desenvolvedores de IA.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
238 |
música, estações de rádio, podcasts e outros serviços de música gravada)
serão realizadas majoritariamente por IA. Cria-se, assim, um grave risco
à diversidade cultural.
uma arte cibOrgue: a prOduçãO algOrítmica de música
Outro setor que tem avançado a passos largos é o desenvolvimento
de algoritmos para a produção sintética de música. Nos últimos anos,
sistemas de criação de música por IA têm apresentado resultados
concretos. Há empresas como a Jukedeck (https://www.jukedeck.
com) que oferece pela Internet a possibilidade de qualquer usuário sem
conhecimento de teoria musical criar uma música através de algoritmos.
Um aplicativo de celular, como o da Endel, recolhe dados pessoais (dados
como clima, hora do dia, localização por GPS, frequência cardíaca e/
ou de passos) para produzir trilhas sonoras personalizadas, ajustadas à
atividade do usuário. No limite, já estão sendo lançados no mercado
discos completos de artistas que são uma verdadeira arte ciborgue: o/a
artista, junto com um produtor-programador, utiliza redes neurais para
produzir canções completas. Um exemplo notável é a faixa Daddys Car,
composta pelo sistema de deep learning da Sony CSL (https://www.
youtube.com/watch?v=LSHZ_b05W7o), baseada na capacidade de sua
IA de apreender as principais características das músicas dos Beatles.
Não há dúvida, porém, que o divisor de água dessa inovação é o álbum
I’m AI (independente), da cantora estadunidense Taryn Southern. O
disco foi composto via deep learning, sendo desenvolvido em um esforço
conjunto de quatro empresas (Amper Music, Watson Beat (IBM),
Magenta (Google) e AIVA). Enquanto a artista programou os algoritmos
para compararem os arranjos e simularem os sons dos instrumentos, o
produtor humano do disco apenas corrigiu um ou outro erro nos arranjos
feitos pela IA.
Os avanços nesse setor estão se dando tão rapidamente que,
em 2019, a gravadora Warner Music assinou o primeiro contrato para a
produção de 20 álbuns (ou algo em torno de 600 músicas) por algoritmos
com a Endel, para serem lançados ao longo de 2019 e 2020 (STASSEN,
2019). Algumas dessas produções já estão disponíveis em serviços de
streaming como Apple Music, Spotify e Deezer
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 239
Os algoritmos de produção musical são, de longe, a inovação
que promete a mais profunda transformação no mercado de trabalho da
música gravada. Desde logo, está claro que empregos serão destruídos
(técnicos de som, intérpretes de determinados instrumentos, produtores
musicais que não souberem lidar com programação, entre outras funções),
mas não está claro que novas prossões serão criadas nesse novo cenário.
Harari (op. cit.) é muito feliz em sua discussão sobre a automação da
economia na era digital ao lembrar que há uma concreta e considerável
probabilidade de uma grande massa de trabalhadores carem sem função
em um mercado automatizado. Claro, os prossionais que souberem
programar a IA, grandes cantores/as, notáveis intérpretes e compositores
de músicas de sucesso terão seu espaço garantido nesse novo cenário
(e provavelmente ganharão muito mais dinheiro do que ganham
atualmente), mas outros tipos de prossionais menos qualicados podem
ter de abandonar o mercado de música. Se é possível que experiências
como a de Taryn Southern se mantenham como exceções no grande
mercado de música popular, sempre necessitando de novas estrelas,
nichos (trilhas sonoras para publicidade, Internet, música ambiente, entre
outras possibilidades) devem ser tomados pela automação, porém. Além
disso, considerando que o principal formato fonográco das plataformas
de streaming é a playlist, na qual uma grande quantidade de músicas
toca em sequência de forma aleatória, a possibilidade de uso intensivo de
faixas produzidas automaticamente é considerável.
Outro ponto fundamental é a desigualdade econômica entre os
agentes dessa indústria. É decisivo entender com quem cam os royalties
de direitos autorais dessas composições automatizadas. Dependendo da
família jurídica que uma legislação de direitos autorais pertence, o direito
autoral dessas obras pode car totalmente com a gravadora/editora (sendo,
como se entende na tradição do copyright como obra de encomenda),
sem que tenham de dividir seus lucros com outros agentes. O nível de
concentração nanceira entre as majors seria algo sem paralelos na história
da indústria. Isso gera uma grande dúvida sobre a capacidade das gravadoras
independentes de responderem a esse cenário.
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240 |
desintermediaçãO Ou nOvOs intermediáriOs dO mercadO digital?
Um fantasma ronda a Internet desde seu início: o fantasma da
desintermediação das relações econômicas. O projeto do capitalismo sem
fricção (frictionless capitalism) de Gates (1995) sempre aparece sob algum
novo disfarce. A máscara do nal da década de 2010 é a blockchain. Essa
tecnologia pode ser denida como uma base de dados de contabilidade
distribuída para registrar transações de tipo P2P (SCHWAB; DAVIS,
2018). Trata-se do sistema de vericação das transações da criptomoeda
bitcoin
5
. Por ser acessível a toda comunidade de usuários, a blockchain
permite prescindir de qualquer autoridade central que, politicamente,
garanta a validade das transações econômicas. Ainda que seja o pilar do
funcionamento da bitcoin, a blockchain pode ser utilizada separadamente,
como tecnologia de certicação de dados. Assim, qualquer relação
econômica realizada pelos membros de uma comunidade poderia ser
avaliada como verdadeira pelos outros
6
.
Muito se tem debatido sobre as possíveis aplicações da blockchain
na indústria da música, um negócio historicamente caracterizado pela
opacidade das relações econômicas entre produtores de conteúdos e
atravessadores das obras. Nas publicações que se dedicam ao tema, podem-
se encontrar menções às mais diversas utilizações (TAKAHASHI, 2017).
Entre elas, merecem destaque:
Smart contracts: contratos inteligentes que têm o potencial
de substituir os convencionais, feitos com gravadoras e/ou
agregadores de conteúdos. O serviço funcionaria anexando-
se um contrato inteligente a cada produção que um artista
disponibiliza no mercado, permitindo à IA fazer a divisão e a
remessa da receita de acordo com os termos estipulados pelo
contrato.
Criptomoeda é um meio de troca descentralizado que se utiliza da tecnologia de blockchain e da criptograa
para assegurar a validade das transações e a criação de novas unidades da moeda. A Bitcoin foi criada em 2009
por um programador (ou grupo de programadores) que usou o pseudônimo Satoshi Nakamoto.
6
A mineração é uma operação feita por algoritmos que servem para a validação de transações. Trata-se de fazer
os “mineiros” (algoritmos) vericarem uma transação ao mesmo tempo, em uma competição por recompensas.
Se bem sucedidos (comprovação da validade da transação), um mineiro recebe uma criptomoeda. O pressuposto
desse mecanismo é que tal recompensa diminuiria os custos de transação, criando um incentivo complementar
para contribuir para o poder de processamento da rede.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 241
Monitoramento da demanda e preços exíveis: Os preços para
conteúdo criativo podem utuar de acordo com a oferta e
a demanda. Dotados da blockchain, os artistas poderiam
monitorar a demanda imediata por suas obras e estipular
preços sem ter que passar por uma complexa rede de
intermediários. Como a tecnologia possui registros de quem
recebeu direitos de acesso a trabalhos criativos, isso pode ser
aproveitado para precicar dinamicamente as obras.
Micrometragem e micromonetização: a tecnologia permite uma
metricação e precicação para pedaços de uma obra sonora
para uso, digamos, em um produto audiovisual. Esse tipo
de “micrometria” funcionaria registrando os componentes
precisos do trabalho criativo que foi usado, denindo a
menor unidade consumível do conteúdo disponível.
Evidentemente, há consideráveis obstáculos à aplicação da
blockchain nesses termos sugeridos. Acima de tudo, para que essa
tecnologia funcionasse de forma plena, seria necessário um tal nível de
padronização das informações da indústria da música em nível global que
parece ser pouco factível (diriam alguns, indesejável) mesmo que pensando
em longo prazo. Não obstante, se observadas em uma escala menor (isso
é, uma startup que ofereça um serviço especíco), certas aplicações são
realmente possíveis.
É interessante observar que se trata menos de uma proposta
de desintermediação do que de uma troca de mediações. Nesse caso, os
algoritmos possuiriam independência para realizar todas as transações
econômicas, construindo oferta e demanda e, entre si, celebrando
transações econômicas (através de criptomoedas), nalmente enviando os
royalties diretamente para seus clientes.
Outro fenômeno (menos comentado, porém, mas igualmente
capaz de causar uma disjunção do mercado musical digital) é o movimento
do Spotify de assinar contratos diretos com artistas para a gravação de
material inédito para sua plataforma. Ao abrir seu capital na bolsa de Nova
York, em 2018, a empresa lançou um documento no qual armava aos
possíveis investidores que, para superar os contínuos décits, passaria a
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
242 |
assinar contratos diretamente com artistas para álbuns que pertencessem
à plataforma, na linha do selo Originals, do Netix. Com isso, o Spotify
previa obter lucro ao não ter de pagar royalties para os titulares de direitos
autorais das músicas que distribui. Se essa tendência for levada a cabo, ela
promete solapar uma parte do mercado digital tomada pelos agregadores
de conteúdo e, no limite, observa com acuidade a jornalista Pelly (2019),
pode se provar fatal até para pequenas gravadoras, causando uma total
atomização do mercado de trabalho.
***
Evidentemente, está-se especulando cenários com um conjunto
de novas tecnologias que, apesar de já estarem disponíveis no mercado,
ainda não provaram ser capazes de apresentar consequências de longa
duração. Não obstante, é preciso deixar de lado as tecnologias em si e
pensar, como sugerem Schwab e Davis (2018, p. 36) em sistemas, isso
é, normas, regras, expectativas, objetivos, instituições e incentivos que
dão norte ao comportamento ordinário. Nesse sentido, é preciso ver o
que há de comum entre elas: o objetivo de construção de ecossistemas
midiáticos inteligentes em que conteúdos digitais de música possam ser (a)
produzidos por IA, (b) distribuídos por recomendação automática, tendo
(c) os pagamentos feitos às empresas de forma direta por tecnologias de
certicação automática. Se assim for, há dois aspectos que logo levantam
questionamentos: o mercado de trabalho e a diversidade cultural.
Está claro que a motivação econômica que sustenta tais
desenvolvimentos tem como objetivo a retirada do mercado de boa parte
dos atuais mediadores (de gravadoras e escritórios centrais de arrecadação
de direitos autorais até os agregadores de conteúdos digitais), aumentando
os retornos das empresas desenvolvedoras, grandes gravadoras e editoras
de música. Para os produtores de conteúdo em geral, no entanto, a
situação apresentaria dois cenários. Por um lado, algumas dessas inovações
permitiriam que os artistas assumissem para si boa parte da condução de
suas carreiras.
Não obstante, implicaria crescentes custos, pois exigiria novas
camadas de mediações (por exemplo contratar empresas de TI, escritórios
de advocacia que produziriam os smart contracts, os mineradores de
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 243
blockchain e assim sucessivamente). Por outro, trata-se de acabar com todo
um nicho de trabalho de um só golpe: o de trilhas sonoras e sincronização
em produtos audiovisuais e internet. É verdade que sempre se pode apelar
para o argumento de novas tecnologias solapam certas prossões, mas
criam outras. Porém, a questão correta a se fazer é: seriam esses novos
postos de trabalho sucientemente bem remunerados para a média dos
produtores de conteúdo?
A diversidade cultural é outro fator que se coloca em questão
nesse cenário. É lógico a combinação de IA que produz música com a que
recomenda música tende a produzir câmaras de eco que podem colocar a
diversidade de produções musicais se não em risco (anal, as plataformas
de streaming disponibilizam milhões de arquivos distintos entre si,
indubitavelmente), seguramente em segundo plano.
Apesar da disponibilidade de diversos arquivos, os sistemas de
recomendação tendem a apontar “mais do mesmo” em termos de conteúdos
digitais (RANAIVOSSON; HOELCK, 2017). Como são algoritmos
proprietários, paira a dúvida de se tais recomendações seriam feitas apenas
com base no que os algoritmos de recomendação julgam ser o efetivo
gosto de cada usuário ou incluiria interesses constituídos de empresas e/ou
empresários que têm poder para inserir as obras de seus artistas na maior
parte das playlists das plataformas de streaming.
Nesse cenário pleno de dúvidas, torna-se crítico discutir novas
formas de regulação do mercado de conteúdos digitais. É necessário, no
entanto, repensar o papel do Estado nos mercados de comunicação e
cultura e das políticas culturais, em particular.
para Se penSar aS polítIcaS culturaIS no Século XXI
As políticas culturais se encontram em uma encruzilhada.
Por um lado, políticos de orientação neoliberal têm sistematicamente
limitado a capacidade dos estados nacionais de atuarem nos mercados
de comunicação e cultura. Por outro, as plataformas digitais globais
apresentam novas situações que problematizam os valores e práticas que
caracterizaram as tradicionais políticas culturais do século XX. Nessa
seção, quer-se insistir que não se trata de duas situações distintas, mas
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
244 |
partes complementares de um mesmo problema, para poder apontar
linhas de fuga possíveis para tal impasse.
A implementação do preceito neoliberal do Estado mínimo tem
afetado também o setor da cultura. Na medida em que o argumento de
governos “técnicos” (isso é, que seguem restrições orçamentarias) avança,
experimenta-se uma transformação dos valores que regem as políticas
culturais. De pressupostos mais intervencionistas, isso é, que percebem
a necessidade do Estado agir diretamente como intermediário no acesso
da população às artes (o modelo francês, proposto por Malraux), tem-
se passado para uma concepção do Estado como regulador do mercado
de bens simbólicos. Assim, nota-se uma crescente concordância em que,
diante da crescente complexidade dos mercados de bens simbólicos
(notadamente com o surgimento das plataformas digitais e a abundante
oferta de conteúdos digitais), a forma mais produtiva de ação estatal é
por meio da regulação dos agentes privados que oferecem o acesso aos
conteúdos digitais, ao invés de formas mais diretas de intervenção no
modus operandi das empresas de cultura.
Preferem-se, assim, políticas de incentivos scais à legislações que
obrigam, por exemplo, a disponibilização de cotas de produtos nacionais
nas plataformas distribuidoras. Existe, no limite, certa sensação de que o
Estado não é mais capaz de garantir o acesso da população à pluralidade
de produções artísticas hoje disponíveis, sobretudo por meios digitais. Essa
perspectiva justica a sistemática diminuição do orçamento de secretarias
ou ministérios dedicados à cultura e, no limite, o desmonte de suas
estruturas burocráticas.
Por seu turno, as plataformas digitais globais se apresentam como
a solução técnica para o complexo cenário atual. Anal, seus bancos de
dados são capazes de absorver milhões de arquivos, produzidos em todas
as partes do mundo, de todos os gêneros musicais possíveis. Com efeito,
um usuário brasileiro pode ouvir um kuduro de Angola, uma boy-band da
Coréia do Sul, uma chansong francesa ou grupo de rap peruano, posto que
há arquivos de artistas desses países disponíveis em qualquer plataforma de
ponta. Ao contrário do que faziam as gravadoras, as plataformas digitais
não selecionam que tipo de música irão tocar, oferecendo acesso a todo
tipo de artista e gênero musical. Nessa perspectiva, armam tais empresas,
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 245
não se deve ter mais preocupação com a diversidade cultural: esta é um
pressuposto do funcionamento das plataformas.
Mais importante é, porém, que seus sosticados sistemas
inteligentes de recomendação de conteúdos são apresentados como o
melhor instrumento para medir o que cada um de seus usuários deseja ouvir.
Esse é um ponto fundamental em seu argumento porque, nas plataformas
digitais, a concepção de radiodifusão (comunicação um-muitos) parece
estar ultrapassada. Assim, políticas culturais que busquem, por exemplo,
impor cotas de produtos às empresas digitais seriam não apenas inócuas
(pois os algoritmos proprietários poderiam facilmente eludir tais arquivos),
como também soariam arbitrárias e, no limite, autoritárias: o Estado não
tem como medir com precisão (do ponto de vista técnico mesmo) o que
seus cidadãos gostam, logo, não deve arbitrar sobre o que devem ouvir
privadamente. Isso signica dizer que sai de cena o conceito de “interesse
geral” em favor do imperativo do “interesse individual” que somente pode
ser medido através de big data.
Esse “solucionismo” tecnológico, como rotula ironicamente
Morozov (2018), não deve ser visto como algo a parte da situação da
política, mas como sua condição de possibilidade. Isso é, a saída do Estado
do mercado de bens culturais pressupõe a entrada das plataformas digitais
privadas em seu lugar. E a entrada das plataformas digitais impõe, por
seu turno, um cenário que sistematicamente impede o Estado de voltar a
agir: qualquer proposição de políticas culturais mais ativas será lida como
autoritária e ineciente.
Então, que política cultural é possível? Não há espaço, aqui, para
alongar-se sobre possíveis respostas. Mas parte-se do princípio de que será
necessário discutir e experimentar, sem medo de fracassos. Faz-se necessário
encontrar novas proposições que levem em conta o cenário tecnológico
atual, mas que representem uma contraposição concreta à racionalidade
neoliberal que acompanha as plataformas digitais. Nesse sentido, é urgente:
Revitalizar meios de comunicação públicos, em que Estado
e sociedade civil organizada possam colaborar na construção de
plataformas digitais.
Buscar estratégias de regulação dos algoritmos proprietários
dos serviços de streaming.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
246 |
Desenvolver algoritmos de código aberto, para a discussão
pública de seus objetivos.
Repensar todo o sistema de apoio às indústrias criativas,
dando ênfase à capacitação da mão de obra humana para
saber lidar com as diferentes manifestações de IA.
Finalmente, rever o sistema de arrecadação e distribuição de
royalties de direitos autorais, a m de evitar que as empresas se valham
apenas de música produzida por algoritmos para concentrar renda,
deixando sem rendimentos músicos e compositores humanos.
Acima de tudo, será necessário revitalizar o sentido de fazer
política, pois está evidente que é na esfera da política (e não na do mercado)
que se podem construir instrumentos que regulem as externalidades
negativas da inexorável automação das indústrias criativas. É igualmente
necessário rediscutir o conceito de “cultura”, uma vez que se encontra em
xeque diante dos avanços tecnológicos e intelectuais que ultrapassam a
moderna divisão entre cultura e natureza. No limite, é preciso repensar o
Estado para poder resgatá-lo como mediador de interesses constituídos e
garantidor do avanço da democracia.
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M ,  

Christiano Rangel dos Santos
Introdução
O mercado brasileiro de música popular tem sido marcado
por uma forte predominância da música sertaneja. A força do gênero se
expressa tanto em visibilidade midiática como em número de shows, e a
ele estão ligados a maior parte dos artistas do país com os maiores cachês
por apresentações ao vivo. Uma posição de mercado que não é tão recente,
tendo, pelo menos, quase dez anos. E, ainda que a música sertaneja
ocupasse um lugar de destaque na preferência musical dos brasileiros há
várias décadas, na segunda metade dos anos 2000 começou sua fase de
maior aceitação e êxito mercadológico.
https://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-38-5.p249-272
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
250 |
Entre 2007 e 2009, já estava avançado o processo que levou o
gênero a alcançar a maior projeção de sua história. O mercado fonográco
nacional encontrava-se praticamente solapado pela pirataria física, então
responsável pelas vendas da maioria dos títulos musicais (CDs e DVDs)
consumidos no país; e a internet ainda não era um meio tão importante para
o acesso à música como passou a ser um pouco depois. Havia um processo de
emergência e consolidação de mercados musicais regionais, os quais existiam
e funcionavam sem depender do sistema tradicional – comandado por
grandes gravadoras – de produção e venda de músicas. Entre os principais,
nesse momento, estavam o da axé-music, na Bahia; o do forró, no Ceará;
o do tecnobrega, no Pará; e o da música sertaneja, no interior do país, que
possuía uma abrangência maior, perpassando vários estados.
Eram mercados que cresciam, impulsionados pelas novas
tecnologias digitais (que baratearam signicativamente a produção
e a gravação de músicas, a ponto disso poder ser feito em pequenos
estúdios, muitas vezes improvisados, e até no quarto de uma casa) e pela
impressionante expansão da pirataria física (que tornava os títulos musicais
mais acessíveis, devido ao baixo preço, além de também colocar à disposição
do público trabalhos de artistas sem contrato com gravadoras). Um novo
sistema musical estava surgindo dentro de uma lógica descentrada ou não
necessariamente irradiada a partir do que fora, por várias décadas, o grande
centro de produção e difusão musical do país: o eixo Rio-São Paulo.
A importância do mercado pirata para essa nova lógica era
reconhecida, mas não descolada de um intenso debate sobre sua legitimidade,
porque sua enorme expansão estava causando efeitos devastadores na
tradicional indústria fonográca, além de seu funcionamento à margem
da lei não remunerar os detentores dos direitos autorais das músicas. O
fato é que muitos artistas, produtores e empresários haviam optado por
trabalhar abrindo mão completamente desses direitos e apostando nesse
mercado como uma forma de divulgação, de disseminação da música que
produziam – visando auferir receita com a possível demanda por shows.
Outros tantos, porém, não concordavam com isso, e o mercado pirata não
fazia essa distinção.
Ganhou força, então, a leitura (quase de senso comum) de que
a pirataria democratizava não só o acesso, mas também a divulgação
musical, permitindo que muitos dos sucessos musicais emergissem a partir
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 251
dela, um argumento fartamente veiculado pela imprensa, meio em que se
expressava a adesão de muitos jornalistas e prossionais da música. Esse
era o caso da cena do tecnobrega, do Pará, que acabou sendo adotado
como um parâmetro importante para esse entendimento
1
. Contudo,
essa interpretação, feita de maneira generalizada, parecia excessivamente
romântica e, ao mesmo tempo, não dava conta do papel que a pirataria
cumpria em diferentes mercados musicais e seus sistemas de produção,
consumo e difusão musical.
Nesse momento, entretanto, o mercado de música sertaneja,
o maior de todos os regionais, operava em outra lógica. A função que
a pirataria cumpria nele não era a mesma. E isso não era levado em
consideração nas discussões sobre o tema, até porque se sabia muito
pouco sobre esse mercado, apesar de sua relevância. Foi com essa
característica que me deparei em meu estudo sobre a pirataria musical,
que teve como ponto de partida um trabalho de campo realizado mais
ostensivamente entre 2008 e 2009 em Uberlândia, Minas Gerais, uma
das principais portas de entrada para o mercado da música sertaneja,
sendo ele dominante no município. Mas a necessidade de compreender
esse mercado de maneira mais ampla se impôs, não cando a análise,
assim, circunscrita à cidade mineira.
A força da música sertaneja, nesse período, se expressava com a
contribuição de um fator exponencial. Ela tinha à sua disposição, há mais de
uma década, o maior e mais poderoso circuito de shows do país, associado
ao bilionário ramo do agronegócio, o responsável pela realização anual de
milhares de rodeios e festas agropecuárias; eventos incluídos no calendário
anual de grande parte das cidades brasileiras. Um universo em que o
gênero ocupava um lugar especial, porque fazia parte da representação de
ruralidade que ele envolve. E ao contrário dos outros mercados regionais,
esse circuito era (e é ainda hoje) tão grande que se estendia a vários estados
da federação, com maior presença nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul,
propiciando, assim, que ele fosse, disparado, o mais forte economicamente.
Nessas discussões, o livro escrito por Lemos e Castro (2008), que traz um estudo sobre a cena do tecnobrega,
gênero paraense, inuencia muito o debate. Porque a pirataria, sobretudo a física, era central para sua existência
e, de fato, muitos artistas conseguiam ser bem-sucedidos na divulgação de suas músicas por esse meio, em
grande parte com simples gravações caseiras. Mas esse era um caso bastante particular, com um mercado que,
embora importante, não era tão desenvolvido e nem operava com o mesmo grau de racionalização e controle
que havia em outros, como o do sertanejo, da axé-music e do forró. Um aspecto pouco levado em conta nas
discussões sobre a pirataria.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
252 |
Como gerava muito dinheiro, a disputa pelo sucesso no mercado
sertanejo estava cada vez mais acirrada, existindo um intenso grau de
racionalização da produção e das regras que o regiam; com muitos dos
vícios da tradicional indústria fonográca sendo reproduzidos, como
a disseminada prática do jabá – pagamentos por visibilidade no rádio e
na tevê – e com uma concentração de poder nas mãos de empresários e
escritórios de agenciamento de artistas. Sem o jabá e a carreira trabalhada
direta ou indiretamente por empresários inuentes, muitos com grande
poder econômico, a construção de um grande sucesso sertanejo mostrava-
se pouco provável. Essa constatação destoava de avaliações que exageravam
nas interpretações de que o mercado musical brasileiro estaria em um
momento de grande democratização, pouco ou nada considerando que,
nos mercados regionais mais estruturados, havia um acentuado controle
por agentes locais. Gravar um disco ou uma música era relativamente fácil,
a diculdade era conseguir tocar nas rádios, aparecer na tevê e chegar a
certas casas de shows e eventos – espaços estratégicos e de custos elevados.
Os casos do forró eletrônico, do Ceará, e da axé-music, da Bahia,
eram conhecidos há algum tempo, com a existência de um grande poder
concentrado por empresários, alguns chegando a serem proprietários de
várias bandas de maior sucesso. Mas o caso da música sertaneja ainda era
pouco estudado e falado, tanto que provocou certa surpresa e até espanto
quando um número cada vez maior de artistas do gênero começou a
ocupar o cenário nacional, catapultados pelo êxito que alcançavam,
primeiramente, em âmbito regional.
Contudo, antes de se tornar mais visível para a imprensa e
outros intermediários culturais dos grandes centros, o mercado da música
sertaneja, no interior do país, estava consolidado e já era o maior e o mais
rentável, estando, em grande parte, completamente fora do radar das
pesquisas que mediam o consumo de música no Brasil (feitas basicamente
com dados da indústria ocial), porque os lançamentos do gênero eram
adquiridos, em sua maioria, no mercado pirata
2
Essa fase de grande projeção da música sertaneja vem de um processo de crescimento do reconhecimento de
sua importância para a cultura brasileira, que se intensicou alguns anos antes, e que veio a contar também com
uma relevante contribuição do surgimento de uma nova vertente do gênero, o chamado sertanejo universitário,
que trouxe uma nova sonoridade e que levou a música sertaneja a ser mais aceita por estratos sociais resistentes
a ela e a atingir maior popularidade em estados onde isso pouco ocorria, como, por exemplo, Bahia e Rio de
Janeiro. Sobre isso, ver também Alonso (2015).
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 253
Analisa-se, no presente artigo, esse momento especíco do mercado
da música sertaneja (em que sua força não era tão visível ou reconhecida) e
a função que a pirataria musical exerceu em seu funcionamento, em uma
abordagem que tem como base o exame realizado em minha dissertação de
mestrado, intitulada Pirataria musical: entre o ilícito e o alternativo, autoria
de Santos (2010), da qual esse aspecto é apenas parte de um estudo mais
amplo sobre a pirataria fonográca no Brasil.
o Mercado da MúSIca Sertaneja: o MaIor do paíS
Nos anos 2000, o modelo de mercado fonográco liderado
pela indústria do disco entrou em colapso, em uma crise provocada,
em sua maior parte, pela expansão da pirataria física. Títulos musicais
em áudio e vídeo (CDs e DVDs) eram vendidos pelo mercado pirata a
preços baixos, contemplando as preferências musicais locais e gêneros
tradicionais regionais melhor do que a indústria ocial. Isso, associado
ao barateamento das tecnologias de gravação, propiciou a emergência e
o consequente fortalecimento de pujantes mercados musicais regionais.
O mercado da música sertaneja tornou-se o mais poderoso deles, e não
por acaso: contava com a vantagem de estar vinculado ao agronegócio,
que passou por um expressivo crescimento a partir da década de 1990,
expandindo, assim, aquele que se tornou o maior e mais regular circuito de
shows do Brasil, precisamente o ligado aos rodeios e festas agropecuárias.
Anal, a música sertaneja fazia parte do tipo de identidade social, de
ruralidade que gurava nesse universo. E compreender esse circuito
de eventos permite conhecer melhor sua importância para o mercado
sertanejo e suas conexões com a pirataria.
Os números impressionam. A quantidade de rodeios e festas
agropecuárias aumentou e passou a integrar o calendário anual de eventos
de muitas cidades. Segundo Alem (2005, p. 96-97), entre 1992 e 1994,
cerca de 90% dos eventos ocorreram nos estados de São Paulo e Minas
Gerais. Em 1999, apenas em São Paulo, aconteceram 650 eventos, com,
pelo menos, 13 milhões de pagantes. Somente em 1996, entre exposições
agropecuárias, festas de rodeio e leilões de gado, foram movimentados, no
Brasil, quase US$ 3,3 bilhões. Nem todos os eventos, porém, aparecem nas
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
254 |
estatísticas e, por isso, há diculdades na aferição precisa de quantos deles
foram realizados anualmente.
Essas variações podem ser percebidas nas informações divulgadas
pela imprensa. Conforme menciona Alem (2005, p. 96-97), a estimativa
da Folha de São Paulo de que, em 2003, foram realizados 1.200 eventos,
com um público de 31 milhões de pessoas. O mesmo jornal armara, em
2002, que 1.839 promoções ociais aconteceram, sendo grande parte delas
no Centro-Oeste e Sudeste. A revista Época, publicando dados fornecidos
pelo grupo Os Independentes e pela Confederação Nacional de Rodeios,
informou que estimava-se ocorrer anualmente cerca de 1.800 rodeios, com
um público de aproximadamente 35 milhões de pessoas (LEAL, 2005).
Dicilmente uma exposição agropecuária dispensava os rodeios.
Quase sempre era uma associação de eventos que contemplava múltiplos
negócios, reunindo espetáculos de arena com performance de peões,
leilões, venda de maquinário agrícola, bailes e comércio de produtos
country em lojas, nas quais o visitante encontrava toda a indumentária do
estilo cowboy, como bolsas, cintos, botas e chapéus. Os shows musicais
eram instrumentos importantes para a atração de públicos massivos e
abrangiam diversos gêneros, sendo o sertanejo preponderante, até porque
fazia parte da representação de identidade social trabalhada nesse universo
do agribusiness (ALEM, 2005, p. 96-97).
A maioria dos eventos era realizada em cidades do interior de São
Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná, com uma quantidade
de apresentações musicais que podia variar. Pelo menos durante quatro dias
havia uma atração por noite, quase sempre um nome famoso no cenário
nacional. Em muitos casos, a programação de shows se prolongava por
mais tempo, podendo contar com a participação de vários artistas em um
mesmo dia. Festas de cidades pequenas alcançavam um público expressivo,
porque atraíam pessoas de regiões próximas e longínquas, sendo comum a
exibição de cantores, duplas e bandas cujos cachês estavam cotados entre
os maiores do país.
Um exemplo era a Expoagro de Guaxupé, cidade mineira que,
de acordo com a estimativa de 2009, do Instituto Brasileiro de Geograa
e Estatística (IBGE), contava com 49.719 mil habitantes. Das atrações
escaladas para a 34ª edição, realizada em 2009, cinco cobravam cachês que
giravam em torno de R$ 150 mil (top no mercado musical brasileiro), e
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 255
as demais cobravam valores entre R$ 50 e R$ 100 mil. Na programação,
constavam shows com as duplas Maria Cecília e Rodolfo, Hugo Pena e
Gabriel (ambos no dia 03/07) e com Bruno e Marrone (04/07), Roupa
Nova (05/07), Juliano César (08/07), Jorge e Mateus (09/07), César
Menotti e Fabiano (10/07), João Bosco e Vinícius (10/07), Edson e
Hudson (11/07), Chitãozinho e Xororó (12/07) e Zé Henrique e Gabriel
(12/07)
3
. Os ingressos foram disponibilizados em pontos de venda de 14
municípios próximos.
Em cidades do mesmo porte de Guaxupé, salvo exceções, essas
festas costumavam ser menores, tendo apenas três ou quatro atrações
de renome. Todavia, os shows que ocorriam no interior do país não se
restringiam aos rodeios e festas agropecuárias; eram realizados, em número
cada vez maior, em outros períodos do ano, em simples apresentações
isoladas ou em eventos maiores.
O mercado da música sertaneja movimentava um volume
de dinheiro grande o suciente para instigar a adoção de estratégias de
mercado agressivas e também uma acirradíssima competição. Seu sistema
de divulgação era bem diferente, por exemplo, do observado na cena
do tecnobrega do Pará, onde com apenas uma música e com baixíssimo
investimento era possível conquistar sucesso e tocar no rádio sem o
pagamento de jabá. O esquema era inteiramente prossional e a divulgação
nas rádios, vital. Elas eram simplesmente o referencial “número 1” para
os contratantes de shows. Muitas emissoras, sabendo da importância que
tinham, dicilmente inseriam músicas em sua programação sem pedir
nada em troca. Aliás, nem precisavam pedir: os próprios interessados na
divulgação as procuravam para negociar “campanhas de marketing”.
Entra em cena o jabá, ou seja, a velha prática de pagamento de
execução de músicas na rádio e na tevê. Os prossionais do meio não
gostavam do termo e preferiam chamar de “promoção” ou de “parceria”.
Entretanto, independentemente se era ou não chamado de jabá, ca claro
que a construção de um sucesso sertanejo passava por fartas “promoções
3
Site ocial da Exposição Agropecuária de Guaxupé. Acesso: 18 nov. 2009. (Arquivo do autor). Os valores dos
shows não correspondem exatamente aos pagos pela organização do evento; são valores médios, estimativas
feitas a partir do cruzamento de fontes diversas. Em outro momento deste artigo, discuto os cachês dos shows.
Cito o exemplo de Guaxupé para demonstrar a força de cidades pequenas e a extensão do mercado de shows. Os
maiores eventos do agronegócio eram realizados em cidades do interior, como Jaguareúna (SP), Barretos (SP),
Ribeirão Preto (SP) e Uberaba (MG).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
256 |
feitas junto às emissoras. Bastava sintonizá-las ou acessar os sites de algumas
rádios para se informar sobre sorteios e campanhas.
A seguir, exemplos de “promoções” realizadas por duas rádios
mineiras e uma de Goiás. O critério usado para selecioná-las foi a
disponibilização de informações em sites, cabendo frisar que a maioria das
estações de rádio não postava em seus sites os sorteios realizados. As guras
1 e 2 mostram peças publicitárias veiculadas pelo site da rádio Nossa FM
(105,9 MHz), de Patos de Minas/MG
4
, para divulgar promoções em torno
das duplas sertanejas César Menotti e Fabiano, e Victor e Leo.
Figura 1 – Promoção César Menotti e Fabiano
Fonte: Nossa FM, 2009.
Figura 2 – Promoção Victor e Leo
Fonte: Nossa FM, 2009.
Site da rádio Nossa FM, de Patos de Minas (MG). Acesso: 07 out. 2009. (Arquivo do autor). Neste artigo,
não foi possível disponibilizar os links ativos para acesso às páginas consultadas, porque elas não existem mais
ou as informações foram suprimidas dos sites que as continham, o que é bastante comum quando estes são
reformulados. Trata-se de um material mais antigo, mas devidamente obtido por meio de prints e de impressões
das páginas, um procedimento que assegura todos os dados referentes às fontes consultadas — e que se
encontram no arquivo pessoal do autor.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 257
As guras 3 e 4 correspondem às propagandas de promoções
realizadas pela rádio Líder FM (93,1 MHz) de Uberlândia/MG
5
. Aparelhos
de TV e cestas básicas foram os prêmios oferecidos aos ouvintes que
participaram das campanhas de marketing das duplas Beto e Deluka, e Ruan
e Júnior.
Figura 3 – Promoção Beto e Deluka
Fonte: Líder FM, 2009
Figura 4 – Promoção Ruan e Júnior
Fonte: Líder FM, 2009.
A rádio Integração FM (94,5 MHz), de Morrinhos/GO
6
,
também lançava promoções. A gura 5 mostra a imagem da dupla João
Bosco e Vinícius e a reprodução de um equipamento eletrônico colocado
como prêmio para o ouvinte que desse a melhor resposta para a pergunta:
“Pra você, o que é ‘curtição’?”.
 Site da rádio Líder FM, de Uberlândia (MG). Acesso: 07 jul. 2009. (Arquivo do autor).
 Site da rádio Integração FM, de Morrinhos (GO). Acesso: 14 nov. 2009. (Arquivo do autor).
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258 |
Figura 5 – Promoção João Bosco e Vinícius
Fonte: Integração FM, 2009
Com exceção dos prêmios oferecidos pela rádio Nossa FM, que
possui promoções um pouco mais antigas em seu site (feitas inclusive com
artistas que alcançariam sucesso nacional, como César Menotti e Fabiano,
Victor e Leo, e João Bosco e Vinícius) quase todas são de 2009 e apenas
algumas de 2008. Fica difícil precisar as datas porque as postagens não
contêm essa informação.
As “promoções”, como se pode ver, envolviam prêmios variados,
como computadores, videogames e aparelhos de televisão. E, claro, no caso
da dupla Ruan e Júnior, “uma cesta básica completinha toda quinta-feira”.
No mundo das promoções radiofônicas era assim: quem podia mais,
oferecia os prêmios mais caros.
O uso de prêmios pelos artistas não era feito apenas em uma
ou outra rádio. Aqueles que tinham poder econômico negociavam
sistematicamente com um grande número de emissoras e conseguiam
chegar àquelas de ampla audiência, mais caras — o que não quer dizer que
era apenas questão de pagar e fazer sucesso. Tratava-se de algo bem mais
complexo. A ltragem realizada pelos prossionais das rádios e a aceitação
do público devem ser consideradas.
De todo modo, raramente um artista, fosse “bom” ou “ruim”,
conseguia espaço nas estações radiofônicas sem entrar no esquema das
promoções” ou de pagamentos em espécie, sobretudo nas emissoras do
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 259
segmento popular e líderes de audiência. Podia ocorrer de uma música
entrar em uma trilha de novela e ganhar destaque. As pequenas, de olho
na audiência e nos pedidos dos ouvintes, acabavam tocando a música
sem receber nada. É importante destacar que muitas delas enfrentavam
problemas nanceiros e, ironicamente, algumas com boa audiência.
Mas, como se sabe, as verbas publicitárias para o setor de radiodifusão
diminuíram signicativamente nas últimas décadas. Por isso, várias
emissoras estavam bastante suscetíveis ao jabá, a ponto de divulgar artistas
que podiam provocar queda nos índices de ouvintes sintonizados, o que,
de fato, acontecia. Quando havia uma concorrente direta pela audiência
era um problema a mais; caso não, cava por isso mesmo.
O jabá de altos investimentos havia chegado às rádios do
interior e mesmo àquelas de cidades pequenas que, a princípio, não
importariam tanto como canais estratégicos de divulgação – elas passaram
a ser procuradas inclusive por artistas consagrados que, antes, davam
preferência às emissoras dos grandes centros e de expressiva audiência. Mas
a concorrência se intensicou demais nos anos 2000 e, de olho no lucrativo
mercado de shows do interior, empresários e artistas investiam pesado na
divulgação. As “promoções” eram, basicamente, feitas para promover a
carreira de duplas e cantores sertanejos, aproveitando-se do fato de que
eles estavam inseridos no gênero musical mais ouvido em grande parte das
regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
na rota do agrishOw: uBerlândIa, parada (quaSe) oBrIgatórIa
Uma análise, a partir de um recorte mais preciso, permitiu
compreender melhor os meandros do mercado musical do interior.
O caso de Uberlândia, Minas Gerais, é emblemático, por ser a cidade
simplesmente considerada, dentro do universo da música sertaneja, uma
das principais portas de entrada para o circuito de shows de rodeios e festas
agropecuárias. Duplas famosas se referiam com frequência, em entrevistas,
à importância de atingirem projeção em Uberlândia para, a partir daí,
trilharem o caminho rumo ao sucesso. Era comum cantores e duplas de
outras localidades xarem moradia no município, apostando nas chances
de construir uma carreira bem-sucedida. Na cidade mineira residiam alguns
dos principais nomes da música sertaneja, como as duplas Victor e Léo,
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
260 |
e Bruno e Marrone. Assim como eles, outros artistas sertanejos lançaram
DVDs de shows realizados na cidade.
Uberlândia era uma cidade polo e bem próxima ao estado
de Goiás, a ponto de ser comum a divulgação na cidade de eventos
promovidos no estado vizinho e vice-versa. Além disso, existiam várias
empresas, sediadas no município, que operavam nos dois estados. E havia,
ainda, uma conexão com o interior de São Paulo, onde algumas também
promoviam shows e eventos maiores, ainda que em menor número. Uma
delas, o Clube do Cowboy, era responsável por grande parte dos shows
de festas agropecuárias, de forma que pertencer ao seu cast propiciava a
escalação para muitos shows e a circulação no amplo circuito da música
sertaneja, uma condição importante tanto para artistas novos quanto para
consagrados. Também era da cidade uma das principais rádios de música
sertaneja do país, a Paranaíba FM.
A força da música sertaneja em Uberlândia era inegável. Na
pesquisa realizada sobre o mercado pirata da cidade, a partir de trabalhos
de campo realizados mais extensivamente nos anos de 2008 e 2009,
vericou-se que mais da metade dos CDs e DVDs ilícitos consumidos na
cidade eram de música sertaneja – sendo mais apreciados pelo público,
majoritariamente, os títulos musicais de artistas que estavam em destaque
no rádio e na tevê.
É difícil quanticar porque havia variações ao longo do ano, mas
o gênero sertanejo representava, seguramente, não menos que a metade do
total de CDs e DVDs ilícitos vendidos. Levando-se em consideração apenas
os sucessos do momento, essa proporção aumentaria consideravelmente.
Em 2008, o cantor Eduardo Costa e a dupla Victor e Leo dispararam no
ranking dos mais vendidos no mercado pirata, seguidos de outros nomes,
como Jorge e Mateus, João Bosco e Vinícius, Zezé Di Camargo e Luciano,
Teodoro e Sampaio, Gino e Geno, Alexandre Pires, Cláudia Leite, Queen e
as trilhas nacional e internacional da novela “A Favorita”, exibida pela Rede
Globo de Televisão. Já em 2009, os artistas de maior vendagem foram Luan
Santana, Eduardo Costa, Jorge e Mateus, João Bosco e Vinícius, Bruno e
Marrone, Latino e Michael Jackson. Com poucas exceções, a procura pela
música internacional foi comparativamente menor; aconteceu de forma
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 261
mais horizontal e, por isso, incidindo em um número maior de opções, o
que dicultou que determinado título entrasse na lista dos mais vendidos
7
.
Praticamente não existia pirataria aberta nas ruas da cidade de
Uberlândia, devido à scalização. Os vendedores procuravam não se expor
nas ruas e a comercialização não era feita escancaradamente em lojas. Os
produtos eram comercializados de forma mais velada ou itinerante, com
a entrega em domicílio e no local de trabalho dos consumidores sendo
a forma mais comum. Ressaltar essa característica é importante, porque
a cidade era, com frequência, apontada como exemplo no combate à
pirataria. Não adiantava. Ainda que de forma mais velada, o consumo era
realizado intensamente e os consumidores sabiam os canais de acesso aos
títulos musicais que pretendiam adquirir.
As chances de um artista sertanejo conseguir projeção por meio
(ou a partir dele) do mercado pirata eram pequenas. Duplas e cantores
de diversos lugares do Brasil procuravam distribuir seus trabalhos nesse
mercado paralelo de Uberlândia. Era uma prática comum. Deixavam
CDs com donos de lojas, vendedores e atacadistas pirateiros. Empresários
ou divulgadores contratados também cuidavam do fornecimento. Havia
casos em que os discos entregues para servir como matriz de reprodução
eram “originalmente” piratas, embora tivessem um acabamento melhor.
Algumas lojas de produtos originais até se arriscavam a vendê-los;
conseguiam comprá-los a preços menores através do próprio artista ou de
seu representante. Era comum lojas receberem grátis dezenas ou centenas
de unidades.
Como recebiam um volume grande de discos, os vendedores
realizavam uma espécie de triagem, selecionando os títulos que acreditavam
ser os mais vendáveis. Descartavam a maioria dos CDs que recebiam, e
aqueles que decidiam disponibilizar aos clientes dicilmente eram postos
em destaque. Esse lugar era dedicado aos produtos de demanda garantida,
quase sempre os trabalhos de artistas que estavam em evidência na mídia
no momento.
Um ponto delicado desse procedimento é que os títulos musicais
distribuídos pelos artistas eram editados sem o pagamento de direitos
autorais, sendo as gravações totalmente ilícitas, muitas vezes de artistas
Para essa vericação foi fundamental a contribuição de vendedores, de alguns em especial, que me informavam
os títulos mais comprados por seus clientes.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
262 |
contratados por grandes empresários, de gravadoras pequenas e, em alguns
casos, de majors. No estilo sertanejo, as músicas compostas por terceiros
eram maioria. Ademais, o número de regravações de antigos sucessos do
gênero era imenso. Os artistas recorriam a esse recurso como forma de
garantir em seus discos pelo menos uma faixa conhecida pelo público. Para
os estreantes que registravam em vídeo um show ao vivo, o objetivo era
prender a atenção do espectador que apreciava hits — que costumavam ser
poucos na fase inicial da carreira.
A ideia de que a pirataria servia como divulgação, propulsora
do sucesso, pelo menos em Uberlândia, era ilusória. Para os artistas que
não tocavam em rádio, as chances de tirar proveito dela, nesse sentido,
eram signicativamente escassas. A impressão de que o mercado pirata
cumpria essa função advinha do fato de empresários e artistas estimularem
a atividade pirata e distribuírem cópias gratuitamente, ao mesmo tempo
em que conseguiam (geralmente por meio de negociação) fazer com que
a música do cantor ou dupla fosse tocada nas rádios. Bastava tocar para
que os pirateiros procurassem obter as canções o mais rápido possível e
começassem a vendê-las.
No universo da música sertaneja existe um caso bastante
comentado relacionado à pirataria (e tido como referência): o do CD
pirata “que levou ao sucesso” a dupla Bruno e Marrone. Em 1999, a
apresentação apenas de voz e violão da dupla no programa Estúdio ao Vivo,
da rádio Líder FM, de Uberlândia, foi pirateada, e o compact disc com
a gravação se tornou um enorme sucesso de vendas no mercado pirata
de todo o Brasil. A atratividade do disco foi, em parte, garantida pela
peculiaridade de trazer músicas do álbum novo dos artistas que estavam
sendo trabalhadas pela gravadora Abril Music, da qual eles eram recém-
contratados, e suas canções que já eram relativamente conhecidas nos
estados de Minas Gerais e Goiás, desde os discos anteriores. O primeiro
trabalho inédito lançado pela Abril Music foi Cilada de amor (1999) e, a
partir dele, Bruno e Marrone ganharam fama nacional. A divulgação do
CD ocial, o quinto álbum da dupla, foi fundamental para o sucesso do
disco pirata, que se beneciou da projeção dos astros na mídia, a partir do
trabalho promocional da gravadora Abril Music.
Essa gravação é um marco na história da pirataria no Brasil
por ter atingido enorme projeção quando isso ainda não era comum, na
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 263
proporção em que aconteceu. Mas havia, em ns dos anos 2000, uma
tentativa de miticação desse registro pirata. E ela não ocorria em vão,
pois surgia de interessados na romantização da pirataria, para justicá-la
ou camuar o uso do jabá nas estratégias de divulgação. O caso era usado
como exemplo de artistas que construíam seu sucesso a partir da pirataria,
que fora do mainstream – e com pouca ou nenhuma chance de entrar
nele – adotavam o mercado ilegal para comunicar sua obra ao público.
Como visto, não era bem assim. O sucesso do CD da dupla não estava
diretamente relacionado a uma emergência que começou na pirataria;
ocorreu o contrário, a pirataria amplicou a repercussão da presença dos
cantores na mídia que, contratados pela Abril Music, estavam em fase de
pesada divulgação do novo álbum.
É interessante que, na própria gravação, com as músicas sendo
apresentadas entremeadas por uma entrevista, Bruno dá uma boa
dimensão sobre o estágio da carreira naquele momento. Diz que a dupla
está trabalhando muito na divulgação do disco e promovendo-o em muitas
rádios. Faz referência ainda à qualidade dos prossionais envolvidos na
produção dos shows, sendo alguns deles respeitados prossionais da Rede
Globo de Televisão.
Ocorre que existiram duas versões comercializadas desse CD
pirata: a primeira, com o programa apresentado na íntegra; a segunda,
contendo apenas as músicas – sem a entrevista intercalada à execução
das músicas. E esta última foi a que mais sobressaiu, motivo pelo qual
muitos desconhecem o teor das conversas entre Marcos Maracanã, o
apresentador, e a dupla.
O êxito no mercado sertanejo, portanto, estava vinculado ao
desempenho do artista nas rádios, em um primeiro momento, e não à
pirataria. Pelo menos essa era a realidade de Uberlândia, e que também
se vericava em outras cidades – visto que esse mercado, que tem como
característica perpassar vários estados, possuía um grau de integração
grande de suas regras de funcionamento, mesmo em regiões diferentes.
Vislumbrando no município o ambiente propício para alçar voo dentro
do segmento da música sertaneja, artistas de diversos estados procuravam
as rádios da cidade. E o assédio era forte. As principais emissoras FM
da cidade eram Transamérica (transmitia programação da rede e local),
Paranaíba, Extra, Cultura e Líder.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
264 |
De todas, apenas a Cultura FM não transmitia música sertaneja,
atuava com programação voltada para o pop rock e música eletrônica, o
dito segmento jovem. A rádio Paranaíba FM era a única com programação
100% sertaneja, detendo nada menos do que impressionantes 52% da
audiência. Era apontada como uma das rádios mais importantes do Brasil
nessa vertente e caminhava para se tornar uma rede. A Extra FM era
coordenada pelo mesmo grupo. Os estúdios das duas emissoras cavam no
mesmo prédio e posicionados praticamente um ao lado do outro. Extra,
Transamérica e Líder atuavam no segmento popular e tocavam qualquer
coisa que estivesse fazendo sucesso — com o sertanejo ocupando grande
parte de suas programações.
Se há alguma dúvida sobre o poder da rádio Paranaíba, basta
acrescentar que a emissora, nas festas anuais que promovia para comemorar
seu aniversário, conseguia reunir astros de grande projeção da música
sertaneja, que se apresentavam gratuitamente, como ocorreu em 2008. No
show de 2009, os nomes mais celebrados de então nesse estilo musical
participaram do evento que, dessa vez, foi transmitido em rede nacional
pela TV Record. Vale lembrar que, entre eles, pelo menos uma dezena de
artistas estava cotada entre aqueles com os maiores cachês no Brasil, tendo
poucos concorrentes de outros gêneros no quesito. Não subiam em um
palco por menos de R$ 100 mil – e alguns recusavam cachês inferiores a
R$ 150 mil. A concessão para a rádio certamente não era desinteressada
8
.
Existiam três grandes empresas de promoção de eventos em
Uberlândia: Peninha Produções, GBM Promoções e Eventos e Clube
do Cowboy. Elas realizavam shows com apresentações individuais e
programações amplas, com várias atrações por noite e artistas de renome.
Os eventos eram promovidos não somente na cidade, mas em vários
outros municípios e estados, com ênfase em Minas Gerais e Goiás. Alguns
também chegavam a ser realizados no interior de São Paulo. Havia ainda
A emissora pagava apenas os custos de transporte e a estadia dos artistas que se apresentavam no evento;
em geral, não levavam suas bandas de acompanhamento, o que era providenciado pela própria rádio. Grande
parte dos artistas fazia playback. Essas informações foram obtidas em entrevista com Danilo Rocha, gerente
artístico da Paranaíba FM. Ele também produzia e apresentava um programa chamado “Micareta sertaneja”,
com músicas de artistas sertanejos vertidas para o ritmo da axé-music. Cantores e duplas gravavam as versões a
pedido da rádio, arcando com todos os custos de gravação. O programa era sensação e, na época em que realizei
a entrevista, sua veiculação em outras emissoras havia sido negociada com um grande estúdio de São Paulo que
produzia conteúdo para rádios do Brasil inteiro. A perspectiva era que o “Micareta sertaneja” fosse retransmitido
por cerca de 300 emissoras de rádio de diversos estados. Ver as informações obtidas no depoimento, coletado de
Pedro Rosa, em Uberlândia, em 03 out. 2009.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 265
empresas de menor porte, com algumas chegando a fazer eventos em
outras cidades. Os eventos organizados pelas empresas maiores eram
basicamente bailes country, espetáculos musicais em festas agropecuárias
e micaretas de axé-music.
O Clube do Cowboy era a maior empresa do setor na cidade.
Agenciava a dupla Victor e Leo, que estava, naquele momento, entre os
nomes de maior sucesso do país. De 2008 a 2009, promoveu cerca de
48 eventos musicais, quase todos de grande porte, voltados para a música
sertaneja e podendo contar com a apresentação de vários artistas em um
mesmo dia. A estrutura montada pela produtora contava com diversas
modalidades de camarotes, espaços fortemente trabalhados na divulgação,
que, muitas vezes, recebiam ênfase maior do que a dada aos shows. Ficava
claro o papel de distinção social que cumpriam. Os preços dos ingressos
variavam bastante, não sendo, no entanto, quando mais caros, inacessíveis a
um público de poder aquisitivo menor, porque eram oferecidas facilidades
de pagamento, como o parcelamento do valor no cartão de crédito.
Alguns eventos haviam se transformado em vitrines bastante
disputadas. Em um deles, realizado na cidade de Caldas Novas, em 2009,
pela GBM Promoções e Eventos, as principais atrações da noite receberam
entre R$ 90 mil e R$ 150 mil – enquanto novas duplas, visando a exposição
propiciada pela ampla cobertura midiática da festa, pagaram, cada uma,
R$ 20 mil para se apresentarem. Este evento, assim como vários outros
realizados por empresas de Uberlândia em outras cidades e estados, eram
bastante divulgados no município.
Cabe informar que os cachês de shows citados em todo este artigo
foram levantados em consultas a prossionais de empresas promotoras
de eventos e do meio musical. São valores médios, porque variavam de
acordo com uma série de fatores, como a época do ano e a distância que a
equipe técnica dos artistas tinha que percorrer. As empresas não gostavam
de informar publicamente os valores pagos, porque as negociações podiam
mudar de um contratante para o outro — e em muitos casos, havendo um
tipo de relação particular com os artistas, o que podia interferir nos cachês
cobrados por eles
9
. Em 2007, a revista Isto é citou os cachês e a quantidade
Isso signica que, dependendo do contratante, em determinadas situações, os artistas podiam cobrar um cachê
menor. Podia haver algum tipo de relação privilegiada com contratantes, em especial com aqueles que mais
compravam shows ou que foram importantes em suas trajetórias na busca pelo sucesso quando ainda não eram
tão conhecidos.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
266 |
de shows anuais de algumas duplas na época: Zezé Di Camargo e Luciano
– R$ 130 mil (130 shows); Edson e Hudson – R$ 100 mil (190 shows);
Bruno e Marrone – R$ 120 mil (150 shows) (TRINDADE; PINTO,
2007)
10
. O número de espetáculos realizados anualmente impressiona, e
vale lembrar que esses artistas seguiam essa rotina intensa há anos.
Voltando à Uberlândia, seria desnecessário dizer que o sistema
radiofônico da cidade estava altamente submetido à lógica do “jabaculê”.
Em entrevista a prossionais de todas as rádios FM comerciais da cidade,
quase todos adotaram a postura convencional quando o assunto foi a
negociação para que uma música tocasse: disseram que o jabá existia, mas
nunca na rádio em que trabalhavam. Mas admitiram que as emissoras eram
bastante assediadas por cantores e duplas sertanejas de diversos lugares do
Brasil. Pedro Rosa, então coordenador artístico da Transamérica FM, rádio
que, segundo ele, não fazia “promoção” com artistas, armou:
vêm duplas aqui de onde eu nunca ouvi falar. Vem nego que eu
nem sei quem é. E é cada gura! É muita dupla, muita dupla! É
muita coisa. Você não dá conta nem de administrar. Se for tentar
administrar você ca doido. [...] Eu tiro um dia da semana para
ouvir, cara. Eu tiro toda segunda-feira para ouvir. Mas eu vou te
falar, é muita coisa. Chega segunda-feira que eu tenho 20, 30 CDs
para escutar
11
.
Na mesma entrevista, perguntado sobre a importância dos
sorteios para a audiência, Pedro Rosa destacou que, se a rádio não sorteasse
prêmios e brindes, o ouvinte mudaria para a outra emissora:
se eu te desse uma televisão, você ia prender sua atenção em mim
ou na Líder FM [outra rádio da cidade]? Se eu te desse prêmios,
você ia prender em mim. Você ia me escutar para ver se eu tenho
outro prêmio para te dar. [...] O prêmio, ele faz parte. A promoção,
ela faz parte. É divulgação, é marketing. Você necessita disso. Dar
um DVD, até um liquidicador, uma batedeira
12
.
10
Embora a revista Isto é não cite a fonte dos dados sobre os valores dos shows, ao que tudo indica, foram obtidos
diretamente nos escritórios dos artistas.
11
Trecho extraído do depoimento de Pedro Rosa, 2009.
12
Novamente, refere-se ao depoimento de Pedro Rosa, 2009.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 267
Embora o coordenador artístico tenha dito que a rádio não
fazia promoções com artistas, é interessante notar a importância que ele
atribuiu aos prêmios. Admitiu que artistas e empresários procuravam com
frequência a rádio para acertar tais campanhas de divulgação, no entanto,
negando que houvesse negociações com a emissora.
A ideia de que os prêmios contribuíam para assegurar a audiência
era compartilhada por todo o setor radiofônico brasileiro: era uma máxima.
Os prossionais de rádio tendiam a não interpretar os prêmios como
jabá; falavam com certa tranquilidade sobre as “promoções” — porém,
quando o assunto girava em torno do dinheiro envolvido nas “parcerias”,
demonstravam certo constrangimento. É como se o primeiro fosse o “jabá
do bem”, menos nocivo, e o segundo o “jabá do mal”, mais prejudicial.
Um conceituado prossional do meio radiofônico local, Cláudio
Castro
13
(pseudônimo), na entrevista concedida, reiterou a relevância da
cidade para que cantores e duplas sertanejas atingissem sucesso, ressaltando
que, para isso, era necessário estar “com o bolso cheio de dinheiro” ou
ter um empresário articulado que conseguisse, por exemplo, em vez de
pagamento em espécie, negociar certo número de shows feitos para as
rádios. Disse que as negociações podiam ir muito além de prêmios e que
dinheiro era usado para comprar espaços de execução musical. Segundo ele,
havia rádios de Uberlândia que pediam shows, podendo ser mais de um,
ou participação na bilheteria. Desse esquema não escapavam nem duplas
sertanejas de sucesso regional ou nacional. O radialista também salientou
que uma famosa emissora atuava como uma espécie de coempresária no
passe de alguns artistas sertanejos.
Castro chamou a atenção para os casos de artistas sertanejos
consagrados que estavam perdendo projeção por estarem acostumados
ao esquema de promoção das gravadoras, que faziam a divulgação direto
com as grandes rádios de São Paulo e emissoras de audiência estratégica de
outras localidades. Ele citou os exemplos das duplas Rio Negro e Solimões,
e Gian e Giovanni, fazendo a seguinte advertência: “se eles não buscarem
essa alternativa de eles mesmos pagarem, eles mesmos irem às rádios,
13
Informações obtidas em depoimento coletado de Cláudio Castro, em Uberlândia, em outubro de 2009. A fala
veio de um dos entrevistados para a pesquisa. Cláudio Castro é pseudônimo. A opção em preservar a identidade
do entrevistado é minha.
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
268 |
fazerem promoção, eles vão sumir de vez. Precisam de uma grana muito
boa, mesmo para bancar rádios pequenas
14
.
A programação radiofônica de Uberlândia estava cando, a
cada dia que passava, extremamente repetitiva e o sertanejo dominava
até em rádios abertas a outros segmentos musicais. Esse era um processo
que não se restringia à cidade, acometendo também estações de outras
regiões. Talvez quem vivesse em grandes centros tivesse tendência a
olhar as emissoras do interior como “atrasadas”, submetidas aos gêneros
tradicionais locais, ou meras reprodutoras do mainstream que vigorava no
eixo Rio-São Paulo. Contudo, não era bem assim. Em diversas cidades
do interior, as rádios possuíam bom nível de prossionalismo e até um
pouco antes não estavam submetidas tão diretamente ao esquema de
promoções” da grande indústria.
Algumas emissoras interioranas que atuavam no segmento
popular tentavam preservar uma linha mais diversicada, de modo a
atender gêneros diferentes e nem sempre alinhados com os modismos. Se
não em toda a programação, procuravam dedicar horários especícos a
gêneros como o sertanejo, o pop/rock, a MPB, e aos ashbacks.
Os ashbacks
15
ainda representavam uma ferramenta importante
para deixar a programação menos repetitiva. Entretanto, como as rádios
interioranas passaram a ser assediadas pelo esquema das “promoções” em
parceria” com artistas, praticado em ampla escala, muitas tornaram a
programação quase 100% dedicada aos sucessos momentâneos. Submisso
ao poder de barganha e aos interesses dos “patrocinadores”, a rádio regional
passou a vivenciar uma fase de acintosa diminuição da variedade a partir de
meados da década de 2000. Mesmo as rádios que tinham sua programação
voltada para a música sertaneja, muitas delas estavam suprimindo a
música caipira da programação, com as canções mais antigas do gênero,
representadas por nomes como Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco,
Cascatinha e Inhana. Mesmo em rádios do segmento popular, aberta a
14
Novamente, refere-se ao depoimento de Cláudio Castro, 2009.
15
Entenda-se por ashbacks, aqui, as músicas do passado. Basicamente, os sucessos antigos tocados pelas rádios.
As emissoras brasileiras costumavam, em sua maior parte, usar a expressão para enquadrar músicas circunscritas
ao universo da música pop, da MPB, além de incluir certos tipos de canções populares oriundas de outros
gêneros. Era comum as rádios dedicarem horários, programas especícos a eles. Em geral, a música sertaneja
não entrava nesse tipo de programação que recebia a alcunha de ashbacks, embora fosse comum nas rádios
do segmento popular e nas dedicadas exclusivamente ao gênero tocar os sucessos antigos da música sertaneja e
mesmo veiculando-os em horários e programas especícos.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 269
vários gêneros, em muitas delas, a música caipira e outros sucessos antigos
da música sertaneja tiveram espaço na programação em horários especícos
por várias décadas, o que já não estava mais acontecendo.
Boa parte dos artistas de sucesso comercial da música sertaneja não
era contratada por grandes gravadoras, mas, no caso de despontarem em
determinada região, podiam cair na triagem promovida pelas companhias
fonográcas, que contratavam aqueles avaliados como os melhores para se
investir, dentro dos critérios que elas usavam para seleção. As duplas novas
de maior êxito eram todas contratadas de majors: a Sony Music contava
com Victor e Leo, João Bosco e Vinícius; a Universal Music com Jorge
e Mateus, César Menotti e Fabiano e Fernando e Sorocaba. Ressalta-se
que o simples fato de os artistas estarem em uma grande gravadora não
era garantia de sucesso. Outros tinham sido contratados e não atingiram
a mesma projeção. Mas a estrutura técnica capacitada das majors fazia
diferença ao trabalhar o artista para que fosse nacionalmente conhecido.
Às vezes, os artistas conquistavam popularidade em determinadas
regiões e, em outras, pouca ou nenhuma. Como se tratava de um
circuito musical que percorria vários estados, isso não era tão difícil de
ocorrer. O artista podia ser uma espécie de blockbuster em certos estados
e desconhecido em outros. No meio de todo esse processo, entretanto,
o espaço para propostas musicais diferentes do padrão musical vigente
nas ondas radiofônicas e do gosto médio popular era consideravelmente
reduzido. Músicos, cantores e intermediários miravam, sobretudo, o
triunfo no mercado estabelecido e, para chegar a ele, adotavam o caminho
mais garantido: fazer músicas semelhantes às que alcançavam êxito.
Os custos de investimento em uma carreira musical eram altíssimos e
empresário nenhum apostaria altas somas no trabalho de um artista sem
impor condições e regras rígidas.
Esse exame mais detido sobre a dinâmica de funcionamento do
mercado da música sertaneja em Uberlândia e região permitiu vericar
características que não eram exclusivas da cidade, mas que tinham um modus
operandi semelhante no amplo circuito da música sertaneja, que perpassava
vários estados, e que funcionava com um grau elevado de articulação, ainda
que pudesse haver diferenças nas preferências por cantores e duplas de uma
região para outra. Outras cidades, como as capitais Cuiabá (MS), Goiânia
(GO) e Belo Horizonte (MG) eram muito visadas por serem também
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
270 |
importantes centros para o gênero. Circular divulgando o trabalho nas
regiões mais estratégicas, de maior inuência, era fundamental, existindo,
assim, uma especial sinergia entre os estados de São Paulo, Minas Gerais e
Goiás – o que os colocava como uma rota obrigatória.
conSIderaçõeS fInaIS
A conguração de um mainstream regional é inegável
16
, e o caso
do mercado da música sertaneja ajuda a compreendê-lo melhor. Investigar
a função que a pirataria cumpria nele permitiu ver que em grande parte
ela reproduzia relações de poder desiguais entre seus agentes, e que, em
seu âmbito, o sucesso não surgia simplesmente impulsionado pela simples
distribuição e vendagem no mercado ilícito. Não se tratava de qualquer
mercado, mas do maior e mais poderoso dos regionais, e que, junto
com outros existentes, compunha um novo sistema de mercado musical
brasileiro que operava em uma lógica que não se encerrava no que durante
muitas décadas foi comandado pelas companhias fonográcas. No entanto,
indicando que o papel da pirataria em cada um deles podia variar. Além
disso, é importante ressaltar que muito dessa mudança ocorreu impactada
pelo exponencial crescimento da pirataria física, com a internet ainda
interferindo bem pouco nesse processo; o que se inverteu gradativamente
a partir dos anos 2010, e de maneira bem rápida.
Se entre 2008 e 2009 a música sertaneja demonstrava grande
força, nos anos seguintes isso se intensicou ainda mais, e de maneira muito
signicativa, mas dessa vez chamando mais a atenção da mídia, tornando-
se assunto bastante abordado na grande imprensa, até porque artistas
do gênero passaram a dominar cada vez mais o mercado de shows, indo
muito além do circuito de rodeios e festas agropecuárias. Intensicação
que tornou esse mercado ainda mais disputado e controlado.
Música sertaneja e pirataria possuem uma longa relação, vez que
grande parte do consumo do gênero no interior do país, desde os anos 70,
com a popularização da ta cassete, ocorria por meio de gravações piratas.
16
A argumentação sobre a existência de um mainstream regional em alguns mercados musicais regionais é feita
pelos pesquisadores Trotta e Monteiro (2008), que adotam uma postura crítica quanto às condições de produção
que há neles, destacando a visível concentração de poder, como detêm os controladores das bandas de forró, “os
produtores’ dos trios elétricos baianos, os ‘donos’ das aparelhagens de brega e os ‘magnatas’ do reggae”. E ainda
questionam a independência artística que há nesses mercados.
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
| 271
Esse mercado preenchia lacunas e demandas que a produção voltada para
o gênero não conseguia atender com eciência, sendo que as grandes
gravadoras, por muito tempo, não se interessaram muito por ele. Ademais,
o consumo de música do passado (via pirataria), de registros musicais
antigos, lançados originalmente em outras épocas, sempre existiu de forma
expressiva. Trata-se de um aspecto não abordado neste artigo, mas que foi
captado nos trabalhos de campo realizados, quando foi possível observar
esse consumo especíco e até de gravações em áudio e vídeo absolutamente
inéditas, nunca lançadas ocialmente ou exclusivas do mercado pirata.
17
Entrevistas concedidas ao autor
Cláudio Castro. Uberlândia, outubro de 2009.
Danilo Rocha. Uberlândia, 06 de outubro de 2009.
Pedro Rosa. Uberlândia, 03 de outubro de 2009.
referêncIaS
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USP, São Paulo, n. 64, p. 94-121, dez./fev. 2005.
ALONSO, G. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de
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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).
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LEAL, R. Um rodeio de ouro. Época, São Paulo, n. 377, 4 ago. 2005.
LEMOS, R.; CASTRO, O. Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio
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SANTOS, C. R. Pirataria musical: entre o ilícito e o alternativo. Orientador: Karla
Adriana Martins Bessa. 2010. 165 f. Dissertação (Mestrado em História Social) —
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em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/16378. Acesso em: 08 abr. 2019.
TRINDADE, E.; PINTO, A. Os midas da música. Isto é, São Paulo, n. 1974, 29
ago. 2007.
17
Isso não se deu apenas de música sertaneja, conforme atestam os capítulos 2 e 3 da dissertação de Santos (2010).
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
272 |
TROTTA, F.; MONTEIRO, M. O novo mainstream da música regional: axé, brega,
reggae e forró eletrônico no Nordeste. E-Compós, Brasília, v. 11, n. 2, p. 1-15, maio/ago.
2008. Disponível em: http://www.compos.org.br. Acesso em: 07 jul. 2009.
| 273
S  
chrIStIano rangel doS SantoS
É doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Defendeu, em 2018, a tese “Revival dos anos 80: música, nostalgia e
memória”, trabalho em que analisou a onda revivalista dos anos 80 que
eclodiu no Brasil na década de 2000. Outra pesquisa do autor foi um
estudo sobre a pirataria fonográca no Brasil, examinando desde seus
aspectos culturais ao papel que cumpre no mercado musical, que resultou
na dissertação de mestrado intitulada “Pirataria musical: entre o ilícito e o
alternativo”. christiano.rs@gmail.com
eduardo vIcente
Professor Associado do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão e do
Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Coordenador do
MidiaSon: Grupo de estudos e produção em mídia sonora e editor da
Novos Olhares – revista de estudos sobre práticas de recepção a produtos
midiáticos (www.revistas.usp.br/novosolhares). edduvicente@gmail.com
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
274 |
érIca MagI
É doutora em Sociologia pela USP e autora do livro “Rock and Roll é
o nosso trabalho: a Legião Urbana do underground ao mainstream
(Alameda/FAPESP, 2013). Dedica-se ao estudo da música popular,
intelectuais da cultura, indústria cultural e metrópoles. Atualmente, é
professora substituta de Sociologia na UNESP, campus de Marília – SP.
ericar.magi@gmail.com
flavIa BrancalIon
É doutoranda pelo Departamento de Sociologia da FFLCH-USP.
Investiga a música de concerto brasileira desde o mestrado, defendido no
Departamento de Sociologia da mesma universidade, em 2016, com o
título “Tornar-se compositor”. Realizou estudos musicais em composição
e violino. avialion@hotmail.com
frederIco BarroS
Professor de Musicologia na Escola de Música da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Possui graduação e mestrado em História e doutorado
em Sociologia. Seus principais interesses são música de concerto do século
XX, músicas populares urbanas do continente americano, nacionalismos e
questões teóricas relacionadas à pesquisa sobre música da perspectiva das
ciências sociais. frederico.m.b@gmail.com
gISela g. S. caStro
Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de
Consumo da ESPM, São Paulo, doutora em Comunicação e Cultura
(UFRJ), com pós-doutorado em Sociologia pelo Goldsmiths College
(University of London). castro.gisela@gmail.com
Diálogos Interdisciplinares sobre a Música Brasileira
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jheSSIca reIa
É Andrew W. Mellon Postdoctoral Researcher na McGill University.
Doutora e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela
Universidade de São Paulo (USP). Atuou como professora e líder de
projetos do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas
(CTS-FGV) entre 2011 e 2019. Foi pesquisadora visitante no McGill
Institute for the Study of Canada (MISC) e Graduate Research Trainee na
McGill University (2015-2016). Realizou pesquisa de pós-doutorado no
PPGCOM da UERJ (2017-2019). Também atua como pesquisadora da
Quebec English-Speaking Communities Research Network - Concordia
University e do Street Music Research Group - Monash University. Realiza
pesquisas relacionadas aos temas: comunicação urbana; estudos da noite;
regulação; políticas culturais; novas tecnologias; pirataria; e direito autoral.
jheleiosa@gmail.com
leonardo de MarchI
Doutor em Comunicação e Cultura pelo Programa de PósGraduação
da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(ECO-UFRJ). Professor Visitante na Faculdade de Comunicação Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS-UERJ). Autor do
livro “A destruição criadora da indústria fonográca brasileira, 1999-
2009: dos discos físicos ao comércio digital de música” (Rio de Janeiro,
Folio Digital, 2016). leonardodemarchi@gmail.com
luIS antônIo francISco de Souza
É doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. É livre-docente em
Sociologia da Violência pela Unesp. É professor de Sociologia na Unesp,
campus de Marília, nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Ciências
Sociais e no curso de mestrado Prossional em Sociologia (ProfSocio).
É coordenador cientíco do Observatório de Segurança Pública (OSP):
www.observatoriodeseguranca.org. lafraso@hotmail.com
| Érica Magi e Leonardo De Marchi (Org.)
276 |
raIner gonçalveS SouSa
É graduado e mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. É
professor do Instituto Federal de Goiás – Campus Goiânia e atualmente
faz doutorado em História pela UNESP/Franca. Tem trajetória de pesquisa
ligada ao desenvolvimento da canção popular no Brasil do século XX, com
especial interesse pelo samba, rock e música sertaneja. rainersousa@gmail.
com
rôMulo vIeIra da SIlva
Bacharel em Comunicação (GCO/UFF), mestre em Comunicação
(PPGCOM/UFF) e doutorando em Comunicação (PPGCOM/UFF)
pela UFF – Universidade Federal Fluminense. Membro do Laboratório de
Pesquisas em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (LabCult/
UFF) e do Laboratório de Estudos Interdisciplinares de Música e Cultura
(MusiLab/UFF). Desenvolve investigações no campo da Comunicação, da
Música e do Entretenimento. Atualmente, pesquisa sobre a Cultura Hip-
Hop na Cultura Digital. vieiradasilvaromulo@gmail.com
catalogação
Telma Jaqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
norMalIzação
Maria Elisa Valentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
Isabelle Ribeiro O. C. Lima
revISão
Camila Ligeiro Medeiros
capa e dIagraMação
Gláucio Rogério de Morais
produção gráfIca
Giancarlo Malheiro Silva
Gláucio Rogério de Morais
aSSeSSorIa técnIca
Renato Geraldi
ofIcIna unIverSItárIa
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
forMato
16 x 23cm
tIpologIa
Adobe Garamond Pro
Papel
Polén soft 70g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
tIrageM
100
IMpreSSão e acaBaMento
2020
SoBre o lIvro
CULTURA
ACADÊMICA
E d i t o r a
Nas últimas décadas, a sica brasileira
tornou-se objeto de pesquisa de diferentes áreas das
Humanidades. Pesquisadores e pesquisadoras da
Musicologia, História, Sociologia e da Comunicação
estão reunidos em Diálogos Interdisciplinares sobre
a Música Brasileira e nos ensinam variadas formas de
abordagem teórica e metodológica da música,
enfocando as transformações ocorridas propriamen-
te na linguagem musical, as relações de dependência
entre músicos de concerto com círculos das elites
econômicas e culturais em São Paulo, os músicos de
rua na contemporaneidade, a música como expressão
das dores, alegrias e lutas da juventude periférica
numa sociedade desigual e discriminatória, as
transformações da indústria fonográca desde os
anos 1980, o crescimento da pirataria de discos, o
desenvolvimento dos meios digitais de produção e
difusão da música. A presente coletânea espera
contribuir para a reexão mais ampla e sob diferentes
pontos de vista sobre a música brasileira e suas
relações com grupos sociais, o mercado e a política.
ISBN 978-65-86546-39-2