a T
ransição Socialista como
A
tualidade Histórica
100
AN
OS
D
A
RE
V
OLUÇ
Ã
O RU
SS
A:
Anderson Deo &
F
rancieli Martins Batista
- Or
ganizadores -
CULTURA
ACADÊMICA
E
d
i
t
o
r
a
A
N
I
C
I
F
O
Á
R
I
T
I
S
A
R
E
V
I
N
U
100 Anos da
Re
v
ol
uçã
o Russa
100 A
R
R:
T
S
A
H
Ma
rília/Ocina U
ni
versi
tária
São P
aulo/C
ult
ura A
cadêmica
2020
A D
F
M
B
- O -
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - FFC
UNESP
-
campus de Marília
Diretor
P
rof. D
r
. Mar
celo
T
avella N
avega
Vice-Dir
etor
Dr
. P
edro Geraldo A
parecido N
ovelli
Conselho Editorial
Mariângela S
potti Lopes Fujita (P
r
esidente)
Adrián Oscar D
ongo Monto
ya
Andrey I
vanov
Célia Maria Giacheti
Cláudia Regina M
osca Giroto
Marcelo F
ernandes de O
liveira
N
eusa Maria Dal Ri
Renato Geraldi (Assessor
T
écnico)
Rosane Michelli de Castr
o
Ficha catalográca
Serviço de Biblioteca e Documentação - FFC
Editora aliada:
Cultura A
cadêmica é selo editorial da Editora UNESP
Ocina U
niversitária é selo editorial da UNESP
-
campus
de Marília
Copyright © 2020, Faculdade de Filosoa e Ciências
C394 100 anos da Revolução Russa : a transição socialista como atualidade histórica /
Anderson Deo & F
rancieli Martins Batista, organizadores. – M
arília : Ocina
U
niversitária ; São P
aulo : C
ultura Acadêmica, 2020.
384 p. : il.
Inclui bibliograa
ISBN 978-65-86546-08-8 (Impresso)
ISBN 978-65-86546-09-5 (Digital)
1. U
nião Soviética – H
istória – Revolução, 1917-1921. 2. Rev
oluções e socialismo.
3. M
ulheres e socialismo. 4. P
olítica econômica. 5. Socialismo e educação. 6. Arte e
socialismo. I. Deo, Anderson. II. B
atista, Francieli M
artins.
CDD 335.43
DOI http://doi.org/10.36311/2020.978-65-86546-09-5
S
P
ref
á
cio
Domenico Losur
do 1941-2018, in memoriam
S
tefano G. Azzarà
....................................................................
9
A
Present
Açã
o
Organizador
es
..........................................................................
27
P
Ar
te
i – M
ulher
e
r
ev
ol
uçã
o
As lutas políticas e de gênero na Revolução R
ussa
Soa M
anzano
........................................................................
33
Marxismo e feminismo: revolução
, luta de classes e o debate
teórico-metodológico nos estudos sobre a condição da mulher
Angélica Lovatto
.....................................................................
53
P
Ar
te
ii – f
orMA
P
olíticA
e
D
ireit
o
nA
t
rAnsição
s
ociAlist
A
Conselhos e democr
acia socialista
Anderson Deo
.........................................................................
73
Conselhos oper
ários e a perspectiva de ruptur
as históricas:
cem anos da Revolução de O
utubro
Milton P
inheiro
......................................................................
99
O direito dos pr
odutores
J
air Pinheiro
............................................................................
117
P
Ar
te
iii
–
o
s
c
AMinhos
DA
t
rAnsição
:
A
n
ov
A
P
olíticA
e
conôMicA
As contr
adições sociais e ideológicas na URSS:
origens do Socialismo de Estado
Marcos D
el Roio
.....................................................................
155
Lenin, NEP
, hegemonia e tr
ansição
Gianni F
resu
...........................................................................
173
I
ndustrialização e progresso: a lição da R
evolução de Outubro
Giorgio G
rimaldi
....................................................................
189
Da NEP ao S
talinismo
David Maciel
..........................................................................
205
P
Ar
te
iv
–
e
DucAçã
o
,
A
r
te
e
i
nternA
cionAlisMo
nA
t
rAnsiçã
o
s
ociAlist
A
O processo educacional na Rev
olução Russa e a
contribuição do Educador M
oisey Pistr
ak
N
eusa Maria Dal Ri
................................................................
227
O m do proletariado na arte soviética
Ana P
or
tich
.............................................................................
245
A contribuição de N
adezhda Krupskaya para a construção dos
fundamentos da escola do tr
abalho emancipado
Henrique T
ahan
No
vaes
..........................................................
263
O internacionalismo “indoamericano
” de Mariátegui e a luta
de classes na América Latina
Leandro Galastri
.....................................................................
289
P
Ar
te
v – c
rise
DA
t
rAnsição
e
o
fensiv
A
Do
c
APit
Al
Sobre a R
evolução Soviética de outubr
o
Marly Vianna
..........................................................................
317
A propósito do 100º aniversário da R
evolução Russa
P
aulo Alves de Lima F
ilho
.......................................................
343
A crise da tr
ansição socialista
Ramón P
eña Castro
................................................................
367
S A
..........................................................................
375
9
P
Domenico Losur
do (1941-2018) in memoriam
1
S
tefano G. Azzar
à
A
os que para elogiá-lo ou com sincera admiração, lhe fazia notar
quão original e pessoal era o seu jeito de pensar
, Hegel r
espondia que se
alguma coisa de exclusivamente pessoal já estev
e presente no seu sistema
(losóco), essa coisa certamente estaria errada. Esse é um episódio que
Domenico Losur
do costumava contar aos seus alunos com frequência, para
explicar a abordagem adequada dos estudiosos em r
elação ao conhecimento,
principalmente dos historiadores da losoa. M
as é também uma citação
que sintetiza de forma muito ecaz o modo de praticar o trabalho losóco
ao qual Losurdo sempr
e tentou se manter próximo
. Diferentemente de
muitos intelectuais, que mesmo quando falam do mundo acabam por
falar
, antes de mais nada, de si mesmos e de sua própria distinção em
relação ao mundo, em Losur
do, na verdade, o rigor da objetividade é
absolutamente proeminente. A vontade persistente, isto é, - enraizada em
T
radução de Matteo Bifone. R
evisão de Anderson Deo.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
10
uma escolha fundamentada no plano teorético na “
via hegeliana
” ao invés
da “
via chtiana
” - de conceber esse trabalho como um desenvolvimento
o mais coerente possível das determinações inscritas no objeto, ou seja, na
coisa em si mesma. A ideia que o movimento histórico, cuja compr
eensão
era o que estava mais próximo do seu coração, não surgiu da atividade
produtiva da consciência que encontra o r
eal e dele se apropria ou o resolve
em si mesma, ou permanece longe dele - do real - e o deplora para reetir-
se em sua própria superioridade imaculada, mas de uma contradição que
já está inscrita na objetividade. Em um tecido ontológico, ou seja, que
é intrinsecamente lacerado, clivado
. Agitado por uma conitualidade
imanente que com a sua trágica trama constitui o pressuposto da dor do
negativo e que, transmitindo-se para o sujeito que se apropria na r
elação,
sempre apela à fadiga do conceito
.
Embora ele mesmo teria, com toda a certeza, evitado esses
tipos de considerações, é preciso, porém, olhar com cuidado algo de
denitivamente pessoal que podemos recor
dar
, a propósito desse trabalho
de pesquisa concluído de forma impro
visada depois de 51 anos (as primeiras
publicações de Losurdo datam de 1967); algo que pode assumir um valor
geral que vai além da experiência subjetiva de um indivíduo
. Losurdo, na
verdade, tev
e que trabalhar duro e lutar com enorme determinação para
o reconhecimento das suas próprias posições, seja em âmbito acadêmico,
ou em outros contextos. Mas esse esfor
ço necessário não foi o marco do
seu percurso individual, senão a tomada de consciência do far
do que tinha
recaído sobre uma geração
inteira de intelectuais, forçados pela história a
considerar o m de uma época e de todo um mundo ético. E destinados
a enfrentar essa crise de maneira profundamente div
ersa, e a buscar saídas
em longos percursos que ao m se rev
elarão divergentes.
Como hegeliano e como marxista, Losurdo estava absolutamente
convencido da politicidade intrínseca da losoa: a losoa é em primeiro
lugar o nosso tempo apreendido no conceito e, propriamente por essa
razão, a política constitui a primeira e mais importante bancada de teste
dessa relação
. Certamente não no sentido de que essa disciplina deva se
limitar a uma mera descrição do mundo, ou mesmo uma sua justicação,
como sempre o repr
endiam os malévolos interpretes da máxima hegeliana
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
11
sobre o real e o racional: mesmo quer
endo, isso não seria possível porque
a losoa, quando é realmente tal, conserva sempre uma tarefa de
transcendência que é a consequência inevitável da sua potência discursiva
universalista. É mesmo, mais, no sentido que o juízo político é o v
erdadeiro
experimentum crucis
da razão. E a capacidade de exer
cê-lo de forma correta
pode, ao limite, falsicar losoas inteiras, até demonstrar
, muitas vezes, a
mesquinhez mesmo das construções teóricas mais grandiosas.
P
or exemplo, a profundidade losóca de N
ietsche foi enorme
ao lidar com os conitos de sua época e ao revelar a hipocrisia dos
sentimentos morais e do espírito do progresso, por trás dos quais muitas
vezes não há nada mais que uma forma diferente de v
ontade de potência,
no entanto falta de coragem e da boa consciência daqueles que podem
reconhecer a necessidade da força e até mesmo da escravidão
. Ou aquela
de Heidegger ao denunciar no coração da metasica subjetivista moderna
e no desenvolvimento da técnica e das forças produtiv
as capitalísticas
um projeto que tem as caraterísticas da dominação
. Ou até mesmo a
clareza de Schmitt ao explicitar as aporias daquele pacismo idealístico
wilsoniano e liberal por trás do qual, ainda nos nossos dias, se mov
e a
ideia de uma nov
a ordem mundial tipicamente imperial; uma or
dem
que supera em uma direção global cada localização, e já colocou m ao
ordenamento eurocêntrico da
T
erra para substitui-lo por um ordenamento
diferente, mas não menos agr
essivo.
T
odavia, no momento em que esses
intelectuais de estaturas gigantescas foram colocados à pro
va diante da
necessidade do juízo político, a escolha frente ao andamento do mundo,
aqui exatamente chegou ao m sua reivindicação de transcendência
losóca. E frente às muitas contradições do universalismo, cuja explosão
já preanunciava o m da modernidade, não conseguiram contrapor nada
de diferente a uma miserável apologia do particularismo
. Razão essa para
a qual, concluía Losurdo, “
apesar da radicalidade e os extraordinários
resultados para o conhecimento que permitem alcançar
” a sua perturbação
desconstrutiva, ou seja, “
a destruição das ores imaginárias
” exer
citada por
aquelas célebres losoas, acabava na r
ealidade por “
ressaltar as cadeias da
escravidão assalariada e da escravidão ver
dadeira
” (LOSURDO, 1987b
, p.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
12
108). Assim aqueles potentes dispositivos se rev
elaram ser uma crítica da
ideologia renadíssima, mas de natureza totalmente r
eacionária.
A política como “
profanação
” do discurso losóco e, então,
recondução a sua substancia. Ou talv
ez melhor: como aquele mundanismo
que, permitindo a sua descida do céu das ideias à terra do conito secular
,
exalta talvez, também a chamando para sua tarefa, as potencialidades
humanísticas dessa forma de saber
, a sua natureza de projeto
. “Se H
egel
ensinou a inevitabilidade da situação histórica
”, então, “Marx ensina a
inevitabilidade desta nos conitos político-sociais
”, e desse modo dene
a partir daquele momento “
a qualidade nova do discurso losóco
”
(LOSURDO, 1991a, p
. 128), o qual agora, frente a esses conitos, é
obrigado como tal – e não em virtude das suas eventuais repercussões
morais – a tomar posição. E
ntão, como praticou em primeira pessoa esse
“
engagement
objetivo
” em tempos nos quais para a política a situação
era muito difícil – em tempos de reuxo, nos quais cada possibilidade
de transformação do mundo era negada e o trabalho intelectual era cada
vez mais concebido como apologia, edicação, consolação e suplemento
da alma em relação à mera administração do existente –, para D
omenico
Losurdo, assim como para outros intelectuais da sua geração, esse tomada de
posição valeu frequentemente as desconanças e as suspeições de quem, por
trás de qualquer raciocínio que não oculte a própria politicidade militante,
sente imediatamente o cheiro da propaganda. De uma
propaganda fora
de lugar e fora do tempo máximo, além disso, visto que às suas costas
– ou seja, naquele campo político-losóco que por muito tempo fez
referência a
emancipação do gênero humano – era possível reconhecer não
o potente barulho de um avanço triunfal, mas o barulho ensurdecedor de
um exército em r
etirada que na sua fuga do marxismo (mas também da
história mesma) estava se dispersando em mil direções.
P
recisamente por esse motivo, pr
opriamente porque tinha
sempre juntas losoa e política, numa época que tinha voltado as costas
à revolução, pr
opriamente porque, dado o espírito dos tempos, a acusação
de parcialidade e de partidarismo
estava sempre r
ondando ao redor
,
não
menos que aquela de justicacionismo, Losurdo sabia que para poder ser
reconhecido no campo acadêmico teria que ser absolutamente impecável,
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
13
propriamente naquele plano losóco “
puro
”, e aparentemente asséptico
em relação a qualquer conito, do qual os seus críticos interlocutores
culturais – sempre prontos a denunciar a ideologia em
qualquer lugar
,
exceto em si mesmos – se apr
esentavam como guardiões. S
omente
desse modo, somente antecipando cada possível objeção e escavando
minuciosamente entre as fontes, somente conhecendo perfeitamente os
autores tratados – e sem fugir das questões losócas mais complicadas –
poderia se permitir trazer a losoa para o campo da política entendida
como a transposição para o terreno cultural da disputa entre emancipação
e des-emancipação.
T
ambém graças a sua cultura ilimitada, deve-se
acrescentar
, o que lhe permitiu percorrer mais de dois milênios de história
universal, estendendo seus olhos, também, para o mundo negligenciado e
incompreendido que está além das fronteiras do O
cidente. Aqui, então,
que aqueles que questionaram o método mesmo antes das posições
particulares, raramente tiveram a coragem de desaa-lo em público, com
certeza sabendo que aqueles que o desaou, saíram sempre com os ossos
quebrados. Aqui, por exemplo, mesmo os mais r
enomados especialistas em
Hegel, e especialmente aqueles mais conv
encidos em encerrar o discurso
losóco de Hegel em uma dimensão conservadora e predominantemente
conscienciosa, respeitavam-lhe o juíz
o e se demonstravam de repente
conciliadores quando tinham a possibilidade de se confrontar com ele.
V
oltemos ao terreno da objetividade, com o qual começamos
a discussão. Losur
do foi um dos estudiosos italianos mais conhecidos e
traduzidos no mundo. Confr
ontou-se primeiramente com a losoa
clássica alemã seguindo a herança de Arturo Massolo e P
asquale Salvucci e
do seu pensamento hegel-marxiano, e aquele período histórico e losóco
mudou para sempre o nosso conhecimento
.
Com
Autocensur
a e compromesso nel pensiero politico di Kant
retirou
do lósofo alemão a “
respeitabilidade burguesa e listeia
” (LOSURDO,
1983c, p. 14) consagrada pela historiograa losóca, ou seja, no âmbito
do conservadorismo ou da moderação política no qual foi inscrito pela
tradição dos estudiosos liberais mas, também, apesar de Engels, daquela
dos estudiosos marxistas: na realidade a “
negação do direito de resistência
”
em Kant respondia com certeza a necessidade de “
tranquilizar as cortes
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
14
alemãs
”, mas também era especialmente uma posição que “
permitia
armar a irreversibilidade da R
evolução francesa e, portanto, condenar
as tentativas de restauração
” (LOSURDO, 1983c, p
. 31). Contra as
insurgências reacionárias como a
V
andea e contra cada tentativa de
restauração feudal, portanto, o losofo alemão continuará sendo “jacobino
”
porque continuará esperando, até com muita ingenuidade, que “
como
consequência das transformações produzidas por algumas rev
oluções [
nach
manchen Revolutionen der U
mbildung
] surge nalmente aquele que é o m
supremo da natureza, ou seja, um or
denamento geral cosmopolita, que
seja a matriz, na qual virão a se desenvolver todas as disposições originárias
da espécie humana
”(KANT
, 1784 apud LOSURDO, 1983c, p. 27).
Em ensaios como
Fichte, la riv
oluzione fr
ancese e l’ideale della pace
perpetua
(LOSURDO, 1983-84)
,
ou
F
ichte, la resistenza antinapoleonica
e la losoa classica tedesca
(LOSURDO, 1983d),
ou ainda
F
ichte e la
questione nazionale tedesca
(LOSURDO, 2004), Losur
do pesquisou a
dialética que animou a parábola losóco-política de uma gura chave
da história cultural e política alemã e, mais ainda, da ideologia europeia:
se em um primeiro momento “F
ichte olha a F
rança revolucionária, [...]
como um país que não somente poderia ou deveria ajudar a Alemanha
na luta para sacudir o jugo do feudalismo e do absolutismo monárquico,
mas que também contribuiria em forma determinante à realização de
uma paz duradoura ou perpétua na Eur
opa e no mundo
”, com a invasão
napoleônica e o
Befr
eiungskriege
, ao modicar-se da situação concreta,
produz-se uma mudança clara. U
ma mudança no sentido da fobia contra
os franceses e da teutomania. P
orém, uma mudança que o deixará longe
de um equilíbrio crítico e o levará a recusar
in toto
, juntamente com o
impopular napoleonismo, também o espirito do 1789, num primeiro
momento exaltado pelo lósofo. Contesta, assim, a r
evolução política,
mais especialmente aquele universalismo que estava na sua base, que os
resultados da rev
olução haviam traído, dando vida de tal modo a longa
época do particularismo cultural alemão, com suas dramáticas repercussões
entre as duas guerras mundiais.
E aqui, enm, chegamos a Hegel, estudado em textos como
H
egel, questione nazionale, Restaur
azione
(L
OSURDO, 1983a)
, T
ra
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
15
H
egel e Bismar
ck
(LOSURDO, 1983b)
, La catastrofe della G
ermania e
l’immagine di H
egel
(L
OSURDO, 1987a),
Hegel e la libertà dei moderni
(LOSURDO, 1992) e, enm,
H
egel e la G
ermania
(LOSURDO, 1997a):
para esse grande lósofo não somente “
A liberdade da pessoa é um dir
eito
inalienável e imprescritív
el e não existe ordenamento jurídico positivo que
possa elimina-lo
” (LOSURDO, 1972, p. 74), apontará Losur
do, mas essa
posição irá muito além da posição contratualista da época. J
á nas aulas
sobre a
F
ilosoa del diritto
, para Hegel
O
Notr
echt
[tinha] se tornado o direito da extrema necessidade,
do faminto que estava arriscado a morrer de fome e que por isso
não somente tem o direito, mas o “
direito absoluto
” de roubar
aquele pedacinho de pão capaz de garantir a sua sobrevivência,
“
o direito absoluto
” de violar o direito de pr
opriedade, a norma
jurídica que condena, contudo, o roubo (LOSURDO, 1992, p
.
115; LOSURDO, 1989).
Longe de ser o defensor losóco da Restauração e o inspirador
do militarismo prussiano, devemos reconhecê-lo nessa perspectiva, o
descobridor de um continente losóco e político inteiramente nov
o, um
continente que vai muito além do liberalismo e que caberá à Marx, e não
por acaso, explorar à fundo.
Mas propriamente com o liberalismo, ou seja, com as posições
culturais que resultaram vencedoras ao m daquela ulterior guerra
mundial que se seguiu a Segunda guerra dos
T
rinta Anos, Losurdo travou
um embate corpo a corpo que duraria mais de uma década. N
a metade
dos anos 1990, em
Il r
evisionismo storico
,
sublinhava a emergência de
uma “
gigantesca r
eleitura do mundo contemporâneo
” cujo objetivo era
na realidade “
a liquidação da tradição revolucionária de 1789 até os dias
de hoje
” e que repr
esentava então uma “
viragem histórica e cultural de
uma época
” (LOSURDO, 1996a, p. 7) que foi, ao mesmo tempo, um
ponto de virada no interior do próprio liberalismo
. N
a qual, absorvida “
a
radical mudança do espirito do tempo na passagem da grande coalização
antifascista à Guerra fria
” e amadurecida “
a consequente elaboração de
uma ideologia ocidental” (L
OSURDO, 1996a, p. 18), se liberava agora
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
16
das componentes democratizantes adquiridas no curso de seu confronto
histórico com o movimento radical e com o mo
vimento socialista, para
voltar ao seu passado e se reorientar em uma chav
e claramente conser
vadora.
Quando dez anos mais tarde esse per
curso foi totalmente concluído, ou
seja, quando a armação do neoliberalismo foi consolidada, temos então a
Controstoria del liber
alismo
, um texto por meio do qual é denitivamente
refutada a clássica denição do liberalismo como teoria da liber
dade e
dos direitos individuais: o liberalismo repr
esenta mais pro
vavelmente no
plano cultural “
uma auto designação orgulhosa, que tem ao mesmo tempo
uma conotação política, social e até étnica
”(LOSURDO, 2005, p. 242).
Com isso “Estamos na presença de um mo
vimento e de um partido que
pretende convocar as pessoas com uma ‘
educação liberal’ e autenticamente
livres, ou o po
vo que tem o privilégio de ser livre, a ‘raça eleita
’ [...] a
‘
nação em cujas veias ui o sangre da liber
dade
’”. A teoria liberal é, então,
em primeiro lugar a autoconsciência da comunidade dos livres, dos “bem
nascidos
” (L
OSURDO, 2005, p. 238), a qual cria um espaço sagrado que
distingui homens de sub-homens, começando com precisas cláusulas de
exclusão fundadas no censo, na etnia e no gênero
.
É aqui que propriamente a tão celebrada “limitação do poder
”
permite a sociedade civil escapar da mediação do Estado ou de neutralizar
aquela sua universalidade formal que, mesmo sendo muitas vezes a
cobertura de um bloco de interesses de classes é, no entanto, diferente
do mero nada. E se congura, portanto, como o movimento político que
solicita no sistema das necessidades a “
emergência de um poder absoluto
sem precedentes
”, convidando a uma delimitação da comunidade dos
livres que se contrapõe àquela dos servos não somente no plano losóco,
mas também no plano concretamente material e geográco
. E nalmente
atuando como legitimação de uma conquista colonial que atravessa toda a
idade moderna e que com as suas práticas de extermínio elimina qualquer
reivindicação liberal de “individualismo
”.
P
ropriamente, a vontade insistente em limitar a dignidade
humana somente ao Ocidente e a incapacidade de pensar o conceito
universal de homem, entre outras coisas, é o terr
eno losóco que Losurdo
irá demonstrar para unir o liberalismo e o pensamento reacionário, do qual
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
17
ele se ocupou a primeira vez em
La comunità, la morte e l’Occidente
e uma
segunda vez com seu monumental
N
ietzsche, il ribelle aristocr
atico
. Com a
sua “
polêmica contra a modernidade e o presente
” (LOSURDO, 2002, p
.
326), o losofo (N
ietzsche) considerado por muito tempo “
desatualizado
”
se colocava, na ver
dade, em tudo e para todos no terreno do liberalismo
europeu e da sua denúncia, hoje ignorada ou remo
vida, do avanço
massicador dos movimentos socialistas e democráticos, e se identicav
a
com a concomitante exaltação liberal da primazia dos pov
os europeus sobre
os sub-homens das colônias, destinados a serem submissos e trabalhar
como servos. E serão talvez a covar
dia e a fraqueza do mesmo liberalismo,
já em diculdade e disposto ao compromisso frente à r
evolta dos bárbaros
proletários e a seus gritos rev
olucionários, a empurrá-lo, no m da sua vida
consciente, ao “
radicalismo aristocrático
” e a ideação do “
par
tido da vida
”,
que para salvação da civilização ocidental, chegará a esperar a “
aniquilação
de milhões de mal nascidos
” (NIETZSCHE apud L
OSURDO, 2002, p.
644) e das “
raças decadentes
”. Mas também o pensamento de H
eidegger
,
de resto, não pode ser compreendido minimamente sem se faz
er referência
àquele “
pathos do Ocidente
” (LOSURDO, 1991b
, p
. 89) que na
época da P
rimeira Guerra M
undial se acompanhava com a exaltação da
G
emeinschaft
, da
Entscheidung
e da morte, e que era compartilhado por
ambas as “ideologias da guerra
” em campo. N
em a sua duradoura adesão
ao nazismo pode ser explicada sem se considerar que aquele movimento era
em primeiro lugar a continuação, radicalizada e projetada no continente
europeu, da longa aventura colonial da própria E
uropa, com as suas práticas
de desumanização e de extermínio baseadas na redução do gênero humano
a uma mera espécie zoológica, já em um plano que se pretendia losóco
.
Só podemos r
econstruir brevemente aqui, uma produção
intelectual gigantesca, que compreendeu os mais variados aspectos da
tradição losóco-política europeia (são 31 monograas publicadas, o
mesmo número de livros, 200 ensaios em r
evistas, como atesta a bibliograa
que ele mesmo apro
vou e que é possível encontrar ao m desse texto).
P
orém, permanece claro – e no futuro dar
emos os cuidados para precisa-lo
melhor – que em todo esse trabalho a parte principal da sua experiência
intelectual foi dedicada àquele momento da tradição que certamente mais
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
18
estava no seu coração, ou seja, a autocrítica e a reconstrução do materialismo
histórico. S
e a história do marxismo é a história de uma ininterrupta cadeia
de “
crises
” que começa já com Marx e que várias vezes se manifestaram
durante o século XX, mov
endo-se de suas posições e com intenções e êxitos
diversos, Losurdo e sua geração enfr
entaram a maior dessas crises, com
sua manifestação última e talvez denitiva. P
orque a sua reexão sobr
e a
tradição histórica e cultural do movimento operário ocorr
eu quando este e
os seus aparatos intelectuais já estavam em frangalhos e não parecia sensato
nem produtivo aventurar-se por aquele caminho: ou seja, depois da derr
ota
sistêmica ocorrida a partir do nal dos anos 1980.
Losurdo fez isso em muitos livros:
M
ar
x e il bilancio storico del
N
ov
ecento
(1993),
Utopia e stato d
’eccezione
(1996b),
Antonio G
r
amsci dal
liber
alismo al ”comunismo critico
”
(1997b),
F
uga dalla storia?
(1999a),
La
lotta di classe
(2015) e, enm,
Il marxismo occidentale
(2017), além de
numerosos outros ensaios. E o fez, especialmente, evitando o caminho de
consolo e autoilusório de quem (a maioria) explicava as razões da derrota
descarregando as culpas sobre um único indivíduo (
S
talin. Storia e critica di
uma leggenda ner
a
) (2008) e escolhendo talvez –escandalosamente – chegar
ao coração do problema, dissecando de maneira impiedosa os limites
internos do próprio marxismo, sem poupar inclusive seus fundadores.
Losurdo lembrará muitas vez
es, frente ao niilismo e a autofobia
galopantes na esquerda depois do m da U
nião Soviética – e que também
fez esse campo ser não menos hostil que as teses do campo liberal – quanto
a experiência do marxismo e do comunismo histórico teriam mudado
profundamente o destino do mundo e mesmo do Ocidente capitalista,
obrigando esse último a um percurso de democratização, que teve
de acolher
, pelo menos em parte, até mesmo o programa do
Manifesto
comunista
(LOSURDO, 1999b).
T
odavia, não hesitava em reetir
sobre as razões de uma derr
ota inequívoca, cujas raízes teriam que ser
identicadas na incapacidade do marxismo de se tornar uma instituição e
de dar vida, num consenso mais amplo possível, a uma estabilização que
teria sido indispensável para uma normalidade socialista e para um seu
funcionamento que respeitasse os mesmos dir
eitos individuais. Animado
por uma insuperável inspiração messiânica, desejoso de uma transformação
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
19
total do mundo, o marxismo do século XX não teria, na realidade, cortado
totalmente as relações com o anarquismo
. E, no seu sonho de uma
sociedade completamente “
diferente
” daquela existente, tinha imaginado
o m das nações, do mercado, do dinheiro, do poder
, o m mesmo do
conito, revelando-se – cada v
ez que a utopia sonhada se chocava com as
durezas da história e do conito – incapaz de fugir de um perpétuo estado
de exceção e de se fazer Estado no sentido do go
verno das leis, conjugando
comunidade e indivíduo. N
ão será suciente, nesse sentido, a revolução
losóca e política operada por Lenin, aquele que pela primeira vez levará
o marxismo fora dos seus próprios limites eurocêntricos conjugando a luta
de classe do proletariado europeus com as lutas de emancipação nacional
dos países colonizados pelo Ocidente e compreendendo ao mesmo tempo
a complexidade de um processo rev
olucionário que, em um mundo tão
hostil, continuava em no
vas formas, também depois da tomada do poder
.
Daí a escolha de Losurdo em ir na contracorr
ente também em
relação aos seus próprios camaradas, desaando com teimosia o risco do
isolamento, conseguindo derrotá-lo no longo prazo
. A escolha de criticar
a fundo o marxismo ocidental, a partir daquela insuperada subalternidade
em relação ao liberalismo que se exprimia de forma macroscópica na
crescente indiferença em r
elação à questão colonial e que constrangeu
toda a esquerda a car
, num dado momento, “
ausente” (L
OSURDO,
2014). Daqui acima de tudo, também à luz do diferente r
esultado da
experiência do socialismo chinês (que ele sempre respeitou e observou
com compreensiva atenção), em comparação com o russo e o ocidental,
a necessidade de repensar integralmente os fundamentos do marxismo.
Começando com uma releitura da luta de classe que fosse capaz de ir
além do esquematismo binário e economicista de quem, em qualquer
nível, vê somente uma única contradição, aquela de um proletariado
nunca bem denido contra uma burguesia não menos incompreendida,
para apresenta-la como uma teoria geral do conito que compreende e
direciona todo o processo de emancipação (e que tem a v
er em primeiro
lugar com a luta para o reconhecimento da dignidade humana dos grupos
excluídos e discriminados). U
ma teoria capaz de iluminar as grandes
crises históricas, mais além, aquelas acelerações nas quais não há jamais
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
20
uma única dimensão, mas sempre a presença de uma pluralidade de
contradições objetivas. E capaz de compreender
, a partir dessa perspectiva,
a trama indissolúvel entre questão social e questão nacional, ou questão
de gênero, como aquela entre univ
ersal e particular
, na pesquisa de um
universalismo concreto que permita pensar a humanidade comum, fora de
qualquer abstração hedonista.
A dureza do conito de classe, mas também da guerra civil
europeia e internacional e do estado de guerra mundial permanente que
tinha acompanhado o processo de descolonização, tinham, inevitavelmente,
exaltado e cristalizado a dimensão religiosa e messiânica do marxismo,
aquela componente que também pro
vou ser indispensável nos processos de
mobilização das massas, necessários naquela longuíssima fase. P
or muito
tempo convencidos da iminência de uma ruptura revolucionaria, que logo
se espalharia por todo o planeta, começando pelos núcleos industriais mais
desenvolvidos, e ainda mais cercados no plano geopolítico, mas também no
plano cultural e psicológico da potência hegemônica do mundo capitalista,
os marxistas tinham perdido o rumo da história e a dimensão dos longos
períodos que são próprios dos mo
vimentos reais. Ou seja, o fato da
transformação não ter a estrutura temporal do momento e não conduzir a
uma imediata coincidência entre o curso dos eventos e os seus signicados,
a uma total reapropriação, transpar
ência e plenitude de sentido, mas é
ela mesma o percurso de uma fatigosa cadeia de contradições, feita de
conquistas e retrocessões no plano das r
elações de força, no qual cada
etapa não está garantida permanentemente. N
as intenções de Losurdo, à
luz do balanço histórico do século XX e de suas tragédias, o marxismo
deveria enfrentar um pr
ocesso de secularização complicado e não sem
dor
, para continuar aquela passagem da utopia à ciência (entendida
como a
Wissenschaft
hegeliana) que tinha sido indicada por Engels mas
se interrompeu por causa das urgências do conito permanente da idade
contemporânea. Ou seja, para redescobrir aquela forma de consciência que
no seu surgimento tinha representado a radical no
vidade: aquele peculiar
e quase milagroso equilíbrio entre crítica e legitimação do moderno que
nenhuma outra tendência losóco-política foi capaz de elaborar até agora.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
21
P
ensamento dialético signica compreensão da processualidade
da história e do conhecimento humano. M
as é também compreensão da
sua natureza fortemente conitiva e, portanto, consciência da totalidade
sempre lacerada, cuja r
eferência é o conito
. É por isso que a
Aufhebung
supera e conserva ao mesmo tempo, integrando a um novo nível e em uma
nov
a posição também aquela parte de verdade, que está presente sempr
e, até
no inimigo absoluto. M
arxismo, partido dessa consideração, ou seja, como
materialismo histórico, não signica a recusa indeterminada da realidade
mas, a partir da compreensão da dimensão estratégica e racional, de sua
estrutura mais profunda, é negação sempre
determinada
. As contradições da
modernidade e do progresso são enormes e às v
ezes incontáveis, começando
a partir do domínio total expresso já na acumulação originaria, passando
pela brutal desumanização de classes sociais e povos inteiros, r
esultando
não raramente no extermínio, sendo inaceitável ainda hoje a injustiça da
ordem burguesa dentr
o e fora dos centros capitalistas. Contudo, é essa
mesma modernidade que descobriu o conceito universal de homem, e
que mesmo com a dor do fazer-se abstrato de qualquer relação social, ou
simplesmente humano, conseguiu destilar aquele processo que consiste na
superação dos vínculos de dependência pessoal e direita do homem sobr
e
o homem, deixando para trás o feudalismo e questionando a escravidão.
Aquela época que desenvolveu as for
ças produtivas matérias integrais do
gênero humano, superando a restrição das necessidades, mas também das
subjetividades, e dando vida a uma ininterrupta circulação das ideias.
N
ão é possível voltar atrás em r
elação a isso. A crítica da
modernidade, como compreensão das suas condições de possibilidade
e dos seus limites, só é possível a partir do reconhecimento das suas
conquistas. Ou seja, da herança dos pontos mais elevados de uma tradição
que certamente tem a ver com o horror
, mas que é também aquela
civilização que, através dos seus exponentes mais rigorosos, conseguiu v
er
o seu próprio horror e denunciá-lo
. M
ov
endo-se a partir do conhecimento
dessas contradições, mas também daquelas contradições que acompanham
a história do marxismo e do comunismo histórico, é preciso empreender
um percurso de aprendizagem que interr
ompa denitivamente as pontes
com o dogmatismo, sem cair
, ao mesmo tempo, no relativismo dos
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
22
pós-modernos e da sua impotente negação hermenêutica de qualquer
objetividade, ou seja, da política e da transformação do mundo.
Domenico Losur
do – ao qual devemos, entre outras coisas, a
inspiração inicial que deu vida a revista “M
aterialismo storico
”, cujo Comitê
Cientico presidia – nos deixou no momento mais difícil. O
u seja, no
momento em que no Ocidente e no resto do mundo a crise da democracia
moderna parece ir em direção de uma inquietante r
edenição das formas
políticas, que promo
vem nov
as formas de exclusão e discriminação, seja
no interior de cada país, ou em nível internacional. Em uma época na qual
a recolonização do planeta, que em termos daquela
Linguaggio dell
’impero
(LOSURDO, 2007), por ele tão cuidadosamente desconstruída, e que se
seguiu a deslegitimazação da revolução anticolonial, que faz desapar
ecer
as possibilidades de uma época de paz expressa no livro
U
m mondo senza
guerre
(LOSURDO, 2016). P
orém, nos deixou com os melhores e mais
renados instrumentos para combater esse mundo, a partir de seus conitos
crucias, e para critica-lo, ou seja, para compreender as razões, as condições
de tais possibilidades. E para nalmente contrariar um cenário diverso,
por quanto sempre fundado na objetividade do que é real e racional, não
nos sonhos ou nos desejos de quem pensa poder se permitir ignorar a
dureza do mundo: como escrevia M
arx para Ruge: “N
ós não antecipamos
o mundo, mas da crítica do velho mundo queremos encontrar o no
vo
”.
U
ma última coisa que Losur
do repetia sempre para seus
estudantes, citando-a criticamente como exemplo negativo de intimismo,
de subjetivismo narcísico e de “hipocondria impolítica
” (LOSURDO,
2001). É uma famosa poesia escrita por U
ngaretti em 1916, em plena
guerra mundial, cujo título é
San Martino sul Carso
:
Dessas casas
N
ão permaneceu
Qualquer
F
arrapo de muro
De tantos
Que me escreviam
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
23
N
ão permaneceu
N
em muito
Mas no coração
N
enhuma cruz falta.
É o meu coração
O pais mais inconsolável. (UNGARETTI, 1992, p. 36)
Bem, o nosso coração hoje é inconsolável mas, como já nos
tempos do poeta, muito mais grave do que a nossa consciência são os
tormentos que temos ao nosso redor: as guerras que continuam rasgando
o planeta, a opressão imperialista que não para, o ódio racial que aumenta,
o risco de uma crise radical de civilização e do ressurgimento de pulsões
que, iludidamente, pensávamos ter superado para sempre. F
rente a esses
perigos nós certamente não podemos fazer reviver Losur
do. M
as graças,
também, a essa modesta revista, a qual tanto dedicava sua atenção,
podemos fazer durar – e por muito tempo – o seu pensamento, tentando
fazê-lo à sua altura.
r
eferênciAs
KANT
, I.
Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürger
licher A
bsicht
. Wiesbaden:
Heinrich S
taadt, 1784.
LOSURDO, D.
A
ntonio Gr
amsci dal liber
alismo al «comunismo critico
. Roma:
Gamberetti, 1997b
.
LOSURDO, D.
A
utocensur
a e compromesso nel pensiero politico di Kant.
N
apoli: Istituto
Italiano per gli S
tudi F
ilosoci/B
ibliopolis, 1983c.
LOSURDO, D.
Controstoria del liber
alismo
. R
oma-Bari: Laterza, 2005.
LOSURDO, D. F
ichte e la questione nazionale tedesca.
I
l Cannocchiale
: rivista di studi
losoci, N
aples, n. 1-2, p. 53-79, 2004.
LOSURDO, D. F
ichte, la resistenza antinapoleonica e la losoa classica tedesca.
S
tudi
Storici
, R
ome, v
. 1/2, p. 189-216, 1983d.
LOSURDO, D. F
ichte, la rivoluzione francese e l
’ideale della pace perpetua.
Il P
ensiero
,
St. Louis, p
. 131-178, 1983-84.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
24
LOSURDO, D.
F
uga dalla storia?
: il mo
vimento comunista tra autocritica e autofobia.
N
apoli: La Città del Sole, 1999a.
LOSURDO, D.
H
egel e la G
ermania
: losoa e questione nazionale tra rivoluzione e
reazione. Milano: G
uerini-Istituto I
taliano per gli S
tudi F
ilosoci, 1997a.
LOSURDO, D.
H
egel e la libertà dei moderni.
Roma: Editori Riuniti, 1992.
LOSURDO, D.
H
egel, questione nazionale, restaur
azione
: presupposti e sviluppi di una
battaglia politica. U
rbino: P
ubblicazioni dell’U
niversità, 1983a.
LOSURDO, D.
I
l linguaggio dell’I
mpero
: lessico dell’ideologia americana. R
oma-Bari:
Laterza, 2007.
LOSURDO, D.
I
l marxismo occidentale
: come nacque, come morì, come può rinascere.
Roma-Bari: Laterza, 2017.
LOSURDO, D.
I
l revisionismo storico
: problemi e miti. R
oma-Bari: Laterza, 1996a.
LOSURDO, D.
I
pocondria dell’impolitico
: la critica di H
egel ieri e oggi. Lecce:
Milella, 2001.
LOSURDO, D. L
’engagement e i suoi problemi.
In
: CAZZ
ANIGA, G. M.;
LOSURDO, D.; SICHIR
OLL
O, L.
Pr
assi
: come orientarsi nel mondo
. U
rbino:
QuattroV
enti I
stituto Italiano per gli S
tudi F
ilosoci, 1991a. p
. 105-130.
LOSURDO, D.
La catastrofe della G
ermania e l’immagine di H
egel.
Milano: G
uerini,
1987a.
LOSURDO, D.
La comunità, la morte, l’Occidente
: H
eidegger e l’«ideologia della
guerra».
T
orino: Bollati Boringhieri, 1991b.
LOSURDO, D
. La lotta di classe
: una storia politica e losoca. Roma-B
ari:
Laterza, 2015.
LOSURDO, D.
La sinistr
a assente
: crisi, società dello spettacolo e guerra. Roma:
Carocci, 2013.
LOSURDO, D. Le catene e i ori. La critica dell’ideologia tra M
arx e Nietzsche.
Hermeneutica
, B
rescia, n. 6, p. 87-143, 1987b
.
LOSURDO, D.
Le losoe del diritto
. Diritto, proprietà, questione sociale.
C
ura e trad. di
G. W
. F
. Hegel. Milano: Leonar
do, Istituto I
taliano per gli S
tudi F
ilosoci, 1989.
LOSURDO, D.
Manifesto del partito comunista
. Intr
oduzione e traduzione (in
collaborazione con Erdmute B
rielmayer) di K. Marx - F
. Engels. Roma-Bari:
Laterza, 1999b.
LOSURDO, D.
Marx e il bilancio storico del N
ovecento
. R
oma: Bibliotheca, 1993.
LOSURDO, D.
N
ietzsche, il ribelle aristocr
atico
: biograa intellettuale e bilancio critico.
T
orino: Bollati Boringhieri, 2002.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
25
LOSURDO, D.
S
talin
: storia e critica di una leggenda nera. Roma: Carocci, 2008.
LOSURDO, D.
T
ra H
egel e Bismarck
: la riv
oluzione del 1848 e la crisi della cultura
tedesca. Roma: Editori Riuniti, 1983b
.
LOSURDO, D.
U
n mondo senza guerr
e
: l’idea di pace dalle promesse del passato alle
tragedie del presente. Roma: Car
occi, 2016.
LOSURDO, D.
U
topia e stato d’eccezione
: sull
’esperienza storica del «socialismo reale».
N
apoli: Laboratorio P
olitico, 1996b
.
MARX, K. Lettera a Arnold Ruge del settembre 1843. I
n Id.
La questione ebr
aica e altri
scritti giovanili.
A cura di U. Cerroni. R
oma: Editori Riuniti, 1978.
UNGARETTI, G. San Martino sul Carso.
In
: UNGARETTI, G.
Vita d’un uomo:
106 poesie 1914-1960. Mondadori: M
ilano, 1992. p. 36. E
d. orig. In
II P
orto Sepolto
,
Stabilimento tipograco friulano, U
dine, dicembre 1916.
27
A
A
coletânea que apresentamos ao público resulta de esfor
ço
coletivo produzido nos marcos do
VII S
eminário Inter
nacional
T
eoria
P
olítica do Socialismo – Rev
olução Russa: 100 Anos que Abalaram
o M
undo – “
A
T
ransição Como Atualidade Histórica
”
, realizado entre
os dias 2 e 6 de outubro de 2017, nas dependências da F
aculdade de
F
ilosoa e Ciências da U
nesp/Campus de M
arília. Os
Seminários TPS
são
hoje internacionalmente reconhecidos nos meios universitário, e r
eúnem
conferencistas de profícua inser
ção acadêmica e importante militância
social. Assim como o público, composto por estudantes, pesquisadores,
docentes e mesmo aqueles que não possuem nenhum tipo de vínculo
acadêmico, que se deslocam de várias regiões do B
rasil, da América Latina,
bem como de outros continentes.
A iniciativa para organização do
VII
Seminário TPS
partiu do
G
rupo de P
esquisa-N
úcleo de Estudos de Ontologia Marxiana:
T
rabalho,
Sociabilidade e Emancipação H
umana (NEOM/CNPq), do Grupo de
P
esquisa-Cultura e P
olítica do M
undo do
T
rabalho (CPMT/CNPq), do
G
rupo de P
esquisa-P
ensamento P
olítico B
rasileiro e Latino-Americano
(PPBL/CNPq), do G
rupo de Estudos
T
rabalho e Capital na Cidade, do
Instituto Caio P
rado Jr
. (ICP) e do Instituto Astrogildo P
ereira (IAP). N
o
ano do centenário da Revolução R
ussa, vários eventos foram organizados em
universidades e instituições político-culturais do país, sendo que muitas delas
participaram de um
pool
de atividades coordenadas pela Editora Boitempo,
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
28
que contribuiu com o nanciamento de convidados internacionais, com
a divulgação e, portanto, com a organização dessas atividades. O
VII
Seminário TPS
se inser
e, também, nos marcos dessa iniciativa e contou com
imprescindíveis aportes de recursos da r
eferida editora.
V
árias instâncias didático-acadêmicas da F
aculdade de Filosoa
e Ciências da UNESP/Campus de Marília contribuíram à r
ealização do
evento
. N
osso agradecimento e reconhecimento à Dir
eção da FFC, ao
P
rograma de P
ós-G
raduação em Ciências Sociais e ao Departamento de
Ciências P
olíticas e Econômicas. Especial agradecimento aos servidores do
Setor de
T
ranspor
tes, na gura de seu supervisor P
aulo Sérgio de O
liveira
Campos, da Seção
T
écnica de Apoio ao Ensino, P
esquisa e Extensão -
ST
AEPE, na gura de seu supervisor
T
iago Silveira M
otta, assim como
à Comissão P
ermanente de Publicações, r
epresentada aqui por R
enato
Geraldi e Gláucio R
ogério de M
orais, cujo empenho e dedicação foram
fundamentais à realização do presente livr
o.
A sempre imprescindív
el colaboração de nossos estudantes em
nível de graduação e pós-graduação, que na entrega cotidiana possibilitam
toda a infraestrutura para nossos convidados e público em geral, deve
ser exaltada. P
or isso, fazemos questão de aqui nominá-los e agradecê-
los publicamente: Adair U
mber
to Simonato J
únior
, Adler Eduardo
Dias S
hirakawa, Alex W
illian Leite, Alexandre Lopes, Danielle Cristine
Ribeiro, Eder R
enato de Oliveira, F
rancieli Martins Batista, J
oão V
icente
N
ascimento Lins, Leonardo S
artoretto, Mariana B
ueno de Oliveira,
Marília Gabriela Borges M
achado, Mar
cela Andressa Semeghini P
ereira,
Marcelo de M
archi M
azzoni, Rafael dos Santos Alcântara, R
odolfo
Sanches, R
odrigo dos Santos Alcântara, Samuel Estev
ão e Selma F
átima
dos Santos. N
osso muitíssimo obrigado!
O livro é composto de 16 artigos divididos em 5 partes. A
organização e divisão dos textos procurou obedecer a ader
ência temática
das apresentações nas mesas de debates. Assim, na primeira parte
M
ulher
e Revolução
, S
oa Manzano e Angélica Lo
vatto procuram debater o
papel
central das trabalhadoras russas no processo da revolução, os avanços
alcançados pela pauta feminina nos anos iniciais, bem como o recuo
em várias questões de gênero a partir da década de 1930. A atualização
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
29
do debate feminista nos marcos teóricos da luta de classes e a crítica às
elaborações pós-modernas sobre o tema, também são discutidas na seção
.
Em seguida, em
F
orma P
olítica e Dir
eito na
T
ransição Socialista
, M
ilton
Pinheiro, Anderson D
eo e J
air Pinheiro se debruçam sobre a forma política
originária da transição organizada a partir dos Conselhos (Soviéts), o caráter
da democracia socialista em processo, bem como os elementos históricos
que levaram ao esvaziamento político e ao desapar
ecimento dos mesmos.
As transformações no campo do direito no processo da r
evolução, portanto,
a revolução jurídica e institucional na perspectiv
a socialista, são elementos
fundamentais à compreensão do Estado S
oviético que viria a se formar
.
Em
Os Caminhos da
T
ransição: a N
ova P
olítica E
conômica
,
Marcos D
el Roio, G
ianni F
resu, G
iorgio G
rimaldi e David Maciel
procuram debater o desenvolvimento econômico da primeira década de
gov
erno revolucionário e seus desdobramentos posterior
es. Os efeitos da
contrarrevolução sobr
e a sociedade russa, entre 1919-1922, os dilemas
e contradições do plano de desenvolvimento econômico do Estado
revolucionário diante das contingências históricas, a dinâmica da luta
de classes e as disputas políticas no interior do P
artido Bolchevique, são
tratadas nessa seção a partir de variadas e instigantes leituras. N
a quarta
seção do livro,
Educação
, Arte e I
nternacionalismo na
T
ransição Socialista
,
N
eusa Maria D
al Ri, Ana P
or
tich, Henrique
T
ahan No
vaes e Leandr
o
Galastri, apresentam o debate sobr
e aquilo que podemos identicar como
os elementos de uma nov
a subjetividade humana, impulsionada pelo
processo rev
olucionário, assim como os reexos deste em outras partes do
mundo, como na América Latina. São aqui discutidas a abor
dagem sobre
o campo da estética que a sociedade soviética pr
oporciona, seus elementos
constitutivos na construção de uma arte revolucionária, bem como as
contradições que esta engendra. N
o processo de construção de uma no
va
subjetividade, a educação, a formação de uma nov
a forma de consciência
sobre o mundo e, portanto, de uma “
nova humanidade
”, ocupam lugar
central. F
echam a coletânea os textos de M
arly Vianna, P
aulo Alves de
Lima F
ilho e Ramón P
eña Castro, debatendo os possíveis fatores que
levaram à crise e ao desaparecimento do maior e mais importante – até
hoje – processo de transição socialista que a humanidade presenciou. S
ão
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
30
apontados os possíveis equívocos na condução do processo, as contradições
que se desdobraram a partir de meados da década de 1930, os avanços
no campo econômico nas décadas seguintes e a permanente ofensiva
do imperialismo, até a derrota no nal da década de 1980 e posterior
desmantelamento da URSS, pós-1991.
Em junho de 2018, o lósofo e militante marxista Domenico
Losurdo nos deixou. I
ntelectual de profundo rigor em suas análises,
organicamente vinculado a práxis política revolucionária e com uma v
asta
obra, sempre imbricada na realidade e no
compromisso da transformação e
da emancipação humana, Losurdo participou do
VII
Seminários TPS
, nos
oferecendo uma magistral, instigante e polêmica
Confer
ência de A
bertur
a
,
como toda reexão de alto nível dev
e ser
. Em suas diversas passagens pela
F
aculdade de Filosoa e Ciências de M
arília, amparado em sua grande
generosidade intelectual, contribuiu de forma decisiva para r
eexões de
toda uma geração de pesquisadores e militantes sociais. S
e hoje a U
nesp
de Marília é conhecida como “
A Marília V
ermelha
”, Domenico Losur
do é,
sem nenhuma dúvida, um dos grandes contribuidores para tal alcunha. O
P
refácio
dessa coletânea, de autoria de S
tefano Azzarà, descreve e analisa a
profícua trajetória desse grande intelectual. Assim, dedicamos esse livro à
sua memória. Domenico Losur
do, PRESENTE!
Os organizador
es.
P
Ar
te
i
M R
33
A
R
R
Soa Manzano
i
ntr
oDução
Q
uando ainda discutimos as questões políticas que se efetivaram
na Revolução R
ussa, reetimos sobr
e o papel da luta de gênero no
contexto desse fenômeno histórico. P
or
tanto, eventos marcantes para a
humanidade devem ser lembrados não apenas como fato histórico, mas
principalmente por seus signicados mais profundos e conseqüências
para o futuro
. A Revolução R
ussa foi um desses momentos que deve ser
avaliado cuidadosamente por todos que lutam para superar a forma atual
de dominação capitalista pela qual a maior parte dos seres humanos está
submetida.
T
anto a Rev
olução Russa em si, como momento, quanto
todo o processo de tentativa e fracasso na construção do socialismo na
U
nião So
viética – e em outras partes do mundo -, possibilitam inndáveis
chaves de análise para estudiosos, acadêmicos, artistas e, principalmente,
militantes políticos que permanecem na luta revolucionária.
Esse artigo contém reexões que foram utilizadas por mim em dois outros textos sobre temática semelhante.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
34
T
rataremos, nesse artigo do recorte da questão de gênero e
sua relação política naquela rev
olução. O principal objetiv
o aqui, não é
descrever a participação das mulheres no pr
ocesso revolucionário, nem
tampouco o pioneirismo do legado da URSS para a emancipação feminina.
O elemento principal é apontar nov
as perspectivas que são importantes
para entendermos a Revolução, a contribuição das mulher
es naquele
processo e dos avanços alcançados para contribuir com a elucidação da
atual condição da mulher na luta de classe na nov
a forma capitalista desse
século XXI.
T
endo em vista esse sentido, as transformações na vida das
mulheres que ocorr
eram na Rússia por causa da rev
olução são importantes
para se perceber o quanto um processo r
evolucionário, mesmo que não
tenha sido vitorioso em todos os sentidos, é vital para toda a humanidade.
A emancipação de gênero era considerada fundamental pelos
revolucionários russos para a efetivação da r
evolução, assim medidas foram
tomadas de maneira a superar sua condição de subordinação desumana
a que estavam submetidas as mulheres e torná-las sujeitos plenos e em
condição de igualdade com os homens.
S
ugerir essas medidas, para os dias atuais, pode parecer de
menor importância, quando se toma a forma ideal com que as mulheres
se consideram, no capitalismo decadente. Contudo, a radicalidade com
que os revolucionários consideraram necessárias as mudanças em seu
estatuto não guardam semelhança com nenhum pr
ocesso emancipatório
da condição feminina em parte alguma da história recente.
P
ara se compr
eender essa radicalidade e a profundidade com
que as medidas tomadas impactaram a relação de gênero na R
ússia
revolucionária, dev
em-se considerar as condições prévias a que estavam
submetidas aquelas mulheres. As relações sociais de pr
odução naquele país
eram as mais atrasadas, se comparadas com os países mais adiantados no
processo de produção capitalista. O processo histórico concr
eto com que se
estabeleceram as relações tipicamente burguesas não havia se concretizado
quando as condições objetivas para a rev
olução se apresentaram e não foram
desperdiçadas pelos r
evolucionários liderados por Lenin. Ele pr
óprio tinha
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
35
pleno conhecimento desse atraso e precisou formular
, a par
tir do método
marxista de análise da realidade concreta, todo um arcabouço teórico
próprio para lograr êxito no projeto transformador
.
N
o escopo desse texto, não vamos debater se as “
condições
objetivas
” eram ou não sucientes para o sucesso da constr
ução do
socialismo, esse balanço ainda carece de análise profunda e desapaix
onada.
O que se pretende, pois, é apresentar como a r
evolução contribuiu para
a emancipação da mulher e como essa emancipação não precisa ser
postergada para um futuro ideal em que a sociedade de classes desapareça.
As medidas tomadas já no primeiro ano da rev
olução resultaram em
conquistas históricas que afetaram todas as mulheres do mundo
.
Em linhas gerais, o objetivo desse artigo é apresentar um conjunto
de contribuições políticas desencadeadas pela Revolução R
ussa de 1917
para a emancipação feminina. P
ara isso, faz-se necessário caracterizar
as condições sob as quais elas estavam sujeitas imediatamente antes
da revolução, de modo a apr
esentar a profundidade que esses avanços
representaram. Além disso, é importante r
essaltar as diferentes posições
sobre o assunto que tomaram grupos políticos a m de aferir sua aderência
com a realidade da época e as possibilidades de alcançarem vitórias.
Quando travamos as lutas no começo do século XXI a luta pela
emancipação da mulher ainda é uma das mais importantes. Com o crescente
cinismo da ordem liberal pr
esente, debates que pareciam superados, como o
direito ao aborto, divórcio e igualdade de gênero, tornam-se absolutamente
atuais, diante dos retrocessos que essa or
dem decadente impõe à sociedade.
Dir
eitos que pareciam garantias humanas indestrutíveis estão se esvaindo
frente a um no
vo ciclo da direita com arraigado conservadorismo que
atinge fundamentalmente a mulher
.
Como armar a luta da emancipação feminina frente a essa
realidade avassaladora? Essa luta está descolada da luta de classes? A
institucionalidade burguesa é suciente para garantir os direitos a uma
existência plena nas relações de gênero? Q
uais são as lições que se podem
tirar das batalhas travadas no bojo da Rev
olução Russa nesse campo?
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
36
T
rata-se de um amplo programa de pesquisa, bem como de uma
imensa luta política, sobre os quais pretendemos sinalizar algumas posições.
o
co
tiDiAno
DA
Mulher
nA
r
ússiA
Pré
-
rev
oluçã
o
N
o processo de transição do feudalismo para o capitalismo, a
situação particular da Rússia apresentava-se muito distante da r
ealidade
dos países do Oeste E
uropeu. Enquanto o Antigo R
egime fora suplantado
pelas revoluções burguesas e a aristocracia absolutista derr
otada cedera
lugar ao domínio político da nov
a classe dominante, na Rússia ainda vigia
uma superestrutura tipicamente absolutista, acrescido do mito do destino
expansionista da G
rande Rússia. O domínio oligárquico, ainda que
anacrônico frente à r
ealidade do capitalismo que já se encaminhava para
sua fase monopolista, não destoava de todo das relações sociais de pr
odução
que se apresentavam no interior do país. M
esmo imerso, no âmbito das
relações internacionais, às relações de tr
oca capitalistas, no interior do
processo de produção russo a burguesia, ainda que desenvolvendo suas
atividades produtivas, não alcançava poder político e não imprimia na
sociedade suas relações institucionais.
O país de V
era Zasulitch conviveu, ocial e legalmente, com a
servidão até sua extinção em 1861. A conguração social estava marcada
pela estrutura de classes de tipo feudal, no entanto, com a afetação típica
da modernidade burguesa européia. A classe dominante, tanto no que
diz respeito ao poder político quanto à maior parte da produção, era a
oligarquia latifundiária cuja riqueza pro
vinha da renda da terra e dos
soldos aferidos nos cargos da estrutura do Estado. N
uma sociedade ainda
pré-capitalista, não há a separação formal entre o público e o priv
ado,
portanto, os recursos do Estado, assim como seus cargos e funções, são
destinados aos diferentes estratos da classe dominante oligárquica (BOIT
O,
2017, p. 11). O
cupar um cargo, nem de longe signicava efetivamente
trabalhar
, apesar de haver aquele enorme contingente de funcionários que
cumpriam algum tipo de trabalho. O
s mais altos postos eram prebendas
com intuito de garantir a sobrevivência dessa classe ociosa. E diante de
toda essa ociosidade, o que fazer?
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
37
A Rússia foi profícua em
intelectuais
, certamente legou uma
exuberante literatura rica em ilustrar a futilidade e o anacronismo da
classe dominante. Quando as atividades concretas não faz
em parte das
necessidades humanas, a imaginação dá ao indivíduo a impressão de ser
um portador de grandes ideias.
U
m desses grandes escritores descr
eve assim o personagem
S
tiepan T
rofínovitch:
[...] era um homem inteligentíssimo e talentosíssimo, um homem,
por assim dizer
, de ciência, embora, convenhamos, em ciência... bem,
numa palavra, em ciência ele não fez lá muita coisa e, parece, não fez
nada vezes nada. Acontece, por
ém, que aqui na Rússia isso ocorre a
torto e a direito com os homens de ciência. (DOST
OIÉVSKI, 2004,
p. 16-17).
T
endo rendas garantidas, r
enda da terra e das sinecuras do Estado,
a ocupação dessa classe desocupada era afetar os modos e trejeitos copiados
da Eur
opa ocidental, esta sim, no turbilhão da Revolução I
ndustrial. Os
nobres senhores da R
ússia, por falta de atividades concretas, dedicav
am-se,
muito, às ideias.
As abastadas e nobres senhoras e suas lhas passaram o século à
procura de um bom casamento
. Com a profusão de “
criados
” a servir-lhes
a vontade, transcorrem a vida, do nascer ao desesper
o da morte, na mais
frívola futilidade. S
ua educação, à francesa, é diferenciada da dos homens.
N
as grandes cidades, depois do período de estudos realizado no interior
do lar
, as donzelas podem, quando muito avançadas, ingressar em escolas
próprias para moças. Mas essa educação formal não é um imperativ
o para
que se destaquem socialmente. O importante, além, é claro, do tamanho
do dote, é a qualidade dos “
requintes
” fúteis que ornamentavam, com
sua presença, os salões. A delicadeza dos gestos, o requinte dos modos,
a elegância e o renamento são atributos imprescindív
eis, até mais
importantes que a beleza física. Contudo, acima de tudo, está a pureza
virginal e a castidade. A inteligência feminina é medida pela capacidade da
mulher de se encaixar nesse papel de bibelô,
comme il fout
.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
38
N
essa classe social, os casamentos são sempre arranjados de acor
do
com as conveniências da manutenção do
status
e da riqueza, principalmente
da propriedade da terra, de onde vem a maior parte das rendas da nobr
eza.
M
esmo àquelas mulheres dessa classe, porém, menos afortunadas, ser
protegida por uma grande família pode garantir um casamento adequado
e, com ele, a certeza de uma vida tranqüila.
Existiam, também, mulheres livr
es (não camponesas e nem
servas), mas que não encontravam uma alternativa de inserção na produção
urbana. Essas serão professoras particulares, preceptoras, cujo trabalho se
fazia nas casas das famílias nobres e consistia muito mais em acompanhar
e cuidar das crianças durante seu crescimento do que transmitir alguma
instrução formal. P
ara essa educação formal, eram contratados professor
es
homens, também oriundos dessa mesma classe social, com formação
universitária, mas despro
vidos de posses, para que se sujeitassem a esse
cargo. Antes da expansão industrial, essas mulher
es viviam quase sempre
no limite do desespero para garantir a sobreviv
ência. Se não possuíssem a
mínima instrução para ser
virem de preceptoras
ou governantas, r
estavam-
lhes ocupações precárias no comércio a r
etalho como vendedoras.
N
essa sociedade extremamente pr
econceituosa com relação à
virtude da mulher
, a exposição pública de uma moça em uma atividade
laboral a colocava no limiar do desespero: a qualquer momento, pelas
diculdades da vida e as imposições moralistas, o abismo se abria e restavam-
lhes duas opções: a prostituição ou o suicídio
. Sônia, que se prostituía para
dar de comer aos irmãozinhos famintos, foi redimida por Rascolnikof
, em
seu castigo siberiano, após ter cometido horrendo crime – por sinal, cabe
lembrar que Raskolnikof mata duas mulheres: a velha av
arenta, macabra e
agiota Aliena I
vanov
a e sua irmã Lizavieta, gura abobalhada que passa o dia
vendendo ores nas ruas e é molestada por todos (DOST
OIÉ
VSKI, 2001).
A questão do suicídio despertou o interesse de muitos intelectuais
da época, inclusive de Marx. Esse autor entrou em contato com o
relato
de um estudo sobre o tema, desenvolvido pelo chefe da polícia de P
aris
durante as primeiras décadas do século XIX. J
acques P
euchet se dedica a
analisar
, com uma visão crítica e humanista, os casos de suicídio que são
registrados sob sua chefatura. Os desafortunados, lhos e lhas das condições
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
39
desencadeadas pela revolução burguesa, pr
oletários impedidos de obter o
sustento de suas famílias, doentes e desamparados, mas, principalmente as
mulheres, compõem o quadro de estudo desse conservador monarquista que,
no entanto, desperta para as contradições pungentes da sociedade burguesa.
P
odemos identicar que na F
rança do início do século XIX, o
modo de produção capitalista já se encontrava em marcha muito mais
acelerada, se comparada à Rússia do nal do século, mesmo assim, as
mulheres, de todas as classes sociais, sofriam os preconceitos e, no caso
das proletárias, a miséria que as levavam ao desesper
o e à morte. Os relatos
de P
euchet atestam horrores como a jo
vem pequeno-burguesa, lha de
um alfaiate, que se joga no Sena em decorr
ência da fustigação raivosa e
recriminadora de seus próprios pais simplesmente por
que passara a noite
com o noivo na véspera do seu casamento
. U
ma rica e jo
vem burguesa se
suicida por causa do ciúme violento do marido. Essa
[...] infeliz mulher fora condenada à mais insuportável escravidão, e
o sr
. V
on M... [o esposo] podia praticá-la apenas por estar amparado
pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, protegido por uma
situação social que torna o amor independente dos livres sentimentos
dos amantes e autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua
mulher acorrentada como o avar
ento com seu cofre, pois ela representa
apenas uma parte do seu inventário. (MARX, 2006, p
. 37).
A grande heroína de
T
olstoi, Ana Karenina, depois de ter
enfrentado os mais brutais obstáculos para viver seu grande amor
,
sucumbe sob as rodas de um trem ao per
ceber a frieza de seu amado diante
de seus anos a mais e da abundante frivolidade de jo
vens púberes. Essas
personagens, assim como dezenas de outras da literatura russa, permitem
vislumbrar a condição precária em que vivia a mulher livre e sem posses da
Rússia czarista. A R
evolução Russa tinha o dev
er de enfrentar também essas
contradições que, apenas em última instância, têm origem na exploração
econômica. A submissão da mulher como propriedade do marido (ou do
pai, antes do casamento), apesar da raiz fundada na garantia da herança e
da propriedade dos meios de produção, desencadeia uma r
elação ética que
vai além do aspecto econômico
. O desespero de uma jov
em seduzida que
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
40
engravida, ou de uma mulher (de qualquer classe social) vítima do ciúme
irracional do marido, são situações que transcendem a simples exploração,
apesar de estar também relacionada com ela.
Como arma Löwy (2006, p
. 17-18), para Marx
A crítica da sociedade burguesa não se pode limitar à questão da
exploração econômica – por mais importante que ela seja. Ela deve
assumir um amplo caráter social e ético, incluindo todos os seus
profundos e múltiplos aspectos opressivos. A natur
eza desumana da
sociedade capitalista fere os indivíduos das mais diversas origens sociais.
N
o quadro da expansão da indústria, principalmente na indústria
têxtil, essas mulheres, jo
vens e até crianças, serão ocupadas nas fábricas.
N
a pequena burguesia, o papel da mulher é trabalhar
, ao lado do marido,
nos pequenos comércios, no dia a dia da casa, de forma mais ou menos
prática e atuante. À medida que prosperam, tendem a assumir o papel de
suas congêneres da nobreza, ou seja, quanto mais rica se torna a burguesia,
menos importância tem a mulher burguesa para o trabalho social, cando
relegada ao ambiente do lar
. A subordinação da mulher ao homem passa a
ser explicado como um dado da natureza.
Quando a classe dominante repousa seu poder e riqueza nessa
estrutura feudal, a maior parte da população r
ussa é composta pelos servos
e camponeses. As propriedades nobres eram medidas pela quantidade de
“
almas
” que possuíam. A literatura descrev
e assim um homem rico: “[...] aos
quarenta anos o coronel r
ecebeu como herança a aldeia de S
tepántchikivo,
o que aumentou sua fortuna para seiscentas almas, pediu baixa e instalou-
se no campo.
” (DOSTOIÉ
VSKI, 2012, p
. 10).
A economia russa antes da reforma que acabou com a servidão,
em 1861, era baseada na produção agrícola de cereais,
Sob a economia natural, a sociedade se compunha de uma massa de
unidades econômicas homogêneas (famílias camponesas patriarcais,
comunidades rurais primitivas, domínios feudais) e cada uma dessas
unidades executava todos os tipos de trabalho, desde a obtenção dos
diversos tipos de matérias-primas até a sua preparação denitiva para o
consumo. (LENIN, 1982, p
. 13).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
41
Ainda em 1920, mais de 80% da população vivia no campo e
sua maioria era composta por jov
ens. Se as mulheres da classe dominante
estavam fadadas a se comportarem como um artigo de luxo, para consumo
de seus esposos e pretendentes, a mulher camponesa não estava livr
e do
trabalho produtivo
. A organização da vida camponesa, mesmo depois
da Revolução de 1917, mantinha-se praticamente inalterada conforme
costumes milenares.
As antigas instituições do lar (
dvor
) e da comuna (
mir
ou
obshchina
)
ainda governav
am a produção agrícola e a vida nas aldeias nos anos
1920. [...] De acordo com as tradições, a comuna, e não o camponês
individual, possuía a terra e a distribuía periodicamente aos seus
membros, de acordo com o tamanho da sua casa. (GOLDMAN, 2014,
p. 188-189).
A distribuição da terra se dava de acordo com o númer
o de
membros da família, o
dvor
, que era muito mais amplo do que a típica
família predominante nas sociedades burguesas. O
dvor
era composto
por membros com laços familiares, mas albergav
a também homens sem
laços de parentesco que se agregav
am a uma família pelo trabalho. O que
denia o pertencimento ao
dvor
era acima de tudo o trabalho na terra,
comum a todos.
T
odas as casas [
dvor
], independentemente de seu tamanho, eram
baseadas em princípios comuns. A família possuía terra, gado,
implementos, construções e outras propriedades em comum. À parte
o dote da mulher
, pequenos itens pessoais (relógios, instrumentos
musicais, roupas, etc.) e algumas quantias em dinheiro, todas as
colheitas e rendas pertenciam à propriedade comum. A casa consumia
coletivamente o que produzia; propriedade e lucros não eram divididos
em ‘
par
tes deníveis
’. (GOLDMAN, 2014, p. 190).
Marx e Engels (2007, p
. 181), ao discorrerem sobr
e a família
armam:
N
ão se pode falar de ‘
a
’ família. H
istoricamente, a burguesia dá à
família o caráter da família burguesa, que tem o tédio e o dinheiro
como elementos unicadores e que já traz em si a dissolução burguesa
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
42
da família, dissolução que não impede a própria família de continuar
a existir
. À sua imunda existência corresponde, na fraseologia ocial e
na hipocrisia geral, o seu conceito sagrado. Onde a família é
r
ealmente
dissolvida, como no proletariado, dá-se justamente o contrário [...]. Aí
não existe absolutamente o conceito de família, sendo possível, porém,
nele encontrar ocasionalmente uma inclinação para a vida familiar que
se baseia em relações extremamente r
eais.
P
ara esses autor
es, no proletariado as relações r
eais determinam
a família, e, no caso do
dvor
russo-camponês, essa conceituação ca
ainda mais evidente. Ali não há a típica família como cou conhecido o
modelo familiar burguês. O que há é um conjunto de pessoas, com laços
consangüíneos em sua maioria, cuja relação social está determinada pela
relação de produção comunitária.
N
as localidades mais avançadas do desenvolvimento capitalista,
armam os autores:
N
o século XVIII o conceito de família foi dissolvido pelos lósofos
porque a família realmente existente estava já em vias de dissolução nos
estágios mais elevados da civilização. D
issolveu-se o vínculo interno
da família, as partes que formam o conceito de família, por exemplo:
a obediência, a piedade, a delidade conjugal, etc.; mas o corpo real
da família, a relação de propriedade, a atitude de ex
clusão em relação
as outras famílias, a coabitação forçada – relações determinadas pela
existência dos lhos, da estrutura das cidades modernas, pela formação
do capital etc. – continuaram a existir
, embora com muitas alterações,
porque a existência da família é tornada necessária por sua conexão com
o modo de produção, o qual é independente da vontade da sociedade
burguesa. (MARX; ENGELS, 2007, p. 181).
E prosseguem,
O quanto [a família] é indispensável foi demonstrado de forma decisiva
na Revolução F
rancesa, quando, por um momento, a família foi nada
menos que suprimida no plano legal. A família continuou a existir
mesmo no século XIX, tendo apenas o processo de sua dissolução
se tornado mais geral, não devido ao conceito, mas a um maior
desenvolvimento da indústria e da concorrência. (MARX; ENGELS,
2007, p. 181-182).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
43
N
a Rússia C
zarista, com a quase totalidade da população
vivendo nas aldeias camponesas, mesmo depois do m da servidão, as
relações comunais e a propriedade coletiv
a mantiveram-se rmes. Apesar
de ocuparem um local no processo de pr
odução da vida social, a mulher
camponesa encontrava-se em posição incomparavelmente inferior aos
homens. Somente se fosse viúva do chefe da casa, e mulher tinha algum
papel de destaque, mesmo assim, com muitas restrições. A maioria delas
estavam submetidas às regras patriar
cais da casa, como lhas ou como
esposas.
T
udo o que possuíam eram míseros objetos pessoais.
O Código Civil na Rússia, antes da R
evolução, não permitia
sequer a livre mobilidade da mulher
. O Estatuto do P
assaporte (necessário
para qualquer deslocamento para além da aldeia) só permitia à mulher
casada obter um P
assaporte com o expresso consentimento do marido
.
M
esmo em 1914, quando do debate sobre a possibilidade de uma mulher
ter o direito de residência permanente de forma individual,
Marko
v II declarou com toda franqueza que o direito das esposas a
um passaporte próprio priva os camponeses da força de trabalho e leva
a propriedade à ruína. Ele vê na esposa não um indivíduo, não uma
pessoa, mas algum tipo de animal doméstico útil. (POKR
Ó
VSKAIA,
1914 apud SCHNEIDER, 2017, p. 62).
É importante registrar a força produtiv
a dessa mulher
.
T
rabalhava
a lavoura, cuidava do gado, produzia artefatos e dava conta das tar
efas
domésticas. Ao contrário de suas congêneres da classe dominante, a
participação no processo de produção da vida familiar faz dessa mulher
um ser humano com maior dignidade. Se poderia apanhar do marido –
até o nal do século XIX o castigo corporal era legal e comumente aceito
na Rússia – também tinha o dir
eito de castigá-lo. A indelidade conjugal,
apesar de ser recriminada, não era uma calamidade – como entre as mulher
es
da classe dominante. A virgindade não era um requisito fundamental para
o casamento.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
44
A
PeculiAriDADe
DA
Mulher
cAMPonesA
e
o
trAbAlho
DoMéstic
o
A divisão do trabalho no
dvor
pode ser visto como um bom
exemplo histórico da transformação do trabalho doméstico e a participação
da mulher no processo de produção e r
eprodução da vida. Quando a maior
parte da população vivia no campo e do trabalho na terra, utilizando
instrumentos de trabalho rudimentares e submetidos às mais duras
exigências naturais para garantirem a produção da safra e do r
ebanho, o
trabalho produtivo do maior número de pessoas era impr
escindível. Como
não estamos tratando, ainda, de um modo de produção tipicamente
capitalista, antes disso, devemos ressaltar que essa forma de pr
odução era
típica das sociedades pré-capitalistas (feudal, principalmente
2
), o conceito
de trabalho produtivo utilizado aqui é daquele trabalho que contribui para
produzir
e
r
eproduzir
a vida. Assim, numa família camponesa, ou no
dvor
russo, praticamente todos os componentes trabalham e exercem alguma
atividade. Com exceção dos doentes, decientes, idosos e crianças muito
pequenas, de alguma forma, todo mundo trabalho. A mulher ainda mais.
N
uma sociedade de classe rigidamente hierarquizada, a realidade
da mulher na comuna camponesa russa czarista não pode ser idealizada. A
estrutura patriarcal era fortemente exercida no interior do
dvor
. N
o entanto,
o trabalho feminino era produtivo e, apesar de sua condição inferior
, sua
reprodução enquanto ser social era garantido e, acima de tudo, o r
esultado
do trabalho da mulher era essencial para a família como um todo.
Ângela Davis (2016, p
. 228-229), ao debater as transformações
do trabalho doméstico nos Estados U
nidos, ressalta
N
a economia agrária pré-capitalista da América do N
orte, uma mulher
realizando seus afazer
es domésticos era, portanto, andeira, tecelã,
costureira e também padeira, produtora de manteiga, fabricante
de velas e de sabão,
E
t cetera
,
et ceter
a, et cetera
. [...] Elas não apenas
produziam a maioria dos artigos de que sua família precisava, como
também eram produtoras da saúde da família e da comunidade.
O debate que levantamos aqui está ancorado em analisar as transformações do trabalho doméstico em
sociedades de classe. P
ara sociedades do comunismo primitivo, a igualdade de gênero não estava obstacularizada
pela hierarquização social. “N
a economia nômade e pré-capitalista dos massai, o trabalho doméstico das
mulheres é tão essencial quanto a criação de gado realizada pelos homens. E
m termos de produtividade, elas
gozam de um prestígio social igualmente importante.
” (DA
VIS, 2016, p. 227-228).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
45
O trabalho doméstico nas sociedades pré-capitalista pode
ser considerado produtivo por estar dir
etamente relacionado com o
próprio modo de produção, com o grau de desenvolvimento das for
ças
produtivas e, fundamentalmente, com o baixo grau de divisão social do
trabalho. Antes da industrialização e da aceleração da divisão do trabalho
promo
vidas pelo capitalismo, assim como a crescente mecanização, quase
tudo o que era consumido por qualquer família, era produzido no interior
da própria família. É evidente que as famílias das classes dominantes
não participavam do processo produtivo, por isso mesmo comandav
am
um conjunto de trabalhadores compulsórios (servos ou escravos) que
lhes garantiam a produção
. Assim, o trabalho doméstico realizado para
as famílias da nobreza era efetuado por servos (homens e mulheres); os
utensílios, móv
eis, equipamentos domésticos, roupas, enm, todos os
objetos de consumo familiar
, eram produzidos por famílias inteiras de
artesãos especializados (em corporações de ofício, ou não).
As mudanças permanentes do processo produtivo, tanto na R
ússia
quanto nos Estados U
nidos, guar
dam similaridade na medida em que esses
dois países apresentaram um processo de transformação para o capitalismo
tardio e a partir de realidades que não se assemelham com o que havia de
mais avançado, como na Inglaterra, estudada por M
arx em
O Capital
.
Ou seja, enquanto na Rússia a R
evolução B
urguesa, na esfera política,
se confunde com a Revolução S
ocialista, e a transformação no processo
produtivo se dá tar
diamente, nos Estados U
nidos, essas transformações
acontecem a partir de uma estrutura produtivo-social colonial, e não feudal.
Essas peculiaridades não invalidam a tese de que o trabalho da mulher no
interior do lar é esvaziado de sentido com a Rev
olução Industrial, onde
quer que ela se dê e a partir de qualquer realidade anterior
.
À medida que a industrialização avança, transferindo a produção
econômica da casa para a fábrica, a importância do trabalho
doméstico das mulheres passou por um desgaste sistemático
. Elas
foram as perdedoras em duplo sentido: uma vez que seus trabalhos
tradicionais foram usurpados pelas fábricas em expansão, toda a
economia se deslocou para longe da casa, deixando muitas mulheres
em grande parte despojadas de papéis econômicos signicativos. Até
mesmo a manteiga, o pão e outros artigos alimentícios começaram
a ser produzidos em massa. [...]. Enquanto os bens produzidos em
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
46
casa tinham valor principalmente porque satisfaziam às necessidades
básicas da família, a importância das mercadorias produzidas em
fábricas residia predominantemente em seu v
alor de troca. [...]. Essa
revalorização da produção econômica r
evelou, para além da separação
física entre casa e fábrica, uma fundamental separação
estrutur
al
entre
a economia familiar doméstica e a economia voltada ao lucro do
capitalismo. (DA
VIS, 2016, p. 230).
O que Ângela Davis chama de avanço na industrialização
corresponde à aceleração da divisão social do trabalho e a conseqüente
especialização e aumento da produtividade. É sabido que o capital utiliza,
como uma das ferramentas para enfrentar suas crises cíclicas, a transformação
de nov
os espaços da existência humana em mercadoria, expandindo, assim,
sua capacidade de recuperar as taxas de lucro e continuar seu mo
vimento
avassalador
. O primeiro mo
vimento do capital, logo em seus primórdios,
foi retirar a produção têxtil do âmbito doméstico para a grande indústria.
F
oi assim com os demais itens do consumo necessário, tanto da classe
trabalhadora, quanto da população em geral. O sabão, a vela, a confecção,
a fabricação de calçados e bolsas, o vinho, o azeite, a manteiga. H
oje em
dia, até um simples bolo é mais barato na padaria!
N
esse movimento, o que era trabalho doméstico pr
odutivo se
transforma em trabalho doméstico improdutivo
. O modo de produção
capitalista está socialmente estruturado para a valorização do capital. P
or
isso, o processo de produção de mercadorias é fundamental e, como dito
acima, sua expansão avança sobre todas as esferas da existência. N
esse
modo de produção histórico, o que convém é a produção de mer
cadorias,
ou seja, valores de uso que são v
eículos de valor
, uma vez que é a produção
do valor (e do mais-valor) que inter
essa. O que se faz no interior do lar
,
para consumo imediato, é produção de valor
es de uso apenas.
A mulher no papel de dona de casa, em tempos hodiernos, que
acorda antes e vai dormir depois que todos estão na cama, pr
oduz uma
enorme gama de coisas. P
roduz riqueza, produz outros ser
es humanos,
produz sentimentos, mas não produz valor
, pois não produz mercadorias. É
nesse sentido que, para o capitalismo, o trabalho doméstico é improdutivo
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
47
A dona de casa produz riquezas realmente úteis e até impr
escindíveis para
a reprodução da vida, como cozinhar os alimentos, não desper
diçar toda
sorte de mercadorias compradas pela família no mercado, limpar e manter a
higiene necessária para que os membros da família não adoeçam, apro
veitar
objetos das mais diversas formas, cuidar para que os lhos sobreviv
am e,
mais do que isso, para que tenham possibilidade de servir adequadamente
ao mercado de trabalho
.
T
udo isso e muito mais. N
o entanto, todo esse
trabalho não é um trabalho produtivo
.
Ao se esvaziar o conteúdo produtiv
o do trabalho doméstico, este
se torna ainda mais alienante que o trabalho alienado nas fábricas. I
sso
porque, além de repetitiv
o, não valorizado e enfadonho, é realizado no
silêncio do lar com a explícita condição de subalternidade. N
as famílias
ricas e burguesas, o trabalho doméstico não é realizado pelas mulheres da
família, são empregadas domésticas contratadas das famílias pobres que o
desempenham.
Robert Castel (1998) está correto ao vericar que, no capitalismo
plenamente constituído do século XX, apesar da exploração que representa
o trabalho assalariado, para o trabalhador
, em sua subjetividade alienada,
estar desempregado repr
esenta mais que apenas a falta de recursos
monetários para sua manutenção, muitas vezes suprida por programas
públicos de seguros desemprego e r
enda mínima. Signica também o
deslocamento da esfera de sociabilidade típica da sociedade capitalista, ou
seja, é no trabalho assalariado que o trabalhador desenvolve laços sociais de
integração com os outros da sua classe. Estar fora desse ambiente acarreta
problemas de toda sorte e se transforma em uma “
nova questão social
”.
O que Castel não identicou é que o próprio sistema agiu no sentido de
transformar a forma de integração social do trabalhador e o transformou
em consumidor
. M
udou, assim, o centro de sua existência. Esta deixou de
ter sentido por sua participação no processo produtivo e na integração com
seus colegas de trabalho. Agora o pertencimento se dá no puro consumo,
independentemente da forma como se acessa esse consumo.
Com as transformações e nov
as regras do mercado de trabalho
altamente desregulado e exível, os jo
vens trabalhador
es não têm mais por
que procurarem seus laços sociais com os colegas de trabalho
. Esses laços
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
48
são rmados na esfera do consumo, até mesmo no consumo da ideologia
de que são anti-consumistas. A forma como têm acesso à moeda não
importa. Seja por meio de míseros salários aferidos em empregos pr
ecários e
inconstantes, se por meio de assistência social, lantropia ou “
comunidades
alternativas
” gerenciadas por Organizações N
ão Go
vernamentais (ONGs).
A subjetividade criada por essa nov
a forma de se integrar é altamente
individualista e não-solidária.
Marx acertou mais uma vez ao identicar que a burguesia, ao
armar a família burguesa como A F
amília, destruiu a família. P
or outro
lado, o esvaziamento do lar como espaço de repr
odução da sociabilidade
reforça os laços de pertencimento de classe. Quando se destroem as v
elhas
formas de relacionamentos humanos, como a família, a comuna rural, a
tribo indígena, etc., desvelam-se as contradições mais cruas do capitalismo
e a diculdade de a classe trabalhadora garantir sua sobrevivência. O
s
diversos tipos de opressões sentidos pelos trabalhador
es em sua forma mais
imediata aparecem como realmente são, desdobramentos da contradição
de exploração de classe.
N
a luta política das mulheres no processo de construção
das condições objetivas que levaram à R
evolução Russa, a questão do
trabalho da mulher se constituiu no núcleo a partir do qual se debateu
a consolidação de nov
os direitos. N
ão é gratuito o fato de que, em suas
principais reivindicações, as mulheres exigiam a socialização do trabalho
doméstico através da constituição de mecanismos que eliminassem a
obrigação das mulheres em cozinhar
, lavar
, limpar
, cuidar dos lhos, enm,
de toda sorte de exigências à que estavam submetidas, independentemente
de trabalharem fora de casa ou não
.
N
adiéjda Krupskaia (1910), defendendo que a educação de
meninos e meninas se desse de forma igualitária, argumentou
N
a sociedade contemporânea, a vida familiar está ligada – e
isso pro
vavelmente continuará assim por muito tempo – a uma série de
pequenos cuidados que se relacionam com a concretização de afaz
eres
domésticos isolados. A futura reformulação da produção e a alteração
das condições de vida em sociedade introduzirão signicativas mudanças
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
49
nesse âmbito, mas enquanto a vida familiar estiver ligada a tarefas
como cozinhar o almoço, limpar a casa, remendar o uniforme, educar
os lhos, etc., todo esse trabalho recairá integralmente sobre a mulher
.
[...] O preconceito de que a tarefa doméstica é digna apenas de ser
es
com necessidades menores abala a r
elação entre homens e mulheres,
introduzindo nela um princípio de desigualdade. (KR
UPSKAIA, 1910
apud SCHNEIDER, 2017, p. 88, 90).
O movimento r
evolucionário de outubro r
espondeu a essas
demandas. Logo nos primeiros meses de consolidação do poder socialista
foram construídos restaurantes coletivos, lavanderias públicas, escolas e
creches gratuitas e até colônias infantis go
vernadas pelas próprias crianças
com a participação de pedagogos (GOLDMAN, 2014). A guerra civil, o
fracasso do processo rev
olucionário no restante da E
uropa e outras tarefas
para superar o atraso produtivo da URSS foram obstáculos à permanência
dessas estruturas na vida cotidiana das mulheres. As condições objetivas
impediram que restaurantes, lavanderias e estruturas de socialização do
trabalho doméstico tivessem recursos sucientes e atraíssem o inter
esse
maior do gov
erno socialista, resultando do denhamento dessa política.
N
o entanto, a pior consequência da tentativa de socializar radicalmente a
vida doméstica se deu com o cuidado das crianças.
Sem ter r
ecursos sucientes, imerso no turbilhão da recuperação
econômica e da guerra civil, as colônias infantis, as escolas e creches
padeceram a tal ponto que produziram milhões de crianças de rua, jovens
que se prostituíam e roubavam para sobr
eviver (GOLDMAN, 2014).
A guerra levou o país ao extremo da miséria e da ruína. E, em regra,
a miséria é a sepultura das relações humanas.
V
emos como a mulher
se torna disposta a tudo e entrega a si mesma pelo pão, pela permissão
de atravessar a tropa de barreira com um saco de farinha. Ainda há
um número signicativos de canalhas propensos a abusar de mulher
es
indefesas, e elas engravidam de homens que nunca tinham visto antes.
N
ão podemos nos calar sobre isso
. A miséria força a mulher a se vender
,
e quem se vende não são prostitutas que fazem disso a sua prossão,
mas mães de família, muitas vezes pelo lho ou pela mãe idosa.
(KRUPSKAIA, 1920 apud SCHNEIDER, 2017, p
. 94-95).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
50
Ainda assim, como ocorre em momentos rev
olucionários, as
transformações ocorridas no cotidiano das mulheres, principalmente da
classe trabalhadora, no que diz respeito à sua participação no processo
produtivo, foram radicais. Da comuna rural para o mercado de trabalho
representou um elev
ado grau de emancipação feminina.
A
guisA
De
concl
usã
o
Os ideais libertários e a política das mulheres, no processo
revolucionário russo não aguar
dou a consolidação das transformações
sociais para iniciar a verdadeira r
evolução na vida das mulheres. A “
questão
feminina
” já vinha sendo debatida anos antes da revolução. D
esde os
pequenos grupos radicais que se formaram no decorrer do século XIX,
passando pelos populistas (N
arodinik) até os bolcheviques, a preocupação
com a emancipação da mulher sempre esteve pr
esente. Contudo, por sua
própria composição social, os primeiros grupos políticos não tiveram êxito
em atingir
, com suas ideias, a massa da classe camponesa. As principais
lideranças da luta da emancipação feminina pro
vinham dos extratos
superiores da sociedade, de famílias cujas lhas puderam estudar
, viajar ao
exterior e entrar em contato com as ideias emancipatórias predominantes
na Eur
opa Ocidental. Segundo a pesquisa organizada por G
raziela
Schneider (2017), cada uma delas contribuiu de forma radical para o
debate e ultrapassou os limites impostos pela sociedade de então.
T
ivemos no século XIX o esgotamento dos pr
ocessos
revolucionários burgueses e a ascensão da luta da classe operária, com
diversas nuances. Essas lutas mostraram que a plena emancipação humana
não pode estar desvinculada à emancipação da mulher em relação à família
patriarcal. N
esse sentido, a R
evolução Russa deu passos gigantescos para
desmisticar os óbices que os ideólogos da burguesia impuseram aos seres
humanos no sentido de sua liberdade. A luta política e a emancipação de
gênero são articulações sintéticas que devem galvanizar os caminhos da
transformação revolucionária.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
51
r
eferênciAs
BOIT
O, Armando. A corrupção como ideologia.
C
rítica Marxista
, Campinas, n. 44, p.
9-19, 2017.
CASTEL, Robert.
As metamorfoses da questão social
: uma crônica do salário.
T
rad. Iraci
D. P
oleti. P
etrópolis: V
ozes, 1998.
DA
VIS, Ângela.
Mulher
, raça e classe
.
T
rad. H
eci Regina Candiani. São P
aulo:
Boitempo, 2016.
DOST
OIÉVSKI, F
.
A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes
.
T
rad. Lucas Simone.
São P
aulo: Editora 34, 2012.
DOST
OIÉVSKI, F
.
Crime e castigo
.
T
rad. P
aulo Bezerra. S
ão P
aulo: Editora 34, 2001.
DOST
OIÉVSKI, F
.
Os Demônios
.
T
rad. P
aulo Bezerra. São P
aulo: Editora 34, 2004.
GOLDMAN, W
.
Mulher
, Estado e revolução
. P
olítica familiar e vida social soviéticas,
1917-1936.
T
rad. N
atalia A. Afonso. São P
aulo: Boitempo, 2014.
LENIN, V
.
I.
O desenvolvimento do capitalismo na Rússia
.
T
rad. José P
aulo Netto
. São
P
aulo: Abril C
ultural, 1982.
LÖ
WY
, M. U
m Marx insólito.
In
: MARX, K.
Sobre o suicídio
.
T
rad. Rubens Enderle e
F
rancisco fontanella. São P
aulo: Boitempo, 2006. p.13 - 19.
MARX, K.
Sobre o suicídio
.
T
rad. R
ubens Enderle e F
rancisco fontanella. São P
aulo:
Boitempo, 2006.
MARX, K; ENGELS, F
.
A ideologia alemã.
T
rad. Rubens Enderle, N
élio Schneider e
Luciano Martorano
. São P
aulo: Boitempo, 2007.
SCHNEIDER, G. (org.).
A rev
olução das mulheres
. Emancipação feminina na R
ússia
So
viética. São P
aulo: Boitempo, 2017.
b
ibliogrAfiA
c
onsul
t
ADA
K
OLLONT
AI, A.
Autobiograa de uma mulher emancipada
.
T
rad. Elizabeth Marie. São
P
aulo: P
roposta Editorial, 1980.
LOCKE, J.
Dois tr
atados sobr
e o governo
.
T
rad. J
úlio F
ischer
. São P
aulo: M
artins Fontes,
1998.
WOLLST
ONECRAFT
, M.
Reivindicação dos dir
eitos das mulheres.
T
rad. I
vania P
ocinho
Motta. S
ão P
aulo: Boitempo, 2016.
53
M :
,
-
Angélica Lo
vatto
“Pr
ocurei ofer
ecer neste livro um quadro verídico
, vivo e r
acional das
primeir
as lutas da revolução socialista russa. Desejando
, acima de tudo,
resgatar aos olhos dos pr
oletários os ensinamentos de uma das épocas mais
importantes e decisivas da luta de classes nos tempos modernos, só poderia
expor o ponto de vista dos rev
olucionários proletários. Esse modo de
proceder ter
á, par
a o leitor leigo em doutrinas comunistas, a vantagem de
lhe mostr
ar a maneir
a como os que zeram a r
evolução a entendiam e a
entendem ainda hoje
”.
Victor Serge,
O ano I da R
evolução Russa.
(SER
GE, 1993, p. 15).
1
Pr
efácio em janeiro de 1930. Serge escrev
e um segundo Pr
efácio, quando da reedição do livro, em janeiro de
1938.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
54
O
feminismo precisa ser discutido, de forma indissociável, ao
contexto da luta de classes. Esta é a premissa da reexão que aqui pr
oponho
e hipótese de trabalho principal que norteia meus estudos sobre a condição
da mulher
. Especialmente para um texto que faz parte da proposta do
presente livro homenageando os 100 anos da R
evolução Russa.
A discussão sobre o processo r
evolucionário na Rússia é
fundamental para a retomada do signicado histórico da luta de classes.
Os percalços e problemas objetiv
os do processo russo e, posteriormente, da
formação da U
nião das R
epúblicas Socialistas So
viéticas é condição
sine qua
non
para uma retomada do tema neste centenário de importância ímpar
para os revolucionários contemporâneos. Aliás, este é o mote
deste texto.
P
or que discutir a revolução russa, 100 anos depois? P
rioritariamente, para
entender e atuar no contexto contemporâneo com vistas à retomada e
armação da necessidade da revolução social num mundo ainda dominado
pela lógica do capital. Olhar para o passado é atitude necessária para
atualizar o presente. E seguir em frente. E por que discutir a condição da
mulher neste contexto? P
orque o lugar de destaque que a questão feminina
passou a ocupar nas discussões contemporâneas, ao menos do último
terço do século XX até hoje, acabou por associar – majoritariamente – a
questão da mulher a uma causa especíca, normalmente tratada fora do
contexto mais amplo das lutas da classe trabalhadora como um todo. I
sso
gerou pressupostos metodológicos, especialmente nas Ciências S
ociais,
que levaram a um distanciamento entre marxismo e feminismo, como se
esse instrumento teórico-prático proporcionado pelos textos de Karl Marx
(1818-1883), e de outros importantes marxistas, não importasse – ou
importasse apenas parcialmente – para a questão “
especíca
” da mulher
.
Isso, evidentemente, em termos da leitura hegemônica r
esultante destes
estudos. Claro que houve, e continua havendo, esfor
ços importantíssimos
na direção dos estudos pautados pelo binômio marxismo e feminismo.
Diante desse quadro hegemônico, a principal pr
eocupação
que aqui apresento é o debate teórico-metodológico nos estudos sobre a
condição da mulher
. A referência principal, em termos da ino
vação destes
estudos no caso brasileiro, no campo do marxismo, é o texto da socióloga
que foi pioneira nesta discussão desde os anos 1960, Heleieth S
aoti
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
55
(1934-2010).
T
rata-se de seu clássico
A mulher na sociedade de classes mito
e realidade
(SAFFIO
TI, 2013, p. 34). Mas, antes disso, é importante dar
um rápido destaque a algumas obras e estudos clássicos que o marxismo
produziu desde os tempos da Comuna de P
aris de 1871, (LISSAGARA
Y
,
1991)
2
passando pela Revolução R
ussa e os desdobramentos da derrocada
de todo o Leste Eur
opeu e, por m, da própria URSS, bem como o Brasil
neste contexto.
M
ArxisMo
,
feMinisMo
e
l
ut
A
De
clAsses
N
este campo de discussão, é importante destacar o papel da
vanguardista F
lora
T
ristan (1803-1844) que, na P
aris dos anos 1840 –
com sua obra
U
nião oper
ária
(1843) que defendia a auto-emancipação
dos trabalhadores e o internacionalismo socialista – impressionav
a nomes
como Marx e Bakunin (1814-1876), entr
e outros. N
ote-se que esta obra é
publicada cinco anos antes de
O Manifesto Comunista
. Outro importante
texto de
T
ristan que se relaciona diretamente ao tema, publicado dois anos
após sua morte é
A emancipação da mulher
. O lósofo Leandro Konder
dedicou um estudo a esta militante e escritora,
Flor
a
T
ristan, uma vida de
mulher
, uma paixão socialista
(1994). N
o campo do feminismo classista,
Flora
T
ristan ocupa lugar destacado e não pode deixar de ser lida pelas
brasileiras que se dedicam a este tema.
Embora o espaço aqui seja limitado, não quero deixar de fazer
referência a dois textos clássicos do marxismo, escritos no início do século
XX, no contexto da Revolução R
ussa, que discutem a nov
a mulher
, a nova
moral sexual, e a participação feminina na política e na construção de um
nov
o mundo. O primeiro é da r
evolucionária russa Alexandra Kolontai
(1872-1952), “O amor e a nov
a moral”, contendo dois ensaios da autora,
A nova mulher e a mor
al sexual
e
O amor na sociedade comunista
, escritos
em 1918 e 1921, respectivamente (K
OLONT
AI, 2000). N
o texto aqui
destacado, Kolontai explicita a necessidade de se r
epensar o amor e a
sexualidade sobre no
vas bases, como um desao que deve fazer parte
O Jornalista Lissagaray foi um dos poucos sobr
eviventes da Comuna de P
aris e este livro é de extraordinária
importância para se conhecer a experiência revolucionária levada a cabo pelos trabalhadores na F
rança.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
56
do processo rev
olucionário. O segundo texto é do marxista peruano
J
osé Carlos Mariátegui (1894-1930), “
A mulher e a política
”, publicado
originalmente em
V
ariedades
, Lima, em 15 de março de 1924 – como
fruto de sua atividade de jornalista e defensor da revolução bolchevique
– e que faz parte do livro
Revolução R
ussa: história, política e liter
atur
a
.
3
N
este texto, Mariátegui – além de destacar o papel de K
olontai –
arma que a história da Revolução R
ussa se achava, na ver
dade, muito
conectada à história das conquistas do feminismo. D
aí o destaque aqui
especialmente referido
.
U
m texto quase desconhecido que se dedicou à mulher
trabalhadora no Brasil, está publicado pela R
evista
Escrita E
nsaio
, n.5, feito
com a temática especíca “M
ulher brasileira: a caminho da libertação
”.
Este dossiê foi publicado em 1979 – justamente no pico da retomada do
movimento operário no pós-1964 – que também signicou um importante
momento do movimento feminista, atrav
és da realização do
Congr
esso da
M
ulher M
etalúrgica
, do
Primeir
o Congresso da M
ulher P
aulista
, do
E
ncontro
N
acional das M
ulher
es
, promo
vido pelo Centro da M
ulher B
rasileira,
entre outras iniciativas. P
or ser um número temático, destaco um artigo
antológico de Heleieth S
aoti, que as feministas contemporâneas mal
conhecem: “O fardo das brasileiras – de mal a pior
” (SAFFIO
TI, 1979).
N
ele, a autora defende explicitamente que uma mulher genérica não existe,
mas sim mulheres localizadas na estrutura social, que arcam com o ônus
desta inserção e, portanto, a intensidade da discriminação feminina varia
segundo as classes sociais.
Como o presente texto não se propõe a discutir todas as
contribuições, mas apenas destacar
, deliberadamente, aquelas menos
referidas nos estudos contemporâneos sobr
e o feminismo, resta indicar
também uma autora brasileira pouquíssimo presente nas bibliograas de
estudos feministas, mas que deveria ocupar lugar de destaque.
T
rata-se de
V
ania Bambirra (1940-2015), uma autora muito conhecida na América
Latina, mas pouco referida no próprio país. E
la é uma das intelectuais
brasileiras exiladas por mais tempo, em função da ditadura militar de 1964,
e trabalhou no Centro de Estudos Socioeconômicos da U
niversidade do
Com organização, tradução e prefácio de Luiz Bernar
do P
ericás, publicado pela Expressão P
opular (2012).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
57
Chile (CESO). Seus dois textos mais conhecidos na r
eexão direta do
feminismo são quase desconhecidos pelas brasileiras, mas isso tem mudado
nos últimos 10 anos: “La mujer chilena em la transicion al socialismo
”,
publicado na
P
unto Final
, em 1971, S
antiago de Chile. E “Liberacion de
la mujer: uma tarea de ho
y
”, no mesmo órgão de divulgação, em 1972.
Alguns dossiês com essa temática do marxismo e do feminismo foram
pro
videnciados por blogs e publicações de esquerda. M
as com certeza
ainda há muito a fazer
.
4
h
eleieth
s
Affio
ti
e
o
DebA
te
teóric
o
-
Met
oDológic
o
nos
estuDos
sobre
A
conDiçã
o
DA
Mulher
Inter-r
elacionar feminismo, luta de classes e capitalismo, não é
tarefa fácil. F
azer uma obra que explicite essas correlações e ainda discuta
um caminho para o socialismo, menos ainda. Anal, trata-se da superação
da propriedade privada dos meios de produção
. Como se não bastassem
essas duas tarefas hercúleas, S
aoti ainda enfrenta a questão de não isolar
a questão feminina como uma causa especíca. P
or isso que o debate
teórico-metodológico no campo dos estudos sobre feminismo no B
rasil
passa por esta importante socióloga, numa visão de totalidade propiciada
pelo instrumental marxista. Ela foi pioneira nos estudos sobre a condição
da mulher no Brasil não só porque tratou sistematicamente do assunto
quando não era tão usual nas ciências sociais no país, mas principalmente
porque trabalhou duas difíceis relações, quase ao mesmo tempo: 1)
a condição da mulher e a luta de classes; 2) o marxismo e a questão
feminina. A autora deixou, portanto, importante herança nos estudos
sobre a mulher que, na atualidade que a questão apr
esenta, é referência
obrigatória para quem deseja tratar do tema, tanto pelo resgate histórico
que suas reexões r
epresentam, como para vislumbrar as possibilidades de
efetiva emancipação feminina neste século XXI.
P
ara os objetiv
os de expor aqui as principais dimensões da
inov
ação teórico-metodológica que Saoti propõe, optei por apr
esentar
LO
V
A
TTO; BARSO
TTI, 2009. Neste dossiê há uma seleção de mais de 30 textos sobr
e a temática marxista,
a questão feminina e a luta de classes. Outro dossiê sobre o tema, publicado também no blog marxismo21:
MAR
TUSCELLI; LO
V
A
TTO; GONÇAL
VES, 2016.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
58
as problemáticas centrais
5
daquele que é considerado seu principal estudo,
A mulher na sociedade de classes:
mito e realidade. P
ublicado em livro em
1969, foi fruto de pesquisa inicial de doutorado que, mais tarde, resultou
na Livre-D
ocência na UNESP
, campus de Araraquara (CANDIDO, 2013,
p. 27). A r
epercussão do estudo levou a uma segunda edição em 1976.
E, numa iniciativa bastante oportuna, a terceira edição veio a público
por meio da Expressão P
opular
, em 2013, demonstrando a atualidade e a
importância do pensamento desta pensadora brasileira.
Dizer de sua atualidade, não signica ignorar os av
anços –
especialmente de pesquisas empíricas – realizados nas últimas décadas. A
própria autora adverte, em nota à segunda edição, ainda em 1976, que
“
considerando-se o objetivo desta obra – abordar uma série de problemas
até então não percebidos ou tratados sem embasamento teórico –, seria
praticamente impossível a atualização de todas as suas partes
”, r
essaltando
que o impulso “
sofrido pelos movimentos feministas nestes últimos anos
foi tal que existem obras bem nutridas tratando exclusivamente desta
questão
”. No entanto, adv
erte: “
a magnitude do material empírico impõe,
por conseguinte, a especialização
” que, no entanto, “
tende a estreitar as
fronteiras teóricas em que os fatos são situados
” (SAFFIOTI, 2013, p
. 38).
Se isso já valia para 1976, v
ale muito mais para este momento que
vivemos no século XXI. Daí o signicado que aqui atribuímos à atualidade
do texto: valorizar o arsenal teórico-metodológico em que se situa a obra
de Saoti
6
– que é o legado que recebemos para a realização de no
vas
pesquisas – que caminha no sentido contrário do eventual estreitamento
das fronteiras teóricas em que os fatos são situados, reconhecendo que os
limites datados de seu texto, correspondem a um contexto histórico do
nal dos anos 1960, num país que inclusive passava por grande r
epressão
ditatorial, que correspondia – no plano internacional – à lógica da G
uerra
F
ria.
U
ma visão mais detalhada do livro, de mais de 500 páginas, poderia levar a uma outra escolha de forma
e conteúdo, que não caberia aos propósitos deste capítulo que discute a questão teórico-metodológica. A
problematização geral que aqui apresento pretende contribuir com o devido destaque e r
elevância que a obra de
Heleieth Saoti conquistou.
Há um desenvolvimento mais completo desse aspecto em SAFFIO
TI, N
ovas perspectivas metodológicas
de investigação das relações de gênero
. (MORAES SIL
V
A, 1991). Desenvolvo melhor este aspecto no texto
“Desvendando O poder do macho: um encontro com H
eleieth Saoti” (L
OV
A
T
T
O, 2011, p. 110-118).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
59
Importante ressaltar que o livro de S
aoti é composto por
três partes
7
que, embora se complementem, podem ser lidos de maneira
independente (CANDIDO, 2013). É assim que ganha destaque – como
uma leitura interpretativa do B
rasil – a parte II de sua obra, a saber
, “
A
evolução da condição da mulher no Brasil
”. N
ela, a autora faz uma análise
da formação histórica do país, por meio da localização dos papéis sociais
da mulher brasileira e sua evolução
.
Ao apresentar seus pr
óprios objetivos na pesquisa que
desenvolveu, S
aoti adverte que “
se esta obra não se dirige apenas às
mulheres, não assume, de outra parte, a defesa dos elementos do sexo
feminino. N
ão é, por
tanto, feminista
” (SAFFIOTI, 2013, p
. 38). Esta é
a principal advertência ao leitor de seu trabalho, isto é, não se trata de
uma obra feminista, mas que considera a totalidade das relações onde a
mulher está inserida. E continua: “Denuncia, ao contrário, as condições
precárias de funcionamento da instituição família nas sociedades de classes
em decorrência de uma opressão que, tão somente do ponto de vista da
aparência, atinge apenas a mulher
” (SAFFIO
TI, 2013, p
. 38). Este texto
demonstra, entre outros aspectos, a determinação da autora em escapar
aos escaninhos de classicação apressadamente engajados que poderiam
ser impostos à sua reexão
. Ao mesmo tempo, ela sabia que seus estudos
poderiam trazer luz a um tema que, no B
rasil, estava ainda procurando seus
caminhos. Entendo que a autora trabalhou no sentido de estabelecer as
bases para uma melhor compreensão teórico-metodológica do tema, além
– evidentemente – de contribuir para o alcance político das necessárias
transformações da condição da mulher na sociedade.
A problemática proposta e desenvolvida por S
aoti, neste texto
que, como já dissemos, foi publicado em 1969 – mas cuja redação havia sido
concluída em 1967
8
– é apresentada nos seguintes termos: “
A explicação da
situação da mulher na sociedade capitalista é encontrável através da análise
das relações entre o fator natural sex
o e as determinações essenciais do
modo capitalista de produção
” (SAFFIO
TI, 2013, p. 507). S
eu objetivo
P
arte I – Mulher e capitalismo; P
ar
te II – E
volução da mulher no Brasil; P
arte III – A mística feminina na era
da ciência.
P
ara maiores detalhamentos de como a pesquisa nasceu e foi desenvolvida, consultar (GONÇAL
VES, 2013,
p.11-25).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
60
era explicitar os mecanismos pelos quais as sociedades de mercado operam,
com vistas “
à regulação das atividades das duas categorias de sexo de modo
a atenuar conitos gerados pela ordem social competitiva
” (SAFFIO
TI,
2013, p. 507).
Esta problemática e este objetivo geraram a seguinte hipótese,
defendida pela autora:
Como o sistema capitalista de produção é incapaz de absorver a
mão de obra potencial representada por todos os membr
os adultos
e normais da sociedade de classes,
seus mecanismos de defesa consistem
em tentar preservar-se sem expor demasiadamente suas contr
adições
internas
. Eis por que lança mão de fatores de ordem natural a m
de, simultaneamente, manter seu padrão de equilíbrio, instável e
contraditório, alijando força de trabalho do mercado, e justicar
a marginalização de enormes contingentes femininos da estrutura
de classes através das funções de repr
odutora e socializadora por
excelência da geração imatura, que tradicionalmente a sociedade
atribui à mulher (SAFFIO
TI, 2013, p. 508)
9
.
P
oder-se-ia objetar que o capitalismo acabou utilizando-se mais
do trabalho feminino do que a análise inicial de Saoti argumentava,
especialmente o trabalho precarizado, cuja especialização prossional é
praticamente inexistente. N
o entanto, entendo que está justamente neste
ponto – o trabalho feminino precarizado que tanto marca o nosso tempo
– a chave para a compreensão do que a autora chamav
a a atenção em
1969: na linha de “
tentar preservar-se sem expor demasiadamente suas
contradições internas
”,
10
o capitalismo absorvia uma camada do chamado
desemprego feminino, sem classicá-lo como desemprego,
11
na medida
em que era considerada “
natural” a absorção de suas funções sociais como
“
reprodutora e socializadora por excelência da geração imatura
”. Quando
Grifos meus.
10
István M
észáros desenvolve algo semelhante em sua tese sobr
e o sistema sociometabólico do capital, ao usar a
expressão “linha de menor resistência do capital
”, referindo-se à maneira como o capitalismo procura se adaptar
aos movimentos sociais contestatórios ao sistema, mas que não apontam para a superação efetiva do capital pela
perspectiva do trabalho (MÉSZÁROS, 2002).
11
“No caso da mulher
, entretanto, cujo desemprego é justicado em termos das funções de reprodutora e de
socializadora dos imaturos, que a mulher desempenha por atribuição da sociedade, a inatividade econômica não
chega, portanto, a ser considerada propriamente desemprego
” (SAFFIO
TI, 2013, p.509).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
61
isso atingiu um limite insuportável do exército industrial de r
eserva, o
capitalismo passou a “
absor
ver
” a força de trabalho feminina da forma
mais precarizada possível, muito pr
óxima da “
especialização
” do trabalho
doméstico ou do trabalho de mãe. Senão vejamos: quando S
aoti
explicita sua tese, expondo as contradições da sociedade de classes, chega
à seguinte conclusão:
Se a elevação da pr
odutividade do trabalho pode ser considerada um
m desejável socialmente, é preciso considerar
a totalidade em que este
objetivo se inser
e
a m de que se verique se ela repr
esenta o alvo da
sociedade como um todo ou se representa
apenas o alv
o de uma classe
social
(SAFFIO
TI, 2013, p. 508-509).
12
F
azendo referência aos pressupostos de uma democracia social e
econômica, a autora argumenta que nada “
é mais desejável do que a elevação
da produtividade do trabalho
” de tal maneira que a humanidade se “liberte
do reino da necessidade e penetre no r
eino da abundância
” (SAFFIOTI,
2013, p. 509). M
as na medida em que, sob o capitalismo, o produto
do trabalho social é desigualmente distribuído, “
o desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade de classes bloqueia
” as possibilidades “
de
realização da democracia social e econômica
” (SAFFIO
TI, 2013, p. 509).
Essa contradição ocorreria porque as oportunidades “
de objetivação de si
oferecidas aos seres humanos
” dependeriam de fatores “
sobre os quais estes
seres não têm o mínimo controle
”, como é o caso do desemprego estrutural.
Consequência: as “
sociedades competitivas
” – expressão que a autora usa
frequentemente – precisaram encontrar uma solução para lidar com esse
desemprego, recorr
endo – ainda que de forma precária e pro
visória – “
ao
não emprego de tecnologia poupadora de mão de obra
” (SAFFIO
TI, 2013,
p. 509). N
este sentido, o desemprego masculino adquire a aparência de ser
o único com feições realmente inaceitáveis socialmente, pela explicitação
das contradições mais latentes do capitalismo. M
ais um exemplo da autora
no sentido de que não é possível entender a questão do trabalho feminino
sem a contrapartida do masculino:
12
Grifos meus.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
62
Como o sistema de produção não pode absorver toda força de
trabalho potencial da sociedade de economia de mercado, libertar a
mulher das funções que tradicionalmente vêm sendo desempenhadas
por ela representa ampliar considerav
elmente o número de pessoas
disponíveis no mercado de trabalho, o que, além de agravar sobr
emodo
o problema do desemprego, expõe a estrutura social à observação e à
crítica (SAFFIO
TI, 2013, p. 510).
A situação da mulher expressa, segundo a autora, “
o impasse
diante do qual se vê colocada a sociedade de classes
” (SAFFIOTI, 2013,
p. 510). E
is explicitada sua tese diante das contradições inerentes ao
sistema capitalista de produção! Ao mesmo tempo que explica, sua tese
reconhece a posição da mulher na sociedade de classes, sem desconsiderar
sua especicidade no sistema de produção onde homens e mulheres são
explorados. Sendo assim, tendo a considerar que – para r
etomar este
aspecto hoje e debater concretamente o papel das mulheres trabalhadoras
e precarizadas na sociedade capitalista do século XXI – seja necessário
retomar este pressuposto tão bem construído por S
aoti no nal dos
anos 1960, sob pena de incorrermos no erro de isolar em demasia o papel
feminino da totalidade histórico-social em que se insere.
Essa totalidade valeria também para outros aspectos, caso a eventual
pretensão social fosse uma sociedade sem classes ou “
pelo menos, uma
sociedade de classes não antagônicas
”, isto é, se seus membr
os estivessem
de fato destinados a gozar de “liberdade suciente para conquistar o
status
social que suas capacidades pessoais permitem
”, onde “
o nascimento, a cor
e o sexo não decidem os destinos de pessoas
”. Isso seria a realização plena
de um “
reino da razão
” (SAFFIOTI, 2013, p
. 510). N
ão é o que ocorre nas
sociedades competitivas, em que a inversão dessa razão é operada:
Com efeito, enquanto nas sociedades pré-capitalistas a etnia e o
sexo aparecem como fundamento da inferioridade social do escravo,
do servo e da mulher
, nas sociedades competitivas os caracter
es
naturais perdem, aparentemente, à pr
oporção em que se processa
o desenvolvimento social e econômico, a feição de marcas sociais
que operariam como fatores de perturbação da ordem competitiva,
racionalmente organizada. (SAFFIO
TI, 2013, p. 511).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
63
Segundo a autora, há uma camuagem, portanto, onde a
sociedade competitiva vai “
renando suas técnicas sociais
”, de tal modo a
induzir “
seus membros a atuar segundo as necessidades do sistema como
um todo
” (SAFFIOTI, 2013, p
. 511). Ao invés de descartar uma dada
liação étnica ou de ordem sexual, de modo explícito, a técnica r
enada faz
parecer que o descarte daquela “
mão de obra
” está sendo feito em função
da ausência das qualicações exigidas, diante da harmonia do conjunto
orgânico no qual se inserem. O mecanismo dessa camuagem faz com
que a própria sociedade vá r
eelaborando constantemente o escopo das
qualicações exigidas – diante das nov
as necessidades produtivas que seu
processo impõe – de tal maneira que ela própria “
seria incapaz de discernir
onde terminam as razões que a natureza do organismo feminino impõe à
permanência da mulher no lar e onde têm início os fundamentos sociais
do alijamento de grandes contingentes femininos da estrutura de classes
”
(SAFFIO
TI, 2013, p. 511).
A
Mbiv
AlênciA
,
econoMiA
De
MercADo
e
c
ontingentes
feMininos
:
Pr
obleMA
sociAl
ou
uMA
quest
ão
De
“
sex
os
”
oPost
os
?
A necessidade de satisfazer às exigências estruturais e funcionais de
economia do mercado, segundo a autora, implicaria numa ambivalência:
N
a manutenção de dois ideais contraditórios – a aspiração de
ascensão social e a aspiração, tanto masculina quanto feminina, de
fornecer à mulher as condições nanceiras necessárias a m de que
possa realizar o padrão
mulher economicamente inativa
– rev
elam-se,
vigorosamente, as contradições próprias de um sistema que, ao mesmo
tempo, tenta preservar-se através de uma seleção prévia dos elementos
a serem lançados no processo de competição, mediando a satisfação
dessa necessidade com a estrutura familial, e por meio da garantia de
consumo, mesmo que num nível da subsistência, de todos os seus
membros (SAFFIO
TI, 2013, 512).
Como então, as sociedades competitivas, tendem a resolv
er esta
ambivalência? Os indicativos de S
aoti apontam que, nestas condições,
o problema da mulher “
não é somente seu, mas um problema de
homens
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
64
e mulheres
” (SAFFIO
TI, 2013, p. 513)
13
. Isso por
que essa sociedade não
pode desconsiderar as necessidades básicas das unidades de consumo, a
ponto de pôr em risco a sobrevivência de seus membr
os “
qualicados”
para o processo produtivo
. Assim, ao contrário do que com frequência
poderia aparecer – e aparece – na consciência masculina, “
o processo de
marginalização da mulher da estrutura de classes não traz benefícios aos
homens
” pois, como unidades de consumo, “
a família acaba por auferir
rendimentos inferiores
”, pelo afastamento do elemento feminino do
trabalho remunerado:
Assim, não apenas a consciência feminina está misticada, mas o
próprio homem se deixa levar pelos mecanismos de defesa do sistema
capitalista de produção como se a manutenção de seu domínio
sobre a mulher compensasse as desvantagens de uma distribuição
extremamente desigual dos produtos do trabalho social (SAFFIO
TI,
2013, p. 513).
Esse seria o motivo pelo qual, frequentemente, essas questões
não aparecem como um problema social, mas ex
clusivamente como uma
questão de “
sexos
” opostos, misticando as consciências, tanto masculina
quanto feminina.
Seguindo esta importante base sobre a qual é erigido o pensamento
de Heleieth S
aoti, tendo a considerar que – sem entender este aspecto
da suposta luta “
entre os sexos
” – será difícil superar a alienação e o
estranhamento que cercam o trabalho feminino e masculino na totalidade
do sistema de produção capitalista no qual até hoje estamos, mais do que
nunca, inseridos. Isso por
que esse sistema já demonstrou o fôlego que
tem, mesmo diante das crises econômicas mais objetivas que surgiram
historicamente. Coloca-se aqui o velho problema entr
e condições objetivas
e disposição subjetiva em superar o capitalismo: se os elementos subjetivos
que poderiam interferir na objetividade desta crise não resolverem suas
contradições, tanto no plano teórico, como no plano da ação, o capitalismo
não perecerá simplesmente por uma fatalidade histórica, “
crença
” que
contaminou alguns defensores do socialismo durante muito tempo
. Rero-
13
Grifos meus.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
65
me aqui às reexões pioneiras que S
aoti realizou, neste mesmo livr
o, sobre
as experiências que vinham sendo desenvolvidas no chamado “
socialismo
real
”, e que serão referidas sinteticamente a partir desse momento.
c
oMo
Discutir
A
trAnsição
sociAlist
A
e
A
quest
ão
DA
Mulher
nuMA
socieDADe
AinDA
or
gAnizADA
eM
cl
Asses
sociAis
?
A principal hipótese defendida a este respeito por S
aoti é a de
que as categorias de sexo não apresentam autonomia e “
nem constituem
determinações essenciais do sistema capitalista de produção
”. P
ensar o
socialismo e a questão da mulher também segue, portanto, essa lógica,
na medida em que “
atacar diretamente as determinações essenciais da
sociedade de classes
” – como se isto fosse suciente para “
a solução de
todas as contradições do sistema
” – não seria, com cer
teza, a melhor
maneira de propor a superação dos problemas da mulher
. Considerando
o estado da arte em que o socialismo real se encontrava naquele momento
histórico – estruturado muito mais como sociedades pós-capitalistas do
que sociedades com efetiva transição socialista (MÉSZÁR
OS, 2002)
– a percepção de Saoti sobr
e o tema era aguda: “
a crença de que a
implantação do socialismo levava, automaticamente, à destruição dos
elementos culturais responsáveis pela inferiorização social da mulher
” teria
limitado “
as possibilidades de solução satisfatória do problema feminino
pelas sociedades socialistas
”
(SAFFIO
TI, 2013, p
. 516).
Embora este não tenha sido o foco de sua pesquisa, a autora deixou
algumas pistas para se pensar a questão. Argumentou que alguns socialistas
chegaram a avançar na ideia de que o “
feminismo só se legitima enquanto
perspectiva inclusa e dependente de pontos de vista estruturalmente
determinados
”, mas nenhum deles teria sido capaz de explicar – pelo
menos não de uma maneira convincente, segundo a autora – a situação da
mulher nas sociedades capitalistas, dissecando objetivamente “
esquemas
estraticatórios e a estrutura de classes
” (SAFFIO
TI, 2013, p
. 516). Ao não
fazerem isso, esses socialistas teriam deixado de tratar a questão feminina
como parte integrante da superação da estrutura de classes, por debilidades
de ordem teórica e prática:
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
66
N
em teórica nem praticamente a perspectiva socialista resolveu de modo
satisfatório as questões femininas.
T
eoricamente, porque assimilou as
relações entre os sex
os às relações entre as classes sociais, raciocínio
inaceitável, uma vez que as categorias sociais em questão possuem
natureza diversa. [...] N
o terreno prático, embora as experiências
socialistas não representem, de forma alguma, a solução denitiv
a dos
problemas femininos, zeram corresponder ao av
anço do processo de
emancipação feminina no terreno social uma posição economicamente
segura para a mulher (SAFFIO
TI, 2013, p. 517).
Com isso, o socialismo real sequer conseguiu realizar a igualdade
formal entre os dois sexos, o que a sociedade de classes – com suas
misticações – tende a realizar
, apropriando-se mimeticamente do discurso
de libertação da mulher no terreno da sexualidade e da reprodução
.
T
alvez
aqui, arriscando uma conclusão pessoal, a linha de menor resistência do
capital (MÉSZÁR
OS, 2002) tenha novamente saído vitoriosa, absorvendo
– por assim dizer – a capacidade do mo
vimento feminista de se impor na
luta social, articulando de fato a condição da mulher com a sociedade de
classes e, principalmente, com a luta de classes. P
ar
ece-me que – seguindo
o raciocínio, já citado, de M
észáros sobre o sistema sociometabólico do
capital – a incapacidade do socialismo real em superar o capital (e não
apenas o capitalismo), resultou também em envolv
er as demais questões
sociais no emaranhado das diculdades insuperáveis que acabaram na
derrocada de 1989-92, tanto no Leste E
uropeu, como na própria URSS.
Heleieth S
aoti desenvolve sua pesquisa em tempos de G
uerra
F
ria e nos meandros de mo
vimentos sociais que vieram a culminar na
rejeição tanto ao capitalismo, quanto ao chamado socialismo real, como
são exemplos o M
aio de 1968 em P
aris, Ber
keley
, Berlim e P
raga. N
aquele
momento histórico, o desconforto em relação ao primeiro e segundo
“
mundos
” aparecia em contestações vigor
osas que, no entanto, não
chegavam exatamente a propor um “
novo mundo
” em seu lugar
. Daí a
contextualização deste livro da autora: como mencionei anteriormente,
embora tenha terminado de escrever em 1967, a publicação do livr
o de
Saoti entrou em cir
culação em 1969, momento em que passaram a ser
discutidos nov
os paradigmas para as ciências sociais (EV
ANGELIST
A,
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
67
1992), decorrentes do que cou mundialmente conhecido como crise dos
sixties
(FERR
Y
; RENAUT
, 1985). Esta discussão questionava fortemente
a validade do marxismo, que estaria ultrapassado, em função de “
novas
”
manifestações dos fenômenos sociais, que por sua vez exigiriam um
“
novo
” modelo analítico (FERR
Y
; RENA
UT
, 1985). Esta perspectiva
de revisão e crítica do marxismo anunciava o que foi denominado de
uma “
nova
” esquerda que, por sua v
ez, estaria associada à derrocada da
centralidade operária no processo rev
olucionário. Argumentava-se que as
rápidas transformações por que passava a sociedade moderna teria levado à
emergência de uma pluralidade de “
novos sujeitos políticos
”, “
novos espaços
sociais
”, “
novas práticas sociais
” e “
no
vas falas e r
epresentações sociais
”,
que haviam – por assim dizer – substituído “
velhos
” sujeitos sociais, como
por exemplo a classe operária. Hav
eria, em suma, uma lacuna na teoria
das classes sociais que o marxismo – em sua leitura tradicional – tinha
diculdade de preencher (FERR
Y
; RENAUT
, 1985).
N
a impossibilidade de entrar nos detalhes desta rica discussão,
devido ao escopo aqui delimitado, gostaria de sugerir a hipótese de que a
obra de Heleieth S
aoti – especialmente
A mulher na sociedade de classes
– contribuiu decisivamente no Brasil para atuar no sentido contrário desta
tese revisionista. A autora conseguiu valorizar a chamada “
pluralidade
de sujeitos políticos
” sem despr
ezar o marxismo enquanto instr
umento
teórico-metodológico, equilibrando a condição da especicidade da
mulher sem negar a centralidade da perspectiva do trabalho, inserida
na luta de classes. Em suma, a autora foi capaz de ser pioneira na difícil
questão feminina, ao mesmo tempo em que – por sua competência e
comprometimento intelectual e político – escapou às armadilhas impostas
pelo revisionismo teórico que os discursos pós-modernos – caracterizados
pela negação das metanarrativas (L
YO
T
ARD, 1989) – passaram a
implementar
, dominando a cena nos últimos 30 anos do século passado e
início do XXI. Estes são motivos mais do que sucientes para que as no
vas
gerações continuem lendo a obra de Heleieth S
aoti
14
e, o que é ainda mais
14
Importante referir a leitura de dois importantes dossiês: 1) P
ublicado em 2011, o dossiê “F
eminismo e
marxismo: um ano sem Heleieth Saoti
” (Revista Lutas S
ociais, 2011, n.27, p. 70-199) que contém vários
textos, além de importante entrevista realizada com a autora (GONÇAL
VES; BRANCO, 2011). Publicado em
janeiro de 2013, no Blog marxismo21, o dossiê “Marxismo e feminismo
” (LOV
A
TT
O; BARSOTTI, 2013),
que contém – além de importantes referências sobre o tema – um texto muito procurado da autora, em r
evista
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
68
necessário, possam propor formas de luta que ultrapassem decisivamente
os limites de classe impostos por sociedades competitivas. I
sso só pode ser
superado numa visão de totalidade dos fenômenos e que resgate a ideia
de verdade, tão desgastada num mundo que r
ejeita as metanarrativas,
opta pela fragmentação. A dissolução da ideia de v
erdade e o m de toda
referência ao univ
ersal, tão pregada desde os eventos do M
aio de 1968,
prejudicou quaisquer abor
dagens teórico-metodológicas que pensam em
direção oposta, como se fosse impossível conceber o mundo no
vamente
numa perspectiva de mudança e só nos restasse o niilismo
. A totalidade dos
fenômenos que levaram a essa propositura de mudança dos paradigmas
das Ciências Sociais r
esultou em consequências nefastas sobre o mundo do
trabalho e os trabalhadores, pois propôs a celebração do sujeito descentrado,
o apelo a um nov
o irracionalismo, a ênfase no caráter apenas retórico da
verdade, e à exaltação do duplo caráter r
egressivo da lógica do capitalismo
tardio, tanto do ponto de vista político quanto econômico
. Daí todas as
consequências igualmente nefastas sobre os estudos que isolam a questão
feminina, especialmente a mulher da classe trabalhadora.
P
or isso que iniciei e concluo com a riqueza da discussão
empreendida pelo escritor
Victor S
erge (1890-1947). Como muito bem
caracterizou este que foi um dos maiores historiador
es da Revolução R
ussa,
“
a imparcialidade do historiador não passa de uma lenda destinada a
corroborar convicções de interesse
” (SERGE, 1993, p
. 15). N
este sentido,
na medida em que as ideias dominantes de uma época são as ideias da
classe dominante, a quem interessaria a ver
dade? Serge ex
emplica que
os trabalhos sobre a grande guerra seriam sucientes para destruir essa
lenda, e argumenta: “O historiador é sempre ‘
de seu tempo
’, isto é, de sua
classe social, de seu país, de seu meio político
”, para exemplicar que “
a
única parcialidade isenta hoje, compatível com a grande pr
eocupação da
verdade, é a do historiador pr
oletário
”, porque “
a classe operária é a única
que tem tudo a ganhar
, em qualquer circunstância com o conhecimento da
verdade
” pois “
ela nada tem a esconder
” (SER
GE, 1993, p
. 15).
esgotada nos anos 1980, “O fardo das brasileiras: de mal a pior
” (SAFFIOTI, 1979). N
ele, a autora defende
explicitamente que uma mulher genérica não existe, mas sim mulheres localizadas na estrutura social, que arcam
com o ônus desta inserção e, portanto, a intensidade da discriminação feminina varia segundo as classes sociais.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
69
r
eferênciAs
:
BAMBIRRA, V
ania. La mujer chilena em la transicion al socialismo.
P
unto Final
,
Santiago de Chuile, 1971.
BAMBIRRA, V
ania. Liberacion de la mujer: uma tarea de hoy
.
Punto F
inal
, Santiago de
Chuile, 1972.
CANDIDO, Antonio. P
refácio
.
In
: SAFFIOTI, H
eleieth.
A mulher na sociedade de
classes:
mito e realidade. 3. ed. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2013. p. 27-29.
GONÇAL
VES, Renata. O pioneirismo de
A mulher na sociedade de classes
. 3. ed. São
P
aulo: Expr
essão P
opular
, 2013.
GONÇAL
VES, Renata; BRANCO, Carolina. Entrevista: H
eleieth Saoti por ela
mesma.
Revista L
utas Sociais
, São P
aulo, n.27, p
.70-81, 2011.
FERR
Y
, Luc; RENAUT
, Alain.
P
ensamento 68
: ensaio sobre o anti-humanismo
contemporâneo. S
ão P
aulo: Ensaio, 1985.
K
ONDER, Leandro
.
Flor
a
T
ristan, uma vida de mulher
, uma paixão socialista
. São P
aulo:
Relume-Dumará, 1994.
K
OLONT
AI, Alexandra.
O amor e a nova moral
. S
ão P
aulo: Expr
essão P
opular
, 2000.
LISSAGARA
Y
, Hippolyte P
rosper-O
livier
.
História da Comuna de P
aris de 1871
. S
ão
P
aulo: Ensaio, 1991.
LO
V
A
TTO, Angélica. Desv
endando O poder do macho: um encontro com Heleieth
Saoti.
Revista L
utas Sociais
, São P
aulo, n.27, p.110-118, 2. sem. 2011.
LO
V
A
TTO, Angélica; BARSO
TTI, P
aulo (org.). Dossiê F
eminismo e mar
xismo.
B
log
marxismo21
, 2009. Disponível em: http://marxismo21.org/marxismo-e-feminismo/.
Acesso em: 13 abr
. 2018.
L
YO
T
ARD, J
ean-F
rançois.
A condição pós-moderna.
Lisboa: Gradiva, 1989.
MARIÁ
TEGUI, José Carlos.
R
evolução Russa:
história, política e literatura
.
Com
organização, tradução e prefácio de Luiz Bernar
do P
ericás. São P
aulo: Expressão
P
opular
, 2012.
MAR
TUSCELLI, Danilo; GONÇAL
VES, Renata; L
OV
A
T
T
O, Angélica (org.). Dossiê
Heleieth S
aoti.
Blog marxismo21
, 2016. Disponível em: http://marxismo21.org/
dossiê-heleieth-saoti/, 2016. Acesso em: 20 jan. 2018.
MÉSZÁROS, I
stván.
P
ara além do capital
: rumo a uma teoria da transição
. São P
aulo:
Boitempo, 2002.
SAFFIO
TI, Heleieth. O far
do das brasileiras: de mal a pior
.
Escrita Ensaio
, São P
aulo,
n.5, 1979.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
70
SAFFIO
TI, Heleieth.
O poder do macho
. S
ão P
aulo: M
oderna, 1987. (Coleção
P
olêmica).
SAFFIO
TI, Heleieth. N
o
vas perspectivas metodológicas de investigação das relações
de gênero.
In
: MORAES SIL
V
A, Maria Aparecida de.
M
ulher em seis tempos
: seminário
temático II. Araraquara: F
aculdade de Ciências e Letras, UNESP
, 1991.
SAFFIO
TI, Heleieth.
A mulher na sociedade de classes:
mito e r
ealidade. 3. ed. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013.
SER
GE, Victor
.
O ano I da Revolução Russa
. São P
aulo: Ensaio, 1993.
P
Ar
te
ii
F P
D
T
S
73
C
Anderson D
eo
“Hoje ainda é moda, após um ano de existência
do novo r
egime, falar da Revolução Bolchevique
como uma ‘
aventur
a
’. M
uito bem, se for uma aventur
a,
tr
ata-se de uma das mais mar
avilhosas em que já se
empenhou a humanidade.”
(
J
ohn Reed, do prefácio de “10 dias que abalaram o mundo
”)
i
ntr
oDução
P
assados cem anos da tomada do poder pelos bolcheviques, em
25 de outubro de 1917
1
, as indagações sobre os acontecimentos e seus
Nunca é
demais lembrar que o Calendário Juliano era vigente na R
ússia, devido à inuência da Igreja Ortodoxa
naquele país. Há uma diferença, de 13 dias a menos, entre o
Calendário Juliano e o G
regoriano (este viria a ser
adotado como ocial). De acordo com a datação do Calendário G
regoriano, a tomada do poder ocorreu em 7
de novembro de 1917.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
74
desdobramentos são incontornavelmente reno
vadas e, acr
escentamos,
fundamentalmente necessárias. P
ara uma primeira apr
oximação, mesmo
que de forma genérica, podemos armar que os processos históricos de
maior relevância durante o século XX, r
eproduziram uma relação dir
eta
com a Revolução R
ussa de 1917 e a experiência de transição socialista
que esta inaugurou. Como todo processo histórico, este foi mo
vido por
contradições – algumas se mostraram insuperáveis - que contingenciaram a
reprodução social daquilo que podemos identicar como
o ser-pr
ecisamente-
assim
da experiência soviética.
N
o presente trabalho propor
emos uma introdutória discussão
sobre a forma de organização política que se origina no processo da
revolução, qual seja, a experiência dos
Conselhos
(S
ovietes).
Longe de
qualquer pretensão original, nos apoiaremos em literatura já existente
sobre o assunto, intentando destacar a
r
evolucionária energia criativa
contida nos conselhos, sua potencialidade enquanto forma de organização
política na fase da transição, fundamentada na
democr
atização
das relações
sociais em sua totalidade. Da forma como entendemos, tal análise deve ser
mediada pelos acontecimentos históricos, o que nos possibilita identicar
os avanços, os limites e as possíveis causas que levaram ao desapar
ecimento
da experiência dos conselhos. A experiência histórica dos conselhos
reproduziu uma no
va forma de organização política, cujo objetivo seria,
em última instância, a destruição/superação do Estado, tal como analisado
por Lenin (1985a
),
na transição socialista e na construção do comunismo.
Essa proposição implica em uma análise que se fundamente no
ser-
precisamente-assim
de uma formação social, levando em conta a dinâmica
das contradições que operam no complexo de complexos constitutivos
dessa totalidade mesma, sua legalidade interna, as forças sociais que a
compõem e disputam sua direção
. Como nos esclarece G
yörgy Lukács
(2008, p. 84):
O ser-precisamente-assim é, antes de mais nada, uma categoria
histórico-social, ou seja, o modo necessário pelo qual se apresenta
o jogo contraditório das forças socioeconômicas que operam em
determinado momento no interior de um complexo social situado
num estágio especíco de seu desenvolvimento histórico.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
75
Ao fundamentar nossa análise em tais elaborações, procuramos
compreender a realidade histórica como pr
ocesso em construção, resultante
das lutas de classes, que superam antigas contradições, dando origem a uma
nov
a realidade, também permeada por no
vas contradições. O que vale aqui
questionar é se a forma e o conteúdo dessa nov
a realidade e, portanto,
das contradições que ela origina, são/foram substancialmente distintas,
no sentido de uma superação positiva, de acordo com as pr
oposições
para as quais foram movimentadas. N
o que diz respeito ao objeto em
discussão no presente trabalho, trata-se de identicar se a
nov
a forma
de democr
acia
que se intentou construir com a Revolução Bolchevique,
baseada no gov
erno dos conselhos, possuiu conteúdo e formas distintas
da forma burguesa. P
ara tanto, é pr
eciso considerar que não há forma
política universal, que esteja desconectada de todos os outros complexos
sociais em sua totalidade. Acompanhando ainda o argumento de Lukács,
identicamos o equívoco analítico – ainda presente na práxis política de
vários agrupamentos de esquerda – daquelas análises que propõem uma
leitura da forma de gov
erno constituída a partir de outubro de 1917,
com as lentes da teoria liberal que sustenta a democracia burguesa, como
se a democracia possuísse uma legalidade universal. Quando armamos
acima a necessidade de compreensão da legalidade interna dos fenômenos
histórico-sociais, referimo-nos ao fato de que toda r
ealidade expressa, sim,
uma
universalidade
, que não pode ser confundida com “leis universais
”,
pautadas em princípios e fundamentos petricados, naturais e, portanto,
a-históricos.
Compreender a
universalidade
da democracia que começou a ser
construída com os Conselhos implica em reproduzir – no plano intelectivo
de abstrações razoáveis – as mediações que aquele processo histórico (aquela
universalidade) repr
oduziu em suas
particularidades
e
singularidades
, assim
como, discuti-lo e analisá-lo como processo de
democr
atização
“
dado que,
também nesse caso segundo uma abordagem ontológica, trata-se sobr
etudo
de um processo e não de uma situação estática
” (LUKÁCS, 2008, p
. 85).
T
al
fundamentação remete à seguinte questão, também sugerida por Lukács:
à forma de dominação política identicada como democracia burguesa,
corresponde uma forma de dominação econômica (e vice-e-versa) r
egida
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
76
pela propriedade privada dos meios de produção, pela exploração da mais-
valia e pela troca mercantil. Assim sendo, à construção de uma no
va forma
de sociabilidade, com uma nov
a forma de organização política, que se
fundamente na superação da forma burguesa e de todas as mazelas que
a exploração do Capital sobre o
T
rabalho reproduz, não pode se pautar
nos fundamentos políticos daquela lógica mesma, pois a legalidade interna
da democracia burguesa está vinculada à forma de reprodução capitalista.
N
ão é possível – pelo contrário, é um grave equív
oco subsumido ao
argumento liberal (consciente ou não) – analisar o processo da formação
social na URSS “
exigindo
” ou “
reivindicando
” os fundamentos políticos
burgueses da “liberdade, igualdade e fraternidade
” como generalizações
abstratas (MARX, 2005), autonomizando e hipostasiando estes princípios
em relação à sua base material, mesmo considerando que, desde uma
perspectiva histórica, “O evolver de or
dem capitalista abre a
possibilidade
objetiva
da moderna democracia política
” (NET
T
O, 1990, p
. 76), o que
signicou um avanço em relação às formações sociais pr
etéritas, pois
ampliou a possibilidade social da liberdade e da igualdade
[...] fundada na generalização do reconhecimento social da igualdade
jurídico-formal dos indivíduos e comportando a incorporação de
amplos segmentos sociais nos cenários de ação e intervenção sociais.
Dependendo da capacidade de mobilização
organizada
destes
segmentos – dependendo de sua
pr
ática política
–, aquela possibilidade
converte-se em realidade. (NETT
O, 1990, p. 76).
Atentemo-nos para o aspecto que J
osé P
aulo Netto assinala, ao
apontar o caráter de “
generalização do r
econhecimento social da igualdade
jurídico-formal”. N
a mesma trilha que M
arx, Lenin e Lukács, N
etto
aponta para o caráter limitado do que denomina “
democracia-método
”,
identicando seu
limite absoluto
: “[...] as estruturas econômicas capitalistas
só são compatíveis com ordenamentos políticos
democráticos no limite
restritos
, e manter esta r
estritividade é, para eles, questão vital” (NETT
O,
1990, p. 77).
Sendo assim, é pr
eciso analisar a experiência socialista que
se inaugura com a Revolução de O
utubro como um processo histórico
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
77
que, como tal, produz uma no
va dinâmica dos complexos sociais, no
vas
contradições, o que não signicou, em grande medida, a superação de
processos anteriores – ou que estes não limitaram de maneira dramática os
desdobramentos e avanços do processo de transição
.
Outro elemento digno de nota nestas linhas introdutórias
aponta
para o equívoco, em nosso entendimento, das análises que procuram
individualizar ou “
psicologizar” os acontecimentos e pr
ocessos históricos.
N
o caso da história da URSS tais procedimentos são recorr
entes, produzindo
aquilo que poderíamos identicar como um “
culto à personalidade às
avessas
”. Com isso não descar
tamos que os indivíduos possuem um papel
na história e que suas ações possuem consequências, sobretudo quando
estes ocupam papel relevante em um determinado pr
ocesso histórico, pois
como arma Kosic (1991, p
. 7) “O indivíduo se faz histórico na medida em
que sua atividade particular tenha um caráter geral, quer dizer
, na medida
em que de sua ação se desprendem consequências gerais
”. Fundamental
no argumento que apresentamos é a constatação que processos históricos
são permeados de decisões individuais, mas estas não se reproduz
em
individualmente. P
ortanto, compreender o período por nós aqui debatido,
implica em analisar as posições individuais no conjunto da luta de classes
que se reproduzia naquele momento mesmo
2
.
A
rev
oluçã
o
no
el
o
Débil
DA
cADeiA
iMPeriAlist
A
Ao se debruçar sobre a particularidade histórica do desenvolvi
-
mento capitalista na Rússia, Lenin (1982) nos ofer
ece uma minuciosa aná
-
lise das transformações econômico-sociais ocorridas naquele país, a partir
de 1861
3
. O resultado desse primeiro grande esfor
ço de sistematização in
-
telectual veio a público em 1899, com o título de
O desenvolvimento do
O interregno por nós aqui discutido não abordará o período histórico em que S
tálin esteve à frente do go
verno
da URSS (1922-1953). F
aremos refer
ência ao fenômeno histórico do stalinismo quando necessário ao debate que
propomos sobre a democratização
. De qualquer forma, é preciso apontar que o equívoco da “individualização
”
e “
psicologização
” que apontamos acima, reproduz-se, sobretudo, em relação à gura histórica de S
tálin e ao
stalinismo. O que não signica isentá-lo de seus atos individuais, tampouco dos desdobramentos das decisões de
seu governo
. Armamos, com isso, a necessidade de análise que busque a compreensão dos processos históricos
em sua totalidade.
Em 1861, o governo do czar Alexandr
e II promove uma R
eforma Camponesa. Entre suas principais medidas,
destaca-se a abolição da servidão no campo.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
78
capitalismo na Rússia – o processo de formação do mer
cado interno para a
gr
ande indústria
. O contexto em que a obra se inscrev
e era marcado pela
análise das correntes populistas, que hegemonizavam as discussões no pla
-
no ideológico e teórico
4
.
Quando confronta as teses do pensamento populista, sobr
e as
possibilidades do desenvolvimento capitalista na Rússia, Lenin pr
ocura
compreender e dilucidar a dinâmica fundamental das transformações
econômicas e sociais introduzidas com a Reforma Camponesa de 1861.
A
v
alia que o capitalismo encontrava-se em franco processo de armação
no país, ao mesmo tempo em que reproduzia um conteúdo
de atraso,
quando comparado aos centros capitalistas do ocidente. Difer
entemente
dos populistas, que identicavam a economia rural e as instituições
camponesas essencialmente como formas anticapitalistas – devido à
produção autossuciente, o que bloquearia o desenvolvimento do mercado
interno –, procura demonstrar que a penetração de práticas capitalistas no
campo russo, cria as condições para formação de uma mão-de-obra livre
e assalariada – na medida em que desintegra a comunidade camponesa –,
que seria o embrião do proletariado tipicamente capitalista. P
ortanto, o
empobrecimento em larga escala da maior parte da população camponesa
não se constituiria como um entrave ao desenvolvimento capitalista, pois
este, na particularidade russa, dependeria das demandas originadas pelos
próprios capitalistas, qual seja: a crescente transformação de mais-v
alia em
capital constante, com o rápido crescimento do setor de bens de capital.
Assim, Lenin arma que o decisivo para o desenvolvimento capitalista é o
grau do consumo produtivo, ou seja, a demanda dos meios de produção,
e não a capacidade de consumo das massas camponesas, como pretendiam
os teóricos populistas
5
.
U
m delineamento geral, rico em informações e com importantes sugestões de análise de todo esse contexto,
assim como da obra em si, pode ser encontrado na
Introdução
que J
osé P
aulo N
etto nos oferece ao texto, datada
de 1979 (NETTO, 1982).
F
oge totalmente aos propósitos do presente trabalho o aprofundamento analítico da obra de Lenin em
questão, bem como todo o debate da esquerda democrática e revolucionária russa com as teses populistas.
T
al
observação se faz necessária para que que claro que a riqueza do debate, assim como da obra
O desenvolvimento
do capitalismo na Rússia
, é muito maior e mais ampla do que aquela que aqui sinteticamente tentamos apontar
.
P
ortanto, aos que pretendem se aprofundar na temática, os apontamentos por nós ofer
ecidos devem ser tomados
em seu caráter apenas sumário.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
79
Ao longo dessa obra, a partir de um exaustivo e minucioso
levantamento empírico – que transcende qualquer forma de descrição
empirista –, o jov
em revolucionário compr
eende que, mesmo em franco
desenvolvimento, o capitalismo russo não reproduz a mesma dinâmica dos
centros ocidentais. Assim, quando comparado aos outros países da E
uropa,
no sentido próprio do momento histórico do desenvolvimento das forças
produtivas, a R
ússia encontrava-se em condição de profundo atraso
econômico, com uma multiplicidade de relações sociais, devido à absorção
de antigas formas (camponesas, sobretudo), e sua recomposição em função
das relações sociais propriamente capitalistas
6
, que se reetiria, também,
na subjetividade média do pov
o russo, expressando seu baixíssimo nível
cultural. Constata, no entanto, que a dinâmica capitalista russa se integra
perfeitamente ao modo de produção que se universaliza, desenvolvendo
especicidades próprias naquela realidade nacional. P
or
tanto, sua leitura
propõe uma análise totalizante, partindo das múltiplas determinações das
relações que se desdobram na particularidade daquele país, compreendendo
assim, sua realidade concreta.
T
ambém
T
rotsky (2007), em sua
História da R
evolução Russa
,
inicia sua obra abordando o caráter particular do desenvolvimento do
capitalismo russo. Apoiando-se na tese marxiana de que a universalização
de um modo de produção se repr
oduz a partir de par
ticularidades
especícas, dando origem a singularidades, também especícas, o autor
propõe uma rápida, porém pr
ecisa síntese do desenvolvimento da
civilização russa desde a antiguidade, assinalando para o caráter
desigual e
combinado
desse processo
7
. Ao retomar o argumento elaborado por
Vico,
sobre a teoria da reiteração dos ciclos históricos
8
, que aponta para o fato
de características especícas de formações pré-capitalistas – e até mesmo
Aquilo que Marx identicou como o processo de passagem da subsunção formal à subsunção r
eal do
T
rabalho
ao Capital (MARX, 1978, p. 51-70).
Nas palavras do pr
óprio autor: “O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não
se revela a nós, em nenhuma parte, com a evidência e a complexidade com que lhe marca o destino dos países
atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se veem obrigados a avançar
através de saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura se deriva outra que, na falta de
um nome mais adequado, qualicaremos como lei do
desenvolvimento combinado
, aludindo à apro
ximação
das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao amalgama de formas arcaicas e modernas. ”
(TRO
TSKY
, 2007, p. 31).
Giambattista V
ico (1974)
Princípios de uma ciência no
va.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
80
as primeiras experiências capitalistas – se repetir
em, de certa forma, nos
nov
os ciclos históricos, argumenta sobre a necessidade de superação de tais
elementos, posta pelo desenvolvimento capitalista, condição fundamental
à universalidade do desenvolvimento humano
. Sendo assim, ex
clui-
se a possibilidade de que se repitam as formas especícas nas distintas
particularidades nacionais, pois esse processo de superação reproduzir-se-á
de acordo com as especicidades de cada país.
O preâmbulo teórico de
T
rotsky aponta para um elemento
fundamental do modo de produção capitalista: dado seu caráter
universalizante, os países atrasados eliminam/saltam estágios de
desenvolvimento, para tentarem, de alguma forma, acompanhar
em a
dinâmica dos países desenvolvidos. Daí decorr
eria o fato de que, analisado
em sua totalidade, o desenvolvimento histórico de uma nação atrasada
apresentar um caráter confuso, híbrido, misto
. Acompanhando a leitura
leniniana (LENIN, 1983), podemos identicar a existência de
vias
,
caminhos históricos distintos de desenvolvimento ao capitalismo
. P
or
tanto,
e aqui encontramos uma aproximação nítida na leitura de ambos, a forma
pela qual se desenvolve o capitalismo na R
ússia, sua
via de desenvolvimento
,
reproduz uma particularidade distinta daquela nos países de
via clássica
,
tais como Inglaterra, Estados U
nidos e França, por ex
emplo
.
O que observamos através da análise de nossos autores é que a
particularidade russa objetiva uma articulação política –
pelo alto
– entre
a antiga nobreza, repr
esentada na gura autocrática do czar
, uma nova
nobreza que está se aburguesando (burocracia) devido à penetração
do capitalismo naquele país e, por m, os grandes proprietários de
terras –
T
rotsky (2007, p. 33) os identica como liberais. O “impotente
liberalismo burguês
” cou r
eduzido a um “
papel de comparsa
”, subsumido
ao caráter agrário do desenvolvimento capitalista na R
ússia. Observa-
se, portanto, que a forma como o ideário burguês é reproduzido aponta
para a constituição de uma burguesia que nasce subsumida ao complexo
social agrário, diferentemente dos países de
via clássica
, onde esta classe
social rompe radicalmente com a “
ordem rural” pretérita. N
um grande
“
conchavo
” que ex
clui a perspectiva de ampliação e absorção de dir
eitos
aos trabalhadores, não se verica nenhum momento de ruptura radical
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
81
da ordem estabelecida. P
elo contrário, é o historicamente velho que vai
se modernizando. E
m linhas gerais, Lenin caracteriza esse processo como
o da
via prussiana
de objetivação do capitalismo. Esse caráter
desigual
do
desenvolvimento histórico russo está
combinado
com a dinâmica própria
de reprodução do capital na medida em que desenv
olve o setor industrial
e, portanto, relações sociais propriamente capitalistas. Apesar de seu tar
dio
nascimento, adapta o atraso ao rápido desenvolvimento tecnológico,
“
saltando
” as etapas primárias da formação da indústria, o que permitiu
um desenvolvimento muito acelerado em alguns momentos.
T
rotsky
(2007, p. 33) aponta que entr
e 1905 e 1914 a produção industrial dobrou.
De qualquer forma, a participação da indústria na composição da riqueza
nacional era ainda muito baixa. A constatação de que, em 1917, 80%
da população vivia no campo e que a agricultura se mantinha quase no
mesmo nível produtivo do século XVII – com raríssimas ex
ceções – nos
dá a dimensão do atraso societal em que estava inserido aquele país. Ao
mesmo tempo em que as cidades industriais, tais como São P
etersburgo e
M
oscou, apresentavam índices industriais comparados aos do Ocidente.
Ainda se referindo às transformações introduzidas pelo
capitalismo,
T
rotsky aponta para o fato de que a penetração do capital
nanceiro – mesmo com todo esse atraso que acima sumariamente
descrevemos – se r
ealizou num ritmo e proporções talv
ez não vericáveis
em outros países naquele momento histórico
. Com intensa participação
do capital estrangeiro – cerca de 40% do capital invertido em ações
(TR
O
TSKY
, 2007, p. 34) –, o que viria a se constituir como elemento
decisivo para as disputas imperialistas, a burguesia que desse processo se
constituiu possuía características especícas: boa parte são estrangeiros; não
há camadas intermediárias entre a burguesia e o po
vo; não apresenta um
conteúdo historicamente revolucionário
. Devido a tais características, essa
burguesia em formação esteve sempre a r
eboque, subsumida a autocracia
do czar e aos grandes proprietários de terra. P
or sua vez, o proletariado
russo tem sua base social no camponês, e não no artesão, como ocorrera nos
polos centrais de desenvolvimento capitalista. Devido ao rápido processo
de formação dessa classe social, as transformações das condições de vida e
das relações sociais se repr
oduziram de forma repentina.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
82
Em linhas gerais, essa era a conformação societal russa no
alvorecer do século XX.
T
ais elementos são fundamentais à compreensão
das condições histórico-subjetivas que possibilitaram a eclosão da
Revolução Bolchevique de 1917. Assim como analisado por M
arx (2015)
desde seu
Manuscritos econômico-losócos
, a dinâmica própria do modo
de produção capitalista traz consigo, como
conditio sine qua non
de seu
desenvolvimento, o caráter da
universalização
do trabalho, da produção
e do mercado, elevando a condição humana a um patamar objetivo-
subjetivo também universalizado, à condição de gênero humano – mesmo
que esse se reproduza de forma estranhada e alienada, dado o caráter da
propriedade, da divisão e exploração do trabalho no modo de produção
capitalista. M
esmo que tenha apontado de forma seminal para essa
característica, Marx não viveu o suciente para observar tal universalização
histórico-concreta. Coube a Lenin (1984) em seu
I
mperialismo, fase
superior do capitalismo
observar e analisar esse processo, apontando para
o fato de que essa característica, a da universalização das relações sociais,
efetivou-se na forma imperialista, que através da conquista e da rapina de
territórios expande as relações sociais capitalistas para todo o planeta. Eis
um dos elementos que permitiu ao revolucionário russo identicar essa
fase como “
superior”
9
no desenvolvimento do capitalismo
. Da mesma
forma, as mazelas e contradições repr
oduzidas por esse modo de produção
se agudizam, se explicitam e se universalizam, abrindo a possibilidade da
revolução nos “
elos débeis da cadeia imperialista
”, apontando para o caráter
,
a necessidade e a possibilidade da revolução pr
oletária internacional.
A
ener
giA
criA
tiv
A
DA
DeMocrAciA
subst
Antiv
A
:
os
c
onselhos
É nesse contexto histórico-social que eclode, em 1905, a revolução
social que começaria a abalar as estruturas políticas da autocracia czarista.
A dinastia Romano
v estava há 300 anos à frente do comando político
da Rússia, concentrando poder
es absolutos em torno do Czar
, o que o
caracterizaria como um gov
erno explicitamente autocrático, segundo
Não se dev
e tomar a expressão em sentido moral.
T
rata-se de compreender que é uma fase que supera o momento
da “livre-concorrência
” ao estabelecer o capital monopolista. Aliás, a segunda é resultante e consequência direta
da primeira, como demonstra Lenin (LENIN, 1984, p. 291-293).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
83
Lenin
10
. O quadro de miséria social se espalhava pelas ár
eas urbanas e,
principalmente, entre os camponeses da R
ússia, reproduzida pela forma
particular do desenvolvimento capitalista daquele país, tal como indicado
acima. Some-se ao quadro de extr
ema crise o fato de o Império R
usso
declarar guerra ao Império J
aponês, numa disputa que env
olveu o território
da Manchúria e parte do território chinês, conito este que se estendeu
entre 1904 e 1905
11
.
Em dezembro de 1904, diante do aprofundamento do quadr
o
geral de crise –impulsionado pelos “
esforços de guerra
” – trabalhadores de
São P
etersburgo organizaram grandes greves e mobilizações. S
ob a inuência
do padre ortodoxo George G
apon, milhares de trabalhadores mar
charam
em direção ao P
alácio de Inverno, em 9 de janeiro de 1905 (22 de janeiro
pelo Calendário G
regoriano), levando uma petição r
edigida pelo próprio
Gapon, onde se reivindicav
a melhores condições de salários, redução da
jornada de trabalho, m das horas extras obrigatórias, o m da guerra
com os japoneses e a introdução do sufrágio universal. A
pesar de pacíca
e com contornos religiosos, a multidão foi r
ecebida a tiros redundando
no episódio conhecido como o “Domingo S
angrento
”. Ao czar N
icolau
II, que havia partido de São P
etersburgo no dia anterior
, foi atribuída a
responsabilidade pelo massacre e como r
esposta, trabalhadores do campo
e das principais cidades russas se levantaram em protesto contra o gov
erno
do czar
, dando início a revolução
. Em junho de 1905, marinheiros da
F
rota do M
ar N
egro, também se rebelaram contra a autocracia czarista. O
episódio conhecido como o levante do Encouraçado P
otemkin imprimiu
contornos militares ao processo r
evolucionário, o que seria decisivo para os
desdobramentos posteriores, pois indicava uma clara oposição de parte das
forças armadas em relação ao go
verno central.
É no transcurso do processo rev
olucionário que se abre em 1905,
que surgiram as primeiras experiências dos Conselhos.
T
al como nos
10
Na v
erdade, o debate sobre o caráter do Estado autocrático, sua natureza e contornos históricos, estav
a
presente entre os rev
olucionários russos do início do século XX. Como nos indica
T
amáz Krausz, quando o
autor nos apresenta de forma detalhada as posições dos revolucionários russos a respeito do caráter do Estado e
os possíveis caminhos à organização política revolucionária (KRA
USZ, 2017, p. 137-152).
11
A derrota russa foi acachapante. Os conitos se estenderam entre fevereir
o de 1904 e setembro de 1905.
Com a vitória, o J
apão passaria a gurar como protagonista nas disputas imperialistas do começo do século XX.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
84
aponta Luciano Martorano, vários especialistas sobr
e o tema consideraram
paradoxal o fato de que os Conselhos tenham surgido em um país “
onde não
havia tradição na organização de sindicatos, de partidos e de parlamento
”
(MAR
TORANO, 2011, p
. 45). É possível compreender o que causa a
aparente falta de nexo quando consideramos o caráter autocrático do
poder político exercido pela monar
quia czarista – ao que já nos referimos
–, onde nenhuma prática liberal progressista, ao modo dos casos clássicos
de uma revolução burguesa, tev
e espaço ou penetração social, sobretudo
pela composição política que a própria burguesia assumiu e repr
oduziu no
desenvolvimento do capitalismo russo. F
oi, por
tanto, a necessidade da luta
cotidiana que impôs a revolução, o elemento impulsionador de uma no
va
forma de organização política dos operários, camponeses e também de
militares
12
. Mas se em sua origem essa no
va forma de organização política
possuiu um caráter espontâneo, no sentido mesmo da reivindicação das
necessidades cotidianas dos trabalhadores, no período de um pouco mais de
10 anos se transformaram no principal instrumento político da Revolução
Operário-Camponesa. Martorano (2011, p
. 45-46) assim sintetiza:
Organismos surgidos a partir das necessidades mais imediatas dos
trabalhadores em luta pelos seus direitos socioeconômicos, eles (os
Conselhos) rapidamente foram desempenhando um papel político na
luta contra o regime tzarista, até se tornarem embriões de um no
vo
poder revolucionário
.
O mais importante Conselho surgido da Revolução de 1905 foi o
da cidade de São P
etersburgo, que contou com a direção de Leon
T
rotsky
.
Apesar de sua curta duração (de 13 de outubro a 3 de dezembro de 1906),
teve um papel fundamental não só nas lutas travadas naquele período,
mas também como aprendizado político ao mo
vimento revolucionário
– sobretudo aos debates no interior do P
artido Bolchevique, então na
ilegalidade – pois apontava para uma forma totalmente alternativa de
organização do poder
, pautada na democracia operária, com participação
direta dos trabalhador
es. Em sua apresentação à coletânea
T
eoria e pr
ática dos
conselhos oper
ários
, Milton P
inheiro argumenta que
T
rotsky compreendeu
12
U
ma possível explicação sobre as primeiras formas de organizações dos trabalhadores aponta para a tradição
das assembleias comunais, organizadas pelos camponeses.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
85
de forma precisa a diferenciação dos Conselhos “
qualicando-a como
‘
órgão de poder’ e armando de forma contundente que o ‘
conselho
era a organização do proletariado; seu objetivo era a luta pelo poder
revolucionário
’ ” (PINHEIR
O, 2013, p. 12). Importante ressaltar que
o Conselho de São P
etersburgo era o instrumento de organização dos
trabalhadores durante o processo da r
evolução, numa das maiores e mais
importantes cidades industriais da Rússia de então, e que a maioria de sua
população, mulheres e homens, era composta por proletários (r
eunia em
sua organização cerca de 200 mil pessoas). Organizar as gr
eves, resistir à
repressão policial da or
dem autocrática, ocupar as fábricas e produzir a
partir das demandas discutidas pelos próprios trabalhadores, questionando
frontalmente e desorganizando a burocracia estatal ocial, estiveram entr
e
as principais demandas do Conselho em sua curta duração. N
ão r
esistiu ao
inuxo reacionário e à r
epressão do regime monár
quico, que contou com
o recuo da burguesia liberal, sempre v
acilante e disposta a conciliar com o
“historicamente velho
”, sobretudo após a criação da Duma
13
, em maio de
1906. Assim, os Conselhos foram dissolvidos, suas lideranças perseguidas,
presas e exiladas.
Importante aprendizado dessa experiência pode ser observado na
passagem a seguir:
Se o proletariado, bem como a impr
ensa reacionária, chamavam-no
de ‘
gov
erno operário
’, isso correspondia ao fato de que o conselho
realmente repr
esentava o embrião de um gov
erno revolucionário.
O conselho exercia o poder na medida em que ele já se encontrava
em suas mãos; ele lutava pelo poder na medida em que ele ainda se
concentrava nas mãos do Estado policial-militar [...] E mais ainda: ele
ligava a luta pelo poder com a direção dir
eta do conjunto da atividade
social das massas trabalhadoras (TRO
TSKY
, 2013, p. 59-60).
14
13
A Duma de Estado era o órgão de repr
esentação na Rússia. Convocada inicialmente como órgão consultivo,
absorveu funções legislativas conferindo contornos constitucionais jurídico-formais à monarquia russa. Na
prática, não exerceu poder real, sendo contr
olada pelo monarca.
14
T
rotsky (2013, p. 61) ainda aponta que “O conselho de deputados operários pr
oclamou a liberdade de
imprensa. Ele organizou o patrulhamento das ruas para garantir a segurança dos cidadãos. Em maior ou menor
medida, ele exerceu o domínio sobre os corr
eios, os telégrafos e as ferrovias. E
le empreendeu a tentativa de
tornar obrigatória a jornada diária de oito horas de trabalho. Ao paralisar o Estado absolutista com o mo
vimento
grevista, ele introduziu a sua própria or
dem democrática na vida da classe trabalhadora das cidades
”.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
86
T
ais elementos viriam a ser fundamentais às lutas futuras do
movimento r
evolucionário russo. S
obretudo no momento de ascenso
revolucionário que se iniciaria a partir de fever
eiro de 1917. N
o
entanto, entre 1906-1907 e fever
eiro de 1917, observamos um período
de intensa repressão no país, r
earmando o poder autocrático da
monarquia, repr
esentado na pessoa do czar
. Além do contexto interno, de
perseguição implacável aos rev
olucionários russos, as disputas imperialistas
internacionais desembocaram no primeiro conito armado em escala
planetária, a partir de julho de 1914, tendo o Império Russo como um de
seus protagonistas.
A participação da Rússia na 1ª Guerra M
undial agravou
profundamente as condições econômicas dos trabalhadores, tensionando
cada vez mais as relações sociais no país. A escassez de alimentos se
generalizou já nos primeiros anos do conito
. N
o fronte externo, a R
ússia
sofria grandes derrotas – sobretudo após a ofensiv
a alemã, a partir de 1915
– contribuindo decisivamente para a insatisfação que se passou a observar
no interior das forças armadas. É nesse contexto que em fever
eiro de 1917
as trabalhadoras de P
etrogrado
15
se insurgiram num movimento gr
evista
que seria o estopim de grandes manifestações e de um nov
o empuxo
revolucionário
. Rapidamente o mo
vimento se expande para o campo e
conta com apoio de importantes contingentes nas forças armadas. É
nesse momento que a experiência dos Conselhos foi retomada, agora com
maior organicidade e amplitude social, pois contava com a participação de
operários, camponeses e soldados. O resultado imediato desse processo foi
a deposição do czar N
icolau II, em 2 de março de 1917 (15 de março, no
calendário gregoriano).
P
odemos caracterizar a Revolução de F
evereiro como o momento
de estabelecimento de uma República Democrática, de caráter liberal,
portanto burguesa, condicionada às particularidades societárias russas.
A revolução se inicia, antes de mais nada, contra a guerra em curso, a
15
A cidade de São P
etersburgo passou a ser chamada Petrogrado a partir de 1914. É na então capital do
Império Russo que, em 23 de fever
eiro (8 de março no calendário gregoriano), milhar
es de trabalhadoras –
principalmente da indústria têxtil – se reúnem em grandes manifestações, a propósito do Dia I
nternacional das
M
ulheres, dando origem ao processo revolucionário que culminaria,
num primeiro momento, com a queda do
czar Nicolau II.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
87
crise econômica e a carestia que dela se desdobravam. S
eu caráter quase
que espontâneo se expressou na imensa adesão popular
. Os lhos dos
trabalhadores e camponeses russos em idade de serviço militar estavam
sendo tragados e dizimados pela máquina da guerra. Às mulheres restav
am
o fardo de manter
em com seu trabalho a economia do país, o que motivou
seu papel de vanguarda no pr
ocesso iniciado em fevereir
o.
Mais uma vez, não por acaso, o “Conselho de Deputados de
T
rabalhadores e Soldados de P
etrogrado
”, assim ocialmente denominado,
exerceu papel fundamental no pr
ocesso revolucionário, organizando as
greves, ocupações de fábricas, a defesa dos trabalhador
es, manifestações
de massa. P
ara além desse caráter de agitação política pr
opriamente, o
Conselho de P
etrogrado passa a exercer a função ex
ecutiva e legislativa,
chocando-se frontalmente com o poder político institucional.
O período que vai de fever
eiro a outubro de 1917 é de uma
riqueza política singular para história e para as lutas – portanto, de
aprendizado – do mo
vimento revolucionário mundial. As discussões
sobre os caminhos a ser
em tomados, os rumos e o caráter da revolução
foram intensas e extremamente polêmicas, inclusive entr
e os bolcheviques.
Em síntese, o debate se pautava pela proposta de av
ançar na revolução,
defendendo uma radicalização do processo em direção ao socialismo, ou
manter a revolução nos mar
cos do ideário liberal, democrático-burguês.
O alcance do presente trabalho nos faz passar ao largo da discussão da
luta interna no movimento r
evolucionário russo. De qualquer forma é
preciso apontar (nunca é demais) que a genialidade política de Lenin foi
fundamentalmente relevante nesse pr
ocesso, sobretudo quando o mesmo
capta a dinâmica da luta de classes na Rússia naquele pr
eciso momento,
e aponta alternativas que encontraram eco e grande apoio na massa de
trabalhadores. Eis o elemento fundamental: sem a adesão massiv
a de
trabalhadoras e trabalhadores, a R
evolução Bolchevique não triunfaria
16
.
16
Como armado, é impossível tratarmos aqui das distintas posições políticas no interior do movimento
revolucionário russo. Estas, aliás, r
emontam ao momento da própria formação do P
artido Operário Social
Democrata Russo (POSDR), em 1898. Lenin, desde sua polêmica com os P
opulistas, que daria origem a obra
Desenvolvimento do capitalismo na Rússia
, como apontado acima, coloca-se num esforço constante de compr
eensão
do processo histórico e de como a particularidade russa reproduz uma especicidade concreta nas lutas de classes.
Esse será o
ethos
de sua obra, que lhe conferiu seu conteúdo revolucionário
. Não é factível – e mesmo desnecessário
–, até para não incorrermos em imprecisões e lacunas, empreendermos mesmo que sumariamente a descrição da
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
88
Ao analisar a
Estrutur
a do sistema so
viético
, em texto de 1918, o
jornalista J
ohn Reed (2013, p
. 190) nos oferece elementos para compr
eensão
da organização interna e da constituição dos Conselhos:
O soviete é baseado dir
etamente nos trabalhadores dentro das fábricas
e nos camponeses no campo. [...] N
o começo, os delegados dos
sovietes de trabalhador
es, soldados e camponeses eram eleitos a partir
de regras que variavam de acor
do com as necessidades e a população
de várias localidades. [...] Até fever
eiro de 1918 qualquer um poderia
votar nos delegados dos sovietes. A
té burgueses foram aceitos [...]. Em
março último, a formação dos sovietes foi organizada em detalhes e
aplicada universalmente. Ela r
estringiu o direito de voto ao “
cidadão
da República Socialista R
ussa de ambos os sexos com dezoito anos
completos no dia da eleição [...].
T
odos que adquirem seus meios de
vida através do trabalho produtivo e útil à sociedade e que são membros
dos sindicatos [...]”.
Observa-se que o princípio orientador da constituição dos
Conselhos se fundamentava na iniciativa de atribuir ao conjunto dos
trabalhadores (inicialmente até mesmo aos burgueses que se organizassem
e solicitassem participação) o poder de discutir
, decidir e executar os
assuntos pertinentes à dinâmica social em sua múltipla diversidade.
Ou seja, o que estava em processo era a constituição de uma forma de
gov
erno substantivamente nov
a, alicerçada numa perspectiva democrática
igualmente original.
Ao se referir ao mais importante dos Conselhos, o de P
etrogrado,
Reed (2013, p
. 190-191) descreve assim sua organização:
Ele era formado por 1200 deputados, aproximadamente, e, em
circunstâncias normais, se reunia a cada duas semanas. N
o período
entre as sessões elegia um Comitê Ex
ecutivo Central de 110 membros
baseado na proporcionalidade dos partidos, e esse Comitê Executiv
o
obra leniniana e sua conexão concreta com a luta política no contexto em que este se inseria. De qualquer forma,
é preciso apontar que as análises reproduzidas nos textos r
edigidos no “
calor dos acontecimentos
” entre fevereir
o e
outubro de 1917, tais como
Cartas de Longe
(março),
T
eses de abril
(abril) e
O Estado e a revolução
(agosto), foram
decisivos para os desdobramentos vitoriosos da Revolução Bolchevique. Como apontado por Antonio Carlos
Mazzeo, Lenin orientou sua ação rev
olucionária por uma “[...] permanente preocupação em dar
respostas concr
etas
para situações concr
etas
, fundamentalmente no que se refere ao pr
oblema da organização do movimento operário
e da elevação da consciência dos trabalhadores[...]” (MAZZEO, 2015, p
. 44), orientando suas contribuições no
sentido a oferecer “
soluções de práxis
” ao processo histórico em que esteve inserido
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
89
Central podia convidar delegados dos comitês centrais de todos os
partidos políticos, dos sindicatos, dos comitês de fábrica e outras
organizações democráticas.
E continua sua descrição apontando que “
além do grande soviete
da cidade havia também os sovietes de
Rayon
(bairros) ” (REED, 2013,
p. 191). A r
epresentatividade e a participação dos trabalhadores eram
fundamentais, reproduzindo o caráter de poder popular que emergiu
durante o período revolucionário que r
edundou na Revolução de O
utubro.
Sobr
e a atuação dos Conselhos no momento da sua retomada (fever
eiro-
outubro de 2017), faz-se necessário um último apontamento
.
Com a queda do czar N
icolau II e proclamação da república,
estabeleceu-se um gov
erno provisório comandado pelo príncipe G
yorg Lvo
v
e Alexander Kerenski, r
espectivamente, P
rimeiro-ministro e M
inistro da
Guerra. D
iante da nomeação de um nobre latifundiário e da permanência
da Rússia na 1ª G
uerra, raticada por Kerenski, o Conselho de P
etrogrado
passou a propor medidas que se chocavam dir
etamente com o poder político
institucionalmente estabelecido. N
uma clara iniciativa de desobediência
civil, passou a dar ordens aos soldados para que obedecessem ao Conselho
– que os representav
a, inclusive – ao invés de cumprir as or
dens do governo
pro
visório. I
nicia-se, então, um período onde obser
vamos uma “
dualidade
de poderes
”. Lenin (1985b, p. 132) assim o deniu:
Em que ao lado do Go
verno P
rovisório, o go
verno da
burguesia
, se
formou
outro governo
, ainda fraco, embrionário, mas indubitavelmente
existente de facto e em desenvolvimento: os sovietes de deputados
operários e soldados.
Sobr
e o caráter de classe e o conteúdo político, continua:
Qual a composição de classe deste outro go
verno? O proletariado e os
camponeses (vestidos com a farda de soldados). Q
ual o caráter político
deste governo? É uma ditadura r
evolucionária, isto é, um poder que se
apoia diretamente na conquista rev
olucionária, na iniciativa imediata
das massas populares vinda de baixo,
e não na lei
pr
omulgada por um
poder de Estado centralizado. (LENIN, 1985b
, p. 132-133).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
90
Eis o elemento que imprime um caráter substancialmente distinto
à democracia inaugurada pelos conselhos, o diferenciando totalmente “
do
poder que geralmente existe nas repúblicas parlamentares democrático-
burguesas [...] da Eur
opa e da América
” (LENIN, 1985b, p. 133). A
qui
se fundamenta de fato, concretamente, um go
verno de no
vo tipo, uma
democracia com nov
a substância política, fundada e amparada na decisão
da maioria
r
ealmente-existente
da composição social russa. Ao mesmo
tempo, operários ocupam as fábricas pelo país, assim como os camponeses
tomam sob seu controle a propriedade fundiária. O que se observa é a
disputa pela hegemonia, ou a construção de uma nova hegemonia, expr
essa
claramente pela dualidade de poderes instaurada pelos Conselhos.
Lenin retorna do exílio em abril, desembarcando na Estação
F
inlândia.
T
rotsky retornaria em maio e seria, a partir de julho, o
responsável pela organização da G
uarda
V
ermelho. Mais uma vez, é
preciso apontar que as posições políticas do mo
vimento revolucionário
não eram homogêneas, unicadas. A posição de mencheviques, socialistas-
revolucionários e bolcheviques eram distintas. E
m linhas gerais, os
mencheviques apoiavam o go
verno pro
visório; socialistas-revolucionários
e a maioria dos bolcheviques apostavam no avanço da democracia liberal-
burguesa, exigindo a saída da Rússia da guerra – o que só se efetivou com
a tomada do poder pelos bolcheviques. É a partir das “jornadas de julho
”
que os bolcheviques passam a exercer
o papel de maioria entre as massas
de trabalhadores, assim como no interior dos Conselhos. N
esse processo, a
leitura de Lenin será fundamental para unicar os bolcheviques em direção
à tomada do poder e à revolução socialista
17
. Em 25 de outubro, com a
palavra de ordem “T
odo poder aos So
vietes!”, os bolcheviques tomam o
P
alácio de I
nverno
.
17
Diante de mais uma derrota do exér
cito russo em ofensiva durante a Primeira G
uerra, as massas de trabalhadores
se rebelam e tomam as ruas de P
etrogrado
. A repressão do go
verno provisório conseguiu fr
ear o movimento.
Kerenski assume a direção do go
verno provisório e é pr
essionado a reprimir e perseguir os bolcheviques, mas,
enfraquecido politicamente, não leva adiante as prisões e julgamentos. Em agosto, o general Lavr Kornilo
v foi
nomeado Comandante-em-Chefe do Exército R
usso. Este planeja um golpe militar para esmagar o movimento
revolucionário e reestruturar o go
verno provisório, contando com apoio de países da E
ntente, sobretudo dos
britânicos. Os bolcheviques denunciam Kornilo
v e conclamam a população e os soldados do exército ocial,
assim como os deputados dos Conselhos, a se levantarem contra o general golpista. K
ornilov é derrotado e preso
e os bolcheviques passariam a protagonizar a tomada do poder
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
91
Contraditoriamente, a força criativa que dá origem ao poder
popular e impulsiona o P
artido Bolchevique como a vanguar
da do processo
revolucionário, passou a per
der sua força político-social no momento em
que se toma o poder
. Dito de forma direta, a partir da chegada ao poder
pelos revolucionários, os Conselhos e a
democr
acia substantiva
que essa
experiência originou, passaram a perder espaço na composição política e
nas deliberações do nov
o governo
. A questão do Estado na transição ao
comunismo, parece-nos aqui fundamental
18
. Ao discutir a destruição do
Estado na fase da transição, Lenin aponta que esta forma institucional de
dominação político-jurídica da classe burguesa deve ser dissolvida, sendo
substituída por um semi-Estado, que pelo seu caráter e conteúdo já deixa
de ser Estado, pois sua “
máquina quebrada
” seria substituída por uma
“
democracia mais completa
”, na medida em que
[...] signica a substituição gigantesca de umas instituições por
instituições de tipo fundamentalmente diferente. Aqui observa-
se exatamente um dos casos de ‘
transformação da quantidade
em qualidade
’: a democracia realizada de modo tão completo e
consequente quanto é concebível, converte-se de democracia burguesa
em proletária, de Estado (= força especial para repr
essão de uma classe
determinada) em qualquer coisa que já não é, para falar propriamente,
Estado. (LENIN, 1985a, p
. 222-223).
Da forma como entendemos, aquilo que aqui denominamos
como
democracia substantiva
, estaria pr
esente – mesmo que em sua forma
embrionária – nos Conselhos e sua forma de organização. Essa forma
política fundamentou não só o processo rev
olucionário em seus momentos
18
Importante relembrar que o tema esteve presente nas formulações de M
arx e Engels desde seus textos do assim
chamado período de “juventude
”, percorrendo todo o itinerário teórico-prático posterior de ambos. M
esmo
que tal elaboração tenha passado por correções, amadurecimentos e renamentos analíticos, a discussão sobr
e a
forma política a ser criada em substituição ao Estado no socialismo – a fase transitória ao comunismo – esteve
presente explicitamente em obras como
Manifesto Comunista
, de 1848,
G
uerra C
ivil na Fr
ança
, quando Marx
analisa o conteúdo, o signicado e os desdobramentos da Comuna de P
aris, de 1871, assim como na
Crítica ao
Progr
ama de G
otha
, de 1875. Lenin retomou tais discussões – principalmente sobre a experiência da Comuna
– em suas elaborações sobre o
Estado e a r
evolução
, no bojo dos acontecimentos revolucionários e da tomada do
poder
, como já apontado aqui.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
92
decisivos, como também serviria de arrimo político-social à construção do
gov
erno na transição socialista
19
.
N
o entanto, como nos demonstra Martorano (2002), a extinção
do Estado não é um ato espontâneo, dependendo diretamente da ação
consciente dos revolucionários e de sua composição social, na luta cotidiana
contra a antiga burocracia estruturada no aparato estatal. N
o caso da
Rússia go
vernada pelos bolcheviques, a centralização do poder político e o
fortalecimento da burocracia, mesmo que inicialmente combatida, passou
a ser contingencialmente fortalecida. Se podemos armar que esse foi um
elemento concreto na construção do Estado Socialista S
oviético, faz-se
fundamental identicar as contingências históricas que concorreram de
forma decisiva para tais desdobramentos.
Com a tomada do poder pelos revolucionários, é apr
ovado
o Decreto de P
az que determinou a retirada imediata da Rússia da
P
rimeira Guerra M
undial
20
, assim como o Decreto da
T
erra, que aboliu
a propriedade privada, iniciando um processo de r
eforma agrária sob
controle dos camponeses. A partir de maio de 1918, grupos internos se
levantam contra os bolcheviques, dando início ao P
eríodo da Guerra Civil,
que se estenderia até 1922. Somente após essa guerra fratricida o Estado
So
viético conseguiria se consolidar
. Com o nal da P
rimeira Guerra
M
undial, em no
vembro de 1918, 14 países que compunham a Entente
invadiram a Rússia para dar apoio ao E
xército B
ranco. O
s bolcheviques
serão abandonados pelos mencheviques e pelos socialistas-revolucionários,
sendo a vitória do Exér
cito V
ermelho possível devido ao massivo apoio dos
19
Mészáros (2002, p
. 267-310) propõe a discussão sobre o conceito de
igualdade substantiva.
A
o apontar os limites e
engodos reproduzidos pela or
dem sociometabólica do capital, quando do tratamento do tema da igualdade, o autor
caracteriza o pensamento liberal que o fundamenta como uma fraude ideológica, impregnada de generalizações
abstratas, que tem como função primordial a reprodução da desigualdade r
ealmente existente. Assim, pensar e
defender uma forma de igualdade substantiva na ordem do capital é impossível. D
a forma como entendemos, a
organização dos Conselhos a partir de 1917, inaugurou a possibilidade da construção de uma forma de igualdade
real e concretamente existente, substancialmente no
va, ao atribuir ao conjunto dos trabalhadores a participação,
decisão e execução dos destinos de suas vidas socialmente articuladas. Contudo, esse processo foi interrompido,
como procuraremos argumentar adiante. J
osé P
aulo N
etto (1990) apresenta uma importante contribuição ao tema
ao discutir a
democracia método
, difer
enciando-a da
democracia r
elação social
.
20
A Alemanha só aceitou a retirada da Rússia após a assinatura do
T
ratado de Brest-Litovki (março de 1918), que
impunha grandes perdas aos russos, principalmente a transferência dos territórios da F
inlândia, P
aíses Bálticos,
P
olônia, Bielorrussia e U
crânia. Esse tratado seria cancelado quando da criação da República de W
eimar
, no
nal da Primeira G
uerra.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
93
trabalhadores e camponeses aos bolcheviques. N
o entanto, os r
esultados e
as consequências da Guerra Civil foram catastrócos para os destinos da
revolução (MARIE, 2017). D
urante o confronto, todo o “
esforço de guerra
”
exigia dos trabalhadores em geral – mais especicamente dos camponeses
– sacrifícios enormes, que caracterizaram o período denominado como
“Comunismo de Guerra
”, onde a transferência da produção agrícola se
tornou uma exigência para manutenção do Ex
ército V
ermelho
21
. Ao nal
do conito, a Rússia se encontrava em um nív
el de desenvolvimento das
forças produtivas equiv
alente aos nais do século XIX. A fome – que levou
ao absurdo do desespero humano, atrav
és da prática de canibalismo –,
as doenças, como a peste bubônica, o tifo e a G
ripe Espanhola, além do
rigoroso inverno, devastaram o país e sua população
.
Some-se a esse contexto histórico interno, o fato de a r
evolução
proletária na Alemanha (1918-1919) ter sido derrotada. Lenin, ao formular
suas teses sobre a possibilidade da rev
olução nos “
elos débeis da cadeia
imperialista
”, nunca perdeu de vista a necessidade da revolução pr
oletária
avançar em direção aos núcleos centrais do imperialismo
. P
elo contrário,
se o avanço do imperialismo aprofundava as contradições nas “
franjas
” do
sistema capitalista, abrindo a possibilidade da revolução socialista nessas
regiões, era fundamental, até mesmo vital, que o processo se estendesse
internacionalmente para os países centrais, que já haviam alcançado pleno
desenvolvimento das forças produtiv
as. P
orém, como é sabido, isso não
ocorreu, e a derrota dos comunistas alemães condicionou a R
evolução
Bolchevique ao isolamento.
Durante o período da G
uerra Civil, a composição política do
gov
erno revolucionário deu os primeiros passos no sentido da centralização
do poder
, o que necessariamente concorria para o esvaziamento do poder
dos Conselhos. A partir de 1922, com a criação da U
nião das Repúblicas
Socialistas S
oviéticas (URSS), em substituição ao Conselho do Comissariado
do P
ovo – criado a partir do So
viete de P
etrogrado, após a tomada do
poder – essa tendência à centralização se acentuou, principalmente pelo
poder do P
olitiburo, Comitê Executivo e órgão de dir
eção do gov
erno.
21
O livro de J
ean-Jacques M
arie (2017) propõe uma importante discussão sobre as revoltas camponesas e a
participação de Exércitos “V
erdes
”, além das forças militares historicamente conhecidas, os
V
ermelhos e os Brancos.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
94
A alternativa encontrada para promo
ver o desenvolvimento das
forças produtivas na R
ússia, não sem grandes e polêmicos debates no interior
do órgão de comando do Estado, foi a N
ov
a P
olítica Econômica (NEP),
implementada a partir de 1921
22
. A proposta de Lenin, que apontava a
necessidade de uma fase de desenvolvimento das forças produtiv
as, onde
práticas capitalistas seriam permitidas com o controle do Estado, deu origem
a tese do “
capitalismo de Estado sob o poder soviético
”. Esta proposta
viria a ser consumada, e implicava numa concentração de poderes políticos
em torno do Estado, com vistas ao controle da produção
. P
aralelamente
a esse processo, a luta interna no P
ar
tido Comunista da U
nião S
oviética
projetava o grupo político que se reunia em torno de S
tálin.
O que se observa a partir da década de 1920 é um processo
crescente de “
fusão
” do PCUS à estrutura burocrática do Estado e vice-e-
versa. P
ortanto, no quadro das lutas de classes na URSS, qualquer ataque
ou crítica ao P
artido Comunista passou a signicar um ataque ao próprio
Estado So
viético e a revolução em curso
. Da mesma forma, o contr
ole
sobre a produção exigiu a centralização do poder político, uma v
ez que
as classes envolvidas possuíam interesses especícos – principalmente os
camponeses – que nem sempre coincidiam com as necessidades do processo
revolucionário
.
De qualquer forma, observamos que tais contingências
históricas levaram ao esvaziamento dos Conselhos, concomitantemente à
centralização política sumariamente descrita acima.
A
Pont
AMentos
P
ArA
futurAs
reflexões
A leitura e o debate sobre a prática dos Conselhos, sua forma de
organização e seus desdobramentos, parece-nos da mais atual e urgente
relevância. O texto que aqui apr
esentamos se concentrou na experiência
soviética. D
e qualquer forma, é preciso não perdermos de vista que a
experiência dos Conselhos teve lugar em outros países, contando com a
22
O debate sobre a NEP foge ao escopo do presente artigo. A bibliograa sobr
e o assunto é bastante vasta. P
ara
uma primeira aproximação o livro de Antonio Roberto Bertelli (1999) é uma importante contribuição.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
95
análise de revolucionários que experimentaram viv
amente tais processos
23
.
Da forma como entendemos, esse é um debate teórico-prático em aberto –
e é bom que assim seja -, pois implica em reconhecermos as possibilidades
da experiência histórica como referencial para ações na r
ealidade presente.
Em seu texto
O processo de democr
atização
,
Lukács (2008) chama
a atenção para a necessidade de discutirmos a experiência soviética a partir
de seu contexto e contingências históricas. N
essa ampla e profunda análise
sobre a transição socialista, o lósofo húngaro aponta para o fato de que
a democracia no período da transição socialista deveria absorver novos
contornos, reproduzindo uma no
va forma de go
verno
. Além disso, ao se
referir à necessidade de uma ampliação constante de práticas democráticas
em todas as relações da vida cotidiana, alerta que tal processo está
diretamente vinculado a construção de uma nov
a forma de subjetividade,
portanto uma práxis-educativa que eleve as condições de consciência de
mulheres e homens. Os Conselhos foram o embrião dessa no
va forma, mas
foram “
demolidos
” e “Com tal demolição, perdeu-se o caráter de sujeito
das massas trabalhadoras no desenvolvimento da sociedade
” (L
UKÁCS,
2008, p. 169).
A democracia burguesa explicita cotidianamente todos seus
limites, desvelando seu caráter de classe e, portanto, sua forma autocrática
de dominação sobre o conjunto dos trabalhadores. A luta pela construção
de uma nov
a hegemonia, que aponte à perspectiva da revolução e transição
socialistas, passa necessariamente pela compreensão da experiência dos
Conselhos, como forma criativa de construção da democracia socialista.
r
eferênciAs
BER
TELLI, A. R.
Capitalismo de E
stado e socialismo
: o tempo de Lenin. São P
aulo:
IPSO, 1999.
KRAUSZ, T
.
Reconstruindo Lênin
: uma biograa intelectual. São P
aulo: Boitempo,
2017.
K
OSIC, K.
El individuo y la historia
. B
uenos Aires: Editorial Almagesto, 1991.
23
Importante trabalho sobre a temática, que traz textos fundamentais sobre a discussão, é aquele organizado por
Milton Pinheiro e L
uciano Martorano
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos Oper
ários
(2013), por nós aqui já mencionado.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
96
LENIN, V
.
O Estado e a Revolução
. O
bras Escolhidas.
T
omo 3. Lisboa: Edições A
vante,
1985a.
LENIN, V
.
Sobre a dualidade de poder
es
. Obras Escolhidas.
T
omo 3. Lisboa: Edições
A
vante, 1985b
.
LENIN, V
.
Imperialismo
, fase superior do capitalismo
. Obras Escolhidas.
T
omo 2. Lisboa:
Edições A
vante, 1984.
LENIN, V
.
El Progr
ama Agrário de la Socialdemocr
acia en la P
rimeir
a Revolucion R
usa de
1905-1907
. Obras Completas
.
T
omo XVI. Moscou: Editora P
rogresso, 1983.
LENIN, V
.
O desenvolvimento do capitalismo na Rússia
: o processo de formação do
mercado interno para a grande indústria. São P
aulo: Abril Cultural, 1982.
LUKÁ
CS, G.
Socialismo e democr
atização
: escritos políticos 1956-1971. Rio de J
aneiro:
Editora UFRJ, 2008.
MARIE, J.-J.
História da G
uerr
a Civil Russa – 1917-1922
. S
ão P
aulo: Contexto, 2017.
MAR
T
ORANO, L. C.
Conselho e democr
acia
: em busca da participação e da
socialização. S
ão P
aulo: Expressão P
opular
, 2011.
MAR
T
ORANO, L. C.
A burocr
acia e os desaos da tr
ansição socialista
. S
ão P
aulo: Xamã,
Anita Garibaldi, 2002.
MARX, K.
Crítica da losoa do dir
eito de H
egel
. São P
aulo: Boitempo, 2005.
MARX, K.
Manuscritos econômico-losócos.
São P
aulo: Boitempo, 2015.
MARX, K.
O capital
. Livro I. Capítulo VI (inédito). S
ão P
aulo: Livraria Editora
Ciências H
umanas L
TDA, 1978.
MAZZEO, A. C. P
ossibilidades Lenineanas para uma Paidéia Comunista.
In
: DEO,
A.; MAZZEO, A. C.; DEL R
OIO, M. (org.).
Lenin:
teoria e prática revolucionária.
Marília: Ocina U
niversitária; S
ão P
aulo: C
ultura Acadêmica, 2015. p. 31 - 55.
MÉSZÁROS, I.
P
ar
a além do capital
: rumo a uma teoria da transição. São P
aulo:
Boitempo; Campinas: Editora da U
nicamp
, 2002.
NETTO, J. P
.
Democr
acia e tr
ansição socialista
: escritos de teoria e política. Belo
Horizonte: Ocina de Livr
os, 1990.
NETTO, J. P
. Introdução
.
In
:
LENIN, V
.
O desenvolvimento do capitalismo na Rússia
:
o processo de formação do mercado interno para a grande indústria. São P
aulo: Abril
Cultural, 1982. p
. 7-21.
PINHEIR
O, M. A
presentação.
In
: PINHEIR
O, M.; MAR
TORANO, L.C. (org.).
T
eoria e prática dos conselhos oper
ários
. S
ão P
aulo: Expressão P
opular
, 2013. p. 9 - 45.
PINHEIR
O, M.; MAR
TORANO, L.C. (org.).
T
eoria e prática dos conselhos oper
ários
.
São P
aulo: Expressão P
opular
, 2013.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
97
REED, J.
10 dias que abalar
am o mundo.
S
ão P
aulo: Editora Global, 1978.
REED, J. A estrutura do sistema soviético (fragmentos).
In
: PINHEIR
O, M.;
MAR
T
ORANO, L.C. (org.).
T
eoria e pr
ática dos conselhos oper
ários
. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013. p. 189 – 192.
TR
O
TSKY
, L.
História de la Revolución R
ussa.
Buenos Aires: R
yR, 2007.
TR
O
TSKY
, L. O conselho de deputados operários e a revolução.
In
: PINHEIR
O,
M.; MAR
T
ORANO, L.C. (org.).
T
eoria e pr
ática dos conselhos oper
ários
. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013. p. 59 – 76.
VICO, G.
Princípios de (uma) ciência no
va (acerca da natur
eza comum das nações)
. São
P
aulo: Abril C
ultural, 1974.
99
C
:
R
O
Milton Pinheir
o
O
s caminhos da revolução pr
oletária, e seu consequente
arcabouço teórico, sempre estiv
eram em debate durante o século XX.
M
esmo que alguns estudiosos questionem os fundamentos de uma teoria
da revolução, da transição e do Estado socialista no ar
cabouço teórico
elaborado no pensamento marxiano e engelsiano, podemos armar que
existem pistas concretas que podem nos orientar na perspectiva teórico-
política que nos permitam examinar os acontecimentos revolucionários
pretéritos e a perspectiva de rupturas históricas no tempo presente.
O conjunto de questões que possibilitam o debate sobre os
Conselhos Operários ganhou relev
ância no contexto histórico da reexão
sobre os cem anos da R
evolução Russa de outubro de 1917, assim como,
a necessidade de os trabalhadores entrar
em em cena a partir dos sinais
concretos da barbárie capitalista, na atualidade histórica. A temática dos
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
100
Conselhos Operários se insere, a partir da experiência histórica, no debate
mais profundo sobre a transição
.
A transição é um objeto empírico e político, seu sentido encontra
ressonância na teoria e na prática dos Conselhos Operários e
na história das
revoluções do século passado
. N
este artigo trabalharemos alguns aspectos
da teoria marxista que, com base na realidade concreta, av
ançam na
compreensão dos processos r
evolucionários. A exemplo do tema da transição
examinado por Marx e Lenin, nos seus estudos sobre a Comuna de P
aris. A
interpretação da democracia na visão de R
osa Luxemburgo
. O tema seminal
da tomada do poder em algumas reexões de Antonio G
ramsci. O debate
sobre o Estado no processo de transição, examinado por G
yörgy Lukács e o
princípio as socialização na transição, a partir de Karl Korsch.
M
Arx
e
A
coMunA
De
P
Aris
:
Pist
As
sobre
A
trAnsição
Ao analisar a Comuna de P
aris, por sua impor
tância para o
desenvolvimento da luta do mo
vimento operário e socialista, Marx
avançou no debate e abriu trilhas teóricas sobre o Estado e a democracia no
processo de ruptura e transição. Essa análise permitiu que M
arx elaborasse
uma noção basilar sobre o poder
, efetivando uma descoberta histórica que
marcou a perspectiva da transição: “
a classe operária não pode apoderar-
se da máquina estatal já pronta e colocá-la em mo
vimento por seus
próprios objetivos
”, (MARX, 2013) percebendo, portanto, ser necessário a
destruição do aparato de Estado capitalista.
Essa tese marxiana se comprov
ou com o surgimento do segundo
império e o estabelecimento, conrmado, da burguesia no poder
.
T
odo
esse processo foi desvelado pela pr
esença dos prussianos na F
rança e com
a promiscuidade do imperialismo, fazendo com que a r
ecente sociedade
que subjugou o feudalismo se transformasse no instrumento de subjugação
dos trabalhadores. A Comuna rev
olucionária se constituiu, para Marx,
no contraponto ao império; foi com o grito da “
república social” que os
Referências para este debate estão em MARX, K. A guerra civil na F
rança (fragmentos).
In
: PINHEIR
O,
Milton.; MAR
T
ORANO, Luciano. (org.).
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos Operários
. S
ão P
aulo: Expressão
P
opular
, 2013. p. 49-58.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
101
trabalhadores inauguraram a rev
olução de fevereir
o e iniciaram o processo
de destruição do Estado burguês; constituindo o povo em armas. O poder
operário foi organizado em conselhos, eleitos pelo sufrágio universal por
toda P
aris, sendo seus mandatos r
evogáveis a qualquer momento em que o
pov
o, assim, considerasse pertinente.
U
m dos elementos centrais foi repudiar a forma de go
verno
parlamentar e organizar-se como uma “
corporação de trabalho
”, que exer
cia as
funções legislativas e executiv
as ao mesmo tempo. Os conselhos da Comuna
consideraram importante a destruição do aparato da opressão espiritual, e
uma série de medidas foram tomadas contra os padres e a igreja, decr
etando a
“
dissolução e a desapropriação
” dos seus bens, livrando as escolas da inuência
da igreja, tornando-as gratuitas e livres da ideologia confessional.
A Comuna, de acordo M
arx (2013), com o seu poder em
movimento, ex
ercido pelos diversos conselhos, questionou o poder até
então vigente.
T
ornou-se um governo da classe operária, rev
elando-se uma
forma política na qual os trabalhadores organizados conseguiram ex
ercer
a democracia de classe, o autogov
erno dos produtores, a democracia
de nov
o tipo; enm, a possibilidade da ditadura do proletariado. Com
essa circunstância, a partir da mudança nas relações sociais, o trabalho é
emancipado, a propriedade privada é derrotada e o comunismo se apr
esenta
como a bandeira dos conselhos da Comuna.
É evidente que a Comuna não queria nem milagre nem utopia,
mas, sim, a materialidade da forma política encontrada para fazer valer
o poder dos trabalhadores. Como experiência de transição pautada nos
conselhos, a Comuna transpareceu contradições, contudo, não trataremos
dessas questões no escopo desse artigo.
P
riMeirAs
tensões
De
lenin
sobre
o
Pr
ocesso
De
trAnsição
Lenin compreendeu o processo de transição no debate sobr
e
a dicotomia entre democracia burguesa e ditadura do proletariado
2
Referências para essa discussão encontram-se em: LENIN,
Vladimir
.
T
eses sobre a democracia burguesa e a
ditadura do proletariado (fragmentos).
In
: PINHEIRO, M
ilton.; MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e
Pr
ática dos Conselhos Oper
ários
. São P
aulo: Expr
essão P
opular
, 2013. p. 77-83.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
102
(democracia da maioria), a partir da análise que ele dedicou aos
acontecimentos da Comuna de P
aris. O
rientando-se pelas trilhas abertas
por Marx para entender aquela epopeia histórica, Lenin analisou o caráter
repressor e classista do parlamento burguês, identicando o discurso da
democracia em geral como um aporte da dominação política e ideológica
da burguesia. N
este programa de estudo, ele rearmou o distanciamento
da Comuna da forma de gov
erno parlamentar que representav
a a defesa
da “
democracia em geral”, na forma defendida pela burguesia, que em
verdade corr
espondia a defesa dos seus próprios interesses de classe, como
condição para dirigir o projeto de dominação e manter seus privilégios.
Lenin rearmou, a partir da experiência da Comuna, a necessidade de
destruição do aparato de Estado da burguesia, que deve ser substituído
“
por uma organização autônoma de massas dos operários
” (LENIN, 2013);
isso como rearmação, em no
vos patamares, da experiência pr
etérita, mas,
também, como possibilidade futura, em que se conguraria o instrumental
da transição na forma política da ditadura dos conselhos como uma
democracia de nov
o tipo.
É preciso compreender que essas características do pr
ocesso
de transição não devem permitir que os trabalhadores capitulem
diante da falsa liberdade, pois em nenhum momento da história a
burguesia, mesmo quando foi revolucionária, permitiu a “
democracia
pura
”. P
ortanto, a questão que se coloca é a de liberdade para quem?
Seria permitido à burguesia r
eunir os agrupamentos reacionários e
contrarrevolucionários, corr
omper a imprensa, manter o princípio
das liberdades que inter
essam à “
democracia em geral” (como forma
ideológica de dominação)? A essa questão, Lenin responde com a
necessidade da ditadura do proletariado, como forma legítima “
de
derrubar os exploradores e reprimir a sua r
esistência
”.
O processo de experiência da Comuna de P
aris, também vivido,
em outras circunstâncias pelos so
vietes da revolução russa, não poderia
tergiversar politicamente – “
qualquer sonho com uma terceira via é uma
lamentação reacionária de pequeno-burguês
”. O poder soviético deveria
exercer a sua forma política de transição manifestada na ditadura dos
conselhos, pois sua essência “
é a organização maciça precisamente das classes
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
103
que eram oprimidas pelo capitalismo
” (LENIN, 2013). A organização
dos Conselhos, para Lenin, deve estar “
adaptada ao papel dirigente do
proletariado
”. É ela que permite a destruição do arcabouço material,
político e jurídico da burguesia. P
ortanto, a tarefa dos revolucionários é
a supressão do Estado, até então visto a partir do poder dos Conselhos,
como a possibilidade política da transição. Contudo, esse pr
ocesso
apresenta ainda uma no
vidade política: a necessidade do pleno exercício
das condições materiais se realizarem na vida dos trabalhador
es para que se
possa exercer a r
ealização da liberdade.
r
osA
l
uxeMburgo
e
A
DeMocrA
ciA
sociAlist
A
O debate sobre o caráter da democracia perpassa o conjunto
das preocupações de R
osa Luxemburgo
. U
m dos primeiros debates
animado por ela, tratava-se da dissolução da Assembleia Constituinte de
nov
embro de 1917 e da análise sobre a R
evolução Russa. A r
evolucionária
polonesa considerava que essa medida seria uma modicação tática na
ação dos bolcheviques e analisou o que teria sido determinante para o
comportamento de “Lenin e camaradas
”, já que este defendia que a
Assembleia Constituinte seria a porta de entrada para a revolução
. O
cerne do debate consolida-se no entendimento sobre o que qualica ou
não a democracia, mas também sobre o horizonte tático imediato dos
bolcheviques nos primeiros momentos da rev
olução.
P
ara R
osa, Lenin e
T
rotsky poderiam, ao examinar a questão da
composição social da Assembleia Constituinte, e o conteúdo político nela
manifestado (pela presença de apoiadores de K
erenski e das pautas colocadas
pelos N
arodnikis), extrair justicativas convincentes para a sua dissolução
.
N
o entanto, para Rosa, as eleições ocorr
eram “
antes do ponto de mudança
decisivo, a revirav
olta de outubro, e que em sua composição, a Assembleia
Constituinte, reetia a imagem do passado superado
” (LUXEMB
UR
GO,
2013). Contudo, ela se detém nos argumentos diferenciados utilizados por
T
rotsky a respeito das eleições, quando este armou que a repr
esentação
O arcabouço desse debate encontra-se em: LUXEMB
URGO, R
osa. A Revolução Russa (fragmentos).
In
:
PINHEIR
O, Milton.; MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e Prática dos Conselhos Oper
ários
. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013. p. 89-101.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
104
popular advinda de eleições gerais durante qualquer revolução não fazia
sentido para os interesses da rev
olução. R
osa prossegue na sua polêmica,
qualicando as ideias de
T
rotsky como “
esquemáticas
”, já que para ele a
assembleia eleita representav
a apenas o momento em que o eleitorado
marchou para votar naquele contexto especíco
. Desaando essa ideia,
Rosa arma que as experiências históricas demonstram que a “
opinião
popular banha constantemente os corpos representativ
os, penetra neles,
e os dirige
”.
P
ara R
osa Luxemburgo, a r
evolução contribui para que a opinião
popular seja reanimada e pulse de forma mais vigorosa,
exercendo uma
inuência muito grande “
sobre os corpos representativ
os
”. Sendo assim, as
eleições no processo de consolidação da rev
olução são uma contribuição
ao seu fortalecimento justamente pela participação popular
, que faz
tremer essas assembleias (parlamento). A preocupação com a questão da
democracia apresentada por R
osa Luxemburgo, não obstante inspirar um
princípio de radicalidade, pode tangenciar o poder concreto do aparato
ideopolítico da burguesia e sua capacidade de reação
.
Os líderes da r
evolução de outubro ainda sofr
eriam críticas,
pois, Rosa considerarava que eles eliminaram a democracia em geral. As
medidas empreendidas obstruíram as fontes da “
vida política ativ
a, livre,
enérgica das amplas massas populares
”. Seus argumentos armavam que
as propostas de Lenin e
T
rotsky
, por elementar princípio, eram contra o
corpo parlamentar surgido do processo eleitoral, pois queriam apenas se
ancorar na formação dos Conselhos. N
esse debate, ela questionava ainda
a base do direito eleitoral surgido da elaboração do go
verno so
viético,
qualicando-a como uma forma política limitada por permitir apenas o
direito de sufrágio aos trabalhadores, negando-o ao r
estante da população.
Esse debate pode ter como alicerce os contrapontos do sufrágio eleitoral,
suas bases jurídicas e a questão dos Conselhos, embora compreenda-se que
não sejam excludentes.
T
odavia, ao centralizar numa ou noutra questão a
ênfase da participação social, o debate torna-se dicotômico. Rosa tem uma
compreensão de que o direito eleitoral e o sufrágio dev
em atender a todos,
e não somente àqueles que estão no processo de trabalho
. N
a transição para
o socialismo, é necessário o voto universal para todos. Conforma-se na
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
105
elaboração de Rosa, a defesa das liber
dades democráticas substantivas como
embrião para fazer avançar a transição
. De acor
do com ela, ao sufocar a vida
pública seca-se a fonte da experiência política, tão necessária ao processo
vivo da transição
. A crítica de Rosa se consolida ao chamar de “
absurdos
”
os pressupostos que armam o direito eleitoral na transição so
viética como
algo à parte da realidade em construção. Considerava anacr
ônico avançar
com as ideias que só se congurariam efetivamente no socialismo, e não no
processo de transição
. Critica duramente a posição de
T
rotsky sobre o peso
dos corpos eleitorais (o valor do voto para o operário, para o camponês e
para setores da pequena burguesia), qualicando-o como insuciente. A
defesa de Rosa por dir
eitos era vista pelos bolcheviques, a grosso modo,
como armação da instituição do aparato burguês (liberdade de impr
ensa,
direito de associação, direito de r
eunião). Acirr
ou-se o debate, no entanto,
compreendo que o processo de transição dev
e conter em suas práticas o
cerceamento da democracia em geral, pois esta age como uma cortina de
fumaça para falsear os interesses de classe da burguesia como se fossem
direitos das massas em geral. Contudo, a preocupação de R
osa era de
que os bolcheviques, pelo enorme esforço feito na vitória da rev
olução,
precisariam, para armar o seu poder
, da “
mais intensa formação política
das massas e do acúmulo de experiência
” (LUXEMBUR
GO, 2013).
Esse rico debate pertence ao campo do acúmulo de experiências
que os revolucionários pr
ecisam apreender como algo que pode auxiliar
a desvendar o processo de transição
. O aporte teórico e concreto trazido
por Rosa chama a atenção por ela considerar que a riqueza da experiência
socialista, por sua novidade, está na liber
dade e na democracia; uma
democracia de nov
o tipo, que opõe vida pública à burocracia e que,
portanto, não permitirá que a burocracia crie o seu domínio. Essa
interpretação, ao lado das posições de Lenin e de
T
rotsky
, ainda que
antagônicas, contribui para que o movimento operário encontr
e a forma
política da democracia socialista.
P
ara R
osa, “
é tarefa histórica do proletariado, ao conquistar o
poder
, criar a democracia socialista no lugar da democracia burguesa, e
não eliminar toda a democracia
”, prosseguindo que a questão da ditadura
deve ser “
obra da classe, e não de uma pequena minoria dirigente agindo
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
106
em nome da classe
”. Essa observação se reveste de necessária reexão
após os acontecimentos contrarrevolucionários que derr
otaram a URSS
e os países das chamadas democracias populares no Leste E
uropeu, em
ns do século XX. N
ão obstante a proximidade histórica, podemos extrair
algumas questões em aberto desse debate: “
os corpos r
epresentativos
populares
” teriam força para garantir a revolução? N
o socialismo, teríamos
democracia para todos? Como garantir uma “
vida política ativ
a das massas
”
no socialismo – já que a experiência enfrentou problemas de décit
democrático? Esse debate continua com a intensa presença de R
osa e dos
revolucionários bolcheviques.
g
rAMsci
e
A
quest
ão
Do
oPerADor
Polític
o
:
A
toMADA
Do
PoDer
A importância da tomada do poder encontra na necessidade de
construção do operador político uma ancora basilar no pensamento de
Antonio G
ramsci. O pensador italiano consolidou no pensamento político
moderno a necessidade o operador da práxis revolucionária: o partido
. N
a
análise de G
ramsci sobre a temática dos Conselhos a partir da questão
da tomada do poder do Estado, ele começa estudando as modicações
ocorridas pela concentração capitalista em virtude do aperfeiçoamento
do modo de produção
. Essas transformações, naquele período em curso,
impõem aos marxistas novas leituras para apr
eender a dinâmica dessa
realidade concreta, no sentido de entender as modicações no contexto
societário que transformou o trabalhador em indivíduo-cidadão, encaixado
no processo de concorrência que ger
ou o individualismo.
A concentração capitalista criou o extremo dos privilégios para
a burguesia e dicultou a luta para os de baixo, que deve operar para
conseguir a solidariedade “
que se torna essencial para a classe trabalhadora
”
(GRAMSCI, 2013). Em G
ramsci, a unidade de classe deve ser entendida
como elemento de suma importância para a “Revolução P
roletária
”. Em
virtude dos interesses da burguesia, o Estado sempre foi protagonista da
história, pois se trata do aparelho que reúne as condições para que a classe
Balizas dessa reexão encontram-se em: GRAMSCI, Antonio
. A conquista do Estado.
In
: PINHEIR
O,
Milton.; MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e P
rática dos Conselhos O
perários
. S
ão P
aulo: Expressão P
opular,
2013. p. 119-125.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
107
capitalista possa exercitar a “
predominância na direção e no disciplinamento
da sociedade
”. Os trabalhadores, nesse contexto, estão difusamente postos
no ambiente da concorrência. A vanguar
da, que apenas compreendia a
luta como instrumento da causa corporativa, estabelecida nas formulações
da Segunda I
nternacional, sucumbiu ao sindicalismo de corte apolítico
que produziu muitos equívocos espontaneístas e não conseguiu “
educar
para revolução a classe trabalhadora
”. Essa visão e conduta sindical não
combatia o Estado e terminou por negar a luta política.
P
ara G
ramsci, a pr
esença do partido será fundamental para
transformar a missão do proletariado ao torná-lo mais consciente do seu
movimento dentr
o do processo das lutas de classes. Articulando a luta
pela tomada do poder de Estado, os comunistas não devem abandonar
as demandas corporativas, mas devem entendê-las de forma crítica,
interrogando-as constantemente. O mo
vimento da luta operária pelo
Estado não será a troca de pessoal nem de modelo, mas sim, a construção
de um nov
o arcabouço ideo-político que pode responder às no
vas
características da sociedade em transição.
De uma forma mais explícita, encontramos em Marx a
formulação mais contundente para esse processo histórico: a destruição
do aparato do Estado burguês. Em G
ramsci, pela preocupação com os
meandros da concorrência econômica, a forma política sugerida para a
transição é a “
experiência associativa da classe proletária e a substituição
do Estado democrático-parlamentar por ela
”. A transição será organizada
pela associação dos trabalhadores no sentido de criar instrumentos que,
no processo de insolvência da burguesia, poderão gerar no
vos órgãos da
classe operária.
P
ara o pensador sar
do, essas instituições surgirão ao lado da
ainda existente estrutura do aparato burguês, que será destruída no
processo de disputa. A questão principal é: como surgirão instituições
proletárias para reanimar a possibilidade de uma economia nacional e
internacional libertas da tirania da burguesia na época do capitalismo,
do monopólio mundial da produção e da troca? Esse debate aberto por
G
ramsci contempla a revolução no pr
ocesso da revolução permanente,
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
108
durante a qual se armará o poder das instituições operárias surgidas da
organização dos trabalhadores nas fábricas.
N
a disputa hodierna da luta de classes, com base no pensamento
de G
ramsci, a disputa pelo poder se dará na dualidade entre as organizações
que sairão do ambiente fabril, que construirão o Estado operário. É dessa
possibilidade de construção da hegemonia proletária que poderá surgir
, a
partir do papel de um novo operador político, uma no
va direção ética e
moral para a sociedade em processo de transformação social.
g
yör
gy
l
ukács
,
no
Pr
ocesso
De
trAnsiçã
o
o
est
ADo
é
uMA
ciDADelA
A
ser
Destr
uíDA
György L
ukács constituiu um arcabouço seminal sobre a
transição, quando apresentou no debate sobr
e os Conselhos Operários
uma baliza elementar: o campo da luta de classes cresce e compr
eende o
conjunto desbloqueado dos espaços onde ela pode se revelar
, contribuindo,
assim, para explodir as cidadelas do Estado e suas fronteiras. N
a r
eexão do
pensador húngaro a luta contra o estado capitalista é fundamental, pois o
Estado se materializa como “
arma da luta de classes
”.
György L
ukács encontra em Marx e Engels, distanciando-os dos
oportunistas da Segunda Internacional, a tese de que a questão do Estado
é extremamente relev
ante para as possibilidades da revolução pr
oletária,
utilizando-se dessa abordagem como r
eferencial para enfrentar a “
essência
revolucionária
” de sua época. Lukács qualicou os pensadores r
eformistas
do período em questão como sendo aqueles que capitularam ao modelo
de Estado desenvolvido na sociedade burguesa, e essa crítica se dirige
essencialmente a Kautsky e a Bernstein.
N
essa formulação de G. Lukács percebemos, de forma concr
eta,
a notável inuência de Lenin. Essa inuência permite reconhecer a r
elação
teórica de Lenin com Marx na interpretação de uma “
posição proletário-
revolucionária sobr
e o problema do Estado
” (LUKÁCS, 2013), salientando
Eixos temáticos para essa análise encontram-se em: LUKÁ
CS, György
. O Estado como arma.
In
:
PINHEIR
O,
Milton.; MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e P
rática dos Conselhos O
perários
. S
ão P
aulo: Expressão P
opular,
2013. p. 127-139.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
109
que Lenin não fez uma abstração sobre a questão, mas levantou o problema
a partir das tarefas dos trabalhadores que faziam o enfr
entamento na luta
de classes, tendo como eixo central a direção da tomada do poder
.
N
a interpretação de Lukács, Lenin r
ompeu com o programa de
uma teoria geral do Estado baseada em postulados diletantes e, pautado
pelas análises concretas feitas por M
arx sobre a Comuna de P
aris, avançou
no debate sobre a questão do Estado, a partir das contradições do momento
histórico em que as lutas do proletariado se projetavam em um cenário em
aberto.
T
ransparece nos estudos de M
arx, Engels e, principalmente, em
Lenin – chamado à atenção por Lukács – que a questão do Estado é o
objetivo que deve mo
vimentar os trabalhadores nas tar
efas cotidianas, e não
apenas quando se apresentar o “
objetivo nal”. N
a tese de Lukács, Lenin
deu a importância devida ao papel do Estado na história contemporânea,
o que contribuía para educar os trabalhadores em sua luta pelo poder
.
Contudo, isso ocorria, principalmente, porque ele acentuava em suas
análises o “Estado como arma da luta de classes
”.
N
essa investigação sobre o papel do Estado, L
ukács antecipa um
grande debate contemporâneo, ao sinalizar que os instrumentos de luta
em curso (partido, sindicato e cooperativas) são, já naquele momento,
“insucientes para a luta revolucionária do pr
oletariado
”. O entendimento
político do pensador húngaro, na perspectiva projetada, é a construção
de uma representação que unique todo
o proletariado às amplas massas,
ainda dentro da sociedade burguesa, para pôr a rev
olução “
na ordem do
dia
” – e, para ele, esse instr
umento seria os Conselhos Operários que se
tornariam os operadores políticos da rev
olução e da transição.
Em suas formulações, G. Lukács, arma que os Conselhos
aparecem como “
organização de toda a classe
”. Eles devem agir para
desorganizar “
o aparelho de Estado burguês
”. N
o contexto dessa
desorganização, eles, enquanto representação de classe, dev
erão entrar em
choque com a possível tentativa da burguesia de impor uma ampla r
epressão
para recompor seu poder
. É diante dessas contradições que os Conselhos
Operários se apresentam como apar
elhos de Estado na perspectiva da
“
organização da luta de classes
”. A partir de sua análise sobre a Rússia em
1905, podemos compreender que os Conselhos “
são um contragoverno
”
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
110
que enfrenta o “
poder estatal da burguesia
”. É importante salientar ainda a
crítica de Lukács a Marto
v: este último compreende os Conselhos “
como
um órgão de luta
”, sem necessariamente transformar-se em aparelho de
Estado, enquanto, para o primeiro, essa posição afastaria os trabalhadores
da revolução e da “
real conquista do poder pelo proletariado
”.
Durante esse debate, surgiu uma importante polêmica sobre
o papel do sindicato e do partido. Lukács criticou aqueles que queriam
substituir de forma permanente esses dois instrumentos pelos Conselhos,
confundindo o entendimento do que seja, ou não, uma situação
revolucionária. E
le armou que o Conselho Operário, enquanto aparelho
de Estado, “
é o Estado como arma na luta de classes do proletariado
”.
N
o entanto, para fazer a defesa dessa posição leniniana, Lukács atacou
o reformismo oportunista e sua “
capitulação ideológica à burguesia
”.
Ainda nesse debate, criticou a ideia de democracia da socialdemocracia
e seu projeto de “
agitação pacíca
” para a modicação da sociedade de
forma não revolucionária, ao considerar que, para se chegar ao socialismo,
as ideias dos trabalhadores irão num crescendo até a conquista do poder
.
Os reformistas se mantêm no campo da “
democracia pura, formal”, e se
iludem com o voto do cidadão abstrato, considerado por Lukács como
“
átomos isolados do todo estatal”, na contramão das pessoas concretas,
“
que assumem um lugar na produção social, que seu ser social (que articula
o seu pensamento etc.) é determinado por essa posição
”.
Ainda nesse debate temático (democracia), o lósofo
marxista húngaro identica o “
domínio minoritário da burguesia
”
na “
desorganização ideológica
” para transformar a democracia pura e
formal em um instrumento de regulação da vida social. P
ara responder
a essa situação (desorganização), os Conselhos devem ser reconhecidos
como o “
poder de Estado do proletariado
”, ao passo que avançam para
destruir “
a inuência material e ideológica da burguesia
” (LUKÁ
CS,
2013) sobre as massas.
É importante garantir o contrafogo ideológico e contribuir para
o surgimento de condições de direção do proletariado “
no período de
transição
”. O proletariado tendo os conselhos como sistema de Estado,
deve marchar para continuar destruindo a burguesia em todas as suas
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
111
frentes. N
este sentido, o sistema de Conselhos, agindo de forma educativa
e autônoma, deve incentivar uma participação que articule “
uma unidade
indivisível entre economia e política, ligando, desse modo, a existência
imediata das pessoas, os seus interesses cotidianos etc. com as questões
decisivas da totalidade
” e contribuindo assim para evitar a burocratização
.
P
ara L
ukács, esse movimento do sistema de Conselhos e do
Estado proletário “
é um fator decisivo na organização do proletariado em
classe
”, permitindo que, agora, o tornar-se consciente e classe para si se
efetive. Lukács, com base em Lenin, considera que o Estado proletário é
abertamente um Estado de classe, sem a farsa montada pela burguesia para
transformar seu Estado em Estado de todos. Mais uma vez, esse debate
teórico demonstra que a atualidade da revolução passa pela pr
oblemática
do Estado e do socialismo. P
or
tanto, os Conselhos Operários estão na
gênese dessas possibilidades.
k
Arl
k
orsch
,
A
quest
ão
DA
sociAlizAçã
o
coMo
bAlizA
P
ArA
A
DeMocrAciA
sociAlist
A
Após a derrota do que seria o socialismo de Estado na U
nião
So
viética, e nos países das democracias populares do Leste E
uropeu,
a discussão sobre a socialização, enquanto pressuposto da democracia
socialista, ganhou dimensão de balanço para os trabalhadores e suas
aspirações.
Os estudos e a contribuição de Karl K
orsch nos permitem abrir
pistas e trilhas para que possamos compreender e invocar possibilidades de
nov
as experiências de transição. P
ensador da auto-emancipação proletária,
este estudioso dos processos de transição, pouco conhecido no Brasil.
Examinou a questão dos Conselhos a partir da autonomia operária de
forma inov
adora, possibilitando visualizarmos as formas da organização
política dos trabalhadores no processo de ruptura social.
Em 1919, momento em que a experiência socialista começava
na Rússia dos Conselhos, K
orsch (2013) examinava as etapas da
6
T
ópicos centrais para essa reexão encontram-se em K
ORSCH, 2013.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
112
socialização, que começava com uma “
nov
a regulamentação
”, que incluía
“
socialização dos meios de produção
”, e a “
provocada emancipação do
trabalho
”, que implicava posteriormente na socialização do trabalho.
Em seus estudos, K
orsch qualicava a produção como relações
sociais,
e a supressão da propriedade priv
ada dos meios de produção como o
primeiro passo da socialização
.
N
o debate animado por ele, aparece a contraposição entr
e a
ordem capitalista (privada) e pr
ocesso de socialização (conjunto público
de produtores e consumidor
es). N
o exame do que seria o capital, Korsch
identica que a produção só se congura em capital “
com o surgimento do
trabalho assalariado
”. Aprofundando argumentos contidos no Manifesto
Comunista, analisa que a ordem social capitalista se mo
vimenta por meio
do antagonismo entre o capital e o trabalho
. Sendo assim, o capital se
estabelece como dominação privada da produção social, a partir da
consolidação da “
propriedade privada
” e do “
trabalho assalariado não
livre
”. Essa forma historicamente dada de produção social é o capitalismo
.
N
o processo de transição, a socialização da produção do sistema
capitalista é, ao mesmo tempo, o desaparecimento do “
antagonismo entre
capital e trabalho
”. Não obstante, no
vas leituras surgidas no ambiente da
Segunda I
nternacional pautarão o debate. Sendo assim, mesmo de forma
sumária, podemos armar que a socialização dos meios de produção e uma
política social são os dois caminhos para a socialização/democratização na
sociedade em transição.
N
esse momento, começo do poder soviético, K
orsch apresentou
um rico debate ao tratar da desapropriação, discutir as formas mistas e
associadas de propriedade e examinar as ideias reformistas de E
duard
Bernstein. Critica de forma contundente a chamada política social que
mantém a propriedade privada e que abranda as contradições entr
e
capital e trabalho. P
ara este teórico, só haverá socialização quando houver
“
uma mudança radical”. M
edidas para humanizar a propriedade não são
socialização, nem socialismo.
N
o contexto desse debate, a questão da socialização, ele também
faz uma crítica a Karl Kaustky
, quando arma que a socialização é a “
total
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
113
eliminação da propriedade privada da produção
” (KORSCH, 2013, p
.
145). Diante dessa hipótese de trabalho, para compr
eender o processo
soviético, constatamos o objetiv
o dos seus estudos e da sua luta: socialização
como eixo basilar para a democracia socialista. Assim, a socialização trará
no seu desenvolvimento uma contradição de interesses, env
olvendo
produtores e consumidor
es. Essa contradição não pode abrir janelas para
uma perspectiva de capitalismo de Estado em virtude dos respectivos
interesses. N
ão se trata de um “
novo capitalismo
”, mas a destruição de
todas as formas que qualicam essa possibilidade.
A problemática das reivindicações dos pr
odutores e consumidores
deve encontrar saída na regulação da socialização com suas formas de
integração e complementação, dentro do sistema que está sendo criado
na transição. P
or
tanto, algumas questões se colocam: como dividir o
rendimento da produção? Como será o domínio do pr
ocesso de produção?
O trabalho assalariado é ou não compatível com a economia comum
socialista? Esses são problemas que encontraram reper
cussão no debate
feito por Korsch.
Korsch (2013) ainda se pr
eocupou com duas questões podem
ser destacadas: o salário é a forma técnica de distribuição do rendimento
da produção? E a autonomia industrial será também a forma política
para avançar a socialização, como modo de repr
esentação dos produtores
e consumidores? A profundidade das questões apr
esentadas por Korsch
extrapola nosso comentário e nossa investigação
. São temas que se impõem
ao processo de transição, trazidos pela pesquisa desse teórico, mas também
pela convicção revolucionária desse intelectual orgânico
.
N
o arcabouço do debate e investigação r
ealizada por Korsch,
percebe-se que a operação política desse processo terá o protagonismo dos
trabalhadores.
T
odavia, o desenvolvimento das questões levantadas por ele
nos permite indagar: como se dará a regulamentação jurídica das relações
de produção? Como garantir a ver
dadeira socialização, e como surge a
propriedade comum socialista? São questões que se impõem para debater
o processo de transição e nos auxiliarem na r
eexão sobre o conjunto de
questões que contribuíram para a derrota do poder so
viético.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
114
A
l
guMAs
Pist
As
P
ArA
continu
ArMos
o
DebA
te
N
as primeiras aproximações que nos orientam na conclusão deste
texto, penso ser importante armar que a questão central do exame sobre
os Conselhos Operários é a transição
. O pensamento marxista atual tem
que, com base na experiência das revoluções do século XX, apr
ofundar as
balizas centrais de uma teoria da transição da sociedade capitalista para
a sociedade socialista. N
o conjunto do artigo apresentamos fragmentos
de alguns teóricos marxistas, inclusive Marx, que nos informam que sem
uma teoria da transição a classe trabalhadora não conseguirá elaborar um
programa político para a rev
olução/transição.
Marx (2011; 2012), Lenin (1980), Charles Bettelheim (1979),
Pierr
e Chaulieu (1975), V
ania B
ambirra (1993), Mao
T
setung (1975),
para de forma sucinta carmos apenas nesses, apresentaram um complexo
corpo de formulações sobre o tema da transição
. Contudo, o debate
sobre a política, o Estado e a burocracia dev
em encontrar ressonância na
investigação sobre o pr
ocesso de transição. F
ica nítido em vários autores
do campo marxista que não podemos separar a política e a economia
na transição socialista. Diante dos impasses em virtude das derrotas do
socialismo de Estado no século XX, temos um conjunto temático que
precisa ser examinado a partir do legado revolucionário exposto neste
trabalho.
T
rata-se da questão do pluralismo socialista, o impactante tema
da burocracia que pode ser adicionado à problemática da divisão do
trabalho. Anal, para Lenin a bur
ocracia era uma “
úlcera
”, para
T
rotsky
era uma “
gritante contradição
” e para J
osip
T
ito, um “
polvo de milhões de
tentáculos
”.
Soma-se a esses pontos a temática da transformação das r
elações
de produção
. Marx (2012) armava que “
a raiz de uma organização social
reside nas forças pr
odutivas
” (2012). M
ao
T
se
T
ung (1975) ao examinar
a questão da transição, considerava que era fundamental a transformação
radical das relações de produção, contudo, adicionav
a a importância do
papel da superestrutura, particularmente da política. P
ara o pensador
chinês, era necessário derrubar a antiga superestrutura com a revolução;
criar nov
as relações de produção; efetivar a transição
como uma permanente
revolução nas for
ças produtivas para a realização das necessidades humanas
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
115
e tudo isso com base em um nov
o patamar da ideologia e da política. Essa
análise de Mao
T
se
T
ung é basilar para podermos construir uma crítica
consistente ao economicismo - nesse sentido – a experiência da Revolução
Cultural ex
erceu um profundo papel nessa crítica.
São pontos que somados a análise dos impasses do poder e do
Estado soviético podem desv
elar perspectivas necessárias para entendermos
se os trabalhadores seriam vitoriosos através da construção de um
socialismo de Estado ou seria importante construir uma alternativa que se
orientasse pelo denhamento do Estado? Questões sempre colocadas na
ordem do dia se r
earmam: O que seria o Estado socialista na transição?
Qual papel político teria a Ditadura do P
roletariado diante do pluralismo
socialista e da democracia socialista? São balizas teóricas que se apr
esentam
ao programa do proletariado na sua luta pela autoemancipação
.
r
eferênciAs
BAMBIRRA, V
ania.
A teoria marxista da transição e a pr
ática socialista
. Brasília: E
ditora
da UNB, 1993.
BETTELHEIM, Charles.
A luta de classes na União So
viética
– P
rimeiro período (1917-
1923). Rio de J
aneiro: P
az e
T
erra, 1979.
CHAULIEU, P
ierre.
As relações de pr
odução na URSS
. Lisboa: Editorial P
resença, 1975.
GRAMSCI, Antonio. A conquista do Estado
.
In
: PINHEIRO, M
ilton.;
MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e P
rática dos Conselhos Operários. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013. p. 119-125.
K
ORSCH, Karl. O que é socialização?: um programa de socialismo prático
.
In
:
PINHEIR
O, M
ilton.; MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos
Oper
ários
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2013. p. 141-169.
LENIN, Vladimir
.
T
eses sobre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado
(fragmentos).
In
: PINHEIRO, M
ilton.; MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e
Pr
ática dos Conselhos Operários
. S
ão P
aulo: Expressão P
opular
, 2013. p. 77-83.
LENINE, Vladimir I. As tar
efas imediatas do poder soviético.
In
: LENINE, V
. I.
Obr
as
Escolhidas
. São P
aulo: Alfa-Ômega, 1980. p. 13 - 52.
LUKÁ
CS, György
. O Estado como arma.
In
: PINHEIR
O, M
ilton.; MAR
T
ORANO,
Luciano (org.).
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos Oper
ários
. S
ão P
aulo: Expressão P
opular
,
2013. p. 127-139.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
116
LUXEMB
UR
GO, Rosa. A Rev
olução Russa (fragmentos).
In
: PINHEIR
O, Milton.;
MAR
T
ORANO, Luciano (org.).
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos Oper
ários
. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013. p. 89-101.
MARX, K. A guerra civil na F
rança (fragmentos).
In
: PINHEIR
O, Milton.;
MAR
T
ORANO, Luciano
. (org.).
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos Oper
ários
. São P
aulo:
Expressão P
opular
, 2013. p. 49-58.
MARX, K.
Crítica ao P
rogr
ama de G
otha
. São P
aulo: Boitempo, 2012.
MARX, K.
Guerr
a Civil na F
r
ança
. São P
aulo: Boitempo, 2011.
PINHEIR
O, M
ilton.; MAR
T
ORANO, Luciano C. (org.).
T
eoria e Pr
ática dos Conselhos
Oper
ários
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2013.
TSE TUNG,
Mao
.
La Constr
uzione del Socialismo
. Roma: N
ew Compton Editori,
1975.
117
O
J
air Pinheir
o
T
odos os movimentos popular
es se veem às voltas com o
imperativo de se utilizar do direito para a defesa de suas r
eivindicações
materiais e/ou políticas. N
ão é diferente a situação das diversas
experiências abrigadas sob o rótulo de economia dos trabalhadores e
trabalhadoras. N
este breve ensaio defender
ei a tese de que essa utilização
do direito por mo
vimentos de trabalhadores encontra um limite no caráter
estruturalmente burguês do direito vigente. P
or conseguinte, o avanço
dessas lutas populares pode seguir dois caminhos distintos: o já consagrado
ao longo do século XX da conquista de direitos, mas também de per
das,
consequência das contrarreformas havidas na década de 1980 na E
uropa
e nos Estados U
nidos e, no B
rasil, na década de 1990, espécie de reação
às reformas do pós-guerra; ou propor à sociedade um no
vo or
denamento
jurídico em sintonia com seus interesses políticos, econômicos e culturais,
o que requer a formulação de um no
va teoria jurídica.
M
eu objetivo é examinar a possibilidade teórica desse segundo
caminho, por isso ele se reveste de um caráter exploratório, pois uma
tarefa dessa magnitude exige um estudo com escopo mais amplo e o
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
118
concurso de muitos pesquisadores. P
ara alcançar o objetivo proposto
dividi o ensaio em três seções. N
a primeira, a partir do exame de alguns
pronunciamentos jurídicos sobre fábricas ocupadas ou sobr
e demandas
de outros mo
vimentos populares que já pesquisei, selecionados segundo
o critério de colisão de direitos quanto à propriedade, deduzindo
alguns apontamentos críticos sobre os limites da instrumentalização do
direito pelos mo
vimentos, visando oferecer ao leitor tão-somente uma
ilustração empírica da distinção entre a crítica interna ao direito e a crítica
sociológica do direito pelo materialismo histórico
. N
a segunda seção,
apoiado em tais apontamentos, faço uma análise crítica do direito civil
burguês, baseado no conceito de pessoa; na terceira, procuro desenv
olver
os elementos gerais de uma teoria alternativa do direito compatív
el com
o materialismo histórico com base no conceito de direito do produtor
,
encontrado em estado prático no texto
Crítica do pr
ogr
ama de Gotha
, de
Marx, para atender àquela exigência de uma teoria jurídica em sintonia
com os interesses políticos, econômicos e culturais dos trabalhadores.
l
iMites
DA
utilizAçã
o
Do
Direit
o
burguês
T
anto no Brasil como no exterior
, a ocupação de fábrica tem
origem em situações falimentar e/ou de abandono da empresa pelo
capitalista. Após a ocupação começa a fase de r
ecuperação e, em seguida ou
simultaneamente, conforme o caso, a luta pela manutenção da fábrica sob
direção dos trabalhadores, luta que implica a judicialização da ocupação
em graus variados. U
ma explicação adequada dessa judicialização da luta
para assegurar a direção da empresa pelos trabalhador
es exige uma pesquisa
com escopo mais amplo do que a exposição aqui apresentada. N
esta seção,
limito-me a alguns apontamentos extraídos da experiência da CIPLA e da
FLASK
Ô com vista a indicar que há uma contradição lógica e material
entre as premissas do dir
eito burguês e a pretensão dos trabalhador
es de
assegurar o seu
domínio possessório
1
.
Baseado no conceito de faculdades do direito de propriedade, do dir
eito civil burguês, antecipo este conceito,
que será operacionalizado na terceira seção, como alternativa para designar o conjunto de prerrogativ
as da
atividade econômica vinculadas à reivindicação dos trabalhadores, já que no direito burguês tais pr
errogativas
são primariamente do proprietário e, daquele a quem as delega, secundariamente. Desenvolver esta no
va teoria
do direito, à qual aqui só se faz menção, é o desao da crítica e, na prática, dos movimentos popular
es
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
119
Entretanto, esta contradição não é evidente; explicitá-la exige um
exame das premissas subjacentes à argumentação dos atores env
olvidos
ou dos pronunciamentos jurídicos sobre as ocupações. N
ão deixa de ser
curioso que o
T
ribunal P
opular par
a julgar a intervenção da J
ustiça F
eder
al
nas fábricas Cipla e I
nterbr
a
, administradas pelos trabalhadores comece
por armar que “Este
T
ribunal P
opular julga ser procedente a ocupação
de fábricas pelos trabalhadores quando seus direitos trabalhistas se
encontrarem ameaçados ou não cumpridos pelos patrões
” (SENTENÇA...,
2008). Ou seja, mesmo atores simpáticos à ocupação consideram-na uma
atitude defensiva.
Claro que esta armação defensiva pode ser justicada pelo
argumento de que qualquer juízo de natureza jurídica, mesmo o de um
tribunal popular
, deve ser embasado no ordenamento jurídico vigente e,
talvez por isso, alega em favor do direito
de ocupação que preconiza que “É
da Constituição F
ederal que ‘
a propriedade atenderá a sua função social’ (art.
5º, XXIII), e ainda que a função social da propriedade é um dos princípios
norteadores da atividade econômica (art. 170, III)” (SENTENÇA...,
2008, p. 2), alegação complementada pelo
T
ribunal P
opular
pela denição
de função social da propriedade, de F
ábio Konder Comparato,
[...] como o poder-dever de vincular a coisa a um objetivo determinado
pelo interesse coletivo
. Somente, os bens de produção cumpririam
uma função social, entendido como os empregados nas atividades
produtivas. Os bens de consumo, aqueles destinados ao uso pessoal,
não teriam essa destinação. Conclui que “
se se está diante de um
interesse coletivo, essa função social da propriedade corr
esponde
a um poder-dever do proprietário, sancionável pela or
dem jurídica.
(SENTENÇA..., 2008, p. 3).
O problema de difícil, se não impossível, solução r
eside no
fato de que sancionar este poder-dever do proprietário, vinculando-o a
um interesse coletivo, colide com a norma, também constitucional, de
que a dignidade da pessoa humana
2
também é um dos fundamentos do
Estado Democrático de Dir
eito e, na medida em que tal sanção, quando
2
CF/88, art. 1, III. Conjuga-se com arts. 5.º, 34, VII, b, 226, § 7.º, 227 e 230.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
120
contemplada pela legislação, restringe e impõe condições ao ex
ercício das
faculdades do direito de propriedade, ancorado no conceito de pessoa
humana, se estabelece uma colisão de direitos quanto à propriedade.
A técnica da ponderação
3
pode ser aplicada tanto para alcançar
a primazia da norma incidente no caso concreto ou o equilíbrio entre
normas incidentes ou, ainda, conciliar normas e valores, tornando viáv
el a
conciliação do princípio do patrimonialismo próprio do direito civil com
o das garantias prestacionais do Estado social, que acolhe a função social
da propriedade. Contudo, o que se argumenta aqui é que tal conciliação
só pode ser alcançada – pelo menos na teoria – porque a gura do social é
representada ideologicamente como um agr
egado de indivíduos abstratos
(ver denição mais adiante), virtualmente proprietários que concedem
ao Estado três formas de incidência sobre o princípio patrimonialista:
“[...] vedação ao proprietário do ex
ercício de determinadas faculdades,
obrigação de o proprietário exer
cer faculdades elementares do domínio
e a criação de um complexo de condições para o exer
cício das faculdades
atribuídas pelo direito de propriedade.
” (
JELINEK, 2006, p. 3), o que
confere primazia material ao art. 1.º, III sobre o art. 5.º, XXIII da CF/88,
já que o conceito de pessoa é o esteio da gura do proprietário, pessoa cuja
vontade se projeta nas coisas exterior
es de modo que, num só movimento,
arma sua autonomia privada e a propriedade como seu atributo próprio;
daí a primazia material do conceito de pessoa sobre o de função social
da propriedade, apesar da igualdade ideológica entre os princípios, como
ensina o direito constitucional.
Enm, devido à primazia material do art. 1.º, III sobre o art. 5.º,
XXIII da CF/88, embora seja pacíca a acolhida do princípio da função
social da propriedade pela doutrina, as lutas travadas pelos mo
vimentos
sociais demonstram à exaustão que a letra da lei está muito longe de
encontrar efetividade. Assim, é mister distinguir a crítica interna ao direito,
de exclusão arbitrária (ou por cultura jurídica tradicional ou insuciente)
de norma incidente, da crítica sociológica de incompatibilidade dos
princípios subjacentes a ambas as normas, como argumento neste ensaio.
A respeito da ponderação, ver N
éviton Guedes, desembargador do
TRF-1: GUEDES, 2012.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
121
Esta colisão de direitos, inconciliáveis nos termos da crítica aqui
desenvolvida, aparece nos pr
onunciamentos dos juízes, quando sentenciam,
como no caso de pedido dos trabalhadores da F
laskô de reconhecimento
jurídico da gestão que realizam de fato
4
, ou quando argumentam com vistas
à fundamentação da sentença, argumentação que tem dado oportunidade
aos juízes de pronunciar
em-se ideologicamente com a pretensão de saber
sociológico, sem enfrentar de modo ecaz a colisão de direitos que os
desaa, ou seja, apresentam uma argumentação diversionista.
Seguem tr
ês exemplos de argumentos diversionistas, integrantes
de diferentes sentenças, a título ilustrativo, já que a demonstração exige
uma pesquisa ampla sobre os pronunciamentos jurídicos r
elativos às
demandas dos movimentos. N
o primeiro, entre os motivos alegados pelo
juiz Oziel F
rancisco de S
ouza para negar o pedido dos trabalhadores da
Cipla de anistia da dívida tributária, ele arma que
[...] é incalculável o custo social gerado pela concorrência desleal.
Como não paga nenhum tributo, a executada consegue colocar seus
produtos no mercado com preço innitamente menor
, prejudicando as
sociedades empresárias que cumprem suas obrigações sociais. Estas, se
não fosse a ilegal e desleal concorrência da Cipla, certamente poderiam
crescer ao ponto de conseguir absorver
, com folga, os mil postos de
trabalho de que tanto se vangloria a devedora (p
. 10).
A pergunta inescapável, se se recusa o div
ersionismo, é: qual
a base de dados que permite ao juiz armar que as demais empresas
“
poderiam crescer ao ponto de conseguir absorver
, com folga, os mil postos
de trabalho
”? Nenhuma! N
a melhor das hipóteses é uma conjectura.
N
o segundo exemplo, o juiz Andr
é Gonçalves F
ernandes se
esmera no esforço de realizar uma análise pr
etensamente sociológica e
aparentar erudição. S
egundo o magistrado
P
or não serem proprietários, nem r
epresentantes nomeados por estes, o juiz da 2.ª V
ara Cível da Comarca de
Sumar
é sentencia que os trabalhadores não podem compor “
relação jurídica de dir
eito material”. P
rocesso n.º
604.01.2010.008984-3/000000-000.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
122
T
odavia, sustentado pela cantilena teórica-rev
olucionária-marxista
(da linha leninista), os latifúndios produtiv
os se juntaram ao
alv
o anterior
. Não é à toa que o STJ editou a S
úmula 354, a qual
dispõe que a invasão à propriedade em processo expropriatório é
causa de suspensão deste. De uns tempos para cá, sem perceber
que o catecismo de Marx e Lenin já foi historicamente sepultado,
e o modelo adotado sociologicamente fracassado, o Mo
vimento a
que pertence o réu deixou a ár
ea rural, organizando outros atos
atentatórios ao direito de pr
opriedade e à ordem legal, tais como
algumas originalidades desnecessárias: saques a supermer
cados,
invasão à delegacia de polícia para libertação de “
companheiros”
presos e ocupação de agências bancárias, como meio de pr
otesto,
além de outros atos perpetrados contra os trangênicos, seu
mais recente foco de luta.
Assim, não se estranhe dentr
o da ótica
gramsciniana que os réus pretendam corr
er às entranhas do Estado-
Direito naquilo que r
epresentam um de seus pilares, a saber
, o direito
de propriedade e seus atributos.
5
(negrito no original).
As armações do juiz pecam pela falsidade (por ex.:
invasão à
delegacia de polícia para libertação de “
companheiros
” presos) e obtusidade
(por ex.:
o catecismo de Marx e Lenin já foi historicamente sepultado),
a primeira, incorpora à sentença a equiparação entre delinquentes e
movimentos por dir
eitos, a segunda, típica de quem ignora o objeto
a que se refere, incorpora o lema da pr
opaganda anticomunista como
se tratasse de evidência factual e histórica demonstrada por pesquisa
acadêmica consolidada. F
alsidade e obtusidade que permitem ao juiz se
esquivar de enfrentar como objeto pr
ecípuo do seu ofício, a colisão de
direitos que o desaa. P
ortanto, o juiz afasta arbitrariamente, por que
simplesmente a descarta, uma norma constitucional incidente em favor
do
direito de propriedade, como se este fosse absoluto, como se dispensasse
considerações sobre as implicações sociais do ex
ercício das faculdades
próprias desse direito
.
N
o terceiro ex
emplo, a juíza Bárbara Car
doso de Almeida
avança alguns termos a mais no discurso da criminalização dos que lutam
por direitos.
Ação de reintegração de posse, processo n.º
604.01.2008.015432-0, decisão liminar da 2.ª
V
ara Cível Fórum
de Sumar
é.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
123
P
or m, resta a questão da invasão de área pelo tal “
movimento
popular”. P
rimeiro há de se ponderar que se trata de mo
vimento
espúrio, ilegal e totalmente estranho aos autos. Se por um lado é
legitimo o anseio por moradia própria, assim como são legítimos outros
anseios da população humana, a forma como se deu a consecução deste
anseio se mostra ilícita, criminosa e ilegal. De fato, sob a desculpa de
lutar pelo direito de moradia ou da reforma agrária, tais mo
vimentos
violam os princípios constitucionais e legais, invadem propriedades
públicas ou particulares, no mais das vezes produtivas, causam grav
es
danos ao patrimônio alheio e desobedecem leis municipais, estaduais e
federais, a própria Constituição F
ederal e as or
dens judiciais.
T
rata-se,
na verdade, de v
erdadeira atividade de guerrilha, na qual se pretende
a coação dos poderes constituídos a ceder aos desejos dos envolvidos
ao arrepio da lei, da ordem e do Estado D
emocrático de Direito
.
P
retende-se, mediante a força física, a coação, a ameaça velada de
morte, a violência desmedida, a imposição da vontade de certos grupos
de pessoas que representam certos interesses escusos e v
elados e que
raramente atendem os interesses dos ver
dadeiramente necessitados
(SIL
V
A, 2013, p. 153).
Certamente não escapará ao leitor
, para limitar-me ao exemplo
extremo da retórica virulenta da meritíssima, o despropósito da frase que
trata a atuação do movimento como atividade de guerrilha r
ealizada por um
grupo de trabalhadores precários desarmados? M
ais, coagindo os poderes
constituídos de um Estado que tem uma das polícias que mais mata no
mundo? N
ão, não é crível, tampouco sério, a não ser como produção do
discurso de criminalização das classes populares (SIL
V
A, 2013).
Esses três ex
emplos estão ancorados no conceito de pessoa,
simultaneamente núcleo dos princípios da dignidade da pessoa humana e
da titularidade do direito de propriedade. Ambos os princípios designam
a unidade ideológica e material do sujeito de direito
. O primeiro princípio
também dá suporte à gura do titular de direito social, mas sem a
correspondente condição de proprietário, o segundo princípio
. Resulta
dessa disjunção de princípios que o titular de direito social não conta com
um conceito de unidade principiológica igualmente acolhido pela ciência
jurídica como o titular de direito civil, razão pela qual na pró
xima seção
me dedico à crítica do conceito de pessoa.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
124
A
nálise
críticA
Do
Direit
o
civil
coMo
Direit
o
DA
Pesso
A
N
esta seção procurarei demonstrar: 1) que o dir
eito civil se
reveste, de um modo particular
, de um caráter trans-histórico, na medida
em que seu desenvolvimento atravessa diversas épocas históricas e,
complementarmente, 2) que o direito do produtor é o dir
eito de transição
da sociedade comunista. P
or ser o direito civil o direito da pessoa, o da sua
autonomia, quem é investido desse estatuto de pessoa (o sujeito de direito)
– portanto, com capacidade jurídica – nessas diferentes épocas tem variado
segundo a atribuição desse estatuto pela forma social, que é determinada
pelas relações sociais de produção
.
P
or isso, só no capitalismo o direito adquire plena vigência
(MASCAR
O, 2008; NA
VES, 2014), tanto no sentido de universalização
do estatuto de sujeito de direito, quanto no de extensão a todas as esferas da
vida social da aplicação do direito civil; universalização e extensão tornadas
possíveis pela separação dos produtor
es diretos dos meios de produção;
separação que permite atribuir-lhes capacidade jurídica sem transformá-los
em proprietários.
Este nexo causal entre capacidade jurídica e r
elações sociais de
produção escapa à ciência jurídica, que limita a relação
causal à dedução
lógica entre suas denições conceituais ideológicas, tendo a denição de
pessoa como fonte originária dessa dedução, cabendo à atividade legislativa
que, na forma, já está previamente condicionada pelas premissas do
ordenamento jurídico, a função social de traduzir para este or
denamento a
diversidade das relações sociais quanto à forma.
A ideia de um direito civil dos produtor
es visa à vigência do
direito numa forma social comunista, o que suscita um conjunto mais ou
menos variável de questionamentos, que podem ser r
eduzidos a três. O
primeiro e mais difundido, a ponto de transformar-se em senso comum, foi
consagrado pela crítica mal-intencionada, segundo a qual o comunismo é
um regime totalitário regido pela v
ontade arbitrária de um partido-Estado,
portanto, incompatível com a ideia de direito
. O segundo, diz respeito à
possibilidade de uma transição jurídica do capitalismo ao socialismo e, o
terceiro, à tese de M
arx do desaparecimento do Estado no comunismo.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
125
O exame dos primeiros anos da Rev
olução Russa (BETTELHEIM,
1983) e dos textos pós-17 de Lenin lançam por terra o primeiro
questionamento. A obra de B
ettelheim por ser uma das mais importantes
pesquisas empíricas sobre a R
evolução Russa, os textos de Lenin por ele ter
sido o principal líder daquela revolução
. Ambos constituem duas fontes
bibliográcas, para me limitar às mais conhecidas, que demonstram nunca
ter sido um projeto do P
ar
tido Bolchevique a forma jurídico-política
adquirida pela ex-URSS após 1929.
Quanto à possibilidade de uma transição jurídica do capitalismo
ao socialismo, o segundo questionamento, trata-se de uma hipótese
formulada por M
enger (1998), jurista crítico do marxismo, e pelo
revisionismo marxista que teve Bernstein como seu principal expoente
(GALASTRI, 2015), hipótese veementemente refutada por Engels e
Kautsky (1991). N
ão é objeto deste ensaio, mas não é ocioso assinalar que
a experiência histórica não autoriza a xação da uma forma de transição de
um modo de produção a outro, já que tais experiências têm se r
evestido de
formas particulares, mas nenhuma delas foi um ato jurídico, nem poderia
sê-lo, uma vez que o ordenamento jurídico corr
esponde aos interesses das
classes dominantes de um determinado modo social de produção
.
A tese de Marx do desaparecimento do Estado (e, por conseguinte,
do direito) no comunismo, o terceir
o questionamento, será ao mesmo
tempo objeto e móbil desta e da próxima seção
.
T
alvez não seja impróprio
começar por um argumento de autoridade: embora Marx tenha defendido
seu doutorado em losoa, ele iniciou seus estudos universitários em
direito, o que permite sustentar que mesmo não tendo atingido o grau de
jurista, tinha conhecimento jurídico, losóco e histórico o suciente para
permitir descartar um suposto caráter arbitrário à tese.
T
odavia, a meu ver
,
a tese não resolve o pr
oblema que coloca; pois foi formulada num texto de
polêmica e não foi desenvolvida posteriormente.
Como resolver o pr
oblema? O denhamento do Estado não pode
ser um ato jurídico por motivo óbvio: r
equer um Estado para sua execução
.
P
ara N
aves (2014, p. 94-95, grifo do autor),
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
126
A transição socialista implica um complexo conjunto de iniciativas
de massa, que propiciem gradativamente a
r
ecuper
ação, em uma escala
social, da unidade entre os meios de pr
odução e o trabalhador dir
eto
,
unidade esta cujo rompimento, como vimos, marca o nascimento da
relação de capital.
O que permitiria superar a existência do Estado. A meu v
er
, a
solução de N
aves não se aplica tanto porque não é possív
el uma mobilização
permanente, quanto porque esta mobilização supõe um dever-ser que a
sustente e legitime seus atos individuais e coletivos nos inúmeros casos
particulares do “
complexo conjunto de iniciativas de massa
”.
P
ara superar o pr
oblema colocado pela tese do denhamento do
Estado, sugiro relacioná-la com a tese do dir
eito dos produtores, pr
esente
no mesmo texto em estado prático, onde Marx (2012, p
. 30) arma que
O tempo individual de trabalho do produtor individual é a parte da
jornada de trabalho que ele fornece, é sua participação nessa jornada.
Ele recebe da sociedade um certicado de que forneceu um tanto de
trabalho [...], e com esse certicado, pode retirar dos estoques sociais
de meios de consumo uma quantidade equivalente a seu trabalho.
A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma
forma, agora ele a obtém de volta em outra forma. [...]. P
or isso, o
igual direito
é ainda, de acor
do com seu princípio, o
direito burguês
,
embora princípio e prática deixam de se engalnhar
, [...]. O direito
dos produtores é
propor
cional
a seus fornecimentos de trabalho; a
igualdade consiste aqui, em medir de acordo com um
padr
ão igual de
medida: o tr
abalho
.
Embora Marx não declar
e, essas duas teses têm sentidos
complementares, primeiro por
que coloca em perspectiva histórica a
transição do capitalismo ao comunismo como processo, não como ato,
segundo, porque a tese do direito dos pr
odutores implica uma forma
jurídica e um Estado transformados nesta fase de transição. P
ara avançar
nessa reexão é preciso explicitar a pr
oblemática teórica que está implícita:
que forma jurídica pode conter os elementos da sua própria dissolução?
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
127
A resposta para esta pergunta exige o cotejamento da forma
jurídica com o objeto que ela regula: as relações sociais de pr
odução. N
a
polêmica com as teses de Lassalle
6
, Marx pergunta (2012, p
. 27): “
As
relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário,
são as relações jurídicas que derivam das r
elações econômicas?” Como a
pergunta tem a função retórica de sustentar a polêmica, M
arx não oferece,
neste texto, a resposta que se encontra n
’
O Capital
, onde ele arma que
para a troca de mercadorias,
[...] é necessário que os seus guardiões se relacionem entr
e si como
pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um,
somente de acordo com a vontade do outr
o, portanto cada um
apenas mediante um ato de vontade comum à ambos, se aproprie da
mercadoria alheia enquanto aliena a própria. E
les devem, portanto,
reconhecer-se recipr
ocamente como proprietários privados. Essa
relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente
ou não, é uma relação de vontade, em que se r
eete a situação
econômica. (MARX, 1983, p. 79).
É notável o uso que Marx faz do seu conhecimento da teoria
do direito para a análise das relações econômicas, mas não no sentido
estritamente normativo, como desenvolvo em seguida. N
essa relação de
vontade consiste o direito como faculdade de obrigar (KANT
, 2005), ou
seja, uma relação jurídica como correspondência entr
e o direito de um e
a obrigação de outro quanto a um interesse material sobr
e o qual incide o
direito subjetivo (WEBER, 1999), enquanto faculdade subjetiva, a vontade
livre que se põe num objeto externo, conforme um sistema normativo
(KELSEN, 1974), esquema que supõe uma autoridade mediadora com
poder coercitivo: o Estado
.
P
ara K
elsen, na teoria pura do direito o sistema normativo tem
como categoria central
Em 1875 realizou-se na cidade de Gotha o congr
esso de unicação da Associação Geral dos
T
rabalhadores
Alemães e o P
artido Social-Democrata dos
T
rabalhadores, fortemente inuenciado pelas teses de Lassalle, contra
as quais Marx escreve a
C
rítica do progr
ama de Gotha
.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
128
[...] o conceito de pessoa como a personicação de um complexo
de normas jurídicas, a reduzir o dever ao dir
eito subjetivo (em
sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a uma
determinada conduta de um indivíduo e ao tornar a execução de
sanção dependente da acção judicial a tal m dirigida; quer dizer:
reconduzindo o chamado direito em sentido subjetiv
o ao Direito
objetivo. (KELSEN, 1974, p
. 265).
P
ara Almeida (2013, p
. 234) “
a reexão losóca atual sobre a
pessoa
acentua a visão da
pessoa
não como algo permanente e imutável,
mas como um ser em contínua transformação, portanto, incompleto,
inacabado, evolutivo, isto é, mutável, pr
opriamente
”, “
um contínuo devir”
(COMP
ARA
T
O
7
apud ALMEIDA, 2013)
.
Ainda que a losoa atual
tenha incorporado ao conceito de pessoa a noção de inacabamento, de
movimento de autoaperfeiçoamento, seu núcleo básico continua sendo
[...] aquele sujeito a quem se podem imputar suas próprias ações. Em
Kant, o homem possui um valor absoluto que ele detém em vista de
sua
pessoa
; enquanto ser racional e, como tal, a
pessoa
é entendida como
sujeito autônomo que age segundo a determinação de vontade, não
por leis da natureza, mas consoante aos ditames da própria razão pura
e também da razão prática, o que lhe possibilita ser livre. (ALMEIDA,
2013, p. 231, grifo do autor).
Segundo este conceito, o ser da pessoa é “
em si mesmo
”, anterior
e independente de qualquer relação com a natureza e com o mundo dos
homens, por isso dependente de uma ontologia metafísica que mantém
forte anidade teológica. A crítica desta ontologia se dirige menos a
esta anidade teológica que à pretensão de singularidade fundada “
em
si mesma
”, pois isto supõe indivíduos que, enquanto tais, nada devem
da sua constituição aos outros indivíduos com os quais se relacionam,
ou seja, um indivíduo abstraído da sociedade a que pertence, ainda que
se lhe agregue as circunstâncias. Esta concepção sustenta a r
epresentação
ideológica da sociedade como um agregado de indivíduos, além de
atender à demanda subjetiva dos indivíduos de singularizar-se, ainda que
COMP
ARA
TO, F
abio Konder
.
A afrmação histórica dos direitos humanos.
São P
aulo: S
araiva,2005.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
129
na experiência cotidiana das nossas comunicações costumemos inverter
esta representação nos r
eferindo, implícita ou explicitamente, aos outros
indivíduos como membros dos mais diversos coletivos (do clube da
esquina à nação) como um pertencimento que importa para o modo
como nos relacionamos com eles.
A crítica do direito de M
arx opõe a este conceito de “
pessoa como
a personicação de um complexo de normas jurídicas
” o de indivíduo como
personicação de categorias econômicas, como esclarece a continuação da
sua análise da troca:
As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como r
epresentantes de
mercadorias e, por isso, como possuidores de mercadorias.
V
eremos no
curso do desenvolvimento, em geral, que os personagens econômicos
encarnados pelas pessoas nada mais são que as personicações das
relações econômicas, como portadores das quais elas se defrontam.
(MARX, 1983, p. 80).
P
ara K
elsen (1974, p. 155) em M
arx
[...] o Direito não seria um sistema de
normas, mas um agregado de
relações econômicas nas quais se realiza a exploração dos dominados
pela classe dominante. Como um sistema de exploração, tem de ter
carácter coactivo, quer dizer: tem de estar essencialmente ligado ao
aparelho de coacção do Estado
. A sociedade sem classe e sem exploração
do comunismo é, por isso, uma sociedade sem Estado e sem direito
.
8
Apesar dos equívocos dessa crítica, ela adquiriu for
os de
plausibilidade na literatura, talvez por se assentar na noção de sistema
de exploração, que ocupa um lugar central na teoria social de Marx.
P
asukanis ofer
ece uma interpretação alternativa consistente ao observar
que “
A dogmática jurídica esquece a [esta] sucessão histórica e começa pelo
resultado acabado, pelas normas abstratas pelas quais o Estado preenche,
por assim dizer
, todo o espaço social, ao conferir propriedades jurídicas
a todas as ações que se realizam
” (P
ASUKANIS, 1989, p
. 64) páginas à
frente se encontra um complemento para esta crítica:
Cf. KELSEN,
e Communist eory of Law
, p. 2 e ss.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
130
O escravo é totalmente subordinado ao seu senhor e é pr
ecisamente
por esta razão que esta relação de exploração não necessita de nenhuma
elaboração jurídica particular
. O trabalhador assalariado, ao contrário,
surge no mercado como livre vendedor de sua for
ça de trabalho
9
e é
por isso que a relação de exploração capitalista se mediatiza sob a forma
jurídica de contrato (P
ASUKANIS, 1989, p. 82).
Escravo e trabalhador assalariado são categorias simultaneamente
econômicas e jurídicas; o primeiro é propriedade, o segundo, proprietário
de si mesmo.
São essas r
elações sociais de produção (comunitárias, servis,
escravocratas e assalariadas) que Marx considera a base das r
elações
jurídicas, porque é conforme o lugar ocupado nelas pelo indivíduo que
se considera legítima ou não sua postulação de direito; daí que o dir
eito
enquanto sistema ideológico normativo seja uma repr
esentação abstrata
dessas relações, ou, como arma P
asukanis (1989, p. 91), “Em r
ealidade, a
categoria sujeito de direito é evidentemente abstraída do ato de troca que
ocorre no mercado
.
”
Este postulado de P
ashukanis mer
eceu da parte de P
oulantzas
(1969, p. 136) a critica de que
[...] el derecho privado consiste en un or
den de relaciones sociales
imitado de las relaciones de los poseedores de mer
cancías. Se asemeja
a una concepción puramente
instrumentalista
de las superestructuras,
que ve en ellas un elemento de la estructura social directamente
determinado por la base económica, de la que se limita a seguir sus
meandros y caminos, más o menos elmente, como simple apéndice.
Alternativamente, P
oulantzas (1969, p. 158) arma que as “[...]
características del derecho moderno sólo pueden ser cientícamente
descifradas a partir de las “
relaciones de producción
” capitalistas en el estricto
sentido
”; denição segundo a qual
Como Kelsen toma por objeto a abstração (a vontade livre separada da força de trabalho), ele não pode
compreender o peso das relações econômicas capitalistas, baseadas na mercantilização da for
ça de trabalho, para
a forma jurídica.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
131
[...] las
relaciones de pr
oducción
consisten en general en
formas de
combinación
entre ciertos elementos constituidos por el
tr
abajador
(el productor directo), los
medios de producción
(objetos y medios
de trabajo), y el
no-tr
abajador
que se apropia del trabajo excedente
(POULANTZAS, 1969, p. 151, grifo do autor).
Sendo as r
elações de produção capitalistas caracterizadas pela
propriedade jurídica dos meios de produção pelo capitalista (o não-
trabalhador) e a apropriação real pelo trabalhador
.
A crítica de P
oulantzas tem uma falha semântica e uma teórica.
A semântica consiste em substituir o postulado de “
categoria sujeito de
direito abstraída do ato da troca
” pela de “
ordem de relações sociais imitada
das relações entre possuidor
es de mercadorias
”, o que sustenta a suposição
de uma concepção puramente instrumental das superestruturas. A teórica:
[...] o processo do valor de troca que a circulação desenv
olve, não só
respeita a liberdade e a igualdade: ele pr
óprio as criam e lhes serve
de base real. Como ideias abstratas são expressões idealizadas das
suas diversas fases; o seu desenvolvimento jurídico, político e social
é apenas a sua reprodução noutros planos. Aliás, esta armação foi
historicamente vericada. Esta trindade – propriedade, liber
dade e
igualdade – foi em primeiro lugar formulada teoricamente, nesta base,
pelos economistas italianos, ingleses e franceses dos séculos XVII e
XVIII; mas não só: estas três entidades só foram realizadas na moderna
sociedade burguesa (MARX, 1971, p. 293).
Ora, justamente porque “
as relações de produção capitalistas
se caracterizam pela propriedade jurídica dos meios de produção pelo
capitalista (o não-trabalhador) e a apropriação real pelo trabalhador
” no
processo produtivo, como consequência da separação dos pr
odutores
diretos dos meios de produção, é que tal pr
ocesso tem como pressuposto
a esfera da circulação, onde trabalhador e capitalista se defrontam como
possuidores de mercadoria. Clar
o, o processo produtivo também é
pressuposto da esfera da circulação, mas isto signica tão-só que no modo
de produção capitalista, a estrutura econômica é constituída pela unidade
dialética de ambas as esferas: da produção e da circulação
. Assinale-se
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
132
que também P
ashukanis não explora essa unidade, como aqui se pr
ocura
fazer; unidade que ajuda a explicar porque apenas no capitalismo o dir
eito
adquire plena vigência (a relação jurídica – no sentido empr
egado por Marx
– coincide com o sistema ideológico normativo), uma vez que a separação
dos produtores dir
etos dos meios de produção permitiu estender-lhes o
estatuto de sujeito de direito
.
Como assinala Marx, este estatuto jurídico liberou o produtor
direto do jugo do senhor e, simultaneamente, o acorrentou à escravidão
assalariada, na medida em que a liberdade jurídica, para o produtor dir
eto,
consiste em pôr-se à disposição da vontade do capitalista (e pôr-se à
disposição da vontade de outro é a negação da pr
ópria liberdade, ou seja,
uma contradição) porque seu atributo subjetivo capacidade de trabalho
não tem valor de uso para si mesmo, o que constitui uma heteronomia
material (PINHEIR
O, 2015).
Esta heteronomia consiste numa abstração na gura do próprio
indivíduo trabalhador
, ou seja, na separação entre a
pessoa
que existe
nele, tutelada pelo Estado, e sua capacidade de trabalho, regulada pelo
mercado, cujo preço
10
de utilização depende da vontade de outro
. Daí
por que o princípio da dignidade e a tutela do direito do trabalho viv
am
em permanente conito, pois são regidos por determinações distintas que
não encontram base material de conciliação, ou seja, uma determinação
comum. A única saída é a fuga para frente, largamente utilizada pelo
pensamento liberal, que consiste em formular nov
os conceitos ideológicos,
submetê-los à experimentação do ordenamento institucional e do aparato
administrativo do Estado até que a experiência os torne obsoletos e o ciclo
recomece pela formulação de no
vos conceitos ideológicos.
o
Direit
o
Dos
ProDut
ores
N
a seção anterior desenvolvi os elementos gerais de uma crítica
dos direitos civis como direito da pessoa, o que permite agora desenv
olver
10
Não é ocioso assinalar que, em M
arx, preço é a expressão da oferta e da procura, diferente de valor
, que
corresponde ao tempo médio socialmente necessário para a produção da mercadoria (for
ça de trabalho inclusa),
razão pela qual as mercadorias são vendidas abaixo ou acima do seu valor
, o que a economia liberal não pode
explicar porque trata ambos os conceitos como sinônimos.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
133
uma análise prospectiva dos dir
eitos civis como direitos dos produtor
es,
conforme a tese de Marx acima mencionada. Como visto anteriormente,
o conceito de pessoa como a capacidade de agir racionalmente conforme a
vontade promo
ve uma dupla abstração: abstrai o indivíduo da sociedade e
a vontade do corpo que a encarna.
A ideologia jurídica tem dois fortes apelos enquanto ideologia
11
que
interpela os indivíduos como pessoas, sujeitos de direito, ambos contidos
no próprio conceito de
pessoa
: o humanismo, que sustenta o princípio da
dignidade humana que cada indivíduo reclama para si, e o teológico, que
mesmo cedendo espaço para que a noção de homem gure no centro do
sistema jurídico para sustentar a autonomia da vontade, mantém-se como
a referência última daquele conceito
.
V
ale lembrar que Kelsen colocou
neste lugar de referência última do sistema jurídico o conceito de norma
fundamental pressuposta, mas tal conceito não logrou alcançar o peso
de princípio, como o de dignidade humana, cuja ressonância religiosa é
evidente.
A tese de Marx do direito dos pr
odutores não menciona a
dignidade humana e a autonomia da vontade como princípios que regem
a relação entre particular
es: isto sugeriria que na substituição do conceito
de
pessoa
pelo de
produtor
es
esses princípios seriam descartados?
A meu ver
, a denição de comunismo como trabalho livre e
associado (MARX, 1980) permite responder negativamente a esta questão,
pois os termos “
trabalho livre e associado
” pressupõem um dever-ser que
implica tais princípios e, ao mesmo tempo, mantém uma relação de
anidade lógica com a tese do
direito dos pr
odutores
, na medida em que,
nesta expressão, o termo
produtor
es
rege o termo
dir
eito
, assim como na
expressão
direitos do homem
,
homem
rege
dir
eitos
.
T
odavia, a ausência das
expressões dignidade humana e autonomia do texto de M
arx exige uma
explicação, já que são legitimamente reclamados pelo indivíduo como
constitutivos da sua personalidade.
11
O primeiro uso do termo ideologia, nesta frase, tem o sentido de sistema, o segundo, de prática, ou
seja, o direito enquanto sistema que interpela os indivíduos (AL
THUSSER, 1996;
THERBORN,
1980) através das instituições estatais instando-os a atuar como sujeitos do sistema.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
134
N
a ver
dade, Marx desloca os princípios contidos em tais expressões
do lugar teórico de conceitos estruturantes de uma teoria ideológica do
humanismo (por que parte de uma ideia de homem) para o lugar de
objeto numa teoria cientíca do humanismo (porque busca conhecer o
homem real). Em seu pequeno artigo intitulado
N
ota complementar sobr
e
o
“
humanismo real
”, Althusser observa que na sexta
tese sobr
e F
euerbach
de que o “homem é o conjunto das relações sociais
” há uma inadequação
entre o conceito homem e sua denição, “
o conjunto das relações sociais
”.
Essa inadequação signica que,
[...] para encontrar a realidade à qual se faz alusão na busca pelo homem
real e não mais pelo homem abstrato, é preciso
passar à sociedade
e
dedicar-se à análise do conjunto das relações sociais. N
a expressão
humanismo-real, eu diria que o conceito “
real” é um conceito prático,
o equivalente de um
sinal
, de uma placa de sinalização, que indica qual
movimento se deve efetuar
, e em que direção, até onde é preciso
se
deslocar
para se achar não mais no céu da abstração, mas na terra real
(AL
THUSSER, 2015, p. 204, grifo do autor).
A análise empreendida aqui visa a esse deslocamento do homem
abstrato ao real, não por proclamação, como critica Althusser
, mas por se
apoiar nas relações que o constituem enquanto tal.
Se se toma em consideração que, na
Contribuição par
a a crítica da
economia política
, Marx (1971) aponta que há uma
difer
ença
entre a forma
real (relações sociais de pr
odução) e a ideal (forma jurídica) na sociedade
capitalista, o que ele faz, na
Crítica do pr
ogr
ama de Gotha,
é deslocar aqueles
princípios do lugar de categorias explicativas, portanto estruturantes da
forma jurídica, para o de objetivo a ser alcançado pela
equalização
da
relação jurídica (cuja base são as relações sociais de pr
odução) com a forma
jurídica (o direito enquanto sistema ideológico) na fase de transição da
sociedade comunista (MARX, 2012). Como assinala Losurdo (1990, p
.
41), “O conceito de
homem
e de
direitos do homem
é o r
esultado, não de
um processo de regr
essão à pureza de uma natureza mítica, mas de um
gigantesco progresso histórico
”. Antes, não havia direitos do homem, mas
dos gregos, dos romanos etc., quanto ao dir
eito das gentes, e dos chefes
de família, quanto aos direitos de cidadania, ex
cluindo-se as mulheres e
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
135
lhos, os escravos e servos. Entretanto, sob relações sociais de pr
odução
capitalistas, este
homem
protegido pelos
dir
eitos do homem
se identica
integralmente com a
pessoa
, abstraída sua potência (ESPINOSA, 1997),
como atributo subjetivo que o trabalhador põe à disposição do capitalista
e, como a potência é inseparável da vontade (núcleo de conceito de pessoa),
a não ser como abstração, o trabalhador mantém uma relação heterônoma
com o capitalista. Sem tomar em consideração essa abstração, é impossível
compreender porque a liber
dade jurídica, concebida como
liber
dade
natur
al
pela ciência jurídica, é escravidão assalariada para Marx. P
ortanto,
o que está no horizonte da análise de Marx é a substituição do conceito
abstrato de homem, considerado apenas como vontade, pelo concreto,
unidade da vontade e da potência. O uso do termo produtor se justica,
então, por permitir referir esta unidade constitutiva do humano, ao passo
que, paradoxalmente, o termo homem leva à abstração já criticada.
Esse deslocamento das categorias
dignidade da pessoa
e
autonomia
da vontade
leva ao abandono daquela ontologia metafísica acima criticada
e, portanto, à adoção de uma outra, oferecida por Balibar (1995, p
. 47):
A ideologia alemã
expõe uma “
ontologia da produção
” [...]. Mais
exatamente, é a produção de seus próprios meios de existência,
atividade simultaneamente individual e coletiva (transindividual), que
o transforma ao mesmo tempo que transforma irreversivelmente a
natureza, e que assim constitui “
a história
”.
N
uma alentada análise das
T
eses sobre F
euerbach
, Balibar retoma
essa concepção de ontologia: “[...] a losofía materialista “
temprana
” de
Marx estaba referida a una “
ontología de la relación
12
”, donde la relación
básica no es la “individualidad” sino la “
transindividualidad” (o un concepto
de lo individual que incluye siempre-ya sus r
elaciones –o dependencias—
con otros individuos)” (BALIBAR, 2016, p
. 201), acrescentando em nota
de rodapé tratar-se da “[...] posibilidad de ver “
relaciones
” y no “
términos
”
12
“De certa forma, sucede ao homem como à mercadoria (Marx se refer
e ao fato de que os objetos só adquirem
qualidade de mercadoria na relação de troca – JP). P
ois ele não vem ao mundo com um espelho, nem como
um lósofo chtiano: eu sou eu, o homem se espelha primeiro em outro homem. Só por meio da r
elação com
o homem P
aulo, como seu semelhante, reconhece-se o homem P
edro a si mesmo como homem. Com isso vale
para ele também o P
aulo, com pele e cabelos, em sua corporalidade paulínica, como forma de manifestação,
como forma de manifestação do gênero humano
” (MARX, 1988, p
. 57).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
136
o “
sustancias
”, como categorías primarias de la comprensión de lo real
”
(BALIBAR, 2016, p. 201).
P
or outras palavras, o que constitui os indivíduos humanos
enquanto tais não é um princípio ético qualquer tomado como ontológico,
mas as relações (que suportam diferentes éticas) nas quais estão inseridos,
porque o indivíduo isolado não existe, a não ser como abstração de um
teoria ideológica, porque o indivíduo pressupõe sempr
e-já relações com
outros indivíduos, das quais depende sua constituição enquanto indivíduo
membro de uma determinada comunidade, daí por que o indivíduo
manter com a comunidade inclusiva da qual é membro uma r
elação de
constituição/reprodução/transformação por
que ele é constituído enquanto
tal, na e pela comunidade, só então ele pode atuar para a reprodução ou
transformação da forma social (PINHEIR
O, 2014). Entre as relações dos
indivíduos entre si, tem primazia as relações sociais de pr
odução porque elas
articulam as categorias da produção econômica (trabalhador e capitalista
nas sociedades capitalistas), que atende à necessidade da reprodução
material da sociedade, à categoria jurídico-política sujeito de direito e à
forma de consciência requerida (individualista nas sociedades capitalistas),
ou seja, as relações sociais de produção consistem naquele mecanismo que
produz o efeito de sociedade
13
, porque é estruturante do conjunto das
relações sociais e, por isso, também o efeito de conhecimento
.
É neste ponto que o direito dos produtor
es se torna inteligível.
Deixo de lado as r
elações ser
vis e escravocratas, para examinar ex
clusivamente
as de assalariamento. Como dito anteriormente, estas r
elações constituem
para Marx (1971) a base da relação jurídica. Como toda r
elação é
constituída de posições (lugares) denidas uma por oposição à outra,
nas relações sociais de produção capitalistas estas posições são denidas
pelo lugar de proprietário ou não proprietário dos meios de pr
odução
(lugares de dominação e subor
dinação, respectivamente), o que especica
as relações sociais de produção capitalistas é a separação entr
e produtores
diretos e meio de produção sob o r
egime da propriedade privada capitalista
e o consequente assalariamento.
13
Cf. (AL
THUSSER, 1996).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
137
P
ara M
arx, os direitos postulados pelo indivíduo são relativos
a estes lugares, o que é claro para as div
ersas formas de ser
vidão e para
a escravidão, já que o servo é considerado parcialmente capaz de ato de
vontade e, o escravo, por ser propriedade, incapaz de ato de v
ontade;
entretanto, sob relações sociais de pr
odução capitalistas proprietários e não
proprietários dos meios de produção são considerados capazes de atos de
vontade, na medida em que os não proprietários (produtor
es diretos) foram
separados dos meios de produção
. A partir de então passam a circular no
mercado como vontades livr
es, oferecendo sua potência (força de trabalho)
para pro
ver a satisfação das suas necessidades.
A circulação dos produtor
es diretos (não-proprietários) como
vontade livre os iguala juridicamente aos pr
oprietários, ocultando através
do conceito de
pessoa
que a igualdade ideal está ancorada na desigualdade
material, o que, ironicamente, coloca intransponíveis limites para a plena
realização do ideal de dignidade e autonomia contido naquele conceito
.
Apesar disso, a ideologia jurídica goza de grande legitimidade justamente
porque ninguém está obrigado a nada senão em virtude da lei, mas, como
procurei demonstrar
, a contradição interna à ideologia jurídica (da qual
a lei é parte) não é evidente, embora opere necessariamente sabotando o
ideal de justiça que alardeia.
Seja como for
, a análise desenvolvida até aqui permite opor ao
direito da pessoa, personalidade jurídica abstrata, cuja vontade livr
e dirigida
a uma coisa exterior exclui todas as demais, núcleo do dir
eito civil burguês,
o direito do produtor
, cuja prerrogativa de postular dir
eito é determinada
pela unidade da vontade e da potência, o indivíduo concreto
. Qual a
diferença entre ambos no que se r
efere à propriedade? N
o direito da pessoa
o
dever-ser
é determinado por uma norma abstrata
14
, a propriedade aparece
como uma coisa exterior à qual incide apenas a vontade livre, como se tal
coisa simplesmente existisse, como se não fosse produzida pelo concurso
da potência de muitos sob relações sociais de produção determinadas que
14
P
or denição, toda norma é abstrata, na medida em que é uma determinação geral para aplicação a casos
particulares, por isso, não é esse tipo de abstração que se critica aqui, mas a origem abstrata, deduzida do
conceito ideológico de
pessoa
. É dessa ordem a lei, quando Rudolf v
on Ihering, em
T
eoria simplicada da posse
2002, arma que “[...] a segurança do possuidor não se baseia em se acharem em situação de excluír
em a ação
de pessoas estranhas (Savigny), mas em proibir a lei esta ação: apoia-se, pois, não num obstáculo
físico
, e sim em
um
jurídico
” (IHERING, 2002, p. 56).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
138
medeiam a apropriação individual
15
, porque distribui os indivíduos em
lugares relativ
os aos meios de produção
. É esta volição sem nenhuma outra
determinação que sua natureza abstrata que permite um querer ilimitado,
ou seja, a acumulação
ad innitum
, uma ética segundo a qual, “
do que
pertence a cada um, nada é devido aos demais
”, pois todos circulando no
mercado como vontade livr
e o limite é o imperativo “[...] age segundo uma
máxima que possa ao mesmo tempo ter valor de lei geral
16
” (KANT
, 2005,
p. 40).
Ora, esse princípio ético é pura abstração sem efetividade,
uma vez que o trabalho individual não é dotado da autossuciência nele
pressuposta, o que torna este princípio contraditório com o fato de o
trabalho individual se realizar em condições de socialização da produção,
incluindo-se todo o desenvolvimento técnico passado incorporado às
forças produtivas, a integração funcional e infraestrutural interna às
cadeias produtivas e entr
e elas e a forma de cooperação (ela mesma uma
força produtiva, assinala M
arx n
’
O Capital
) no processo pr
odutivo. D
essa
socialização da produção resulta que, o que pertence a cada um nada mais é
que a alíquota parte do trabalho social apropriada pelo indivíduo segundo
normas jurídicas emanadas da troca e, esta, por sua vez, limitada na forma
(obrigação de reciprocidade, operação de compra e v
enda, contrato) e na
extensão (a apropriação pela compra e venda e pelo contrato se estende a
tudo e todos no capitalismo) pelas relações sociais de produção que, nunca
é ocioso recor
dar
, são caracterizadas pela distribuição dos indivíduos em
lugares denidos pela propriedade dos meios de pr
odução.
Como no modo de produção capitalista o produto do trabalho
circula num mercado concorr
encial, cada um pode se apropriar de uma
alíquota parte do produto social conforme sua capacidade de competir
nesse mercado; capacidade determinada pela propriedade dos meios de
produção e pelo lugar ocupado no processo produtiv
o. Convém aduzir
15
Karl Marx trata dessa questão no capítulo
F
ormas que preceder
am a produção capitalista
, dos
Grundrisse
,
(MARX, 2011, p. 388), e em vários outros momentos da sua obra.
16
O problema não está na máxima em si, da qual é impossível discordar nesse nív
el de abstração, mas no fato
de que ela é socialmente irrealizável nas condições heterônomas das r
elações sociais de produção capitalistas.
Esta é a causa da prodigiosa produção ideológica para estimular os indivíduos a agirem praticamente conforme
essa máxima, objetivo nunca alcançado porque eles estão muito ocupados na busca de superação dos seus
concorrentes, além de a máxima em nada contribuir para este resultado visado
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
139
que, devido ao elevado grau de divisão social do trabalho no capitalismo, o
processo produtivo apr
esenta uma gama igualmente elevada de lugares neste
processo
. Assim, a apropriação através das operações de compra e venda e do
contrato, condicionada pelo lugar ocupado no processo produtivo, explica
tanto porque a concorrência entr
e indivíduos juridicamente atomizados tem
o efeito ideológico de fazer parecer a este indivíduo que “
do que pertence
a cada um, nada é devido aos demais
”, como o fato de que o capitalismo
produz incessantemente riqueza e miséria. Explica também porque no
certame capitalista, diferentemente do esportivo, a cada rodada o vencedor
acumula mais capacidade econômica, jurídica e política de competir
,
enquanto o perdedor vê esta sua capacidade diminuir
. Essa contradição
está subjacente aos sintomas sociais mórbidos contemporâneos: sofrimento
psicológico em massa, delinquência descontrolada, fundamentalismos,
ódio aos perdedor
es, deboche do sofrimento alheio etc.
Difer
entemente do direito da pessoa, no direito do pr
odutor
o
dever-ser
é determinado pelo “
trabalho livre e associado
”, desfaz-se a
ilusão do querer
ad innitum
, porque confr
onta o produtor com o fato da
produção, cuidadosamente deslocado para as brumas da facticidade pela
ciência jurídica, o mundo exterior à pessoa, a “
coisa em si”, incognoscível;
o “
trabalho livre e associado
”, ao contrário, torna transparente para o
produtor que a propriedade individual é determinada pela unidade
da vontade (determinada pela natureza ontológica das r
elações que o
produtor mantém com os demais produtor
es) e da potência (força de
trabalho), ou seja, cada um pode reivindicar como seu o equivalente ao seu
trabalho
17
porque é parte do esforço coletivo, assim como que as melhores
condições para a satisfação das necessidades individuais derivam da melhor
cooperação do “
trabalho livre e associado
”.
Destarte, diferentemente do direito subjetiv
o da pessoa, denido
abstratamente por normas permissivas, proibitivas
e imperativas
18
; o do
produtor baseado no “
trabalho livre e associado
” deve ser formal e material
17
N
esta fase, a diferença entre o que cada um recebe é r
elativa à diferença do trabalho que presta à
comunidade (talento, qualicação, capacidade de trabalho etc.), numa fase já mais desenvolvida se
aplica o lema “
de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade
”.
18
Cf. (WEBER, 1999.)
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
140
(concreto, portanto, expressão da sua unidade), o que implica que: 1) quem
declara um direito (normas permissivas), também se declara solidário à
obrigação
19
correspondente (normas imperativas), daí r
esulta; 2) por um
lado, que o objeto sobre o qual incide o dir
eito subjetivo guarda r
elação
de determinação pela unidade
20
entre vontade e capacidade (normas
proibitivas) e, por outro, que este dir
eito corresponde à obrigação de
contribuir para a constituição do fundo público e, por conseguinte, como
portador de direito individual; 3) é solidário no direito e na obrigação
coletiva de participação nas instituições reguladoras encarregadas de
exercer o poder gestor e coer
citivo que, neste contexto, só pode retirar
legitimidade da soberania reunida, pois tal poder de obrigar deriva da
condição igualitária de todos, em face dos meios de produção
21
. Dessa
forma concreta resulta que a r
elação solidária entre dir
eito e obrigação é o
objeto sobre o qual cada um e todos podem or
denar
, proibir ou permitir
aos outros, determinadas ações.
Marx pensa emancipação comunista,
[...] como um livre desenvolvimento da individualidade, tornada possível
pela
inversão
de uma subsunção: da subsunção dos indivíduos à divisão
social do trabalho passa-se à subsunção dos indivíduos livremente
associados, da sua divisão social do trabalho (nota suprimida). A livre
associação dos indivíduos é uma condição dessa inversão da subsunção
e, por consequência, a liberdade real assim conquistada para cada
um tem uma dimensão social e cria um nov
o tipo de relação entre a
liberdade de múltiplos indivíduos, em oposição à relação conitual das
liberdades pensadas pela tradição liberal. Então, M
arx deduz daí assim
a denição diferencial característica de seu conceito de liberdade: na
livre associação, “
o livre desenvolvimento de cada um é a condição do
desenvolvimento de todos
”
22
(TEXIER, 1990, p. 49).
19
No dir
eito burguês, os direitos e as obrigações são contrapostos, ou seja, o direito e a obrigação de um
excluem o direito e a obrigação de outro
e vice-versa. Nessa forma aqui pr
oposta, os direitos de um e outro não
se excluem porque a obrigação é solidária como condição de realização dos dir
eitos de todos, de modo que as
normas proibitivas visam à proteção dessa solidariedade entre dir
eito e obrigação.
20
Na ideologia jurídica
burguesa o querer é ilimitado devido à separação entre vontade e capacidade, mas essa
ideologia guarda um silêncio sepulcral sobre a heteronomia implícita nessa separação
.
21
Desenvolvi esta forma em Liberdade e igualdade: da abstração
à concreção.
Revista N
o
vos Rumos
, Marilia, v
.
53, n. 1, 1. sem. 2016.
22
MARX, K; ENGELS, F
.
Manifeste du P
ar
ti Communiste.
P
aris: édition bilíngue/Editions Sociales, 1972. p
. 89.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
141
Em vista dessa concepção, a tarefa da dogmática passa a ser a
dedução de um sistema normativo deste conceito de direito do pr
odutor
(o indivíduo concreto: unidade da vontade e da potência), que tem por
referência r
elações sociais de produção comunitárias.
N
o contexto de uma denição do direito dos produtor
es baseada
numa análise prospectiva, como aqui se pr
ocurou fazer
, e considerando que
tal direito não foge à regra de ser a expr
essão ideológica de relações sociais
de produção, neste caso, comunitárias; o conceito de tais relações pr
ecisa
ser pelo menos esboçado para servir de ancoragem à denição proposta.
P
ara formular esse esboço limito-me a duas r
eferências: 1) algumas
observações de Lenin sobre a organização da produção e 2) a experiência
venezuelana das Empresas de P
rodução Social e de controle operário na
Revolução Boliv
ariana. Assim, para esboçar o conceito de relações sociais
de produção comunitárias sugiro utilizar o mesmo critério de denição
das demais relações sociais de produção, ou seja, o de
lugar denido pela
propriedade dos meios de produção em tais r
elações, combinado com a
distribuição das faculdades do direito de propriedade (dir
eito de usar –
J
us utendi,
direito de gozar –
J
us fruendi,
direito de dispor –
J
us abutendi
,
direito de reivindicar –
r
ei vindicatio
)
23
, entre esses lugares segundo as
implicações lógicas da relação de solidariedade entre dir
eito e obrigação e
forma do direito subjetivo concr
eto, acima denido. P
ara isso, examino a
seguir as duas referências para extrair delas as indicações para o esboço do
conceito de relações sociais de produção comunitárias.
Lenin.
Em um texto de março de 1918, r
eetindo sobre as
tarefas imediatas do poder so
viético quatro meses após a consolidação da
vitória bolchevique, depois de examinar as condições econômicas do país,
o imperativo de elevar a produtividade do trabalho e, em consequência
desse exame, apresenta argumentos a favor da conjugação do empr
ego
dos especialistas, inclusive com remuneração melhor
, com o controle
operário
24
, Lenin (1977, p. 64-65) arma que
23
Cf. (DINIZ; DINIZ; REISSINGER, 2009).
24
“Devido ao fato de que não se tinha ainda denido claramente a maneira como deveriam ser administradas
as empresas soviéticas, admitiu-se, a título de transição para a dir
eção única, diversas combinações em matéria
de gestão da indústria: 1. U
m administrador
, escolhido entre os operários, assistido no plano técnico por
um engenheiro especialista; 2. U
m engenheiro especialista dirige praticamente a empresa, assistido por um
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
142
A tarefa que incumbe à República socialista pode ser formulada
brevemente assim: devemos intr
oduzir em toda a Rússia o sistema
T
aylor e a elevação cientíca, à americana, da produtividade do
trabalho, acompanhando da redução da jornada de trabalho, da
utilização de novos pr
ocedimentos de produção e de organização do
trabalho sem causar o menor dano à força de trabalho da população
trabalhadora. Ao contrário, a introdução do sistema
T
aylor
, orientado
corretamente pelos próprios trabalhador
es, se eles são sucientemente
conscientes, será o meio mais adequado de assegurar no futuro uma
redução considerável da jornada de trabalho obrigatória para o
conjunto da população trabalhadora, será o meio mais seguro para
realizarmos em um lapso de tempo relativ
amente breve uma tarefa
que se pode formular aproximadamente assim: seis horas de trabalho
físico por dia para cada cidadão adulto e quatro horas de trabalho de
administração do Estado.
A importância de citar Lenin aqui, ao contrário do que supõe a
vulgata, não é porque encontrar-se-ia nele um modelo acabado de socialismo,
mas porque ele insiste reiteradamente em duas pr
emissas metodológicas
(tanto teórica como prática) necessárias ao desenvolvimento do socialismo:
1) a análise histórica, do dado concreto, da experiência (tanto política
como econômica) dos trabalhadores sob o capitalismo na R
ússia e, 2) a
experiência de organização coletiva dos próprios trabalhador
es com vistas à
transição para o socialismo
25
. P
ortanto, não se trata de conceber idealmente
comissário escolhido entre os operários, gozando de direitos estendidos e assegurado se ocupar de todos os
aspectos da empresa; 3. U
m diretor especialista, assistido por um ou dois comunistas tendo o direito e o dev
er de
se ocupar de todos os setores da direção da fábrica, todavia sem ter o direito de suspender as decisões do dir
etor;
4. U
m pequeno coletivo unido a um responsável por todo o trabalho
. Essas formas de organização da direção
da indústria foram adotadas no 9.º Congresso do P
.C. (Cf. Le PCUS dans les résolutions et les décisions de ses
congrès, de ses conférences et de ses séances plenières du Comité Central, pr
emière parti, 1954, p. 483) p
. 538.
”
In
:
LÉNINE, V
.
Oeuvres choisies
. tome 3. nota 613.P
aris: Editions sociales, 1959.
25
Como é sabido, a luta de classes na Rússia soviética desembocou no aniquilamento dessa experiência de contr
ole
operário da produção que começa a se desenvolver com a tomada do poder e, basicamente, é interrompida com
a morte de Lenin. Citar seus pronunciamentos sobre a matéria visa tão-só indicar que essas duas premissas
nunca foram abandonadas por ele na análise do processo de substituição das relações sociais de produção
capitalistas por comunistas; apenas são acrescidas de problemas, diculdades e aprendizados decorr
entes da
própria luta pela consolidação do controle operário, o que aparece em pronunciamentos posterior
es, entre os
quais, indico alguns que me parecem bastante ilustrativos:
Discours au II
e
Congrès des Conseils E
conomique
, tome
28, decembre 1918;
L
’économie et le politique à l’époque de la dictatur
e du proletariat
, tome 30, nov
embre 1919;
Les tâches des syndicats
, tome 28, decembre 1918/janvier 1919;
P
rojet de progr
amme do P
.C.(b)R
,tome 29, 1919;
À nouveau les syndicats, la situation actuelle et les erreurs de
T
rotski et Boukharine, tome 32, janvier 1921;
Projet de thèses sur le r
ôle et les tâches des syndicats dans les conditions de la nouvelle polítique economique
, tome 42,
30 decembre 1921.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
143
um conceito de relações sociais de produção comunitárias para, em
seguida, criar articialmente a organização correspondente, à semelhança
do socialismo utópico, mas de construir tal conceito a partir da experiência
histórica e, à medida que esta avança, desenvolver teórica e praticamente o
conceito. O fato de Lenin cobrar do Comissariado do P
ovo para a J
ustiça
um direito civil adequado ao poder dos so
vietes indica que ele considerava
tal direito a norma que regeria a articulação entr
e as organizações populares
e o Estado ou, nos termos aqui propostos, a articulação do todo social
(econômico, jurídico-político e ideológico)
26
por nov
as relações sociais
de produção
. Enm, as regras que mediariam as r
elações de intercâmbio
econômico entre os indivíduos enquanto personicação das categorias
econômicas
27
, não mais entre capitalistas e trabalhadores assalariados,
mas
entre comunidade dos produtor
es e produtores individuais.
A Revolução Boliv
ariana
. Esta revolução, de caráter democrático-
popular
, apresenta diferentes fases (P
INHEIR
O, 2014), radicalizando-se
após o fracassado golpe de 11 de abril de 2002. U
m dos desdobramentos
deste golpe é que a partir de 2005, Chávez passa a associar as bandeiras do
bolivarianismo à luta pelo socialismo
28
. N
esta fase da Rev
olução Bolivariana,
os grupos e organizações que levantavam a bandeira socialista no campo do
chavismo avançam em suas lutas, inclusive conquistando a apro
vação de
uma legislação que busca assegurar efetividade ao conceito de democracia
participativa protagônica, constante da Constituição de 1999, no qual se
baseia tanto a reivindicação quanto a experiência de controle operário da
produção
. Assim, Álvarez e Rodríguez (2008, p
. 62) preconizam que
La organización del pueblo trabajador en Empresas de P
roducción
Socialista (EPS) será la clave para transformar el capitalismo r
entístico
venezolano – heredero después de más de un siglo de explotación
petrolera – en una economía popular y productiva, capaz de agr
egar
un creciente grado de transformación a las abundantes fuentes materias
primas y recursos energéticos que posee
V
enezuela, con el n de
sustituir de manera eciente el enorme volumen de importaciones que
26
Cf. (AL
THUSSER, 1996).
27
Cf. (MARX, 1988).
28
Diversas fontes na
V
enezuela conrmam a informação de que Chávez fala em socialismo pela primeira vez em
2005, marcando uma inexão em sua trajetória, de militar nacionalista à adesão ao socialismo. P
articularmente
me apoio em entrevista que z com Carlos Aquino, direto de impr
ensa do PCV em 12 de julho de 2012.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
144
aún se hace y diversicar la oferta exportable para hacer a la economía
nacional menos dependiente del ingreso petrolero
.
P
ara esta função transformadora,
La EPS es el instrumento para organizar al Pueblo trabajador con el
n de que asuma el control de la producción. Esta nueva forma de
organización tiene que ser el resultado de la participación activa y
protagónica de las comunidades y no puede dejarse ni en manos de
la burocracia ni mucho menos en manos del mercado
. (ÁL
V
AREZ;
R
ODRÍGUEZ, 2008, p. 105).
A Empresa de P
rodução Socialista (EPS) foi concebida no interior
do
Plan de Desarrollo E
conómico y Social de la N
ación 2007-2013
para
Establecer un modelo productivo socialista con el funcionamiento
de nuevas formas de generación, apropiación y distribución de los
excedentes económicos, y una nueva forma de distribución de la
renta petrolera, lo que será el de un avance sustancial en el cambio de
valores en el colectivo, en la forma de r
elacionarse los individuos con
los demás, con la comunidad, con la naturaleza y con los medios de
producción (CONSEJO FEDERAL DE GOBIERNO, 2006, p. 50).
Este plano também estabelecia um lugar para as EPS na cadeia
produtiva:
La empresa del Estado dedicada a la explotación de los hidrocarbur
os,
dada su extraordinaria capacidad de compra y contratación, alcanzará
un papel en el desarrollo de las EPS, delegando progresiv
amente
actividades productivas especícas en ellas, de acuer
do con el nivel de
complejidad que requieren las tar
eas y las capacidades desarrolladas en
el país y fomentando nuevas EPS que la conecten orgánicamente con
el tejido productivo nacional. Otras empr
esas del Estado productoras
de bienes básicos participarán de las características indicadas para la
empresa estatal de los hidrocarburos (CONSEJO FEDERAL DE
GOBIERNO, 2006, p. 53).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
145
P
ortanto, a previsão de inserção na cadeia produtiva nos termos
do
Plan de Desarrollo
e controle operário implicam no
vas r
elações sociais
de produção, ainda que seja necessário acrescentar que esta experiência não
alcançou o êxito esperado por vários motivos, entr
e os quais se destacam:
1) o domínio da cadeia produtiva pelo capital priv
ado e, 2) a falta de
experiência de gestão das comunidades onde se instalaram EPS.
U
m segundo tipo de experiência de controle operário são as
empresas recuperadas após o abandono pelo capitalista, sobr
etudo após
o
paro
, de dezembro de 2002 a abril de 2003, ou seja, o locaute
do
empresariado na tentativa fracassada de inviabilizar o go
verno Cháv
ez.
Dessa experiência de recuperar e gerir as empr
esas resultou uma assembleia,
quando
T
odos los trabajadores coincidieron en que el frente nacía con la
voluntad de ser una plataforma de lucha abierta a la incorporación
de todos los colectivos obreros implicados en la r
ecuperación de sus
empresas que coincidan en el objetivo de batallar por la extensión y
profundización de la cogestión revolucionaria en dir
ección al control y
gestión por parte de los trabajadores de la economía y del Estado como
vía ineludible para avanzar hacia el socialismo
29
(CORMENZANA,
2009, p. 124).
T
ambém neste caso, pesam os dois fatores que afetam a EPS,
acrescido das cisões no mo
vimento operário entre o sindicalismo como
instrumento de luta reivindicativa ou de organização para assumir a
direção da empresa. P
or m, um terceiro tipo de experiência resulta de
reivindicação do mo
vimento Control Obr
ero
30
, parcialmente incluída
na Ley Orgánica del
T
rabajo, de las
T
rabajadoras y los
T
rabajadores
que, no artigo n°149 cria a junta administradora especial, constituída
de operários com representação patr
onal, para assumir a gestão da
29
Assembleia de trabalhadores de diversas empresas r
ecuperadas, em 25 de fevereiro 2005, nas instalações da
Inveval – I
ndústria V
enezuelana de V
álvulas –, quando se criou a Frente R
evolucionario de
T
rabajadores de
Empresas Cogestionada y Ocupadas (F
reteco).
30
V
eja-se
Maniesto del Primero E
ncuentro por el Control Obr
ero
, realizado em 20, 21 e 22/02/2011.
Disponível em: http://www
.luchadeclases.org.ve/control-obrero-leftmenu-167/7013--maniesto-del-
i-encuentro-nacional-por-el-control-obrero-y-los-consejos-de-trabajadoras-y-trabajador
es-?tmpl=c
-
omponent&print=1&layout=default&page= Acesso em: 23 mar
. 2013.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
146
empresa em casos de falência fraudulenta e, nos artigos n°497 e n°498,
estabelece a criação de conselhos de trabalhadores e trabalhadoras como
órgãos do P
oder P
opular
31
.
P
ara efeito da r
eexão aqui proposta, de análise da forma
jurídica como expressão ideológica das r
elações sociais de produção,
convém advertir que essas experiências venezuelanas se desenvolvem no
ritmo da luta política pelo controle operário, portanto não têm forma
acabada, tampouco se estende uniformemente pelo país e não podem
ser consideradas consolidadas no estágio de desenvolvimento em que se
encontram, inclusive porque podem ser r
evertidas no caso de vitória da
oposição sobre o chavismo
. P
or isso, o objetivo de referi-las aqui é apenas
ilustrativo, não demonstrativo
Apesar dos limites da experiência so
viética, encerrada ainda
na década de 1920, e da venezuelana, em curso; ambas as experiências
oferecem indicações para uma denição de r
elações sociais de produção
comunitárias como uma relação entre duas categorias econômicas
com
personalidades jurídicas: uma coletiva e outra individual, respectiv
amente,
a comunidade
32
dos produtores e os pr
odutores individuais. Das quatro
faculdades da propriedade, no que se refer
e aos meios de produção, a de
dispor e a de reaver dev
em ser colocadas em primeiro plano, reservadas à
comunidade, por determinar funções, modalidades e extensão econômicas
potencialmente contidas nas faculdades do uso e gozo, reservadas aos
produtores r
esponsáveis pela operacionalização dos meios nos termos
da disposição estabelecida pela comunidade. O conceito de domínio
possessório, referido na primeira seção deste ensaio, corresponde ao
exercício dessas duas faculdades (uso e goz
o) pelos trabalhadores quanto
aos meios de produção, em conformidade com o exer
cício das faculdades
de dispor (
J
us abutendi
) e de reav
er (
rei vindictio
)
pela comunidade, o
31
Ley Orgánica del P
oder P
opular
, Artículo 2. El P
oder P
opular es el ejercicio pleno de la soberanía por
parte del pueblo en lo político, económico, social, cultural, ambiental, internacional, y en todo ámbito del
desenvolvimiento y desarrollo de la sociedad, a través de sus diversas y disímiles formas de organización, que
edican el Estado comunal.
32
Na experiência v
enezuelana a
Ley Orgánica de las Comunas
, apresenta dois níveis com personalidade jurídica:
o conselho comunal (
Ley Orgánica de los Consejos Comunales
) constitui a primeira instância do P
oder P
opular
e, a comuna, como unidade de um conjunto de conselhos comunais com jurisdição sobre um território
determinado, a segunda instância.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
147
que supõe, evidentemente, a organização desta em formas institucionais
democráticas (conselhos) para a tomada de decisão, que é o ato efetivo do
exercício das faculdades que lhe são pr
óprias.
N
o que se refer
e aos bens de consumo, o exercício das faculdades
do direito de propriedade também dev
e ser compreendido sob a chave da
transição de um modo de produção a outro
.
O sistema de apropriação capitalista surgido do modo de produção
capitalista, ou seja, da propriedade privada capitalista, é a primeira
negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho
próprio. M
as a produção capitalista produz, com a inexorabilidade de
um processo natural, sua própria negação (MARX, 1988, p
. 284).
Ou seja, a “
propriedade privada capitalista
”, assim designada
por ser uma relação mediadora do processo de acumulação, se opõe à
“
propriedade privada individual”, condição da autonomia do indivíduo
.
Esta negação da “
propriedade privada individual” pela “
propriedade privada
capitalista
” é devida ao fato de que no “
sistema de apropriação capitalista
”,
regido pelo dinheiro (o equiv
alente geral autonomizado em relação à
comunidade), o trabalho pessoal do produtor direto passa da condição
de meio de apropriação à de objeto de apropriação pelo capitalista, de
modo que para o produtor direto sua pr
opriedade (a força de trabalho)
sobre a qual ele ex
erce as faculdades de dispor e de reaver
, não exerce as de
uso e gozo
. Com isso, a possibilidade (e a medida) de o produtor direto
exercer as quatr
o faculdades da propriedade sobre um objeto qualquer de
consumo de seu interesse está condicionada ao uso e gozo da sua for
ça de
trabalho por um capitalista. Aqui reapar
ece, sob a forma de efeito jurídico,
a heteronomia material acima indicada.
Como sob as relações sociais de produção comunitárias, conforme
esboço oferecido acima, os produtor
es dispõem de si integralmente (unidade
da vontade e da potência) por ocuparem a mesma posição em r
elação
aos meios de produção, enquanto consumidor individual eles exer
cem
as quatro faculdades da propriedade sobr
e os objetos de consumo de seu
interesse, ex
ceto nos casos de produtos que, por sua natureza ecológica,
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
148
econômica e/ou social, a garantia do acesso a todos pode depender de
reservar as faculdades de dispor e de reaver à comunidade.
Lenin, às voltas com o desao de erigir um no
vo Estado, cobrava
um nov
o direito civil nestes termos:
O Comissariado para a J
ustiça ‘
se deixa levar pela corr
ente
’, [...]
ele deve lutar
contr
a
a corrente. N
ão tomar [...] a velha concepção
burguesa do direito civil no
vo, mas criar uma nova. [...], elaborar um
direito civil
novo
, uma atitude nova relativa aos contratos ‘
privados’
etc. N
ada reconhecemos de ‘
privado
’,
tudo
no domínio da economia
emerge do
direito público
33
, não do privado. (LENIN, 1977, p
. 486,
grifo do autor).
A nov
a dogmática que pode ser deduzida desses novos conceitos
responderia a Lenin quase um século depois.
r
eferênciAs
ALMEIDA, Rogério
T
. de. E
volução histórica do conceito de pessoa – enquanto
categoria ontológica.
Revista I
nterdisciplinar de Dir
eito - RID
,
V
alença, v
. 10, n. 1, 2013.
Disponível em: http://r
evistas.faa.edu.br/index.php/FDV/article/view/202. Acesso em:
22 jul. 2016.
AL
THUSSER, Louis. Ideologia e A
parelhos ideológicos do Estado.
In
: ŽIŽEC, Slavoj
(org.).
U
m Mapa da Ideologia
. São P
aulo: Contraponto, 1996. p. 105 - 140.
AL
THUSSER, Louis.
Lir
e Le Capital
. P
aris: PUF
, 1996.
AL
THUSSER, Louis.
P
or Marx
. Campinas: Editora da U
nicamp, 2015.
ÁL
V
AREZ, Víctor; R
ODRÍGUEZ, Davgla.
G
uía teórico-pr
áctica par
a la creación de
empresas de pr
oducción social
. Barquisimeto: F
undación La P
upila Insomne, 2008.
BALIBAR, Étienne.
A losoa de Marx
. Rio de J
aneiro: J
orge Zahar Editor
, 1995.
BALIBAR, Étienne. De la antr
opología losóca a la ontología social y viceversa: ¿Qué
hacer con la sexta tesis sobre F
euerbach?
Demar
caciones
, Chile, n. 4, p. 185-207, 2016.
Disponível em: http://r
evistademarcaciones.cl/numero-4. Acesso em: 04 jun. 2016.
33
Certamente essa formulação choca a sensibilidade ideológica burguesa, porque representaria a opressão do
indivíduo pelo Estado, mas o direito público a que se refere Lenin (que também tinha conhecimento jurídico),
não é a emanação de um Estado que se eleva acima das classes para representar como univ
ersal os interesses da
burguesia, antes é a emanação do “
trabalho livre e associado
” e, por que é livre e associado, as decisões que lhe
dizem respeito são públicas.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
149
BETTELHEIM, Charles.
A luta de classes na União So
viética
. Rio de J
aneiro: P
az e
T
erra, 1983. v
. 1.
CONSEJO FEDERAL DE GOBIERNO.
Plan de Desarrollo E
conómico y Social de la
N
ación 2007-2013
. Caracas, 2006.
CORMENZANA, P
ablo.
La batalla de I
nveval. La lucha por el control obr
ero
. M
adri:
Fundación F
rederico Engels, 2009.
DINIZ, Carine Silva; DINIZ, F
ernanda Paula; REISSINGER, S
imone.
N
ova teoria das
limitações ao direito de pr
opriedade
. Centro U
niversitário N
ewton P
aiva, 2009. M
imeo.
Disponível em: http://blog.newtonpaiva.br/dir
eito/wp-content/uploads/2012/08/
PDF-D15-05.pdf. A
cesso em: 17 mar
. 2017.
ENGELS, F
riedrich; KAUT
SKY
, Karl.
O socialismo jurídico
. São P
aulo: Ensaio, 1991.
ESPINOSA, Baruch de. É
tica. São P
aulo: Nov
a Cultural, 1997. (Coleção Os
P
ensadores).
GALASTRI, Leandro.
G
r
amsci, marxismo e revisionismo
. Campinas: Autores Associados,
2015.
GUEDES, N. A ponderação e as colisões de normas constitucionais.
Consultor J
urídico
,
São P
aulo, 10 de
z. 2012. Disponível em: http://www
.conjur
.com.br/2012-de
z-10/
constituicao-poder-ponderacao-colisoes-normas-constitucionais. Acesso em: 23 ago
.
2016.
IHERING, Rudolf von.
T
eoria simplicada da posse
. Bauru: Edipro, 2002.
JELINEK, Rochelle.
O princípio da função social da propriedade e sua r
epercussão sobr
e o
sistema do código civil
. PUCRS, 2006. Mimeo
. Disponível em: http://www
.mprs.mp.br/
media/areas/urbanistico/arquivos/r
ochelle.pdf. Acesso em: 07 ago
. 2016.
KANT
, Immanuel.
Doutrina do direito
. S
ão P
aulo: Ícone, 2005.
KELSEN, Hans.
T
eoria pura do dir
eito
. Coimbra: Armênio Amado Editor
, 1974.
LÉNINE, V
.
Oeuvres choisies
. P
aris: Editions sociales, 1959. t. 3.
LÉNINE, V
.
Sur les tâches du commissariat du peuple à la justice dans les conditions de la
nouvelle politique économique
: Œuvres. P
aris: Editions Sociales, 1977.
LOSURDO, Domenico
. L
’égalité et ses problèmes.
Actuel/Marx,
P
aris, PUF
, n. 8, p.
33-44, 1990.
MARX, Karl. A guerra civil na F
rança.
I
n: Obr
as Escolhidas
. v
. II. São P
aulo: Alfa-
ômega, 1980.
MARX, Karl.
Contribuição par
a a crítica da economia política
. Lisboa: Estampa, 1971.
MARX, Karl.
Crítica do progr
ama de Gotha
. São P
aulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl.
Grundrisse.
São P
aulo: Boitempo, 2011.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
150
MARX, Karl.
O capital
. São P
aulo: Nov
a Cultural, 1983. v
. 1.
MARX, Karl; ENGELS, F
riedrich.
Manifeste du P
arti Communiste.
Paris: E
ditions
Sociales, 1972.
MASCAR
O, Alisson.
Crítica da legalidade e do dir
eito br
asileiro
. São P
aulo: Quartier
Latin, 2008.
MENGER, Anton.
El der
echo civil y los pobr
es
. Granada: Editorial Comar
es, 1998.
NA
VES, Márcio.
A questão do dir
eito em Marx
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2014.
P
ASUKANIS, E. B.
A teoria ger
al do dir
eito e mar
xismo
. Rio de J
aneiro: Reno
var
, 1989.
PINHEIR
O, J
air
. A gura do indivíduo na teoria althusseriana.
Lutas Sociais
, S
ão P
aulo,
n. 33, p. 90-101, 2014.
PINHEIR
O, J
air
. A luta pelo socialismo no interior da Revolução Bolivariana.
In
:
PINHEIR
O, J.
Marx:
crise e transição – contribuições para o debate hoje. Marília:
Ocina U
niversitária; São P
aulo: Cultura Acadêmica, 2014. p
. 187-209.
PINHEIR
O, J
air
. A questão do direito em Lênin.
In
: DEO, A.; MAZZEO, A. C.; DEL
R
OIO, M. (org.).
Lênin:
teoria e prática revolucionária. M
arília: Ocina U
niversitária;
São P
aulo: Cultura Acadêmica, 2015. p. 223-243.
POULANTZAS, Nicos.
Hegemonía y dominación en el E
stado moderno
. Córdoba:
Ediciones P
asado y P
resente, 1969.
SENTENÇA proferida pelo
T
ribunal P
opular que julgou a Intervenção F
ederal na Cipla
e Interbra, Instalado em J
oinville, Santa Catarina, nos dias 4 e 5 de julho de 2008, p.
2. V
ersão resumida.
Blog
T
irem as mãos da CIPLA
. 17 jul. 2008. Disponív
el em: http://
tiremasmaosdacipla.blogspot.com/2008/07/conra-sentena-apro
vada-no-tribunal.html.
Acesso em: 11 out. 2017.
SIL
V
A, Simone da Conceição.
A atualidade da criminalização produzida sobr
e o
Mo
vimento dos
T
rabalhador
es Sem-teto – MTST
:
o caso do acampamento Chico Mendes.
Dissertação (M
estrado em Ciências Sociais) – F
aculdade de Filosoa e Ciências,
U
niversidade Estadual P
aulista, M
arília, 2013.
TEXIER, J
acques. Marx, penseur égalitaire?.
A
ctuel/Marx
, P
aris, PUF
, n.8, p. 45-66,
1990.
THERBORN, Göran.
e ideolog
y of power and the po
wer of ideolog
y
.
London: V
erso,
1980.
VENEZUELA.
Plan de Desarrolo Económico y Social de la N
ación 2007-2013.
Conselho
F
ederal de Gobierno
. Caracas: 2006.
WEBER, Max.
Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compr
eensiva. Brasília:
Editora U
nB, 1999. v
. 2.
P
Ar
te
iii
O C
T
:
N
P
E
153
A
URSS:
S E
Marcos D
el Roio
A
iMPlAnt
Ação
DA
no
v
A
econoMiA
PolíticA
O
objetivo deste capítulo é apenas o de indicar alguns aspectos
do dilema histórico posto à Rússia so
viética depois da “
guerra civil
” e do
fracasso da revolução socialista internacional. Essa situação, posta em
1921, agravada com o isolamento econômico e diplomático da URSS, foi
enfrentada por Lenin com a única perspectiva que lhe par
ecia factível que
era da via de um particular capitalismo monopolista de Estado, conforme
exposta sumariamente no texto
Sobr
e o cooper
ativismo
(LENIN, 1977).
F
rente à situação de destruição das forças pr
odutivas depois de mais de seis
anos de guerra ininterrupta, não restou muita alternativa à Rússia so
viética
do que procurar retomar o desenv
olvimento econômico social centrado em
um projeto de capitalismo monopolista de Estado, de base agroindustrial,
que cou conhecido como NEP (N
ov
a P
olítica Econômica). A concessão
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
154
para que os camponeses cassem livres para produzir como pr
eferissem e
que colocassem o excedente no mercado ajudou a amainar as diculdades
de abastecimento na cidade. O estímulo para a recomposição da pequena
indústria rural, por sua vez, amainou a diculdade de fornecimento de
bens ao campo.
P
ossibilitada aos camponeses a sua autodeterminação, houve
um nov
o orescimento das comunas agrárias (obscina), estimadas em
319 mil. Os bosques e os pastos eram utilizados em comum, mas a terra
agriculturável era de exploração familiar
. As comunas eram dirigidas por
representantes eleitos pela assembleia geral, mas a tradição sugeria que
apenas os chefes de família participassem, ainda que a lei estimulasse a
participação de jovens e mulher
es também (BOFF
A, 1976, p
. 261-262).
N
as cidades a urgência maior era a recomposição do parque
industrial e da própria classe operária.
T
ratava-se de um esforço de
recuperação econômica que tinha em vista também a recomposição da
aliança operário-camponesa, que permitira a vitória da revolução em 1917.
N
o entanto, eram inúmeras as contradições que perpassavam a
vida social da URSS. O conito entre cidade e campo era herança da época
feudal absolutista e os camponeses se recusavam a ser
em explorados pela
cidade. A cidade concebia que o campo tinha a obrigação de suprir as suas
necessidades sem obter vantagens. A existência do mercado possibilitou o
surgimento de uma nov
a pequena burguesia no campo e na cidade, com
interesses conitantes em relação ao pr
oletariado industrial e o campesinato
pobre. Era de se questionar se a estratégia da NEP
, da via do capitalismo
monopolista de Estado seria capaz de criar as condições para a efetiva
transição socialista ou se seria indispensável que se assumisse desde logo a
via socialista, o que implica interrogar sobre qual seria exatamente essa via.
Isso tudo com a consideração de que a URSS continuaria isolada, quando
não ameaçada de ser atacada militarmente.
Dentro do P
artido Comunista Russo (PCR), de maneira geral,
havia duas concepções de como deveria se desenrolar o processo de
aproximação do objetivo histórico do socialismo, como houv
era sido
proclamado na rev
olução de 1917. Havia uma vertente, dita de
esquerda,
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
155
que entendia ser indispensável oferecer prioridade a industrialização e
como implicação traria a imposição de alguma forma de tributo ao campo,
gravando o campesinato um pouco mais abastado
. N
essa concepção
a aliança prioritária deveria ser internacional, com o proletariado de
Alemanha e China, em primeiro lugar
, cando em segundo plano a questão
agrária e camponesa. Essa posição, defendida por
T
rotsky
, entendia que
a chamada NEP
, como manobra tática que era, estaria já superada desde
ns de 1923. O pressuposto era de que a rev
olução socialista retomaria
impulso a breve termo
.
A vertente mais a
direita
pensava que a penalização do campo,
mesmo que diferenciada, poria em risco a posição do campesinato como
sustentáculo essencial do Estado. O caminho julgado mais adequado para
que se resolvesse a decisiv
a questão da formação de um mercado interno
seria aquele de um desenvolvimento harmônico entre os difer
entes grupos
sociais, com a garantia da paz social. O desao seria então estabelecer a
relação ótima entre a demanda e a oferta de produtos, o que exigiria um
crescimento equilibrado entre a grande indústria pesada, a indústria lev
e e
a produção agrícola. N
a ver
dade, isso signicava privilegiar o respaldo do
campesinato médio ao plano de estreitar as relações entr
e cidade e campo,
espaços sociais estranhos um ao outro por séculos.
N
essa perspectiva, reconhecia-se a prioridade da questão agrária
e o papel revolucionário que o campesinato poderia desempenhar
, em
particular na zona colonial, e que a derrota da classe operária nos países
imperialistas exigiria uma estratégia de frente única das classes trabalhadoras
de prazo mais longo
. Essa posição teve em Bukhárin o mais convicto
defensor
, mas, apesar da defecção de Zino
viev e Kamanev em 1925, seguiu
até 1928 como a posição majoritária no P
artido Comunista Russo, quando
a crise social pro
vocou um realinhamento de forças sociais e políticas.
A classe operária russa, reduzida pelas guerras e em fase de
recomposição, tinha um nível de consciência que passav
a do senso comum
(ou espontâneo) para o econômico corporativo, erguendo-se muito
pouco ao grau da hegemonia (GRAMSCI, 1975, Quaderno 13, §17).
Assim que sua adesão ou respaldo ao PCR tinha limites bem claros. A
inserção do partido no campo era bastante restrita e isso podia ser notado
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
156
na composição dos soviets, onde tendia a se expr
essar a correlação de
forças entre as camadas sociais rurais. H
ouve um esforço de r
eativação dos
soviets durante o período da NEP
, já que essas instâncias eram o cerne
mesmo do projeto de Estado formulado por Lenin no decorrer do pr
ocesso
revolucionário, mas esse empenho apenas demonstr
ou a distância que
havia entre o partido e as massas.
De 1923 a 1927, o conito entre as duas visões do caminho a
ser trilhado pela URSS se desenrolou duramente. A derrota da chamada
‘
oposição unicada
’ (T
rotsky
, Zino
viev
, Kamanev) no último trimestre
de 1926, parecia selar de vez o pr
edomínio da estratégia elaborada
principalmente por Bukhárin, tanto na URSS, como na I
nternacional
Comunista (IC). J
á em julho, em reunião do Comitê Central (CC),
Zino
viev foi afastado do Conselho P
olítico e as teses da oposição foram
desconsideradas, o que estimulou a atividade fracionista com a discussão
não autorizada junto às bases partidárias. Em 13 de outubro, os principais
membros da oposição, incluindo
T
rotsky
, Zino
viev
, Kamanev e Piatakov
reconheceram a derrota na ação fracionista entr
e as bases e reconheceram
o princípio da unidade do partido.
A XV conferência do PCR foi aberta em 22 de outubro de 1926
e nesse mesmo dia o Comitê Central decidiu pela exclusão de
T
rotsky do
Conselho P
olítico e pela retirada de Zino
viev do cargo de representante
do partido no Comitê Executivo da I
nternacional Comunista, o que,
na prática, implicou a sua destituição de presidência da IC. As teses da
oposição foram fragorosamente derrotadas, tendo alcançado menos de 1%
em Leningrado e M
oscou (ELLENSTEIN, 1976, p. 229).
O VII P
lenun do Comitê Executivo da I
nternacional Comunista
(CEIC), realizou-se entr
e 22 de nov
embro e 16 de dezembro, tendo sido
o mesmo o resultado, com a oposição esmagada. B
ukhárin ofereceu um
relato minucioso sobre a situação internacional, em particular sobr
e
a chamada “
estabilização capitalista
”, na qual percebia uma decisiva
mudança técnica no processo produtivo, cuja decorr
ência era o aumento
da produtividade do trabalho
. N
a avaliação de Bukhárin o mo
vimento
comunista deveria se ocupar da preparação política, da organização e da
mobilização das massas. A orientação política deveria ser sempre a luta
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
157
pela conguração de uma frente única, que composta pelas mais div
ersas
organizações de massas, teria a direção disputada com os socialdemocratas
(AGOSTI, 1974, p
. 419).
N
a exposição de Bukhárin, uma grande atenção também foi dada
ao processo rev
olucionário em curso na China. O diagnóstico era que se
tratava de uma rev
olução nacional democrática burguesa que poderia
seguir um caminho não capitalista em caso de uma frente única de forças
proletárias, camponesas e pequeno-burguesas assumir a direção do pr
ocesso
(AGOSTI, 1974, p
. 418).
A apresentação da questão russa cou por conta de S
talin, o qual
armou não só a possibilidade da construção socialista na URSS a partir
de seus próprios recursos, apesar do cer
co imperialista, mas também que
a edicação socialista seria a mola propulsora mais importante a inspirar
a classe operária e os pov
os do mundo na luta pela emancipação. Essa
proposição deveu levar em consideração a derr
ota histórica do movimento
operário no Ocidente, a dita “
estabilização capitalista
”. A partir desse
momento a URSS é vista como a principal força propulsora da r
evolução
socialista internacional!
As críticas tecidas contra a antiga oposição unicada foram
bastante incisivas. S
talin acusou os opositores de várias máculas, como a
de não reconhecer a situação de derrota no O
cidente, de querer explorar a
massa camponesa ao modo de uma colônia, de se organizar como fração.
A esquerda se dividiu com a derrota: Z
ino
viev e Kamanev
capitularam, mas
T
rotski persistiu no papel de oposição de esquerda, a
qual se manifestou reorganizada em maio de 1927, quando do
VIII
plenun da CEIC. O andamento da revolução chinesa tornou-se o fulcr
o
das divergências e expos em profundidade como a discór
dia em relação à
economia política na URSS tinha forte incidência na política internacional
do movimento comunista.
J
á o ano de 1926 não havia sido auspicioso para a IC. As derrotas do
movimento operário na G
rã-B
retanha e P
olônia haviam indicado o avanço
da tendência conservadora. Na China, em mar
ço, o incidente prov
ocado
por Chiang-Kai-Shek, que fez prender dirigentes comunistas e assessor
es
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
158
da IC por alguns dias, foi o sinal de que haveria um deslocamento de forças
no interior do KMT (K
uomitang), organização que expressava a fr
ente
nacional antiimperialista. A ofensiva militar do Ex
ército comandado por
Chiang-Kai-Shek dividiu o mo
vimento nacional, mas ofereceu mais um
elemento de discórdia na dir
eção política do PCR, pois
T
rotsky e Z
inoviev
passaram a defender a saída dos comunistas do KMT
.
N
o VIII P
lenun, a oposição rearmou a sua posição de insistir na
saída do P
artido Comunista da China (PCCh) do KMT
, mas essa hipótese
foi rejeitada até mesmo pelos comunistas chineses. O grande dilema do
processo rev
olucionário girava em torno da garantia da amplitude da frente
nacional antiimperialista e o aprofundamento e radicalização da rev
olução
popular
, particularmente no campo e também da centralidade da cidade
ou do campo. O PCCh não conseguiu dar solução a esses pr
oblemas e
acabou derrotado, mas também a IC – e o PCR – a não se mostraram
capazes de contribuir
.
Em consonância com a sua teoria da
r
evolução permanente
, T
rotsky
entendia que a China era já plenamente capitalista e exigia que se partisse
para a organização do poder dual por meio de soviets contra o KMT
. Stalin
defendeu a continuidade da aliança com a “
esquerda
” do KMT e o reforço
das organizações de massa, mas lembrando que ao proletariado industrial
caberia o papel dirigente no processo rev
olucionário. A leitura que B
ukhárin
fazia da realidade internacional talvez fosse a mais condizente para um
melhor entendimento da situação chinesa. De fato, Bukhárin v
alorizava
sobremaneira o papel da massa camponesa no perscruto da transição
socialista na URSS e podia ver quão importante era a revolução agrária
em andamento na China. Entrementes também pensav
a ser necessária a
manutenção do gov
erno de Cantão, para onde a sede do governo nacional
do havia se mudado em 1º de janeiro de 1927.
Os meses iniciais de 1927 assistiram um forte avanço do
movimento r
evolucionário na cidade e no campo
. Em março, os comunistas
assumiram o poder em Xangai, mas foram eliminados pelas forças aliadas
ao Exér
cito N
acional de Chiang-Kai-Shek. N
o mês de maio, os comunistas
foram excluídos do go
verno nacional e expulsos do KMT
. Esse foi o
presságio para a forte repr
essão que se abateu sobre os comunistas nos
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
159
meses seguintes. N
um movimento desesperado, em dez
embro, o PCCh
promo
veu um levante em Cantão, que terminou em outro massacr
e.
Demorou ainda bastante tempo para se impor a orientação política que
reconhecia a centralidade do campesinato na luta rev
olucionária na China
(BOFF
A, 1976, p
. 328-331).
A revolução chinesa alimentou muito toda a polêmica que
transcorria no PCR e também na IC. A oposição de “
esquerda
” encontrava-
se em franca minoria e oferecia ampla motivação para ser qualicada de
fracionista, infração gravíssima segundo a concepção vigente na época. Em
reunião plenária realizada em outubr
o,
T
rotsky e Zino
viev foram excluídos
do CC. P
ouco antes, em setembro,
T
rotsky já havia sido afastado do
CEIC. A oposição de esquerda foi denitivamente batida no pr
ocesso do
XV congresso do PCR, realizado entr
e 2 e 19 de dezembro de 1927.
o
AcirrAMent
o
DA
l
ut
A
De
cl
Asses
e
A
DiferenciAçã
o
iDeol
ógicA
O XV congresso repr
esentou o apogeu da linha política da NEP
.
Derrotada a oposição de esquer
da, o congresso se mostrou apar
entemente
compacto. As difer
enças foram talvez de ênfase, mas logo se transformariam
em divergências sempre mais acentuadas. O princípio do planejamento
econômico social era consensual na direção do partido, mas o problema
era que o partido não tinha bastante capacidade de implantação do
plano, por falta de técnicos qualicados e por carência de consenso social,
notadamente no campo.
N
a ver
dade, a pressão social da classe operária e da direção
das
fábricas atraía maiores recursos para a indústria, ao modo de salários e
investimentos, distorcendo assim o plano apro
vado pela dir
eção política
do PCR. Do mesmo modo, as instâncias estatais e go
vernativas nem
sempre se empenhavam a fundo para o cumprimento do plano
. Essa era
a demonstração mais nítida do predomínio da consciência e da prática
econômico-corporativa no meio operário
. A partir dessa realidade a
constatação a ser feita é que dez anos depois da instauração do poder
popular na Rússia, a classe operária não se mostrava capaz de se constituir
em classe hegemônica, de classe efetivamente dirigente da vida social e
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
160
dotada de uma visão de mundo universalista (BETTELHEIN, 1983, p.
365-367).
Essa pressão econômico-corporativa da classe operária, por
suposto, tinha incidência no P
artido
. P
ode-se se dizer
, a título de forte
exemplo, que a passagem para a oposição de Z
inoviev e Kamanev
, em 1925,
foi resultado das reivindicações da base operária de Leningrado
.
T
rotsky
, por
sua vez, já trazia na sua concepção teórica a ideia do predomínio indiscutível
da classe operária sobre o campesinato
. Essa concepção teórica, de cunho
economicista, era, no entanto, mais ampla e difundida, na medida em que
estava presente no conjunto da perspectiv
a ideológica do P
artido, expressa
principalmente na visão da necessidade de incorporação de nov
as técnicas
produtivas como solução dos problemas.
O projeto apro
vado no XV congresso pr
evia a necessidade de um
plano quinquenal, um arranque industrial no país e o início da coletivização
das terras, mas com a condição de se garantir as justas proporções ou a
harmonia do desenvolvimento entre cidade e campo, entr
e indústria e
agricultura, entre indústria leve e pesada. O inimigo de classe eram os
kulaks (proprietários de terra que faziam uso de trabalho assalariado) e
o aliado principal o campesinato médio. O plano teria que ser exív
el,
sem cifras exatas de crescimento por setor: valeria mais o princípio das
proporções. P
or proposição de S
talin, pensava-se também na retomada da
“
democracia proletária
”, que implicava, por suposto, o fortalecimento dos
soviets (BOFF
A, 1976, p. 346).
A mais difícil tarefa seria mesmo a implantação dessas
determinações. Com a postura econômico-corporativa da classe operária,
o campesinato não poderia sentir-se persuadido pela via socialista. A
debilidade cultural e de meios produtivos do campesinato tinha fortes
implicações na produção, sempre sujeita a crises. A tendência dos
camponeses era a de reter as sementes e a produção, a m de obter alguma
segurança e também aumentar os preços, visando minorar a desigualdade
em relação à cidade.
O segundo semestre de 1927 assistira uma grande carestia
no
fornecimento de grãos para as cidades, assim se difundindo a ideia de
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
161
sabotagem da parte dos camponeses. Ao começar o novo ano, pela
primeira vez, foram adotadas “
medidas excepcionais
” em relação aos
kulaks, dos quais foram tomados empréstimos forçados, além de aumento
de impostos e conscos. Quando S
talin assumiu a condução das “
medidas
extraordinárias
” a situação se agravou e pode-se obser
var a ocorrência de
prisões, requisições e fechamento de mercados (A
GOSTI, 1974, p. 793).
A duras penas, o P
artido conseguia manter a propalada aliança
operário-camponesa, como imaginada por Bukhárin, diculdade acr
escida
pela débil presença do P
artido no campo. Certas ambiguidades resultadas
do XV Congresso começaram a se mostrar em leituras diferentes desde
logo. D
e fato, as medidas repressiv
as tomadas por S
talin eram congruentes
com certa possível apreciação do XV congresso e com as manifestações
públicas que passou a exarar
.
A questão dos ritmos, deixada em aberto no congresso, foi utilizada
por S
talin para defender a aceleração da industrialização e a formação em
grande escala de grandes cooperativas e fazendas estatais, cuja implicação
seria o m dos kulaks e também da pequena agricultura individual. A
questão era então a de aumentar a produção agrícola destinada à cidade e
mecanizar o campo, o que exigiria investimentos substanciais em ciência
e tecnologia. Investimentos oriundos do exterior
podiam ser descartados,
restando a possibilidade de o campesinato pagar um “
tributo
”. S
talin ainda
acusava a administração fabril de pouca perspicácia e de burocratismo
.
O processo de luta de classes que se evolvia na URSS não
poderia deixar de transpassar o P
artido e S
talin amadurecia a ideia de um
realinhamento de classes, de uma no
va correlação de for
ças que respaldasse
a aceleração da industrialização. Com a pr
omessa de novos inv
estimentos
na indústria, o apoio na classe operária poderia ser signicativo, a
expropriação dos kulaks e de parte do chamado campesinato médio traria
o apoio mais ativo do campesinato pobre (LE
WIN, 1988, 71-76).
F
oi imediata a discor
dância de Bukhárin e do grupo mais
próximo a ele. A violência utilizada contra os camponeses e a ameaça de
aumento na tributação colocava a aliança operário-camponesa em sério
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
162
risco, dizia Bukhárin, em particular com o campesinato médio, a chave do
bom andamento da NEP
.
O IX plenun da CEIC, ocorrido em fevereir
o de 1928, ignorou
o problema que apenas começava a se evidenciar na URSS e conrmou a
avaliação anterior de que se vivia um período reacionário na maior parte
do mundo, que aumentava o perigo de guerra. Os comunistas deveriam
se mostrar críticos da socialdemocracia porquanto era visível o seu
deslocamento à direita. Era a esquer
da socialdemocrata, todavia, a oferecer
maior perigo, pois poderia ainda desviar a classe operária da perspectiva
revolucionária. A
qui se abria a fresta para que viessem a ser notado o
possível risco de “
desvios de direita
” no movimento comunista.
Mas, por enquanto, a posição consolidada de B
ukhárin prevalecia
e foi conrmada na reunião de abril do CC do PCR. A crise dos grãos
permanecia e o descontentamento na classe operária parecia crescer
. Em
julho, em outra reunião do CC, S
talin defendeu a diferença de pr
eços em
desfavor dos camponeses ao modo do “
tributo
” a ser pago em benefício da
industrialização do país. Os aliados no campo deveriam ser os camponeses
pobres e suas organizações. Essa posição foi derrotada e foi apr
ovado um
reajuste no preço dos grãos, como que cedendo à pr
essão da agricultura.
Contudo, foi aumentado o número de fazendas coletivas, ainda que com a
previsível pobr
eza por conta de questões de falta de conhecimento técnico
e de maquinário.
O relativo acor
do na reunião de julho do CC, entr
e as duas
tendências agora mais claramente denidas, deveu-se em parte ao
momento, pois que em poucos dias teria início o VI congr
esso da IC.
N
o decorrer do encontro vieram à tona as div
ergências existentes no seio
do PCR e que essas divergências iam bem mais além do que pontos de
execução da política econômica. Eram, de no
vo, duas estratégias que se
confrontavam, mas, de no
vo, houve uma forma de compromisso
.
Bukhárin apr
esentou a sua interpretação da situação do
capitalismo. P
ara ele, havia a tendência de os países imperialistas
transformarem a sua economia com ino
vações técnicas e com no
vas
formas de gerenciamento do trabalho
. Os grandes monopólios adquiriam
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
163
capacidade de gerenciamento de eventuais crises e também de atrair a
“
aristocracia operária
” para sua base de apoio. U
ma possível situação
revolucionária seria possív
el apenas em caso de guerra, ou seja, de
aguçamento das contradições inter-imperialista
s.
A zona colonial, em particular a China, era vista ainda como
foco da luta revolucionaria naquele momento histórico, o que fazia v
er
no campesinato uma força social crucial. Esse cenário era importante para
o desenvolvimento da NEP
, como concebia Bukhárin. A harmonia e o
equilíbrio de interesses entr
e classe operária e campesinato, que pressupunha
um processo de industrialização mais lento, exigiam que a URSS pudesse
se desenvolver num ambiente pacíco
. Os comunistas deveriam, nessa
situação, aplicar a tática da frente única das massas populares, mas poderia
incluir
, conforme o caso, até instancias intermediárias da socialdemocracia
(AGOSTI, 1974, p
. 883-885).
A avaliação do grupo de S
talin (que agora já compunha uma nova
maioria) era muitíssimo diferente. S
egundo essa interpretação, o capitalismo
se encaminhava para uma gravíssima crise a qual poderia redundar numa
guerra contra a URSS. Essa crise também traria a tendência à radicalização
das massas e a retomada da situação r
evolucionária. N
o entanto, a burguesia,
para preservar a sua dominação investia na fascistização do Estado. A
fascistização do Estado teria ainda o respaldo da socialdemocracia, que
estaria então a se transformar em social fascismo.
O social fascismo nada mais era que a inserção da socialdemocracia
nas malhas do Estado burguês, algo que já acontecia havia décadas ao
menos na Alemanha. O social fascismo seria ademais, o inimigo principal
pelo fato de iludir as massas e retar
dar o processo de radicalização
revolucionária. Essa interpr
etação se adequava à estratégia do grupo
stalineano para desenvolver a URSS com maior rapidez. A exigência de
uma mais rápida industrialização, com ênfase na indústria pesada, era
aderente à necessidade de se investir na defesa do país diante do risco – que
poderia parecer iminente – de guerra. P
osto dessa forma, até a tributação
do campesinato parecia mais defensável (A
GOSTI, 1974, p. 885-887).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
164
o
fiM
Do
coMPr
oMisso
e
A
ofensiv
A
De
st
Alin
T
erminado o VI Congr
esso da IC, o Conselho S
uperior da
Economia N
acional, presidido por K
uib
ychev
, um aliado de Stalin, pr
opôs
uma nov
a versão do plano quinquenal, no qual o setor industrial seria
amplamente privilegiado com cerca de 1/3 dos investimentos, mas com
uma projeção de crescimento ao r
edor de 20%. Enquanto isso S
talin e
seus aliados continuavam na luta para ocupar as posições mais decisivas no
P
artido, no Go
verno, no sindicato, na imprensa.
V
ale enfatizar a questão dos
sindicatos, que segundo a lógica da NEP (de um capitalismo monopolista
de Estado) tocava defender os interesses dos trabalhador
es em termos de
condições de vida, de trabalho e de salário. A pr
oposta de Stalin modicou
drasticamente essa função: o sindicato passaria a ser um emulador da
produção, um transmissor de demandas administrativas oriundas dos órgãos
de planejamento econômico (COHEN, 1990, p. 335).
N
o nal de setembro, B
ukhárin publicou um derradeiro e longo
artigo sobre o projeto estratégico da NEP como pensado originalmente
por Lenin e desenvolvido segundo a dinâmica econômica e social do P
aís.
O artigo
N
otas de um economista
nem discutido foi e desqualicado de
imediato. B
ukhárin insistia que o conito social deveria ser resolvido
de acordo com as decisões do XV congr
esso, com investimentos feitos
numa justa proporção entr
e os setores econômicos, de modo que todos
crescessem, ainda que mais lentamente.
T
eria que ser assim porque a URSS
não contava com força de trabalho qualicada para a implantação imediata
e massiva de máquinas.
A aceleração da industrialização geraria problemas graves na
própria indústria, mas seria fatal para a agricultura, pois a drenagem de
recursos do campo agravaria a situação de pr
odução insuciente de grãos.
O mais grave, porém, seria a ruptura da aliança operário-camponesa que
havia fundado o Estado soviético
. Bukhárin toma de mira ob
viamente a
política que apregoava S
talin, agora fav
orável à industrialização acelerada,
porém indicava ser essa uma posição “
trotskista
” (BUKHÁRIN, 1980, p
.
175-194).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
165
A tese da tendência industrialista era que a prioridade da indústria
pesada em paralelo com a generalização de grandes cooperativas a serem
mecanizadas rapidamente resolveria o pr
oblema da produção agrícola, mas,
principalmente, acabaria com a resistência dos kulaks (a burguesia agrária)
ao poder estatal. De fato, desde 1927, pelo menos, havia uma crescente luta
de classes no campo, e do campo contra a cidade, com implicações graves
na cidade, na classe operária, que era a base de apoio essencial do PCR
e começava a mostrar-se bastante descontente e reticente. E
nm, havia
o perigo real do poder rev
olucionário se enfraquecer e mesmo sucumbir
.
M
esmo que talvez exagerado, o perigo externo era real e poderia encontrar
nos kulaks e nos antigos mencheviques e socialistas revolucionários uma
base de apoio (como haviam sido na “
guerra civil
” de 1918-1920).
T
odo o discurso e prática política de S
talin estiveram voltados
para a neutralização de inimigos supostos ou reais. A tática usada em nada
respeitou os princípios e métodos da democracia proletária do jeito que
era entendida essa expressão
. Em cerca de um ano, B
ukhárin e a tendência
que representav
a perdeu todas as principais posições de dir
eção política
e intelectual com que contava. N
ão sem razão, B
ukhárin começa acusar
S
talin com epítetos como “
déspota asiático
”.
N
a reunião de no
vembro do CC, a expr
essão “
desvios de direita
”
começa a ser usado de forma mais desabrida contra Bukhárin e seus
aliados. N
essa reunião, S
talin expõe de modo detalhado a compr
eensão
que amadurecera de uma linha política que se preocupav
a muito com a
defesa do Estado, defendia a industrialização acelerada e a coletivização da
terra e que por certo não era mais a NEP
.
A classe operária havia se rebelado contra a administração direta
das fábricas, mas o sindicato havia sido absorvido pela máquina produtiva
e agora o poder passava a se concentrar nas instâncias superiores de
administração, que são de fato a base de sustentação de S
talin. Com a
imposição dessa nov
a orientação, Stalin atrai um númer
o signicativo da
antiga oposição, que então apoiava
T
rotsky
, o qual, aliás, foi expulso da
URSS em janeiro de 1929 (BETHELHEIN, 1983, p
. 386-393).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
166
N
a ver
dade, é só então que Bukhárin assume de público que havia
uma fratura insanável no Conselho P
olítico do Comitê Central e passa
a defender a sua concepção teórica e estratégica do desenvolvimento da
URSS, em clara oposição àquela que agora propunha S
talin. N
a ver
dade,
a posição de Bukhárin era aquela apro
vada no XV Congr
esso do PCR, de
dezembro de 1927, e que agora, passado pouco mais de um ano, estava a
ponto de ser criminalizada. N
ote-se ainda que pelo menos desde 1927, já
na luta contra a oposição de
T
rotsky
, Zino
viev e outros, a OGPU começou
a ganhar foros de intervenção na vida do P
artido, algo que antes não
acontecia.
Desde a publicação do artigo
N
otas de um economista,
em
setembro de 1928, é muito difícil dizer que havia algum tipo de debate
de ideias no PCR, pois que a prevalecer eram mesmo acusações de parte a
parte. Bukhárin insistia que a segurança da URSS, motivo de preocupação
obsessiva, estaria mais bem garantida com a força da aliança operário-
camponesa e com o avanço do campesinato rev
olucionário na Ásia, do
que com uma industrialização forçada a expensas dos trabalhadores rurais.
Em m de janeiro, em r
eunião do Conselho P
olítico, Bukhárin,
R
ykov e
T
omsky apresentam uma Plataforma na qual a maioria era
acusada de ter descartado as decisões do XV congresso. D
izia que a ideia
de “
tributo
” a ser imposto, levaria a uma forma de “
exploração militar
feudal do campesinato
”. Os kolkoses eram a forma de organização do
campo mais desejável, mas deveria ocorr
er por consenso, não por coerção,
e em paralelo a uma revolução cultural, como havia sido a orientação
de Lenin. As críticas se estendem ao crescimento do Estado bur
ocrático
como que resultaria da coletivização forçada. E
ntendia que o mais correto
seria informar a diculdade da situação e observar as necessidades das
massas, a m de se identicar com as próprias massas, em vez do P
ar
tido
se ater a pequena política que o corroia internamente. (BETTELHEIN,
1983, p. 397-398).
Com o pedido de demissão do Conselho P
olítico da parte de
Bukhárin e
T
omsky
, os ataques contra os “
desvios de dir
eita
” só fazem
crescer e o embate decisivo cou para o plenun do Comitê Central e a
XVI Conferência do PCR, ambas as reuniões agendadas para abril. S
talin
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
167
defendeu então a tese de que a luta de classes passava por um agravamento,
que a tributação do campesinato era uma necessidade e que uma
redenição da aliança operário-camponesa deveria ocorr
er
. F
azia-se então
prioritária a implantação de uma nov
a base técnica na agricultura em vistas
a organização do trabalho coletivo
.
O problema (para o qual B
ukhárin chamava atenção) é que a
indústria não poderia produzir de imediato essa no
va base técnica e nem
a massa camponesa poderia absorver com tanta rapidez essa eventual nova
técnica, sem um processo de mudança cultural muito substancial. O ritmo
proposto para essa mudança implicaria (como implicou) uma enorme
desorganização da economia. N
a sua exposição inicial, S
talin apro
veitou
para criticar os opositores:
A desgraça do grupo de Bukhárin está no fato de não ver os no
vos
deslocamentos de classe e não compreende as no
vas tarefas do partido.
E exatamente porque não os compreende que, é constringido a arrastar-
se a reboque dos acontecimentos e a ceder diante das diculdades.
(ST
ALIN apud ELLENSTEIN, 1983, p, 247)
1
.
A resolução da XVI conferência r
earmou também algumas
decisões do XV congresso (dezembro de 1927), que simplesmente não
haviam sido implantadas. Chamava atenção para a necessidade de se lutar
contra o burocratismo, a transformação do aparelho de Estado, inclusiv
e
com a diminuição de seu custo. A
o mesmo tempo chamava atenção para a
necessidade da participação das massas na vida do P
artido e do controle a ser
observado em relação aos dirigentes. N
ada disso aconteceu, pelo contrário.
As decisões da Conferência tiveram r
espaldo da parte da classe operária
ocupada na indústria de metal-mecânica e da administração econômica. P
or
outro lado, o descontentamento e a tensão social, se ampliavam no campo
.
O campesinato pobre apoiou o ingresso nos kolkoses como tentativ
a de
sair da situação de miserabilidade, mas boa parte do campesinato médio se
aproximou dos kulaks do ponto de vista político e ideológico, antepondo
forte resistência a coletivização.
ST
ALIN, J.
Questioni del leninismo
. M
osca: Edizioni P
rogresso, [1948]. p
. 241.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
168
N
a IC, desde o m do VI Congr
esso, a discussão que se travava
era sobre a natureza do chamado “
terceiro período
” da crise do pós-guerra.
O relativo acor
do ocorrido no congresso estava r
ompido e a interpretação
de Bukhárin passou a ser sempr
e mais identicada como “
desvio de
direita
”. Os partidos comunistas foram conclamados a lutar contra esses
presumíveis “
desvios
”.
Com o X plenun do CEIC, realizado em julho de 1929,
qualquer manifestação de discordância em r
elação à posição que era de
S
talin no PCR e de älmann entre os comunistas alemães, foi vítima de
linchamento político e moral. N
enhuma divergência mais era aceitável. N
a
URSS, a NEP já não existia e na IC a política de frente única, que mesmo
acompanhada de muita contro
vérsia, já não existia a não ser em palavras.
A industrialização acelerada e a coletivização forçada haviam substituído
a NEP
, mesmo que Stalin dissesse que se havia ingr
essado apenas numa
segunda e última etapa da mesma política; a frente única – formalmente
preservada – foi na realidade substituída pelo combate prioritário ao social
fascismo,
i. é.
, a socialdemocracia, em par
ticular a de esquerda, e pela tática
da “
classe contra classe” B
ukhárin foi excluído do CEIC.
N
os meses seguintes, o combate aos “
desvios de direita
” continuou
com grande agressividade, ao mesmo tempo em que os problemas de
insuciência na colheita (que se arrastava desde 1927), de rev
oltas no campo,
de racionamento na cidade se evidenciavam. N
a reunião de no
vembro do
CC, Bukhárin é ex
cluído do Conselho P
olítico, mas os três expoentes da
vertente de direita – Bukhárin, Riko
v e
T
omsky – fazem “
autocrítica
” alguns
dias depois, o que signicou a completa capitulação. Agora o contr
ole do
PCR pelo grupo de Stalin era completo, assim como também era total o
domínio sobre as instâncias administrativas e organizativ
as das massas.
o
sociAlisMo
De
est
ADo
P
erto de se encerrar o ano de 1929, pode-se constatar que a URSS
havia sofrido uma mutação no seu processo de desenvolvimento orientado
por um projeto histórico de transição socialista. O grande problema que
se apresentava para a URSS era a de construir as condições materiais e
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
169
ideológicas para a transição socialista. Como o ponto de partida esteve
marcado por grande atraso, as condições materiais e ideológicas para
transição deveriam ainda ser construídas na forma social de um capitalismo
monopolista de Estado, dirigido pela classe operária e seu partido. Era essa
a concepção de Lenin, pelo menos.
Esse projeto mostrou-se inviável por uma v
ariedade de motivos,
mas o essencial foi que a classe operária não se mostrou capaz de estabelecer
a sua hegemonia, tendo permanecido no estágio econômico corporativo de
seu desenvolvimento
. Em parte, isso resultou da debilidade do P
ar
tido, a
sua frágil inserção na no
va classe operária que se formava. O resultado foi
o de não conseguir conduzir o campesinato pela via socialista por meio
da organização de cooperativas e da atualização da tradição comunal dos
trabalhadores do campo
. Diante da acirrada luta de classes, que perpassou
todas as instâncias sociais e do Estado desde 1927, a saída que se mostrou
viável foi a implantação de um socialismo de Estado
.
Como o capitalismo monopolista de Estado, também o
socialismo de Estado pode criar as condições para a transição socialista,
mas não é a transição propriamente dita. O capitalismo monopolista de
Estado pode e deve contar com a hegemonia da classe operária no processo
de construção das condições da transição socialista. Sem isso fracassará,
como fracassou na URSS. O socialismo de Estado pressupõe a ausência
da hegemonia da classe operária, pressupõe sim uma classe no estágio
econômico-corporativo, uma classe subalterna à direção do Estado
. U
m
Estado composto materialmente pela burocracia herdada do antigo Estado
feudal-absolutista e pela excr
escência da classe operária que se formou no
decorrer da NEP (DEL R
OIO, 2014).
N
o socialismo de Estado, o campesinato é submetido a uma
variante de servidão feudal e a classe operária produz mais valor de forma
absoluta e de forma relativa. Como não há mais pr
opriedade privada
dos meios de produção, nem mercado, o Estado r
ecolhe o excedente,
que é utilizado na sua reprodução, na r
eprodução da burocracia, no
fortalecimento das F
orças Armadas, nas despesas de go
verno (investimentos
em infra-estrutura e assistência social generalizada). O Estado se ocupa do
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
170
planejamento da economia política o que inclui também a distribuição
(desigual) do excedente entr
e o conjunto da cidadania.
T
rata-se de um Estado policial e militarizado, que pressiona a
burocracia do Estado e o próprio P
artido, o que gera uma instabilidade
permanente. O poder burocrático só se estabilizou em 1956, assim
como uma sociedade claramente hierárquica. Centrado no projeto de
desenvolvimento econômico planejado, o socialismo de Estado não pode
mesmo ultrapassar o estágio econômico-corporativo, não deu conta de
criar uma “
nova civilização
”. Isso sugere que a implantação do socialismo
de Estado na URSS tenha sido uma experiência particular daquilo que
G
ramsci chamou de revolução passiva, uma r
evolução/restauração, uma
forma de cesarismo (GRAMSCI, 1975). Sempr
e em aberto, a questão se
nessa revolução passiv
a prevaleceu mais o elemento r
evolução e cesarismo
progressiv
o ou o elemento restauração com cesarismo regr
essivo.
O projeto da NEP
, do capitalismo monopolista de Estado,
era mais compatível com a democracia proletária e com a condução
da transição socialista por conta da autonomia das instâncias sociais. A
questão pendente estava em garantir a derrota da burguesia agrária (kulacs)
que se formava nos interstícios da NEP
. O socialismo de Estado sufocou
a democracia proletária e centralizou o poder político
. Com isso retirou
qualquer instância de autonomia e auto-organização da classe operária
mantendo-a como classe subalterna.
A superação do socialismo de Estado, quando da crise dos anos 80,
exigiria a retomada da auto-atividade das massas e a reativ
ação dos soviets.
Mas não estavam os trabalhador
es prontos para isso depois de décadas se
subalternidade e passividade. Mais pro
vável seria a r
econversão para um
capitalismo monopolista de Estado, uma nov
a NEP
, com autonomização
das organizações sociais e também do mercado subterrâneo
. N
o entanto,
o cenário foi o pior possível: diante da pressão imperialista a URSS se
desintegrou e a Rússia conseguiu ser apenas um capitalismo monopolista
de Estado controlado por uma burguesia de estilo maoso, numa enorme
regressão histórica da qual ainda tenta se r
ecuperar
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
171
r
eferênciAs
AGOSTI, Aldo
.
La T
er
za
Internazionale:
storia documentária
.
Roma: Editori Riuniti,
1974. t. 2.
BETTELHEIN, Charles.
A luta de classes na União So
viética
.
Rio de J
aneiro: P
az e
T
erra, 1983. v
. 2.
BOFF
A, Giuseppe.
S
toria dell’U
nione So
vietica
.
Milão: M
ondadori Editore, 1976. v
. 1.
BUKHARIN, N
ikolaj.
Le vie della rivoluzione 1925/1936.
A cura di F
rancesco
Benvenuti. Roma: E
ditori Riuniti, 1980
.
COHEN, Stephen.
B
ukharin:
uma biograa política
.
Rio de J
aneiro: P
az e
T
erra, 1990.
DEL R
OIO, Marcos. A URSS e o socialismo de Estado
.
In
: PINHEIR
O, J
air (org.).
Marx:
crise e transição
.
Marília: Ocina U
niversitária; São P
aulo: Cultura Acadêmica,
2014. p. 13-50.
ELLENSTEIN, J
ean.
Storia dell
’URSS
.
Roma: Editor
e Riuniti, 1976. v
. 1.
GRAMSCI, Antonio.
Quaderni del Car
cere.
T
urim: Einaudi Editore, 1975. t. 3.
LENIN, Vladimir
.
Sobre las cooper
ativas
.
O
br
as escogidas.
T
omo XII
.
M
oscou: Editorial
P
rogreso, 1977.
LEWIN, M
oshe.
S
toria sociale dello stalinismo.
T
urim: Einaudi Editore, 1988.
173
L, NEP
,
Gianni F
r
esu
“
A Hidr
a da revolução já foi destruída nos seus adeptos e em boa medida
dos seus produtos; mas é pr
eciso ainda abafar a semente, no medo que possa
repr
oduzir-se sob outras formas. Os tr
onos legítimos for
am restabelecidos:
agor
a temos que recolocar no seu trono também a ciência legitima, aquela
ao serviço do supremo Deus, o nosso senhor
”, cuja verdade ca conrmada
por todo o universo
”
(
VON HALLER, 1963, p
. 75).
A
ssim um dos máximos teóricos da Restauração, Karl Ludwig
V
on Haller
, abria no 1816 a sua obra mais famosa (
A r
estaur
ação da
ciência política
) realizada com uma nalidade declarada: derrotar também
sobre o plano teórico as doutrinas rev
olucionárias já espancadas sobre
o plano político graças a rearmação dos princípios do absolutismo
dinástico nas cortes da Europa. E
mbora atropeladas, ele vislumbrava
o risco de uma possível no
va emergência e o difundir-se de uma nov
a
infecção insurrecional. Depois do 1815, a partir da obra monumental
de Hegel, a r
esistência losóca que tentou explicar racionalmente as
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
174
razões e as heranças da Rev
olução F
rancesa, teve um signicado que ia
além da luta política imediata. O mesmo acontece hoje, em referimento
aos acontecimentos do 1917, apresentados como a origem de cada mal e
desastre, geradores de lutos de um século ensanguentado, e r
esponsáveis de
cada fanatismo ideológico, fascismo incluído.
Lenin é, para muitos, o diabo do século XX, a gura que, mais
do que qualquer outro, teve a vontade de passar da simples interpr
etação
do mundo à sua transformação prática. N
ão lhe foi nunca per
doado esse
pecado original, germinado depois nas revoltas sociais que se seguiram,
por isso o seu nome (nas academias, nos jornais, no mundo da cultura
e também na esquerda) não pode ser nem evocado sem que se associe
a ele alguns adjetivos depreciativ
os. Entre a maioria dos historiador
es
do pensamento político contemporâneo, lósofos, sociólogos, cientistas
políticos e articulistas de todo tipo, está consolidada uma tendência à
representação sumária de Lenin como um “
doutrinário
” rígido e ortodoxo
.
N
o meu livro “Lenin leitor de M
arx
”, reconstruindo um comprido debate
losóco e político entre o nal do século XIX e os primeiros vinte
e quatro anos daquele século seguinte, tentei demonstrar os limites e a
instrumentalidade das interpretações prevalentes, mais pr
eocupadas em
emitir as próprias condenas nais, do que compreender atrav
és do estudo
quem foi o revolucionário russo
.
N
o interior desta leitura apocalíptica, que fez da história soviética
um bizarro manual de teratologia, se colocam as multíplices simplicações
sobre as complexas questões coligadas à tentativa de transição do feudalismo
à modernidade, em condições de extremas diculdades, deste grande e
complexo país. N
ão apenas no mundo liberal, mas também na esquer
da, a
principal acusação à Revolução de O
utubro (a sua traição) seria de pesquisar
na falta da extinção do Estado. P
elo contrário, o de multiplicar-se das
suas funções e atividades, necessárias a encaminhar esse inédito processo
histórico, seria a causa da natureza autoritária do socialismo histórico
. A
ideia de uma relação inversamente pr
oporcional entre a esfera da liber
dade
e a extensão das atividades do Estado, ca um dos mais duradouros
mitos do liberalismo, que tornam comum as concepções do “
governo
limitado
” de John Locke e às teorias sobr
e o totalitarismo de Hannah
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
175
Arendt. A condena prev
entiva ou póstuma à ambição de regulamentar a
vida social, intervir na economia e fornecer um endereço social à vida de
uma comunidade nacional, está diretamente entrelaçada com a mais ecaz
representação ideológica do pensamento liberal: a capacidade natural
de auto-regulamentação das leis do mercado (e o princípio da chamada
“
mão invisível”) teoricamente não compatível com a articial irrupção
ordenadora da política. Esclar
ecida esta ampla premissa introdutória, vou
apresentar umas das passagens mais debatidas desta transição da qual Lenin
foi teórico e artíce: a N
ova P
olítica Econômica (NEP), ou seja, a tentativa
de percorrer uma via nacional de desenv
olvimento socialista através uma
parcial liberalização econômica, depois da derrota das r
evoluções no
Ocidente em 1921.
U
m dos temas tipicamente
leninistas
que caracterizam a
inteira obra e militância de G
ramsci é a exigência política de traduzir
nacionalmente os princípios do materialismo histórico, ou seja, recusar
as armações genéricas e superciais sobre o capitalismo ou a rev
olução
em geral para construir uma nova teoria da transformação nas concr
etas
condições de cada formação econômico-social. Aquele conjunto de
questões que, nos
Cadernos do cárcer
e,
são denidos “
os elementos de
trincheiras e casamatas
”.
T
udo isso encontra uma conrmação na famosa
nota
Machiavelli
do
Caderno
14 onde o intelectual sardo arma que no
materialismo histórico - seja na concepção de Marx (a formulação do seu
fundador), seja naquela de Lenin (a denição do seu mais recente e grande
teórico) – a situação internacional vai ser considerada, antes de mais nada,
no seu aspecto nacional: “Realmente a r
elação «nacional» é o resultado
de uma combinação «original» única (em um certo sentido) que nessa
originalidade e unicidade deve ser compreendida e concebida se quer
emos
domina-la e dirigi-la (GRAMSCI, 1977, p. 1729).
A tarefa da “
classe internacional” era, portanto, “
estudar
exatamente a combinação de forças nacionais
” desenvolvendo-as
também em função das exigências internacionais. Se investigamos todo
o esforço entre 1902 e 1917 dos “
maioritários
” (os bolcheviques), escreve
G
ramsci, compreendemos como a originalidade deles fosse no “
depurar
o internacionalismo de cada elemento vago e puramente ideológico (no
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
176
sentido deteriorado) para dar-lhes um conteúdo de política realística
”
(GRAMSCI, 1977, p. 1729). A hegemonia se substancia das exigências
de caráter nacional, portanto, uma classe internacional, para conduzir
estratos sociais estritamente nacionais, precisa nacionalizar-se, porque (por
causa da derrota das rev
oluções no Ocidente) ainda não se objetivaram as
condições mundiais para o socialismo.
Imaginamos um homem que está escalando uma altíssima montanha,
inexplorada e cheia de penhascos. Supomos que,
depois
de ter trinfado
sobre as diculdades e problemas inauditos, ele se encontr
e numa
situação na qual avançar no percurso programado seja não apenas
complicado e perigoso, mas impossível. Ele está constrangido a
retornar atrás, redescer
, pesquisar outros caminhos, mesmo que sejam
mais longos, para ganhar o pico da montanha. A descida ca ainda
mais difícil e perigosa da ascensão: é mais fácil tropeçar
, não vê onde
colocar os pés, falta o entusiasmo inicial [...] (LENIN, 1967, p. 183).
Através desta metáfora alpinista, em fever
eiro do 1922, Lenin
explicava seja a necessidade da profunda virada pr
oduzida pela NEP
, seja as
grandes diculdades por ela encontrada na fase inicial dessa transição. N
o
mesmo relatório, Lenin explicou que o signicado da NEP cava na aliança
da economia socialista com a economia camponesa, indústria e campo,
necessária à sobrevivência de milhões de camponeses e, portanto, da mesma
revolução
. M
elhorar as condições do trabalho e de vida dos camponeses,
exigência fundamental que não precisava de demais tr
ocadilhos teóricos.
N
o último escrito antes de morrer (
M
elhor menos, mas melhor
,
2 de março de
1923) Lenin apresentou as enormes diculdades encontradas pela transição
socialista, com uma baixa produtividade do trabalho e uma capacidade
produtiva bem inferior daquela antes da guerra. S
em a radical superação
desses limites, o socialismo cava em puro ex
ercício teórico ou retórico,
porque, como escrev
eram Marx e Engels na
A ideologia alemã
(2007)
a
libertação do homem não pode acontecer na esfera da autoconsciência,
mas apenas no mundo real e através do empr
ego de métodos reais. S
egundo
Lenin, as potências ocidentais desfrutaram dessa condição desastrosa com
a tarefa de esmagar a R
ússia na miséria do seu passado pré-industrial, isto
é, de abafar a revolução por meio da guerra civil, constrangendo o seu po
vo
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
177
a morrer de fome. Antecipando as categorias de G
ramsci, Lenin descrev
e
um mundo dividido em duas esferas: o Ocidente capitalista e desenvolvido
e um Oriente colonial, explorado e dominado pelo primeiro (LENIN,
1967, p. 455).
A Revolução R
ussa, entre os vários
signicados, representou um
ponto de ruptura na história mundial exatamente pelo seu conteúdo e
empenho anticolonial, nisso, como explica Losurdo (2017) no último livro
dele, se encontra a essência da distância entre marxismo oriental e marxismo
ocidental depois de Marx. Assim, em continuidade com uma elaboração
que encontrou em
I
mperialismo etapa superior do capitalismo
a sua síntese
mais ecaz, Lenin sublinhou o elo indissolúvel entre luta a anticolonial
e o socialismo, colocando na mesma frente contra hegemônica oriental
as duas realidades. R
ússia, China, Índia, somavam a grande maioria da
população mundial, e, depois de 1917, entraram de forma inédita na luta
para a própria emancipação
.
T
odavia, as dinâmicas internacionais teriam
envolvido essas duas esferas numa no
va grande guerra imperialista com a
tarefa de dominar ainda mais os po
vos coloniais e destruir o Estado soviético
.
N
essa perspectiva dramática, Lenin levantou a necessidade de aumentar os
progressos da NEP
, rumo a construção de um Estado alicerçado na direção
operária e o consenso, a conança dos camponeses, não o terror deles,
eliminando cada desperdício, o burocratismo, a ineciência do apar
elho
estatal. P
ara entender o v
erdadeiro signicado da NEP é pr
eciso ampliar
o nosso discurso, além do contexto especíco, temos que considerar a
original interpretação da questão camponesa, que na visão da r
evolução de
Lenin assumia um valor estratégico, não apenas tático
.
Lenin, já no
O desenvolvimento do capitalismo na Rússia
de 1898
(1982), identica na reforma agrária a chave que consentiria ao pr
oletariado
russo de assumir a direção frente às exterminadas massas de camponeses sem
terra. É esse tipo de direção, ou hegemonia, que G
ramsci tem em mente
quando analisa a função positiva dos jacobinos na Rev
olução F
rancesa,
e aquela negativa do
P
artito d’Azione
no curso do chamado
Risorgimento
Italiano
, e é a esse tipo de dir
eção que G
ramsci faz menção quando indica
o papel que a classe operária italiana deveria exer
citar na solução da questão
meridional, que na I
tália signicava, naquele momento, a questão camponesa.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
178
Segundo Lenin, na R
ússia essa revolução não poderia ser
conduzida pela “burguesia vacilante e reacionária
”, já comprometida com
a aristocracia czarista e por isso, incapaz de desempenhar aquele papel de
propulsão política e social que teve no ocidente, mas pelo proletariado e
pelas massas camponesas sem-terra que, na Rússia, também nesse caso,
diferentemente do ocidente, podiam inclusive desempenhar um papel
progressista. O primeir
o pressuposto conceitual da rev
olução em Lenin
é que cada país poderia chegar ao socialismo por sua própria maneira,
de acordo com as suas peculiaridades econômicas, históricas e culturais.
Coerente com essa perspectiva, Lenin apr
esenta a conclusão de que o
percurso ao socialismo em seu país deveria ser extr
emamente diferente
daquele percorrido pelos países ocidentais. Em razão dessa diversidade,
Lenin desenvolve uma concepção da r
elação com as massas camponesas
que não é possível encontrar nos outros membros do POSDR (P
artido
Operário Social-democrata) e que, no curso
de 1917 (com a proposta
de uma reforma agrária não socialista), deixou estupefatos muitos
bolcheviques, apegados substancialmente ao velho programa. N
a concepção
socialdemocrata, de fato, às massas camponesas era atribuído um papel
revolucionário somente na fase democrático-burguesa da r
evolução e,
nesse caso, não havia um plano de ação denido e efetivo por parte do
partido operário. Contrariamente a esse entendimento, Lenin opera uma
primeira mudança entre 1901 e 1908, propondo inserir no pr
ograma
do partido revolucionário do proletariado as r
eivindicações da massa
camponesa, dentro da convicção de que somente colocando-as sob sua
direção, o proletariado russo teria alguma possibilidade de sucesso
1
. Essa
intuição sobre a questão camponesa e a política de alianças, que r
esultará
decisiva em 1917 e para o recebimento do marxismo nos países rurais do
extremo Oriente Asiático, da África e da América Latina, não
se encontra
em nenhuma outra elaboração marxista de seu tempo. P
osição essa que
a própria Rosa L
uxemburgo não per
de a ocasião de criticar
, porque dava
uma solução “
pequeno-burguesa
” à questão camponesa, em contraste com
os conceitos sacramentados do marxismo.
T
ambém a questão da NEP
Essa batalha de Lenin ganha uma síntese signicativa no texto
A questão agr
ária e os críticos de Marx,
1976. Os
primeiros nove capítulos foram escritos em 1901, os últimos em 1907. A publicação clandestina dos primeir
os
nove capítulos é de 1901, tendo sido r
epublicados em 1905 e 1907 até que foram integrados aos últimos
capítulos e reeditados em 1908.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
179
precisa ser considerada não apenas como medida de política econômica,
mas como tentativa hegemônica orientada para a aliança econômica e
social entre classe operária e camponeses: não simplesmente na força, mas
no consenso. N
ão só o domínio, mas a hegemonia.
N
o começo do 1922, o Estado soviético estav
a numa condição bem
complicada, na qual às destruições da P
rimeira Guerra M
undial se somavam
aquelas da guerra civil. N
esse contexto, Lenin levantou pela primeira vez a
exigência de encaminhar a Rússia por uma no
va política econômica no X
Congresso do P
artido Comunista Russo, em março de 1921. N
ov
amente,
na assembleia dos secretários das células do partido de M
oscou (9 de abril
1921) armou que a NEP era uma exigência não inevitável para sair da
miséria absoluta e superar o comunismo de guerra, uma fase que não foi
o fruto de uma escolha teórica, mas o resultado do estado das necessidades
reais. Os termos dessa pr
ofunda virada são expostos por Lenin no paneto
intitulado
Sobre o imposto em espécie
de maio 1921, no qual ele descrev
e as
diculdades da transição do capitalismo ao socialismo, numa sociedade na
qual ainda conviviam a economia patriarcal, a pequena produção mercantil,
o capitalismo privado, o capitalismo de Estado e o socialismo
.
O gov
erno adoptou medidas urgentes: 1) a abolição das requisições
forçadas e a substituição da imposta de natura; 2) reintr
odução, com
algumas limitações, a liberdade de comercio; 3) a legitimidade da existência
das empresas privadas; 4) a dev
olução de muitas empresas com menos de
10 operários aos velhos proprietários; 5) um no
vo regime de incentiv
os
salariais correspondentes à atividade desenvolvida; 7) os cidadãos so
viéticos
foram autorizados a ter empresas comerciais, criar contratos e escolher
prossões; 8) foi apro
vado o código agrário que oferecia aos camponeses
de explorar as leis do mercado, concedendo o direito de pr
opriedade,
sobretudo, o que melhorava as culturas. O
bviamente o camponês não
tinha o direito de vender nem de hipotecar
. J
untamente a essas reformas foi
avivado o programa para eletricar o país (ELLEINSTEIN, 1976, p
. 166),
uma operação fundamental por Lenin, cuja importância ca encarnada na
famosa equação “
comunismo = poder soviético + eletricação
”.
Lenin no X Congresso de março 1921, descr
eveu o comunismo
de guerra (1918-21) como uma caricatura do comunismo e armou a
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
180
necessidade de fazer uma dura autocrítica, era preciso abandonar qualquer
postura de abstracionismo utopista. N
esse sentido, numa carta de abril
1921 escrita para solicitar um programa de concessão para a exploração
dos poços de petróleo em Baku, podemos ler: “
não existe nada de mais
prejudicial e fatal para o comunismo da fanfarronice comunista: v
amos
consegui-lo sozinhos
” (LENIN, 2017, p
. 351). F
oram esses erros a
produzir um dos problemas maior
es do Estado soviético, o burocratismo
que tinha uma raiz na desorganização e a desagregação da economia
rural no comunismo de guerra (LENIN, 2017, p. 364-365). N
o seu
ensaio intitulado
Sobr
e o imposto em espécie,
ele apresenta essa medida
como essencial para corrigir os erros, evitando o desastre da miséria e da
carestia (LENIN, 2017, p
. 356). N
uma fase tão complicada, mais do que
utilizar os esforços para impedir o desenvolvimento capitalista era pr
eciso
direcioná-lo rumo ao capitalismo de Estado, um progresso a r
espeito da
economia pequeno-burguesa e patriarcal. N
esse sentido, o imposto em
espécie representav
a a passagem do comunismo de guerra à regular troca
socialista entre os produtos, segundo Lenin, naquele contexto a liber
dade
de comercio e o desenvolvimento capitalista, controlado pelo Estado, era
útil para combater a dispersão dos pequenos produtores e o bur
ocratismo.
Como esclarecido antes, Lenin considerava a NEP essencial também em
relação à no
va situação da política internacional, não casualmente foi o alvo
das suas intervenções nos III e IV Congressos da Internacional Comunista.
A situação interna à Rússia em 1921, estava caracterizada pela
hostilidade com que a confrontavam as potências ocidentais, mas também
pelo fracasso de todas as tentativas de intervenção militar contra ela. Além
disso, Lenin destaca a consolidação de um forte movimento contra a guerra
a Rússia entr
e as massas populares das grandes potências, que contribuía
para alimentar o movimento r
evolucionário; tudo isso em um contexto
em que as contradições entre as potências capitalistas se intensicavam
a cada dia. A própria simultaneidade desses fatores havia impedido que
o ódio da burguesia se traduzisse no sufocamento da Rússia, orientado
a determinar uma nov
a fase de equilíbrio. N
os primeiros quatr
o anos de
vida da Rússia socialista, assistia-se a uma fase de luta aberta (belicosa) da
burguesia internacional contra ela, que havia terminado por colocá-la no
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
181
centro das questões da política internacional. Agora a situação da Rússia
no cenário mundial era caracterizada por uma nov
a fase de equilíbrio que
ainda permanecia instável e relativ
o, porque, tanto nos países capitalistas
quanto, nos países sujeitos ao domínio colonial estavam se acumulando
os materiais inamáveis que poderiam fazer ocorr
er inesperadamente
e a qualquer momento insurreições, conitos e r
evoluções. A tarefa dos
comunistas naquele momento era apro
veitar a trégua e adaptar sua tática a
nov
a situação. Quando a R
ússia empreendeu o processo r
evolucionário, o
fez porque uma série de circunstâncias haviam empurrado os comunistas a
fazê-lo, na convicção de que a rev
olução internacional viria em seu socorro e
lhes garantiria a vitória, ou que a sua revolução daria um impulso decisiv
o à
abertura de uma era revolucionária no plano internacional. Os comunistas
russos tinham consciência de que, se a revolução mundial não irrompesse,
a vitória da revolução pr
oletária não seria possível e a experiência russa
acabaria sufocada. N
ão obstante, os comunistas russos zeram um grande
esforço para salvaguar
dar e consolidar o sistema soviético, sabendo que esse
trabalho se constituía no melhor apoio possível à rev
olução mundial. A
realidade não havia conrmado as expectativas, a r
evolução não se deu no
ocidente avançado, mas tendia a desenvolver-se – ainda que não de modo
linear – tanto é verdade que graças a isso a poder
osa burguesia mundial não
conseguira matar a Revolução de O
utubro. A no
va situação colocava para
Lenin uma necessidade inderrogável: “
preparar a fundo a revolução e fazer
um estudo profundo de seu desenvolvimento nos países de capitalismo
mais avançado [...] beneciar-se dessa brev
e trégua para adaptar nossa
tática a essa linha em ziguezague da história
” (LENIN, 1967, p. 456-
457). A questão central que Lênin destaca na nov
a fase é, novamente, a
conquista da maioria: “Quanto mais organizado é o proletariado de um
país de capitalismo avançado, tanto maior seriedade a história exige de
nós na preparação da rev
olução, tanto mais fundo devemos conquista a
maioria da classe operária
” (LENIN, 1967, p. 456-457).
Em
tal contexto, para Lenin, assume centralidade absoluta
a questão colonial, frente à qual a grande parte dos partidos membros
da Segunda I
nternacional haviam assumido uma posição sentimental e
meramente moralista de simpatia pelos pov
os coloniais e semicoloniais
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
182
oprimidos, mas que considerava o mo
vimento anticolonial como privado
de importância para os ns da luta geral pelo socialismo. Segundo Lenin, ao
invés disso, os comunistas deveriam perceber que desde o início do século
XX centenas de milhões de indivíduos agiam como “
fator
es revolucionários
autônomos ativos
”. Lenin concluíra que nas futuras batalhas pela revolução
mundial, as lutas anticoloniais – que tendiam primeiramente à libertação
nacional, mas que se voltariam inevitavelmente contra o imperialismo –
assumiriam uma função revolucionária bem mais importante do que se
podia imaginar
. Essa consciência levou a Internacional Comunista a investir
recursos e energias nessas lutas, assumindo o comando de todas as questões
conexas à preparação e à sustentação das lutas de libertação nacional. Esse
impulso inicial e a consequente investidura de responsabilidade histórica
foram fundamentais para inaugurar uma nov
a página na história da
humanidade que levou, no curso do século XX, a maioria da população
mundial a emancipação do jugo colonial.
N
as considerações sobre o fronte interno da R
ússia, o ponto de
inexão se evidencia em relação a dois aspectos essenciais: a política de
alianças e a questão camponesa. Aí Lenin registrava as mudanças ligadas à
organização das velhas classes dominantes que se materializava, sobr
etudo,
com a constituição de uma frente política da burguesia russa exilada, que se
unia aos jornais e partidos dos grandes proprietários de terra e da pequena
burguesia, a qual tinha sucientes ligações com a burguesia estrangeira para
receber o nanciamento necessário e manter vivos todos os instrumentos
criados para combater a revolução so
viética.
Analisando esse fenômeno, Lenin sublinha que, se no momento
da tomada de poder pelos bolcheviques a burguesia estava desorganizada,
incapaz de exercer uma hegemonia e
não desenvolvida politicamente,
a ponto de não ter tido condições de exercer hegemonia r
eal sobre a
sociedade, agora, passados quatro anos, ela estava apta a alcançar o nível de
consciência e desenvolvimento político da burguesia ocidental. A burguesia
russa havia sofrido uma terrível derrota, mas havia aprendido a lição da
história e se reorganizava de modo consequente.
T
udo isso complicava
enormemente o processo de transição ao socialismo, pela persistência de
uma dura luta mesmo depois da revolução
. Ao expor a necessidade de uma
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
183
atitude diferente do proletariado russo contra a grande burguesia e a velha
propriedade fundiária, de um lado, e a pequena burguesia, de outro, Lenin
começa a delinear o nov
o quadro tático dos comunistas russos que está
na base da NEP
. Se a respeito da primeira não havia, de fato, outra opção
senão a luta de classes mais clara e aberta, contra a segunda impunha-se
um tipo de relação diferente daquela nos anos do “
comunismo de guerra
”.
N
os países ocidentais, a pequena propriedade – que Lenin
dene como a última classe capitalista – constituía um grupo social
oscilante entre 30 e 50% da população; na R
ússia as massas camponesas
eram, ao invés, a imensa maioria da população, por isso no tocante a essa
classe, a relação deveria basear-se em uma aliança muito estr
eita capaz
de substituir a hegemonia exercida sobr
e ela pela grande burguesia, por
aquela do proletariado
. “Concluímos uma aliança com os camponeses que
defenderemos do seguinte modo: o proletariado liberta os camponeses da
exploração da burguesia, de sua direção e de sua inuência e conquista-o à
sua causa para vencermos juntos os exploradores
” (LENIN, 1967, p. 460).
N
a revolução e por meio da r
eforma agrária, os bolcheviques
souberam exercitar essa dir
eção e inuência, e o alinhamento das massas
camponesas durante a guerra civil o demonstrava. N
a no
va situação, dada uma
capacidade organizativa inédita da burguesia russa, a simples aliança militar
não seria suciente se essa não fosse acompanhada de uma aliança econômica.
Devemos mostrar imediatamente às grandes massas camponesas que
estamos prontos, sem recuar de nosso caminho r
evolucionário, a
mudar nossa política de modo que os camponeses possam dizer: os
bolcheviques vão melhorar logo e a qualquer custo a nossa intolerável
situação [...] modicamos nossa política econômica obedecendo
exclusivamente às circunstâncias práticas e às necessidades que deriv
am
da situação (LENIN, 1967, p. 463).
O primeiro meio identicado para marcar esta mudança de política
econômica é o imposto em espécie, segundo o qual a fábrica socializada
dava ao agricultor seus produtos em troca de grãos. O camponês dav
a,
assim, alguns dos seus produtos sob forma de impostos e outra em troca
dos produtos da indústria socialista, ou por meio da troca de mer
cadorias.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
184
Essa era para Lenin uma medida necessária para passar da pura “
aliança
militar” – como a que havia permitido a vitória contra os ex
ércitos brancos
–, a uma “
aliança econômica
”, porque em um país como a Rússia, com um
nível de atraso técnico-produtivo tão forte e, sobretudo, no qual as massas
camponesas constituíam a maioria da população, só ela poderia consolidar
o Estado soviético e criar por meio dela o “
capitalismo de Estado
” – ou
seja, o regime de concessões à iniciativa priv
ada do capital estrangeiro de
uma parte da produção – as condições para a transição socialista.
Lenin tinha consciência de que uma saída como essa criaria nov
os
problemas, porque o imposto
in natur
a,
em espécie, signicava liber
dade
de comércio, dado que o camponês, depois de pagar o imposto, estava livr
e
para vender ou trocar o que lhe r
estava. Liberdade de comér
cio signicava
capitalismo, mas para Lenin, no quadro da no
va política econômica,
tratava-se de um capitalismo segundo as condições impostas pela sociedade
soviética, isto é, capitalismo de Estado, uma v
ez que isso seria controlado e
conhecido, o seu desenvolvimento não se daria em vantagem da burguesia,
mas do proletariado
. A NEP se impunha, portanto, como necessidade
imperiosa para consentir à Rússia aquele salto no desenvolvimento de suas
forças produtivas e para r
esistir a uma burguesia agora forte, que poderia
exercitar sua luta de classes mesmo internamente à sociedade so
viética, mas
sobretudo, e esse aspecto vai destacado, se impunha como necessária fr
ente
ao fracasso das revoluções no ocidente e ao cer
co que a Rússia sofria por
parte das grandes potências capitalistas.
N
o IV Congresso, em 13 de no
vembro de 1922, Lenin
comunicara a decisão de desenvolver uma política econômica tendente ao
“
capitalismo de Estado
”, entendida como um seguro passo em dir
eção ao
socialismo, diante de um contexto internacional assaz difícil, no qual não
apenas as expectativas de vitória nas rev
oluções de vários países europeus
estavam tragicamente desfeitas, mas onde delineava-se também uma
profunda fase de reux
o para o movimento operário junto a uma ofensiva
reacionária duríssima por parte das classes dominantes. A difícil situação
internacional impunha aos diversos partidos comunistas a necessidade de
saber orientar-se taticamente de maneira adaptada as diversas situações e
ainda preparar-se para uma possível r
etirada estratégica, de modo a evitar
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
185
que fossem forçados a recuar e anulados por div
ersos anos (LENIN, 1967,
p. 387). Assim, para Lenin, mesmo a decisão do “
capitalismo de Estado
”
representav
a uma linha de recuo necessária a manter a posição em uma fase
adversa. A crise de consenso que a rev
olução enfrentou no curso de 1921,
não apenas entre os camponeses, mas mesmo entre os operários, devia-se,
para Lenin, ao fato de que a ofensiva econômica tinha ido longe demais,
sem que se fosse assegurada a base de consentimento necessária. Segundo
Lenin, as massas perceberam que a passagem direta às
novas formas
socialistas estava acima das efetivas forças da r
evolução
. Afortunadamente,
porém, as próprias for
ças ativas da revolução deram-se conta disso e, se isso
não tivesse acontecido, caso aquelas forças não tivessem se pr
onticado a
fazer um recuo em dir
eção a tarefas de mais fácil alcance, a rev
olução em si
estaria ameaçada da mais completa ruína.
U
m dos signicados políticos, a meu ver
, mais importante dessa
“
aliança econômica
” lançada com a NEP é a tentativa de superar a utilização
dos meios coercitivos do Estado para impor às massas camponesas o
socialismo; nda a fase característica do “
comunismo de guerra
”, tentou-
se, por meio da NEP
, percorrer uma estrada que deveria conduzir a maioria
dos camponeses ao convencimento voluntário acerca da
superioridade
da produção cooperativa ou da grande fazenda estatal fr
ente à pequena
propriedade fundiária, ou seja, conduzir os camponeses voluntariamente e
sem métodos administrativos ao socialismo
. Se a NEP obteve importantes
resultados, tanto que no outono de 1926, tanto a produção agrícola,
quanto a industrial superaram os níveis anteriores à guerra, é por outr
o
lado verdadeir
o que a produção agrícola em seu principal ramo, o de
cereais, permanece sempre abaix
o dos níveis de 1913, demonstrando uma
indubitável inferioridade produtiva da pequena pr
opriedade frente ao
latifúndio. Este limite, em conjunto com o fato de que o tão esperado
capital estrangeiro veio em forma muito insignicante, levou a uma
desaceleração grave no processo de industrialização que foi um enorme
obstáculo no caminho do socialismo. P
oucos anos depois, o perigo de uma
nov
a guerra mundial ao horizonte e a necessidade de tornar autossuciente
a Rússia, em fr
ente da incapacidade de superar aqueles limites, empurrou
S
tálin a impulsionar uma outra viragem para acelerar o desenvolvimento
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
186
das forças produtivas, mudando as dir
etrizes da NEP
, tanto na produção
agrícola, quanto na indústria.
Concluindo, a NEP enfrentou uma gravíssima crise econômica
e tentou se abrir uma fase nov
a na edicação de diferentes relações
sociais
de produção, um processo nunca experimentado antes, nem existiam
prontuários sobre a transição socialista. Com todas as contradições
do caso,
em um contexto mundial marcado pelo reux
o revolucionário mundial,
estas tentativas tiveram o efeito de transformar o Estado so
viético, tornando
a jov
em e fraca nação pós-czarista, em uma potência industrial capaz de
derrotar o maior exér
cito do mundo, contribuindo de forma essencial a
eliminar a ameaça nazifascista do mundo.
Sobr
e o plano da coerência entre teoria e práxis, é pr
eciso lembrar
,
cada revolução chocando-se com a r
ealidade concreta (com as suas ações e
reações não previstas), acaba por criar um quadr
o nov
o, sempre diferente
da originaria elaboração teórica. Assim mesmo aconteceu no caso da
Revolução F
rancesa, assim foi por todas as revoluções liberais que, além
dos solenes princípios de liberdade, fraternidade e igualdade, acabaram
por institucionalizar formas aberrantes e sem limites de pobreza, exclusão,
marginalização social, claramente não atribuídas aos vários Constant,
Locke, S
mith, Bentham.
Aos cem anos da Rev
olução que mudou profundamente o
curso da história, no aprontar balanços é preciso a
pressa das conclusões
interessadas. As sentenças de auto absolvição ou de condenação sem
apelos, emitidas por impro
visados tribunais da história. Como em cada
fase de transição da história, aconteceram erros, se manifestaram situações
dramáticas e, sem dúvida, o resultado nal nos apresenta a derr
ota histórica
daquela experiência, o fracasso com o qual é preciso acertar as contas
se queremos compreender as raz
ões das atuais ofensivas reacionárias.
Esclarecido tudo isso, aquela história não pode ser reassumida atrav
és de
uma instrumental contabilidade dos lutos. Agora se tornou lugar-comum
citar a questionável avaliação das lutas (por atacado) feita no famigerado
Livro negr
o do comunismo
, no qual estão também incluídas as mortes por
guerras e por carências de r
ecursos, em grande parte dos casos provocadas
de fora.
T
odavia, se, de fato usássemos os mesmos parâmetros adotados por
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
187
S
téphane Courtois & Co., quantos milhões de mortos devíamos atribuir
à expansão mundial das nossas relações sociais burguesas?
V
amos apenas
tentar pensar: as consequências históricas da acumulação original de capital
sobre as incalculáveis massas rurais expulsas dos campos transformadas em
multidões de mendigos nas grandes periferias urbanas; o extermínio dos
pov
os nativos no N
orte e S
ul da América, Ásia e Oceania; os mortos por
causa da miséria e da exploração colonial ocidental na África, incluindo
o escravismo; as innitas guerras imperialistas conduzidas nos últimos
dois séculos em todos os cantos do planeta para roubar os recursos dos
“
povos não civilizados
”. U
ma hecatombe, muito bem escondida nos livros
ou tratados de divulgação sobre a história da humanidade. I
sso também
conrma um ponto já desenvolvido por
Marx e Engels na metade do século
19: justamente no terreno das ideologias é que está o ver
dadeiro êxito da
sociedade burguesa, e assim, o fato de ter moldado o mundo a sua imagem
e semelhança por meio da violência, é apresentado como armação dos
princípios de liberdade e civilização sobr
e a barbárie. O paradoxo histórico
é que, mesmo sendo mestres da ideologia, os grandes e pequenos teóricos
do liberalismo fazem da crítica às ideologias a sua própria batalha mais
característica. A conrmação da sua capacidade hegemônica é que a
maioria das pessoas, também dotada de uma boa cultura, nela acredita e a
reproduz mais ou menos conscientemente.
r
eferênciAs
ELLEINSTEIN, J.
Storia dell
’URSS
. Roma: Editori Riuniti, 1976.
GRAMSCI, A.
Quaderni del cárcer
e.
T
orino: Einaudi, 1977.
LENIN, V
. I.
Economia della rivoluzione.
Org.
V
. Giacché. M
ilano: Il saggiatore, 2017.
LENIN, V
.
I.
O desenvolvimento do capitalismo na Rússia.
São P
aulo: A
bril Cultural,
1982.
LENIN, V
.
I.
A questão agrária e os críticos de Marx
. Roma:
Riuniti, 1976.
LENIN, V
. I.
A proposito dell’ascensione sulle alte montagne
. Roma: Riuniti, 1967. v
. 32
- 33. (Opere complete).
LOSURDO, D.
I
l marxismo occidentale: come nacque, come morì, come può rinascere.
Bari: Laterza, 2017.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
188
MARX, K.; ENGELS, F
.
A ideologia alemã
. São P
aulo: Boitempo, 2007.
VON HALLER, K. L.
La R
estaur
azione della scienza politica.
A cura di M. Sancipriano
.
T
orino: UTET
, 1963.
189
I
:
R
O
Giorgio G
rimaldi
P
reMissA
DA
rev
oluçã
o
sociAlist
A
A
revol
ução
burguesA
e
vice
-
versA
.
P
or suas dimensões, dinâmicas e conteúdos, somente a Revolução
F
rancesa pode ser proposta para uma comparação com a R
evolução de
Outubro, porque o ciclo r
evolucionário inglês e em maiores dimensões
a Revolução Americana, enquanto pr
eparação também sobre o plano
ideológico dos eventos de 1789, fazem r
eferência a grupos sociais muito
diversos daqueles que serão protagonistas das transformações posterior
es.
N
aturalmente - e não somente do ponto de vista cronológico - a r
elação
entre essas duas grandes épocas de crises históricas deve ser imediatamente
invertida: a Revolução F
rancesa foi um desarranjo político e social, cujas
repercussões em larga escala deram início a um ciclo r
evolucionário que só
seria concluído exatamente duzentos anos depois.
Publicado originalmente
em “Materialismo Storico
. Rivista di losoa, storia e scienze umane
”, n. 2/2017,
Rivoluzioni e restaur
azioni, guerr
e e grandi crisi storiche: cento anni dall
’Ottobre russo (parte prima)
, a cura di
Stefano G. Azzarà, p
. 108-122.
T
radução: Matteo Bifone. R
evisão: Anderson Deo.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
190
Deixamos de lado os eventos intermediários, como a Comuna de
P
aris. D
eixamos também o fato de que no nal do século XIX a burguesia
para tomar o poder teve que colocar em ação forças contraditórias a si
própria, abrindo o caminho para instancias no
vas e mais avançadas;
forças talvez contrapostas aos interesses pr
óprios da burguesia, mas que
continuaram a mov
er-se no caminho de sua origem. Se a Rev
olução do
1789 viu a tomada de poder político por parte de uma classe que já detinha
de fato o poder econômico, a Revolução de 1917 tev
e que enfrentar pelo
menos dois obstáculos: chegar ao socialismo a partir de uma economia
prevalentemente agrária.
A direção bolchevique assumiu a tarefa de transformar um país,
cuja estrutura econômica tinha apenas alguns elementos de capitalismo.
U
m país muito longe das condições objetivas nas quais dev
eria amadurecer
o socialismo, isto é, a presença de uma economia de mercado muito longe
de ser a mais adequada ao desenvolvimento das forças pr
odutivas, as quais
não deveriam fazer nada a mais que quebrar o seu inv
olucro. N
a Rússia,
ao contrário, a transição de uma economia pré-capitalista (ou no máximo
próto capitalista) não poderia ter sido de nenhuma forma imediata e
indolor
. P
assagem obrigatória seria uma industrialização capaz de realizar
aquele desenvolvimento que deveria ter conduzido o capitalismo a não ter
mais nenhuma “justicação histórica
” (HEGEL, 2004).
O problema então é este: se o desenvolvimento da sociedade
revolucionária é consequência daquele modelo industrial que determinou
a armação do capitalismo no Ocidente, não nasce aqui uma relação
essencial
com o adversário? Estamos diante de um problema paradoxal,
teórico e prático, de um socialismo que para se armar deve se fazer
, ele
mesmo, capitalismo e realizar o que foi feito pela burguesia no Ocidente.
P
AssAgens
hist
óricAs
eM
h
egel
e
M
Arx
N
o longo § 3 dos
P
rincípios da Filosoa do dir
eito,
H
egel especica
duas categorias decisivas para a leitura do seu sistema: a “
explicação e
justicação histórica
” (HEGEL, 1970)
e a “justicação válida
em si e par
a si
”
que tem que se referir ao “
desenvolvimento do conceito
” (HEGEL, 1970).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
191
F
rente ao mo
vimento histórico no seu desenvolvimento, que r
esponde ao
conceito (o qual não é abstrato, mas se manifesta em determinadas formas
históricas), o que possui somente “justicação histórica
”:
Quando a origem de uma instituição nas suas determinadas
circunstâncias se mostra completamente adequada ao objetivo e
necessária e então realizou isso que o ponto de vista histórico [
der
historische Standpunkt
] exige, em consequência, se isso dev
e passar
para uma justicação universal da mesma coisa, [...] que [...], uma vez
que tais circunstâncias não existem mais, a instituição então perdeu
o seu sentido e o seu direito [
ihr
en Sinn und ihr Recht
] (HEGEL,
2004, p. 22).
P
odemos dizer
, interpretando Hegel, que o conceito se manifesta
em formas históricas determinadas que constituem o seu desenvolvimento
em direção da realização, para a plena identidade consigo mesmo: uma
vez que essas desenvolveram as pr
emissas para um novo estágio histórico-
conceitual, uma vez que tem conduzido a isso, meramente subsistem e irão
decair
. Mas ao decair
, não desaparecerão de forma absoluta: no movimento
dialético serão exatamente esses, por meio do movimento das
suas formas
mais avançadas, a constituir a origem de uma no
va fase histórica. U
ma
origem que não é a verdade, o conteúdo autêntico, especíco, o qual se dá,
ao invés disso, como resultado no pr
ocesso.
Leremos agora o que M
arx e Engels escrevem no
M
anifesto do
P
artido Comunista
:
Os meios de produção e de troca sobr
e cuja base se formou a burguesia
foram produzidos na sociedade feudal. Em um certo estágio do
desenvolvimento desses meios de produção e troca, as r
elações no
interior das quais a sociedade feudal produzia e trocava, v
ale dizer
, a
organização feudal da agricultura e da manufatura, em uma palavra,
as relações feudais de propriedade, não corr
esponderam mais as forças
produtivas já desenvolvidas. Atrav
ancavam a produção ao invés de
promov
e-la. Se transformaram em nov
as correntes. Essas deveriam ser
quebradas e foram quebradas (MARX; ENGELS, 2003, p. 12-13).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
192
A implantação geral do raciocínio é, evidentemente, tributário do
raciocínio hegeliano que já vimos. N
ão se trata de “
marxianizar” H
egel ou
“hegelianizar” M
arx: não se pode, porém, não relev
ar como o materialismo
histórico deve propriamente a H
egel a teorização da modalidade para a qual
acontecem as passagens históricas. Em Marx, o “
conceito
” assume caráter
muito problemático (é o problema daquilo que é propriamente histórico
e daquilo que resiste e permanece no mo
vimento histórico); ao mesmo
tempo, porém, o trecho citado, mesmo com uma perspectiv
a particular
,
não possui nada de diferente daquilo teorizado por H
egel no parágrafo 3.
Em outras palavras, Marx e Engels observam que o capitalismo
está perdendo a própria “justicação histórica
”. Ele criou as condições de
uma nov
a fase
2
, a qual não consegue corresponder
. Deve então que ser
superado: “
As relações burguesas se tornaram estr
eitas demais para poder
conter a riqueza criada pelas forças produtivas
” (MARX; ENGELS, 2003,
p. 14). Essa passagem, por
ém, é a insígnia do conito:
J
á fazem décadas que a história da indústria e do comercio é somente
a história das rebeliões das modernas forças produtiv
as contra as
modernas relações de produção, contra as r
elações de propriedade
que constituem as condições de vida da burguesia e do seu domínio
(MARX; ENGELS, 2003, p. 13).
Essa
emergência
, que não brota de
desejos
nem individuais nem
coletivos, tem necessariamente uma base objetiva - o desenvolvimento das
forças produtivas -, na base da qual, sucessiv
amente, pode enxertar-se a
subjetividade. A base objetiva, porém, nunca há de ser absolutizada, por
que
é a condição necessária, mas não suciente. A essa deve se acompanhar uma
subjetividade capaz de cumprir a passagem histórica naquele momento
em andamento. M
as esse amálgama objetividade/subjetividade não
comporta passagens de épocas absolutas na sua própria nitidez, “
puras
”,
mas ao contrário, progressões e desvios laterais, interações entr
e diversos
elementos que, em uma determinada fase histórica, podem assumir e
desenvolver funções difer
entes. Mesmo com a permanência de alguns
Aqui é presente a categoria hegeliana de salto qualitativo, que pode assumir a validade de categoria
revolucionária; sobre esse aspecto cf
. (LOSURDO, 2001, p. 217-251.)
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
193
elementos particulares, é o todo que exprime uma diferente conguração e
é essa conguração que confere sentido e função aos elementos.
U
ma fase histórica no
va e ulterior é então aquela na qual acontece
uma reconguração do todo, de tal forma a exprimir elementos no
vos,
mas também capaz de modicar o sentido dos outros que permanecem
e, naturalmente, de superar denitivamente aqueles que não tem mais
razão de ser
, “justicação histórica
”. Mas, essa passagem histórica não
pode acontecer se não se criou uma base objetiva sólida e madura, cujo
um dos elementos é o desenvolvimento das forças produtiv
as. U
m
desenvolvimento que deve, em seguida, se amalgamar a uma subjetividade
madura e adequada, capaz de construir uma ordem que realiz
e todas as
suas potencialidades. U
ma subjetividade, porém, necessitante por sua v
ez
de uma correspondente objetividade, sem a qual permaneceria no desejo
de algo, cujas condições materiais não existem.
De qual natureza é, por
ém, essa “
rique
za
” que confere sentido ao
desenvolvimento das forças produtiv
as? N
ão estamos frente a um contínuo
e innito fortalecimento da potência nietzschiano, mas a uma
medium
pela liberdade, cuja base - aqui está o sentido dessa “
riqueza
” -, é o bem-
estar material.
D
esenvol
viMento
DAs
for
çAs
Pr
oDutiv
As
e
nov
As
f
Ases
hist
óricAs
A fulminante conclusão do
Discurso sobr
e a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens
de Rousseau registra perfeitamente o
desequilíbrio – a desigualdade, de fato - presente na sociedade. Como acabar
com uma condição, não certamente temporária, na qual “
um pequeno
grupo de homens, desfrute de coisas desnecessárias, ao mesmo tempo que
a maioria faminta não tem o necessário?” (R
OSSEA
U, 2005, p. 205). A
resposta de M
arx e Engels se move com nitidez na dir
eção não da difusão da
pobreza, de uma miséria igualmente universal, mas do bem-estar universal
(diferente do luxo e do ex
cedente: se subsiste uma condição de excesso, essa
somente pode ser possível por meio de uma correspondente situação
de
escassez). Como é possível um bem-estar material universal? Certamente,
isso se dará a partir de uma redistribuição orientada na direção da equidade e
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
194
da justiça, mas também é preciso que exista a possibilidade concreta, técnica,
de um aumento dos bens a disposição. Esse aumento dos bens, quantitativ
os
e qualitativos, é possível por meio de um aumento da produtividade que
implica, por sua vez, o desenvolvimento das forças produtiv
as.
Chegamos assim ao nó teórico e prático. É pr
eciso desenvolver uma
estratégia para aumentar em cada situação determinada o desenvolvimento
das forças produtivas, condição necessária para abrir a passagem histórica
além do capitalismo; observando ao concreto desenvolvimento histórico,
é preciso, porém, r
econhecer uma processualidade do tempo histórico que
se realiza através de passagens determinadas. E
m outras palavras, não é
possível pensar em uma superação do capitalismo que não passe por meio
de um dos seus elementos fundamentais: o desenvolvimento tecnológico-
industrial. Caso contrário, será difícil elaborar um projeto concretamente
aplicável na história que não olhe romanticamente ao passado pr
é-industrial
e pré-capitalista e às nostalgias do mundo agrário
3
.
N
ada mais distante de Marx que um preconceito sobr
e o
aumento da riqueza. P
elo contrário, como vimos no Manifesto, a
burguesia cai precisamente porque é inadequada para gerir o poder
oso
desenvolvimento das forças produtiv
as em andamento. O acento sobr
e a
“
riqueza
” é conser
vado mais de dez anos depois nos
Grundrisse
, quando
Marx reete sobr
e o seu especíco conteúdo de emancipação: a sociedade
post-capitalista é aquela capaz de realizar completamente a riqueza, que ao
invés no “
mundo moderno
” se apresenta somente
Como escopo da produção
4
. De fato, porém, se a riqueza se despede de
sua limitada forma burguesa, o que é a riqueza se não a universalidade
das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas
etc., dos indivíduos, gerada na troca universal? O que é senão o
completo desenvolvimento do domínio do homem sobre as for
ças da
natureza, seja aquelas da assim chamada natureza, seja sobre aquelas
da sua própria natureza? O que é senão a explicitação absoluta dos
seus dotes criativos, sem outro pressuposto a não ser o pr
ecedente
desenvolvimento histórico, que rende m em si mesma essa totalidade
do desenvolvimento, ou seja, do desenvolvimento de todas as forças
Daí o engajamento dos movimentos pr
ogressistas atuais ao “
ecologismo
” heideggeriano
. Sobre H
eidegger e a
técnica nos permitimos indicar (GRIMALDI, 2015).
P
ouco antes se pode ler “
a produção como escopo do homem
” (MARX, 1976, p. 466).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
195
humanas como tais, não mensurada com um metro
já dado
.
Na qual o
homem não se reproduz em uma dimensão determinada, mas produz
a sua totalidade? Onde não busca permanecer algo de acabado, mas é
no movimento absoluto do devir? (MARX, 1976, p
. 466).
N
unca a “
riqueza
” é condenada como tal por Marx, senão no
contexto da desigualdade e da exploração universais. N
ão é o
r
essentimento
contra a riqueza e ao bem-estar material que o move, portanto, mas a
recusa das formas ex
cludentes e produtoras de desigualdade. A sociedade
pós-capitalista realiza o universal, liberando todas as potencialidades dos
períodos precedentes. N
a história não existem fases últimas, denitivas,
mas um contínuo progresso, uma tortuosa ampliação da esfera da liber
dade
entre um mo
vimento histórico que sabe abrir o conteúdo progressiv
o do
passado, mas não é mera realização disso, porém, abertura de condições
de possibilidade inéditas e mais avançadas. É a potência desagregadora,
combinadora e inov
adora da
Aufhebung
, a permitir que os no
vos níveis
alcançados não sejam a realização
tout court
do que já foi, nem
novitas
absoluta. N
esse quadro, e não certamente no sentido de um movimento na
direção do “m da dialética
” (NEGRI, 2016, p. 252), podemos ler quanto
expresso nos
G
rundrisse
:
N
o ato da reprodução mesma [do
“
mesmo modo de existência objetivo
”
]
mudam não somente as condições objetivas, por exemplo a aldeia se
transforma em cidade, o bosque em terreno cultivável etc., mas mudam
também os produtores em quanto explicitam no
vas qualidades,
desenvolvem e transformam a si mesmos por meio da produção, criam
novas for
ças e novas concepções, no
vos modos de trânsito, nov
as
necessidades e uma nova linguagem (MARX, 1976, p
. 474).
A superação do capitalismo não é então o renascimento total (cujo
motivo é, porém pr
esente em Marx), mas um desenvolvimento sobr
e um
plano qualitativamente superior e mais avançado a partir dos elementos
que existem na realidade pr
esente e que, por força imanente, transcendem
a si mesmos. Os produtor
es “
criam novas necessidades
”: estamos nos
antípodas do idílio do campestre, da celebração da vida “
simples
”, que é
hoje tanto em voga, mas, que não constitui a transguração do “idiotismo
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
196
da vida rural” (MARX; ENGELS, 2003, p. 11) e da dupla moral família/
trabalho. A necessidade da industrialização não comporta a transformação
do planeta em uma fábrica tóxica, nem a atomização das relações sociais.
Do mesmo modo, o idílio família-rural que está por atrás de cada refer
ência,
a simplicidade e a autenticidade não é frequentemente e com boa vontade,
nada de diferente que a transguração nostálgica de modos de vida ligados
ao mundo pré-industrial, nem mais ver
dadeiros nem mais falsos daqueles
que se apresentaram sucessivamente. E isso por um motiv
o simples: os
segundos brotam dos primeiros, é o consequente desenv
olvimento a partir
das suas premissas.
P
ensemos na usina hidroelétrica: é, pois, muito menos natural e
autêntica que um moinho de vento, rede de uma transguração dos bons
tempos idos que ideologicamente remo
ve a fadiga, a fome e a violência da
pré-modernidade? I
sso não signica negar os aspectos negativos da vida
moderna: porém, não existe nenhuma vida autêntica a ser restaurada,
mas premissas de liber
dade a serem mantidas e no
vas liberdades a ser
em
conquistadas. E existem também “
novas necessidades
” evocadas por Marx,
que não são caprichos do homem moderno, mas uma ampliação da esfera
da liberdade. U
ma liberdade que a um certo ponto aparece restrita, pois se
produziram as condições de uma no
va fase, da qual o desenvolvimento das
forças produtivas é pr
emissa decisiva.
A
ut
oMAçã
o
Dos
Pr
ocessos
ProDutiv
As
e
liberAção
Do
trAbAlho
V
oltamos agora aos
Princípios da losoa do dir
eito
hegeliano, e
precisamente ao § 198, onde H
egel registra a tendência histórica (obtida
por meio
“
das divisões do trabalho
”
) graças a qual “
o trabalho
” torna-se
“
sempre mais
mecânico
e então ao nal adequado para que o homem possa
retirar-se e colocar no seu lugar a
máquina
” (HEGEL, 2004, p
. 163). E
lemos também o Marx dos
G
rundrisse:
O caminho por meio do qual surgiu o maquinário na sua totalidade,
e [...] o caminho por meio do qual ele se desenvolve em detalhe, [...] é
a análise - por meio da divisão do trabalho, que já transforma sempre
mais em operações mecânicas as operações dos operários, assim que
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
197
a um certo ponto o mecanismo pode tomar o seu lugar
. (MARX,
1976, p. 716).
A conexão de Marx a H
egel é claríssima, mas não é sobre isso
que queremos concentrar a nossa atenção, mas sobre o fato que a partir
dessa tendência histórica objetiva, Marx pensa a passagem histórica pós-
capitalista: a automação dos processos produtivos é uma no
va base para a
ampliação da liberdade.
A esse propósito, Marx não é ingênuo: ao invés de r
ealizar o sonho,
já dos antigos
5
, da liberação da fadiga do trabalho, a máquina submete
majoritariamente o operário a exploração capitalista
6
. Marx e Engels são
extremamente claros em r
elação a isso no Manifesto (a mesma abor
dagem
ao problema será utilizado por Marx ao longo de toda a sua evolução):
Os operários [...] como soldados simples da indústria são subordinados
a vigilância de uma inteira hierarquia de ociais e subociais. N
ão são
somente servos da classe burguesa, do Estado burguês, mas cada dia e
cada hora são submissos também a máquina, ao vigilante, e sobretudo
ao burguês dono da fábrica (MARX; ENGELS, 2003, p. 15-16).
N
em falta reconhecer a cr
escente alienação do trabalho
devido a máquina: “
o operário torna-se um simples acessório da
máquina
” (MARX; ENGELS, 2003, p. 15), que assim amplia sempre
majoritariamente a distância entre a ação particular na cadeia de
produção e o produto acabado, sempr
e mais subtraído ao mesmo
trabalhador
. Mas, a solução não é nem a destruição das máquinas,
nem a volta ao arado: essa é situada propriamente em plano aberto,
inaugurado da automação dos processos produtivos.
Sim, no contexto capitalista, a máquina submete sempr
e mais o
trabalho, mas ao mesmo tempo cria as premissas objetivas de uma liberação
do mesmo trabalho. O “
retrair-se
” (que vimos em H
egel) do homem, do
trabalho desenvolvido agora pela máquina, é também um “liberar-se
”
daquela cota de trabalho agora efetuada no seu “lugar” pela máquina.
Certamente, o capital possui uma estrutura especíca, na qual o lugar do
Marx, n
’O Capital, cita Aristóteles e Antipatro (MARX, 2009, p. 544-545.)
6
V
eja (MARX, 2009, p. 501-656.)
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
198
trabalho não se determina como emancipação, mas se recongura para
realizar o máximo lucro do capitalista e a máxima acumulação
do capital.
E, porém, as máquinas têm em si não somente em
potência
, mas também
de fato
, a disposição efetiva de uma emancipação do trabalho realizáv
el em
uma diversa e mais avançada conguração econômica, social e política.
P
ensando no uso das máquinas no sistema capitalista e sobre a
não-acidentalidade de suas invenções (essas permitem sempre um maior
aumento da produtividade e do lucro), M
arx não sobrepõe a origem
histórica (capitalista) das máquinas com as potencialidades contidas no
seu desenvolvimento (presente e futur
o):
Isso não signica absolutamente que [o maquinário em si] seja capital,
ou que sua existência como maquinário seja idêntica a sua existência
como capital; assim como o ouro não cessaria de ter o seu valor de uso
enquanto ouro pelo fato de não ser mais
dinheiro
. O maquinário não
perde o seu valor de uso no momento em quem cessa de ser capital.
Do fato que o maquinário é a forma mais adequada do valor de uso do
capital xo, não se desdobra absolutamente que a subsunção na relação
social do capital seja a relação social mais adequada e última para a
utilização desse maquinário (MARX, 1976, p. 710-711)
7
.
E pouco depois: “
o capital, sem ter a intenção, reduz ao mínimo
o trabalho humano, o desgaste de energia. Isso será uma v
antagem do
trabalho emancipado, e é uma condição da sua emancipação
” (MARX,
1976, p. 713).
Se o primeiro tr
echo citado, leva-nos à pergunta sobre qual possa
ser a relação social de produção “
mais adequada
” (sobre quanto pode ser “
o
último
”, se pode ser também mais cauteloso) “
para o emprego do maquinário
”,
o segundo nos confronta com a espinhosa questão da alternativa liberação
de
trabalho / liberação
do
trabalho. S
e, de fato, as máquinas permitem uma
nov
a fase da história do trabalho, tal nova fase é trav
ada, obstaculizada pelo
capital, e então, da concentração do máximo lucro e da máxima acumulação
nas mãos do capitalista. Circunstância que impede o cumprimento de
todas as potencialidades da automação dos processos produtivos em termos
U
ma impostação análoga da questão é repetida n
’O Capital, veja-se (MARX, 2009, p. 583-584.)
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
199
de riqueza distribuída socialmente e da qualidade de vida dos indivíduos
(mas também da possibilidade do desenvolvimento das mesmas máquinas,
projetadas de acordo com as exigências de uma sociedade mais av
ançada,
com “
novas necessidades
” etc.).
De um lado há a possibilidade de pôr m, materialmente, a
desigualdade denunciada por Rousseau, da qual falta a justicação técnica
da carência de bens para todos; de outro, se abr
e a possibilidade de uma
aproximação diversa do trabalho e de um difer
ente estilo de vida. Em
ambos os casos, o ponto decisivo é a universalização do moderno aparato
técnico-industrial, dos seus benefícios e do melhoramento da qualidade
de vida que deriva disso
8
, e, em paralelo, a inspiração universalista que
mov
e a ação do proletariado, uma classe que não liberta somente a si
mesma, mas através dela, a humanidade
9
. N
esse sentido, não há em
Marx particularismo operário, mas tensão universal. U
ma tensão que
acha, contudo, a própria base objetiva naquela automação dos processos
produtivos que permite o aumento da produção (e então dos bens
disponíveis) e a emancipação
de
trabalho
.
Claramente, o simples aumento dos bens (primários ou não), não
é suciente: é preciso recongurar em um no
vo plano a distribuição e a
possibilidade de acesso efetivo aos produtos. Esse no
vo plano contém um
nov
o e superior nível de socialização, ou seja, uma ampliação da fruição
dos bens e de suas acessibilidades. N
ão é suciente, isto é, o aumento dos
bens disponíveis e uma baixa geral dos preços como concessão pelo alto,
talvez para conter os conitos e manter
, em uma determinada conjuntura,
a paz social. F
ruição e acessibilidade devem, em outras palavras, ser
possibilidades concretas, premissas por meio de uma r
edenição dos
direitos econômicos e sociais adquiridos pelos sujeitos reconhecidos
como tais. P
or isso a regra-guia não se torna mais o lucro pelo lucro e a
acumulação enquanto acumulação, mas a produção como
meio
de riqueza
Em
O homem e a técnica
.
Ascensão e declínio
da civilização das máquinas
, Spengler acusa o Ocidente de ter
desvelado a técnica aos povos coloniais e em geral não-brancos, os quais a utilizaram em detrimento do mesmo
Ocidente. V
eja-se (SPENGLER, 2008, p. 103-105). E
videntemente é alheio do pensamento de Spengler
qualquer tensão entre igualdade e do universalismo
.
V
eja-se (MARX; ENGELS, 2003, p. 37).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
200
social
10
. N
esse contexto, desaparece progr
essivamente a função puramente
instrumental do trabalho humano que, porém, não se torna jamais infantil
ou aristocrática, pretensa de uma liberação
do
trabalho em si mesmo
.
Se, como já vimos, não se pode falar de socialismo sem
desenvolvimento das forças produtiv
as, premissa para uma fase histórica
nov
a e mais avançada, então, parece também que não seja possível pensar
tal desenvolvimento segundo uma via diferente daquela da industrialização
e do confronto com a sua matriz capitalista.
D
entr
o
Do
cAPit
AlisMo
,
ruMo
A
uMA
no
v
A
fAse
A lição da Revolução de O
utubro é, nesse sentido, fortemente
instrutiva. Chegado o momento de prov
ar os fatos, houve, com Lenin,
que renunciar ao imediatismo do socialismo e mo
ver-se em direção a
uma industrialização que comportou a adoção de elementos capitalistas,
incluído o famoso “
capitalismo de Estado
” (LENIN, 2017, p
. 467). Sobre
essa união de eventos Lenin se pronuncia com aquela que podemos denir
uma máxima de caráter geral: “T
udo isso nunca foi previsto, mas todavia,
esse é um fato incontestável” (LENIN, 2017, p
. 467).
É a resignação a uma situação absolutamente determinada e
imodicável? N
ão, a questão é exatamente essa: se não r
econhecermos a
natureza objetiva de uma conjuntura histórica, acabar
emos dominados
por ela. O socialismo mov
eu os seus primeiros passos na Eur
opa, depois
chegou a Rússia e a partir dali inspirou uma parte não minoritária do
mundo não industrializado. R
ealizou-se o socialismo? N
ão
. P
orém,
nunca devemos subestimar um mo
vimento de emancipação política
e econômica em amplíssima escala, que tem entre mil diculdades,
enunciado o direito ao reconhecimento dos ex
cluídos do sacro espaço
político e econômico das
elites
e tirou da ameaça de morte por inanição
centenas de milhões de pessoas.
10
O que não exclui de nenhuma forma a possibilidade de manter instrumentos empresarias voltados a
organização e a racionalização da produção e da riqueza acumulada, não mais voltadas ao interesse meramente
privado, mas que não se resolvem em automatismos e desr
egulamentações possíveis por meio de melhores
disposições do ânimo dos homens.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
201
N
a realidade, assim como nunca existiu um capitalismo puro,
não existem também socialismo e comunismo puros, e a medida não
é a consonância do real com as aspirações dos puristas a um mundo
melhor e com os
T
extos Sacros, mas a ampliação ou não das liberdades
e do direito, e a elevação ou não dos standar
ds de vida, junto ao
procedimento mediado em direção a esses. U
ma das lições fundamentais
do outubro leniniano é então essa: a necessidade (em concreto, não
somente em teoria) do desenvolvimento das forças produtiv
as para
melhorar as condições de vida e denir as premissas para uma no
va
fase histórica mais avançada (o socialismo). Esse desenvolvimento passa
necessariamente pela industrialização e a industrialização implica em
dinâmicas também dolorosas mas, de acordo com quanto a história até
hoje nos mostrou, inelutáveis.
N
esse ponto Lenin, chegando a gerir concretamente o poder
no objetivo primeiro de construir o socialismo, entende a nov
a fase
histórica como a herdeira dos pontos mais avançados daquela pr
ecedente,
que convida diretamente a olhar às estratégias e aos modos de produção
capitalistas naquele momento mais na vanguarda: “
devemos aprender o
socialismo em larga medida dos dirigentes dos trustes, devemos aprender o
socialismo dos máximos organizadores do capitalismo
” (LENIN, 2017, p.
171). E ocorre “introduzir em toda a R
ússia o sistema
T
aylor e o aumento
cientíco americano da produtividade do trabalho
” (LENIN, 2017, p.
174). Certamente, o “
sistema
T
aylor” resulta particularmente odioso,
mas isso na variável capitalista, que é aquela originária, mas não a única.
Recor
damos aquilo dito por Marx a propósito das máquinas: a sua validade
vai além da do capital e isso vale também para um sistema de produção
como o taylorismo, que, ao contrário, pode abrir espaços de emancipação
do
trabalho.
P
ara Lenin é pr
eciso utilizar tal sistema relacionando-o a uma
Redução do horário de trabalho, a utilização de no
vos métodos de
produção e de organização do trabalho sem nenhum dano para a
força de trabalho da classe trabalhadora. P
elo contrário, a utilização
do sistema
T
aylor
, justamente dirigido pelos mesmos trabalhadores, se
esses forem sucientemente conscientes, será o meio mais seguro para
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
202
uma ulterior e grandíssima redução da jornada de trabalho obrigatória
para toda a população trabalhadora (LENIN, 2017, p.174).
Essa é a perspectiva leniniana, que não resulta, por
ém, completa,
se obscurecida da importância nas comparações da consciência e
maturidade da “
população trabalhadora
”: nenhuma conjuntura objetiva
pode ser suciente, na ver
dade, se não tem um sujeito que naquele mesmo
nível pode agir
. Mais pr
ecisamente: nenhuma conjuntura objetiva pode ser
por si mesma suciente, se não é também o produto de uma consciência
subjetiva madura, capaz - porque envolvida na r
elação objeto/sujeito (que é
recíproco, dialético) - de ser à altura da gestão
daquela mesma conjuntura.
N
essa ótica, parece totalmente infrutífero e insensato discutir
sobre decrescimento, sobr
e economia no modelo dos mosteiros ou sobre
cultivos domésticos, como hoje acontece frequentemente, fav
orecendo
formas diferentes de aversão, escondidas ou não, em dir
eção à modernidade.
É preciso, ao invés disso, olhar e dirigir a atenção aos locais onde o
desenvolvimento das forças produtiv
as é mais avançado, onde também são
mais avançados os modos de produção, e onde se desenvolv
em, então,
modelos e modos de vidas adequados àquele nível. O que não implica o
desaparecer de cada diculdade e de cada conito, o bem-estar total e o
m da alienação, mas a capacidade de ter juntos nov
as conquistas e novos
modelos
de bem-estar com novas diculdades, no
vos conitos, nov
os níveis
de alienação. É daqui que se passa a no
va fase histórica mais avançada,
não certamente do regresso a fases históricas pr
ecedentes: são essas novas
diculdades, inéditos conitos e níveis de alienação, que é preciso r
esolver
e superar
, sob pena de reproduzir o imobilismo e a r
egressão
.
P
ortanto, é necessário não se voltar (atrás) em direção ao mito
do idílio romântico-agrícola, mas (adiante) em direção aos lugar
es onde os
modos de produção e estilos de vida são mais avançados ou onde há essa
tensão para o avanço
. O imaginário do socialismo não é como o mundo
vazio dos sonhos, mas como aquele não-lugar
,
u-tópico
que quer se tornar
o lugar e a realidade, se objetivar como utopia e se r
ealizar concretamente,
porque somente essa passagem o faz ver
dade. É no imaginário que se
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
203
entrevê, embora confusamente, o futur
o, que imprime a realidade do
presente no mo
vimento em direção àquelas imagens: imagens-guia do
futuro
no
presente, a partir disso e não de um totalmente-outro. S
omente
cultivando aquele imaginário, metropolitano e cosmopolita, será possível
estar à altura de uma nov
a fase histórica progressiva.
r
eferênciAs
GRIMALDI, G.,
Oltr
e le tempeste d’acciaio:
tecnica e modernità em H
eidegger
, Junger
,
Schmitt. Roma: Carocci, 2015.
HEGEL, G.W
.F
.
Lineamenti di losoa del diritto:
diritto naturale e scienza dello S
tato
in compendio
(1821). Roma; Bari: Laterza, 2004.
HEGEL, G. W
. F
.
Grundlinien der Philosophie des Rechts oder N
aturr
echt und
Staatswissenschaft im G
rundrisse (1821)
. F
rankfurt am Main: S
uhrkamp, 1970.
LENIN, V
.
Economia della rivoluzione
. Milan: il S
aggiatore, 2017.
LOSURDO, D.
L
’ipocondria dell’impolitico:
la critica di H
egel ieri e oggi. Lecce: Milella,
2001.
MARX, K.
Lineamenti fondamentali di critica dell’economia politica (G
rundrisse)
. T
urin:
Einaudi, 1976.
MARX, K.
Il capitale.
Libro primo(1867).
T
urin: UTET
, 2009.
MARX, K.; ENGELS, F
.
Manifesto del partito comunista
(1848). Roma; Bari: Laterza,
2003.
NEGRI, A.,
Marx oltre Marx
. Roma: Manifestolibri, 2016.
R
OUSSEAU, J.J.
Scritti politici
.
V
olume primo. R
oma; Bari: Laterza, 2005.
SPENGLER, O.
L
’uomo e la tecnica:
ascesa e declino della civiltà delle macchine (1931).
P
rato: Piano B, 2008.
205
D
NEP
S
:
R
S
David Maciel
A
partir da abolição da ser
vidão em 1861 desencadeia-se na
Rússia dos C
zares um processo de transição ao capitalismo que privilegia
o avanço da propriedade privada, o fortalecimento dos camponeses ricos
(
kulaks
) e um movimento de industrialização e modernização econômica
fortemente dirigido e controlado pelo Estado, apesar da grande presença
do capital estrangeiro
. Ainda que incapaz de consumar a transformação
burguesa do Estado absolutista russo, de fazer a nobreza russa se “
aburguesar”
à moda dos
junkers
alemães e de impedir a revolução a partir de baixo,
este movimento de r
evolução passiva promo
vido pelo czarismo russo
desencadeou tendências de longo prazo que cobraram seu preço ao longo
do tempo. A partir da P
rimeira G
uerra M
undial a rev
olução permanente
se impôs como estratégia revolucionária historicamente necessária na
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
206
conjuntura russa, concatenando a dinâmica interna à internacional. Os
bolcheviques só conseguiram dirigir a revolução por
que foram capazes
de compreender esta concatenação e as possibilidades abertas para uma
Revolução S
ocialista num país atrasado, tornando-se os porta-vozes das
classes subalternas. N
o entanto, diante de um cenário internacional adverso
e das enormes diculdades internas os bolcheviques não conseguiram levar
às últimas consequências sua opção pelos
soviets
e pelo protagonismo das
massas trabalhadoras, preferindo o resgate dos métodos autocráticos e do
dirigismo econômico estatal para superar os obstáculos e salvar a no
va
ordem social e política. N
este sentido, a revolução passiva é recolocada
como uma necessidade histórica, levada às suas últimas consequências
como estratégia de atualização pelo alto da sociedade soviética, criando-se
uma potência industrial e militar
, mas não uma sociedade onde prevaleciam
a socialização econômica e política.
A N
ov
a P
olítica Econômica (NEP) expressa um momento
do processo rev
olucionário russo em que se fez necessário interromper
a dinâmica de revolução permanente inaugurada em 1917 com vistas a
garantir a sobrevivência do poder bolchevique e a criação das condições
materiais para a transição socialista numa conjuntura de derrota da
revolução mundial, de isolamento internacional da URSS e de acentuada
desestruturação econômica. P
or conta disso, a perspectiva da revolução
socialista presente na dinâmica da rev
olução permanente russa teve que ser
paralisada em favor da perspectiva da r
evolução burguesa, favorecendo a
economia de mercado e o Capitalismo de Estado, expresso
na propriedade
estatal sob controle burocrático
. Se no princípio a paralisação da r
evolução
permanente era tida como uma iniciativa temporária, devidamente
revertida quando a situação emergencial fosse superada, com o tempo as
nov
as contradições desencadeadas pela própria NEP colocam a perspectiva
de superação da economia de mercado em favor do Capitalismo de Estado
como uma possibilidade, devidamente assumida por uma burocracia já
consolidada no poder e por uma classe operária incapaz de impor sua
hegemonia. Daí a interrupção denitiva da revolução permanente em fav
or
de uma revolução passiv
a burocrática que em muitos aspectos retoma, de
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
207
maneira atualizada, elementos e processos próprios do czarismo, enterrando
denitivamente a perspectiva socialista da r
evolução russa.
i
O processo de
r
evolução passiva
1
burguesa na Rússia abrange
um período de aproximadamente meio século, quando o Estado
czarista procura atualizar a formação social russa em conformidade com
a modernização capitalista em curso na Eur
opa Ocidental. M
otivado
fundamentalmente por razões militares, particularmente depois da derrota
para a F
rança e a I
nglaterra na Guerra da Criméia (1856), e para contornar
a crise social no campo, o processo de
aggiornamento
russo buscou garantir
o avanço do capitalismo e da moderna indústria sem que as estruturas
políticas sofressem grande alteração, preservando o poder de classe da
nobreza e o próprio czarismo
. A chamada “Era das Reformas
” se inicia
com a abolição da servidão, em 1861, expandindo as relações capitalistas
de produção e de propriedade no campo; se desdobra com a modernização
militar e bélica do Exér
cito e da Marinha e avança com a intr
odução de
medidas de racionalização e prossionalização da burocracia e do sistema
judiciário, além do fortalecimento de instâncias políticas regionais e locais
(como as assembléias pro
vinciais). P
aralelamente ocorre um esfor
ço de
industrialização que teve no Estado e no capital externo seus principais
agentes e que possibilitou o desenvolvimento de setores industriais altamente
concentrados e tecnologicamente avançados, particularmente no âmbito da
indústria de bens de capital, em grande medida vinculados às necessidades
militares (mineração, metalurgia, ferro
vias, etc.). Socialmente ocorr
e um
processo de intensicação das desigualdades sociais no campo, de êxodo
rural, de crescimento da população urbana e de proletarização acelerada
de contingentes populacionais expressivos, possibilitando a emergência de
Gramsci trata do conceito de r
evolução passiva ou revolução-r
estauração em diversas passagens dos
Cadernos
do Cárcer
e
, relacionando-o aos conceitos de transformismo, cesarismo, guerra de posição, etc. N
o entanto,
discorre em especial sobre a rev
olução passiva quando trata da realidade italiana, seja discutindo a losoa de
Benedetto Croce (GRAMSCI, 2004, p
. 227-430) seja analisando o
Risorgimento
(GRAMSCI, 2002). P
ara uma
reexão sobre os sentidos dos conceitos de rev
olução passiva e de transformismo ver Maciel (2006).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
208
um operariado fabril numeroso e concentrado em algumas cidades. Após
a Revolução de 1905, que expr
essou pela primeira vez a incapacidade
deste movimento de r
evolução passiva em conter uma r
evolução social a
partir de baixo, o czarismo russo reage com violenta repressão, ao mesmo
tempo em que institui uma monarquia semi-constitucional, pois a criação
da Duma (P
arlamento), do sistema partidário e eleitoral não reduziu
fundamentalmente o poder autocrático do czar
, e promov
e uma política
de “
cercamentos
”, que favorece ainda mais o av
anço do capitalismo e da
propriedade privada no campo
.
P
orém, o caso russo guarda peculiaridades que o afastam
bastante do caso clássico da revolução passiv
a, particularmente daquele
representado pela Alemanha e, em menor grau, pela I
tália. Em primeiro
lugar
, salta aos olhos a fraqueza da burguesia russa não só do ponto de vista
político, mas também do ponto de vista econômico. O desenv
olvimento
industrial foi muito mais fruto da ação do Estado e do capital externo do
que propriamente da burguesia russa. Ao contrário da burguesia alemã,
que consegue impor a livre circulação de mer
cadorias e a mão de obra no
interior da federação alemã antes mesmo do abalo de 1848 e se torna a
principal credora do Estado prussiano, além de conquistar espaço político
no P
arlamento e em instâncias de poder locais, a burguesia russa só consegue
a liberdade de mo
vimentação da mão de obra muito tardiamente e ainda
assim de maneira parcial. N
o plano político-ideológico o liberalismo
sempre foi marginal enquanto força política e corr
ente de pensamento,
vindo a burguesia russa a se organizar em termos partidários apenas depois
da Revolução de 1905 com o partido “Kadete
” (P
artido Constitucional
Democrático) e ainda assim exer
cendo uma função de força política
auxiliar da autocracia quando é criada a Duma (P
arlamento) e a burguesia
liberal passa a ter uma representação parlamentar
.
Em segundo lugar
, a aristocracia buscou se contrapor ao
anacronismo e à crise da ordem econômica e social feudal r
eforçando seus
laços com a autocracia, suas posições no interior do Estado como burocracia
e seu “
parasitismo
” econômico, ao invés de aderir maciçamente à agricultura
mercantil e à perspectiva empr
esarial. Ou seja, à crise da ordem social feudal
e do absolutismo a aristocracia russa reagiu defensivamente, r
estaurando
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
209
seus privilégios econômicos e reforçando suas posições tradicionais, não
buscando dar a direção do processo de mudanças. N
este sentido, os setores
reformistas da burocracia que dirigiram a r
evolução passiva falhada na
Rússia, não só car
eceram do apoio desta classe dominante fundamental,
mas sofreram dela dose considerável de r
esistência.
Em terceiro lugar
, a autocracia czarista e a burguesia russa
nunca foram capazes de desenvolver um mo
vimento transformista bem
sucedido em favor de sua perspectiva de r
evolução passiva sobr
e seus
adversários. As tentativas de transformar a comuna rural num bastião
em defesa do czarismo fracassaram completamente, como evidenciam
seu papel nos levantes camponeses e na defesa dos seus interesses contra
o Estado e a aristocracia. A força dos “
populistas russos
”, N
arodnikis, e
depois do P
artido Socialista R
evolucionário no campo também é outra
evidencia importante da hostilidade do campesinato diante da autocracia
czarista. Em relação ao mo
vimento operário o fracasso é ainda maior
, pois
tanto a socialdemocracia, quanto o anarquismo sempre vislumbraram a
perspectiva rev
olucionária. Mesmo os mencheviques, que defendiam a
aliança do proletariado com a burguesia, vislumbravam a derrubada do
czarismo pela via revolucionária. Assim, fracassou a tentativ
a de atualização
da ordem social russa por meio de uma rev
olução passiva promo
vida pelo
Estado czarista e pela aristocracia, tornando a revolução social ativ
a uma
necessidade histórica.
N
este sentido, resulta daí uma r
evolução passiva burguesa
“
falhada
”, quando comparada com outros processos como os casos alemão
ou italiano, que criou uma formação social compósita, sob predomínio
capitalista na economia urbana e industrial e em parte da agricultura,
porém com sobreviv
ências feudais importantes no campo, emperrando o
pleno desenvolvimento de um mercado consumidor interno e do próprio
capitalismo agrário. Esta combinação criou um capitalismo francamente
dependente do estatismo e do capital externo, com uma burguesia
débil politicamente e um Estado feudal-absolutista dominado política
e burocraticamente pela aristocracia e que preservou sua integridade,
mantendo-se imune às formas políticas burguesas representadas pelo
constitucionalismo e pelo parlamentarismo. A for
ça do absolutismo russo
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
210
se revela não só no contr
ole “
mercantilista
” do Estado sobre a economia
industrial, mas na própria relação deste com o nascente mo
vimento
operário, tratado por meio de uma combinação de repressão pura e
simples com inltração das direções sindicais pela polícia. N
este sentido
as tendências socioeconômicas desencadeadas pela “Era das Reformas
” e
pelo processo de transição ao capitalismo na Rússia foram: a forte presença
estatal na economia industrial; o fortalecimento da propriedade privada no
campo, particularmente da propriedade dos
kulaks
, e o desenvolvimento
de uma sociedade civil estatizada, como no caso da Igreja e da escola, ou
controlada de perto pelo Estado, como no caso dos sindicatos. Após a
Revolução de 1905 estas tendências são r
eforçadas, particularmente pela
política agrária do primeiro-ministro S
tolypin (1906-1911), mas não
se fazem acompanhar de um processo efetivo de atualização burguesa
do Estado czarista. A monarquia semi-constitucional e o P
arlamento,
criados após 1905, são concessões pro
visórias do czarismo ao movimento
revolucionário, logo anuladas em fav
or de uma perspectiva efetivamente
autocrática, reforçada ainda mais pelo sistema administrativ
o de urgência
suscitado pela P
rimeira Guerra.
ii
Ao contrário do que se dá nas rev
oluções passivas bem sucedidas,
a revolução passiv
a russa não só não afastou a ameaça da revolução social,
como a tornou mais necessária à medida que as contradições devidas ao
caráter compósito de sua formação social se acirravam. A Rev
olução de
1905 abriu uma era de revolução social, evidenciando tanto a necessidade
histórica da revolução, quanto à incapacidade orgânica do czarismo de
anulá-la em favor da perspectiva passiva por meio de um mo
vimento
de cooptação das forças rev
olucionárias. Com o reuxo da r
evolução as
pequenas modicações promo
vidas na estrutura política foram rápida
e decididamente anuladas, restaurando o czarismo em sua inteireza sob
a capa de uma monarquia semi-constitucional, enquanto o avanço do
capitalismo foi acelerado com as reformas promo
vidas por S
tolypin.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
211
A crescente contradição entre estrutura a socioeconômica e a
estrutura política explodiu em 1917 de maneira tal que o regime não resistiu
por duas semanas ao levante popular de fever
eiro. A partir daí retoma-se
um processo de rev
olução social manifesto na aceleração da organização
popular por meio dos
soviets
, das comunas rurais, dos sindicatos e partidos
de esquerda, na ocupação das terras pelos camponeses, na deserção em
massa dos soldados e na criação de uma crescente dualidade de poderes
entre o go
verno pro
visório, instalado em fevereir
o, e o
soviet
de P
etrogrado.
A novidade é que a perspectiv
a socialista se colocava no horizonte da
Revolução R
ussa, por conta de um conjunto de fatores. Em primeir
o
lugar
, deve-se destacar o protagonismo dos trabalhadores, particularmente
do operariado industrial, no processo rev
olucionário, devido à própria
incapacidade orgânica da burguesia russa de dirigir qualquer perspectiva
revolucionária, mesmo a de tipo passiv
o. P
rotagonismo expr
esso em
sua emergência absolutamente inov
adora na cena política, em termos
organizativos e programáticos com os
so
viets
e com a perspectiva de controle
operário da produção industrial, de democratização das relações no interior
das forças armadas e da ocupação das terras. A partir de fevereir
o a demanda
pelo controle das fábricas e fazendas pelos trabalhador
es se colocou
progressiv
amente com uma força ainda não vista e inspirou inúmeras
iniciativas de ocupação e autogestão, instituindo uma no
va correlação de
forças em favor do aprofundamento da r
evolução e atropelando a própria
legalidade instalada com a queda da monarquia.
Em segundo lugar
, é preciso considerar a situação internacional
de guerra, favorável à emergência r
evolucionária das massas no centro e na
periferia do sistema capitalista, num movimento articulado de rev
olução
mundial que poderia favorecer a transição socialista num país ainda
atrasado graças ao apoio dos países desenvolvidos cujo poder já estivesse
sob controle dos trabalhadores. O
u seja, a guerra criou uma situação
favorável à uma r
evolução mundial. Em terceiro lugar
, o avanço e a própria
especicidade do processo de modernização econômica da sociedade russa
que, apesar de seus limites, já possuía um setor industrial com níveis de
concentração e avanço tecnológico consideráveis, capazes de dinamizar o
desenvolvimento econômico em outros setor
es e assim criar a base material
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
212
necessária à transição socialista, além de concentrar a classe operária nas
principais cidades do país. Esta nov
a situação conferia à revolução russa o
caráter de uma
rev
olução permanente
2
, pois sequer as tarefas democrático-
burguesas haviam sido realizadas e as tarefas socialistas já se colocav
am
como uma necessidade histórica.
P
or conta do fracasso da revolução passiva desencadeada pelo
czarismo russo em viabilizar a transição para o capitalismo e ao mesmo
tempo conter o ímpeto revolucionário das massas urbanas e rurais, a
Revolução de O
utubro de 1917, o Comunismo de Guerra e a G
uerra
Civil (1918-1921) representam uma r
evolução política e social compósita,
combinando revolução burguesa e r
evolução socialista num mo
vimento
de revolução permanente. N
o entanto, a perspectiva socialista presente
nas formas de controle operário da produção, de controle camponês
da distribuição das terras e na nacionalização da propriedade convivem
contraditoriamente com duas perspectivas burguesas. De um lado a
perspectiva do capitalismo de Estado, presente no estatismo r
epresentado
pelo dirigismo administrativo, que submeteu paulatinamente o controle
operário à gestão individual dos gerentes indicados pelo go
verno; pela
centralização decisória, cada vez mais intensa no âmbito do partido e do
gov
erno; pelo esvaziamento dos
soviets
como instâncias efetiv
as de poder
,
pela submissão dos comitês de fábrica aos sindicatos e destes ao gov
erno e
pelo privilegiamento dos “
especialistas
” no plano da gestão econômica e do
comando militar
, aprofundando a divisão social do trabalho, a diferenciação
salarial e favorecendo a adesão de segmentos burgueses e bur
ocráticos
identicados com a velha ordem ao partido e ao no
vo regime. D
e outro lado,
a perspectiva privatista pequeno-burguesa, r
epresentada pela propriedade
individual camponesa e artesanal, que garantiu o apoio camponês ao
O conceito de revolução permanente foi desenvolvido por M
arx e Engels em diversos trabalhos durante a
conjuntura revolucionária de 1848-49 e no âmbito de sua militância na Liga dos Comunistas. Desde
P
rincípios
básicos do comunismo
(1847), elaborado por Engels, passando pelo
Manifesto do P
artido Comunista
(1848) e
pelas
Reivindicações do P
ar
tido Comunista na Alemanha
(1848) a estratégia da r
evolução permanente é colocada
para a classe operária como caminho para a ultrapassagem da revolução burguesa e a efetivação da r
evolução
socialista, no entanto, é na
Mensagem da Dir
eção Centr
al da Liga dos Comunistas
(1850) que a dinâmica e
as tarefas da revolução permanente são descritas com detalhe, particularmente no tocante à construção da
autonomia política e organizativa da classe operária. P
ara as perspectivas da revolução permanente na R
ússia ver
T
rotsky (1973) e Lênin (2005). P
ara uma análise do contexto de elaboração e do próprio conceito de revolução
permanente em Marx e Engels ver Maciel (2014).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
213
gov
erno bolchevique e a manutenção da aliança operário-camponesa,
particularmente diante da ameaça da restauração aristocrático-burguesa
representada pelos E
xércitos B
rancos, mas ao preço de tornar o campo
russo ainda mais impermeável à perspectiva socialista. Ora, na medida em
que a revolução mundial era derr
otada e deslocada do horizonte político,
permitindo a salvação do sistema imperialista e abortando a perspectiva
de auxilio externo por parte de uma revolução socialista vitoriosa num
país desenvolvido; em que o atraso econômico-social mostrou-se mais
sólido e renitente que o ideário da mudança social e cultural, cobrando
um preço econômico gigantesco; em que o cerco internacional e a guerra
civil impunham uma situação dramática, dizimando física e socialmente
a classe operária russa e forçando a criação de uma economia de guerra,
prevalecem sobr
e a perspectiva socialista a composição com as forças sociais
da velha ordem, o priv
atismo e as tendências centralizadoras e burocráticas,
esvaziando o horizonte socialista da r
evolução. N
este aspecto desagrega-
se uma das condições para o êxito da revolução permanente na ótica de
Marx e Engels, qual seja a autonomia política, ideológica e organizativa do
proletariado e sua transformação em classe dominante, processo iniciado
em 1905, reforçado em 1917 e agora contra r
estado pelo estatismo e pelo
centralismo decisório. P
or
tanto, a revolução permanente consolidada
em Outubro de 1917 começa a ser paralisada em seu próprio bojo, na
medida em que a perspectiva socialista conviveu com grandes diculdades
e começou a ser revertida no seu próprio processo de implantação
.
iii
A NEP (1921-1927) restaura em parte as tendências históricas
desencadeadas durante a revolução passiv
a burguesa, porém sob poder
bolchevique, manifestas no estatismo, no privatismo e no
kulakismo
. O
estatismo expresso na propriedade estatal das grandes empr
esas e no controle
estatal sobre a economia privada; o priv
atismo expresso nas concessões
à economia privada e no restabelecimento das r
elações de mercado; e o
kulakismo no estímulo à propriedade privada no campo e à produção
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
214
para o mercado, que beneciou prioritariamente os camponeses ricos,
kulaks
. Assim, durante a NEP a perspectiva socialista é afastada, mesmo
que intencionalmente de maneira pro
visória, em nome da manutenção
da aliança operário-camponesa que garantiu a Revolução de O
utubro e a
vitória na Guerra Civil.
A NEP teve como ponto de partida o estabelecimento do imposto
em espécie, em março de 1921, para substituir as requisições for
çadas no
campo e estimular a retomada da produção agrícola e assim aplacar o
descontentamento do campesinato com o regime, na medida em que a
guerra civil era vencida pelo Ex
ército V
ermelho e a ameaça de restauração
aristocrático-burguesa era afastada. U
ma vez pago o imposto em espécie, o
campesinato podia vender o seu excedente de pr
odução, o que estimulou
o restabelecimento da economia de mercado no campo
. N
a prática, os
principais beneciários desta liberação foram os camponeses ricos,
kulaks
,
pois o camponês pobre continuou a produzir para subsistência. M
ais tarde
o gov
erno bolchevique liberou o arrendamento das terras e a exploração de
mão de obra no campo, favorecendo os
kulaks
mais uma v
ez e estimulando
seu enriquecimento.
N
o setor industrial e na economia urbana a NEP favoreceu mais
a pequena indústria, produtora de bens de consumo, particularmente
aquela localizada na zona rural, do que a grande indústria do setor de
bens de produção, para garantir o abastecimento do campo e estimular
a produção de excedente agrícola.
T
ambém limitou o processo de
nacionalização/estatização, devolvendo diversas empr
esas à iniciativa
privada, inclusive aos ex-proprietários; além de abrir a economia russa
à investimentos estrangeiros, estimular as práticas comerciais e a busca
do lucro
. N
este movimento foram beneciados os antigos “
caixeiros-
viajantes
”, especulador
es e atravessadores que passaram a explorar o
comércio var
ejista, enquanto o governo pr
ocurava controlar o processo de
distribuição no atacado. Com o r
etorno pleno da economia monetária,
a moeda sofreu um processo de forte desvalorização, gerando inação
e favorecendo ainda mais os comer
ciantes privados. Entre as empr
esas
estatais o gov
erno estimulou a formação de grandes trustes, reunindo
diversas empresas, que também passaram a ser geridas pela perspectiv
a
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
215
da lucratividade. Apesar desta tentativa de otimização da pr
odução e de
superação da desorganização econômica da época do “Comunismo de
Guerra
”, a grande indústria continuou estagnada, particularmente durante
a chamada “
crise da tesoura
”, carente de investimentos, de maquinário e
de técnicos, com aumento do desemprego e queda salarial. M
esmo depois,
quando há uma retomada geral da indústria, o setor que mais se desenvolv
e
ainda é a pequena indústria de bens de consumo, crucial para garantir
as trocas com o campo e o abastecimento das cidades. P
aralelamente o
controle operário da produção era denitiv
amente enterrado, na medida
em que a tendência a entregar a gestão das empresas para os “G
erentes
V
ermelhos”, r
ecrutados entre os antigos gerentes e pr
oprietários das
indústrias, se consolidou, conferindo-lhes uma série de privilégios, salários
diferenciados e permitindo-lhes a adoção de métodos administrativos
despóticos. Se a proposta de militarização dos sindicatos foi r
ejeitada,
por outro lado os mesmos passaram a ser considerados órgãos auxiliares
do Estado, com a função de estimular o aumento da produtividade e a
disciplina no trabalho, paralelamente à sua condição de órgão de defesa
dos interesses dos trabalhadores. O descontentamento operário não se fez
esperar
, com a ocorrência de diversas gr
eves e a denúncia por parte de
diversos setores de que o go
verno bolchevique traía a perspectiva socialista
da revolução
.
A liberalidade econômica instituída pela NEP não se fez
acompanhar da liberalidade política, ao contrário, o centralismo e o
autoritarismo aumentaram, tanto no aparelho de Estado, quanto no
interior do partido, com os diversos setores de oposição sofrendo forte
processo de repr
essão e isolamento político, desde a rebelião de Kronstadt,
em 1921, até o cerco e eliminação da Oposição U
nicada (
T
rotsky
,
Zino
viev
, Kamenev) em 1926-27. Com o afastamento e morte de Lênin,
o sucesso da NEP fortaleceu a aliança Stálin-B
ukharin no comando do
gov
erno, mas particularmente for
taleceu os no
vos segmentos recrutados
para a burocracia, cada vez mais dependentes dos favor
es e privilégios que
lhes eram concedidos pela secretaria geral do partido.
Assim, ao restabelecer o avanço da iniciativ
a privada, mesmo
que sob controle estatal, atraindo investimentos de capitalistas nacionais e
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
216
estrangeiros, os
nepmen
; fortalecer os
kulaks
no campo, apesar da manutenção
da comuna rural, e restabelecer o livre-mercado, o go
verno bolchevique
solapou o controle operário e o papel político dos
soviets
, base política para
qualquer perspectiva socialista efetiva. É fato que no campo o controle
de parte das terras pela comuna rural e pelas cooperativas camponesas
continuou, mas o setor mais dinâmico da agricultura era claramente
baseado na grande propriedade camponesa e no enriquecimento dos
kulaks
. Apesar da r
etomada dos índices de produção para níveis anteriores
à P
rimeira Guerra, o que permitiu a superação r
elativa da grave escassez
de bens e alimentos, o reabastecimento das cidades e certo reequilíbrio
econômico, consolidando o poder revolucionário numa situação de
isolamento internacional e fracasso da revolução mundial, a NEP desatou
nov
as contradições, antagonizando estatismo e privatismo de maneira
crescente e radical. O que refor
çou as tendências centralistas e burocráticas
já manifestas durante o “Comunismo de Guerra
” e impôs o monolitismo
político no interior do partido, do governo e do próprio mo
vimento
comunista internacional. N
este sentido, a NEP signicou uma paralisação
(intencionalmente momentânea) na revolução permanente, pr
evalecendo
as duas perspectivas burguesas que assinalamos, do capitalismo de Estado
e do privatismo, em detrimento da perspectiva socialista.
iv
A partir de 1925 o debate sobre os rumos da NEP se instala,
fundamentalmente por conta das preocupações de alguns setores do
partido com as diculdades de desenvolvimento da indústria de bens de
capital e dos nov
os problemas com o abastecimento nas cidades. A liberação
das práticas de mercado e a abertura à propriedade privada na indústria
beneciaram fundamentalmente o setor de bens de consumo, mantendo
o setor de bens de capital, sob predomínio da propriedade estatal, car
ente
de recursos, tecnologia e mesmo maquinário, apesar do grande avanço
em termos de concentração e centralização econômica. A retomada do
desenvolvimento econômico e o avanço tecnológico nos países capitalistas
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
217
tornaram-se fonte de preocupação ante a possibilidade de um no
vo ataque
militar
, particularmente na conjuntura de rompimento diplomático com
a Inglaterra (1927) e isolamento internacional da URSS. P
aralelamente, o
processo de desvalorização do rublo fez com que os camponeses passassem
a estocar o principal ativo de que dispunham, os cereais, ao inv
és de vendê-
los no mercado e trocá-los por uma moeda desvalorizada pela escalada
inacionária, causando nov
a crise de abastecimento nas cidades.
Diante deste cenário, as demandas por planejamento econômico
e apoio à industrialização se intensicam, mesmo entre os defensores da
NEP
, redenindo a correlação de forças no interior do partido e do Estado
e abrindo caminho para o planejamento estatal, a industrialização acelerada
e a “
coletivização
” forçada do campo
. I
sto porque como uma das bandeiras
da Oposição U
nicada (T
rotsky
, Zino
viev
, Kamenev) era a defesa da
industrialização e a redução das vantagens dadas aos camponeses, além das
críticas ao centralismo decisório e ao burocratismo, enquanto esta não foi
derrotada os setores dirigentes vinculados à S
tálin contiveram suas críticas
à NEP
. No entanto, após a derr
ota denitiva da Oposição U
nicada, em
1927, os ataques aos privilégios conferidos aos camponeses se intensicam
e a “
guerra aos
kulaks
” é anunciada; além da defesa do planejamento
econômico e do apoio à indústria pesada como medidas estrategicamente
necessárias à sobrevivência da URSS. A partir daí a aliança entre S
tálin e
Bukharin em torno da defesa da NEP se rompe pr
ogressivamente e este
passa a constituir a chamada “Oposição de Dir
eita
” (Bukharin, Rikov e
T
omsky), derrotada a seguir
.
Em função da proposta da industrialização acelerada, que tem
como eixo fundamental o apoio integral à indústria de bens de capital,
e de guerra aos
kulaks
e à iniciativa privada no campo, o go
verno passa a
instituir a planicação econômica, com a denição de prioridades, fontes
de nanciamento e metas de produção e distribuição
. O P
rimeiro Plano
Qüinqüenal é apro
vado em maio de 1929.
T
oda a economia passa a girar
em torno da priorização maciça da indústria de bens de capital (metalurgia,
siderurgia, eletricidade, maquinário), da indústria bélica (aeronáutica,
tanques, armas, além da indústria química) e dos setores de infra-estrutura
e transportes (autoestradas, ferrovias, automó
veis, caminhões e tratores).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
218
Entre 1928 e 1940, enquanto a por
centagem de bens de consumo cai
de mais de dois terços da produção total para menos de um quinto, a
produção de bens de produção sobe de pouco menos de um terço para
mais de 60%, evidenciando não só a prioridade dada à indústria pesada,
mas o próprio processo de depr
essão do consumo das classes trabalhadoras.
P
aralelamente, há uma intensicação da pr
essão pelo aumento
da produtividade, tendo em vista que uma das fontes de nanciamento
da industrialização era a inversão dos lucros das próprias indústrias. D
aí
a intensicação da extração da mais-valia, favor
ecida pela normatização
crescente da atividade produtiv
a, pela política de planejamento estatal dos
aumentos salariais, o que implicava no arrocho salarial e no esvaziamento
dos sindicatos como instâncias de negociação, porém, em contrapartida, no
seu reforço como órgãos de educação e disciplinarização dos trabalhador
es
no sentido do produtivismo
. Considerando-se o índice 100 para os anos de
1927-1928, em 1931 o índice de renda nacional cresce para 140, o índice
de produção industrial sobe para 165, enquanto o índice de salários reais
na indústria desce para 65,4, evidenciando o processo de arrocho salarial.
Em outro dado r
evelador do processo de intensicação da exploração da
classe operária com vistas ao nanciamento da industrialização acelerada,
entre 1928 e 1932 a taxa de mais-valia mais do que quadruplica.
Além do autonanciamento pelas próprias indústrias, outras
fontes de nanciamento denidas pelo plano eram o imposto de
renda, o imposto sobre a agricultura, o imposto sobr
e o consumo (este
equivalendo a nada menos que um terço de toda a carga tributária) e o
imposto sobre os setores priv
ados ainda remanescentes. P
ortanto, não
apenas os camponeses nanciaram a industrialização acelerada, mas como
vimos acima, principalmente a própria classe operária, cujo crescimento
demográco se amplica rapidamente após o m da guerra civil, com a
própria industrialização e com o êxodo rural criado no campo pela política
de coletivização forçada. Se entr
e 1928 e 1940 calcula-se uma redução de
mais de 10 milhões de habitantes na tendência de evolução demográca do
país, no mesmo período a população urbana cresce de menos de um quinto
para um quarto da população total, enquanto o operariado industrial quase
triplica. Com a planicação ocorre o controle político da distribuição dos
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
219
produtos e dos preços em geral, além do av
anço acelerado da estatização
das empresas, principalmente nas grandes empresas, com a pr
opriedade
privada tornando-se cada vez mais restrita e limitada às pequenas indústrias
até o seu desaparecimento
.
N
a agricultura, o gov
erno impõe um processo virulento de
“
coletivização
” da terra, obrigando os camponeses a integrarem suas terras,
equipamentos e animais aos
kolkoses
(fazendas coletivas) ou aos
so
vkoses
(fazendas estatais), forçando a abolição da propriedade individual e tirando
dos camponeses a capacidade de decidir como e onde produzir e para quem
vender
. Com toda força e pela força voltam as r
equisições de cereais e o
controle de preços, criando um pr
ocesso de tensão no campo que opõe o
gov
erno soviético ao conjunto do campesinato, não só aos
kulaks
, abrindo
caminho para uma nov
a guerra civil. Entre 1928 e 1932, em média há
uma tendência de queda na produção de alimentos básicos como cer
eais,
batata, carne e leite, enquanto o volume coletado por meio das requisições
forçadas aumenta em termos gerais, e em alguns casos quase duplica, como
no caso dos cereais, ou mais que triplica, como no caso da batata. P
or conta
desta orientação, ao mesmo tempo em que há um processo de aumento da
área dos
kolkoses
e
so
vkoses
, o chamado “
gigantismo
”, a comuna rural russa,
mir
, é extinta como instância de organização e deliberação camponesa,
eliminando-se assim o último resquício do passado feudal russo.
A combinação entre industrialização acelerada e “
coletivização
”
forçada do campo modica drasticamente a paisagem social da URSS na
década de 1930, com o crescimento vertiginoso da população urbana,
particularmente do operariado industrial, graças, em grande parte ao
êxodo rural, ao mesmo tempo em que há uma redução signicativa na
população geral do país. Esta situação permitia aos trabalhadores do campo
e da cidade buscarem melhores condições de vida e trabalho, no entanto,
gerava uma situação de instabilidade social que o go
verno procurou conter
restabelecendo a antiga política czarista de passaportes internos e registro
compulsório na polícia, aliada à uma legislação repressiv
a que proibia a
mudança de emprego e a falta ao trabalho
.
N
o plano político, as tendências centralizadoras e autoritárias
desencadeadas desde a guerra civil se intensicam ainda mais, pois a
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
220
ascensão de S
tálin ao poder signicou a vitória denitiva da burocracia
sobre os trabalhadores e sobr
e as tendências que ainda vislumbravam a
retomada da perspectiva socialista. P
articularmente vitoriosos são os novos
quadros recrutados para a burocracia e as funções “
especializadas
” entr
e o
nov
o operariado e os recém ingressos no partido
. Enquanto há um processo
de expurgo dos antigos “
especialistas
”, quadros da época do czarismo que
aderiram ao nov
o regime, ocorre a ascensão de uma no
va geração, que
herda os privilégios da antiga e a legitimidade política da origem proletária
ou camponesa. E mesmo entre os quadros vitoriosos, que ascenderam ao
poder junto com S
tálin, os expurgos continuaram durante toda a década
de 1930. Após os processos de
Moscou, que eliminaram o que r
estava
das oposições na antiga liderança bolchevique (Oposição U
nicada e
Oposição de Dir
eita), o acerto de contas em favor da autocracia staliniana
continuou, atingindo parte dos próprios quadros stalinistas nos aparatos
administrativo, repr
essivo e militar
. Quanto mais a perspectiva da guerra se
fortalecia, mais Stálin buscou eliminar toda e qualquer alternativ
a política
à sua liderança, mobilizando a máquina do
T
error até mesmo contra seus
mais próximos colaborador
es. N
a conguração da nova or
dem política
destacam-se o centralismo burocrático, que estabeleceu o esvaziamento
denitivo das instâncias independentes e autônomas de organização dos
trabalhadores, como os
so
viets
e sindicatos; o controle da sociedade civil,
que cresceu e se ampliou, mas voltou a ser rigidamente contr
olada pelo
Estado; e uma ideologia legitimadora baseada no culto à personalidade,
no nacionalismo russo travestido de teoria do “
socialismo num só país
”
e na transformação do materialismo histórico numa ideologia estatolatra
denominada “
marxismo-leninismo
”, que passou a justicar com ar
es de
cienticidade e inevitabilidade histórica a
realpolitik
do Estado so
viético
.
Assim, o stalinismo reviveu sob o manto do socialismo as tradições e
práticas autocráticas do czarismo russo.
A revolução passiv
a burocrática (1928) identicada com o
stalinismo e desencadeada a partir da industrialização acelerada, da
“
coletivização forçada
” no campo e da planicação estatal, signicou a
vitória denitiva do estatismo sobre o priv
atismo e o kulakismo com o
reforço da antiga autonomia bur
ocrática sobre a sociedade e o dirigismo
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
221
estatal sobre toda a economia. N
este sentido, o Estado voltou a ser “
tudo
”
e a sociedade civil “
primitiva e gelatinosa
”, conforme a famosa metáfora de
G
ramsci, pois se a revolução passiva bur
ocrática signicou uma
r
evolução
em relação à perspectiva priv
atista burguesa ao mesmo tempo signicou
uma
r
estaur
ação
, uma contra-revolução, em r
elação à perspectiva proletária
e socialista.
N
a dialética entre r
evolução e restauração, a r
evolução passiva
burocrática aboliu denitivamente a economia de mercado, a pr
opriedade
e acumulação privadas, eliminando a burguesia e a pequena burguesia
enquanto classes, assim superando a própria rev
olução democrático-
burguesa sob o imperativo da modernização econômica. N
o entanto, a
superação da revolução democrático-burguesa não implicou na r
etomada
da revolução socialista, consumando a r
evolução permanente, mas na
restauração de práticas e processos sociais da época do czarismo, sob a
capa ideológica do “
socialismo num só país
”, congurando assim uma
verdadeira
contr
a-r
evolução
em relação à perspectiv
a socialista original. Em
primeiro lugar
, é restaurado o cativeiro da mão de obra urbana e rural, com
o controle das migrações internas e da própria mobilidade dos trabalhador
es
no trabalho, enquanto a diferenciação salarial e a desigualdade social entr
e
“
especialistas
” e trabalhadores manuais é estimulada. O planejamento
econômico e a estatização da economia radicalizam o intervencionismo
estatal “
mercantilista
” do Estado czarista, tornando o crescimento
econômico um fator de fortalecimento e crescimento do aparato estatal.
A própria burocracia emerge como única força política institucionalizada
e organizada, limitando a sociedade política ao gov
erno, particularmente
à alta cúpula, e estatizando a sociedade civil. Este processo se dá por meio
da incorporação do partido comunista no Estado, da extinção dos outros
partidos e organizações políticas, do m dos
soviets
enquanto organizações
independentes e autônomas dos trabalhadores, da extinção da comuna
rural e da transformação dos sindicatos em órgãos do Estado para o
controle dos trabalhadores e sua submissão à lógica do pr
odutivismo e
da super-extração da mais-valia. N
o plano ideológico há uma ampliação
signicativa dos aparatos culturais, educacionais e cientícos, porém sob
controle estrito e censura policial. A serviço de uma política de potência,
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
222
da legitimação do regime e da submissão das repúblicas e territórios
não-russos dentro da URSS à Rússia o velho nacionalismo grão-russo é
resgatado, juntamente com valor
es e tradições do imaginário czarista como
a grandeza imperial, o paternalismo do czar
, etc. P
orém não na sua forma
original, mas travestidos na doutrina do “
socialismo num só pais
”, no “
culto
à personalidade
” do líder infalível, na ideologia da “
pátria do socialismo
”
e no próprio marxismo-leninismo, como doutrina da inevitabilidade
histórica do socialismo. N
esta operação foram mobilizados não apenas
a literatura, o cinema, a música e as artes, mas a própria historiograa,
orientada para ressaltar a continuidade entre a grandeza da R
ússia dos
Czar
es e a infalibilidade da URSS de S
tálin diante do Ocidente capitalista.
P
or isto, com a vitória do stalinismo a revolução permanente é
interrompida denitivamente, em favor de uma perspectiv
a burocrática que
submete os trabalhadores à uma no
va forma de dominação política e social e
instala de maneira consolidada um capitalismo de Estado exitoso em termos
de desenvolvimento industrial e tecnológico, mas francamente limitado em
termos igualitários e libertários. Desse modo, as esperanças de emancipação
dos trabalhadores suscitadas pela R
evolução de Outubro naufragam no
estabelecimento de uma nov
a forma de dominação social e política.
r
eferênciAs
GRAMSCI, Antonio.
Cadernos do Cár
cere
. Rio de J
aneiro: Civilização B
rasileira, 2002.
v
. 5.
GRAMSCI, Antonio.
Cadernos do Cár
cere
. 3. ed. Rio de J
aneiro: Civilização B
rasileira,
2004. v
. 1.
LÊNIN, Vladimir I. Às portas da revolução
.
In
: ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução:
seleção dos escritos de Lênin de fevereiro à outubr
o de 1917. São P
aulo: Boitempo,
2005. p. 23-169.
MACIEL, David. N
otas sobr
e revolução passiva e transformismo em G
ramsci.
História
Revista
, Goiânia, v
. 11, n. 2, p. 273-299, jul./dez. 2006.
MACIEL, David. O conceito de r
evolução permanente em Marx e Engels.
In
:
DEL R
OIO, Marcos (org.).
M
arx e a dialética da sociedade civil
. Marília: Ocina
U
niversitária; São P
aulo: Cultura Acadêmica, 2014. p
. 205-231.
TR
O
TSKY
, León.
Balanço e perspectivas
. Lisboa: Delfos, 1973.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
223
b
ibliogrAfiA
c
onsul
t
ADA
ANDERSON, P
.
Linhagens do Estado A
bsolutista
. São P
aulo: Brasiliense, 1985.
ALLINICOS, Alex.
A vingança da História
: o marxismo e as Revoluções do Leste
Europeu. Rio de J
aneiro: Jorge Zahar
, 1992.
CARR, E.H.
A Revolução R
ussa de Lenin a Stalin (1917-1929)
. Rio de J
aneir
o: Jorge
Zahar
, 1981.
CHRETIEN,
T
odd. Antes de Fev
ereiro
.
Blog J
unho
, 10 mar
. 2017. Disponível em:
http://blogjunho.com.br/antes-de-fever
eiro/. Acesso em: 15 maio 2017.
DEL R
OIO, Marcos.
O I
mpério U
niversal e seus antípodas
: a ocidentalização do mundo
.
São P
aulo: Ícone, 1998.
DEUSTCHER, I
saac.
A Rev
olução inacabada
: Rússia 1917-1967. Rio de J
aneiro:
Civilização Brasileira, 1968.
DEUSTCHER, I
saac.
S
tálin
: uma biograa política. Rio de J
aneiro: Civilização
Brasileira, 2006.
FERR
O, Marc.
A R
evolução Russa de 1917
. S
ão P
aulo: P
erspectiva ,1974.
LÊNIN, Vladimir I.
O P
rogr
ama Agr
ário da social-democr
acia na primeir
a Revolução
Russa de 1905-1907
. Goiânia: Alternativa, 2002.
MARX, Karl.; ENGELS, F
riedrich. “M
ensagem da Direção Central da Liga dos
Comunistas
”.
In
: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.
O
bras E
scolhidas
. t.1. Lisboa/
Moscou: A
vante!/Pr
ogresso, 1982. p. 178-188.
MEDVEDE
V
, Roy
.
Er
a inevitável a Revolução R
ussa?
Rio de J
aneiro: Civilização
Brasileira, 1978.
MEDVEDE
V
, Zhores; MEDVEDEV
, Roy
.
U
m Stálin desconhecido
. Rio de J
aneiro:
Civilização Brasileira, 2006.
MIÉVILLE, China.
Outubro
: história da R
evolução Russa. S
ão P
aulo: Boitempo, 2017.
MONTEFIORE, Simon.
S
tálin
: a corte do czar vermelho. S
ão P
aulo: Companhia das
Letras, 2006.
NÈRÈ, J
acques. A Rússia no século XIX.
In
:
História Contempor
ânea
. 4. ed. Rio de
J
aneiro: Bertrand Brasil, 1992. p
. 279-293.
NÈRÈ, J
acques. A U.R.S.S.
In
:
História Contempor
ânea
. 4. ed. Rio de J
aneiro: Bertrand
Brasil, 1992. p
. 423-439.
WOLF
, Eric R.
Guerr
as camponesas do século XX
. São P
aulo: Global, 1984.
REIMAN, Michal. Os bolcheviques desde a guerra mundial até Outubr
o
”.
In
:
HOBSBA
WN, Eric J.
História do Marxismo
. Rio de J
aneiro: P
az e
T
erra, 1985. v
. 5. p.
75-112.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
224
SIL
V
A, Lígia Maria Osorio.
Lênin
: a questão agrária na R
ússia. Crítica Marxista, São
P
aulo, n. 35, p
. 111-129, 2012.
P
Ar
te
iv
E
, A
I
T
S
227
O
R
R
E
M
P
N
eusa Maria Dal Ri
i
ntr
oDução
A
Revolução R
ussa foi um dos fenômenos que mais inuenciou
o século XX e, além de seus reexos na política, r
epercutiu também nos
demais campos da atividade humana, como na arte e na ciência. A energia
criadora liberada pela revolução se fez pr
esente em várias áreas, como na
poesia com Maiako
vski, no cinema com Sergei Eisenstein, na literatura e
dramaturgia com Gorki, na música, no teatro, na pintura e, sem dúvida,
na educação.
Em nenhum país do mundo contemporâneo, no século XX,
a educação teve a dimensão que tomou na R
ússia So
viética, assumindo
importância decisiva para a construção do socialismo. O entrelaçamento
da educação com as condições materiais da sociedade e a necessidade
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
228
do vínculo entre teoria e prática, segundo o princípio marxista, nunca
estiveram tão claros quanto no período singular que foi o início da
revolução bolchevique.
Desse modo, ao elaborarmos este texto tivemos como principal
objetivo expor algumas reex
ões acerca do processo educacional
desencadeado pela Revolução R
ussa e, em especial, a contribuição do
educador M
oisey Pistrak para esse processo
.
As reexões aqui colocadas r
esultam de pesquisas desenvolvidas
durante anos, para as quais aprofundamos os estudos sobre a pedagogia
soviética ou politecnia. As r
eferidas investigações estiveram articuladas a
três projetos de pesquisa r
elacionados à temática da educação, trabalho
e movimentos sociais de trabalhador
es do século XIX e atuais, em
especial o M
ovimento dos
T
rabalhadores Rurais Sem
T
erra (MST) do
Brasil, e o M
o
vimento Zapatista do M
éxico. D
essa forma, as reexões
aqui apresentadas têm suporte na análise de dados coletados por meio de
pesquisa bibliográca, documental e empírica.
1 c
entenário
DA
r
ev
oluçã
o
r
ussA
e
A
A
tu
Al
e
DucAçã
o
Reetir sobr
e a educação pública no centenário da Revolução
Russa nos obriga a considerar a experiência r
evolucionária desencadeada
com a pedagogia soviética pr
oduzida sob o poder do estado operário, dos
sovietes e do partido bolchevique.
Além da discussão sobre os vários elementos inter
essantes
aportados pela pedagogia soviética, pensamos que esse debate é importante
principalmente por dois motivos.
P
rimeiro, porque hoje, mais do que nunca, o sistema capitalista
encontra-se em franca decadência, apresentando vários sinais de morbidez
no tocante à totalidade da vida social (DAL RI, 2013). Os retr
ocessos
civilizatórios impostos pelo capital na atual etapa histórica de crise do
capitalismo ou da globalização neoliberal são evidentes e se avolumam por
toda parte, nos países centrais e principalmente nos periféricos. Guerras,
massacres e genocídios se tornam fatos comuns ou uma
no
va normalidade
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
229
constituída pela agressiva espoliação imperialista dos r
ecursos naturais, dos
fundos públicos dos países e da super exploração do trabalho; um trabalho
crescentemente sem garantias e sem proteções legais.
O tipo de política implantado pelo capital para tentar enfrentar
a crise é totalmente contrário aos interesses das classes trabalhadoras, e
tem colocado, em especial na última década, parcelas signicativas das
populações em situação de miséria absoluta. N
o entanto, as políticas
neoliberais não têm sido somente alvo de fortes questionamentos, mas
sim de inúmeras mobilizações de massas que ocorrem em numerosos
países. São mobilizações popular
es que clamam por direitos fundamentais
e por democracia efetiva. Dentr
e as manifestações de massa destaca-se o
movimento da educação, que tem sido o mo
vimento que mais cresce no
mundo desde antes de 2010 (DAL RI; VIEITEZ, 2011).
O segundo motivo do porque o debate sobr
e esse tema é
importante diz respeito à experiência educacional historicamente
acumulada pelas classes trabalhadoras e suas lutas. N
esse sentido, é possível
extrair muitas lições para as atuais lutas em curso a partir da experiência
soviética na educação, principalmente aquelas r
elativas aos mo
vimentos
docente e estudantil, bem como reetir sobre uma questão que nos par
ece
fundamental: que educação o socialismo pode produzir?
P
ara r
esponder essa questão, não basta apenas reetir sobre a
educação pós-Revolução R
ussa, mas parece necessário pensar sobr
e uma
educação
no e para aqui e no e par
a agora
, que possa contribuir para a futura
revolução
. Mas, para podermos extrair as lições da experiência so
viética,
precisamos conhecê-la e discuti-la.
2 r
ev
oluçã
o
r
ussA
e
o
P
r
ocesso
e
DucAcionAl
Imediatamente após a R
evolução Russa, os r
evolucionários
que atuavam no campo da educação tomaram medidas pedagógicas,
administrativas e políticas para a reconstrução do sistema educacional
e iniciaram a elaboração da proposta teórico-prática que podemos
denominar de pedagogia soviética, escola do trabalho ou politecnia. Esses
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
230
termos apresentam diferenças, mas por uma comodidade de exposição os
tomamos como sinônimos.
U
ma das principais características da pedagogia so
viética é o
estabelecimento do vínculo entre a escola e o trabalho produtiv
o.
Em primeiro lugar
, esclarecemos que a tese do trabalho como
princípio educativo não foi elaborada pelos so
viéticos. Essa discussão
remonta às análises de M
arx e Engels sobre a educação, bem como à sua
proposta de união do ensino com o trabalho produtivo
.
Os escritos de Marx e de Engels sobr
e a questão educacional
não são numerosos e nem são dirigidos especicamente a essa temática.
Entretanto, os autor
es revelam coer
ência e consistência no sentido de se
manterem éis às análises e proposições efetuadas nos mais de 30 anos que
separam os seus textos que foram escritos em momentos cruciais, tanto da
investigação cientíca como da história do mo
vimento operário.
N
este texto não temos o objetivo de expor os escritos de M
arx e
Engels sobre educação e apr
esentar uma análise aos leitores
1
. P
ara nosso
intuito, indicado na introdução, basta armarmos que a proposição
elaborada pelos referidos autores apar
ece como: ensino para todas as
crianças, em institutos nacionais e a expensas da nação; ensino e trabalho
de fábrica juntos e a exigência das escolas técnicas, com seu duplo conteúdo
teórico e prático.
T
rata-se de uma proposição democrática relativa à
universalidade e à gratuidade do ensino
. Mas há também uma proposição
tipicamente socialista que é a união do ensino e do trabalho na fábrica,
coisa que Marx e Engels não inventaram, mas encontraram nos
utopistas
,
em especial em Robert Owen.
Importante frisar que não se tratava de uma proposta de lev
ar
a aprendizagem de fábrica para o interior da escola, mas sim de levar as
crianças para o trabalho nas fábricas, com objetivos pedagógicos.
Os principais textos que trazem proposições em relação à educação e
ao ensino derivam de três programas
políticos: a) Manifesto do P
artido Comunista, escrito em 1848 por Marx e Engels; b) Instruções aos Delegados do
I Congresso da Associação Internacional dos
T
rabalhadores, escrito em 1866-67 por Marx; c) Crítica ao Programa
de Gotha, escrito em 1875 por Marx. A análise desses textos encontra-se em DAL RI, N. M.
Educação democr
ática
e trabalho associado no contexto político-econômico do M
ovimento dos
T
rabalhador
es Rur
ais Sem
T
err
a
. 2004. 315 f.
T
ese (Livre-Docência) – F
aculdade de F
ilosoa e Ciências, U
niversidade Estadual P
aulista, Marília, 2004.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
231
Marx (1975, p
. 242) não aceitava o trabalho explorador das
crianças que existia na época, mas armava que
[...] regulamentada severamente a jornada de trabalho segundo as
diferentes idades e aplicando as demais medidas prev
entivas para a
proteção das crianças, a combinação do trabalho produtivo com o
ensino, desde uma tenra idade, é um dos mais poderosos meios de
transformação da sociedade atual.
As teses de Marx e Engels não tinham tido uma grande inuência
sobre o pensamento pedagógico moderno e sobre a organização dos centr
os
de ensino, até o momento de sua recuperação por Lenin e de sua assunção
como base do sistema escolar da Rússia.
A Rússia começou a enfr
entar o grave problema da instrução
pública no momento em que reinava em seu território a ruína causada
pela I P
rimeira Guerra (1914-1918) e pela guerra civil (1918-1920), com
a invasão de forças armadas da E
uropa Ocidental, dos EU
A e do J
apão.
A crise ainda era agravada pelo cerco hostil dos Estados capitalistas que
decretaram o bloqueio econômico e o boicote político, desencadeando
uma propaganda anti-so
viética agressiva e ajudando a contra-r
evolução.
Lenin chamava a atenção para o fato de que o socialismo teria de
ser construído nas condições concretas existentes, sem ilusões e, em relação
à educação, critica duramente a velha escola. P
ara ele o socialismo deveria
abolir da escola tudo que não servisse aos propósitos revolucionários, como
o seu caráter classista e o método autoritário.
Lenin tinha total convicção do papel estratégico da educação para
o sucesso da revolução socialista e se empenhou pessoalmente para que a
escola do trabalho fosse promulgada para o sistema educacional.
[...] não se pode conceber o ideal de uma sociedade futura sem unir
o ensino com o trabalho produtivo da no
va geração. N
em o ensino
e a educação sem um trabalho produtivo, nem o trabalho produtivo
separado do ensino e da educação poderão colocar-se à altura do atual
nível da técnica e do presente estado dos conhecimentos cientícos
(LENIN [
s. d
.] apud KRUPSKA
YA, 1986, p. 41; LENIN s.d. apud
MANACORDA, 1969, p
. 47).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
232
Lenin [s. d.] considerava a questão educacional mais ampla e
complexa do que a sua expressão escolar
. P
ara ele, a mudança educacional
implicava ao mesmo tempo uma transformação nas relações de pr
odução,
nas instituições e nos processos sociais. As classes sociais estabelecem r
elações
sociais de produção e suas contradições educam efetivamente as massas
trabalhadoras. P
ortanto, na constr
ução da sociedade socialista, o processo
cultural implicava uma tarefa muito mais ampla do que a organização do
sistema escolar
, pois envolvia o conjunto das relações sociais
Logo após a revolução foi criado o Comissariado N
acional
da Educação (N
arK
omP
ros)
2
, órgão que passou a cuidar dos assuntos
culturais e educacionais e tinha como principal tarefa reconstruir o sistema
educacional russo. Em outubro de 1918 o Comitê Central do P
artido
Comunista (Bolchevique) publicou as Deliberações acerca da Escola
Ú
nica do
T
rabalho a serem implantadas de imediato
. N
esse mesmo ano, o
Comissariado criou as Escolas Experimentais-Demonstrativas, instituições
de ensino voltadas para a aplicação da no
va pedagogia.
Destacamos três educador
es que tiveram uma grande inuência
na construção teórico-prática da pedagogia soviética: Krupskaya que foi
membro do Comissariado N
acional da Educação; M
akarenko grande
teórico da noção e prática da coletividade; e Pistrak que desenvolv
eu a
ideia prática da escola do trabalho e a auto-organização dos alunos.
3 M
oisey
P
istrAk
e
A
e
scolA
Do
t
rAbAlho
M
oisey M. Pistrak nasceu em 1888 e faleceu em 1937. Era doutor
em Ciências P
edagógicas, professor e trabalhou no Comissariado N
acional
da Educação de 1918 a 1931.
N
ão há muitas informações sobre a vida de P
istrak e no Brasil
temos apenas dois livros seus publicados. Mas sabemos que além de ter
sido um dos educadores que mais se destacou na elaboração da pedagogia
soviética, dedicou-se à educação primária e secundária, sendo pr
ofessor e
O Comissariado Nacional da E
ducação esteve sob a presidência de Lunachaskiy que atuou nessa posição até
1929, ano em que as pressões para se alterar os rumos da educação soviética se tornaram muito mais fortes
(FREIT
AS, 2009, p
. 11).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
233
dirigente de escolas-comunas instituídas pela instrução pública publicada
pelo Comissariado. A experiência mais conhecida de P
istrak foi a que
desenvolveu na escola Lepeshinskiy ou Escola-Comuna do N
arK
omP
ros
fundada em 1918 por encargo do Comissariado. As Escolas-Comunas
tinham a nalidade de colocar em prática as Deliberações da Escola Ú
nica
do T
rabalho.
A base da nov
a escola idealizada por Pistrak partia das leis gerais
que regem o conhecimento do mundo natural e social, das leis do trabalho
humano, da estrutura psicofísica dos educandos e do método dialético. É
desta forma que Pistrak denia a Escola do
T
rabalho
Há vários elementos que poderíamos destacar na proposta de
Pistrak, mas, dado os limites deste texto, destacamos: a educação política;
a organização da escola que compreende a auto-organização dos alunos e a
visão de Pistrak sobr
e a criança; união do ensino com o trabalho produtivo;
e o sistema dos complexos.
3.1 E
A questão da política ligada à educação, ou seja, de uma educação
de classe versus uma educação neutra foi uma das grandes polêmicas que
se instalou na URSS na época da implantação da escola do trabalho. Aliás,
uma questão que gerou muitas polêmicas recentemente no B
rasil com o
movimento denominado
escola sem partido
.
N
a ver
dade, essa é uma questão sempre atual, pois a denominada
escola neutr
a
, recheada apenas de conhecimentos cientícos, com um
referencial meritocrático
e classicatório de acordo com as capacidades
de cada um é uma das principais proposições liberais para a educação
. É
comum ouvirmos nos corredor
es universitários a defesa inamada dessa
proposição, presente nos discursos de v
ários colegas nos departamentos de
ensino e outros setores das univ
ersidades. U
ma proposição que se mascara
de neutra, mas que, no entanto, não passa de uma educação política e
ideológica, qual seja, a do liberalismo.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
234
A polêmica instalada na época na URSS adentrou outras
organizações, em especial as ligadas aos professores. Bogachev
, dirigente
do sindicato dos professores da URSS, defendia uma escola neutra e
independente da política. N
o interior da Internacional dos
T
rabalhadores
do Ensino, a proposta da escola com caráter de classe transforma-se num
grande debate. “N
o seu primeiro congr
esso, em 1922, alguns de seus
membros defendem outra proposta, a da escola única racional e universal.
P
ara eles, a escola não dev
e estar a ser
viço de uma classe, mas da criança
[...]” (MACHADO, 1991, p
. 140).
Pistrak, depois de Lenin, foi o maior defensor da política na
escola e de uma escola com política.
Armava Lenin (1918 apud PISTRAK, 2002, p
. 22) que “N
osso
trabalho no domínio escolar consiste em derrubar a burguesia, e declaramos
abertamente que a escola fora da vida, fora da política, é uma mentira e
uma hipocrisia.
”.
Em todos os estados burgueses, são muito íntimas as relações entr
e
o aparelho político e o ensino,
embor
a a sociedade burguesa não possa
reconhecê-lo
; entr
etanto, esta sociedade educa as massas através da
Igreja e por intermédio de todas as organizações que se baseiam na
propriedade privada. N
ão podemos deixar de colocar francamente
a questão, reconhecendo, abertamente, apesar das antigas mentiras,
que a educação não poderia ser independente da política (LENIN,
1920 apud PISTRAK, 2002, p
. 23, grifos do autor).
Pistrak (2002) armava que a escola sempr
e foi uma arma nas
mãos das classes dirigentes, mas a classe dominante não tinha nenhum
interesse em rev
elar o caráter de classe da escola capitalista. Ao contrário
disso, pensava que um dos problemas da r
evolução social era o de mostrar
a natureza de classe da escola. Pistrak defendia uma educação de classe para
a classe trabalhadora, e uma política na escola voltada para a construção
do socialismo.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
235
3.2 A
Sobr
e a organização da escola que compreende a auto-organização
dos alunos, Pistrak (2002) questionava: Q
ue tipo de homens e mulheres a
fase revolucionária em que estamos viv
endo exige de nós?
P
ara P
istrak, a fase era de luta e de construção do socialismo. E para
que a fase fosse benéca, cada membro da sociedade deveria compr
eender
claramente o que era preciso construir e como construir
.
P
ara isso, a escola dev
eria desenvolver as seguintes qualidades:
1) aptidão para trabalhar coletivamente e para encontrar espaço num
trabalho coletivo;
2) aptidão para analisar cada problema nov
o como organizador;
3) aptidão para criar as formas ecazes de organização (PISTRAK,
2002, p. 41).
P
ara P
istrak (2002), colocar o trabalho coletivo na escola era
o principal problema do no
vo sistema escolar
. De acordo com o autor
(2002), a aptidão para o trabalho coletivo apenas poderia ser adquirido no
trabalho coletivo, e esse era um problema que a escola tinha que enfr
entar
.
Mas, a aptidão para trabalhar coletivamente signicav
a também aprender
a dirigir quando necessário e obedecer quando preciso
. P
ara atingir esse
objetivo seria necessário implantar a auto-organização das crianças para
que todos os alunos, na medida do possível, ocupassem sucessivamente
todas as funções, tanto a de dirigentes como as subordinadas.
A aptidão para analisar cada problema no
vo como organizador
,
ou como um técnico mais dirigente político (GRAMSCI, 1970),
pressupunha desenvolv
er os hábitos de organização política que deveriam
ser adquiridos durante o desempenho de diversas funções exer
cidas pelas
crianças. Essa aptidão seria desenvolvida na medida em que as crianças
gozassem de liberdade e iniciativa pr
óprias para decidirem sobre todas as
questões relativas à sua organização
. Os r
esultados apenas seriam atingidos
se a auto-organização for admitida sem reservas.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
236
Do nosso ponto de vista, nas argumentações de P
istrak, duas
coisas se destacam.
A primeira refere-se ao seu conceito de aptidão
. Ao entender o
indivíduo em relação com a sociedade e no coletivo, P
istrak rompe com a
visão individualista burguesa de aptidão, ou com aquilo que Bowles e G
intis
(1976) denominam de dom, conceitos desenvolvidos pelo liberalismo
.
A segunda diz respeito à visão que o autor tem de criança. P
ara
ele, a criança não é um ser que deve ser preparado para ser membr
o da
sociedade, visão da educação burguesa. Ao contrário, para o autor as
crianças já são membros da sociedade, tendo seus problemas, inter
esses,
objetivos, ideais, e já estão ligadas à vida dos adultos e da sociedade. Dessa
forma, a auto-organização deveria ser para elas um trabalho sério e de
responsabilidade.
A forma da auto-organização das crianças proposta por Pistrak
(2002, 2009) é a do coletivo infantil. O coletivo infantil deveria inculcar
nas crianças a iniciativa coletiva e a r
esponsabilidade correspondente às
suas atividades.
Pistrak não se r
eferia a um tipo de auto-organização destinado a
ajudar o professor e a escola, mas a um coletivo organizado e dirigido pelas
próprias crianças. A auto-organização das crianças deveria ser introduzida
na escola na realização de determinadas ações práticas e esse trabalho
deveria ser organizado de modo que o ensino pudesse ser compreendido
pelo espírito das crianças como uma ação importante para sua vida.
Pistrak (2002) arma que sem o auxílio dos adultos, as crianças
podem perfeitamente organizar-se sozinhas. N
o entanto, os pedagogos
deveriam auxiliar levando para as crianças as bases da auto-organização,
porém, sem se intrometer na vida das crianças, dirigindo-as ou esmagando-
as com sua autoridade e poder
.
A auto-organização corresponderia aos objetivos da educação
soviética, pois um dos pilar
es da escola do trabalho estava na proposta do
coletivismo.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
237
3.3 U
Pistrak (2002, 2009) defendia que o trabalho na escola deveria
estar ligado ao trabalho social, à produção real, a uma atividade concr
eta
socialmente útil. Sem isso o trabalho per
deria seu valor essencial, seu
aspecto social, reduzindo-se ou à aquisição de algumas normas técnicas ou
de procedimentos metodológicos ilustrativos. Desse modo, o trabalho se
tornaria anêmico, perderia sua base ideológica
Ao abordar e discutir a questão, P
istrak propõe várias formas para
se desenvolver as atividades na escola do trabalho
. Ressaltamos algumas.
A primeira refere-se à ex
ecução pelos alunos do trabalho doméstico
na escola. Pistrak posiciona-se contra a ex
ecução por parte das crianças de
trabalhos domésticos pesados e enfadonhos. P
orém, defendia esse tipo de
trabalho, porque ele permitia aos alunos adquirirem bons hábitos no seio
da família e sem os quais seria impossível pensar na criação de um no
vo
modo de vida.
Assim os trabalhos domésticos realizados pelas crianças seriam os
de limpeza dos quartos, manutenção da ordem, participação nas tarefas de
cozinha e no serviço de alimentação, como distribuição dos alimentos etc.
U
m dos objetivos principais dessa tar
efa era desenvolver a vida coletiva,
porque ela signicaria não apenas uma melhoria das condições existentes,
mas também a possibilidade de começar um nov
o modo de vida.
Outra forma de trabalho na escola referia-se aos trabalhos sociais,
de utilidade social, uma série de tarefas que poderiam ser ex
ecutadas
pelas crianças, como, por exemplo, a limpeza e a conservação dos jardins
e de parques públicos, a plantação de árvores, a conservação das belezas
naturais, etc. Essas formas de trabalho extra-escolar acabavam constituindo
o trabalho social da escola enquanto centro cultural.
P
ara P
istrak (2002), os cidadãos deveriam considerar a escola
como um centro cultural capaz de participar da atividade social; a escola
deveria conquistar o direito de contr
ole social em diversos campos, o
direito e o dever de diz
er sua palavra em relação a certos acontecimentos
sociais e o dever de modicar a vida.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
238
Arma Pistrak (2002, p
. 58): “Quando este ponto de vista for
admitido por todo mundo, nossa escola se tornará viva.
”.
Depois da Rev
olução de Outubro foram proclamados os princípios
da escola do trabalho, sobretudo depois da publicação do regulamento
sobre a Escola única do trabalho, em que se colocava o trabalho pr
odutivo
no interior da escola. A partir disso, as escolas e estabelecimentos de ensino
para crianças lançaram-se na organização de ocinas escolares de todo o
tipo. E esta é a ter
ceira forma do trabalho na escola.
“De fato, as ocinas são necessárias à escola, servindo como
instrumento da educação baseada no trabalho, se não quisermos limitar a
escola a um estudo puramente teórico do trabalho humano.
” (PISTRAK,
2002, p. 58).
Se quisermos que as crianças compreendam
verdadeiramente o
que é a técnica da grande indústria, não podemos nos limitar a
mostrá-la ou facultar a leitura de tudo o que lhe diz respeito
. [...] É
preciso participar do trabalho para compreender o trabalho de uma
máquina, é preciso sentir diretamente o que é de fato a mecanização
da produção. O
ra, a ocina prossional pode propiciar tudo isso.
(PISTRAK, 2002, p
. 59).
O principal benefício do desenvolvimento dessa atividade
encontrava-se no fato de que as ocinas serviam de ponto de partida para o
estudo e a compreensão da técnica moderna e da organização do trabalho
.
P
or último, Pistrak (2002, 2009) defendia que o trabalho na
ocina escolar deveria ser produtivo, pr
oduzir objetos com utilidade
prática. A questão do trabalho produtivo lev
ava à questão da organização
da ocina. Os alunos deveriam produzir objetos acabados, ser capaz
es
de calcular o tempo necessário para a fabricação, os materiais utilizados,
etc. Essa contabilidade levaria a uma série de outras questões: cálculo
dos materiais; estabelecimento de um esquema de trabalho; orçamento
detalhado; tempo com o trabalho coletivo; sistema de divisão de trabalho,
dentre outros.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
239
Desse modo, se chegaria à questão da organização econômica,
aos elementos da administração que deveriam ser bem conhecidos pelas
crianças. Isso possibilitaria, mais tar
de, a compreensão de certos problemas
econômicos e das bases do orçamento nacional.
A outra forma de atividade da escola do trabalho proposta por
Pistrak (2002, 2009), a mais inter
essante, é o trabalho na fábrica. P
orém,
também era a mais difícil de ser executada.
P
ara P
istrak, o trabalho direto na fábrica era de extrema
importância, pois ele não poderia ser substituído pelo trabalho das ocinas.
“É indispensável que o aluno participe no trabalho produtivo
lado a lado com o operário ou com o aprendiz. Qualquer outra forma
de trabalho não passará de um sucedâneo incapaz de levar ao mesmo
objetivo
.
” (PISTRAK, 2002, p. 80).
Além disso, para ele a criança deveria participar de todas as
manifestações na fábrica, ter contato íntimo com os operários, sua vida,
seu trabalho, participar das assembleias, cooperativas, clube, juventude
comunista, festas, etc.
Pistrak arma que essas considerações estavam em nív
el teórico,
pois não podiam ser realizadas naquele momento
. P
orém, pensava que
no futuro esses princípios constituiriam a única pedagogia comunista
conveniente à escola nos grandes centros ou nas pro
ximidades das
grandes fábricas.
Pistrak ainda apr
esenta duas outras formas da escola do trabalho, o
trabalho agrícola e o trabalho improdutivo
. F
az par
te da segunda categoria o
trabalho do funcionário de Estado ou das instituições sociais (secretariado,
escritório, agências, aparelho so
viético, comitê de fábrica, contabilidade,
administração, órgãos sindicais etc.); o domínio da cooperação sob todas
suas formas (consumo agrícola, crédito, produção) e o comér
cio do Estado;
trabalho do educador; trabalho sanitário e médico. P
ara ele, as crianças
desde muito cedo deveriam participar desses trabalhos na escola, pois são
importantes elementos sociais.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
240
Do nosso ponto de vista, P
istrak foi o educador que, por meio de
suas proposições e da experiência pedagógica que desenvolveu na condução
da Escola Lepechinsky e em outras escolas primárias de sua época, levou
mais a fundo ou de forma mais radical as propostas de Marx e de Engels de
união entre o ensino e o trabalho produtiv
o.
3.4 S
Pistrak (2002) aponta a necessidade da organização das disciplinas
do programa em complexos, na medida em que, para ele, este era o único
sistema que garantiria uma compreensão da realidade de acor
do com o
método dialético. O sistema dos complex
os deixa de ser uma boa técnica
de ensino, para ser um sistema de organização do programa justicado
pelos objetivos da escola.
O primeiro passo era a escolha dos temas do complexo
. Cada
complexo proposto aos alunos deveria ser um fenômeno de grande
importância e de alto valor
, enquanto meio de desenvolvimento da
compreensão das crianças sobre a r
ealidade. O critério de seleção dos temas
deveria ser procurado no plano social e não na pedagogia pura, deveria
ter um valor real. Cada complex
o poderia ser analisado de duas formas:
ou como um assunto preciso, delimitado; ou como um assunto principal,
encadeado por múltiplas relações com uma série de outros fenômenos.
De acordo com P
istrak (2002), o sistema do complexo não é
apenas uma técnica pedagógica: trata-se do método fundamental para
analisar a realidade atual do ponto de vista marxista. O sistema tem por
objetivo treinar a criança na análise da r
ealidade por meio do método
dialético; e isso ocorreria na medida em que ela assimilasse o método na
prática, compreendendo o sentido de seu trabalho
.
Ao analisarmos as proposições de P
istrak para a escola do trabalho
percebemos que elas apresentam uma unidade dos objetiv
os escolares,
pois há uma interação orgânica e dinâmica, ou seja, o educador propõe
o encadeamento entre o trabalho técnico-político, a auto-organização das
crianças, o trabalho social da escola e o ensino.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
241
c
oncl
usão
A leitura e os estudos sobre a teoria formulada e as experiências
práticas conduzidas pelos educadores so
viéticos, em especial por Pistrak,
na primeira fase da revolução colocam-nos v
árias questões. A primeira é o
questionamento da atual escola capitalista, seus métodos e conteúdos e sua
organização. O
bser
vamos que a escola
ensina
não apenas pelos conteúdos
ministrados, mas, sobretudo, por meio do currículo oculto
. A organização
do trabalho pedagógico na escola é pensada e executada de acor
do com as
relações sociais capitalistas. I
sso signica que os alunos, além de
apr
enderem
alguns conhecimentos cientícos e a ideologia dominante transmitidos
nas salas de aulas,
aprendem
, por meio da viv
ência escolar
, a disciplina, a
obediência e a hierarquia. N
ão é por mero acaso que as escolas capitalistas
são organizadas de forma autoritária e hierárquica, pois além de serem
reexos das r
elações sociais dominantes, ensinam à comunidade escolar
,
em especial aos alunos,
o seu lugar
na sociedade.
N
o campo da pedagogia crítica, a posição dominante coloca, já há
muito tempo, que a principal tarefa da educação, em relação à defesa dos
interesses dos trabalhador
es, é disseminar conteúdos críticos aos alunos e
produzir uma consciência crítica. Do nosso ponto de vista, não é suciente
tornar os conteúdos críticos.
N
a educação a idéia de conscientização como instrumento de
libertação precisa ser retomada num outro contexto, pois à luz da contra-
ofensiva burguesa vai tornando-se evidente que essa metodologia não atende
aos desaos postos ao movimento democrático
. O que a práxis educacional
de alguns movimentos sociais, como o MST
3
e os Zapatistas, indica-nos é
que não basta conscientizar por meio dos conteúdos, da reexão crítica. A
conscientização por meio da aprendizagem reexiv
a e crítica é importante,
mas mais importante ainda é a experiência de luta social concreta e a
transformação das relações de produção pedagógicas bur
ocráticas em
democráticas, o que é indissociável da defesa da escola pública em todos
os níveis, da instauração da gestão democrática em todos os níveis e, tanto
Os escritos e as experiências práticas de Pistrak conquistaram inuência na ár
ea educacional. No B
rasil
destacamos a sua inuência no
sistema educacional
do Mo
vimento dos
T
rabalhadores Rurais S
em
T
erra (MST).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
242
quanto possível, da articulação desse movimento transformador com o
questionamento das relações de produção capitalistas.
Embora a união do trabalho com a educação possa ser praticada,
até certo ponto, independentemente da democratização das relações de
produção, somente com a democratização destas relações esse princípio
pedagógico poderá realizar-se em sua integralidade.
A democratização radical das relações de produção, que de fato
implica a emergência do socialismo, signica a dissolução das relações
hierárquicas que, sob a hegemonia do capital, dominam todas as atividades
humanas.
I
n extremis
, isto signica a liquidação da produção fetichista de
mercadorias e do Estado, e sua substituição por uma universal associação
dos produtores associados. A grande r
eferência ideológica que deveria
iluminar a empreitada social de transformação da escola, do nosso ponto
de vista, é a ignorada ou esquecida formulação de Marx (1982) de que a
edicação de uma sociedade sem classes e, portanto, não produtora de
mercadorias tem como um de seus supostos a emancipação do trabalho
e, conseqüentemente, a união dos produtores associados. N
uma palavra,
a referência de um mo
vimento democrático e socialista não pode ser a
categoria da cidadania burguesa, mas, sim, a de
produtor
es associados
. P
ara
tanto, introduzir na escola o trabalho como princípio educativo e práxis
político-pedagógica traria uma magníca contribuição para o avanço do
movimento dos trabalhador
es.
P
or m, rearmamos que os pedagogos soviéticos, com as
propostas da escola do trabalho, introduziram no debate educacional
questões bastante complexas que continuam ainda pouco estudadas. E
estas questões, talvez mais do que as respostas dadas por eles, continuam
como desaos extremamente atuais para a educação, em especial para se
pensar como vincular a vida escolar com os processos sociais mais amplos
e como construir a educação que o socialismo requer
.
r
eferênciAs
BO
WLES, S.; GINTIS, H.
Scholing in capitalist A
merica
:
educational reform and the
contradictions of economic life
.
Massachusetts: Basic Books, 1976.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
243
DAL RI, N. M.
Educação democr
ática e tr
abalho associado no contexto político-econômico
do Mo
vimento dos
T
rabalhador
es Rur
ais Sem
T
err
a
. 2004. 315 f
.
T
ese (Livre-Docência) –
F
aculdade de F
ilosoa e Ciências, U
niversidade Estadual Paulista, M
arília, 2004.
DAL RI, N. M. P
refácio.
In
: R
ODRIGUES, F
. C.; NOV
AES, H.
T
.; BA
TIST
A, E. L.
Mo
vimentos sociais, tr
abalho associado e educação par
a além do capital.
São P
aulo: Outras
Expressões, 2013. v
. 2. p. 7-13.
DAL RI, N. M. ; VIEITEZ, C. G. M
ovimentos sociais, trabalho associado e educação:
reformas e rupturas
. I
n:
BA
TIST
A, E. L.; NO
V
AES, H.
T
rabalho
, educação e reprodução
social:
as contradições do capital no século XXI. Bauru: Canal 6, 2011. p. 275-308.
FREIT
AS, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito.
In
:
PISTRAK, M. M. (org.).
A Escola-Comuna.
S
ão P
aulo: Expr
essão P
opular
, 2009. p.
10-103.
GRAMSCI, A.
Antologia.
M
éxico: Siglo
V
eintiuno, 1970.
KRUPSKA
YA, N. K.
La educación laboral y la enseñanza.
M
oscú: P
rogresso, 1986.
LENINE, V
.
I.
O esquerdismo, doença infantil do comunismo
.
Lisboa: Maria da F
onte,
[s. d.].
MACHADO, L. R. S.
P
olitecnia, escola unitária e trabalho
.
2. ed. São P
aulo: Cor
tez:
Autor
es Associados, 1991.
MANACORDA, M. A.
Marx y la pedagogía moderna.
Barcelona: Oikos-T
au, 1969.
MARX, K. Crítica ao programa de Gotha.
In:
MARX, K.; ENGELS, F
.
T
extos 1.
São
P
aulo: Edições S
ociais, 1975.
MARX, K.
O capital
: crítica da economia política. 7. ed. São P
aulo: Difel, 1982.
PISTRAK, M. M.
F
undamentos da escola do tr
abalho
.
São P
aulo: Expressão P
opular
,
2002.
PISTRAK, M. M (org.).
A escola-comuna.
São P
aulo: Expressão P
opular
, 2009.
b
ibliogrAfiA
c
onsul
t
ADA
MARX, K. Instruções aos delegados do Conselho Central P
rovisório da Associação
Internacional
dos T
rabalhadores.
In
: MARX, K.; ENGELS, F
.
T
extos sobr
e educação e
ensino.
S
ão P
aulo: M
oraes, 1983. p. 83-86.
MARX, K.; ENGELS, F
. Manifesto do P
artido Comunista.
In
: MARX, K.; ENGELS,
F.
T
extos 3.
São P
aulo: Edições Sociais, 1975.
245
“O
”
Ana P
or
tich
A Danieli Gervazio Magdaleno,
cujo interesse motivou a autora a colocar estas ideias no papel
N
a análise de obras de artes plásticas da Rússia e da U
nião
So
viética, desde o período imediatamente anterior à Rev
olução até os anos
1930, é possível identicar um eixo temático: o m do proletariado
. Antes
disso, porém, foi necessário dispensar o trabalhador atrelado à economia
pré-capitalista, razão pela qual a pintura vanguar
dista o desmembra,
até que, no
Quadr
ado negro sobr
e fundo br
anco
, de Kazimir Malevitch,
desapareça por completo
.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
246
F
igura 1 - Kazimir Malevitch.
Q
uadr
ado negro sobr
e fundo br
anco
(1915)
F
onte:
GRA
Y (2004).
Quadr
ado negro sobr
e fundo br
anco
, exposto em 1915, é considerado
o primeiro quadro totalmente abstrato de M
alevitch. Até então se poderia
denir sua produção como cubista, com traços de neoprimitivismo e
futurismo, tendências também em voga na F
rança. Como diz Ângelo
Maria Ripellino, “[...] a jo
vem pintura francesa era praticamente mais
conhecida em M
oscou do que em P
aris.
” (RIPELLINO, 1971, p. 30),
devido ao grande número de aquisições de quadros impr
essionistas,
expressionistas e cubistas dentre os quais de autoria de P
icasso, M
onet,
Cézanne, V
an Gogh, Matisse e Gauguin, aquisições feitas na virada do
século XX por comerciantes e industriais russos como I
van M
orozo
v e
Sergei S
hchukin. Em apenas uma das salas da mansão deste industrial
do setor têxtil havia dezesseis pinturas de P
aul Gauguin; Shchukin ainda
colecionava “M
onet, Cézanne, Matisse (com 38 pinturas) e P
icasso (50
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
247
pinturas) [...]. Em menor quantidade, a coleção continha também V
an
Gogh, Renoir
, Pissarro, Sysley
, Degas, Henri ‘Le D
ouanier’ R
ousseau.
”
(WEDEKIN, 2015, p. 40). Segundo
W
edekin, esta coleção cava aberta
ao público aos domingos pela manhã para visitação gratuita, a que artistas
russos como Kandinsky acorriam com frequência.
F
igura 2 – Sala com obras de H
enri M
atisse na mansão de Sergei
Shchukin , em M
oscou
F
onte:
WEDEKIN (2015)
Além disso, circulavam na R
ússia artigos sobre impressionismo,
pós-impressionismo, simbolismo, fauvismo e outras tendências de
vanguarda (Cf
. GRA
Y
, 2004).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
248
F
igura 3 - Kazimir Malevitch.
O ceifador
(1911-12)
F
onte:
GRA
Y (2004)
Dentre os grupos que se formaram em torno da arte de inspiração
francesa, destacava-se o que tentava incorporar
, às experiências formais,
cenas de trabalhadores do campo e da cidade. N
o conteúdo dessas obras,
está ausente a classe inimiga; além disso, os trabalhadores ali retratados se
inserem na economia pré-capitalista, tais como o ceifador
, o camponês, o
aador de facas.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
249
F
igura 4 - N
atália Gontchar
ova.
D
ança de camponeses
(1911)
F
onte:
GRA
Y (2004).
F
igura 5 - Kazimir Malevitch.
O aador de facas
(1912)
F
onte:
GRA
Y (2004).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
250
É este o mundo que está se decompondo, como se decompõem
as guras em formas geométricas, nos quadros cubistas. O mundo passa
a ser objeto de cálculo, portanto, abrem-se possibilidades de mudança.
P
osteriormente um coletivo de artistas cubo-futuristas iria declarar que
sua nalidade havia sido a de varrer “[...] de
suas leiras [...] o passado.
”
(GAR
CIA, 1997, p
. 48).
Em 1915, com o
Quadr
ado negro sobre fundo br
anco
,
Malevitch
leva esse processo de dissolução às últimas consequências, r
ejeitando todo e
qualquer gurativismo. N
ão apenas o academicismo burguês é rechaçado,
mas também a tradição popular
. A exposição em que Malevitch apresenta
seu quadro intitula-se 0.10, pois a ideia é começar da estaca zero
.
F
igura 6 - N
atália Gontchar
ova.
O ciclista
(1913)
F
onte:
GRA
Y (2004).
Deagrada a Rev
olução, um tipo especíco de trabalhador entra
em cena, não mais mujiques e sucedâneos urbanos como o ciclista, mas
um operário especializado, como se verá no quadro
Cada v
ez mais alto
, que
Serama R
yangina exibirá em 1934.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
251
N
o entanto, antes que o proletariado pudesse assumir o papel
de protagonista, foi necessário enfrentar a guerra civil. Artistas como
Malevitch, M
aiakóvski, Gontchar
ov
a, Rodchenko e M
eyerhold engajam-se
em iniciativas como os trens de AgitP
rop – do russo
agitatsiya-propaganda
,
ou Agitação e P
ropaganda – que começaram a circular em 1918, em plena
guerra civil. A pintura externa dos vagões, a declamação de poesia em altos
brados, feita a cada estação da linha
T
ransiberiana, as peças teatrais, os
lmes documentários apresentados no interior dos tr
ens, músicas, discursos
ou notícias transmitidos por gramofone, bem como outras manifestações
artísticas conduzidas através da extensa malha ferro
viária tomada pelo
movimento r
evolucionário constituíram uma tentativa de estimular uma
nov
a sensibilidade. Mediante o efeito de estranhamento com r
elação aos
referenciais já
conhecidos, especialmente os valores artísticos imperantes até
então, seria possível alterar a percepção sensorial do po
vo russo, que assim
se distanciaria para reetir
, posicionando-se contra os padrões impostos
pela arte de classe burguesa, ao mesmo tempo em que poderia desenvolver
nov
as técnicas corporais, exigidas ao trabalhador na linha de montagem.
F
igura 7 –
T
rem de AgitP
rop (Agitação e P
ropaganda)
F
onte: GAR
CIA (1990)
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
252
N
a pintura do vagão acima, percebe-se a opção formal pela
geometrização construtivista, associada a temas fabris como chaminés,
um projetor de cinema e rolos de lmes, elementos expostos aos poucos
pelo revolucionário que está de pé, como se fossem páginas de jornal. O
elemento de luta está presente, com os soldados à esquer
da. O tratamento é
esquemático, de maneira que a imagem se simplique e seja compreendida
mais facilmente. Como diz o letreiro abaix
o, trata-se do “T
eatro do P
o
vo
”,
no interior do qual brilha a aurora do no
vo trabalhador
.
F
igura 8 –
V
agão-teatro do trem de agitação “Lênin nº 1”
F
onte: GAR
CIA, 1990.
N
a imagem seguinte, vemos que, enquanto os soldados escutam
a mensagem veiculada pelo gramofone, na parede do v
agão se vê a imagem
da classe inimiga, magnatas vestidos de smoking e seus sacos cheios de
dinheiro
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
253
F
igura 9 -
T
rem de AgitP
rop (Agitação e P
ropaganda)
F
onte: GAR
CIA (1990)
Os trens de AgitP
rop distribuíam ainda cartazes com cenas
sintéticas e poucos dizeres, para imediata compr
eensão. A utilização de
poucas cores fazia com que a impressão das imagens e textos se z
esse
com menos recursos, devido ao emprego da técnica do estêncil. Assim,
os cartazes estariam ao alcance das massas, tanto do ponto de vista
da produção, quanto da distribuição
. Dentre os artistas que criaram
cartazes para a Agência
T
elegráca So
viética, a Rosta, na abreviação em
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
254
russo, os quais eram distribuídos pelos trens de AgitP
rop
, destaca-se
Vladimir Maiakó
vski.
Abaixo, dois ex
emplos de cartazes criados por Maiakó
vski. O
primeiro trata da emancipação dos trabalhadores de todo o mundo que,
ao se organizar através da Internacional Comunista, ou K
ommintern –
do alemão Kommunistische I
nternationale –, daí sua força descomunal,
derrubam e subjugam os magnatas que os dominavam.
F
igura 10 –
Vladimir Maiakó
vski.
Cartaz sobre o Kommintern.
F
onte:
Constructivism in soviet poster
, de Aleksandr Shklyaruk (2004)
O segundo trata da situação de penúria do povo que não conse
-
gue trabalho.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
255
F
igura 11 -
Vladimir Maiakó
vski. Cartaz com os dizeres:
“1. Chega de passar frio! 2. Chega de passar fome! 3. Quer comer? 4.
Quer beber? J
unte-se às B
rigadas de Choque!”
F
onte:
Constructivism in soviet poster
, de Aleksandr Shklyaruk (2004).
Dessa forma, os cartazes da Rosta também chamav
am a atenção
para o combate à fome decorrente da guerra civil, diante da contra-rev
olução.
Houv
e ainda campanhas de erradicação do analfabetismo, de modo que
as notícias sobre o andamento da R
evolução pudessem chegar diretamente
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
256
ao pov
o e aos soldados do Exército
V
ermelho.
T
ornou-se célebre um dos
cartazes de divulgação da campanha, de autoria de Alexander Rodchenko,
em que se mesclam fotograa e pintura. Lily Brik, na foto caracterizada
como uma mulher do pov
o, grita “Livros
”.
F
igura 12 - Alexander R
odchenko
.
L
ivr
os!
(1924)
F
onte:
Constructivism in soviet poster
, de Aleksandr Shklyaruk (2004).
Como tendência predominante nessa fase, observam-se as
soluções construtivistas, especialmente a geometrização e a utilização de
cores primárias. Em seus estudos sobr
e
A arte na teoria mar
xista e na pr
ática
soviética
, D
onald Drew Berg observa que, para
[...] os habitantes de uma Rússia que enfr
entava a necessidade
imperiosa de se reerguer das ruínas de um país devastado pela
guerra civil e pela revolução, o principal era ser construtivo [...].
Além disso, os construtivistas faziam uma analogia entre arte e
ciência, chegando a declarar que, através do dinamismo mecanicista
de suas obras, expressavam a necessidade imperiosa de que a R
ússia
revolucionária fomentasse o progr
esso cientíco e tecnológico,
através da industrialização. (EGBER
T
, 1973, p. 38-39).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
257
Desse modo, evitava-se ainda a pecha de formalismo ou
experimentalismo gratuito nas artes. Segundo Dr
ew Egbert, por essa razão
perdurou desde o
período revolucionário a palavra de or
dem de que os
artistas fossem “
engenheir
os da forma e da cor” (EGBER
T
, 1973, p. 56).
O processo de industrialização viabilizado, de 1921 a 1928,
através da N
o
va P
olítica Econômica (NEP) foi considerado por muitos
como “[...] um retorno temporário ao capitalismo
.
” (EGBER
T
, 1973, p.
53). A partir de 1928, com base no P
rimeiro Plano Quinquenal, a URSS
rmou acordos com grandes corporações tais como a F
ord, Du P
ont, R
CA
e General Electric, para transfer
ência de tecnologia, instalação de fábricas,
exploração de minérios, aquisição de material para infraestrutura etc.
Abaixo, no quadr
o de Y
uri Pimeno
v sobre a M
oscou modernizada
para a abertura de amplos bulevares e avenidas, pr
evista no processo de
reurbanização iniciado em 1934 – o que implicou a demolição de ruas
estreitas e edicações que impedissem a circulação (Cf
. BO
WN;
T
A
YLOR,
1993, p. 81) –, pode-se per
ceber uma grande quantidade de carros
semelhantes aos modelos F
or
d, embora de fabricação soviética. “Em G
orki
[...], que chegou a ser chamada de ‘Detroit russa
’, a fábrica de carros Zim
era uma cópia da F
or
d (foi erguida em 1932 com a ajuda de especialistas
da própria F
or
d M
otors).
” (PERICÁS, 2016, p
. 86).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
258
F
igura 13 -
Y
uri Pimenov
.
N
ova M
oscou
(1937)
F
onte: SOVIE AR
T (c2016-2019).
Seguindo a dir
etriz desenvolvimentista, em “[...] 1932, a U
nião
So
viética importaria oito locomotivas dos Estados U
nidos, fabricadas pela
General Electric, para que fossem usadas no no
vo segmento eletricado na
Geórgia.
” (PERICÁS, 2016, p
. 86).
Em 1934, mesmo ano em que Serama R
yangina conclui
o quadro intitulado
Cada vez mais alto
, havia acontecido o P
rimeiro
Congresso de Escritores S
o
viéticos, instituindo o realismo socialista
como padrão ocial das artes. Artistas acusados de formalismo tais como
Maiakó
vski, que morre em 1930 supostamente por suicídio, vinham
sendo perseguidos desde ns da década de 20, mas a partir de 1934, com
base nas deliberações do referido congresso, poderão ser formalmente
sentenciados. Dentre tantos outr
os, o diretor teatral M
eyerhold, que
empregava a técnica construtivista em seus espetáculos, inclusive em
peças de autoria de Maiakó
vski, é executado em 1940.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
259
De acordo com as deliberações do P
rimeiro Congresso de
Escritores S
oviéticos, qualquer obra de arte deveria ser fruto da observação
de um fato especíco, em determinada localidade da U
nião S
oviética.
P
receitua-se ainda que os artistas tivessem contato dir
eto com o assunto
de que iriam tratar
. Sendo assim, em 1933 Serama R
yangina par
te para
a Geórgia em missão criativa, a m de conhecer
in loco
a primeira grande
estrada de ferro mo
vida a energia elétrica. O Comissariado da P
ovo para a
Educação, ao fazer a encomenda, pr
etendia exibir a obra de R
yangina em
uma exposição sobre os avanços dos meios de transporte.
F
igura 14 - Serama R
yangina.
Cada vez mais alto
(1934)
F
onte:
PICHON-BONIN, 2004
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
260
N
o quadro percebe-se o esfor
ço de operários e operárias no
empreendimento de eletricação da r
ede ferroviária iniciada em 1932,
sobretudo pela diculdade em implementar esse sistema em uma região de
relevo montanhoso como o Cáucaso
.
P
ela posição elevada do obser
vador
, deduzimos que a postura da
artista não seja neutra, já que não oculta sua presença, do alto. D
istinguindo-
se da conotação de realismo que se pretenda desengajado, como um olhar
através do buraco da fechadura, de modo que o autor não imponha sua
presença e assim apresente uma visão objetiv
a dos fatos, o realismo socialista
toma o partido do operário que move montanhas. F
oi igualmente superada
a caracterização sórdida do trabalhador oprimido que protagonizav
a peças
e romances naturalistas. Como demonstra Cécile Pichon-Bonin em sua
análise do quadro de R
yangina, em 1934 não se acentuam mais os temas
ligados à guerra civil, mas o papel do operário como agente no processo
de transformação do país. “T
er direito à representação ocial é uma forma
de legitimação do regime e de armação do proletariado como detentor
do poder
.
” (PICHON-BONIN, 2004, p. 59-76). P
roponho a hipótese
de que, na imagem concebida por R
yangina, não se tematize apenas o
protagonismo exer
cido pelo proletariado, mas sua própria superação
enquanto classe social. Efetivamente, ao se extinguir a luta de classes,
desaparece a burguesia e, por extensão, o proletário
. P
ortanto, a exemplo
dos trabalhadores retratados por R
yangina, que estão em movimento de
ascensão, no campo da cção o proletariado encaminha-se para um estágio
em que não o veremos mais, em que ele desapar
ecerá e nada mais haverá
para mostrar
, como no quadro de Malevitch.
r
eferênciAs
BO
WN, M
atthew Curllene;
T
A
YLOR, Brandon.
A
rt of soviets
. Manchester: M
anchester
U
niversity P
ress, 1993.
EGBER
T
, Donald Drew
.
El arte en la teoría marxista y en la práctica soviética
. B
arcelona:
T
usquets, 1973.
GAR
CIA, Silvana.
As trombetas de J
ericó:
teatro das vanguardas históricas. São P
aulo:
HUCITEC, 1997.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
261
GAR
CIA, Silvana.
T
eatro da militância
. São P
aulo: P
erspectiva, 1990.
GRA
Y
, Camilla.
O grande experimento:
arte russa 1863-1922. São P
aulo:
W
orldwhitehall, 2004.
PERICÁS, Luiz Bernar
do.
C
aio Pr
ado J
únior:
uma biograa política. São P
aulo:
Boitempo, 2016.
PICHON-BONIN, Cécile. Entr
e engagement politique et expression picturale:
éléments d’analyse pour un tableau de Serama Rjangina.
C
ahiers slaves
, P
aris, n. 8
–
“Le ‘réalisme socialiste
’ dans la littératur
e et l’ar des pays slaves
”
, p. 59-76, 2004.
Disponível
em: http://www
.recherches-slaves.paris-sorbonne.fr/Cahier8/P
ichon_Bonin.htm. Acesso
em: 12 abril 2018.
RIPELLINO, Ângelo Maria.
M
aiakóvski e o teatro de v
anguarda
. S
ão P
aulo:
P
erspectiva, 1971.
SOVIET AR
T
.
N
ew Mosco
w
.
Oil on canvas. e State
T
retyakov Gallery
. Disponível
em: https://soviet-art.ru/soviet-artist-yuri-pimenov/new-mosco
w-oil-on-canvas-the-
state-tretyako
v-gallery/. Acesso em: 13 abril 2018.
WEDEKIN, Luana Maribele.
P
sicologia e arte
: os diálogos de V
igotski com a arte
russa de seu tempo. 2015.
T
ese (Doutorado) - U
niversidade F
ederal de S
anta Catarina,
Florianoplis, 2015.
263
A
N
K
H
enrique T
ahan
N
ov
aes
i
ntr
oDução
N
este ano [2017] comemoramos os 100 anos da Revolução
Russa, certamente o evento histórico mais importante do século XX. N
este
ano também comemoramos os 150 anos de “O Capital” de Karl M
arx e os
150 anos de “Guerra e P
az
” de
T
olstoi.
N
o ano que vem [2018] iremos comemorar o bicentenário do
nascimento do nosso mestre Karl M
arx, certamente o intelectual mais
importante dos últimos tempos.
T
ambém iremos comemorar o aniversário
de 200 anos do livro “F
rankenstein
” de Mary Shelley (2000), que, aliás, foi
muito utilizado por Karl Marx.
Este capítulo aborda a contribuição de N
ade
zhda Krupskaya para
a construção da pedagogia soviética.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
264
N. Krupskaya (1869-1939) nasceu em P
etersburgo e faleceu
em M
oscou, logo depois de completar 70 anos. F
oi professora particular
,
professora em escolas noturnas, militante comunista rev
olucionária,
educadora, “leitora de Marx
”
1
e trabalhou na concepção da política
educacional da Revolução R
ussa por um certo tempo com Anatoli
Lunacharsky (“Ministr
o
” da Educação nos primeiros 12 anos da Revolução).
Krupskaya foi companheira de Lenin, certamente sem car “
na
sua sombra
”, mas sempre ao lado dele (LODI, 2017)
2
. De acor
do com
F
reitas (2017, p
. 10):
Krupskaya conheceu Lenin em 1894 e passou a participar de ações da
“
união de luta pela emancipação da classe trabalhadora
”, organização
por ele liderada. F
oi presa por duas vez
es em 1896 e desterrada em
1897. Krupskaya casou-se com Lenin em 1898, no período de exílio
de ambos na Sibéria, e manteve com ele uma frutífera parceria, até sua
morte em 1924.
Ainda segundo F
reitas (2017, p
. 8):
Krupskaya escrevia de forma simples e direta, visando ser entendida
pelo conjunto dos trabalhadores e especialmente pelos educadores. S
eus
textos, carregados de conceitos, reetem a época de our
o da Revolução
Russa (1917-1929). J
untamente com A. Lunacharsky ela foi uma das
grandes responsáveis pelas orientações da política educacional do então
Comissariado do P
ovo para a Educação – N
arkompros.
1
V
er especialmente “Marx e a educação comunista da juventude” (KR
UPSKA
YA, 2017) e “Os ensinamentos de
Marx para o educador soviético – guia para a ação
” (KRUPSKA
YA, 2017).
A coletânea organizada por F
reitas e Caldart (KRUPSKA
YA, 2017) inclui os seguintes textos de Krupskaya
sobre Lenin: “Lenin: sobre a educação e o professor público
”; “Dias de Lenin
”; “O papel de Lenin na luta pela
escola politécnica
”; “Lenin como propagandista e agitador” e “Lenin e a moral comunista
”.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
265
Nesta foto N
adezhda Krupskaya está em pé a esquerda. A
cima dela está escrito na faixa: “Operários e
camponeses, construam a sociedade. Abaixo o analfabetismo (Krupskaya)”.
Samantha Lodi (2017, p
. 5), com um tom poético, escreve as
seguintes palavras sobre Krupskaya:
Da beleza da juventude aos traços demudados de sua madureza,
diversas interpretações abor
dam a vida da camarada “N
adia
”, sempre
pronta para um debate. A força de uma mulher que viveu anos no
exílio, indo de um país ao outro, depois de permanecer na Sibéria
por ordem do tzar
. Condenada por suas publicações que instruíam
a classe operária russa, principalmente a mulher
, e por acreditar que
uma revolução de trabalhador
es seria possível. E foi. U
ma existência de
ação e de conscientização, de publicação de folhetos, de pseudônimo,
de congressos, de divulgação de ideais que em prática levariam a uma
sociedade igualitária e, principalmente, uma existência de um não se
cansar
, não se abater
. Acusada de viv
er à sombra de seu marido, chega a
ser tachada de submissa, tinha concepções de igualdade e de liberdade
que transcendiam o senso comum da época, por isso, às vezes, foi tão
incompreendida. Comunista por convicção, ela foi uma estrela, por
isso teve luz própria, ao lado de outras estrelas que, nesse contexto,
também brilharam.
Krupskaya foi uma importante estudiosa das pedagogias do capital
– no sentido de compreender a natureza das mesmas e suas transformações.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
266
Compreendeu as particularidades das sociedades europeias, americana e
russa, explicando as formas especícas que a educação dual assumiu nestes
países, principalmente a partir da revolução industrial.
N
o caso russo, procurou explicar por que a industrialização tar
dia
do império não necessitava alfabetizar e qualicar as massas, tema, aliás,
importante para o caso brasileiro.
T
ratava-se de um império gigante, frio, de
baixa densidade populacional, com um capitalismo dependente, atrasado,
de baixa industrialização, que não teve uma rev
olução democrático
burguesa e certamente não poderia ter
. Só “
restava
” a Rússia uma revolução
comunista, puxada pelas massas camponesas e operárias, que permitiria o
desenvolvimento pleno de todos os seres humanos.
A educação burguesa está baseada em sistemas duais, para
cada classe uma educação especíca. Qual educação era a destinada aos
trabalhadores na incipiente industrialização russa? Educação e qualicação
técnica que preparasse e domesticasse os trabalhadores russos nos processos
de exploração fabris.
N
este aspecto, a obra de Krupskaya pode ser vista também através
da sua contribuição para a análise e intervenção na “
divisão sexual do
trabalho
” na Revolução Industrial. N
os dias de hoje, os estudos de Angela
Davis, H
elena Hirata, D
aniele Linhart, Danièle Kergoat são “
absor
vidos
”
sem se dar atenção a uma das “
mães
” dos estudos do que atualmente se
chama marxismo e gênero. Como defendemos aqui, é importante retornar
a Krupskaya para compreender sua contribuição para os estudos da divisão
sexual do trabalho. Krupskaya dá uma atenção especial na sua obra a
exploração das mulheres e evidentemente das crianças nas fábricas inglesas
e russas
3
. Dá também uma atenção especial a exploração da professora
russa. N
ão é preciso lembrar que ela estudou “O Capital” e “
A situação
da classe trabalhadora na Inglaterra
”, do ainda muito jovem F
. Engels, que
retratam a situação desesperadora da mulher trabalhadora e da criança
trabalhadora nas sujas, fedidas, poluídas e escuras fábricas inglesas.
V
er também o livro organizado por Graziela Schneider (2017) “
A revolução das mulheres: emancipação
feminina na Rússia So
viética
”.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
267
Antes de prosseguir
, cabe dizer que nos apoiamos nos livros
editados pela Expressão P
opular
, que sob iniciativ
a principalmente do
professor Luiz Carlos de F
reitas e de Roseli Caldart, tem se empenhado em
traduzir e ou revisar parte da obra de importantes intelectuais soviéticos.
N
o ano de 2017 foi lançada a coletânea de artigos da Krupskaya – inédita
em português. Esta coletânea recebeu o nome “
A construção da pedagogia
socialista
” e traz alguns dos ensaios mais impor
tantes desta magníca
intelectual militante. Em espanhol, francês e inglês, já foram traduzidos
alguns dos seus textos seminais
4
. Samantha Lodi (2017) defendeu sua tese
de doutorado chamada “N
adezhda Krupskaia: uma estrela vermelha
”.
Lodi destaca inúmeras dimensões desta importante intelectual soviética
5
.
N
o início dos anos 1980, no contexto das lutas pela
“
redemocratização
”, saiu a primeira edição “Fundamentos da Escola do
T
rabalho
”, de M
oisey P
istrak, pela Editora Brasiliense. E
m 2001 saiu a
segunda edição, pela Editora Expr
essão P
opular
.
Em 2002 saiu o livro de Cecília Luedemann (2002) chamado
“
Anton Makar
enko – vida e obra
”. Em 2005, de Anton Makarenko, “P
oema
P
edagógico
”, pela Editora 34. E
m 2009, saiu o livro “
A escola-comuna
”,
tendo Pistrak como organizador
. Em 2013 “Rumo ao P
olitecnismo
”
de V
iktor Shulgin. Em 2014 “E
nsaios sobre a Escola P
olitécnica
”, de
Pistrak (2014). Em 2018 sairá a 3ª edição de “F
undamentos da Escola do
T
rabalho
” (Expr
essão P
opular), traduzido agora por Luiz Carlos F
reitas,
livro importantíssimo para se pensar e atualizar o debate da educação
para além do capital.
Ao que tudo indica, o Brasil tem se mostrado um bom espaço
de difusão do pensamento educacional soviético da primeira fase da
revolução russa (pré-stalinista). Como somos um grande pr
odutor de
riquezas (para exportação) e ao mesmo tempo um grande produtor
de miséria, o Brasil se tornou um celeiro para pr
opostas de educação
alternativas, especialmente em função da questão agrária-urbana que
produz - em grande escala - uma massa de trabalhadores iletrados.
Curiosamente passamos o século XX sem alfabetizar as massas e, ao que
V
er também em português os textos de Kr
upskaya no livro de Gabriela Schneider (2017).
Lodi (2017) também recupera boa parte dos estudos e reexões realizados no B
rasil sobre N
adezdha Krupskaya.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
268
tudo indica, na falta de uma urgente e necessária revolução comunista,
passaremos o século XXI no
vamente em branco
.
o
rio
que
DiviDe
As
P
eDAgogiAs
Do
cAP
it
Al
e
As
PeDAgogiAs
Do
trAbAlho
O governo dos operários e camponeses que r
espeita os interesses das
massas populares deve romper com o caráter de classe da escola, dev
e
fazer com que a escola em todos os níveis seja acessível a todos os
segmentos da população, mas fazer isso não só nas palavras, mas em
atos. A educação continuará sendo um privilégio da classe burguesa
até que as nalidades da escola sejam alteradas. A população está
interessada em que a escola fundamental, média e superior tenha uma
nalidade comum: formar pessoas desenvolvidas multilateralmente,
com predisposições sociais conscientes e organizadas, que tenham uma
visão de mundo reexiva, integral e que claramente entendam tudo o
que está acontecendo ao seu redor na natureza e na vida social; pessoas
preparadas na teoria e na prática para todos os tipos de trabalho,
tanto físico quanto mental; pessoas capazes de construir uma vida
social racional, cheia de conteúdo, bonita e alegre. Essas pessoas são
necessárias à sociedade socialista, sem elas o socialismo não pode se
realizar plenamente. (KR
UPSKA
YA, 2017).
Sempr
e é preciso lembrar que há um rio que divide a sociedade
de classes. De um lado estão os capitalistas, seus tecnocratas, seus
intelectuais e as pedagogias pró capital, ou se preferir
em, que estão dentro
da órbita do capital. De outro estão os trabalhador
es e as pedagogias
do trabalho, para além do capital ou fora da órbita do capital. Estas
pedagogias, de uma forma ou de outra, questionam a propriedade dos
meios de produção, mas fundamentalmente o sentido do trabalho nas
sociedades comandadas pelo capital.
F
azer esta advertência é importante, pois as classes proprietárias
e seus tecnocratas – para construir sua hegemonia - tentam obscurecer
ou invalidar as pedagogias do trabalho, e naturalizar a pedagogias pró
capital. N
as palavras de Marx e Engels (2007) que todos se lembram, a
classe proprietária dos meios de produção também é produtora das ideias
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
269
necessárias para a sua reprodução
. Sem as ideias dominantes não consegue
construir a sua hegemonia. Sem dominar a produção pedagógica,
certamente não consegue se reproduzir
.
As pedagogias do capital sofreram mudanças signicativas da 1ª
Revolução I
ndustrial para cá. N
os dias de hoje, diante da crise estrutural
do capital que não gera empregos para todos e destrói as bases materiais
da vida na terra, ela se reno
va com seus “5 Pilar
es
”: “
Aprender a Conhecer;
Apr
ender a F
az
er; Aprender a viv
er com os outros; Apr
ender a ser; Aprender
a Empreender
”. S
urgem então inúmeras pedagogias adequadas para a fase
da acumulação exível-digital-nanceirizada, que vão desde propostas para
o nov
o “
colaborador/a
” engajado, exível, que saiba operar máquinas da
era “
digital”, até pedagogias para o “
desenvolvimento sustentável”, para o
“
empreendedorismo
”, etc.
N
o entanto e contraditoriamente, a pedagogia mais importante
do século XXI passa a ser a pedagogia da deseducação, principalmente
nos países de capitalismo dependente e periférico. A
o que tudo indica, as
classes proprietárias dos meios de produção e seus gestor
es abandonaram
qualquer projeto minimamente civilizatório e republicano, deixando as
massas no submundo da deseducação.
Como veremos mais a fr
ente, no outro lado do rio estão as
pedagogias do trabalho, que podem ser divididas em pedagogias socialistas
e comunistas. Elas estão compromissadas – de alguma forma - com as lutas
dos trabalhadores pela emancipação do trabalho
. P
oderíamos destacar as
experiências educacionais criadas pelos socialistas Robert Owen, Charles
F
ourier
, por pedagogos alemães e franceses.
Este capítulo pretende abor
dar a contribuição teórica dos
pedagogos soviéticos para a construção da pedagogia comunista dentro do
contexto da Revolução R
ussa
6
.
Apesar de alguns “
ensaios
” práticos realizados pelos anar
quistas, por Charles F
ourier e Robert Owen, a
experimentação da Escola Ú
nica do
T
rabalho em larga escala se deu somente com a Revolução Russa e ainda
assim de forma muito limitada.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
270
f
unDAMent
os
DA
escolA
Do
trAbAlho
eMAnciP
ADo
[...] vocês nos acusam de querer abolir a exploração das crianças por
seus pais? N
ós confessamos este crime.
E nós, dizem vocês, destruímos o mais valioso relacionamento, pondo
a educação social no lugar da educação doméstica.
E a educação de vocês não é determinada pelas relações sociais nas quais
vocês educam, não é determinada pela intervenções diretas e indiretas
da sociedade através da escola, e assim por diante? Os comunistas não
inventaram a inuência da sociedade na educação, eles só alteraram o
seu caráter
, eles retiram a educação da inuência da classe dominante.
(MARX; ENGELS, 1998, p. 77).
7
N
o início do século XX, a Rússia era um dos países onde mais
se debatia a contribuição de Karl Marx para uma “
revolução social” e
uma “
revolução educacional”. D. Lepechinsky
, de uma geração anterior
aos revolucionários de 1917, N
ade
zhda Krupskaya, Anatóli Lunacharsky
,
M
oisey Pistrak,
Viktor Shulgin, Anton
Makarenko, B
lonsky são alguns dos
nomes que debateram intensamente a particularidade da sociedade russa
(e,
portanto,
da
educ
ação russa) e as “
propostas
” sócio-educacionais de
Karl Marx.
Diversos intelectuais caracterizam o período de 1900 a 1917
como um período de intenso orescimento da crítica a educação capitalista
e a necessidade de construção de uma teoria educacional para uma possível
revolução na R
ússia. Como veremos mais a fr
ente, muitas das ideias
desenvolvidas na fase anterior a rev
olução se tornaram práticas, com a
Revolução R
ussa de 1917.
A Revolução R
ussa tornou-se, desse ponto de vista, o marco
histórico mais importante do século XX, a ponto de E. Hobsbawm (1996)
Não poder
emos abordar a “
concepção
” educacional comunista de Marx neste capítulo, mas poderíamos
sintetizar como: a) fundos públicos para nanciamento da educação pública, b) controle do sistema educacional
pelos trabalhadores (“
o po
vo deve educar o Estado e não o Estado educar o pov
o
”); c) combinação de
escolarização, “
qualicação
”, educação física, estética e trabalho produtivo (por 3 horas desde os 9 anos de idade,
aumentando o tempo de trabalho nas faixas etárias seguintes); d) politecnia: compreensão dos fundamentos
cientícos do trabalho dos principais ramos da grande indústria, sempre tendo em vista o desenvolvimento
completo do ser humano. E
videntemente, o desenvolvimento de cada um não depende mais da origem de classe
e o “livre desenvolvimento de cada um é uma condição para o livre desenv
olvimento de todos
”.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
271
determinar os marcos do século XX em função da Rev
olução Russa e sua
implosão em 1989-91.
É possível dizer que a pedagogia comunista possui alguns
fundamentos que iremos caracterizar brev
emente neste capítulo: a) ser
escola única do trabalho e centrada na emancipação do trabalho, b) a
politecnia
8
; c) a auto-organização, d) o sistema de complexos temáticos. O
ensino da história na perspectiva do materialismo dialético
9
e a educação
estética não foram analisados neste capítulo
10
.
Mas quais os objetivos da Escola do
T
rabalho? P
oderíamos
resumir como o desenvolvimento intelectual, político, politécnico, físico
e estético dos trabalhadores da sociedade comunista em construção. P
ara
eles, assim como para Marx, livre das amarras da pr
opriedade privada dos
meios de produção, e assumindo o controle social do trabalho tendo em
vista a emancipação da humanidade, é possível que os seres humanos se
desenvolvam no trabalho
.
e
scolA
únicA
Do
trAbAlho
Resumidamente, é possível armar que a
sociedade capitalista
da era industrial criou a educação capitalista, principalmente através da
construção de sistemas educacionais estatais. Com a 1ª Revolução I
ndustrial
e o surgimento do “
modo de produção especicamente capitalista
”,
os proprietários dos meios de produção pr
ecisaram criar sistemas
P
ara este debate no Brasil, ver M
achado (1991), Saviani (2003), Ramos (2010) e F
reitas (2009), dentre outros.
Como disse certa vez Marx e Engels (2007), as classes dominantes controlam os meios de produção e também
os meios de produção de ideias. M
uitos historiadores já demonstraram a forma como as classes proprietárias, pela
mediação das agências formativas (escola, desenhos animados, livros didáticos, lmes, trabalho, universidades,
igreja, etc.) constroem ou transmitem sua interpretação dos pr
ocessos históricos para as maiorias trabalhadoras.
P
ara Pistrak (2001) e Shulgin (2013), a história dev
e ser narrada na perspectiva da luta de classes. Krupskaya
(2017) destaca a importância de compreender a história do trabalho, a história dos modos de produção, a
história do capitalismo e a particularidade da Rússia. Como sabemos, a escola tem um papel fundamental
na conformação ideológica das “
maiorias
” (massas que vivem do trabalho) a serviço das “
minorias” (classes
proprietárias e os gestores do capital). J
unto com outras agências formativas ela tende a fazer as maiorias
pensarem como as minorias (capitalistas e tecnocratas). N
o entanto, contraditoriamente, em inúmeras fases do
capitalismo houve resistência dentro dos aparatos de dominação, puxadas por professor
es, alunos e funcionários.
No caso brasileir
o, um importante capítulo na história das revoltas contra a alienação promovida pela escola
estatal se deu com as ocupações de escolas públicas nos últimos 3 anos.
10
Não abor
daremos neste capítulo o papel da educação física e da educação estética para os pedagogos soviéticos
da 1ª fase da Revolução (pré-stalinista).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
272
educacionais duais: para as massas trabalhadores e para as burguesias e os
gestores-tecnocratas que comandam a produção-acumulação de capital. A
Inglaterra e a F
rança, berços da Revolução Industrial, foram os primeir
os
países a criar sistemas educacionais duais.
Em linhas gerais, a sociedade de classes criou uma educação para os
lhos da burguesia e classes médias distinta da educação dos trabalhadores,
isto é, a sociedade de classes capitalista criou distintos papeis na produção
para os trabalhadores e para os capitalistas e seus gestor
es. J
á é possível
adiantar que para os pedagogos soviéticos, esta educação não
permite o
desenvolvimento intelectual, político, politécnico, artístico e físico dos
trabalhadores, condenados a trabalhar em troca de um salário
.
Acr
editamos que o pilar fundamental da pedagogia soviética é a
luta pela emancipação do trabalho e o papel da escola nesta emancipação.
N
o plano teórico, estava em jogo a necessidade de construção de uma
sociedade não mais baseada na exploração do trabalho, tendo em vista o que
Marx chamava de “
autogoverno pelos produtor
es livremente associados
”.
Antes de avançar
, Shulgin (2013) obser
va que a escola é uma das
agências formativas das sociedades modernas, mas não é a única. Outras
agências formativas são igualmente importantes: o partido, o sindicato, o
trabalho, a escola, as agências de educação artística e a família
11
.
Se o complexo de formação-qualicação não dev
e ser
vir mais
para perpetuar a sociedade de classes, qual é então o papel da escola na
formação para e no trabalho?
N
o que se refer
e ao trabalho, é possível depreender que para
os pedagogos soviéticos a formação se dá no trabalho e para o trabalho
emancipado. N
esse sentido, o trabalho é educativo (é uma agência
formativa). Em outras palavras, há uma atenção especial da pedagogia
soviética ao papel da escola na construção do trabalhador coletivo e na sua
contribuição para a construção do trabalho emancipado. P
ara os pedagogos
soviéticos, era possív
el e necessário preparar para o trabalho coletivo desde
11
No capitalismo, a escola é uma das agências formativ
as mas também é acompanhada de tantas outras. Nos
dias de hoje, a deseducação começa muito cedo: com os desenhos animados, na televisão, nos videogames, no
F
acebook, no Whatsapp
, na escola, no trabalho alienado, na igreja, dentre outras.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
273
muito cedo, aprendendo a cooperar para construir um nov
o país e uma
nov
a sociedade, a superar a dualidade do sistema escolar
, em que todos
possam se desenvolver no trabalho
.
Pistrak (2001) divide o debate do trabalho em tr
ês dimensões: a)
trabalho reprodutiv
o; b) trabalho produtivo e; c) trabalho social.
O trabalho “
reprodutivo
” é aquele que todo ser humano precisa
realizar
, a não ser que tenha um escravo ou uma trabalhadora assalariada
para realizá-lo
.
T
ambém é chamado de autosserviço. P
ara ele, lav
ar a
roupa, passar a roupa, cozinhar
, passar
, limpar a escola e a casa é tudo
autosserviço. Pistrak (2001) considerava este trabalho fundamental para
educar as crianças a se “
virar
em
” no dia a dia, desde que não se tornasse
uma atividade enfadonha, ou “
escravos mirins
”, nas suas palavras
12
.
N
o que se refer
e ao trabalho produtivo, os pedagogos dividiram o
ensino do trabalho na escola de acordo com as especicidades das idades.
N
a primeira fase, as crianças deveriam aprender na escola as atividades
de autosserviço e praticar atividades de trabalho leves, como artesanato,
marcenaria leve, etc. D
os 13 aos 15 anos, dos 15 aos 18 anos, como
veremos na pr
óxima seção.
O
T
rabalho Social, ou nas palavras de Shulgin (2013) “
trabalho
socialmente necessário
”
13
é aquele trabalho de interesse social ou interesse
comunitário
14
. Shulgin dá como ex
emplo de atividades de interesse social
cuidar das praças, cuidar da escola, cuidar dos jardins, cuidar das estradas.
P
ara ele, todas essas atividades traz
em questões extremamente complexas e
interessantes em termos matemáticos, geográcos, sociológicos que devem
ser desenvolvidas pela escola, e permitem a junção entre teoria e prática.
12
O trabalho reprodutivo é pr
edominantemente trabalho feminino e trabalho ocultado. Geralmente não
enxergamos o autosserviço como trabalho, por ser considerado trabalho “
doméstico
” e não o enxergamos por
ser trabalho feminino. Sem o trabalho r
eprodutivo certamente o ser humano não conseguiria sobreviver
. Na
divisão do trabalho do lar no Brasil, quem cuida das crianças, quem lava a r
oupa, quem vai no supermercado é
geralmente a mulher trabalhadora. Mesmo com a entrada da mulher no mercado de trabalho por v
olta dos anos
1970, este tipo de atividade é ainda predominantemente feminino, o que gerou as teorias da dupla jornada de
trabalho. V
er
, por ex
emplo, Krupskaya (2017), Angela Davis (2013) e Schneider (2017).
13
A categoria “T
rabalho Socialmente Necessário
” não tem nada a ver com a categoria da economia política.
14
Ao ler a obra de Shulgin (2013), o leitor não deve confundir o
T
rabalho Socialmente Necessário com
“
onguismo
”. Como sempre, o capital transforma toda atividade comunitária em “
trabalho voluntário
”. N
o
debate que zemos do livro no nosso grupo de pesquisa, alguns alunos chegaram a transplantar o conceito para
os dias de hoje, como se Shulgin fosse um idealizador do “
onguismo
”.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
274
e
scolA
PolitécnicA
P
ara os pedagogos so
viéticos, a compreensão na teoria e na
prática dos principais ramos da indústria era um desao para a Rússia
revolucionária. P
ara eles, todos os trabalhadores têm que ter uma ideia
geral – vale insistir
, na teoria e na prática – dos principais ramos da
produção
. Segundo Krupskaya (2017), as crianças e jov
ens trabalhadores
devem familiarizar-se com as técnicas modernas.
Krupskaya (2017) questiona em que consiste o conteúdo da
educação politécnica? P
ara ela:
Seria um erro pensar que esse conteúdo se r
eduz apenas à aquisição de
uma determinada quantidade de habilidades ou a diferentes habilidades
artensanais, como acreditam outros, ou apenas ao ensino das modernas
e mais altas formas das técnicas. O P
olitecnismo é um sistema global
na base do qual está o estudo da técnica nas suas diferentes formas,
tomadas em seu desenvolvimento e em todas as suas mediações. Isso
inclui o estudo das “
tecnologias naturais”, como M
arx chamava a
natureza viva, e a tecnologia dos materiais, bem como o estudo dos
meios de produção, os seus mecanismos, o estudo das forças motrizes
– energética. Isso inclui o estudo da base geográca das r
elações
econômicas, o impacto dos processos de extração e processamento nas
formas sociais do trabalho, bem como o impacto destas em toda a
ordem social. (KR
UPSKA
YA, 2017, p. 150-151).
Krupskaya (2017, p. 153) acredita que
A escola politécnica diferencia-se de uma escola prossional por ter
o centro de gravidade na compreensão dos processos de trabalho,
no desenvolvimento da capacidade de unir num todo único teoria
e prática, na capacidade de compreender a interdependência
dos fenômenos conhecidos, enquanto que o centro de gravidade
da escola prossional passa pela capacitação dos estudantes em
habilidades de trabalho.
Segundo Caldart (2013), Pistrak defendia à época o estudo
das sete principais indústrias: geração e fontes de energia e extração dos
materiais essenciais para qualquer indústria (metais); transformação de
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
275
energia; processamento de materiais; engenharia civil; indústrias química
de base, transportes e comunicações; produção agrícola.
A
ut
o
-
orgAnizA
ção
nA
esc
olA
e
nA
socieDADe
O proletariado almeja dominar o poder estatal não para assegurar
direitos e privilégios especiais para si, mas para reconstruir toda a
sociedade para que nela não haja lugar para a opressão e exploração
.
Mas é preciso faz
er isso de fato e não apenas em desejo. (KR
UPSKA
YA,
2017, p. 117).
U
ma das mais importantes funções da auto-organização escolar
deve ser o desenvolvimento de hábitos de organização nas crianças.
(KRUPSKA
YA, 2017, p. 119).
Como se diz no debate educacional, a forma escolar forma. A
escola não é somente espaço de socialização desigual de conteúdos de
acordo com as classes sociais de origem, ela é também espaço de pr
eparação
de relações sociais hierárquicas.
N
os dizeres de
Viktor S
hulgin (2013), a escola produz relações. S
e
é verdade que a escola não ensina apenas conteúdos, mas também r
elações
de subordinação, de hierar
quia, de submissão, a escola do trabalho deve
alterar radicalmente a forma escolar
.
Em outras palavras, a escola não é apenas aparelho ideológico, é
também aparato de reprodução das r
elações sociais. Desde cedo a escola
estatal tende a preparar para a subor
dinação os jovens que serão trabalhador
es
na fábrica capitalista, no comércio capitalista, nos serviços capitalistas, etc.
Se a forma escolar capitalista forma para r
elações dominação, de mando e
de submissão, é preciso ex
ercitar uma nov
a forma escolar
, onde se vivencie
a auto-organização.
A democracia não era entendida como estando somente “
fora
” da
escola, mas sim dentro e fora da mesma. A vivência prática da democracia
radical na escola se dá através da experimentação da autogestão no espaço
escolar
. Mais que teorizar a democracia, diziam, era preciso ex
ercitar na
prática a autodireção
.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
276
P
ara eles, todas as crianças e jo
vens devem passar pelas funções
organizativas da escola: aprender a falar em público, decidir e r
espeitar
decisões, aprender a organizar uma assembleia, como comandantes e
comandados, aprender a seguir or
dens e dar ordens. Caso contrário, há
a burocratização e surgimento de uma no
va “
classe” social, as lideranças
descoladas das massas passivas
15
.
c
oMPlexos
teMá
ticos
A nalidade da escola é proporcionar à criança a compreensão da
realidade viva. I
sso só pode ser obtido esclarecendo-se as relações que
existem entre os fenômenos na vida real, iluminando essas ligações
através de formas adequadas, mostrando como elas aparecem e se
desenvolvem. (KR
UPSKA
YA, 2017, p. 125).
Acr
editamos que uma das maiores contribuições dos pedagogos
soviéticos, especialmente de Krupskaya e Pistrak, é a teorização dos sistemas
de complexos.
P
ara desenv
olver a teoria dos complexos, estes intelectuais zeram
uma crítica radical a escola estatal como simplicadora, anti-dialética,
positivista, fundamentalmente fragmentadora da realidade complexa,
dinâmica e contraditória. N
os termos de G
ramsci, a fragmentação da
realidade é fundamental para a manutenção da hegemonia.
Ao que tudo indica, a escola capitalista tem que produzir alienação
.
T
em que produzir ignorância, para manter a exploração capitalista das
“
maiorias
” pelas “
minorias
” proprietárias. N
os dias de hoje, seu objetivo
é manter as crianças e os jov
ens trabalhadores alienados dos grandes
problemas da humanidade, mesmo nas escolas permeadas pela “
pedagogia
das competências
”.
Combatendo o “
marxismo positivista
”, Gyorgy Lukács (2010)
com a sua concepção de totalidade, Antonio G
ramsci, M
oisey Pistrak e
N
adezhda Krupskaya (2017), dentre outros, defendiam a necessidade de
15
P
ara os pedagogos soviéticos, ex
ercitar a autogestão não signica criar uma escola sem professores. P
ara eles, o
conhecimento dos professores é fundamental para a escola comunista.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
277
construção de uma teoria que explicasse a realidade de forma dialética,
dinâmica, contraditória, que ajudasse os trabalhadores a compreender os
principais determinantes de um fenômeno socioambiental
16
.
P
odrovsky dene o método de complexos como um método
marxista de conhecimento. P
ara os pedagogos soviéticos “[...] a essência
do método dos complexos consiste em que ele toma para estudo uma
determinada complexidade de fenômenos (complexo) em sua totalidade,
ligações, interações e relações; é preciso agr
egar: toma-a também em seu
desenvolvimento
.
” (KRUPSKA
YA, 2017, p. 318).
N
o documento “Carta Metodológica – primeira carta: sobr
e
o ensino por complexos
”, arma-se: “[...] a visão de mundo dialética
considera cada objeto de forma não isolada, mas como um todo único
e, portanto, com base na atividade de trabalho das pessoas, com base nas
relações de produção, com base na economia.
” (KRUPSKA
YA, 2017, p.
318).
E segue dizendo:
Ao utilizar o método dialético nós vamos da análise para a síntese; dessa
mesma maneira, quando se utiliza o método de complexos, tomando
fenômenos complexos, nós os analisamos no estudo, acercando-nos
deles por diferentes aspectos e, então, reconstruímos o cenário inteiro,
xando na compreensão do complexo como um todo
. (KRUPSKA
YA,
2017, p. 318).
P
ara nós, o “
coração
” do sistema de complexos, que une a teoria
com a prática, é o trabalho. D
iferente da ligação abstrata, meramente
fenomenológica, idealista, “hegeliana
”, da interdisciplinaridade (tão em
moda nos dias de hoje), é no trabalho que se dá a ligação entre teoria
e prática. É no trabalho, na luta concreta, “
real”, que se dá a r
elação
teoria e prática, e não na “interdisciplinaridade abstrata da academia
”
(FREIT
AS, 2009)
17
.
16
Nunca é demais lembrar a contribuição de Kar
el Kosik (1972), no seu livro “D
ialética do concreto
”, para a
compreensão da realidade de uma forma totalizante e contraditória.
17
Na atualidade, intelectuais fora do campo marxista e dentro do campo marxista têm contribuído com esse
debate. F
ora do campo marxista, Edgar Morin é um dos mais conhecidos. U
m outro autor que tem grande
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
278
Sendo assim, a pedagogia do meio social, difer
ente de uma
pedagogia única e exclusiva da escola, considera a escola como parte de um
sistema de agências formativas e o trabalho como o “
elo
” do materialismo
.
O sistema de complexos temáticos pressupõe os pr
ofessores como
trabalhadores coletivos, pensando juntos, planejando juntos e av
aliando
juntos. Em muitas escolas experimentais da primeira fase da rev
olução,
as professoras e os professor
es viviam no mesmo espaço, moravam
juntos, cultivavam a terra, debatiam textos, o que certamente facilitava
a organização dos complexos temáticos. Se isso é v
erdade, o sistema de
complexos pressupõe a r
etomada do controle dos sistemas escolares pelos
professores, isto é, r
etomar o controle do processo produtiv
o da escola
(o que ensinar
, como ensinar
, como avaliar
, como dividir o trabalho
educacional, os ns/sentido da escola e os métodos escolares, etc.)
Cabe lembrar que o sistema de complexos não extingue as
disciplinas, ao contrário do que diz o senso comum. Krupskaya e Pistrak,
dentre outros, diziam que o pr
ofessor continua sendo fundamental para o
ato educativo
.
N
os primeiros anos do que chamamos hoje Ensino F
undamental
I, tem apenas uma professora, “integrando
” os conhecimentos de diferentes
áreas. N
o que chamamos hoje Ensino F
undamental II, já temos um corpo
de professores especializados, que planejam como “integrar
” as diferentes
áreas do conhecimento a partir de um complexo escolhido
.
A “Carta metodológica
” também observa que, no que hoje
chamamos de Ensino M
édio, os complexos gerais são mais amplos, mas
também signicativamente mais profundos. N
o 1º ano toma-se a agricultura
e tudo que se liga a ela na natureza e na sociedade, no 2º ano toma-se
precisamente o trabalho industrial, no 3º ano as questões de organização do
inuência no campo educacional é J
urjo Santomé. N
o Brasil, o livro de I
vani F
azenda (1979) tem feito um certo
“
sucesso
”. C
uriosamente, no regime de acumulação exível, fala-se em “
colaborador
” que saiba “
ver o todo
”,
romper as gavetinhas do conhecimento, saber ligar “
especialização
” com uma “
análise abrangente” - sempr
e
tendo em vista a inovação/soluções dos problemas da acumulação de capital. N
o Brasil, dentr
o do campo
marxista, Leandro Konder
, José P
aulo N
etto, dentre outros, e mais recentemente E
leutério Prado deram suas
contribuições a este debate. As pedagogas e pedagogos do Mo
vimento Sem
T
erra tem dado sua contribuição
prática e teórica para esta questão. J
á existem no Brasil, principalmente no sul e sob controle do MST
, escolas
que implementaram parcialmente ou integralmente o sistema de complexos.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
279
trabalho e de organização da sociedade com base nas relações de produção,
no 4 ano estuda-se a história do trabalho (KR
UPSKA
YA, 2017, p. 318).
A
bur
ocrA
tizA
ção
DA
r
ev
ol
uçã
o
r
ussA
e
As
c
ontingênciAs
e
DucAcionAis
A guerra civil praticamente dizimou a Rússia. Dezoito países,
tendo por trás inúmeros interesses capitalistas, entraram em confr
onto com
a Rússia após a R
evolução de 1917. V
iktor Serge (2007), no livro “O ano I
da Revolução R
ussa
”, descreve a desintegração completa do país: indústrias,
ferro
vias, portos, etc.
T
ivemos a morte de milhares de trabalhadores na
guerra, destruição das plantações, fome, mulheres abandonadas, crianças
abandonadas e principalmente lideranças que perderam a vida.
É possível depreender
, depois da obser
vação dos livros de P
istrak,
Shulgin e Krupskaya as enormes diculdades de implementação da
pedagogia soviética no contexto do “
comunismo de guerra
”.
Com a ascensão do stalinismo, é recomposta a educação dualista,
principalmente a partir de 1929-1931: envenenamento, fuzilamento,
defenestramento e perseguição dos principais teóricos da pedagogia
comunista tornam-se palavras de ordem.
P
ara citar alguns ex
emplos, M
oisey Pistrak, um dos principais
teóricos da escola do trabalho é fuzilado em 1937. David Riazano
v
,
que descobriu os arquivos do que viriam a ser chamados “M
anuscritos
econômico-losócos de 1844” de Karl Marx, também foi fuzilado
. Isaac
Rubin – que dizia que a alienação não acabava automaticamente com o
m da propriedade privada - também foi fuzilado
.
De acordo com H
olmes (1991, p
. 124), citado por F
reitas (2017)
um grupo coordenado por A. Bubno
v “
com limitada experiência no campo
da educação
”, assumiu o Nar
kompros. P
ara Krupskaya “
os programas de
1929 sofriam de grande chauvinismo, eram criminosamente negligentes
de perspectiva histórica e não prestav
am atenção suciente à leitura e à
escrita
”
18
.
18
As críticas aos educadores stalinistas também podem ser vistas em F
reitas (2009).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
280
P
ara F
reitas (2017, p. 18):
Há no N
arkompros um grande expurgo com demissões em massa,
em mesmo contra a opinião da velha guarda (Krupskaya inclusive), o
“
método de projetos
” é assumido como referência entr
e 1929 e 1930.
Mas, a tentativa de radicalizar as exigências sobr
e as escolas não produz
mudança no quadro da educação e, em 1931, o Comitê Central do
P
artido Comunista assume a política educacional
19
.
Criou-se uma burocracia partidária-estatal extremamente
poderosa, acima dos trabalhadores, contr
olando suas vidas e formas de
trabalho. N
os dizeres de M
észáros (2002), a U
nião S
oviética se tornou uma
sociedade pós capitalista e não pós capital, mesmo com as suas aspirações
genuínas da fase inicial. Houv
e em alguma medida a “
expropriação
dos expropriadores
”, mas o controle das atividades fundamentais desta
sociedade passou a estar nas mãos de uma poderosa burocracia partidária-
estatal, atuando por cima e contra os trabalhadores. N
ão obstante esta
forma especíca de alienação e produção de mais-valor
, sempre é preciso
lembrar que a URSS conseguiu avançar signicativamente nos campos da
saúde e da educação.
Curiosamente, o sonho de M
arx – que é o sonho de muitos
de nós - de uma sociedade onde o Estado denharia a ponto de ser
superado e o trabalho se emanciparia do jugo do capital, tornou-se na
realidade so
viética um grande monstro estatal, reproduzindo as classes
sociais dentro de uma no
va roupagem, tendo como base uma forma
muito especíca de exploração do trabalho. M
ais uma vez, é por isso que
M
észáros (2002) chama a sociedade soviética de pós capitalista, pois o
capital ainda estava no comando da sociedade, ainda que de uma forma
distinta da sociedade capitalista.
Lamentavelmente no século XXI não conseguimos criar uma
nov
a forma de controle social baseada no poder comunal, na propriedade
real dos meios de produção e fundamentalmente baseada na alteração
19
Em 1929 e 1930, Krupskaya atuou criticamente mostrando os problemas que as modicações pretendidas
pelos novos ocupantes do N
arkompros trariam para a política educacional, embora sem ser ouvida (FREIT
AS,
2017, p. 18).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
281
radical do sentido do trabalho. P
ermanece então o desao da constr
ução
de uma sociedade para além do capital e da educação para além do capital.
A
ur
gênciA
DA
eDucAçã
o
P
ArA
AléM
Do
cAPit
Al
O sociometabolismo do capital só está produzindo barbárie.
Estamos vivendo a Era da barbárie, era da destruição, caracterizada por
uma regressão histórica pr
ofunda. N
unca antes na história da humanidade
a precarização do trabalho, a multiplicação de desastres ambientais, a fome
e miséria, e o analfabetismo funcional atingiram o nível atual.
P
ara piorar
, o capital está destruindo a escola pública, a saúde
pública, a previdência pública, promo
vendo uma no
va fase de liquidação
dos poucos “
poros
” ainda públicos na sociedade contemporânea.
A ofensiva do capital nanceiro está produzindo um pr
ofundo
retrocesso social, de amplitude planetária. B
ancos, Seguradoras, I
nvestidores
privados bilionários e fundos de pensão têm dado a tônica do capitalismo
desde os anos 1970, respaldados por estados policiais, que transformam a
vida em negócio, o bem público em mercadoria e a sociedade em mercado
.
N
o Brasil, estamos viv
endo tempos difíceis e sombrios. Basta
lembrar a ruptura da legalidade democrática, o retorno a escravidão e um
intenso processo de camelotagem de bens públicos, a cada semana em
liquidação.
N
o plano “
produtivo
”, estamos assistindo uma profunda
reestruturação produtiva r
etrógrada, que gerou uma no
va espécie de
acumulação primitiva no campo: roubo de terras
20
, extermínio de
comunidades tradicionais e pov
os originários que restaram, grilagem de
terras etc.
20
No plano mundial, E
dwards (2017) destaca com precisão que: “
o único fator chave na reativação do debate
sobre os cercamentos é sem dúvida a própria globalização neoliberal. U
ma enorme rodada de despossessão e
acumulação está em curso atualmente, implicando assalto global aos direitos consuetudinários, a transformação
de recursos de uso comum em propriedade privada e a implantação de mecanismos de mercado em todos os
aspectos da vida social. P
or exemplo, a transfer
ência atual de terras, águas e orestas na Índia é, como indica
Arundhati Roy “
um processo de despossessão bárbara numa escala sem paralelo na história
”.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
282
N
a cidade, a relocalização de plantas em busca de menor
es salários
e menor pressão dos sindicatos, terceirização para baixar custos e fragmentar
a classe trabalhadora, “
uberização
” dos trabalhadores e trabalho análogo ao
escravo passam a fazer parte das análises dos sociólogos do trabalho. P
ara
complicar ainda mais este cenário, Google, Apple, F
acebook, corporações
que nasceram da noite para o dia, despontam como grandes empresas que
estão na dianteira do capitalismo nanceirizado.
O “
capitalismo real” nos mostra todos os dias que a sociedade
comandada pelo capital é irracional. Ela produz desempr
ego e subemprego
crônicos, produz o colapso ambiental, produz fome e miséria, violência
social e institucionalizada que se fortalecem mutuamente, crises de
superprodução, guerras de grande alcance (1ª e 2ª G
uerras M
undiais) e
guerras preventiv
as ou de “baixa intensidade
”. Ele repr
oduz e se utiliza das
hierarquias entre os sex
os. Ele gera trabalho explorado, nas mais variadas
formas: análogo à escravidão, taylorista-fordista, trabalho “explorado
”,
terceirizado, “
uberizado
”. Leva também a intensos processos de migração
e expulsão de jov
ens de seus países. P
or sua vez, o socialismo real nos
mostrou que a extinção da propriedade privada dos meios de pr
odução não
necessariamente leva ao nascimento de no
vas relações sociais comunistas,
e um dos legados do século passado foi a compreensão de que capitalismo
de Estado ou privado não são opções para o século XXI.
N
a cidade neoliberal, numa ponta está a globalização da pobreza e
das favelas, na outra as mansões e condomínios fechados. Esta no
va era, que
poderia ser chamada de Era da Barbárie, ao mesmo tempo em que destr
ói
as conquistas de uma parcela da classe trabalhadora e extermina dir
eitos
sociais, também produz uma intensa reação por parte dos trabalhadores,
em geral não divulgadas pelos meios de comunicação capitalistas.
É possível vericar também que nas lutas pelos dir
eitos humanos
fundamentais começam a surgir ações práticas e bandeiras em torno da
autogestão (ampla), do trabalho associado
21
, pela desmercantilização da
vida, pela propriedade comunal ou coletiva dos meios de produção, pela
democracia radical e igualdade substantiva, pela educação para além do
21
P
ara o debate do trabalho associado, ver Rodrigues, N
ovaes e B
atista (2012).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
283
capital, direito à cidade, soberania alimentar
, terra de trabalho (e não de
negócios), agroecologia, dentre outras
22
.
É verdade que essas lutas ainda são difusas e esparsas, sem um
sentido ou direção comum contra o sociometabolismo do capital.
T
ambém
é verdade que as trabalhadoras e os trabalhador
es sabemos o que não
queremos, mas ainda não sabemos muito bem para onde caminhar
. F
alta
evidentemente uma teoria revolucionária que nos ajude na caminhada
revolucionária do século XXI.
P
ara concluir
, no que se refere ao espaço propriamente escolar
,
recuperamos de outros escritos quais seriam, ao nosso v
er
, os fundamentos
de uma Escola do
T
rabalho Emancipado no século XXI:
a) O exercício da autogestão na escola: rodízio de funções, hábito
coletivo e autogestionário. Este princípio tem como base a pedagogia
da auto organização/criação de novas r
elações sociais na escola, ou seja,
a forma escolar forma (PISTRAK., 2009;
TRAGTENBER
G, 2001;
DAL RI; VIEITEZ, 2008; FREIT
AS, 2009; NOV
AES; CASTR
O,
2011);
b) O exercício da autogestão do sistema educativo, passando por
todas as esferas hoje alienadas dos professores, funcionários, alunos
e “
comunidade
”. S
obre isto, basta lembrar o poder da administração
central na conformação do currículo, da política salarial, do plano de
carreira, da supervisão do sistema, na avaliação, etc.;
c) Realização de
T
rabalho Socialmente N
ecessário (P
ISTRAK et al.
2009; SHULGIN, 2013);
d) P
reparação para a luta e inserção nas lutas do seu tempo (atualidade),
ligando a escola com o seu meio social (PISTRAK et al. 2009;
NOV
AES, 2012; NOV
AES et. al., 2017);
22
Desde 2007 temos realizado alguns cursos e atividades de extensão, das quais poderíamos destacar: 1) C
ursos
de Extensão e Especialização na UNICAMP
, no campo do T
rabalho Associado; 2) Curso de Especialização
“Gestão P
ública e Sociedade
”, fruto da parceria UFT
-UNICAMP
, nanciado pela SENAES-MTE; 3) Curso de
Aperfeiçoamento itinerante “Mo
vimentos Sociais e Crises Contemporâneas
”, oferecido desde 2014, já com 7
edições, fruto da parceria IBEC, GPOD e UNESP; 4) “P
ós M
édio em Agroecologia
”, parceria UNESP-MST
(2014-2016), nanciado pelo CNPq; 4) Mini Curso itinerante “Q
uestão agrária, Cooperação e Agroecologia
”,
em parceria com o MST (5 Edições); 5) Mini C
urso itinerante “Marx e Revolução na P
eriferia
”, realizado em
Itaquera no ano de 2017, em parceria com a AP
EOESP da Zona Leste, F
rente Brasil P
opular e Fr
ente P
ovo
Sem M
edo; 6) Mini Curso “E
conomia política da deseducação e a Educação para além do capital” (UNESP
– 80 horas, previsto para o segundo semestre de 2018), em par
ceria com os estudantes secundaristas. E mais
recentemente o Curso “T
écnico em Agropecuária integrado ao Ensino M
édio
”, em parceria com o Centro P
aula
Souza e o MST
, nanciado pelo PR
ONERA-INCRA.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
284
e) U
tilização do sistema de complexos temáticos/estudo a partir da
totalidade, tendo em vista a compreensão do sociometabolismo do
capital sob uma perspectiva totalizante, dinâmica e contraditória,
que combine totalidade e particularidade (PISTRAK et al., 2009;
LUKÁ
CS, 2010);
f
) Educação estética: preparação para a compreensão e construção de
cultura não mercadológica (MÉSZÁR
OS, 2006, cap. 13; CABRAL,
2012; HILSENBECK FILHO, 2012; V
ÁZQ
UEZ, 2009);
g) Educação física para o desenvolvimento do corpo humano;
h)Estudo da história de um ponto de vista materialista e resgate da
T
eoria da Revolução brasileira (R
ODRIGUES, 2013; LIMA FILHO,
2019);
i) Exercício do trabalho emancipado, isto é, a escola dev
e preparar para
o trabalho coletivo e desalienado (MÉSZÁR
OS, 2002; PISTRAK,
2002; VIEITEZ; DAL RI, 2001; SIL
V
A; LIMA FILHO, 2015);
j) P
olitecnia: socialização do conhecimento historicamente acumulado
e promoção de processos de A
dequação Sóciotécnica (LOMBARDI,
2011; SA
VIANI, 2003 e 2008; RAMOS, 2010; DAGNINO, 2008),
para que os trabalhadores possam compreender os “
fundamentos
cientícos do trabalho
” na teoria e na prática. Ao mesmo tempo,
realização de um “balanço
” da tecnociência do capital. Como a ciência e
a tecnologia não são neutras, realização de um “inventário
” e “ltro
” das
forças produtivas e destrutivas criadas pelo capital e desenvolvimento
de tecnociência adequada para a emancipação humana, tendo em vista
a desmercantilização completa da sociedade e o autogov
erno pelos
produtores livr
emente associados (DAGNINO, 2008; NO
V
AES,
2017; CALDAR
T
, 2013; ROL
O, 2012).
r
eferênciAs
CABRAL, F
. Arte para pensar a vida e educar os sentidos.
In
: MENDONÇA, S. G. L.
et al
. (org.).
Marx, Gr
amsci e
V
igotski:
aproximações. Araraquara: J
unqueira & Marin,
2012. p. 377-398.
CALDAR
T
, R.
Desaos do vínculo entre tr
abalho e educação na luta e construção da
Reforma Agr
ária P
opular
. 2013. Disponível em: http://www
.reformaagrariaemdados.
org.br/biblioteca/artigo-e-ensaio/desaos-do-v%C3%ADnculo-entre-trabalho-e-
educa%C3%A7%C3%A3o-na-luta-e-constru%C3%A7%C3%A3o-da-ref. A
cesso em:
6 nov
. 2013.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
285
DA
VIS, Angela.
Mulher
es, raça e classe
. S
ão P
aulo: Boitempo, 2013.
DAGNINO, R.
N
eutr
alidade da ciência e determinismo tecnológico
. Campinas:
UNICAMP
, 2008.
DAL RI, N. M.; VIEITEZ, C. G.
Educação democr
ática e tr
abalho associado no
Mo
vimento dos
T
rabalhador
es Rur
ais Sem
T
err
a e nas fábricas de autogestão
. São P
aulo:
Ícone-F
apesp, 2008.
EDW
ARDS, S. Os “
comuns
” e as multidões: considerando a fotograa de cima e de
baixo.
C
rítica Marxista
, São Carlos, n. 45, p. 9-34, 2017.
F
AZENDA, I
vani C. A.
I
ntegração e inter
disciplinaridade no ensino br
asileiro
: efetividade
ou ideologia? São P
aulo: Loyola, 1979.
FREIT
AS, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito.
In:
PISTRAK, M. M.
A escola-comuna
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2009. p
. 8-100.
FREIT
AS, L. C. Pr
efácio.
In:
KRUPSKA
YA, Nadezhda.
A construção da pedagogia
socialista
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2017. p. 8-19.
HILSENBECK FILHO, A.
O MST e o teatro:
potencialidades pedagógicas. 2012.
Disponível em: http://passapalavra.info/2012/11/66247. A
cesso em: 15 nov
. 2012.
HOBSBA
WM, Eric.
A er
a dos extremos
. S
ão P
aulo: Cia das Letras, 1996.
K
OSIK, K.
Dialética do concreto
. Rio de J
aneiro: Paz e
T
erra, 1972.
KRUPSKA
YA, Nadezhda.
A construção da pedagogia socialista
. São P
aulo: Expressão
P
opular
, 2017.
LIMA FILHO, P
. A.
Pensando com M
arx
. Marília-São P
aulo: Lutas anticapital-
Araramarani, 2019.
LODI, S.
N
adezhda Krupskaia:
uma estrela vermelha. Uberlândia: N
avegando, 2017.
LUEDEMANN, C.
A
nton Makar
enko:
vida e obra. São P
aulo: Expr
essão P
opular
, 2002.
LOMBARDI, J. C.
Educação e ensino na obr
a de Marx e Engels
. Campinas: Alínea,
2011.
LUKÁ
CS, G.
Pr
olegômenos par
a uma ontologia do ser social.
São P
aulo: Boitempo, 2010.
MACHADO, L. A politecnia nos debates pedagógicos so
viéticos das décadas de 20.
T
eoria e Educação
, P
orto Alegre, n. 3, 1991, p
. 151-174.
MAKARENK
O, Anton.
P
oema pedagógico
. S
ão P
aulo: Ed. 34, 2005.
MARX, K.
O capital
. São P
aulo: Boitempo, 2013. v
. I.
MARX, K.
Crítica do progr
ama de Gotha
. São P
aulo: Boitempo, 2012.
MARX, K.
O capital
. São P
aulo: Nov
a Cultural, 1996. v
. I- II.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
286
MARX, K
. O capital
. 3. ed. São P
aulo: Abril Cultural, 1983. v
. I.
MARX, K.; ENGELS, F
.
Manifesto do P
ar
tido Comunista
. São P
aulo: Boitempo, 1998.
MARX, K.; ENGELS, F
.
A ideologia alemã
. São P
aulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, I.
P
ar
a além do capital.
São P
aulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, I.
A educação par
a além do capital
. São P
aulo: Boitempo, 2006.
NOV
AES,
H. T
.
Reatando um o interrompido:
a relação universidade-mo
vimentos
sociais na América Latina. São P
aulo: Expressão P
opular-F
apesp, 2012.
NOV
AES,
H. T
.
et al
.
Mundo do tr
abalho associado e embriões de educação par
a além do
capital
. Marília: Lutas anticapital, 2017.
NOV
AES, H.
T
.; CASTRO, M. Em busca de uma pedagogia da pr
odução associada.
In
:
BENINI, É.; SARDÁ DE F
ARIA, M.; NO
V
AES, H.
T
.; DAGNINO, R. (org.).
Gestão
pública e sociedade:
fundamentos e políticas públicas de economia solidária. São P
aulo:
Outras Expressões, 2011. p
. 153-188.
PISTRAK, M. M.
F
undamentos da escola do tr
abalho
. São P
aulo: Expressão P
opular
,
2001.
PISTRAK, M. M. (org.).
A escola-comuna
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2009.
PISTRAK, M. M.
F
undamentos da escola do tr
abalho
. 3. ed. P
aulo: Expr
essão P
opular
,
2018.
RAMOS, M.
T
r
abalho, educação e corr
entes pedagógicas no Br
asil:
um estudo a partir da
formação dos trabalhadores técnicos da saúde. Rio de J
aneiro: Ed. da UFRJ, 2010.
R
ODRIGUES, F
. C.
MST
:
formação P
olítica e Reforma Agrária nos anos de 1980
.
T
ese
(Doutorado em Educação) - U
niversidade de Campinas, Campinas, 2013.
R
ODRIGUES, F
. C.; NOV
AES, H.
T
.; BA
TIST
A, E. L. (org.).
M
ovimentos sociais,
tr
abalho associado e educação par
a além do capital
. São P
aulo: Outras E
xpressões, 2012.
v
. I.
R
OLO, M.
Ocupando os latifúndios do saber
: subsídios para o ensino da ciência na
perspectiva politécnica da educação. 2012. 382 f
.
T
ese (Doutorado em Educação) -
U
niversidade do Estado do Rio de J
aneiro, Rio de J
aneiro, 2012.
SA
VIANI, D. O choque teórico da P
olitecnia.
T
r
abalho educação e saúde [online
], Rio de
J
aneiro, v
. 1, n. 1, p. 131-152, 2003.
SA
VIANI, D.
Pedagogia histórico-crítica:
primeiras apro
ximações. Campinas: Autor
es
Associados, 2008.
SER
GE, V
.
O ano I da Revolução R
ussa
. São P
aulo: Boitempo, 2007.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
287
SIL
V
A, N. F
.; LIMA FILHO, P
. A. A sociedade comunista na visão de Marx e Engels.
In
: NOV
AES, H.
T
.; MAZIN, A. D.; SANTOS, L. (org.)
Questão agr
ária, cooperação e
agroecologia
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2015. p. 129-168.
SCHNEIDER, Graziela (org.).
A r
evolução das mulher
es:
emancipação feminina na
Rússia So
viética. São P
aulo: Boitempo, 2017.
SHELLEY
, M.
Fr
ankenstein
. P
orto Alegre: L&PM, 2000.
SHULGIN, Viktor
.
Rumo ao politecnismo
. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2013.
TRAGTENBER
G, M. P
refácio
. In: P
ISTRAK, M. M.
F
undamentos da escola do
tr
abalho
. São P
aulo: E
xpressão P
opular
, 2001.
V
ÁZ
QUEZ, A. S.
As ideias estéticas de Marx
. São P
aulo: Expr
essão P
opular
, 2009.
VIEITEZ, C.; DAL RI, N.
T
r
abalho associado
. Rio de J
aneiro: DP&A, 2001.
289
O
“
” M
A L
Leandro G
alastri
Mariátegui é o nosso “irmão mais velho
”...
Flor
estan F
ernandes
i
ntr
oDução
E
mbora este texto não trate diretamente da R
evolução Russa
de outubro de 1917, é notório que o pensamento do marxista peruano
J
osé Carlos Mariátegui se desenv
olve também sob forte inspiração da
consolidação revolucionária do poder bolchevique na R
ússia, sob a direção
de Lênin. N
esse sentido, o objetivo deste texto é vericar como algumas
das principais ideias de Mariátegui, por esse viés, podem ser aplicadas
na análise concreta da luta de classes latino-americana, principalmente
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
290
em torno de temas como a questão racial, a concentração fundiária e o
imperialismo (neste caso, em diálogo permanente com o pensamento
lenineano). P
rimeiramente, fazemos uma brev
e contextualização histórica
e intelectual de sua atuação. A
pontamos e comentamos, na sequência, os
elementos centrais do documento “
A questão das raças na América Latina
”,
de autoria principal de Mariátegui e apr
esentado por representantes do
P
artido Socialista P
er
uano na I Conferência Comunista Latino-Americana,
realizada na Argentina, em 1929. A despeito do título, literalmente
circunscrito à questão racial, o problema da terra está pr
esente no
documento em pauta, sendo organicamente vinculado à questão indígena.
Em terceiro lugar
, destacamos elementos importantes, relativos à questão
da denição e do combate ao imperialismo na América Latina, sobre a
notória polêmica teórica e política entre M
ariátegui e o fundador da Ação
P
opular Revolucionária Americana (APRA),
Víctor Raúl Haya De La
T
orre. Aqui também se desenr
ola, de forma análoga à problemática russa
e, de resto, europeia, a disputa entr
e correntes de concepções reformistas
socialdemocratas e aquelas de corte comunista revolucionário
. P
or m,
concluímos com algumas observações relativas à tradução contemporânea
do que consideramos ser o internacionalismo “indoamericano
” do
pensamento do Amauta.
1. c
ontextu
Aliz
Açã
o
hist
óricA
e
intelectu
Al
Entre o nal do século XIX e as primeiras duas décadas do XX
são consolidadas na economia peruana as características que esta trazia dos
tempos coloniais: a cisão entre a costa (socialmente dinâmica e branca) e
a serra (atrasada e indígena), e o controle da economia por um pequeno
estrato privilegiado (latifundiários ou “
gamonales
” na agricultura e frações
burguesas no comércio) e subordinado ao imperialismo inglês (que
controlava comércio exterior
, ferrovias e bancos). S
egundo Escorsim (2006,
p. 18), trata-se de um período bastante caracterizado pela exploração do
guano e do salitre, que per
derão gradativamente importância após guerra
contra o Chile.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
291
A conjuntura do pós-guerra expõe o país a nov
as pressões,
notadamente o imperialismo estadunidense sobre economia andina.
Dados de 1929 apresentados por M
artinez de la
T
orre
1
informam que
o investimento estadunidense no P
eru ultrapassava os 200 milhões
de dólares.
T
anto na indústria quanto na mineração, o capital nor
te-
americano estava à frente, possuindo as tr
ês maiores fábricas de tecidos
e cimento (ESCORSIM, 2006, p. 19). As nanças peruanas passam a
ser dominadas pela banca estadunidense. A dívida pública se eleva graças
a sucessivos empréstimos adquiridos em N
ova Y
ork. Em um ano passa
de 20 milhões de dólares para 146 milhões de dólares. R
endas públicas
são penhoradas como garantias especiais para os empréstimos. Em 1927,
dois bancos estadunidenses (
J.W
. Seligman Co
. e e N
ational City Bank
of N
ew Y
ork) assumem o controle da arrecadação das rendas públicas
(ESCORSIM, 2006, p. 20).
N
o período que se segue a 1919, articulam-se no P
er
u capital
monopolista e “
pré-capital” (formas semifeudais de r
elações de trabalho
subsistentes sobretudo na região serrana). A partir da produção agrária
e mineira para a exportação, o capital imperialista se articula com seus
respectivos centr
os capitalistas nacionais e tem muito pouco interesse
no desenvolvimento do mercado interno peruano, a não ser para seus
próprios interesses logísticos de exportação
. U
ma consequência imediata
é que, na medida em que o valor da força de trabalho explorada pelo
capital monopolista se constitui fundamentalmente na área não capitalista
da economia, a taxa de lucro desse capital resulta muito mais alta.
(ESCORSIM, 2006, p. 21).
O P
eru se apresenta então como um país agroexportador com a
pauta de exportações centrada no açúcar e no algodão. Alguma produção
açucareira na região serrana ainda se v
oltava para o mercado interno, mas
a grande parte estava nas mãos do capital estrangeiro, situava-se na costa
norte e empregava grande número de proletários agrícolas. F
oi a região que
mais viria se mecanizar
.
Seria dirigente do P
artido Socialista P
er
uano após a morte de Mariátegui, em abril de 1930, ocasião em que o
nome é mudado para P
artido Comunista P
eruano.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
292
O setor algodoeiro estava mais concentrado na costa e o capital
imperialista investia aí, sobretudo, na comer
cialização. A economia
tradicional, serrana e cuja base era a propriedade comunitária da terra
pelos nativos (ayllu), teve sua produção
de alimentos e lã integrada à esfera
mercantil graças a implantação de ferro
vias. P
orém, tal integração deu-
se sob um processo de progr
essiva expropriação das antigas comunidades
pelos gamonales (proprietários latifundiários que mantinham relações de
trabalho semifeudais na região serrana). O processo é, de certa forma,
comparável aos cercamentos ingleses descritos por M
arx no conhecido
capítulo d’
O Capital
sobr
e a acumulação primitiva. Dele derivou um
nov
o processo de formação de latifúndios no país e nov
as pressões sobre
os indígenas (ESCORSIM, 2006, p. 22). O
nde não havia fazendas, mas
apenas terras comunitárias, aquelas começam a se multiplicar
. O despojo
das terras comunitárias leva à degradação da vida indígena, à marginalização
e ao banditismo.
A produção mineral salta nos primeiros anos do século XX, setor
em que se vericará importante concentração da atividade e mobilização
operária (alargam-se a produção e exportação de cobre, carvão e petróleo)
(ESCORSIM, 2006, p. 22). A indústria, incipiente, concentra-se em Lima
e Cuz
co. Observa-se também intenso emprego de mão de obra feminina
nos setores de alimentos, têxteis, vidros e metalurgia v
oltados para o
pequeno mercado interno, obviamente sob condições de salário e trabalho
aviltantes (ESCORSIM, 2006, p. 22).
Diante dessa dinamização social e econômica, Escorsim (2006, p
.
24) observa que algumas lutas se desenvolvem balizadas principalmente em
três setores: a) lutas camponesas – questões da terra e do indígena apar
ecem
entrelaçadas, ocorrendo sublev
ações de impacto nacional em 1915, 1921 e
1927; b) lutas estudantis que sinalizam as inquietações das camadas médias
urbanas, e que eclodem em 1918/1919, no âmbito de um movimento de
reforma universitária; c) lutas operárias, que se av
olumam entre 1912 e 1919,
com a greve geral de Lima que conduz à queda do go
verno
. São dirigidas
inicialmente por movimentos anar
quistas e anarcossindicalistas e redundarão
na criação de nov
as organizações operárias ao longo da década de 1920.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
293
As lutas camponesas, atravessando toda a colônia e república, não
são de fato uma novidade, mas adquir
em articulação nacional no início
dos anos 1920. Criam uma tendência para a organização nacional do
movimento indígena, e sua vinculação com os mo
vimentos democráticos
urbanos: “[...] a consequência é que, pela primeira vez, o problema indígena,
conectado à questão agrária, apareceria como aspecto fundamental da
questão nacional.
” (ESCORSIM, 2006, p. 24).
N
o caso do movimento estudantil, o aspecto no
vo foi sua
articulação com o movimento operário urbano, ou pelo menos a
manutenção de bases que supunham explicitamente essa relação
. S
uas
demandas especícas (reforma universitária) vinculav
am-se a exigências
políticas e sociais respeitantes aos trabalhadores e grupos subalternos
urbanos.
T
al aliança conferiu grande ressonância ao mo
vimento estudantil
(“
surgimento
” de Haya de La
T
orre e formação das U
niversidades P
opulares
Gonzales P
rada) (ESCORSIM, 2006, p
. 25).
N
o caso do movimento operário, ainda que com um contingente
diminuto, sua ação em 1919 leva à queda do go
verno e promo
vem forte
incidência na sociedade em sua associação com o movimento estudantil.
M
uitas expressões políticas do P
er
u moderno – correntes socialistas,
comunistas e o aprismo – teriam resultado da combinação entre mo
vimento
operário e movimento estudantil dos anos posterior
es à P
rimeira Guerra
(ESCORSIM, 2006, p. 26).
U
ma característica importante dos inícios do gov
erno Leguía no
P
eru, e que sem dúvida teve sua inuência na capacidade de mobilização
das classes subalternas nacionais, foi sua incipiente modernização urbana:
[...] criou-se o abastecimento de água potável nas principais cidades;
construíram-se 1.100 milhas de estradas, 100 pontes, 600 milhas de
ferrovias e 800 escolas primárias; númer
o de estudantes quase duplicou;
terras de uma extensão de 100 mil acres foram irrigadas
” (ANDERLE,
1985, apud ESCORSIM, 2006, p. 27).
É neste ambiente que começa a se desenvolver o pensamento
social de Mariátegui, cujo desenvolvimento posterior M
ichael Löwy
, por
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
294
exemplo, considera pró
ximo das expressões “heréticas
” dos marxismos
de Lukács, Benjamin e G
ramsci (L
Ö
WY
, 2005, p. 07). Lö
wy enxerga o
marxismo de Mariátegui num registr
o de “
anticapitalismo romântico
”, no
que existiria de revolucionário nesse r
egistro (LÖ
WY
, 2005, p. 09): protesto
cultural contra a civilização capitalista moderna enquanto sistema de
racionalidade quanticadora e de desencantamento do mundo, em nome
de valores ou imagens do passado pr
é-capitalista, (LÖ
WY
, 2009, p. 12).
N
esta perspectiva, estaria presente
uma dialética utópico-revolucionária
entre o passado pré-capitalista e o futur
o socialista. É por essa via que,
segundo Löwy
, M
ariátegui reivindicaria o socialismo romântico de autor
es
como Georges Sor
el, que refutariam as chamadas “ilusões do progr
esso
”
(LÖ
WY
, 2005, p. 10).
Lowy mobiliza então passagens de M
ariátegui em que este
enfatiza o que chama de “
fé r
evolucionária
”, ou a força do mito. Chama a
atenção que a despeito de outros marxistas inicialmente sorelianos (Lukács
e G
ramsci, p. e.), M
ariátegui continuará soreliano até o m:
[...] se Mariátegui escolheu Sor
el foi porque o sindicalista revolucionário
francês, enquanto crítico implacável das ilusões do progresso e pr
omotor
de uma interpretação heroica e voluntarista do mito r
evolucionário,
era-lhe necessário para combater o amesquinhamento positivista e
determinista do materialismo histórico. (L
Ö
WY
, 2005, p. 15).
É importante apontar aqui para a luta antipositivista que o
marxismo travava nos inícios do século XX.
T
al embate também foi
duramente travado por G
ramsci desde os seus escritos de juventude, ou
pré-carcerários. O objetiv
o aqui era então o confronto com as perspectivas
mecanicistas do PSI. N
o caso de Mariátegui, que estav
a impregnado
do espírito daquela luta, a convicta assimilação de Sor
el certamente se
relacionaria ao caráter resolutamente antipositivista, antimecanicista e, por
extensão (nesse caso, duvidosa), inclusive anti-cienticista. Ainda segundo
Löwy
, o objetivo de M
ariátegui é ressaltar a dimensão “
espiritual e ética
” da
luta socialista revolucionária: a fé, a solidariedade, a indignação moral […]
(LÖ
WY
, 2005, p. 17).
T
rata-se aqui de uma tentativa de “
reencantamento
do mundo
” pela ação revolucionária [...] (LÖ
WY
, 2005).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
295
O autor
, em seguida, chama a atenção para o fato de que Sorel
seria apenas uma refer
ência teórica para Mariátegui. Assim, seu sorelismo,
com toda a marca do apoliticismo, ou antipoliticismo do sindicalismo
revolucionário, não compr
ometeria a perspectiva marxista do socialista
peruano. Assim, “[...] sorelismo e bolchevismo lhe par
ecem próximos por
seu espírito revolucionário, por sua r
ecusa do reformismo parlamentar e
por seu voluntarismo romântico
.
” (LÖ
WY
, 2005, p. 17).
Outra característica salientada por Löwy é que M
ariátegui não
acreditaria, portanto, num processo etapista para a rev
olução peruana,
discordando do que diriam os teóricos da IC à época. Ou seja, na América
Latina não haveria uma etapa necessariamente democrático-nacional e
antifeudal da revolução, mas a r
evolução propriamente socialista seria a
única alternativa ao imperialismo e à dominação do latifúndio (LÖ
WY
,
2005, p. 18). A base desta convicção de M
ariátegui encontra-se na
preservação, segundo ele, do espírito comunitário dos antigos incas,
ou seja, na preservação, nos valores, costumes e memórias do indígena,
do comunismo primitivo incaico, e mesmo ainda de resquícios de sua
prática material nas comunidades indígenas restantes. S
obre isso, é sabido
que Mariátegui considerava que pr
edominava, na economia inca, um
comunismo agrário com pilares em duas instituições “
estatais
”: o
ayllu
,
grupos familiares vinculados pelo parentesco que praticava a pr
opriedade
coletiva da terra, e a
marca
, federação de
ayllus
que tinha a pr
opriedade
coletiva das águas, dos pastos e dos bosques. Este seria o elemento material
do passado, mais do que uma tradição simbólica, que deveria sustentar
as esperanças na capacidade de construção de uma sociedade socialista
no P
eru. Assim, sem incorrer numa retórica passadista reacionária, os
elementos que poderiam ser procuamente apro
veitados no processo da
revolução peruana e na construção de técnicas de produção cientícas são
os “[...] hábitos de cooperação e socialismo dos camponeses indígenas [...]”
(LÖ
WY
, 2005, p. 20).
P
ara Lö
wy
, o romantismo revolucionário integra as conquistas de
1789 (liberdade, democracia, igualdade) e seu objetivo não é um r
etrocesso
na história, mas um “
desvio pelo passado comunitário em direção a um
futuro utópico
”. P
ara o autor
, é a essa sensibilidade que per
tence Ernest
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
296
Bloch, por ex
emplo, ao assimilar elementos do iluminismo à sua crítica
“
romântica-revolucionária
” do capitalismo (LÖ
WY
, 2009, p. 12).
P
ara Lö
wy
, trata-se de uma modalidade muito particular da
dialética tipicamente romântica entre passado e futur
o, cujo horizonte é
a descoberta do futuro nas aspirações do passado sob “ a forma de uma
promessa não cumprida
” (LÖ
WY
, 2009, p. 16).
Escorsim, cujo texto utilizamos para a contextualização histórica
anterior
, discorda das caracterizações de Lö
wy (ESCORSIM, 2006,
p. 50). A autora considera a classicação de Lö
wy como possuindo
critérios weberianos (anticapitalismo romântico: romantismo passadista
ou retrógrado, r
omantismo conser
vador
, romantismo desencantado e
romantismo rev
olucionário). Discor
da da revisão que Löwy opera, por
exemplo, na teorização de Lukács sobr
e o anticapitalismo romântico
.
Como a autora busca salientar
, não haveria (ainda de acordo com L
ukács)
no anticapitalismo romântico nenhum potencial crítico em chave positiva,
de superação da sociedade burguesa (ESCORSIM, 2006, p. 49). N
esse
sentido não haveria radicalidade na crítica de Lö
wy
, no sentido marxiano.
As determinações econômico-políticas concretas da or
dem burguesa
apareceriam dissolvidas numa crítica de dimensão cultural e ética.
T
al
característica impediria, a partir dessa crítica, um movimento que aponte
para outra forma de sociabilidade. N
as palavras da autora:
[...] a retomada por Löwy aponta para uma inteira r
edenição de seu
sentido: em Lukács, do anticapitalismo romântico só pode resultar uma
objetiva cumplicidade com o
status quo
; em Löwy
, o anticapitalismo
romântico é ambivalente: pode conter essa cumplicidade tanto
quanto uma resposta rev
olucionária em face da sociedade burguesa.
(ESCORSIM, 2006, p. 49).
Escorsim mobiliza, é pro
vável que propositadamente, praticamente
as mesmas passagens de Mariátegui que as mobilizadas por Lö
wy
, mas para
defender seu ponto de vista diametralmente oposto (LÖ
WY
, 2005, p.
22; ESCORSIM, 2006, p. 53). N
o documento enviado à I Conferência
S
ul-americana de P
artidos Comunistas, com relação à passagem em que
Mariátegui apr
esenta o comunismo incaico como base material e simbólica
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
297
para uma possível rev
olução socialista no P
er
u, Escorsim considera uma
reexão “
nada romântica
”, enquanto Löwy a aponta como “
sua estratégia
romântico-rev
olucionária
”.
Seja como for
, menos impor
tante do que encontrar soluções
denitivas para essa polêmica especíca, é importante notar que Mariátegui
opera na perspectiva da tradutibilidade do marxismo para a revolução na
América Latina.
T
radutibilidade que assimila de forma clara, por exemplo,
a ideia lenineana de hegemonia, ao trazer para o programa político do
proletariado os interesses materiais e simbólicos históricos dos camponeses
indígenas peruanos, com grande centralidade para estes. Mais do que a
ênfase em características míticas ou religiosas do marxismo mariateguiano,
é sua tentativa de dar início à construção de uma proposta revolucionária
hegemônica para sua formação social peruana que interessa observar no
pensador peruano.
2. J
osé
c
Arl
os
M
Ariá
tegui
e
A
q
uest
ão
DAs
rA
çAs
nA
A
MéricA
l
A
tinA
O objetivo deste tópico é apresentar as ideias principais e a forma
como Mariátegui abor
da a questão indígena na América Latina como
um todo e no P
eru em par
ticular
. A principal referência teórica aqui é o
documento chamado justamente “El problema de las razas en la América
Latina
”, preparado por Mariátegui para ser apresentado na “P
rimera
Conferencia Comunista Latinoamericana
”, realizada em Buenos Air
es
em junho de 1929. Devido a problemas de saúde, o autor não pôde ir
até a Argentina apresentar pessoalmente suas teses, tarefa que conou a
representantes do P
artido Socialista P
eruano. Os problemas dos quais trata
o autor fazem parte da conjuntura peruana das décadas de 1910 e 1920,
mas muitos deles permanecem inalterados até hoje, como a concentração
fundiária, a exploração intensa da mão-de-obra indígena e a submissão ao
capital nanceiro dos países centrais, somados ao renitente fenômeno do
racismo contra a população de etnias indígenas.
Mariátegui abr
e o texto lembrando que o problema das raças, de
igual forma que o problema da terra, demanda a liquidação da feudalidade.
Com relação à questão da raça, o autor observa que os preconceitos
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
298
relativos à suposta inferioridade do indígena permitem ao colonizador
explorá-lo mais intensamente. Ou seja, o preconceito da inferioridade da
raça indígena justica uma exploração máxima de sua força de trabalho
(MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 25).
P
ara os gamonales
2
o problema índio é étnico, cuja solução
depende do cruzamento com as raças brancas superiores (MARIÁ
TEGUI,
1974, p. 25). P
ara Mariátegui, é o problema de sua pobr
eza, da
inferioridade material e cultural à qual são submetidos. Ao mesmo tempo,
é interessante observar quais eram as vantagens materiais imediatas, para o
capital, da manutenção do indígena nas condições em que se encontrava.
Lembra o autor que, para o imperialismo inglês ou norte-americano, o
valor econômico dessas terras seria muito menor se não houvesse ali uma
população indígena atrasada e miserável a qual pudessem explorar de
forma extrema. A história da indústria açucar
eira peruana mostraria como
sua utilidade e sua viabilidade econômica repousavam no baixíssimo pr
eço
da mão de obra indígena, ou seja, na miséria dos trabalhadores braçais
indígenas. A produção açucareira peruana não tinha condições técnicas de
concorrer com a produção de outr
os países, então a vantagem comparativa
de que se valia era justamente o baixíssimo valor da mão de obra.
O capital estrangeiro também se servia da classe feudal para explorar
em seu pro
veito essas massas camponesas. Mas a incapacidade tradicional
desses latifundiários locais para cumprir a função de chefes de empresa
capitalista era tal que aquele capital se via obrigado a tomar a administração da
produção em suas próprias mãos. Era o que ocorria naquele momento, com
a indústria açucareira do litoral sendo monopolizada, em parte, diretamente
pelo capital inglês e alemão (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 27).
Reportando-se diretamente à questão racial, M
ariátegui sustenta
que os elementos feudais ou burgueses da América Latina sentem pelos
índios, como pelos negros e mulatos, o mesmo desprezo que o imperialista
branco, o que favorece enormemente a penetração do pr
óprio imperialismo.
T
al sentimento se estenderia às classes médias, pelo menos em grande parte,
“Gamonales
” eram os latifundiários peruanos da região serrana, principalmente, que exploravam a força de
trabalho do camponês local num regime de servidão, muito parecido com a forma feudal, o que leva Mariátegui
a caracterizar o fenômeno da pobreza camponesa como o problema da “
feudalidad” peruana.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
299
que imitam a aristocracia e a burguesia em seu desdém pela “
plebe de cor”,
ainda que sua própria mestiçagem seja demasiado evidente. Ainda quanto
aos nativos indígenas camponeses, nas palavras de Mariátegui, as condições
para que se elevem material e intelectualmente dependem de mudanças
das condições econômico-sociais, nas relações de força e de dominação dos
âmbitos da economia e da política (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 31).
O problema das raças não se apresenta da mesma forma em
todos os países da América Latina, da mesma forma que em outros países
do mundo a variável “
raça
” não terá a mesma relevância. Observa o autor
que, em países como P
eru e Bolívia, onde a maior par
te da população é
indígena, seus problemas fundamentais se tornam as reivindicações sociais
e populares dominantes. P
ara Mariátegui, nesses países o fator “
raça
” se
combina, se entrelaça com o elemento “
classe
” de forma tal que uma política
revolucionária não pode deixar de lev
á-lo em consideração. O índio quéchua
e aymará vê seu opressor no branco (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 31).
U
m dos fatores que
separava o camponês indígena do proletariado
urbano, no P
eru, era o idioma. Isto, no entanto, poderia ser superado pelo
contato dos camponeses com os trabalhadores, o proletariado indígena.
N
a cidade, no ambiente operário de agitação proletária, o índio poderia
começar a assimilar a ideia revolucionária, a se apr
opriar dela, a entender
seu valor como instrumento de emancipação de sua raça, oprimida pela
mesma classe que explora todos os operários na fábrica. N
este operário,
o índio descobre um potencial “irmão
” de classe. Argumenta Mariátegui
que o realismo de uma política socialista segura, precisa na av
aliação e
utilização dos fatos e variáveis sobr
e os quais é seu dever atuar em seus
países, pode e deve converter o fator raça em elemento revolucionário
.
Em determinado momento do texto Mariátegui apr
esenta, em
termos gerais, a situação material da classe trabalhadora peruana. Observa
então que (naquele momento histórico do P
eru) não menos que 90%
da população indígena considerada trabalhava na agricultura, embora o
desenvolvimento da mineração tivesse atraído em números cr
escentes a
mão de obra indígena. U
ma parte dos operários continuaria, entretanto,
camponesa (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 34).
T
ratava-se de índios de
comunidades que passavam a maior parte do ano nas minas, mas que
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
300
retornavam para suas terras nas épocas do trabalho agrícola. O
s camponeses
xos à terra permaneciam, em grande parte, como trabalhadores em
suas terras comunitárias, mas sendo obrigados também a trabalhar para
o latifundiário local. Em algumas regiões, as comunidades indígenas
conservavam parte de suas terras, mas em proporção exígua para suas
necessidades, de modo a serem obrigados a trabalhar para o latifundiário
(MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 35). Estes proprietários latifundiários, donos
de enormes extensões de terras e em grande parte improdutivas, não
tiveram interesse, em muitos casos, em expulsar as comunidades de suas
propriedades tradicionais porque estas, anexas à fazenda, facilitariam o
emprego do trabalho dos índios, podendo assim o latifundiário contar
com mão de obra constante, barata e segura.
De toda forma, é a mineração que criava (ainda cria nos dias de
hoje) a maior parte do trabalho assalariado no P
er
u. P
aga salários baix
os,
mas ainda assim muitas vezes superiores
ao pagamento pelo trabalho nas
fazendas. Mariátegui se r
efere aqui da mineração de cobr
e, com predomínio
de capital estadunidense. As empresas se apro
veitavam das atrasadas
condições do indígena, principalmente em termos de analfabetismo e
ausência de organização trabalhista
3
.
N
o caso das regiões serranas, a r
eivindicação do índio pela terra
não se dava na forma de reivindicação da pequena pr
opriedade privada,
mas na forma da organização do trabalho comunitário e coletivo
. Isso
em relação ao indígena submetido ao latifundiário serrano, sobre a base
do trabalho servil: “
as comunidades que demonstraram surpr
eendentes
condições de resistência e persistência sob as mais difíceis condições de
opressão repr
esentam, no P
eru, um fator natural de sociabilização da terra
”
(MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 35). A recuperação das terras do latifúndio para
as comunidades indígenas seria a solução que o problema agrário reclamav
a
na região da serra. J
á nas fazendas costeiras, exploradas dir
etamente pelos
A luta indígena, entretanto, não era inexistente. De toda forma, na maioria dos casos, as sublevações dos
índios tinham como origem uma violência que os forçava eventualmente à rev
olta contra uma autoridade ou
um fazendeiro. O
u seja, levantes com características de motim local. A tensão e a possibilidade de levantes
amedrontavam os gamonales e eram reprimidas violentamente.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
301
seus proprietários por meio de trabalhadores “
enganchados
”
4
a partir da
serra, a quem faltava, nesse caso, o vínculo com a terra, os termos da luta
eram diferentes. As reivindicações pelas quais, segundo M
ariátegui, se
deveria trabalhar nesse caso eram: liber
dade de organização, supressão do
“
enganche”, aumento dos salários, jornada de oito horas e cumprimento
das leis de proteção do trabalho (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 43).
Havia ainda a necessidade de uma progr
essiva educação ideológica
das massas indígenas, e aqui era necessária a intercessão, a intervenção da
vanguarda operária urbana. P
ara o autor
, tal vanguarda disporia daqueles
elementos militantes de raça indígena que, nas minas ou centros urbanos,
particularmente nesses, entrariam em contato com o movimento sindical e
político. E
ra comum, segundo obser
va M
ariátegui, que operários procedentes
do meio indígena regressassem de forma pr
ovisória ou denitiv
a à sua
comunidade. O idioma permitiria a esses trabalhadores cumprir ecazmente
a missão de instrutores de “
seus irmãos
” de raça e de classe. Os camponeses
entenderiam apenas, adverte Mariátegui, os indivíduos pertencentes ao seu
meio e falantes de seu idioma, desconados que sempre estarão a respeito
dos brancos e dos mestiços. Estes, segundo o autor
, “[...] dicilmente
assumirão a árdua tar
efa de penetrar no meio indígena e de levar a este meio
a propaganda classista.
” (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 44).
De que forma poderiam cumprir essa missão educadora os
elementos indígenas do proletariado? Criando e incentivando entr
e
os indígenas meios de autoeducação, ou “
a leitura regular de órgãos do
movimento sindical e r
evolucionário da América Latina, de seus opúsculos,
etc.
” A correspondência com os companheiros dos centros urbanos era
uma outra forma de comunicação que poderia ser incentivada.
T
odos esses
seriam meios pelos quais o trabalho de autoeducação indígena poderia ser
levado a cabo com êxito
.
Os militantes indígenas do mo
vimento operário precisavam,
assim, dar toda sua atenção a certas tarefas, nas quais deveriam ter sempr
e
O “
enganche” é
a prática por meio da qual o latifundiário monocultor da costa contrata, temporariamente,
trabalhadores camponeses da região serrana, no período da entressafra desta. Esses camponeses, já explorados pelo
latifundiário “
gamonal” da serra, passam parte do sendo explorados pelos latifundiários capitalistas da costa.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
302
atuação principal e dirigente. Essas tarefas, ainda a se somar com as
elencadas acima, seriam:
[...] a coordenação de comunidades indígenas por regiões; ajuda aos
que sofrem perseguição da justiça e da polícia (os processados por
resistências de todo tipo contra os gamonales); a defesa da propriedade
comunitária, a organização de pequenas bibliotecas e centros de
estudo.
” (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 45).
A ênfase na condução dessas atividades pelos militantes indígenas
do movimento operário dev
eria ter o “
duplo objetivo
” de dar diretiv
as
sérias à educação e orientação classista dos indígenas.
T
ais tarefas imediatas
deveriam levar em conta, em primeiro lugar
, o proletariado mineiro e
o proletariado agrícola, a quem cumpria dar imediatamente a educação
formal sobre bases socialistas e instigar à organização: “
os centros mineiros
[...] constituem pontos onde se pode operar
, vantajosamente, a propaganda
classista
” (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 45). Lembra Mariátegui que, como os
indígenas das minas continuavam sendo camponeses em grande parte, cada
elemento conquistado entre eles era também um elemento conquistado
entre os camponeses.
O autor enfatiza então que o problema, a questão indígena,
não é racial em seu sentido biológico, literal, mas social e econômico, é
o problema da marginalização social imposta às etnias indígenas (o que
hoje, como à época, é uma armação óbvia, mas que infelizmente ainda
necessita ser enfatizada). Mas a raça ex
erce seu papel nas possibilidades e
necessidades de enfrentá-lo, principalmente enquanto apenas militantes
saídos do meio indígena poderiam, pela mentalidade e idioma, conseguir
uma inuência ecaz e imediata sobre seus companheiros. S
obre isso,
Mariátegui é assertivo:
O realismo de uma política rev
olucionária, segura e precisa, na
avaliação e utilização dos fatos sobre os quais deve atuar nesses
países em que a população indígena ou negra tem proporções e um
papel importante, pode e deve converter o fator ‘raça
’ em um fator
revolucionário
. É imprescindível dar ao mo
vimento do proletariado
indígena ou negro, agrícola e industrial, um caráter claro de luta de
classes.
” (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 46).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
303
N
esses países, as raças indígenas, especicamente, constituíam e
ainda constituem uma imensa camada social submetida a uma situação
de subalternidade duplicada: como explorados e como não-brancos, essa
segunda condição intensicando a primeira. As classes dominantes exploram
as contradições geradas pelo racismo, elevando a intermediários de sua
exploração elementos mestiços nos quais o racismo e a repulsa pelos seus
ascendentes nativos são incentivados. É necessário lev
ar em consideração
que a luta de classes, realidade primeira que é reconhecida pelos partidos
e movimentos operários, se r
eveste de inevitáveis características especiais
quando a imensa maioria dos explorados é constituída por uma raça, e os
exploradores pertencem quase que exclusivamente a outra.
Em determinado momento do texto há uma passagem importante
em que Mariátegui lembra dos pr
essupostos relativos à viabilidade de se
desenvolver uma ecaz luta classista pelas camadas indígenas da população
.
T
rata-se da obser
vação de que o VI Congr
esso da Internacional Comunista
havia já assinalado a possibilidade, para pov
os de economia rudimentar
(agrária, “
primitiva
” do ponto de vista do capital) de iniciar diretamente
uma organização econômica coletivista, sem passar pela penosa evolução
capitalista por qual outros po
vos já haviam passado. P
ara Mariátegui, a
população nativa incaica era a que reunia as condições mais fav
oráveis
para o “
comunismo agrário primitivo
”. Essas condições teriam subsistido
em estruturas concretas e em um “
profundo espírito coletivista
” daquela
população. Esse “
comunismo agrário primitivo
” deveria se transformar
então, “[..] sob a hegemonia da classe proletária, em uma das bases mais
sólidas da sociedade coletivista preconizada pelo comunismo marxista.
”
(MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 68).
P
or m, ao cabo do texto, apresenta-se um conjunto geral de
propostas para solucionar a questão racial de base classista na América Latina:
1)
Luta por terra para os que nela trabalham, expropriada sem indeniza
ção
.
a-
Latifúndios de tipo primitivo: fragmentação e ocupação por parte
das comunidades adjacentes e pelos trabalhadores agrícolas que
as cultivam, possivelmente organizados de forma comunitária
ou coletiva.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
304
b-
Latifúndios de tipo industrializado: ocupação pelos operários
agrícolas que neles trabalham, organizados de forma coletiva.
c-
Os parceleiros proprietários que cultiv
am suas terras
permanecerão em propriedade das mesmas.
2)
F
ormação de organismos especícos: sindicatos, ligas
camponesas, blocos operários e camponeses.
a-
Ligação dos mesmos, superando os preconceitos raciais, com as
organizações urbanas.
b-
Luta do proletariado e do campesinato indígena ou negro pelas
mesmas reivindicações que constituem o objetivo de seus irmãos
de classe pertencentes a outras raças.
c-
Armamento de operários e camponeses para conquistar e
defender suas reivindicações.
3)
Derrogação de leis onerosas para o índio ou o negr
o, como os
sistemas feudais escravistas, a conscrição viária
5
, o recrutamento
militar
, etc.
Apenas a luta dos índios, proletários e camponeses, em estr
eita
aliança com o proletariado mestiço e branco, contra o regime
feudal e capitalista pode permitir o livre desenvolvimento das
características raciais índias (e especialmente das instituições de
tendências coletivistas) e poderá criar a ligação entre os índios
de diferentes países, por sobre as
fronteiras atuais que dividem
antigas entidades raciais, conduzindo-as à autonomia política de
sua raça. (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 68).
Importante atentar para o fato de que a passagem acima divisa
um internacionalismo típico da América Latina, ou seja, aquele relativo
à proximidade de inter
esses e condições sociais das raças indígenas
prevalecentes aqui. P
or mais que essas “
raças
” sejam formadas por diferentes
etnias, há um forte fator dialético de unicação, que é a exploração de sua
mão de obra em bases racistas, pelas formas especícas de constituição do
A conscrição viária se tornou uma espécie de serviço “
civil” obrigatório, alternativo à conscrição militar
, no
qual a mão de obra de jovens camponeses indígenas era utilizada para a abertura e construção de estradas pelo
interior peruano, cuja nalidade principal era facilitar o escoamento para o litoral da produção agrária e mineira
do capital monopolista no P
eru.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
305
capitalismo latino-americano. M
ariátegui, a julgar por seu legado teórico
e político, manteve sempre em mente a possibilidade desta unicação
dialética das lutas dos pov
os ameríndios, uma unidade a ser forjada
concretamente, no âmbito da luta de classes cotidiana contra inimigos
históricos comuns: o capital, o imperialismo e o racismo.
3. A
PolêMicA
h
A
yA
-M
Ariá
tegui
N
esse item, apresentar
emos alguns aspectos da polêmica em
questão, que se desenrola fundamentalmente em torno dos elementos
teóricos e políticos de denição do imperialismo na América Latina e das
formas nacionais de se lidar com este problema no P
eru. Opuseram-se, aqui,
a perspectiva socialista e am aos desenvolvimentos teóricos lenineanos, de
Mariátegui, e as propostas de cunho r
eformista e gradual do aprismo de
Haya De La
T
orre, como veremos a seguir
.
N
o M
éxico, V
íctor Raul Haya De La
T
orre funda a Aliança
P
opular Revolucionária Americana (APRA) em 7 de maio de 1924, cuja
nalidade era articular vontades diversas que, inspiradas na Rev
olução
M
exicana, estivessem dispostas a impulsionar um vasto programa de ação
anti-imperialista em todo o continente (FLORES GALINDO, 1994, p
.
276). Em 22 de janeiro de 1928, no M
éxico, os apristas lançaram um
assim chamado P
artido N
acionalista Libertador
, que deveria levar Haya
De La
T
orre à presidência da república peruana. O partido não nascia do
interior das classes populares e como r
esultado de um trabalho de massas,
mas era o projeto de um grupo de articuladores a partir do exterior
. A
fundação do P
artido N
acional Libertador precipitou discr
epâncias que já
se vinham gestando em torno do caráter da sociedade peruana e de sua
revolução (FL
ORES GALINDO, 1994, p. 278).
N
a Indoamérica, para H
aya, o imperialismo teria um lado
negativo e outro positivo: implicav
a dependência e subordinação, mas, em
compensação, trazia capitais, desenvolvimento e progr
esso. N
ecessitava-se
do capitalismo para, no futuro, se poder construir uma sociedade socialista.
A passagem para o socialismo exigia previamente o desenvolvimento e o
esgotamento do capitalismo. O r
elativismo em alguns temas, como as
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
306
diferenças concretas entr
e E
uropa e América Índia, contrastava assim com
um resoluto determinismo em outros (FL
ORES GALINDO, 1994, p
.
278). Enm, para Haya, na R
ússia o problema de classe era o problema
central. N
o P
eru, o eixo da ação política estava dado pela questão nacional
(FLORES GALINDO, 1994, p
. 279). Sob inspiração da r
evolução
mexicana e do kuomintang, Haya propunha o papel r
evolucionário do
nacionalismo, o que resultava apar
entemente compatível com a experiência
peruana dessa época de intensa chegada de capitais externos na economia
nacional (FLORES GALINDO, 1994, p
. 279).
Haya De La
T
orre não acreditava na possibilidade
de se iniciar
a construção do socialismo no P
er
u devido às características da economia
nacional. Enfatizava, desse ponto de vista, não apenas as características
feudais existentes no campo, mas também o reduzido número existente
da classe operária e sua débil tradição cultural (FLORES GALINDO,
1994, p. 279). O pr
ojeto aprista não consistia, contudo, apenas em
suplantar a feudalidade peruana fazendo desenvolver o capitalismo
nacional.
T
ratava-se de construir uma sociedade de transição, adequada às
condições da “indoamérica
”, ou seja, uma sociedade na qual uma política
de nacionalizações permitisse a edicação de uma sólida economia estatal.
O Estado, que manteria em seu controle as grandes empresas mineiras e
petrolíferas, estaria em condições de negociar com o imperialismo, sujeita-
lo às leis do país e impor-lhe condições.
Assim, o Estado aprista poderia evitar que o capital estrangeiro
zesse estragos sociais e econômicos na sociedade peruana, utilizando
apenas o lado positivo dos montantes de capital que necessariamente eram
enviados das economias metropolitanas aos países atrasados. Em outras
palavras, o projeto aprista tinha o objetivo de desenvolv
er a economia
peruana mediante a articulação entre Estado e imperialismo (FLORES
GALINDO, 1994, p. 279). F
lores G
alindo descreve da seguinte forma os
detalhes do projeto aprista:
N
a nova sociedade, ao lado do setor estatal, dev
eria se organizar um
setor corporativista no qual desempenhariam um papel hegemônico
as empresas agroindustriais, especicamente as fazendas açucar
eiras.
Em terceiro lugar se manteria um setor ocupado pela empr
esa privada,
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
307
no qual deveriam ser impulsionadas a pequena e média indústria,
os comerciantes nacionais, etc. Desta forma, a empresa priv
ada,
o cooperativismo e o capitalismo estatal seriam os três pilares do
Estado anti-imperialista, o instrumento para alcançar a superação da
feudalidade, o desenvolvimento econômico e a autonomia nacional. N
a
organização do novo Estado teriam um papel dirigente os intelectuais e
prossionais procedentes das camadas médias. (FLORES GALINDO,
1994, p. 280).
A construção desse novo Estado seria o r
esultado de uma
frente formada pelas três grandes classes oprimidas pelo imperialismo: o
campesinato, o proletariado e as classes médias. Haya De La
T
orre conava
no engajamento das classes médias por serem elas, em sua opinião, as
principais prejudicadas pela penetração imperialista, os grupos mais
explorados pelo imperialismo, já que os operários e camponeses poderiam,
segundo ele, ainda desfrutar de melhores salários e benefícios materiais
temporários ao serem incorporados na grande empr
esa capitalista (FLORES
GALINDO, 1994, p. 280). As classes médias possuíam nesta equação
uma posição estratégica: eram mais numerosas que o proletariado e mais
cultas e instruídas que o campesinato. Enm, para este projeto político, o
Estado anti-imperialista implicava uma ruptura com a hegemonia norte-
americana e inglesa sobre o P
eru, mas não signicava uma ruptura com o
capitalismo (FLORES GALINDO, 1994, p
. 281).
Mariátegui, por sua vez, considerava que o imperialismo era uma
consequência do desenvolvimento da economia mundial e um resultado
especíco da época dos monopólios. U
m fenômeno que, ao contrário do
ponto de vista aprista, promo
via desenvolvimento e crescimento para os
países centrais, mas atraso e dependência aos países periféricos (FLORES
GALINDO, 1994, p. 281). S
ua opinião ca clara em uma passagem
do artigo de comemoração do segundo aniversário da revista Amauta,
“
Aniversário e Balanço
”, de setembro de 1928, segundo o qual “[...] os
países latino-americanos chegam com atraso à competição capitalista. Os
primeiros postos estão já denitivamente ocupados. O destino desses países,
dentro da ordem capitalista, é o de simples colônias.
” (MARIÁ
TEGUI,
1974, p. 248). P
ara Mariátegui, o P
eru era uma sociedade semicolonial e
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
308
tal condição iria apenas se agravando à medida em que se fosse expandindo
o capital imperialista (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 248).
N
a opinião de Mariátegui, o socialismo no P
er
u deveria, em
primeiro lugar
, concluir tarefas próprias da r
evolução burguesa que se
fez ausente no país. Observa Flores G
alindo que “[...] não lhe seriam
estranhos certos objetivos de caráter capitalista, na medida em que não se
podia impro
visar uma economia socialista.
” (FLORES GALINDO, 1994
,
p. 282). A
pesar da convicta oposição às ideias de Haya, Mariátegui não
negava o potencial papel rev
olucionário que o nacionalismo poderia exercer
numa sociedade semicolonial. P
ara ele, como lembra F
lores G
alindo, a
ideia de nação não havia esgotado suas possibilidades no P
eru. Mas para
que o ideal de nação fosse levado até o m de forma consequente deveria
ser hegemonizado pela classe que representav
a a verdadeira negação do
imperialismo. A
pesar de sua inferioridade numérica, apenas o proletariado
estava em condições de realizar esta tar
efa, já que combater o imperialismo
deveria signicar também o rompimento com o capitalismo (FL
ORES
GALINDO, 1994
,
p. 282).
Diante da estratégia aprista, M
ariátegui argumentava que uma
política meramente anti-imperialista não seria suciente, já que assim não se
anulam os antagonismos de classe, e apenas o socialismo poderia signicar
verdadeira barr
eira à expansão imperialista. N
o entanto, a principal objeção
de Mariátegui ao aprismo se r
eferia ao papel potencial das classes médias no
processo rev
olucionário. N
egav
a que as classes médias, a pequena burguesia,
pudessem ter um papel estratégico na direção do partido anti-imperialista
e/ou socialista (FLORES GALINDO, 1994
,
p. 282). Quanto não fosse
por sua própria condição estrutural de classe vinculada tradicionalmente
aos valores da pr
opriedade privada e à meritocracia, de rechaço racista ao
indígena e auto identicação com os valores burgueses pr
edominantes, o
caráter instável e heterogêneo das classes médias comprometia a coesão
necessária para que uma classe social se armasse politicamente como tal.
6
É importante registrar que a opinião de Mariátegui sobre as classes médias mudou de maneira importante no
m da década, no bojo da polêmica com Haya. Mas ainda em outubro de
1927 escreveu o Amauta: “N
as nações
de mais avançada evolução política, a classe média, condenada pelo irredutível conito entr
e capitalismo e
socialismo, renunciando a toda ambição excessiva de originalidade e de autonomia, se tem caracterizado por sua
desorientação e confusão que, muitas vezes, a têm convertido no principal instrumento da reação burguesa [...]”
(MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 192). Difícil não imaginar
, aqui, a inuência da experiência italiana do autor
. Mas
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
309
Homogeneidade potencial e uma posição econômica clara e
denida em relação ao capital e à burguesia eram, por sua vez, características
vericáveis do proletariado, a despeito de sua dispersão geográca e
inferioridade numérica (FLORES GALINDO, 1994
,
p. 282-283). F
lores
Galindo lembra que, por trás da resistência de M
ariátegui a conar nas
classes médias, além da experiência malograda dos comunistas no seio do
kuomintang, estaria também sua experiência de observação da ascensão do
fascismo europeu. O Amauta havia presenciado na I
tália o fenômeno de
uma pequena burguesia inicialmente envolta em fraseologias rev
olucionárias
rumar-se para as posições mais conser
vadoras. A respeito disso, tratando do
rompimento entre H
aya e Mariátegui, escrev
e Meseguer I
llan:
P
ensamos que, cer
tamente, as pressões da [T
erceira] I
nternacional
inuenciaram, mas a orientação ideológica de Mariátegui teve a última
palavra. Ele não podia aceitar a formação de um partido nacionalista
dirigido pela pequena burguesia depois de sua experiência com o
fascismo italiano e sua própria orientação socialista(...). Além disso,
Mariátegui não podia admitir o nacionalismo continental proposto
por Haya, mas um internacionalismo de classe do qual não podiam ser
excluídas as classes mais exploradas dos próprios países imperialistas.
Dentro de uma “
aliança
” de partidos ambos podiam se entender
.
Mas, a partir do momento em que Haya propunha um único P
ar
tido
N
acionalista pequeno-burguês, o entendimento era impossível.
(MESEGUER ILLAN, 1974, p. 165).
A década de 1920 no P
eru estava mostrando como a penetração
imperialista e o crescimento do Estado promo
viam o desenvolvimento das
classes médias. Essas, por sua vez, não assumiam posturas radicais, nem se
continua Mariátegui: “[...] P
or outro lado, em nossos países, colocada sob a pressão do capitalismo estrangeiro,
a classe média parece destinada a assumir
, à medida em que progridam sua organização e sua orientação, uma
atitude nacionalista revolucionária.
” (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 192). N
este momento Mariátegui ainda integra
a frente nacionalista aprista e, como se percebe, nutre esperanças no potencial r
evolucionário nacionalista
da pequena burguesia. No entanto, ele não manterá essa opinião, adotando quase que exatamente a posição
contraposta. Flores G
alindo faz alguns apontamentos interessantes a respeito. P
rimeiro, lembra que negar a
classe média como classe dirigente não signicava para Mariátegui, necessariamente, negar que existissem
em seu interior setores nacionalistas e progressistas. O
corre que, no âmbito da polêmica, seriam cometidos
alguns exageros que conheceriam sua expressão mais extremada na tática da “
classe contra classe” exercida
pelos comunistas no nal da década de 1920, ou seja, opondo irredutivelmente burguesia (em seu conjunto) e
proletariado. Assim, as classes médias foram deixadas, no P
eru, à mercê da propaganda aprista. Esta, ao oferecer-
lhes a liderança do movimento de transformação no país, recuperaram rapidamente o terr
eno perdido nesta
polêmica de 1928 (FLORES GALINDO, 1994, p. 286).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
310
opunham aos interesses imperialistas. Ao contrário disso, culturalmente
manifestavam claras simpatias pelas no
vidades estrangeiras em detrimento
dos elementos nacionais (FLORES GALINDO, 1994, p
. 283). P
or tudo
isso, para Mariátegui, o instrumento da revolução socialista dev
eria, sim,
ser o partido, mas um partido de classe. Com base nas condições concretas
do P
eru, um par
tido socialista de massas operárias e camponesas. Contudo,
ele não acreditava que já houv
esse no país amadurecidas relações de for
ça
que viabilizassem a criação de um partido comunista. A incipiência e
inferioridade numérica do proletariado zeram com que M
ariátegui
insistisse na mobilização camponesa.
T
odas as referências de
Mariátegui e suas ações concernentes
à organização dos trabalhadores peruanos levam em consideração a
incipiente formação da classe operária e a existência já de uma massa de
trabalhadores rurais explorados nos cultivos de cana e algodão, além dos
artesãos, como sapateiros, carpinteiros, alfaiates (como lembra F
lores
Galindo, os protagonistas das primeiras lutas que convulsionaram Lima no
início do século XX) e dos camponeses submetidos a relações semifeudais
de trabalho nos campos (FLORES GALINDO, 1994, p
. 410). É a partir
desta composição diversicada dos trabalhadores peruanos que Mariátegui
pensa sua organização política enquanto classe. Essa ideia “
ampliada
”
de proletariado colocaria operários e camponeses em condições de
igualdade, ou potencial igualdade, frente às tarefas da r
evolução (FL
ORES
GALINDO, 1994, p. 412).
T
endo em vista a criação de uma possível sólida aliança entre
essas duas classes, o marxista peruano chamou a atenção sobre o papel do
proletariado mineiro
. Lembrava que os trabalhadores operários de minas
continuavam sendo, em grande parte, camponeses durante uma parte do
ano, de modo que qualquer trabalhador mineiro conquistado repr
esentaria
também uma conquista entre os camponeses (MARIÁ
TEGUI, 1974, p. 34).
Essa ênfase no lugar estratégico que o campesinato indígena
ocuparia na revolução peruana marca, entr
e outras coisas, a originalidade
do marxismo de Mariátegui. P
ara Flores Galindo, “[...] seu marxismo
nunca quis ser a repetição do marxismo europeu, nem se caracterizou pelo
sectarismo ou dogmatismo. M
ariátegui signicou a tentativa de fundar
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
311
uma maneira peruana (ou latino-americana) de pensar a Marx.
” (FLORES
GALINDO, 1994, p. 283).
Assim, o verdadeir
o projeto de Mariátegui teria sido fundir o
marxismo de raízes ocidentais com a tradição cultural peruana com base
em três correntes extraídas da história nacional:
a produção acumulada pelos intelectuais, no interior da qual se
destacavam os indigenistas, que, ao mesmo tempo em que realizavam
justas denúncias, se esforçavam em descobrir e reivindicar os v
alores
nacionais; o ‘
comunismo
’ incaico, cujos elementos ainda existiam na
comunidade indígena, dando base material ao coletivismo agrário e,
nalmente, as lutas populares, destacando as então recentes jornadas
operárias (como a luta pela jornada de oito horas estudada por Martínez
de la
T
orre) e as lutas camponesas (a sublevação de 1885 do amauta
Atusparia ou o levante de Rumi M
aqui em 1915-1916). (FLORES
GALINDO, 1994, p. 284).
O que Mariátegui estava faz
endo, então, era repensar o marxismo
com base na experiência e história peruanas e, ao mesmo tempo, empregar
o marxismo como instrumento de análise do mundo andino. Daí as
referências ao “
comunismo
” do mundo incaico, que mostraria como os
princípios socialistas não seriam estranhos à história nacional, ao contrário,
fariam parte da tradição histórica indígena negada desde a conquista. O
socialismo teria condições de recuperar
, resgatar os elementos coletivistas
que teriam composto a história incaica e, neste processo, confundir-se
positivamente com essa história (FLORES GALINDO, 1994, p
. 284).
Com a herança indígena das nações incaicas entrelaçava-se a questão
agrária do P
eru republicano.
o
bser
v
Aç
ões
finAis
Após as br
eves reexões desenv
olvidas nos itens anteriores, é possível
extrair algumas conclusões pro
visórias sobre a atualidade do pensamento
mariateguiano para a luta de classes que se desenrola, atualmente, de
forma intensa nos países da América Latina e também no Brasil. P
ode-se
armar que o pensamento de J
osé Carlos Mariátegui conheceu, na virada
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
312
dos séculos XX e XXI, em nosso país, nov
as pesquisas e nov
as abordagens
de grande importância para uma “
exegese prática
” de sua obra. Ou seja,
para a aplicação política dos sentidos e direções de suas propostas e a
pertinência de suas ideias para nosso contexto. Mais do que tentar decidir
qual a abordagem teórica “
mais correta
”, é impor
tante aprov
eitar todas as
contribuições que possam elucidar
, das várias formas a que se propõem,
o que signica hoje “
traduzir” M
ariátegui para o enfrentamento contra
o capital em nossas formações sociais contemporâneas. Apesar de se
debruçar sobre um período histórico localizado, ele pode fornecer aportes
teóricos úteis à compreensão e intervenção nos fenômenos políticos atuais
relativos, por ex
emplo, à questão agrária e indígena na América Latina
e suas especicidades interregionais
7
. Até por isso, é possível divisar em
Mariátegui um internacionalismo próprio para nossa “I
ndoamérica
”, onde
o latifúndio e o capital nanceiro imperialista, articulados secularmente
por aqui e potencializados enormemente pelos racismos ocial e velado
(“
cordial”), podem conferir a nossas classes subalternas uma identidade
a ser forjada na luta e na resistência. Ou
seja, na construção cotidiana da
hegemonia dos trabalhadores latino-americanos, que deverá ser fundada
no respeito às particularidades nacionais de nossos grupos subalternos e no
horizonte estratégico comum a todas elas: a luta pela superação socialista
do latifúndio e do imperialismo.
r
eferênciAs
ESCORSIM, L.
Mariátegui:
vida e obra. São P
aulo: Expressão P
opular
, 2006.
FLORES GALINDO, A.
Obr
as completas.
v
. II. Lima: Fundación Andina; SUR, 1994.
LÖ
WY
, M. Nem decalque, nem cópia: o marxismo romântico de J
osé Carlos
Mariátegui.
In
: MARIÁ
TEGUI, J. C.
Por um socialismo indo-americano
. S
eleção e
introdução de Michael Lö
wy
. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005. p
. 07-24.
Questão que, já no m da segunda década dos anos 2000, ainda envolve massas de trabalhadoras e trabalhadores
indígenas camponeses e torna-se mais importante se levarmos em consideração as experiências de poder político,
ainda em plena vigência, do zapatismo no México e do MAS boliviano (cf
. item 7.2 deste projeto). Conte-se
ainda a importância política de movimentos indígenas como o equatoriano, peruano, colombiano, chileno e
argentino, que congrega pov
os espalhados pelo que já foi o grande império – “T
awantinsuyo
”- inca (quéchuas,
aymarás, mapuches e outros).
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
313
LÖ
WY
, M. Ernst Bloch e eodor Adorno: luz
es do romantismo.
Cadernos Cemarx,
n.06, p. 11-27, 2009.
MARIÁ
TEGUI, José C.
I
deología y política.
Lima: Amauta, 1974.
MESEGUER ILLAN, D.
José C
arlos Mariátegui y su pensamiento r
evolucionario
.
Lima:
Instituto de Estudios P
eruanos, 1974.
b
ibliogrAfiA
c
onsul
t
ADA
ARICÓ, J
osé (org.).
Mariátegui y los orígenes del marxismo latinoamericano.
M
éxico D.F
.:
Siglo V
eintiuno, 1978.
BECKER, M. Mariátegui, the Comintern, and the indigenous question in Latin
America.
Science and Society
, N
ew Y
ork, v
. 70, n. 4, p. 450-479, Oct. 2006.
DOSSIÊ: Lutas indígenas e socialismo.
M
argem Esquer
da
, São P
aulo,
n. 29, p
. 27-58,
set. 2017.
DOSSIÊ: Memória e r
evolução na América Latina: a atualidade de J
osé Carlos
Mariátegui.
L
utas Sociais
, São P
aulo,
n.30, jan./jun. 2013.
FERREIRA, O. S.
N
ossa América:
I
ndoamérica.
São P
aulo: Edusp
, 1971.
FONTES, Y
.M. Revolução Russa e questão nacional em M
ariátegui.
V
erinotio:
Revista
on-line de F
ilosoa e Ciências H
umanas, Rio de J
aneiro, ano 22, v
. 1, n. 23, p. 106-
125, abr
.2017.
GALASTRI, L. Mariátegui e as especicidades da luta de classes latino-americana: as
questões da raça e do latifúndio.
L
utas Sociais
, São P
aulo,
n. 21, 2017, p. 24-39.
GERMANÁ, C.
El “
socialismo indo-americano
” de J
osé Car
los Mariátegui
. Lima: Amauta,
1995.
KAUT
SKY
, K. Ultra-imperialism.
N
ew Left Review
, London, n. 59, p
. 41-46, 1970.
LÊNIN, V
.
Imperialismo
, fase superior do capitalismo.
S
ão P
aulo: Global, 1987.
LINERA, A. G. Indianisme et marxisme: la non-rencontr
e de deux raisons
révolutionnair
es.
A Contretemps
, B
ayonne, n. 4, p. 67-75, 4. trimestr
e. 2009.
LÖ
WY
, M. No
venta anos de publicação dos “Sete E
nsaios de Interpretação da
Realidade P
eruana
” e a atualidade de M
ariátegui. Entrevista a Leandro G
alastri.
Revista
U
rutágua,
Maringá, n. 36, p. 242-245, jun./no
v
. 2017.
MARIÁ
TEGUI, José C.
La escena contempor
ânea.
Lima: Amauta, 1972.
MARIÁ
TEGUI, José C.
P
eruanicemos al Perú.
Lima: Amauta, 1972a.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
314
MARIÁ
TEGUI, José C.
S
iete Ensay
os de interpretacion de la r
ealidad peruana.
Caracas:
Ayacucho, 1979.
MAZZEO, M.
J
osé Carlos M
ariátegui y el socialismo de N
uestra A
merica
. Lima: Minerva,
2009.
MELIS, A. Mariátegui, el primer marxista de América.
In
: ARICÓ, J. (org.).
Mariátegui
y los orígenes del marxismo latinoamericano.
M
éxico D.F
.: Siglo XXI, 1978. p. 201-225.
MONT
O
YA, R.
Lucha por la tierr
a, r
eformas agrarias y capitalismo en el P
eru del siglo
XX.
Lima: Mosca Azul, 1989.
MORÁN, O. O.
La rev
olución socialista em el P
eru:
reconstruyendo el libro nunca
perdido
. Lima: Editorial U
niversitária, 2009.
P
ARIS, R. El marxismo de M
ariátegui.
In
: ARICÓ, J
osé (org.).
Mariátegui y los orígenes
del marxismo latinoamericano.
M
éxico D.F
.: Siglo V
eintiuno, 1978. p. 119-144.
SAL
V
A
T
TECCI, H. G.
Sorel y Mariátegui
. Lima: E. D.
V
alenzuela, 1979.
P
Ar
te
v
C
T
O
C
317
S R
S
Marly de A. G.
Vianna
“Quaisquer que sejam as palavr
as par
a expressá-lo
, o comunismo é
irredutív
el às suas falsicações burocr
áticas
”
(BENSAÏD, 2008, p. 71).
A
l
guMAs
quest
ões
PreliMinAres
C
ontra tantos daqueles que tentam desqualicar a Revolução de
Outubro, cito mais uma vez Bensaïd (2008, p
. 71), pela importância de
sua tese:
[...] a contrarreforma liberal quer dissolver o comunismo no stalinismo
.
O despotismo burocrático seria a consequência inevitável da aventura
revolucionária, e S
talin o descendente legítimo de Lenin e Marx. O
desenvolvimento histórico e o desastre obscuro do stalinismo já se
encontrariam em estado latente nas noções de ditadura do proletariado
ou de partido de vanguarda. N
essa no
va versão do Gênese, o pecado
original e o verbo comandam o mundo.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
318
Estou de pleno acordo com as teses de Bensaïd.
V
er a Revolução
Russa a partir do stalinismo, sem levar em conta o momento histórico dos
anos de 1918-1922 é uma visão anti-histórica ou, muitas vezes, de pura
má fé anticomunista.
A Revolução S
ocialista de Outubro foi o mais importante
acontecimento do século XX, uma revolução que pela primeira v
ez na
história da humanidade derrotou o capitalismo e colocou os operários no
poder
. P
or isso mesmo as apreciações sobre ela são muito polarizadas. O
ataque à revolução socialista começou desde seu início e foi fortalecido com
a guerra fria, cuja propaganda inuiu “
na ‘reexão contextual
’ indispensável
à pesquisa histórica, a favor de outros objetivos e prioridades, para benefício
da mídia, da ideologia e da emoção
”. (LEWIM, 2007, p. 333).
É ainda Lewin (2007, p. 333) quem coloca, sobre os err
os na
apreciação da rev
olução:
O primeiro erro consiste em focalizar os líderes, ator
es e ideologias,
como se fossem agentes independentes, abstraídos de seu contexto
histórico. N
em as circunstâncias que os moldaram e condicionaram,
nem o passado, nem o mundo em torno são levados em conta. P
ara
muitos, tudo começou em 1917 – o momento do “
pecado original”.
A situação histórica em que se encontrou a R
ússia So
viética
durante a guerra civil e depois dela foi de absoluta catástrofe. F
oi a partir
da situação concreta em que se encontrava a economia, completamente
destruída, da miséria, da fome – até de casos de canibalismo -, das epidemias
pro
vocadas pela situação, que podemos entender as revoltas no campo – já
iniciadas pela necessidade do comunismo de guerra -, as insatisfações e
as greves nas cidades e os conitos sociais que se sucederam, entr
e eles a
revolta de Kr
onstadt.
Imaginar que a situação poderia ter sido difer
ente, a partir de
conceitos ideológicos é completamente disparatado. I
maginar que a
situação seria democrática, tranquila e revolucionariamente r
esolvida a
partir do afastamento dos bolcheviques (“
so
vietes sem os bolcheviques
” –
uma das consignas dos anarquistas que atuaram em Kronstadt) car
ece de
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
319
um mínimo de base. É imaginar a resolução dos problemas econômicos,
sociais e militares com que se viu defrontada a r
evolução a partir da
mudança de ideologias no poder
.
A grande questão que perdurou por grande período, e mais
fortemente nos primeiros anos da revolução, foi a de impedir a volta do
capitalismo, deixando outras questões em segundo plano, tais como o
pluralismo partidário, tão caro aos nossos liberais ou à falta de atenção ao
crescimento da burocratização
. Aliás, tais questões tentaram ser resolvidas
terminada a guerra civil, como ca claro nos escritos e intervenções de
Lenin (1961c) dos anos de 1921, 1922 e 1923.
1
É preciso analisar a R
evolução Russa historicamente, entender o
comunismo de guerra a partir da guerra civil com os brancos e a invasão
estrangeira. Só uma percepção gr
osseiramente anti-histórica pode “julgar”
a situação como fruto de uma crueldade inerente aos bolcheviques. A
história não é resultado de um jogo de conceitos ideológicos, mas de uma
situação concreta em que pessoas concretas se viram env
olvidas e tiveram
que fazer escolhas, muitas vezes dramáticas, diante de uma r
ealidade que
se lhes impunha.
2
A
rev
oluçã
o
De
fevereir
o
De
1917
A Rússia tzarista entrou na
guerra no seu início, no nal de julho
de 1914. O Exér
cito russo, apesar de algumas vitórias, vinha sofrendo
sérios revezes, em especial a partir de 1915-16, não só em combate, mas
pelo descontentamento da tropa mal equipada e mal preparada
para a
guerra. As deserções eram cada vez mais comuns. P
ara que se tenha uma
ideia das dimensões da tragédia, contam-se aos milhões as vítimas russas
da carnicina – cerca de dois milhões de mortos, muito maior número de
feridos e mutilados e outros tantos feitos prisioneiros.
V
er LENIN, 1962c.
Não faz muito tempo, um confer
encista absolutamente contrário à Revolução Socialista de O
utubro comentou
o atentado contra Lenin, em 1918, lamentando: “Levou cinco tiros e não morreu, que pena!!”. M
ais do que
desconhecimento histórico, a observação mostra não só falta de seriedade como absoluta falta de compostura.
Não deixa de lembrar os antissemitas, lastimando que H
itler não tivesse exterminado todos os judeus.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
320
A situação tornava-se calamitosa, e no nal de 1916 o tzar
N
icolau II resolveu assumir a chea do ex
ército. O go
verno do Estado
passou às mãos da tzarina, profundamente inuenciada pelo místico
e charlatão G
rigori Rasputin. A insatisfação da população russa ia num
crescendo
. O desabastecimento era geral, a carestia terrível, a exploração da
força de trabalho aumentara muito
. Era principalmente sobre os ombros
das mulheres que pesava a maior carga. N
ão só substituíam na produção
a mão de obra masculina, deslocada para os campos de batalha, como
eram seus lhos, maridos, pais e irmãos que estavam sendo massacrados
nos inglórios campos de batalha. E foram as mulheres que deram início ao
processo rev
olucionário quando entraram em greve os operários da fábrica
P
utílov
, em P
etrogrado
3
, na qual elas eram a grande maioria. A greve foi
se espalhando, num grande movimento de solidariedade operária. N
o
dia 23 de fevereir
o comícios e motins de rua se avolumavam. Era o D
ia
Internacional da M
ulher (a Rússia usava o calendário J
uliano, que tem 13
dias de diferença para o atual e nosso, o calendário gregoriano). N
o dia
27, o P
alácio
T
auride, sede da Duma, o Congresso russo, foi invadido pela
multidão, em grande parte composta por mulheres.
N
o dia 28, com a população já dominando a cidade e com medo
que a movimentação popular av
ançasse, o tzar abdicou, deixando o trono
a seu irmão, o grão-duque Miguel R
omavov
, que não aceitou o cargo
.
F
oi então proclamada a R
epública e estabelecido um gov
erno provisório,
tendo como primeiro ministro o príncipe Georgui Lv
ov
, ultraconservador
,
líder do P
artido Constitucionalista (cadetes), e como Ministr
o do Interior e
depois da Guerra o deputado socialista Alecssander Ker
enski. Em oposição
ao gov
erno provisório formou-se outr
o poder
, o sóviet (conselho), forma
de poder popular surgida em São P
etersburgo, na Revolução de 1905. A
revolução de fev
ereiro foi uma r
evolução popular em todos os sentidos,
não só por sua composição, como pela espontaneidade do movimento,
do qual não participaram líderes ou partidos políticos – até porque, nesse
momento, a maioria achava-se presa ou exilada.
A cidade foi fundada em 1703, por P
edro, o G
rande, com o nome de São P
etersburgo. Em 1914, na guerra
contra a Alemanha, o nome, com origem germânica, foi mudado para P
etrogrado
. Em 1924, depois da morte
de Lenin, passou a ser Leningrado. Com o m do socialismo, voltou-se ao nome original de S
ão P
etersburgo.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
321
Discutir o signicado da R
evolução de F
ever
eiro é bastante atual,
como o foi na época: até onde o movimento popular r
evolucionário deve
e pode avançar? Há quem consider
e fevereiro de 1917 uma r
evolução
democrático burguesa e houve mesmo, à época, rev
olucionários que
acreditaram que a R
epública burguesa deveria ser consolidada antes que
se avançasse rumo ao socialismo – opondo-se, por isso, à Revolução de
Outubro
. P
ar
ecia que a derrubada dos trezentos anos dos Romano
v era
uma conquista sucientemente positiva e que deveria ser consolidada
numa República liberal burguesa. A muitos r
evolucionários, inclusive
bolcheviques, parecia uma aventura fadada ao fracasso tentar caminhar
rumo ao socialismo. Entr
e eles estavam G
rigori Zino
viev e Lev Kamenev
,
abertamente contrários à tomada do poder pelos sovietes, e outros que
vacilavam, S
talin (
J
osef Djugashvili) entre estes.
N
esta situação e entre muitas discussões, o momento crucial foi a
chegada de Vladímir I
litch Uliânov
, Lenin, a P
etrogrado e suas decisivas –
para a revolução socialista –
T
eses de A
bril
.
A
s
teses
De
Abril
As
T
eses de Abril, uma “
certidão de nascimento
” da Revolução
Russa, foram decisivas para r
esolver a questão que se colocava para os
revolucionários, como vimos: apoiar o go
verno pro
visório, consolidando
uma República liberal burguesa – sem dúvida um imenso avanço em
relação ao tzarismo – ou avançar rumo ao socialismo
.
Lida ainda no vagão do trem, ao chegar à Estação F
inlândia,
Lenin (1975b, p
. 35-38) defendia: tese 1: nenhuma concessão deveria ser
feita ao que chamou defensismo revolucionário, o não ter a coragem de
avançar no mo
vimento revolucionário que as massas impulsionavam; tese
2: o momento político pelo qual a Rússia passava caracterizav
a-se pela
passagem da primeira etapa da revolução, que acabara com o tzarismo e
dera o poder à burguesia, para às mãos do proletariado e dos camponeses
pobres; tese 3: nenhum apoio deveria se dado ao go
verno pro
visório; tese
4: Lenin dizia ser importante reconhecer o fato de que os bolcheviques
ainda eram minoria nos sovietes. P
ara ganhar as massas para suas posições
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
322
era preciso explicar a elas, exaustivamente, até conv
encê-las, que a única
forma de gov
erno que atenderia às suas reivindicações eram os so
vietes;
tese 5: depois da experiência dos sovietes, amplamente apoiados pelo po
vo,
não era possível retr
oceder e apoiar uma República parlamentar burguesa;
tese 6: no campo era preciso organizar so
vietes e tomar as terras, conscá-
las e nacionalizá-las; tese 7: promo
ver a fusão imediata de todos os bancos
do país num banco nacional único; tese 8: embora a implantação do
socialismo não fosse tarefa imediata, era preciso passar imediatamente a
controlar a produção e a distribuição dos pr
odutos; tese 9: era necessário
a convocação urgente de um congresso do partido, dada a necessidade de
mudar seu programa, já superado; era preciso também discutir as questões
relativas ao imperialismo, à guerra, e analisar o papel do Estado, armando
a reivindicação bolchevique do estado-comuna; tese 10: nalmente, Lenin
mostrava a importância de se organizar uma nova internacional.
O mais importante – e decisivo: era impossível apoiar o gov
erno
pro
visório.
A mobilização política no período era imensa e foi se radicalizando.
Os bolcheviques tinham como proposta, que estava em primeir
o lugar em
seu programa, estabelecer a paz, enquanto que o go
verno pro
visório, tendo
naquele momento Kerenski como M
inistro da Guerra, r
esolveu continuá-
la desencadeando nov
a ofensiva militar
, cujo fracasso prov
ocou maiores
vítimas e grandes protestos.
N
esse ambiente, e com os operários de P
etrogrado agindo em
várias manifestações armadas, o go
verno achou um pretexto para desarmar
os operários e atacar os bolcheviques: proibiu seus jornais, fechou suas
sedes e começou a perseguição a seus líderes, alguns sendo presos. Lenin
exilou-se na F
inlândia.
Com o objetivo de parar as agitações operárias, e pela grande
desvalorização do rublo, o que tornava a situação econômica difícil, muitas
fábricas começaram a ser fechadas, o que aumentou ainda mais o desemprego
e a fome já causados pela guerra. F
icava claro para os trabalhador
es que
tinham razão os bolcheviques, ao propor o controle operário das fábricas
e isso aumentou o apoio aos partidários de Lenin. Ao mesmo tempo, os
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
323
camponeses se organizavam e tomavam as terras, aliando-se também aos
bolcheviques, os únicos que consequentemente defendiam sua causa.
F
oi nessa conturbada situação que, apavorados com a mobilização
popular - que sempre apavora a dir
eita -, industriais e generais monarquistas
resolveram se unir para depor o go
verno pro
visório que consideravam
incapaz de controlar a situação
. A 25 de agosto o general Lavr Kornilo
v
tentou um golpe de Estado, frustrado pela ação dos revolucionários a quem
Kerenski foi obrigado a r
ecorrer
. Os sovietes se mobilizaram e os marinheiros
de Kronstadt seguiram para P
etersburgo, obrigando os conser
vador
es a
recuar
. Depois dessa tentativa de golpe, derrotada pela insurreição popular
liderada pelos bolcheviques, estes passaram a ter a maioria nos sovietes.
Ao mesmo tempo em que se intensicaram as ocupações de fábricas e de
terras, cresciam as deserções no E
xército
.
A 31 de agosto de 1917 o So
viet de P
etrogrado havia votado
a resolução, apresentada pelos bolcheviques, de que todo o poder fosse
entregue aos so
vietes. A partir daí o avanço revolucionário foi num
crescendo
. Os bolcheviques de M
oscou exigiam a insurreição e no dia 9
de outubro
T
rotski (Lev Bronstein) conseguiu apr
ov
ar a formação de um
comitê militar revolucionário para organizar um estado maior da r
evolução
(BR
OUÉ, 2014, p
. 95). N
o dia 11, delegados bolcheviques que chegavam
para o II Congresso dos S
ovietes de Operários, S
oldados e Marinheiros,
a se realizar no dia 25, foram convocados a P
etrogrado, enquanto que
os navios da Marinha colocaram suas rádios a serviço dos bolcheviques
(BR
OUÉ, 2014, p
. 96).
N
o dia 16 de outubro reuniu-se o comitê central bolchevique
ampliado que, por 19 votos contra dois e quatro abstenções, r
echaçou
proposta de Zino
viev de que se suspendessem os preparativ
os da revolução
até que o congresso dos so
vietes fosse ouvido.
T
rotski foi nomeado
comandante da fortaleza P
edr
o e P
aulo, cujo contingente ainda estava
indeciso (BR
OUÉ, 2014, p
. 96).
A 22 de outubro a tripulação bolchevique do cruzador Aur
ora
desobedeceu às ordens do go
verno de levantar âncoras e permaneceu
atracado. N
o dia seguinte, 23, foram enviados delegados a todas as
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
324
unidades militares, cujos repr
esentantes divulgaram documento em
que armavam não reconhecer a autoridade do go
verno pro
visório
(BR
OUÉ, 2014, p
. 97). “N
a verdade, os defensor
es da insurreição
representav
am a energia e a coragem indômita da revolução, enquanto
seus adversários manifestavam as dúvidas que a r
evolução tinha de si
mesma
” (DEUTSCHER, 1968, p. 315-316).
A 23 de outubro
T
rotski foi eleito presidente do S
oviet de
P
etrogrado. A 24, véspera da insurr
eição, houve distribuição de armas nos
quartéis a todos os destacamentos operários e à tarde os marinheiros de
Kronstadt chegam a P
etrogrado. D
o S
molni, sede do So
viet de P
etrogrado,
partiram destacamentos para ocupar pontos estratégicos da cidade. N
a
madrugada do dia 25 de outubro foi tomado o P
alácio de I
nverno e caiu
o gov
erno provisório sem qualquer r
eação ou derramamento de sangue.
O gov
erno fugiu, deixando um batalhão de mulheres a guardar o palácio
.
u
M
“
golPe
”
rev
ol
ucionário
A realização do II Congresso dos S
o
vietes de Soldados, Operários
e Marinheiros de toda a R
ússia estava marcada para o mesmo dia 25
de outubro
. Alguns consideram que seria preciso ouvir o congresso
antes de deliberar pela tomada do poder
, caso contrário seria um golpe.
F
ormalmente teria sido um golpe, pois a tomada do P
alácio de Inverno
deu-se na madrugada de 25 de outubro, antes da reunião do II Congresso
.
Mas, na r
ealidade, a revolução já estava na rua: os camponeses tomavam
as terras, os operários as fábricas, os soldados desertavam e exigiam a paz.
Lenin, tendo conseguido a maioria nos sovietes das principais capitais,
considerou que era a hora de conclamar o po
vo a tomar o poder
.
T
odo o
poder aos sovietes!
N
o mesmo dia reuniu-se o II Congr
esso dos So
vietes de Operários
e Soldados e M
arinheiros de toda a Rússia. A
o chegarem as notícias da
tomada do P
alácio de I
nverno e de que as tropas enviadas por K
erenski para
combater os revolucionários se passaram para a insurr
eição, a ala direita
dos social-revolucionários e os mencheviques defensivistas abandonaram a
sala. Apoiaram os bolcheviques os social-r
evolucionários de esquerda, parte
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
325
dos mencheviques e os anarquistas. O Congresso, em sua imensa maioria,
apoiou a insurreição – o que lhe deu legitimidade - e votou seus primeir
os
decretos: paz, pão e terra. F
oram também eleitos 15 bolcheviques como
comissários do pov
o. O congr
esso elegeu ainda um Comitê Executivo,
que contava com 71 bolcheviques e 29 social-rev
olucionários de esquerda
(DEUTSCHER, 1968, p
. 315-316).
o
s
PriMeir
o
Decretos
Os decretos sobr
e a paz, a terra e a questão das nacionalidades
consolidaram a liderança bolchevique nas bases populares, mas as opiniões
sobre o caráter da rev
olução não tinham unanimidade entre os dirigentes
revolucionários e aqueles que foram v
endo derrotadas suas posições não só
se afastaram da luta como se organizavam para lutar contra os bolcheviques.
O período que vivia a Rússia, desde fever
eiro de 1917 era riquíssimo
e agitado. U
ma imensa massa de operários e camponeses começavam a
participar ativamente da vida política. Os grupos sociais, organizados ou
não em partidos políticos, operários, soldados, marinheiros, camponeses,
todos procuravam entender a situação e, principalmente, defender seus
direitos, num processo de discussão e conv
encimento sobre os rumos
revolucionários. F
oram centenas de reuniões de comitês, assembleias de
operários, camponeses e soldados, por todo o país. A longa citação de uma
reunião, imortalizada por J
ohn Reed, que a ela estev
e presente, dá uma
ideia do ambiente revolucionário da R
ússia So
viética. O Comissário do
P
ovo para a G
uerra, Nicolay Krilenko, participou de um violento debate
no regimento motorizado de metralhadoras do Ex
ército
. Alguns exigiam
que falasse, os ociais queriam calá-lo, mas do alto de um carro, Krilenko
falou, pela madrugada a fora, com a voz rouca de cansaço:
Camaradas, soldados. Quase não posso falar
. Sinto muito, mas há
quatro noites que não durmo. N
ão pr
eciso dizer-lhes que também
sou soldado. D
o mesmo modo não preciso armar que desejo a paz.
O que lhes quero dizer
, companheiros, é que o P
artido Bolchevique,
conduzindo a revolução vitoriosa dos operários e soldados, com
o apoio de todos nós, os bravos camaradas que derrubaram para
sempre o poder da sanguinária burguesia, prometeu propor a paz e
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
326
hoje mesmo cumpriu essa promessa (uma tempestade de aplausos).
P
edem-lhes agora que quem indiferentes, enquanto os junkers
e os Batalhões da M
orte, que nunca carão neutros, estão nos
fuzilando nas ruas e apoiando a marcha de Kerenski e de outros de
sua laia sobre P
etrogrado. [...] todos esses mencheviques e socialistas
revolucionários, que lhes insinuavam para car neutr
os, como
conseguiram manter-se no poder de julho em diante? N
ão foi pela
guerra civil, na qual sempre se colocaram ao lado da burguesia,
como ainda o fazem? [...] A questão é bem simples. De um lado
estão Kerenski, Kaledine, K
ornilov
, os mencheviques, os socialistas
revolucionários, os cadets e a D
uma, dizendo a todo o instante que as
suas intenções são as melhores possíveis. D
o outro, estão os operários,
os soldados, os marinheiros, os camponeses pobres... O go
verno está
em nossas mãos. Sois os donos. A imensa Rússia v
os pertence. Dar-
lhe-eis as costas? (REED, 1963, p. 156-157).
Quando se passou à votação, em que os que apro
vavam as
propostas bolcheviques deveriam posicionar-se à esquer
da, centenas de
soldados para lá se dirigiram. E continua J
ohn Reed (1963, p
. 157):
Imagine-se essa luta em todos os quartéis da cidade, de todos os
distritos, em toda a frente, na Rússia inteira. I
magine-se, em todos os
quartéis, os Krilenkos, caindo de cansaço, correndo de um lugar para
outro, discutindo, ameaçando, suplicando. I
magine-se, nalmente,
as mesmas cenas em todos os sindicatos, nas fábricas, nas aldeias,
em todos os navios da esquadra espalhados pelos mais longínquos
mares. Imagine-se, em todo o país, centenas de milhar
es de russos,
operários, camponeses, soldados e marinheiros, com os olhos cravados
nos oradores, esforçando-se intensamente para compr
eender e em
seguida resolver
, pensando com todas as suas forças... para, anal,
com a mesma unanimidade, tomarem idêntica decisão
. Eis o que foi
a Revolução R
ussa.
4
N
enhum argumento é mais ecaz na hora de desmentir
categoricamente a lenda do P
ar
tido Bolchevique monolítico e
burocratizado do que o relato das lutas políticas, dos
conitos ideológicos,
das indisciplinas públicas que, denitivamente, nunca foram punidas.
Eram as massas rev
olucionárias que sancionavam as decisões que, por
Citado também por Pierre B
roué, 2014, p. 98. Há ligeiras difer
enças na tradução.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
327
sua vez, sua iniciativa tinha sugerido (BR
OUÉ, 2014, p. 101). Mas as
diculdades eram imensas, proporcionais aos feitos r
evolucionários. Lenin
e tantos outros rev
olucionários esperavam por uma revolução nos países
mais avançados, que ajudasse a consolidar a República S
oviética, r
evolução
que não ocorreu.
O líder bolchevique conclamava os operários e camponeses a
manterem-se unidos: “Lembrem-se que na atualidade
são vocês mesmos
que dirigem o estado: ninguém os ajudará se não permanecerem unidos,
impondo-se em todos os assuntos do estado
” (LENIN, 1962b, p
. 311).
E deixava clara a perspectiva dos bolcheviques sobr
e a democracia
revolucionária:
Os sovietes locais podem, segundo as condições de lugar e tempo,
modicar
, expandir e completar os princípios básicos estabelecidos pelo
governo
. A iniciativa criadora das massas: este é o fator fundamental da
nova sociedade (...) O socialismo não é o r
esultado de decretos vindos
de cima. O automatismo administrativo e burocrático é estranho a
seu espírito, o socialismo vivo, criador
, é obra das próprias massas
populares! (LENIN, 1962b
, p. 300).
Sobr
e o líder bolchevique escreveu Christopher H
ill (1967,
p. 167):
Em suas relações para com o homem comum o pensamento de Lenin
era fundamentalmente democrático. M
uitas pessoas manifestav
am
diante dele a opinião de que não pode haver democracia fora do
socialismo e Lenin sempre insistia em frisar
, invertendo os termos, que
também não pode haver socialismo sem democracia. [...] o socialismo
vitorioso não poderá sustentar sua vitória e conduzir a humanidade ao
ponto de desvanecimento do Estado sem ter estabelecido a ver
dadeira
democracia.
E aos que veem de forma deturpada a posição dos bolcheviques,
diz Pier B
roué (2014, p. 112):
Se, anos mais tar
de, os sovietes acabaram reduzidos a uma mera
casca vazia perante o todo-poderoso aparato bolchevique, será
porque, fundamentalmente, na época em que os so
vietes ainda eram
organismos vivos, o partido bolchevique foi o único a defender seu
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
328
poder
, enquanto os mencheviques e os socialistas revolucionários,
leais oponentes ou colaboradores da republica burguesa, se negaram
a desempenhar seu papel na República So
viética dos Conselhos de
Operários, Camponeses e Soldados.
A paz de
Br
est-Lito
vski
, estabelecida em março de 1918, cou
longe da planejada paz justa e sem anexações. O gov
erno soviético
havia prometido a paz – pro
vavelmente a r
eivindicação mais sentida do
momento -, e foi seu primeiro decreto
. P
ara consegui-la, no entanto, foi
preciso per
der parte importante de seu território, como o sul da Ucrânia,
verdadeir
o celeiro do país.
T
ais exigências só foram rev
ertidas no nal da
guerra, com a breve r
evolução alemã, que anulou o tratado e r
estituiu os
territórios invadidos pelos austro-alemães. O tratado, além de todas as
perdas que duraram quase um ano, motivou um atentado contra Lenin,
levado a efeito pela militante anarquista F
any Kaplan, que considerou o
tratado uma traição à revolução
. Embora sem adotar a tática de atentados
contra opositores, muitos bolcheviques, entr
e eles
T
rotski, não caram a
favor da paz obtida daquela forma. M
as é que não havia outra maneira de
conseguir a paz e seria impossível manter a rev
olução e continuar a guerra.
A
guerrA
civil
A crítica fácil à Revolução de O
utubro, daqueles que a veem no
conforto de suas opiniões pré-estabelecidas contra os bolcheviques, parece
não ter a mínima noção da História, no caso, do que foi a guerra civil.
As descrições desse período que durou quatro anos e meio, chegam a ser
dantescas, do número de mortos ao recurso ao canibalismo: miséria, fome,
epidemias de cólera e tifo e ainda a grande seca que assolou parte do país.
Embora alguns reclamassem “
sovietes livr
es
” em tal situação, os anarquistas
revolucionários que viv
eram aqueles momentos solidarizaram-se com os
bolcheviques e deixaram para o m da guerra a cobrança de suas propostas
de gov
erno.
F
oram quatro anos e meio de uma guerra que começou a 26
de outubro de 1917, e terminou em agosto de 1922, com a derrota dos
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
329
últimos remanescentes dos ex
ércitos brancos e de grupos de bandoleiros
que assaltavam pelo país.
Com o m da guerra mundial os exércitos aliados inv
adiram
o país, cercando-o por todas as suas fronteiras. Decididos mais tar
de a
retirar suas tropas do território russo, os aliados passaram a fornecer armas,
munições, alimentos e homens aos exércitos brancos.
A guerra envolveu
os gov
ernos alemão, francês, inglês, americano, japonês, tcheco, polonês,
italiano romeno e grego, armando mer
cenários, apoiando o rebotalho da
sociedade russa, que se aliava aos brancos (MARIE, 2017, p. 15). “Churchil
resumiu a situação com seguinte fórmula: ‘M
atar o bolchevique e beijar o
huno
’ ” (MARIE, 2017, p. 15).
Devemos levar em conta também a violência inaudita que se
apossara da sociedade, reprimida há séculos pela brutalidade tzarista. P
ara
dar exemplos do ódio que os camponeses tinham por seus opr
essores,
“
em Rostow no D
on, no nal de janeiro de 1918, os soldados abateram
cerca de 3.400 ociais e, alguns dias depois aproximadamente 2 mil em
N
ov
ocherkassk
” (MARIE, 2017, p. 16). “Em Sebastopol, pouco mais tar
de,
marinheiros enfurecidos cortaram a genitália e as mãos de várias centenas de
ociais suspeitos de terem pertencido, em 1905-1906, às cortes marciais que
enviaram à forca dezenas de marinheiros r
evoltados
” (MARIE, 2017, p. 16).
A violência da guerra era potencializada pela violência popular
.
O Exér
cito V
ermelho era formado por “
operários sem formação,
militar
, armados às pressas com um fuzil que às vezes nem sabiam usar
e que consistiam, durante alguns meses, a única força armada, fraca
e desorganizada do gov
erno revolucionário
” (MARIE, 2017, p. 35). O
mesmo autor descreve as barbaridades cometidas contra os bolcheviques
na F
inlândia, apesar do tratado assinado:
A repressão foi maciça e brutal. Em
T
ampere os Brancos capturaram
11 mil soldados vermelhos e fuzilaram a maioria. Cerca de 80 mil
V
ermelhos são levados para os primeiros campos de concentração da
guerra civil: 12 mil morreram de fome e tifo, sem contar os que são
fuzilados. (...) Em Helsinque fuzilaram Boris J
entchoujine, comissário
bolchevique encarregado de garantir o retorno para a R
ússia, previsto
pelo
T
ratado de Brest-Lito
vski, dos 236 navios russos estacionados em
portos nlandeses (MARIE, 2017, p. 38).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
330
Em alguns meses, tribunais de exceção julgaram, em meados
de 1918, 67.788 V
ermelhos: 90% são condenados à prisão, sem contar
555 condenados à morte, a metade executados. “Os acontecimentos da
F
inlândia soam como um aviso aos bolcheviques: se forem v
encidos serão
liquidados e massacrados como os operários social-democratas de esquerda
nlandeses. ” (MARIE, 2017, p. 38).
A fome era um dos principais inimigos. N
o nal de abril de 1918
a população faminta de N
ovgor
od atacou o soviet local, que decr
etou
estado de sítio.
T
rotski reuniu alguns telegramas recebidos em M
oscou:
no dia 21 de maio, a população faminta de P
avlov-P
ossad não sabe onde
encontrar comida. N
o dia 31, em N
ijni N
ovgor
od, 30% dos operários
não podem trabalhar por causa da fome. De Serguei-P
ossad escrevem:
deem-nos pão ou morreremos. D
e Briansk, a 30 de maio, comunicam que
a mortalidade era enorme, sobretudo de crianças. A 2 de junho avisam
que em Klin há duas semanas que não havia o que comer
. A 3 de junho,
de Dorogobuj comunicam a fome e epidemias (MARIE, 2017, p
. 64). A
fome levava a que em muitos lugar
es os bolcheviques no governo fossem
responsabilizados e corriam slogans como “
sovietes sem comunistas
”, o que
fez com que em Blesk, perto de S
molensk, a população fuzilasse todo o
soviet da cidade (MARIE, 2017, p
. 64).
Ao mesmo tempo que cercado pela E
ntente e pelos Exércitos
Brancos e os Cossacos seus aliados, grupos que haviam apoiado a revolução
agora se desligavam dela, como o caso dos social-rev
olucionários e de grupos
anarquistas, estes em busca de “
democratizar” os so
vietes. Em Samara-
Oremburg, no dia 17 de maio de 1918, um destacamento de marinheir
os
anarquistas derrubou o soviet de S
amara, que acabou, com seu liberalismo,
a abrir caminho para ser dirigido por socialistas revolucionários e guar
das
brancos (LENIN, 1962, p. 192, 566). P
ossivelmente isso aconteceria
em todo o país, caso a consigna “
sovietes sem bolcheviques
” tivesse sido
vitoriosa. F
elizmente a rev
olução se manteve.
A pretexto de não concor
dar com o
T
ratado de
Br
est-Litó
vski
,
os social- revolucionários de esquer
da se rebelaram, pedindo a anulação
do tratado e a continuação da guerra com a Alemanha, enquanto que
os de direita organizaram, em julho de 1918, levantes em
T
ambow e em
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
331
Ekaterinburg. O ocial do Ex
ército B
ranco, Kappel, descreveu uma das
batalhas da “luta sobre os trilhos
”, com os famosos trens blindados – que
de blindados tinham muito pouco:
P
ercebíamos oradores que gesticulavam e ouvíamos hurras! Abrimos
fogo com nossas metralhadoras; depois de alguns minutos, toda a
margem estava cheia de corpus humanos e o trem blindado saiu em
marcha ré em dir
eção a seu ponto de partida. Eles atiravam em nós
e nossos canhões respondiam, até que um dos canhões pegou fogo e
o trem, cercado de chamas e de fumaça, desapar
eceu numa curva da
estrada. (MARIE, 2017, p. 76).
O general W
rangel, um dos chefes do Ex
ército Branco, diz em
uma carta a sua mulher
, de 6 de setembro de 1918, que: “Os bolcheviques
combatem com a obstinação de um rato acuado num canto
” (MARIE,
2017, p. 97)
5
, e conta em suas memórias:
Os hospitais estavam repletos de doentes, que se amontoav
am nas casas,
estações, vagões imobilizados, nas vias. Durante vários dias os mortos se
misturavam aos vivos sem atendimento, abandonados a si mesmos; os
tifosos a procura de comida vagavam até o m de suas forças nas ruas
da cidade, e muitos deles perdiam a consciência e caiam nas calçadas.
(MARIE, 2017, p. 97).
As cenas da guerra civil são dantescas. M
uitas vezes, quando se
teoriza sobre aqueles anos, a situação dramática vivida pelo po
vo russo é
deixada de lado, num ping-pong de conceitos desgarrados sobre “
democracia
”
e “
autoritarismo
”. A propósito, a
Tcheca (Comissão Extraor
dinária de Luta
Contra a Sabotagem e a Contrarr
evolução) foi criada a 7 de dezembro de
1917, depois que funcionários do banco estatal se negaram a fornecer dinheiro
aos bolcheviques - os funcionários do nov
o governo caram sem salários
enquanto que os do antigo regime eram pagos. A comissão era dirigida por
Alguns anos mais tarde os soldados nazistas diriam algo semelhante sobre o po
vo russo, durante a Segunda
Guerra M
undial.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
332
F
elix Dzerjinski e os cinco postos de seu colegiado eram ocupados por social-
revolucionários (MARIE, 2017, p
. 33).
6
Dentro da R
ússia lutavam não só vermelhos contra os brancos,
mas também os chamados verdes, que
não se alinhavam com nenhum
dos lados, embora às vezes apoiassem um lado ou outro, ou agissem por
conta própria.
T
ais ex
ércitos serão apagados da história simplicada da
época do stalinismo. J
ean-Jacques M
arie (2017, p. 18), citando pesquisas
atuais, escreve:
Esses exércitos ver
des, locais ou regionais vão de pequenos destacamentos
volantes de 500 a 600 homens até ver
dadeiras divisões armadas de
canhões e metralhadoras: a divisão de Grigoriev r
eúne 15 mil homens; o
exército de M
acknó, na Ucrânia, de 25 a 30 mil e chega a ter
, em 1919,
mais de 50 mil homens; o de
T
ambov
, comandado por Antonov varia
de 18 a 40 mil, conforme o período. O “
exército popular
” da Sibéria
ocidental reúne cerca de 100 mil, em 1921 e obedece, assim como o
de Antonov
, a comandantes diversos, ciosos de sua autoridade local e
obstinados em defender suas prerrogativas e títulos.
F
oram milhões de mortos e o poder soviético estav
a ainda longe
de se ter consolidado. N
o início de 1919 os soviéticos estavam cercados.
Sobr
e isso disse Louis F
ischer:
A oeste a Rússia estava separada do mundo exterior pelo B
áltico, pelos
alemães, pela frota inglesa e pela P
olônia; ao nor
te pelas tropas inglesas,
francesas, americanas e sérvias; ao sul pelos franceses na Ucrânia, por
Denikin no K
uban e pelos ingleses no Cáucaso e
T
ranscáspia; por
último, ao leste da Sibéria estão os japoneses e seus leais atamans (chefes
cossacos que possuíam terras e eram apoiados pelo tzar – MV)); a oeste
estão os tchecos e Kolchak. (BR
OUÉ, 2014, p. 120).
Em maio de 1919 K
olchak chegou aos U
rais; Denikin tomou o
S
ul; Y
udenich desceu da Estônia e ameaçou P
etrogrado, que sofria com
epidemia de tifo e com a fome, e a 19 de outubro chegou a 15 km da
Em russo,
Tcherezvitcháinaia comíssia – Comissão de Emergência. Alguns desavisados a confundem com a
NKVD (Nar
ódni Comissariat Vinútrenir D
iel) - Comissariado do P
o
vo para Assuntos Internos, criada em julho
de 1934, no período de crescimento do terror stalinista.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
333
cidade.
T
rotsky
, em seu trem blindado, conseguiu derrotá-lo e pouco
depois, em janeiro de 1920, o 5º Ex
ército V
ermelho expulsou Kolchak de
Omsk. K
olchak foi preso e fuzilado
. N
o entanto, o Barão
W
rangel, tzarista
que contava com grande ajuda dos franceses, conseguiu reunir r
estos do
exército de D
enikin e atacou a U
crânia, sendo derrotado em nov
embro
de 1920, o que, segundo Pierr
e Broué (2014), pôs m à guerra civil, ao
contrário de J
ean-J
acques Marie (2017) que dá o v
erão de 1922 como seu
nal denitivo
. Embora muitos bandos armados continuassem a percorrer
o país, os próprios bolcheviques consideram o início de 1921 como o
nal da guerra. N
ela os bolcheviques contaram com o apoio de grupos
anarquistas, em especial do líder guerrilheiro M
akhnó. Embora este não
fosse adepto dos bolcheviques, seus maiores inimigos eram os brancos e
contra eles e os exércitos austr
o-húngaros que tomaram a U
crânia lutou
bravamente, embora não fosse reconhecido pela maioria dos anar
quistas
como tal. O anarquista russo V
olin (Vsevolod Eihenbaum), seu amigo,
admirador de sua coragem, disse também que Makhnó não sabia r
esistir a
tentações e abusava do álcool:
Em certos períodos era lamentável. O estado de embriaguez se
manifestava principalmente no terreno moral [...] sob inuência do
álcool cava maldoso, super excitado, injusto, intratáv
el, violento
[...] perdia o autocontrole. E
ntão, o capricho pessoal, com frequência
associado à violência, substituía bruscamente o dever revolucionário;
surgia a arbitrariedade, as birras absurdas, as teimosias, os “
arremedos
ditatoriais
” de um chefe armado. O segundo defeito de M
akhnó e de
muitos de seus íntimos – comandantes e outros -, era sua atitude com
as mulheres. P
rincipalmente quando estavam bêbados esses homens se
permitiam atos inadmissíveis –
odiosos
, seria a ver
dadeira palavra – que
chegavam a certas orgias a que algumas mulheres eram obrigadas a
participar
. (MARIE, 2017, p
. 59).
J
ean-J
acques Marie (2017, p
. 20), que faz um relato detalhado da
guerra civil, diz não pretender esgotar o assunto, mas,
P
or meio de depoimentos e documentos de diversos protagonistas,
fornecer uma imagem verdadeira da guerra, r
econstituir alguns de
seus acontecimentos essenciais e restituir a atmosfera de uma guerra
civil, caleidoscópio de cargas de cavalaria com sabre em punho, tr
ens
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
334
blindados, salvas de canhão, execução de r
eféns e de prisioneiros,
em meio à pilhagem, fome, frio, cólera e tifo, que arrasam cidades e
vilarejos e dizimam os exér
citos, sem contar a gripe espanhola que se
abateu sobre a E
uropa a partir da primavera de 1917 e deixou milhões
de mortos.
Leon
T
rotski, o fundador e comandante do Exército
V
ermelho
desempenhou papel fundamental para a vitória dos bolcheviques. Sobr
e
ele disse Mariátegui (2012, p
. 99):
Como seu ex-generalíssimo, o Exército
V
ermelho é um fato inédito
na história militar do mundo, que sabe seu papel revolucionário e não
esquece que seu objetivo é a defesa da revolução
. De sua essência está
excluída, portanto, qualquer tendência especicamente imperialista:
sua disciplina, organização e estrutura são revolucionárias. E enquanto
o generalíssimo escrevia um artigo sobre Romain R
olland, os soldados
evocavam a
T
olstoi ou liam Kropotkin
7
.
o
coMunisMo
De
guerrA
e
o
fiM
DA
guerrA
civil
A destruição e a miséria causadas pela guerra civil prov
ocaram
o chamado comunismo de guerra, que constava principalmente da
requisição do ex
cedente no campo, muitas vezes não só o excedente, pois
era preciso sustentar os ex
ércitos. Salv
ar a revolução era o principal objetivo
.
O sofrimento dos camponeses era imenso, pois além das requisições do
gov
erno os Exércitos B
rancos tomavam tudo dos camponeses: além dos
produtos, o gado, roupas, utensílios e violava suas mulher
es.
Quando os so
viéticos conseguiram sair vitoriosos da luta,
defrontaram-se com um país arrasado: segundo vários autor
es, a perda na
indústria fora de 80%; no setor de energia e carvão 70%; na produção
de ferro, aço, e açúcar e na exportação a perda foi de 100% e de 50% na
produção agrícola (REIS FILHO, 1997, p
. 82).
Apesar da trágica situação, a revolução pr
ovocou um grande orescer artístico, como as experiências do teatro
T
aganca, a literatura de Gorki e a poesia de Maiacovski e grupos de arte moderna, sobre a qual disse Lenin: “Eu
não gosto, mas se entusiasma a juventude deve ser boa! ” V
er sobre o tema GUERRA, E. Carrera. “O alvor
ecer
da literatura soviética
” (MAIACOVSKI, 1957). Cito tr
echo do belíssimo poema À Lila Brik, de 1922: “Eu sei/
Qualquer um o sabe/O coração tem domicílio no peito. /Comigo a anatomia se fez louca. /Sou todo coração
”.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
335
A fome era constante nas cidades e o pov
o faminto tinha
muitas reivindicações.
T
al situação acabou por provocar o levante dos
marinheiros de Kronstadt
8
. Era uma situação desesperadora e o inimigo
interno e externo aguardava qualquer oportunidade para intervir
. Sem que
fosse possível chegar a um acordo – e ambas as partes tinham razão – a
insurreição foi esmagada
9
. F
oram grandes as per
das de ambos os lados, não
só de parte dos marinheiros derrotados. Centenas de soldados que lutavam
ao lado do gov
erno foram fuzilados ou morreram afogados no gelo, pelo
ataque dos marinheiros rebelados
10
.
O gov
erno não tinha mais opções para se manter
, revoltas surgiam
no campo e nas fábricas, era preciso dar comida ao po
vo faminto e, para
isso, desafogar a economia, recuar para poder avançar
. F
oi o período da
N
ov
a P
olítica Econômica (NEP), que liberalizou o comércio e permitiu a
pequena propriedade no campo e também na cidade. A luta por manter
a revolução foi terrív
el, e o custo de milhões de vidas que lutaram por ela
debilitou a sociedade, a classe operária e o partido. Lenin deu-se conta
disso, mas não teve forças físicas para fazer pr
evalecer suas posições, numa
luta que travou desde seu primeiro derrame em 1922, até sua morte em
janeiro de 1924.
Os três problemas que o pr
eocuparam e que constituem o prólogo
do grande drama que vai se desenvolver com sua morte são os temas
da burocracia, do despotismo, da anulação dos direitos democráticos.
Lutando para romper o muro que queria isolá-lo da vida política,
Lenin se bateu para evitar que o partido e o Estado – obras suas
– se encaminhassem pela via perigosa das soluções apressadas,
administrativas, burocráticas, repr
essivas: em poucas palavras, que o
velho aparato estatal do tzarismo se sobrepusesse – mais nas pessoas do
que nos métodos – às forças debilitadas pela guerra civil do proletariado,
dos camponeses, dos comunistas. (LENIN, 1974, p. 155).
Revolta dos marinheiros de Kronstadt, em mar
ço de 1921, derrotada pelos bolcheviques. Sobre o tema ver:
A
VRICH, 1975. Há tradução em castelhano:
Kronstad, 1921.
Buenos Aires: U
topia Libertária, 2006.
Sobre o tema ver
VIANNA, 2017b.
10
V
er A
VRICH, 1975.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
336
O período da contrarrevolução stalinista foge a nosso espaço
.
Aqueles que consideram S
talin marxista buscam com isso atacar o leninismo
e o marxismo, e o fazem, muitas vezes, por desconhecer que o marxismo é,
antes de tudo, um humanismo, com o qual S
talin nada teve a ver
.
Deduzir a contrarrevolução stalinista dos vícios originais do “leninismo
”,
noção forjada em 1924, no V Congr
esso da Internacional Comunista,
para legitimar a nova ortodoxia do Estado, não é apenas historicamente
falso, mas é politicamente misticador
. Bastaria então ter compreendido
e corrigido os erros e os desvios teóricos para prevenir contra os
“
perigos prossionais do poder” e garantir uma sociedade democrática
transparente! (...) A burocracia não é a consequência deplorável de uma
ideia falsa, mas um fenômeno social. (BENSAÏD, 2008, p. 73).
V
er o stalinismo com uma consequência inevitável – e
previsível! – da R
evolução de Outubr
o é pensar uma história linear
,
onde todos os acontecimentos estão encadeados, cujas causas trazem
em si um inevitável efeito
.
A ênfase dada a um “
erro
” teórico, desligado dos processos históricos e
sociais de burocratização sugere que bastaria corrigi-lo para dissipar o
perigo burocrático. A explicação do stalinismo
como sendo um “
desvio
teórico
” lembra, então, a procura de um pecado original. E
le leva não só
à liquidação do “leninismo
”, mas também, em grande medida, a uma
renúncia ao marxismo crítico, ou mesmo à herança do iluminismo: da
“
culpa de Lenin
” logo se remonta à “
culpa de Marx
” e mesmo à “
culpa
de Rousseau
”! (BENSAÏD, 2008, p. 73).
c
oncl
uinDo
Lenin conseguiu interpretar seu mundo corr
etamente e, a partir
disso, transformá-lo. Esse é seu maior legado: a partir de uma teoria
revolucionária interpr
etar a realidade concreta e a partir daí mudá-la
revolucionariamente. F
oi o que ele fez.
Em março de 1919, por iniciativa sua e com ativ
a participação de
Leon
T
rotski, foi criada a III Internacional, a Internacional Comunista. E
m
seu IV Congresso, em no
vembro de 1922 – o último do qual participou, Lenin
terminou seu discurso falando da importância de se estudar
, estudar sempre.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
337
Dirigindo-se aos delegados estrangeiros, alertou-os sobre a necessidade de
entender a situação russa em que se deu e se desenvolvia a revolução e não
“
colocá-la num canto e rezar diante dela
” (LENIN, 1961d, p. 746).
O período da contrarrevolução stalinista que se seguiu à morte
de Lenin, especialmente a partir do nal dos anos 1920, início dos de
1930, foi um período de abastardamento do marxismo e de destruição
física dos quadros partidários bolcheviques que zeram a Rev
olução. M
as
como escreveu M
ichael Löwy (2000, p
. 15, grifo nosso):
O capítulo “
stalinismo
” está se fechando. J
á era tempo. I
sso cria a
possibilidade – não para as próximas semanas, mas para o século XXI –
de agrupar novamente gerações de r
evolucionários
ao redor da bandeir
a
vermelha de Outubro de 1917
– não como modelo único, mas
como
her
ança preciosa e insubstituível da tr
adição dos oprimidos
. Isso não é
uma certeza, mas uma possibilidade histórica, uma chance que nos é
dada. A nós cabe apanhá-la.
P
ost
-s
criPtun
–
uMA
hiPó
tese
sobre
o
DesMoronAMent
o
DA
urss
P
oderíamos discutir o período do governo de S
talin e os
principais acontecimentos na URSS a partir do governo de N
ikita
Kruchov
, da denúncia do culto à personalidade, dos problemas colocados
por ela e das incongruências que passou a viver o sistema a partir daí e
que se foram agravando no go
verno de Leonid Br
esniév e do interregno
de Y
uri Andrópo
v e Konstantín Chernenko que acabou por desembocar
em Gorbatchio
v
, Y
eltsen e Cia. Mas o espaço não comporta uma análise,
mesmo que breve, desse período
.
A hipótese que levanto é a de que o socialismo não chegou a
existir na URSS, tal como o consideravam Marx e Lenin. O que tivemos
foi um socialismo de Estado. E o que sustenta a hipótese? P
ara Marx o
socialismo não se limita à mudança da base econômica, de acabar como
modo de produção capitalista – que de fato acabou na URSS. N
ão basta
acabar com o capitalismo e com o capital para ser socialista, é preciso que
politicamente e socialmente também o seja, quer dizer
, é necessário
acabar
com o Estado
e instaurar uma democracia política, o que evidentemente
não ocorreu.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
338
Lenin, assim como Marx, falava de um período de transição ao
socialismo, que seria a ditadura do proletariado
. Esse período de transição
prepararia a consolidação da classe operária no poder
, o m cabal do
capitalismo e a extinção do Estado, o que para eles sempre foi um ponto
fundamental. Marx se referia ao Estado como “U
m aborto sobrenatural da
sociedade
” (MARX, 1971).
11
N
as
T
eses de Abril, diz a de número 8, como vimos acima,
que embora fosse preciso passar imediatamente a controlar a pr
odução
e a distribuição dos produtos
a implantação do socialismo não er
a tar
efa
imediata.
Em vários escritos posterior
es Lenin frisou a necessidade do
período de transição até o desvanecimento – é o termo que usa – completo
do Estado, o que até então não havia ocorrido. F
inda a guerra civil, foi
preciso retr
oceder
, com a NEP
, e fazer concessões ao que Lenin chamou de
capitalismo de Estado, para manter a revolução
.
Depois da derrota das r
evoluções europeias, da morte de Lenin,
do abandono da perspectiva da rev
olução mundial e da necessidade
da construção do socialismo em um só país, o que se consolidou foi o
fortalecimento de um Estado Socialista, um Estado que acabou por ser
autoritário e repressor
. Impossível falar de socialismo no sentido que M
arx
e Lenin o entendiam.
A manutenção de um Estado forte criou uma grande potência
- a segunda potência mundial – fundamental para propiciar a vitória
de todas as forças progr
essistas no mundo e garanti-las. Mas a própria
presença do Estado e de suas características, ao não av
ançar no sentido de
seu desvanecimento, acabou por pro
vocar contradições que o go
verno não
foi capaz de resolver
. A URSS desmoronou por suas próprias contradições
internas. V
oltou-se ao capitalismo – um capitalismo selvagem – sem
maiores convulsões sociais porque a maioria da população, passados
mais de 70 anos, não se reconhecia no “
socialismo realmente existente
”.
Creio ser pr
eciso pesquisar ainda muito para entender o como caracterizar
corretamente o Estado so
viético, dos anos que começam com o nal da
NEP
, a introdução dos planos quinquenais e o fortalecimento do Estado,
11
Cf. LÖ
WY
, 2016.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
339
tema difícil e complexo
. Como disse Guimarães Rosa: “E
u sei que nada
não sei, mas descono de muita coisa! ” (
Gr
ande Sertão –
V
eredas
).
r
eferênciAs
A
VRICH, Paul.
La tr
agédie du C
ronstadt, 1921
. P
aris: Ed. du S
euil, 1975.
BENSAÏD, Daniel.
Os irr
edutíveis
: teoremas da r
esistência para o tempo presente.
T
radução da W
anda Caldeira Brant. São P
aulo: Boitempo, 2008.
BOFF
A, Guiseppe.
Les bolchéviks et la r
évolution d´octobr
e
: procès-verbaux du comitê
central du parti bolchevique, août 1917-février 1918. P
aris: Maspero, 1964.
BR
OUÉ, Pierr
e.
O partido bolchevique
.
T
radução de P
aula Maei e Ricardo Alv
es. São
P
aulo: S
undermann, 2014.
CARR, E. H.
A Revolução R
ussa de Lenin a Stalin (1917-1929).
T
radução
de W
altensir
Dutra. Rio de J
aneiro: Zahar
, 1981.
DEUTSCHER,
Isaac. T
rotski,
O profeta armado
.
T
radução de W
altensir Dutra. Rio de
J
aneiro: Civilização Brasileira, 1968.
FONT
ANA, Josep
.
El siglo de la r
evolución
: uma historia del mundo desde 1914.
Barcelona: Crítica, 2017a.
FONT
ANA, Josep
. A revolução R
ussa e nós.
História e luta de classe
, n. 23, mar
. 2017b.
HILL, Christopher
.
Lenin e a Revolução Russa.
T
radução de Geir Campos. Rio de
J
aneiro: Zahar
,1967.
LENIN, Vladimir Ilitch. As tar
efas do proletariado na presente rev
olução.
In
:
Obr
as
Escogidas
. M
oscou: Editorial P
rogresso, 1975b
. t. 2.
LENIN, Vladimir Ilitch. Carta a los operários y campesinos por motivo de la victória
sobre K
oltchak.
In
:
Obr
as Escogidas.
M
oscou: P
rogresso, 1961e. v
. 3.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Contra la B
urocr
acia:
Diario de las secr
etarias de Lenin.
Córdoba: PyP
, 1974.
LENIN, Vladimir Ilitch. D
iscurso pronunciado en la reunion conjunta del comitê
executivo central de toda R
ussia, del soviet de M
oscu, de lós comitês fabriles y de los
sindicatos de Moscou en el 29 de julio de 1918.
In
:
Obr
as Escogidas
. M
oscou: Editorial
P
rogresso, 1975a. v
. 2.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Eouvres
. P
aris:Éditions S
ocieles/Moscou: E
d. em langues
etrangères, 1962a. t. 32: dezembro de 1920-agosto de 1921.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
340
LENIN, Vladimir Ilitch. IV Congr
esso de La Internacional Comunista, de 13 de
noviembr
e de 1922
.
In
:
Obr
as Escogidas
.
T
radução para o espanhol do Instituto de
Marxismo leninismo do CC do PCUS. M
oscou: Editorial P
rogresso, 1961d. t. 3.
LENIN, Vladimir Ilitch. Las tar
eas del proletariado em nuestra revolucion: (T
esis de
Abril)
.
In
:
Obras E
scogidas
. M
oscou: Editorial P
rogresso, 1961b
. t. 2.
LENIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a R
evolução
. In
:
Obr
as Escogidas
. T
radução
para
o espanhol do Instituto de Marxismo leninismo do CC do PCUS. M
oscou: Editorial
P
rogresso, 1961c. t. 2.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Obr
as Escogidas
. M
oscou: Editorial P
rogresso, 1975. v
. 2.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Oeuvres Complètes
. P
aris: Éditions S
ociales/Moscou: É
ditions
en langues etrangères, 1962b
. t. 26.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Oeuvres Complètes.
P
aris: Éditions S
ociales/Moscou: É
dition
du P
rogré, 1961a.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Oeuvres Complètes
. P
aris: Éditions S
ociales/Moscou:É
ditions
en langues etrangères, 1962c. t. 24-42.
LENIN, Vladimir Ilitch.
Sur da démocratie socialiste
. M
oscou: Ed de l´Agence de P
r
ess
N
ovosti, 1978.
LEWIN, M
oshe.
O século Soviético
. Da r
evolução de 1917 ao colapso da URSS
. T
radução
de Sílvia Souza Costa. Rio de J
aneiro/São P
aulo: Recor
d, 2007.
LÖ
WY
, Michael; BESANCENO
T
, Olivier
.
Anidades R
evolucionárias
: nossas estrelas
vermelhas e negras. P
or uma solidariedade entre marxistas e libertários. T
radução de
J
oão Alexandre P
eschanski e Nair F
onseca. S
ão P
aulo: Ed. UNESP
, 2016.
LÖ
WY
, Michael; BENSAID, Daniel.
Marxismo, modernidade, utopia
. T
radução
de
Alessandra Ceregatti, Elisabete B
urigo e J
oão Machado
. São P
aulo: Xamã, 2000.
MAKHNO, N
estor
.
A “Revolução
” contr
a a r
evolução
: a Rev
olução Russa na U
crânia
(março 1917-abril 1918)
.
T
radução de Milton José de Almeida. S
ão P
aulo: Cortez,
1988.
MAIACO
VSKI, Vladímir
.
Antologia P
oética
. Rio de Janeiro: Leitura, 1957.
MARIÁ
TEGUI, José Carlos.
R
evolução Russa
: história, política e literatura. S
ão P
aulo:
Expressão P
opular
, 2012.
MARIE, J
ean-J
acques.
História da guerr
a civil Russa – 1917-1922.
T
radução de P
atrícia
Reuillar
d e Janyne M
artini. São P
aulo: Contexto, 2017.
MARX, K. La guerre civil em F
rance en 1871.
In
: MARX, K; ENGELS.F
.; LENIN, V
.
Sur La Commune de P
aris
. Moscou: Éditions du P
rogrès, 1971.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
341
MONTEFIORI, Simon Sebag.
O
s Románov
– 1613-1918.
T
radução de Claudio
Carina, Denise Bottmann, Donaldson M.Garschagen, R
enata Guerra e R
ogério W
.
Galindo. S
ão P
aulo: Companhia das Letras, 2016.
REED, J
ohn.
10 dias que abalar
am o mundo
.
T
radução de Armando Gimenez. São
P
aulo: F
ulgor
, 1963.
REIS FILHO, Daniel Aarão.
U
ma r
evolução per
dida
. São P
aulo: P
erseu Abramo, 1997.
REIS FILHO, Daniel Aarão.
As r
evoluções russas e o socialismo soviético
. S
ão P
aulo:
UNESP
, 2003.
SER
GE, Victor
.
Memórias de um rev
olucionário
.
T
radução de Denise Bottmann. São
P
aulo: Companhia das Letras, 1987.
SER
VICE, Robert.
Historia de Rusia en el siglo XX
.
T
radução castelhana de Carles
Mer
cadal. Barcelona: Crítics, 1997.
VIANNA, Marly de A. G. A rev
olução de fevereiro de 1917 e as mulher
es.
Socialismo e
Liber
dade,
São P
aulo, Fundação Lauro Campos, n.16, 2017a.
VIANNA, Marly de A. A rev
olução Russa, grandes vitórias e graves impasses: as
guerrilhas de N
estor Macknó e a tragédia de Cronstadt.
In
: PINHEIR
O, M
ilton.
Os
Cem Anos que abalar
am o mundo
: a Revolução Russa na cena do futuro
.
S
ão P
aulo: ICP
,
2017b.
ZIZEK, Slavoj (org.). Às portas da Rev
olução: escritos de Lenin de 1917.
T
radução
de Zizek de Luiz B
ernardo P
ericás e F
abrício Rigout.
T
radução dos textos de Lenin de
Daniela J
inkings. São P
aulo: Boitempo, 2005.
343
A
100
º
R
R
P
aulo Alv
es de Lima F
ilho
1. s
ob
A
óPticA
De
M
Arx
:
A
críticA
Do
cAPit
Al
e
A
eMAnciP
Açã
o
Dos
trAbAlhADores
1.1 A
M
D
urante toda a vida, Marx manteve-se el à luta pela emancipação
dos trabalhadores. Levou este pr
opósito às últimas consequências. Sua
AIT (Associação Internacional dos
T
rabalhadores) fracassou, apesar (e
devido) dos seus evidentes êxitos. O sectarismo das vanguardas estraçalhou
denitivamente o mo
vimento unitário emancipacionista. Decidiu-se,
então, por liquidar a AIT com a mesma fundamentação e contundência
com que criticou o primeiro programa do r
ecém-fundado P
artido Operário
Alemão em sua carta aos dirigentes deste, em 1875, posteriormente
denominada
Crítica ao P
rogr
ama de G
otha,
dentre outros motiv
os por seu
autoconnamento nacional (MARX, 1975).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
344
N
o entanto, nesse trabalho, o lema da AIT é ali rearmado,
“
a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhador
es
”
(MARX, 1975, p. 46); isto v
ale dizer que nenhum Estado ou partido
emancipa os trabalhadores. A emancipação destes ou é obra coletiva
destes, na qual se realizam como classe – obra coletiva, v
oluntária,
consciente e organizada – como expressão de sua esmagadora maioria e,
consequentemente, de seu poder político direto e ditatorial (podendo até
ser democrático, a depender das condições históricas concretas) e de sua
direta propriedade dos meios de pr
odução, ou então não ocorrerá.
A experiência da Comuna de P
aris, curta, porém riquíssima,
permitiu a formulação dos traços essenciais de uma teoria da transição
comunista. “Entre a sociedade capitalista e a comunista existe um período
de transformação revolucionária da primeira na segunda. A esse período
corresponde um período de transição política, e o estado desse período
não poderá ser nenhum outro a não ser a
ditadur
a r
evolucionária do
proletariado
.
” (MARX, 1975, p. 50). I
sso nos diz o Marx maduro, em
sua
Crítica ao P
rogr
ama de G
otha
. S
uperar o capital, suprimir o reino da
mercadoria, transformar os trabalhadores em for
ça revolucionária ativa,
através do exer
cício de sua emancipação política, individual e coletiva,
expandindo o reino de sua liber
dade no sentido de liquidar a herança da
divisão social do trabalho.
As décadas de estudo das mais variadas sociedades e da luta, dos
trabalhadores por sua emancipação, até o nal de sua vida, da Alemanha à
Rússia, da I
rlanda à Inglaterra, da Espanha aos EU
A, tiveram como objetivo
conhecer o estágio relativo da maturidade do mo
vimento internacional
dos trabalhadores com vistas à criação do seu futuro mo
vimento unitário
mundial. A apreensão da particularidade do desenvolvimento dos vários
pov
os é questão teórica central para Marx, pois vital para se pensar o
futuro desse mo
vimento.
O esquecimento e abandono posterior desta, não poderiam
deixar de ter consequências fatais. Ao lado dela, esqueceu-se também
da centralidade do projeto de criação do mo
vimento de emancipação
dos trabalhadores. Este duplo esquecimento, então, é denitivamente o
Himalaia até agora intransponív
el para este movimento
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
345
Após a transformação do modelo bipolar alemão em forma
universal do mo
vimento, ou seja, P
artido social democrático e sindicatos
- posteriormente uma tríade, com a adição do partido comunista -, já
enterrada a ideia e teoria, porque não, da emancipação dos trabalhadores,
o legado de Marx entrou em franca decadência.
A Revolução R
ussa e sua transição pós Lenin, ao forjar o nov
o
catecismo mundial do materialismo de Marx em sua versão so
viética, como
teoria marxista-leninista, ao transmutar-se em forma teórica e prática de
continuidade da obra de Marx e, sendo aquela rev
olução considerada
modelo mundial de revolução socialista, alter
ou de vez o legado desse autor
no que tange a estas questões, até que o m da URSS nos permite, hoje,
tratarmos desse assunto sem sermos tachados de contrarrevolucionários.
O capital enm realizou sua contrarr
evolução e, ironicamente, pelas mãos
dos mais éis defensores da or
dem socialista.
2.
A
trAnsiçã
o
Ao
coMunisMo
se
trAnsMut
A
eM
trAnsição
Ao
sociAlisMo
.
l
enin
e
A
teoriA
DA
trAnsição
A
o
sociAlisMo
.
2.1
A
.
L
. M
L
:
M. L
O E
st
adO
E
a
rEvOl
uçã
O
.
Ao longo de sua obra
O estado e a r
evolução
, escrita em outubro de
1917, Lenin formulará os marcos teóricos que deveriam nortear o processo
da futura revolução russa. C
uriosamente, a experiência da Comuna,
fundamento histórico para a formulação teórica de Marx (para além da
A
Guerr
a Civil na Fr
ança
, de 1871) na sua
Crítica do P
rogr
ama de G
otha,
não
salientará, ali, dois traços essenciais para a transição comunista: o
controle
político direto
da comuna sobr
e a reprodução social no ex
ercício da ditadura
do proletariado, assim como a propriedade
dir
eta
dos meios de produção
por parte dos trabalhadores, através da Comuna.
T
ampouco, “
o período
de transformação revolucionária do primeir
o (sociedade capitalista) no
segundo (sociedade comunista) ” receberá de M
arx o nome de
socialismo
.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
346
O período indicado por Marx é nada mais que expressão
temporal de um processo de transformação rev
olucionaria de uma forma
social capitalista em seu contrário, o comunismo. P
ois se estamos a falar
de transformação revolucionária, não poderíamos designar uma especíca
formação social intermediária, dado se estar demolindo sistematicamente
o complexo de relações sociais do capital cujos r
esultados sucessivos, ou
seja, o processo de suas transformações sucessivas fundaria o império das
necessidades humanas.
Do mesmo modo, o agente social ativo e central dessa
transformação seriam as
novas for
ças produtivas anti-capital
, a classe
trabalhadora no exercício de sua ditadura. D
esse modo, o período de
transição seria o da destruição sistemática do império das necessidades
unilaterais do capital e simultânea universalização das necessidades das
maiorias trabalhadoras.
O esforço de Lenin em converter a fase histórica enunciada por
Marx em forma social “
comumente chamada de socialismo e para Marx
denominada primeira etapa do comunismo
” (LENIN, 1978) em vários
momentos ao longo do quinto capítulo, pretende formalmente adequar
o conceito de Marx ao seu uso corriqueiro entr
e os socialdemocratas, os
socialistas de então; esforço em sentido contrário ao de Marx, em luta
contra as teorias corriqueiras entre os socialdemocratas alemães, em torno
do socialismo de Estado.
P
ara M
arx, depois da Comuna de P
aris, havia que armar
teoricamente a experiência histórica do comunismo dos proletários
franceses, que dera vida ao esboço traçado no Manifesto Comunista de
1848. O que impressiona ao longo desse capítulo e, em geral nos escritos
dessa fase, em Lenin, é a inexistência de concepção de medidas organizativas
necessárias para a expansão do campo da emancipação dos trabalhadores,
para ampliar o campo de sua liberdade de modo a propiciar o trânsito da
emancipação dos trabalhadores pelos próprios trabalhador
es (para além
da necessária supressão do analfabetismo e do ex
ercício do poder armado
contra a contrarrevolução).
O acento se dará no fomento do cálculo, do controle e da discipli
-
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
347
na, especialmente a do trabalho. P
or m, já no trabalho
T
arefas imediatas
do poder soviético
,
de abril de 1918, se agrega às tar
efas imediatas do po
-
der dos trabalhadores, submeter obrigatoriamente a classe trabalhadora à
cienticidade do e par
a o capital
concebida por
T
aylor
. Ao invés de ampliar
permanentemente o campo da liberdade dos trabalhador
es, o que se pro
-
põe como salto qualitativo é o de
submeter-se voluntariamente à degr
adação
taylorista do tr
abalho assalariado
(BRA
VERMAN, 1981).
1
Colocado sobre os ombros da for
ça de trabalho um fardo
tão poderoso, é explicável que a etapa socialista sob o capital tenha se
perpetuado e revertido, realizando os pior
es desejos da contrarrevolução e
negando as premissas da crítica do próprio Lenin (LENIN, 1978).
2
Lenin sabe ou pressente que a R
evolução Russa não se medirá
pela experiência revolucionária do pr
oletariado francês. N
o país de
T
olstói,
Dostoievski e Gogol, podemos inferir
, para ele ainda não surgira uma classe
trabalhadora como categoria do nível francês ou mesmo alemã. A sorte
da revolução r
epousaria em grande medida nos atributos da vanguarda
revolucionária comunista, na qualidade da sua apr
eensão teórica (na qual,
evidentemente, Lenin seria peça central), na sua rapidez e capacidade
de disseminação pela vasta Rússia, na inteligência e organização de sua
práxis revolucionária, em seu her
oísmo na luta pacíca e militar
. Nenhum
outro segmento rev
olucionário, naquele momento, possuía tais atributos.
Quando, enm, se impôs a situação rev
olucionária e foi obrigatório agir
com ímpeto e audácia, viu-se que os bolcheviques eram insuperáveis.
Isto em nada justica a posterior liquidação sistemática de
todas as demais organizações revolucionárias. É certo que a urgência e
a qualidade da ação política exigida, não obtinham resposta à altura de
V
ejamos o que nos diz Braverman (1981, p. 46): “
À primeira vista, a organização do trabalho de acordo com
tarefas simplicadas, concebido e controlado em outro lugar
, exerce claramente um efeito degradador sobre a
capacidade técnica do trabalhador
. ”
“É importante se esclarecer como é innitamente mentirosa a suposição burguesa corriqueira de que o
socialismo seja algo morto, estagnado, dado de uma vez para sempre, quando de fato somente com o socialismo
se inicia um rápido, real e verdadeiramente massiv
o - com a participação da maioria da população e depois de
toda a população -, e atuante movimento para frente em todos os campos da vida social e pessoal. ” (LENIN,
1977, p. 31).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
348
todas elas. Contudo, daí a serem contrarrev
olucionárias há uma tremenda
distância. O certo é que a ala jacobina da revolução eram os bolcheviques
e, esta jamais esteve disposta a compartilhar o poder
.
Oizerman chama a nossa atenção para a necessidade de se estudar
a presença teórica de S
orel nas concepções de Lenin no que concerne ao
papel do terror e suas funções na rev
olução (OIZERMAN, 2005). Ele
(o terror) poderia haver substituído a ausência da classe trabalhadora
enquanto força autônoma realmente r
eitora, o que, de fato, ocorreu.
N
o entanto, esse tipo de repr
essão era força social impossível
de ser desmontada nas condições russas. F
oi desse modo que o terror
amplo, geral, sistemático, irrestrito e permanente viria também a bloquear
a transição comunista, caso esta estivesse teoricamente consolidada na
teoria da Revolução R
ussa. Esse tipo de terror
, tal como a universalização
do taylorismo como método capitalista de aceleração da produtividade
do trabalho, nada tem a ver com a emancipação dos trabalhadores pelos
próprios trabalhadores (embora no imaginário popular a Comuna fosse
símbolo de chegada do processo da rev
olução, como nos fala a canção
revolucionária).
Marx, na
C
rítica ao P
rogr
ama de G
otha
, critica duramente a
concepção alemã do
socialismo de Estado
e arma existir somente à fr
ente da
revolução a transição comunista e nenhuma etapa especíca pr
eviamente
estabelecida, a não ser o período de transição revolucionária do capitalismo
no comunismo. A operação de transmutação da armação de M
arx na
teoria dos alemães é franco desao à crítica de Marx.
2.2
U
. O
T
. A
t
arEf
as
imEdia
t
as
dO
P
OdEr
s
O
viéticO
.
O trabalho de Lenin,
T
arefas imediatas do P
oder Soviético
, enuncia
uma teoria da transição ao socialismo que nos coloca diante de questões
irresolvíveis na perspectiv
a da teoria da transição ao comunismo de Marx. A
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
349
opção por privilegiar a criação de forças produtivas para o capital, deriv
ada
da necessidade imperiosa de aumentar a produtividade do trabalho por
meio da universalização do sistema de
T
aylor
, em detrimento daquelas
necessárias para a transição comunista, coloca o destino da Revolução R
ussa
sob o império do bloqueio de sua força transitiva operado pelo capital.
A tese da supremacia qualitativa do trabalho assalariado pr
odutivo
convertido em autômato mercantil por via da universalização do sistema
de
T
aylor implica em desqualicação teórica e prática do trabalho como
expressão voluntária, consciente, coletiv
a e organizada da produção
material e dos trabalhadores em geral, ou seja, em elogio da primazia da
alienação do trabalho sobre o trabalho emancipado
.
Ora, todo o esforço teórico de M
arx na crítica ao capital tem
como contrapartida e sentido na necessidade de superá-lo por meio da
criação de nov
as forças produtivas, cuja existência estaria em transformar o
mundo da produção e da ação humana, em geral, em meio de subordiná-
los às necessidades humanas, inverter a alienação à qual estão submetidas
estas forças produtivas e criadoras da humanidade.
E para que isso pudesse
ocorrer
, era necessário que as forças do capital estivessem de tal forma
subordinadas aos ditames das necessidades humanas, das maiorias, que
fossem assim natural e denitivamente destruídas.
O poder político dos trabalhadores, conquistado através da
revolução se r
ealizaria através da evolução na sociedade da propriedade
direta dos meios de produção, único meio pelo qual esse poder político
da democracia proletária, ou seja, sua ditadura, estaria em condições de
subverter as relações de pr
odução e liquidar o Estado que as mantém sob
a ditadura do capital.
Ainda mais: poder-se-ia então pensar que, para Lenin, seria
impossível transitar ao comunismo sem passar pela moenda do capital,
pressuposto educativo questionáv
el para o alcance da liberdade: antes
o inferno e, depois, o paraíso, de modo que deus escreveria certo por
linhas tortas.
Some-se a isso, como exigência prática supostamente irr
ecusável,
o fato de ser “
o homem r
usso (um) mau trabalhador
, comparado aos países
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
350
mais avançados
” (LENIN, 1977). De onde se depreende que a garapa
energética extraída da mercadoria, capacidade de trabalho através do mais
rígido e ditatorial controle do trabalho assalariado pelo capital, o sistema
de
T
aylor
, seja resultado do processo educativ
o com vistas à emancipação
dos trabalhadores. “Quién te quier
e te aporrea
”, diz o ditado espanhol, a
expressar cruamente, de modo popular
, os fundamentos do amor camponês.
Dito de outro modo, para Lenin, por mais parado
xal que pareça,
a emancipação dos trabalhadores só poderia, então, ser obra da alienação
destes, no que teríamos, portanto, a exigência da alteração do dístico
central da AIT
, a chamada I Internacional criada por M
arx. V
ariante desta
nov
a teoria da emancipação, a emancipação lenineana dos trabalhadores só
poderia ser obra da ditadura do capital. U
m absur
do, é lógico.
Mas não, não estamos falando de uma r
evolução do capital, mas de
uma revolução socialista; não se trata somente de uma
revolução do capital,
como também, e ao mesmo tempo, de uma revolução dos trabalhador
es.
De um lado, eles serão submetidos à extração de seu suco energético por
meio da ditadura do capital à la
T
aylor
, do seu sistema, mas ao mesmo
tempo lhes será entregue nada mais nada menos, que a administração do
estado: “
seis horas de trabalho físico diário para cada cidadão adulto e
quatro horas de trabalho para a administração do estado
” (LENIN, 1977,
p. 90). O
u seja, os escravos do capital dedicar-se-ão simultaneamente à
escravização de si mesmos e ao aperfeiçoamento do órgão de controle sobre
si mesmos, da sua escravidão.
Conviria indagar
, será o mesmo sistema de
T
aylor usado nos
EUA? R
esposta:
O que é negativo no sistema de
T
aylor era o fato de se realizar em
situação da escravidão capitalista e ser um meio de extração, com o
menor salário, de uma duplicada e triplicada quantidade de trabalho
no mesmo número de horas trabalhadas, não contando de modo
algum com a capacidade dos trabalhadores assalariados realizar
em?,
sem dano ao organismo humano, esse número duplicado e triplicado
de horas trabalhadas. À República Socialista S
oviética se põe a tar
efa,
que podemos formular brevemente como sendo a de intr
oduzir o
sistema de
T
aylor e o aumento cientíco americano da produtividade
do trabalho em toda a Rússia, unindo esse sistema com a diminuição
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
351
da jornada de trabalho com o uso dos nov
os métodos de produção e
organização do trabalho sem qualquer dano para a força de trabalho
da população trabalhadora. Ao contrário, a utilização correta pelos
próprios trabalhadores, caso eles sejam sucientemente conscientes do
sistema de
T
aylor oferecerá o método mais verdadeiro para a ulterior
e imensa diminuição da jornada obrigatória de trabalho para toda
a população trabalhadora, oferecerá o meio mais ver
dadeiro que no
período de tempo bem curto, realizar a tarefa capaz de ser enunciada
mais ou menos assim: seis horas de trabalho físico diário para cada
cidadão adulto e quatro horas de trabalho na administração do estado.
(LENIN, 1977, p. 90).
Então camos sabendo que não teríamos na Rússia a aplicação
do sistema de
T
aylor usado sob o capitalismo dos EUA, mas
este mesmo
sistema aclimatado à revolução dos trabalhador
es. S
ubstantivas diferenças,
para Lenin, seria a) não causar dano físico aos trabalhadores, b) ter como
objetivo da redução das horas trabalhadas, c) o que liberaria os escrav
os
do capital para a administração da escravidão do trabalho sovietizada.
O lema conceitual central Marx transformar-se-ia, desse modo, em “
A
emancipação dos trabalhadores será obra coletiva, consciente, v
oluntária e
organizada dos trabalhadores na alienação dos trabalhadores
”. A apreciação
sobre
T
aylor é equivocada.
A revolução dos trabalhador
es avançaria por meio da
universalização do sistema de
T
aylor
, ou seja, da ditadura do capital – ainda
que sovietizada, pois expr
essão da essência desse sistema – sobre o trabalho
produtivo e trabalhador
es em geral, assim como do controle desta ditadura
pelos próprios trabalhadores. D
e outro modo, diria-se que a revolução
política dos trabalhadores se realiza atrav
és da revolução econômica do
capital; o que implicaria armarmos que a transição comunista (jamais
comentada no texto) enquanto transição socialista se opera por via da
ditadura do capital no processo de trabalho e no estado por meio dos
próprios trabalhadores.
Como consequência disso:
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
352
A transição a tal tipo de sistema exigirá muitas novas habilidades e
novas instituições organizacionais. N
ão há dúvida de que tal transição
nos inigirá não poucas diculdades e que a colocação de tal tarefa
causará até mesmo incompreensões e talvez até resistência de alguns
setores entre os pr
óprios trabalhadores. Mas podemos estar conantes
de que os elementos avançados da classe dos trabalhadores entenderão a
necessidade de tal transição e que as condições de terrível desorganização
da economia nacional que agora passaram a ser notadas nas cidades e
aldeias, quando milhões de pessoas retornaram do front, afastadas
[que estavam] da produção e que pela primeira vez viam o grau de
desorganização da economia causada pela guerra, sem dúvida está
criado o solo para a preparação da opinião pública dos trabalhadores
nesse sentido e que a transição que aproximada e exemplarmente aqui
assinalamos será posta como tarefa pratica para todos os elementos
conscientes das classes trabalhadoras que agora estão do lado do P
oder
So
viético. (LENIN, 1977, p
. 90-91).
Em outras palavras, a situação desesperadora da economia
russa, ao exigir opções econômicas e organizacionais imediatas para a sua
superação, será um forte estímulo à aceitação da política da ditadura do
capital - por meio dos métodos de
T
aylor – pelas camadas conscientes dos
trabalhadores russos.
Entretanto, o desesper
o não é um bom conselheiro teórico. Esta
nov
a teoria da transição socialista como obra das excelências produtivas da
ditadura cientíca do capital não se relativiza com a proposta da máxima
universalização possível do sistema de cooperativas até o limite de criar
um sistema nacional abrangente de cooperativas (LENIN, 1977, p
. 109).
Este sistema conformaria, na teoria analisada, ao lado da nacionalização da
terra, das empresas e fábricas, para Lenin, o sistema socialista.
T
al sistema, desse modo, seria uma nova formação social do
capital, a sociedade socialista. Ele, assim teorizado, arma a impossibilidade
teórica e histórica de a nov
a força produtiva potencial emergente com
a revolução política dos trabalhador
es, por via da universalização da
associação voluntária, coletiva, consciente e organizada dos trabalhador
es
se armar na Revolução R
ussa, na qual a força produtiv
a do capital seria
o motor da revolução política dos trabalhador
es. N
ão é de admirar que a
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
353
transição comunista se veja bloqueada e rev
ertida como contrarrevolução
do capital, neoliberal, com o m da URSS.
Compreende-se que ao lado da rev
olução comunista tenha
surgido a necessidade de ser inventada uma rev
olução socialista (jamais
pensada por Marx), uma no
va revolução, um no
vo tipo de sociedade do
capital, incapaz, ao longo do século XX, de transitar ao comunismo.
3 s
íntese
3.1
G:
. A
A relação entre v
anguarda e massa tem forte presença em todas as
autointituladas revoluções socialistas atuais e do século passado, em sentido
qualitativamente distinto daquela observada na Comuna de P
aris. N
esta,
a classe trabalhadora é o agente central da revolução,
na qual as várias
organizações dos trabalhadores estão presentes. Ali a classe trabalhadora
decide salvar a nação da traição perpetrada pela burguesia francesa e as
suas demais aliadas, em primeiro lugar a alemã e seu Estado
. À frente dos
trabalhadores franceses está o proletariado parisiense. E
m certa medida, é
este o papel do proletariado de Cochabamba na rev
olução boliviana, em
sua etapa mais recente, que promo
veu a “
sublevação da água
”.
Em geral, nas rev
oluções socialistas do período indicado, as
vanguardas políticas r
evolucionárias distam enormemente da massa
proletária no que respeita ao nív
el de consciência, organização e experiência
de luta. Este hiato, não somente não é superado como se consolida e se
cristaliza na práxis do socialismo real, espécie de forma universal dessas
experiências.
T
al universalização chama a atenção para a possibilidade de
a teoria do socialismo real nada mais ser que uma
forma ideológica dessas
rev
oluções
, questão que trataremos em momento oportuno.
Dito de outro modo, a práxis
social dessas massas proletárias
não esteve concebida ou então determinada pela crescente expansão
do controle social consciente, voluntário e organizado dos coletivos de
trabalhadores sobre a r
eprodução social vigente nessas rev
oluções. A práxis
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
354
social desses coletivos não exprime a expansão permanente do campo de
sua emancipação, o que vale dizer
, não haver sido superada a alienação,
antes, porém, consolidada e cristalizada (ainda que de modo irr
egular e
diferenciado em cada uma dessas rev
oluções).
Os momentos de cristalização mais evidentes se expressam nos
campos da política e da economia, de modo a travar nessas rev
oluções,
de modo denitivo, o mo
vimento de emancipação dos trabalhadores nas
protegidas fronteiras do capital e da alienação política. Outr
os momentos
da reprodução social estão muito pr
óximos dos respectivos padr
ões
culturais dessas sociedades, de modo a ter-se um variado espectro de
variáveis emancipatórias (também não teorizadas). O
u seja, nos campos
especícos da economia e política, o Estado controlado absolutamente
pela vanguarda
política revolucionária mantém a dinâmica da r
evolução
sob seu rme, unilateral e exclusivo comando
.
De forma que a qualidade rev
olucionária dessa vanguarda se
torna a pedra de toque da dinâmica, ou seja, do futuro dessas rev
oluções.
De modo que os fundamentos da degradação teórica e, consequentemente,
política, dessas revoluções serão uma espécie de código genético de seu
trânsito rumo à sua extinção.
Ao invés da expr
essão do movimento de emancipação dos
trabalhadores realizado pelos pr
óprios trabalhadores, essas rev
oluções se
realizam por via do mo
vimento de emancipação das vanguardas políticas
revolucionárias e seu Estado, pr
ocesso que acaba por exaurir em medida
determinante o potencial do movimento emancipatório dos trabalhador
es,
dando azo, ao contrário, à expansão e fortalecimento das forças sociais do
capital, do movimento de emancipação do capital na sociedade.
N
essas revoluções, ao contrário do que quis faz
er supor a
ideologia marxista-leninista, se estiola a nível dramático o movimento
emancipatório dos trabalhadores, contrabalançado, inevitavelmente, por
contrário movimento de alienação, cujo centr
o é o capital e outras relações
sociais pretéritas, tal como a religião ancestral e popular pr
é-revolucionária
e outras formas ideológicas nov
as ou não.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
355
Entretanto, lá estão na forma ideológica dominante os her
óis da
revolução consolidados e exaltados como sendo o po
vo da nação e da classe
trabalhadora. Exaltação essa que durará até o último estertor da velha
sociedade socialista. Em seguida, logo após o m desta, desaparecerão da
ideologia política os velhos heróis, dando nela guarida à no
va exaltação dos
nov
os heróis do capital, toda a gama de ecazes predador
es da velha ordem
socialista. A ordem socialista cristalizada se despedaçará e dará lugar a uma
mixórdia de no
vas formas ideológicas e seus agentes políticos. O
s antigos
heróis passarão a ser execrados e humilhados, tachados como os causador
es
de todas as reais e supostas desgraças promo
vidas pela or
dem anterior (tal
como vemos nas duas obras de S
vetlana Aleksiévitch,
O m do homem
soviético
(2017a) e
V
ozes
de Tcher
nóbil
(2017b)).
N
os cumpre denunciar a perversão existente na relação entr
e a
vanguarda e a massa, não dirimida mesmo com a expansão dessas v
anguardas
alimentadas com lhos diletos e capazes da classe trabalhadora. À exaltação
e consolidação ideológica dos heróis trabalhadores corr
esponderá em rme
e castradora repressão
sistemática, permanente, massiva e aleatoriamente
distribuída à massa dos trabalhadores, de modo a forjar dois campos
sociais aparentemente contraditórios e incomunicáveis, o dos de bem com
a ordem e o dos r
eprimidos. F
alsa dualidade paralisante. Na ausência de
meios públicos livres para o diálogo entre esses dois campos, forja-se um
gueto da parcela supostamente criminosa. Até que na Glasnost
a verdade
foi se instalando simultânea à maçã envenenada do neoliberalismo como
sentido da P
erestroika.
P
ara que serviram, então, os heróis rever
enciados na ideologia
ocial? Eles zeram a r
evolução, lutaram e morreram na G
uerra Civil,
nas duas Guerras M
undiais, nas frentes de luta pela industrialização, pela
abertura de novas fr
onteiras de expansão da nova civilização industrial,
incluída a cósmica, morreram em guerras além-fronteiras para r
eal ou
supostamente apoiar os irmãos heróis de outras pátrias, pereceram de
fome, frio e doenças ao abraçarem a luta sem quartel por um futuro mais
igualitário para todos em tantas partes do mundo, estudaram à luz de velas
e adormeceram de cansaço pouco antes de se levantar para um no
vo dia de
trabalho ou de guerra.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
356
Mas os heróis, na teoria ocial, por mais que ao longo das
décadas se esforçassem e galgassem no
vos patamares de prosperidade
material de sua sociedade, não estão e jamais foram habilitados para o
exercício da pr
opriedade direta dos meios de produção ou da democracia
direta nos coletivos de trabalhador
es. S
upostamente não estariam à altura
de tais funções, havendo tantos intelectuais e trabalhadores de outras ár
eas
especialmente treinados para ex
ercer funções tão sensíveis e delicadas, de
alta conança e condencialidade.
3.2 A ,
Com estas escusas jamais explicitadas, pois talvez demais
escandalosas, bloqueava-se o trânsito ao comunismo, de modo que o poder
econômico e político sempre permaneceu em mãos do Estado e do partido
de vanguarda da r
evolução, cuja ideologia justicadora de tal situação
passou a se chamar marxismo-leninismo.
N
elas, os heróis estavam no poder e a sociedade se abria para um
futuro radioso
. O fato é que o controle sobre o capital estacionara nos limites
históricos pré-estabelecidos do controle estatal sobr
e a reprodução social e
muito especialmente sobre a repr
odução econômica, posta a acumulação
de capital a favor do aumento da produtividade e, consequentemente, do
salário mínimo e médio dos trabalhadores.
Mantida a r
elação capital como reitora desse processo
. A liberdade
das forças produtivas emancipadas elev
aria a produtividade do trabalho?
Estou certo que sim, mas este salto nunca foi tentado. Quando a P
erestroika
trouxe maior grau de liber
dade das forças pr
odutivas, ela não estava concebida
para a emancipação do trabalho. A
o contrário, expandiu rapidamente o
campo da alienação, lançando à miséria um vasto contingente de proletários
e trabalhadores em geral. Desta forma, os her
óis foram expulsos do paraíso
socialista e retornaram à ancestral situação de párias.
A liquidação do controle estatal sobre o capital instalou em
seu lugar o controle capitalista sobre essa r
elação. A P
erestroika ansiava
pela maior liberdade para o capital poder elevar sua taxa de exploração,
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
357
compreendida esta como ferramenta vital para a acumulação e incremento
da produtividade sem a mediação estatal inibidora dos apetites animais
do capital. O socialismo real r
evelou-se um poderoso caldo de cultura
capitalista contra suas supostas veleidades comunistas programáticas.
Embora a luta política em torno da maior efetividade dos
investimentos de capital corresse solta ao longo dos anos 1960 em diante,
até a P
erestroika, estava vedada como her
esia e destinada à repressão
sistemática o debate sobre a transição comunista (FEDORENK
O, 1976;
K
OSL
OV
, 1977; KR
ONR
OD, 1976).
Debater sobre a necessidade de ampliar a pr
odutividade dos
investimentos estava pr
esente na ideologia da economia política do
socialismo real e a crítica materialista à la M
arx dessa ideologia estava, de
fato, vedada. De forma que as portas estiveram sempre abertas à crítica
pró-capitalista da ideologia ocial (sem que isso se apresentasse de modo
explícito); fato conducente ao surgimento de próceres neoliberais em todos
os centros acadêmicos so
viéticos, em especial nos seus polos supostamente
mais avançados, como é o caso, por exemplo, da U
niversidade de Moscou
e de N
ov
ossibirki.
A operação de transmutação e hipostasia do materialismo de Marx
pela ideologia da economia política do Socialismo R
eal instalou a per
versão
no plano teórico-prático da revolução
. Ora, se essa ideologia é posta como
a única e real ideologia da rev
olução, continuadora do legado de Marx e
transformada em religião de Estado, sua contestação desde o campo M
arx
era, pois, automaticamente uma heresia contrarrev
olucionária. Ela só
admitia uma crítica em seus próprios termos enquanto ideologia do capital,
ou seja, uma crítica pró-capital e, consequentemente, pró-capitalismo
. A
perversão está em que o pró-capitalismo está posto como se fosse pró-
socialismo (e em última análise, no sentido pró-comunista!). De forma
que os algozes do comunismo surgem e se rmam na cena histórica como
paladinos da liberdade dos trabalhador
es e do povo so
viético
.
De forma que a liberdade de crítica ao ser posta no campo da
Economia P
olítica do Socialismo veda automaticamente a Crítica da
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
358
Economia P
olítica. O Socialismo Real não ultrapassa este limite ideológico,
ou seja, do capital.
Os heróis trabalhador
es eram provisórios, assim como tudo o que
zeram eles durante a rev
olução. Assim que o capital passou ao controle
pleno da reprodução social, e o fez com surpr
eendente rapidez, os heróis
foram destronados.
T
al como ocorreu nas sociedades absolutistas, quando o
capital era ao mesmo tempo estimulado e contido nos seus limites feudais.
A perda do controle sobr
e ele faz desmoronar todo o seu edifício social.
3.3 R
R
R
A reversão bur
ocrática da Revolução R
ussa ocorrerá basicamente
por duas razões. U
ma e central, é a permanência do capital sob contenção
legal estatal. A partir dessa premissa, a forma estatal de seu controle pode
se repetir na experiência secular russa tzarista.
Outra, o hiato teórico do abandono da teoria da transição
comunista de Marx deixou a R
evolução Russa sem pr
odução teórica
pretérita capaz de inuenciar as lutas pelo comunismo, subsequentes à
tomada do poder político. O
s últimos escritos de Lenin, muito preocupado
com a maré montante burocrática já não possuía forma teórica capaz de
contê-la e induzi-la a tomar outro caminho
.
T
odo o esforço de Lenin para
operar a transmutação da teoria da transição comunista de Marx nos marcos
daqueles que viriam a ser os fundamentos do socialismo de Estado russo ao
modo alemão já não podia ser desfeito ou teoricamente contestado.
É o capital, a força social que mobiliza o passado e o faz vestir o
nov
o, em nosso caso a revolução pró-comunismo
. N
ão que o passado não
assedie permanentemente o presente, seja ele qual for
, e o faça vestir seus
velhos trajes em um ponto ou outro da r
eprodução social.
Ao contrário do que supõe, e pontica em surdina a teoria do
socialismo real e seus sábios, o que permite o assalto do passado ao no
vo
e orescente presente das r
evoluções proletárias é a armadura do capital
defendida pela fortaleza estatal governada pelo partido.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
359
Essa armadura a conduzirá inevitavelmente à contrarrev
olução
capitalista neoliberal assim que as forças vitais da rev
olução proletária
fraquejem, espoliadas e torturadas pelas provações às quais são submetidas
em nome de suas reais e únicas ver
dades.
Anal, que raios de socialismo foi esse onde os artistas não podem
usufruir livremente de seus dons criativos, os trabalhadores não podem
decidir livremente sobr
e o que, como e para quem produzir
, o cidadão
comum não pode usufruir com segurança as leis do código civil? Que
socialismo é esse onde a emancipação não é expressão da vida social das
maiorias trabalhadoras, sendo exclusiva pr
opriedade dos funcionários de
Estado e, dentre estes, somente os mais graduados? Este socialismo seria
uma variante do socialismo de Estado alemão, transgurado no caldo
de cultura da Rússia r
evolucionária, evoluído até sua máxima expressão
teórica, o socialismo real, o socialismo de Estado so
viético, a ditadura do
capital sovieticamente socializado
.
O socialismo real é uma fábrica de alienação dos produtor
es,
da produção e repr
odução da vida social. N
ele, o artista não pode ser
plenamente artista, o cientista plenamente cientista, o cidadão plenamente
cidadão, o proletário, isto é, a força de trabalho plenamente for
ça de
trabalho. A r
eprodução social está obrigada a seguir a ditadura ideológica
dos funcionários do Estado e partido, de sua práxis.
O socialismo real não é her
deiro do comunismo de Marx, do
sentido revolucionário de sua r
evolução teórica, da possibilidade de uma
práxis social emancipatória. O projeto emancipatório concebido por Marx
e entrevisto na curta vida da Comuna de P
aris pressupõe certa forma de
poder político de uma determinada classe social, a comandar a produção
material e liberadora da produção intelectual e criadora em geral, sob a
forma de ditadura revolucionária (e até democrática) dos trabalhador
es a
exercer dir
etamente a propriedade dos meios de produção
.
T
al como reza o
preâmbulo dos estatutos da AIT de 1871, “
a emancipação dos trabalhadores
somente poderá ser obra dos próprios trabalhadores
”.
Decorre daí que, a função vital e fundamental do comunismo
de Marx e seu partido seja a luta pela unicação das forças do trabalho
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
360
em um movimento para a sua emancipação
. P
ar
tidos e sindicatos dos
trabalhadores sob a inuência ou direção dos comunistas, para M
arx,
tem a missão central, vital, de serem instâncias batalhadoras e partícipes
do movimento de emancipação
. A unidade política dos trabalhadores
sob a forma de movimento, a congr
egar a sua inevitável, natural e ampla
diversidade é o meio insubstituível para a emancipação destes. Os partidos,
sindicatos e muito menos os Estados das revoluções pr
oletárias estão
predestinados a ser
em as ferramentas exclusivas e centrais da emancipação
dos trabalhadores.
Em grande medida, o abandono e o esquecimento da teoria da
transição comunista de Marx, como obra dos próprios trabalhador
es,
conuem para o fracasso das revoluções socialistas do século XX. A
criação do estado bizantino-soviético foi a negação da possibilidade da
emancipação dos trabalhadores, emparedados por
sua teocracia leiga
(HOBSBA
WN, 1996).
Ao que nos parece, a urgência absorveu a crítica e a necessidade da
liberdade (mesmo aquela nos limites do capital). Às no
vas forças pr
odutivas
se exige alta disciplina, empenho e subordinação plena à per
da de liberdade
para o capital. É o mesmo que dizer serem os trabalhador
es livres para lutar
contra todos os seus piores inimigos, morr
er nas guerras, sacricar-se ao
máximo, mas simultaneamente exigir-se deles serem disciplinados soldados
de seu pior inimigo, o capital, administrado pelo Estado, o partido e seus
gerentes tayloristas.
De modo que, estes fundamentos da economia política do
socialismo real permanecerão inalterados até o m da URSS. A força de
trabalho não somente não é livre para transformar-se em força pr
odutiva
do comunismo como tampouco lhe é permitido enfrentar o capital como
o seu outro
.
É evidente não estarmos diante de um lapso, mas de uma posição.
E sempre assim será desde que a Comuna não fale por si mesma. A Comuna
de P
aris não r
ealizou as decisões de alguém. Ela pensou e agiu enquanto
representante de uma classe, falou por si pr
ópria, com voz própria.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
361
Em última instância, esta questão será resolvida pela pr
ópria
história e, é claro, para além de nossas elucubrações teóricas. N
o entanto,
desde o campo da conuência da história com a história das ideias, temos
um compromisso particular com a teoria, desde o materialismo de Marx.
O trabalho teórico a se produzir sobre a emancipação (e livr
emente)
está balizado por dois movimentos autônomos inter
dependentes: o diálogo
com a história e outros pensadores a partir da leitura de Marx (história das
durações médias e longas, para nos apropriarmos de conceitos de Braudel)
– aquilo que Lucien Sèv
e denomina
pensar com Marx
– e o diálogo com
a história do tempo presente (NOIRIEL, 1988). U
ma práxis que exige, é
óbvio, plena liberdade de ação à pr
odução teórica. Infelizmente, nenhuma
dessas duas condições foi estimulada pela teoria do socialismo real, com
danos evidentes e irreversív
eis para a história mundial da emancipação dos
trabalhadores.
Do ponto de vista da teoria, a experiência do socialismo r
eal
é bastante rica e explícita. A economia política do socialismo real se
reproduziu em todos os países onde ocorr
eram revoluções popular
es e
proletárias que se declararam socialistas, mesmo naqueles que ousaram
escapar às suas determinações (Cuba e I
ugoslávia, por exemplo).
E digamos francamente, ao invés de uma transição comunista
– cuja teoria hoje se encontra esquecida, tivemos a experiência de criação
de uma nov
a sociedade do capital, a qual, em dado momento, devido à
falência das forças do comunismo de Marx, transitaram sim, ao capitalismo
propriamente dito
.
Assim os super-heróis do socialismo real, os trabalhador
es, serão
derrotados e transformados em super-párias desse no
vo capitalismo.
O século XX foi, sem dúvida, o século da transição ao socialismo
e da transição desse socialismo ao capitalismo com uma regularidade
admirável. U
ma transição inimagináv
el. Seria mesmo?
Quando cheguei a M
oscou em 1969, escandalizei-me com uma
piada que corria na sociedade soviética. P
erguntava-se à Radio Ierev
an
(capital da Armênia, uma espécie de I
tu soviética, onde tudo é maior
,
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
362
melhor e mais inteligente): “O que é o socialismo? Resposta: O socialismo
é o caminho mais longo ao capitalismo. ”
O pov
o soviético já havia matado a charada do socialismo r
eal.
4 e
nt
ão
,
o
q
ue
é
o
hoMeM
soviétic
o
no
sociAlisMo
reAl
?
T
rata-se de um homem para a revolução e não a rev
olução para
o homem. Ele é o “
mau trabalhador” que teria que percorr
er a estrada do
assalariamento na revolução socialista após hav
er passado pelo corretivo do
taylorismo.
T
al exigência impõe um sistema de controle de seu desempenho
no incremento e manutenção de sua produtividade, ou seja, na pr
odução
do valor
.
P
or mais que ele tenha, individual e coletivamente, se
desempenhado à altura das exigências produtivas durante 74 anos de
existência da URSS, não conseguiu se realizar como classe em pleno
exercício de sua emancipação política.
De fato, não lhe foi permitido alçar-se à plenitude da emancipação
política. Ele serviu à Revolução R
ussa e às revoluções assemelhadas. A
o
tentar optar pela transição à emancipação política, os trabalhadores das
outras revoluções foram univ
ersalmente e duramente reprimidos.
5
A
guerrA
iDeológicA
cAMuflADA
e
o
trânsit
o
De
uMA
forMA
ção
sociAl
A
outrA
P
odemos concluir que os trabalhadores soviéticos eram uma
tropa a serviço da Revolução Russa, de seus objetiv
os estratégicos. Como
tropa, não lhe era permitido comandar a transição para além do socialismo
real, rumo ao comunismo. E
ra ser
va da r
evolução e do capital.
A P
erestroika se propunha emancipar o capital em troca da
Glasnost: era a conquista da plena emancipação política sob o capital
pela via da eciência microeconômica que inevitavelmente, a seu ver
,
transformaria a eciência social, promo
vendo uma contrarrevolução
neoliberal, contrarrevolução do capital.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
363
Chegava assim ao término, a longa guerra entre o partido da
eciência microeconômica contra o partido da eciência social, entre o
pró-capitalismo e o pró-socialismo, entr
e os gerentes e os planejadores,
entre as teorias gerenciais e a teoria do planejamento socialista. Esta guerra
era a forma teórica histórica do enfrentamento entre a contrarr
evolução
capitalista e a Revolução R
ussa do socialismo real. Até que a contrarr
evolução
capitalista uma após outra, conquista postos chave na hierarquia do Estado
e do partido e abraça abertamente o neoliberalismo e a transição capitalista
deslanchará em conluio direto com, e desde o centro do poder do Estado
e partido, por sua vez coligado às instâncias norte-americanas, dominantes
do capital (BESCHLOSS, 1994).
Diz M
enshiko
v (GALBRAITH, 1988), que o projeto de
Gorbachio
v realizaria uma rev
olução. Armação, no mínimo, problemática,
pois o próprio socialismo real, sendo uma formação especíca, ao transitar
a uma nov
a sociedade socialista (armação daquele autor) sob a forma de
uma revolução indicaria de duas uma: no
va forma histórica de socialismo,
uma nov
a formação socialista radicalmente distinta do socialismo real, ou
um retorno (negado explicitamente) ao capitalismo
.
A primeira hipótese é quase impensável, dado estarmos diante da
transição de uma sociedade sob controle social estatal do capital a outra,
do controle social do capital sobre a r
eprodução social. O fato de não
haver propriedade privada individual nessa no
va sociedade, somente nos
diz sobre o caráter do capital e não sobre a for
ça social regente da no
va
sociedade. Esta, então, seria mesmo capitalista, na qual se ofereceria à
classe operária a possibilidade de vir a alcançar a sua emancipação política
através da Glasnost.
A revolução concebida por G
orbachiov
, no dizer de M
enshikov
,
não seria outra que não fosse uma contrarrevolução, uma r
estauração
capitalista, como de fato ocorreu
3
. A noção de socialismo cara tão elástica
“Elas são chamadas reformas, mas como eu já armei, podemos considera-las uma r
evolução. N
ão são
mudanças corriqueiras na organização econômica da nova sociedade, são, pelo contrário, mudanças profundas
e abrangentes. São equivalentes a uma súbita transformação rev
olucionária. Sua principal nalidade é libertar
a economia da opressão e do domínio da burocracia e também eliminar a economia paralela e os diferentes
tipos de corrupção e mercados negros. Assim sendo elas escancaram as portas à iniciativa pessoal e coletiva,
associando-as às vantagens de um planejamento centralizado
” (GALBRAITH, 1988, p
. 41).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
364
que a expansão do controle do capital sobre a r
eprodução social proposta
por ele em etapa tão mais avançada da evolução econômica da sociedade
soviética (anal já estáv
amos em 1988, há 71 anos de 1917!), no seu
entender
, poderia evitar o capitalismo.
Destituir o controle do partido comunista e do Estado sobre a
economia (e a sociedade, é evidente) para se transitar a tal no
va sociedade
seria, de fato, uma revolução, que só não seria capitalista caso se transitasse
ao comunismo, ou seja, à expansão do controle social dos trabalhadores
sobre a repr
odução social, fato jamais mencionado por M
enshikov em seu
diálogo com Galbraith.
O personagem central dessa transição, contudo, seriam as
“
autoridades centrais
” emergentes daquela rev
olução e a revolução pelo alto
dessas nov
as autoridades, de fato, por sua vez, ao se apoiar no “
mercado
”,
nas forças sociais aderentes a esse pr
ojeto, só poderiam mesmo restaurar
o capitalismo!
4
N
ão havia três alternativas, como queria M
enshiko
v
, mas
simplesmente duas, a transição capitalista ou a comunista. Seria muito
pertinente se perguntar ao eminente economista soviético, apro
veitando
suas divagações rev
olucionárias, sobre as razões pelas quais a transição ao
comunismo deixou de ser um
cr
ash progr
am
, tão elogiado por ele e tão
exitoso nas conquistas da economia e da sociedade soviética
5
.
“O primeiro cenário é baseado no perigo da burocracia sabotar as atuais reformas anti-burocráticas. Este
cenário signicaria a continuação do status quo
” (GALBRAITH, 1988, p.42). “[...] O segundo cenário é
uma possibilidade completamente diferente: seria um socialismo mais inteiramente de mercado
. O que não
signicaria o restabelecimento do sistema capitalista, embora envolvesse uma participação muito mais ampla da
iniciativa privada e do espírito empreendedor privado
. Signicaria, primeiramente, deixar a determinação dos
preços inteiramente para o mercado, como você sugeriu ao discutirmos as r
eformas econômicas. E signicaria
também a introdução de um mercado livre de trabalho
. Haveria maior exibilidade na determinação dos
salários, e o sistema incluiria um mercado exível de crédito e de capital. S
eria, em suma, um socialismo
com a total ausência de um planejamento central” (GALBRAITH, 1988, p. 123-124). “O ter
ceiro cenário
é o que eu poderia chamar de um verdadeiro centralismo democrático
. Isso signicaria uma combinação das
melhores características do planejamento central com as melhores e menos nocivas características do mer
cado,
fazendo o melhor uso de todas elas
” (GALBRAITH, 1988, p. 126). “E
u gostaria de resumir e dizer que existem
muitos setores da microeconomia em que o socialismo precisa apr
ender
, e depressa, com o capitalismo – com
a iniciativa privada, com o mercado
. Se conseguirmos isso, então, combinando os aspectos menos nocivos do
mercado e da iniciativa privada com as vantagens aos níveis social e macr
oeconômico inerentes a um sistema
planejado, nós talvez nos saiamos melhor que o capitalismo. Este é o cenário que eu prer
o para a sociedade
socialista
” (GALBRAITH, 1988, p. 134). “O que eu estou sugerindo que irá acontecer na União S
oviética é que
as autoridades econômicas centrais terão a responsabilidade de organizarem as empresas de modo mais eciente
”
(GALBRAITH, 1988, p. 130).
“[...] a U
nião Soviética, tecnologicamente atrasada em vários outr
os aspectos, foi extremamente avançada
tecnologicamente naqueles setores especícos em que conseguiu se organizar em crash groups e crash programs
”
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
365
6 o
fiM
DA
urss.
A
oPerA
ção
finAl
Então uma longa e ardilosa operação política sob o comando da
K
GB colocará Gorbachev no centr
o do poder por meio da criação deliberada
do caos social. Desfaz-se, assim, o complexo dos desesperados, o Estado,
o partido e a classe trabalhadora. N
aufragado no tsunami capitalista. O
trem do socialismo real chegara à sua última estação, bem distante da
estação F
inlândia. As três corr
entes ideológicas do pós socialismo real: a
da desgraça mítica da mãe Rússia, a dos lhos da grande pátria de S
tálin
e a dos órfãos do comunismo, todas elas representadas por seus heróis
humilhados e ofendidos, iniciam seu grande e imprevisível trânsito a um
nov
o futuro.
r
eferênciAs
ALEKSIÉVIT
CH, S
vetlana.
O m do homem soviético
.
São P
aulo: Cia das Letras, 2017a.
ALEKSIÉVIT
CH, S
vetlana.
V
ozes
de Tchernóbil.
São P
aulo: Cia das Letras, 2017b
.
BESCHLOSS, Michael R.; STR
OBE,
T
albott.
At the Highest Levels:
the inside story of
the end of the cold war
. NY
: P
aperback, Mar
. 1994.
BRA
VERMAN, Harr
y
.
T
rabalho e capital monopolista
: a degradação do trabalho no
século XX. Rio de J
aneiro: Zahar
, 1981.
FEDORENK
O, N. P
. (org.).
Stanovlenie i r
azvitie ekonomitcheskoi nauki v SSSR
.
Moskv
a: N
auka, 1976.
GALBRAITH, J
ohn Kenneth; MENSHIK
O
V
, S
erguei.
Capitalismo, comunismo,
coexistência:
de um passado amargo a esperanças melhores. São P
aulo: Pioneira, 1988.
HOBSBA
WN, Eric.
e age of extremes
: a history of the world, 1914-1991. N
ew Y
ork:
Vintage books, 1996.
K
OSLO
V
, G. (org.).
Economia P
olítica. Socialismo
. M
oscú: P
rogreso, 1977.
KR
ONR
OD, Iako
v; ZAK
ON, Abramo
vitch. S
toimosti i sotsialistitcheskaia eknomika
.
Moskv
a: N
auka, 1976.
LENIN, Vladimir Ulianov
.
Gossudarstvo i r
evoliutsia
. M
oskva: IPL, 1978.
LENIN, Vladimir Ulianov
.
Otcherednie zadatchi so
vietskoi vlasti
. Moskv
a: IPL, 1977.
MARX, Karl.
Kritika Gotskoi P
rogr
ammi.
M
oskva: IPL, 1975.
(GALBRAITH, 1988, p. 133).
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
366
NOIRIEL,
Gér
ard Qu
’est-ce que l’histoir
e contempor
aine
? P
aris: Hachette, 1988.
OIZERMAN, T
eodor
Ilitch.
Opravdanie r
evisionism.
M
oskva: Kanon, 2005.
SÈVE, Lucien. P
r
efácio.
In
: LIMA FILHO, P
aulo Alves; NOV
AES, Henrique
T
ahan;
MACEDO, Rogerio F
ernandes.
Movimentos Sociais e C
rises Contempor
âneas à luz dos
clássicos do materialismo crítico.
U
berlândia: N
avegando, 2017. p. 7-11.
367
A
:
Ramón P
eña Castr
o
P
or que desabou a URSS? As causas dessa desintegração são
múltiplas e ultrapassam os objetivos desta brev
e inter
venção limitada a
salientar três momentos que achamos fundamentais para inicio de reexão:
1) Os fatos que marcaram a dissolução da U
nião Soviética; 2) As causas
determinantes: a degeneração burocrática do Estado/P
ar
tido e a correlata
corrosão da vida político-social e; 3) As principais consequências históricas
(geopolíticas e sociais) da desaparição do Estado So
viético.
i
A desintegração da U
nião S
oviética foi conchavada em 8 de
dezembro de 1991 no encontro secr
eto de três conspirador
es: Boris Y
eltsin,
Leonid Kravchuk e S
tanislav Shuskievich (pr
esidentes, respectivamente,
da Rússia, U
crânia e B
ielorrússia). Encontro realizado em Bielo
vezh,
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
368
em um albergue de caça da oresta bielorrussa, (Belavezhkaia P
uchka),
lugar
, curiosamente, próximo da fronteira polonesa. P
or
tanto, ideal para
a eventualidade de ter que fugir
, caso de fracassar a intentona golpista. A
pro
va cabal de que isso foi um golpe de Estado é o fato notório de que oito
meses antes, mais de 80% dos eleitores so
viéticos tinham apro
vado, em um
referendo, a conservação da estrutura estatal da URSS.
O fato central deste cenário é que Boris Y
eltsin, Pr
esidente da
F
ederação R
ussa conquistou o poder máximo (o Kremlin de M
oscou)
a partir do contubérnio de Bielavezha, onde o triunvirato mencionado
lavrou, no maio secreto, o atestado de óbito da URSS, para logo mais (25
de dezembro 1991), ao forçar a demissão do pusilânime Gorbacho
v
. De
jure, a URSS sobreviv
eu até o dia 26 de dezembro de 1991, quando o
So
viete das Repúblicas do S
oviete S
upr
emo da URSS aprov
ou a própria
dissolução e, simbolicamente, mandou arriar a bandeira vermelha da foice
e o martelo.
Esta evocação da ação conspirativa dos sepultador
es da URSS
somente serve de introdução para indagar as causas profundas do seu
colapso. I
gualmente supercial e insatisfatória é a tese assumida pelo atual
P
artido Comunista da F
ederação R
ussa, segundo a qual a URSS teria sido
“
sequestrada e traída
” por um bando de altos burocratas (aparatchiki)
oportunistas, ansiosos por transformar seus cargos burocráticos em poder
oligárquico capitalista.
T
ambém resulta insuciente pr
etender explicar o
colapso da URSS com o fato, amplamente documentado, da atividade
dissolvente das agencias imperialistas que, obviamente, colaboraram
decisivamente para fortalecer as forças internas freneticamente conv
ersas
a religião do mercado, começando pelo ambíguo e pusilânime de
Gorbatcho
v e culminando com seu antagônico sucessor
, o truculento Boris
Y
eltsin, chefe do nov
o governo golpista. G
overno composto por
Y
akloviev
,
Gaidar
, P
opov
, A
ven, S
kokov
, V
asiliev e outros trânsfugas que trocaram um
falso marxismo catequético pelo ultraliberalismo mais radical do modelo
pinochetista chileno, promo
vido por uma equipe especial de assessores do
H
ar
var
d I
nstitute for I
nternational Development
(nanciada pela USAID
com patrocínio do Departamento de Estado dos EUA) e cheada pelo
conhecido “
transiçãotólogo
” Jer
ey Sachs.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
369
O que precisa de explicação são as condições determinantes da
dissolução da URSS, sem omitir as motivações dos autores do colapso
soviético
. Eis o que tentamos esboçar seguidamente.
ii. A
DegenerAçã
o
bur
ocrá
ticA
Do
e
st
ADo
/P
Ar
tiDo
e
A
correlA
t
A
corr
osão
DA
viDA
PolíticA
e
sociAl
A mídia de mercado e certa historiograa preguiçosa, insistem na
reprodução de generalidades e simplicações ideológicas (até teológicas)
tais como: “
o m da URSS foi inevitável” porque seu sistema econômico-
político resultou “irreformáv
el”. Esta é uma conclusão simplicada
e distorce ao extremo uma história de 74 longos anos (1917-1991)
carregados de lutas gloriosas e tragédias horror
osas. P
ara começar: “
foi a
primeira revolução subjetiv
amente preparada na historia da humanidade
”
(LOUÇÂ, 2017); enfr
entou uma guerra de classes (chamada “
guerra civil”
entre 1918-1921) que segou mais de cinco milhões de vidas humanas (cifra
superior as perdas ocasionadas pela P
rimeira Guerra M
undial); passou pelo
“
comunismo de guerra
” que implicava consco forçado de boa parte da
produção dos camponeses, como recurso extr
emo para manter vivos - com
um racionamento misérrimo - a população urbana e ao Exér
cito V
ermelho,
que derrotou a coligação reacionária de inimigos internos e externos. S
egue
a N
ov
a P
olítica Econômica (NEP), 1921 a 1928, ou restauração parcial
da produção mercantil privada, para iniciar
, logo mais, a “
coletivização
forçada da agricultura
”, ou seja, uma “
acumulação primitiva
” base da
correlata “industrialização acelerada em grande escala
”, impiedosamente
comandada por S
tálin (1928-1953). Esse é um período ambivalente, por
incluir a gestação do stalinismo, um poder vertical, despótico e criminal,
concomitante com uma massiva participação popular na militarização da
economia e da sociedade em armas que com o sacrifício de mais de 25
milhões de mortos, salvou ao mundo da peste nazista, aniquilando a poderosa
máquina militar do
T
erceiro Reich Alemão, na Segunda G
uerra M
undial.
Sem parar
, continuará um monumental esforço de acelerada reconstrução
pós-bélica. Em 1953, a morte de S
tálin marca a nov
a fase, denominada
“
degelo
” com a denúncia dos crimes do stalinismo pelo no
vo secretário
do P
artido Comunista da U
nião Soviética (PCUS), N
ikita Khruschov
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
370
(1953-1964). Defenestrado este, mediante um golpe palaciano, inicia-se
o dilatado período (1964-1982), denominado “
estagnação
”, dirigido por
Leonid Br
ezhnev (1964-1982). Logo vem o breve período (1981-1984)
de Y
uri Andropo
v
, comunista competente e honesto, cuja a precária saúde
apenas lhe permitiu iniciar algumas reformas e combates concr
etos contra
a corrupção. P
or último, a fase do Gorvachov (1985-1991), cujas bandeiras
de
“P
er
estroika
” e “G
lasnost”
(R
econstrução e
T
ransparência), acompanhadas
de uma retórica insípida e de caóticas reformas políticas e econômicas. As
reformas de Gorbacho
v implicavam a devolução explícita da autoridade
às repúblicas. O processo de desintegração se radicaliza com a r
enúncia a
intervir nas revoltas, nada ingênuas da Eur
opa Oriental, do mesmo modo
que deixou sem resposta a ofensiv
a antissoviética de Boris
Y
eltsin. N
este
contexto, o colapso das democracias populares (R
epública Democrática
Alemã, H
ungria, Checoslov
áquia, Romênia), paralelo as crescentes tensões
nacionalistas (Geórgia 1989, Lituânia, Letônia e Estônia 1991) minaram
os fundamentos internos até pro
vocar o desabamento de todo o edifício da
chamada URSS.
A causa das causas, tem a ver com algo que tem raízes na gestação
do P
oder stalinista: a divergência crescente entre o discurso pr
etensamente
marxista-leninista e a prática dogmática do Estado/P
artido que nulicou
as capacidades criativas dos indivíduos, a vida social democrática, cuja
diversidade e evolução urbana e o nível cultural, tornaram-se cada v
ez mais
incontroláveis para a pesada máquina burocrática.
N
a sua etapa nal (1985-1991), os interesses da casta ou “
quadro
executivo
” (aparatchiki) foram o principal fator de corrosão política
e espiritual. N
este sentido, pode-se armar que em 1991 tornou-se
inocultável a decomposição (auto desintegração) da casta que até então
monopolizava as cinco funções essências da sociedade: 1) poder político, 2)
controle da propriedade dos meios e r
esultados da produção, 3) aparelhos
ideológicos, 4) aparelhos de direção e 5) normativ
a organizacional.
A linhagem desta casta não deixa de ser relevante:
neta
da
crueldade e do truculento dinamismo do período stalinista (1929/1953)
e
lha
do relaxamento burocrático administrativo que sucedeu a tentativa
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
371
regeneradora de Khruschov
.
T
entativa essa congelada durante a longa fase
de estagnação de Br
exhnev (l964/1987).
N
a primeira etapa degenerativa, a casta permanece agrupada
pelo terror desenfreado que culmina nas grandes “
purgas
” dos anos 1930,
assim como também pelos sacrifícios exigidos pelos Planos Quinquenais e
pela G
rande Guerra P
atriótica (anos 1940). Em conclusão, as ameaças de
morte e a repressão formaram o caldo da cultura da burocracia staliniana.
N
a segunda etapa, pós-S
talin (1954-1985), a coesão da casta estava
baseada nos privilégios materiais da burocracia administrativa. Livr
e das
ameaças de morte podia desfrutar calmamente dos seus privilégios. P
or
ém,
estes privilégios nunca foram um patrimônio completo porque estavam
amarrados ao cargo, não sendo, portanto, hereditários nem transferíveis.
N
ão sendo comparáveis com o das elites transnacionais. O historiador
catalão Rafael P
och de F
eliú (2006), compara a casta dirigente soviética com
a hierarquia eclesiástica. Administrador
es, mas não donos do patrimônio
das Igrejas que, além disso, constituem uma seita não homologáv
el com
a grande oligarquia globalizada do sistema econômico social, chamado
capitalismo transnacional. Contudo, foi nesta segunda etapa de calma
e sossego quando se cristalizou a profecia feita por
T
rotsky em 1936: “
a
burocracia so
viética acabará se transformando em classe proprietária
porque os privilégios só têm a metade do seu valor quando não podem
ser transmitidos por herança aos descendentes; porque é insuciente
ser diretor de uma corporação sem poder ser acionista
”. As reformas
de Gorbacho
v de descentralização política e de liberalização da gestão
econômica inauguraram, involuntariamente, a fase triunfal do processo
degenerativo da casta. F
oram eliminados os obstáculos que impediam à
transformação dos hierarcas so
viéticos em classe proprietária (oligarquia
maosa) homologável com os abutres da grande nança globalizada. A
“
terapia de schock
” que permitiu o “
maior assalto da história
” está bem
documentado no excelente livro de N
aomi Klein (2007, p. 291-324).
Com isto chegamos ao nosso terceiro ponto
.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
372
iii c
onsequênciAs
hist
óricAs
,
PolíticAs
e
sociAis
DA
DesAP
Arição
Do
est
ADo
soviético
P
ara início de conv
ersa, cabe lembrar a frase do notável historiador
britânico Hobsbawn (1995) “[...] o mundo foi moldado pelos efeitos da
Revolução R
ussa de 1917.
”. Em razão disso, hoje devemos acrescentar que
o mundo está marcado pela desaparição da URSS, em três sentidos: 1)
pela ausência de alternativa contraposta ao capitalismo universalizado; 2)
pela ausência de um ponto de apoio para o movimento operário mundial
e; 3) pela ausência de um contrapeso político e militar oposto ao agressiv
o
imperialismo norte-americano.
As consequências sociais podem ser resumidas assim: “N
unca
tantas pessoas perderam tanto em tão pouco tempo sem que um agelo
de fome, sem uma praga ou uma guerra de grandes proporções.
” (KLEIN,
2007, p. 319).
N
o período 1990-1998, mais de 80% das unidades agrícolas
e umas 70 mil fábricas estatais tinham quebrado deixando milhões de
trabalhadores desempregados. S
egundo o “[...] Banco M
undial: 74 milhões
de cidadãos russos sobreviviam abaixo da linha de pobreza (quatro dólar
es
diários), chegando ao pauperismo extremo uma quarta parte (25% ou 37
milhões) da população total. Em 2006 o go
verno russo admitia a existência
de 715.000 crianças abandonadas[...]” , enquanto que “[...] a UNICEF
estimava essa cifra em 3,5 milhões de vítimas
” (KLEIN, 2007, p. 320).
P
ara os patr
ocinadores norte-americanos de Gov
erno Y
eltsin “[...]
o objetivo evidente foi apagar do mapa o Estado preexistente para criar
as condições necessárias para festança capitalista que, por sua vez, serviria
de impulso inicial para uma vibrante democracia de mercado
.
” (KLEIN,
2007, p. 321).
T
ranscorridos 27 anos da dissolução da URSS, quando Bush
proclamou o triunfo imperial na Guerra F
ria contra o comunismo, hoje
Resulta cada vez mais evidente que o grande combate do século XXI,
uma vez superada o medo capitalista do comunismo, consiste em tirar
dos trabalhadores o que lhes restou de dir
eitos conquistados em mais
de dois séculos de lutas sociais e dos camponeses do mundo inteiro a
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
373
propriedade dos bens comuns, especialmente a terra e a água: de 50 a
65% da terra produtiva do mundo hoje cultivada por po
vos originários
e comunidades camponesas, ainda que apenas uma mínima parte dela
seja reconhecida pelos go
vernos como propriedade. (FONT
ANA,
2017, p. 644).
r
eferênciAs
FONT
ANA, Josep
.
El siglo de la r
evoluión
. U
na historia del mundo desde 1914.
Barcelona: Critica, 2017.
HOBSB
W
AN, Eric.
Er
a dos extr
emos
: a breve historia do século XX (1914-1991). S
ão
P
aulo: Cia. das Letras, 1995.
KEERAN, Roger; KENNY
, omas.
O socialismo tra
í
do
. Lisboa: A
vante, 2008.
KLEIN, N
aomi.
La doctrina del shock
: el auge del capitalismo del desastre. Bar
celona:
P
aidos, 2007.
LEWIN, M
oshe.
El siglo so
vieito
: ¿que sucedió realmente en la U
nión S
oviética?
Barcelona: Crítica, 2006.
LOUÇÂ, F
rancisco
.
Algunas her
encias de la Revolución de O
ctubre
. 2017.
D
isponível em:
www
.sinpermiso.info
. Acesso em: 10 maio 2018.
Sobre os A
ut
ores
377
A
nA
P
or
tich
Doutora em F
ilosoa. Professora do D
epartamento de F
ilosoa - UNESP
de Marília
A
nDerson
D
eo
Doutor em Ciências S
ociais. Docente do Departamento de Ciências
P
olíticas e Econômicas e do P
rograma de P
ós-Graduação em Ciências
Sociais da UNESP/M
arília. P
ós-Doutorado na U
niversità Degli S
tudi di
U
rbino “Carlos Bo
”. Líder do Grupo de P
esquisa – N
úcleo de Estudos
de Ontologia Marxiana-T
rabalho, Sociabilidade e Emancipação H
umana
(NEOM/CNPq).
A
ngélicA
l
ov
A
tto
P
rofessora do Departamento de Ciências P
olíticas e Econômicas, e do
P
rograma de P
ós-G
raduação em Ciências Sociais UNESP (Marília).
Coordenadora do G
rupo de P
esquisa “P
ensamento P
olítico B
rasileiro e
Latino-americano
” (CNPq).
D
A
viD
M
Aciel
P
rofessor da F
aculdade de História e do P
rograma de P
ós-graduação em
História da UFG
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
378
f
rAncieli
M
Ar
tins
b
A
tist
A
M
estre em Ciências Sociais pelo P
rograma de P
ós-Graduação em Ciências
Socais da UNESP-campus de M
arília.
g
iAnni
f
resu
Doutor em F
ilosoa. Professor da U
niversidade F
ederal de Uberlândia
(UFU).
g
ior
gio
g
riMAlDi
Docente da U
niversidade de Chieti-P
escara “G. d’Annunzio
”. I
tália.
h
enrique
t
AhAn
n
ov
Aes
Docente da F
aculdade de F
ilosoa e Ciências da UNESP – Marília. P
rofessor
do P
rograma de P
ós G
raduação em Educação – hetanov@gmail.com
J
Air
P
inheir
o
Docente do Departamento de Ciências P
olíticas e Econômicas e do Pr
ograma
de P
ós-Graduação em Ciências S
ocais da UNESP – Campus de Marília.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
379
l
eAnDr
o
g
AlAstri
P
rofessor de Ciência P
olítica da U
nesp/Marília. S
ecretário-geral da
International G
ramsci S
ociety-Brasil (IGS-B) e editor do blog marxismo21.
Autor de G
ramsci, marxismo e revisionismo, Campinas: A
utores
Associados, 2015. E-mail: leandrogalastri@gmail.com.
M
Ar
cos
D
el
r
oio
P
rofessor
T
itular
. Docente de Ciências P
olíticas do Depar
tamento de
Ciências P
olíticas e Econômicas e do P
rograma de P
ós-graduação em
Ciências Sociais da U
niversidade Estadual P
aulista – F
aculdade de F
ilosoa
e Ciências/Campus de Marília.
M
Arl
y
De
A. g. v
iAnnA
P
rofessora aposentada da UFSCar
, atualmente leciona no PPG Mestrado e
Doutorado, da UNIVERSO. É membro e colaboradora do IAP - I
nstituto
Astrojildo P
ereira; do NEE - N
úcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP/
Campinas; líder do G
rupo de P
esquisa D
iscurso, representações e práticas
sociais, da UNIVERSO.
M
A
t
teo
b
ifone
P
ossui Graduação em ciências políticas e r
elações internacionais concluído
em 2013 U
niversità degli S
tudi di R
oma La Sapienza. P
ar
ticipa do G
rupo de
P
esquisa NEOM/U
nesp. P
ossui mestrado em Scienze della politica - U
niversità
degli S
tudi di Roma La S
apienza (2016). Doutorando do P
rograma de P
ós-
G
raduação em Ciências Sociais da UNESP-Campus de M
arília.
Anderson Deo & Francieli Martins Batista (Org.)
380
M
il
ton
P
inheir
o
Cientista P
olítico, pesquisador de história política na USP e professor
do P
rograma de H
istória, Cultura e P
ráticas Sociais da U
niversidade do
Estado da Bahia (UNEB). Editor ex
ecutivo da revista
N
ov
os T
emas
e
autor/organizador
, entre outros, dos livros
T
eoria e prática dos conselhos
operários
(Expressão P
opular
, 2013) e Ditadura: o que resta da transição
(Boitempo, 2014). Estuda e pesquisa a história política brasileira com
ênfase na esquerda r
evolucionária, operador político, poder político e
sociedade de transição. Contato: mtpinh@uol.com.br
n
eusA
M
AriA
D
Al
r
i
P
rofessora Livre-D
ocente III da U
niversidade Estadual P
aulista (UNESP),
Campus de Marília. D
ocente do P
rograma de P
ós-Graduação em
Educação
. P
ós-doutorado na Univ
ersidade do Minho, P
ortugal. Bolsista
PQ do Conselho N
acional de Desenvolvimento Cientíco e
T
ecnológico
(CNPq). Líder do G
rupo de P
esquisa O
rganizações e Democracia e editora
do periódico cientíco OR
G&DEMO
P
A
ul
o
A
l
ves
De
l
iMA
f
ilho
P
ós-doutorado na área de Geopolítica da Energia na UNESP-M
arília.
T
em experiência na área de Economia, com ênfase em C
rescimento e
Desenvolvimento Econômico, atuando principalmente nos seguintes
temas: crítica da economia política, economia política da mundialização,
alternativas ao capitalismo da miséria, a especicidade do capitalismo por
via colonial e a reprodução capitalista, a educação e a questão energética.
Ultimamente tem-se dedicado aos temas da economia politica do
socialismo e da transição ao comunismo, assim como das questões da
revolução tecnológica e dinâmica e crise do capitalismo contemporâneo
.
100
Anos da Revolução Russa: a
T
ransição Socialista como Atualidade Histórica
381
r
AMón
P
eñA
c
Astr
o
P
rofessor da F
undação Oswaldo Cruz - Rio de J
aneiro
s
ofiA
M
AnzAno
É economista, professora da U
niv
ersidade Estadual do Sudoeste da B
ahia
(UESB), autora do livro Economia P
olítica para
T
rabalhadores (São P
aulo:
ICP
, 2013) e coordenadora do G
rupo de Estudos d´O Capital da UESB.
s
tef
Ano
g. A
zzArà
Doutor em F
ilosoa. Docente da U
niversità Degli S
tudi di U
rbino “Carlo
Bo
” – Itália.
Catalogação
T
elma J
aqueline Dias Silveira
CRB 8/7867
N
ormalização
Maria Elisa
V
alentim Pickler Nicolino
CRB - 8/8292
Elizabete Cristina de S
ouza de Aguiar Monteiro
CRB - 8/7963
Capa e diagr
amação
Gláucio Rogério de M
orais
Pr
odução gráca
Giancarlo Malheir
o Silva
Gláucio Rogério de M
orais
Assessoria T
écnica
Renato Geraldi
Ocina U
niversitária
Laboratório Editorial
labeditorial.marilia@unesp.br
2019
Impressão e acabamento
F
ormato
16X23cm
T
ipologia
Adobe Garamond P
ro
P
apel
P
olén soft 75g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
T
ir
agem
100
s
obre
o
livr
o
a T
ransição Socialista como
Atualidade Histórica
100
ANO
S D
A
REV
OLUÇ
Ã
O
RUSS
A:
CULTURA
ACADÊMICA
E
d
i
t
o
r
a
A
N
I
C
I
F
O
I
T
Á
R
I
A
S
R
E
V
I
N
U
ais
de
cem
anos
depois
de
seu
estalido,
e
sob
as
condiçoes
atuais
de
um
M
neoliberalismo
predatório
e
de
ofensiva
conservadora
na
América
Latina,
a
Revolução
R
ussa
continua viv
a
como fonte
de inspirações,
para
a
ação
e
à r
eexão
orientadas
na
direção
da conquista
da
emancipação humana.
As
análises sem
concessões
de suas
conquistas,
suas
limitações
e
seus
erros
seguem
sendo
condições
indispensáveis
para
todo
projeto
que
busque
pensar
a
transformação
social
em
sentido
revolucionário.
Os
ca
pí
tu
lo
s
que
int
eg
ra
m
est
e
li
vr
o
ind
ag
am
dive
rs
as
d
im
en
sõ
es
d
o
gr
an
de
acontecimento
e
suas
derivações
históricas:
o
papel
das
mulheres
durante
a
insurreição,
os
avanços
e
retrocesos
da
causa
feminista
na
primeira
década
da
UR
SS
;
o
apogeu
e
a
crise
dos
sovietes
e
os
dilemas
da
democracia
socialista;
o
desenvolvimento
econômico
durante
os
dez
anos
posteriores
a
tomada
do
poder
,
bem
como,
suas
vinculações
com
as
lutas
políticas
no
seio
do
P
artido
Bolchevique;
os
experimentos
estéticos
e
as
tentativas
de
constr
ução
de
uma
nova
subjetividade; as razões profundas da crise e derrocada da U
nião Soviética. Com pr
ofundidade
teórica
e
crítica
e
com compr
omisso
ético
e
político
sérios,
as
contribuições
do
presente
livro
são
estímulos
valiosos
para
repensar
o
passado
e
o
presente
das
lutas
emancipatórias.
Miguel
V
edda
U
niversidade de Buenos Air
es
IS
BN 978-65-86546-08-8