80 | Ulisses Razzante Vaccari (Organizador)
antecede o momento em que, sem [falsa] sisudez ou riso [fácil], o con-
tracanto “sentido da vida” passa risonhamente a tema principal.
A sequência de 1’41” em que tal passagem ocorre é precedida
por outra, de 1’59”, em que avançam, nessa ordem, as falas da “enfer-
meira”, do “psicanalista”, da “organizadora da mostra”, do próprio San-
dy Bates. Com exceção da fala da “organizadora da mostra”, as demais
três pontuam diretamente a questão do “sentido da vida”. Pela primei-
ra, a “enfermeira” lamenta que, morto, Sandy não tenha encontrado o
“sentido da vida”. Pela segunda, o “psicanalista” arma que a incapaci-
dade de Sandy de afastar os fatos terríveis da existência [por exemplo: o
porquê do “sofrimento humano” e a questão da existência de “Deus”]
“tornou a sua vida sem sentido”, frase pela qual se poderá supor que, se
a vida dele não teve um—um que lhe fosse conhecido—, a própria vida
em geral poderá tê-lo. Pela última fala, é o próprio Sandy Bates quem,
lembrando-se de que “estava procurando alguma coisa que desse sentido
à [sua] vida”, teve uma determinada memória, sequência salvo engano
central do lme, ao menos no tocante ao que aqui me importa, e na qual
“sentido da vida” passa a tema principal
7
.
Essa sequência tem duas camadas narrativas e temporais inter-
ligadas, que, juntas, resultam na narrativa fílmica.
Sandy, redivivo, conta-nos, no presente, a sua recordação pas-
sada; já no presente do passado, e, pois, com ele vivo, temos parte da sua
Sobre a passagem em questão, cf.: Memórias. Direção: Woody Allen. [1980]. Distribuição: 20th Century
Fox Home Entertainment. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s1TTmP012qc>. Acesso
em: 15 ago. 2018: “It was one of those great spring days, it was Sunday, and you knew summer would be coming
soon. And I remember that morning Dorrie and I had gone for a walk in the park and come back to the apart-
ment. We were just sort of sitting around and I put on a record of Louie Armstrong which was music I grew up
with and it was very, very pretty, and I happened to glance over and I saw Dorrie sitting there. And I remember
thinking to myself how terric she was and how much I loved her. And I don’t know, I guess it was a combination
of everything, the sound of the music, and the breeze, and how beautiful Dorrie looked to me and for one brief
moment everything just seemed to come together perfectly and I felt happy, almost indestructible in a way [...]”
(STARDUST Memories, [1980]). No lme em questão, Sandy Bates [que não é só alvo de conito pro-
ssional, mas passa também por uma crise existencial] é interpretado pelo próprio Woody Allen, ao passo
que Dorrie é-o por Charlotte Rampling. A fala aqui parcialmente reproduzida é dita ao som de Stardust,
interpretada por Louis Armstrong, composição à qual Sandy Bates alude no trecho em pauta—“and I put on
a record of Louie Armstrong which was music I grew up with and it was very, very pretty [...]”—, e que, de resto,
está referida no próprio título da película. Sobre o título do lme e a sua relação com a famosa canção—
composta em 1927 por Hoagy Carmichael, com letra, acrescida dois anos depois, de Mitchell Parish—, cf.
BAILEY, 2014, p. 132: “(Stardust Memories is named after Armstrong’s alternate take of the jazz standard, in
which the trumpeter/vocalist ad-libbed ‘oh, memory’ in the studio.)”.